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ISSN 0101 - 4366

Hoc facit, ut longos durent bene gesta per annos.


Et possint sera posteritate frui.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178, n. 474, pp. 11-404, maio/ago. 2017.


INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO BRASILEIRO
Considerado de utilidade pública:
Estadual: Lei nº 1.068, de 14-9-1966 (Diário Oficial do Estado, parte I, de 20-9-1966)
Federal: Decreto nº 61.251, de 30 de agosto de 1967
Av. Augusto Severo, 8, Rio de Janeiro, CEP 20021-040

Fundado em 21-10-1838, em plena Regência, por 27 sócios da prestigiosa Sociedade


Auxiliadora da Indústria Nacional, o IHGB originou-se de proposta anterior do marechal de
campo Cunha Matos e do cônego Januário da Cunha Barbosa. Pedro II logo o tomou sob seus
auspícios.
Os objetivos estatutários eram, entre outros: coligir, metodizar, publicar ou arquivar
documentos, promover cursos e editar a Revista Trimestral de História e Geografia ou o
Jornal do IHGB.
O Arquivo é hoje um dos melhores do Brasil, graças a sucessivas doações de papéis de
estadistas e historiadores, como José Bonifácio, o marquês de Olinda, Varnhagen, Cotegipe, o
conde d´Eu, o visconde de Ouro Preto, Prudente de Morais, Rodrigues Alves, Epitácio Pessoa,
Manuel Barata, Wanderley Pinho, Hélio Viana e Jackson de Figueiredo, entre outros.
A Biblioteca, por compra, doações e permutas, ultrapassa de 500 mil volumes, de grande
interesse para os estudos brasileiros.
A Mapoteca dispõe de cerca de 12 mil cartas geográficas, referentes, sobretudo, ao
território brasileiro.
O Museu, criado em 1851 para guardar a memória de varões ilustres em máscaras
mortuárias, retratos e lembranças pessoais, exibe hoje peças, como a espada de campanha de
Duque de Caxias (modelo dos espadins dos cadetes do nosso Exército) ou a cadeira em que
Pedro II, durante 40 anos, presidiu a 508 sessões do Instituto.
A Pinacoteca é rica, abrangendo desde a imensa tela da Coroação de Pedro II, de autoria
do sócio Araújo Porto-Alegre, até a impressionante galeria de retratos (e bustos) de monarcas,
nobres e personalidades da Colônia à República.
Os sócios, eméritos, titulares, honorários e correspondentes, no país e no estrangeiro, são
eleitos vitaliciamente. O corpo social promove conferências, congressos e cursos, anunciados
com antecedência, e realiza reuniões acadêmicas, de março a dezembro, todas as quartas-
-feiras. As atas são publicadas pela Revista no último número do ano.
R IHGB
a. 178
n. 474
maio/ago.
2017
INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO BRASILEIRO
DIRETORIA – (2015-2016)
Presidente: Arno Wehling
1º Vice-Presidente: Victorino Chermont de Miranda
2º Vice-Presidente: Affonso Arinos de Melo Franco
3º Vice-Presidente: José Arthur Rios
1º Secretário: Cybelle Moreira de Ipanema
2º Secretário: Maria de Lourdes Viana Lyra
Tesoureiro: Fernando Tasso Fragoso Pires
Orador: Alberto da Costa e Silva

CONSELHO FISCAL
Membros efetivos: Antonio Izaias da Costa Abreu, Luiz Felipe de Seixas
Corrêa, Marilda Correia Ciribelli
Membros suplentes: Marcos Guimarães Sanches, Pedro Carlos da Silva Telles,
Roberto Cavalcanti de Albuquerque

CONSELHO CONSULTIVO
Membros nomeados: Carlos Wehrs, Célio Borja, José Pedro Pinto Esposel e
Miridan Britto Falci.

DIRETORIAS ADJUNTAS
Arquivo: Jaime Antunes da Silva
Biblioteca: Claudio Aguiar
Cursos: Antonio Celso Alves Pereira
Iconografia: Pedro K. Vasquez
Informática e Dissem. da Informação: Carlos Eduardo de Almeida Barata
Museu: Vera Lucia Bottrel Tostes
Patrimônio: Guilherme de Andrea Frota
Projetos Especiais: Mary del Priore
Relações Externas: Maria Beltrão
Relações Institucionais: João Mauricio de A. Pinho
Coordenação da CEPHAS: Maria de Lourdes Viana Lyra e Lucia Maria Paschoal
Guimarães (subcoord.)
Editor do Noticiário: Victorino Chermont de Miranda

COMISSÕES PERMANENTES
ADMISSÃO DE SÓCIOS: CIÊNCIAS SOCIAIS: ESTATUTO:
Alberto da Costa e Silva Antônio Celso Alves Pereira Affonso Arinos de Mello Franco
Alberto Venancio Filho Cândido Mendes de Almeida Alberto Venancio Filho
Carlos Wehrs Helio Jaguaribe de Matos Célio Borja
Fernando Tasso Fragoso Pires José Murilo de Carvalho João Maurício A. Pinho
José Arthur Rios Maria Beltrão Victorino Chermont de Miranda

GEOGRAFIA: HISTÓRIA: PATRIMÔNIO:


Armando de Senna Bittencourt Eduardo Silva Afonso Celso Villela de Carvalho
Cybelle Moreira de Ipanema Guilherme de Andrea Frota Antonio Izaías da Costa Abreu
José Almino de Alencar Lucia Maria Paschoal Guimarães Claudio Moreira Bento
Miridan Britto Falci Marcos Guimarães Sanches Fernando Tasso Fragoso Pires
Vera Lúcia Cabana de Andrade Maria de Lourdes Vianna Lyra Roberto Cavalcanti de Albu-
querque
REVISTA
DO
INSTITUTO HISTÓRICO
E
GEOGRÁFICO BRASILEIRO
Hoc facit, ut longos durent bene gesta per annos.
Et possint sera posteritate frui.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178, n. 474, pp. 11-406, maio/ago. 2017.


Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, ano 178, n. 474, 2017.

Indexada por/Indexed by
Ulrich’s International Periodicals Directory – Handbook of Latin American Studies (HLAS) –
Sumários Correntes Brasileiros

Correspondência:
Rev. IHGB – Av. Augusto Severo, 8-10º andar – Glória – CEP: 20021-040 – Rio de Janeiro – RJ – Brasil
Fone/fax. (21) 2509-5107 / 2252-4430 / 2224-7338
e-mail: revista@ihgb.org.br home page: www.ihgb.org.br
© Copright by IHGB
Tiragem: 700 exemplares
Impresso no Brasil – Printed in Brazil
Revisora: Sandra Pássaro
Secretária da Revista: Tupiara Machareth

Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. - Tomo 1, n. 1 (1839) - . Rio de Janeiro: o


Instituto, 1839-
v. : il. ; 23 cm

Trimestral
ISSN 0101-4366
Ind.: T. 1 (1839) – n. 399 (1998) em ano 159, n. 400. – Ind.: n. 401 (1998) – 449 (2010) em n. 450
(2011)
N. 408: Anais do Simpósio Momentos Fundadores da Formação Nacional. – N. 427: Inventá-
rio analítico da documentação colonial portuguesa na África, Ásia e Oceania integrante do acervo
do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro / coord. Regina Maria Martins Pereira Wanderley
– N. 432: Colóquio Luso-Brasileiro de História. O Rio de Janeiro Colonial. 22 a 26 de maio de 2006.
– N. 436: Curso - 1808 - Transformação do Brasil: de Colônia a Reino e Império.

1. Brasil – História. 2. História. 3. Geografia. I. Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

Ficha catalográfica preparada pela bibliotecária Celia da Costa


CONSELHO EDITORIAL
António Manuel Dias Farinha – Universidade de Lisboa – Lisboa – Portugal
Arno Wehling – Universidade Veiga de Almeida – Rio de Janeiro-RJ – Brasil
Carlos Wehrs – Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro – Rio de Janeiro-RJ – Brasil
José Murilo de Carvalho – Universidade Federal do Rio de Janeiro – Rio de Janeiro-RJ – Brasil
Lucia Maria Bastos Pereira das Neves – Universidade do Estado do Rio de Janeiro – Rio de Janeiro-RJ – Brasil
Manuela Mendonça – Universidade de Lisboa – Lisboa – Portugal
Maria Beatriz Nizza da Silva – Universidade de São Paulo – São Paulo-SP – Brasil

COMISSÃO DA REVISTA: EDITORES


Eduardo Silva – Fundação Casa de Rui Barbosa – Rio de Janeiro-RJ – Brasil
Esther Caldas Bertoletti – Ministério da Cultura – Rio de Janeiro-RJ – Brasil
Lucia Maria Paschoal Guimarães – Universidade do Estado do Rio de Janeiro – Rio de Janeiro-RJ-Brasil
Maria de Lourdes Viana Lyra – Universidade Federal do Rio de Janeiro – Rio de Janeiro-RJ – Brasil
Mary del Priore – Universidade Salgado de Oliveira – Niterói-RJ – Brasil

CONSELHO CONSULTIVO
António Manuel Botelho Hespanha – Universidade Nova Lisboa – Lisboa – Portugal
Edivaldo Machado Boaventura – Universidade Federal da Bahia – Salvador-BA-Brasil
Fernando Camargo – Universidade Federal de Pelotas – Pelotas-RS – Brasil
Geraldo Mártires Coelho – Universidade Federal do Pará – Belém-PA – Brasil
Guilherme Pereira das Neves – Universidade Federal Fluminense – Niterói-RJ – Brasil
José Marques – Universidade do Porto – Porto – Portugal
Junia Ferreira Furtado – Universidade Federal de Minas Gerais – Belo Horizonte-MG – Brasil
Leslie Bethell – Universidade de Oxford – Oxford – Inglaterra
Luís Cláudio Villafañe Gomes Santos – Ministério das Relações Exteriores – Brasília-DF – Brasília
Marcus Joaquim Maciel de Carvalho – Universidade Federal de Pernambuco – Recife-PE – Brasil
Maria de Fátima Sá e Mello Ferreira – ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa – Lisboa – Portugal
Mariano Cuesta Domingo – Universidad Complutense de Madrid – Madrid – Espanha
Miridan Britto Falci – Universidade Federal do Rio de Janeiro – Rio de Janeiro-RJ – Brasil
Nestor Goulart Reis Filho – Universidade de São Paulo – São Paulo-SP – Brasil
Renato Pinto Venâncio – Universidade Federal de Ouro Preto – Ouro Preto-MG – Brasil
Stuart Schwartz – Universidade de Yale-Connecticut – EUA
Ulpiano Bezerra de Meneses – Universidade de São Paulo – São Paulo-SP – Brasil
Victor Tau Anzoategui – Universidade de Buenos Aires – Buenos Aires – Argentina
SUMÁRIO
SUMMARY
Carta ao Leitor 11
Lucia Maria Paschoal Guimarãe
I – ARTIGOS E ENSAIOS
ARTICLES AND ESSAYS
Governo representativo e eleições no século XIX 15
Representative Government and Elections in the 19th Century
Miriam Dolhnikoff
A rede de sociabilidades do Barão do Rio Branco 47
e a defesa da soberania territorial brasileira
Baron of Rio Branco´s network of sociability and the defense of
Brazilian territorial sovereignty
Luciene Carris
O Desenvolvimento da Ciência e Tecnologia de Defesa 91
e a Política Externa Brasileira
The Development of Defense Science and Technology
and the Brazilian Foreign Policy
Luiz Rogério Franco Goldoni
Notes on the “Agudá Jubilee”: the great Brazilian Celebration 121
of the Abolition of Slavery (Brazil and Lagos, West Africa, 1888)
Notas sobre o “Jubileu Agudá”: A grande festa brasileira
da Abolição (Brasil e Lagos, África Ocidental, 1888)
Eduardo Silva
Negócios impressos: o editor Francisco de Paula Brito 149
e a edição de periódicos, teses e livros de medicina
no Brasil Oitocentista
Printed Business: the Editor Francisco de Paula Brito
and the Edition of Periodicals, Theses and Medical Books
in Eighteenth-Century Brazil
Monique de Siqueira Gonçalves
Tânia Maria Tavares Bessone da Cruz Ferreira
Os refluxos culturais da emigração portuguesa para 177
o Brasil no fim do século XIX e no início do século XX
– um olhar a partir do Folclore
Cultural Reflux of Portuguese Emigration to Brazil in the Late
Nineteenth and Early Twentieth Centuries as Seen from Folklore
Jaime Ricardo Gouveia
Missão Naval Americana: os primeiros 20 anos (1922-1942) 217
American Naval Mission: the First Twenty Years from 1922 to1942
Ricardo Pereira Cabral
Thiago Sarro
O Estado Novo brasileiro como espelho do salazarismo: 249
Autoritarismo e corporativismo na seção “crítica”
da Revista Brasília (1942-1944)
The Brazilian New State as a Mirror of Salazarism:
Authoritarianism and Corporatism in the “Critique”
section of the Brasilia Magazine (1942-1944)
Marcello Felisberto Morais de Assunção
O expansionismo japonês e a experiência 275
dos Koutakussei na Amazônia
Japanese Expansionism and the Experience
of the Koutakusseis in the Amazon
Reiko Muto
Luis E. Aragón
II – COMUNICAÇÕES
NOTIFICATIONS
Alexandre de Gusmão e a demarcação das fronteiras 299
da Amazônia: Os Jesuítas matemáticos e astrônomos Italianos
Alexandre de Gusmão and the demarcation of the Amazon borders:
the mathematical Jesuits and the Italian astronomers
Vasco Mariz
Para o “crédito e reputação do governo”: 315
circuitos de deliberação e a governação por conselhos
superiores na monarquia pluricontinental portuguesa (1640-1688)
To the “Credit and Reputation of Government”: Circuits of Deli-
beration and Governance by Superior Councils in the Portuguese
Pluricontinental Monarchy (1640-1688)
Marcello José Gomes Loureiro
Dentre Gazetas 329
From Among the Gazettes
Cybelle de Ipanema
III – DOCUMENTOS
DOCUMENTS
Memórias do governador Antônio Manuel de Melo Castro 349
e Mendonça (São Paulo, 1799)
The Memoirs of Governor Antônio Manuel de Melo
Castro e Mendonça (São Paulo, 1799)
Pablo Oller Mont Serrath
V – RESENHAS
REVIEW ESSAYS
O Rei condenado à morte & outras histórias 393
Adelto Gonçalves
• Normas de publicação 399
Guide for the authors 401
Carta ao Leitor

O diplomata, musicólogo e historiador Vasco Mariz (1921-2017)


preparou a conferência “Alexandre de Gusmão e a demarcação das fron-
teiras da Amazônia: os jesuítas matemáticos e astrônomos italianos” ,
com o objetivo de pronunciá-la na cerimônia de posse na Academia Por-
tuguesa da História, o que não veio a se concretizar, lamentavelmente,
devido ao seu falecimento. Neste número, a Revista presta tributo ao
colaborador assíduo e sócio emérito do Instituto Histórico com a pub-
licação póstuma do texto que seria lido por Vasco em Lisboa, na seção
destinada às “Comunicações”.

Ao lado da homenagem a Vasco Mariz, a seção traz duas interven-


ções expostas em reuniões da Comissão de Estudos e Pesquisas Histó-
ricas (CEPHAS): “Para o ‘crédito e reputação do governo’: circuitos de
deliberação e a governação por conselhos superiores na monarquia pluri-
continental (1640-1688)”, e “Dentre Gazetas”, assinadas respectivamen-
te por Marcelo Loureiro e Cybelle de Ipanema.

A R. IHGB oferece aos leitores nove inéditos, no segmento “Artigos


e Ensaios”, sendo que cinco deles contemplam questões e temas perti-
nentes ao que se convencionou denominar de longo século XIX. O artigo
Notes on “Jubilee Aguda”, de Eduardo Silva, aborda tema original, jo-
gando luz sobre as celebrações da promulgação da Lei Áurea em terras
africanas, na Colônia Britânica de Lagos. Para se ter uma ideia tais co-
memorações se estenderam até outubro de 1888, revelando a existência
de uma complexa teia de relações sociais que envolvia as duas margens
do Atlântico.

O ensaio “Governo representativo e eleições no século XIX”, escrito


por Miriam Dolhnikoff, examina os debates parlamentares que resulta-
ram nas reformas eleitorais de 1846 e 1855. Por sua vez, Luciene Cardo-
so se debruça sobre a rede de sociabilidade formada pelo Barão do Rio
Branco no processo de solução das disputas territoriais do Brasil com a
Argentina e a Guiana Francesa, centrando o fóco em dois colaboradores
estrangeiros do Barão– os geógrafos franceses Emile Levasseur e Élisée
Reclus. Na sequência, duas estudiosas da história do livro e da leitura, Ta-
nia Bessone e Monique de Siqueira Gonçalves, analisam a trajetória cum-
prida pelo editor Franscisco de Paula Brito, durante o Segundo Reinado,
em particular, o seu trabalho pioneiro na publicação e comercialização de
periódicos, teses e livros na área das ciências médicas.

Caminhando já para o século XX, no texto “Refluxos culturais da


emigração portuguesa no Brasil”, o pesquisador luso Jaime Ricardo Gou-
veia explora um novo ângulo da problemática da emigração, para iden-
tificar nas manifestações folclóricas elementos da aculturação dos emi-
grados na pátria adotiva. A temática da emigração volta a ser abordada
por Reiko Muto e Luís E. Aragon, por meio de um interessante estudo de
caso sobre jovens estudantes japoneses – denominados koutakussei - que
decidiram imigrar para a Amazônia, na década de 1930, e se instalaram
nas proximidades da cidade de Parintins. Segundo os autores, a iniciativa
integrava a política expansionista japnesa, cujo propósito era o assenta-
mento futuro de 10 mil famílias na região.

Também no âmbito das relações luso-brasileiras, a colaboração de


Marcello Felisberto Morais de Assunção privilegia as leituras que inte-
lectuais portugueses fizeram do Estado Novo brasileiro, nas páginas da
Revista Brasilia (1942-1944), publicada pelo Instituto de Estudos Bra-
sileiros da Universidade de Coimbra. Finalmente, na seção “Artigos e
Ensaios”, cabe mencionar as duas contribuições que privilegiam questões
de história militar, campo que tem experimentado significativos avanços,
na esteira da renovação porque passam hoje em dia os estudos de histó-
ria política. Luiz Rogério Franco Goldoni articula o desenvolvimento da
ciência e tecnologia de defesa com a política externa brasileira, enquanto
que a dupla Ricardo Pereira Cabral e Thiago Sarro examina o papel de-
sempenhado pela Missão Naval Americana junto à Marinha Brasileira,
entre 1922 e 1942.

A seção “Documentos” reproduz um importante manuscrito setecen-


tista sobre a capitania de São Paulo: “Memórias do Governador Antônio
Manuel de Melho Castro e Mendonça. A trancrição vem precedida de
alentado estudo crítico e paleográfico preparado por Paulo Oller Mont
Serrath.

Completa o número a resenha de Adelto Gonçalves, a respeito do


livro O Rei condenado à morte & outras histórias, um conjunto de crô-
nicas do premiado autor Edmar Monteiro Filho. À guisa de curiosidade,
cabe assinalar que o Rei aludido no titulo da obra é Pelé, o jogador de
futebol mais famoso do mundo.

Boa leitura!
Lucia Maria Paschoal Guimarães
Diretora da Revista
Governo representativo e eleicões no século XIX

15

I – ARTIGOS E ENSAIOS
ARTICLES AND ESSAYS

governo representativo e eleições no sÉculo XIX


Representative Government and Elections in the
19th Century
Miriam Dolhnikoff1
Resumo: Abstract:
Este artigo tem por objeto de análise os deba- We analyze in this article the debates in the
tes na Câmara dos Deputados e no Senado que Chamber of Deputies and the Senate that result-
resultaram nas leis eleitorais promulgadas em ed in the election laws promulgated in 1846 and
1846 e 1855. Procura-se demonstrar que esta- 1855. We try to show that the models of elec-
vam em confronto dois modelos de organização toral organization defended by the Liberal and
eleitoral, um defendido pelo Partido Liberal e Conservative Parties clashed with each other.
outro pelo Partido Conservador. A divergência The divergence between both parties reflected
refletia duas concepções distintas de como de- two distinct conceptions of how representative
veria ser organizado o governo representativo government should be organized in the form of
na forma de uma monarquia constitucional. a constitutional monarchy. Two hypotheses are
Duas são as hipóteses defendidas neste texto. addressed here. The first is that the project of
A primeira é que o projeto do Partido Liberal, the Liberal Party approved in 1846 aimed at
aprovado em 1846, visava reverter em parte a partially reversing the institutional order estab-
ordem institucional estabelecida pelo Regresso. lished by the Conservative Party. The second is
A segunda é que este debate e a aprovação desta that the debate about and the adoption of the
lei, assim como a de 1855, devem ser compre- laws of 1846 and 1855 must be understood in
endidos no contexto de uma discussão contínua the context of a continuous discussion within the
no interior da elite política do século XIX no political elite of the nineteenth century aimed at
sentido de conferir à monarquia constitucional a giving the constitutional monarchy the appear-
feição de um governo representativo que tivesse ance of a representative government that would
nas eleições um mecanismo de disputa política. have a political dispute mechanism in the elec-
Parte-se do pressuposto de que a monarquia tions. We assume that the Brazilian monarchy
brasileira se enquadrava no perfil de governo conformed to the representative government
representativo do século XIX, prevalecente nos profile of the nineteenth century prevailing in
países ocidentais, e que a elite política organi- Western countries and that the political elite or-
zou o regime a partir do repertório político que ganized the regime from the political repertoire
compartilhava com as elites destes países. that it shared with the elites of these countries..
Palavras-chave: Governo representativo no Keywords: representative government in nine-
Brasil do século XIX; reformas eleitorais de teenth-century Brazil; electoral reforms of 1846
1846 e 1855; debate sobre legislação eleitoral and 1855; debate about electoral legislation in
na monarquia constitucional; partidos e organi- the constitutional monarchy; parties and the or-
zação das eleições. ganization of elections.

1  –  Doutora em História Econômica pela Universidade de São Paulo, professora adjunta


da Universidade de São Paulo e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planeja-
mento.

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Miriam Dolhnikoff

O objetivo deste artigo é analisar como a discussão sobre a orga-


nização das eleições durante a monarquia foi pautada pela preocupação
em criar mecanismos para garantir a disputa política, de modo a articular
forças locais, provinciais e nacionais, incorporando a lógica da disputa
partidária, gerenciando a interferência do governo central nas eleições
e a relação entre os poderes e definindo o perfil dos representantes que
seriam eleitos, no bojo dos esforços na montagem de um governo repre-
sentativo. Estes pontos nortearam o debate parlamentar, no qual Partido
Liberal e Partido Conservador se opuseram em torno de diferentes mode-
los de representação. A análise se centrará nos debates que resultaram nas
leis de 1846 e 1855.

A lei de 1846 foi uma reforma-chave na legislação porque foi a pri-


meira sobre o tema promulgada pelo Legislativo, que nasceu de projeto da
Câmara e não do Executivo, estabelecendo uma organização abrangente
do processo eleitoral, enquanto os diplomas seguintes apenas modifica-
vam alguns dos seus artigos. A de 1855 a complementava, prescrevendo
medidas que não haviam sido aprovadas antes. A hipótese aqui defendida
é que ambas definiram um modelo e uma concepção para as práticas elei-
torais e para as relações de representação com as quais se queria pautar
a dinâmica política da monarquia. No confronto entre diferentes projetos
havia estratégias distintas para garantir que a representação, tal como ela
era entendida no século XIX, tivesse no processo eleitoral um dos seus
pilares. Primeiro, como forma de legitimação do regime, segundo, como
modo de canalizar institucionalmente os conflitos intraelite.

Em trabalho anterior, constatei a relevância da Câmara dos Deputa-


dos no processo decisório da monarquia constitucional2, o que me levou a
considerar pertinente rever a afirmação feita por parte da historiografia de
que o governo representativo era falseado, resultando, praticamente, no
monopólio da iniciativa política nas mãos do imperador e do Executivo.
A escravidão, o Poder Moderador e a manipulação dos resultados das
eleições, fosse pela fraude, fosse pelo clientelismo, levaram os historia-
2 –  Dolhnikoff, Miriam. O pacto imperial: origens do federalismo no Brasil. São
Paulo: Globo, 2005.

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Governo representativo e eleicões no século XIX

dores a desconfiar da afirmação dos políticos oitocentistas de que estavam


construindo um regime representativo nos moldes liberais então vigentes
na Europa e Estados Unidos.3

Segundo Carvalho, as diversas reformas eleitorais resultaram na pro-


gressiva restrição dos direitos de cidadania. O primeiro passo importante
neste sentido teria sido a indexação à prata da renda exigida pela cons-
tituição para votar e se candidatar, prevista pela lei de 1846. A represen-
tação da minoria, por sua vez, surgiu na época em que foi nomeado o
Ministério da Conciliação. O problema se apresentava na medida em que
os conservadores, mais especificamente os saquaremas, cuja base era a
cafeicultura do Vale do Paraíba, estavam no poder há muitos anos, margi-
nalizando os liberais. Estes representavam grandes proprietários de outras
regiões que, se não tivessem acesso aos cargos decisórios, poderiam ser
foco de contestação do sistema. Daí a necessidade de incluí-los com a
reforma eleitoral aprovada em 1855, por meio do voto distrital. Depois
de acirrada disputa no parlamento, a lei só teria sido aprovada pela inter-
venção direta de Paraná como chefe do gabinete. Com efeito, nas eleições
realizadas após a promulgação da lei, afirma o autor, houve renovação da
Câmara com a chegada de deputados que tinham apenas influência lo-
cal. Para retomar o papel de mediação da direção nacional, nova reforma
foi aprovada. Continuou a preocupação em garantir a representação da
minoria, mas com medidas mitigadas. Por fim, quanto à intervenção do
governo nos resultados eleitorais, Carvalho ressalta que as diversas leis
não foram capazes de limitá-la, pois era condição para a estabilidade do
regime. Apenas a interferência do Poder Moderador nos pleitos, garantin-
3  –  Com interpretações muito distintas entre si, vários autores concordam que o governo
representativo no século XIX no Brasil foi falseado, fosse pela forma como foi exercido
o Poder Moderador, ou pela extensiva prática da fraude eleitoral, ou por ambos, ou ainda,
em diversas chaves interpretativas, o falseamento seria devido à presença das relações
clientelistas. Entre estes autores, vale destacar: Holanda, Sérgio Buarque de. Do Im-
pério à República. História geral da civilização brasileira. 4ª. ed. São Paulo: Difel, 1985,
T. II, V. 5º, Carvalho, José Murilo de. A Construção da ordem: A elite política impe-
rial. Brasília: UNB, 1981, Mattos, Ilmar Rohloff de. O tempo saquarema. São Paulo:
Hucitec, 1987, Barman, Roderick J. Brazil. The forging of a nation (1798-1852). Stan-
ford, Stanford University Press, 1988, Grahan, Richard. Clientelismo e política no
Brasil do século XIX. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1997.

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Miriam Dolhnikoff

do a vitória de uma maioria que apoiasse o ministério por ele nomeado,


manteria o conflito intraelite regulado, sem extrapolar os limites institu-
cionais. Todas estas questões estavam relacionadas, na interpretação de
Carvalho, à necessidade de resolver o que considera
o grande dilema da política imperial: como tornar o poder mais de-
pendente dos interesses da classe proprietária rural sem, no entanto,
deixar de ser árbitro dos conflitos entre setores desta mesma classe.4

Em abordagem distinta, proponho que, dadas as características es-


pecíficas dos governos representativos no século XIX, no lugar de fal-
seamento, é possível considerar que a construção do Estado no Brasil
correspondeu ao processo de organização de um governo representativo,
com as dificuldades próprias do período. Nesta perspectiva, o parlamento
ganha relevo como espaço de negociação dos interesses dos diversos se-
tores de uma elite heterogênea, com papel decisório fundamental na dinâ-
mica da monarquia, de forma a canalizar institucionalmente os conflitos.5
E foi esta preocupação que pautou as diferentes propostas de organizar
as eleições. O debate sobre a legislação ganha importância na medida
em que contrapõe diferentes concepções de funcionamento do governo
representativo a partir da disputa eleitoral.

Diversos autores têm enfatizado, sob diferentes aspectos, as carac-


terísticas da monarquia do ponto de vista da montagem de um regime
liberal e constitucional. Andrea Slemian salienta que a elite política atuou
respeitando os parâmetros impostos pela Constituição de 1824. Segundo
ela, a Carta de 1824 teve eficácia no desenvolvimento das instituições
políticas, sendo que a manutenção de uma ordem interna estável levava à
necessidade de criar mecanismos efetivos de participação para os homens
livres pobres, inclusive como forma de preservar a escravidão, ao criar

4 – Carvalho, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial. Tea-
tro das Sombras: a política imperial. 9ª. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014,
p. 397.
5 – Dolhnikoff, Miriam. Império e governo representativo: uma releitura. Cadernos
do CRH, Salvador: Universidade Federal da Bahia, v. 21, pp. 13-23, 2008.

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Governo representativo e eleicões no século XIX

uma clara linha demarcatória entre estes e os escravos. Neste sentido,


afirma que
era no ambiente de definição de quem eram os cidadãos que uma nova
ordem constitucional teria de ser construída. Esbarrava-se aí num pro-
blema que o presente trabalho levanta à alçada do fundamental: o da
construção dos canais de representação política. [...] o poder Legis-
lativo, que alicerçava seu surgimento na “representação da nação”,
apresentava sua vocação no Império do Brasil para também zelar pela
administração do Brasil, numa forma de garantir a eficácia do novo
Estado.6

Com foco na análise da imprensa, vários estudos têm demonstrado


que ela esteve articulada à constituição do espaço público, com a constru-
ção do Estado sob a vigência de um ideário liberal, sendo os impressos de
vários tipos a principal forma de expressão de opinião pública. Lúcia Bas-
tos Neves ressalta que, com a abertura dos trabalhos do parlamento em
1826, “a Câmara, apoiada pela imprensa, passou a ter voz atuante na for-
mação do cidadão, começando a medir forças com o Poder Executivo”.7

Fernando Limongi, por sua vez, aponta o impacto real das leis eleito-
rais na dinâmica das eleições. Em primeiro lugar, fraudes e manipulações
no pleito seguiam “de perto as alterações da legislação”.8 Além disso, e
mais crucial, a qualificação de eleitores e votantes era momento estraté-
gico do processo eleitoral, pois definia o corpo de eleitores, fundamental
para a determinação do resultado dos pleitos. E neste ponto houve mu-
danças significativas na promulgação das leis de 1824, 1842 e 1846, que
definiram de formas distintas a qualificação de quem poderia ser votante
e eleitor. Etapa estratégica do processo porque materializa um problema
intrínseco ao governo representativo que é a coordenação da disputa par-
6 – Slemian, Andréa. Sob o império das leis: constituição e unidade nacional na for-
mação do Brasil (1822-1834). SP: Hucitec, 2009, p. 306.
7 – Neves, Lúcia M. Bastos Pereira das. Opinião Pública. João Feres Jr. (org.) – Léxico
da Histórica dos Conceitos Políticos do Brasil. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009, p.
189. Ver também, entre outros, Morel, Marco e Barros, Mariana Monteiro de. Pala-
vra, imagem e poder: o surgimento da imprensa no Brasil do século XIX. Rio de Janeiro:
DP&A Editora, 2003.
8 –  Limongi, Fernando. Revisitando as eleições do Segundo Reinado: manipulação,
fraude e violência. Lua Nova, São Paulo, n. 91, pp. 13-51, abr. 2014.

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tidária9. Assim, a interferência do governo se deu de forma mais incisi-


va com a participação dos subdelegados na junta de qualificação criada
pelas Instruções de 1842, tornando-se mais contida com a mudança da
composição da junta estabelecida pela lei de 1846. O fato de que a junta
passava a ser formada apenas por cidadãos eleitos e que os dois partidos
estavam nela representados mudou, segundo Limongi, a lógica da disputa
eleitoral:
O efeito mais imediato e direto é a valorização da política local. Elei-
ções locais se tornaram o estágio inicial da luta eleitoral, o ponto de
partida de uma cadeia de disputas. A consequência, portanto, é que
isso acarretasse a partidarização e o interesse geral pelas lutas locais.10

O que tornava mais complexa a disputa eleitoral, inclusive porque


incorporava, no âmbito local, a disputa partidária.

Sem negar o peso das fraudes e do clientelismo nas eleições, é pos-


sível atribuir importância ao debate político e à legislação aprovada sobre
o processo eleitoral no funcionamento da monarquia brasileira, tomando-
-a como um governo representativo com as características oitocentistas,
mesmo com as limitações impostas pela escravidão e o passado colonial.
Questões como representação da minoria e limitação da ingerência do
governo e dos potentados locais eram preocupação real dos legisladores,
conforme apontam Grahan e Carvalho, mas não se tratava apenas de apa-
rência nem um embate entre modelo importado e país real e sim do con-
flito entre projetos de como o governo representativo deveria funcionar.

Por se tratar de uma sociedade escravista, o universo da política se


referia à população livre, excluindo os escravos. Contudo, aqueles que
obtinham liberdade ganhavam com ela o direito de serem votantes, em-
bora não pudessem ser eleitores e nem candidatos. Seus filhos, por sua
vez, se preenchessem os requisitos constitucionais, poderiam, em tese,
gozar de todos os direitos da cidadania política. No Brasil, prevaleciam
critérios de exclusão conforme os padrões vigentes da época, com algu-

9 –  Idem.
10 – Idem.

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Governo representativo e eleicões no século XIX

mas variações, em todos os países que adotavam o governo representa-


tivo. Porém, os limites impostos no Império, como a renda exigida pela
Constituição, eram significativamente baixos, se considerados os exem-
plos de outras nações do período. Cerca de 50% dos homens livres e
libertos maiores de 25 anos tinham direito de ser votantes.11

Por outro lado, o direito de se candidatar não era real para a popula-
ção pobre, ex-escravos ou não. Tal exclusão, no entanto, não se colocava
como uma especificidade brasileira; nos governos representativos do sé-
culo XIX, nascidos das transformações operadas em relação ao Antigo
Regime, a eletividade foi organizada de modo que a uma elite estivesse
reservada a função de dirigir o Estado, cabendo, portanto, a apenas al-
guns setores sociais participar do jogo político. Ainda assim, as novida-
des do projeto liberal eram imensas, na medida em que estabeleciam um
novo tipo de relação entre Estado e sociedade, mudando não só a natureza
desta relação, como ampliando o grau de participação. Isso não signifi-
cava, contudo, sua universalização, uma conquista alcançada apenas no
século XX.

Há que se considerar também a distância entre teoria e prática que


marcou as experiências oitocentistas. As eleições não corresponderam
imediatamente ao ideal liberal. A fraude foi uma constante no cenário elei-
toral do século XIX, tornando anacrônica a afirmação de que ela falseava
o regime brasileiro. A história dos governos representativos ao longo do
tempo corresponde, entre outras coisas, ao esforço dos representantes em
transformar as eleições em prática de exercício efetivo de escolha segun-
do os preceitos legais. Assim, ganha relevo o esforço da elite imperial

11 – Grahan, Richard. Clientelismo e política no Brasil do século XIX. Op. cit. Este
cálculo refere-se a 1872, quando foi feito o primeiro recenseamento nacional. A porcen-
tagem em relação a homens livres com mais de 25 anos diz respeito às outras exigências
constitucionais para votar. Em relação ao total da população livre, os votantes eram em
torno de 10%, uma porcentagem alta para os padrões da época, conforme observaram,
entre outros, José Murilo de Carvalho – Cidadania no Brasil. RJ, Civilização Brasileira,
2001, e Jairo Marconi Nicolau – “As distorções nas representações dos estados na Câmara
dos Deputados brasileira”. RJ, Dados, v. 40, n. 3, 1997.

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em combatê-la, com o argumento de que medidas nesse sentido visavam


garantir a efetividade de um governo representativo.

É preciso também separar fraude de clientelismo. Diversos autores


têm salientado que o clientelismo integrava as relações sociais do perío-
do e seria ingênuo supor que tais relações não afetassem as eleições. A
inclusão de setores sociais como votantes lhes conferia mais do que uma
simples moeda de troca, em que a participação eleitoral ia além da mera
submissão clientelista. Ademais, a participação em eleições para vários
cargos de representação, de juízes de paz a senadores, constituiu também
um aprendizado político12. Apontar as relações clientelistas como forma
de falseamento dos governos representativos oitocentistas reforça o ana-
cronismo, pois é um julgamento que toma como modelo as democracias
do século XX.

Desde 1839, a questão da organização das eleições ocupou a pauta


da Câmara dos Deputados. Seu resultado primeiro foi a promulgação,
pelo Executivo, das Instruções de 1842, no contexto do Regresso conser-
vador13. Refletiam a perspectiva conservadora de governo representativo.
A lei de 1846 foi uma reação liberal e vitória parcial para reverter os di-
plomas aprovados até então, uma vez que materializava uma outra visão
de como o governo representativo deveria se constituir.

O projeto apresentado por eles de reforma eleitoral foi duramente


combatido pela minoria conservadora, conferindo ao chamado quinquê-
nio liberal uma nova dimensão. Não se tratava da acomodação dos libe-
rais ao perfil do Estado imposto pelo Regresso, mas a aceitação do jogo

12  –  Sobre a distinção necessária entre fraude e clientelismo e a necessidade de, no que
diz respeito às eleições, considerar o clientelismo sob outra perspectiva ver Posada-
-Cabo, Eduardo. Electoral Juggling: A Comparative History of the Corruption of Suf-
frage in Latin America, 1830-1930. Journal of Latin American Studies. Cambridge:
Cambridge University Press, Vol. 32, nº. 3, Oct., 2000 e Sabato, Hilda. On Political
Citizenship in Nineteenth-Century Latin America. The American Historical Review, Vol.
106, nº. 4 Oct., 2001, entre outros.
13  –  A Carta de 1824 estabelecia os critérios de definição de cidadania, mas deixava
para uma lei ordinária regulamentar a organização das eleições. A primeira foi o decreto
promulgado pelo Executivo, no mesmo ano.

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Governo representativo e eleicões no século XIX

político nos termos do governo representativo, o que significava tentar


reverter as medidas regressistas no âmbito parlamentar. A aprovação da
lei de 1846 foi uma importante vitória nesse sentido.

Após sua promulgação, no mesmo ano, o senador liberal Paula Sou-


za ofereceu um projeto no Senado que previa o voto distrital e a ine-
legibilidade de determinados funcionários públicos, como magistrados
e presidentes de província. Essas medidas que, convertidas em lei em
1855, complementavam o modelo de seu partido para a organização das
eleições. O projeto ganhou ainda, em 1846, a adesão de parte dos con-
servadores, liderados por Honório Carneiro Leão, em uma aliança que
depois se materializaria no Ministério da Conciliação por ele chefiado.
Na oposição, permaneceram os conservadores chamados de emperrados,
que compunham o núcleo duro do partido quando este levou à frente o
Regresso.

Divergências entre liberais e conservadores


A compreensão da divergência entre liberais e conservadores remete
ao surgimento dos dois partidos. Logo após a abdicação de D. Pedro I
foram aprovadas reformas pelo parlamento que alteraram o perfil institu-
cional de modo a estabelecer um arranjo federativo, peça reforma cons-
titucional decretada em 1834, o Ato Adicional. O Judiciário foi também
objeto de profundas reformas, principalmente com a promulgação do
Código de Processo Criminal de 1832. Por volta de 1837, consolidou-se
a ruptura no interior do grupo conhecido como liberais moderados, que
controlava a Câmara. De um lado, estavam aqueles que pretendiam rever
as reformas e que fundariam o Partido Conservador. De outro, estavam
os representantes que discordavam desta revisão, fundadores do Parti-
do Liberal. O centro do debate era o Judiciário. A este respeito, Monica
Dantas aponta que estavam em jogo dois modelos distintos de como o
Judiciário deveria ser organizado. Enquanto os liberais preconizavam um
modelo que se aproximava da experiência anglo-saxônica, especialmente
norte-americana, privilegiando autoridades eletivas, escolhidas entre os

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cidadãos, os conservadores defendiam o modelo napoleônico que fortale-


cia autoridades com formação especializada e nomeadas pelo governo.14

Segundo Dantas, o Código de Processo de 1832 foi resultado da


combinação de vários modelos disponíveis, mas todos com uma inspi-
ração comum, o reforço do júri e das autoridades eletivas, ou escolhidas
pelos representantes eleitos, em detrimento da magistratura togada, de
nomeação do monarca, que marcou o ideário das últimas décadas do sé-
culo XVIII: os códigos franceses promulgados imediatamente depois da
revolução francesa, o direito processual inglês e o direito processual nor-
te-americano. O juiz de paz eleito pelos votantes, o júri de denúncia, o júri
de sentença, em ambos os casos escolhidos por sorteio, o juiz municipal
e promotor, indicados pelo presidente da província a partir de uma lista
tríplice elaborada pela câmara municipal, tornaram-se as figuras centrais
do Judiciário. Para ocupar estes postos bastava ser cidadão.15

A partir do final da década de 1830, contudo, uma parcela da elite


política formulava um projeto de reforma, tendo como argumento central,
dentre outras alegações, o grande número de revoltas que eclodia em vá-
rias partes do país. A reforma do Código de Processo Criminal, de 1841,
principal medida do Regresso, alterava substantivamente o Código de
1832. Grande parte das atribuições dos juízes de paz foi transferida para
autoridades nomeadas pelo governo central, como chefes de polícia, de-
legados e subdelegados, sempre que possível bacharéis formados. Além
disso, passava a ser da competência da justiça togada todos os principais
atos para o andamento dos processos. Finalmente, os promotores torna-
vam-se de livre nomeação e demissão do imperador ou dos presidentes
de província, preferindo-se sempre os bacharéis formados. Foi extinto o
júri de acusação e restringidas as competências do júri de sentença, sendo
modificadas as exigências para participação no conselho de jurados. Não
14 – Dantas, Monica. Constituição, poderes e cidadania na formação do Estado na-
cional brasileiro. Rumos da Cidadania, São Paulo: Instituto Prometheus, 2010 e “O Códi-
go de Processo Criminal e a Reforma de 1841: dois modelos de organização do Estado”.
Conferência apresentada no IV Congresso do Instituto Brasileiro de História do Direito,
SP, Faculdade de Direito, 2009, cópia cedida pela autora.
15 – Idem.

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Governo representativo e eleicões no século XIX

bastava apenas ser eleitor. Era necessário também saber ler e escrever e
possuir renda anual, variável conforme a província, entre 400 e 200 mil-
-réis. A inspiração era o código napoleônico de 1808, com a introdução
do princípio hierárquico.16

O que a análise do debate sobre a reforma eleitoral em 1845 indica


é que a divergência em torno da concepção do Judiciário estava presente
também nas propostas sobre a organização do processo eleitoral, com os
mesmos princípios, envolvendo concepções distintas de governo repre-
sentativo.

A reforma do Judiciário promovida pelas novas leis do início da


década de 1840 estava articulada a um modelo, defendido pelo Partido
Conservador, no qual a relação de representação restringia-se ao parla-
mento. Os representantes deveriam ser homens ilustrados, capazes as-
sim de identificar e promover o bem comum. Esta representação deveria
conviver com estruturas hierárquicas não eletivas, controladas pelo go-
verno central, como estratégia de manutenção da ordem. Já os liberais
advogavam um modelo distinto: privilegiar os cidadãos eleitos, tanto no
Judiciário como nas instâncias responsáveis pela condução das eleições
e, consequentemente, uma forma de articulação entre poderes locais, pro-
vinciais e governo-geral diferente daquela proposta pelos conservadores.
Os representantes no parlamento, por sua vez, deveriam espelhar a diver-
sidade política e social do país. Estes distintos modelos de representação
marcaram o debate sobre a organização das eleições, pois dela dependia
o papel das forças locais, a capacidade de intervenção do governo central
e o perfil do próprio parlamento. A oposição entre os dois modelos esta-
va inserida no contexto do debate sobre o governo representativo que se
desenrolava na Europa e na América, desde Burke, passando pelos utili-
taristas ingleses, os federalistas norte-americanos, até Guizot na França,
só para citar os mais influentes.

Embora fossem nacionais, no século XIX, os partidos não tinham


o perfil que adquiririam no século seguinte. Não tinham organicidade e
16 – Idem.

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estrutura que garantisse uma unidade programática ou de ação. Em cada


província, os partidos obedeciam à lógica da política local. Portanto, a
disputa eleitoral passava, necessariamente, por alianças com forças polí-
ticas em cada uma das províncias. Ainda assim, é possível falar em cliva-
gem partidária no que dizia respeito a este tema, uma vez que na capital
do Império as lideranças partidárias atuavam em nome do partido no par-
lamento e no ministério. Além disso, se os partidos estavam atrelados a
forças locais nas províncias, em algumas questões de ordem geral havia
certa unidade de ação. Esta unidade pode ser identificada, primeiramente,
no fato de, em alguns temas, as bancadas no parlamento agirem de forma
coesa, ou seja, representantes das diversas províncias seguiam as lideran-
ças do partido na defesa de sua agenda. Em segundo lugar, essa coesão
era perceptível na imprensa. Jornais publicados em diferentes províncias
empenhavam-se na defesa dos projetos do partido a que estavam ligados,
seguindo as lideranças nacionais. Era o caso da organização das eleições.

Modelos em disputa: junta de qualificação e incompatibilidades no


debate de 1845
As Instruções de 1842 materializavam o modelo regressista de or-
ganização das eleições, principalmente pela criação de uma junta de
qualificação encarregada de alistar aqueles que preenchiam os requisitos
constitucionais para serem votantes e eleitores e que deveria se reunir
um mês antes das eleições. Tinha como objetivo separar o momento da
qualificação do dia da eleição, de modo a prevenir fraudes e usurpações.
A junta era composta pelo juiz de paz, o pároco e o subdelegado. Este
último, por integrar a rede criada pela Reforma do Código de Processo
Criminal, articulado à magistratura de carreira, ao presidente da província
e nomeado em última instância pelo governo central, era considerado a
peça fundamental. A junta de qualificação assim formada poderia defi-
nir as eleições, ao estabelecer o corpo de votantes e possíveis eleitores.
Apesar da presença de uma autoridade eleita localmente, o juiz de paz, os

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Governo representativo e eleicões no século XIX

dois outros membros pertenciam à rede potencialmente controlada pelo


governo central.17

A composição da junta refletia o modelo de governo representati-


vo defendido pelos conservadores: uma instância na qual o governo, por
meio do subdelegado, podia influenciar, no sentido de ser o responsável
pela manutenção da ordem e uma espécie de contraponto da autoridade
eleita localmente, o juiz de paz. Belisário Soares de Souza assim sinteti-
zou o princípio por trás de tal composição:
Na formação das juntas de qualificação, julgava-se ter dado todas as
garantias, chamando-se para compô-las o juiz de paz, que represen-
tava o elemento popular; o subdelegado de polícia, fiscal do governo
encarregado de manter a ordem e a regularidade do processo eleitoral;
o pároco, entidade neutra entre o representante do povo e o do poder.18

A reação dos liberais em 1845 foi a proposta de um projeto de lei


que reorganizava o processo eleitoral, inclusive a composição da junta,
cujos membros seriam cidadãos eleitos localmente. Repunha-se assim o
debate nos mesmos termos daquele que se dera em torno da organização
do Judiciário.

A existência da junta de qualificação não foi questionada em 1845.


Mesmo que relatos da época a apontassem como principal fonte de ma-
nipulação do resultado eleitoral, havia consenso sobre sua necessidade,
uma vez que representava um avanço na institucionalização dos pleitos,
permitindo maior controle no sentido de coibir a fraude, em relação ao
modelo que havia prevalecido até então. O conflito em 1845 se deu em
torno de sua composição. Ela cumpriria a função de inibir a fraude de-
pendendo da origem dos seus membros, e, sobre este ponto, liberais e
conservadores divergiam.

No projeto apresentado pelos liberais à junta de qualificação era en-


tregue a cidadãos eleitos pelos votantes. Esta seria a garantia de que o go-

17  –  Em função do padroado, o padre também integrava a rede de empregados públicos.


18 – Souza, Belisário S. de. O sistema eleitoral no Império, Brasília. Brasília: Senado
Federal, 1979, p. 58 (publicado originalmente em 1872).

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verno não poderia interferir no resultado eleitoral. A junta seria presidida


por um juiz de paz e seus outros membros seriam dois eleitores e dois
suplentes de eleitores, portanto também cidadãos eleitos pelos votantes.
Os liberais procuravam levar até o limite possível, dentro da perspectiva
oitocentista, e no contexto brasileiro da época, seu modelo de institui-
ções representativas, como haviam feito com as reformas no início da
década de 1830. Com esta proposta retirava-se do processo eleitoral não
apenas autoridades nomeadas pelo governo, mas também o representante
da Igreja. Havia ainda uma diferença substancial entre o juiz de paz da
junta liberal e da junta prevista pelas Instruções dos conservadores. O da
primeira seria o juiz de paz mais votado nas últimas eleições, mesmo que
não tivesse assumido o cargo por qualquer motivo ou que tivesse sido
suspenso. O das Instruções era o juiz de paz em exercício, portanto não
necessariamente o mais votado. Alegavam os liberais que a suspensão de
um juiz de paz pelo governo era um instrumento de intervenção. Também
insistiam que fosse o juiz mais votado, pois, como afirmava o deputado
liberal Villela Barbosa, o “essencial nesta medida é que presida a eleição
o mais votado entre todos os cidadãos, aquele que tenha obtido maior
confiança da população para o emprego de juiz de paz”.19

Portanto, o princípio eletivo se impunha sobre o princípio da autori-


dade. Para os deputados, parecia claro que estava em jogo dois modelos
distintos de representação, com eixo na oposição entre estes dois prin-
cípios, que vinha desde o Regresso. O conservador Ferraz afirmava que
ser conservador em 1845 era ser regressista, pois, sua filiação ao partido
se devia ao fato de ter advogado as medidas tomadas a partir de 1837,
quando líderes políticos “conhecendo que a mania do tempo era o ódio
à autoridade, assentaram que era necessário fortalecer a autoridade” para
colocar fim às revoltas e ameaças à ordem; enquanto ser liberal era a
defesa de que “o princípio eleitoral devia ser aplicado a tudo” e de que
“o governo não devia ter nenhuma influência nas eleições”.20 Uma junta
composta apenas por cidadãos eleitos significava, segundo ele, entregar

19 – Anais da Câmara dos Deputados (ACD), 13/2/1845, p. 608.


20  –  ACD, 25/2/1845, p. 831.

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Governo representativo e eleicões no século XIX

“as eleições às facções locais, porque entrega-as absolutamente às mino-


rias que rodeiam os homens poderosos das paróquias”.21 O conservador
Gonçalves Martins, por sua vez, explicitava que cada partido defendia um
projeto diverso que resultava em distintas formas de representação:
É esta, sr. Presidente, uma lei vital para a sociedade, para os partidos
e por conseguinte também para o governo. Com uma tal lei serão tra-
zidos para as câmaras estes ou aqueles indivíduos, que com tal outra
nunca representaram o país. Com aquela lei se assentaram nas cadei-
ras proprietários industriosos, altos funcionários do Estado e cidadãos
que garantem sua conduta e opiniões. Porém com esta outra represen-
tarão a nação opiniões exageradas, declamaradores políticos e homens
que ameaçarão a tranquilidade do Estado.22

“Aquela lei” eram as Instruções de 1842; “esta outra” era o proje-


to apresentado naquele ano em plenário. A lei conservadora trazia em
seu bojo, nesta visão, a garantia da eleição de representantes ilustrados,
comprometidos com a ordem e o bem público, enquanto o projeto liberal
levaria para o Legislativo aqueles que com seu discurso seduzissem os
votantes, tornando sinônimo desta qualidade o compromisso com a de-
sordem. O antídoto para isso era ter na junta de qualificação autoridades
nomeadas pelo governo. Esta seria uma constante no discurso conserva-
dor, a defesa de que os representantes deveriam ser escolhidos por sua
ilustração, por serem portadores das virtudes necessárias para decidirem
sobre o bem comum. Acusavam os liberais de, com seu modelo, favore-
cerem os potentados locais, míopes por seus interesses materiais e por
sua ignorância ou, mais grave, propensos a exaltar as paixões populares e
serem promotores da desordem.

Embora obviamente não aceitassem a desqualificação feita pelos


conservadores quanto ao seu modelo, os liberais concordavam que cada
partido propunha um projeto de organização eleitoral que resultava em
tipos diferentes de representação. Para eles esta deveria contemplar na
Câmara todas as opiniões, sendo a Assembleia uma espécie de espelho da
sociedade. Além disso, sem desprezar o valor da ilustração, advogavam
21  –  ACD, 25/2/1845, p. 821.
22  –  ACD, 3/4/1845, p. 415.

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que a veracidade da representação residia fundamentalmente no processo


eletivo, desde que afastados os instrumentos de ingerência indevida do
governo. O liberal Antônio Carlos, deputado por São Paulo, considerava
ser este um princípio cardeal do partido: “Nós não quisemos as autorida-
des do governo, fomos às autoridades populares. Elas vêm do povo, me-
recem e devem merecer mais confiança do povo.”23 Pois, como observava
o liberal José Antônio Marinho, de Minas Gerais, “entregar à polícia do
governo a eleição dos representantes da nação é destruir completamente
o sistema representativo”.24

O liberal paulista Rodrigues dos Santos, por sua vez, explicitava a


divergência ao conferir à forma de escolha, eleição ou nomeação, a qua-
lidade intrínseca do desempenho da autoridade pública, vinculando a dis-
cussão aos mesmos termos em que se dera o debate sobre a organização
do Judiciário:
Basta conhecer a diferença da fonte da sua nomeação para não se ad-
mitir comparação entre o juiz de paz e o subdelegado. Foi moda em
certa época clamar-se contra os juízes de paz. Veio a medida salvado-
ra dos subdelegados, entregou-se tudo aos subdelegados. Eles foram
muito pior escolhidos e muito pior se portaram. [...] Note mais o nobre
deputado que o juiz de paz é autoridade que tem muito maior indepen-
dência. Ele só depende do povo para a sua eleição e de mais ninguém.
E se ele só depende do povo para a sua eleição, não está constituído
na indeclinável necessidade de obedecer aos caprichos de seus supe-
riores como estão os subdelegados, que, de ordinário, muito amam o
emprego, porque só por ele se tornam distintos.25

A defesa da ordem em sentido lato não era monopólio dos conser-


vadores, os liberais integravam a elite que dirigia a construção do Estado
comprometida com ela. Além disso, o discurso liberal de que seu modelo
garantiria a livre expressão do povo, com autoridades por ele eleitas, não
deve ser confundido com a defesa de um perfil de democracia mais inclu-
siva ou semelhante ao das democracias contemporâneas. O povo aparecia

23  –  ACD, 18/2/1845, pp. 691/692.


24  –  ACD, 7/3/1845 p. 92.
25  –  ACD, 27/2/1845, p. 854.

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Governo representativo e eleicões no século XIX

como recurso retórico. A divergência tinha como fundamento qual seria a


melhor estratégia para manter a ordem e como institucionalizar os confli-
tos intraelite no interior de um governo representativo.

Os liberais foram vitoriosos, pois conseguiram aprovar sua proposta


de composição da junta de qualificação. Tal formulação, em seus princí-
pios básicos, prevaleceria até 1881.26 Se a forma proposta pelos liberais
de organizar as juntas era uma garantia de limitar a interferência do go-
verno, paralelamente, sendo as juntas organizadas por paróquia e com-
postas por cidadãos eleitos localmente, certamente fortaleceu a capacida-
de de influência nas eleições das lideranças políticas locais. No entanto,
não se tratava, para os liberais, de entregar as eleições para os potentados
locais, como acusavam os conservadores. A complexidade do processo
eleitoral exigia articulação e alianças políticas, inclusive algum grau de
organização partidária que envolvia fazendeiros (entre outros), mas que
ia além da simples imposição da vontade de um único indivíduo. As elei-
ções tornaram-se assim mecanismos de disputa política entre setores da
elite, inclusive em torno da composição da junta de qualificação, também
ela resultado da capacidade de se vencer as eleições. Se havia possibili-
dade de o governo manipular o resultado de uma ou outra eleição, ele não
poderia fazê-lo sem o concurso de forças políticas locais.

A preocupação de tornar a eleição e a representação eficazes para


institucionalizar os conflitos intraelite levou os liberais, em 1845, a colo-
car na pauta o problema da chamada representação da minoria – questão
que se tornaria logo central no debate sobre organização das eleições e
que expressava a preocupação em criar instrumentos para que o parti-
do com votação minoritária também tivesse representação. Pelo projeto,
26  – As reformas eleitorais feitas depois da promulgação da lei de 1846 alteraram a
forma de se escolher os eleitores e suplentes que comporiam a junta e a lei de 1875 supri-
miu os suplentes, determinando que a junta fosse composta por quatro eleitores mais um
presidente, que deixava de ser um juiz de paz e passava a ser ele também um eleitor, todos
escolhidos pela eleição realizada entre os eleitores da paróquia. Manteve-se assim o prin-
cípio básico de que ela seria composta por cidadãos localmente eleitos, sem participação
de agentes do governo. O modelo liberal só seria abandonado com a promulgação da lei
de 1881, que transferia para os juízes municipais a competência de realizar o alistamento
eleitoral.

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Miriam Dolhnikoff

a representação da minoria seria garantida pela composição da junta de


qualificação. O cálculo era simples. Os dois eleitores que comporiam a
junta representavam necessariamente a maioria, por terem recebido votos
suficientes para serem eleitos. Os dois suplentes, por terem recebido ape-
nas votos suficientes para serem suplentes, e não eleitores de fato, repre-
sentavam a minoria. A junta, assim, seria composta por membros dos dois
partidos, o que não apenas garantiria a representação da minoria, mas,
para os liberais, mostrava-se também a melhor estratégia para combater
as fraudes. Com representantes dos dois partidos, um vigiaria o outro, de
modo a impedir que fossem cometidas irregularidades na qualificação. Os
partidos tornavam-se, deste modo, árbitros da disputa eleitoral, no lugar
de representantes do governo, como acontecia com a junta regressista.

A pauta liberal incluiu também reverter em parte o arranjo estabe-


lecido pelos conservadores por meio do artigo do projeto que previa que
determinados empregados públicos não poderiam ser eleitos deputados
e senadores nas províncias onde exerciam seus cargos. Entre eles, me-
reciam destaque os magistrados togados, figuras que haviam adquirido
papel central no arcabouço judiciário criado pelo Regresso. Além da ine-
legibilidade dos magistrados, o projeto prescrevia que tampouco pudes-
sem concorrer os presidentes de província, os inspetores de tesouraria, os
comandantes de armas e os chefes de polícia, cargo este criado pela refor-
ma do Código de Processo Criminal, de 1841. Mas foi a inelegibilidade
dos magistrados que se tornou o centro do debate em plenário.

Mais uma vez imbricavam-se disputa partidária, divergência de con-


cepções e empenho em garantir a lisura no processo eleitoral. Para os con-
servadores, a medida expulsaria do parlamento justamente aqueles que
para ele deveriam ser eleitos, os portadores de “Ilustração”. D. Manoel
de Assis Mascarenhas, deputado por Goiás, por exemplo, além de argu-
mentar ser a medida inconstitucional, como o fizeram os demais conser-
vadores, perguntava: “Será conveniente que se exclua uma classe em que,
como disse ontem um deputado por Pernambuco, existe ilustração?”27

27  –  ACD, 6/3/1845.

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Governo representativo e eleicões no século XIX

Segundo os liberais, a medida era necessária para garantir a sepa-


ração entre os poderes, o bom funcionamento do Judiciário e uma re-
presentação diversificada no Legislativo. Neste sentido, argumentava o
deputado por São Paulo, Alvares Machado:
não posso compreender como um magistrado tenha um partido que se
ponha à testa dele, que o capitaneie, que combata o lado contrário, isto
é, uma parte da população que está debaixo do seu governo, que ele
não possa cegar-se de amor para com seus correligionários políticos
e, de menor boa afeição para seus contrários [...] Se nós queremos ter
uma justiça reta e imparcial, que puna o crime e escude a inocência,
que dê o seu ao seu dono, é mister imitar a sabedoria dos estados mais
antigos na carreira da civilização do que nós, imitar a sabedoria da
Inglaterra, dos Estados Unidos, da Bélgica, de Portugal e de outros
estados, onde o poder judiciário não tem parte na representação na-
cional.28

Em relação à separação dos poderes, sendo o magistrado um mem-


bro do Judiciário, não poderia pertencer também ao Legislativo, uma vez
que o mesmo indivíduo que participaria da elaboração das leis seria o
responsável por aplicá-las. As várias falas neste sentido podem ser exem-
plificadas pelo discurso do deputado José Antônio Marinho:
Senhores, quereis uma desorganização mais insuportável do que ter o
mesmo homem assento no senado como membro do corpo legislativo,
estar amanhã na relação como desembargador e depois de amanhã
nos conselhos do Poder Moderador? Pode haver uma confusão maior?
Dir-se-há que existe harmonia e divisão de poderes? Eu não consi-
dero somente divisão de poderes no diverso exercício das funções,
considero-a também nas diversas pessoas que as exercem.29

Na medida em que os liberais consideravam os magistrados agentes


do governo, sua presença no Legislativo embaraçava a independência dos
poderes ainda mais, pois significava influência, por meio deles, do Exe-
cutivo no Legislativo.

28  –  ACD, 6/3/1845.


29  –  ACD, 7/3/1845.

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Miriam Dolhnikoff

É bem verdade que, para ir às últimas consequências deste argu-


mento, seria preciso que a proibição fosse de maior alcance. Não apenas
o impedimento de se candidatar na província que exercia sua jurisdição,
mas a inelegibilidade de todos os magistrados para cargos no Legislativo,
como insinuara Álvares Machado. A inelegibilidade na província onde
exerciam jurisdição seria um passo neste caminho.

Os conservadores acusaram o golpe. A medida enfraquecia a magis-


tratura, um dos pilares das reformas introduzidas pelo Regresso. Identi-
ficavam na magistratura a garantia da ordem e do saber que conferiria
melhor qualidade à representação. O conservador Gonçalves Martins, ao
criticar o parágrafo que proibia os juízes de direito de se candidatarem
nas províncias em que exerciam seus cargos, apontou a medida como
continuidade da disputa que se iniciara em 1837:
[...] não é de hoje que se procura enfraquecer a magistratura, é esta
uma velha pretensão do partido que domina atualmente. Não sei o que
ele acha nos magistrados! Depois de 1831 quase que foram nulifica-
dos, e todas as suas atribuições dadas aos juízes de paz. Bem depressa
o país conheceu os efeitos deste sistema errado e o corpo legislativo
com o triunfo das ideias de ordem restabeleceu o poder Judiciário.
Talvez se tenha reconhecido que se deva principiar por enxotá-los das
câmaras para melhor os ferir e esmagar.30

Desta forma, Gonçalves Martins relacionava diretamente a tentativa


liberal de aprovar a inelegibilidade dos magistrados à divergência que ha-
via dado origem aos dois partidos em torno da organização do Judiciário
no final da década de 1830.

Embora o debate tenha assumido claramente contornos partidários,


não era possível garantir fidelidade dos membros de cada partido à in-
tegralidade do projeto defendido por suas lideranças. No exercício do
papel de representante, os deputados oscilavam de acordo com diversas
variáveis, conforme o tema em discussão. Ora pesava nas suas posições
a filiação partidária, ora suas origens de classe, ora seus compromissos
corporativos, ora os interesses de suas províncias e, às vezes, suas crenças
30  –  ACD, 4/4/1845, p. 430.

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Governo representativo e eleicões no século XIX

doutrinárias. Se os liberais das diversas províncias mantiveram posição


unificada em relação à maior parte do projeto, na questão da elegibilidade
da magistratura, o compromisso corporativo teve maior peso.

Vários deputados liberais aliaram-se à minoria conservadora para


opor-se ao parágrafo que previa a inelegibilidade e em seus discursos não
escondiam o fato de assim se posicionarem por serem eles próprios ma-
gistrados. Mas não podiam assumir uma posição meramente corporativa,
pois isso não era condizente com o papel de um representante da nação
e por isso, lançavam mão de argumentos referentes aos interesses gerais.
De um lado, junto aos conservadores, procuraram demonstrar que o pará-
grafo era inconstitucional. De outro, alegavam concordar com o prejuízo
para a representação ao se excluir a magistratura. O liberal e magistrado
Moura Magalhães, por exemplo, deputado pelo Maranhão, argumentou:
Senhores, na infância do nosso sistema representativo, quando ainda
não conhecemos verdadeiramente as suas bases cardeais, quando as
ilustrações do nosso país não formigam a cada canto, é que se quer
estabelecer a exclusão de indivíduos e de classes?31

Votaram contra o artigo que previa a inelegibilidade deputados libe-


rais de várias províncias. Quase todos eram magistrados ou, ao menos,
bacharéis em Direito.

O projeto de lei aprovado na Câmara em 1845 manteve os princípios


básicos defendidos pelo Partido Liberal, mesmo com a rejeição do artigo
que proibia a eleição de magistrados. Além da nova composição da jun-
ta de qualificação, outros itens do projeto aprovado tinham por objetivo
inibir a fraude: a proibição do voto por procuração, a não aceitação de
cédulas riscadas ou de alguma forma alteradas, a realização das eleições
em um único dia em todo o país, o voto secreto para os votantes e a pos-
sibilidade de recurso da decisão da junta de qualificação.

Neste artigo não analisarei um ponto importante do projeto aprova-


do que também dividiu liberais e conservadores: a indexação à prata da
renda exigida na Constituição para votar e se candidatar. Uma medida
31  –  ACD, 7/3/1845, p. 81.

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que impactava no direito de cidadania, discussão extensa a ser feita em


outro artigo. Mas vale mencionar que os conservadores foram contra a
indexação, alegando ser ela inconstitucional e pelo fato de resultar na
exclusão de grande parcela da população que, naquele momento, tinha di-
reito de votar e de se candidatar. Os liberais, por sua vez, argumentavam
que a indexação era uma necessidade para, diante da inflação, manter o
espírito constitucional de modo que só determinados grupos pudessem
participar das eleições, sem uma ampliação artificial da cidadania políti-
ca. A indexação da renda à prata, tal como foi aprovada em 1846 e depois
regulamentada pelo governo em 1847, certamente resultou em exclusão,
pois dobrou a renda exigida para votar e se candidatar. O que importa
salientar é que foram os liberais a propô-la justamente por defenderem
um modelo de organização das eleições com base em cidadãos eleitos.
A consequência era a necessidade de se ter um eleitorado e candidatos
com aquelas que se consideravam as “virtudes” mínimas para os padrões
da época – no sentido de serem habilitados para o exercício da cidadania
política –, já que a estes cidadãos estava entregue o controle das eleições.
Trata-se de concepção que se enquadrava na ideia de cidadania política
do século XIX, quando limitações ao seu exercício eram consideradas
uma necessidade para se obter uma representação virtuosa. Publicistas e
políticos de diversos países e diferentes décadas do século pensaram de
formas distintas quais seriam as virtudes desejadas e como obtê-las. O
debate entre conservadores e liberais no Brasil utilizava o repertório das
ideias que então circulavam. Para os liberais, uma vez que não se adotava
a fórmula conservadora para eleger os mais ilustrados, tornava-se neces-
sário ser rígido quanto aos critérios exigidos para ser votante e eleitor,
sobre quem, na sua fórmula, repousava a decisão do pleito. Neste ponto
ficava evidente a restrição de sua concepção de povo, que tanto utiliza-
vam em seu discurso em defesa de seu projeto.

A discussão, no Senado, do projeto aprovado na Câmara, realizada


em 1846, foi rápida. Apesar de presentes divergências de teor semelhante
àquelas que haviam marcado o debate entre os deputados, a maioria dos
senadores acabou por aprovar o projeto que naquele mesmo ano se con-

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Governo representativo e eleicões no século XIX

verteu em lei. Os conservadores na Câmara alta nela votaram com receio


de que os liberais aprovassem emendas que introduzissem mudanças ain-
da mais radicais, como o voto distrital.

Lei dos Círculos: a vitória do modelo liberal em 1855


Ainda em 1846, o senador paulista Paula Souza, um dos principais
líderes do Partido Liberal, apresentou na Câmara vitalícia um novo pro-
jeto de lei. Este previa duas medidas que, no seu entender, complementa-
riam a lei de 1846, de forma a consagrar o modelo liberal de organização
das eleições: as incompatibilidades (como chamavam a inelegibilidade de
determinados empregados públicos), que já haviam aparecido em 1845,
e o voto distrital. Este último substituiria o voto provincial, pelo qual os
deputados de cada província eram eleitos pelo sistema majoritário pelo
conjunto de seus eleitores. Uma vez que cada eleitor tinha de votar em
tantos nomes quantos deputados a província elegia, surgiu o fenômeno
das chapas, ou seja, ao eleitor era apresentada pelo partido ou por um can-
didato a lista dos nomes no qual ele deveria votar. Com isso, o resultado
era, na maior parte das vezes, a eleição de uma bancada com deputados
de um só partido.

A negociação e votação do projeto de Paula Souza foi morosa, dada


a oposição dos conservadores. Seguindo as regras da época para a apro-
vação de um projeto de lei, ele foi votado e aprovado em primeira dis-
cussão ainda em 1846. Mandado para uma comissão, para receber nova
redação, nela ficou parado por dois anos. Somente em 1848 foi feita a
segunda discussão, sendo aprovado e mandado novamente para uma co-
missão para incorporar as mudanças aprovadas em plenário. A terceira e
última discussão só se realizou em 1855, quando se transformou em lei
que consagrou o voto distrital e as incompatibilidades.

O voto distrital era considerado fundamental pelos liberais para in-


tegrar as localidades no jogo político e para materializar seu modelo de
representação. Esperavam que se estabelecesse uma relação direta entre
eleitores e candidatos, com a eleição de representantes que expressassem

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a diversidade social, de forma que diferentes interesses pudessem encon-


trar na Câmara uma instância de negociação. Seu principal objetivo era
estabelecer a representação da minoria partidária. O voto distrital signifi-
caria o fim das câmaras unânimes, ou seja, dominadas por um só partido.
Como o voto proporcional não era conhecido naquela época, a divisão
das províncias em distritos que elegeriam um deputado cada deveria pos-
sibilitar a presença de representantes de ambos os partidos na Câmara,
pois, mesmo minoritário na província, o partido poderia ser majoritário
em alguns distritos, neles elegendo deputados.

Parte dos conservadores combateu as inelegibilidades e o voto dis-


trital, enquanto os liberais defenderam ambos. A novidade na discussão
no Senado foi a adesão de um grupo de conservadores, liderados por
Honório Hermeto Carneiro Leão, o futuro Marquês de Paraná, ao voto
distrital32. Para viabilizar a aliança com os liberais, aceitaram também as
incompatibilidades. Carneiro Leão defendeu as incompatibilidades, mas
apenas se vinculadas ao voto distrital, por considerar que a proibição de
um juiz de se candidatar no distrito em que exercia sua jurisdição não in-
viabilizava a sua candidatura, uma vez que podia se candidatar no distrito
vizinho. O que significa dizer que para o conservador Carneiro Leão as
incompatibilidades em eleições por distrito não impediriam as eleições de
juízes para a Câmara. Sua posição era, portanto, diferente dos liberais. A
aliança tinha como centro, assim, o voto distrital33.

O debate sobre as incompatibilidades se deu nos mesmos termos que


havia ocorrido na Câmara em 1845. A diferença foi que a adesão do grupo
de Paraná tornou possível sua aprovação. Quanto ao voto distrital, uma
vez que sua discussão começou na casa vitalícia, é importante atentar

32  – O projeto original de Paula Souza previa distritos que elegeriam dois deputados. O
grupo de Carneiro Leão foi além, ao propor a fórmula que acabou prevalecendo de distri-
tos que elegiam um deputado.
33 –  Quando, em 1848, os senadores liberais tentaram aprovar as incompatibilidades
desvinculadas da aprovação do voto distrital houve ácida discussão entre eles e Carneiro
Leão, que não admitia a adoção da medida sem estar atrelada ao voto distrital. Os liberais
foram obrigados a recuar para recompor a aliança com a parte dos conservadores que
apoiavam o projeto de Paula Souza.

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Governo representativo e eleicões no século XIX

para os argumentos apresentados pelos senadores. Para seus defensores,


estava em jogo o perfil do governo representativo. Além de promover a
representação da minoria, cada representante melhor espelharia a von-
tade de seus eleitores, por ser escolhido em uma circunscrição limitada
da província. Paula Souza defendia que o voto distrital aperfeiçoaria a
relação de representação na medida em que haveria um verdadeiro elo
entre eleitor e representante, que não existia com o voto provincial. Com
os círculos:
[...] os candidatos aos cargos de deputado ou senador apresentavam-se
francamente, expunham seus princípios, faziam compromissos com
os eleitores. Havia, portanto, uma espécie de contrato imediato entre
os eleitores e os eleitos. Hoje não é assim. Os deputados não sabem a
quem devem a sua eleição, porque a maior parte dos eleitores vota em
quem não sabem, não conhecem aqueles em quem votam [...]. Sendo
a eleição por círculos, havia um nexo, uma ligação entre o eleito e
eleitor, portanto havia a probabilidade de aparecer melhor a opinião
nacional, o que não se dá hoje na eleição por províncias.34

Paula Souza defendia a proposta também como um instrumento para


impedir a influência indevida do governo. Segundo ele: “Pelo método
proposto pela comissão também não é tão fácil ao governo como atual-
mente fazer eleger a este ou aquele.”35 Era a mesma perspectiva liberal,
em essência, que permeara a formulação do projeto na Câmara em 1845:
inibir a influência do governo e fortalecer o princípio eletivo. Por fim,
expressava ser esta a melhor fórmula para obter a representação da mi-
noria: “Pelo método atual, as minorias não podem nunca aparecer. [...] se
se dividir a província em círculo, naqueles círculos em que a minoria da
província for maioria, ela aparecerá.”36

Logo quando foi proposto o voto distrital no Senado, em 1846, Ber-


nardo Pereira de Vasconcelos fez jus à sua filiação partidária. Como con-
servador, foi contra o voto distrital, argumentando que com ele o resul-
tado seria que se “apresentem no corpo legislativo as celebridades de al-

34  –  Anais do Senado (AS), 7/7/1848, 7ª. legislatura, p. 173.


35  –  AS, 25/6/1846, 6ª. Legislatura, p. 231.
36  –  AS, 4/8/1847, 6ª. Legislatura, p. 5.

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deia, pessoas que não sejam muito conhecidas na república das letras”.37
Ficava clara a concepção de representação conservadora, que privilegiava
a eleição dos mais ilustrados em detrimento das influências locais. O se-
nador conservador Dantas argumentava ser aceitável um sistema que fa-
vorecesse as influências locais se estas fossem ilustradas, o que não era o
caso do Brasil:
às vezes estas influências são homens cuja história está escrita com le-
tras de sangue, são um Cangussu, um Militão Henriques, um Angelim,
etc. São estes que se quer que venham para o seio da representação
nacional com exclusão dos magistrados?38

Dantas invocou nomes de lideranças de revoltas que haviam ocorri-


do em tempos recentes para acionar o alarme do perigo de que a mudança
na forma de eleição trouxesse rebeldes, criminosos, para o parlamento.

Para liberais e conservadores, estava em jogo o perfil do represen-


tante que seria eleito, conforme explicitava o autor de uma carta publica-
da no jornal liberal fluminense, O Correio Mercantil, em defesa do voto
distrital:
O ostracismo das luzes é o maior fantasma com que nos aterram. Mas
não se lembram esses defensores da ilustração que o sistema atual tem
sido favorável a muito ignorante com prejuízo de homens verdadeira-
mente habilitados! De mais, se não quereis interessar na causa pública
os agricultores, as famílias influentes, os homens prestadios das lo-
calidades, se não lhes quereis dar um meio natural e verdadeiro de se
consorciarem com as instituições do país, em que coluna assentareis
o futuro dessas instituições? O espírito do sistema representativo é,
como se disse no Senado, não excluir do parlamento as diversas opi-
niões em proveito de uma só.39

Não era apenas a diversidade partidária que se procurava garantir na


representação, era também a diversidade social, e esta viria do reforço
das localidades como lócus preferencial do processo eleitoral. Este era o
significado do argumento apresentado, por exemplo, pelo senador Silvei-

37  –  AS, 23/6/1846, 6ª. Legislatura, p. 221.


38  –  AS, 25/6/1846, 6ª. Legislatura, p. 229.
39 – O Correio Mercantil, 29/8/1855.

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Governo representativo e eleicões no século XIX

ra da Motta em defesa do voto distrital. Todas as classes deveriam estar


representadas no parlamento, para que este pudesse, de fato, decidir de
acordo com o bem comum. Segundo ele, “em um governo representativo
uma câmara temporária deve ser um espelho fiel de todas as opiniões, de
todos os interesses que há na sociedade.”40 Perguntava Silveira da Motta
em relação à origem dos deputados:
[...] onde ficam, senhores, as representações das classes industriais,
dos lavradores, dos capitalistas, dos negociantes [...] quantos são os
matemáticos, quantos são os artistas liberais, quantos são os homens
que tenham conhecimentos das ciências naturais, que estejam no nos-
so parlamento? [...] Os militares, por exemplo, quais são os repre-
sentantes que eles têm na Câmara temporária? [...] Onde estão, sr.
presidente, na organização da nossa primeira câmara os representantes
da classe eclesiástica?41

A votação por distritos ofereceria melhores chances de surgir tal di-


versidade. A Câmara como espelho da sociedade, contendo em seu inte-
rior representantes de distintos interesses, era a concepção liberal para
que ela fosse a instância onde houvesse a negociação entre os diversos
setores da elite.

Por fim, alguns dos defensores do voto distrital apresentavam-no


como condição para o bom funcionamento do arranjo federativo. Pimenta
Bueno, por exemplo, na época conservador ligado ao grupo do Marquês
de Paraná, afirmava que o voto distrital possibilitaria maior equilíbrio
entre os representantes de cada província, considerando-se que, sendo o
número de deputados proporcional à população, algumas bancadas eram
muito maiores que outras. O senador dava como exemplo Minas Gerais
que, com seus 20 deputados, tinha uma representação igual à soma de
outras dez províncias – uma injustiça, na visão de Pimenta Bueno, com a
população das províncias pequenas. Além disso, corria-se sempre o risco,
afirmava ele, de o ministério ficar refém da bancada de três províncias
grandes, como Minas, Bahia e Pernambuco, caso elas se unissem contra
ele, pois teriam a maioria da Câmara.
40  –  AS, 24/7/1855, 9ª, legislatura, p. 394.
41  –  AS, 24/7/1855, 9ª legislatura, p. 394.

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O voto por círculos não mudaria o critério de formação de bancadas,


de modo que as províncias mais populosas continuariam a ter bancadas
maiores. Mas, ao mudar a forma de se escolher seus representantes, trans-
formaria a relação entre eles e, portanto, seu comportamento no parla-
mento. O argumento lançado por Pimenta Bueno era que, com o voto pro-
vincial, tinham chances de se eleger aqueles capazes de fazer articulações
em toda província, em um único acordo político, constituindo-se, então,
bancadas compactas que seguiam uma única direção. Deste modo, os 20
deputados de Minas tenderiam a sempre votar em conjunto, enquanto os
deputados de cada uma das províncias pequenas – que, somadas, davam
o mesmo número de deputados mineiros – votariam cada qual de uma
forma diferente, por serem de províncias distintas.

A eleição de deputados por distritos resultaria em bancadas diversi-


ficadas, cujos membros não estariam articulados previamente, não seriam
todos do mesmo partido, não teriam feito alianças para se elegerem, não
sendo, assim, grandes bancadas compactas.42 Seus membros não vota-
riam em conjunto. O resultado seria maior necessidade de negociação en-
tre os representantes. Por haver setores heterogêneos da elite, interesses
diversos, inclusive de origem provincial, era preciso garantir sua repre-
sentatividade no governo, por meio do parlamento.

A adoção do voto distrital alterava a lógica do processo eleitoral.


A divisão em distritos mudava o perfil do representante eleito e poderia
favorecer candidatos com influência local, mas há que se considerar duas
questões. Os distritos não eram tão pequenos de modo a serem controla-
dos apenas por um ou dois potentados, de forma que a disputa política se
impunha e continuava sendo mediada pelos partidos. Poderiam ser eleitos
candidatos com influência em uma localidade, mas sem influência em
toda a província. Contudo, daí não se pode derivar que esses candidatos
podiam prescindir da articulação política com a elite provincial e com
as lideranças partidárias. Quanto ao risco de que esses representantes,
uma vez eleitos, se dedicassem apenas à defesa dos interesses das suas

42  –  AS, 18/7/1855, 9ª. Legislatura, p. 279.

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Governo representativo e eleicões no século XIX

localidades, Carneiro Leão argumentava que isso não era possível. Uma
vez deputado, a atuação do representante eleito necessariamente estaria
articulada aos demais deputados do seu partido, portanto, ligando-se a in-
teresses gerais. Necessariamente, porque um deputado que se preocupas-
se exclusivamente com os interesses de sua localidade, sem articulação
com os interesses políticos organizados e sem se comprometer com eles,
ficaria isolado na Câmara e, portanto, incapaz de fazer valer sua vontade
como representante. Uma voz isolada, um único voto nada valia. Para
ter influência, o deputado teria de se articular com outros em temas de
interesse geral.43

A aprovação da lei de 1855, quando o então Marquês de Paraná era


presidente do Conselho de Ministros, foi a vitória da agenda liberal com
apoio de parte dos conservadores. Carneiro Leão empenhou-se na reali-
zação da terceira discussão e aprovação do projeto. Um projeto que dor-
mitava no Senado foi ressuscitado porque um de seus defensores na casa
se tornara presidente do Conselho de Ministros. Mas se o Executivo teve
influência na iniciativa de garantir que o projeto voltasse ao plenário, a
lei, ao final, resultou do debate, negociação e articulação parlamentar.

Como demonstrado acima, o projeto continha uma medida que havia


sido, desde 1845, foco de intensa polêmica, as incompatibilidades, parte
da agenda liberal e com a qual o conservador Carneiro Leão compro-
meteu-se por conveniência política, no sentido de que entendia que as
incompatibilidades associadas ao voto distrital não impediriam a eleição
dos magistrados. Assim, quando era chefe do Conselho de Ministros e
poderia propor um novo projeto, sem o artigo das incompatibilidades,
preferiu dar continuidade à discussão do projeto aprovado em segunda
discussão, em 1848. Usando essa estratégia, garantia maior celeridade
à reforma, pois um novo projeto implicaria passar por todo o processo
legislativo desde o início. Além disso, preservava a aliança construída
com os liberais em torno dessa proposta desde 1846. Apostava, assim, em
uma reforma que tinha já um histórico de discussão no Legislativo. Desse

43  –  AS, 7/8/1855, p. 215.

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modo, a Lei dos Círculos não foi obra e imposição de Paraná. Foi gestada
no Legislativo desde 1846, teve origem no modelo liberal de organização
do processo eleitoral e foi resultado da negociação no Senado. No decor-
rer de intenso debate e articulações políticas, foi dirigida pelas lideranças
liberais junto ao grupo de Carneiro Leão, que, para tanto, teve de romper,
neste tema, com parte de seu partido, os chamados emperrados.

Depois da aprovação no Senado, o projeto foi para a Câmara dos De-


putados, onde foi também aprovado, após rápida discussão. Na Câmara,
como no Senado, alinharam-se liberais e parte dos conservadores contra
os saquaremas. Paraná fez sentir o peso de sua posição como presidente
do Conselho de forma mais contundente do que fizera no Senado. Tornou
a aprovação do projeto questão ministerial. Na dinâmica da monarquia
brasileira, isso significava que se o projeto não fosse aprovado haveria ne-
cessariamente a interferência do Poder Moderador, que poderia demitir o
ministério ou dissolver a Câmara. Uma vez que era conhecido o apoio do
imperador ao Ministério, a não aprovação do projeto implicava, naquele
contexto, a dissolução da Câmara. Contudo, os deputados conservadores
que se opunham ao projeto não mudaram de posição diante da ameaça
de dissolução. Ao contrário, vários deles discursaram em plenário para
questionar Paraná por ter transformado a aprovação do projeto em ques-
tão ministerial e para afirmar que seu dever de representante da nação era
manter a defesa dos princípios que advogavam. A aprovação do projeto
na Câmara se deu graças ao apoio da bancada liberal e parte dos conser-
vadores alinhados desde o início a Paraná, enquanto a bancada conser-
vadora opositora ao projeto votou contra. Assim, a aprovação da Lei dos
Círculos foi resultado de anos de discussão no parlamento, inclusive a
aprovação do projeto em duas discussões no Senado, com o empenho dos
liberais e parte dos conservadores na defesa das medidas nela previstas,
muito antes que Paraná se tornasse ministro.

As eleições realizadas após a promulgação da lei de 1855 confirma-


ram o prognóstico de seus defensores. Em vez das tradicionais câmaras
unânimes, foram eleitos deputados dos dois partidos.

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Governo representativo e eleicões no século XIX

O voto distrital foi revogado por lei em 1875, mas o retorno do voto
provincial foi acompanhado da preocupação em manter mecanismos de
representação da minoria. Essa nova lei previa que, ao contrário do que
ocorria antes do voto distrital, os eleitores não votariam em tantos nomes
quantos deputados sua província tinha o direito de eleger. Votariam em
dois terços dos nomes, o que implicaria que ao menos um terço dos votos
fosse conquistado pela oposição. De qualquer forma, já em 1881 o voto
distrital foi novamente adotado, permanecendo até o fim da monarquia.
As incompatibilidades, igualmente aprovadas, foram mantidas pelas leis
posteriores, sendo inclusive ampliada, nas leis de 1875 e 1881, a lista dos
empregados públicos que não poderiam se candidatar.

A pecha de defensores do poder local e, portanto, de um certo “ar-


caísmo” acabou por, de alguma forma, aderir ao projeto liberal, como
queriam seus detratores – de modo que parecesse que não eram portado-
res de um projeto nacional. No entanto, tratava-se de acusações de cunho
político para tirar legitimidade das propostas que parte dos conservadores
combatiam. O que estava em jogo eram projetos distintos de representa-
ção.

A defesa das autoridades eletivas, da representação da minoria, das


inelegibilidades, compunha um projeto pelo qual se procurava inibir a
influência do governo, garantir que os partidos fossem os árbitros das
eleições, em uma estratégia que combinava preservação da ordem com
disputa política. Projeto articulado a uma determinada concepção de
como deveria ser organizado o governo representativo, de modo a instau-
rar um parlamento que espelhasse a diversidade de uma elite heterogênea
e, dessa forma, fosse eficaz na institucionalização dos conflitos. Projeto
originariamente do Partido Liberal que receberia a adesão de uma parte
dos próprios conservadores. De outro lado, o projeto conservador aliava
representação à manutenção da ordem expressa por meio da presença de
autoridades nomeadas pelo governo com formação técnica, mediante a
eleição de representantes ilustrados. Não excluía a disputa política, mas
pressupunha que esta deveria se dar em termos distintos. No confronto

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (474):15-46, maio/ago. 2017. 45


Miriam Dolhnikoff

entre ambos estava embutida a preocupação com o aperfeiçoamento do


governo representativo.

Venceu e prevaleceu o modelo liberal, de modo que, na definição de


como se escolheriam os representantes e como se daria a disputa políti-
ca, eles foram capazes de reverter o Regresso que se materializara, neste
ponto, nas Instruções de 1842.

A promulgação de uma lei eleitoral, embora não resolvesse de pronto


todos os males, não era considerada inócua pelos deputados e senadores;
o que justifica o empenho com que debatiam e reformavam a legislação
eleitoral.

Texto apresentado em dezembro/2016. Aprovado para publicação


em março/2017.

46 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (474):15-46, maio/ago. 2017.


A rede de sociabilidades do Barão do Rio Branco
e a defesa da soberania territorial brasileira

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A rede de sociabilidades do Barão do Rio Branco


e a defesa da soberania territorial brasileira1
Baron of Rio Branco´s network of sociability and
the defense of Brazilian territorial sovereignty
Luciene Carris2

Resumo: Abstract:
No processo de solução do conflito territorial In the process of resolving the territorial conflict
com a Argentina e com a Guiana Francesa, o with Argentina and French Guiana, the Baron of
Barão do Rio Branco promoveu uma alentada Rio Branco conducted a substantial documen-
pesquisa documental nos arquivos europeus. tary research in European archives. The project
O empreendimento envolvia os representantes involved representatives of several diplomatic
de diversas legações diplomáticas no exterior, legations abroad as well as the collaboration of
bem como a colaboração de algumas persona- some Brazilian and European personalities that
lidades brasileiras e europeias que pertenciam belonged to his network of sociability. We ex-
ao seu círculo de sociabilidades. O texto ora amine here the collaboration of two well-known
apresentado investiga a colaboração de dois co- French geographers in the course of such dis-
nhecidos geógrafos franceses, Émile Levasseur putes, namely Emile Levasseur and Élisée Re-
e Élisée Reclus, no desenrolar de tais litígios, clus, who also made some academic contribu-
bem como algumas de suas contribuições aca- tions on Brazil.
dêmicas sobre o Brasil.
Palavras-chave: Fronteiras; intelectuais; terri- Keywords: borders; intellectuals; Brazilian ter-
tório brasileiro. ritory.

Introdução
Figura emblemática da história diplomática brasileira, José Maria
da Silva Paranhos Júnior, o Barão do Rio Branco, é objeto de inúmeros
estudos e biografias notadamente conhecidas, bem como de homenagens
como a celebração de seu centenário ocorrida em 2012.3 Filho do viscon-
de José Maria da Silva Paranhos e de Teresa de Figueiredo Faria, o Barão
1  – O artigo em questão constitui um dos resultados da pesquisa, desenvolvida durante
o estágio pós-doutoral, realizado no âmbito da FFLCH-USP, entre 2011 e 2013, com
financiamento da Fapesp.
2  – Doutora em História Política pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Pesqui-
sadora no Programa de Pós-Graduação em História Social da Puc-Rio.
3  – Em 2012, comemorou-se o centenário do desaparecimento do Barão do Rio Bran-
co e várias festividades foram promovidas naquele ano. O programa de comemorações
encabeçado pelo Ministério das Relações Exteriores envolveu ainda instituições do porte
da Academia Brasileira de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Ver
PEREIRA, Manoel Gomes (org.). Barão do Rio Branco: 100 anos de memória. Brasília:
Funag, 2012.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (474):47-90, maio/ago. 2017. 47


Luciene Carris

consagrou-se como advogado, político, jornalista e diplomata. Na esfera


diplomática, consolidou as fronteiras do território do brasileiro, principal-
mente na sua gestão à frente do Ministério das Relações Exteriores, entre
1902 e 1912.4 Não é a nossa intenção aqui traçar um novo perfil biográ-
fico, mas introduzir novos dados que possam contribuir para o estudo da
história da formação territorial do Brasil. Além disso, há sempre o erro
em incorrer na mitificação existente sobre ele ou simplesmente se repetir
o que já foi escrito. Neste caso, recuperamos a visão do estudioso Antonio
Carlos Robert Moraes sobre a importância do Barão do Rio Branco para
a formação da territorialidade brasileira:
[...] pode-se analisar o legado do Barão do Rio Branco, numa ótica
da geografia política, como um importante definidor das fronteiras
estatais na América do Sul, logo como um construtor prático de terri-
tórios. Mas pode-se também analisá-lo, do ponto de vista da história
da ciência, como um refinado geógrafo, um intérprete da formação
territorial do Brasil.5

Em 1893, o Barão do Rio Branco se encontrava em Liverpool, onde,


desde 1876, exercia as funções de cônsul-geral do Brasil e, a partir de
1892, o de superintendente do Serviço de Imigração em Paris. Naquela
cidade, localizava-se o principal porto comercial para o país. É digno
de nota que, até meados dos Oitocentos, os consulados brasileiros en-
contravam-se dispostos nos portos, de onde saíam e chegavam navios
com cargas. O cônsul possuía o encargo de legalizar os documentos e de
cobrar uma taxa sobre o percentual da carga, geralmente utilizada para a
manutenção do consulado e do pessoal. Desse modo, existiam consulados
em cidades como Havre, Sevilha, Nápoles, Gênova, Veneza e Antuérpia.

4  –  As biografias elaboradas por Álvaro Lins, Rio Branco (O Barão do Rio Branco) –
biografia pessoal e história política (1965), e por Luiz Viana Filho, A Vida do Barão do
Rio Branco (1967) são conhecidas. Recentemente, foi publicada a obra de Luís Cláudio
Villafañe G. Santos, O dia em que adiaram o carnaval: política externa e a construção
do Brasil (2010).
5  –  Cf. MORAES, Antonio Carlos Robert. “O Barão do Rio Branco e a Geografia”. In:
PEREIRA, Manoel Gomes (org.). Barão do Rio Branco: 100 anos de memória. Brasília:
Funag, 2012, p. 231.

48 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (474):47-90, maio/ago. 2017.


A rede de sociabilidades do Barão do Rio Branco
e a defesa da soberania territorial brasileira

Mas o falecimento de Francisco Xavier da Costa Aguiar de Andrada,


o Barão de Aguiar de Andrada, em 1893, viria transformar a sua rotina.
Desde 1889, a missão de defesa dos direitos do Brasil coube a Francisco
Xavier da Costa Aguiar de Andrada, o Barão de Aguiar de Andrada, que
viria a falecer em Washington em março de 1893. Integravam a sua equi-
pe os militares Dionísio Cerqueira e Cândido Guillobel. Devido ao seu
desaparecimento, o vice-presidente em exercício, o Marechal Floriano
Peixoto, por meio de um decreto, nomeou como enviado extraordinário e
ministro plenipotenciário em missão especial junto ao governo dos Esta-
dos Unidos, José Maria da Silva Paranhos, o Barão do Rio Branco.

Nesse longo período que esteve no exterior, o Barão mantinha-se


informado sobre os últimos acontecimentos da sua pátria por meio de
jornais e pelo intercâmbio de correspondências com seus compatriotas.
Além disso, no exterior, cultivou um animado círculo de sociabilidades e
logrou reunir uma extensa coleção de mapas e de documentos históricos
em arquivos europeus que seriam indispensáveis na resolução dos litígios
com a Argentina e a França. Ademais, conservou desde então uma estreita
relação com a imprensa de sua época, foi colaborador, jornalista e corres-
pondente em diferentes jornais e revistas, a exemplo do periódico francês
L’Illustration e o Jornal do Brasil. Não por acaso, escreveu sobre temas
que considerava importantes sobre o Brasil, publicou notas ou artigos
assinados ou sob a forma de pseudônimos. Incumbido da defesa do Brasil
nas questões de limites com Argentina e com a França, acompanhava as
reações da imprensa do Rio de Janeiro e a repercussão no plano interna-
cional.

A missão especial brasileira nos Estados Unidos


Com o propósito de levantar documentação necessária para a reda-
ção da exposição de motivos do Brasil da defesa brasileira no litígio com
a Argentina, inicialmente, o Barão estabeleceu contato com representan-
tes das legações diplomáticas em outros países e com responsáveis pelas
bibliotecas e arquivos históricos na França, Inglaterra, Portugal, Espanha
e Estados Unidos. Em abril de 1893, visitou o Museu Britânico em Lon-

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Luciene Carris

dres, a Seção de Cartas da Biblioteca Nacional de Paris, o Depósito de


Cartas e Plano da Marinha e o Depósito Geográfico do Ministério das
Negócios Estrangeiros da França. O Barão encaminhou uma missiva con-
fidencial ao seu amigo, o ministro do Brasil em Lisboa, César Viana de
Lima. Nela, monstrava-se surpreso com a sua nomeação e com a súbita
viagem para os Estados Unidos, pois o afastaria do convívio familiar.

Partiu para a cidade de Washington, nos Estados Unidos, no dia 17


de maio de 1893, a bordo do vapor Teutonic. Mas entre a data de sua
nomeação e a partida manteve correspondência com os outros ministros
no exterior. Em carta endereçada ao secretário da legação no Vaticano,
Henrique Carlos Ribeiro Lisboa, comunicava que possuía pouco tempo
disponível para o levantamento de livros, mapas e demais papéis necessá-
rios para elaboração do memorandum.6 Depois de pesquisar nos acervos
do Museu Britânico e na Biblioteca Nacional de Paris, além de contatar
outros arquivos, a exemplo do Ministério dos Negócios Estrangeiros, re-
portou-se ao ministro do Brasil em Washington, Salvador de Mendonça.
Em resposta ao telegrama enviado, noticiava o pouco tempo disponível
para viajar a Madrid e Portugal em busca dos documentos necessários,
além de mencionar a desordem que prevalecia em tais arquivos. Demons-
trava, ainda, preocupação com a repercussão nacional da imbricada ques-
tão com a Argentina entre alguns compatriotas, como Gustavo Schüch
Capanema, o Barão de Capanema, para Rio Branco:
[...] a questão era muito simples, quando estudada com método, à vis-
ta dos mapas e das diferentes demarcações, mas alguns compatriotas
nossas, entre os quais o Barão de Capanema a tem embruxado e com-
plicado bastante. Eu devo uma resposta a Capanema por ter censurado
e querido corrigir certas proposições do meu pai no memorandum de
1857. Não respondi logo para não parecer que estava me recomendan-
do para esta missão. Ficará para depois da sentença arbitral.7

6  – AHI, Carta ao secretário da legação do Brasil junto ao Vaticano, Henrique Carlos


Ribeiro Lisboa, Paris, 10 de maio de 1893, Arquivo Barão do Rio Branco, livro 346.2.3.
7  – AIH, Carta ao ministro do Brasil em Washington, conselheiro Salvador de Mendon-
ça, Paris, 11 de maio de 1893, Arquivo Barão do Rio Branco, livro 346.2.3.

50 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (474):47-90, maio/ago. 2017.


A rede de sociabilidades do Barão do Rio Branco
e a defesa da soberania territorial brasileira

O Barão de Capanema, depois que se afastou da comissão demar-


catória, continuou a contestar as ambições argentinas sobre o território
litigioso. Em 1893, Capanema publicou a obra Pretensões argentinas na
questão de limites com o Brasil, que resumia algumas observações de sua
experiência pessoal como chefe da Comissão Mista de Limites.8 Em pe-
riódicos do porte do Jornal do Commercio também difundiu suas impres-
sões sobre o assunto. Na ocasião, comparou dois mapas, um organizado
pelo engenheiro da comissão demarcadora argentina Valentin Virasoro
e outro pelo advogado da causa argentina, o ex-ministro das Relações
Exteriores Estanislau Zeballos. Ressalvou uma suposta adulteração na-
quele elaborado por Zeballos, apresentado ao Congresso Brasileiro. Para
Capanema, a carta subtraía intencionalmente alguns rios e alterava a de-
nominação de outros, como o Peperi e seus afluentes. Advertia que o Rio
Peperi serviu de base para o tratado de 1750, portanto, já era conhecido.
Lembrava que o nome mudou para Peperi-Guaçu em 1789, com o objeti-
vo de não ser confundido com seu maior afluente, o Peperi-Mini. Assim,
a fim de comprovar suas premissas, sob a guarda da redação Jornal do
Commercio, deixou dois exemplares para um possível exame público.9

Vale a pena recordar que os dois países sul-americanos envolvidos


nessa disputa, a Argentina e o Brasil, originam-se de dois territórios que
durante longo período pertenceram às metrópoles espanhola e portugue-
sa. As suas fronteiras, ainda que vagas ou imprecisas, eram expressas
nos mapas cartográficos da época. Os limites pactuados nos tratados
do período colonial serviram como referência geopolítica na delimita-
ção posterior dos territórios nacionais. Com a emancipação das colônias
latino-americanas, vastos espaços foram incorporados, sobretudo, àque-
8  – Em 1885, foi assinado o tratado entre o Brasil e Argentina que determinava a criação
de uma comissão mista brasileiro-argentina, encarregada da exploração dos rios Peperi-
-Guaçu, Santo Antônio, Chapecó e Chopim. Integravam a comissão brasileira Guilherme
Schüch Capanema, o Barão de Capanema, José Candido Guillobel e Dionísio Evangelista
de Castro Cerqueira. MRE, “República Argentina: Tratado para o reconhecimento dos
rios Peperi-Guaçu e Santo Antonio e Chapeco e Chopim e do território entre eles com-
preendido”, Relatório do Ministério das Relações Exteriores, 1885, p. 05. Disponível em
http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u1600/000004.html Acesso em 20 de fevereiro de 2013.
9  –  Barão de Capanema. “A questão das missões”, Jornal do Commercio, 24 de junho de
1893. AIH, Arquivo Barão do Rio Branco, livro 346.2.19.

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Luciene Carris

les projetados para uma apropriação futura, os chamados “fundos territo-


riais”. Vale acrescentar que nem toda a extensão espacial, determinada na
partilha entre as metrópoles, havia sido plenamente absorvida ao projeto
colonial de ocupação e de exploração econômica. O estado monárquico
brasileiro, proveniente do processo de independência, assumiu a estrutura
de governo de sua ex-metrópole, bem como o seu patrimônio territorial,
herdando áreas de fronteiras incertas ou zonas fronteiriças.10

De todo modo, a organização e a sistematização documental realiza-


da pelo Barão do Rio Branco em Washington envolveu diversos atores e
instituições. Um ligeiro olhar sobre os esboços dos ofícios enviados por
Rio Branco incluiu ainda rascunhos de representações geográficas, nos
quais ele comparava, examinava e comentava mapas antigos. A corres-
pondência ao ministro das Relações Exteriores era diária, bem como aos
representantes das legações no exterior. Geralmente explanava encontrar
um novo mapa, vez por outra reunia e listava o rol de mapas encontrado.
A este exemplo, o Barão encaminhou ao ministro no Brasil, um ofício
confidencial e anexava fac-símiles de 13 mapas divididos metodicamente
em três séries: mapas impressos, mapas manuscritos e plantas da comis-
são mista. Ao concluir, informava que eram “perfeitamente inúteis para o
esclarecimento”.11

Ao chefe da seção de cartas da Biblioteca Nacional de Paris, Gabriel


Marcel, solicitou a reprodução de mapas.12 Em outra missiva, perguntou
se conhecia uma carta de 1721 do Paraguai e suas edições de 1765 e
1779.13 Ao ministro da legação na Espanha, solicitou o diário do geó-
grafo espanhol Francisco Milhan sobre a exploração do Rio Santo Anto-
nio e das nascentes do Rio Pepiry em 1759.14 Ao ministro em Londres,
10  –  MORAES, Antonio Carlos Robert. Geografia histórica do Brasil: Capitalismo, ter-
ritório e periferia. São Paulo: Annablume, 2012, pp. 74-76.
11  –  AIH, Arquivo do Barão do Rio Branco, Ofício confidencial ao ministro da Relações
Exteriores Fesliberto Freire, 15 de agosto de 1893, livro 346.2.4.
12  – AIH, Arquivo do Barão do Rio Branco, Ofício a G. Marcel, Biblioteca Nacional de
Paris, 30 de setembro de 1893, livro 346.2.5.
13  – AIH, Arquivo do Barão do Rio Branco, Ofício a G. Marcel, Biblioteca Nacional de
Paris, 05 de outubro de 1893, livro 346.2.5.
14  – AIH, Arquivo do Barão do Rio Branco, Ofício ao ministro do Brasil em Madrid,

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A rede de sociabilidades do Barão do Rio Branco
e a defesa da soberania territorial brasileira

requeria informações sobre as coordenadas ao diretor do Observatório


de Greenwich.15 Demandou cópias de mapas ao Librarian of Harvard
University e a American Geographical Society. Ao ministro da Relações
Exteriores requeria documentos que comprovassem a ocupação brasileira
no território litigioso em 1840, tais como: atas das eleições antigas em
Palmas, estatística criminal, certidões de nomeações de autoridades judi-
ciárias e policiais, arrecadação de impostos, entre outros.16

Os representantes da geografia francesa e a formação territorial


brasileira
Observa-se, então, que o empreendimento envolvia os representan-
tes de diversas legações diplomáticas no exterior, bem como algumas
personalidades brasileiras e europeias que pertenciam ao seu círculo de
sociabilidades. Neste caso, averiguamos a colaboração de dois renoma-
dos geógrafos franceses: Émile Levasseur e Élisée Reclus. Sabe-se que
tanto Levasseur quanto Élisee Reclus eram duas figuras reconhecidas no
cenário intelectual europeu e que pertenciam ao círculo de sociabilidades
do Barão. Segundo Álvaro Lins, o Barão seria o conselheiro destes dois
pensadores sobre assuntos americanos.17

Tal contato entre intelectuais brasileiros e franceses pode ser cons-


tatado na efeméride de 1889, ano do centenário da Revolução Francesa,
quando uma mostra internacional foi organizada em Paris. Organizadas a
partir de 1851, as exposições constituíam acontecimentos que pretendiam
demonstrar o estado do desenvolvimento do mundo capitalista e dissemi-
nar um ideal de civilização. Não por acaso, os países europeus do Velho
Mundo e os Estados Unidos exibiam seus artefatos tecnológicos, bem
como o seu progresso material. Naquela oportunidade, outras regiões do

Francisco Xavier da Cunha, 02 de outubro de 1893, livro 346.2.5.


15  – AIH, Arquivo do Barão do Rio Branco, Ofício ao ministro do Brasil em Londres, 10
de outubro de 1893, livro 346.2.5.
16  – AIH, Arquivo do Barão do Rio Branco, Carta ao ministro das Relações Exteriores,
12 de dezembro de 1893, livro 346.2.5.
17  –  LINS, Álvaro. Rio Branco (o Barão do Rio Branco) 1845-1912. Rio de Janeiro:
José Olympio, 1954, p. 175.

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Luciene Carris

planeta, como o Brasil, apresentavam também as suas riquezas naturais.


Tradicionalmente, a participação de cada país na mostra internacional
compreendia a instalação de um pavilhão que continha amostras das ri-
quezas do país (naturais, artísticas ou técnicas) e a preparação de material
bibliográfico com informações variadas sobre o país.18

Durante a monarquia, o Brasil se fez representar nos eventos de 1862


(Londres), 1867 (Paris), 1873 (Viena), 1876 (Filadélfia) e 1889 (Paris).
Além da participação do Brasil naquele certame, duas obras também fo-
ram publicadas, Le Brésil e Le Brésil en 1889. Mas o evento de 1889 não
trazia boas lembranças para o regime imperial, pairava ainda o fantasma
da derrubada de famílias e de cortes imperiais ocorrida em 1789 durante
a Revolução Francesa, com as quais o próprio monarca possuía laços de
sangue. Indiretamente, D. Pedro II se envolveu na sua organização – sob
o seu patrocínio foi criado um comitê misto com integrantes franceses e
brasileiros, denominado de Syndicat du Comité Franco-Brésilien, entre
os quais destacavam-se as figuras de Francisco José de Santana Nery e
Eduardo Prado.

De todo modo, a obra Le Brésil foi originalmente publicada como


um verbete homônimo que integrava a Grande Encyclopédie Française
(composta de 25 volumes), organizado por Émile Levasseur e publicada
pela editora parisiense H. Lamirault, em 1889. Sob a liderança dele, um
grupo proeminente de pensadores se sobressaía. Além dos franceses E.
Trouessart, doutor em Medicina; Paul Maury, do Museu de História Natu-
ral; Zaborowski, antigo secretário da Sociedade de Antropologia de Paris;
Henri Gorceix, diretor da Escola de Minas de Ouro Preto, integraram o
projeto os brasileiros Eduardo Prado, jornalista e homem de letras, José
Carlos de Almeida Areias, o Barão de Ourém, ministro plenipotenciário
do Brasil em Londres e o próprio Barão do Rio Branco.

18  – Sobre as exposições universais, ver HEIZER, Alda. Observar o Céu e medir a Ter-
ra: instrumentos científicos e a participação do Império do Brasil na Exposição de Paris
de 1889. 2005. 233 f. Tese de Doutorado em Ciências. São Paulo: Unicamp. Instituto de
Geociências.

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A rede de sociabilidades do Barão do Rio Branco
e a defesa da soberania territorial brasileira

Considerada uma peça de propaganda do regime imperial, o excerto


dividia-se em três partes dedicadas à geografia física, à geografia política
(história, administração e população) e geografia econômica, cuja autoria
era dividida entre Levasseur e Rio Branco. Nessa obra, as concepções de
geografia do Barão do Rio Branco estão mais evidentes, fruto do árduo
trabalho de pesquisa que vinha desenvolvendo há décadas em bibliotecas
e arquivos no Brasil e no exterior.19

Por outro lado, o livro Le Brésil en 1889 fora organizada pelo Barão
de Santana Néri, intelectual natural da região amazônica e radicado em
Paris.20 Tratava-se de um obra heterogênea, que contou com a colabora-
ção de 18 autores, a exemplo de Rio Branco, André Rebouças, Eduardo
Prado, Amaro Cavalcanti, Barão de Tefé, Ferreira de Araújo. Dividida em
25 capítulos, a publicação expunha um retrato de prosperidade e a possi-
bilidade de um destino próspero do país. Em decorrência das trajetórias
de vida e das fidelidades ideológicas de seus autores, a obra caracteriza-se
pelo tom não consensual, diferente da obra organizada por Levasseur.21

Ao contrário de Paul Vidal de la Blache, reconhecido como o funda-


dor da Escola Francesa da Geografia, Pierre Émile Levasseur (1828-1911)
teve sua figura eclipsada pela história da geografia francesa. La Blache
(1845-1918) é autor de um grande número de publicações, a exemplo de
La terre, géographie physique et économique (1883), États et Nations
de l’Europe autour de la France (1889) e Tableau de la Géographie de
la France (1903). Frequentou a École Normale Supérieure, onde se for-
mou em história e geografia, mas optou pelo caminho da história. Assim
como Vidal, Levasseur foi aluno da École Normale Supérieure. Depois
de formado, dedicou-se ao ensino e ao estudo das ciências econômicas.
Foi professor e administrador do Collége de France, professor da Éco-
le Libre des Sciences Politiques e do Conservatoire des Arts et Métiers,
membro da seção de economia, estatística e finanças da Académie des
19 – MORAES, Antonio Carlos Robert. “O Barão do Rio Branco e a Geografia”, op. cit.
20  – Francisco José de Santana Nery (org.), Le Brésil en 1889. Disponível em http://
issuu.com/scduag/docs/bresilen1 Acesso em 20 de março de 2013.
21  – FERRAIRA, G.N.; FERNANDES, M. F. L.; REIS, R. R. “O Brasil em 1889 um
país para consumo externo”. Revista Lua Nova, São Paulo, 2010, n. 81.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (474):47-90, maio/ago. 2017. 55


Luciene Carris

Sciences Morales et Politiques, vice-président do Institut International


de Statistique e presidente da Séction économique du Comité des Travaux
historiques et scientifiques. Pertenceu aos quadros sociais da Société de
Geographie de Paris, da Société de Statistique, da Société de Economie
Sociale e da Société d’Economie Politique.

Com a fundação da Terceira República na França, Levasseur foi in-


cumbido, ao lado A. Himly, em 1871, pelo ministro da instrução pública,
Jules Simon, de realizar uma inspeção do ensino da geografia e da história
pelo país. A tarefa envolveu ainda a confecção de um relatório e a pre-
paração de projetos para os novos programas de ensino a serem criados.
Nesse sentido, podemos considerar Levasseur como um importante cola-
borador desta nova escola francesa de geografia em curso naquele perío-
do. Na sua trajetória intelectual, destacaram-se a organização do ensino
básico da geografia no país, o incentivo ao estudo da geografia econômica
e o aparelhamento das estatísticas francesas.

A constituição da escola francesa de geografia ocorreu entre as úl-


timas décadas do século XIX e o início do século XX, e fora marcada
por duas importantes guerras, a de 1870 (Guerra Franco-Prussiana) e a
de 1914 (Primeira Guerra Mundial). Além disso, caracterizou-se também
pela instauração de um novo regime político na França que se estendeu
até 1940, a chamada Terceira República. O período assinalou um interes-
se sem precedentes pelas questões geográficas. Tal fato relacionava-se ao
fracasso francês ao fim do embate com o Reino da Prússia entre 1870-71,
o que, entre outras coisas, levou à perda do território da Alsácia e Lorena,
à queda do sistema monárquico e à derrocada do imperador Napoleão III,
sobrinho de Napoleão Bonaparte.

O sentimento de humilhação e o revanchismo se espalhava profun-


damente em grande parte da população francesa depois de 1870. Até esta
data, a Alemanha era considerada pelos liberais franceses um modelo
de ciência, de letras e de artes, bem como das instituições democráticas.
Para o grupo dos conservadores, seria o símbolo do sucesso das filoso-
fias materialistas, do ateísmo, do livre pensamento e do protestantismo.

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A rede de sociabilidades do Barão do Rio Branco
e a defesa da soberania territorial brasileira

Acreditava-se que a superioridade militar e econômica alemã derivava de


seu grande desenvolvimento científico, decorrente da organização de suas
instituições científicas e universitárias. A derrota francesa estimulou o de-
senvolvimento do movimento geográfico, cujo modelo inicial era ainda a
cultura alemã.22

Na França, difundiu-se a ideia de que o fracasso no conflito devia-se


ao desconhecimento das regiões onde ocorreram as batalhas e ao despre-
paro técnico dos militares em relação à decodificação das cartas topo-
gráficas. Por esse motivo também, o movimento regionalista começava
a despontar como uma forma de geografia aplicada. Havia uma neces-
sidade imediata e real de se conhecer o território. Além disso, abalizado
pelo espírito nacionalista e republicano, o ensino da geografia deveria ter
como função formar cidadãos e fortalecer o patriotismo, não muito dife-
rente da proposta ratzeliana em curso no território alemão. Nessa tarefa,
as casas editoriais francesas tiveram um papel decisivo, em especial a
Maison Hachette, que investiu capital no desenvolvimento da disciplina
e em pesquisas conduzidas por estudiosos que não se encontravam nas
universidades, a exemplo de Élisée Reclus. O envolvimento da Hachette
engendrou a publicação de atlas escolares e de diversos mapas e na edição
de obras monumentais como a Grand Geographie Universelle.23

Seja como for, o resultado dos trabalhos desenvolvidos por Levas-


seur e Himly foi a publicação de um relatório de 46 páginas, intitulado
de Rapport general sur l’enseignement et l’histoire et de la géographie.
Depois de percorrer as escolas primárias e secundárias na França, Le-
vasseur encorajou o ensino e a pesquisa em geografia nas universidades,
pois até então inexistia cátedras formais. Alguns cursos criados seriam
improvisados por estudiosos, a exemplo de Vidal de la Blache em Nancy,

22 – Cf. BERDOULAY, Vincent. La formation de l’ecole française de geographie


(1870-194). Paris: Biblioteque Nationale, 1981; BROC, Numa. “La geographie française
face à Allemande (1870-1914)”, Annales de Géographie, Paris, 1977, t. 86, n. 473, pp.
71-94.
23  – Ver MOLLIER, Jean-Yves. “Les mutations de l'espace éditorial français du XVIIIe
au XXe siècle”. Paris: Actes de la recherche en sciences sociales, Année 1999, Volume
126, n. 1, pp. 29-38.

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Luciene Carris

no ano de 1873. O projeto da reforma do ensino envolveu a tradução de


manuais alemães, a criação de cátedras de geografia, de seminários e de
missões universitárias de estudo na Alemanha. Nesse sentido, o desafio
alemão proporcionou uma oportunidade singular de avigorar a posição
institucional da geografia francesa.24

A disseminação da geografia alemã no meio intelectual foi propor-


cionada pelo discípulo de Karl Ritter, o geógrafo e geólogo suíço-ame-
ricano Arnold Guyot, que lecionava em Princeton, nos Estados Unidos.
Incumbido da reforma de ensino em sua pátria, Levasseur visitou Guyot
em 1876. Alguns anos mais tarde, o estudos antropogeográficos de Rat-
zel adentrariam no círculo intelectual francês. Em 1882, Friedrich Ratzel
publicou o primeiro volume de sua obra básica, Antropogeografia. Cinco
anos depois, foi editado seu livro mais polêmico, o Geografia Política.
Mas, em torno de 1900, o termo geografia humana aparecia amplamente
divulgado e preferido entre os geógrafos franceses. Já em fins dos Oito-
centos, Vidal de la Blache publicou Le principe de la géographie généra-
le (1896).25 A partir daí, despontava uma nova perspectiva geográfica, que
pretendia ir além das enumerações exaustivas e dos relatos de viagem.

Em oposição à perspectiva ratzeliana, a escola francesa, que contou


com a colaboração de Levasseur, demarcava o seu objeto na relação en-
tre o homem e a natureza, levando-se em consideração a perspectiva da
paisagem.26 Dessa maneira, o Homem sofria a ação da natureza e atuaria
sobre ela, modificando-a. Abordavam-se as relações entre o Homem e
a natureza, mas não a relação entre os mesmos. Além disso, a proposta
francesa criticava o expansionismo do estado alemão recém-constituído,
com o intento de se manter as fronteiras europeias solidamente firmadas
há séculos. Por outro lado, tal concepção resguardava a legitimação da
ação colonial francesa na Ásia e na África e a sua missão civilizadora.
De forte inspiração positivista, a perspectiva francesa era relativista, re-

24 – Cf. BERDOULAY, Vincent, op. cit, pp. 30-33.


25 – Idem, p. 39.
26  –  MORAES, Antonio Carlos Robert. “O Barão do Rio Branco e a Geografia”, op.
cit., p. 232.

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A rede de sociabilidades do Barão do Rio Branco
e a defesa da soberania territorial brasileira

jeitava a noção de causalidade e determinista de F. Ratzel.27 Além disso,


era contrário ao pensamento alemão que naturalizava a guerra e acolhia
a força bélica como fator de domínio legítimo dos espaços. Dessa forma,
transferia-se a crítica geográfica da dimensão política, orientando-a para o
âmbito da economia e da cultura. O comércio substituiria a guerra, como
motor do “progresso” dos povos. Enfim, uma circularidade que envolvia
imperialismo, colonização, nacionalismo, civilização, territorialidade,
ciência e negócios, temas da reflexão geográfica do final dos Oitocentos.28

Desse modo, o Barão do Rio Branco, notório estudioso, interessado


em história e em atualidade, não ignorava a movimentação intelectual
dos espaços acadêmicos em que circulava. No descanso de suas ativida-
des consulares em Liverpool, aprofundava seus estudos prediletos, vi-
sitava livrarias, arquivos e bibliotecas, compulsava e copiava mapas e
manuscritos. A sua concepção da geografia, em grande parte, espelhava
os posicionamentos do pensamento possibilista, uma vez que assimilava
os temas, o vocabulário e a forma de raciocínio próprios à geografia mo-
derna.29

Porém, podemos acrescentar que a influência cultural francesa no


Brasil e nos outros países da América Latina foi marcante ao longo do sé-
culo XIX até a eclosão da Grande Guerra em 1914. Até 1920, os intelec-
tuais brasileiros voltavam-se para os modelos das instituições francesas.
Incluía-se ainda a disseminação do francês como língua científica, uma
vez que não se privilegiava a tradução de obras estrangeiras. No Brasil, o
modelo a ser seguido era o do estado napoleônico, com seu papel direto

27  –  MORAES, Antonio Carlos Robert. Geografia: pequena história crítica, op. cit., p.
68-72.
28  – Sobre Paul Vidal de la Blache ver, MORAES, Antonio Carlos Robert. Geografia:
Pequena história crítica. São Paulo: Annablume, 2003; MOREIRA, Rui. “Vidal de La
Blache: civilização e contigência em Princípios de geografia humana”, In:____. O pen-
samento geográfico brasileiro: as matrizes clássicas originárias (v. 1). São Paulo: Con-
texto, 2011; Haesbaert, Rogério; Pereira, Sérgio Nunes e Ribeiro, Guilherme
(orgs.), Vidal, vidais: textos de geografia humana, regional e política. Rio de Janeiro: Ber-
tand Brasil, 2012. Cf. também GALLOIS, Lucien. Paul Vidal de la Blache (1845-1918)”,
Annales de Géographie, Paris, 1918, t. 27, n. 147, pp. 161-173.
29  –  MORAES, Antonio Carlos Robert, “O Barão do Rio Branco e a Geografia”, op. cit.

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Luciene Carris

na organização da ciências e na industrialização. Para as potências euro-


peias, as ciências, neste caso a geografia, constituíam um investimento
importante para o desenvolvimento dos seus impérios, especialmente, nas
áreas política e econômica. Em razão do universalismo, as ciências favo-
reciam as boas relações entre os países, caracterizadas pelo pragmatismo
e utilitarismo, e personificava o nacionalismo cultural. Segundo Patrick
Petitjean,
[...] além da utilização das atividades científicas para marcar seu ter-
ritório e zonas de influência, a cultura, a ciência e, mais amplamente,
as atividades intelectuais são utilizadas para criar rede de amigos que,
se espera, terão o papel do grupo de pressão por ocasião de conflitos
futuros. A América Latina é um terreno de predileção para essas riva-
lidades culturais entre potências europeias.30

Os colaboradores do Barão do Rio Branco


As estreitas relações entre os dois países haveria de ser lembrada por
Emile Levasseur. Em carta enviada ao Barão do Rio Branco, ele ressal-
tava a simpatia dos franceses pelos brasileiros, ao passo que enaltecia a
figura do imperador D. Pedro II. Na ocasião, o monarca havia lhe con-
ferido a medalha de comendador da Imperial Ordem da Rosa. A conde-
coração criada em 1829, por ocasião do matrimônio de seu pai com D.
Amélia, premiava os que se destacavam pela fidelidade ao monarca ou
pelos relevantes serviços prestados ao Estado. Em decorrência do papel
desempenhado na renovação do ensino da geografia na França, Levasseur
foi incumbido, pela editora de Charles Delagrave, de elaborar um novo
mapa brasileiro para ser disponibilizado nas escolas da Corte.31
30 – Ver Petitjean, Patrick. “Ciências, impérios, relações cientificas franco-brasilei-
ras”. In: Hamburguer, Amélia Império; Dantes, Maria Amélia M; Paty, Michel;
Petitjean, Patrick. A ciência nas relações Brasil-França (1850-1950). São Paulo;
Edusp, 1996, pp. 25-40.
31 – Desde a sua fundação em 1865, a editora Librairie Ch. Delagrave dedicou-se à pu-
blicação de livros escolares de várias disciplinas, tais como geografia, história, matemáti-
ca, ciências naturais, filosofia e astronomia. Depois da Guerra Franco-Prussiana, desem-
penhou um importante papel no desenvolvimento da geografia francesa. Editou o boletim
da Sociedade de Geografia de Paris e a Revue de Geographie. Teve ainda importante papel
no estabelecimento do Institut Geographique de Paris. Além de publicar manuais, atlas e
livros escolares, dedicou-se também à produção de móveis escolares.

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A rede de sociabilidades do Barão do Rio Branco
e a defesa da soberania territorial brasileira

Mas a preparação da obra remontava anos anteriores. Em missiva


endereçada a Tomás Fortunato de Brito, o Barão de Arinos, e reencami-
nhada a Rio Branco, Levasseur solicitava informações recentes sobre as
estradas de ferro no Brasil.32 Ao que tudo indica, o Barão, por intermédio
do Barão de Arinos, auxiliou na revisão da carta de Levasseur, bem como
forneceu documentos e mapas. Levasseur, ao comentar as correções per-
petradas pelo brasileiro, advertia que o trabalho se baseava principalmen-
te na Carta Geral do Brasil, editada em 1873, elaborada pelo general
Henrique de Beaurepaire Rohan, o Visconde de Beaurepaire Rohan, na
sua opinião “le document plus autorisé aujoudui-hui sur l’interieur du
Brésil”.33 Vale a pena registrar que entre 1873 e 1876, Beaupaire Rohan
chefiou a Comissão da Carta Geral do Império do Brasil, encarregada da
elaboração de um mapa do território nacional e considerada a primeira
tentativa de organizar os documentos cartográficos então disponíveis.34

Contudo, a pesquisa documental se estendeu às instituições brasi-


leiras do porte da Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro.35 Em ofício
enviado à entidade, Levasseur solicitava informações sobre os novos ca-
minhos descobertos para o Rio Xingu a partir da expedição realizada pelo
explorador alemão Karl von de Steinen.36 Na ocasião, coube aos sócios
Antônio de Paula Freitas e Francisco Antônio Pimenta Bueno a redação
32  – AIH, Arquivo do Barão do Rio Branco, Carta de M. Levasseur ao Barão de Arinos,
04 de outubro de 1887, lata 827.
33  – AIH, Arquivo do Barão do Rio Branco, Carta de M. Levasseur, 16 de maio de 1886,
lata 827.
34  –  Cf. CARDOSO, Luciene P. Carris, “Visconde de Beaurepaire Rohan”. In: ER-
MAKOFF, George (org.), Dicionário Biográfico Ilustrado de Personalidades da História
do Brasil. Rio de Janeiro: G. Ermakoff Casa Editorial, 2012, p. 1303.
35  – Sobre a história da instituição, ver CARDOSO, Luciene Pereira Carris. O lugar da
geografia brasileira: Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro (1883-1945). São Paulo:
Annablume, 2013.
36  – Karl von den Steinen liderou duas expedições a região do Xingu em 1884 e em
1888. O objetivo principal era o reconhecimento do Rio Xingu – o curso deste rio não
havia sido totalmente explorado. Suas cabeceiras eram desconhecidas e os mapas, insu-
ficientes. Nas duas oportunidades, palestrou na Sociedade de Geografia sobre as suas
impressões de viagem. Deixou importantes dados sobre as sociedades indígenas encon-
tradas, reunidas no livro Entre os naturais do Brasil Central, onde existem informações
sobre as tribos indígenas dos Pareci, Bororo e Bacairi. Tais eventos contaram com a pre-
sença de D. Pedro II e de representantes do cenário político imperial.

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Luciene Carris

de um parecer especial. O documento redigido pelos dois engenheiros


relatava alguns pontos da palestra do sábio alemão na sede da Sociedade.
Apesar de trazer à baila importantes informações sobre aquela região, o
explorador recusou-se oferecer uma cópia de seu plano de viagem, bem
como não revelou as longitudes das localidades visitadas. Concluía-se
que a Sociedade pouco poderia oferecer ao geógrafo francês, uma vez que
tais dados eram indispensáveis para confecção de um mapa.37 De todo
modo, em 1887, Levasseur comunicava ao Barão a conclusão de seu tra-
balho e a remessa de exemplares de sua obra ao imperador, ao presidente
do conselho de ministros, ao ministro do império, ao Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro, à Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro e aos
jornais do Rio de Janeiro, bem como ao próprio Rio Branco, em agrade-
cimento por sua colaboração.38

Não por acaso, o exemplar encaminhado à Sociedade foi alvo de crí-


ticas de Alfredo Moreira Pinto, professor de História da Escola Militar e
autor da obra Apontamentos para o Dicionário de Geografia do Brasil.39
Para ele, o mapa estava repleto de erros, tais como “fronteiras erradas da
província do Rio Grande e a eliminação da cidade de Pelotas”.40 A pro-
víncia do Espírito Santo, por exemplo, contava apenas com três cidades,
concluía “[...] lastimando que havendo homens no país habilitados, se
encarreguem estrangeiros desses trabalhos”.41 A propósito deste mapa,
o sócio Joaquim Abílio Borges sugeriu que a Sociedade se dirigisse for-
malmente ao Ministério do Império, a fim de mostrar os erros nele con-
tidos, pois seria mais conveniente “[...] a perda do custo dos referidos
mapas, do que prejudicar o ensino das crianças, fazendo-as aprender por

37  – SGRJ, Ata da sessão do dia 30 de março de 1885. Revista da SGRJ, Rio de Janeiro,
t. 1, n.1, 1886, p. 60.
38  – AIH, Arquivo do Barão do Rio Branco, Carta de Émile Levasseur, 11 de março de
1887, lata 827.
39  –  Bacharel em Letras pelo Colégio Pedro II, Moreira Pinto se destacou como estudio-
so da história e da geografia do país e como defensor da causa republicana, de tal modo
que seria um dos signatários do Manifesto Republicano de 1870.
40  – SGRJ, Ata da sessão do dia 25 de agosto de 1885, Revista da SGRJ, Rio de Janeiro,
t. 2, n. 2, p. 162, 1886.
41 – Idem.

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A rede de sociabilidades do Barão do Rio Branco
e a defesa da soberania territorial brasileira

um mapa cheio de incorreções”.42 Nesse sentido, o presidente da Socie-


dade, o Marquês de Paranaguá propôs que Moreira Pinto redigisse um
ofício ao Ministério do Império. Porém, a questão dos mapas ainda teria
novos desdobramentos, pois Abílio Borges fez severas críticas ao ensino
de geografia no país, reclamando do pouco empenho do inspetor-geral da
Instrução Pública “em fazer sanar os defeitos existentes”.43 Victorio da
Costa, o inspetor-geral da Instrução Pública da Corte respondeu às censu-
ras, afirmando que se tratava apenas de uma prova do mapa e que havia
sido submetida ao exame de Moreira Pinto, justamente para que fosse
corrigida e enviada às escolas.

Em outra oportunidade, outro trabalho de Levasseur sobre o Brasil


foi alvo de novos comentários. Dessa vez, Paula Freitas examinou a con-
ferência de Levasseur publicada no boletim na Sociedade de Aclimação
de Paris em 1885, intitulada “O desenvolvimento da raça europeia no
corrente século”. Em relação ao Brasil, observou que Levasseur baseou-
-se nos dados levantados pelo Recenseamento Geral do Império de 1872,
o primeiro censo de abrangência nacional realizado no Brasil. Na conse-
cução de tal projeto, estabeleceu-se o Departamento Geral de Estatística
em 1871, destinado os serviços estatísticos do império, sob a direção do
senador Manoel Francisco Correia, o idealizador da Sociedade de Geo-
grafia do Rio de Janeiro. Apesar de valorizar a importância de suas ob-
servações, Paula Freitas alertava que as informações utilizadas estariam
defasadas, além disso, o censo estaria repleto de lacunas e imperfeições
“[...] na maior parte devidas às condições locais e hábitos especialíssimos
dos habitantes do interior de algumas províncias”.44

Em 1889, a obra Grande Encyclopédie Française recebeu menção


especial no boletim oficial da Sociedade. Noticiou-se a contribuição de
ilustres colaboradores como o Barão do Rio Branco, bem como salientou-
-se a extensão do verbete dedicado ao Brasil, cerca de 51 páginas, “um
42  – SGRJ, Ata da sessão do dia 10 de setembro de 1885, Revista da SGRJ, Rio de
Janeiro, t. 2, n.3, p. 269, 1886.
43 – Idem, p. 270.
44  – Antônio de Paula Freitas, “O desenvolvimento da raça europeia no presente sécu-
lo”. Revista da SGRJ, Rio de Janeiro, t. 2, n. 2, 1886, p. 91.

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Luciene Carris

repositório vasto de informações acerca do nosso país”.45 Embora a So-


ciedade de Geografia reconhecesse o papel de Émile Levasseur para a
geografia do Brasil, seu nome, curiosamente, não configurou na relação
de sócios-correspondentes. Situação diferente ocorreu no Instituto His-
tórico e Geográfico Brasileiro. Na Casa da Memória Nacional, ele foi
indicado para integrar os quadros sociais em 1889, logo após a publicação
da obra sobre o Brasil em sessão que contou com a participação do impe-
rador D. Pedro II.46

Seja como for, a colaboração entre Levasseur e o Barão atravessou a


última década dos Oitocentos e os primeiros anos do século XXI. Ao todo
registramos 57 correspondências passivas no Arquivo Pessoal do Barão
do Rio Branco. Mas, por outro lado, encontramos poucas correspondên-
cias escritas pelo Barão; deparamos com algumas que integram o livro de
ofícios da sua Missão Especial em Washington entre 1893 e 1895. Neste
período, registramos 17 cartas enviadas ao Barão. As missivas recebidas
assinalam uma relação íntima de amizade e de apreço intelectual que foi
construída ao longo do tempo. Geralmente timbradas com os locais de
trabalho de Levasseur, tais como o College de France, a Sociedade Nacio-
nal de Agricultura da França, o Institut de France e até da sua residência
na rua Monsieur Le Prince, número 26, edifício onde também residia o
famoso poeta Victor-Émile Michelet. Observa-se ainda uma mudança na
forma de tratamento, inicialmente marcada pelo tom de formalidade para
uma relação de intimidade e de cordialidade, demonstrações de afeto que
se estendia à preocupação com a saúde do Barão e com a sua família.

Pela leitura de suas cartas, constata-se que nessa amizade intelectual


entrecruzava-se um círculo de sociabilidade intelectual tanto aqui no Bra-
sil quanto em Paris, que orbitava ao redor de ambos. Neste rol de persona-
lidades, registramos as figuras do escritor e jornalista Eduardo Prado, do
historiador Capistrano de Abreu, do botânico Maxime Cornu do Museu
de História Natural, do geógrafo Onésime Reclus, entre outros. Tais in-

45  –  SGRJ, “O Brasil na Europa”. Revista da SGRJ, Rio de Janeiro, t. 5, n. 1, 1889, p. 51.
46  – IHGB, “Ata da 19a. Sessão ordinária em 25 de outubro de 1889”. Revista do IHGB,
Rio de Janeiro, t. 52, v. 80, 1889, p. 516.

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A rede de sociabilidades do Barão do Rio Branco
e a defesa da soberania territorial brasileira

divíduos citados nas correspondências de Levasseur como colaboradores


da Grande Encylopedie ou ainda indicados para algum papel fundamen-
tal relacionado às dúvidas do Barão, sobretudo cartográficas, em relação
à extensa documentação levantada para a composição da exposição de
motivos do Barão no litígio com a Argentina. Apareciam, ainda, pedidos
de informações, de livros, de documentos e até de favores pessoais.

A título de exemplo podemos destacar Onésime Reclus (1837-1916),


irmão do geógrafo anarquista Élisée Reclus e do historiador Maurice Re-
clus. Membro da Sociedade de Geografia de Paris desde 1869, foi cola-
borador do periódico Tour du Monde e, a partir dele, o termo “franco-
phonie” ganhou notoriedade com a publicação da obra France, Algerie et
colonies. Em 1873, o livro Geographie: Europe, Asie, Océanie, Afrique,
France et ses colonies, de 798 páginas, recebeu o prefácio de Levasseur.
Voltado para os alunos do ensino secundário, a obra seguia a recomen-
dação do novo programa do ensino de geografia da Terceira República
na França. Dividia-se em cinco partes: agricultura, indústria, comércio,
colônias e administração. 47 Por ocasião de uma nova reedição da Grande
Encylopedie, em 1899, Levasseur considerou o nome de Onésime Reclus
para a redação de um verbete atualizado sobre o Brasil, uma vez que fal-
tava completar as letras “r” e “s” sob a incumbência do Barão. 48 Naquele
momento, Rio Branco encontrava-se envolvido em outra missão especial:
tratava-se do contestado franco-brasileiro entre o Brasil e a Guiana Fran-
cesa. Desde 1898, Levasseur vinha solicitando sem sucesso artigos sobre
o Brasil ou até mesmo uma lista de assuntos para um escritor substituto.49

Em junho de 1893, hospedado no hotel Savoy, em Nova York, Levas-


seur expressava ao Barão a dificuldade em lidar com a temperatura cálida
daquela estação, queixa que se repetiu em outras missivas. Justificava-se,

47 – RECLUS, Onésime. Geographie: Europe, Asie, Océanie, Afrique, France et ses


colonies, 1873. Disponível em http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k54459155/f9.image
Acesso em 20 de março de 2013.
48  – AIH, Arquivo do Barão do Rio Branco, Carta de Émile Levasseur, 05 de junho de
1899, lata 827.
49  – AIH, Arquivo do Barão do Rio Branco, Carta de Émile Levasseur, 20 de agosto de
1898, lata 827.

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Luciene Carris

ainda, pela demora de sua resposta. Havia recebido, entre o período de


saída de sua terra pátria e a sua chegada aos Estados Unidos, duas cartas
de Rio Branco. Aproveitava ainda para informar que estaria na cidade de
Chicago até setembro; depois iria visitar Nova Iorque. Incumbido pela
Academie de Sciences Morales et Politique de Paris, Levasseur desen-
volvia um estudo sobre as condições da classe operária daquele país. Du-
rante cinco meses, Levasseur levantou informações indispensáveis para
elaboração da obra L’ouvrier américain: l’ouvrier au travail, l’ouvrier
chez lui, les questions ouvriéres, em dois volumes, publicado em 1898,
pela Maison Larousse.

De volta a sua terra pátria, Levasseur organizou os registros de suas


lembranças de viagem e uma ampla literatura sobre a agricultura e a in-
dústria, o que permitiu a elaboração da obra intitulada L’agriculture aux
États-Unis, publicada em 1894, para Levasseur [...] l’agriculture dans
tous les pays une des parties essentialles de l’économie sociale.50Aliás,
ele já havia desenvolvido pesquisa semelhante sobre a classe operária
francesa, tais como as obras Histoire des classes ouvrières en France de-
puis la conquête de Jules-César jusqu’à la Révolution, editada em 1859,
e Histoire des classes ouvrières et de l’ industrie em France, depuis 1789,
jusq’à nous jours, publicada pela Maison Hachette em 1867.51

Naquele ano, outro acontecimento desviou temporariamente a aten-


ção de Rio Branco do trabalho de gabinete. Entre maio e outubro de 1893,
ocorreu na cidade norte-americana de Chicago, uma exposição universal
com o objetivo de comemorar os 400 anos da chegada de Cristóvão Co-
lombo à América, denominado “Columbian Exposition”. Ao findar a ex-
posição internacional, o Barão visitou as Cataratas do Niágara e aprovei-
tou a oportunidade para encontrar pessoalmente Émile Levasseur, como
demonstra o exame da correspondência passiva.52 Porém, não encontra-
50 – LEVASSEUR, Émile. L’agriculture aux États-Unis, 1893. Disponível em http://ar-
chive.org/stream/lagricultureaux00levagoog#page/n14/mode/2up Acesso em 02 de abril
de 2013.
51  – AIH, Arquivo do Barão do Rio Branco, Carta de Émile Levasseur, 08 de junho de
1893, lata 827.
52  – AIH, Ofício ao general Dionísio Cerqueira, Nova York, 27 de outubro de 1893,

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A rede de sociabilidades do Barão do Rio Branco
e a defesa da soberania territorial brasileira

mos registros de sua participação direta naquele certame como integrante


da delegação francesa.53

Tão logo retornou a sua terra natal, Levasseur fora novamente solici-
tado. O Barão requisitou a indicação de um “bom geógrafo” para realiza-
ção da redução de algumas cartas antigas na mesma escala.54 Em resposta,
comunicou ao Barão que havia se encontrado com um velho conhecido
seu, o desenhista-cartógrafo da Escola Superior de Guerra, Arthur Le-
jeaux, colaborador na elaboração de alguns mapas.55 Na ocasião, Legeaux
auxiliava Levasseur na revisão dos trabalhos cartográficos e dos cálculos
das posições geográficas do Mapa das Cortes de 1749. Em relação ao
mapa organizado pelo cartógrafo francês Baptiste D’Anville56, Legeaux
não foi capaz de auxiliar ao Barão, pois, segundo sua opinião, tratava-se
de “une recherche non de cartographie, mais de savant”. Por essa razão,
encaminhou a questão ao chefe da seção de cartas da Biblioteca Nacional
de Paris, Gabriel Marcel.57

As solicitações do Barão sempre eram atendidas, às vezes com um


pouco de atraso; isso devia-se às diversas atribuições do Levasseur. Na-
quele momento, além das preparações das aulas no College de France, ele
realizava diversas conferências em instituições francesas sobre os resul-

livro 346.2.3.
53  – World’s Columbian Exposition, Memorial volume. Dedicatory and opening cerimo-
nies of the World’s Columbian Exposition. Historical and descriptive as authorized by Board
of Control, 1893. Disponível em http://archive.org/stream/dedicatoryopenin00worl#page/
n5/mode/2up Acesso em 02 de abril de 2013.
54  – AIH, Arquivo do Barão do Rio Branco, Carta enviada a Émile Levasseur, 25 de
setembro de 1893, códice 346.2.3.
55  – AIH, Arquivo do Barão do Rio Branco, Carta de Émile Levasseur, 10 de novembro
de 1893, lata 827.
56  –  Baptiste Bourguignon D’Anville, cartógrafo francês que trabalhou com o embaixa-
dor português dom Luís da Cunha, visando a produção de um mapa que servisse de base
para as negociações do Tratado de Madri. Organizou a Carte de l’Amérique Méridionale
de 1748, que apresentou um esboço de uma nova linha de fronteiras entre as Coroas de
Portugal e de Espanha na América. Tal carta constituiu uma das fontes utilizadas para a
elaboração do Mapa das Cortes. Cf. CINTRA, Jorge Pimentel e FURTADO, Júnia Ferrei-
ra, Revista Brasileira de História, São Paulo, vol. 31, n. 62, pp. 273-316.
57  – AIH, Arquivo do Barão do Rio Branco, Carta de Émile Levasseur, 11 de dezembro
de 1893, lata 827.

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Luciene Carris

tados da pesquisa realizada nos Estados Unidos. Além disso, preparava


um manuscrito de 100 páginas sobre o tema para o boletim da Société
Nationale d’Agriculture.58

Em outra missiva, o Barão remeteu quatro cartas geográficas e deu-


-lhe determinadas instruções. Solicitava que comparasse duas cartas.
Uma delas correspondia a um fac-símile da Carta da América do Sul, na
qual os dois plenipotenciários de Portugal e Espanha se basearam para
traçar os limites da América Espanhola. O interesse de Rio Branco era
demonstrar que uma dela era a reprodução da parte meridional da outra,
mas faltava a comprovação da longitude exata do Rio de Janeiro. Deman-
dava ainda que o desenhista recomendado por Levasseur ressaltasse em
vermelho, na “Carta Reduzida da Comissão Mista”, os rios do território
em litígio: Peperi-Guaçu, Santo Antônio, Chapecó, Jangada, Chopim e as
seções dos rios Uruguai e Iguaçu entre as embocaduras de cinco afluen-
tes. Na Carta do almirante Mouchez, também requeria que o desenhista
realçasse em vermelho a costa do litoral do Rio de Janeiro até o Cabo de
Santa Maria.59

Diversos foram os requerimentos de Rio Branco nessa longa missi-


va, entre os quais, ele queria comprovar o erro da latitude do curso do Rio
Uruguai; conferir a longitude do Rio Peperi-Guaçu. Além disso, solicitou
o cálculo dos graus de latitude representado pelas distâncias pequenas
que se separam da linha do Equador.60 Cumpre destacar que o governo
argentino sugeriu um projeto de acordo, em 1889, então rejeitado pelo
ministro dos Negócios Estrangeiros Rodrigo Silva, o qual determinava

58  – AIH, Arquivo do Barão do Rio Branco, Carta de Émile Levasseur, 23 de novembro
de 1893, lata 827. A missiva em questão era uma resposta à correspondência enviada pelo
Barão do Rio Branco em 04 de novembro de 1897, Livro 346.2.5.
59  – O almirante francês Amedée Ernest Barthélemy Mouchez foi enviado pelo governo
francês com o objetivo de realizar o levantamento da costa brasileira, publicado posterior-
mente na obra Les Côtes du Brésil em quatro volumes. Além de contribuir ao estudo da
hidrografia marítima, se ateve às observações de caráter geográfico e histórico do litoral.
Sobre sua biografia, ver IBGE, Revista Brasileira de Geografia, Rio de Janeiro, v. 3, n.
2, 1941, p. 404.
60  – AIH, Ofício ao Monsieur Émile Levasseur, Nova York, 04 de novembro de 1893,
livro 346.2.5.

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A rede de sociabilidades do Barão do Rio Branco
e a defesa da soberania territorial brasileira

como meridiana geométrica “uma série de pontos ocupando cada um o


centro das paralelas ao Equador que cortarão as linhas limítrofes reclama-
das pelas duas partes contratantes”.61 O Barão já demonstrava certa des-
confiança em relação aos desenhistas que distribuíram os nomes dos rios
no mapa. Pedia, ainda, o envio de algumas obras, bem como a informação
sobre uma espécie vegetal, denominada Sarandi, conhecida na Argentina
e no Uruguai ao M. Maury, do Museu de História Natural de Paris e co-
laborador da Grand Geographie. Somente em 1894, o botânico francês
Marie Maxime Cornu, professor do Museu de História Natural, trouxe à
baila dados sobre a vegetação solicitada. Apoiando-se na obra do Barão
Ferdinand von M. Mueller, Monographie de Enphorbiacées, informava
que se tratava de uma vegetação típica do Rio Cuiabá.

Ao Observatório de Paris, o Barão ainda demandou a verificação do


trânsito do terceiro satélite de Júpiter em 05 de abril de 1759, por ocasião
de uma divergência na informação do Observatório de Greenwich – a in-
formação era indispensável para a determinação da longitude.62 Em ofício
endereçado a Candido Guillobel, informava que havia verificado a posi-
ção exata do Peperi e das cartas marítimas de 1733 e de 1748. Comunica-
va ainda que Levasseur havia sido incumbido de examinar o Journal de
Savants de 1750 sobre uma carta da América do Sul. Levasseur registrou
uma diferença de alguns minutos na longitude.63 A preocupação com os
cálculos exatos da longitude solicitados aos Observatórios de Greenwi-
ch e ao de Paris, segundo o Barão “[...] não quero levar pancadas dos
argentinos”.64 O Barão também se inquietava com as condições dos ins-
trumentos científicos utilizados nas missões de 1759 e 1760. Neste caso,
foi comprovado que tais instrumentos sofreram abalos frequentes em de-

61 – MRE, Obras do Barão do Rio Branco 1: questões de limites República Argentina.


Brasília: Fundação Alexandre Gusmão, 2012, p. 253.
62  –  AIH, Arquivo do Barão do Rio Branco, Carta confidencial a Émile Levasseur, 04 de
novembro de 1893, lata 827.
63  – AIH, Arquivo do Barão do Rio Branco, Ofício a Candido Guillobel, 05 de novem-
bro de 1893, livro 346.2.5.
64  – AIH, Arquivo do Barão do Rio Branco, Ofício ao ministro das Relações Exteriores,
04 de dezembro de 1893, livro 346.2.5.

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Luciene Carris

corrência da navegação em canoas pelos rios Uruguai, Paraná e Iguaçu, e


também no transporte por terra.65

Em resposta ao Barão, Levasseur encaminhava a obra de Alfred


Grandidier, publicada em 1892, intitulada de Histoire de la geographie de
Madasgacar;66 informava que a obra contemplava duas páginas dedica-
das às diferenças de longitudes. Ainda a respeito das diferenças dos graus
de latitudes e de longitudes, enviou as obras Traité des Projections: re-
présentation plane de la sphère et du sphéroïde, de Adrien Adolphe Char-
les Germain, de 1862, e a obra de sua autoria Statistique de la Superficie
et population des contrées de la terre.67 Sobre as longitudes, Levasseur
consultou o astrônomo do Observatório de Paris, M. G. Bijourdan, que
repassou dados sobre as os eclipses do satélites de Júpiter em abril e em
dezembro de 1759. Baseando-se em Tables écliptiques des satellites de
Jupiter, d’après la théorie de leurs attractions mutuelles et les constantes
déduites des observations (1836), do Barão Marie-Charlie Damoiseau,
empregando os cálculos das efemérides das tabelas de Júpiter, Levasseur
observava um erro de 10 graus no mapa dos plenipotenciários.68

De todo modo, vale acrescentar que não constituía uma novidade a


determinação da latitude para os astrônomos e matemáticos desde o sé-
culo XVI. Desde aquela época, podia-se calcular a latitude pela altura do
Sol ou da Estrela Polar por meio da utilização de um instrumento científi-
co: quadrante, sextante ou astrolábio. Nesse sentido, para a determinação
da latitude bastaria adotar a altura de uma das estrelas listadas em uma
tabela e averiguar nela a sua declinação. Por outro lado, a medição da
longitude sempre constituiu um problema para os navegadores, resultou
em verdadeiras imprecisões cartográficas e em catástrofes marítimas.
65  – AIH, Arquivo do Barão do Rio Branco, Carta à Legação em Bruxelas, Francisco
Vieira Monteiro, 12 de dezembro de 1893, livro 346.2.5.
66 – GRANDIDIER, Alfred. Histoire de la geographie de Madasgacar, 1892. Disponí-
vel em http://archive.org/stream/histoiredelago00gran#page/92/mode/2up. Acesso em 01
de abril de 2013.
67  – AIH, Arquivo do Barão do Rio Branco, Carta de Émile Levasseur, 28 de dezembro
de 1893, lata 827.
68  – AIH, Arquivo do Barão do Rio Branco, Carta de Émile Levasseur, 02 de fevereiro
de 1894, lata 827.

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A rede de sociabilidades do Barão do Rio Branco
e a defesa da soberania territorial brasileira

Uma das formas encontradas pelo astrônomo e físico italiano Galileu


Galilei, em 1610, foi a observação das diferenças horárias em duas loca-
lidades pela observação dos eclipses lunares e solares dos quatro satélites
de Júpiter, pois neste planeta tais fenômenos são recorrentes ao longo do
ano. O método seria razoavelmente bem-sucedido em terra firme, sendo
empregado por cartógrafos e topógrafos para redesenhar o mundo, uma
vez que a precisão adequada da marcação do tempo dos eclipses deter-
minaria a exatidão do mapeamento terrestre. Nesse sentido, tabelas de
movimentos astronômicos, conhecidas como efemérides, eram cada vez
mais propagadas. Além disso, a partir do século XVI, a função do astrô-
nomo ganharia uma nova dimensão, bem como a reorganização dos ob-
servatórios, a exemplo do Observatório de Paris pelo italiano Giovanni
Domenico Cassini, posteriormente naturalizado francês. Cassini, profes-
sor da Universidade de Bolonha, publicara um conjunto de tabelas mais
acuradas em 1668. A notoriedade de seu trabalho lhe rendeu um convite
do rei Luís XIV para se estabelecer na Corte do rei Sol.69

Seja como for, logo que finalizou o trabalho, o Barão encaminhou


três exemplares da sua exposição de motivos. Levasseur respondeu in-
formando-lhe que retornava aos estudos sobre a América. Participaria de
um certame em Sorbonne, o Congrés de Sociétés Savantes, e naquela
oportunidade discursaria sobre a economia dos Estados Unidos. Sobre a
empreitada do Rio Branco, agradeceu a remessa enviada, e afirmou que
se tratava de uma obra monumental “[...] une ouvre considerable que res-
tera dans l’histoire de la geographie americaine”.70 Em outra carta, la-
mentava a ausência de informações sobre o resultado do arbitramento do
presidente Grover Cleveland. Mas incentivava o seu prestigioso amigo,

69  – Sobre esse assunto ver, SOBEL, Dava. Longitude: a verdadeira história do gênio
solitário que resolveu o maior problema do século XVIII. São Paulo: Companhia das Le-
tras, 2008, pp. 24-32. De todo modo, a determinação da longitude no mar foi conquistada
pelo relojeiro inglês John Harrison, por meio da construção de um relógio marítimo que
marcaria a passagem do tempo no mar com precisão absoluta.
70  – AIH, Arquivo do Barão do Rio Branco, Carta de Émile Levasseur, 26 de maio de
1894, lata 827.

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Luciene Carris

ao afirmar que o trabalho não seria perdido, pois consistia num importan-
te documento de história e geografia.71

A investigação das fontes necessárias abrangeu ainda a participação


de um velho amigo, o historiador João Capistrano de Abreu, autor de Ca-
pítulos de História Colonial, antigo funcionário da Biblioteca Nacional
e professor do Colégio D. Pedro II. A troca epistolar entre os dois inte-
lectuais iniciou-se em 1886, quando Rio Branco encontrava-se em Liver-
pool. Naquela ocasião, Capistrano se beneficiou de documentos enviados
pelo Barão para a sua pesquisa histórica e para a escrita de importantes
obras.72 Seja como for, em missiva enviada a Capistrano, o Barão relata-
va o árduo trabalho no qual estava envolvido. Além disso, comunicava
que havia solicitado ao então diretor da Biblioteca Nacional documentos
sobre as missões no Uruguai no século XVIII. Lembrava ainda do antigo
“Roteiro dos Bandeirantes”, citado por Francisco Adolfo de Varnhagen,
o Visconde de Porto Seguro, no livro História Geral do Brasil. Observou
que o Visconde não se enganara em relação ao chamado Campo de Pal-
mas, uma vez que os nomes “Bituruna” e “Inhanguera” apareciam nos
mapas antigos do início do século XVIII. Para finalizar, avisava da visita
do geógrafo francês Élisée Reclus ao Brasil. Por essa razão, indicou Ca-
pistrano como o primeiro contato da sua lista de “pessoas relacionadas”
ao geógrafo francês.73

Ao contrário de Emile Levasseur, Élisée Reclus veio pessoalmente


ao Brasil levantar informações necessárias para a elaboração do 19º. vo-
lume da Nouvellle Géographie Universelle, patrocinada pela casa edito-
rial Hachette, em 1893, obra que seria dedicada ao estudo do Brasil e das
repúblicas vizinhas do Rio da Prata. Notadamente reconhecido pela sua

71  – AIH, Arquivo do Barão do Rio Branco, Carta de Émile Levasseur, 06 de outubro
de 1894, lata 827.
72  – Sobre este assunto ver PEREIRA, Daniel Mesquita & FILIPE, Eduardo Ferraz.
“Missivas que constroem limites: projeto político e projeto intelectual nas cartas de Ca-
pistrano de Abreu ao Barão do Rio Branco (1886-1903).” Revista Brasileira de História,
São Paulo, v. 28, n. 56, pp. 487-506, 2008.
73  – AIH, Arquivo do Barão do Rio Branco, Carta ao Capistrano de Abreu, 29 de setem-
bro de 1893, lata 827.

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A rede de sociabilidades do Barão do Rio Branco
e a defesa da soberania territorial brasileira

militância anarquista e pelas suas ideias libertárias, o geógrafo francês


Élisée Reclus, filho de pai pastor protestante e mãe professora primária,
antes de enveredar pelos estudos da geografia, matriculou-se no curso de
teologia na Universidade de Berlim. Nessa instituição, foi aluno de Karl
Ritter no curso de geografia e de Karl Schimdt em economia política.
Desse contato com Ritter, despertou o seu interesse pela disciplina, afas-
tando-o definitivamente do sacerdócio. Como discente, envolveu-se nas
manifestações contra o golpe de Estado perpetrado por Luís Bonaparte,
em 1851, que se autoproclamara imperador dos franceses, sob o título de
Napoleão III. Temendo a prisão, viajou pela Inglaterra, Irlanda, Estados
Unidos e Colômbia.74

De volta à França em 1857, passaria a trabalhar como escritor, de-


dicando-se a publicar memórias e livros sobre os países que conhecera,
de tal maneira que seus escritos seriam reconhecidos, o que mais tarde
lhe valeria o ingresso na prestigiosa Sociedade de Geografia de Paris em
1862. Inicialmente contratado pela Maison Hachette, Reclus colaborou
como tradutor e na elaboração de guias turísticos.75 Cooperou, ainda, em
periódicos de muito prestígio também, tais como Revue des Deux Mondes
e a Revue Politique et Littéraire. A sua atividade intelectual não o afastou
das atividades políticas. Em 1870, candidatou-se à Assembleia Nacio-
nal, envolveu-se ainda na Guerra Franco-Prussiana (1870-1871) como
um soldado aos 40 anos de idade. Por ocasião da resistência francesa em
face da ocupação prussiana em Paris, Reclus participou da Comuna de

74  – Sobre a trajetória de Elisée Reclus na Colômbia, ver PALACIOS, David. Élisée Re-
clus e a geografia da Colômbia: cartografia de uma interseção, Dissertação de Mestrado,
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. São Paulo: USP. 2010. Ver, também,
DUARTE, Regina Horta. “Natureza e sociedade, evolução e revolução: a geografia liber-
tária de Élisée Reclus” In: Revista Brasileira de História, São Paulo, 2006, v. 26, n. 51,
pp. 11-24.
75  – Sobre as casas editoriais n França, ver MOLLIER, Jean-Yves. “Les mutations de
l'espace éditorial français du XVIIIe au XXe siècle”, op. cit. Ver também BERDOULAY,
Vincent. La formation de l’École Française de Geographie (1870-1914), op. cit., pp. 143-
144. A casa editorial Hachette foi uma das principais livrarias de língua latina na Europa.
Produziu diversas obras, tais como Les Guides Joanne em 1853. Envolvida com o projeto
expansionista comercial francês, em 1860, criou o periódico Le Tour du Monde: Nouveau
Journal des Voyages, sob a direção do jornalista e político Édouard Charton.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (474):47-90, maio/ago. 2017. 73


Luciene Carris

Paris, sendo aprisionado logo após o esfacelamento do movimento. Preso


e julgado, foi condenado à prisão perpétua na colônia francesa de Nova
Caledônia, na Oceania. Em decorrência de seu reconhecimento interna-
cional, sobretudo europeia, uma mobilização de intelectuais pressionou a
comutação de sua pena para a de exílio por dez anos na Suíça.

Tal acontecimento não atrapalhou a sua relação contratual com a


Maison Hachette. Pelo contrário, assinou um novo contrato para escrever
a obra Nouvelle Géographie Universelle, inicialmente em dez volumes,
ampliados posteriormente para 19. O novo trabalho permitiu ainda que
viajasse por vários países, levantando informações, documentação, bem
como a observação de paisagens indispensáveis à escrita desta obra mo-
numental e a estreitar relações com os teóricos anarquistas, tais como
Mikhail Bakunin e Piotr A. Kropotkin, este último seu colaborador no
volume dedicado ao Extremo Oriente e a Sibéria. De todo modo, a editora
censurou a abordagem de temas políticos, sociais e religiosos na redação
da coletânea.

Para elaborar a obra, além das inúmeras viagens pelo mundo, minis-
trou em paralelo cursos em diversas universidades, como em Genebra.
Em reconhecimento a sua atividade intelectual, foi consagrado com as
medalhas de ouro da Sociedade de Geografia de Paris, em 1892, e da
Sociedade Geográfica de Londres em 1893. A última viagem de pesquisa
para a obra foi realizada em 1893 ao Brasil, Argentina, Uruguai e Chile.76

Ao contrário das cartas trocadas entre Émile Levasseur e o Barão


de Rio Branco; que assinalam, além do apreço intelectual, uma relação
íntima de amizade e de cordialidade, as missivas trocadas com Reclus
denotam um tom de respeito e de consideração intelectual, mas não de
intimidade. Localizamos um conjunto de seis cartas enviadas ao Barão
entre 1893 e 1904. Para efeito desta pesquisa, selecionamos aquelas que
se referem especificamente à questão litigiosa e à sua visita ao Brasil,
bem como no texto produzido por ele sobre o Brasil e as anotações de Rio
Branco. Na primeira missiva, Reclus informou que estaria disponível em
76  – Cf. ANDRADE, Manuel Correia de. Élisée Reclus. São Paulo: Editora Ática, 1985.

74 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (474):47-90, maio/ago. 2017.


A rede de sociabilidades do Barão do Rio Branco
e a defesa da soberania territorial brasileira

Paris para um encontro.77 Possivelmente um dos assuntos dessa reunião,


além da viagem ao Brasil, consistia no levantamento de material para a
elaboração da Nouvelle Geographie Universelle, uma vez que constata-
mos em outra carta do geógrafo francês uma nota de agradecimento pelo
envio de documentos e de mapas do estado do Rio de Grande do Sul.78

Sobre a viagem às cidades de Rio de Janeiro e de São Paulo, o Barão


recomendava o encontro com algumas personalidades do cenário inte-
lectual e científico, entre os quais, o já citado historiador Capistrano de
Abreu, o militar e historiador Alfredo d’Escragnolle Taunay, o Visconde
de Taunay, o astrônomo Luís Cruls, diretor do Observatório Nacional, o
geólogo Orville Derby, chefe da Comissão Geológica de São Paulo e com
o político Rodolfo Dantas, ex-ministro das pastas do interior e da ins-
trução pública durante o regime monárquico. Ainda na mesma missiva,
comentou o envio de um mapa sobre a região litigiosa, com destaque para
área demandada pelo governo argentino, ao chefe da seção de impressão
da Maison Hachette, Charles Schiffer. Rio Branco buscava um especialis-
ta para realizar o cálculo em milhas e em quilômetros daquela superfície
requerida.79 Ao que tudo indica, Reclus recebeu tardiamente a missiva
enviada, pois já se encontrava na cidade de Juiz de Fora, em Minas Ge-
rais. Apesar de lamentar a falta de oportunidade de um encontro com
Capistrano de Abreu, se surpreendia com a calorosa recepção recebida no
Rio de Janeiro e afirmava “[...] Pourvu que je ne trahira pas la confiance
que tous ces Messieurs mettent en moi: hélas ! C`est encore difficile que
de parler au point levé d’un pays si grand quand à son étendu, si grand
quand à son avenir”.80

77  – AIH, Arquivo do Barão do Rio Branco, Carta de Élisée Reclus, 16 de abril de 1893,
lata 836, maço 02.
78  – AIH, Arquivo do Barão do Rio Branco, Carta de Élisée Reclus, 27 de abril de 1893,
lata 836, maço 02.
79  – AIH, Arquivo do Barão do Rio Branco, Carta do Barão de Rio Branco a Élisée
Reclus, 10 de junho de 1893, lata 836, maço 02.
80  – AIH, Arquivo do Barão do Rio Branco, Carta de Élisée Reclus, 19 de julho de 1893,
lata 836, maço 02. “[...] Que eu não traía a confiança de todos estes senhores colocaram
em mim, ai de mim! É difícil de falar de um país tão grande quanto à sua extensão, tão
grande quanto ao seu futuro” (Tradução livre).

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Luciene Carris

Em sessão de 18 de julho de 1893, o geógrafo francês foi entusiasti-


camente recebido na Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro. Por sinal,
ele chegara ao Brasil num momento de grande turbulência política, em
pleno desenrolar da Revolta da Armada, uma das diversas insurreições
que irromperam no país, durante o processo  de consolidação do regime
republicano, instaurado em 1889. Na ocasião, foi agraciado com o diplo-
ma de sócio honorário, título especialmente concedido para aqueles que
se distinguiam pelos “seus conhecimentos teóricos e práticos em geogra-
fia e ciências conexas”. Recebeu ainda uma coleção das revistas da So-
ciedade, o relatório da Exposição de Geografia Sul-Americana realizada
em 1889, o catálogo da biblioteca e do arquivo, além do relatório sobre o
meteorito de Bendegó. O géografo francês doou uma coleção da Nouvelle
Geographie Universelle à biblioteca da instituição.

De todo modo, Élisée Reclus proferiu uma rápida palestra na So-


ciedade de Geografia, uma espécie de resultado preliminar das suas ob-
servações de viagem. Privilegiou aspectos da cidade do Rio de Janeiro e
do estado de São Paulo. De um modo geral, revelou-se encantado com a
paisagem natural que circundava a então capital da República. Demons-
trou até certa surpresa, por haver se deparado com o desenvolvimento do
sistema viário do Rio de Janeiro. Da passagem pelo interior de São Paulo,
destacou a excursão realizada pelo Rio Mogi-Guaçu, o que lhe permi-
tiu descobrir, em meio às matas virgens, imensas plantações de café, na
época o mais importante produto da agricultura brasileira, que abaste-
cia o mercado mundial. Observador perspicaz, não deixou de assinalar
o problema da baixa densidade demográfica brasileira: os 16 milhões de
habitantes se disseminavam por um território de oito milhões e meio de
quilômetros quadrados.81

Além da Sociedade de Geografia, há ainda um registro da visita ao


Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e a sua indicação como sócio-
81  –  Sobre a visita de Reclus à Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro, ver CAR-
DOSO, Luciene Pereira Carris. O lugar da geografia brasileira: Sociedade de Geografia
do Rio de Janeiro (1883-19450), op.cit. Cf. também, Miyahiro, Marcelo Augusto. O
Brasil de Élisée Reclus: território e sociedade em fins de século XIX. Dissertação de
Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Geografia Humana. São Paulo: USP. 2011.

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A rede de sociabilidades do Barão do Rio Branco
e a defesa da soberania territorial brasileira

-honorário. 82 Seja como for, o 19º volume da Nouvelle Géographie Uni-


verselle foi publicado na França em 1894. A inserção do Brasil na Nou-
velle Géographie Universelle principia como a descrição dos territórios
situados no extremo norte do país. O fio condutor da análise é o próprio
percurso descrito pelo Rio Amazonas, que o autor considerou “o mais
caudaloso [...] da América do Sul e do mundo”, recebendo diferentes de-
nominações entre a nascente e a foz.83 Élisée Reclus introduziu o estudo
dos vários afluentes que nele deságuam para explicar o volume das suas
cheias anuais, que comparou com as do Rio Nilo, no Egito:
[...] regular em seus movimentos como o Nilo, o Rio Amazonas sobe
e baixa alternadamente conforme as estações, por uma serie de fluxos
e de refluxos em que os indígenas veem uma espécie de maré que eles
designam pelos nomes correspondentes: enchente e vazante.84 Dedi-
cou grande atenção aos fenômenos que ocorrem durante as enchentes
do Amazonas, a exemplo das pororocas, ondas que se formam na em-
bocadura do rio quando suas águas se encontram com as do oceano
Atlântico. O estudo demonstra sólida pesquisa de gabinete, aprofun-
dada por um trabalho de campo minucioso.85

O 19º volume da Nouvelle géographie universelle foi lançado na


França em 1894. Seis anos mais tarde, a parte relativa ao Brasil foi publi-
cada em português, com o título Estados Unidos do Brasil: geographia,
ethnographia, estatistica, por Élisée Reclus86, traduzida pelo Barão de
82  – IHGB. Ata da sessão ordinária de 30 de junho de 1893. Revista do IHGB, Rio de
Janeiro, t. 56, n. 2, 1893, pp. 176-180.
83 – RECLUS, Élisée. Estados Unidos do Brazil: geografia, etnografia, estatística. Tra-
dução e breves notas de Barão de F. Ramiz Galvão e anotações sobre o território contes-
tado pelo Barão do Rio Branco, 1900. Rio de Janeiro, Paris: H. Garnier/Livreiro-Editor,
1899, pp. 33 e 34.
84 – Idem, p. 58.
85  –  Baseou-se em diversos autores estrangeiros, a exemplo de Saint-Hillaire, de Spix e
Martius e de Francis de Castelnau, além de brasileiros como Francisco A. de Varnhagen
e o Barão do Rio Branco.
86  – O livro divide-se em 11 capítulos, a saber: “Vista Geral, a Amazônia, os estados
do Amazonas e do Pará”; “Vertente do Tocantins”; “Costa Equatorial e os estados do
Maranhão, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco e Alagoas”; “Ba-
cias do Rio São Francisco e vertente oriental dos planaltos e os estados de Minas Ge-
rais, Bahia, Sergipe e Espírito Santo”; “Bacia do Paraíba e o estado do Rio de Janeiro e
Distrito Federal”; “Vertente do Paraná e contravertente oceânica”; “Vertente do Uruguai
e litoral adjacente do Estado de São Pedro do Rio Grande do Sul”; “o Mato Grosso”;

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (474):47-90, maio/ago. 2017. 77


Luciene Carris

Ramiz, que a atualizou com uma série de retificações em notas de pé de


página: “[...] tendo traduzido esta excelente obra de Élisée Reclus, não
nos julgamos autorizados a modificá-la em pontos substanciais, ainda que
nem sempre concordássemos com a opinião do autor.87” Coincidentemen-
te, a obra foi publicada no mesmo ano de divulgação do laudo arbitral do
governo suíço sobre o contestado franco-brasileiro, o qual teve novamen-
te Rio Branco como advogado da causa brasileira.

De todo modo, as correções efetuadas assinalavam apenas lapsos


de texto em relação a nomes próprios e datas. Apesar disso, o livro não
perdia a sua importância:
[...] prestará bons serviços e merece o favor do público brasileiro,88
conforme as palavras de Ramiz Galvão. À guisa de curiosidade, serão
aqui destacadas algumas dessas correções. Segundo o texto original, a
língua oficial dos estabelecimentos de ensino superior seria o francês.
O tradutor apontou o engano e observou que o idioma oficial era o
português. Porém, atribuiu o equívoco ao uso frequente de compên-
dios escolares provenientes da França, bem como ao número elevado
de consultas a livros franceses nas bibliotecas públicas, superior inclu-
sive ao das obras de autores nacionais.

Do mesmo modo, esclarecia a fixação dos limites entre o Brasil e


Argentina, apenas tangenciada pelo geógrafo, resolvida em 1895, com o
laudo favorável ao Brasil, promulgado pelo presidente Cleveland do Es-
tados Unidos. Outras notas menores atualizavam informações censitárias,
a exemplo da nacionalidade e da entrada de imigrantes.

Já a questão do território disputado entre o Brasil e a França, veio


a merecer reparo de maior profundidade, preparado pelo Barão do Rio
Branco,89 representante diplomático nas negociações do litígio, cuja ar-
bitragem coube ao Governo Suíço, resolvido pelo Tratado de 10 de abril
“Estado social da sociedade brasileira e Governo e administração”.
87  –  Ramiz Galvão, “Ao leitor”. In: Élisée Reclus, op. cit., s/p.
88 – Idem.
89  – Entre 1893 e 1900, o Barão do Rio Branco fora designado para resolver as disputas
pelos territórios de Palmas e do Amapá. Em 1902, foi indicado para o Ministério das
Relações Exteriores e participou das negociações pelo Acre com a Bolívia e de questões
fronteiriças com Venezuela e Colômbia.

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A rede de sociabilidades do Barão do Rio Branco
e a defesa da soberania territorial brasileira

de 1897. De acordo com Reclus, o território reclamado pela França se


estendia por 260 mil quilômetros quadrados, área que correspondia “[...]
a de quinze departamentos franceses e com cerca de três mil habitantes
civilizados”. O Tratado de Utrecht de 1713, no seu entender, ao invés
de resolver o problema, complicou-o ainda mais: “[...] fixando como
fronteira das possessões respectivas dos dois paises um rio que ninguém
conhecia, e cuja foz nenhum navegante havia explorado”. Mais adiante,
perguntava: “Qual é esse Rio Yapok ou Vicente Pinzon que os diplomatas
de Utrecht, ignorantes das coisas da América, quiseram indicar nas suas
cartas rudimentares?”90 Acrescentou que o limite meridional seria o Rio
Amazonas, o que de certo relembrava as aspirações pretendidas por Na-
poleão III em 1841.

O geógrafo afirmou, também, que apenas dois terços da população


local era de origem brasileira,
[...] todavia o dialeto crioulo francês de Caiena, mesclado de termos
índios é geralmente conhecido. Portugueses, martinicanos e crioulos
franceses constituem o outro terço com os mestiços indígenas que ou-
trora eram os únicos habitantes dessa região.91 Comentou, ainda, a
suposta proclamação de uma república na região do Cunani, em 1886,
que teria tornado a região independente: [...] era-lhes preciso, porém,
um presidente francês, e Paris divertiu-se com a história de um honra-
do geógrafo de Vanves transformado subitamente em chefe de um es-
tado de nome até então desconhecido, e que se rodeou imediatamente
de uma corte, constituiu ministério e fundou uma ordem nacional, a
Estrela do Cunani [...].92

As retificações do Barão do Rio Branco ocupam mais espaço do que


o texto de Reclus. São longos comentários, repletos de explicações his-
tóricas, fruto da pesquisa documental que empreendera para preparar a
defesa brasileira, mais tarde publicada com o título A questão de limites
entre o Brasil e a Guiana Francesa (1899-1900). Sua argumentação ba-

90 – Élisée Reclus, op. cit., p. 475.


91 – Idem, p. 479.
92 – Idem, p. 477.

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seava-se no princípio do uti-possidetis solis, ou seja, na ocupação anterior


do território.

Rio Branco, em primeiro lugar, procurou elucidar as dúvidas susci-


tadas pelo geógrafo. Esclareceu que o Rio Japoc ou Vicente Pinzón do
Tratado de Utrecht de 1713 era o mesmo Rio Oiapoque ou Vicente Pinzón
do Tratado Provisional de 1700. Concordava, entretanto, que era correta a
premissa de que o limite primitivo da Guiana Francesa situava-se no Rio
Amazonas. Porém, os franceses não poderiam exigir a posse daquelas
terras, pois nunca as ocuparam, enquanto que os portugueses lá se estabe-
leceram desde 1616. Ponderou, ainda, que: “[...] O aparecimento de um
ou outro navio francês que em fins do século XVI e princípios do XVII
foi negociar com os índios dessa região não constitui um titulo em favor
da França”.93

Quanto à população local, o Barão discordava da origem apontada


pelo autor da Nouvelle géographie. Na sua maior parte, os habitantes eram
brasileiros, conforme o relatório do próprio comandante francês, major
E. Peroz, datado de Caiena em 27 de maio de 1895: “Les 8 ou 10000
habitants fixes actuellement sur le Contesté sont brésiliens de coeur et
patriotes dans l’âme.”94 Já na área em torno do Rio Calçoene, havia uma
população flutuante e adventícia, composta não só de brasileiros, como
também de estrangeiros de diferentes nacionalidades.95

Em relação ao episódio da pretensa república de Cunani, Rio Branco


opunha-se ao relato do geógrafo, afiançando que tal proclamação nunca
chegou a ser conhecida em Cunani e no território contestado. Os diferen-
tes núcleos de população (Amapá, Cunani, Cassiporé, Uaça, Arucauá)
sempre tiveram os seus chefes ou governos particulares.

As observações de Élisée Reclus sobre a região reclamada pela Fran-


ça, e posteriormente retificadas pelo Barão do Rio Branco, indicam um
sólido conhecimento do geógrafo sobre a história do litígio. Cabe relem-
93 – Idem, p. 472.
94 – Idem, p. 477.
95 – Idem, p. 479.

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A rede de sociabilidades do Barão do Rio Branco
e a defesa da soberania territorial brasileira

brar que Reclus fora patrocinado pela Editora Hachette, se por um lado,
os seus comentários mantiveram-se sufocados em sua visita pelo país, por
outro lado, a Nouvelle Géographie revela a defesa dos interesses políti-
cos do Governo francês sobre aquela parte do território brasileiro. Aliás,
descrever, mapear e levantar informações sobre o globo, em especial, so-
bre os territórios colonizados estavam presentes na Nouvelle Géographie
Universelle. Reconhece-se que a maior parte de sua vida, Élisée Reclus
viveu exilado, devido ao engajamento político e ao envolvimento na Pri-
meira Internacional e na Comuna de Paris. De todo modo, segundo as
pesquisas realizadas pelos estudiosos Michael Heffernan, Axel Baudouin
e Béatrice Giblin vale a pena aqui relativizar o seu pensamento libertário
em relação às possessões francesas, como no caso da Algéria, bem como
em relação ao território litigioso com a Guiana Francesa, pois evidenciam
a defesa da soberania e dos interesses franceses.96

Aliás, a defesa francesa no território litigioso com a Guiana Fran-


cesa coube ao geógrafo Paul Vidal de la Blache, que redigiu a Mémoire
contenant l’Exposé des droits de la France dans la Questions de Fron-
tieres de la Guyane Française e du Bresil. Parte dessa memória foi pu-
blicada, em 1902, sob o título La Riviere Vicent Pinzón: Étude sur la
cartographie de la Guyane. A obra possui 149 páginas, dividida em 16
capítulos, além da introdução e da conclusão. Reconhecido pelo seu papel
na renovação da geografia francesa em fins dos Oitocentos, La Blache
examinou a cartografia produzida sobre o Rio Vicente Pinzón desde os
tempos coloniais, bem como as interpretações antigas e contemporâneas
do Tratado de Utrecht de 1713. Ao apresentar a obra, advertia que não
visava rememorar ou promover novas discussões, o seu interesse era pu-
ramente científico.

96 – Cf. Heffernan, Michael, “The forms of french imperialism”. In: GODLEWS-


KA, Anne & SMITH, Neil, Geography and Empire. UK, USA: Cambridge, Blackwell
Publishers, 1994; Giblin, Béatrice, “Élisée Reclus: un géographie d’exeception”, In:
Hérodote. Revue de géographie et de géopolitique, Lyon, n. 117; Baudouin, Axel.
“Reclus, a colonialist?”, Cybergeo: European Journal of Geography, n. 239, 26 de maio
de 2003. Disponível em http://cybergeo.revues.org/4004 Acesso em 14 de fevereiro de
2014.

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Luciene Carris

No seu entendimento, as relações entre a Guiana Francesa e a Europa


constituem um capítulo especial da história do Novo Mundo, que remon-
tava a vinda de um dos companheiros de Cristóvão Colombo, Vicente
Pinzón. A defesa concentrava-se na argumentação de que o Rio Vicente
Pinzón era o Rio Araguari, além de interpelar o monopólio da navega-
ção do Rio Amazonas. Para ele, a controvérsia fronteiriça entre a Guiana
Francesa e o Brasil poderia ter sido evitada por um exame cartográfico
minucioso. Se, por um lado, as cartas antigas possuíam imperfeições em
seus detalhes, apresentavam, por outro lado, as relações das distâncias e
das posições. O estudo das cartas demonstrava que a exploração da Ama-
zônia e da Guiana ocorreu lentamente por diversos povos. Um outro em-
pecilho, anotado pelo sábio francês, correspondia à instabilidade física
da parte noroeste até a embocadura do Amazonas – os deslocamentos dos
canais fluviais, bem como a formação de lagos interiores e de pântanos
comuns em regiões de clima tropical. 97

Localizamos também um pequeno artigo de três páginas, intitulado


de “Le contesté franco-brésilien”, elaborado pelo sábio francês publicado
no periódico Annales de Géographie em 1901. Apesar da perda territo-
rial, La Blache ressalvou a importante contribuição científica com a pu-
blicação de diversos mapas sobre o Baixo Amazonas e a Guiana France-
sa, proporcionando novas informações sobre aquele território.

Seja como for, a pretensão francesa por um desenho territorial da


Guiana Francesa que chegava até a desembocadura do Amazonas revela
uma tentativa de aproximação e de busca pela hegemonia cultural e eco-
nômica na América Latina. Apesar do insucesso ocorrido no Brasil, vale
acrescentar a emigração de colonos franceses para as terras do Uruguai e
da província Corrientes na Argentina, por exemplo, além de novas tenta-
tivas em outras regiões da América.98 Percebe-se, assim, que
[...] no final do século XIX, o planeta está não apenas conhecido, ma-

97  – LA BLACHE, Paul Vidal de, La Riviere Vincent Pinzón: Études sur la cartographie
de la Guyane. Paris: Feliz Alcan Éditeur, 1902. Disponível em http://www.archive.org/
stream/larivirevincent00blacgoog#page/n10/mode/2up Acesso em 25 de abril de 2013.
98  –  OTERO, Hérnan. “A imigração francesa na Argentina: uma história aberta”. In:

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A rede de sociabilidades do Barão do Rio Branco
e a defesa da soberania territorial brasileira

peado, descrito. Ele estará também partilhado em forma de colônias e


de áreas de influência pelas potências que promoveram esse extenso
inventário do mundo.99

Considerações finais
A partir do exame da correspondência, verificamos a contribuição
de tais estudiosos no desenrolar do litígio com a Argentina e a defesa
dos interesses franceses na região disputada entre o Brasil e a Guiana
Francesa. Em contrapartida, podemos acrescentar ainda o papel de Rio
Branco no desenvolvimento das investigações científicas de tais geógra-
fos franceses. O exame dessas relações permite compreender os espaços
de sociabilidades do final do século XIX, bem como as articulações cria-
das com autores estrangeiros, identificando aqueles que contribuíram nas
elaborações teóricas, assim como para a fundamentação das pesquisas de
Rio Branco.

Em relação ao litígio com a Argentina em 1895, observamos que


tal acontecimento marcou a história diplomática nacional, bem como a
trajetória de José Maria da Silva Paranhos Júnior, o Barão do Rio Branco,
“significou o passo definitivo da obscuridade à notoriedade”.100 A reper-
cussão do parecer norte-americano, amplamente divulgado nos periódi-
cos nacionais nos meses seguintes, contribuiu para promover o patriotis-
mo da recém-instaurada república, que atravessava sucessivas crises.101 A
vitória brasileira foi tema do carnaval daquele ano. Na Rua do Ouvidor,
no Centro do Rio de Janeiro, os integrantes do Clube dos Fenianos des-

FAUSTO, Boris. Fazer a América: a imigração em massa para a América Latina. São
Paulo: Edusp, 2000, pp. 127-152. Segundo Hérnan Otero, os franceses desempenharam
uma importante papel na colonização agrícola nas províncias de Entre Ríos, Santa Fe,
Corrientes, Córdoba, Chaco e Buenos Aires.
99  – COSTA, Wilma P., “Viagens e peregrinações: a trajetória de intelectuais de dois
mundos”. In: BASTOS, E.R; RIDENTI, M. & ROLLAND, D. (Orgs.). Intelectuais: so-
ciedade e política. São Paulo: Cortez, 2003, p. 65.
100 – GOES FILHO, Synesio Sampaio. Navegantes, bandeirantes, diplomatas: um en-
saio sobre a formação das fronteiras no Brasil. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
101  – No Arquivo Histórico do Itamaraty, encontra-se um volume especial organizado
pelo Barão do Rio Branco com inúmeras notícias relacionadas à vitória brasileira, extraí-
das de periódicos nacionais e estrangeiros.

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filavam ao som de uma marchinha especialmente dedicada ao Barão do


Rio Branco.102 A convite do presidente da Sociedade de Geografia do Rio
de Janeiro, José Lustosa da Cunha Paranaguá, o Marquês de Paranaguá, o
Barão foi nomeado sócio-correspondente em 1894. No Instituto Históri-
co e Geográfico Brasileiro, Juca Paranhos foi elevado a sócio-honorário;
anos depois, em 1908, ele tornar-se-ia o presidente da Casa da Memória
Nacional.103 Indicado pelo geógrafo francês Élisée Reclus e pelo explo-
rador inglês Sir Clements Robert Markham, o Barão ingressaria nos qua-
dros sociais da prestigiosa Sociedade Real de Geografia de Londres como
membro correspondente em 1895.104

As memórias dos ministros plenipotenciários do Brasil e da Argen-


tina foram entregues em 10 de fevereiro de 1893. Decorrido um ano,
na Casa Branca, em 06 de fevereiro de 1895, o presidente dos Estados
Unidos na América, Grover Cleveland, anunciava finalmente sua deci-
são arbitral sobre o território litigioso, reconhecendo o direito do Brasil
à fronteira reivindicada. Constatou-se que os comissários portugueses
e espanhóis, nomeados pelo Tratado de Limites 1750, seguiram as ins-
truções dos respectivos governos. Demarcaram, em 1759 e 1760, o Rio
Peperi-Guaçu e exploraram sua contravertente, afluente do Rio Iguaçu, o
qual chamaram de Santo Antônio. Além disso, comprovou-se também o
equívoco de nomear área litigiosa de Missões, posto que o território não
pertencera à antiga província jesuíta espanhola; só fora ocupado pelos
argentinos depois da Guerra do Paraguai.

Observa-se nas correspondências enviadas às legações em Madrid e


em Portugal, a busca por documentos e pelo autêntico “Mapa das Cortes”,
que serviu de base para o Tratado de Madrid de 1750, organizado em Lis-
boa sob a direção de Alexandre de Gusmão, o negociador do Tratado com
a Espanha. Em 1749, foram elaborados dois mapas idênticos para servi-
rem de base para o Tratado de Madri de 1750 – um ficou com a Espanha,
e o outro, com Portugal. A partir destes dois mapas, foram reproduzidos

102  –  AIH, “Gazetilha”, Jornal do Commercio, 21 de fevereiro de 1895, livro 346.2.20.


103  –  AIH, “Gazetilha”, Jornal do Commercio, 06 de maio de 1895, livro 346.2.20.
104 –  AIH, Gazeta de Notícias, 07 de junho de 1898, livro 346.2.20.

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A rede de sociabilidades do Barão do Rio Branco
e a defesa da soberania territorial brasileira

novos. Em 1751, três cópias realizadas em Lisboa foram encaminhadas


a Madrid, as quais mantinham os limites no Rio Negro e notificavam
as alterações decorrentes das negociações do Tratado em relação àquele
limite. Logo em seguida, três novas cópias elaboradas em Madrid foram
enviadas a Lisboa, com ligeiras modificações. 105 O “Mapa das Cortes” ou
Mapa dos Confins do Brazil com as terras da Coroa de Espanha na Amé-
rica Meridional seria encontrado em Paris, no Ministério dos Negócios
Estrangeiros da França. Além do mapa original de 1749, descoberto no
Arquivo Geral de Simancas, localizou-se a Instrução Particular de 1758,
em castelhano, dada aos comissários demarcadores em 1759 e 1760, uma
cópia na língua portuguesa depositada na Biblioteca Nacional de Lisboa
foi encontrada. 106

O desfecho favorável ao Brasil no conflito com a Argentina impul-


sionou o governo brasileiro a buscar uma solução para outra controvérsia
territorial, desta vez, a fixação dos limites com a Guiana Francesa em
1895, confiando a contenda novamente ao Barão do Rio Branco. O Barão
sustentava seus argumentos baseando-se na defesa da fronteira histórica,
geográfica, política e jurídica pelo talvegue do Rio Oiapoque ou Vicente
Pinzón, que desaguava no Oceano Atlântico, a oeste do Cabo de Orange,
pela Serra do Tucumumaque. Uma superfície banhada pelo oceano e que
compreendia dois rios litigiosos, além de uma faixa territorial interior, o
que implicava a fixação de um limite marítimo e de um limite interior,
duas linhas de fronteira. Constata-se que a controvérsia territorial com a
Guiana Francesa consistia essencialmente na interpretação dos artigos de
um tratado firmado em tempos coloniais. Por outro lado, não podemos
ignorar as pretensões do expansionismo colonial francês na América do

105  –  CINTRA, Jorge Pimentel, “O Mapa das Cortes: perspectivas cartográficas”. Anais
do Museu paulista, São Paulo, 2009, vol.17, n.2, pp. 63-77. Ver, também, Obras do Barão
do Rio Branco 1: questões de limites República Argentina. Brasília: Fundação Alexandre
de Gusmão, 2012, p. 86.
106 –  AIH, Missão Rio Branco em Washington 1893-1895. Relatório que o general
Dionísio Cerqueira dirigiu em 08 de março de 1895 a Rio Branco então encarregado da
missão especial do Brasil, tomo VI, 1ª. Parte, lata 346.3.12.

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Sul, especialmente após a descoberta de metais preciosos na região liti-


giosa.107

Na elaboração de sua memória, ele investigou uma extensa pesquisa


documental. Neste rol, encontramos referências aos trabalhos realizados
em meados dos Oitocentos por José da Costa Azevedo, o Barão de La-
dário, além de citações às obras de Emile Levasseur, Henri Coudreau,
Élisée Reclus, Capistrano de Abreu, velhos conhecidos seus, entre outros.
Segundo Rubens Ricupero, os sucessos nas arbitragens com a Argentina
e a França significaram a legitimação do regime republicano, que des-
de o seu advento, em 1889, atravessou sucessivas turbulências políticas,
econômicas e sociais, tais como a Revolução Federalista, a Revolta da
Armada, a Revolta Canudos e a política do encilhamento, por exemplo.108
Além disso, a vitória brasileira contribuiu para transformar o Barão do
Rio Branco em herói nacional, assegurando a sua nomeação como minis-
tro das relações exteriores em 1902.

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108  –  RICUPERO, Rubens. Rio Branco: o Brasil no mundo. Rio de Janeiro: Contra-
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World’s Columbian Exposition, Memorial volume. Dedicatory and opening
cerimonies of the World’s Columbian Exposition. Historical and descriptive
as authorized by Board of Control, 1893. Disponível em http://archive.org/
stream/dedicatoryopenin00worl#page/n5/mode/2up Acesso em 02 de abril de
2013.

Texto apresentado em fevereiro/2017. Aprovado para publicação em


abril/2017.

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O desenvolvimento da ciência e tecnologia de defesa
e a política externa brasileira

91

O Desenvolvimento da Ciência e Tecnologia de


Defesa e a Política Externa Brasileira1
The Development of Defense Science and
Technology and the Brazilian Foreign Policy
Luiz Rogério Franco Goldoni2
Resumo: Abstract:
Tão perigoso quanto depender das “armas dos As dangerous as to depend on the “weapons of
outros” para garantir sua própria defesa é de- others” to guarantee their own defense is to de-
pender “de outrem” para produzi-las. Analiso pend on “others” to produce them. We analyze
iniciativas empreendidas na primeira metade here initiatives carried out in the first half of the
do século XX para dotar o Brasil de autono- 20th century to provide Brazil with autonomy in
mia na área de defesa. Aponto que debilidades the area of defense. We point out that economic
econômicas e tecnocientíficas impossibilita- and techno-scientific frailties in the country
vam um desenvolvimento autóctone, abrindo made autochthonous development impossible,
espaços para a cobiça externa. Investigo como which, in turn, created room for foreign greed.
a resolução dessas carências condicionaram e We examine how overcoming these frailties
impactaram a política externa brasileira do pe- conditioned and impacted the Brazilian foreign
ríodo abordado. Destaco o papel desempenhado policy of the period covered. We emphasize the
pela Missão Militar Francesa, pela Escola Téc- role played by the French Military Mission, the
nica do Exército e pela USP. Oficiais de visão Army Technical School and USP. Officials with
como Góes Monteiro, Eurico Dutra e Álvaro a wide vision such as Góes Monteiro, Eurico
Alberto percebiam a defesa nacional atrelada à Dutra and Álvaro Alberto perceived the nation-
resolução das supracitadas carências nacionais. al defense as linked to the remedy of the afore-
Pensando na defesa da nação, o Almirante teria mentioned national frailties. With the defense
papel de destaque na criação do CNPq. of the nation in mind, Admiral Álvaro Alberto
would have a prominent role in the creation of
the National Council for Scientific and Techno-
logical Development (CNPq)..
Palavras-chave: Ciência; Tecnologia; Defesa; Keywords: science; technology; defense;
Missão Militar Francesa; USP; CNPq. French Military Mission; USP; CNPq.

Introdução
Quase cem anos após a disputa pela missão de ensino que moder-
nizaria o Exército brasileiro, analisada por especialistas como Frank
McCann (2007), Stanley Hilton (1977), Manuel Domingos Neto (1980;
2001; 2007) e Cristina de Andrada Luna (2011), o reaparelhamento das
Forças Armadas brasileiras, proposto pela Estratégia Nacional de Defesa,
é alvo de cobiça das potências produtoras de material bélico. Ao longo
1  – Parte do presente trabalho é fruto da tese de doutorado do autor (GOLDONI, 2011).
2  –  Doutor em Ciência Política pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Professor
do Programa de Pós-Graduação em Ciências Militares (PPGCM) da Escola de Comando
e Estado-Maior do Exército (Eceme). E-mail: lgoldoni@hotmail.com

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Luiz Rogério Franco Goldoni

do século XX e início do XXI, demandas militares influenciaram e foram


condicionadas pelas relações exteriores brasileiras.

Analiso as relações entre o desenvolvimento tecnocientífico brasi-


leiro e a defesa da nação na primeira metade do século XX. Maquiavel
(2010) destacou os riscos de depender das “armas de outrem” para a de-
fesa do território. Como produzir, contudo, armamentos em um ambiente
carente de indústrias e de centros de pesquisa? Tais debilidades seriam,
de certa forma, solucionadas mediante ajuda e acordos internacionais.
Investigo como essas tratativas impactaram na política externa brasileira
no período abordado.

A missão que modernizou o Exército Brasileiro


Domingos Neto (1980; 2001) demonstra que por detrás da compe-
tição entre Alemanha e França, no início do século XX, para o envio
de uma missão de ensino para o Exército brasileiro, estavam interesses
econômicos e políticos das duas potências. A contratação da missão de
ensino e a consequente adoção do modelo de guerra alemão ou francês
abriria o mercado brasileiro para a indústria bélica de um ou outro país.
O fornecimento de insumos, armas e materiais bélicos para o Exército era
objeto de árdua disputa entre as indústrias da França, onde se destacava
a empresa Schneider, e da Alemanha, com as afamadas usinas Krupp,
que haviam feito grandes progressos no domínio da siderurgia. Oficiais e
políticos dos dois países europeus acreditavam que a venda de petrechos
militares serviria como “cabeça de ponte” para a entrada de outras merca-
dorias e para a instalação de plantas industriais no Brasil.
Em 1908, o ministro francês dos Negócios Estrangeiros, fazendo uma
sondagem junto ao ministro da Guerra sobre as possibilidades de ad-
mitir no corpo de tropa francês estagiários brasileiros, sublinhava:3
“Com efeito, não preciso vos assinalar todas as vantagens que a Ale-
manha retira, para a manutenção do seu prestígio militar no Brasil,
3  –  Em 1906, o Ministério da Guerra enviou seis oficiais de baixa patente para realizar
estágio de dois anos no Exército alemão. Esses oficiais, que passariam a ser conhecidos
como “jovens turcos”, dariam os primeiros passos rumo a uma revolução no ensino e na
organização do Exército brasileiro.

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O desenvolvimento da ciência e tecnologia de defesa
e a política externa brasileira

da presença desses oficiais (os estagiários brasileiros) em seus regi-


mentos. Quando eles voltam à pátria, retornam totalmente imbuídos
de uma admiração exclusiva pelos chefes do Exército imperial, pelos
seus métodos estratégicos, pelo material militar empregado na Ale-
manha e também totalmente penetrados pela cultura germânica, da
qual se farão daí em diante, e às vezes, mesmo inconscientemente,
propagandistas entre seus compatriotas. Por outro lado, relações de
amizade se estabelecem entre os estudantes e os antigos instrutores,
relações que estes últimos sabem usar maravilhosamente em favor da
indústria alemã” (DOMINGOS NETO, 1980, pp. 51-52).

Apesar da pressão de A Defesa Nacional, revista fundada em 1913


pelos “jovens turcos”, a missão alemã nunca sairia do papel. As negocia-
ções foram atrapalhadas pela influência francesa sobre a elite brasileira e
pela hábil diplomacia daquele país.4 Restrições orçamentárias e a Primei-
ra Guerra Mundial adiaram as negociações em torno da missão militar.
A Missão Militar Francesa (MMF) seria contratada apenas em 1919.

Durante a década de 1920, o general Maurice Gamelin, princi-


pal chefe da MMF, defenderia agressivamente os interesses franceses
no Brasil (DOMINGOS NETO, 2007). Gamelin, muitas vezes, agia
como um empenhado agente comercial francês, interessado em vender
e divulgar as “maravilhas industriais” de seu país.5 Além de interceder
diretamente na compra de aviões e peças de artilharia, o general francês
influenciou na aquisição de cozinhas de campanha, aparelhos telegrá-
4 – Como aponta Manuel Domingos Neto (1980, p. 59), os franceses se valeriam de
variados artifícios para vencer a disputa pelo envio da missão de ensino ao Brasil: “Os
agentes franceses conseguiram organizar uma rede de amigos influentes. Parlamentares,
ministros, donos de jornal eram acionados pelos franceses na defesa da ideia da contrata-
ção de uma Missão Militar.” O governo de São Paulo – interessado em renovar o contrato
da missão militar francesa que estava transformando a Força Pública do Estado em um
pequeno exército, capaz de resistir a qualquer intervenção federal – pressionava o presi-
dente Hermes da Fonseca, até então favorável à contratação da missão de ensino alemã, a
não assinar contrato com o Exército imperial.
5 – “Naquela época, as vendas que mais interessavam os franceses eram de aviões e
de material de artilharia. Nesses domínios, a concorrência era bem mais acirrada e
Gamelin mostraria seu especial talento como estrategista de negócios comerciais: já em
suas primeiras proposições para a reforma do ensino e para a remodelação do Exército, o
comandante da MMF prescrevia em detalhes grandes aquisições” (DOMINGOS NETO,
2007, p. 234).

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Luiz Rogério Franco Goldoni

ficos, viaturas a tração animal e tecidos para uniformes (DOMINGOS


NETO, 2007). Gamelin pretendia tornar o Brasil dependente das instru-
ções e das fábricas francesas, não admitindo que o Ministério da Guer-
ra ou o Exército brasileiro comprassem equipamentos dos concorrentes
franceses ou contratassem qualquer profissional estrangeiro para serviços
técnicos, como o de cartografia (GOLDONI, 2011; 2013a). Suas pressões
acabaram por interferir na política externa e interna brasileira e forçaram,
inclusive, o pedido de demissão, em 1921, do chefe do Estado-Maior do
Exército, o general Bento Ribeiro (DOMINGOS NETO, 2007).6

Sem dúvida, a MMF foi responsável por profundas mudanças no


Exército brasileiro, entre elas a qualificação profissional dos oficiais. Na
década de 1930, oficiais militares mais esclarecidos – muitos deles alu-
nos destacados da Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais (EsAO), sob
direção da Missão Militar Francesa –, alguns políticos, economistas e
industriais passaram a associar cada vez mais a defesa nacional com o
desenvolvimento econômico e industrial (GOLDONI, 2012). Góes Mon-
teiro, ministro da Guerra entre 1934 e 1935 e chefe do Estado-Maior do
Exército de 1937 a 1943, entendia que a “política do exército” desenvol-
veria o país.
A política do exército é a preparação para a guerra, e esta preparação
interessa e envolve todas as manifestações e atividades da vida nacio-
nal, no campo material – no que se refere à economia, à produção e
aos recursos de toda natureza – e no campo moral, sobretudo no que
concerne à educação do povo e à formação de uma mentalidade que
sobreponha a todos os interesses da Pátria, suprimindo, quanto pos-
sível, o individualismo ou qualquer outra espécie de particularismos
(MONTEIRO, s/d, p. 130. In: SUANO, 2002, p. 144. Grifo meu).
Considerando-se que o Exército não é senão o reflexo do desenvolvi-
mento harmônico de todas as forças vivas da nação, das quais depen-
de diretamente a sua eficiência, o Governo, que procurar dotá-lo de

6  – Até o pedido de demissão, o general Bento Manuel Ribeiro Carneiro Monteiro foi
o oficial que ocupou por mais tempo a chefia do Estado-Maior do Exército, por seis anos
e dois meses (19 fev. 1915 a 20 abr. 1921) (ESTADO-MAIOR DO EXÉRCITO, 1984).

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O desenvolvimento da ciência e tecnologia de defesa
e a política externa brasileira

todo o necessário, concorrerá, ipso facto, para estimular a prosperida-


de de todas as demais atividades nacionais.7

Para Góes, a “política do exército” seria a de repassar à sociedade os


elementos desenvolvimentistas que estariam concentrados nos quartéis
(GOLDONI, 2012). A resolução de estrangulamentos do sistema produ-
tivo e da rede de infraestrutura era percebida por militares e industriais
como de fundamental importância para a defesa e a segurança do país.
Gerson Moura (1980; 1991), Stanley Hilton (1975; 1977) e outros mos-
tram como a siderurgia era apontada como peça-chave para o equaciona-
mento do binômio segurança-desenvolvimento. Por outro lado, a criação
de novas indústrias e o consequente “progresso” e modernização do país
esbarravam na desqualificação da mão de obra nacional.

Eurico Dutra, ministro da Guerra de 1936 a 1945, tinha uma lúci-


da percepção sobre a relação entre os problemas da defesa nacional e
os do sistema de ensino e de pesquisa científica. O general considera-
va a atividade econômica tecnicamente superior um fator primordial para
a preparação e a condução da guerra (MG. RMG, 1942, p. 4, 5). Para
Dutra, tão importante quanto formar o soldado era formar o cientista e o
engenheiro que desenvolveriam a arma que seria empunhada pelo com-
batente. A capacidade militar de uma sociedade nacional resultaria de seu
parque industrial somado às matérias-primas existentes no território, à
qualidade e à quantidade da mão de obra especializada e às características
da organização militar:
Se nos exércitos o valor do material depende do valor dos homens que
os utilizam, nas indústrias de guerra as características, a qualidade e
a quantidade dos engenhos, máquinas de guerra, armas e munições é
função primordial do valor e eficiência da mão de obra.
Formar então esta mão de obra é dever imperioso e urgente (MG.
RMG, 1942, p. 77).

7  – MINISTÉRIO DA GUERRA. Relatório do Ministério da Guerra,1935, p. 40. Grifo


meu. Doravante, esses documentos serão referenciados no corpo do texto da seguinte
forma: (MG. RMG, ano, página).

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Luiz Rogério Franco Goldoni

Dutra compartilhava da ideia difundida entre grandes estrategistas


de que os exércitos modernos eram exércitos de material (GOLDONI,
2012). Os homens que utilizariam esses materiais deveriam ser peritos
no seu manejo e emprego. A força produtiva da nação deveria estar bem
capacitada e qualificada, pronta para responder a qualquer necessida-
de da guerra. O relatório ministerial de 1942 alertava para a necessidade
“imperiosa e urgente” de qualificar a mão de obra nacional. A Corporação
se esforçava para formar engenheiros metalúrgicos e químicos para as
fábricas militares tendo em vista que, tão perigoso como depender das
“armas dos outros” para garantir sua própria defesa, seria depender “dos
outros” para produzi-las.

A formação de engenheiros pelo Exército


A formação de técnicos e engenheiros atenderia a demandas da de-
fesa e da indústria. Contudo, como instruir e capacitar esses profissionais
em um país sem universidades? O Exército começou a formar pioneira-
mente engenheiros no Brasil em 1792, com a criação da Real Academia
de Artilharia, Fortificação e Desenho, primeira escola de Engenharia das
Américas e a terceira do mundo (AMARANTE, 1999). A Real Academia
mudaria várias vezes de nome e de propósito no século XIX8 até que,
em 1874, deu origem à Escola Politécnica, localizada no Largo de São
Francisco, então a única escola de Engenharia do país. Para Simon Sch-
wartzman (2001, cap. 3, p. 21).
O modo como a antiga Escola Militar do Rio de Janeiro mudou de
nome e de objetivos no século dezenove é uma boa indicação de como
ela se via. Com exceção da fronteira meridional, a profissão militar
nunca gozou de grande prestígio no Brasil, e a dimensão civil da Es-
cola foi sempre predominante. Em 1858, a Escola Militar passou a
se chamar Escola Central e em 1874 adotou finalmente a denomina-
ção francesa de Escola Politécnica. A predominância da engenharia
civil não significava que a Escola tivesse competência especial no
desenvolvimento da qualificação em mecânica ou na construção, ou

8 – Academia Real Militar, em 1810; Imperial Academia Militar, em 1822; Acade-


mia Militar da Corte em 1832; Escola Militar, em 1840; e, Escola Central, em 1858
(SCHWARTZMAN, 2001).

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O desenvolvimento da ciência e tecnologia de defesa
e a política externa brasileira

ainda no estímulo à competência nas ciências físicas e naturais. Os


visitantes eram unânimes na sua crítica ao modo como o ensino era
conduzido – com livros de texto desatualizados, sem aulas práticas ou
experimentais, e sem um esforço de pesquisa próprio: situação que, no
entanto, talvez fosse compatível com a limitada demanda tecnológica
da sociedade brasileira daquela época.

Já em pleno período de modernização acelerada do país, em 1937, a


Escola Politécnica daria lugar à Escola Nacional de Engenharia, que pos-
teriormente seria absorvida pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.
A formação de engenheiros militares havia sido transferida para a Escola
Militar da Praia Vermelha (1874-1904) e em seguida para a Escola de
Artilharia e Engenharia do Realengo (1905-1912) (AMARANTE, 1999).
Até 1918, os alunos que concluíam o curso da Escola de Artilharia e En-
genharia recebiam o título de Engenheiro Militar.

As reformas no ensino militar, em particular as iniciativas tomadas


após a proclamação da República, não beneficiaram a capacitação tec-
nológica, mas o saber humanista dos oficiais, conforme o ideário positi-
vista. Somente com a vinda da Missão Militar Francesa, a formação dos
engenheiros militares se livraria do “bacharelismo” que caracterizou sua
trajetória nas primeiras décadas do regime republicano.

A MMF inspirou a criação, em 1928, da Escola de Engenharia Mi-


litar, destinada a formar engenheiros-artilheiros, engenheiros eletrotéc-
nicos, engenheiros químicos e engenheiros de construção. A nova Es-
cola iniciou suas atividades em 1930, oferecendo cursos de Construção,
Eletricidade, Técnico de Artilharia e Química. Em dezembro de 1933, a
Escola de Engenharia Militar passou a se denominar Escola Técnica do
Exército (EsTE). No ano seguinte, a Escola receberia matrículas de 12
alunos, para os cursos de Construção e de Armamento, e de três alunos
para os cursos de Química e de Eletricidade (MG. RMG, 1935; AMA-
RANTE, 1999). De acordo com as Normas de Funcionamento da Escola,
as aulas teóricas deveriam ser ministradas na Escola Politécnica do Largo
de São Francisco e as práticas, nas fábricas militares, nos arsenais e nas

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Luiz Rogério Franco Goldoni

fortificações. Com esta iniciativa, o Exército deu um passo decisivo na


busca pela modernização.

Segundo Gustavo Guerreiro Moreira e Manuel Domingos Neto, com


a paulatina perda de influência da França, retratada na contratação de uma
Missão Militar Norte-Americana (MMNA) em 1934, a EsTE passaria a
adotar
o mesmo programa e o mesmo material didático do Massachusetts
Institute of Technology (MIT), uma das instituições universitárias
mais conceituadas dos EUA, que priorizava os estudos e pesquisas
nas chamadas “ciências duras”, o desenvolvimento de tecnologias e
as ciências sociais aplicadas. Desde seu surgimento, o MIT pretendera
ser “uma escola de ciência industrial, dando suporte ao avanço, desen-
volvimento e aplicação prática da ciência em conexão com as artes,
agricultura, manufatura e comércio”. O papel da ciência e da tecnolo-
gia, na concepção do instituto estadunidense, seria oferecer respostas
práticas às grandes necessidades apresentadas pelo desenvolvimen-
to capitalista como as carências logísticas, o abastecimento de ener-
gia e o desenvolvimento de materiais para a indústria (DOMINGOS
NETO; GUERREIRO MOREIRA, 2010, p. 101).

Seguindo as diretrizes do instituto de pesquisa estadunidense, a


EsTE voltou suas atividades para a resolução dos problemas que afligiam
as indústrias militares brasileiras. Os esforços das fábricas militares pelo
fim da dependência diante da indústria estrangeira estavam condiciona-
dos, entre outros fatores, pela formação de técnicos capazes de atender às
novas demandas impostas pelo desenvolvimento crescente da indústria
militar dos países centrais. Em 1936, o ministro da Guerra, João Gomes
Ribeiro Filho, declararia orgulhosamente: “[a] Escola Técnica do Exérci-
to trabalha com eficiência e rapidez, para nos proporcionar os técnicos de
que necessitamos” (MG. RMG, 1936, p. 17).

O general João Gomes prestava conta de iniciativas precedentes: em


1935, a EsTE contratou 16 professores, sendo 12 civis e dois oficiais da
Marinha (MG. RMG, 1935). Apesar da influência da MMNA, três pro-
fessores austríacos foram contratados. Esses professores se juntariam aos
14 professores da antiga Escola Politécnica que haviam sido previamente

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O desenvolvimento da ciência e tecnologia de defesa
e a política externa brasileira

contratados pela nova Escola Técnica do Exército. Com a duplicação do


seu quadro docente, a EsTE pôde oferecer um maior número de vagas e
novas cadeiras, como balística, organização do material e fabricação de
explosivos e munições. Naquele ano, 85 alunos frequentaram a escola:
14 no Curso de Construção, 43 no de Artilharia, 10 no de Eletricidade e
18 no de Química. Em 1935, a Escola formou 25 oficiais, que logo foram
designados para os estabelecimentos fabris de acordo com suas especia-
lidades (MG. RMG, 1935).

O início da produção de pólvoras de base dupla pela Fábrica de Pi-


quete talvez seja um dos exemplos mais ilustrativos da relação entre a for-
mação de quadros qualificados e a produção industrial bélica. Em 1910,
o estabelecimento fabril militar, localizado no interior do Estado de São
Paulo, já possuía o equipamento necessário para a manufatura das então
modernas “pólvoras de base dupla”. Todavia, a fabricação dessas pólvo-
ras complexas – constituídas por duas bases químicas, a nitrocelulose e a
nitroglicerina – demandava conhecimentos técnicos indisponíveis no país
naquela década. A manufatura daquelas pólvoras seria iniciada somente
em 1935, quando a Escola Técnica do Exército passou a fornecer para
Piquete químicos capazes de conduzir o processo produtivo (GOLDONI,
2013b). Piquete seria a única fabricante de pólvoras químicas do país e
por isso considerada pelo ministro da Guerra como “uma das pedras an-
gulares de nossa defesa militar” (MG. RMG, 1936, p. 96).

Os engenheiros formados pela EsTE atuariam também com destaque


em processos de inovação desenvolvidos pela Fábrica de Canos e Sabres
de Itajubá. Durante os anos de 1936 e 1937, oficiais engenheiros de Ita-
jubá realizaram experiências pioneiras com a utilização de aço nacional
– produzido pela Usina de Sabará (Belgo Mineira) – na manufatura de
canos para fuzil e mosquetão. Em 1937, testes comprovaram que a vida
útil dos canos fabricados com aço nacional chegaria a até sete mil tiros,
o que não era nada mal, tendo em vista o baixo valor do produto nacio-
nal, se comparado ao importado (GOLDONI, 2013b). Dessa forma, os
engenheiros da EsTE contribuíram para que a Fábrica atingisse um dos

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objetivos da época da sua criação: “[p]roduzir armas fabricadas com aço


brasileiro e mão de obra nacional.”9

Durante oito dias do mês de agosto de 1937, os alunos do 3º ano


dos Cursos de Química e Armamento fizeram um breve estágio nas Fá-
bricas de Piquete e de Itajubá. A iniciativa inaugurava uma nova prática
no ensino de Engenharia Militar; a aproximação dos formandos com as
atividades da indústria bélica seria crescente. Apesar do curto período, o
estágio, que acompanhava os preceitos do MIT, serviu para ilustrar aos
alunos a melhor aplicabilidade de seus conhecimentos. No ano de 1937,
a EsTE formou dois Engenheiros Industriais e de Armamentos e nove
Engenheiros Construtores (MG. RMG, 1937b).

O Curso de Engenheiro Metalurgista foi criado em março de 1938 e


o de Engenheiro de Transmissões em fevereiro de 1939. Dois anos mais
tarde, a EsTE passou a oferecer o Curso de Geodésia e Topografia, que
até então era ministrado na Escola de Geógrafos do Exército, localizada
na Escola Politécnica. Em 1943, a EsTE recebeu a matrícula de 44 alunos
para os cursos de Armamento e Metalurgia, Eletricidade e Transmissões
e Química (MG. RMG, 1944, p. 211). O Brasil finalmente passava a ter
engenheiros militares especializados na produção dos equipamentos de
que o Exército necessitava.

Os engenheiros formados pela EsTE teriam atuação destacada nas


atividades de produção e pesquisa desenvolvidas pela Fábrica de Material
de Transmissões, criada em 1939. Uma análise detalhada das especifica-
ções dos itens fabricados entre 1939 e 1944 evidencia o salto qualitativo
alcançado pela estabelecimento militar, que fabricava equipamentos cada
vez mais avançados e complexos. Comparações envolvendo os telefones
de campanha, os quadros comutadores e as centrais telefônicas fabricados
naqueles anos são provas do progresso tecnológico imposto pelos enge-
nheiros militares naquela fábrica (MG. RMG, 1940, p. 96; MG. RMG,
1944, p. 236).10

9 – MINISTÉRIO DA GUERRA. Boletim do Exército, n. 58, 15 mar. 1937a.


10 – Na década de 1940, os engenheiros da Fábrica de Material de Transmissões rea-

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O desenvolvimento da ciência e tecnologia de defesa
e a política externa brasileira

Entre 1934 e 1944, a Escola Técnica do Exército formou centenas de


engenheiros distribuídos pelas mais diversas especialidades: construção,
armamento, artilharia, química, eletricidade, metalurgia, transmissões e
engenheiros industriais. Apesar de o Brasil já dispor, desde o século XIX,
de instituições de ensino superior em engenharia localizadas em Minas
Gerais, Bahia, Pernambuco, Rio Grande do Sul e Paraná, que formavam
engenheiros de minas, agrônomos, agrimensores e cartógrafos,11 “as es-
pecificidades da engenharia militar eram pouco ou nada contempladas nas
escolas civis” (DOMINGOS NETO; GUERREIRO MOREIRA, 2010, p.
101). Apenas a Universidade de São Paulo (USP), criada em janeiro de
1934, impulsionaria o desenvolvimento de pesquisas que seriam aplica-
das na indústria e no sistema de defesa.

A contribuição paulista
A USP foi idealizada, inicialmente, por um grupo de intelectuais,
jornalistas e políticos conhecido como “Comunhão Paulista”, cujo líder
era o diretor do jornal O Estado de S. Paulo, Júlio de Mesquita Filho. O
líder da FIESP, ex-Deputado Federal e autor de uma das primeiras obras
sobre a história econômica moderna do Brasil, Roberto Simonsen, foi
outra figura importante na criação da USP. Logo, “os defensores da ideia
de criar uma universidade estadual estavam entre os membros mais pode-
rosos da elite agrícola e industrial do estado” (SCHWARTZMAN, 2001,
cap. 5, p. 21).

A elite paulista objetivava não apenas criar um “centro de estudos


e pesquisas”. A USP foi concebida como parte de um projeto de recupe-

lizariam, ainda, profícuos estudos relativos ao corte de cristais de quartzo (GOLDONI,


2013b).
11 – A Escola de Minas de Ouro Preto, criada em 1875, formava na década de 1930
engenheiros civis, de minas e metalúrgicos (CARVALHO, 2002). A Escola de Engenharia
Mackenzie, em São Paulo, e a Escola de Engenharia de Porto Alegre, fundadas em 1896,
eram também importantes centros de formação de engenheiros no país.
Segundo Simon Schwartzman (2001, cap. 4, p. 6), “[e]m 1940 o Brasil contava com dez
escolas de engenharia, onze escolas de medicina, catorze de farmácia e odontologia, cinco
de agronomia e veterinária – além de vinte escolas de direito, tanto públicas como parti-
culares, todas inspecionadas pelo governo”.

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Luiz Rogério Franco Goldoni

ração/projeção de poder por parte da oligarquia política dominante em


São Paulo. Shozo Motoyama (2006, p. 14) observou as intenções da elite
paulista:
[...] a USP, na visão de seus idealizadores, seria a espinha dorsal de
um projeto de longo prazo, que devolveria à unidade da Federação
derrotada em 1932, no plano militar, a posição de liderança nacional,
no plano político. Simultaneamente, também seria o instrumento de
formação de quadros intelectuais, técnicos e profissionais em condi-
ções de liderar a industrialização de uma economia em ascensão.

Apesar de ser considerada uma resposta à derrota de 1932, a USP


tem suas origens mais remotas em 1827, ano de criação da Faculdade de
Direito do Largo de São Francisco, responsável pela formação de influen-
tes quadros intelectuais quando o Estado brasileiro autônomo dava seus
primeiros passos. Apenas em 1893, refletindo a diversificação da produ-
ção econômica baseada na cafeicultura, o governo do estado de São Paulo
criou a Escola Politécnica, cujas atividades iniciaram-se em fevereiro do
ano seguinte. A Escola formaria engenheiros civis, industriais e agrícolas.
Em 1896, foi criada, na capital paulista, a Escola de Engenharia do Ma-
ckenzie College, que enfatizava o lado prático da engenharia, enquanto
a Escola Politécnica buscava associar o ensino teórico com o prático, ou
seja, realizava atividades de pesquisa. Segundo Schwartzman, o principal
foco da Politécnica paulista relacionava-se com a construção de ferrovias,
com a geração de energia elétrica e com o sistema de bondes da cidade.
“O Laboratório de Resistência de Materiais da Escola era usado para tes-
tar equipamentos e materiais, tanto para as ferrovias como para o setor
de energia elétrica” (SCHWARTZMAN, 2001, cap. 4, p. 11). De acordo
com Motoyama (2006), no início do século XX, a Escola Politécnica de
São Paulo também se destacaria nos estudos sobre o “cimento armado”
e sobre assuntos relacionados à química analítica e à química industrial.

A Universidade de São Paulo absorveria a Faculdade de Direito, a


Escola Politécnica e outras instituições de ensino superior criadas pelo
governo paulista: a Escola de Farmácia e Odontologia (criada em 1898),
a Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz”, localizada em Pi-

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O desenvolvimento da ciência e tecnologia de defesa
e a política externa brasileira

racicaba (criada em 1901) e a Faculdade de Medicina (criada em 1912).


As atividades dessas instituições, que possuíam diferentes histórias e tra-
dições, seriam coordenadas e ligadas pela nova Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras (FFCL), o núcleo científico da Universidade de São
Paulo. O primeiro desafio da USP seria o de enfraquecer o espírito cor-
porativo, fazendo com que as escolas superiores anteriormente existen-
tes abrissem mão de sua autonomia em favor da FFCL (MOTOYAMA,
2006).

Embora possuísse um renomado quadro docente, composto quase


que exclusivamente por proeminentes professores estrangeiros, notada-
mente franceses, a FFCL não tinha a mesma projeção das tradicionais
Faculdades de Direito e Medicina e da Escola Politécnica.12 A FFCL seria
frequentada por filhos de imigrantes italianos, espanhóis e japoneses e
por estudantes oriundos de outras regiões do país. Os filhos das elites
econômicas e políticas paulistas iriam frequentar os tradicionais cursos
de engenharia, direito e medicina. Na década de 1930, mais de mil alunos
passaram pelas salas de aula do Largo de São Francisco; a Politécnica
e a Faculdade de Medicina possuíam cerca de quinhentos alunos cada
(MOTOYAMA, 2006). Em seu primeiro ano de atividades, 1935, a FFCL
recebeu a matrícula de quase 200 alunos: 46 em filosofia, 29 em matemá-
tica, 10 em física, 29 em química, 15 em ciências naturais, 16 em geogra-
fia e história, 18 em ciência política e social, 5 em português e literatura
clássica e 9 em línguas estrangeiras (SCHWARTZMAN, 2001).

As atividades de pesquisa “integradas” só seriam realizadas com o


advento da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Em 1942, como con-
sequência da entrada oficial do Brasil na Guerra, o reitor da Universi-
12 – Motoyama sublinha a importância da Fundação Rockefeller na modernização da
Faculdade de Medicina durante a década de 1920: “Um dos melhores resultados dessa
ação [a atuação da Fundação Rockefeller no Brasil, iniciada em 1916] foi a modernização
da Faculdade de Medicina de São Paulo. Esta iniciou seus contatos com a Rockefeller na
gestão de Arnaldo Vieira de Carvalho, tendo recebido auxílios para a implantação das cá-
tedras de higiene e de anatomia patológica. A adoção do regime de tempo integral (RTI),
uma das exigências para a concessão dos auxílios, foi fundamental para que a Faculdade
se tornasse já na década de 1920 uma instituição-modelo tanto na área de pesquisa quanto
na de ensino médico” (MOTOYAMA, 1985, p. 28).

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Luiz Rogério Franco Goldoni

dade de São Paulo, Jorge Americano, criou os Fundos Universitários de


Pesquisa para a Defesa Nacional (FUPS). Os FUPS mobilizariam todos
os serviços tecnocientíficos da USP, com o intuito de atender às neces-
sidades consideradas mais relevantes para o país em guerra, principal-
mente aquelas ligadas à defesa militar. Com o bloqueio do Atlântico e
as contingências da guerra, as Forças Armadas brasileiras sofriam com a
falta de instrumentos e aparelhos eletromagnéticos, como transmissores
e receptores portáteis de rádio para jipes e caminhões. Essas dificuldades
advinham da falta de tradição em pesquisa e desenvolvimento. Nesse as-
pecto, os “filósofos” da FFCL estariam “mais à vontade” (MOTOYAMA,
2006).

As atividades de pesquisa desenvolvidas em São Paulo seriam fi-


nanciadas não apenas pelo governo e pelas instituições militares: a Fiesp,
então capitaneada por Roberto Simonsen, conclamava seus membros a
patrocinar os Fundos.
A população de São Paulo, através de suas figuras mais representati-
vas, tem atendido a esse apelo, contribuindo, com vultosos donativos,
em favor dos “Fundos Universitários de Pesquisa para a Defesa Na-
cional”. [...]
Dispensamos maiores referências às nobres finalidades desse enten-
dimento. Os recursos que as classes produtoras de São Paulo, gene-
rosamente, colocarem à sua disposição, serão aplicados no interesse
da própria produção, pois permitirão a intervenção direta do nosso
aparelhamento técnico e científico na nossa evolução industrial, numa
escala muito mais acentuada que até agora (FIESP, 1943, Circular nº
33/43, 15 de fevereiro de 1943).

Para a diretoria da Fiesp, os FUPS impulsionariam o desenvolvi-


mento industrial de São Paulo, logo os recursos “generosamente doados”
seriam convertidos em futuros ganhos para os industriais. Aparentemente,
havia uma necessidade da própria diretoria da Fiesp se convencer sobre
a importância das atividades de pesquisa e desenvolvimento (P&D) de-
sempenhadas pelo Fundo. Caso realmente houvesse uma convicção sobre
a importância dessas atividades, a expressão “financiamento” ou “incen-
tivo” teria sido utilizada no lugar de “donativo”, que representa algo feito

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O desenvolvimento da ciência e tecnologia de defesa
e a política externa brasileira

por boa vontade, a título de fundo perdido. Contudo, independentemente


da (falta de) convicção da FIESP, os aportes financeiros dos empresários
paulistas foram essenciais para a criação e manutenção dos FUPS.

Durante a Segunda Guerra, mediante processos conhecidos como de


“engenharia reversa”, os cientistas da USP realizaram estudos nas áreas
de telecomunicações, produção de aços especiais e equipamentos bélicos.
Provavelmente, o projeto mais importante daquela época foi o desenvol-
vimento e a produção do primeiro sonar (Sound Navegation Ranging)
nacional.
O sonar funciona fazendo uso do princípio de ultrassom. Porém, não
havia no País nenhum expert no assunto. [...]
Contudo, o Brasil já possuía pesquisadores, sobretudo formados na
USP, capazes de encarar o desafio. A atuação conjunta dos departa-
mentos de Física, de Química, de Mineralogia (todos do FFCL), do
Instituto de Eletrotécnica (também da USP), do IPT [Instituto de Pes-
quisas Tecnológicas, localizado em São Paulo] e de empresas priva-
das, sob a égide dos FUPS, possibilitou a fabricação de 80 sonares
entregues à Marinha. Eles funcionaram perfeitamente, quase acaban-
do com as incursões dos U-boats teutônicos (MOTOYAMA, 2006, p.
31).

Além dos sonares, os Fundos apoiaram o desenvolvimento de pes-


quisas relacionadas ao preparo técnico da aviação, nutrição das tropas,
malarioterapia, produção de quinino, penicilina, substitutos do sangue,
entre outras, inclusive nas áreas da física atômica e nuclear (MOTOYA-
MA, 2006). Sem dúvida, as pesquisas desenvolvidas na USP contribuí-
ram para a defesa nacional e para o maior desenvolvimento industrial de
São Paulo.13

Com a criação dos FUPS, a USP passou a oferecer serviços tecno-


científicos, financiados por empresários paulistas, em prol da defesa na-
cional. Ensino, pesquisa, produção industrial e defesa nacional estariam
interconectados pelo do fundo. Essa lógica se aproximava da “Política

13  –  Devido ao sucesso, os FUPS continuaram atuando após a Segunda Guerra, rebatiza-
do, entrementes, de Fundos Universitários de Pesquisa (MOTOYAMA, 1985).

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Luiz Rogério Franco Goldoni

do Exército” de Góes Monteiro, contudo por meio de uma razão inver-


sa. Para o General, a defesa nacional impulsionaria, obrigatoriamente,
o desenvolvimento técnico-científico-produtivo do país. Nas palavras da
diretoria da Fiesp, o ensino, as pesquisas tecnocientíficas e a produção
industrial garantiriam a defesa nacional.

Todavia, o discurso adotado pela diretoria da Fiesp não correspondia


totalmente à prática de seus filiados. Os “vultosos donativos generosos”
oferecidos pelos empresários paulistas aos FUPS contrastavam com a
baixa receptividade dos mercados aos engenheiros formados pela USP.
Visto por um outro prisma, a pequena oferta de estágios nas indústrias
paulistas para os formandos da Escola Politécnica poderia indicar sua
limitada propensão à realização de pesquisas que poderiam modernizar
as atividades produtivas fabris. Posto que os industriais paulistas argu-
mentavam que a falta de mão de obra qualificada, de técnicos e de espe-
cialistas para desempenhar as atividades mais sensíveis impossibilitava
a exequibilidade da “Lei dos 2/3”,14 era de se esperar uma feroz disputa
entre os industriais para contratar os profissionais recém-formados pela
USP. Mas não era isso o que se observava, em 1942, como se pode cons-
tatar nessas circulares da Fiesp:
Conforme Vv. Ss. devem estar a par, esta entidade, a pedido do Grê-
mio Politécnico, da Escola Politécnica de São Paulo, tem manifestado
o mais vivo empenho a fim de que as empresas industriais de São

14 – O Decreto-Lei nº.19482, de dezembro de 1930, estabelecia que, no mínimo, 2/3


dos funcionários empregados em unidades fabris deveriam ser compostos por traba-
lhadores brasileiros. A admissão de estrangeiros seria justificada apenas em virtude da
necessidade de “serviços rigorosamente técnicos”. A legislação restritiva à entrada de
imigrantes prejudicava o desenvolvimento industrial brasileiro e não foi rigorosamente
cumprida. O governo compreendeu sua inaplicabilidade. As insatisfações deram vez às
iniciativas regulamentadoras, visando atenuar as reclamações empresariais. Em março de
1931, o estrangeiro casado com brasileira que tivesse filho nascido no Brasil e que residis-
se no país há mais de dez anos seria equiparado ao brasileiro nato. Em seguida, outro de-
creto equipararia, por cinco anos, aos “brasileiros natos os estrangeiros que, a serviço de
quaisquer indivíduos, empresas, associações, sindicatos, companhias e firmas comerciais
ou industriais, [tivessem] residência no Brasil há mais de dez anos” (Fiesp, 1931, Circular
nº 184, 03 de setembro de 1931). Para a Fiesp, este decreto criava uma “inovação aber-
rante em matéria de direito público, qual a naturalização temporária de certos indivíduos,
para determinados efeitos” (Texto anexo à Circular da Fiesp nº 756, 27 de junho de 1936).

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O desenvolvimento da ciência e tecnologia de defesa
e a política externa brasileira

Paulo reservem, anualmente, lugares para os engenheiros diplomados


por aquele grande e modelar estabelecimento de ensino.
No ano passado [...], esta entidade fez uma larga campanha junto aos
industriais, com resultados, os mais auspiciosos, pois vários foram os
engenheirandos que passaram a realizar estágio em estabelecimentos
fabris deste Estado, tendo em vista a possibilidade, futuramente, de
serem neles aproveitados em cargos técnicos.
Vimos reiterar, hoje, o apelo que já fizemos no ano passado e tão bem
compreendido pelos industriais paulistas. Irão diplomar-se, este ano,
42 engenheiros civis, 8 mecânicos-eletricistas, 6 químicos e 3 arqui-
tetos.
Seria interessante se os estabelecimentos industriais pudessem infor-
mar se interessa aproveitar, como estagiários, esses elementos, deven-
do, em caso afirmativo, comunicar a esta entidade para os devidos
fins, indicando o ordenado.
Não precisamos encarecer a importância que representa para a in-
dústria a criação de um corpo de especialistas em assuntos técnicos
industriais. Por isso mesmo, estamos certos de que a ideia, como no
ano passado, será recebida com a maior simpatia e interesse por parte
dos srs. industriais (Fiesp, 1942, Circular nº 217/42, 12 de novembro
de 1942).
Em data de 12 de novembro findo [...] solicitamos a Vv. Ss. que nos
comunicassem o interesse porventura existente em obterem a colabo-
ração profissional dos engenheiros diplomados, este ano, pela Escola
Politécnica de São Paulo. [...]
Pedimos que nos comuniquem qualquer interesse porventura existen-
te por parte dessa firma, em torno desse assunto (Fiesp, 1942, Circular
nº 232/42, 2 de dezembro de 1942).

Aparentemente, os industriais paulistas não estavam muito empe-


nhados na criação de “um corpo de especialistas em assuntos técnicos
industriais”, mas sim de “operários-técnicos” formados pelo Serviço Na-
cional de Aprendizagem Industrial (Senai). Isso se devia à tendência de
não buscar a criação de novos produtos e de não renovar os processos
produtivos. Os empresários limitavam-se a fabricar as mercadorias capa-
zes de substituir a oferta da indústria estrangeira.

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Luiz Rogério Franco Goldoni

O Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial foi criado pelo Go-


verno Federal no dia 22 de janeiro de 1942, com o objetivo de organizar e
administrar, em todo o território nacional, escolas de aprendizagem para
industriários. As escolas ofereceriam também cursos mais avançados: de
continuação, de aperfeiçoamento e de especialização. O Senai seria diri-
gido pela Confederação Nacional da Indústria (CNI) e financiado pelos
estabelecimentos industriais filiados a essa instituição. Cada indústria
deveria contribuir mensalmente com dois mil-réis por operário. A con-
tribuição das indústrias que empregassem mais de quinhentos operários
seria acrescida em 20%. Estariam isentas dessa contribuição as indústrias
que mantivessem em suas instalações escolas de aprendizagem com os
mesmos parâmetros estabelecidos pelo Senai.

A lei que criou o Senai previa que os recursos arrecadados deveriam


ser aplicados na mesma região onde fossem recolhidos. Assim, as indús-
trias de São Paulo contribuiriam apenas para o seu próprio crescimento.
Como boa parte das grandes indústrias paulistas já oferecia cursos de for-
mação e especialização para seus operários, o Senai paulista seria finan-
ciado pelas pequenas e médias empresas, que utilizariam os seus cursos
para aprimorar seus trabalhadores. O baixo desenvolvimento industrial
das regiões Norte e Nordeste seria perpetuado com a pequena oferta de
cursos. Logo, de nacional o Senai possuía apenas o nome. Tratava-se,
na realidade, de um serviço regional de aprendizagem voltado para os
pequenos e médios estabelecimentos paulistas.

Em 1943, o Senai iniciava, com ímpeto, suas atividades em São Pau-


lo. Os fabricantes paulistas se mostravam entusiasmados com o centro
formador de industriários. Seguem abaixo as impressões de Octávio Pupo
Nogueira, secretário-geral do Sindicato da Indústria de Fiação e Tecela-
gem do Estado de São Paulo.
Em companhia do Professor Roberto Mange visitei as instalações do
Senai e devo confessar, com a alma alevantada, que não sei se em
nosso país se fez obra maior e mais bem feita. [...] O Dr. Mange [...]
mostrou o que o Senai está fazendo de grandioso. Eu creio que a taxa
paga pelas indústrias é muitíssimo bem paga. Graças ao Senai teremos

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O desenvolvimento da ciência e tecnologia de defesa
e a política externa brasileira

ensino técnico lançado em bases tais que abrange a própria alma do


trabalhador. Vejo, depois dessa visita, que as críticas feitas ao Senai
são absolutamente insubsistentes. O trabalho realizado pelo Senai será
profícuo e grandioso e garças a ele, repito, o Brasil terá mão de obra
eficiente como convém. Acho que todos devem ir em peso conhecer
o SENAI e prestar todo o concurso preciso. Não é excesso de entu-
siasmo, é a pura verdade (Fiesp, 1943, Circular nº 76/43, 12 de maio
de 1943).

Este relato repercutiu mais na Fiesp do que a criação dos fundos para
a pesquisa. Os empresários estavam voltados para resultados imediatos,
não para a exploração de novas tecnologias e produtos; pretendiam, no
máximo, garantir um bom aproveitamento do maquinário importado. Na
primeira metade da década de 1940, mais de 20 centros de aprendizagem
do Senai foram instalados na capital paulista e em Santo André. Em 1943,
os cursos do Senai em São Paulo formaram mais de 2.000 operários-
-aprendizes (Fiesp, 1943, Circular nº 99/43, 21 de junho de 1943). Igual-
mente ao Senai paulista, devido ao esforço de guerra, o Exército formaria
um batalhão de soldados-técnicos entre 1943 e 1945.

Os condicionantes externos para o desenvolvimento


Tal como a Missão Militar Francesa, a Missão Militar Norte-Ameri-
cana atendia não só aos interesses “desenvolvimentistas” brasileiros, mas
também às pretensões “imperialistas” dos países contratados. Na década
de 1930, como demonstrou Stanley Hilton (1977), o mercado brasileiro
era avidamente disputado por ingleses, estadunidenses e alemães.

A indústria alemã passara a marcar grande presença na América La-


tina e voltou ao mercado brasileiro de forma ousada, negociando, a partir
de 1934, em “marcos compensatórios”, que não envolvia troca de divi-
sas. O Exército estava perigosamente no centro das manobras políticas de
Vargas, que oscilava nas relações externas entre alimentar negócios com
dois rivais, os Estados Unidos e a Alemanha. Roberto Gambini (1977)
denominou “jogo duplo” tais manobras.15
15  – Como assinala Camilo Alves (2002, pp. 80-81), “enquanto as armas made in USA
não passassem de palavras ao vento, e fosse possível continuar adquirindo este equipa-

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Luiz Rogério Franco Goldoni

Ao adquirir algum produto no Brasil, os alemães evitavam gastar


suas escassas reservas financeiras: o valor de suas compras era converti-
do em créditos que poderiam ser utilizados para a aquisição de produtos
alemães.16 Segundo Vagner Camilo Alves (2002), no final de 1936, o go-
verno brasileiro entrou em contato com a alemã Krupp com o objetivo de
adquirir variadas peças de artilharia. Conforme o autor, “[o] pagamento
seria realizado com a entrega, pelo Brasil, de café, algodão, cacau, fumo,
borracha e outros produtos” (ALVES, 2002, p. 59).

Stanley Hilton (1977, p. 222) retrata a reação do empresariado esta-


dunidense ao chamado “comércio de compensação”:
O rápido avanço dos industriais alemães nos meses subsequentes ao
início do comércio de compensação “apavorou” alguns exportadores
americanos e seus distribuidores: [...] Um diretor de exportações de
importante firma farmacêutica visitou o Rio de Janeiro naquele mes-
mo período e, no seu regresso, contou a um grupo de empresários que
a “mais dramática novidade” do comércio brasileiro no ano anterior
fora o “sucesso da ideia alemã de marcos de compensação”. Em sua
opinião, “era espantoso ver como produtos totalmente alemães estão
se impondo em quase todas as linhas de mercadorias”.
Industriais apresentaram suas queixas sobre a desleal concorrência
alemã ao Departamento do Estado e às autoridades brasileiras nos Es-
tados Unidos, ao longo de todo o ano de 1935; e, em 1936, esses pro-
testos ganharam em intensidade e volume, tornando-se cada vez mais
públicos e sendo salpicados por palavras e frases como ameaça, séria
desvantagem, desastroso, desleal e rapidamente perdendo o mercado.
Um fabricante de aparelhos elétricos de Wisconsin considerou a situa-

mento dos alemães, o melhor que o governo brasileiro devia fazer era continuar poster-
gando seu alinhamento total ao bloco de poder estadunidense”.
16 – Frank McCann (1995, p. 127) explica esse procedimento: “[b]ancos brasileiros
abriam contas especiais em bancos alemães e os importadores alemães, depois de obte-
rem as necessárias permissões de um escritório de controle de importações, depositavam
seus pagamentos em marcos alemães nestas contas, a crédito do vendedor brasileiro. As
contas ou marcos aski (como eram normalmente chamadas) somente poderiam ser utili-
zadas pelos brasileiros para comprar produtos alemães de exportação. Feito o depósito, o
exportador brasileiro conseguiria através do Banco do Brasil vender seus marcos aski a
um importador brasileiro que quisesse comprar produtos alemães. O exportador alemão
seria pago pelo banco alemão que mantinha a conta aski mediante instruções do banco
brasileiro”.

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O desenvolvimento da ciência e tecnologia de defesa
e a política externa brasileira

ção “muito revoltante”. Assim que o Brasil começou a comerciar em


marcos Aski, disse o porta-voz de uma companhia, no início de 1936,
“nossas vendas caíram do dia para a noite e estão chegando agora a
quase nada”.

Apesar dos protestos e pressões do governo dos EUA e de repeti-


das negociações e “falsas promessas” por parte do governo brasileiro, o
comércio de compensação com a Alemanha seria interrompido somen-
te na Segunda Guerra Mundial. Ingleses e estadunidenses tinham receio
em denunciar as práticas de dumping do supracitado comércio pelo fato
de eles próprios praticarem tais medidas. Além disso, os estadunidenses
temiam que a adoção de represálias mais fortes contra o Brasil pudesse
aproximar ainda mais o país sul-americano da Alemanha, o que seria de-
sastroso para suas pretensões externas, mascaradas em sua “política de
boa vizinhança”. Em meio ao jogo de interesses das grandes potências,
Vargas praticava o já mencionado “jogo duplo”.

Com a Segunda Guerra Mundial e o bloqueio do oceano Atlântico,


as margens para as manobras políticas de Vargas ficariam cada vez mais
limitadas.17 Ainda em 1942, antes da entrada dos Estados Unidos e do
Brasil na Guerra, os governos dos dois países assinaram o Acordo Rela-
tivo ao Fornecimento Recíproco de Materiais de Defesa e Informações
sobre Defesa e o Acordo para Desenvolvimento da Produção de Materiais
Básicos e Estratégicos e outros Recursos Naturais do Brasil. Esses acor-
dos assegurariam a exportação de areia monazítica para os Estados Uni-
dos em nome da solidariedade entre os dois países (ANDRADE, 2010,
p. 119). Os estadunidenses garantiam assim o fornecimento de “materiais
pesados” para seus experimentos nucleares. Em 1945, os dois países ce-
lebraram um acordo secreto, no qual o Brasil “se comprometia a vender,
exclusivamente aos Estados Unidos, cinco mil toneladas anuais de mo-

17  – Mesmo com o bloqueio do Atlântico, Vargas, por intermédio de sua “política dual”,
conseguiu “barganhar” com os Estados Unidos a construção da Usina Siderúrgica Na-
cional, antigo sonho dos militares. Para maiores detalhes, ver, por exemplo, os livros
“Autonomia na Dependência: A Política Externa Brasileira de 1935 a 1942” e “Sucessos
e Ilusões: Relações Internacionais do Brasil durante e após a Segunda Guerra Mundial”,
escritos por Gerson Moura.

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Luiz Rogério Franco Goldoni

nazita, pelo prazo de três anos” (ANDRADE, 2010, p. 120). Ressalta-se


que o Relatório Frank, elaborado um mês antes da primeira experiência
com artefato atômico no deserto de Alamogordo, asseverava que uma das
formas de se evitar a corrida armamentista, que seria impulsionada pelo
novo armamento, se daria mediante o controle das fontes de matérias-
-primas (MOTOYAMA, 1985).

Por outro lado, como aponta Motoyama (1985, p. 39), naquela épo-
ca, para os países subdesenvolvidos, o domínio da tecnologia nuclear
representava uma forma de “atingir sua maioridade”. Nesse ponto, o en-
tão capitão-de-mar-e-guerra Álvaro Alberto de Motta e Silva seria um
ferrenho defensor dos interesses brasileiros. Em 1946, na Comissão de
Energia Atômica da ONU, Álvaro Alberto liderou o bloco que rechaçou a
proposta de expropriação absoluta de todas as minas de urânio e tório do
mundo em favor do futuro Órgão Internacional de Controle (MOTOYA-
MA, 1985). Ainda de acordo com Motoyama:
Num dos relatórios da sua missão na ONU, datada de 25 de novembro
de 1947, o representante brasileiro insistia na necessidade de fundar
um conselho de pesquisas e uma comissão de energia atômica: “O
trato dos problemas referentes à energia atômica me leva a sugerir
algumas medidas que se impõem como salvaguarda do nosso futuro
econômico e do nosso prestígio. […] Assim, dentre outras, as seguin-
tes: a) nacionalização de todas as minas de tório e urânio; b) imediata
revisão das concessões dessas minerações enquanto não se põe em
prática o item a; c) obrigatoriedade do tratamento primário dos mi-
nérios, referidos no item a, no Brasil, como medida complementar ao
controle da exportação; […] e) intensificação imediata das atividades
científicas e técnicas e a montagem de centros de cultura e pesquisa
especializada; f) formação e aperfeiçoamento de técnicos nos grandes
centros estrangeiros; g) fundação do Conselho Nacional de Pesquisa,
para fomentar e coordenar as atividades científicas e técnicas, esco-
lher pessoal idôneo e ser imediatamente encaminhado para o estran-
geiro aperfeiçoamento; […] k) a pesquisa será livre, mas satisfeitos
os imperativos do interesse Nacional (MOTTA E SILVA, 1961, pp.
16-17 apud MOTOYAMA, 1985, p. 39).

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O desenvolvimento da ciência e tecnologia de defesa
e a política externa brasileira

Álvaro Alberto foi um grande entusiasta da criação do Conselho Na-


cional de Pesquisa (CNPq). Em 1948, o recém-promovido contra-almi-
rante exporia na Associação Brasileira de Ciência um elaborado progra-
ma de ação, que acabaria por ser incorporado nas diretrizes do futuro ór-
gão (MOTOYAMA, 1985). Um ano mais tarde, o Almirante apresentaria
uma proposta de criação do Conselho ao presidente da República, Eurico
Dutra. Este nomeou uma comissão, presidida pelo próprio Álvaro Alber-
to, para estudar a matéria. A questão atômica nortearia, de certa forma, os
trabalhos da comissão, que chegou a cogitar a criação de uma Comissão
Nacional de Energia Atômica; tal ato implicaria a exclusão por completo
das ciências sociais e humanas da futura entidade. O Relatório Steelman
seria decisivo para a contemplação das “humanidades” pelo novo órgão
(MOTOYAMA, 1985). A comissão liderada por Álvaro Alberto enfatiza-
ria a premência de se formar cientistas e técnicos das mais diversas áreas
e especialidades no Brasil. O CNPq foi finalmente criado pela lei 1310,
assinada por Dutra em 15 de janeiro de 1951.

Apesar desse avanço na promoção da C&T brasileiras, as demandas


e pressões dos EUA pelos minérios “atômicos” estremeciam os chamados
nacionais-desenvolvimentistas e provocaram a polarização da política na-
cional. No início da década de 1950,
o governo americano pressionava pela retomada da importação da
monazita. Com esse objetivo, iniciou a discussão do Acordo de As-
sistência Militar Brasil-Estados Unidos; Gordon Dean, presidente da
U.S. Atomic Energy Commission, esteve no Rio de Janeiro e procu-
rou Álvaro Alberto [então presidente do CNPq]; o governo americano
prometeu empréstimos de bancos americanos para o Plano de Reapa-
relhamento Econômico; e o Brasil foi dispensado do envio de tropas
para a Guerra da Coreia. A estratégia defendida pelo Ministério das
Relações Exteriores consistia em fazer concessões aos Estados Uni-
dos na esfera político-militar, inclusive exportando os minerais estra-
tégicos, em troca de vantagens no campo econômico. Política similar
havia sido posta em prática no período da Segunda Guerra Mundial,
mas agora havia outros condicionantes, como o interesse americano
nos mercados europeus (ANDRADE, 2010, p. 134, 135).

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Luiz Rogério Franco Goldoni

Com o 3o Acordo Atômico, estabelecido em agosto de 1954 por Bra-


sil e Estados Unidos, o país sul-americano trocaria cinco mil toneladas
de monazita (que contém cerca de 6% de tório) e cinco mil toneladas de
sais de cério e terras-raras por 100 mil toneladas de trigo estadunidense.
Com essa inusitada troca, Vargas pretendia minimizar os descontenta-
mentos de Washington, contrário à forte presença do Estado brasileiro
na economia. As maiores pressões relacionavam-se ao monopólio esta-
tal do petróleo, ao projeto de nacionalização das companhias de energia
elétrica e à limitação imposta às remessas de lucros das empresas mul-
tinacionais e transnacionais ao exterior. A pressão exercida pelos EUA
refletia profundamente na política interna brasileira. Ana Maria Ribeiro
de Andrade (2010, p. 135) lembra que “[q]uatro dias depois [da assina-
tura do 3o Acordo Atômico], o país silenciou com o suicídio de Getúlio
Vargas”.
Os acordos atômicos firmados com os Estados Unidos também são as-
sociados ao desgaste político que levou Vargas ao suicídio, bem como
à saída de Álvaro Alberto da presidência do CNPq. Embora o governo
brasileiro tenha atendido todas as reivindicações americanas no âmbi-
to desses acordos, as resistências internas criadas em instâncias gover-
namentais contribuíram para reforçar o sentimento antiamericanista e
despertar a consciência da necessidade da defesa de todas as riquezas
naturais. Ambos revigoraram os movimentos nacionalistas que se en-
contram organizados na campanha do petróleo. Não há dúvidas de que
o fracasso da política de alinhamento contribuiu para a deterioração
do governo Vargas, posto que descontentou os Estados Unidos e, ao
mesmo tempo, reforçou os argumentos de influentes grupos de oposi-
ção. Desse modo, a polarização entre alinhamento e nacionalismo afe-
tou a frágil estabilidade política (ANDRADE, 2010, pp. 142-143).18

18  – Em 1956, sob vigilância dos Estados Unidos, a Comissão Nacional de Energia Nu-
clear (CNEN) se desvinculou do Conselho Nacional de Pesquisa Científica (CNPq). A
CNEN, no bojo do programa “Átomos para a Paz”, estabeleceria uma estreita colaboração
com os EUA na execução da política nuclear brasileira para fins pacíficos. Segundo Ribei-
ro de Andrade (2010, p. 140): “O programa Átomos para a Paz levava ao desenvolvimento
de pesquisas orientadas ou controladas pelos Estados Unidos, resultando em dependência
de conhecimento, equipamentos e combustível nuclear, e retardando o desenvolvimento
autônomo do setor nuclear.”

114 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (474):91-120, maio/ago. 2017.


O desenvolvimento da ciência e tecnologia de defesa
e a política externa brasileira

Considerações finais
Em meio às pressões estadunidenses, os militares brasileiros conse-
guiram contrapartidas como a criação do Instituto Militar de Engenharia
(IME), em 1959 [fruto da fusão da EsTE com o Instituto Militar de Tecno-
logia (IMT), fundado pela MMNA em 1949], e do Instituto Tecnológico
de Aeronáutica (ITA, que teve suas origens na EsTE). A Escola Técnica
do Exército, e logo depois o IME, seriam importantes celeiros de enge-
nheiros nucleares.19 Esses profissionais, formados sob forte influência da
Missão Militar Norte-Americana, atuariam no sistema universitário, nas
instituições de pesquisa, em órgãos regulatórios e normativos e no setor
industrial.

Se na década de 1920 o chefe da Missão Militar Francesa preten-


dia “tornar o Brasil dependente das instruções e das fábricas francesas”,
na década de 1950 os estadunidenses desejavam exercer total controle
sobre as atividades de P&D brasileiras. Conhecimento é um dos princi-
pais elementos do poder. Seu desenvolvimento, desde priscas eras, foi e
continuará de fundamental importância para o campo de batalha e para o
progresso sócioeconômico das nações; seu controle é ambição comezinha
daqueles que desejam se manter ou se tornar grandes potências.

Na ausência de universidades e centros de alta tecnologia, os mili-


tares formaram, no início do século XX, a mão de obra necessária para
animar a produção de suas instalações fabris. A USP se tornaria um im-
portante centro formador de mentes; suas pesquisas em muito contribuí-
ram para o esforço brasileiro durante a Segunda Guerra. Os FUPS sinteti-
zavam a união da ciência e tecnologia com o desenvolvimento econômico
e industrial em prol da defesa nacional.

O binômio “segurança e desenvolvimento” marcaria o nacional-de-


senvolvimentismo de Vargas. Todavia, era impossível para o país superar

19  –  “Em 1957, uma portaria ministerial regulamentou o Curso de Especialização em


Engenharia Nuclear na EsTE. Era o primeiro curso de pós-graduação daquela instituição
e o único desse tipo no Brasil. O curso teve início em 1958, com duração de um ano, em
regime de tempo integral” (DOMINGOS NETO; MOREIRA, 2010, p. 105).

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Luiz Rogério Franco Goldoni

as barreiras que o separavam do patamar científico e industrial alcançado


pelas grandes potências. Os esforços demandados pela Segunda Guer-
ra lavariam ao limite a capacidade produtiva industrial e intelectual dos
principais atores do conflito. Os teatros de operação espalhados por meio
mundo seriam verdadeiros laboratórios para alguns dos mais fantásticos
inventos humanos.

Enquanto os pesquisadores da USP criavam o primeiro sonar brasi-


leiro e os engenheiros formados pela EsTE manufaturavam os primeiros
canos para fuzil e mosquete totalmente nacionais, cientistas estaduniden-
ses e alemães lutavam para desenvolver a arma “definitiva”, aquela que
traria a vitória para um dos lados.

As relações diplomáticas e as trocas comerciais envolvendo Brasil e


Estados Unidos durante a Segunda Guerra acabaram, por fim, por deman-
dar maiores reflexões acerca do papel do Brasil no conflito. Os materiais
pesados exportados pelo país seriam fundamentais para os experimentos
do Projeto Manhattan. No pós-guerra, o controle desses materiais seria
essencial para a manutenção do status quo global. Apesar dos esforços
desenvolvimentistas e da percepção de visionários como o almirante Ál-
varo Alberto, o Brasil teria novamente papel secundário no jogo de poder
mundial, sendo uma vez mais exportador de matérias-primas para benefi-
ciamento e geração de poder e de riquezas alhures.

Durante o período abordado, não obstante os avanços alcançados, a


defesa do Brasil continuaria na dependência das armas e conhecimentos
dos “outros”.

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Texto apresentado em novembro/2015. Aprovado para publicação


em março/2016.

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Notes on the “Agudá Jubilee”: the great Brazilian Celebration
of the Abolition ofSlavery (Brazil and Lagos, West Africa, 1888)

121

Notes on the “Agudá Jubilee”: the great


Brazilian Celebration of the Abolition of
Slavery (Brazil and Lagos, West Africa, 1888)
Notas sobre o “Jubileu Agudá”: A grande festa
brasileira da Abolição (Brasil e Lagos, África
Ocidental, 1888)
Eduardo Silva1
Resumo: Abstract:
A celebração popular que se seguiu à assina- The popular celebration that followed the sign-
tura da “Lei Áurea” praticamente paralisou o ing of the “Golden Law” virtually paralyzed the
Império do Brasil desde domingo, dia 13, até Brazilian Empire from Sunday, May 13 to Sun-
o domingo seguinte, dia 20 de maio de 1888 day May 20, 1888 and, to our surprise, crossed
e – para nossa surpresa – atravessou o Oceano the Atlantic Ocean and reached the African con-
Atlântico e reapareceu do outro lado, em terras tinent, particularly the British Colony of Lagos
africanas, particularmente na Colônia Britânica in West Africa, where it lasted at least until Oc-
de Lagos, na África Ocidental, onde se prolon- tober of said year. This unprecedented histori-
gou até, pelo menos, outubro daquele ano. Esse cal phenomenon has much to tell us about the
fenômeno histórico sem precedente tem muito international context of the abolitionist move-
a nos dizer sobre o contexto internacional do ment as well as about the symbolic importance
movimento abolicionista e sobre a importância of the abolitionist struggle both in Brazil and
simbólica dessa luta no Brasil tanto quanto na Africa. This great Brazilian celebration, also
própria África. A grande festa dos brasileiros ou called “Agudá Jubilee” in Yoruba language,
“Jubilee Aguda” em ioruba, abre novas oportu- gives rise to historical research on the abolition
nidades para lançar a luz da pesquisa histórica of slavery as a social movement rather than as
na abolição da escravatura enquanto movimento a mere discussion among the Brazilian imperial
social e não enquanto mera articulação da elite elite. This article discusses the fundamental im-
imperial brasileira. Este artigo discute a impor- portance of the participation of the black people
tância primordial da participação do povo negro and of a complex network of social relations on
e de uma complexa rede de relações sociais en- both sides of the Atlantic Ocean. The histori-
volvendo as duas margens do Oceano Atlântico. cal participation of enslaved men and women
A participação histórica de homens e mulheres as well as their descendants is of paramount
escravizados bem como de seus descendentes se importance for understanding more deeply the
revela de primordial importância para o apro- abolitionist process in Brazil.
fundamento de nossa compreensão do processo
abolicionista no Brasil.
Palavras-chave: Abolição da escravatura; Keywords: abolition of slavery; British colony
Colânia Britânica de Lagos; underground aboli- of Lagos, abolitionist underground, ex-slaves
cionista; ex-escravos retornados à África; “jubi- returned to Africa; “Agudá Jubilee”; great cel-
leu agudá”; grande festa da abolição. ebration of the abolition of slavery.

1  – Eduardo Silva is a senior researcher at Fundação Casa de Rui Barbosa (FCRB), in


Rio de Janeiro, senior member of Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), and
research fellow of CNPq. This article is part of his work as Visiting Senior Researcher
Fellow at King’s Brazil Institute supported by CAPES (Processo BEX 1884/14-0).

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Eduardo Silva

Great demonstrations of collective joy might represent positive so-


cial experiences, or at least be so perceived at a certain historical mo-
ment. This ongoing investigation aims to study one of these festivities,
the celebration of the abolition of slavery in Brazil. The idea is to look at
the great festa as a historical document, that is, as a set of evidence – a
way of gaining a more comprehensive and inclusive understanding of the
abolitionist movement itself.2

The “great festa” started in the city of Rio de Janeiro, on the very
13th of May 1888, around three o’clock in the afternoon, almost imme-
diately after the signing of the “Golden Law” that abolished slavery in
Brazil. Besides stopping the whole of Rio de Janeiro city, within a few
hours the party spread practically across the whole of Brazil and – a phe-
nomenon yet more revealing – it crossed the Atlantic Ocean to reappear
in African lands, particularly in the British Colony of Lagos, West Africa.

Such was the historical relevance and symbolic power of this cele-
bration in the British Colony of Lagos, that one of the most important
African intellectuals at the time, John Augustus Otonba Payne (1839-
1906), included it among the most significant events of the Yoruba’s
History, being popularly known as the “Jubilee Aguda” – that is, in free
translation, “the great festa of the Brazilian people”.3

The “great festa” in Brazil and its continuation on the other side of
the Atlantic, in Lagos, in current Nigeria, certainly has a great deal to say
about the international context of the abolitionist movement, and also
about the symbolic importance of this struggle both in Brazil as well as
2  – I would like to thank Professor Anthony Pereira, Director of the Brazil Institute at
King´s College London, for his very inspiring comments and support during my visiting
research year at King´s from December 2014 to November 2015, and historian Oliver
Marshall for his extremely helpful tips about archival holdings in London and Oxford, and
insightful dialogue throughout my stay in London. As always Graça Salgado of Universi-
dade Federal Rural do Rio de Janeiro was an indispensable research assistant and perfect
travel companion.
3  –  PAYNE, Jonh Augustus Otonba. Table of Principal Events in Yoruba History, with
certain other matters of general interest, compiled principally for use in the Courts within
the British Colony of Lagos, West Africa, by… Lagos, Printed by Andrew M. Thomas,
1893, p.15.

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Notes on the “Agudá Jubilee”: the great Brazilian Celebration
of the Abolition of
Slavery (Brazil and Lagos, West Africa, 1888)

in Africa. For that reason, “Jubilee Aguda” opens an interesting path for
historical studies. In fact, no festa or popular celebration can take place in
a historical vacuum, that is, without a social base that justifies and promo-
tes it. To celebrate in Lagos the abolition of Slavery in Brazil unveils the
existence, in Africa itself, of a critical positioning toward the dominant
status quo, the old slaveholder society, both in the Americas as well as in
the African continent.

In the case of “Brazilian” returnees who went back to the land of


their ancestors – now British citizens - what was the extent of this criti-
cal positioning? Would they have acted in a kind of popular abolitionist
Underground? These are some of the key questions that have oriented the
research (which I intend to develop as a book in the near future). In this
paper I will discuss only a few guidelines of this work in progress, which
I hope to conclude in due time.

It is necessary to make it clear that I am studying here the “great fes-


ta”, the “Jubilee Aguda”, not the political and juridical event of the Aboli-
tion (the fact considered historical by itself), but the popular festivity whi-
ch follows the historical event and paralyzed the capital of the Brazilian
Empire from Sunday the 13th of May, through to the following Sunday,
the 20th of May 1888, and lasted in Africa until at least October of that
year. What can a celebration of such proportions teach us about slavery in
the Atlantic world and about the popular struggle for its abolition?

Of course we already count on numerous and excellent works about


the political-parliamentary movement led by the abolitionist elite. It see-
ms natural to be so, especially because most of the documentation avai-
lable and the prevailing historical beliefs concentrate on these political,
legal and economical aspects.4 The popular festa, however, can open a
4  – DUQUE-ESTRADA, Osório. A Aboliçao; esboço histórico, 1831-1888. Rio de Ja-
neiro: Leite Ribeiro & Murillo, 1918; MORAES, Evaristo de. A campanha abolicionista,
1879-1888, 2. Ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1986; Idem, A escravidao
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Eduardo Silva

new track that allows us to perceive another abolitionism, the popular


movement, the black people’s agency, both in Brazil and in Africa, as a
truly important component of this historical moment.

How can one classify or frame historically a festa of such extraor-


dinary purposes and proportions? It is important here to remember the
concept of festa as discussed in the seminal work by Jean Duvignaud,
Fête et Civilisations (1974).5 The festa, for Duvignaud, occupies an extre-
mely revealing space of social life. Far from being only joy, gratuity and
alienation, it allows us to explore deeper layers of social life. Obviously
each society has its own culture, rhythm and way of celebrating, but in
the Brazilian society, as elsewhere, the festa operates secretly as if there
was the intention of reminding us that life – and, therefore, history – does
not end in just one dimension, let’s say, “rational” and “functional” as the
modern epistemological approach tries to impose on us. If we stay only
in the rational-functional level, we miss the joy of the party and, conse-
quently, the perception of its immense subversive capacity to generate not
only conventional joy and ritual repetition of previously defined roles,
but also ruptures and transformations, as was certainly the case of the
“Jubilee Aguda”. Duvignaud suggests elsewhere several different types
of festa which he calls: “festivals of tribal disorganization”, “festivals of
symbolic hallucinations”, “festivals of prestige and competition”, “festi-
vals involving unbridled consummation”, “commemorative ceremonies”,
and the “intense exaltations of sects or groups”. But he also makes a point
in reminding us that only some of those parties have “that destructive or
subversive spirit inherent in festivals which involve a real awakening of
individual consciousness”.6

PhD Thesis, Stanford University, 1973.


5  – Cf. DUVIGNAUD, Jean. Festas e Civilizações. Translation: L. F. Raposo Fontenele.
Fortaleza: Universidade Federal do Ceará; Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983, pp.
21-22 e 223.
6  – DUVIGNAUD, Jean. “Festivals: A Sociological Approach”. Cultures. Paris: Unesco
Press and La Baconnìere. Vol. III, n.1, p.13-25, 1976. Quotation on p.18.hD Thesis, Stan-
ford University, 1973.

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Notes on the “Agudá Jubilee”: the great Brazilian Celebration
of the Abolition ofSlavery (Brazil and Lagos, West Africa, 1888)

Inspired by Duvignaud, I would like to suggest in the case of the “Ju-


bilee Aguda”, the concept of “disorder festa”. Dis-order in its etymologi-
cal sense, that is, a party meant to break the rules of the old slave order.
Festa where one can observe a disturbing framework of social inversion
and profound subversion of previously accepted behaviour codes. Festa
of occupation of public spaces previously prohibited to the “inferior clas-
ses”. Festa of challenge to social relations until then accepted as normal.
Festa of samba and joy totally out of control of the old slave system.

The “Jubilee Aguda” represents, thus, “transgression” in its deeper


sense. While the slave quotidian and social consciousness seems to im-
pose an static notion of life (that is history) as always similar to itself, the
“great festa”, on the contrary, is an spontaneous and irresistible eruption
of the idea of change, freedom, and movement, that is, symbolically, the
moment of dissolution of norms and social codes previously dominant.

In Brazil this movement becomes clear. In Lagos, on the other side


of the Atlantic, and already within the British imperial order, maybe we
can not speak exactly of general lack of control, except, certainly, for the
traditional “boi” and “burrinha” popular parades where there took place
a genuine Brazilian carnival in the astonished and even fearful streets of
Lagos. Referring to these dangerous carnival parades from the Brazilian
Quarter (“Popo Aguda”) to the other end of town, one “Brazilian” rema-
rked, “there used to be serious clashes on those occasions and broken
heads or arms were invariably the result of the taunting songs on the one
parte and flinging or shying of stones and broken bottles from the ba-
ckyards in the invaded area”.7

The Jubilee Aguda and, as part of it, the addresses delivered at the
“magnificent” pavilion set at Campos Square, at the heart of the “Brazi-
lian quarter” in Lagos, opens then a fresh opportunity of putting the focus
of the research on the abolition as a social movement and not only as a
mere political articulation of the elite. The participation in history of ens-

7 – LAOTAN, A. B. The torch bearers or old Brazilian colony in Lagos. Lagos: The Ife-
Olu Printing Works, 1943, p.8.

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Eduardo Silva

laved men and women and their descendants who, besides buying their
freedom long before the Abolition, also bought a ticket back to Africa,
where they begin to be identified and identify themselves as “Brazilians”,
reveals itself to be very important to the international abolitionist move-
ment.

When the Abolition in Brazil took place they lived in Lagos under
the protection of the British Crown. Although the “Brazilians” began to
repatriate around 1840, the numbers only became significant after Lagos
became a British Colony in 1862. According to Governor Moloney, there
were about 1,237 repatriates from Brazil in 1871; 2,732 in 1881; and
3,221 in 1883.8 What did these “Brazilians” think of the slave system
in Brazil? Would have they contributed somehow to its abolition? The
simple organization of such significant celebrations, on the other side of
the Atlantic, certainly deserves more accurate research. The general study
of these communities of “Brazilian” returnees relies on some existing
important contributions, from the pioneer works by Pierre Verger and
Gilberto Freyre, to more recent researches such as those by Mariano Car-
neiro da Cunha and Manuela Carneiro da Cunha, Milton Guran, Costa e
Silva, among many others.9

8  – Cf. The National Archives, London, CO 147 / 67.


9 – See VERGER, Pierre. Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o golfo do Benin
e a Bahia de Todos os Santos: dos séculos XVII a XIX. translation by Tasso Gadzanis. São
Paulo: Corrupio, 1987, pp.599-635. FREYRE, Gilberto. “Acontece que são Baianos”. In:
FONSECA, Edson Nery da (ed.). Bahia e baianos/Gilberto Freyre. Salvador: Fundação
das Artes, 1990, pp. 91-134 (First published: O Cruzeiro, Rio de Janeiro, from August to
September 1951); CUNHA, Mariano Carneiro da. Da senzala ao sobrado. São Paulo:
Nobel/Edusp, 1985; CUNHA, Manuela Carneiro da. Negros, estrangeiros; os escravos
libertos e sua volta à África. São Paulo: Brasiliense, 1985; GURAN, Milton. Agudás:
os “brasileiros” do Benim. Rio de Janeiro: Nova Fronteira/Editora Gama Filho, 2000;
SILVA, Alberto da Costa e. Um rio chamado Atlantico: a África no Brasil e o Brasil na
África. Rio de Janeiro: Nova Fronteira/Editora da UFRJ, 2003; SOUZA, Monica Lima
e. Entre margens: o retorno à África de libertos no Brasil, 1830-1870. PhD Thesis, Uni-
versidade Federal Fluminense, 2008; SAWADA, Nazoni. The educated elite and associa-
tional life in early Lagos newspapers: in search of unity for the progress of society. PhD
thesis, University of Birmingham, July 2011; FRANÇA, Nara Muniz Improta. Producing
intellectuals: lagosian books and pamphlets between 1874 and 1922. PhD thesis, Univer-
sity of Sussex, September 2013.

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Notes on the “Agudá Jubilee”: the great Brazilian Celebration
of the Abolition of
Slavery (Brazil and Lagos, West Africa, 1888)

The challenge now is to study the thought and internal contradic-


tions of such communities in relation to the specific theme of Slavery
and Abolition in Brazil. The issue highlights a special interest because
such men and women lived very profound contradictions within the slave
system. As the identities of each one depends on the social relations and
historical context, in Brazil they would have been known as “escravos bo-
çais”, then “escravos ladinos”, then African freedmen, then African “re-
turnees”. Back in Africa they would be popularly known as “Brazilians”
or, in the Yoruba language, “Agudas”. For the British colonial adminis-
tration, however, this last denomination would be completely wrong. The
“returnees” would not be “Brazilians” at all – as they themselves claimed
to be – but “repatriate” Yorubas, that is, Yoruba that returned to their true
homeland after a long period of slave exploitation in Brazil.

In fact, as we have already pointed out, the “Jubilee Aguda” star-


ted in Rio de Janeiro, shortly after the signing of the “Golden Law”, on
the 13th of May 1888 and was spread by the modern electric telegraph
network through the most important cities of the Brazilian Empire.10 In
every place reached by the wires of the electric telegraph the celebra-
tion was immediate and proportional to what had happened in Rio. The
festa was the result not only of freedom, but also of technology. In the
nineteenth Century, thanks to the international expansion of modes of
communication and transport and, above all, to the establishment of a
British-controlled worldwide network of electric telegraph, Brazil lived
– without clearly realising what she was experiencing – the revolutionary
effects of a great process of integration and proto-globalization. The pro-
cess silently expanded through the second half of the nineteenth Century.
In 1852, less than two years after the abolition of the slave trade in Brazil,
there started in Rio de Janeiro the electric telegraph service. Firstly only
within the administration and public security of the capital, but, in 1858,
it was delivered to the general public.11
10  – See SILVA, Eduardo. “Law, Telegraph and Festa: a Revaluation of Abolition in
Brazil”. In: CROZET, Francois; BONNICHON, Philippe; et ROLLAND, Denis (eds.).
Pour l´histoire du Brésil. Paris: L´ Harmattan, 2000, pp. 451-62.
11 – Repartição Geral dos Telégrafos. Memória histórica. Rio de Janeiro, Imprensa

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Eduardo Silva

With the outbreak of the Paraguay War (1865-1870), the country qui-
ckly connected itself to the far South, through telegraphic landlines. And,
after the war, the telegraph landlines headed towards the North, reaching
Belém do Pará in 1886. On the 24th of December 1873 there arrived in
Brazil the first submarine telegraphic cable linking Brazil to Europe. And,
from early 1874, the papers began to publish fresh news from abroad, in
almost real time for those days’ standards, provoking a true revolution in
the culture and way of thinking.12

In 1888, when the final abolition took place, the Brazilian telegra-
ph network put in direct communication the country’s main population
centres, from Belém do Pará, in the North, to Jaguarão and Uruguaiana,
in the far South of the Empire, where it connected with Uruguay and
Argentina’s networks. There were then 10,755 kilometres of lines, with
over 18,400 km of wires, connecting 173 stations.13 In the following year,
1889, around 640 thousand telegrams (official and private) were sent,
containing almost 8 million words.14 The power of the public administra-
tion, the circulation of ideas – everything had changed very quickly. The
impact of this great revolution within the field of communication brought
out profound changes in the ways of perceiving life, time and history.
With the advance of the telegraph lines, the country was integrated – in-
ternally and externally – in a way that until then was unthinkable. The
establishment of the whole electric telegraph worldwide network provi-

Nacional, 1909, pp.4-7; PEREIRA, Flávio e FILHO, J. Oliveira. Subsídios históricos e


estatísticos de Correios e Telégrafos. Rio de Janeiro: Oficinas dos Correios e Telégrafos,
1938, pp.29-30.
12 – SODRÉ, Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Civili-
zação Brasileira, 1966, p. 247; IPANEMA, Marcello e Cybelle de. Imprensa fluminense;
ensaios e trajetos. Rio de Janeiro: Instituto de Comunicação Ipanema, 1984, pp. 15-20;
SILVA, Mauro Costa da. “A Telegrafia Elétrica no Brasil Império: Ciência e Política na
Expansão da Comunicação”. Revista Brasileira de História da Ciência. Rio de Janeiro,
v.4, n.1, p.49-65, jan./jun. 2011.
13  –  Repartição Geral dos Telégrafos, op. cit., p. 39-45; PAULA-FREITAS, Luís. O Te-
légrafo no Brasil. Rio de Janeiro: Departamento de Correios e Telégrafos, 1940, p. 18.
14 – LIBORIO, Pedro. Os nossos serviços Telegráficos civis durante o século; da semá-
fora ao telefone e deste ao ‘sem fio’; legislação telegráfica. Rio de Janeiro. Off. Graph.
Do Jornal do Brasil, 1923, pp. 5-7, PAULA-FREITAS, Luís, op. cit., p. 55.

128 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (474):121-148, maio/ago. 2017.


Notes on the “Agudá Jubilee”: the great Brazilian Celebration
of the Abolition ofSlavery (Brazil and Lagos, West Africa, 1888)

ded the technical foundation for the emergence of a truly national and
international abolitionist “campaign” or “movement”.

It is interesting to notice that, at the Chamber of Deputies, on the


9th of May, when the Bill from the Executive went through the second
discussion, the only amendment that had been proposed and immediately
accepted somehow incorporated this modernity and vertiginous speed of
the electric telegraphy in the very letter of the Golden Law. Such was the
pressure of time after so many decades of delay that it was no longer pos-
sible to wait for even the traditional and regimental publication of the law.
Then, in Article 1o, where it read “Slavery in Brazil is declared extinct”,
it was added “from the date of this law”15. A few words which might pass
unnoticed, but they make the Golden Law a law of instantaneous validity,
as modern and instantaneous as the electric telegraphy. And this needs
to be taken into account when we try to understand what really happe-
ned in Brazil. The speed of the propagation and the instant validity of
the law revealed itself as a fundamental strategy to prevent any possible
resistance. The Brazilian law, unlike the British one, did not foresee any
compensation for the slave owners, and therefore, it confronted the most
powerful economic interests of society. Violent reaction was a concrete
possibility.16

No one of sound mind could have predicted that the powerful and
multi-secular system would fall without any considerable reaction. Ins-
tead of the expected civil war though there came, with all its drive, the
festa, the “Jubilee Aguda”. No one was capable of foreseeing such a po-
pular reaction, a festa of such proportions, because this had never happe-
ned before. The festa came as a surprise for everyone. How is it possible
to react or promote civil war without international support and with al-
most the whole black population celebrating a historical conquest? After

15  – Brazil, Câmara dos Deputados. Organizações e programas ministeriais (1822 a


1889), Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1889, p. 235.
16  – Cf. Correspondence between the republicans Silva Jardim (white) and Francisco
Glicério (black). In: Silva Jardim. Memórias e viagens; campanha de um propagandista
(1887-1890). Lisboa: Typ. Da Compa. Nacional Editora, 1891, p.84.

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Eduardo Silva

a festa of such proportions, what kind of legitimacy could a reaction mo-


vement have?

In Rio de Janeiro the Golden Law was supported in the streets with
unprecedented firmness. The great popular demonstration went on, day
and night, despite the rainy weather, for eight following days. The joy
literally stopped the capital of the Empire. The public service offices sus-
pended work. All essential services collapsed. The loading and unloading
of goods in the harbour stopped; freight trains, post offices, banks, public
and private schools, everything was forced to stop for eight days – from
Sunday, the 13th of May 1888, through to the following Sunday, the 20th
of May.

And that happened not only in Rio de Janeiro, but also in all the pla-
ces reached by the telegraph network, so the celebration was immediate.
It was so in the capital of São Paulo where “great popular enthusiasm”
immediately overtook the city.17 The same happened in Santos, the port
city and notorious abolitionist stronghold, where the “delirium” of the
people was immediate and lasted “from the 13th of May to the end of
the month”. Also in Campinas, when slaves and ex-slaves learned of the
passing of the law, they “went almost crazy”, and immediately organized
processions of thanksgiving, popular balls and, everywhere, memorable
rodas-de-samba and batucadas.18

In Minas Gerais the festa of the black people had also occupied the
streets of the capital, Ouro Preto, on the 13th of May. Similar phenome-
non took place in Pernambuco, where the city of Recife was immediately
taken over by the people in festa and the public services closed. In São

17 – Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 15 maio 1888, p. 1; O Mercantil, Petrópolis,


16 maio 1888, p.2, “Libertas Que Sera Tamen”; Cidade do Rio, Rio de Janeiro, 28 maio
1888, p.2; Idem, 29 maio 1888, p. 1, “As Festas da Igualdade”; Idem, 9 junho 1888, p.1.
André Rebouças. Diário 1888. Documento Manuscrito. Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro (13 de maio). Also see: SILVA, Eduardo “Integração, Globalização e Festa: a
Abolição da Escravatura como História Cultural”. In: PAMPLONA, Marco A. (ed.), Es-
cravidão, exclusão e cidadania. Rio de Janeiro: Access, 2001, pp.107-118.
18 – Silva Jardim, op. cit., pp.86-88; The Rio News, Rio de Janeiro, 24 maio 1888, p. 4,
“Provincial Notes”.

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Notes on the “Agudá Jubilee”: the great Brazilian Celebration
of the Abolition ofSlavery (Brazil and Lagos, West Africa, 1888)

Luis of Maranhão, not only was the news received with “great popular
acclamations”, but also the president Moreira Alves ran off to the palace,
on the very 13th of May, to arrange its immediate validation.19

In Salvador, Bahia, the joy of the people was immediate, rivaling,


some said, even that of Rio de Janeiro. “The festivities around here [Sal-
vador] have been splendid and were general, making it impossible that
those of over there [Rio de Janeiro] were more enthusiastic”, provoked
bachelor Antônio Carneiro da Rocha in a letter to his friend and political
coreligionist Rui Barbosa.20

Because of the worldwide electric telegraphic network, we can be


relatively sure that the good news arrived in Lagos – exactly like it happe-
ned in the Brazilian main cities – on the same 13th of May, at the latest
on the next day, but the great festa in Africa still had to wait a little, until
September. The electric telegraphic network worked well instantly, but it
lacked the necessary support of the traditional paper media. The African
press was still in its early days and the periodicity of papers was a little ir-
regular. Because of this detail the news arrived quickly, but it took a little
longer to be published and effectively circulate in society.

The process of the circulation of the news was a bit complicated, but
it was worth waiting for and the delay of the news did not dampen the joy
of the festa. The great celebration that overtook Brazil from one extreme
of the country to the other also arrived at the British Colony of Lagos.
And the “Brazilian quarter” cheered until exhaustion from the 27th of
September until at least the 8th of October 1888, with significant public
demonstrations of joy and support.

The “Brazilian” ex-enslaved and their descendants made clear their


support of freedom in far away Brazil. And they did it, very much in the
19 – Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 15 de maio 1888, p. 1.
20  – Letter from Antônio Carneiro da Rocha to Rui Barbosa. Salvador, 25 maio 1888.
Arquivo Histórico da Fundação Casa de Rui Barbosa, CR 1260/1. On the festa in Sal-
vador see also: ARAGAO JUNIOR, José Garcia Pacheco de. “50º. Aniversário da Lei da
Abolicao; Reminiscencias de um Tradicionalista”. Anais do Arquivo Público da Bahia.
Salvador, vol. XXVII, pp.527-30, 1941.

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Eduardo Silva

Brazilian fashion, with decorated and illuminated streets, drama plays,


street manifestations, catholic masses and Anglican services, elegant
balls, firework display, and with the most genuine Brazilian carnival cros-
sing boldly the grave –and sometimes tense – streets of Lagos. The sup-
port of the “Brazilian” community was enormous and, exactly like it had
happened in Brazil, it was expressed through samba, joy, and intellectual
analysis about the meaning of the great historical event.21

This kind of Brazilian carnival, completely out of time and place,


opens up an interesting field of historical reflection. Firstly, I think we can
accept as reasonable the assumption that if the “Brazilians” celebrated in
such a way the abolition of slavery this might indicate that, if they did
not participate directly in that achievement, they at least dreamt of and
sympathized with it. This is, in summary, the suspicion that I raise here
about the respectable members of the Brazilian Emancipation Commit-
tee, in Lagos. This work intends to investigate not only the influence of
the so called “civilized world” – Great Britain, France, United States -,
but also the African agency, the direct participation of black people, in the
construction of this new world of freedom.

In the “magnificent” pavilion set at Campos Square, at the heart of


the “Brazilian quarter”, there emerges the profound historical meaning of
the festa. About the Brazilian Emancipation Committee, who organized
these demonstrations of rejoicing, we still know very little. We can imagi-
ne though that its action did not restrict itself to the city of Lagos but ex-
panded to Brazil, especially to Rio de Janeiro, Salvador and Recife. The
suspicion becomes stronger when we appreciate the constant movement
between these three Brazilian cities and the British Colony of Lagos. We
cannot go into details here but signs of this commercial, religious and cul-
tural exchange through the Atlantic Ocean emerges abundantly in almost

21  – Cf. “Programme of the Festivities in Honour of the Brazilian Slavery Emancipa-
tion”. Anti-Slavery Papers; Main Correspondence Series (MSS. Brit. Emp. S.18). Bod-
leian Libraries (Oxford).

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Notes on the “Agudá Jubilee”: the great Brazilian Celebration
of the Abolition ofSlavery (Brazil and Lagos, West Africa, 1888)

all the classic and recent literature about Afro-Brazilian religions, from
Nina Rodrigues to J. Lorand Matory and others.22

As Professor Matory pointed out, these travellers and traders, in one


way or the other, “capitalised on their intercontinental nationality”, pro-
viding the candomblés of Rio, Bahia and Pernambuco with orisa-related
goods and taking back to the “returnees” desired delicacies and comforts
to which they had become accustomed in Brazil.23

One of these travellers and traders was Lourenço A. Cardoso, exac-


tly the “Brazilian” who was chosen to speak on behalf of the whole “Bra-
zilian Emancipation Committee”. His father, Antonio Sanyaolu Cardoso,
had been a slave in Brazil, but managed to buy his own freedom and a
return ticket to Africa. Lourenço Cardoso was born in Lagos, within a
“Brazilian” family and social environment, but with British citizenship
and an education in the Catholic Mission of the Colony. With restless
intelligence and an enterprising mind, he did almost everything in life. In
his youth he began as an English teacher in the very mission in which he
had graduated and later he acted as a grocer in Lagos and a trader between
Africa and Brazil.24

As Cardoso makes a point in emphasising in the very opening of his


address, he was speaking on behalf of the 30 members of the Brazilian
Emancipation Committee – “residents in the Colony of Lagos” – exactly
the gentlemen who, with him, signed the document. One particular aspect
strikes us in examining in more detail these 30 members of the Brazilian
Emancipation Committee: the complete absence of women, despite the
fact that many autonomous and important women were well known to the
“Brazilian” community.
22 – RODRIGUES, Nina. Os africanos no Brasil, 7. Ed. São Paulo: Ed. Nacional; Bra-
sília: Editora Universidade de Brasília, 1988, p. 130; MATORY, J. Lorand. “The English
Professors of Brazil: On the Diasporic Roots of the Yoruba Nation”. Society for Compara-
tive Study of Society and History, 41 (1999), p.95; Lisa Earl Castillo. “Entre Memória,
Mito e História: Viajantes Transatlânticos da Casa Branca”. In: João José Reis e Elciene
Azevedo (eds.). Escravidão e suas sombras. Salvador: EDUFBA, 2012, pp.65-110.
23  –  MATORY, J. Lorand. “The English Professor”… cit.
24 – LAOTAN, A. B. Op. cit., p.11.

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Eduardo Silva

Similar discrimination can be seen in Brazil. Even in Rio de Janei-


ro, capital of the Empire and cosmopolitan city, the patriarchal mentality
prevailed. The Sociedade Brasileira Contra a Escravidão, for example,
founded in 1880 by Joaquim Nabuco, included among its members inte-
llectuals and militants who could be recognized as black and white, but
did not have one single woman within its power structure. The same can
be said of the important – and far more radical – Confederação Aboli-
cionista, founded in 1883 by the black journalist José do Patrocínio. In
Lagos’ case, the subject has not been properly studied. In Brazil’s case,
however, one can say that there was a strong reaction on the part of the
women who, ahead of their time, ended up creating their own movement
as a kind of reaction to the exclusion imposed by the prevailing patriar-
chal slave mentality. We have discussed this topic somewhere else and
intend to develop it as a specific chapter of the present research.25

One aspect that attracts attention in Lourenço Cardozo’s speech is


the expression “residents in Lagos” – which could suggest the existence
of other members of the organization working not only in Lagos but also
in Brazil. The existence of this type of committee without any formal
connection with Brazil would be just a historical curiosity. But if that was
not the case, who would these agents be? Would have they participated in
a Black Abolitionist Underground linked to the traditional Candomblés
in Brazil?

Another interesting discussion is more directly concerned with cul-


tural history. What did a Committee composed of ex-slaves and their des-
cendants born in Lagos and in Brazil think about slavery and the aboli-
tionist process? This is a difficult question to answer, but the “official”
address delivered by Cardoso on behalf of the Committee might provide
us with some precious clues in that direction. One should remember that
it is an “official” document of the Committee and, for that reason, signed
by all its members.

25  – SILVA, Eduardo. “A Contribuição da Mulher no Movimento Underground Aboli-


cionista”. Revista Brasileira. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras. Fase VIII,
Ano IV, n. 83, Abril-Maio-Junho 2015, pp.89-97.

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Notes on the “Agudá Jubilee”: the great Brazilian Celebration
of the Abolition ofSlavery (Brazil and Lagos, West Africa, 1888)

We can observe, firstly, that slavery in Brazil, for those men, did not
seem simply a “historical stage”, as it might seem to us today, but a con-
crete period of personal life filled with memories and suffering that were
really experienced in the flesh. The end of such a system in Brazil on the
13th of May was, thus, not only a historical, but also a “sacred” event.
We the members of the Brazilian Emancipation Committee residents
in the Colony of Lagos do feel deeply grateful […] for your kind pre-
sence here tonight thereby assisting us in our feeble efforts to comme-
morate in a most befitting manner the total emancipation of Slavery
in the Brazils an event of no ordinary importance that degraded traffic
which for years and years kept our fathers in bondage on foreign sho-
res and where naturally most of us were born the event is indeed to us
a sacred one.26

Another person that went up to the tribune, a gentleman well known


to all, was John Augustus Otonba Payne, one of the most important and
influential African intellectuals at the time. Payne was a man of extraor-
dinary intelligence and enormous capacity for work. He was a writer, a
journalist, an entrepreneur, an author of numerous books and a reference
for the study of Lagos’ early times and the formation of current Nigeria.
He was Fellow of the Royal Historical Society, London; Fellow of the
Royal Colonial Institute, London; Corresponding Member of the British
& Foreign Anti-Slavery Society, London; Member of Anthropological
Institute of Great Britain and Ireland; Member of the Institute D`Afrique
of Paris; and even, “Correspondent Member” of the distant “Sociedade
de Geografia do Rio de Janeiro” among many other important learned as-
sociations around the world. The list is clearly incomplete. In 1893, after
listing these and other academic honours in his last book, Payne insisted
in pointing out, and repeating three times, “etc., etc., etc.”27

His curriculum vitae and life history is really quite impressive. Besi-
des being an intellectual of political and strategic thought, Payne was also
an important civil authority as Chief Registrar and Taxing Master of Su-
26 – “Address of the Brazilian Emancipation Committee to His Excellency read by
Lourenco A. Cardoso”. MSS. Brit. Emp. S.18, pp.1-4. Bodleian Libraries (Oxford).
27  –  PAYNE, John Otonba. Op. cit., p.1.

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Eduardo Silva

preme Court of the Colony of Lagos. It is interesting to note that, althou-


gh Payne was the most illustrious member of the Brazilian Emancipation
Committee, he was not “Brazilian” like the others, but of “Saro” origin,
born in Sierra Leone, in 9 August 1839. He was educated at the Church
Missionary Society grammar school in Freetown.28 In 1861 he moved to
Lagos where successfully dedicated himself to commerce activities. In
1863, at 24 years old, he abandoned the commerce activities and, invited
by the British authorities, entered the public administration. In 1867 he
was promoted Chief Registrar.29

In addition to this, he had all the connections of a noble background.


As Otonba Payne himself would put it in a letter introducing himself to
the English abolitionists: “I am a native African of the tribe of Jebu and
a nephew of His Majesty the King Awujale who is friend to Her Majesty
[Queen Victoria] government of Lagos”. In case of any doubt about the
importance of this contact, he further explained to the English abolitio-
nists: “Jebu is a family situated on East of Lagos”.30

What would cause a “Saro” to fight alongside “Brazilians” can and


should evoke explanations in the political and sociological sphere. I will
try to do this in a more specific chapter. For the moment we only need to
remember that Mr. Payne, although “Saro”, married in 1883 a “Brazilian”
lady, Martha Bonifácia Lydia ( ? – 23/04/1888 ), a woman of remarkable
personality and very well educated at the Church Missionary Society´s
Female Institution, in Sierra Leone and also in England (a country which
Payne himself did not know yet). She was Payne’s partner and perfect
soul mate, besides being the family’s strong support. “To her family, Aun-

28  –  On the Church Missionary Society in Nigeria´s history, see: AJAYI, J. F. Ade.
Christian missions in Nigeria (1841-1891); the making of a new élite. Evanston (UK):
Northwestern University Press, 1969.
29  – Cf. HARGREAVES, Alberto. “Discurso Proferido em Sessão Extraordinária para
ser conferido o Título de Sócio Correspondente ao Sr. John A. O. Payne, Viajante Afri-
cano”. Revista da Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro. Ano 1886, Fasciculo III, p.
230 e segs. Also see: FRANÇA, Nara Muniz Improta. Op. cit., pp.10-17.
30  – Letter of John Otonba Payne to Charles Allen, secretary of Anti-Slavery Society.
Lagos, West Africa, 1 October 1880. Bodlein Libraries (Oxford), Anti-Slavery Society
Papers, Main Correspondence Series (MSS. Brit. Emp. S. 18).

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Notes on the “Agudá Jubilee”: the great Brazilian Celebration
of the Abolition ofSlavery (Brazil and Lagos, West Africa, 1888)

tie Payne, or ´the Auntie´ was all in all – wrote a contemporary - She was
the family judge, consoler, sympathizer and helper!”31

With his marriage, Otonba Payne became part of the “Brazilian co-
lony” and, no doubt, began also to get involved with the so-called “Bra-
zilian problems”. This apparently insignificant fact represented a consi-
derable reinforcement for the “Brazilian” community in Lagos, and even
for the Abolition cause in Brazil. In 1886 Payne visited Brazil where he
delivered at least two important abolitionist talks, besides attending seve-
ral meetings in places not specified with slaves, freedmen and free men
of colour.

At this point the Brazilian black abolitionists, José do Patrocínio and


Vicente de Sousa, in the leadership, were already promoting abolitionist
conferences in the city of Rio de Janeiro. But no one could even imagine
that the Emperor would go to the theatre on a Sunday afternoon to attend
one of these popular and quite subversive talks. After all, the Emperor
had to keep neutrality at all costs, he had to play the role of “moderator”
of the political activity that the Constitution of 1824 had designated to
him. But with Otonba Payne it was different. For the first time an openly
abolitionist talk was given in the presence of the Emperor. And Otonba
Payne imposed himself as an intellectual of great stature deserving the
title of Correspondent Member of the prestigious Sociedade de Geografia
do Rio de Janeiro, as we had the opportunity to mention.

Altogether Otonba Payne and Martha Bonifacia Lydia stayed for


only 36 days in Brazil. But the results of their visit could be considered
very positive. So much so that as soon as Payne arrived in Britain and
checked into Cannon Street Hotel he wrote a letter to the secretary of the
British and Foreign Anti-Slavery Society informing them about the unu-
sual voyage “from Lagos West Africa via Brazils” to London. “I spoke
against Slavery at Rio, and as I am a Native I trust it made some impres-
sion upon the Slave owners of that Empire”, he reported at first hand.32

31 – The Lagos Observer. Lagos, West Africa, May 12, 1888. “In Memorian”, p.3.
32  – Letter of John Otonba Payne to Charles Allen, secretary of the Anti-Slavery Society

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Eduardo Silva

In these notes I can not go into much detail about that strange, and
in many aspects unexplained, visit to Brazil. I will discuss this in a more
specific chapter. What matters to us now is only to introduce a broader
framework to understand his address during the festivities at Campos
Square, on that evening of 28th of September 1888.

For Payne, as also for Cardoso, the abolition was a sacred achieve-
ment, a blessing from God.
We desire first and foremost to render our gratitude do God who has
disposed the hearts of the Philanthropist of Great Britain to lay the
foundation of the temple of Liberty by their endeavours to abolish the
foreign slave trade and finally to emancipate Our Countrymen in all
the British Colonies.

He said in his speech. If we could summarize simply, for Payne, for


the Abolition in Brazil God should first be thanked, then the philanthro-
pists of Great Britain.33

The other speaker to step on the pulpit was an even more honourable
guest, His Excellency Captain Cornelius Alfred Moloney (1848–1913),
the governor of the Colony of Lagos. Lagos, since 1861, had been a co-
lony of Great Britain. Under British rule, the city turned into a true re-
fuge for the “returnees” from Brazil and Cuba. Not only did the freemen
want to return to Africa, but the British authorities also wanted to attract
that specialized work force. They were excellent workers and qualified
professionals, men of great moral value and proven technical skills who
dreamt of returning to their motherland. And this was of great interest to
the British colonial authorities. To mention only the members of the Bra-
zilian Emancipation Committee, we can point out master tailors, master
painters, master bricklayers, master masons of great name, such as Láza-
ro Borges da Silva and Prisco Francisco da Costa, who were in charge
(Oxford), Anti-Slavery Society Papers, Main Correspondence Series (MSS. Brit. Emp.
S. 18). Mr. Allen was the secretary of the British and Foreign Anti-Slavery Society from
1879 to 1898.
33  –  “Address read by J. A. Otonba Payne, Registrar of the Supreme Court of Lagos
and a Member of the Committee to His Excellency the Governor.” MSS. Brit. Emp. S.18,
pp.1-7. Bodleian Libraries (Oxford).

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Notes on the “Agudá Jubilee”: the great Brazilian Celebration
of the Abolition ofSlavery (Brazil and Lagos, West Africa, 1888)

of the construction of the first Catholic Cathedral of Lagos, the old Holy
Cross Cathedral, built in 1881 and considered one of the architectural lan-
dmarks of the city. Also master carpenters and hallowed cabinetmakers
like Baltazar dos Reis – constructor of the High Altar of the old Holy
Cross Cathedral, of the Catholic Bishop´s Throne, and other works of
similar importance. At the Colonial Exhibition of 1886, in London, he
was awarded the bronze medal for the construction of a delicate and artis-
tically inlaid round table.34

Because of all this, and certainly because he abominated the bar-


barism of slavery, Captain Moloney accepted the invitation and he went
there to deliver his address at Campos Square. He spoke officially as
representative of Queen Victoria and therefore responsible for a share
– small as it might be – of the British Empire. Presently I cannot look
into the whole argument developed by Moloney to explain the importan-
ce of Great Britain in the introduction of an abolitionist movement that
encompassed the entire western world, culminating in the Abolition of
Slavery in Brazil - the last Christian country to abolish such nefarious
anti-Christian institution. Now I am interested only in pointing out the
more ordinary motivations that might have coexisted in relative harmony
with the great humanitarian, philanthropic and religious motivations.

For Captain Cornelius Alfred Moloney, governor of Lagos, the re-


turn of professionals and qualified agriculturists to Africa seemed to be
extremely healthy and was consequently worthy of receiving official su-
pport. The “Brazilian” repatriates, according to the governor, already re-
presented “an admirable centre of diffusion of progress and civilization”
in the Colony and, therefore, other African freemen or freed men that wi-
shed to leave Brazil would also be welcome in Lagos and would enjoy all
comfort and security under the Empire of the good Queen Victoria. These
were well known opinions, expressed on different occasions.35
34 – LAOTAN, A. B. Op. cit., pp. 9, 10, 14, 15, 21; PAYNE, J. A. Otonba. Payne´s La-
gos and West African Almanac and Diary, 1897, pp. 40-45, “Return of Jurors for 1894”;
VERGER, Pierre. Op. cit., pp. 620, 627; CUNHA, Manuela Carneiro da. Op. cit., pp.
130, 136.
35 – Cf. VERGER, Pierre. Op. cit., p.621.

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Eduardo Silva

Captain Moloney did not mention God to explain the abolition in


Brazil like Cardoso and Payne did. And on that evening, addressing di-
rectly to the returnees gathered at Campos Square, he was almost intimate
with the “Brazilian” community. He counted on the “Brazilian” returnees’
help both to diversify the economy as well as to fight against slavery in
Africa. And he seemed confident of the Brazilians’ eagerness to accom-
plish these difficult tasks.
Invite your fellow countrymen to come and help in the eradication,
root and branch, of domestic and other slavery, and in the restoration
to Africans, in Africa, of that liberty for which they themselves have
so long struggled and have at last gained.

He said opening his heart to the Brazilians gathered at Campos Squa-


re.

Having that possibility in mind and foreseeing the emancipation in


Brazil, Captain Moloney had already founded, a few months earlier, in
January 1888, a Botanic Station at Ebute Metta, which was designed to
acclimatise in Africa the main agricultural commodities of Brazil. Be-
cause of that, at Campos Squares, Moloney goes on to say:
The commercial prosperity they [the slaves] have given to Brazil let
them help to have extended to Africa by the development here with
free labour of the same industries that brought it about, and as the
centre of such industries let them look upon the local Botanic Station,
where they will also find nursed for them coffees, cacaos, cottons and
other useful plants in association with which we want your trained
agriculturists from Brazil.36

In the joyful celebration of the “Jubilee Aguda” some important in-


terests at stake are unveiled. Besides the usual faith in the designs of God,
and the humanitarian awareness of the Philanthropist, Captain Moloney,
in that speech at Campos Square, suggested a much more practical reason
indicating the existence of a project already in progress. The main idea
seemed to have been to attract the most qualified professionals and agri-
36  –  “Address Delivered by His Excellency Governor Moloney on the Night of the 28th.
September, 1888, in the Pavilion, Campos Square, Lagos, on the Celebration of Brazilian
Slavery Emancipation”. The National Archives, London, CO 147/67.

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Notes on the “Agudá Jubilee”: the great Brazilian Celebration
of the Abolition ofSlavery (Brazil and Lagos, West Africa, 1888)

culturists from Brazil and, with their expertise, replicate with free labour
the Brazilian economy in Africa.

Before concluding these preliminary notes I would like to highlight


the two main points that have been discussed in the present research.
Firstly, the struggle against the slavery system was not an isolated one.
Secondly, the research carried out so far has reiterated the capital impor-
tance of the African agency and of a complex social, religious and intel-
lectual network involving both margins of the Atlantic World.

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Texto apresentado em novembro/2016. Aprovado para publicação


em fevereiro/2017.

148 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (474):121-148, maio/ago. 2017.


Negócios impressos: o editor Francisco de Paula Brito e a edição de periódicos, teses
e livros de medicina no Brasil Oitocentista

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Negócios impressos: o editor Francisco de Paula


Brito e a edição de periódicos, teses e livros de
medicina no Brasil Oitocentista
Printed Business: the Editor Francisco de Paula
Brito and the Edition of Periodicals, Theses and
Medical Books in Eighteenth-Century Brazil
Monique de Siqueira Gonçalves1
Tânia Maria Tavares Bessone da Cruz Ferreira2
Resumo: Abstract:
Apresentamos neste artigo uma análise da tra- We present in this article an analysis of the edi-
jetória editorial traçada por Francisco de Pau- torial trajectory traced by Francisco de Paula
la Brito na Corte Imperial, durante o Segundo Brito in the Imperial Court during the Second
Reinado, enfatizando os trabalhos tipográficos Reign, emphasizing thereby the typographic
realizados por esse pioneiro editor nacional na works of this pioneering Brazilian publisher in
área das ciências médicas. Tal aporte se diferen- the area of medical sciences. Such a contribu-
cia das abordagens tradicionalmente cunhadas tion on his part is barely dealt with by research-
sobre este personagem focadas na sua atuação ers, who traditionally focus on his work as a
no ramo dos livros de literatura. Assim, parti- publisher of literature books. We thus start from
mos do pressuposto de que as redes de socia- the assumption that his networks of sociability
bilidade tecidas por ele, em meio a um círculo among a group of socially, economically and
de intelectuais influentes social, econômica e politically influential intellectuals in the city
politicamente na cidade do Rio de Janeiro, fo- of Rio de Janeiro were central to building and
ram centrais na construção e manutenção de keeping his business going. Within the scope of
seus negócios, sendo, neste âmbito, fulcrais as his work, the relations he established with the
relações estabelecidas entre Paula Brito e os doctors of the imperial court played a major
médicos da Corte imperial. Relações essas que role. Such relations enabled him to increase his
possibilitaram o incremento de seus negócios e business and highlighted the importance of the
evidenciam a importância do comércio do livro medical book trade as well as the profitability
de ciências médicas, assim como a rentabilida- generated by the demand for printed matter by
de gerada por uma demanda por impressos por this professional category which had acted as a
esta categoria profissional que atuara como uma true driving force behind the print trade in the
verdadeira “mola propulsora” do comércio de capital.
impressos da capital.
Palavras-chave: Francisco de Paula Brito; His- Keywords: Francisco de Paula Brito; history of
tória do livro e da imprensa; História do Brasil. books and printing press; history of Brazil.

1  – Doutora em História das Ciências – Em pós-doutorado no Programa de Pós-Gra-


duação em História da UERJ – PPGH-UERJ, com pesquisa financiada pela bolsa de pós-
-doutorado Nota 10 da Faperj. E-mail: monique.eco@gmail.com.
2  –  Doutora em História Social, Professora Associada do Departamento de História da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro e do Programa de Pós-Graduação em História
da UERJ – PPGH-UERJ, com pesquisa financiada pela Bolsa Cientista do Nosso Estado –
Faperj. Sócia do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. E-mail: bessone@uol.com.br.

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Monique de Siqueira Gonçalves
Tânia Maria Tavares Bessone da Cruz Ferreira

Apresentação
Durante o período de atuação de Paula Brito (1831-1861) no en-
tão “jovem” mercado livreiro e tipográfico brasileiro, a Corte imperial
vivenciava um processo de crescente ebulição da atividade intelectual,
seja devido aos acontecimentos de ordem política que se sucederam ao
decreto, de D. João VI (1821), que estabelecia o fim da censura prévia
aos impressos − dentre eles, a independência política do país (1822), a
abdicação de Pedro I (1830), o estabelecimento do governo regencial e
as consequentes revoltas provinciais (1831-1840), o golpe da maioridade
(1840) e a subsequente consolidação do Estado imperial através da figura
do Imperador Pedro II3 −, seja pela construção de um aparato institu-
cional de natureza cultural/científico que começou a ser erigido desde a
transferência da Corte portuguesa para o Brasil em 1808, por iniciativa
da Coroa – dentre os quais destacamos a Biblioteca Nacional, o Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro, a Faculdade de Medicina do Rio de Ja-
neiro e o Jardim Botânico (DANTES, 1988; 2001; DOMINGUES, 2001;
FERREIRA; FONSECA; EDLER, 2001).

A partir da segunda década do século XIX, a imprensa começou a


se firmar como um legítimo veículo de propagação de ideias e de forma-
ção de opinião pública, exercendo um papel cada vez mais importante
nas esferas concernentes ao cotidiano político, econômico e cultural da
cidade. Esse processo de legitimação em curso se dava com base em uma
paulatina consolidação de uma “mentalidade abstrata” que conferia à im-
prensa o valor de transmissora de opiniões e informações, mediante um
público leitor marcado fortemente por uma tradição pautada pela orali-
dade (BARBOSA, 2010). Os debates públicos se davam cada vez com
mais intensidade pelas das publicações impressas, que passavam a assu-
mir uma posição central na dinâmica da sociedade carioca, em meio ao
processo de conformação de um espaço público, onde as ideias e opiniões
buscavam legitimação, principalmente por meio da imprensa, no contex-

3  –  Processo histórico estudado, sob diferentes perspectivas, por: MATTOS (1990);


CARVALHO (2003).

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Negócios impressos: o editor Francisco de Paula Brito e a edição de periódicos, teses
e livros de medicina no Brasil Oitocentista

to de construção e consolidação da nação (MOREL, 2005; NEVES, 2003;


BASILE, 2000; LUSTOSA, 2000).

A cidade do Rio de Janeiro se consolidaria, então, no decorrer do


Oitocentos, como o principal porto de entrada e distribuição de livros e
periódicos importados, devido a sua posição econômica (HALLEWELL,
2005). Além disso, no Rio de Janeiro também se expandia um importante
mercado consumidor desses impressos, haja vista a significativa soma
proporcional de leitores4, se comparado às demais Províncias, onde o
analfabetismo predominava.
Tabela 1 – Recenseamento realizado pelo governo imperial em 1872, contendo dados sobre a alfabetização da
população livre do Império do Brasil:

Províncias e Município Homens Mulheres


Neutro Sabem ler e escrever Analfabetos Sabem ler e escrever Analfabetos
1 – Amazonas 6.160 24.823 1.453 24.195
2 – Pará 39.718 88.871 20.677 98.513
3 – Maranhão 44.375 97.567 24.196 117.963
4 – Piauí 17.677 72.645 10.093 78.012
5 – Ceará 58.675 292.249 20.903 317.964
6 – Rio Grande do Norte 23.602 39.119 16.220 92.018
7 – Paraíba 29.224 150.209 11.988 163.279
8 – Pernambuco 92.664 288.901 54.659 316.287
9 – Alagoas 26.046 129.538 15.814 140.870
10 – Sergipe 18.687 56.052 10.447 68.434
11 – Bahia 161.937 468.416 87.135 494.304
12 – Espírito Santo 7.229 22.378 2.503 273.68
13 – Município Neutro 65.164 68.714 33.992 58.101
14 – Rio de Janeiro 69.997 185.809 44.603 189.678
15 – São Paulo 92.977 255.327 48.090 284.348
16 – Paraná 19.014 40.299 12.802 44.056
17 – Santa Catarina 12.927 59.161 7.999 63.731
18 – Rio Grande do Sul 5.592 134.060 38.341 137.659
19 – Minas Gerais 145.297 702.295 78.271 743.413
20 – Goiás 15.699 59.299 6.987 67.788
21 – Mato Grosso 7.114 20.877 3.608 21.951
TOTAL 1.012.097 3.306.602 550.981 3.549.992
Fonte: Recenseamento do Brazil em 1872.

4  –  Mesmo sendo o recenseamento posterior ao período de atuação de Paula Brito no


mercado livreiro, existem fortes indícios de que houvesse, desde a transferência da Corte
para o Rio de Janeiro, uma crescente concentração de letrados nesta cidade que reunia,
além da burocracia imperial, um gradativo número de profissionais liberais (CARVA-
LHO, 2003).

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Monique de Siqueira Gonçalves
Tânia Maria Tavares Bessone da Cruz Ferreira

O mercado livreiro do Rio de Janeiro assumira, pois, a partir de mea-


dos do século XIX, uma feição dinâmica, principalmente devido à utili-
zação dos paquetes a vapor no eixo comercial Império do Brasil-Europa,
onde o Rio ocupava a posição de porto principal. Esta dinamização e
intensificação do transporte marítimo dotara o comércio de livros da ci-
dade de publicações cada vez mais atualizadas, incentivando o cresci-
mento do mercado que, na década de 1850, já contava com a atuação de
35 mercadores de livros, somente nas principais freguesias do centro da
cidade, soma que seria superada na década de 1870, com a presença de
56 comerciantes (GONÇALVES, 2013b, p. 63). Ademais, é importante
destacar que a conformação de um público leitor na cidade que tinha o
maior índice de alfabetizados do Império era resultante da concentração
de uma significativa parcela da burocracia Imperial, representada pelos
bacharéis (CARVALHO, 2003), assim como decorria de uma expressiva
presença de médicos e de estudantes que afluíam de todas as Províncias
do Império para estudar na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro
(criada em 1808)5. Não podemos também desconsiderar que a centra-
lização, de forma geral, das elites política, econômica e intelectual no
Município Neutro da Corte, também justificava a existência de um gran-
de agrupamento de bibliotecas públicas e gabinetes de leitura que, se no
fim da década de 1850 tinham sob sua guarda 45.000 títulos, passariam
para 277.631 títulos em 1889, denotando um considerável incremento
dos acervos públicos (GONÇALVES, 2013b, p. 65).

Trabalhos como o de Ferreira (1997) têm apontado, ainda, para a


existência de significativos acervos bibliográficos formados por particu-
lares, membros da elite intelectual da Corte, notadamente bacharéis e mé-

5  –  Escola Anatômica, Cirúrgica e Médica do Rio de Janeiro (1808); Academia Médico-


-Cirúrgica do Rio de Janeiro (1813); Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro (1832);
Faculdade de Medicina e Farmácia do Rio de Janeiro (1891); Faculdade de Medicina
do Rio de Janeiro (1901); Faculdade de Medicina da Universidade do Rio de Janeiro
(1920); Faculdade Nacional de Medicina da Universidade do Brasil (1937); Faculdade de
Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro (1965). Fonte: Escola Anatômica,
Cirúrgica e Médica do Rio de Janeiro. Dicionário Histórico-Biográfico das Ciências da
Saúde no Brasil (1832-1930). Disponível em: <http://www.dichistoriasaude.coc.fiocruz.
br>. Acesso em: 28/12/2015.

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Negócios impressos: o editor Francisco de Paula Brito e a edição de periódicos, teses
e livros de medicina no Brasil Oitocentista

dicos. Constatação que, certamente, aponta para a existência de um grupo


de intelectuais que atuava como uma “força motriz” que alimentava e
fomentava o crescimento do comércio livreiro na cidade. Além do mais,
encontramos fortes evidências sobre a prática de aquisição de impressos e
formação de acervos pessoais também nos anúncios cotidianos de leilões
publicados nas páginas do Jornal do Commercio, onde, não raramente,
eram relacionadas bibliotecas como parte dos bens leiloados.

O circuito do livro estava, pois, se expandindo no período em que


Paula Brito atuara como tipógrafo e comerciante de livros na cidade do
Rio de Janeiro e a sua inserção em importantes redes de sociabilidades,
compostas por intelectuais nacionais, fora crucial para a construção de
sua trajetória neste negócio. Redes que, no entanto, não seriam suficientes
em meio a um inconstante mercado.

Paula Brito e o mercado editorial


Em 1848, Paula Brito já figurava como um dos principais tipógra-
fos da cidade (com uma prensa mecânica e seis manuais), sendo um dos
principais concorrentes de Villeneuve (que tinha três prensas mecânicas,
quatro manuais e oitenta empregados), da Typographia Nacional (com
uma prensa mecânica, uma manual e 62 empregados) e da Laemmert
(com uma mecânica e seis manuais) (Idem, ibidem, p. 149). De origem
humilde, trabalhou primeiramente como aprendiz na Typographia Nacio-
nal, em seguida, com o livreiro e impressor René Ogier, tornando-se pos-
teriormente compositor do Jornal do Commercio, de Plancher, local em
que chegaria a ocupar o cargo de diretor responsável pelo departamento
de impressão (HALLEWELL, p. 156).

Segundo Paula Brito, ele tinha iniciado a carreira como negocian-


te, com um empréstimo de 400 mil-réis que seu chefe, Plancher, havia
lhe concedido em 1832, tendo ele ainda conseguido dinheiro emprestado,
em diversos momentos, a altos juros, para montar e dar prosseguimento
à sua tipografia (Correio Mercantil, 14.07.1856, p. 2), consolidando-se,
em quase duas décadas, como um dos principais tipógrafos dedicados à

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Monique de Siqueira Gonçalves
Tânia Maria Tavares Bessone da Cruz Ferreira

publicação de obras de autores nacionais, principalmente na área de lite-


ratura e ciências.

Sendo assim, em 1850, ele já ocupava uma posição de prestígio entre


a intelectualidade carioca, sendo proprietário de duas lojas na Praça da
Constituição, a de nº 64 onde estava estabelecida a tipografia e a livraria
(de livros usados e novos, “tanto de instrução como de recreio”), e a de nº
78, onde vendia artigos importados como: papel, tintas, penas, chá, mate,
rapé, objetos de escritório, brinquedos para meninos, cestinhas de palha,
carteiras, charuteiras. Uma grande diversidade de produtos que abrange-
ria, ao longo da década de 1850, artigos de carnaval (incluindo fantasias),
objetos de papelão, madeira, vidro, cristal, couro e fitas; além de cartazes,
caixinhas, escrivaninhas, papeleiras, pastas, tinteiros de porcelana, cha-
rutos de Havana, óculos e até mesmo uma água desinfetante para tirar o
mau cheiro de matérias pútridas em tempo de epidemia de cólera. Interes-
sante notar que, nos diversos anúncios desse empreendimento, presentes
no Correio Mercantil até 1856 (ano em que Brito pediu falência), sempre
se destacava que os produtos que estavam à venda eram importados da
França, o que certamente agregava valor aos artigos ali comercializados.
Além disso, eram constantes os anúncios da venda de bilhetes de peças
de teatro, do aluguel de casas, da contratação de professores de música e
até mesmo da venda ou aluguel de escravas (Almanack Laemmert, 1850-
1856).

O forte viés de comerciante de Paula Brito também se fazia presente


nos anúncios das obras colocadas à venda em sua livraria. Em tempos de
epidemia de febre amarela, era divulgada a venda de “Preces a S. Bene-
dito, santo preto excluído da procissão de cinza, ao qual se atribui a peste
de vômito preto que hoje nos flagela” (Correio Mercantil, 15.04.1850,
p. 3); a “Oração milagrosa contra a peste – contendo as palavras de
S. Zacharias, bispo de Jerusalém, traduzidas do latim” (Jornal do Com-
mercio, 29.03.1850); a “Súplica a Nossa Senhora das Dores, contra pes-
te” (Idem, 08.04.1850); ou mesmo das “Folhinhas de Paula Brito”, con-
tendo a “oração contra a febre amarela” (Correio Mercantil, 14.05.1851,
p. 3). Durante a epidemia de cólera de 1855, anunciava a venda de um

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Negócios impressos: o editor Francisco de Paula Brito e a edição de periódicos, teses
e livros de medicina no Brasil Oitocentista

“Remédio contra a peste e a cólera – Litografia da Estrela do Céu com


uma estampa com suas orações, para pregar na porta do interior das ca-
sas” (Idem, 12.09.1855, p. 3).

No âmbito dos livros de ciências médicas era divulgada, nas páginas


do Correio Mercantil, a venda de uma tradução do opúsculo de auto-
ria do homeopata germânico Hahnhemann, assim como de várias outras
obras de homeopatia de autoria ou traduzidas pelo médico A. J. de Mello
Moraes, muitas vezes voltadas para um público não especializado. Paula
Brito publicava ainda anúncios que visavam angariar subscritores para a
publicação de obras como o “Thesouro Homeopático ou Vade-mecum do
homeopata – método conciso, claro e seguro de curar homeopaticamente
todas as moléstias que afligem a espécie humana e particularmente aque-
las que reinam no Brasil, pelo Dr. Sabino Olegário Ludgero Pinho (mem-
bro de muitas sociedades científicas nacionais e estrangeiras e deputado
da assembleia legislativa provincial de Pernambuco)” (Idem, 24.08.1856,
p. 3).

Também constavam nesses anúncios, pragmaticamente, livros de


médicos brasileiros que tratavam das epidemias reinantes como: a His-
tória da febre amarela epidêmica que grassou no Rio de Janeiro no ano
de 1850, do Dr. José Pereira Rego (Idem, 08.04.1851); a Febre ama-
rela – Tratado sobre a epidemia no Ceará, do Dr. Liberato de Castro
Carreira (Idem, 15.11.1853); e Instruções contra a cólera epidêmica ou
conselhos sobre as medidas gerais que se devem tomar para preveni-la
seguidos do modo de tratá-la desde sua invasão, do Dr. A. J. Peixoto
(Idem, 22.07.1855). Além de uma obra, em dois volumes, de autoria do
Dr. Eduardo Pereira Ferreira França, da Bahia, intitulada Investigações
de psicologia.

As propagandas veiculadas no Correio Mercantil também nos dão


conta da atuação de Paula Brito no ramo dos periódicos médicos espe-
cializados, sendo referenciadas a impressão e venda dos seguintes títulos:
A Gazeta dos Hospitais (1850), redigida pelo Dr. Carlos Luiz de Saules, o

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Tânia Maria Tavares Bessone da Cruz Ferreira

Annaes Brasilienses de Medicina6 (1850-1858 – jornal oficial da Acade-


mia Imperial de Medicina). Além desses, a sua tipografia era responsável
pela impressão e venda da Revista do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, e dos periódicos: Guanabara, Marmota Fluminenses, A car-
teira do meu tio, O mosquito, A ilustração de Paris e O Reformista.

Entre os títulos da livraria leiloada por Paula Brito em 1857,7 en-


contramos os seguintes títulos relacionados às ciências médicas: Annaes
Brasilienses de Medicina8; História da febre amarela e Memória sobre a
febre amarela, 1850 e 1851, de José Pereira Rego; Considerações sobre
o cholera, de autor não identificado; O cholera morbus (quatro obras di-
versas, sem autoria); Elementos da pharmacia, sem autoria identificada;
Instruções contra o cholera, sem autoria identificada; Investigações de
psychologia, de Eduardo Ferreira França; Memória sobre a ligadura da
Aorta, de Candido Borges; Compendio de pathologia externa, de Aranha
Dantas; Lições de chimica, Memória sobre as instituições médicas, Guia
das mulheres pejadas, O médico homeopata, Organon de Hahnemann,
Conselhos às Maes de família, todos esses sem autoria identificada; além
de: diversos folhetos sobre o cholera morbus e muitas teses.

6  –  Paula Brito atuara, ao lado de Sigaud, na reformulação do Annaes Brasilienses de


Medicina, em 1850, permanecendo como impressor desse jornal até 1858, ano em que
decidira deixar o empreendimento sob o argumento de que esse negócio estava lhe dando
prejuízos. Afirmação que, se por um lado, denota que estava enfrentando dificuldades
financeiras em seu negócio, por outro indica que continuara atuando no ramo tipográfico
mesmo após a falência da Empresa Dous de Dezembro.
7  –  O leilão dos bens da empresa Dous de Dezembro ocorreu no dia 28 de abril de 1857,
às 4 horas da tarde, na Praça da Constituição, n. 64. Faziam parte deste leilão (por liquida-
ção da empresa), autorizado por Paula Brito e realizado pelo leiloeiro C. Bittancourt, toda
sua livraria, oficinas de estamparia, encadernação e litografia, grande porção de obras en-
cadernadas (brochura), grande porção de músicas, assim como o prédio de nº 68. Catálogo
do Leilão. In: Arquivo Nacional – Coleção de Processos Criminais (NA) – Partes: BRITO,
Francisco de Paula (réu) e BELMONT, Joaquim Ferreira da Cruz (autor) – Execução
judicial – 1857-1857 – Nº 1885 – Caixa 1832 – Maço 0.
8  –  “sendo uma imensidade de folhetos desde 1834 até 1855, formando cada coleção de
12 volumes um jogo completo” (informação retirada do folheto de divulgação do leilão
encontrado). Catálogo do Leilão. In: Arquivo Nacional – Coleção de Processos Criminais
(NA) – Partes: BRITO, Francisco de Paula (réu) e BELMONT, Joaquim Ferreira da Cruz
(autor) – Execução judicial – 1857-1857 – Nº 1885 – Caixa 1832 – Maço 0.

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Negócios impressos: o editor Francisco de Paula Brito e a edição de periódicos, teses
e livros de medicina no Brasil Oitocentista

Em meio a livros e periódicos especializados figuravam a impressão


e venda das Folhinhas – “de Santa Theresa, de Santa Presciliana, de todos
os monarcas e pontifícios do mundo, do empregado público, do preto Si-
mão (naufrágio em Pernambuco), do dicionário das flores, de variedades,
de anedotas máximas, pensamentos e etc.” (Idem, 11.10.1855, p. 3) –, de
libretos e de obras de poesia como o livro de Gonçalves de Magalhães,
A Confederação dos Tamoyos. Variedade de atuação que reflete o perfil
da sociedade carioca que, ao mesmo tempo em que abrigava o maior
contingente de médicos e intelectuais dos mais diversos campos, devido
à centralização das principais instituições de cunho científico do Império
na Corte, também era composta por um público leitor diversificado que
consumia obras literárias e de recreação (FERREIRA, 2011).

No entanto, apesar de todos os investimentos realizados na expansão


de seus negócios, muitos reveses seriam enfrentados por Paula Brito a
partir da abertura da Empresa Dous de Dezembro9, fundada em 1850, sob
a proteção do imperador Pedro II, que seria também o primeiro acionista
do negócio que era composto pela “tipografia, litografia, estamparia, ofi-
cina de encadernação, loja de livros, de papel e objetos de escritório, tudo
estimado pelo empresário no valor de 250:000$000, com o prédio nº 68
na Praça da Constituição” (Idem, 14.07.1856, p. 2).

De acordo com Hallewell (2005), a fundação de uma companhia por


ações revelava “como Paula Brito era capaz de enxergar longe, pois tal
iniciativa só se tornara possível exatamente naquele ano, com a promul-
gação do novo Código Comercial” (HALLEWELL, 2005, p. 159). De
fato, essa seria uma estratégia lançada por Paula Brito na tentativa de
agregar capital, dando fôlego ao seu negócio em um período em que exis-
tia uma constante demanda pela modernização das publicações impressas

9  –  O nome da empresa homenageava o imperador Pedro II, com a data de seu aniversá-
rio, e dava destaque, ao mesmo tempo, ao elo existente entre Paula Brito e o Imperador,
que faziam o aniversário no mesmo dia. Não por acaso, Pedro II aceitara figurar como
protetor no negócio recém-criado, dando respaldo político e social a sua existência.

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Monique de Siqueira Gonçalves
Tânia Maria Tavares Bessone da Cruz Ferreira

e que eram necessários grandes investimentos na aquisição de materiais,


pois segundo ele:
[...] Mais de 40 contos de réis consomem mensalmente as nossas im-
prensas só no gênero – papel! – Ora, cada resma de papel almaço de
peso paga só a direitos, 600 a 1$; e o de imprimir 1$200 a 2$400; cada
libra do tipo ordinário 200 a 400 réis; letras escolhidas 600 a 1$000, e
assim por diante. Cada ramo de indústria que depende da arte tipográ-
fica, consome imenso material, e tudo isto paga mui crescidos direitos
alfandegais [...] (Correio Mercantil, 11.04.1855, p. 2).

Objetivando capitalizar a soma de 60 contos de réis com a venda das


ações da então recém-criada Empresa Typographica Dous de Dezembro,
em dezembro de 1850, Paula Brito apresentara o seguinte plano com o
objetivo de atrair investidores: os 60 contos de réis seriam divididos em
150 ações de 400 mil-réis cada, sendo que este capital renderia dividen-
dos de 6% ano que seriam pagos aos investidores, metade em junho e a
outra metade em dezembro de cada ano. Além dos juros estipulados, os
acionistas receberiam gratuitamente um exemplar de qualquer jornal que
fosse impresso à custa da empresa. Assim, a fim de afiançar o pagamento
dos juros aos investidores, Paula Brito hipotecava os estabelecimentos
que tinha na Rua da Constituição, nº 64, 66 e 7810, assim como todos os
demais bens que viessem a pertencer a ele11.

Já em 1855, levando-se em consideração as matérias publicadas


por Paula Brito nas páginas do Correio Mercantil, reclamando contra as
dificuldades enfrentadas pelos empreendimentos tipográficos no Brasil
10  –  Em algumas fontes consta a propriedade de nº 68 e em outras, a de nº 78. Não con-
seguimos identificar se Paula Brito era dono dos dois espaços ou se há equívocos na utili-
zação variada de uma ou outra numeração. No anúncio de leilão dos bens de Paula Brito,
quando da falência da Dous de Dezembro, consta como uns dos bens a serem leiloados,
a propriedade de nº 68. No entanto, no inventário de Paula Brito são avaliados, pela sua
viúva, as propriedades de nº 64 (estabelecimento tipográfico) e 68 (loja de livros) da Rua
da Constituição. Por outro lado, em matérias e anúncios de jornal, aparecem as numera-
ções 64 e 78. Assim, como os dados são divergentes, optamos por utilizar a numeração
que consta na fonte utilizada.
11  –  “Plano da Empreza Typographica Dous de Dezembro” In: Arquivo Nacional – Co-
leção de Processos Criminais (NA) – Partes: BRITO, Francisco de Paula (réu) e BEL-
MONT, Joaquim Ferreira da Cruz (autor) – Execução judicial – 1857-1857 – Nº 1885
– Caixa 1832 – Maço 0.

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Negócios impressos: o editor Francisco de Paula Brito e a edição de periódicos, teses
e livros de medicina no Brasil Oitocentista

(destacando entraves relacionados aos gastos com a compra de materiais


importados e com direitos da alfândega), assim como os seus reiterados
pedidos públicos para que o Imperador avaliasse os estatutos de uma
nova empresa denominada Empresa Litteraria Dous de Dezembro (que
incorporaria a empresa Dous de Dezembro) com o intuito de se recapi-
talizar para pagar os juros que, já naquela época, estavam sendo cobra-
dos judicialmente pelos acionistas da empresa, percebemos a grave crise
econômica enfrentada por Paula Brito12 que, na época, argumentava ter
80 empregados internos e externos. Com esse novo estatuto, Paula Brito
pretendia transformar a empresa em associação, com a emissão de 2.500
ações de 200 mil-réis (objetivando angariar um capital de 500:000$000),
oferecendo juros de 10% em dinheiro ao ano (Jornal do Commercio,
15.07.1855, p. 2). Oferta que tinha como objetivo atrair investidores para
que pudesse pagar suas dívidas e dar novo fôlego ao seu empreendimen-
to, evidenciando que eram limitadas as perspectivas de financiamento na
Corte em meados do século XIX.

Nos estatutos dessa nova associação, eram adicionados importantes


elementos retóricos de legitimação como componentes de seus objeti-
vos: “o desenvolvimento da arte tipográfica, o auxílio ao progresso das
letras, a proteção aos autores” (ibidem). Com tais premissas, Paula Brito
colocava-se como promotor de uma produção literária e científica nacio-
nal, consolidando a sua figura mediante o Imperador e os intelectuais da
Corte, com o intuito, provavelmente, de se apoiar nos laços de sociabili-
dade construídos por ele até aquele momento, para salvar o seu negócio.

O pedido de aprovação do novo Estatuto pelo Imperador era cons-


tantemente reiterado em seguidas publicações, como se pode perceber
pelo trecho da matéria não assinada, mas muito provavelmente de autoria

12  –  Somente no ano de 1854 foram abertos e julgados quatro processos judiciais contra
Paula Brito com vistas ao pagamento de juros de ações e de dívidas com a compra de
materiais, sendo os autores as empresas Saportas & Cia. Hanquet & Cia. e os acionistas
Bernardino Ribeiro de Souza Guimarães, Francisco José Gonçalves Agra. Levantamento
realizado no Arquivo Nacional.

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Monique de Siqueira Gonçalves
Tânia Maria Tavares Bessone da Cruz Ferreira

de Paula Brito, publicada na seção de “Publicações a pedido” do Correio


Mercantil:
A Empresa Literária do Sr. Paula Brito” – Os estatutos submetidos à
consideração do governo, baixaram-se já ao Exm. Sr. Procurador da
corte, como é de estilo; e nós fazemos votos para que, quanto antes,
afim de que para o futuro não se diga, como nos consta que disse o
Sr. Conselheiro Castilho: “Mandei imprimir obras minhas em Portu-
gal, porque não achei nesta Corte tipografias, que convenientemente
as publicassem.” Com isso o ilustre escritor não quis dizer que não
hajam boas tipografias entre nós, nem que não imprima muito bem;
quis unicamente fazer saber ao público, que os impressores aqui não
se acham, como na Europa, na conveniente posição de fazerem os
autores vantajosos contratos, tornando-se assim verdadeiros edito-
res. Se a Empresa litteraria, assentada sobre as bases da – Empresa
Dous de Dezembro – tiver uma boa direção (que depende da esco-
lha), será incontestavelmente de muita vantagem, tanto para o país,
como para os seus acionistas; porque, tendo a associação um fundo
de 5.000:000$000, deixa cautelosamente 200 em caixa (1.000 ações),
que só serão emitidas para montar uma folha diária, comprar algumas
das existentes e etc.; reserva de 20:000$000 para comprar manuscri-
tos, premiar autores, comprar livros estrangeiros vendáveis no país e
fazer a impressão de obras úteis, popularizando–as o mais possível;
ficando ainda 30:000$000 para a fundição de tipos, contrato de ar-
tistas gravadores em madeira, fabrico de cartas de jogar e para tudo
o mais que for interesse para a empresa, de utilidade para o país, e de
vantagem para os homens de letras, que só assim ficarão com alguma
esperança de melhor futuro. Pelo favor concedido à empresa, pelos
poderes de estado, fica o governo com o direito de servir-se de todos
os estabelecimento dela, pelos mesmos preços dos estabelecimentos
nacionais, tornando-se, além disso, todas as oficinas da – Empresa
Litteraria – verdadeiras escolas para os filhos do país, o que hoje já
em grande parte se verifica na – Empresa Dous de Dezembro (Idem,
27.04.1855, p. 2).

A requisição para a criação da Empresa Literária seria ainda entregue


pessoalmente ao Imperador por Paula Brito, em maio de 1855, quando do
oferecimento da edição da obra de Gonçalves de Magalhães, A confede-
ração dos Tamoyos, demonstrando todo o esforço desempenhado pelo ne-

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Negócios impressos: o editor Francisco de Paula Brito e a edição de periódicos, teses
e livros de medicina no Brasil Oitocentista

gociante para dar continuidade ao seu empreendimento. O Estatuto seria


aprovado no mesmo mês pelo governo.

Em 1856, uma associação de acionistas da Dous de Dezembro se


reuniria para tentar salvar a empresa, com base na requisição feita por
Paula Brito, que conseguira a permissão do governo para a criação de
uma nova companhia. De acordo com tais acionistas, caso a associação
não atuasse no custeio e melhoramento dos estabelecimentos e na amor-
tização da dívida, a ruína da empresa estaria próxima13. Assim, realiza-
vam as seguintes modificações: os fundos da empresa passariam para 300
contos (em vez de 500); era aceita a constituição de uma nova empresa; a
associação ficava com os estabelecimentos de Paula Brito, com a exceção
dos de nº 64 e 78; Paula Brito teria direito à porcentagem de 20% do ren-
dimento líquido da empresa, ocupando o cargo de administrador (Idem,
14.07.1856, p. 2).

Como parte da ata dessa reunião que era publicada no Correio Mer-
cantil, eram apresentados os rendimentos anuais angariados em média
pelas oficinas e lojas que compunham a empresa, sendo eles expostos a
seguir para se ter uma noção dos rendimentos alcançados com um negó-
cio desse ramo:
Tabela 2 – Rendimentos da Empresa Tipográfica Dous de Dezembro
Área Lucro
Tipografia 4.500 contos de réis
Litografia e estamparia 700 mil-réis
Encadernação 400 mil-réis
Loja de livros 400 mil-réis
Loja de papéis e objetos de escritório 2.000 contos de réis
Total 8.000 contos de réis
Fonte: Correio Mercantil, 14.07.1856, p. 2.

Os números reproduzidos acima nos revelam a grande relevância


dos trabalhos de impressão tipográfica para o negócio de Paula Brito, vis-
to que correspondiam a mais de 50% dos lucros da empresa. Tais ganhos
vinculavam-se, pois, à impressão de obras completas de autores nacio-
13  –  A dívida de Paula Brito já estava estimada em 150 mil contos de réis, sendo 70 mil
contos de réis em dívidas com acionistas e 80 mil contos de réis em dívidas particulares.

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Monique de Siqueira Gonçalves
Tânia Maria Tavares Bessone da Cruz Ferreira

nais, a libretos de música, à impressão de periódicos e mesmo de teses de


doutoramento de formandos da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro
que, como veremos mais adiante, compunham uma soma significativa de
seus trabalhos.

No entanto, não tardaria e em 19 de outubro de 1856, três meses após


a reunião de acionistas, Paula Brito anunciaria em todos os jornais que
estava suspendendo os trabalhos das suas oficinas e convocando os acio-
nistas para liquidar a empresa. Assim, sucumbido pelas dívidas, cobradas
judicialmente por acionistas e particulares, anunciava o leilão da Dous de
Dezembro a ser realizado no dia 28 de abril de 1857, às 4 horas da tarde,
na Rua da Constituição, nº 64, incluindo a livraria, as oficinas de estam-
paria, encadernação e litografia, além de grande porção de obras enca-
dernadas (em brochura), grande porção de músicas, assim como o prédio
nº 68. O catálogo do leilão apresentava nominalmente quase todas as
obras impressas presentes em seus estabelecimentos, fornecendo os se-
guintes detalhes: “Uma litografia completa; uma estamparia com cerca de
150 chapas de cobre de todas as invocações; uma oficina de encaderna-
ção; e o prédio nº 68, com duas frentes. Mais de 6.000 músicas diferentes,
como polcas, valsas, scotiches, romances, modinhas e etc., assim como
cerca de 2.000 figurinos dos já distribuídos com a Marmota. Mais de
20.000 estampas de santos, santas e virgens, retratos, caricaturas, etc. Há
certamente cem obras diversas, cujo número de exemplares subirá de 35
a 40.000 volumes.”14

Liquidado o seu principal patrimônio, Paula Brito ainda continuaria


atuando como negociante na cidade do Rio de Janeiro até a sua morte, no
ano de 1861, como tipógrafo e livreiro (em proporções muito menores).
Sua esposa, já viúva, daria continuidade aos seus negócios, tendo feito,
até 1864, a impressão de algumas poucas teses de doutoramento em me-
dicina (ver Tabela 3). Sua ascensão no mercado livreiro e mesmo a conti-
nuidade de sua atuação na Corte, após a falência da Dous de Dezembro,

14  –  Catálogo do Leilão. In: Arquivo Nacional – Coleção de Processos Criminais (NA) –
Partes: BRITO, Francisco de Paula (réu) e BELMONT, Joaquim Ferreira da Cruz (autor)
– Execução judicial – 1857-1857 – Nº 1885 – Caixa 1832 – Maço 0.

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Negócios impressos: o editor Francisco de Paula Brito e a edição de periódicos, teses
e livros de medicina no Brasil Oitocentista

evidenciam, para nós, a importância da inserção de Paula Brito em redes


de sociabilidades de intelectuais da Corte, que permitiriam a um mula-
to − descendente de uma família humilde de artífices, que se inseriu no
mercado sem nenhum capital inicial −, prosperar por algum tempo, sem
a ajuda de capitais estrangeiros, com escassas fontes de financiamento
nacional e em um nicho mercadológico bastante restrito, devido à forte
concorrência de editores e livreiros europeus e, principalmente, aos altos
índices de analfabetismo, que significavam uma barreira para a expansão
do mercado.

Paula Brito e a imprensa médica da Corte


Se, na trama das lutas políticas, a imprensa assumia um caráter cada
vez mais central, sendo o palco de disputas cotidianas, não seria diferente
no tocante aos embates jurisdicionais, encetados no campo socioprofis-
sional15 da medicina. O processo de institucionalização das ciências, ini-
ciado com a transferência da Corte, se intensificara com o passar dos anos,
sofrendo considerável incremento com a criação de sociedades científi-
cas, a exemplo da Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro (SMRJ). Esta
fora fundada em 1829, por um pequeno grupo, composto por médicos e
cirurgiões16 que atuavam na Santa Casa de Misericórdia e que se uniram

15  –  Andrew Abbott (1998) parte do pressuposto de que as profissões existem em sis-
tema − não devendo ser analisadas como unidades isoladas −, destaca que as profissões
estabelecem interações neste sistema e que estas se traduzem em competições inter e entre
profissões, assim definidas conceitualmente como disputas jurisdicionais. Disputas que se
dão, segundo Abbott, sob as bases objetivas (técnicas) e subjetivas (cultura) que, por sua
vez, interagem entre si. Neste âmbito, as reivindicações jurisdicionais se desenvolveriam
com vistas à obtenção do monopólio profissional.
16  –  Foram fundadores da SMRJ: Joaquim Cândido Soares de Meirelles, Luís Vicente
de Simoni, José Francisco Xavier Sigaud,  José Martins da Cruz Jobim, João Maurício
Faivre, Jacintho Rodrigues Pereira Reis, Antônio Américo D’Urzedo, Octaviano Maria
da Rosa, Cristóvão José dos Santos, Antônio Martins Pinheiro, Antônio Joaquim da Costa
Sampaio, José Maria Cambuci do Valle, José Augusto Cezar de Menezes, João Alves Car-
neiro, Fidélis Martins Bastos, Joaquim José da Silva e José Mariano da Silva. Seu quadro
de membros honorários ficou constituído inicialmente por José Bonifácio de Andrada
e Silva, Martim Francisco Ribeiro de Andrada, Antonio Ferreira França, Karl Friedrich
Philipp von Martius e Isidore Geoffroy Saint-Hilaire. (Fonte: Sociedade de Medicina do
Rio de Janeiro. Dicionário Histórico-Biográfico das Ciências da Saúde no Brasil (1832-
1930). Acesso em: 08/04/2015. Disponível em: http://www.dichistoriasaude.coc.fiocruz.

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Monique de Siqueira Gonçalves
Tânia Maria Tavares Bessone da Cruz Ferreira

em prol da formação da SMRJ, com o objetivo de fazer frente aos cons-


trangimentos e restrições impostos pelo monopólio profissional exercido
pelos médicos portugueses (FERREIRA; MAIO; AZEVEDO, 1998)17.

O primeiro periódico médico especializado editado no Brasil, o


Propagador das Ciências Médicas (1827-1828), estava, pois, ligado ao
grupo que fundara a SMRJ e os seus sucessores seriam porta-vozes des-
sa Sociedade, depois transformada em Academia Imperial de Medicina.
Seguiu-se à formação da Sociedade a impressão do Semanário de Saúde
Pública18, sucedido pela Revista Médica Fluminense (1833-1841), depois
denominada Revista Médica Brasileira (1841-1843), em seguida Annaes
de Medicina Brasiliense (1845-1851) e, finalmente, Annaes Brasiliense
de Medicina (1851-1889). Cabe destacar que Francisco de Paula Brito
atuara como editor e impressor de todos os números da Revista Médica
Brasileira, do Annaes de Medicina Brasiliense e do Annaes Brasilien-
ses de Medicina, até o fim de 1858 (perfazendo um total de 25 anos de
atuação), quando o periódico passou a ser impresso pela Typographia de
Peixoto, mudando de tipografia, depois disso, frequentemente.

Tais publicações se constituíam como verdadeiros agentes de um es-


forço empreendido pela elite médica19 carioca em um processo de busca
pela legitimação socioprofissional da “medicina oficial”, diante de outras
“artes de curar”. Suas páginas assumiam uma importância estratégica no
que se referia à profissionalização da medicina, haja vista o papel central
exercido pela imprensa como um veículo de ilustração e formação de
“opinião pública”, em meio a um processo mais amplo de luta jurisdicio-

br/iah/pt/verbetes/socmedrj.htm).
17  –  Tal sociedade deu origem à Academia Imperial de Medicina (1835), posteriormente
denominada Academia Nacional de Medicina (1889).
18  – Não por mero acaso, tanto o Propagador quanto o Semanário eram impressos na
Typographia Imperial de E. Seignot-Plancher, na qual, como já destacamos, Paula Brito
tinha trabalhado.
19  –  A elite médica não é formada necessariamente pelos melhores médicos, mas por
aqueles indivíduos que tradicionalmente concentram em suas mãos os diferentes tipos de
poder profissional. Ver sobre o conceito de elite médica no artigo de Weisz. Les transfor-
mations de l’Elite medicale em France. Actes de la Recherche en Sciences Sociales, nº 74,
pp. 33-46, sept. 1988.

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Negócios impressos: o editor Francisco de Paula Brito e a edição de periódicos, teses
e livros de medicina no Brasil Oitocentista

nal da medicina em busca da hegemonia profissional (FERREIRA, 2004;


GONÇALVES, 2013).

Conforme destaca Ferreira (2004), o advento da imprensa médica no


Brasil (no fim da década de 1820) fora resultado de uma simbiose entre
negócio (advento do mercado editorial), política (disputa por hegemo-
nia) e ciência (institucionalização e afirmação científica da medicina). E,
acrescentamos, tais empreendimentos seriam forjados em uma sociedade
na qual as relações pessoais, permeadas pelas redes clientelares, seriam
essenciais na definição dos papéis desempenhados pelos indivíduos, a
exemplo de Paula Brito.

As relações de amizade tecidas entre Paula Brito e alguns membros


da Academia Imperial de Medicina e da Faculdade de Medicina do Rio de
Janeiro são, pois, a nosso ver, centrais para a compreensão da sua atuação
como editor da revista da Academia durante 25 anos. Tivemos acesso a
alguns pormenores referentes à atuação de Paula Brito como impressor
desse jornal que nos atentam para a importância das relações pessoais es-
tabelecidas por Paula Brito para o sucesso, mesmo que temporário, do seu
negócio. Eles estão presentes nas edições do Annaes Brasilienses de Me-
dicina, a partir da edição de junho de 1856, quando foram publicadas ses-
sões ocorridas na Academia, referentes ao mês de maio de 1854. Naquela
ocasião, Paula Brito demandava um aumento da quantia recebida para a
realização do serviço de impressão do jornal, alegando ser a soma de 500
réis, então paga, insuficiente para cobrir os custos de impressão, o que
estaria lhe gerando prejuízos, haja vista o pequeno número de assinantes.
Segundo as informações contidas na discussão ocorrida na Academia, não
havia contrato assinado para a impressão da dita publicação, tendo sido o
acordo feito “de boca” e, pelo qual, o editor havia se disposto a correr o
risco de ter lucros ou mesmo prejuízos, mediante a venda de exemplares
por sua conta a prováveis assinantes. Apesar de reconhecerem a situação
de crise enfrentada por Paula Brito, os membros da Academia argumenta-
vam ser impossível dobrar a quantia a ser paga, segundo lhes requisitava
o editor, visto que a subvenção total recebida pela Academia, do governo
imperial, era de somente 2 contos de réis. Por ora, negavam o aumento,

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Monique de Siqueira Gonçalves
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além de reivindicarem que os números que estavam em atraso fossem


entregues – ao que Paula Brito respondera asseverando que assumiria a
impressão do jornal somente até o fim daquele ano (Annaes Brasilienses
de Medicina, junho de 1856, p. 9).

Apesar da postura um tanto inflexível transcrita nas páginas do An-


naes a respeito do atraso nas impressões do jornal, Paula Brito continua-
ria a atuar como impressor dessa publicação pelos próximos quatro anos.
Em sessão de 12 de abril de 1858, o editor voltaria a requisitar o aumento
de seu pagamento, destacando os prejuízos obtidos e pedindo, inclusive,
um ressarcimento pelas suas perdas. Apesar de negarem a compensação,
alegando que Paula Brito aceitara o risco ao imprimir o periódico, pro-
punham a utilização de 500 réis que estavam disponíveis, como reserva
no caixa da instituição, para cobrir a impressão dos números daquele ano.
Tal concessão marcaria o fim do “contrato” da Academia com o impres-
sor (Annaes Brasilienses de Medicina, março de 1858, p. 40). Esse rom-
pimento se sucedia ao processo de falência enfrentado pelo editor desde
fins de 1856 e que acontecia em meio a uma grave crise profissional da
medicina que afetou, profundamente, o funcionamento da Academia20.

Os laços de sociabilidade construídos por Paula Brito na Corte impe-


rial, por meio da Sociedade Petalógica – fundada pelo editor no início da
década de 1830 (GODOI, 2014; MARTINS, 2013) – foram, acreditamos,
vitais na construção e manutenção do seu desempenho como editor do pe-
riódico da Sociedade de Medicina, depois Academia Imperial Medicina;
ressalta-se a relação estabelecida entre Brito e Joaquim Candido Soares
Meirelles, editor desse periódico até 1840 (MARTINS, 2013). Provavel-
mente, figuravam outros médicos, membros da Faculdade de Medicina
do Rio de Janeiro e da Academia Imperial de Medicina, entre os membros
da Petalógica, haja vista a sinalização, por parte de analistas, da adesão de
mais de 100 pessoas a esta Sociedade, dentre as quais figurariam muitos
médicos (MARTINS, 2013).

20  –  Mais informações, ver: EDLER (1992).

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Negócios impressos: o editor Francisco de Paula Brito e a edição de periódicos, teses
e livros de medicina no Brasil Oitocentista

Mesmo que de forma irônica, Paula Brito expunha, em uma matéria


da Marmota Fluminense, as redes clientelares e de amizade formadas por
meio da Sociedade Petalógica, − que tinha cunho recreativo e que naque-
la época já se reunia há cerca de 20 anos −, evidenciando o seu papel em
meio às redes de sociabilidades da elite política e intelectual da Corte:
[...] Quereis um Médico, um Advogado, um Procurador, um Padre, um
Militar, um Artista, enfim, uma Autoridade política, civil ou militar,
desde o inspetor do quarteirão, até às vezes o Ministro de Estado?...
procure-o na Sociedade Petalógica, que achareis a entidade dos vossos
desejos. Já vedes, pois, amigo leitor, que de benefícios não terá feito
esta útil instituição! Saem dela Patronos, empenhos, empregados, em-
pregos, tudo, enfim, de que carece, ou que a ela recorre, ou o que nela
toma parte.

As relações pessoais, muito provavelmente, também exerciam um


peso muito grande quando da escolha, realizada por doutorandos, da ti-
pografia que seria responsável pela impressão de suas teses. Assim como
tais afinidades deveriam influir na realização de qualquer outro tipo de
trabalho tipográfico, a exemplo do trabalho de impressão de Memórias21
e Discursos proferidos em ocasiões solenes. Pela tabela apresentada a
seguir, resultante de um levantamento realizado na base de dados da Bi-
blioteca Nacional22, podemos asseverar a significância deste acervo em
meio a um total de 385 resultados relativos ao acervo impresso por Paula
Brito e resguardado pela instituição.

São 110 títulos na área de medicina (ver Tabela 3), onde constam,
como autores, os nomes de alguns dos mais influentes médicos atuantes
na cidade do Rio de Janeiro e também membros da Academia Imperial de
Medicina como: Roberto Jorge Haddock Lobo, José Pereira Rego (barão
do Lavradio), Luiz Vicente De Simoni, Francisco de Paula Menezes, José

21  –  As Memórias eram dissertações de cunho científico apresentadas visando à partici-


pação em sociedades científicas. Elas eram apresentadas, inclusive, como requisito para
aqueles que queriam concorrer a um lugar na Academia Imperial de Medicina.
22  –  A Biblioteca Nacional recebia um exemplar de cada tese defendida na Faculdade
de Medicina do Rio de Janeiro, assim como as bibliotecas da Academia de Medicina e
da Faculdade de Medicina. Como só nos foi possível fazer o levantamento no acervo da
Biblioteca Nacional, acreditamos que alguns títulos possam estar fora desta listagem.

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Monique de Siqueira Gonçalves
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Maria de Noronha Feital e Honório José da Cunha Gurgel do Amaral.


Cabe registrar que os três primeiros atuaram, ainda, como editores do
Jornal da Academia Imperial de Medicina, em momentos diferentes, o
que nos indica para a existência de relações pessoais entre Paula Brito
e esses médicos. O nome de outras figuras de relevância, membros da
elite política e intelectual da Corte, também constavam desta lista, como:
Joaquim Manoel de Macedo e Bernardino José Rodrigues Torres, entre
outros que, apesar de não clinicarem, tinham formação em medicina.
Tabela 3 – Teses, livros e memórias de medicina editados por Francisco de Paula Brito:23

Título Autor Ano


1 – Dissertação sobre a meningite e sua relação com a en- João José Pimentel 1838
cefalite
2 – Considerações sobre a percussão e auscultação aplica- Joaquim Marcos d’Almeida Rego 1838
das ao estudo das moléstias de pulmão e de pleura
3 – Dissertação sobre a hidrocele da túnica vaginal Camilo José de Moura 1838
4 – Dissertação sobre os fenômenos obtidos pelos diversos José Pereira do Rego (barão do La- 1838
métodos de exploração do coração [...] vradio)*
5 – A afecção scirrho-cancrosa [sic] João Pereira da Silva Borges Forte 1839
6 – A degeneração cancerosa dos ossos em geral, ou oste- Francisco de Paula Menezes 1839
ossarcoma e suas diversas formas
7 – A hipocondria José Antonio Murtinho 1839
8 – Algumas proposições em medicina José Maria de Noronha Feital 1839
9 – Considerações sobre as febres intermitentes [...] Tristão Candido Mayer 1839
10 – Dissertação sobre a encefalite Manoel Pacheco da Silva
11 – Dos abcessos subperitoneais [sic] da fossa ilíaca Francisco do Paula Menezes 1840
12 – Considerações gerais sobre o escorbuto Marcolino José de Sousa 1842
13 – Considerações sobre o lábio leporino congenital [...] Joaquim Januario Carneiro 1842
14 – Discurso sobre a importância da cirurgia militar, recitado Francisco de Paula Menezes 1842
perante o Imperador na sessão pública da Academia Imperial
de Medicina, a 30 de junho de 1842.
15 – Dissertação crítica sobre a homeopatia José de Calasans de Andrade 1842
16 – Dissertação sobre a trepanação Gaspar José Ferreira Lopes 1842
17 – Proposições sobre a simpatectomia [sic] Antonio Xavier Balieiro 1842
18 – A pneumonia aguda e crônica Cirilo José Pereira de Albuquerque 1843
19 – Considerações acerca da música e suas influências Joaquim Manoel de Macedo 1843
sobre o organismo
20 – Considerações gerais sobre a epistaxe [sic] Januário José da Silva 1843

23  –  Levantamento realizado no acervo da Biblioteca Nacional. Algumas obras podem


não estar presentes neste levantamento, haja vista a impossibilidade de realização de um
levantamento completo no acervo da Biblioteca da Academia Nacional de Medicina que,
durante a realização da presente pesquisa, estava fechada para obras.

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Negócios impressos: o editor Francisco de Paula Brito e a edição de periódicos, teses
e livros de medicina no Brasil Oitocentista

21 – Considerações gerais sobre o sono [...] Antonio Dias Ferras da Luz 1843
22 – A higiene da mulher durante a prenhez Luiz Manoel de Mattos 1843
23 – Dissertação acerca da higiene da mulher durante a pre- José Antonio Mattos e Silva 1843
nhez
24 – Dissertação acerca do estado patológico [...] João Ricardo Norberto Ferreira 1843
25 – Dissertação médico-filosófica sobre as causas do sui- Bernardino José Rodrigues Torres 1843
cídio
26 – Dissertação sobre a varíola natural Manuel Gomes de Oliveira Pinto 1843
27 – Algumas proposições acerca das feridas Manoel Candido Azambuja May 1844
28 – Algumas proposições sobre os diversos ramos de me- Amaro Manuel de Morais 1844
dicina operatória
29 – Dissertação sobre a operação da pupila artificial ou co- João Dias Ferras da Luz 1844
remorfose [sic]
30 – Proposições sobre os diversos ramos da medicina Carolino Francisco de Lima Santos 1844
31 – A prostituição em particular na cidade do Rio de Janeiro Herculano Augusto Lasance Cunha 1845
32 – Memória acerca da ligadura da artéria abdominal [...] Candido Borges Monteiro Filho 1845
33 – Relatório sobre o estado atual do Hospital Militar Domingos Marinho de Azevedo Ame- 1846
ricano
34 – A convalescença – suas variedades e regime Antonio Ovidio Diniz Junqueira 1847
35 – Breves considerações acerca da amenorreia José Augusto de Oliveira 1847
36 – Algumas considerações higiênicas e médico-legais so- Laurindo Marques de Attaide Mon- 1848
bre o casamento e seus casos de nulidade corvo
37 – Cura do tétano traumático pelo tártaro ermético em alta Roberto Jorge Haddock Lobo 1848
dose
38 – Discurso recitado em presença de S. M. o Imperador na Roberto Jorge Haddock Lobo 1848
seção solene aniversária da Academia Imperial de Medicina
do Rio de Janeiro
39 – Algumas proposições sobre a cefalotomia Joaquim Pereira de Araújo 1849
40 – Algumas proposições sobre a vacina Hermogenio Gonçalves dos Santos 1849
41 – Alguns pontos da eripisela Felix José Barbosa 1849
42 – Breves considerações sobre a metrite aguda João Manuel de Oliveira
43 – A peritonite Miguel Joaquim de Andrade 1849
44 – Algumas considerações sobre a caria Honorio José da Cunha Gurgel do 1849
Amaral
45 – Algumas proposições acerca das ascáridas vermicular Maximiano Antonio de Azevedo e Silva 1849
e lombricoide e seus efeitos mórbidos na economia humana
46 – Algumas proposições acerca das feridas penetrantes José Antonio de Andrade 1849
do peito
47 – Breves considerações sobre a peritonite José Maria de Andrade 1849
48 – Breves considerações sobre a fimose Ansoleto Teixeira de Queiroga 1849
49 – Considerações gerais sobre a aplicação do fórceps Claudionor Antonio de Azeredo Cou- 1849
tinho
50 – Considerações gerais sobre a clorose Antonio Angelo Pedroso 1849
51 – Dissertação sobre a hipocondria Geraldo José da Costa Leal 1849
52 – Dissertação sobre a versão pedálica em geral e em par- José Militão da Rocha 1849
ticular nas apresentações do tronco

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Monique de Siqueira Gonçalves
Tânia Maria Tavares Bessone da Cruz Ferreira

53 – Ligeiras reflexões acerca de pneumonia aguda do adulto Mariano Antonio Dias 1849
54 – Alguns gêneros de asfixia Gervazio Pinto Candido Goes e Lara 1850
55 – Considerações gerais sobre a pericardite Joaquim Luiz do Bomsucesso 1851
56 – Considerações sobre pericardite João Muniz Costa 1851
57 – Da audição José Maria Chaves 1851
58 – Dissertação sobre o método dos infinitamente pequenos João Ernesto Viriato Medeiros 1851
59 – Dissertação sobre os princípios de estática Miguel Joaquim Pereira de Sá 1851
60 – História e descrição da febre amarela epidêmica que José Pereira do Rego (Barão do La- 1851
grassou no Rio de Janeiro em 1850 (livro) vradio)
61 – Ligeiras observações sobre algumas enfermidades dos Manoel Lourenço da Silva 1851
órgãos anexos ao globo ocular [...]
62 – Qual a sede das febres intermitentes? João Venâncio Alves de Macedo 1851
63 – Qual é a composição química dos ossos humanos? Albino da Silva Maia 1851
64 – Qual a sede das febres intermitentes? [...] João Venancio de Macedo 1851
65 – Considerações sobre a floricultura no Rio de Janeiro s/a 1851
66 – Dissertações sobre os princípios fundamentais do equi- Joaquim Alexandro Manso Sayão 1851
líbrio dos corpos flutuantes mergulhados
67 – Tese sobre três pontos dados pela Faculdade [...] Candido José Cardoso 1851
68 – Das lesões que reclamam o emprego da pupila artificial José Teodoro da Silva Azambuja 1851
(..)
69 – Que movimento pode ter lugar nos óvulos antes e com Manuel Faustino Correia Brandão 1851
o fim de serem fecundados [...]
70 – Causas e natureza do estado mórbido denominado in- Francisco de Gran-Mongol de Azeredo 1852
fecção purulenta [...] Coutinho
71 – Juízo crítico sobre a doutrina médica italiana Francisco de Menezes Dias da Cruz 1852
72 – Qual a marcha da putrefação na água doce e na salgada Francisco Correa Leal 1852
em diversas temperaturas [...]
73 – Da catarata, seus meios curativos em geral [...] Leopoldo Nóbrega 1852
74 – Influência da educação física do homem [...] Antonio Francisco Gomes 1852
75 – Dissertações e proposições sobre três pontos [...] José Antonio de Andrade 1853
76 – Relatório e estatística do Hospício de Pedro Segundo Manoel José Barbosa 1853
77 – Tratar dos casos que indicam extirpação do globo ocular Herculano José de Oliveira Mafra 1853
[...]
78 – Das lesões que reclamam a formação da pupila artificial José Antonio de Andrade 1853
[...]
79 – Discurso recitado no ato de inumação dos restos mor- Luiz Vicente De Simoni 1854
tais do conselheiro de Estado José Clemente Pereira
80 – Fisiologia das paixões e afecções (livro em 3 tomos) Alexandre José de Melo Morais 1854
81 – Como tratar dos caracteres físicos e químicos das prin- Mateus Alves de Andrade 1854
cipais preparações de ferro empregadas em medicina
82 – Dissertação sobre os movimentos dos projectus tanto José Antonio da Fonseca Lelsa 1855
no vácuo como no ar
83 – Do diagnóstico dos tumores na região auxiliar Antonio Ferreira França 1855
84 – Expostos da Santa Casa de Misericórdia Manuel Veloso Paranhos Pederneiras 1855
85 – Hemostasia cirúrgica Diogo Antonio de Carvalho 1855

170 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (474):149-176, maio/ago. 2017.


Negócios impressos: o editor Francisco de Paula Brito e a edição de periódicos, teses
e livros de medicina no Brasil Oitocentista

86 – Qual o melhor tratamento da glicosúria [...] Francisco Augusto Pereira Lima 1855
87 – De que elementos se compõem a estatística médica de Saturnino Soares de Meireles 1855
uma cidade? [...]
88 – Relatório acerca do estado sanitário da Vila de Barcelos Marcello Lobato de Castro 1856
e Moura [...]
89 – Infecção purulenta Luís José Dantas Júnior 1856
90 – Oftalmia blenorrágica Manuel José de Castro Caldas 1856
91 – Qual a melhor maneira de reconhecer-se a pedra da Joaquim Corrêa de Figueiredo 1856
bexiga? [...]
92 – Tratar a amputação em geral [...] José Custódio Nunes 1856
93 – Tratar da ergotina em relação às escolas antigas e mo- Nicanor Gonçalves da Silva 1856
dernas
94 – Proposições de alguns ramos das ciências médicas Eusébio Benjamin de Araújo Gois 1857
95 – Dos aneurismas externos em geral [...] Antonio Ferreira França 1857
96 – Crítica da teoria celular Anastácio Luís do Bonsucesso 1858
97 – Operação do trepano Luciano Xavier de Morais Sarmento 1859
98 – A nova medicina fundada sobre a lei fundamental da Desidério José da Costa Tibau 1859
natureza ou segundo a natureza humana
99 – Da hemoptises [...] Comelio Cipriano Alves 1859
100 – Considerações sobre os agentes anestésicos em rela- Duarte Paranhos Schutel 1861
ção à prática da cirurgia [...]
101 – Dos pólipos nasofaringianos [...] Mateus Alves de Andrade 1861
102 – Diagnóstico diferencial entre a mielite e a meningite Emilio Joaquim da Silva Maia 1862
raquidiana
103 – Da febre amarela [...] Antonio Ramos da Costa 1862
104 – Analogia e diferenças entre a febre amarela e a febre Agostinho da Silva Campos 1864
biliosa dos climas quentes
105 – Cólero morbo Juvencio Alves de Sousa 1864
106 – Da hemorragia uterina durante a prenhez Manuel Joaquim da Rocha Frota 1864
107 – Da audição [...] José Maria Chaves 1864
108 – Da blenorragia Serafim Luiz de Abreu 1864
109 – Da blenorragia Francisco Ribeiro Delfino Montezuma 1864
110 – Memória histórica da Faculdade de Medicina do Rio de Francisco Bonifácio de Abreu, barão 1864
Janeiro, no ano de 1863 [...] da Vila da Barra
* Destacamos, com o negrito, o nome dos médicos que compunham a elite médica da Corte Imperial e que ocupa-
vam cargos de prestígio em instituições do Império do Brasil.

Conclusão
Paula Brito é constantemente destacado pela historiografia (GON-
DIM, 1965; RAMOS JR.; DAECTO; MARTINS FILHO; MARTINS,
2013; GODOI, 2014) como um editor pioneiro no mercado tipográfico
brasileiro, com ênfase para a sua atuação na publicação de livros de lite-
ratura. No entanto, o que intentamos, com este artigo, foi chamar a aten-

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (474):149-176, maio/ago. 2017. 171


Monique de Siqueira Gonçalves
Tânia Maria Tavares Bessone da Cruz Ferreira

ção para um aspecto, da trajetória de Paula Brito, ainda não estudado


pelos autores que se dedicaram a biografá-lo: os trabalhos na área das
ciências médicas e que, como procuramos defender, constituíam parte
relevante de seus negócios. A existência de uma Faculdade de Medicina
na cidade deve ser percebida, pois, como um importante mecanismo de
propulsão do mercado livreiro carioca, considerando-se que os membros
dessa categoria profissional eram, além de consumidores de impressos
como livros e periódicos, potenciais clientes. Nesse sentido, reafirmamos
a importância da construção, por Paula Brito, de redes de sociabilidade
entre os intelectuais médicos da Corte para o seu sucesso no mercado
tipográfico brasileiro que, ao menos até o fim do Oitocentos, não contara
com a expressiva atuação de outro editor nacional.

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Texto apresentado em dezembro/2016. Aprovado para publicação


em abril/2017.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (474):149-176, maio/ago. 2017. 175


Os refluxos culturais da emigração portuguesa para o Brasil no fim
do século XIX e início do século XX – um olhar a partir do folclore

177

Os refluxos culturais da emigração portuguesa


para o Brasil no fim do século XIX e no início do
século XX – um olhar a partir do Folclore
Cultural Reflux of Portuguese Emigration to
Brazil in the Late Nineteenth and Early Twentieth
Centuries as Seen from Folklore
Jaime Ricardo Gouveia1
Resumo: Abstract:
A historiografia tem-se dedicado ao estudo do Historiography has been dedicated to the study
fluxo emigratório português ocorrido no fim do of the Portuguese emigration movement that
século XIX e início do século XX. Porém, so- took place in the late nineteenth and early twen-
bre o refluxo desse mesmo movimento, pouco tieth centuries. However, little is known about
se sabe. Este estudo pretende exatamente ajudar the reflux movement. This study intends to fill
a colmatar essa lacuna, procurando responder this gap by addressing the following questions:
às seguintes questões: é possível encontrar no can we find in folklore traces of the accultura-
folclore eco da aculturação dos portugueses tion of Portuguese émigrés in Brazil and their
emigrados no Brasil e respetiva disseminação dissemination through reflux in their country of
no país de origem por meio do refluxo dos origin? What was the impact of this reflux and
mesmos? Que impacto surtiu? Sobre que re- in which regions was it felt? Who were the main
giões? Quem foram os principais fios conduto- drivers of this cultural transfer? We present here
res dessa transmissão? Depois de se apresentar a short framework of the causes, consequences
um breve enquadramento geral das causas, das and statistics of the Portuguese emigration to
consequências e das estatísticas do fenómeno Brazil during the said period, and try to answer
emigratório português para o Brasil durante o these questions by analyzing the lyrics of Por-
período cronológico enunciado, procurar-se-á tuguese popular songs. For this purpose, some
responder a essas questões pela da análise das folk songs from various regions dating from the
letras da música popular portuguesa. Pela pri- beginning of the 20th century were collected for
meira vez se coligirão algumas das modinhas the first time. They reflect how massive emigra-
datadas dos inícios do século XX, provenientes tion was present in the daily life and in the sub-
de várias regiões, que fazem eco de como a emi- conscious of those who stayed, and allow us to
gração massiva estava presente no quotidiano e examine the cultural reflux that emerged from
no subconsciente dos que ficavam e permitem those who left.
estudar o refluxo cultural protagonizado pelos
que partiam.
Palavras-chave: Emigração portuguesa; reflu- Keywords: Portuguese emigration; cultural re-
xo cultural; folclore. flux; folklore.

1 – Doutor em História e Civilização pelo Instituto Universitário Europeu (IUE/Flo-


rença) – Florença. Investigador integrado do CHAM-Universidade Nova de Lisboa e do
CHSC – Universidade de Coimbra. Professor colaborador do curso de pós-graduação da
Universidade Federal do Amazonas.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (474):177-216, maio/ago. 2017. 177


Jaime Ricardo Gouveia

Introdução
A emigração portuguesa para o Brasil no fim do século XIX e pri-
meiras décadas do século XX não é, em termos historiográficos, terra
ignota. Não obstante o tema já ter sido objeto de inúmeros trabalhos de
apurada qualidade científica que, no seu tempo, marcaram o campo, ainda
condensa em si uma forte potencialidade analítica e reflexiva.2 Sinal de
que o assunto continua em voga é o artigo recente intitulado “Escravatura
branca”, da autoria de Susana Serpa Silva3.

Eximir-me-ei de concertar um estado da questão, por ser denso o


volume da produção e por considerar que esse exercício está já bem alin-
dado noutros trabalhos.4 Há que sublinhar, todavia, a importância do apa-
recimento do projeto do – Centro de Estudos da População, Economia e
Sociedade (Cepese). Apoiado por várias entidades, produziu uma plata-
forma on-line com suporte de base de dados dos emigrantes portugueses
para o Brasil, registados de 1835 em diante nos livros de registo de passa-
porte de alguns distritos das regiões portuguesas do norte e centro, inclu-
sive servindo de âncora à organização de seminários, redação de livros de
autoria coletiva e até dissertações de mestrado e doutoramento.

Continua a ser parcial, porém, o olhar que se tem acerca do fenôme-


no da emigração, sobretudo no que diz respeito aos seus refluxos5, sendo
aqui que entronca o problema científico que este estudo pretende resolver,
e que se alicerça nas seguintes questões: é possível encontrar no folclo-
re eco da aculturação dos portugueses emigrados no Brasil e respetiva
disseminação no país de origem pelo refluxo dos mesmos? Que impacto

2  –  Ver SOUSA, Fernando; MARTINS, Ismênia; PEREIRA, Conceição M. (ed.). A emi-


gração portuguesa para o Brasil. Porto: Cepese, Ed. Afrontamento, 2007, pp. 5-7.
3  – Ver SILVA, Susana Serpa. Escravatura branca. Revista de História da Biblioteca
Nacional, Rio de Janeiro, ano 10, n.119, pp. 76-79, 2015.
4  –  Veja-se, entre outros, o trabalho de PEREIRA, Miriam Halpern. A emigração portu-
guesa para o Brasil e a geoestratégia do desenvolvimento euro-americano. In: SOUSA,
Fernando, et al. A emigração…, cit., pp. 41-50.
5  –  Lacuna já notada em MARTINS, Ismênia de Lima. Relações e registros sobre a
emigração portuguesa no Rio de Janeiro. Uma análise crítica das fontes. In: SOUSA,
Fernando, et al. A emigração…, cit., pp. 69-88.

178 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (474):177-216, maio/ago. 2017.


Os refluxos culturais da emigração portuguesa para o Brasil no fim
do século XIX e início do século XX – um olhar a partir do folclore

surtiu? Sobre que regiões? Quem foram os principais fios condutores des-
sa transmissão?

Aflorarei essas questões usando como unidade de análise algumas


letras da música popular portuguesa, datadas dos inícios do século XX,
provenientes de várias regiões, que fazem eco de como a emigração mas-
siva estava presente no quotidiano e no subconsciente dos que ficavam
e permitem estudar o refluxo cultural protagonizado pelos que partiam.

1. Numa Europa de fluxos, um país que se esvaziou


Existe hoje uma pluralidade de fontes, tanto nos arquivos portugue-
se, quanto nos arquivos brasileiros, que permitem estudar a emigração
portuguesa nos fim do século XIX e início do século XX, abarcando,
portanto, o designado período de Grande Emigração (1890-1914)6. Entre
elas, os registos dos passaportes têm sido os que mais atenção têm conci-
tado, por serem fontes acessíveis e prolixas7.

Estes fundos documentais espelham bem o quão massivo foi o trân-


sito de portugueses para fora do seu país. Miriam Halpern Pereira notou
o carácter único dessa emigração, estimando que entre 44 e 52 milhões
de indivíduos fizeram a travessia, estatística superlativa e que se distancia
inequivocamente dos movimentos migratórios ocorridos nos anteriores
sistemas coloniais8.

A partir dos anos 1930 e, mais vigorosamente nas últimas décadas do


século XIX, Portugal viveu um verdadeiro fenômeno de emigração, o que

6  –  Ver MARTINS, Ismênia de Lima. Relações e registos sobre a emigração…, cit.;


KUSHNIR, Beatriz. Traços da imigração portuguesa no acervo do Arquivo Geral da Ci-
dade do Rio de Janeiro. In: SOUSA, Fernando, et al. A emigração…, cit., p. 89-102; MA-
TOS, Maria Izilda S. de. Imigração portuguesa em S. Paulo: perspectivas e possibilidades
de investigação. In: SOUSA, Fernando, et al. A emigração…, cit., pp. 291-304.
7  –  Ver CORDEIRO, Luciano. Emigração. Relatorio e projecto de regulamento. Lisboa:
Imprensa Nacional, 1883, pp. 12-13.
8  –  Ver PEREIRA, Miriam Halpern. A emigração…, cit., pp. 41-50. A autora sublinha,
com toda a propriedade, que emigração e escravatura raramente são abordados em con-
junto e que foi a presença massiva de escravos no sistema colonial que determinou a
reduzida dimensão da emigração europeia e o seu forte controlo nesses períodos.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (474):177-216, maio/ago. 2017. 179


Jaime Ricardo Gouveia

se deveu, em grande medida, a razões conjunturais. Por um lado, o dese-


quilíbrio da estrutura socioeconômica portuguesa, causado por crises
agrícolas como a da filoxera, que depauperara a economia da região do
Douro em torno da produção do vinho. Os jornaleiros, que de várias re-
giões do país sazonalmente aí labutavam, ficaram sem trabalho, acabando
por emigrar. De resto, Ramalho Ortigão, em As Farpas, aludia à questão,
referindo que entre as várias causas que explicavam o fim do antigo Dou-
ro estava o brasileirismo9.

Fig. 1 – Jornaleiros do Douro no ciclo da vindima, inícios do séc. XX.

Fig. 2 – Jornaleiros do Douro na pisa da uva, inícios do séc. XX.

9  –  Ver ORTIGÃO, Ramalho. As Farpas. 4.ª ed. Lisboa: Empresa Literária Fluminense,
1925, p. 142.

180 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (474):177-216, maio/ago. 2017.


Os refluxos culturais da emigração portuguesa para o Brasil no fim
do século XIX e início do século XX – um olhar a partir do folclore

Na longa depressão europeia de 1873-1895, ao contrário de outros


países, já industrializados e com um capitalismo dinâmico, Portugal con-
tinuava a mover-se numa economia quase de Antigo Regime, embora o
comportamento demográfico apresentasse excedentes de mão de obra.10

Fig. 3 – A vida dura no meio rural português, 1880.

Fig. 4 – A vida dura no meio rural português e a abundância de filhos, 1906.

10  –  Ver PEREIRA, Miriam Halpern. A emigração…, cit., pp. 41-50; MARTINS, Ismê-
nia de Lima. Os portugueses e os outros no Rio de Janeiro: relações socioeconômicas dos
lusos com os nacionais e demais imigrantes (1890-1920). Revista do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro, 174, n.º461, pp. 81-103, 2013.

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Jaime Ricardo Gouveia

Por outro lado, esse surto migratório da segunda metade da centú-


ria de oitocentos explica-se pelo apelo do mercado de trabalho, sobretu-
do brasileiro, provocado pela expansão da economia cafeeira no Rio de
Janeiro, Santos e São Paulo; e da borracha na Amazônia; pela extinção
da escravatura e consequente passagem de uma sociedade escravagista
para uma sociedade do trabalho livre; pela pretensão da elite brasileira
aproveitar esse momento para obter o branqueamento da população; pelo
desenvolvimento tecnológico que provocou uma revolução nos transpor-
tes, diminuindo, assim, com a navegação a vapor, a distância entre os
continentes; e pelo investimento em infraestruturas de comunicação11. Si-
multaneamente, verificou-se uma aguerrida política de imigração adotada
pelos governos de ambas as margens do Atlântico. Acrescenta-se a todos
esses fatores, o mito do enriquecimento fácil, apoiado pelo exemplo dos
brasileiros de torna-viagem, abastados, que regressavam ao país de ori-
gem – isto também foi uma forte contribuição. Um derradeiro fator digno
de nota é a rede bem articulada de engajadores, que, com destreza, alicia-
va imigrantes, num negócio altamente lucrativo para os seus mentores e
quase sempre desastroso para quem se deixava engodar, já que, sobretudo
até à abolição da escravatura em 1888, inclusive depois, eram bastante
tênues as fronteiras entre as condições e remunerações do trabalho livre
assalariado e do trabalho escravo12.

Muitos dos emigrantes, movidos pela situação de miséria em que


viviam, e animados a escapar ao serviço militar obrigatório, precipita-
11  – Esta tese do cariz racial de algumas pretensões das elites americanas, que também
vigorava fortemente na Europa, é defendida por PEREIRA, Miriam Halpern. A emigra-
ção…, cit., pp. 41-50.
12  –  Ver PEREIRA, Miriam Halpern. A política de emigração (1850 a 1930). Lisboa:
A Regra do Jogo, 1981, pp. 15-21; WESTPHALEN, Cecília Maria; BALHANA, Altiva
Pilatti. Política e legislação imigratórias brasileiras e a imigração portuguesa. In: SILVA,
Maria Beatriz Nizza da, et al. (eds.). Emigração/Imigração em Portugal. Actas do Co-
lóquio. Algés: Fragmentos, 1993, pp. 17-27; LOPES, Maria Antónia. Emigração e popu-
lação em finais do século XIX. A miragem do Brasil no concelho da Meda (1889-1896).
Revista Portuguesa de História, t. XXXV, pp. 389-417, 2001-2002; FREITAS, Nuno. Co-
munidade Piscatória Poveira: mudanças sociais e emigração em 1896. Póvoa do Varzim:
Câmara Municipal, 2009, capítulo V; MALSCHITZKY, Mário Estevam. O “brasileiro”
enquanto fenómeno social. Coimbra: trabalho apresentado à FLUC – Universidade de
Coimbra, 2010, pp. 7-8.

182 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (474):177-216, maio/ago. 2017.


Os refluxos culturais da emigração portuguesa para o Brasil no fim
do séculoXIX e início do século XX – um olhar a partir do folclore

vam-se na emigração ilegal. Entre 1855 e 1859, a título de exemplo, o


cônsul português no Rio de Janeiro detectou a entrada de 1.203 passagei-
ros clandestinos em face de apenas 452 legais. Os fazendeiros pagavam
antecipadamente a viagem ao trabalhador e o valor era convertido numa
dívida a ser descontada no futuro ordenado, vinculando os emigrantes aos
patrões durante longos anos, senão mesmo toda a vida, instaurando um
fenômeno de “escravatura branca”, como defensou há quase cinco déca-
das Joel Serrão13.

Fig. 5 – Trabalhadores dos cafezais em São Paulo, 1899.

Fig. 6 – Colheita do café, provavelmente no Rio de Janeiro, 1899. Acervo FBN.

13  –  Ver SERRÃO, Joel. Conspecto histórico da emigração portuguesa. Análise social,
32, 8, pp. 597-617, 1970; SILVA, Susana Serpa. Escravatura branca…, cit., pp. 76-79.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (474):177-216, maio/ago. 2017. 183


Jaime Ricardo Gouveia

Para além do domínio da língua do país onde as oportunidades se


apresentavam mais promissoras; do acesso e da instalação mais fáceis
pelas relações pessoais, familiares e locais como base de apoio e circuito
de informação; das condições jurídicas de instalação e naturalização; e
das similitudes dos costumes; o Brasil como destino tinha, por conseguin-
te, uma política de emigração favorável devido à falta de mão de obra,
facilitando o pagamento das viagens e garantindo a integração dos imi-
grantes em postos de trabalho. Importa referir, por fim, que as hostilida-
des herdadas do relacionamento colônial, apesar de existentes, não tive-
ram a dimensão das que se verificaram por exemplo entre a Espanha e as
suas antigas colônias. Foi a aglomeração de todos estes fatores que movi-
mentou massas populacionais rumo à América. Não apenas para trabalhar
nos cafezais ou nos seringais, mas também no comércio.14

Fig. 7 – Arrabalde de Vila Real, região de Trás-os-Montes,


ilustrativo da vida difícil no mundo rural, fim do séc. XIX.

Excluindo a excepcionalidade de outras preferências regionais, o


Brasil foi o destino preferencial da emigração portuguesa na segunda me-
tade do século XIX e primeiras décadas do século XX. Os vários estudio-
sos da temática não foram unânimes na estatística, mas poder-se-á dizer
que, geralmente, entre 80% e 90% daqueles que emigraram na segunda
metade do século XIX tiveram como destino o território brasileiro. No

14  –  Veja-se SERRÃO, Joel. A emigração portuguesa. Lisboa: Livros Horizonte, 1977,
pp. 111-115; PEREIRA, Miriam Halpern. A emigração…, cit., p. 45.

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Os refluxos culturais da emigração portuguesa para o Brasil no fim
do séculoXIX e início do século XX – um olhar a partir do folclore

fim da centúria, esse valor chegou aos 93%. Mas esse valor ganha ainda
mais expressividade juntando-lhe outra característica: a fixação ocorreu
apenas em determinadas zonas do Brasil e não por todo o país. De 1870
a 1874, só a cidade do Rio de Janeiro absorveu 75% da emigração total15.

A preferência pelo Rio de Janeiro, além da forte rede de agências de


recrutamento estatais e privadas que lhe estava por trás, um dos grandes
negócios da época, devia-se muito ao fato de ser a capital nacional onde
tudo se passava, com uma indústria cafeeira forte no interior; com o mais
moderno, aparelhado e movimentado porto, sendo a principal porta de
entrada no país; o maior centro urbano da época alvo de grandes rees-
truturações depois de implantada a República; o maior centro financeiro
do país sediando os principais bancos brasileiros e a Bolsa de Valores, e,
portanto, a cidade brasileira que mais oportunidades oferecia16. A grande
concentração de portugueses nesta pólis acabava por ser ela própria um
motor atrator de emigração, já que a escolha do destino se devia também
às redes de contatos, de familiares, amigos e conhecidos, que favoreciam
o emigrante.

Em 1872, de acordo com Lená Menezes, que estudou os primeiros


recenseamentos gerais do Brasil, eram 55.933 os portugueses que esta-
vam radicados no Brasil, os quais representavam 76,29% da população
estrangeira. O número foi aumentando e, em 1920, os portugueses eram
já 146.779.17

15  –  Ver FREITAS, Nuno. Comunidade Piscatória Poveira…, cit., pp. 64-65; RODRI-
GUES, Henrique Fernandes. Alto Minho no século XIX. Contextos Migratórios, sociocul-
turais e familiares. Dissertação de doutoramento. Porto: Faculdade de Letras da Universi-
dade do Porto, 2003, pp. 555-588; 655-656; FERRARIA, Maria José; AMORIM, Paulo. A
emigração para o Brasil através dos livros de registo de passaportes do Governo Civil do
Porto (1880-1890). In: SOUSA, Fernando, et al. (ed.). A emigração…, cit., pp. 209-220;
SANTOS, Joaquim Loureiro dos. A emigração do distrito do Porto para o Brasil no ano de
1947. In: SOUSA, Fernando, et al. (ed.). A emigração…, cit., pp. 221-236.
16  –  Ver LIMA, Jacqueline de C. P.; VILAÇA, Márcio L. C. (eds.). João do Rio e o Car-
naval: um olhar para a cidade do Rio de Janeiro no início do século XX. Rio de Janeiro:
UNIGRANRIO, 2014.
17  – MENEZES, Lená Medeiros de. A presença portuguesa no Rio de Janeiro segundo
os censos de 1872, 1890, 1906 e 1920: dos números às trajetórias de vida. In: SOUSA,
Fernando, et al. (ed.). A emigração…, cit., pp. 103-120. Veja-se, também, MARTINS, Is-

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Jaime Ricardo Gouveia

Logo que o surto emigratório passou de doseado a massivo, o que


não aconteceu senão com grande rapidez, com uma evolução acentuada
após a abolição da escravatura em 1888, fizeram-se sentir as preocupa-
ções governamentais portuguesas, empoladas e esgrimidas pela imprensa
das várias tendências políticas18. O foco brasileiro do surto emigratório
ajudava, como aconteceu, a falência das pretensões de “nacionalização”
humana do império e da procura de “novos Brasis” em África.19

Fig. 8 – Emigrante português chegado ao Rio de Janeiro, anos 1820/1830.

O combate à emigração clandestina e à “escravatura branca” tornou-


-se um desígnio nacional. Perante a ilegalidade de uma putativa proibi-
ção da emigração, fez-se o possível para evitá-la. Contudo, a abundante

mênia de Lima. Os portugueses e os outros no Rio de Janeiro…, cit., pp. 81-103; SCOTT,
Ana Silvia Volpi. As duas faces da imigração portuguesa para o Brasil (décadas de 1820-
1930). Congresso de história Económica de Zaragoça, 2001, pp. 1-28. http://www.unizar.
es/eueez/cahe/volpiscott.pdf acesso em 31/08/2015.
18  –  Ver MAIA, Fernanda P. S. A emigração para o Brasil no discurso parlamentar oi-
tocentista. In: SOUSA, Fernando, et al. (ed.). A emigração…, cit., pp. 51-68; FREITAS,
Nuno. Comunidade Piscatória Poveira…, cit., pp. 66-67; ALVES, Jorge Fernandes. Os
Brasileiros. Emigração e retorno no Porto oitocentista. Porto: [s.n.], 1994; MARTINS,
Ismênia de Lima. Os portugueses e os outros no Rio de Janeiro…, cit., pp. 81-103.
19  –  Para uma boa síntese sobre o assunto, veja-se JERÓNIMO, Miguel Bandeira. Ocea-
nos indígenas sem limites. Visão, n.º 30, pp. 30-37, agosto de 2015.

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Os refluxos culturais da emigração portuguesa para o Brasil no fim
do século XIX e início do século XX – um olhar a partir do folclore

legislação, resultante da instabilidade política, não conseguiu controlar o


fenômeno. As vozes contra a pandemia do surto emigratório não deixa-
ram, contudo, de continuar a eclodir no país. As pastorais de alguns bis-
pos, outro manancial documental inexplorado até à data, foram um desses
veículos, como a que o bispo viseense, D. José Dias Correia de Carvalho,
redigiu em 4 de março de 1889:
[…] continuam a chegar carregamentos de emigrantes que são logo
expedidos para o bananal, onde se dão quotidianamente scenas vio-
lentas, sendo preciso geralmente a intervenção da força armada para
conter aquellas turbas que se julgam enganadas nas promessas que lhe
fizeram.20

O Estado passou a atuar indiretamente sobre o fluxo emigratório,


legislando sobre a obrigatoriedade de passaportes, taxas, prévio cumpri-
mento do serviço militar ou pagamento de fiança, fiscalização de barcos,
etc. A rede apertada de legalidade era um óbice dissuasor, mas também
era, não raro, ludibriada. O recrutamento de emigrantes portugueses tinha
à retaguarda um filão grande de interesses e era organizado de forma em-
presarial pelas redes bem estruturadas nas duas margens do Atlântico que
sabiam como dar a volta ao sistema.21

2. Imbricações culturais do refluxo


Pouco ou nada foi escrito até à data sobre o refluxo dos portugue-
ses que haviam abandonado o seu país, o mesmo se podendo dizer no
que diz respeito à remigração dos “brasileiros” retornados a Portugal que
voltavam à margem sudoeste do Atlântico. A ideia vigorante, para a qual
contribuiu em boa parte a literatura, está erroneamente vinculada ao este-
reótipo do “Brasileiro”, um clichê que representa o exotismo dos costu-
mes que o retornado trazia consigo. Erroneamente, porque o “Brasileiro”
é um conceito que correspondia, na mentalidade coletiva, apenas a uma
parte da realidade, isto é, à fase final do processo migratório com um re-

20  –  Ver Arquivo Histórico Diocesano de Viseu, Registo de Pastorais e Provisões, 1883-
1899, fl. 84v.-86v.
21  –  Ver LOPES, Maria Antónia. Emigração e população…, cit., pp. 394-395; ALVES,
Jorge Fernandes. Os Brasileiros…, cit., pp. 107-161.

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torno de sucesso. Um caso de notoriedade, como qualquer exceção, dela


se fazendo, sobretudo na Literatura, sátira jocosa.22

A maioria das histórias daqueles que regressavam, até podiam ser


histórias de sucesso, galgando os retornados uma posição de destaque
dentro das suas comunidades de origem. Mas que porcentagem dos que
emigravam retornavam? Que histórias de emigrantes retornados sem su-
cesso são conhecidas? Henrique Rodrigues foi um dos poucos que se de-
bruçou sobre a aludida questão, reconhecendo que não é fácil desbravar
o assunto pelo fato de que aqueles que saíram documentados e regressa-
ram em definitivo à terra não foram arrolados. É possível, portanto, saber
quantos partiram legalmente, quem voltou a requerer nova travessia, mas
desconhecem-se os quantitativos globais do refluxo.23

Não há ainda resposta consistente para um vasto leque de perguntas,


tais como: Quando regressava quem partia documentado? Nota-se um
padrão na escolha dos meses para o retorno? Que estados civis mais se
evidenciavam no refluxo? Qual a distribuição dos remigrados de acordo
com a variável sexo? Letrados e analfabetos, solteiros e casados apresen-
tam as mesmas opções em face do período que elegiam para regressar à
pátria? Como se enquadram esses movimentos por níveis etários? Eram
uma prática reservada a quem tinha saído com habilitações? Quanto du-
rava o refluxo? A estas acrescem aquelas às quais este estudo pretende
dar resposta: provocavam os refluxos e remigrações “contaminações” na
cultura popular do país de origem? Há eco documental desse tipo de ab-
sorção? É possível perceber se esse impacto era localizado ou difuso por
todas as regiões do país?

Ao contrário da ideia criada pelo mito do “brasileiro” retornado


endinheirado, o retorno era, por vezes, problemático24. É inegável que
22  –  Ver ORTIGÃO, Ramalho. As Farpas. 4.ª ed. Lisboa: Empresa Literária Fluminen-
se, 1925, p. 150.
23  –  Ver RODRIGUES, Henrique Fernandes. Alto Minho no século XIX…, cit., pp. 693-
694.
24  –  Ver BRANDÃO, Maria de Fátima. O Bom Emigrante à Casa Torna? In: Emigração
/ Imigração em Portugal, Actas do Colóquio Internacional sobre Emigração e Imigração
em Portugal (séc. XIX-XX). Lisboa: Editorial Fragmentos, 1993.

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Os refluxos culturais da emigração portuguesa para o Brasil no fim
do século XIX e início do século XX – um olhar a partir do folclore

alguns retornavam bem na vida. Foram esses casos de sucesso que vinga-
ram no imaginário da emigração. Mas nem todos foram bafejados pelos
ares do sucesso. Muitos dos emigrantes iam para os trabalhos duros nos
cafezais e nos seringais e contraíam dívidas aos patrões que os coloca-
vam numa situação de dependência prolongada, impossibilitando-os de
mudar de local de trabalho e, sujeitando-se, pois, a situações de autêntica
escravatura25.

Tanto os ricos como os que voltavam na mesma condição socioe-


conômica em que partiam traziam resquícios de uma cultura do país de
emigração que rapidamente era apropriada, sobretudo nas localidades de
limiares mais exíguos. Desses fragmentos culturais ficou estrondoso eco
na literatura. Citando o escritor António de Sèves, que narrou pedaços do
quotidiano da vila de Leomil, encastoada na Beira Douro, seu rincão na-
tal, não deixou de satirizar essa realidade, escrevendo no conto intitulado
O Carreiro, o seguinte:
Pegava em todos a mania do Brazil. Já todos queriam gravata, bôs
aneis e sapatinhos. Até o seu rapaz, o Manuel, suspirava a toda a hora
por um relógio e uma cadeia, como se o sol não bastasse p’r’a gente
se regular.26

Com o seu linguarejar regionalista, num tom sarcástico, Sèves asse-


verava ter sido rápida a apropriação de fragmentos da cultura de elite bra-
sileira, de que eram agentes de transmissão os retornados endinheirados,
e deixava perceber que existia no microcosmos aldeão uma resistência
dos conterrâneos não emigrados.

A correspondência familiar é outra das fontes que permite o estudo


dos fluxos e refluxos culturais entre Portugal e o Brasil. Uma vez que se
trata de documentos que pertenciam à vida privada, permitem perscrutar
no universo das mentalidades e modos de vida, constituindo uma ampla
janela para o estudo dos intercâmbios culturais. Um dos aspectos que

25  – Isso mesmo reconhecia em 1914 o vice-cônsul de Vitória. Ver SANTOS, Alberto de
Oliveira. Colônias portuguesas em países estrangeiros. Boletim da Sociedade de Geogra-
fia de Lisboa, 33.ª série, n.1, pp. 31-37, 1915.
26  –  Ver SÈVES, António de. Leomil. Lisboa: Lusitania Editora, Limitada, 1921, p. 31.

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amiúde aparece referenciado é o vestuário. As missivas que os maridos


enviavam a suas consortes, a título de exemplo, instruindo-as sobre o que
levar para o outro lado do Atlântico, são descrições absolutamente funda-
mentais para os estudos de etnografia e folclore, porquanto nomeiam pe-
ças, tecidos e feitios, evidenciando não só que em Portugal e no Brasil
havia preocupação com a manutenção do decoro, dignidade e aparência,
mas também que em ambas as latitudes, fruto de culturas distintas, eram
dissemelhantes as formas de exteriorização da decência. Em regra, côns-
cios de que seria difícil um total desprendimento da cultura de origem, os
varões sugeriam dois tipos de enxovais: um mais grosseiro, enquadrado
nos costumes portugueses, para usar durante a viagem; e outro, um traje
de domingar, para vestir no momento de ancorar, mais leve e fresco, de
modo a não destoar da moda carioca. Referiam-se frequentemente vesti-
dos de fazenda e de chita, fatos leves de linho cru ou cotim branco e ainda
de morim (pano branco de algodão), camisas de riscado, entretela para os
peitos das camisas, entre outros tecidos e peças.27

Fig. 9 – Emigrantes portugueses à espera de embarcar rumo ao Brasil, início do séc. XX.

27  –  Ver RODRIGUES, Henrique Fernandes. Alto Minho no século XIX…, cit., pp. 843;
852-853; SILVA, Brasilina A. P. da. Cartas de chamada: a emigração para o Brasil no
concelho de Sernancelhe (1900-1920). In: SOUSA, Fernando, et al. (ed.). A emigração…,
cit., pp. 305-309.

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Os refluxos culturais da emigração portuguesa para o Brasil no fim
do séculoXIX e início do século XX – um olhar a partir do folclore

Fig. 10 – Emigrantes portugueses à espera de embarcar rumo ao Brasil, início do séc. XX.

Percebe-se, portanto, que o quadro de valores dominante na época,


herdeiro dos padrões morais da colonização portuguesa, fortemente in-
fluenciados pela cultura religiosa católica, ganhou uma dinâmica própria
em terras de Vera Cruz, diferenciando-se de Portugal no modo de exterio-
rização desses mesmos valores. Henrique Rodrigues, que estudou estas
cartas, apresenta vários exemplos relativos ao Rio de Janeiro que importa
aqui cotejar. Um deles é o da missiva expedida em 1884 por José Meira
de Oliveira para a sua esposa Rosa Pereira Fagundes, natural de Vila de
Punhe, pertencente a Viana do Castelo, intimando-lhe o seguinte: “En-
quanto a roupa faz o que já te mandei dizer: faz um vestido melhor para
saltar em terra e roupa para mar dois vestidos de chita e não precisa mais
nada.”28 No decurso do ano de 1888, um dos portugueses radicados no
Rio de Janeiro escrevia à sua mulher declarando: “Podes trazer a roupa
que tiveres e não precisas [de] comprar porque depois compras aqui, por-
que fica mais em conta e aqui tem muita roupa e moda do país.”29 Outro
caso a relevar é o da carta enviada em 1895 por Manuel António de Araú-
jo Trigueiro a sua esposa Rosa Rodrigues Trigueiro, natural de Troporiz,
Monção, ordenando-lhe: “Pede à senhora dele para te dirigir como hás-de

28 – Ver ibidem, p. 842.


29 – Ver ibidem, p. 851.

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fazer as roupas, porque ela está ao par dos feitios das roupas daqui.”30 Um
derradeiro exemplo a apresentar é o de Bernardino José Leite, que escre-
veu a Carolina Rosa Marinho, sua cônjuge, natural de Cerdal, Valença,
dirigindo-lhe as seguintes palavras:
Para embarque qualquer roupa serve […]. Os chapéus finos para todos
três e para o mar umas barretas ou carapuças por causa do ar. Não
tragas a camisa de fraldas […]. Não os deves vestir com roupa grossa
nem muito escura.31

Fig. 11 – Emigrantes à espera de embarcar rumo ao Brasil, 1938.

Fig. 12 – Moço emigrante à espera de embarcar rumo ao Brasil, 1938.

30 – Ver ibidem, p. 842.


31 – Ver ibidem, pp. 842-843.

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Os refluxos culturais da emigração portuguesa para o Brasil no fim
do séculoXIX e início do século XX – um olhar a partir do folclore

Para não ser vista sob um óculo desclassificatório, a população mi-


grante deveria adaptar-se aos modelos sociais do país acolhedor e, se
possível, atracar envergando já modas brasileiras. Países diferentes, pois,
com usanças diferentes, eis um dado a reter e que aparece exarado de
forma ainda mais clara em cartas como a de José Martins a sua consorte
Emília Silva, de Caminha: “Se for tua vontade vires em Maio é para eu
te dizer como hás-de fazer as roupas, porque aqui não se traja como lá”;
como a de Rafael Gonçalves da Silva, a sua esposa Maria Emília Enes
Silva, de Soutelo, Viana do Castelo, escrita em 1891, onde lhe declarava:
“Enquanto à roupa traz toda a que tiveres, menos a que se usa na terra que
aqui não se usa, quero dizer às riscas e do vermelho que aqui é tudo muito
simples”; e, finalmente, em cartas como a de João Lourenço Gonçalves
Veiga, que asseverou o mesmo a sua mulher, Carolina Prazeres, de La-
melas, Caminha, corria o ano de 1897: “Com respeito a roupas para aqui,
traz tudo menos saias de riscas, nem lenços de cabeça porque é coisa que
aqui não se usa.”32

Por conseguinte, entre o Norte de Portugal e o Rio de Janeiro, sobre-


tudo pela diferença do clima, as modas no vestuário eram distintas. Não
só no que se refere ao feitio, mas também à cor e ao tipo de tecido. Na
cidade brasileira, as saias tinham feitio mais prático e adaptado ao calor:
pouco rodadas, de cores claras e sem riscos; as camisas não eram fralda-
das; a cabeça era usada descoberta e sem lenços; os tecidos usados eram
mais leves, como as chitas, os cotins brancos e o linho.

O mesmo se passava com os adereços pessoais. Os brincos à rainha,


as arrecadas, os cordões, a título de exemplo, usados em todo o norte e
centro de Portugal, eram desaconselhados pelos varões que escreviam às
suas esposas antes de elas partirem para o Rio de Janeiro.33

Os portugueses endinheirados do Rio de Janeiro, inseridos nos círcu-


los socioculturais cariocas, denotavam uma preocupação de fazer destoar
os familiares que recebiam, da imagem dominante do português comum.

32 – Ver ibidem, loc. cit.


33 – Ver ibidem, pp. 842-853.

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A massificação da emigração, fazendo aportar ao Rio gente humilde e


analfabeta, que fazia a travessia do Atlântico à procura de uma vida me-
lhor, envergando trajes de trabalho, provocara um estigma social.

Quem ditava os padrões morais de conduta e as modas era evidente-


mente a elite dominante. Só os familiares de emigrantes portugueses abo-
nados podiam, na verdade, desfazer-se dos seus haveres e reproduzir ou
tentar copiar a moda carioca. A maior parte dos que emigravam, faziam-
-no numa situação de pobreza. Não tinham bens materiais ou adereços de
ouro, nem tampouco enxoval composto por várias peças, senão os trapos
que levavam no corpo. Cruzavam o Atlântico com saias, casacos, paletós,
vestidos, camisas, chapéus, botas, botins, sapatos, chinelas, tamancos e
socos, etc…. ao jeito de Portugal e, por vezes, faziam o regresso com uma
indumentária diferente.

Os relatos da época que esmiuçam a cultura das comunidades portu-


gueses sublinham exatamente a constância dos costumes e da tradição do
país de origem. Note-se o relatório do vice-cônsul de Portugal em Vitória,
redigido em 21 de março de 1914 no Boletim da Sociedade de Geografia:
Em aqui chegando o português não procura agrupar-se porque não se
vê a braços com a dificuldade de uma língua diferente da dele, nem de
costumes diferentes dos seus […]. Amante da sua pátria, é muito cioso
das suas tradições.34

Está bem documentada, por exemplo, a existência de chulas, fados e


fandangos no Rio de Janeiro no fim do século XIX,35 assim como a dança
dos pretos, que se sabe ser característica em Maceió, estado de Alagoas;
e na amazônia brasileira; chegando também a várias regiões de Portu-
gal.36 Tenho conhecimento de que, pelo menos, essa manifestação popu-

34  –  Ver SANTOS, Alberto de Oliveira. Colonias portuguesas…, cit., pp. 31-37.
35  –  Ver TINHORÃO, José Ramos. A música popular no romance brasileiro. Vol.1. S.
Paulo: Editora 34 Ltda., 2000.
36  –  Ver STOLL, Emile. Preto velho de Salambé, cachimbo na boca, chinelo no pé: a
brincadeira dos pretos do baixo Tapajós (Amazónia Brasileira). In: Rituais: transforma-
ções cosmológicas e sócio-históricas, X Reunião de Antropologia do Mercosur, 10-13
Julho de 2013, Córdoba, Argentina, pp. 1-14; DUARTE, Abelardo. Folclore Negro das
Alagoas. Maceió: Universidade Federal de Alagoas, 1975, p. 346.

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Os refluxos culturais da emigração portuguesa para o Brasil no fim
do século XIX e início do século XX – um olhar a partir do folclore

lar era comum em Moncorvo; Carviçais; Penafiel; Leomil e Cabaços no


concelho de Moimenta da Beira; Arcozelo da Serra, na diocese da Guar-
da; e nos Açores.37

Fig. 13 – Dança dos pretos em Penafiel, data desconhecida.

Consistia essa dança numa carnavalização consensual dentro da festa


religiosa oficial. Essas danças, mesclando sagrado e profano, acompanha-
vam a procissão, causando até embaraço à marcha pelas suas figuras de
dança. Na romaria do S. Torcato de Cabaços, no concelho de Moimenta
da Beira, a dança dos pretos, provinda de Manaus, tinha um fundo instru-
mental de bases melo-harmônicas portuguesas entremeadas com trechos
africanos. As vestimentas azuis e encarnadas dos protagonistas lembram
as “congadas” e “cavalhadas”, ainda presentes em algumas regiões do
Brasil. Os bastões de madeira que empunhavam fez com que essa dança
passasse a ser designada a dança dos pauliteiros negros de Cabaços. Em
Moncorvo seria assim também, como mostra o vídeo de J. R. dos Santos
Júnior realizado em 1930.38

37  –  Ver PINTO, Filipe Costa. Enciclopédia das festas populares e religiosas de Por-
tugal. Catálogo de festas, feiras e romarias portuguesas. Vol. II. Lulu.com (acesso em
3/9/2015); GUIA, A. Bento da. As vinte freguesias de Moimenta da Beira. 3.ª ed. Moi-
menta da Beira: Câmara Municipal, 2001, p. 53; MEYER, Marlyse. Caminhos do imagi-
nário no Brasil. 2.ª ed. S. Paulo: USP, 2001.
38 – Ver JUNIOR, J. R. dos Santos. A dança dos pretos (Moncorvo), 1930. Ci-
nemateca portuguesa digital http://www.cinemateca.pt/Cinemateca-Digital/Ficha.
aspx?obraid=8140&type=Video.

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Jaime Ricardo Gouveia

Não é de admirar que nesse processo de intercâmbio, de transmissão


e recepção, migrassem para o Rio de Janeiro hábitos, usos e costumes
portugueses, mas também refluíssem aspetos culturais brasileiros com os
retornados, assim feitos, involuntariamente, agentes culturais. O que im-
porta apurar, e que não foi ainda objeto de estudo, é o grau e respetivo
impacto dessas aculturações. Por meio do folclore, sobretudo das modi-
nhas que eram cantadas e bailadas quotidianamente pelo povo nos mo-
mentos de labuta e de lazer, durante as primeiras décadas do século XX,
é possível encontrar resquícios culturais protagonizados pelos refluxos da
emigração.

A moda das “saias” é, neste domínio, laboratório de excelência para


o estudo dos “refluxos culturais”. Só tocadas; só cantadas; ou tocadas,
cantadas e bailadas conjuntamente, as “saias” chegaram a todos os cantos
de Portugal. Não obstante haja quem defenda as suas raízes alentejanas,
como se diz que o fandango é do Ribatejo, o corridinho do Algarve e o
vira do Minho, é curial perceber que não existem regiões proprietárias
de quaisquer padrões culturais. Simultaneamente, cantigas de trabalho
e de divertimento eram executadas sem suporte instrumental nas fainas
que não eram de empreitada, onde não havia tocador, mas também nos
“balhos”, isto é, nos bailes, de terreiros e adros. Tratam-se, em regra, de
cantigas “a despique”, entre duas mulheres, um homem e uma mulher, ou
dois homens que disputavam uma “moçoila”.39

As modas populares eram, no geral, bastante simples, no seu as-


pecto poético, de frases melódicas curtas e, por vezes, mal esboçadas;
no seu aspecto melódico, espécie de melopeias rudimentares; e de fácil
execução. Se as não encontrarmos com este figurino é mau sinal. A moda
das saias era constituída pela melodia (estilo) e pela letra (pontos), que
era feita de improviso. Há quem defenda várias modalidades das “saias”,
nomeadamente saias velhas, saias novas, saias aiadas, saias puladas, saias
passeadas, saias trocadas, saias corridas, saias mudadas, e saias batidas,
consoante os passos de dança, o que diz bem da disseminação e adapta-
39  –  Ver MENDES, Lino. A moda das “saias” na cultura tradicional portuguesa. Jornal
Mundo Lusíada, out., 2008.

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Os refluxos culturais da emigração portuguesa para o Brasil no fim
do séculoXIX e início do século XX – um olhar a partir do folclore

bilidade que sofreram noutras regiões. Importa sublinhar que essa adap-
tabilidade, que comportou elementos originais e novos, verificou-se não
só em relação ao estilo como também à letra. Significa isto que a forma
de bailar as “saias” e o verbalizar das modinhas diferem, por vezes muito,
outras nem tanto, entre as várias regiões e, por vezes, dentro dos próprios
limiares regionais.40 Encontramo-las em praticamente todas as regiões de
Portugal.

É na “moda das saias” que vamos encontrar as “calças à brasileira”,


um elemento inequívoco de refluxo cultural. Seguem-se alguns exemplos.
São Saias41
Rancho Folclórico da Casa do Povo de Leomil – Beira Alta/ Douro Sul
São saias meu amor, são saias
São calças à brasileira
São dançadas e bailadas
Servem de toda a maneira
REFRÃO
Aqui é que estão as saias
Aqui é que as calças estão
São dançadas e bailadas
Da raiz do coração
Julgavas em me deixares
Que eu de penas morreria
Vão-se uns amores ficam outros
Vivo na mesma alegria
REFRÃO
Algum tempo era eu
Amor do teu coração
40 – Ver ibidem, loc. cit.
41  – Modinha recolhida pelo Rancho Folclórico da Casa do Povo de Leomil em 1978,
quando da sua fundação. Trata-se de uma dança mimada: no primeiro verso, as moças le-
vantam um pouco a saia; no segundo, os rapazes arrepanham um pouco as calças. Publica-
da em GOUVEIA, Jaime Ricardo. Cancioneiro de Leomil. Viseu: Quartzo Editora, 2014.

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Jaime Ricardo Gouveia

Agora já somos duas


A dar passadas em vão
REFRÃO
São Saias
Rancho Folclórico Clube das Arroteias – Ribatejo
Se o meu amor fosse António
Assim como é João
Mandava-o engarrafar
Na primavera do verão
Estas é que são as saias
Estas calças é que são
Foram feitas e talhadas
Na noite de S. João
São saias, amor são saias
São calças à brasileira
São cantadas e bailadas
Cá de uma certa maneira
Menina, se queres saber
Como agora se namora,
Com um lencinho na algibeira
Com as pontinhas de fora
Estas é que são as saias
Estas calças é que são
Foram feitas e talhadas
Na noite de S. João
São saias, amor são saias
São calças à brasileira
São cantadas e bailadas
Cá de uma certa maneira
Como se percebe, a introdução das calças à brasileira nas letras das
modinhas portuguesas evidencia aculturação protagonizada pelo refluxo

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Os refluxos culturais da emigração portuguesa para o Brasil no fim
do século XIX e início do século XX – um olhar a partir do folclore

da emigração. Essa “contaminação” cultural, no sentido em que se veri-


ficou a introdução de um elemento novo na indumentária, é bastante sig-
nificativa porquanto tocou praticamente todas as regiões de Portugal. A
adaptabilidade da canção popular portuguesa aconteceu com outras mo-
das, com outros estilos, nas várias latitudes regionais, no transcorrer dos
séculos. A circulação dos indivíduos pressupunha, como aconteceu com
os brasileiros de torna-viagem, a propagação dos elementos mais fortes
da cultura apropriada. Como as calças, poderiam ser outras peças do ves-
tuário brasileiro, a justificar menção nas canções do povo português. Que
calças brasileiras seriam essas? Estaria a diferença no feitio ou no tecido
utilizado?

Perante a escassez de fontes que pudessem responder de forma clari-


vidente a essas questões, fiz uma sondagem a obras, algumas de viajantes
estrangeiros, que descreveram a indumentária brasileira no século XIX.
Em 1820, nas suas Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do
Brasil, o viajante inglês John Luccock, referindo-se aos indivíduos abas-
tados da cidade, disse:
É comum o cavalheiro aparecer […] com as mangas arregaçadas até
aos ombros; mas se, noutras vezes, acha-se atado ao pescoço e em re-
dor dos pulsos por grossos botões globulares de ouro, as fraldas ficam
de fora, pendentes a meia canela por cima da cinta que firma ao redor
do lombo um par de calças curtas; as pernas vão nuas e os pés metidos
em tamancos.42

Em 1830, o botânico francês Auguste de Saint-Hilaire escreveu uma


obra intitulada Viagens pelas províncias do Rio de Janeiro e Minas Ge-
rais, no decurso da qual, referindo-se ao senhor do engenho, referiu:
“Quando está em casa usa camisa de chita, chinelos, e calças ordinaria-
mente mal sungadas, não põe gravata, e toda a sua roupagem indica que
é inimigo de se constranger.”43 Por seu turno, o missionário metodista

42  –  Ver LUCCOCK, J. Notas sobre o Rio-de-Janeiro e partes meridionais do Brasil


(Tomadas durante uma estada de dez anos nesses pais, de 1808 a1818). S. Paulo: Livraria
Martins, 1942 (edição original publicada em Londres no ano de 1820).
43  –  Ver SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagens pelas províncias do Rio de Janeiro e
Minas Gerais. Rio de Janeiro, 1938 (edição original publicada em Paris no ano de 1830).

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Jaime Ricardo Gouveia

norte-americano Daniel Kidder, no seu livro de reminiscências sobre o


Rio de Janeiro, que deu ao prelo em 1845, descreveu a indumentária de
um tabelião da seguinte forma: “[…] pediu desculpas pela leveza do seu
trajo que consistia apenas em calças brancas e camisa, acrescentando que
no verão nada mais suportava sobre o corpo.”44 Anos depois, em 1844,
publicava Augusto Zaluar as suas peregrinações pela província de S. Pau-
lo, referindo calças de nanquim e ainda um indivíduo que “[…] trazia
roupa de algodão, com umas calças muito curtas, tudo da mesma cor do
chapéu.”45 Uma derradeira referência justifica menção. Encontra-se no
romance de Joaquim Machado de Assis, saído a público no Rio de Janei-
ro em 1899. Nele, referiu assim uma personagem de uma casa abastada:
“Levantou-se para ir buscar o gamão […] e vi-o passar com as suas calças
brancas engomadas, presilhas, rodaque e gravata de mola […]. Trazia as
calças curtas para que lhe ficassem bem esticadas.”46

Fig. 14 – Foto de 1910, Brasil. Pormenor das calças pouco sungadas e curtas.

44  –  Ver KIDDER, Daniel Parish. Reminiscências de viagens e permanências nas pro-
víncias do Brasil. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 2 vols., 1940 (edição original é de
1845).
45  –  Ver ZALUAR, Augusto Emílio. Peregrinação pela província de S. Paulo – 1860-
1861. S. Paulo: Itatiaia Editora, 1975 (edição original é de 1862).
46  –  Ver ASSIS, Joaquim M. Machado de. Dom Casmurro. Rio de Janeiro, Paria: Livra-
ria Garnier, 1899, p. 11.

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Os refluxos culturais da emigração portuguesa para o Brasil no fim
do século XIX e início do século XX – um olhar a partir do folclore

Fig. 15 – Montaria ao javali, Portugal – local desconhecido, fins do século XIX.

Fig. 16 – Balho (baile), Portugal, local desconhecido, fins do século XIX – inícios do séc. XX.

Pormenor das calças compridas com racha lateral para se poderem


prolongar pelo calçado.

Poder-se-á concluir, de acordo com o cruzamento dessas fontes, que


as calças à brasileira eram confeccionadas com tecidos e cores leves, pre-
dominantemente brancas e de feitio curto e pouco sungado, isto é, rela-
tivamente largas e elevadas. Esse modelo diferia das calças usadas em

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Jaime Ricardo Gouveia

Portugal no mesmo período, em regra compridas, de tecidos com colora-


ção escura, e elevadas na cintura para cobrir as ceroulas que abotoavam
na presilha da camisa. Teria sido este elemento inovador da indumentária
em trânsito nos movimentos de refluxo. Só o cariz maciço da emigra-
ção justificou este elemento de apropriação, até porque se ficou arreigado
na moda das saias, também outras referiam com frequência o elemento
Brasil. Apresento, em seguida, sem pretensões de exaustividade, algumas
delas.
Cadeaço47
Rancho das Lavradeiras da Trofa – Douro Litoral Norte
REFRÃO
Cadeaço lindo cadeaço
Não me ponha a mão
Que m’estala o braço
Cadeaço eu cá bou andando
Cadeaço eu cá bou bailando
Ai tantas libras, estou libre delas
São amarelos, são de cabalinho
São firmes, são elegantes
São leais ao meu benzinho
REFRÃO
Eu hei-de ir ao Brazil
Ai para o Rio de Janeiro
Para bir p’ra esta terra
Com fama de brazileiro
REFRÃO
Marinheiro d’ agua doce
Ai que lebas no teu nabio
Lebo rouxinóis que cantam
Papagaios que assobiam

47  – Modinha recolhida na Trofa em 1946. Agradeço a Catarina Silva, do Rancho das
Lavradeiras da Trofa, fundado em 1961, e colega no CTR da Federação do Folclore Por-
tuguês, que me cedeu esta recolha.

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Os refluxos culturais da emigração portuguesa para o Brasil no fim
do séculoXIX e início do século XX – um olhar a partir do folclore

REFRÃO
Eu hei-de ir ao Brazil
Ainda que não tenha dinheiro
Para as meninas dizerem
Olá senhor brazileiro
Olá, como está?48
Rancho das Lavradeiras da Trofa – Douro Litoral Norte
REFRÃO
Olá, como está?
Você anda de soquinhos
Se tu fores, eu também vou
Para o Brasil
Os dois ambinhos
Olá, como está?
Você anda de chapéu
O meu amor é tão lindo
Como as estrelas do céu
REFRÃO
Eu hei-de ir p’ro Brasil
Embarcado num loureiro
Para ir p’ra esta terra
Com fama de brasileiro
REFRÃO
Olá, como está?
Meu amor como passou?
Se tu fores para o Brasil
Meu amor eu também vou

48  –  Veja-se a nota anterior.

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Jaime Ricardo Gouveia

REFRÃO
Veja-se a mesma moda com as devidas adaptações:
Olá, como está? 49
Rancho Folclórico da Ribeira de Celavisa – Beira Litoral
Olá, como está?
Meu amor é brasileiro 
Eu hei-de ir para o Brasil
Com ele ganhar dinheiro
Com ele ganhar dinheiro
Para dar a quem me ama
Olá como está 
Você a mim não me engana”
Ó meu pai, ó meu paizinho
Dê-me o saco do dinheiro,
Que quero ir passear
Lá no Rio de Janeiro
Meu amor foi pr’ó Brasil
Foi pr’ó Brasil vai ver café
Inda bem que cá não está
Olalalalalá, olarilolé.
Ó meu amor de três penas
Dá-me uma quero voar,
Eu vou ao Brasil e venho
Ao chegar eu volto a dar.
Olha a barca brasileira50
Olha a barca brasileira
Que do céu caiu ao mar:
Nossa Senhora vai dentro
49  –  Recolha cedida pelo amigo Miguel Claro, pertencente ao Rancho Folclórico da Ri-
beira de Celavisa – Arganil, Coimbra.
50  – Moda de cantar de reis ou reisadas. CABRAL, António. Cancioneiro…, cit., p.
59. Além dos bailos, folias ou folguedos no terreiro, ou no contexto das fainas, existiam
também reinações, em forma de brincadeira alegre, que ocorriam em andanças noturnas
e diurnas, por bandos que corriam as ruas, de que são exemplo os festejos de Reis e das
Janeiras.

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Os refluxos culturais da emigração portuguesa para o Brasil no fim
do séculoXIX e início do século XX – um olhar a partir do folclore

E s anjinhos a remar
CORO
– Remai, remai, meus anjinhos,
Que eu vos darei um vintém
– Um vintém não chega a nada
Para quem rema tão bem
Quem diremos nós que viva
No botãozinho do peito?
Viva lá o senhor…
Que é um homem de respeito
Que é um homem de respeito
Que viva os anos que ele deseja
Viva também uma rosa
Que recebeu na igreja
Alice51
Rancho Etnográfico de Danças e Cantares da Barra Cheia, Moita – Estre-
madura Sul
E o meu amor foi-se embora
Não nada a ninguém
E q’alquer dia vou eu
Passem todos muito bem
Meu amor não é daqui
Eu daqui também não sou
Meu amor foi pró Brasil
Pró Brasil é que eu vou,
Ó meu amor, meu amor
Gosto de ti a valer
Manda-me a tua direcção
Meu amor quero-te escrever
Ó Alice dá cá um beijo
Ó Alice dá cá, dá cá
51  –  Modinha recolhida a Cristina dos Santos, pelo Rancho Etnográfico de Danças e
Cantares da Barra Cheia. Agradeço ao presidente deste grupo, Fernando Miguel, a cedên-
cia desta modinha.

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Jaime Ricardo Gouveia

Ó Alice dá cá um beijo
Dá cá um beijo não sejas má
Não sejas má e não sejas louca
Não sejas má e não sejas louca
Ó Alice dá cá um beijo
Dá cá um beijo da tua boca
Queres um beijo não to posso dar
Escusas atimar que não pode ser
Juro que guardo segredo,
Mas eu tenho medo d’ alguém o saber
D’ alguém o saber, mas não sabe nada
Quem me deu um beijo foi minha namorada
D’ alguém o saber mas não sabe nada
Quem me deu um beijo foi minha amada
Tirana52
Associação Etnográfica Os Serranos, Águeda – Beira Litoral, Baixo Vouga
O linho dá muita volta
Até chegar ao tear
Não são tantas como estas, ó Tirana
Que nesta roda vou dar
À volta, Tirana à Volta
À volta Tirana eu vou
Dar vida a quem me deu vida, ó ai
Matá-la a quem me matou
A Tirana quer que eu vá
Com ela para o Brasil
Embarca, Tirana embarca, Tirana
Que eu também lá quero ir
A Tirana quer eu vá
Com ela para Lisboa
Embarca, Tirana embarca, Tirana

52  –  Modinha recolhida em Aguada de Cima, Águeda, pela Associação Etnográfica Os


Serranos. Agradeço ao Eng.º Manuel Farias, colega do CTR da Federação do Folclore
Português, a cedência desta moda recolhida pelo seu grupo.

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Os refluxos culturais da emigração portuguesa para o Brasil no fim
do século XIX e início do século XX – um olhar a partir do folclore

Que a maré agora é boa


Se o mar tivesse varandas53
Associação Etnográfica Os Serranos, Águeda – Beira Litoral, Baixo Vouga
Se o mar tivesse varandas
Eu ia-te ver ao Brasil
Mas o mar não tem varandas
Diz-me amor por ond’hei-d’ir
Ai meu amor
Ai quem me dera, ai quem me dera
Subir ao céu
Ai meu amor voltar à terra
Se o mar tivesse varandas
Como tem de embarcações
Eu ia-te ver ao Brasil
Em certas ocasiões
Ai meu amor
Ai quem me dera, ai quem me dera
Subir ao céu
Ai meu amor voltar à terra
Se ouvires dizer que eu morro
Não chores por mim meu bem
A morte de um desgraçado
Não causa pena a ninguém
Ai meu amor
Ai quem me dera, ai quem me deraSubir ao céu
Ai meu amor voltar à terra

53  –  Modinha recolhida em Avelal de Cima, Águeda, pela Associação Etnográfica Os


Serranos. Agradeço ao Eng.º Manuel Farias, colega do CTR da Federação do Folclore
Português, a cedência desta moda recolhida pelo seu grupo.

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Jaime Ricardo Gouveia

Não há quem queira dar a filha a um mineiro54


Associação Etnográfica Os Serranos, Águeda – Beira Litoral, Baixo Vouga
Olá compadre
Meu amor é brasileiro, oleiro
Ele vai também embora
Pr’ó Brasil ganhar dinheiro
Olá, como está
Meu amor não é de cá
Meu amor é brasileiro
Trabalha no Canadá
Já não há quem queira dar
Uma filha a um mineiro
Vive debaixo da terra
A ganhar pouco dinheiro
O Cuco55
Rancho da Região de Leiria – Alta Estremadura
Ele
Canta o cuco, canta, canta,
Já chegou o mês de Abril,
Estes rapazes d’agora
Namoricam mais de mil.
CORO
Em Pernambuco, canta macuco,
Lá no mês de Maio Também canta o cuco
Também canta o cuco Também canta o gaio
Também canta o cuco Cá no mês de Maio.
Ela
Canta o cuco, canta, canta
Na ramada do pinheiro,
54  –  Modinha recolhida em Urgueira e Préstimo, Águeda, pela Associação Etnográfica
Os Serranos. Cedida pelo Eng.º Manuel Farias, a quem agradeço.
55 – Esta moda foi recolhida num lugarejo da Serra do Sicó, que, à data da recolha
(1961), fazia parte da Região de Turismo de Leiria. Agradeço ao amigo José Vaz, elemen-
to do Rancho da Região de Leiria e colega do CTR da Federação do Folclore Português,
por me ceder esta recolha.

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Os refluxos culturais da emigração portuguesa para o Brasil no fim
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Estes rapazes d’agora


Nenhum quer ficar solteiro.
CORO
Ele
Canta o cuco, canta, canta
A cantar ele vai e vem
Quem quiser casar c’oa filha
Faça carinhos à mãe.
CORO
Ela
Canta o cuco, canta, canta
A cantar ele vem e vai
Quem quiser casar c’oa filha
Dê cigarrinhos ao pai.
CORO
Verde-gaio de Casal d’Álvaro56
Grupo Típico O Cancioneiro de Águeda – Beira Litoral, Baixo Vouga
Verde-gaio, pena verde
Verde-gaio, pena verde
Vem cantar ao meu jardim
Ai, vem cantar ao meu jardim
Põe o pé na manjerona
Põe o pé na manjerona
O bico no alecrim
Ai, o bico no alecrim
O verde-gaio é meu
O verde-gaio é meu
Que me custou bom dinheiro
Ai, que me custou bom dinheiro
Custo-me quatro vinténs
Custou-me quatro vinténs
Lá no Rio de Janeiro
56  –  Agradeço a Carlos Saraiva, secretário-geral da Federação do Folclore Português
o envio desta moda. Este verde-gaio foi recolhido na aldeia de Casal d’Álvaro em fins
da década de 1950 pelos fundadores do Grupo Típico O Cancioneiro de Águeda (1958).

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Jaime Ricardo Gouveia

Ai, lá no Rio de Janeiro


Ó terra da minha terra
Ó terra da minha terra
Sombra da minha ramada
Ai, sombra da minha ramada
Eu hei-de voltar a ela
Eu hei-de voltar a ela
Ou solteira ou casada
Ai, ou solteira ou casada
Não há nada que mais cresça
Não há nada que mais cresça
Com’o pé de melancia
Ai com’o pé de melancia
Quem tem o amor ausente
Quem tem o amor ausente
Chora de noite e de dia
Ai, chora de noite e de dia
Verde-gaio, pena verde
Verde-gaio, pena verde
Empresta-me o teu vestido
Ai, empresta-me o teu vestido
O meu vestido são penas
O meu vestido são penas
Em penas ando metido
Ai, em penas ando metido
Referindo-se, ora genericamente ao Brasil, ora de forma mais es-
pecífica a determinadas cidades, nomeadamente ao Rio de Janeiro, as
canções populares portuguesas faziam eco da maior movimentação po-
pulacional da sua história, referindo a ausência do amado ou da amada
na outra margem do Atlântico, ou mencionando aspectos concretos do
modus vivendi brasileiro.

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Os refluxos culturais da emigração portuguesa para o Brasil no fim
do séculoXIX e início do século XX – um olhar a partir do folclore

Notas conclusivas
A recolha, o estudo e a divulgação que têm vindo a ser feitos pelos
grupos de Folclore de há várias décadas a esta parte permitem efectiva-
mente adensar o fraco conhecimento que hoje existe sobre o refluxo dos
portugueses que emigraram para o Brasil na segunda metade do século
XIX e primeiros decênios do século XX. Pelos verdadeiros grupos de
folclore, bem entendido. Esses, os que se dedicam a um trabalho sério
e rigoroso de pesquisa e salvaguarda desse grande patrimônio que é a
cultura popular num determinado período cronológico, detêm fontes que
urge explorar. Há um longo caminho a percorrer nesse domínio. Este es-
tudo pretendeu demonstrar como algumas dessas fontes permitem focos
nunca antes experimentados sobre o fenômeno emigratório que marcou
culturalmente tanto o país de acolhimento como o de origem.

A canção popular é, como ficou evidente, uma dessas fontes. Tran-


sitava de local para local, de geração em geração, de forma oral. Como
um conto. E quem conta um conto…. acrescenta-lhe um ponto. São can-
tigas e danças, sobretudo as danças, no geral, cheias de pontos, como os
contos! Sem autor. Como expressão anônima do povo que se afirma no
tempo e a ele resiste por conter em si reflexos vivos de uma sensibilidade
coletiva, comum a indivíduos nascidos no mesmo território. Por vezes,
denotando evolução, modificada nalguns pormenores, mas conservando
inalterável a ideia fundamental e a maneira particular de a traduzir. Com
alguns arranjos, aqui, e acolá, figurando não raro sintagmas edulcorados
que facilmente se identificam, suturando alguns buracos onde as memó-
rias dos idosos falhavam.

Circulando anônima entre o povo, a canção popular é, em toda a


parte, na simplicidade dos elementos que a constituem e no mistério que
a envolve, expressão fiel de quem a criou e recriou. A psicologia do povo,
a exteriorização da sua voz, do seu sentir, do seu desejo, é na música e na
poesia dos cantares que se apreende. A canção é, pois, a alma do povo.
E se o Brasil como destino estava no subconsciente do povo português,
então compreende-se que o Brasil esteja nas suas canções.

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Jaime Ricardo Gouveia

As gentes da terra sempre cantavam, desde a meninice à velhice, nas


mais diversas fases da vida. O canto sempre foi um bom conselheiro e
muitas vezes o remédio para o equilíbrio entre corpo e espírito. Dizia-se
que “quem canta seus males espanta”. Sofria-se cantando, lutava-se can-
tando, amava-se cantando. Cantava-se quando apetecia e a alma o pedia,
sem aprumadas composturas, conveniências ou distinção de maneiras.
Mulheres e homens. Homens como aquele que cuspia nas mãos para se
agarrar à enxada; cantava desmesuradamente para adoçar a sua existên-
cia, sem que isso lhe ficasse mal ou daí viesse mal ao mundo. Rude nos
modos e terno nos sentimentos; simples nas crenças, sagaz e penetrante
na filosofia da vida; capaz de agarrar toiros pelos chifres e quedar tímido
ante a força invisível de bruxedos; era também este o tipo de homem que
cantava.

Mas a quem se cantava? Deus, a mulher e a terra, eis a trilogia por


excelência que inspirava a canção popular. São estes, por conseguinte, os
amores do povo. E, entre os amores, o que mais se cantava era, precisa-
mente, o amor. O tema dominante das modinhas que se referem ao Rio de
Janeiro e outras cidades de forma específica, ou ao Brasil de forma geral,
é o amor. O amor no sentido pleno da palavra. De dar a vida e dá-la com
alegria, fazer depender a felicidade da felicidade do objeto amado. Um
amor de “bem-querer”. Delicada e profunda expressão lusíada, que enleia
na adorável simplicidade de três silabas, “bem querer”, os sentimentos de
dedicação e servidão, de lealdade e honestidade, de abnegação e ternura
que caracterizam a maneira especial de amar do povo português. É tam-
bém essa face que encontramos nesta poliédrica abordagem ao fenômeno
emigratório, sob o ângulo da cultura popular, nos seus fluxos e refluxos,
nas suas transmissões e apropriações. Afinal, a narrativa dessas modi-
nhas, que abre a caminho a uma história benjaminiana dos vencidos, não
consente olhar o oceano como um elemento de separação. O que a água
leva, a água traz, e embora seja difícil, senão impossível, determinar se
mais levou do que trouxe, a verdade é que essa enorme franja verde-azul
nunca separou senão fisicamente as duas margens.

212 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (474):177-216, maio/ago. 2017.


Os refluxos culturais da emigração portuguesa para o Brasil no fim
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Texto apresentado em junho/2016. Aprovado para publicação em


novembro/2016.

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Missão Naval Americana: os primeiros 20 anos (1922-1942)

217

Missão Naval Americana:


os primeiros 20 anos (1922-1942)
American Naval Mission:
the First Twenty Years from 1922 to1942
Ricardo Pereira Cabral1
Thiago Sarro2
Resumo: Abstract:
Este artigo tem o objetivo de apresentar os This article aims to present the work accom-
trabalhos realizados nos primeiros 20 anos da plished by the American Naval Mission (ANM)
Missão Naval Americana (MNA) junto à Ma- at the Brazilian Navy (BN) in the period be-
rinha Brasileira (MB). A MNA assessorou na tween 1922 and 1942. The ANM assisted with
modernização da estrutura organizacional da es- the modernization of the organizational struc-
tratégia naval brasileira e da tática, influenciou a ture and with naval strategy and tactics of the
construção de navios, arsenais e na capacitação BN, influenced the construction of ships and ar-
do pessoal de nível técnico. O resultado foi um senals and helped train technical-level person-
salto nas capacidades operativas da MB. nel. The result was a quantum leap in the BN’s
operational capabilities.
Palavras-chave: Marinha; Estados Unidos; Keywords: navy; U.S.A; Brazil.
Brasil.

Introdução
A MNA atuou de forma ininterrupta de 1922 ao primeiro semestre de
1931. Devido às dificuldades financeira por parte do Brasil, foi interrom-
pida, sendo retomada em 1932 e indo até 1942, quando foi novamente
descontinuada devido aos Estados Unidos terem entraram na Segunda
Guerra Mundial. Em 1947, foi retomada seguindo até 1977, quando foi
encerrada.

Registre-se que o tal fato não acarretou uma suspensão da coope-


ração, do apoio e da influência da Marinha norte-americana (US Navy)
sobre a Marinha do Brasil, algo que se faz sentir até hoje. Este artigo se
refere à pesquisa sobre a Missão Naval estadunidense atuante no Brasil
de 1922 até 1942.

1  –  Doutor em História Comparada pela UFRJ. Professor do Programa de Pós-Gradua-


ção em Estudos Marítimos Escola de Guerra Naval. E-mail: ricardopc@uol.com.br
2  –  Mestre em História Comparada pela UFRJ. Professor do Programa de Pós-Gradua-
ção em Estudos Marítimos Escola de Guerra Naval.

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Ricardo Pereira Cabral
Thiago Sarro

A Marinha no início do século XX


No início do século XX, o Exército e a Marinha estavam com uma
grande defasagem em termos tecnológicos, com vários equipamentos ob-
soletos em relação às principais forças armadas da Europa e dos Estados
Unidos. A necessidade de uma atualização dos meios, na formação profis-
sional, nas estratégias e táticas militares ficaram mais prementes devido
aos rápidos avanços ocorridos durante a Primeira Guerra Mundial. No
período acima citado, as principais potências militares em nível global
passaram por um rápido desenvolvimento tecnológico que teve amplas
repercussões nas suas estruturas operativas, logística e organizacional ex-
ponenciando suas capacidades militares.3

Em 1906, as concepções estratégicas advindas das ideias de Alfred


T. Mahan e o programa de construção naval britânico liderado por Sir
John Fisher se materializaram na construção do encouraçado britânico
HMS Dreadnought, revolucionário sobre vários aspectos, o que foi imi-
tado por todas as outras potências navais, como a França e a Alemanha,
por exemplo, que responderam com navios ainda mais potentes e velozes.

No Brasil, a influência britânica se manifestou no Programa de 1906,


conduzido pelo almirante Alexandrino Faria de Alencar, ministro da Ma-
rinha (de 1906 a 1910), que previa a construção de três encouraçados, três
cruzadores de escolta, dez contratorpedeiros e três submarinos. A conjun-
tura econômica não permitiu que se concretizasse e teve de ser reduzida a
dois encouraçados, três cruzadores e os dez contratorpedeiros.4

A chegada desses novos meios em 1910 provocou um salto tecno-


lógico e a necessidade de operadores (oficiais e marinheiros) com um
conhecimento técnico nas áreas de eletricidade, hidráulica, motores,

3  –  Podemos citar, entre outros, a utilização do motor a vapor, navios construídos intei-
ramente de aço, telegrafo sem fio, canhões de tubo raiado e carregamento pela culatra.
4  –  O fator econômico, ou seja, a falta de recursos para a concretização dos vários pro-
gramas de reaparelhamento e modernização é uma dificuldade até hoje presente. Uma
Marinha de Guerra necessita de um volume de recursos financeiros consideráveis para
se manter atualizada, com investimentos constantes e de longo prazo em pesquisa e no
desenvolvimento de tecnologias.

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Missão Naval Americana: os primeiros 20 anos (1922-1942)

balística etc. Apesar do impacto favorável na MB, esses navios rapida-


mente foram ultrapassados tecnologicamente durante a Primeira Guerra
Mundial, pois eram navios despreparados, principalmente, para a guerra
antissubmarino, vulneráveis a ataques aéreos e movidos a carvão. Tais
fatores levaram à necessidade de uma modernização dos principais meios
logo após o conflito. A rápida evolução da Guerra no Mar levou também
a uma profunda renovação da estrutura de ensino, do treinamento, das
concepções estratégicas, da tática e da construção naval.

No caso da Marinha, além desses impactos na área tecnológica, com


seus efeitos na área operativa, esses navios agregavam novas capacidades
a Esquadra. No entanto, a MB padecia de velhas práticas e costumes que
não se coadunavam com o novo regime e o século XX. A consequência
desse descasamento com a nova realidade sóciopolítica foi a Revolta dos
Marinheiros (1910),5 o que impôs a Esquadra uma série de limitações em
sua operacionalidade. Tais fatos provocaram um movimento da parcela
do oficialato a se pronunciar em favor de uma profunda reformulação
estrutural na MB, reformulação esta que buscasse melhor formação e
qualificação de seus quadros, reorganização das estruturas operativas e
administrativas que foram conhecidas como a Segunda Fase da Reforma
Alexandrino.6

Nesse período, especulava-se sobre a possibilidade de se contratar


uma missão estrangeira para assessorar o Ministro e o Almirantado a
reorganizar e modernizar a Marinha. Para tanto, foi considerada a hipó-
tese de contratação de instrutores britânicos (que ainda exerciam grande
influência sobre a MB naquela época), os alemães e os norte-americanos

5  –  As causas primárias da revolta estão ligadas a velhas práticas, tais como: castigos
físicos por faltas disciplinares, que, pesar de proibidos, se mantinham; o tratamento dis-
pensado aos marinheiros; os baixos salários; o recrutamento forçado, má alimentação e
condições de alojamento e higiene a bordo. Após negociações para o fim da revolta e com
a entrega dos navios e armas, a Marinha deu início a uma dura repressão aos participantes
e, principalmente, aos seus líderes.
6  –  A primeira Fase da Reforma se deu entre 1907 e 1910, quando foram criados órgãos
como o Almirantado, inspetorias (da Marinha, Fazenda e Fiscalização, Portos e Costas),
a Comissão Naval na Europa (sediada em Newcastle), escolas de aprendizes-marinheiros
(em oitos estados) e a reorganização do Estado-Maior da Armada.

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Ricardo Pereira Cabral
Thiago Sarro

considerados uma força ascendente. A opinião majoritária entre a oficia-


lidade era de que tal missão só seria vantajosa com a compra de novos
navios, com a implantação de novos métodos de treinamento e instru-
ção que levasse a Marinha a operar com eficiência esses novos meios de
combate e que para tanto era fundamental uma completa reformulação
doutrinária e organizacional.

A aliança não escrita Brasil-Estados Unidos

Desde o último quarto do século XIX, os Estados Unidos eram os


principais parceiros comerciais do Brasil, e o nível de seus investimentos
no século seguinte superariam os europeus. A chegada de José Maria da
Silva Paranhos Júnior, o Barão do Rio Branco, ao Ministério das Relações
Exteriores (1902-1912), levou o Brasil a uma maior aproximação com
os Estados Unidos e uma “aliança informal” com o objetivo de angariar
apoio político para o país nas várias negociações em curso no período.7

Um dos elementos-chave da política de Rio Branco era o fortaleci-


mento das Forças Armadas, em especial da Marinha, a fim de respaldar
as ações do governo brasileiro na política externa.8 Paranhos via ameaças
nas fronteiras ainda não delimitadas e no contexto internacional (ação das
grandes potências imperialistas) que justificavam a existência de Forças
Armadas com capacidades de prover a segurança do país. Achava que o
Brasil deveria investir até conquistar a superioridade militar em relação
aos seus vizinhos e rivais, especialmente, a Argentina.9

7  –  CERVO, Amado Luiz; Bueno, Clodoaldo. História da política exterior do Brasil.


Brasília: Ed. UnB, 2010. pp. 165-166.
8  –  HEINSFELD, Adelar. Rio Branco e a modernização dos mecanismos de defesa
nacional. Disponível no sítio eletrônico: http://www.upf.br/seer/index.php/rhdt/article/
viewFile/2462/1621. Acessado em 9/2/2015.
9  –  Os planos de reaparelhamento foram influenciados pelas concepções estratégicas
de Mahan (1840-1914) e o surgimento do encouraçado HMS Dreadnought (1906), da
Marinha Real britânica. Assim foram concebidos o Programa de 1904, do almirante Jú-
lio Noronha, ministro da Marinha (1902-1906), com acréscimos no Programa 1906, do
almirante Alexandrino Faria de Alencar, que ainda ampliou a Flotilha do Amazonas. Os
navios deste programa foram construídos em estaleiros britânicos. No entanto, a Esquadra
de 1910, quando comparada aos navios em construção, principalmente, no Reino Unido,
Estados Unidos e Japão, já estava obsoleta e o gap tecnológico se ampliaria durante e logo

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Missão Naval Americana: os primeiros 20 anos (1922-1942)

Nesse período, existia um estreito relacionamento entre a Marinha


do Brasil e as Marinhas do Reino Unido e dos Estados Unidos, devido
às seguidas compras de navios nessas duas nações, na cooperação em
termos da capacitação das tripulações, nos reparos e na aquisição de ar-
mamentos, máquinas, equipamentos e peças sobressalentes. A presença
de oficiais norte-americanos como instrutores na Escola Naval de Guerra,
transmitindo conhecimentos nos modernos métodos de combate no Curso
de Guerra nas disciplinas de Estratégia, Tática e Jogo de Guerra, tornava
a US Navy uma das favoritas à contratação para uma missão naval.

As transformações tecnológicas e a influência dos Estados Unidos


sobre a Marinha do Brasil no início do século XX
Durante o processo de aquisição de navios para o Programa de 1906,
o Almirantado reconhecia a necessidade atualizar e modernizar material
e pessoal a fim de que pudessem operar os novos meios de combate na-
val que estavam sendo adquiridos, compatíveis com as maiores marinhas
do mundo. O programa sofreu o impacto da Batalha Naval de Tsushima
(27/28 de maio de 1905)10 e do novo navio de guerra britânico o HMS
Dreadnought,11 fatos que levaram as marinhas do mundo a acreditar no
conceito dessa nova classe de navio, o encouraçado.

após a Primeira Guerra Mundial. MARTINS, Hélio Leôncio. História Naval Brasileira.
Volume V, tomo I B. Rio de Janeiro: Serviço de Documentação da Marinha, 1977. pp.
79-87.
10  –  A batalha confirmou o que vários analistas já tinham antecipado: devido ao surgi-
mento dos torpedos autopropulsados, seria necessário aumentar a distância de combate,
fazendo com os que os canhões de média potência e tiro rápido perdessem sua eficiência
contra a blindagem reforçada dos couraçados em favor de canhões de grosso calibre. Em
Tsushima, os japoneses engajaram os russos à longa distância e praticamente destruíram
sua esquadra.
11  –  O HMS Deadnought, de 160 m de comprimento, deslocando 21 ton., com canhões
de grosso calibre (de 305 mm nas cinco torres cada uma com dois canhões), lançador de
torpedos de 450 mm (5 tubos), casco couraçado em aço (279 mm nas partes mais impor-
tantes) e turbinas a vapor (outra inovação) que lhe permitiam uma velocidade de 21 nós,
provocou uma verdadeira revolução na construção naval. O navio britânico estabeleceu
um novo padrão para o principal navio da linha de batalha, tanto que os navios anteriores a
sua construção ficaram conhecidos como pré-Dreadnought (os ironclads ou couraçados).
No entanto, a aceleração das transformações nos armamentos e na propulsão, por sua vez,
fariam com que esse navio logo se tornasse obsoleto em vista de navios ainda maiores e

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Ricardo Pereira Cabral
Thiago Sarro

O Brasil foi o terceiro país do mundo a encomendar a construção de


navios do nível do Dreadnought, dos ingleses e da classe Carolina do Sul,
dos Estados Unidos. Os navios foram construídos no Reino Unido, ini-
cialmente foram encomendados três, mas devido às dificuldades financei-
ras só dois foram recebidos o Minas Gerais e o São Paulo (entregues em
1910), e os recursos que sobraram foram utilizados para a construção de
novos navios na Inglaterra12. A falta de recursos financeiros e as seguidas
inovações tecnológicas na concepção do encouraçado fizeram com que a
Marinha cancelasse a ordem de construção do Rio de Janeiro, tendo em
vista que o conceito do navio britânico já estava ultrapassado, fazendo
com que o Brasil tivesse dois navios novos, porém obsoletos.
Em 1911, o Almirante João Marques Baptista de Leão, ministro da
Marinha, encomendou, na Itália, três submarinos, que viriam a ser clas-
sificados como classe Foca. Com a chegada desses meios se constituiu
a Flotilha de Submersíveis (1914). No ano seguinte, foi criada a Escola
de Submersíveis e, em 1916, foi adquirido um navio-tênder para apoio
(entregue em 1917).

A chegada de um grande número de navios modernos em relação ao


que a Marinha possuía e a Revolta dos Marinheiros fizeram com o almi-
rante Marques de Leão, ministro da Marinha, propusesse a contratação de
oficiais estrangeiros para ocuparem altas funções na organização:
Por fim, concordava com o fato de que, por uma série de motivos, os
oficiais superiores da Marinha estavam completamente desatualiza-
dos no que concernia à moderna técnica bélica naval. E propunha a
contratação de missão estrangeira que nos transmitisse, em toda latitu-
de hierárquica, sua experiência e seus conhecimentos. Reconhecia que
muitos de seus colegas considerariam antipatriótica e humilhante essa
medida, mas afirmava: “Prefiro confessar a minha situação e assimilar
a de meus camaradas, mostrar ao País os males e indicar os remédios,
por de parte a vaidade, sopitar preconceitos, mas salvar a Marinha.”13
mais potentes.
12  –  Foram dois cruzadores (Classe Bahia) e dez contratorpedeiros (Classe Pará). Em
1911, a Marinha encomendou a Itália, a construção de três submarinos, a Classe F (ou
Foca), entregues em 1912.
13  –  Relatório do almirante João Marques Baptista de Leão, ministro da Marinha, de

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Missão Naval Americana: os primeiros 20 anos (1922-1942)

A resistência dos oficiais da Marinha ainda levou um certo tempo


a ser vencida, mas o programa de reformas, não. Em 1911, Marques de
Leão propôs a criação do Curso Superior de Marinha, visando preparar os
oficiais para as funções de comando, mas devido às dificuldades econô-
micas do país e às restrições orçamentárias, não foi efetivado.14

As diversas reformas realizadas ao longo de mais de uma década


atingiram o recrutamento e a formação dos marinheiros e graduados da
Esquadra, seguindo as recomendações do almirante Marques de Leão,
com a criação de novas escolas de aprendizes e atualização dos regula-
mentos, normas e instruções (1915), para se suprir as necessidades de
uma tripulação mais qualificada destinada a operar navios mais moder-
nos e complexos que exigiam conhecimentos em mecânica, hidráulica e
eletricidade.

A tarefa que a Armada avocou para si era muito difícil, tendo em vis-
ta que o país não possuía uma base industrial robusta e diversificada, nem
a quantidade trabalhadores qualificados suficientes que desse à Marinha
a mão de obra especializada de que necessitava. Tais fatores levaram a
Força Naval a buscar recursos para criar sua própria infraestrutura com a
construção de um novo arsenal de oficinas especializadas e na formação
de sua própria mão de obra.

A reforma Marques de Leão fora inspirada na organização vigente na


Marinha Britânica. Buscaram dinamizar a estrutura administrativa e criar
processos de tomada de decisão descentralizados. Entretanto, com a volta
do almirante Alexandrino Faria de Alencar ao cargo de ministro, foram
abandonadas, o que em nosso entendimento significa a falta de consenso
entre os almirantes com relação ao caminho a ser seguido.15
1911. Apud MARTINS, Hélio Leôncio. A revolta dos Marinheiro de 1910. In: História
Naval Brasileira. vol. V, tomo 1 B. Serviço de Documentação da Marinha: Rio de Janeiro,
1997. p. 207.
14  –  O Curso era na Escola Naval e seu objetivo era preparar oficiais para as funções de
comando.
15  –  CAMINHA, Herick Marques. Estrutura administrativa da Marinha. In: MARTINS,
Hélio Leôncio. A revolta dos Marinheiro de 1910. In: História Naval Brasileira. vol. V,
tomo II. Serviço de Documentação da Marinha: Rio de Janeiro, 1985. pp. 41-44.

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Thiago Sarro

Por outro lado, uma série de eventos mostrou um crescimento da


influência norte-americana sobre a MB, como, por exemplo, o envio de
tripulações para treinamento nos navios estadunidenses, a modernização
das embarcações adquiridas junto aos ingleses, que não poderiam ser
feitas no Brasil, foram feitas em Nova York; a publicação, na Revista
Marítima Brasileira, de traduções de artigos estrangeiros sobre os mais
diversos assuntos e a chegada de oficiais e técnicos norte-americanos para
prestarem serviço em diversos estabelecimentos da Marinha, na Aviação
Naval e na radiotelegrafia.

Em 1914, o almirante Alexandrino Faria de Alencar16 criou a Escola


Naval de Guerra (ENG), com a finalidade de preparar os oficiais para as
funções de comando, estudo dos grandes problemas navais, formular um
pensamento doutrinário unificador. O objetivo era fazer da Escola um
centro de altos estudos sobre a guerra no mar e do pensamento naval bra-
sileiro. O novo curso de comando, chamado de Geral, incluía, além das
disciplinas já previstas na proposta do Curso Superior, outras de nível téc-
nico (como oceanografia, eletrotécnica etc.) e outras voltadas para o nível
político-estratégico. Um curso tão abrangente e qualificado como este,
exigia um número de professores civis e militares especialistas que não
existiam no país. A saída encontrada para viabilizar o curso e promover
a modernização da visão tática e estratégica que se buscava foi a contra-
tação de oficiais estrangeiros para servirem como instrutores para o novo
curso. A princípio foi considerada a possibilidade de solicitar oficiais da
Marinha do Reino Unido, para instrutores da nova Escola, mas com a
eclosão da guerra na Europa e devido à proximidade política com os Esta-
dos Unidos, o governo brasileiro entrou em negociações com Washington
para a contratação de um oficial superior da sua Marinha para ministrar
a disciplina “Serviço de Estado-Maior e preparo do navio para o comba-
te”. Neste mesmo ano chegou o capitão de fragata Philip Williams, que
também foi responsável por outra disciplina “Jogos de Guerra” e exerceu

16  –  Almirante Alexandrino Faria de Alencar foi ministro em três períodos, de 1906-
1910, 1913-1918 e de 1922-1926. Um dos seus primeiros atos foi revogar as reformas de
Marques de Leão e retomar o processo de centralização.

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Missão Naval Americana: os primeiros 20 anos (1922-1942)

a função de Adido Naval.17 A difusão dos conhecimentos passados pelos


oficias instrutores norte-americanos se dava não só pelas palestras, aulas
ministradas na ENG e a publicação de artigos na Revista Marítima Bra-
sileira (RMB).18

Nesse período, como já ressaltado acima, a RMB, com sua ampla


circulação entre a oficialidade, fácil acesso aos seus exemplares nas bi-
bliotecas e na recepção de artigos para publicação, exerceu um papel fun-
damental na difusão dos conhecimentos adquiridos nas diversas escolas
da Força Naval, na discussão de aspectos técnicos, doutrinários, estra-
tégicos e táticos, no acompanhamento e na análise dos combates navais
da Primeira Guerra Naval, na tradução de artigos estrangeiros (técnicos,
teóricos etc.), levando as orientações do Ministro da Marinha pela publi-
cação de seus discursos e relatórios.19

Em seu relatório de 1915, o almirante Alexandrino reafirmou suas


convicções quanto à centralização, para a unidade de comando, de órgão
de assessoramento técnico, tendo em vista que era oficial muito antigo e
experiente nas artes navais. Retirou várias competências administrativas
(exceto o preparo de processos para a justiça militar) e de assessoramento
do EMA para concentrá-lo no comando militar da esquadra e de estudo da
guerra naval, entre outros assuntos, como formação de oficiais e praças,
questões relativas às modificações no programa de reaparelhamento de
1906.

A necessidade de se reestruturar a Marinha era urgente, mas a exces-


siva centralização de Alexandrino atrapalhava, como afirma Raul Soares,

17  –  ALVES DE ALMEIDA, Francisco Eduardo. Conferência sobre a Escola de Guerra


Naval, em comemoração aos seus 100 anos de criação.
18  –  WILLIAMS, Philip. O estudo da arte da guerra. Revista Marítima Brasileira, ano
XXXIV, fevereiro de 1915, Nrº 8.
19 – A Revista Marítima Brasileira, naquele período, era o principal meio de difusão de
conhecimento e de discussão dos assuntos navais.

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ministro da Marinha entre 1919-1920, em seu relatório ao presidente da


República.
Na Marinha havia se apagado, por força do hábito, qualquer discri-
minação entre direção e comando, entre questões administrativas e
questões técnicas.
Tudo se concentrava no gabinete do Ministro, onde vinham ter, sem
informações precisas, os assuntos mais variados, inclusive as mais in-
significantes questões de detalhes.20

Ao retornar ao Ministério da Marinha, o almirante Alexandrino ini-


ciou a Segunda Fase da Primeira Reforma (1914-1922) e a Segunda Re-
forma (1923-1934)21.

Caminha afirma que as reformas apresentavam


duas falhas importantes: excessiva centralização administrativa, pela
subordinação direta ao ministro de grande número de órgãos, não ape-
nas de direção setorial superior, mas até de prestação de serviços...o
trato dos problemas aos diversos corpos e quadros de pessoal (fossem
oficiais, inferiores ou praças) ser atribuído separadamente ao Estado-
-Maior da Armada e às diferentes inspetorias técnicas, dificultando
estabelecer-se uma só política, quantos fossem os corpos e quadros
pelos quais se distribuía o pessoal da Marinha.22

Em 1916, a Marinha, influenciada pelo desempenho do avião na Pri-


meira Guerra Mundial, criou da Aviação Naval e a Escola de Aviação Na-
val (1916), com a compra de três aerobotes da empresa norte-americana
Curtis Aeroplane Company. Orton Hoove, piloto-mecânico, foi enviado
pela empresa para montagem dos aparelhos e instrutor de voo. Posterior-

20  –  Relatório do Ministro Raul Soares, publicado na RMB, pp. 734.


21  –  No relatório de 1915, o almirante Alexandrino reafirmou suas convicções quanto à
centralização e que visa dar unidade de comando. A reforma retirou várias competências
administrativas (exceto o preparo de processos para a justiça militar) e de assessoramento
do EMA para concentrá-lo no comando militar da esquadra e de estudo da guerra naval.
Tratou de outros assuntos, como formação de oficiais e praças, e realizou modificações no
Programa de Reaparelhamento de 1906.
22  –  CAMINHA, Herick Marques. Estrutura administrativa da Marinha. In: MARTINS,
Hélio Leôncio. História Naval Brasileira. vol. V, tomo II. Serviço de Documentação da
Marinha: Rio de Janeiro, 1985. p. 14.

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Missão Naval Americana: os primeiros 20 anos (1922-1942)

mente, oficiais brasileiros foram aos Estados Unidos para adquirir mais
peças e materiais necessários para a construção de aeronaves.23

Aqui, cabe ressaltar que, no caso da Aviação Naval, a presença de


oficiais e mecânicos norte-americanos na instrução do pessoal e manu-
tenção do material foi uma constante, ainda que parte do material fosse
originário de outros países, além dos EUA.

O Brasil na Primeira Guerra Mundial


A participação do Brasil na Primeira Guerra Mundial se deu após o
afundamento de quatro navios brasileiros, levando o governo Venceslau
Brás (1914-1918) a declarar guerra ao Império Alemão e seus aliados.
A participação brasileira foi modesta. Enviou uma missão médica para
atuar na França e uma Divisão Naval para operar onde o Almirantado in-
glês julgasse conveniente, além de outras providências, como a patrulha
da costa e a ocupação militar das ilhas de Trindade e Fernando de Noro-
nha. Essa preferência dos brasileiros desagradou aos norte-americanos,
que esperavam a possibilidade de atuar em conjunto com os brasileiros.

A Divisão Naval de Operações de Guerra (DNOG)24, sob o comando


do contra-almirante Pedro Max Fernando de Frontin, recebeu a missão de
patrulhar a rota Dacar-São Vicente-Gibraltar. No caminho para a África, a
Divisão foi vítima da gripe espanhola, em Freetown, provocando inúme-
ras baixas e limitando a ação da DNOG, que, em termos operacionais não
estava aparelhada adequadamente para guerra antissubmarino25.

O Brasil também enviou um grupo de 12 aviadores à Inglaterra para


treinar e participar de missões junto a Royal Naval Air Force, outro cons-

23  –  LINHARES, Antônio Linhares. Aviação Naval Brasileira 1916-1941. 2ª ed. Se-
nai:2001. pp. 5-15.
24  –  Constituída pelos cruzadores Bahia e Rio Grande do Sul, contratorpedeiros Piauí,
Rio Grande do Norte, Paraíba e Santa Catarina, um navio-tênder de reparos Belmonte e o
rebocador Laurindo Pita.
25  –  MARTINS, Hélio Leôncio. O Brasil na Guerra. In: História Naval Brasileira, vol.
5º, tomo 1 B. Rio de Janeiro: Serviço de Documentação da Marinha, 1977. pp. 262-278.

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tituído de dois pilotos para os Estados Unidos e um terceiro composto por


seis aviadores seguiu para a Itália.26

O Período Entre-Guerras 1918-1939: os projetos de modernização do


Exército e da Marinha na República Oligárquica
A aproximação entre as Marinhas do Brasil e dos Estados Unidos
se deu por etapas, devido aos interesses de ambos os países, dos brasi-
leiros, para terem acesso a embarcações modernas e se atualizarem nas
táticas navais; já os americanos, empenhados em vender navios e outras
facilidades navais,27 ampliar sua influência sobre a MB e outras sul-ame-
ricanas. Existiam vários obstáculos a serem superados para se concretizar
uma aliança entre as duas Marinhas: a incerteza econômica, a grande in-
fluência exercida pelos britânicos e o aparente desinteresse da própria US
Navy (apesar do empenho do embaixador estadunidense no Rio de Janei-
ro). O marco inicial dessa maior aproximação foi o estágio realizado por
alguns oficiais da Marinha do Brasil no decorrer das operações militares
durante a Primeira Guerra Mundial em navios da Marinha estadunidense,
em 1917.28

Em 1918, um estaleiro em Nova York foi escolhido para proceder


com a modernização dos encouraçados São Paulo e Minas Gerais, que
foram realizados logo após a Grande Guerra (o primeiro foi de agosto
de 1918 a janeiro de 1920, o segundo de agosto de 1920 a novembro de
1921). Os oficiais desses navios aprenderam a lidar com as novas tecno-
logias e incorporaram as novas estruturas organizacionais das belonaves
estadunidenses, o que provocou um salto do nível de operacionalidade
dos dois encouraçados. Ao voltarem para o Brasil, esses oficiais se propu-

26  –  Linhares. Idem. pp.16-19.


27  –  Porto seguro para atracar, receber suprimentos diversos, atendimento médico espe-
cializado impossível de se fazer a bordo, fazer pequenos reparos, local para o descanso
para a tripulação e/ou a incorporação de substitutos depois de longo tempo no mar entre
outras atividades.
28  –  SMITH, Joseph. American Diplomacy and Naval Mission to Brazil, 1917-30. In:
Inter-american Economic Affairs. Summer 1981, vol. 35, nº 1. Washington: Inter-ameri-
can Economic Affairs, 1981.

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Missão Naval Americana: os primeiros 20 anos (1922-1942)

seram a difundir os conhecimentos adquiridos pela Esquadra e em artigos


na já citada RMB.29

Outra constatação da crescente influência do Estados Unidos foi a


contratação dos capitães-tenentes P. A. Cussachs e James Oliver, ambos
da Missão Militar Americana, destinada à instrução dos pilotos brasilei-
ros na Escola de Aviação Naval, algo recorrente antes mesmo da Missão
Naval, como era o caso dos oficiais da Marinha americana na Escola Na-
val de Guerra.30

Em 1919, o governo brasileiro contratou uma Missão Militar France-


sa (MMF) para auxiliar na instrução e modernização do Exército. O con-
trato de quatro anos estipulava que os oficiais franceses comandariam as
escolas de estado-maior, intendência, veterinária e uma destinada a capi-
tães (que teria que ser criada) e privilegiar a indústria francesa na compra
de material bélico e equipamentos. A missão desempenhou atribuições
que foram além do previsto, como na elaboração de planos de defesa, de
mobilização, de atualização da doutrina militar, da tática, da estratégia, na
assessoria dos programas de reforma/modernização. Estimulou a criação
da aviação militar e a cooperação bilateral, enviando oficiais brasileiros
para as escolas francesas. Em que pesem os desacordos com os oficiais
nacionais e as limitações na adaptação da doutrina militar francesa ao
Exército Brasileiro, a MMF foi bem-sucedida nos seus objetivos, tanto
que foi renovada por seis vezes até 1940.31

29  –  O movimento foi importante no período. Para conhecer um pouco mais o assunto,
sugiro a leitura do artigo de SANTOS FILHO, Pedro Gomes. Os Arquiduques. Revista de
Villegagnon. Nº 2. Ano II. 2007. Disponível no sítio eletrônico: http://www.mar.mil.br/en/
revistaen2007.pdf Acessado em 24/5/2015. pp. 18-22.
30  –  LINHARES, Antônio Pereira. Aviação Naval Brasileira. Rio de Janeiro: Senai,
2001. p. 16.
31  –  ARAÚJO, Rodrigo Nabuco. Missão Militar Francesa. In: Dicionário Histórico-
-Biográfico Brasileiro. CPDOC. Fundação Getúlio Vargas. Disponível no sítio eletrônico:
http://cpdoc.fgv.br/sites/default/files/verbetes/primeirarepublica/MISS%C3%83O%20
MILITAR%20FRANCESA.pdf. Acessado em 25/9/2015.
PELEGRINO FILHO, Ary. A influência da Missão Militar Francesa na Eceme. Padece-
me. 2º quadrimestre. Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, 2005. Disponível
no sítio eletrônico: http://servweb.eceme.ensino.eb.br/meiramattos/index.php/RMM/arti-
cle/viewFile/437/384. Acessado em 25/9/2015.

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Ricardo Pereira Cabral
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O sucesso dos franceses na modernização do Exército superou as


resistências de parte da oficialidade e estimulou a Marinha a se engajar
em um processo semelhante, adaptado às suas necessidades e característi-
cas particulares. Especulava-se sobre a possibilidade de se contratar uma
missão junto aos britânicos ou norte-americanos.

Ao tomar conhecimento das intenções do governo brasileiro Edwin


Morgan, embaixador estadunidense no Brasil, estabeleceu contatos para
que a Marinha de seu país fosse a escolhida para a missão. A sua primeira
dificuldade foi convencer a própria US Navy da importância da tarefa,
das possibilidades que poderiam se abrir em termos de negócios e do
aumento da influência sobre a Marinha do Brasil e do próprio governo
brasileiro.
This office has understood that it was a basic principle of our South American
policy that all American Navies as much as possible should be brought under
the influence of the navy of the United States. No more practicable method
could probably be devised than by accrediting American naval missions to the
navies of the leading South American Powers. Not only would the probability
be increased of the future construction in our shipyards of their naval vessels
and orders for naval material being placed with our steel Works, but the deve-
lopment and standardizing of the American continental type of naval Science
would facilitate the cooperation of the American naval units when either a
necessity opportunity should present itself. 32

Em 1920, o contra-almirante Felinto Perry, no Relatório da Escola


Naval de Guerra, ressaltou a importância da disciplina Jogos de Guerra,
ministrada por oficial norte-americano, e as convergências entre os pro-
gramas da ENG com a Naval War College norte-americana, destacando
a validade de continuar a adaptar o currículo da instituição de ensino de
altos estudos da US Navy com a sua congênere nacional33. Este pon-
to é interessante, pois, até o momento, na pesquisa dos documentos no

32  –  Morgan to Lansing, nº 1452, February 5, 1919, 832.34/140. In: SMITH, Joseph.
American diplomacy and Naval Mission to Brazil, 1917-30. Inter-american economic
affairs. Vol.35. Summer 1981, nº 1. Washington: Inter-american economic affairs Press.
p. 77
33  –  Relatório da Escola Naval de Guerra, apresentado pelo contra-almirante Felinto
Perry ao ministro da Marinha, em 1920.

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Missão Naval Americana: os primeiros 20 anos (1922-1942)

Arquivo da Marinha não encontramos contestações ou discordâncias em


relação à atuação dos instrutores norte-americanos na ENG.

Os relatórios dos ministros da Marinha vice-almirante Alexandrino,


vice-almirante Antônio Coutinho Gomes Pereira (1918-1919), Raul Soa-
res de Moura (1919-1920), João Pedro de Veiga Miranda (1921-1922)
registraram a necessidade de uma profunda reforma estrutural e moderni-
zação da Marinha Brasileira a fim de sanar a dependência de fornecedores
e instalações externas para adquirir, reparar ou modernizar as unidades
da Esquadra, a falta de estoques (de sobressalentes, combustível etc.), a
insuficiência de pessoal qualificado, a carência de embarcações de apoio
e a premência de aquisição de navios modernos e da importância que teria
para a Força a contratação de uma missão estrangeira para assessoramen-
to e instrução.

Observamos que as carências eram bem conhecidas pela própria Ma-


rinha. No entanto havia discordâncias entre os almirantes em relação ao
tipo de reorganização a ser implementada, como alude o ministro Veiga
Miranda, ao se referenciar ao contra-almirante Machado da Silva ao re-
futar a opinião de outros colegas e da necessidade de se contratar uma
missão estrangeira para aconselhar e auxiliar nas reformas que fossem
necessárias para adequar a Marinha aos requisitos da guerra moderna.
O que vejo é que a Marinha se reorganiza, se reconstitui desde o ano
de 1907, e todos os anos pede, e o Congresso autoriza, reorganizar os
seus serviços, e chegamos nesta data a tal estado de perfeição que o
almirante [Américo Brazílio] Silvado diz “que ela se reconstitui ou se
dissolve”. É para por um paradeiro a essas reorganizações constantes e
contínuas, em que ficamos sempre desorganizados, que eu penso que
o Almirante deveria traçar uma organização, que a grande missão es-
trangeira viria dizer se estava de acordo com as necessidades da guer-
ra moderna, porque as funções práticas só se conhecem praticando, e
se as grandes nações militares chegarem ao aperfeiçoamento atual, é
porque gastaram tempo, dinheiro e dispuseram de um grande material,
corrigindo sucessivamente as imperfeições que foram aparecendo.34

34  –  Relatório do Dr. João Pedro da Veiga Miranda, ministro da Marinha, de 1922. Dis-
ponível no sítio eletrônico: http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u2156/000011.html. Acessado em

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Em termos econômicos, ressaltamos que o Brasil, naquele período,


era um país agrário-exportador, com pouquíssimas indústrias de bens de
consumo não duráveis e que mesmo este processo de industrialização ain-
da era incipiente, em setores como a metalurgia, a siderurgia. Não havia
refinarias de petróleo. As máquinas, os equipamentos e as ferramentas,
em grande parte, eram importadas; o pessoal de nível superior ou médio
era insuficiente para atender à demanda da MB na construção naval, para
a realização de reparos e de modernização. Resumindo, não havia infraes-
trutura à altura das necessidades de atualização do material naval para
um nível próximo ao das grandes potências marítimas. Além dessas difi-
culdades, faltavam recursos financeiros e sobrava instabilidade política.35

A contratação da Missão Naval Americana


João Pedro da Veiga Miranda, ministro da Marinha 1921-1922, em
seu relatório anual, fez uma extensa justificativa a Epitácio Pessoa, pre-
sidente da República, sobre a necessidade de contratação de uma Missão
Naval e cita o comentário do contra-almirante Paiva Meira que afirma
que a Marinha, diante do “estado de precariedade que jamais atingira” e
Não sendo agora o momento para se discutirem as causas da nos-
sa decadência naval, nem fazerem recriminações, julgo que a grande
missão vem sanar males enraizados, acumulados desde longos anos.
Possuímos, sem dúvida, muitas competências, verdadeiras erudições
em assuntos navais, mas chegamos aos extremos da consumpção na-
val, e só uma grande missão, inglesa ou americana, não importa a
nacionalidade, será capaz de reunir, enfeixar, concatenar todos estes
preciosos fatores, que se estão perdendo por falta de coesão e que se
consomem em uma agonia lenta, no prurido das reformas e nas lutas
das competições e das ambições.36

4/10/2015. p. 7.
35  –  BAER, Werner. A Economia Brasileira. São Paulo: Nobel, 2009. pp.45-54.
36  –  Relatório do Dr. João Pedro da Veiga Miranda, ministro da Marinha, ao presidente
da República em 1922. O principal assunto abordado nesse documento foi a contratação
da Missão Naval Americana, os antecedentes e a justificativa para isso, além dos ter-
mos básicos da negociação. Disponível no sítio eletrônico: http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/
u2156/000012.html. Acessado em 4/10/2015. Pág. 8.

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Missão Naval Americana: os primeiros 20 anos (1922-1942)

Desde 1906, afirmou Veiga Miranda, já se tinha consciência da ne-


cessidade de profundas reformas na MB. Os ciclos de reorganização se
esgotaram, sem resolverem os problemas estruturais da Força, ou seja, as
reformas realizadas até então não surtiram o efeito esperado, provavel-
mente devido a um conjunto de fatores, dos quais podemos citar: a falta
de recursos, de infraestrutura (que se estendia ao país), da abordagem
equivocada dos problemas estruturais, da falta de paciência em deixar
que as medidas tomadas consolidassem, antes de partir para uma nova
forma de organização, do comodismo e da falta de adesão do pessoal.

O sucesso da Missão Francesa no Exército e o reconhecimento do es-


tado de precariedade da MB, segundo o Ministro, faziam da contratação
de uma missão estrangeira uma necessidade. Veiga Miranda, autorizado
por Epitácio Pessoa, e mediante contato com a Marinha norte-americana,
solicitou a vinda do contra-almirante Carl Theodore Vogelgesang, que
tinha chefiado a missão de instrutores norte-americanos na Escola Naval
de Guerra em 1918, para combinar as bases do contrato que seriam trans-
mitidas a Washington pelo embaixador Hughes.37
O objetivo da missão é cooperar com o ministro da Marinha e com a
oficialidade desta naquilo que for necessário à boa organização dos
serviços, em terra e no mar; no sentido de aperfeiçoar os métodos
de trabalho nas oficinas, nos estabelecimentos de terra e a bordo dos
navios; a fim de treinar e instruir o pessoal; e de elaborar executar
planos para o aperfeiçoamento da marinha de Guerra, para exercícios
da esquadra e para operações de naves.38

Suas atribuições seriam de aconselhamento técnico para a organiza-


ção, equipamento, operações, instrução e treinamento da MB. O efetivo
previsto era de 16 (dezesseis) oficiais e 19 (dezenove) praças, a maioria
especialistas, para o exercício de uma grande variedade de funções.39

37 – Idem, p. 11.
38  –  Contrato entre os governos dos Estados Unidos da América do Norte e dos Estados
Unidos do Brasil. Contrato da Missão Naval. AB-PR Cx 75 Doc. 290. Artigo I Objeto e
Duração, p. 1.
39 – Idem. pp. 2-4.

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A missão tinha uma duração prevista de quatro anos, a contar da


data de assinatura, podendo ser prorrogada, mediante aviso com seis me-
ses de antecedência da expiração do contrato. Estava previsto que o Brasil
não poderia contratar outra missão para a mesma finalidade. Os membros
da MNA permaneceriam na comissão por dois anos, quando então deve-
riam ser substituídos. Além disso, Washington poderia reduzir o tempo de
permanência de um ou mais membros da missão e substituí-lo por outro,
mediante aprovação prévia do governo brasileiro.40

Para fins administrativos, o chefe da Missão ficaria ligado ao Es-


tado-Maior da Armada (EMA); três oficiais ficariam lotados na ENG;
os demais oficiais especialistas, artilharia, máquinas, construção naval,
destroieres/torpedos, submarinos/minas e aviação seriam designados para
outros órgãos da Marinha; o mesmo se daria com as praças especialistas:
mecânicos, mecânicos de aviação, radiotelegrafista, eletricista, chefe de
torre, torpedista e caldeiras; abriu-se ainda a possibilidade da inclusão
de novos e mais especialistas. Cada membro da Missão teria um assis-
tente ou colaborador brasileiro para auxiliá-lo no cumprimento de suas
tarefas.

O acordo estabelecia que o chefe da Missão teria como


obrigação aconselhar e cooperar com o chefe do Estado-Maior da Ar-
mada, na qualidade de assistente técnico, em tudo quanto se referir a
organização, equipamento, operações navais, instruções e treinamen-
to.41

A MNA também deveria assessorar a compra de material de guerra


pela Marinha, sem a obrigatoriedade que fosse norte-americano. Nes-
se período, já com a assessoria da Missão, foram elaborados o Terceiro

40 – Idem. pp. 1-4.


41  – Idem. pp. 4-5.

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Missão Naval Americana: os primeiros 20 anos (1922-1942)

(1923)42 e Quarto (1924)43 Programas Alexandrinos, relativo a aquisições


de navios de guerra. Informo que devido às condições econômicas do
período, tais programas não foram implementados.

O contrato estabelecia que, em caso de guerra do Brasil com outra


nação ou de uma guerra civil, os membros da Missão não tomariam parte,
de forma alguma, nas operações navais.44

No detalhamento do contrato, estabeleceu-se a remuneração, abo-


nos, pagamento de despesas diversas, licenças (no caso de permanência
acima de dois anos), abordagem de casos de necessidade de interrupção/
desligamento e retorno aos Estados Unidos e casos de falecimento. Os
oficiais e graduados estadunidenses receberam da Marinha uma equiva-
lência com os postos da Marinha do Brasil, sempre respeitando a prece-
dência do mais antigo.45

Compunham a primeira MNA: o CMG Kearney T. A. (engenheiro),


CMG Luther M. Overstreet (operações), CMG Joseph J. Cheathan (supri-
mentos), CMG Julius A. Furer (engenheiro naval), CF Percival Rossiter
(médico), CF Ralston S. Holmes, CF Theodore G. Ellyson (aviador), CF
Aubrey W. Fitch (artilheiro), CF Charles C. Gill (operações), CF Augus-
tino Beauregard (comunicações), CF William Baggaley (operações), CF
William O. Spears (operações), CC William Monroe (submersíveis), CC
Penn L Carroll (máquinas) e CT John Pennington. Os suboficiais Sil-
verius Bungard, William Crowell, Rasmus Christensen, Thomas Clark-

42  –  O Relatório do ministro Alexandrino, de 1923, entendia como fundamental se com-


pletar o Programa de 1906 e adquirir: 1 encouraçado, de 35 mil ton. de deslocamento,
canhões de 16” e velocidade de 23 nós; 1 cruzador de 10 mil ton. canhões de 8” e velo-
cidade de 35 nós; 5 destroieres de 1 mil a 1.200 ton; 5 submarinos de 800 a mil ton. 1
porta-aeroplano; 1 navio-mineiro; 1 navio-hidrográfico e 10 lança-minas. pp. 18-23. O
programa era muito ambicioso e as condições econômicas não eram as mais favoráveis,
por isso não foi concluído na sua totalidade. Disponível no sítio eletrônico: http://brazil.
crl.edu/bsd/bsd/u2157/ Acessado em 5/10/2015
43  –  Devido às dificuldades já citadas, foi elaborado o Quarto Programa, mais modesto
que o seu predecessor. Previa um Programa de Emergência para a aquisição de 3 cruzado-
res de 10 mil ton. 15 destroieres de mil a 1.200 ton e 10 submarinos de mil ton.
44 – Idem. p. 5.
45 – Idem. pp. 5-10.

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Ricardo Pereira Cabral
Thiago Sarro

son, Frank Dazler, Francis Englert, Stanley Fitch, Clinton Goree, James
L Master, James Osborn, Smiley Regan, James Rafferty, John Shaffer,
Emmet Stover, Jay Wright, Lawrence Zerbe e George Staut.46

Ao chegar o Alte Vogelgesang, chefe da Missão Naval Americana,


fez a seguinte declaração:
É com grande alegria que nós, da missão naval norte-americana, che-
gamos ao Brasil, para nos encarregarmos de importante tarefa que
nos foi cometida. Os Estados Unidos têm recebido várias distinções e
cortesias extraordinárias do povo e do governo de vosso país. E assim
que, em 1876, foi o Brasil o único país do mundo que mandou aos Es-
tados Unidos da América, como seu representante extraordinário S.M.
o imperador Pedro II. Foi um navio brasileiro que, a 4 de junho de
1776, na baía de Delaware, salvou pela primeira vez nossa bandeira.
Quando os Estados Unidos anunciaram ao mundo a Doutrina de Mon-
roe, foi o Brasil o único país da América do Sul que aceitou essa dou-
trina, propondo então uma aliança com o mesmo objetivo; e ainda há
pouco esteve o Brasil aliado aos Estados Unidos na guerra contra a
Alemanha. Agradecemos, por isso, a este país, e apreciamos muito
os seus nobres impulsos de solidariedade pan-americana. Considera-
mos que a aceitação por parte do Brasil da missão americana é mais
uma nova prova, não só da tradicional e leal amizade que tem unido
até hoje, os dois povos e governo, senão também da reciprocidade de
interesses dos dois países. Nós, oficiais e suboficiais da missão, nos
sentimos honrados e orgulhosos por termos que servir a Marinha do
Brasil, e esperamos sinceramente cumprir com satisfação os altos de-
veres com que nos honraram o povo e o governo brasileiros. A missão
traz consigo oficiais, cuja capacidade não só se formou no estudo e no
manuseio dos vastos problemas da administração naval, como ainda
na prática diária do mar, na paz e na guerra.
Os oficiais e suboficiais que a constituem são “experts”, não só no
conhecimento, como também na prática das suas especialidades e são
realmente representantes genuínos do mais elevado tipo de oficial da
Marinha norte-americana. Muitos deles são conhecidos velhos de ofi-

46  –  A chegada da Missão Naval Americana. Um manifesto do Almirante Vogelsang.


O Jornal. 22/12/1922. Disponível no sítio eletrônico: http://memoria.bn.br/DocReader/
Hotpage/HotpageBN.aspx?bib=110523_02&pagfis=11124&pesq=&url=http://memoria.
bn.br/docreader# . Acessado em 05/10/2015.

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Missão Naval Americana: os primeiros 20 anos (1922-1942)

ciais brasileiros e com estes já serviram em navios de guerra dos Esta-


dos Unidos; assim não chegam aqui como estrangeiros, e, antes, vem
como camaradas que, com um transbordante espírito de franqueza e
amizade leal pelo Brasil, se apresentam a este povo e a seu governo
os seus melhores, mais honestos e mais sinceros esforços em prol da
cooperação que lhe foi pedida.47

A MNA ficou concentrada nos aspectos técnicos, organizacionais


e de instrução visando à modernização das estruturas e procedimentos
operacionais da MB, vindo a influenciar a Segunda Reforma Alexandri-
no. A importância da MNA pode ser observada no organograma da es-
trutura administrativa da Marinha diretamente subordinada ao Ministro
como órgão de assessoramento. As principais mudanças foram a criação
da Diretoria de Ensino (só seria implementada em 1931 na administração
Protógenes) e de Aeronáutica, a transformação da Inspetoria de Pessoal
em Diretoria e a criação de uma rede de radiotelegrafia entre as bases e os
navios. No entanto, parte desta reforma não chegou a se concretizar de-
vido às críticas sobre a excessiva centralização e a imposição de sistemas
organizacionais que não tinham a ver com nossa cultura.48

Além de atuarem nas escolas especializadas, no staff do Ministro e


na ENG, os oficiais norte-americanos passaram seus conhecimentos por
intermédio de uma série de publicações na Revista Marítima Brasileira49,
tradução de manuais, coordenação de exercícios, atuação direta na forma-
ção de especialistas, emissão de pareceres diversos que iam da aquisição
de armamentos, equipamentos até a metodologias técnicas relativas a ra-
diotelegrafia, procedimentos táticos para o combate no mar, construção
naval etc.50
47 – Idem.
48  –  Caminha. Idem. p. 51
49 – Revista Marítima Brazileira – 1881 a 1889 – PR_SOR_03974_008567. Bibliote-
ca Nacional Digital do Brasil. Disponível no sítio eletrônico: http://memoria.bn.br/Do-
cReader/docreader.aspx?bib=008567&pasta=ano%20192&pesq=miss%C3%A3o%20
naval%20americana. Acessado em 12/07/2016.
50  –  Um bom exemplo do desempenho da MNA seria o Relatório do ano de 1926, de
Arnaldo Siqueira Pinto da Luz, ministro da Marinha, publicada em maio de 1927. p.9.
Disponível no sítio eletrônico: http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u2160/000005.html. Acessado
em 14/4/2016.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (474):217-248, maio/ago. 2017. 237


Ricardo Pereira Cabral
Thiago Sarro

O impacto da MNA só não foi maior devido às diversas limitações


materiais, de equipamento e orçamentárias por que passava a Esquadra
brasileira, restringindo os dias de mar, os exercícios de tiro e as manobras.

No período de abrangência desse artigo de 1914 a 1941, serviram na


ENG51 22 oficiais da US Navy, que atuaram basicamente nas áreas de Es-
tratégia, Tática e Jogos de Guerra. O tempo de permanência dos oficiais
variava de pouco mais de um ano até o máximo de permanência de quatro
anos na ENG, provavelmente, devido as peculiaridades e às exigências
das funções de instrutor.

Devido ao sucesso obtido, como consta no citado Relatório de 1925,


do contra-almirante Arnaldo Siqueira Pinto Luz, remendou a renovação
da MNA, que efetivamente o foi em 1926. Para tal cito:
Prorrogado que seja o contrato da Missão Naval Americana pelos qua-
tro anos próximos, continuará a aproveitar o seu influxo, completando
e melhorando as reformas e os exercícios em andamento, feitos em
colaboração assídua e em perfeito entendimento com os oficiais bra-
sileiros.52

A repercussão da MNA foi limitada devido à falta de recursos para a


renovação dos meios e a escassez de recursos como constava no Relatório
de 1925, do ministro e contra-almirante Arnaldo Siqueira Pinto Luz
Estivesse aparelhada a Marinha com um material flutuante mais aper-
feiçoado e pudessem os navios atualmente em atividade permanecer
por tempo prolongado, em condições de fazer os exercícios sem a
frequência exigência de reparo, melhor seria aproveitada a influência
da Missão Naval, com o longo tirocínio e apurada prática de todos os
membros que a compõe.53

51  –  O Decreto nº 19.536, de 27 de dezembro de 1930, assinado pelo presidente Getúlio


Vargas e pelo almirante Conrado Heck, alterou o nome da Escola Naval de Guerra para
Escola de Guerra Naval (EGN).
52  –  Relatório de 1925, do ministro da Marinha, contra-almirante Arnaldo Siqueira Pin-
to Luz. p. 4 Disponível no sítio eletrônico: http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u2159/000006.
html. Acessado em 14/4/2016
53  –  Relatório de 1925, do ministro da Marinha, contra-almirante Arnaldo Siqueira Pin-
to Luz. p. 4 Disponível no sítio eletrônico: http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u2159/000006.
html. Acessado em 14/4/2016.

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Missão Naval Americana: os primeiros 20 anos (1922-1942)

Em 1931, devido a uma série de fatores, como à escassez de recursos


por consequência da Crise de 1929, a derrubada de Washington Rodrigues
e assumpção do novo governo liderado por Getúlio Vargas, houve uma
primeira interrupção na presença de oficiais norte-americanos. Cumpre
ressaltar que Washington embargou a venda de armas para os rebeldes, o
que também dificultou a normalização das relações entre os países, algo
rapidamente superado. Protógenes Guimarães defendeu a volta da MNA
ao reafirmar a relevância da MNA para a Marinha:
Ficamos privados, durante o ano de 1931, dos bons serviços que nos
prestava a Missão, trazendo a experiência do incessante evoluir de
uma organização imensamente grandiosa, principalmente do ponto de
vista técnico-profissional e da qualidade do material.
A ausência desses profissionais afeitos aos métodos da Marinha de
Guerra mais bem dotada de recursos e a mais poderosa do mundo, se
levarmos em conta não só a força efetiva como ainda toda a logística
que a serve, foi principalmente sentida na Escola de Guerra Naval,
onde as menores alterações no advento e no emprego das armas de-
vem ser considerados e apreciados nos planos de combate e nos jogos
táticos.
Assim pensando produz a V. Exa. uma transigência nesse terreno, sen-
do a Marinha autorizada a contratar dois oficiais professores, um para
Estratégia e outro para Tática. Esse contrato já foi estudado pelo Mi-
nistério das Relações Exteriores, pela Embaixada Norte-Americana
e pelo Ministério da Marinha em Washington, tudo deixando esperar
que dentro em breve tenhamos entre nós dois oficiais superiores norte-
-americanos, na Escola de Guerra Naval.
Será de vantagem ainda a vinda de um terceiro oficial norte-ameri-
cano, logo que V. Exa. possa autorizar providências em tal sentido,
para o serviço do Estado-Maior da Armada, onde, nos anos anteriores
da Revolução, pela sua atuação técnica competentíssima, conseguiu a
Missão Naval Norte-Americana dar as nossas guarnições, auxiliada,
esforçada e inteligentemente pelos nossos oficiais, resultados admirá-
veis, na prática de tiro ao alvo por salvas, concentrando a bateria de
dois navios em movimento sobre o mesmo alvo de dia até à noite.54

54  –  Relatório de 1931, do ministro Protógenes Pereira Guimarães, publicado em


julho de 1932. p. 77-78. Disponível no sítio eletrônico: http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/
u2164/000037.html.

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E continua solicitando a contratação de um outro oficial artilheiro,


para servir no Estado-Maior, para assessorar também na elaboração das
especificações do armamento para o futuro programa naval (de 1932).

Apesar dos elogios, Protógenes Guimarães reconheceu a necessidade


de se adaptar os ensinamentos e observações da MNA a nossa realidade,
ao afirmar que:
Não deve, porém, perder a oportunidade de observar que as propostas
da Missão Naval Norte-Americana máxime quanto a parte de organi-
zação devem ser estudadas e adaptadas de acordo com a nossa índole
e as circunstâncias que nos são peculiares. São conhecidos casos em
que a orientação da Missão, rigidamente americana, teve consequên-
cias que as provaram falhas dessa adaptação às condições nacionais.
Para citar somente alguns exemplos que concretizem essa opinião,
basta lembrar a usura do material pela não correspondência dos ser-
viços reparadores ao intenso uso, o despreparo atual dos oficiais mi-
neiros pela extinção da respectiva escola, a entrega da fiscalização ao
Corpo de Comissários etc.55

Em 1932, o pedido do ministro Protógenes Guimarães foi atendido


e o contrato com a MNA foi retomado, em uma escala menor, com a
contratação de dois oficiais para Escola de Guerra Naval. Um oficial foi
designado para o Estado-Maior da Armada, a fim de assessorar o Progra-
ma de Rearmamento Naval, de 1932, que previa a construção de parte das
belonaves no país.56

A MNA, desde o início de seus trabalhos, se preocupou com as re-


formas nos arsenais de Marinha, a reorganização do Arsenal do Rio de
Janeiro e a construção de um novo, situado na Ilha das Cobras, além de
propostas de reorganização administrativa do setor de reparos e constru-
ção naval já citados.57
55 – Idem.
56  –  O programa constava de: 2 cruzadores de 8.500 ton., 9 caça-torpedeiros de 1600
ton., 4 submarinos de esquadra de 850 e 900 ton., 6 varredores de minas de 600 ton., 3
navios-tanques de 6000 ton., 2 diques flutuantes e 2 cábreas flutuantes.
57  –  Relatório de 1931, do ministro Protógenes Pereira Guimarães, publicado em ju-
lho de 1932. p. 40-41. Disponível no sítio eletrônico: http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/
u2164/000037.html. Acessado em 14/4/2016.

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Missão Naval Americana: os primeiros 20 anos (1922-1942)

No período abordado neste artigo, a influência da MNA na área de


construção naval foi intensa. Neste sentido foram criadas a Escola Téc-
nico-Professional do Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro, o desenho
da linha de montagem, a organização das oficinas, das máquinas, a cons-
trução de uma fábrica de torpedos, de canhões, minas submarinas, mu-
nições e aviões. A Missão esteve envolvida diretamente no Programa de
Rearmamento de 1932, que construiu neste período o monitor Parnaíba,
seis navios mineiros Classe Carioca (com a entrada do Brasil na Segunda
Guerra Mundial), três contratorpedeiros Classe Marcílio Dias e da Classe
Amazonas (cuja incorporação se estenderia até 1946) e de outros meios
de apoio. A construção neste período foi estressante devido à falta de
pessoal qualificado, máquinas, suprimentos, ferramentas e os constantes
atrasos nos fornecimentos norte-americanos suficientes para atender às
demandas.

Em 1937, a MNA era constituída por oito oficiais (um destacado


para a EGN) e cinco suboficiais para cumprir as funções de assessora-
mento em vários órgãos da MB e se engajarem nos vários programas que
estavam sendo implementados, com destaque para a construção naval e o
Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro, a instrução, o preparo operativo e
técnico da Esquadra.58

A instabilidade provocada no cenário internacional com a ascensão


do nazismo e o expansionismo nacionalista japonês levou os Estados Uni-
dos a articular um sistema defensivo que incorporasse todo o continente
americano sob sua liderança. Nesse sentido, foram assinados acordos de
cooperação que envolviam treinamento militar e envio de armamentos
em troca da cessão temporária de bases e do estacionamento de tropas
estadunidenses nesses países. A proximidade de Washington com o Rio
de Janeiro viria a facilitar o reaparelhamento das nossas forças, até pelos

58  –  Relatório do ministro da Marinha de 1937-1938-1939, e de Henrique Aristides


Guilhem, de 1940. p. 23. Disponível no sítio eletrônico: http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/
u2169/000001.html. Acessado em 14/4/2016.

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ataques de submarinos sofridos pela Marinha de Guerra Nazista, à Mari-


nha Mercante Brasileira.59

Em 1941, Brasil e os Estados Unidos firmaram o Acordo de Emprés-


timo e Arrendamento;60 posteriormente, os recebimentos foram amplia-
dos, apesar das limitações econômicas brasileiras. O estabelecimento da
Comissão Mista Brasil-Estados Unidos (1942) tinha por fim coordenar
as ações de cooperação, o emprego das forças brasileiras nas operações
militares, aquisições de armamentos, munições e suprimentos.

Nesse mesmo ano, os estadunidenses lançaram outro programa mais


amplo, o Lend and Lease Program61 (1941-1945) cujo objetivo funda-
mental, nas Américas, era organizar as demandas latino-americanas rela-
tivas a armamento, munição e suprimentos, dentro da capacidade de pro-
dução dos EUA, das possibilidades logísticas e da prioridade estratégica
que cada nação tinha para a defesa hemisférica e na guerra de modo geral.
Tais acordos foram acoplados a programas de fornecimento das matérias-
-primas necessárias ao esforço de guerra, de modo que o pagamento pelo
material bélico recebido se faria sobre os créditos recebíveis pelas maté-
rias-primas fornecidas. Cumpre ressaltar que os norte-americanos subsi-
diaram o envio de armas, munições e suprimentos aos latino-americanos
e só receberam um percentual do que lhes era devido.

59  –  CONN, Stetson; FAIRCHILD, Byron. A estrutura de Defesa do Hemisfério Oci-


dental. Rio de janeiro: Bibliex, 2000, pp. 264-265.
60  –  Em 1939, com o início da Segunda Guerra Mundial na Europa, os EUA, por inicia-
tiva do presidente Franklin D. Roosevelt, solicitou ao Congresso a aprovação do Progama
Pague e Leve, visando substituir os Atos de Neutralidade (1936). O programa permitia a
venda de produtos para aos países beligerantes, desde que os beneficiários se responsabili-
zassem pelo transporte e pagassem de imediato e em dinheiro. O objetivo do programa era
manter um determinado nível de neutralidade entre os Estados Unidos e países europeus
em guerra, sem impedir o apoio ao Império Britânico e sem ter de estender o mesmo pro-
grama à Alemanha (que não possuía fundos em dólar).
61  –  O Programa de Empréstimo e Arrendamento (1941-1944) tinha como objetivo for-
necer material (armamento, munições e suprimentos) para o esforço de guerra das nações
aliadas, em especial o Reino Unido, a URSS, China e França, visando complementar e
superar as limitações contidas, o Cash and Carry Program. A implementação deste progra-
ma acarretou no não reconhecimento dos Estados Unidos como neutro na guerra. A partir
de então, os submarinos alemães começaram a atacar os navios mercantes estadunidenses.

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Missão Naval Americana: os primeiros 20 anos (1922-1942)

Em 1942, foi constituída da Comissão Mista Brasil-Estados Unidos,


com a finalidade de coordenar as ações de cooperação, operações mi-
litares, aquisições de armamentos, munições suprimentos etc. Devido à
entrada dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial no ano anterior,
a Missão sofreu uma nova interrupção, sendo reiniciada em 1946 com a
chegada do Captain Charles Julian Wheeler. Não que isso tenha signi-
ficado um afastamento, muito pelo contrário, o Brasil, nesse período, o
Brasil recebeu novos navios e atuou de forma intensiva em conjunto com
a 4ª Esquadra da Marinha estadunidense, aperfeiçoando táticas antissub-
marino, escolta de comboios etc. Alves de Almeida cita que a Marinha
Brasileira se transformou completamente com essa parceria com os esta-
dunidenses, pois saiu do plano teórico dos jogos de guerra e das manobras
da Marinha Brasileira para realização de operações de guerra com a Mari-
nha dos Estados Unidos. Em nosso entendimento, a sintonia operacional
e estratégica entre as duas Marinhas está diretamente ligada aos trabalhos
desenvolvidos pela Missão Naval Americana junto à Marinha do Brasil.

Conclusão
A partir das pesquisas no Arquivo da Marinha do Brasil, no Arquivo
Nacional e da leitura da bibliografia especializada, podemos afirmar que
no início do século XX, apesar de ter a Real Marinha Britânica como pa-
radigma, a Marinha do Brasil tinha plena consciência de suas necessida-
des, de sua área emprego/atuação (por. ex., Atlântico Sul e os rios do Pra-
ta, Amazônia) e suas várias limitações. Nesse sentido, as aquisições eram
realizadas visando ao melhor índice possível na relação custo/benefício,
nas condições de financiamento, com poucas expectativas de incorporar
tecnologia ou uma construção com os próprios meios, devido ao baixo
nível de desenvolvimento social e econômico do país e à velocidade do
avanço tecnológico dos armamentos navais. Diante dessas limitações in-
ternas, britânicos e estadunidenses figuravam apenas como fornecedores
de meios navais e serviam de modelos de uma Força Naval moderna.

Esse quadro começou a se alterar com o envio de oficiais brasileiros


para estagiaram junto à US Navy e a contratação de oficiais norte-ameri-

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canos para servirem como instrutores na Aviação Naval e na Escola Na-


val de Guerra. Nesta última, atualizavam os oficiais superiores brasileiros
nas modernas estratégias e táticas navais, conhecimento que se difundia
pelo restante da Marinha, quando estes oficias voltavam à Armada, pe-
los artigos publicados na Revista Marítima Brasileira, na tradução de
material técnico-operacional, de livros, na elaboração de procedimentos
diversos (manobras no mar, operação de rádio-telegráfos entre outros).
Além do citado, podemos relacionar o aumento da influência da Mari-
nha norte-americana, a política externa implementada pelo Barão do Rio
Branco e a ascensão dos Estados Unidos à potência de primeira grandeza
no imediato Pós-Primeira Guerra Mundial. 

O estabelecimento da parceria, por intermédio da MNA, entre as Ma-


rinhas do Brasil e dos Estados Unidos possibilitou um salto de qualidade
nas capacidades operativas brasileiras, seja pelo adestramento da Força
Naval, seja pela participação nas operações de guerra no Atlântico Sul
durante a Segunda Guerra Mundial. O bom entrosamento entre brasilei-
ros e norte-americanos nas já citadas operações navais se deu devido ao
conhecimento do pensamento estratégico naval estadunidense e dos pro-
cedimentos táticos utilizados pela US Navy passados aos oficiais brasi-
leiros por anos pelos instrutores norte-americanos na EGN. Ressaltamos
que diversos materiais de emprego naval eram fornecidos pela Marinha
norte-americana antes mesmo da eclosão da guerra, daí a familiaridade
dos brasileiros e o bom desempenho da MB não foi novidade; pelo con-
trário, algo esperado.

A assessoria técnica norte-americana permitiu ao Brasil modernizar


sua engenharia naval, com a implantação do Arsenal de Marinha do Rio
de Janeiro, a construção de navios, introdução do conceito de base naval,
de trem da Esquadra (navios dedicados a logística e outros serviços de
apoio). Isso ajudou a reorganizar a administração naval, a radiotelegrafia
e a aviação costeira.

A partir de 1930, os Estados Unidos forneciam praticamente todos


os materiais necessários para que a Esquadra Brasileira se fizesse ao mar

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Missão Naval Americana: os primeiros 20 anos (1922-1942)

em condições de combate e para manter suas capacidades operativas, tais


como: motores, armas, peças e sobressalentes, munição, aço e combus-
tível. Tal fato tornou a Marinha do Brasil dependente da US Navy para
combater e se fazer ao mar, desempenhando funções como força de reser-
va ou como uma alternativa de emprego confiável para escolta de com-
boios e guerra antissubmarina, como o que aconteceu na Segunda Guerra
Mundial.

O nível de desenvolvimento econômico e tecnológico do país, a


conjuntura internacional desfavorável a busca de outras alternativas e o
baixo custo dos materiais fornecidos pelos norte-americanos tinham con-
sequência deletérias, pois desestimulavam a produção nacional e a for-
mação um pensamento estratégico que levassem em conta os interesses
estratégicos nacionais

Esse elevado nível de dependência nos ligava de forma subalterna e


condicionante aos interesses estratégicos norte-americanos, mas naquele
momento a guerra contra os fascismos eclipsava tais considerações e as
vozes discordantes eram minoria.

Referências Bibliográficas
ALVES DE ALMEIDA, Francisco Eduardo. Conferência sobre a Escola de
Guerra Naval em comemoração aos seus 100 anos de criação.
ARAÚJO, Rodrigo Nabuco. Missão Militar Francesa. In: Dicionário Histó-
rico-Biográfico Brasileiro. CPDOC. Fundação Getúlio Vargas. Disponível
no sítio eletrônico: http://cpdoc.fgv.br/sites/default/files/verbetes/primeirare-
publica/MISS%C3%83O%20MILITAR%20FRANCESA.pdf. Acessado em
25/9/2015.
BAER, Werner. A Economia Brasileira. São Paulo: Nobel, 2009.
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Texto apresentado em outubro/2016. Aprovado para publicação em


março/2017.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (474):217-248, maio/ago. 2017. 247


O Estado Novo brasileiro como espelho do salazarismo:
Autoritarismo e corporativismo na seção “crítica” da Revista Brasília (1942-1944)

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O Estado Novo brasileiro como espelho do


salazarismo: Autoritarismo e corporativismo na
seção “crítica” da Revista Brasília (1942-1944)1
The Brazilian New State as a Mirror of Salazarism:
Authoritarianism and Corporatism in the “Critique”
section of the Brasilia Magazine (1942-1944)
Marcello Felisberto Morais de Assunção2
Resumo: Abstract:
Neste texto, pretendo analisar a leitura que os We analyze in this article how Portuguese in-
intelectuais portugueses faziam do Estado Novo tellectuals interpreted the Brazilian New State.
brasileiro, perscrutando essas visões por meio We examine their views based on some critiques
de algumas críticas da Revista Brasília (1942- they wrote in the Brasília Magazine (1942-
1944), publicada pelo Instituto de Estudos 1944) which was published by the Institute for
Brasileiros da Universidade de Coimbra. Essa Brazilian Studies of the University of Coimbra.
leitura, segundo nossa tese, esteve vincada a um According to our thesis, their interpretations
certo espelhamento político entre o salazarismo were rooted in a certain political mirroring
e o varguismo que os intelectuais portugueses between Salazarism and Vargasism which Por-
legitimaram a partir da comparação entre o au- tuguese intellectuals legitimized by compar-
toritarismo e corporativismo de ambos Estados ing authoritarianism with corporatism in the
Novos no Brasil e em Portugal. Inicialmente, Portuguese and Brazilian New State. To better
para melhor compreender essa construção, da- understand this question, we will first provide
remos um painel geral do espaço social formati- an overview of the University of Coimbra where
vo dos intelectuais antiliberais, antissocialistas, the antiliberal, antisocialist, corporative and
corporativos e autoritários da Revista Brasília: authoritarian intellectuals of Brasília Magazine
a Universidade de Coimbra. Para em seguida, studied. Resorting to the fields of pedagogy, law
analisaremos a imagem do Estado Novo brasi- and history, we will then analyze the image of
leiro construída nas críticas a livros brasileiros the Brazilian New State stemming from critiques
por meio de três áreas do conhecimento em par- about Brazilian books.
ticular: Pedagogia, Direito e História.
Palavras-chave: Revista Brasília; Estado Keywords: Brasília Magazine; New State; au-
Novo; Autoritarismo; Corporativismo. thoritarianism; corporatism.

Introdução
Francisco Carlos Palomanes Martinho e Antônio Costa Pinto, dois
importantes intérpretes do corporativismo e autoritarismo, na introdução
de um livro relativamente recente sobre o corporativismo no Brasil e em
Portugal (MARTINHO; PINTO, 2007), explicitaram a necessidade de
1  – Este texto é uma ampliação das formulações de um subcapítulo da minha dissertação
de mestrado, ver: ASSUNÇÃO (2014).
2  –  Mestre e Doutorando em história pela Universidade Federal de Goiás. Bolsista san-
duíche no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. E-mail: marcellof-
ma@gmail.com.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (474):249-274, maio/ago. 2017. 249


Marcello Felisberto Morais de Assunção

contornar o vácuo em torno dos estudos comparados entre o salazarismo


e o varguismo.3 Além deste vácuo, citam a importância de analisar esses
regimes por meio de suas respectivas dinâmicas internas, compreendendo
como estes expressam diferentes respostas à crise do liberalismo.

Diante deste vácuo comparativo, tentamos compreender, nesse arti-


go, a leitura/escrita que certos intelectuais portugueses contemporâneos
ao varguismo faziam do Estado Novo Brasileiro, dando ênfase na com-
paração que estes faziam entre o autoritarismo e corporativismo no Brasil
e em Portugal. Desta forma, buscaremos perscrutar como e por que os
intelectuais portugueses, no seio da universidade de Coimbra, realizam
uma série de leituras espelhadas sobre o Estado Novo no Brasil, em um
período em que ambos detinham regimes de “terceira via”. Essas com-
parações, nascidas ainda na primeira dobra do acontecimento (no tempo
da memória), visavam demonstrar, como tentaremos evidenciar mais a
frente, que Brasil e Portugal estavam em uma mesma “realidade política”,
identificada pelo corporativismo e autoritarismo.

Esse espelhamento, será perscrutado ao longo deste texto a partir das


críticas da Revista Brasília nos anos de 1942-44. Esta uma publicação do
Instituto de Estudos Brasileiros da Faculdade de Letras da Universidade
de Coimbra – a partir da análise da seção “Resenhas”, emergidas nos anos
de vivência conjunta do Estado Novo no Brasil e em Portugal. Mapeare-
mos as visões e leituras sobre o corporativismo e autoritarismo, em um
diálogo que encontrou respaldo numa grande diversidade de instituições
e produções culturais nas duas margens do Atlântico.

Dessa forma, teremos como critério metodológico o confronto entre


o conteúdo das críticas e a concepção de mundo autoritária e corporati-
va hegemônica em Portugal nos anos do salazarismo. Daremos foco, em
particular, a três campos de conhecimento, no interior da Brasília, que
são portas de acesso para compreensão da escrita/leitura que esses inte-

3  – Um outro empreendimento comparativo foi o livro organizado por SILVA (1991),
fruto do seminário no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ, “O feixe e o
prisma”.

250 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (474):249-274, maio/ago. 2017.


O Estado Novo brasileiro como espelho do salazarismo:
Autoritarismo e corporativismo na seção “crítica” da Revista Brasília (1942-1944)

lectuais portugueses faziam dos intelectuais brasileiros, e, portanto, do


Estado Novo no Brasil, a saber: Pedagogia, Direito e História.

Todavia, para abordamos a inserção desses intelectuais no interior de


uma perspectiva autoritária e corporativa por meio das críticas, é preciso
antes explorar sua materialidade institucional, ou seja, a relação entre a
Universidade de Coimbra, espaço dos intelectuais que publicam na re-
vista, e o projeto oficial do salazarismo de criação do “novo homem”
português.

2. O espaço social dos intelectuais da Revista Brasília


A Universidade de Coimbra foi o espaço intelectual por excelên-
cia de produção e reprodução de uma concepção de mundo autoritária e
corporativista. Em nenhuma outra Universidade de Portugal as relações
entre produção intelectual e o salazarismo foram tão explícitas. Em um
folheto sem autor, divulgado em Coimbra no início dos anos 1930, discu-
tindo o problema Universitário em Portugal, encontramos claramente o
sentido instrumentalizado que a Universidade deveria ter em um momen-
to de “ressurgimento”:
Dentro do Estado Novo, não há, e não pode haver duas opiniões: Es-
tado de tendências totalitárias, o problema universitário o terá que
subordinar-se, na sua solução, às diretrizes ideológicas que inspiram
o Estado Novo. A Universidade terá que viver integrada no Estado
Novo, e não à margem do Estado, alheio ao Estado, e quando Deus
quer, inimigo do Estado. A Universidade, vivendo integrada no Esta-
do, tem que pôr as suas atividades, todas as suas conversas ao serviço
do Estado, no campo que lhe é próprio. Dentro da atmosfera do Estado
Novo ela tem que ser nacionalista, e não internacionalista; corporati-
va e não liberalista; organicista e não democrática (S/A “O problema
Universitário em Portugal” apud TORGAL, 1999: p. 88).

Como aponta o estudo de PINTO (2002), não é por mero acaso que
um amplo espectro da elite ministerial do salazarismo fosse formada por
professores universitários de Coimbra (fundamentalmente do direito). A
maioria destes, como é o caso do próprio Salazar e de Marcelo Caetano,
teve a sua formação em Coimbra, que, desde a década de 1920 tornou-se

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (474):249-274, maio/ago. 2017. 251


Marcello Felisberto Morais de Assunção

espaço de uma maioria católica, monárquica, integralista e também de


alguns núcleos do nacional-sindicalismo (PINTO, 1994: p. 25).

A Universidade de Coimbra foi alvo de uma tentativa sistemática de


controle por parte do regime, a partir do domínio da imprensa da Univer-
sidade, no controle do conteúdo ensinado e na demissão e na perseguição
de professores críticos ao regime, o que também ocorre de forma mais
branda em Lisboa e no Porto (TORGAL, 2002: p. 75). Tal perseguição se
institucionaliza a partir de dois decretos-lei: o de nº 22.469, de 11 de abril
de 1933, e no nº 27.00314, de dezembro de 1936. O primeiro explicita o
objetivo da censura:4
A censura terá somente por fim impedir a perversão da opinião pú-
blica na sua função de força social e deverá ser exercida por forma a
defendê-la de todos os fatores que a desorientem contra a verdade, a
justiça, a moral, a boa administração e o bem comum, e a evitar que
sejam atacados os princípios fundamentais da organização da socie-
dade (Artigo n. 3 do decreto-lei n. 22.469 apud TORGAL, 2010: pp.
112-113).

Já o segundo decreto-lei se refere mais diretamente aos funcionários


públicos e, por extensão, aos professores universitários, que eram obri-
gados a fazer o seguinte juramento público: “Declaro por minha honra
que estou integrado na ordem social estabelecida pela Constituição po-
lítica de 1933, com activo repúdio do comunismo e de todas as ideias
subversivas”5 (Decreto-lei n. 27.00314 apud TORGAL, 2010: p. 115).
4  –  Censura que como mostra TORGAL (2009; 2010) se expande para uma série de
instituições da sociedade civil, editoras, a literatura oficial (consagrada por prêmios), as
casas do povo, os sindicatos nacionais, as bibliotecas do povo, os jornais (A Verdade, Di-
ário da Manhã e o Diário de Notícias), o rádio (Emissora Nacional); o cinema. A censura
também ocorre dentro da sociedade política: no Secretariado de Propaganda Nacional,
nos tribunais militares especiais, o PVDE (Polícia de Vigilância do Estado), PIDE (Polícia
Internacional de Defesa do Estado) etc.
5  – O anticomunismo foi um grande fator de mobilização da sociedade portuguesa do
período, como afirma Fátima Patriarca: “(…) O anticomunismo estado-novista elaborará
uma noção de harmonia social, definindo os indivíduos que estão socialmente adapta-
dos e resignados com o “espírito” aquiescente da Ordem (…) e aqueles que se situam à
margem desse “espírito”. Este quadro é profundamente negro, apresentando uma espécie
de seletividade entre o que é socialmente desejável pelo confronto do que é socialmente
criminoso, ou antissocial” (PATRIARCA, 1992: p. 61).

252 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (474):249-274, maio/ago. 2017.


O Estado Novo brasileiro como espelho do salazarismo:
Autoritarismo e corporativismo na seção “crítica” da Revista Brasília (1942-1944)

A militância anticomunista foi um fato rotineiro da vida de Coimbra, sen-


do um elemento agregador e mobilizador de uma série de grupos.

É no seio desse espaço social imerso em um nacionalismo ufanista


que se formula o ambiente para comícios anticomunistas em Coimbra,
mobilizações de instituições com imbricadas relações com a direita radi-
cal (Cruzada D. Nuno Álvares Perreira e a Legião Portuguesa) e na con-
sagração de diversos intelectuais (dois reitores de posição falangista são
consagrados com doutor honoris: Felipe Gil Casares e Leonardo Perro)6
e estadistas (o próprio Franco) que estão de acordo com uma perspectiva
de “terceira via” (TORGAL, 1999: p. 114).

Há, portanto, uma identificação muito clara e ativa entre a concep-


ção de mundo oficial do salazarismo (autoritária e corporativa) e aquela
que aparece na maioria dos intelectuais de Coimbra (TORGAL, 1999: p.
112). A identificação da Universidade de Coimbra com a concepção de
mundo oficial (autoritária, corporativa, imperialista e cristã) pode ser vi-
sibilizada em uma série de produções culturais do período, como é o caso
da Revista Portuguesa de História, o Boletim da Faculdade de Direito, a
revista Biblos, o Boletim do Instituto de Estudos Germânicos e o Boletim
do Instituto de Estudos Franceses, e, por fim, a própria Revista Brasília.

Poderíamos dizer que estas produções, e grande parte da intelec-


tualidade da Universidade de Coimbra, estão imersas em um projeto de
hegemonização cultural que a política do espírito institucionaliza desde
a fundação do Secretariado de Propaganda Nacional em 1933, que tem
Antônio Ferro7 como seu principal protagonista.

6  – Esta consagração também se expandia para aqueles que defenderam em suas produ-
ções intelectuais a “Civilização cristã ocidental” e o sentimento “rácico” da lusitanidade,
como é o caso dos brasileiros Afrânio Peixoto, Pedro Calmon e o inglês James Entwistle.
7 – António Ferro (1885-1956) foi um importante intelectual modernista do regime
salazarista, sendo um dos poucos a ocupar cargos importantes e ter vinculações diretas
com a direita radical (entrevistou durante os anos 1920 Mussolini, Primo de Rivera, en-
tre outros). Durante o salazarismo, foi diretor do Secretariado de Propaganda Nacional
e também, posteriormente, do Sistema Nacional de Informação, sendo considerado “o
publicista do regime” (ADINOLFI, 2007: p. 111). Para saber mais sobre sua trajetória
institucional, em suas distintas fases, ver: ADINOLFI (2007); LEAL (1994).

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (474):249-274, maio/ago. 2017. 253


Marcello Felisberto Morais de Assunção

A política cultural oficial salazarista, verbalizada por Ferro em di-


versos momentos,8 pensava o espírito lusitano como matéria-prima a ser
moldada segundo a defesa de um “ressurgimento”, concepção tão cara
aos fascismos. Tal política busca instituir, em um âmbito estritamente
estético,9 uma concepção harmônica e corporativista das relações sociais
que supostamente dissolve o conflito de classe. Para realizar tal preten-
são, o Estado Novo português projeta em seus discursos ao longo dos
anos 1930 e 1940 um ethos português, condizente com essa perspectiva
da harmonia social. Difunde no período um discurso agressivo e comba-
tivo, apesar das suas fissuras e nuanças internas,10 que produz e institui
uma memória histórica, de tipo nacional, que pretende ser ontológica e
científica diante de qualquer memória desviante (ROSAS, 2001: p. 1033).

Essa pretensão totalizante do projeto cultural do Estado Novo será


materializada a partir da atração e adesão de agentes e também da mon-
tagem de um dispositivo cultural que exerce o papel fundamental de or-
ganização da propaganda nacional e da cultura (RAMOS DO Ó, 1999:
p. 74). Esse dispositivo cultural buscou criar um processo de “regenera-
ção nacional”, a fim de reconduzir os portugueses à sua “ordem natural”,
8  –  Como o mesmo reitera em um certo momento ao explicitar o tom pedagógico, au-
toritário e nacionalista de sua política cultural: “A política do espírito [...] não é apenas
necessária, se bem que indispensável em tal aspecto, ao prestígio exterior da nação. Ela
é também necessária ao prestígio interior da nação. Um povo que não lê, que não ouve,
que não vibra, que não sai da sua vida material, do Dever e Haver, torna-se inútil e mal
humorado [...] Mas que se faça uma política do Espírito, Inteligente e constante, consoli-
dando a descoberta, dando-lhe altura, significação e eternidade. Que não se olhe o espírito
como uma fantasia, como uma ideia vaga, imponderável, mas como uma ideia definida,
concreta, como uma presença necessária, como uma arma indispensável para o nosso
ressurgimento. O espírito, afinal, também é matéria, a matéria-prima da alma dos povos
[...]” (FERRO, 1936: pp. 273-276).
9  – A estetização da política como um dos fenômenos do fascismo objetivava, para João
Bernardo (por meio de uma clara influência da noção inicialmente criada por Walter Ben-
jamin), em um âmbito estético, extinguir o conflito de classes (BERNARDO, 2004: p.
734). Portanto, o fascismo não foi uma estética por opção, mas por necessidade (BER-
NARDO, 2004: p. 735). A política estetizada é necessariamente instituída pelo ritual, por
isso a necessidade da política fascista se desenvolver sob a forma de cerimônias, festivais,
de paradas e desfiles. Assim, é na encenação coletiva que o fascismo encontra o meio de
transfigurar o discurso (BERNARDO, 2004: p. 739).
10  – Para entender algumas disfunções da “Política do Espírito” do Estado Novo na
conjuntura das décadas de 1930 e 1940, ver: RAMOS DO Ó (1999) e ADINOLFI (2007).

254 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (474):249-274, maio/ago. 2017.


O Estado Novo brasileiro como espelho do salazarismo:
Autoritarismo e corporativismo na seção “crítica” da Revista Brasília (1942-1944)

combatendo toda e qualquer “degenerescência do espírito”, a partir da


“reeducação”, fazendo-os encontrar com a sua “essência natural” (RO-
SAS, 2001: p. 1034).

O Secretariado de Propaganda Nacional e a “Política do Espírito’’,


idealizada por António Ferro, foram em grande parte produtos desse es-
forço em agrupar e concentrar a propaganda política e cultural, para criar
um sistema de representações monolítico, que buscasse orientar toda teo-
ria e prática do período, não podendo existir nada fora dele (RAMOS DO
Ó, 1999: 19). Segundo RAMOS DO Ó (1999), os anos de 1933-1949
foram o auge da tentativa do salazarismo de edificar no seio do campo
cultural um sistema normativo, e, portanto, institucional, que angariasse
instituições e agentes produtores de bens simbólicos que colocassem as
classificações e divisões do mundo social, próprias dos valores do regime,
no topo da hierarquia do campo cultural.

A portugalidade, à qual o regime buscava defender, pelo combate


sistemático ao “degenerado” e “satânico”, era descrita/narrada no discur-
so da intelligentsia salazarista por uma série de mitos que foram funda-
mentais na pulsão nacional. Dos vários mitos que mobilizaram a intelec-
tualidade lusitana podemos destacar dois que faziam parte das discussões
do campo intelectual do período: o mito da vocação imperialista – her-
dado da tradição republicana e monárquica, na sua dupla dimensão da
vocação histórica providencial de colonizar e evangelizar (ROSAS, 2001:
p. 1034) – e o mito da ordem corporativa – a ideia de que a ordem natural
das coisas é espontaneamente hierárquica e harmônica (se colocada em
“ordem”). Desdobra-se em uma visão infantilizadora do povo português,
que deve ser guiado por um Estado fraternal (ROSAS, 2001: p. 1036).

A construção de um ser nacional lusitano foi, portanto, uma peça-


-chave no discurso da intelligentsia portuguesa desde a crise orgânica do
liberalismo que se arrastou desde o fim do século XIX e, em particular,
a partir do Ultimatum de 1890. A regeneração das glórias lusitanas por
meio da reconstrução nacional, pelo do império, do corporativismo e do
autoritarismo, esteve presente nesse processo de “olhar para dentro” nos

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Marcello Felisberto Morais de Assunção

tempos da política do espírito salazarista. Esse engajamento e adesão dos


intelectuais à realidade nacional por meio da invocação de um Estado ca-
paz de unificar e harmonizar as distintas perspectivas é um indício de uma
certa homologia do campo político e intelectual. Essas representações do
político encontram-se em Portugal, e, também no Brasil,11 em tempos de
autoritarismos, como aspectos de uma cultura política que competia uma
grande responsabilidade aos intelectuais na sua intervenção pública na
construção da nação. A figura paradigmática desse momento é, portanto,
a do “intelectual profeta”, aquele que detém como “vocação” o desvelar
do “subconsciente coletivo”, como afirmavam um Azevedo de Amaral,
Oliveira Viana e outros pensadores do período.12

Dessa forma, não é arbitrário que, em uma revista de cultura luso-


-brasileira como a Brasília, e, também a Atlântico,13 apareçam intelec-
tuais, portugueses e brasileiros, de diversas matizes, na busca por forjar
uma cultura nacional que trata de forma elogiosa as práticas do autorita-
rismo de ambos regimes. Na realidade, não há só elogios no caso parti-
cular destes Estados Novos, mas, uma concepção de mundo comum no
que concerne aos diagnósticos e soluções para os “problemas nacionais”,
a saber: a rejeição ao liberalismo e a democracia política, a ideia de que
os intelectuais são uma elite dirigente acima do social, a invocação siste-
mática da ação do estado na cultura, política e economia e, por fim, uma
concepção corporativista própria de uma visão de mundo das “harmonias
sociais”. Essa unidade das representações do fenômeno político tende a
ser compartilhada pela intelligentsia no Brasil em Portugal nos anos da

11  – Para o caso brasileiro, ver: VELLOSO (1987); PECAULT (1990); GOMES (2007);
12  – Azevedo de Amaral (1881-1942), intelectual de perspectiva autoritária e corpora-
tiva do período, expressa muito bem essa visão dos intelectuais: “Emergidos da coletivi-
dade como expressões mais lúcidas do que ainda não se tornou perfeitamente consciente
no espírito do povo, os intelectuais são investidos da função de retransmitir às massas
sob forma clara e compreensiva o que nelas é apenas uma ideia indecisa e uma aspiração
mal definida. Assim, a elite cultural do país tornou-se, no Estado Novo, um órgão neces-
sariamente associado ao poder público como centro de elaboração ideológica e núcleo
de irradiação do pensamento nacional que ela sublima e coordena” (Azevedo de Amaral
apud VELLOSO, 1987: p. 18).
13  – Para uma análise da Revista Atlântico, ver: SILVA (2011); SERRANO (2009).

256 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (474):249-274, maio/ago. 2017.


O Estado Novo brasileiro como espelho do salazarismo:
Autoritarismo e corporativismo na seção “crítica” da Revista Brasília (1942-1944)

vaga autoritária (décadas de 1920),14 e se reproduzem institucionalmente,


como veremos logo a frente, no caso da própria Revista Brasília.

3. O Brasil no olhar da intelligentsia coimbrã


Nas resenhas da Brasília, encontramos uma presença recorrente de
livros brasileiros selecionados que defendem em diversos âmbitos uma
concepção de mundo “autoritária” e “corporativa”. Entre os temas, de-
paramos com textos sobre a pedagogia “renovada” do Estado Novo em
autores como Francisco Campos e Fernando Azevedo, até temas como a
política eugenista ou estudos sobre a ascensão de Vargas e as suas trans-
formações em um âmbito econômico e político. Dessas críticas, daremos
ênfase às três grandes áreas discutidas: Pedagogia, Direito e História.

O projeto pedagógico varguista foi amplamente discutido ao longo


das críticas da Revista Brasília. Um aspecto recorrente na discussão dos
livros resenhados, foi a questão da “escola nova” no Brasil, e, portanto, o
projeto de formação de uma elite técnica, capaz de “guiar” a nação para a
sua modernização institucional, identificada tanto pela racionalização da
burocracia quando pela criação de infraestruturas. Para esses intelectuais
no Brasil e em Portugal, a educação era também um instrumento para a
moralização cívica de um “novo homem”, moldado pelo Estado.

Um exemplo claro dessa visão pedagógica pode ser encontrado na


resenha de Émile Planchard ao livro de Humberto Grande A pedagogia
no Estado Novo, como o mesmo reitera:
A pedagogia no Estado Novo é a educação dirigida, capaz de renovar
e organizar uma sociedade pela cultura; é a pedagogia da disciplina
e da autoridade que quer formar no espírito das novas gerações uma
mentalidade vigorosa e confiante, desejando esclarecer a inteligência
brasileira para a compreensão exacta dos grandes problemas nacionais
(Humberto Grande apud PLANCHARD, 1943: p. 877).

A exortação das práticas pedagógicas no Brasil por Émile Planchard


revela a proximidade entre o conceito de pedagogia reproduzido por inte-
14  – Para uma análise global da vaga autoritária dos anos 1920 em Portugal, ver: PINTO
(2007).

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Marcello Felisberto Morais de Assunção

lectuais no Brasil e os pressupostos da “Política do Espírito” salazarista,


fundamentalmente no que concerne a sua visão das massas como uma
matéria-prima a ser moldada, por meio de políticas culturais. Para Plan-
chard, em sua leitura do livro de Humberto Grande, a pedagogia de am-
bos Estados Novos buscava os fundamentos científicos para a realização
de uma ampla intervenção pública, com o intuito de transformar os pres-
supostos da antiga prática pedagógica, ainda muito liberal e individualista
(PLANCHARD, 1942: p. 877).

A despeito de criticar o livro de Humberto por não trazer nenhuma


novidade significativa, elogia a sua capacidade de explicar sinteticamente
as inovações que o conceito de pedagogia moderna, oriundo da “Escola
Nova”, traz ao público brasileiro (GRANDE, 1942: p. 879). A retórica pe-
dagógica “bacharelesca”, própria do período liberal, deveria desaparecer
em prol de práticas, por meio do Estado, que direcionem uma verdadei-
ra “renovação nacional” da educação desde a infância até a fase adulta
(PLANCHARD, 1942: p. 880).

A mesma crítica a pedagogia liberal e o elogio com relação às práti-


cas pedagógicas no Brasil aparece em uma outra resenha de Émile Plan-
chard ao livro A educação pública em S. Paulo de Fernando de Azevedo,
um dos principais idealizadores da renovação pedagógica do varguismo.
Planchard elogia a grande capacidade analítica de Azevedo, exortando as
suas propostas para a transformação da educação pública no Brasil por
meio da invocação de uma proposta unitária para a organização pedagó-
gica, que teria o Estado como seu maior protagonista.

Afirma, ainda, que as deficiências educacionais que Azevedo en-


contra em seu estudo da instrução nacional estão em processo de trans-
formação em razão da institucionalização da “revolução nacional que
se completou no Brasil” desde a emergência do Estado Novo em 1937
(PLANCHARD, 1942: p. 824). Explicita que o maior mérito do trabalho
de Azevedo é a conciliação entre a sua prática como diretor-geral da ins-
trução e os seus escritos pedagógicos.

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O Estado Novo brasileiro como espelho do salazarismo:
Autoritarismo e corporativismo na seção “crítica” da Revista Brasília (1942-1944)

Finaliza sua resenha considerando Azevedo um dos principais prota-


gonistas da renovação pedagógica estado-novista (PLANCHARD, 1942:
p. 824). Aliás, essa laudação de Émile Planchard, belga radicado em Por-
tugal, à renovação pedagógica no Brasil não é arbitrária, o mesmo foi o
principal divulgador da Escola Nova em Portugal, introduzindo uma pe-
dagogia que buscasse fomentar as “solidariedades sociais”, como é pró-
prio de sua matriz corporativista de inspiração durkheiniana.

Em uma outra resenha no mesmo volume, Duque Vieira analisa a


obra de Francisco Campos, Educação e Cultura, outro arauto da renova-
ção pedagógica do Estado Novo no Brasil. Inicia sua resenha elogiando
as virtudes de Campos como “homem público”, que são refletidas em
suas intervenções publicadas nesse livro ofertado pela Seção Brasileira
do Secretariado de Propaganda Nacional ao Instituto de Estudos Brasi-
leiros.

Segundo Vieira, os discursos de Campos como diretor da Secreta-


ria da Instrução, e os mais contemporâneos como ministro da educação
Federal, são páginas de verdadeiro brilhantismo de um estadista-escritor,
pois, os seus escritos não são mera retórica, mas espelhos de sua própria
prática como homem de Estado (VIEIRA, 1946: p. 909). Ainda sobre o
livro de Campos, Vieira cita a importância que a “formação moral e pa-
triótica” deve ter na reforma da instrução nacional no Brasil. Essa refor-
ma, segundo Vieira em sua interpretação de Campos, deveria criar uma
educação que não forme meramente “bacharéis” (como é próprio da pe-
dagogia de até então), mas quadros da elite capazes de orientar os rumos
da nação (VIEIRA, 1946: p. 911).

Para o crítico, a renovação pedagógica orientada no Brasil e, também


em Portugal, ao orientar-se a partir de suas respectivas particularidades
nacionais e culturais, gera por si uma autonomia destas nações, até então
muito presas aos “estrangeirismos”, que eram, para Vieira, verdadeiros
empecilhos à autonomia nacional (VIEIRA, 1946: p. 912). Encerra sua
resenha, explicitando que essa autonomia faria com que Brasil e Portugal
fossem capazes de ocupar o seu lugar de protagonistas de um “novo eixo

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mundial” que teria como epicentro o Atlântico e a língua e a cultura luso-


-brasileira como constitutivas dessa nova civilização (VIEIRA, 1946: p.
912).

A apologia ao projeto pedagógico desses autores pelos resenhistas


portugueses, tem uma estrutura comum: a defesa intransigente de um mo-
delo de “instrução nacional” arregimentado pelo estado com um forte
teor elitista e corporativista. Esse projeto autoritário e corporativo, é visto
por esses autores como um “desdobramento natural do tempo”, portanto,
como uma realidade dos regimes que buscam uma modernização insti-
tucional por meio daquilo que existe como mais “científico” no período.

Entretanto, não é somente no campo pedagógico que essas noções


aparecem. No campo jurídico e historiográfico há uma repetição recor-
rente das “soluções” aos problemas nacionais pelos brasileiros lidos pelos
portugueses, como o elogio apologético a estas mesmas resoluções.

Em uma crítica de José de Alberto Reis ao Código de Processo Civil


Brasileiro de 1937 redigido por Pedro Batista e revisado por Francisco
Campos, há uma análise laudatória do autoritarismo das resoluções esta-
do-novistas no âmbito jurídico, e, em particular, uma exortação indiscreta
à Constituição 1937 (“Polaca”). Inicia sua crítica avaliando positivamen-
te a substituição de “um regime da pluralidade para a unidade do código
civil” orquestrada pelo Estado Novo de Vargas, sobre o protagonismo
de Francisco Campos (REIS, 1942: p. 830). Reitera sua defesa a estas
mudanças constitucionais citando uma série de reflexões de Francisco
Campos, que, em um relatório, afirma que o processo civil deixou de ser
“instrumento das classes privilegiadas” para assim “assumir uma feição
de cunho eminentemente popular” (Francisco Campos apud REIS, 1942:
p. 930).

Segundo o crítico, essas mudanças visavam à simplificação e uni-


versalização do processo jurídico, superando os entraves de uma insti-
tucionalidade burocrática que propiciava, em sua lentidão, a vitória das
“classes dominantes” ante as massas, almejando, por meio dessa transfor-

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O Estado Novo brasileiro como espelho do salazarismo:
Autoritarismo e corporativismo na seção “crítica” da Revista Brasília (1942-1944)

mação, a harmonização entre as partes (REIS, 1942: p. 830). Essa “har-


monia” seria alcançada por meio de um maior fortalecimento da figura
do juiz, que agora deve intervir contra o “privatismo” e “individualismo”
para assim ter uma solução de fato “harmônica” (REIS, 1942: p. 830).
Esta concepção das “harmonias sociais”, implícita no discurso e na cons-
tituição, analisada por Reis, aparece ainda de forma mais explícita na
citação que o mesmo destaca do relatório supracitado de Campos:
A concepção duelística substitui-se a concepção autoritária: o proces-
so deixou de ser encarado como um instrumento de luta entre particu-
lares e passou a ser considerado como instrumento de investigação da
verdade e da distribuição da justiça. E como distribuição da justiça é
uma das funções e uma prerrogativa do estado, daí vem que este não
pode assistir, impassível e inerte, o desenrolar do drama judiciário:
tem de intervir nele activamente como interessado, para que o resulta-
do corresponda ao fim, para que triunfe a verdade e a justiça, em vez
de triunfar a força ou a astúcia (Francisco Campos apud REIS, 1942:
p. 831).

Dessa forma, a “verdade” constituída no processo jurídico não seria


mais como era, no processo duelístico, a cargo das partes, mas da inter-
venção do juiz, representante do Estado, o único capaz, segundo Reis,
de harmonizar os conflitos segundo “uma construção científica” (REIS,
1942: p. 832). Essa justiça distributiva superaria, portanto, a “ficção libe-
ral” que fazia uso do “poder público” para interesses “privados”, “indi-
viduais”. Ainda afirma que essa concepção “autoritária” é erroneamente
enquadrada como “fascista”, pois, apesar de sua proximidade àquilo que
se encontrava nos Estados “totalitários”, há algumas diferenças que de-
vem ser resguardadas (REIS, 1942: p. 833).

Reitera que, a despeito da figura do juiz forte e ativo, este só deve


intervir nos regimes ditos autoritários, para impedir “desequilíbrios apli-
cando à justiça” (REIS, 1942: p. 834). Na verdade, para este, o código
civil, em particular, era tributário, e, portanto, mais próximo, do Código
Civil português de 1936, afirmando que certos artigos são diretamente
inspirados, apesar de não citá-los comparativamente na crítica. Entretan-
to, entra em dissenso quando Campos afirma a sua interpretação do pro-

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cesso jurídico sobre a herança dos publicistas americanos, não afirmando


a autoridade dos portugueses na construção do código português.

A despeito desses desvios pontuais, a leitura de Reis é otimista so-


bressaindo-se a defesa intransigente ao autoritarismo e corporativismo
que a Constituição de 1937 representava no Brasil, espelhando até uma
certa proximidade entre Portugal e Brasil no âmbito jurídico. Esta lauda-
ção não é arbitrária. Reis foi autor do Código de Processo Português, de
1939, e era também professor de Direito da Faculdade de Coimbra e pre-
sidente da Assembleia Nacional. Isto o coloca em um lugar institucional
bastante propício para uma leitura positiva da institucionalidade proposta
pelo Estado Novo no Brasil, em clara, consonância com o regime portu-
guês. Essa proximidade é ainda mais clara no âmbito historiográfico.

A historiografia publicada na Brasília não só afirmou um “olhar


comum” em um passado longínquo, como já estudamos em outro
momento,15 mas também buscou no presente aspectos que vinculassem
intimamente Brasil e Portugal. Essa aproximação política foi marcante no
que concerne aos três primeiros volumes (1942, 1943, 1944-46), mesmo
porque essa produção emerge no período em que o Estado Novo brasilei-
ro e português estão no auge de sua aproximação política e cultural. Além
desses intelectuais compartilharem uma visão consensual sobre o legado
português no mundo, também coadunam com o pensamento autoritário,
corporativo, antissocialista, antiliberal e antidemocrático.

Em geral, as obras historiográficas resenhadas sobre o Estado Novo


brasileiro abordavam a questão da ascensão do varguismo, pensando nes-
te sempre como um contraponto ao liberalismo. A sua maioria afirmava
explicitamente sua posição dentro dos marcos de uma concepção “auto-
ritária” e “corporativa”, o que fazia com que esses autores fossem exaus-
tivamente elogiados pelos críticos. Além de tudo, é frequente também a
comparação entre as práticas do Estado Novo brasileiro com o português,
reiterando um certo espelhamento entre os regimes.

15  –  Ver: ASSUNÇÃO (2014) e SERPA (2010).

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O Estado Novo brasileiro como espelho do salazarismo:
Autoritarismo e corporativismo na seção “crítica” da Revista Brasília (1942-1944)

Um exemplo disso é a resenha de Duque Vieira do livro escrito por


Azevedo de Amaral: Getúlio Vargas Estadista, Rio de Janeiro, ed. dos
Irmãos Pongetti, 1941. O resenhista ressalta deste livro, uma biografia de
Getúlio Vargas e de seu tempo, a constante apologia a Vargas, que é ame-
nizada por esse estudo ser “filho da verdadeira sinceridade e de visível
convicção” (VIEIRA, 1946: 915). Um elemento ressaltado pelo resenhis-
ta como ponto de referência de consenso é a proximidade de olhares e de
práticas de estado entre Brasil e Portugal, que, o contexto evidenciado no
livro explicita:
Como é sabido, há muitos pontos de semelhança entre a moderna
orientação política do Brasil e de Portugal. Verificá-los é um grato
prazer para os Portugueses, para quem é caro tudo quanto diz respeito
ao Brasil e que veem com alegria tudo quanto assemelhe ou aproxime
os dois países, – sobretudo, quando eles chegam ambos, como agora,
por conclusão autônoma a situações pelo menos parcialmente idênti-
cas (VIEIRA, 1946: p. 916).

Para Duque Vieira, essa situação ‘‘parcialmente idêntica’’ é a própria


crítica ao liberalismo e à semelhança como em ambos países a questão
social e econômica estava sendo gerida, a partir de um estado que se co-
locava ‘‘em um plano superior à controvérsia travada entre o capital e o
trabalho” (VIEIRA, 1946: p. 917), rompendo por meio de uma série de
práticas com a supremacia do privado sobre o público.

Registra, fundamentado em Amaral, que a resolução desse conflito


se direcionava a partir de um Estado que impusesse ao capital e ao tra-
balho o conceito do ‘‘primado do bem público sobre todas as conveniên-
cias de caráter privado” (VIEIRA, 1946: p. 917). Segundo o crítico, essa
semelhança entre ambos regimes era também compartilhada na política
financeira (explicitando a política protecionista de Vargas como seme-
lhante à de Salazar) como também em razão da proximidade de ambos
como estadistas, pois os dois supostamente incorporam e sintetizam ‘‘as
qualidades e a maneira de ser de seu povo” (VIEIRA, 1946: p. 917).

Duque Vieira finaliza sua crítica registrando que o historiador futuro


deve direcionar seu olhar para a ‘‘revolução operada por Getúlio Vargas’’,

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já que esta, por suas “inúmeras virtudes” preservou a unidade nacional e


afirmou a autonomia e soberania do Brasil diante da hegemonia externa
(fundamentalmente o pan-americanismo), antagonizando-se à política li-
beral em prol da “reconquista da unidade interna do Brasil” (VIEIRA,
1946: p. 918). Ainda afirma, que esta reconquista significaria para o Bra-
sil ser mais ‘‘igual a si mesmo’’, ou seja, ser mais fiel à sua herança, e,
portanto, ‘‘mais simpáticos para os seus amigos deste lado oriental do
Atlântico” (VIEIRA, 1946: p. 918).

A ascensão do varguismo é vista pelos resenhistas (pelos livros sele-


cionados) em uma dimensão “fatalista” e “natural”. Vargas e Salazar são
considerados expressões, segundo o discurso dominante, de um Estado
“renegenerado” que superou, por meio da centralização do poder em suas
mãos, o período “negro” do liberalismo. Esta interpretação consagrada
nos manuais didáticos e na historiografia oficial é explícita na resenha de
Almeida e Souza ao livro de J. De Mattos Ibiapina intitulado O Brasil de
ontem e de hoje, publicado pelo Departamento de Imprensa e Propagan-
da.

O resenhista inicia seu texto elogiando o livro de Ibiapina por ser


uma crítica contra os políticos que levaram o Brasil ao “descalabro” e
uma defesa intransigente da ação de Vargas em seus diversos aspectos
(SOUZA, 1946: p. 919). Almeida considera que a crise descrita pelo autor
não é peculiar apenas ao Brasil, mas “um fenômeno geral, atingindo até
uma maior intensidade nesta velha Europa, teatro de experiências dolo-
rosas em busca de um rumo político e social definido” (SOUZA, 1946:
p. 919).

Ainda sobre a crise, afirma que as resoluções tomadas mediante o


caos geral do liberalismo foram em, alguns casos, exageradas no que con-
cerne à “estatolatria” e ao culto da filosofia da força (SOUZA, 1946: p.
919). Dessa forma, critica o nazismo e os regimes que considera como
“totalitários”, enquadrando o caso português e brasileiro como fora des-
sa órbita. Essa diferenciação é recorrente não só nos intelectuais portu-
gueses e brasileiros do período mas também no discurso dos homens do

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Autoritarismo e corporativismo na seção “crítica” da Revista Brasília (1942-1944)

estado que contrapõem o fascismo (“totalitarismo”, própria de “povos


violentos”) a uma “ditadura de direito” própria de um “povo pacífico”.
Como reitera o próprio Salazar:
A nossa ditadura aproxima-se, evidentemente, da Ditadura fascista no
reforço da autoridade, na guerra declarada a certos princípios da de-
mocracia, no seu caráter acentuadamente nacionalista, nas suas preo-
cupações de ordem social. Afasta-se, porém, nos seus processos de re-
novação. A ditadura fascista tende para um cesarismo pagão, para um
estado novo que não conhece limitações de ordem jurídica ou moral,
que marcha para o seu fim, sem encontrar embaraços nem obstáculos
[...] O Estado Novo português, ao contrário, não pode fugir a certas
limitações de ordem moral que julga indispensável manter, como ba-
lizar, à sua ação reformadora [...] As nossa leis são menos severas, os
nossos costumes menos policiado, mas o Estado, esse, é menos abso-
luto e não proclamamos onipotente (SALAZAR, 1955: p. 74).

Voltando a crítica, Almeida, ao analisar a História do Brasil recente


interpretada por Ibiapina, critica as ações das lideranças do Brasil repu-
blicano, uma vez que, ao tentarem implantar ideias “estranhas à realidade
brasileira” estes não souberam dar continuidade à herança da monarquia
de uma “pátria unida e forte” (SOUZA, 1946: p. 920). Segundo o crítico,
a crise do Brasil republicano deve-se à política “privatista” dos estados.
Esta política é reforçada pela Constituição de 1891 pelo seu “utopismo
transposto” (SOUZA, 1946: p. 921).

O caso do café e da borracha são exemplos claros, para Almeida,


de como o Brasil se tornou uma colônia financeira internacional, um
“feudo do capitalismo estrangeiro” (SOUZA, 1946: p. 921). Afirma que
se não fosse a “revolução” operada por Vargas, o país caminharia a “pas-
sos largos para a derrocada social” (SOUZA, 1946: p. 922). Elogia o
“amor pátrio” de Ibiapina em sua descrição das diversas medidas que
Vargas implanta para a superação da crise: lei de proteção ao trabalho, lei
da aposentadoria, lei da sindicalização, lei das oito horas de trabalho e o
confronto com os “privatistas paulistas” e a consequente centralização do
poder político e econômico (SOUZA, 1946: p. 923).

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Essa perspectiva da história recente, que enquadra o passado recente,


liberal-individualista, como “negro”, e afirma um presente “renovado”
e “regenerado” é própria de uma certa noção de tempo histórico domi-
nante do período, que vê a história nos marcos de “momentos áureos” (o
“hoje”) e momentos “decadentes” (o “ontem”), tendo os primeiros como
“exemplos” para práticas futuras. Tal visão da história não aparece so-
mente na crítica ao livro de Ibiapina, mas também em pelo menos duas
outras resenhas que se remetem à superação da crise econômica do Brasil.

Na primeira resenha, escrita por Fernando Pinto Loureiro ao livro de


Luís Dias Rollemberg, Aspectos e perspectivas da economia nacional,
publicado como parte da coleção Decenal da Revolução Brasileira, há
uma análise de história econômica do Brasil recente. Evidencia a mudan-
ça recente no Brasil de uma política econômica particularista para uma
verdadeira política nacional em Vargas (1943: p. 884). O crítico elogia a
visão de Rollemberg sobre o passado e o presente do Brasil, reiterando
a perspectiva de um passado recente caótico, em razão do privatismo pro-
tagonizado pelos cafeicultores, sendo somente com Vargas o início de um
longo caminho para a autonomia do Brasil (LOUREIRO, 1943: p. 884).

De forma análoga a esta resenha, Afonso Rodrigues Queiró, no li-


vro As autarquias e as sociedades de economia mista no Estado Novo,
publicada pelo Departamento de Imprensa e Propaganda, critica, funda-
mentado na leitura de Queiró, o que ele denomina “Estado individualis-
ta-liberal” em prol de um “Estado intervencionista”, que lute contra o
privatismo, segundo uma perspectiva dirigista da política e da economia
(QUEIRÓ, 1943: p. 885). Regista ainda que o Estado intervencionista
deve harmonizar o bem público, “coletivo”, com os distintos interesses
privados (QUEIRÓ, 1943: p. 885).

Para Queiró, com a proclamação da República, há uma dominância


negativa do poder privado sobre o poder público, a despeito da tentativa

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O Estado Novo brasileiro como espelho do salazarismo:
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de inúmeros indivíduos no seio do Estado “preocupados com o bem” co-


mum”, e ainda afirma que:
[a] Economia entregue a si própria, colocada ao lado ou acima do Es-
tado, dominando-o e enfraquecendo-o, justificou plenamente a revo-
lução de 1930, expressão da necessidade nacional de um Estado forte
e autoritário, de um Estado Novo, disposto a agir positivamente, em
especial no domínio econômico (QUEIRÓ, 1943: p. 886).

Para o crítico, é com as Constituições políticas de 1934 e 1937 que se


concretizam os princípios programáticos do Estado Novo Brasileiro, ten-
do como base a ideia de harmonização do público com o privado, citando
a Constituição para reiterar seu argumento:
Na iniciativa individual, no poder de criação, de organização e de in-
venção do indivíduo, exercido nos limites do bem público, funda-se a
riqueza e a prosperidade nacional. A intervenção do Estado no domí-
nio econômico só se legitima para suprir as deficiências da iniciativa
individual e coordenar os fautores da produção, de maneira a evitar ou
resolver os conflitos e introduzir no jogo das competições individuais
o pensamento dos interesses da Nação, representada pelo Estado (Art.
135. da Constituição de 1937 apud QUEIRÓ, 1943: p. 887).

Em sua leitura da obra de Eryma, essa suposta harmonização des-


crita pelo autor invade também o âmbito da representação corporativa,
segundo este, muito mais “democrática” que a representação meramente
política liberal, criando assim uma ação conjunta entre as diversas “forças
econômicas”, as “forças vivas da nação”, em prol do “crescimento nacio-
nal” (QUEIRÓ, 1943: p. 887). Para Queiró, esta integração da sociedade,
por meio das corporações, e, em particular no seio do “Conselho da Eco-
nomia Nacional”, é análoga ao que o governo português fazia por meio
da “Câmara corporativa portuguesa”, e mesmo da “Câmara dos fáscios”
na Itália (QUEIRO, 1943: p. 888).

Estas práticas são visíveis seja nas “autarquias” (institucionais) –


controle e gestão direta de empresas por meio de entidades paraestatais:
Departamento Nacional do Café, Caixa Econômica Federal, Institutos
de Pensões e aposentadoria –, seja nas “sociedades de economia mista”

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– participação financeira e administrativa do Estado em empresas mer-


cantis, constituídas por meio do Direito privado: Banco do Brasil, Insti-
tuto de Resseguros do Brasil –, que demonstram a maior intervenção do
Estado, a fim de harmonizar os interesses privados com o poder público
(QUEIRÓ, 1943: p. 890).

A defesa intransigente à concepção de mundo autoritária e corpo-


rativa é ainda mais explícita quando esta é confrontada por uma voz de
dissenso. Duarte de Montalegre, em uma resenha à Revista do Arquivo
Municipal de São Paulo, destaca o artigo de António Piccarolo “História
das doutrinas políticas”. Tece diversas críticas à posição “difamatória” do
autor em sua análise aos regimes “totalitários e autoritários”, afirmando a
posição que um historiador das doutrinas políticas deve assumir:
Uma das qualidades imprescindíveis ao autêntico historiador, das
doutrinas sociais, da literatura ou dos factos políticos, é, não há que
negar, a isenção de juízos críticos, a imparcialidade, a honestidade,
numa palavra. É esta uma virtude de carácter moral, necessária para
que o historiador possua inconcussa autoridade, como se faz mister.
Faltando ela, tudo se afundará (MONTALEGRE, 1946: p. 938).

Afirma que a despeito deste artigo ser um trabalho sério até a pri-
meira e segunda parte da sua obra, na terceira, quando procura analisar
as doutrinas do nacional-socialismo e da democracia, “deixa-se por com-
pleto obcecar pelo paroxismo de suas latrias e das suas fobias políticas”
(MONTALEGRE, 1946: p. 938). Piccarolo, segundo a crítica de Mon-
talegre, ao contrário de uma atitude própria de um “homem de ciência”,
teve um comportamento sectário ao tratar de forma elogiosa a democra-
cia e negativizar as doutrinas do nacional-socialismo (MONTALEGRE,
1946: p. 939).

Para Montalegre, o historiador deve se limitar aos fatos políticos,


e “narrá-los tais como aconteceu”, visto que segundo a sua perspectiva
essencialista “[o]s factos... são factos e não vale deformar o seu sentido
positivo, mesmo quando eles reduzem o pensamento doutrinário a sua
expressão mais simples” (MONTALEGRE, 1946: p. 942). Mais à frente,
cita Piccarolo a fim de demonstrar a sua parcialidade, e, portanto, falta de

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O Estado Novo brasileiro como espelho do salazarismo:
Autoritarismo e corporativismo na seção “crítica” da Revista Brasília (1942-1944)

cientificidade com relação à sua análise: “Fascismo e Nazismo, de facto,


não são doutrinas mas simplesmente negações dos princípios fundamen-
tais, que constituem o glorioso patrimônio político dos últimos séculos,
conquistado através das gloriosas lutas do pensamento e da ação” (Antô-
nio Piccarolo apud MONTALEGRE, 1946: p. 942).

Considera tal interpretação como própria de um “arrivista” ou “de-


magogo” e não de um historiador sério, mesmo porque, segundo Monta-
legre, o problema não é, se o mesmo é antifeixista, mas se ele não se limi-
ta aos “domínios da história das ideias”, sem “formular juízos de valor”,
reiterando que, se um outro intelectual se manifestasse da mesma forma
que Piccarolo com relação ao fascismo e nazismo, procederia também de
forma “parcial” e “deformada” (MONTALEGRE, 1946: p. 950). Termina
o texto afirmando que em razão da fobia de Piccarolo a tudo que “não seja
democrático”, acaba sendo mais apologista dos seus “ideais doutrinários”
do que propriamente historiador (MONTALEGRE, 1946: p. 951).

Essa contradição entre o discurso da “neutralidade” e “imparciali-


dade” e a defesa intransigente ao regime está presente de forma unânime
nas narrativas da Brasília. Ao revelarem o Brasil a Portugal, buscavam
uma imagem da História do Brasil que correspondesse a uma concepção
de mundo marcadamente imperialista, autoritária e corporativa. Todo cri-
tério de seleção e avaliação foi orientado pela defesa de uma concepção
de mundo oficial formada por certos valores, constitutivos de um certo
caráter lusitano. Um outro aspecto geral das críticas, fundamentalmente
no âmbito historiográfico, reside no fato de que estas estão enquadradas
naquilo que poderíamos chamar de “narrativas salvacionistas”. Para José
Gil (1996), o discurso salazarista se assemelha às narrativas canônicas
das grandes sagas mitológicas. O seu conteúdo divide-se segundo etapas
definidas que narram a saga do Estado Novo:
[...] primeiro a situação de desordem, de mentira, de anarquia, de hu-
milhação (“aviltamento”) do País antes do golpe de Estado que impõe,
a 28 de Maio de 1926, a Ditadura Militar. O “negativo” estende-se a
todos os sectores da vida nacional: financeiro, económico social, polí-
tico, moral. Mas pode de trás deste passado, próximo, existe o passado

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (474):249-274, maio/ago. 2017. 269


Marcello Felisberto Morais de Assunção

longínquo, mítico, da nossa história gloriosa. O passado próximo é


vulnerável como o presente, o passado distante marca um tempo forte
[...] Na segunda etapa há o sacrifício financeiro, do trabalho, do capi-
tal para superar a tendência de morte, da doença para a cura16 (GIL,
1996: p. 24).

Esse modelo de narração global da história do regime, desde os seus


primórdios até a sua fase de regeneração e consequente, era de ouro; não
estava só presente no discurso do próprio Salazar, mas é reproduzido pela
intelligentsia salazarista, e, também, na própria interpretação destes em
relação ao Estado Novo no Brasil. Como vimos nas críticas, em particu-
lar na área de história, há sempre uma estrutura comum no que concerne
à análise global do varguismo: primeiro a crise institucional ocasionada
pelo liberalismo e, por, conseguinte, o despertar da nação oriundo de um
Estado Novo que harmonize o conflito por meio da intervenção “regene-
radora”. Essa estrutura comum, no que concerne à interpretação geral do
fenômeno estado-novista no Brasil e em Portugal, é um indício de uma
concepção autoritária e corporativa, compartilhada por esta intelligentsia
nas duas margens do Atlântico. Em ambas o herói é o próprio Estado
Novo, que invoca a nação a se sacrificar em prol do “ressurgimento” na-
cional.

Esse sacrifício não deveria ser feito somente pelo “capital” e “traba-
lho” mas, também, pelos intelectuais que deveriam largar os seus “bar-
roquismos” e “particularismos ideológicos” em prol de um engajamento
ativo em torno da reconstrução da nação no Brasil e em Portugal. Dessa
forma, poderíamos dizer que há um espelhamento em torno de pelo me-
nos quatro temas estruturantes na cultura política da intelligentsia luso-
-brasileira do período: a invocação de um estado forte e centralizado, a
defesa de uma democracia social (por meio da organização corporativa)
em detrimento de uma democracia política, a formação de uma elite enga-

16  –  Como fica claro no discurso de Salazar “[...] primeiro agitação permanente, muta-
ções rápidas de cena política, desordem nas ruas e nos espíritos, anarquia e insuficiência
dos serviços, falta de segurança das pessoas e dos bens, descrédito, ruína da economia,
atraso geral, muitas revoluções, nenhuma revolução, depois a Ditadura que estabelece a
paz” (Salazar apud GIL, 1996: pp. 24-25).

270 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (474):249-274, maio/ago. 2017.


O Estado Novo brasileiro como espelho do salazarismo:
Autoritarismo e corporativismo na seção “crítica” da Revista Brasília (1942-1944)

jada no processo de modernização institucional da estrutura burocrática


e, por fim, a defesa intransigente de um executivo forte, e, portanto, de
um crescimento da figura do estado por meio da eliminação dos “corpos
intermediários”, resquícios da política privatista e individualista do libe-
ralismo.

Em suma, essa matriz comum na representação do político é objeti-


vamente um indício de uma cultura política arraigada ao corporativismo
e autoritarismo dos tempos da vaga autoritária dos anos 1920-40. O que
não é arbitrário, pois a maioria dos autores resenhados na Brasília teve
alguma relação direta ou indireta com o poder no Estado Novo brasileiro,
como são os casos emblemáticos de Azevedo de Amaral, Francisco Cam-
pos e Fernando de Azevedo. Além disso, as suas obras, em sua maioria,
foram publicadas por órgãos oficiais do regime, como o Departamento de
Imprensa e Propaganda, Editora da Companhia Nacional, Comissão Bra-
sileira dos Centenários, Seção Brasileira do Secretariado de Propaganda
Nacional, Coleção Decenal da Revolução Brasileira etc.

Tanto os autores como os resenhistas detêm uma série de vínculos


institucionais diretos (com a burocracia dos regimes: militares, homens
de estado) ou indiretos (por meio de órgãos da sociedade civil: universi-
dades, bibliotecas, escolas públicas, etc.) que evidenciam uma homologia
entre as suas respectivas interpretações intelectuais no âmbito pedagó-
gico, jurídico e historiográfico com aquilo que é hegemônico no campo
político, ou seja, uma visão uníssona laudatória do significado do Estado
Novo. Isso, contudo, não é exclusivo da Brasília, pois, como reiteram
SILVA (2011) e SERRANO (2009), as produções intelectuais emergidas
nos anos de fortalecimento da “Política do Atlântico” (a Revista Atlânti-
co, o Boletim da Seção Brasileira do Secretariado de Propaganda Nacio-
nal e as coleções de livro publicadas com o incentivo do Acordo Cultural
de 1941) foram publicadas por órgãos oficiais que estavam em sintonia
com os valores dos regimes de “terceira via”.

No entanto, é preciso ressaltar que esse diálogo entre as intelectua-


lidades e as instituições no Brasil e em Portugal, durante o Estado Novo,

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (474):249-274, maio/ago. 2017. 271


Marcello Felisberto Morais de Assunção

ultrapassou a questão do corporativismo e autoritarismo, pois, a políti-


ca cultural luso-brasileira, a denominada por Antônio Ferro “Política do
Atlântico”, foi defendida por distintas matrizes políticas, e mesmo por
aqueles que confrontavam o salazarismo. Portanto, não é ocasional que
a mesma se perpetue no pós-guerra, já sobre um regime constitucional-
mente democrático com sua consagração institucional na assinatura do
tratado de amizade e consulta de 1953. Entretanto, sabemos que estas re-
lações devem ser compreendidas na sua inserção a um processo de longo
prazo das relações entre Brasil e Portugal, que dão um salto qualitativo e
quantitativo desde a institucionalização de ambos os Estados Novos, que
oferece a esses intelectuais muito mais do que a justificativa do legado
para assim se unirem em torno de uma bandeira comum: a nação luso-
-brasileira de matriz autoritária, corporativa e cristã contra o “satanismo”
do liberalismo, comunismo e totalitarismo. Essa visão que tem seu lugar
social no seio da Revista Brasília e de outras revistas e produções luso-
-brasileiras (a despeito dos conflitos e contradições ocultadas sistema-
ticamente nestas produções), desde o período de institucionalização do
salazarismo e varguismo e afirmação das políticas culturais entre Brasil e
Portugal até o fim da Segunda Guerra Mundial.

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Texto apresentado em novembro/2015. Aprovado para publicação


em junho/2016.

274 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (474):249-274, maio/ago. 2017.


O expansionismo japonês e a experiência dos koutakussei na Amazônia

275

O expansionismo japonês e a experiência dos


Koutakussei na Amazônia
Japanese Expansionism and the Experience of the
Koutakusseis in the Amazon
Reiko Muto1
Luis E. Aragón2
Resumo: Abstract:
Este texto é uma primeira aproximação ao estudo This article is a first step in the study of a group
do caso de um grupo de estudantes japoneses of Japanese students who immigrated to the
que imigraram para Amazônia brasileira na dé- Brazilian Amazon in the 1930s. It is restricted
cada de 1930. Limita-se à revisão bibliográfica to the bibliographic review on Japanese expan-
sobre o expansionismo japonês e sua possível sionism and its possible relation to the arrival
relação com a vinda desses estudantes chama- of the so-called Koutakussei students who came
dos koutakussei, que se instalaram próximo à to settle near the city of Parintins in the Lower
cidade de Parintins, no Baixo Amazonas. Dois Amazon. Two characters identified with Japan’s
personagens se destacam nesse processo imigra- expansionist policy stand out in this immigra-
tório pela profunda ligação de suas vidas com a tion process, namely the politician Tsukasa
vinda desses estudantes para a Vila Amazônia Uyetsuka (1890-1978) and Professor Kotaro-
(Parintins), para iniciar um grande projeto de Tuji (1903-1970). Throughout their lives, they
colonização para futuro assentamento de 10 mil shared a special bond with these students who
famílias nipônicas em pleno coração da Ama- lived in Vila Amazônia (Parintins), and started a
zônia. Trata-se do político Tsukasa Uyetsuka major colonization project for the future settle-
(1890-1978) e do professor KotaroTuji (1903- ment of 10 thousand Japanese families in the
1970), personagens identificados com a política heart of the Amazon.
expansionista japonesa.
Palavras-chave: Koutakussei; Vila Amazônia; Keywords: Koutakussei; Vila Amazônia; demo-
História Demográfica; Japoneses na Amazônia; graphic history; Japanese in the Amazon; immi-
Imigração na Amazônia; Expansionismo japo- gration in the Amazon; Japanese expansionism.
nês.

1. Introdução
Este texto é uma primeira aproximação ao estudo do caso de um
grupo de estudantes japoneses para Amazônia brasileira, na década de
1930.3 Limita-se à revisão bibliográfica sobre o expansionismo japonês

1  – Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Sustentável do


Trópico Úmido, do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos, da Universidade Federal do
Pará. E-mail: reikomuto@gmail.com.
2  – Professor titular do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos da Universidade Federal
do Pará, coordenador da Cátedra Unesco de Cooperação Sul-Sul para o Desenvolvimen-
to Sustentável e pesquisador visitante do CNPq na Universidade Federal da Integração
Latino-Americana (UNILA).E-mail: luis.ed.aragon@hotmail.com.
3 – Este texto revela os primeiros resultados da tese em andamento sobre

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (474):275-298, maio/ago. 2017. 275


Reiko Muto
Luis E. Aragón

e sua possível relação com a vinda desses imigrantes que se instalaram


em Vila Amazônia, ao leste da cidade de Parintins, na região do Baixo
Amazonas.4

A literatura sobre o processo migratório de japoneses para a Ama-


zônia brasileira destaca dois personagens pela profunda ligação de suas
vidas com a história demográfica dessa etnia. Trata-se do político Tsuka-
sa Uyetsuka (1890-1978)5 e do professor Kotaro Tuji (1903-1970)6, que
estiveram envolvidos, sobretudo, com a vinda de estudantes japoneses
conhecidos como “kotaku-sei” ou “koutakussei”, acompanhados de pro-
fessores, técnicos e colonos, cujo contingente de imigrantes representa
um total de menos de 500 pessoas, para iniciar um grande projeto de
colonização, para futuro assentamento de 10 mil famílias nipônicas em
pleno coração da Amazônia. Esses dois personagens comungavam com
a política expansionista do Japão na época, o que leva a relacionar os
ideais do expansionismo japonês com a atuação desses dois atores que
promoveram a vinda de muitos japoneses para a Amazônia antes e depois
da Segunda Guerra Mundial.

O perfil dos migrantes koutakussei e a forma como se deram os des-


locamentos permitem considerar que esse grupo representa uma vertente
diferenciada do fluxo de imigrantes japoneses para o território brasileiro,
que justifica uma investigação mais aprofundada de sua história demo-
gráfica para a compreensão dos diferentes padrões de imigração existen-
tes no Brasil, cuja linha de ação foge dos padrões tradicionais; mesmo
porque não se tem notícia da existência de koutakussei noutras partes

“os koutakussei e os ideais do expansionismo japonês na Amazônia” elaborada pela dou-


toranda Reiko Muto.
4  – O atual território do Baixo Amazonas (AM) abrange uma área de 107.507,60 km² e
é composto por sete municípios: Barreirinha, Boa Vista do Ramos, Maués, Nhamundá,
Parintins, São Sebastião do Uatumã e Urucará. Disponível em: http://www.territoriosda-
cidadania.gov.br/dotlrn/clubs/territriosrurais/baixoamazonasam.
5  –  Sobre a vida do político Tsukasa Uyetsuka, ver: Uyetsuka ([1954] 2011).
6  –  Kotaro Tuji é o nome adotado pelo próprio no Brasil, que consta de vários livros e
documentos. No entanto, o verdadeiro nome deste japonês é Kotaro Tsuji, visto que não
existe a sílaba “tu” e sim “tsu” na língua japonesa. Sobre a vida do professor KotaroTuji
ver: Tuji (1968, s/d).

276 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (474):275-298, maio/ago. 2017.


O expansionismo japonês e a experiência dos koutakussei na Amazônia

do mundo, e porque o idealismo dos dois personagens emblemáticos in-


fluenciou profundamente na construção da identidade desse grupo de imi-
grantes, cuja contribuição econômica, social e cultural foi significativa na
formação histórica da região.

2. Um pouco de História do Japão

2.1 O Japão feudal


Quando o Japão abriu as portas para o mundo ocidental, em mea-
dos do século XIX, o arquipélago do Sol Nascente estava dividido em
feudos – vários territórios autônomos governados por seus suseranos, ou
daimyo,7 que administravam a propriedade (han) com o seu próprio exér-
cito de guerreiros – os samurais8 – que não podiam trabalhar, pois deviam
se dedicar à arte da guerra para defender os interesses de seu senhor. A
sociedade estava assentada numa economia essencialmente agrícola, em
que a maioria dos camponeses não podia circular em outros domínios ou
deixar seu local de nascimento sem autorização, e nem sequer tinham
direito a um sobrenome9 (NOGUEIRA, 1983; HALL, 1995).

Cada suserano mantinha as suas tradições e normas, e relações de


interdependência com os seus vassalos e com os demais daimyo, depen-
diam do tamanho e poder de influência dos chefes dos clãs. O princi-
pal feudo era dos Tokugawa, que possuía cerca de um terço do território
habitado pelos seus vassalos e controlava os demais daimyos, por meio
do Bakufu10. A quantidade de guerreiros samurais que serviam o clã dos

7 – Daimyo(大名): Eram os senhores dos feudos (castelo e suas terras), equivalente aos
barões do império, que detinham a propriedade dos han.
8 – Samurai (侍): Eram os guerreiros/soldados da aristocracia japonesa que serviam os
daimyos, durante o período do Xogunato. De acordo com o código de honra (Bushido –
que significa, o caminho do guerreiro), os samurais deveriam ser leais, resistentes, corajo-
sos e disciplinados. Suas principais características eram a severa disciplina, lealdade e sua
grande habilidade com a espada (katana).
9  –  Somente as famílias da aristocracia e dos samurais possuíam sobrenomes de famílias
distintas. Razão por que a maioria das famílias de camponesas que adotaram os sobreno-
mes na Era Meiji possui nomes dos locais de origem, como Sato, Suzuki, Ito, Kagawa,
Yamaguchi, Fukushima etc.
10 – Bakufu(幕府) ou Administração do Xogunato, designa o sistema de governo japo-

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (474):275-298, maio/ago. 2017. 277


Reiko Muto
Luis E. Aragón

Tokugawa inspirava respeito entre os demais. Por isso, o líder era cha-
mado de Xogum (ou Shogun), o maior entre os mais de 250 daimyos.
O imperador, apesar de ser venerado pelo povo como um descendente
direto da deusa Amaterasu, segundo a doutrina xintoísta, era apenas um
ente simbólico, sem poder político ou militar. Além disso, a família impe-
rial vivia encastelada no Mikado de Kyoto como uma presa dos Tokuga-
wa (HALL, 1995; SOMMA 2003).

A despeito das atividades artísticas, culturais e religiosas serem com-


plexas e requintadas, aos olhos dos ocidentais, a urbanização das cidades,
a indumentária e os costumes da população pareciam de uma época me-
dieval (SETTE, 1991, p.1). Era essa a sociedade japonesa do século XIX,
quando a poderosa esquadra americana comandada por Comodoro Perry,
composta de quatro fragatas a vapor dotadas de artilharia moderna, che-
gou à baía de Edo (atual Tóquio) em julho de 1853. A visão dos “navios
negros” atirando bolas de canhões, numa demonstração de força e inti-
midação, foi um assombro para aquela população que vivia ainda imersa
nas tradições neoconfucionistas, dividida em castas sob o severo controle
dos daimyos e seus leais samurais. Na hierarquia de castas, estavam em
primeiro plano os nobres de sangue, depois os samurais, agricultores,
artesões, mercadores e por último os párias Eta.11

Matthew Calbraith Perry (1794-1858), ao apresentar a carta do presi-


dente dos EUA, Millard Fillmore (1850 a 1853), em março de 1854, exi-
gindo a abertura do Japão para o Ocidente, provocou uma série de even-
tos e conflitos internos que levariam à assinatura do Tratado de Kanagawa
em 31 de março de 1854. Este tratado concedeu a abertura dos portos de
Shimoda ao sul e de Hakodate ao norte, para atender aos suprimentos dos
navios americanos e ajudar a náufragos. Depois da abertura, vieram os

nês com base na ditadura militar exercida pelo Shogun, na Era dos Tokugawa, conhecido
também como Período Edo.
11 – O grupo Eta era composto de pessoas consideradas impuras que, geralmente, exer-
ciam trabalhos desqualificados socialmente – como matança de animais, venda de carnes,
trato de cadáveres ou de carcaças de animais. Também chamavam de Eta aos descenden-
tes de coreanos que foram trazidos pelos primeiros shoguns e que permaneceram isolados,
exercendo essas atividades consideradas impuras pelo budismo.

278 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (474):275-298, maio/ago. 2017.


O expansionismo japonês e a experiência dos koutakussei na Amazônia

britânicos (1854), os russos (1855) e os holandeses que já tinham acesso


aos portos de Deshima/Dejima, em Nagasaki, ao sul do Japão. De maior
importância foi o Tratado de Amizade e Comércio com os Estados Unidos
(também conhecido por Tratado Harris), firmado em 29 de julho de 1858,
que permitiu a abertura dos principais portos do Japão – Edo (Tóquio),
Osaka, Nagasaki, Kanagawa, Hyogo (atual Kobe) e Niigata – ao comér-
cio com os Estados Unidos. A “aceitação” pelos japoneses da cláusula de
nação mais favorecida – pela qual, qualquer concessão comercial dada a
terceiros países seria automaticamente estendida aos Estados Unidos –
seria de fundamental interesse dos americanos (SETTE, 1991; AUSLIN,
2004; ALVES, 2011).

A ingerência das grandes potências ocidentais no Japão provocou


graves conflitos na política interna, pela perda da honra e legitimidade do
Bakufu, desvendando a fragilidade e o declínio de poder dos Tokugawa.
Mesmo porque as condições socioeconômicas da época haviam muda-
do a estrutura da sociedade japonesa, tornando a casta dos comerciantes
muito mais próspera que a dos samurais, detentores do poder político.
A pressão estrangeira havia criado uma perigosa reação entre os gran-
des daimyos e no meio dos samurais, que perderam os seus senhores nas
guerras civis, ou que foram deportados para lugares distantes e pobres
demais para sustentar os seus servos. Esses samurais errantes, que pas-
saram a ser chamados de ronin, estavam dispostos a vingar as injustiças
cometidas a seus senhores.

Nesse ambiente de conflitos havia sentimento de revolta e medo en-


tre os samurais, pois eles compreendiam que aquela presença estrangeira
representava uma grande ameaça ao shogum e a todos os japoneses, e que
a qualquer momento poderia aparecer uma frota de guerra para defender
seus privilégios. Ademais, era visível o sentimento de superioridade dos
estrangeiros em relação aos nativos. Por conta dessas diferenças, fizeram
crescer as animosidades pessoais que geraram várias querelas e violên-
cias entre japoneses e estrangeiros, que eram abafadas com punições se-
veras pelo Bakufu (SETTE, 1991, p.72).

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (474):275-298, maio/ago. 2017. 279


Reiko Muto
Luis E. Aragón

Em consequência dessas animosidades e pela incapacidade de defesa


às forças estrangeiras, somadas às diferenças internas sucessivas, ocorreu
desmoronamento do Xogunato em 1868 (LANDES, 1998, p. 417).

2.2 O Japão na Era Meiji


A queda do Xogunato levou à estabilização do parlamento. O jovem
imperador Mitsuhito (1852-1912) inaugura a Era Meiji (também chama-
da de Restauração Meiji), em 6 de abril de 1868, prestando juramento à
Carta Constitucional, prometendo instituições representativas e o estabe-
lecimento de uma nova sociedade civil democrática. Inclusive, transferiu
a capital do império de Kyoto para Edo (atual Tóquio) (LANDES, 1998,
p. 419).

Com tantas mudanças, o governo Meiji é conhecido como Governo


Iluminado. Os 45 anos da Era Meiji (1868-1912) foram marcados pela
modernização, pela arrancada para a industrialização e pela ocidentali-
zação de seus costumes, pelo término do isolamento do Japão. Os seus
princípios consuetudinários, que mantinham a tradição e a influência do
confucionismo chinês por longos anos, sem grande afinidade com o Di-
reito Romano, passaram a sofrer profundas transformações que se prolon-
garam além da Restauração Meiji.

Com a Restauração Meiji a sociedade japonesa foi submetida a uma


transformação política e social revolucionária, posto que a abolição das
instituições feudais desmoronou os castelos e o sistema de castas, que ha-
via perdurado por muitos séculos. Os senhores feudais (daimyo) entrega-
ram as suas terras ao imperador, ou foram confiscados em 1869, passando
a ser da nova nação, com a conversão dos feudos (han) em províncias
(ken), seguida da reforma agrária. Consequentemente, com a mudança da
propriedade, os camponeses – que até então pagavam os impostos em es-
pécie (geralmente arroz) aos seus daimyo – passaram a pagar ao Governo
Imperial em base monetária. Os samurais dispensados, insatisfeitos com
a perda do antigo status, mantiveram várias revoltas que foram combati-

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O expansionismo japonês e a experiência dos koutakussei na Amazônia

das pelo Exército Imperial, levando ao fim da classe samurai e ao forta-


lecimento do Exército Imperial Japonês (BUCK, 1979; SETTE, 1991).

Com as reformas em andamento, o novo imperador deu prioridade


ao fortalecimento do Exército e da Marinha Imperial com base no modelo
europeu. Para isso, o Japão enviou ao exterior, por vários anos, inúmeros
estudantes e funcionários militares para formação, avaliação dos pontos
fortes e táticas dos exércitos e marinhas do mundo ocidental; como tam-
bém recebeu vários especialistas e técnicos europeus (Quigley, [1932]
2007).

Para dar conta dos investimentos necessários para a estruturação das


Forças Armadas, o governo alterou drasticamente o imposto territorial
rural, em 1873, numa época em que a economia monetária ainda não
havia se firmado no campo. Logo, os pequenos proprietários viram-se re-
pentinamente confrontados com uma pesada carga tributária, que, aliada
à queda do preço do arroz, em 1884, provocou a desagregação de uma
parcela significativa do campesinato. Entre os anos de 1883 e 1890, 367
mil camponeses perderam suas propriedades pelo não recolhimento de
tributos, transformando-se em arrendatários, ou rendeiros de suas antigas
propriedades ou ainda retirantes para os centros urbanos (LEÃO NETO,
1989, p. 17). Consequentemente, ocorreu um processo de concentração
fundiária nas mãos de alguns grandes proprietários. Depois, a maioria das
empresas estatais foi privatizada, e os comerciantes que haviam se forta-
lecido na época do Xogunato passaram a formar o zaibatsu12 conduzidos
pelos barões da aristocracia japonesa.

Os tratados internacionais desiguais do Período Edo também foram


revisados e realizados outros acordos e tratados com os países ociden-
tais, para incrementar as relações internacionais (comércio, transporte,
migrações, apoio militar etc.). Nesse jogo político foi celebrado em Paris,
em 05 de novembro de 1895, o Tratado de Amizade, Comércio e Nave-
12 – Zaibatsu significa literalmente círculo financeiro. Refere-se a holding ou conglo-
merados industriais e/ou financeiros do Império do Japão, cujo tamanho e influência pro-
piciaram o controle de parte significativa da economia japonesa do período Meiji até o fim
da Segunda Guerra Mundial.

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Reiko Muto
Luis E. Aragón

gação com o Brasil (aprovado pela Lei nº 419, de 27 de novembro de


1896). Por conta dos acordos estabelecidos, afastou-se no Japão a ameaça
do colonialismo europeu, inclusive, fortalecendo-se militarmente com a
construção naval.13

Passado o período de conflitos internos, além das reformas de base


no campo da educação (alfabetização em massa), a ciência e a cultura
ocidental foram encorajadas, ainda no fim do século XIX. As práticas
toleradas pelos Tokugawa, como o aborto e o infanticídio, passaram a ser
proibidas por não se conformarem com os padrões ocidentais. O Estado
adotou a política de intervenção econômica e absorção das inovações tec-
nológicas das grandes potências ocidentais. Ademais, à entrada do comér-
cio estrangeiro juntaram-se as melhorias das condições médico-sanitárias
e de saneamento urbano, intensificando o crescimento demográfico, de
modo que a população japonesa cresceu de 35 milhões em 1872 para 44
milhões em 1900 e para 50 milhões em 1910 (RIALLIN, 1962, pp. 20-3).

A partir dessas transformações estruturais, o governo e a população


empreenderam a modernização do país com intensidade, partindo da pro-
dução manufatureira para a industrial, por meio de métodos apreendidos
de diversas sociedades europeias, especialmente ingleses, alemães e fran-
ceses – na forma de condução da burocracia e da tecnologia ocidental –,
cuja consequência gerou o alicerce para a fantástica revolução industrial
nos grandes centros urbanos (LANDES, 1998, pp. 424-25; HOMMA,
2007, p. 20). Como consequência, num curto espaço de tempo (de 1860
a 1930), o Japão converteu-se numa nação fortemente ocidentalizada, ra-
zão pela qual, culturalmente, a Era Meiji representa o período da ociden-
talização do país (GAKKEN, 2002).

Por outro lado, a reforma agrária gerou endividamento de grande


parte dos pequenos proprietários, que não tinham como sustentar a nume-
rosa prole, de modo que os filhos se viam obrigados a tomar o rumo das
13  – Não havia no Japão navios que se comparassem aos das marinhas inglesa ou ameri-
cana. Durante anos, como parte da política de isolamento, os líderes japoneses proibiram
a construção de grandes embarcações, para coibir a saída de aventureiros, para além da
costa do país.

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O expansionismo japonês e a experiência dos koutakussei na Amazônia

cidades, levando ao consequente aviltamento do trabalho não qualifica-


do. A partir daí, o enorme contingente populacional começara a sofrer as
pressões preconizadas por Malthus,14 que os levaria a procurar a mesma
solução que a Europa havia adotado para os seus problemas demográfi-
cos, exportando população (SETTE, 1991, p.129). Em 1884, o governo
japonês celebrou um Tratado de Navegação com o Havaí (protetorado
norte-americano), dando início à emigração temporária, que logo passaria
a se dirigir à costa oeste dos Estados Unidos, em menor escala ao Canadá
e, principalmente, para a Ásia.

Entretanto, no caso dos japoneses, essa resposta parcial ao proble-


ma demográfico era muito delicada, pois além das diferenças culturais
e linguísticas, a emigração constituía uma violação profunda às normas
enraizadas pelo Xogunato dos Tokugawa (1603-1868), que fechou as
portas do Japão por mais de 200 anos (1633-1868). Era contrária a todos
os sentimentos de família e comunidade de uma etnia que havia formado
o espírito nacional, aquilo que os japoneses chamam de “sentimento de
ilha”, que pode ser interpretado como isolacionismo15 de uma comunida-
de ilhada, moldada na doutrina confucionista-xintoísta.

Portanto, numa época em que diversos países ocidentais competiam


ativamente por poder, comércio, bens e territórios no leste da Ásia, o Go-
verno Imperial, imbuído dessa forma de dominação, procurou unir-se a
esses poderes coloniais modernos, rompendo com as limitações de natu-
reza defensiva, para a conquista e dominação de novos espaços. A política
expansionista do Império do Sol Nascente moveu o capitalismo naquele
país para o estágio internacional, conhecido como período expansionista,
e até de imperialista e colonialista.
14  –  “Malthus formava o pensamento político-econômico da Europa e dizia que o cres-
cimento demográfico não podia ser absorvido pelas oportunidades mínimas de vida que a
economia podia oferecer. A solução óbvia era o translado de população para as terras que
as pudessem acolher, voluntariamente ou não” (SETTE, 1991, p.129).
15  – O isolacionismo parece constituir um traço reativo inerente a algumas culturas asi-
áticas, não se esgotando no exemplo japonês. Também o Tibete – até finais do século
XIX, a Birmânia/Myanmar, o Laos e o Camboja recorreram a tal expediente para travar
qualquer ingerência estrangeira e, recentemente, a Coreia do Norte, sob regime de tipo
socialista (HALL, 1995).

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3. A política expansionista do Japão


O expansionismo japonês representa, sobretudo, um período de ex-
pansão territorial, econômica e militar, num esforço para se igualar às
potências europeias e norte-americana. Começou no início do século XX,
após as guerras sino-japonesa (1894-1895) e russo-japonesa (1904-1905),
quando o Japão passou a se modernizar sob a hegemonia do capitalismo,
cujo modelo requeria cada vez mais recursos energéticos. Até então, o
Japão não detinha qualquer alternativa para sanar essa carência de recur-
sos naturais e financeiros, pois estava isolado de certas questões como
empréstimos ou fundos financeiros de países estrangeiros. Além disso, o
país já havia investido muito nas forças armadas e na infraestrutura bélica
e precisava urgentemente conseguir recursos energéticos, como carvão
de pedra, petróleo, madeira, minérios e matéria-prima diversificada para
a indústria manufatureira para alavancar sua economia.

A primeira guerra sino-japonesa (1894-1895) foi um conflito en-


tre o Japão e a China, fundamentalmente pelo controle da Coreia, posto
que este país estava na esfera de influência da Dinastia Qing, da China.
A Coreia tornou-se objeto de intensa rivalidade entre China e Japão após
a abertura ao comércio japonês em 1876, pelo Tratado de Amizade (entre
Japão e Coreia). Como aliada do Japão, a Coreia foi envolvida na guerra
sino-japonesa, sendo-lhe garantida a independência, em 1895, pelo Trata-
do de Shimonoseki. A China, além de perder o poder sobre a Coreia, acei-
tou a cessão de Taiwan (Formosa), das ilhas Pescadores e de Liaodong
ao Japão. No entanto, nesse mesmo ano (1895), o governo japonês teve
de renunciar em favor da Rússia os direitos adquiridos sobre a penínsu-
la de Liaodong, onde se localizava a cobiçada cidade de Port Arthur16.
O Exército Imperial se via incapaz de enfrentar a Rússia naquele momen-
to, sobretudo, por estar apoiada pelas forças da França e do Reino Unido
(HALL, 1995;Quigley, [1932] 2007).
16  – Port Arthur foi um porto russo, no território da República Popular da China, situado
no extremo sul da ponta da península de Liaodong. O lugar é célebre por ter sido palco da
Batalha de Port Arthur no marco da guerra russo-japonesa entre 1904 e 1905. Atualmente
conhece-se como cidade de Lüshunkou ou Luyshun, que fica junto à cidade de Dalian,
na China.

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O expansionismo japonês e a experiência dos koutakussei na Amazônia

Em 1903, o Exército Imperial entrava na atual Coreia do Sul domi-


nando a capital Seul e dando início ao chamado “expansionismo japonês”
propriamente dito. Em 1905, o Japão forçou a Coreia a assinar o Tratado
de Eulsa, transformando o país em um protetorado japonês. Em 1910,
as tropas japonesas ocuparam a Coreia, transformando-a em colônia por
meio do Tratado de Anexação Japão-Coreia, embora esse tratado não fos-
se reconhecido internacionalmente.17 Além disso, o Japão consegue do-
minar o mar da China, expandindo assim o mar japonês (YOUNG, 1999).

A guerra russo-japonesa (1904-1905) ocorreu no nordeste asiático.


Ao dominar algumas ilhas do Pacífico pertencentes ao Império Russo,
este declarou guerra ao Japão, seguindo-se batalhas navais entre as forças
do Império Japonês e do Império Russo, que disputavam os territórios da
Coreia e da Manchúria. A derrota russa em Porto Artur e Tsushima rendeu
ao Japão as possessões de Kwantung e Karafuto (produtoras de carvão de
pedra, petróleo e outros produtos) que foram ocupadas pelos japoneses
de 1905 a 1945 (COOX, 1990; QUIGLEY [1932] 2007; YOUNG, 1999).

Em 1911, o Exército Imperial avançou sobre as ilhas Filipinas, bem


como sobre os estratégicos arquipélagos de Bismarck e Salomão, que
eram colônias alemães no Pacífico. Em 1912, o acordo tão aguardado
com Pequim cumpriu-se finalmente, quando a Segunda República toma
posse do governo chinês. O Japão, que já contava com ameaças dos chi-
neses, prevenindo-se de uma possível invasão, ocupou parte do territó-
rio da Manchúria, por ocasião da Primeira Guerra Mundial (1914-1918),
quando o Japão aliou-se à Grã-Bretanha, invadindo as concessões alemãs
na península chinesa de Shandong,18 grande fornecedora de carvão de
pedra para o mercado internacional, bem como as ilhas Marianas, Caro-
linas e Marshall, que faziam parte da Nova Guiné alemã (COOX, 1990;
QUIGLEY [1932] 2007; YOUNG, 1999).

17  – O tratado assinado pelos representantes do governo do Império Coreano e do Im-
pério do Japão foi proclamado em 29 de agosto de 1910, iniciando oficialmente o período
de domínio japonês na Coreia.
18  – Também chamada de Shantung, Xantung ou Chantung.

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Do ponto de vista econômico e demográfico, o alargamento das fron-


teiras do Império Japonês foi importante para a sociedade agrícola daque-
la época, ainda mais para um país montanhoso como o Japão, com cerca
de 380 mil km2, com menos de 20 por cento de terras cultiváveis, que ne-
cessitava de insumos para a indústria nascente e alimento para uma popu-
lação de 42 milhões (em 1907) de habitantes em expansão demográfica.19
Estas aquisições territoriais aumentaram a área controlada pelo império
japonês para 681 mil km2. A população total do Império do Sol Nascen-
te, incluindo Taiwan, Coreia e Karafuto, passou para 64,94 milhões de
habitantes, em dezembro de 1908, sendo: 51,74 milhões no Japão; 10
milhões na Coreia; 3,25 milhões em Taiwan, 26,39 milhões em Karafuto
e cerca de 455 mil em outras possessões (JAPAN, 2000). Quando o Japão
realizou o primeiro censo nacional, em outubro de 1920, a população do
país chegava a 55.963.053 habitantes, distribuídos num conjunto de ilhas
com área total de 381.808 km2 com uma densidade demográfica de 147
pessoas/km2, que se expandia continuamente nos anos seguintes (JAPAN,
2000).

O período entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial (1914 e


1945) foi marcado pelo incremento do comércio mundial, pela extração
intensa de carvão, petróleo, ferro, bronze, dado que os países europeus
(principalmente a Alemanha) não possuíam recursos para manter a guer-
ra e tiveram de recorrer a outros países. E como o Japão já possuía um
parque industrial em expansão, o comércio internacional trouxe grandes
vantagens na balança comercial, tornando-se, desde então, uma potência
econômica no ranking dos 10 países mais ricos do mundo. Daí pode-
-se deduzir que as guerras não seriam apenas por questões geopolíticas
e ideológicas, mas profundamente econômicas. Por outro lado, a políti-
ca expansionista veio gerar desconfianças dos países ocidentais e trazer
grandes contratempos na política externa, principalmente em termos de
emigração, seja para os Estados Unidos, seja para o Brasil.
19  –  Imagine-se a diferença da densidade demográfica entre Japão e Brasil, no início
do século XX, quando o Brasil, com uma extensão territorial de 8.512 mil km2 (22 vezes
maior que o Japão), possuía apenas 17,3 milhões de habitantes, tendo o Pará 445 mil e o
Amazonas apenas 250 mil habitantes (IBGE, 2010).

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O expansionismo japonês e a experiência dos koutakussei na Amazônia

No jogo do poder, o povo japonês passava a ser discriminado pe-


las grandes potências. Basta lembrar que, por conta da aliança com a
Grã-Bretanha, o Japão propôs uma cláusula sobre a “igualdade racial”
para ser incluída na Liga das Nações, na Conferência de Paz de Versa-
lhes (Paris), em 1919. A cláusula foi rejeitada pelos Estados Unidos e
pela Grã-Bretanha, e não foi encaminhada para discussão em plenária
da conferência. Essa rejeição pelas principais potências mundiais foi um
duro golpe à dignidade nacional e fez com que o Japão se afastasse dos
antigos aliados, e a aliança Anglo-Japonesa encerrada em 1923. Como
consequência, o Japão devolveu a península, de Liaodong (Port Arthur) e
Darien à China, e depois, a Rússia tomou a península prevalecendo-se da
falta de força da China, ameaçando seriamente a defesa do Japão. Tam-
bém em 1924, seguiu-se o golpe da legislação imigratória norte-america-
na, pela qual ficara vedado o acesso do emigrante nipônico aos Estados
Unidos. Tratava-se de um ato discriminatório na opinião dos japoneses.

A partir de então, o governo e o povo japonês começaram a nutrir


sentimento de povo discriminado e passaram a direcionar as suas ações
expansionistas para ser reconhecido e respeitado como uma nação livre,
já que naquela altura havia muitas colônias das potências mundiais es-
palhadas pelo mundo. Na percepção de Eduardo Alves (2011, p. 17), os
nacionalistas e entusiastas deram-se conta de que apenas um estado cen-
tralizado, forte e moderno teria a capacidade de resistir ao imperialismo
europeu. Logo, para preservar a soberania nacional, a disputa pelo poder
estava marcada pela necessidade de manter a identidade japonesa perante
a ameaça externa.

Mas, certamente, não se tratava só de discriminação, posto que as


possessões da Coreia e de outras áreas do sudeste asiático, inclusive vá-
rias ilhas do Pacífico (anteriormente pertencentes à Alemanha, Rússia e
China), haviam custado grandes somas para o orçamento do Governo Im-
perial. A estrutura econômica do país foi agravada com a participação do
Japão na Primeira Grande Guerra (1914-1918) ao lado da Tríplice Enten-
te – depois, pelo terremoto ocorrido na região de Tóquio em 1923 e pela
crise de 1929 (queda da Bolsa de Valores dos Estados Unidos). A essa al-

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tura, boa parte da população estava fadada à pobreza, e o governo tomou


as rédeas para promover a emigração para o Brasil e para outros destinos.

Devido à escassez de recursos naturais e à pressão de alguns milita-


res, o movimento expansionista japonês ganhou força e logo começou a
reproduzir alguns passos das potências ocidentais militarizadas – a prá-
tica belicista sob o regime fascista –, ocupando os territórios ligados à
China. O Japão invade a Manchúria (nordeste da China) em 1931 (COO-
GAN, 1994).

Após a invasão da Manchúria, os japoneses estabeleceram um estado


fantoche, chamado Manchukuo, cuja ocupação durou até o final da Se-
gunda Guerra Mundial. Embora o Japão pudesse ter interesses legítimos
na Manchúria, dados os seus assentamentos econômicos na região, a Liga
das Nações se recusou a reconhecer Manchukuo como um Estado legíti-
mo. Assim, quando a Comissão Lytton20 emitiu seu relatório em setembro
de 1932, afirmando que Manchukuo era um produto da agressão japonesa
no território chinês e propunha uma série de medidas para restabelecer
a paz na região, a China aceitou as recomendações da Liga das Nações,
mas o Japão não as aceitou, retirando-se da Liga em março de 1933, o que
contribuiu para acirrar o seu isolamento internacional (COOGAN, 1994;
MATSUSAKA, 2003).

Com os interesses imperialistas e expansionistas em marcha, o Ja-


pão, que já havia dominado grande parte das ilhas do Pacífico, atacou
Pearl Habor (base naval norte-americana, no Havaí), em 1941, destruindo
os porta-aviões da Marinha dos Estados Unidos, provocando imediata-
mente a ira dos países aliados. O desenrolar dos acontecimentos só se en-
cerrou com a rendição japonesa no final da Segunda Guerra. O tratado de
encerramento de hostilidades cumpriu-se com a devolução dos territórios
dominados pelo Japão até então.

20  –  A Comissão Lytton foi um grupo de trabalho estabelecido pela Sociedade de Na-
ções, em 1931, para determinar os motivos e as consequências do ataque do Japão contra
China e a posterior proclamação do estado de Manchukuo.

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O expansionismo japonês e a experiência dos koutakussei na Amazônia

4. Os koutakussei e o expansionismo japonês na Amazônia


A figura mais emblemática do idealismo japonês de colonização na
Amazônia é personificada no político Tsukasa Uyetsuka (1890-1978),
que viveu a época em que o Japão estava atravessando grandes transfor-
mações sociais decorrentes da reforma agrária, da abertura de seus portos
ao mercado internacional e da adaptação do povo à cultura ocidental no
fulgor da Era Meiji (1868-1912). Quando jovem, ele trabalhou na Com-
panhia Ferroviária de Manchúria do Sul S.A. – conhecida como “Mantet-
su” –, no nordeste da China, e depois trabalhou por longos anos nos bas-
tidores da política interna e externa do Japão, o que aguçou seu idealismo
calcado no expansionismo imperial dominante naquela época, quando o
Japão conseguiu vitórias nas guerras Sino-Japonesa (1894-1895) e Rus-
so-Japonesa (1904-1905), que renderam as possessões da Ilha Formosa
(Taiwan), da Coreia, da Manchúria e de todo o nordeste da China, passan-
do para o controle militar e econômico do Japão.

Uyetsuka teve como grande aliado nesse idealismo o seu colega de


universidade, o professor Kotaro Tuji, que, além de diretor e professor
da Escola Superior de Colonização Kokushikan, fundada por Uyetsuka,
foi o maior incentivador da aclimatação da juta na Amazônia brasileira,
porque acalentava o sonho da plantação da juta indiana no Brasil pelo
grande lucro que a indústria proporciona daquele tempo (1923-1926) e
o monopólio no comércio de juta pela Índia. Tuji veio pela primeira vez
ao Brasil em abril de 1928, designado pelo Ministério da Educação do
Japão, e desde então esteve profundamente interessado no cultivo da juta
indiana na Amazônia (TUJI, s/d; THURY, 1989; APANB, 2001 p. 54).

Relatos da época permitem perceber que a influência política e o em-


penho de Uyetsuka e Tuji na formação de estudantes, conduzida pela Es-
cola Superior de Colonização Kokushikan, no Japão, foram fundamentais
para a vinda desses estudantes para Amazônia21. Os jovens koutakussei,

21  –  A atuação de Tsukasa Uyetsuka e Kotaro Tuji no processo de migração de japoneses


para o Brasil é citada com certa frequência pela imprensa nacional e local das décadas de
1930 e 1950. Ver, por exemplo, os jornais: A Nação (RJ) de 13 e 15 de abril 1933 e 30 de
janeiro de1934; Correio da Manhã (RJ) de 21 de setembro de 1930, 29 de julho de1936

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diferentemente do modelo convencional de força de trabalho temporário


para servir como colonos nas fazendas agrícolas, eram imigrantes pro-
cedentes de famílias de classe média abastada do Japão, que tiveram de
custear a formação dos mesmos na escola preparatória para viverem na
Amazônia e arcar com a manutenção do empreendimento no Brasil, mui-
tas vezes com sacrifício do patrimônio familiar (IKEGAMI, 2009).

A despeito do desconhecimento da realidade amazônica de muitos


imigrantes, acima dos agentes intermediários (empresas de colonização)
estavam as grandes corporações japonesas, conhecidas como zaibat-
su (Mitsui, Mitsubishi, Kanebo, Sumitono Bank) que, em parceria com
o governo japonês, investiram grandes somas em pesquisa exploratória
e projetos de colonização na Região Sudeste e na Amazônia brasileira
(APANB, 2001).

O motor principal desses investimentos na Amazônia estava na am-


bição de ocupar as extensas terras planas oferecidas pelos governos esta-
duais do Pará e do Amazonas, tão importantes para a economia agrícola
daquela época, ainda mais para um país montanhoso como o Japão, pres-
sionado por uma densidade demográfica crescente. Como mencionado
acima, em 1920, a população do Japão chegava a 55.963.053 habitantes,
com uma densidade demográfica de 147 pessoas/km2 que se expandia
continuamente (JAPAN, 2000), enquanto a população brasileira nesse
ano era de 30.635.605 habitantes, com uma densidade demográfica de 3,6
pessoas/km2 (IBGE, 2010).

Os investimentos e os movimentos coletivos tiveram seus planos


discutidos entre os parlamentares, representantes do governo japonês e
dirigentes das grandes empresas industriais. A propaganda habilmente
elaborada e divulgada formava uma tendência favorável à iniciativa pri-
vada em nome do interesse público, posto que a emigração representava
um importante negócio de Estado. Nesse sentido, a política de concessão

e 13 de setembro de 1951; Diário Carioca (RJ) de 22 de janeiro de1952 e de 30 de julho


de1954; Diário de Notícias (RJ) de 1º de julho1930 e de 26 de maio 1936; Jornal do Co-
mércio (AM) de 29 e 30 de julho de 1954 e 9 de novembro de 1954.

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O expansionismo japonês e a experiência dos koutakussei na Amazônia

de terras nos governos estaduais de Dionísio Ausier Bentes (1925-1929),


no Pará, e de Efigênio Ferreira de Salles (1926-1929), no Amazonas, foi
fundamental para o início do processo imigratório de japoneses na Ama-
zônia, que, oficialmente, ocorreu em 1929, no Pará, e em 1930, no Ama-
zonas, isto é, duas décadas após o marco (1908) da imigração nipônica
em terras brasileiras (UYETSUKA, [1954] 2011; APANB, 2001; HOM-
MA, 2007).

Entre os diferentes empreendimentos de colonização com estrangei-


ros realizados na região, pode-se mencionar o Projeto Koutaku (no Ama-
zonas), como um dos projetos de colonização mais bem organizado que
se conhece na Amazônia. Uyetsuka, com uma visão empreendedora e de
sustentabilidade, colocou todo o seu prestígio político e empenho pessoal
neste projeto (UYETSUKA, [1954] 2011; ASSOCIAÇÃO KOUTAKU,
2011; O OBSERVADOR ECONÔMICO E FINANCEIRO, 1936; 1949).

Os estudantes koutakussei estavam sendo preparados no Japão e na


Vila Amazônia para experimentar novas culturas que oferecessem resul-
tados econômicos e suportar as adversidades naturais da Região Amazô-
nica, a começar com o cultivo da juta indiana, por se tratar de produto de
rápido retorno, para garantir o assentamento de futuros colonos para os
grandes empreendimentos agroflorestais (ASSOCIAÇÃO KOUTAKU,
2011).

Entretanto, devido às circunstâncias geopolíticas da década de 1930,


eles enfrentaram muitas tempestades, no Japão e no Brasil. No Japão,
pela priorização de investimentos governamentais na Ásia e destinação
coercitiva de jovens para Manchúria, na China. No Brasil, em face da
reviravolta da Assembleia Nacional Constituinte de 1933-1934, que esta-
beleceu o regime de quotas de caráter restritivo à imigração dos japoneses
e restrição à concessão de terras acima de dez mil hectares (BRASIL,
1934). Esses fatos levaram à perda do direito à exploração das terras con-
cedidas a Uyetsuka no estado do Amazonas pelo governo de Efigênio
Salles.

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Reiko Muto
Luis E. Aragón

A conjugação desses fatores acabou inviabilizando o prosseguimen-


to desse projeto, que afundou de vez com o confisco de todo o patrimônio
da estação experimental (prédios administrativos, alojamentos, laborató-
rio, centro de meteorologia, hospital, escola, auditório, porto, plantações
etc.) construído durante uma década na Vila Amazônia e na Colônia Mo-
delo de Andirá, por ocasião da Segunda Guerra Mundial (ASSOCIAÇÃO
KOUTAKU, 2011). Contudo, apesar das perdas materiais, o idealismo
de Tsukasa Uyetsuka e a persistência de Kotaro Tuji foram fundamentais
para a permanência de jovens koutakussei na Amazônia.

Após o confisco e a desintegração da Colônia Modelo de Andirá e da


estação experimental da Vila Amazônia, as trajetórias de suas vidas foram
alteradas, visto que a dispersão desse grupo os levou ao isolamento espa-
cial em vários recantos ao longo do eixo do Rio Amazonas, de forma que
eles tiveram de plantar a juta por conta própria e tocar a vida como qual-
quer ribeirinho da região (APANB, 2001; UYETSUKA, [1954] 2011;
IKEGAMI 2009; ASSOCIAÇÃO KOUTAKU, 2011).

No processo de adaptação ao isolamento amazônico, eles passaram


a interagir com os ribeirinhos, para ensinar o cultivo da juta e exploração
de outras atividades de subsistência, como plantação de verduras, criação
de gado e comércio de aviamento. Nessa trajetória de acomodação à vida
cotidiana do amazônida, além de assimilação dos costumes e das idios-
sincrasias locais, eles contribuíram diretamente na expansão da cultura
da juta indiana no vale do Amazonas, cujo apogeu econômico ocorreu
nas décadas de 1950 a 1970 (APANB, 2001; HOMMA, 2007; MUTO,
2010;ASSOCIAÇÃO KOUTAKU, 2011; O OBSERVADOR ECONÔ-
MICO E FINANCEIRO, 1952).

Graças ao sucesso da juta e às lideranças desses dois persona-


gens, foi autorizado pelo presidente Getúlio Vargas (1882-1954) a vin-
da de 5.000 famílias de japoneses para a Amazônia no início da década
de 1950. Inclusive, foram os koutakussei, sob a coordenação de Tuji, que
auxiliaram o poder público para o assentamento dos novos imigrantes
do pós-guerra para a formação de novas colônias agrícolas nos estados

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O expansionismo japonês e a experiência dos koutakussei na Amazônia

do Amazonas, Pará, Maranhão e nos novos territórios federais do Amapá,


Guaporé (Rondônia), Acre e Rio Branco (Roraima). Foram eles (Tuji e
os koutakussei) que fundaram as principais associações nipo-brasileiras
e mantiveram por longos anos as lideranças dos imigrantes japoneses na
Amazônia Brasileira (APANB, 2001; MUTO, 2010; LIMA, 2012).

5. Considerações finais
Diante das evidências de um empreendedorismo de caráter perma-
nente, pode-se constatar que o pequeno grupo, de menos de 500 pessoas,
entre 243 estudantes koutakussei, professores, funcionários e alguns co-
lonos do Projeto Koutaku e dos agregados do Projeto Amaku de Maués
(UYETSUKA, [1954] 2011; APANB 2001; ASSOCIAÇÃO KOUTAKU,
2011), que congregam o grupo Koutaku-kai, representa uma vertente dife-
renciada do fluxo de imigrantes japoneses para o território brasileiro, fato
que amplia a compreensão dos diferentes padrões de imigração existente
no Brasil e de sua contribuição para a formação histórica da Amazônia.
Tudo indica que o processo emigratório dos japoneses está fortemente
relacionado com a geopolítica do império japonês na Era Meiji (1868-
1912). A vinda dos koutakussei para a Amazônia é um caso emblemático
dessa política.

O que se percebe atualmente entre os koutakussei sobreviventes e


seus descendentes é o sentimento de pertença desse grupo que se identifi-
ca como koutakussei, com certo orgulho, por se sentirem como uma elite
entre os demais imigrantes japoneses da Amazônia (IKEGAMI, 2009).
Verifica-se, portanto, que existem diferentes trajetórias no processo mi-
gratório entre os próprios japoneses da Amazônia e certamente, muitos
questionamentos permanecem em aberto para investigação, seja no uni-
verso macrossociológico, seja no campo microssociológico.

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Texto apresentado em novembro/2016. Aprovado para publicação


em março/2017.

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Alexandre de Gusmão e a demarcação das fronteiras da Amazônia:
Os jesuítas matemáticos e astrônomos italianos

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Ii – COMUNICAÇÕES
NOTIFICATIONS

Alexandre de Gusmão e a demarcação das


fronteiras da Amazônia: Os jesuítas matemáticos
e astrônomos italianos
Alexandre de Gusmão and the demarcation of the
Amazon borders: the mathematical Jesuits and the
Italian astronomers
Vasco Mariz1
Resumo: Abstract:
A conferência discute a atuação de Alexandre The lecture discusses Alexandre de Gusmão
de Gusmão na celebração do Tratado de Madri, work in the celebration of the Treaty of Madri,
bem como o papel desempenhado pelos jesuítas as well as the role played by the mathematical
matemáticos e astronômos italianos, na demar- Jesuits and the Italian astronomers in the de-
cação das fronteiras da Amazônia. marcation of the Amazon borders.
Palavras-chave: Alexandre de Gusmão; Trata- Keywords: Alexandre de Gusmão; Amazon
do de Madri; jesuítas matemáticos; astrônomos borders; mathematical Jesuits; Italian astrono-
italianos. mers.

Sr. Presidente, senhores Acadêmicos, senhoras e senhores

Agradeço a honra de ter sido eleito um acadêmico de número na


Academia Portuguesa da História, de tantas tradições notáveis, e neste
momento penso em meu Pai, Joaquim Mariz, emigrante para o Brasil em
1913, após haver cursado em parte o seminário de Braga. Ele foi colega
do cardeal Cerejeira, primaz de Portugal, que, ao visitar o Rio de Janeiro,
nos deu a honra de vir almoçar em nossa casa. Ele teria ficado muito feliz
ao me ver eleito para esta ilustre casa.

Escolhi como tema um brasileiro que ficou famoso na história de


Portugal: Alexandre de Gusmão. Decididamente, ele foi o Barão do Rio
Branco do século XVIII, assegurando, graças ao Tratado de Madri de
1  –  Diplomata e sócio do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (474):299-314, maio/ago. 2017. 299


Vasco Mariz

1750, à Coroa portuguesa e indiretamente ao Brasil de hoje, amplos ter-


ritórios ao sul do país e sobretudo na Amazônia. Seus feitos e a sua gló-
ria infelizmente são pouco conhecidos dos brasileiros e me parece justo
tentar divulgar melhor a sua obra. Mas antes de chegar aos misteriosos
padres matemáticos italianos contratados na Universidade de Bolonha, na
Itália, para determinar os limites da Amazônia portuguesa, vamos recor-
dar um pouco a extraordinária história do próprio Gusmão.

Alexandre viu a luz em Santos, São Paulo, em 1695, filho do cirur-


gião-mor de um presídio daquela cidade. Teve numerosos irmãos e um
deles ficou célebre em Portugal bem antes dele: Bartolomeu de Gusmão,
o chamado “padre voador”, o inventor da passarola, que voou em Lisboa
com o seu aeróstato de ar quente. Antecipou-se em quase um século aos
irmãos Montgolfier, em Paris. Bartolomeu mandou chamar do Brasil o
jovem irmão Alexandre, que chegou a Lisboa aos 15 anos de idade ape-
nas e já prometia muito graças aos seus estudos de ciências matemáticas.
O rapaz possuía um físico agradável: era alto, de olhos pequenos, sempre
polido e sem afetação. D. João V gostou dele e mandou-o estudar em Pa-
ris, por interferência de Bartolomeu, que conseguiu a sua nomeação como
secretário da embaixada portuguesa. Estavam em plena idade de ouro de
Luís XIV e Alexandre frequentou cursos de matemática e jurisprudência,
conheceu pessoalmente personalidades interessantes e estudou francês.
Lá passou cerca de cinco anos e em 1720 regressou a Lisboa. Estava com
25 anos e já gozava de suficiente prestígio para depois ser enviado pelo
rei a Roma para tentar destrinçar várias questões pendentes que Portu-
gal tinha com a Santa Sé. O papa Benedito XIII gostou tanto do jovem
Alexandre que lhe deu o título de “príncipe romano”, que ele declinou
modestamente. Só regressou a Lisboa em 1729 e já estava com 34 anos.

D. João V, que o tinha em alta conta, elevou-o a “fidalgo da Casa


Real” e “Escrivão de Puridade”, quando ele começou a adentrar-se nos
segredos da política exterior do reino. Foi encarregado de conduzir os
negócios com o Vaticano, que já conhecia bem, e pouco depois, também
os do Brasil. Em 1735, ampliou sua área com os problemas europeus
de Portugal. Em 1743, foi nomeado conselheiro e ministro do famoso

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Alexandre de Gusmão e a demarcação das fronteiras da Amazônia:
Os jesuítas matemáticos e astrônomos italianos

Conselho Ultramarino, onde realizaria notável trabalho no setor da admi-


nistração portuguesa no Brasil. Incentivou a emigração dos Açores e da
ilha da Madeira para o Brasil e colonizou os estados do sul do país com
grupos de 60 casais de agricultores. Araújo Jorge comentou que Gusmão
decidiu animar a exploração do ouro no Brasil, substituindo o impos-
to do quinto pelo da capitação, medida depois revogada por Pombal.2.
O esplêndido livro de Jaime Cortesão sobre o tratado de Madri relata
pormenores interessantes de seu cuidadoso planejamento.

Homem de imensa cultura, Alexandre criou vários bispados em Mi-


nas Gerais, São Paulo, Goiás e Pará, incentivou o desenvolvimento da
indústria e a exploração do ouro. Camilo Castelo Branco definiu-o como
“o mais avançado espírito do seu século”.3 Esta era a personalidade que
D. João V escolheu para negociar com o mundo espanhol os diversos
problemas pendentes das fronteiras do Brasil, ao norte e ao sul. Os resul-
tados seriam espetaculares e muito devemos a ele, se olharmos o mapa do
Brasil de hoje. Se as negociações do barão Rio Branco nos deram quase
900.000 km2 de novos territórios sem derramamento de sangue, Alexan-
dre de Gusmão nos legou mais do que o triplo dessa área. Lembro que
o Brasil da sua época, de acordo com a linha do Tratado de Tordesillas,
começava na altura de Belém do Pará e terminava em São Francisco do
Sul, em Santa Catarina. Graças ao seu Tratado de Madri, Gusmão conse-
guiu empurrar nosso território na Amazônia até as faldas dos Andes. Ao
sul, criou uma fórmula realista para solucionar a questão da Colônia do
Sacramento, alargando consideravelmente as províncias do Rio Grande
do Sul e de Santa Catarina. A nossa sorte é que o marquês de Pombal,
apesar de não gostar pessoalmente de Gusmão, teve a clarividência de
apoiar firmemente quase todas as medidas por ele previstas. Infelizmente,
correu muito sangue no território das Missões, sobretudo por culpa dos
jesuítas, que se recusaram a obedecer ao tratado.

Logo após a assinatura do Tratado de Madri, D. João V veio a fa-


lecer e seu sucessor D. José I trouxe para o poder o eficientíssimo mas
2  –  ARAÚJO JORGE. Ensaios de história e crítica, p. 18.
3  –  CASTELO BRANCO, Camilo. Perfil do Marquês de Pombal, Lisboa, 1888, p. 82.

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Vasco Mariz

temível Sebastião José de Carvalho, o Marquês de Pombal. O prestígio de


Gusmão era notável na época e isso não devia agradar muito ao vaidoso
novo primeiro-ministro, que se revelaria esplêndido administrador, mas
era bastante temperamental. O choque entre os dois não tardou a acon-
tecer e Alexandre foi afastado de tudo e até perseguido pelos esbirros do
primeiro-ministro. Ele tentou defender-se com seu documento “Impug-
nação”, mas o poder de Pombal era tal que o esmagou. Um incêndio sus-
peito em sua casa destruiu o prédio e lá faleceu sua esposa Maria Teixeira
Chaves, queimando-se a sua preciosa biblioteca. Um ano depois, pobre e
em quase completa desgraça, Gusmão veio a falecer em 30 de dezembro
de 1753. Tinha 58 anos apenas.

Antes do Tratado de Madrid, os padres Soares e Capassi trabalharam


nada menos de 18 anos, em várias partes do Brasil, com a sistemática
finalidade de fazer estudos preparatórios para delimitar a soberania polí-
tica entre os dois impérios em eventual próxima negociação. Ao preparar
a documentação para a defesa da tese lusa nas negociações para o trata-
do, Gusmão guardava completo segredo sobre os trabalhos anteriormente
realizados por aqueles dois sacerdotes matemáticos.

Lembro que os mapas dos matemáticos eram segredo de Estado, pois


por ordem de El-rei havia sempre duas versões desses mapas: a verdadei-
ra e a que se deixava filtrar propositalmente para os espanhóis. A elabo-
ração desses mapas sempre tinha óbvio propósito político a médio prazo.
Na época, sabia-se muito bem que a Colônia do Sacramento estava muito
longe do Meridiano de Tordesillas, o que dificultava bastante as nossas
pretensões. Jaime Cortesão afirmou que, até as vésperas do Tratado de
Madri, os jesuítas do Paraguai sabiam da missão dos padres matemáticos,
mas ignoravam o seu resultado. A posição exata do meridiano de Tordesi-
llas era ciosamente escondida pelas autoridades portuguesas.

Durante as negociações do tratado em Madri, a delegação lusa se


esforçou sobretudo por encontrar uma solução definitiva para o problema
da Colônia do Sacramento, último bastião português na foz do Rio da
Prata, bem defronte a Buenos Aires. A fortaleza lusa era um verdadeiro

302 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (474):299-314, maio/ago. 2017.


Alexandre de Gusmão e a demarcação das fronteiras da Amazônia:
Os jesuítas matemáticos e astrônomos italianos

desafio ao poderio espanhol no Prata e fonte de continuadas escaramu-


ças militares. Na realidade, os portugueses tinham pouca serventia para
aquela praça forte, mas insistiam em mantê-la como moeda de troca para
assegurarem a tranquilidade no Uruguai e nas províncias do sul do Brasil,
sempre vulneráveis a aventuras militares espanholas. Comerciantes por-
tugueses e brasileiros menos escrupulosos utilizavam a Colônia como um
centro de contrabando pelo Rio da Prata. O momento era oportuno porque
em 1746 falecera o rei espanhol Felipe V e seu filho e herdeiro do trono,
Ferdinando VI, era casado com a infanta portuguesa D. Maria Bárbara,
que exercia muita influência em seu marido.
Qual o dever da rainha ? – se pergunta Jaime Cortesão em seu
livro4– Se o seu real esposo era doente e inepto e ela era mais
capaz. Bárbara de Bragança apoiou Alexandre de Gusmão com
prudência, sensatez e moderação.
As negociações foram iniciadas e Alexandre enviava ao embaixador
em Madri vários tipos de propostas e contrapropostas a serem submeti-
das e aprovadas pelo gabinete espanhol. Alexandre sempre teve o apoio
da rainha portuguesa da Espanha. Gusmão aconselhava seus delegados a
mostrarem que “Portugal não procurava ganhar terreno, mas só regular
os confins por balizas conspícuas e indubitáveis, para evitar dissensões no
futuro”. Enquanto isso Tomás da Silva Teles, o principal delegado portu-
guês, diligente e zeloso embaixador, continuava a tecer e a alargar a sua
teia. Segundo Jaime Cortesão, Alexandre de Gusmão agia com
frio realismo político e uma franqueza e audácia de pensamento no-
táveis. Ele deixava entrever nas negociações com os espanhóis, com
prudentes negaças, o engodo da cedência da Colônia do Sacramento
e seu território por um câmbio proporcionado. E com que astuciosa
habilidade o fez!5

As relações entre os dois países melhoraram rapidamente e na época,


ambas as partes estavam cansadas das permanentes disputas sobre a Co-
lônia do Sacramento, sempre com gastos consideráveis e sangue derrama-
4 – CORTESÃO, Jaime. Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madri, tomo II, parte I,
p. 290.
5 – CORTESÃO, Jaime. Op. cit. p. 289.

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Vasco Mariz

do. Nas negociações, houve muita objetividade das duas coroas e o tema
foi abordado com vontade de acertar. Alexandre de Gusmão, em Lisboa,
assumiu a direção do litígio, adotando atitude completamente diferente
de como era antes tratada a questão. Ele aceitava a entrega da Colônia do
Sacramento em troca de concessões substanciais dos espanhóis. Gusmão
visava sobretudo à posse de territórios imensos ocupados esparsamente
por missões religiosas, bandeirantes e aventureiros nas regiões de Goiás,
Mato Grosso e Amazonas, e suas ambições chegavam até os vales dos
rios Negro, Branco e Japurá, na Amazônia. Um bom estudo do neto do
barão, Miguel do Rio Branco descreve bem os preparativos.6
Gusmão trabalhava entre os mapas e as informações recebidas dos
governadores dessas regiões, das missões carmelitas e de todo e qual-
quer funcionário que lhe pudesse enviar algo de positivo. De Lisboa,
ele bombardeava o embaixador português com sucessivas cartas, mi-
nutas e propostas. Para poder pôr em prática seu plano, Gusmão re-
correu a uma cláusula do Tratado de Utrecht, de 1715, segundo a qual
a coroa da Espanha poderia propor a troca da Colônia do Sacramento
por qualquer composição territorial.

Voltando diretamente ao nosso tema, lembro que Gusmão jogou


sempre com a preocupação básica da Coroa espanhola de que a Colônia
do Sacramento era uma ameaça constante a sua soberania sobre o vale
do Rio da Prata, essencial para se obter a continuada tranquilidade da ex-
portação da prata da Bolívia pelo porto de Buenos Aires. Gusmão tentou
fazer os espanhóis voltarem às disposições do Tratado de Tordesillas con-
tra eles próprios, pois eles haviam superado amplamente, do outro lado
do mundo, nas ilhas Molucas e Filipinas, aquela linha estabelecida pelo
papa, ao dividir o mundo, em 1494, entre portugueses e espanhóis. Pelo
Tratado de Utrecht, a Espanha deveria devolver as Filipinas a Portugal,
mas isso era impensável para Madri. A esperteza de Gusmão foi tentar
convencer os espanhóis de que era vantajoso para eles que Portugal abris-
se mão das Molucas e das Filipinas em troca das áreas desocupadas de
Goiás, Mato Grosso e da Amazônia, que pouco valiam para Madri. Jaime

6  –  RIO BRANCO, Miguel do. Alexandre de Gusmão e o Tratado de 1750, Fundação


Alexandre de Gusmão, Brasília, 2010, p. 23.

304 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (474):299-314, maio/ago. 2017.


Alexandre de Gusmão e a demarcação das fronteiras da Amazônia:
Os jesuítas matemáticos e astrônomos italianos

Cortesão, no livro citado, nos traça um quadro preciso dessas extraordiná-


rias negociações em que Alexandre conseguiu convencer os espanhóis de
aceitar o chamado “Mapa das Côrtes” como base das negociações

O Tratado finalmente foi assinado em Madri em 13 de janeiro de


1750, pelo visconde Tomás da Silva Teles, em nome do rei de Portugal, e
por D.José Carbajal y Lancaster, em nome do rei de Espanha. Ambos re-
conheciam ter violado o meridiano de Tordesillas e estavam de acordo em
abolir a vigência do mesmo. Foi uma espécie de mea culpa comum. No
preâmbulo, Gusmão conseguiu aplicar, no campo internacional, o velho
instituto romano do uti possidetis, do qual Portugal e o Brasil se benefi-
ciariam espetacularmente. Os dois monarcas realmente estavam dispos-
tos “a estabilizar a paz e projetá-la para o futuro”.

Pelo artigo XIII do tratado, Sua Majestade Fidelíssima cedeu à Co-


roa da Espanha a Colônia do Sacramento e todo o seu território adjacente
na margem setentrional do Rio da Prata, bem como os direitos de nave-
gação nesse importantíssimo rio, o qual passava a pertencer inteiramente
à Espanha. Madri obtinha assim o que mais a preocupava, mas o preço
que Gusmão fez pagar por isso foi enorme. Os próprios espanhóis não
avaliavam bem o que perdiam. Eles não tinham a noção exata das distân-
cias na América do Sul, mas Gusmão sabia. Por sua vez, no artigo XIV,
a Espanha entregava a Portugal as regiões do Amazonas da margem do
Rio Guaporé e, ao sul, dos chamados Sete Povos das Missões, devendo
as aldeias dos índios ser trasladadas da margem oriental do rio Uruguai
para “aldear em outras terras de Espanha”. Tal decisão iria criar graves
problemas no futuro próximo, mas esta já é uma outra estória, que agora
não temos espaço para abordar. Foi fixado o prazo de um ano para efetuar
as cessões que iriam “establecer una sólida y durable armonia entre las
dos coronas.” Não seria bem assim.

Houve críticas em Portugal de que a cessão da Colônia entregava as


chaves de nossas minas à Espanha, o que era uma imensa asneira, pois
nossas Minas Gerais estavam a mais de mil quilômetros de distância. O
próprio Pombal não estava convencido e hesitava em ceder a Colônia.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (474):299-314, maio/ago. 2017. 305


Vasco Mariz

O maior opositor era o governador da Colônia do Sacramento, o brigadei-


ro Vasconcelos, que teria convencido o novo primeiro-ministro da incon-
veniência do tratado. Os jesuítas, interessados em conservar as missões
onde estavam, alegavam que o tratado havia violado a bula papal, o Tra-
tado de Tordesillas e outros seguintes. Acabaram triunfando e um novo
tratado assinado no Pardo, em Madri, em 1761, restabelecia quase tudo
como dantes. Um desastre. Mas se Pombal cedera em favor dos contra-
bandistas da Colônia do Sacramento, ele já decidira pôr em prática a de-
marcação da fronteira da Amazônia e confirmou os planos de Alexandre
Gusmão.

Os anos passaram e por ocasião da assinatura do chamado Pacto de


Família, de 1761, tratado pelo qual uniu a França, a Espanha e o reino de
Nápoles contra a Inglaterra e Portugal, fez reiniciar as hostilidades. Em
conseqüência, o líder argentino Ceballos saiu de Buenos Aires e ocupou
Colônia e boa parte da província do Rio Grande do Sul. No entanto, dois
anos depois, o Tratado de Paris, de 1763, encerrando finalmente a Guerra
dos Sete Anos, tudo reverteu e os espanhóis foram obrigados a devolver
todas as terras que haviam ocupado ilegalmente no sul do Brasil.

Em 1777 falecia o rei português D. José e chegou a vez de o Marquês


de Pombal ser demitido. E nesse mesmo ano foi assinado o Tratado de
Santo Ildefonso, que era quase uma cópia do tratado de Madri de 1750,
confirmando todas as decisões anteriores. Alexandre de Gusmão estava
vingado e o uti possidetis voltou a imperar, mas só mesmo em 1898,
quando o Barão do Rio Branco ganhou a disputa com a Argentina gra-
ças ao laudo do presidente dos Estados Unidos, ficou encerrada de vez a
questão do território das missões.

Para comentar as providências tomadas é conveniente voltar aos três


anos anteriores à assinatura do tratado. Lembro que Gusmão vivera em
Roma vários anos e lá certamente se relacionou com vários especialis-
tas em matemática e astronomia, temas que lhe interessavam. Na época,
eram famosos os padres matemáticos italianos da Universidade de Bo-
lonha, do norte da Itália, cidade que ele talvez tenha visitado, ou talvez

306 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (474):299-314, maio/ago. 2017.


Alexandre de Gusmão e a demarcação das fronteiras da Amazônia:
Os jesuítas matemáticos e astrônomos italianos

encontrado esses cientistas em Roma. Ao preparar a posição portuguesa


para negociar o tratado, Alexandre e sua equipe contrataram diversos es-
pecialistas para vir ao Brasil tentar justificar as pretensões portuguesas.

Um nome que vem à baila imediatamente é o do francês La Con-


damine, que poucos anos antes havia feito, pela primeira vez, a longa
viagem desde Quito, no Equador, até Belém. Era um cientista de primeira
ordem e seus depoimentos e mapas até hoje despertam a atenção e a ad-
miração dos estudiosos. As informações que seus trabalhos forneceram a
Gusmão sobre o Rio Amazonas e seus maiores afluentes foram da maior
valia para a preparação da defesa luso-brasileira. Foi essencial a utiliza-
ção desses preciosos mapas de La Condamine por Alexandre de Gusmão,
pois a intenção de Gusmão era empurrar o domínio espanhol mais e mais
em direção à Cordilheira dos Andes e delimitar a fronteira norte com as
Guianas, Venezuela, Colômbia, Equador e Bolívia.

O relatório Condamine à Academia de Ciências da França e o seu


depois famoso mapa chegaram às mãos de Alexandre de Gusmão e lhe
deram os argumentos de que necessitava para fundamentar seus pontos
de vista na preparação da defesa da tese portuguesa nas negociações com
os espanhóis, que culminariam com o Tratado de Madri. Consta que os
delegados espanhóis ficavam atordoados com os argumentos lusos e as
provas apresentadas pelo brasileiro nas negociações. Não sabiam como
contestá-los e acabaram por ceder facilmente sem maiores discussões.

Logo após a assinatura do Tratado, Gusmão continuou a preparar


as minutas dos chamados Tratados Anexos. Ele deve ter-se comunicado
com a Universidade de Bolonha, solicitando a indicação de dois matemá-
ticos e astrônomos em condições de realizar o trabalho de demarcação
da fronteira luso-espanhola ao norte do continente. Deviam ser capazes
de fazer observações astronômicas, matemáticas e geográficas, além de
ter conhecimentos de botânica. Lembro que Alexandre instou com El-rei
para organizar uma boa escola de matemáticos em Lisboa. O que inte-
ressava mais a Alexandre era a demarcação da fronteira luso-espanhola
ao norte do Brasil. No entanto, se a briga com Pombal excluiu completa-

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (474):299-314, maio/ago. 2017. 307


Vasco Mariz

mente Gusmão dos assuntos oficiais, é provável que, ao chegar a Lisboa


para receber instruções antes de partir para o Brasil, os dois italianos te-
nham se encontrado discretamente com Alexandre, já afastado do poder,
e dele recebido úteis sugestões sobre como deveriam realizar o trabalho
de campo.

Curiosamente, apesar da séria briga com Gusmão, o voluntarioso


marquês iria confirmar o planejamento do brasileiro e nomeou seu ir-
mão Francisco Xavier de Mendonça Furtado, governador da província do
Grão-Pará e Maranhão, com instruções precisas para que ele observas-
se de perto os trabalhos dos técnicos contratados para a demarcação da
fronteira norte do país. A tarefa era imensa e, curiosamente, Mendonça
Furtado se revelou homem de notável persistência e visão colonial.

Afastado do poder, Gusmão fez a defesa do Tratado com a célebre


“Impugnação,” justificando a entrega da Colônia do Sacramento como
“velhacouto de contrabandistas”, o que era uma reconhecida verdade.
Depois dessa defesa, Alexandre não mais veio a público, ou talvez, não
o permitiram. Membro do poderoso Conselho Ultramarino, lá ele impru-
dentemente tentou defender o tratado, mas uma violenta reprimenda do
marquês lhe tolheu a iniciativa. Morreu amargurado a 30 de dezembro
de 1753 e não sabemos se ele chegou a encontrar-se com os matemáticos
italianos que haviam chegado a Lisboa para receber instruções, adaptar-
-se ao país e aprender a língua.

A expedição que viajou para o Rio Negro ficou de encontrar os téc-


nicos espanhóis chefiados por D. José de Iturriaga em Mariuá e lá a co-
mitiva portuguesa esperou por vários meses, sem que os espanhóis apa-
recessem. Consta que os espanhóis viajaram de Cádiz para Caiena e lá se
enfermaram e acabaram por desistir de encontrar-se com os portugueses
no alto Rio Negro.

Em maio de 1750, isto é, pouco mais de três meses após a assinatu-


ra do Tratado de Madri, foram contratados o padre matemático Giovan-
ni Ângelo Brunelli e o arquiteto e desenhista Antônio Giuseppe Landi,

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Alexandre de Gusmão e a demarcação das fronteiras da Amazônia:
Os jesuítas matemáticos e astrônomos italianos

ambos da Universidade de Bolonha, provavelmente ainda por iniciativa


de Alexandre de Gusmão. Eles receberiam um elevado salário anual e
em agosto de 1751 já estavam em Lisboa. Brunelli fora contratado como
astrônomo e matemático da expedição que iria efetuar a delimitação da
fronteira norte; e Landi como arquiteto e desenhista, que iria planejar edi-
fícios e igrejas, além de desenhar mapas, animais e plantas desconhecidos
da região. Os dois ficaram cerca de um ano em Portugal e, em setembro
de 1752, estavam prestes a partir para Belém.

O Barão do Rio Branco, que continuou a obra de Gusmão, quando


ministro das Relações Exteriores, mandou fazer um pequeno busto de
Alexandre de Gusmão, que ainda pode ser visto em um dos corredores do
Palácio Itamaraty do Rio de Janeiro

Os grupos de técnicos eram dois: um deveria delimitar a fronteira


norte e o outro a fronteira oeste. Landi e Brunelli fizeram observações
astronômicas em Belém e o segundo escreveu longos e interessantes re-
latórios. O novo governador do Grão-Pará e Maranhão foi o incentivador
dessas duas expedições, e os técnicos alemães Felipe Sturm e Schwebel
trabalharam sempre ao seu lado e realizaram bons trabalhos técnicos em
1762, pelo alto Rio Negro. Felipe Sturm visitou o Cassiquiare, mas há
poucas informações sobre ele. A expedição que viajou para o Rio Negro
ficou de encontrar os técnicos espanhóis chefiados por D. José de Iturria-
ga em Mariuá e lá a comitiva portuguesa esperou por vários meses, sem
que os espanhóis aparecessem.

Giovanni Ângelo Brunelli (1722-1804) era um bolonhês, presbítero


secular formado em astronomia e matemática. Era o mais bem pago da
expedição liderada por Mendonça Furtado, que viajou para Mariuá, na re-
gião do alto Rio Negro, Amazonas. O irmão do Marquês de Pombal não
gostava dele, como se depreende pela carta enviada ao primeiro-ministro
a 17 de julho de 1755. Escreveu o governador: “Brunelli é soberbíssimo,
avarento em sumo grau e desconfiado [...] mas sabe muito bem a sua pro-
fissão.” Eles permaneceram em Mariuá esperando os técnicos espanhóis,
fazendo observações de todo o gênero e como os espanhóis não aparece-

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (474):299-314, maio/ago. 2017. 309


Vasco Mariz

ram, decidiram regressar a Belém, onde chegaram a 26 de dezembro de


1758. No ano seguinte, Pombal expulsava os jesuítas de Portugal e das
colônias.

Antônio Landi (Bolonha, 1713 – Belém, 1791) era um arquiteto e


desenhista italiano de bom nível, que já tinha 37 anos e havia realizado
trabalhos relativamente importantes na Itália, sobretudo em Ravenna e
Bolonha, onde recebera prêmios e era membro da Academia Clementina.
Antônio Landi fora contratado para fazer cartas geográficas, participar
dos estudos astronômicos para a delimitação das fronteiras e desenhar
construções, plantas e animais da região.

Landi e Brunelli chegaram a Belém em 1753 e lá ficaram outro ano


fazendo observações, ajudando na preparação da expedição e se intei-
rando de problemas e dificuldades da região amazônica, tão diferente da
Itália. Só viajaram para o alto Rio Negro em 1754, onde deveriam encon-
trar-se com os técnicos espanhóis para conjuntamente demarcar as novas
fronteiras entre os dois impérios. De volta a Belém, Landi casou-se com
uma senhora luso-brasileira e lá viveu até morrer em 1791, aos 78 anos
de idade. Foi extremamente atuante como arquiteto e desenhista, pois é
o responsável pela planta da bela catedral metropolitana de Belém e tra-
balhou em numerosas outras igrejas da cidade. Traçou também o plano
urbanístico da cidade e até hoje é reverenciado no Pará.

O terceiro grande nome que participou da demarcação das fronteiras


norte e oeste foi o padre astrônomo croata Ignácio Szentmártonyi (1718-
1793), cuja atuação é controvertida, pois acabou preso por vários anos
em Lisboa após ter sido condenado pela justiça lusa. Seja como for, ele
participou de importantes atividades no terreno da astronomia e cartogra-
fia e era considerado muito competente. Ignácio era croata nascido em
Kotiri, estudou em Zagreb e foi noviço jesuíta e mais tarde professor em
um liceu de Viena. O técnico especialista nesta região oeste do Brasil foi
esse jesuíta croata Ignácio Szentmártonyi, que realizou excelente traba-
lho como astrônomo, cartógrafo e matemático, mas só recentemente seu

310 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (474):299-314, maio/ago. 2017.


Alexandre de Gusmão e a demarcação das fronteiras da Amazônia:
Os jesuítas matemáticos e astrônomos italianos

nome veio à tona e tem sido louvado por suas importantes contribuições
para essas expedições na Amazônia.7

Szentmártonyi fora contratado mais ou menos na mesma época que


seus colegas italianos acima citados e chegou a Lisboa pouco depois de-
les em 1751. Ele já havia sido condecorado pela rainha Maria Ana, da
Áustria, e D. José também o premiou com o título de matemático real e
astrônomo do tribunal português, com excelente salário. O padre Igná-
cio andou medindo a longitude e a latitude de diferentes coordenadas
geográficas no baixo Rio Amazonas, antes mesmo da saída de Belém da
primeira expedição. Sua missão era estabelecer a situação geográfica das
localidades e dos rios, de modo a que os geógrafos pudessem elaborar
mapas precisos de toda a região. Mais tarde, Szentmártonyi recebeu a
função importante de estudar a região ao longo dos rios Guaporé e Ma-
deira, e trabalhou também em Macapá na embocadura do Rio Amazonas.
Foi na base dos estudos do croata que os engenheiros puderam elaborar
um grande mapa de excelente qualidade que reconstituiu todo o percurso
da expedição de Belém até Mariuá.

As comissões de demarcação a princípio eram duas, mas criou-se


depois uma terceira: a primeira trabalhou na fronteira dos rios Jauru e
Paraguai e no curso médio do Rio Madeira; a segunda expedição seguiu
o traçado da linha Madeira-Javarí e a terceira comissão seguiu o Rio
Solimões abaixo e o Rio Juruá acima, estabelecendo as fronteiras pelas
cordilheiras setentrionais até a foz do Rio Oiapoque, na Guiana.

D. Maria I e Carlos III decidiram voltar aos termos do Tratado de


Madri, às decisões inspiradas por Alexandre de Gusmão, e firmaram em
1777 outro instrumento bastante semelhante, o Tratado de Santo Ildefon-
so. Por esse documento os espanhóis cederam as suas pretensões sobre
os territórios por eles ocupados em Santa Catarina e no Rio Grande do
Sul, e às áreas amazônicas que desde o século XVII eram uma ocupação
quase mansa de numerosos luso-brasileiros. Portugal abria mão de seus

7 – Vide estudo de Iran Abreu Mendes.

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Vasco Mariz

direitos às Filipinas e às Marianas, renunciando também aos proventos


financeiros de reembolso a que tinha direito no tocante às ilhas Molucas.

Para terminar, algumas palavras sobre o importante esforço do Mar-


quês de Pombal para melhor assegurar as conquistas em nossa fronteira
leste dos tratados de 1750 e 1777: a construção de uma série de pequenos
fortes na região para protegê-la de possíveis ataques dos espanhóis, tão
espoliados por Alexandre Gusmão. O maior deles, o Real Forte Príncipe
da Beira, está situado na margem direita do Rio Guaporé, no atual Esta-
do de Rondônia. Construído em 1776, o forte visava à proteção de uma
importante zona de mineração de ouro, que já estava atraindo muitos co-
lonos da região e despertando a cobiça dos espanhóis.

O Príncipe da Beira foi construído pelo sistema de fortificações uti-


lizado na França pelo famoso marechal Vauban, em forma de quadra-
do, tendo em cada ângulo um imponente baluarte. O forte tem uma bela
cor avermelhada devido ao emprego da pedra de canga laterítica, que é
abundante na região. Seu estado de conservação atual é razoável, mas o
IPHAN e o governo de Rondônia estão investindo em sua restauração,
uma vez que a sua imponência já atrai considerável visitação turística.

Enfim, essa é a longa história doTratado de Madri de Alexandre de


Gusmão e dos três principais misteriosos padres matemáticos italianos,
que, em verdade, só eram dois (Landi não era padre) e o outro deles era
croata e não italiano. Quase todos esses competentes cientistas estrangei-
ros que tanto ajudaram no estudo e na demarcação de nossas fronteiras
teriam sido indicados por Alexandre de Gusmão antes de sua disputa com
o Marquês de Pombal. A eles o nosso agradecimento pelo notável traba-
lho realizado.

Se na Amazônia tão pouco povoada não houve contestação nem san-


gue derramado, no sul foi necessário ajustar fronteiras povoadas e quem
pagou altíssimo preço foram os indígenas das missões jesuíticas loca-
lizadas no atual Rio Grande do Sul. Milhares de índios tiveram de ser
deslocados à força das regiões onde viviam para as outras margens dos

312 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (474):299-314, maio/ago. 2017.


Alexandre de Gusmão e a demarcação das fronteiras da Amazônia:
Os jesuítas matemáticos e astrônomos italianos

rios, já que o antigo território espanhol onde estavam instalados passou a


ser território português.

Após a independência da Argentina, seus dirigentes continuaram


a criar litígios com as autoridades brasileiras sobre aquela região, que
só foram resolvidos em definitivo na última década do século XIX pelo
Barão do Rio Branco, que obteve do presidente dos Estados Unidos da
América uma sentença favorável de arbitragem a nosso favor. As belas e
imponentes ruínas das missões jesuíticas ainda aí estão a testemunhar a
importância daquelas instalações.

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útil, de fácil manejo e está disponível.
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Niterói, 2011. O livro contém dois estudos sobre “A Amazônia e o Eldorado” e
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Janeiro, 2008.
PAIM, Gilberto. A Amazônia de Pombal sob ameaça. Editorial Escrita, Rio de
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___. De Pombal à Abertura dos Portos, Rio de Janeiro, 2011. Edição
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REIS, Artur César Ferreira. Limites e demarcações na Amazônia Brasileira, 2ª
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1930.
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TOCANTINS, Leandro. Landi, um italiano luso-tropícalizado. In: Revista
Brasileira de Cultura, julho-setembro de 1969, MEC, Conselho Federal de
Cultura, Rio de Janeiro.

Texto apresentado em dezembro/2016. Aprovado para publicação


em junho/2017.

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Para o “crédito e reputação do governo”: circuitos de deliberação e a governação
por conselhos superiores na monarquia pluricontinental portuguesa (1640-1688)

315

Para o “crédito e reputação do governo”:


circuitos de deliberação e a governação
por conselhos superiores na monarquia
pluricontinental portuguesa (1640-1688)
To the “Credit and Reputation of Government”:
Circuits of Deliberation and Governance
by Superior Councils in the Portuguese
Pluricontinental Monarchy (1640-1688)
Marcello José Gomes Loureiro1
Resumo: Abstract:
Após a Restauração de dezembro de 1640, o After the Restoration of December 1640, gov-
tema do governo por Conselhos Superiores (ou ernment by Superior Councils (or Tribunals)
Tribunais) era recorrente na gestão da monar- was a recurrent subject in the administration
quia pluricontinental portuguesa. A partir de of the Portuguese pluricontinental monarchy.
algumas advertências e consultas, esta tese refaz Based on some warnings and consultations, we
parte dessa discussão. Ela tem por propósito não retrace here part of this discussion. We intend to
apenas evidenciar a importância do governo por not only highlight the importance of government
Conselhos na monarquia portuguesa, mas tam- by councils in the Portuguese monarchy, but
bém vincular este modo de deliberação à ideia also to link this mode of deliberation to the idea
de monarquia pactuada. O período escolhido se of an agreed-upon monarchy. The analyzed pe-
refere aos anos seguintes à Restauração. riod covers the years following the Restoration.
Palavras-chave: Restauração; Monarquia Por- Keywords: restoration; Portuguese monarchy;
tuguesa; Conselhos; Contratualismo. councils; contractualism.

Em que pese temática central, ainda são pouco conhecidos os cir-


cuitos decisórios e os modos de deliberação política da monarquia portu-
guesa. Sabe-se que seus processos decisórios percorriam labirintos admi-
nistrativos de alta complexidade, constituídos por uma composição que
articulava Conselhos Superiores (ou tribunais palacianos), a exemplo do
Conselho de Estado, de Guerra, da Fazenda, Ultramarino, Desembargo
do Paço, etc., às Juntas, cuja atuação costumava ser mais específica e
extraordinária, como a Junta dos Três Estados, da qual pouco sabemos.
Todavia, ainda se desconhece sobremaneira não apenas o funcionamento
mais detido de cada um dos tribunais – exceto pela existência de alguns
1  – Doutor em História Social pelo Programa de Pós-graduação em História Social da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHIS-UFRJ) e em História e Civilização pela
École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS-Paris).

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (474):315-328, maio/ago. 2017. 315


Marcello José Gomes Loureiro

estudos, mesmo que circunscritos em recorte temporal delimitado –, bem


como (e primacialmente) as relações que estabeleceram entre si.2

Em suma, a política e o governo se sujeitavam aos auspícios de tri-


bunais – sínodos, em última instância – autorregulados, que podiam agir
de ofício e exaravam decisões não necessariamente vinculantes. Frequen-
temente, experimentavam conflitos de jurisdição, mas também coopera-
vam, modulando-se por uma moral e uma ética advindas da filosofia po-
lítica da segunda escolástica ibérica.3 Assim, trata-se de uma monarquia
corporativa, jurisdicional e polissinodal.4

De outra parte, os processos deliberativos sofriam interferência de


“arbítrios e remédios” elaborados não apenas por personagens da corte,
diretamente envolvidos na tessitura dos processos políticos, mas tam-
bém por aqueles que exerciam alguma primazia nos espaços periféricos.
Assim, tais instrumentos permitiam que as elites locais interferissem na
gestão política. Subsidiavam processos com informações mais acuradas;
desenhavam cenários que as favoreciam; ou ainda indicavam quais de-
2  – BICALHO, Maria Fernanda. “As Tramas da Política: Conselhos, secretários e juntas
na administração da monarquia portuguesa e de seus domínios ultramarinos”. In: FRA-
GOSO, João & GOUVÊA, Maria de Fátima. A Trama das Redes. Rio de Janeiro: Ci-
vilização, 2010, pp. 343-371; CAETANO, Marcello. O Conselho Ultramarino. Lisboa:
Companhia Editora Americana, 1969; CRUZ, Miguel Dantas. O Conselho Ultramarino
e a administração militar do Brasil (da Restauração ao Pombalismo). Tese (doutoramento
em História) ao Programa Interuniversitário de História. Lisboa: ISCTE, 2013; DORES
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autoridade”, Análise Social, Vol. XLIV (191), 2009, pp. 379-414; GAMA, Maria Luísa
Marques da. O Conselho de Estado no Portugal Restaurado. Dissertação (mestrado em
História) à FLUL. Lisboa, 2011; HESPANHA, António Manuel. Às Vésperas do Levia-
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Gestão da Monarquia Pluricontinental. Conselhos Superiores, pactos, articulações e o
governo da monarquia pluricontinental portuguesa (1640-1668). Tese (doutoramento em
História) Rio de Janeiro-Paris: UFRJ/PPGHIS-EHESS, 2014; e SUBTIL, José. “Os Pode-
res do Centro”. In: HESPANHA, António Manuel (org.). História de Portugal, o Antigo
Regime. Lisboa: Estampa, 1998.
3 – CALAFATE, Pedro. Da origem popular do poder ao direito de resistência. Lisboa:
Esfera do Caos, 2012; BARBAS-HOMEM, António Pedro. Judex Perfectus. Função
jurisdicional e estatuto judicial em Portugal (1640-1820). Coimbra: Almedina, 2003, p.
145-155; ALBUQUERQUE, Martim. O poder político no renascimento português. Lis-
boa: Verbo, 2012.
4 – HESPANHA, op. cit.

316 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (474):315-328, maio/ago. 2017.


Para o “crédito e reputação do governo”: circuitos de deliberação e a governação
por conselhos superiores na monarquia pluricontinental portuguesa (1640-1688)

cisões poderiam se fazer exequíveis. Em síntese, os papeis provenientes


dos diversos cantões da monarquia, que chegavam a Lisboa muitas vezes
sob o ritmo moroso e incerto das embarcações, viabilizavam a monar-
quia, conectando suas distintas partes.

Um dos momentos mais oportunos para a verificação dessa conjun-


ção política são os anos seguintes após a Restauração de 1640. O Du-
que de Bragança, aclamado como D. João IV, deveria buscar soluções de
continuidade para suplantar desafios nevrálgicos, sob o risco de não se
manter no trono, ou mesmo conservar os domínios da Coroa. Tratava-se,
de fato, de uma conjuntura crítica: guerra contra Castela; falta de apoio
diplomático; exaustão financeira e tributária; guerra contra os holandeses
em Pernambuco, Angola e Índias; e mesmo ausência de legitimidade po-
lítica consensual.5

Em face desse cenário, restava ao novo monarca amalgamar seus


vassalos em prol da causa da Restauração, aproximando-os por meio de
um pacto tácito. Histórica e juridicamente, tal pacto assentava fundamen-
to nos escritos de Santo Tomás de Aquino, malgrado tenha sido revisitado
nos séculos XVI e XVII, neste último caso, aliás, em grande medida sob
estímulo da própria Restauração.6

Em síntese apertada, pode-se dizer que no pensamento tomista todo


o poder reside originalmente em Deus, que o desloca para comunida-
des perfeitas e autogovernadas. Francisco Suárez avançou na questão,
defendendo que, graças a um pacto tácito, os vassalos estabelecem um
soberano, a quem conferem certo poder (poder in actu), muito embora
conservem em si o poder de resistir a seus atos, em circunstâncias espe-

5 – SCHAUB, Jean-Frédéric. Portugal na Monarquia Hispânica (1580-1640). Lisboa:


Horizonte, 2001; VALLADARES, Rafael. A Independência de Portugal. Lisboa: Esfera
dos Livros, 2006; e COSENTINO, Francisco Carlos. Governadores Gerais do Estado do
Brasil. São Paulo: Annblume; Belo Horizonte: Fapemig, 2009, pp. 246-249; e MELLO,
Evaldo Cabral. O Negócio do Brasil. Rio de Janeiro: Topbooks, 1978.
6  – MERÊA, Paulo. “A ideia da origem popular do poder nos escritores portugueses
anteriores à Restauração”. In: Estudos de História do Direito. Coimbra: Coimbra Editora,
1923, pp. 229 e seguintes; BASTIT, Michel. O nascimento da lei moderna. São Paulo:
Martins Fontes, 2010, pp. 39-60; e CALAFATE, op. cit., pp. 17-73.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (474):315-328, maio/ago. 2017. 317


Marcello José Gomes Loureiro

cíficas (poder in habitu).7 Cabe ao rei, nesse ideário, distribuir justiça,


observando as demais virtudes cardinais e teologais, prover defesa, am-
paro e patrocínio. Governar era, antes, servir, como um pastor que segu-
ramente conduz seu rebanho, asseverando a estabilidade do bem comum,
um estado transgeracional em que as necessidades materiais, morais e
espirituais deviam estar satisfeitas.

Ao reverso, o rei deveria afastar situações que podiam ser tipificadas


como de “extrema necessidade”, que se traduzem por uma experiência-
-limite, caracterizada, por exemplo, por fome, desesperação, desesperan-
ça, risco de heresia, ou seja, vicissitudes tais em que se deve recorrer a
quaisquer recursos para a salvaguarda da própria vida – de si, de outrem
ou da comunidade –, ainda que seja necessária a derrogação ou relativi-
zação das leis.8

Nessa senda, jesuítas de Mazagão advertiam Sua Majestade, em


1643, ao escrever que sua lealdade estava por um fio, contrastada com
uma “necessidade urgente”.9 Poucos anos depois, em 1646, era a vez
de os mestres de campo André Vidal e Soares Moreno, de Pernambuco,
expressarem sua insatisfação com os resultados da Restauração: recla-
mavam amparo régio imediato, antes que o “amor” que outrora sentiam
e demonstraram ao novo monarca se entibiasse completamente.10 Em
ambos os casos, os autores dos papéis de advertência pareciam manipu-
lar os conceitos político-jurídicos elementares daquela filosofia. Assim,
pressionavam os contratos tácitos que toda a monarquia direta ou indi-
retamente pactuou com o rei. Aliás, eis prova contundente de que tais
conceitos não restavam adormecidos nos tratados jurídicos, como o que
escreveu Velasco de Gouvêa, exatamente sobre esses acordos.11
7 – SUÁREZ, Francisco. De iuramento Fidelitatis. Madrid: Consejo Superior de Inves-
tigaciones Cientificas, 1978, pp. 76 e seguintes.
8  – AQUINO, Santo Tomás de. Suma Teológica, II-II, questão 66, artigo 2, solução 7;
e questão 66, artigo 7; ISRAEL, Nicolas. Genealogia do Direito Moderno. O Estado de
Necessidade. São Paulo: Martins Fontes, 2009, pp. 71-87; CALAFATE, op. cit., pp. 155-
156.
9 – Cartas de El-Rei D. João IV ao Conde da Vidigueira, Vol. I, pp. 81-82.
10 – Cartas de D. João IV para diversas autoridades do reino, p. 73.
11  –  GOUVÊA, Francisco Velasco de. Justa Aclamação do Sereníssimo Rei de Portugal

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Para o “crédito e reputação do governo”: circuitos de deliberação e a governação
por conselhos superiores na monarquia pluricontinental portuguesa (1640-1688)

O lócus privilegiado para a discussão do bem comum – leia-se para


a confecção de pactos – das repúblicas eram os Conselhos Superiores da
monarquia. Nesses tribunais, exauria-se a virtude cardinal da Prudência,
considerada por muitos tratadistas como a mais relevante para o governo.
A decorrência era que as decisões assim tomadas costumavam ser mais
prudentes, por óbvio, mas também mais acertadas, porque extenuadas.
Por outro lado, dizia-se que os tribunais também alcançavam decisões
mais justas porque cuidavam de matérias específicas, das quais seus con-
selheiros entendiam melhor. Cabia ao rei, de modo geral, ouvir e respeitar
as consultas emanadas pelos tribunais, nomeando seus membros.12

Sob a ótica da prática, os Conselhos e juntas eram espaço de excelên-


cia para alocação da primeira nobreza do reino, chamada comumente de
“primeiro tribunal”. Para D. João IV, particularmente, não era tarefa sim-
ples; afinal, tinha de conciliar a nobreza que lhe servira em Viçosa, antes
do golpe de 1640, com a nobreza já instalada no paço pelos Habsburgos,
e ainda com os nobres que efetivamente lhe conduziram ao trono. Para
além, governar por tribunais também significava se afastar de um gover-
no por validos, como foram acusados os monarcas de Castela.

Por tudo isso, em 1656 o Conselho de Estado, considerado o mais


importante de todos, consignava que os tribunais deviam ser bem valori-
zados, já que deles dependia o “crédito e reputação” do governo.13

Não é de surpreender, portanto, que tão logo tenha assumido o trono,


Sua Majestade tenha criado também novos tribunais, como o Conselho
de Guerra, o Ultramarino e a Junta dos Três Estados. Na verdade, tomam
parte de uma reforma administrativa bem mais ampla que previa a nor-
matização detalhada de Conselhos e tributos, bem como reformulação e
aperfeiçoamento de diversos regimentos. Sublinhe-se que tal ampliação
da arquitetura polissinodal devia produzir a sensação de que a preocupa-
ção com a prudência tornava-se agora central. Nada mais do que alguma
D. João IV. Lisboa: Lourenço de Anveres, 1644.
12 – LOUREIRO, op. cit.
13  –  Consulta do Conselho de Estado (1656). In: PRESTAGE, Edgar. O Conselho de
Estado de D. João IV e de D. Luísa de Gusmão AHP, 1919.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (474):315-328, maio/ago. 2017. 319


Marcello José Gomes Loureiro

ruptura com as formas rituais de governo castelhano, muito embora tal


ruptura, paradoxalmente, restabelecesse dispositivos ainda mais tradicio-
nais de decisão. Ao mesmo tempo, envolvia e comprometia a nobreza
portuguesa com as deliberações mais elevadas do edifício monárquico.

No nível das experiências, especificamente o Conselho Ultramarino


indicava a possibilidade de figurar como um canal de negociação direta
entre a Coroa e as diversas elites locais. Sua jurisdição era larga. Devia
zelar pela conservação do bem comum das repúblicas de além-mar, pro-
nunciando-se e julgando as matérias afetas a elas. Por exemplo, interferia
em disputas e conflitos locais, reconhecia acordos obtidos nas Câmaras,
e, principalmente, acolhia as narrativas episódicas que demandavam mer-
cês, como tanto tem anotado a historiografia correlata.

Nesse momento, é imperioso salientar apenas duas das dimensões em


que o tribunal ultramarino atuava, assim classificadas tão somente para
efeito didático. Não são exclusivas, nem sequer excludentes. A primeira
delas é a negocial, o que significa afirmar que o tribunal funcionava como
um espaço privilegiado de negociação entre partes ultramarinas ou entre
partes ultramarinas e a Coroa. Um bom exemplo é concernente à questão
de Pernambuco, que, por tantas vezes, ocupou a pauta dos tribunais nas
décadas de 1640 e 1650. Em 1647, o assunto novamente recaía sobre
homens centrais da política régia. O Marquês de Montalvão, presidente
do Conselho Ultramarino, o Conde de Alegrete, membro do Conselho de
Guerra, e o Dr. Francisco de Carvalho, da Fazenda, constituíam uma junta
extraordinária para assessorar a Coroa acerca da compra de Pernambu-
co aos holandeses, a partir de papéis advindos do Brasil, assinados por
Gaspar Dias Ferreira. Estimava-se poder solidarizar por diversos agentes
interessados (donos de engenho, traficantes de escravos, mercadores do
sal, etc.) os custos necessários para aquisição de Pernambuco. Concluído
o parecer da junta, foi submetido ao padre Antônio Vieira, detentor de
“grande juízo” e “particular notícia” das coisas do Brasil. Com a notável
perspicácia e maestria, Vieira reprovou os termos do parecer, propondo
em seu lugar uma “carga mais suave, mais certa e mais igual”. A gestão
do recolhimento tributário, bem como o estabelecimento de seu valor,

320 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (474):315-328, maio/ago. 2017.


Para o “crédito e reputação do governo”: circuitos de deliberação e a governação
por conselhos superiores na monarquia pluricontinental portuguesa (1640-1688)

caberia às próprias câmaras locais, respeitando-se o princípio da autono-


mia e autogoverno das partes. Para que houvesse “segurança” (jurídica)
em torno dos pactos, o rei deveria empenhar sua “real palavra”, determi-
nando a feitura de uma “lei” que assegurasse as condições acordadas.14
Veja que a negociação se desenrolava dentro de tribunais, que, para além,
aportavam “segurança” aos acordos.

Se a primeira dimensão destacada é a negocial, a segunda é a proces-


sual. Os circuitos de deliberação por que passava uma decisão agregavam
valor ao resultado final. Era preciso percorrer um canal que, se conside-
rado correto, respaldava o caráter da decisão. Antes de tudo, o canal a
seguir afiançava que todos os possíveis beneficiários e afetados foram
ouvidos diretamente ou por quem cabia os proteger. Percorrer um canal
extenso garantia assim que a decisão se revestia de prudência e que não
guardava injustiças, já que devidamente consultada.

Ao contrário, ignorar um circuito decisório poderia expor a palavra


ou o empenho régio à instabilidade. Uma decisão impensada poderia ser
alvo de reforma, o que explicitaria a fragilidade régia. Fazia-se mister
assim preservar ou proteger a palavra ou a imagem do rei, evitando que
se decidisse sobre assuntos pouco refletidos, amadurecidos ou exauridos.
Se houvesse mácula, que fosse imputada aos tribunais, mas jamais ao rei,
última instância jurídica da monarquia, como defendeu o Conselho de
Estado, na já citada consulta de 1656.

O valor do rito processual nessa monarquia é bem explícito nas di-


ficuldades que houve entre a Coroa e as elites do Maranhão em torno da
questão dos índios na segunda metade do século XVII. De um lado, a
Coroa tendia a seguir as orientações jesuíticas, para quem os índios deve-
riam ser catequisados e reduzidos em missões, para que se convertessem
na fé católica, pudessem então reconhecer consensualmente a autoridade
régia e finalmente defender os domínios de Portugal; de outro, a elite
local alegava que dependia da escravização dos índios para se sustentar.
À parte os conflitos, debruço-me, ainda que rapidamente, sobre as razões
14 – Cartas de El-Rei D. João IV ao Conde da Vidigueira, Vol. II, pp. 101-114.

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que Antônio Vieira escreveu ao rei com o fito de assegurar a vigência de


uma lei obtida a favor da catequese indígena, em 9 de abril de 1655.

A primeira razão é exatamente de natureza processual, na medida em


que as resoluções que se consolidaram em lei “foram examinadas e con-
sultadas com as pessoas mais timoradas e de maiores letras” existentes.
Igualmente, respeitava a jurisprudência, já que “a resolução se tomou de
serem vistas todas as leis e breves dos Sumos Pontífices [e] consultas do
Conselho Ultramarino”. Todavia, veja que houve clara negociação: “De
tudo se deu vista primeiro ao procurador do Maranhão e Pará, os quais
deram por escrito suas razões.” Para além, uma negociação razoável e
proporcional: “Tudo foi não apenas ‘aprovado’ pelos procuradores, mas
também ‘ajustado’ com eles.”

Respeitado o processo e a negociação, não havia que se falar de re-


vogação da lei. Se não, atentava-se contra a estabilidade da palavra régia,
que se manifestava por diplomas legais: “Seria contra a autoridade das
mesmas leis, se cada dia se mudassem.” E, com o manejo preciso das
palavras e a lucidez que lhe é peculiar, o padre arrematava: “Nenhum
crédito se daria mais entre os índios às leis e ordens de Vossa Majestade
[... e assim] se arruinaria por esta via todo o fundamento do Estado e das
cristandades.”15

Sem paradoxo, é bastante interessante observar até mesmo o padre


Antônio Vieira, que em outras ocasiões acusava os tribunais de promover
dilações nefastas, fazendo a monarquia perder a “ocasião” do sucesso,
recorrer ao sistema deliberativo da monarquia para resguardar a lei que
lhe interessava.

Nessa lógica, as resoluções alcançadas em tribunais eram, em geral,


reconhecidas como mais razoáveis, proporcionais, ajustadas, legítimas e
longevas, já que haviam respeitado, em seu caminho construtivo, a juris-
prudência, o costume, a opinião de conselheiros (por vezes de tribunais

15  – VIEIRA, Antônio. Cartas de Antônio Vieira. Vol. I. São Paulo: Globo, 2008, pp.
332-338.

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Para o “crédito e reputação do governo”: circuitos de deliberação e a governação
por conselhos superiores na monarquia pluricontinental portuguesa (1640-1688)

congêneres a que tocava a matéria) e procuradores, sejam da Coroa, se-


jam das Câmaras.

De fato, os tribunais figuravam como uma instância capaz até mesmo


de acalmar o povo amotinado. Em 1648, quando o Conselho de Estado,
em conformidade com a vontade régia, decidia a entrega de Pernambuco
aos holandeses, “o povo se tumultuava” nas ruas de Lisboa. A maneira
de desfazer a pressão da cidade sobre o governo foi exatamente buscar
pareceres de todos os demais tribunais, compartilhando assim a respon-
sabilidade por decisão tão cara. Não custa insistir: a forma de aquietar o
povo era cumprir um rito processual completo, o que demonstra seu valor
extrínseco.

A essa altura, em que se tem realçado a importância dos tribunais


para a legitimidade régia, resta ainda indagar: qual sua relevância para as
praças ultramarinas?

Antes de ensaiar uma resposta delimitada, é válido refletir acerca de


dois exemplos pertinentes para tanto. Ao longo do século XVII, mas ao
que parece especialmente após a Restauração, tanto a Câmara do Rio de
Janeiro quanto a da Bahia costumavam se autotributar. Recolhiam recur-
sos extraordinários, por exemplo, sobre o vinho, que eram oferecidos ao
rei sob a denominação de subsídios ou donativos. Eram votados na Câma-
ra, por um período predeterminado; buscavam satisfazer uma finalidade
específica, normalmente voltada para a defesa, atribuição régia, mas que
também interessavam ao bem comum dos moradores. Obviamente, a Câ-
mara esperava que Sua Majestade reconhecesse o empenho, o valor, e a
lealdade daqueles vassalos, retribuindo-lhes com mercês. O recolhimento
podia ser interrompido, se não houvesse acordo na Câmara, que funcio-
nava como uma espécie de tribunal local, ou se não houvesse garantias
de que os recursos amealhados permaneceriam à disposição da cidade.16

16  – FRAGOSO, João. “Fidalgos da terra e o Atlântico Sul”. In: SCHWARTZ, Stuart;
MYRUP, Erik Lars (Orgs.). O Brasil no império marítimo português. Bauru: EDUSC,
2009, pp. 75-112; e BICALHO, Fernanda. A Cidade e o Império. Rio de Janeiro: Civili-
zação, 2003.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (474):315-328, maio/ago. 2017. 323


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Ao longo dos anos 1640, por exemplo, por diversas vezes a Câmara
do Rio de Janeiro se debruçou sobre o assunto. A conjuntura era de in-
certeza, de modo que os subsídios foram acordados por prazos distintos,
ou mesmo foram interditados em função de alguma ação desastrosa, do
governador-geral ou do governador da própria cidade. Todavia, se há uma
regularidade a ser assimilada, parece ser a de que o coração dos vassalos
se inclina para a colaboração com o rei se ele distribui mercês, como
privilégios idênticos aos dos moradores do Porto, e títulos, como o título
de cidade “leal”. Ou então, na mesma inclinação se faz, se os tribunais,
especialmente o Conselho Ultramarino neste caso, é capaz de criar condi-
ções favoráveis para que aqueles vassalos pudessem assim comprometer
espontaneamente seus rendimentos. Por exemplo, nesse cenário, cabia ao
Conselho garantir que os governadores não interferissem na finalidade
de aplicação do provisionado; cabia-lhe também verificar junto ao rei a
possibilidade de enviar engenheiros para a fortificação da ilhota da Lage,
antiga demanda dos moradores; cabia-lhe ainda demonstrar que valoriza-
va aquelas ações, propondo prerrogativas para aqueles vassalos, ou indi-
cando nomes para seu governo que fossem reconhecidos e bem aceitos.

Uma vez que a Câmara da cidade, após tensões e discussões, pactua-


va um valor a ser recolhido sob a forma de subsídio, competia ao Conse-
lho finalmente afiançar que aquele acordo seria adimplido, fazendo valer
a segurança jurídica necessária para tanto. Noutros termos, os acordos
locais, obtidos na Câmara, ganhavam mais segurança se fossem reco-
nhecidos ou referendados no Conselho Ultramarino. É exatamente o que
registrou a Câmara do Rio de Janeiro, quando resolveu interromper a
contribuição:
e que para maior firmeza desta extinção se daria conta a Sua Majes-
tade para que assim o declarasse por sua real provisão, para se evitar
alguma vexação e controvérsia entre os oficiais desta câmara [...] e os
da fazenda real e governador desta praça [...] e com esta formalidade,
taxa e declaração haviam por bem que se continuasse por esta vez
somente a dita contribuição.17

17  – Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), Rio de Janeiro, Castro e Almeida, Cx. 27,
Doc. 6085.

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Para o “crédito e reputação do governo”: circuitos de deliberação e a governação
por conselhos superiores na monarquia pluricontinental portuguesa (1640-1688)

Esse Conselho intermediava, portanto, as relações entre os vassalos


e o rei, harmonizando interesses nem sempre congruentes. Funcionava
como instância de segurança jurídica, onde eram asseverados acordos
firmados no plano local. À medida que era capaz de desempenhar com
sucesso essa função, tornava-se indispensável na arquitetura de uma
monarquia que dependia essencialmente dos espaços ultramarinos para
composição de suas receitas. Na prática, o prestígio do tribunal dependia
(também) disso: bem intermediar um pacto entre o rei e seus vassalos.

Procurou-se demonstrar como os tribunais superiores da monarquia


eram instrumentos indispensáveis para a formulação de pactos entre reis
e vassalos. Figuravam como índice de bom governo, capazes de distribuir
justiça. O que estava em jogo, no fim das contas, era a lei e autoridade
de Sua Majestade, confeccionadas a partir de formas tradicionais e pro-
cessuais desenroladas sem vício. Os circuitos decisórios, se considerados
corretos, imprimiam legitimidade e longevidade a uma decisão. Obser-
ve que a conservação da monarquia não passava apenas pela negociação
ou remuneração, via sistema de mercês, embora essas duas dimensões
fossem mesmo essenciais. Os pactos entre reis e vassalos se construíam
também pelo governo por tribunais. A própria autoridade régia, que não
existe per se, mas na relação dinâmica com os vassalos, dependia também
do respeito à forma decisória.

Apenas mais uma palavra. A Coroa dependia de seus territórios e


vassalos ultramarinos porque consignavam parcela elementar de suas re-
ceitas, porque proporcionavam status no concerto das monarquias euro-
peias, porque realimentavam o fundamento basilar de que a monarquia
portuguesa conservava e expandia a fé católica. Todavia, nessa perspec-
tiva, o reverso também é verdadeiro: os espaços ultramarinos também
dependiam da Coroa para avalizar os pactos firmados nos planos locais.
Nesse jogo sinalagmático é que se deve interpretar o suposto diálogo lite-
rário enunciado por Luís Mendes de Vasconcelos, em 1608:
O Príncipe e a república são uma coisa ou duas? Se o príncipe é jus-
to, uma só coisa são, porque ele e a república fazem um só corpo,
procurando a utilidade comum [...] Mas, se o príncipe respeitar só os

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Marcello José Gomes Loureiro

seus particulares, interesses e falsas utilidades, com dano aos súditos,


diremos que são duas coisas, porque, sendo contrárias, não podem ser
uma só.18

Referências Bibliográficas
ALBUQUERQUE, Martim. O poder político no renascimento português.
Lisboa: Verbo, 2012.
Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), Rio de Janeiro, Castro e Almeida, Cx.
27, Doc. 6085.
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332-338.

Texto apresentado em julho/2016. Aprovado para publicação em de-


zembro/2016.

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dentre Gazetas
From Among the Gazettes
Cybelle de Ipanema1
Resumo: Abstract:
A comunicação aborda a Gazeta do Rio de The communication addresses the Gazeta do
Janeiro, privilegiando: o mês de setembro de Rio de Janeiro, privilege: the month of Septem-
1815. O jornal divulgava notícias da guerra na ber, 1815. The gazette released news about the
Europa, tanto do ponto de vista dos vencedores, war in Europe, both from the point of view of
como do vencido, Napoleão. Igualmente, dos the winners and the loser, in this case Napoleon.
hábitos dos moradores: casas com bom quintal And also news about the habits of the inhabit-
(certamente com árvores frutíferas), casas de ants: houses with spacious backyards with
dois andares, abrigando comércio no térreo e fruit trees, two-floor houses with commerce in
família no andar superior. Desdobramos todas the ground floor and family in the upper floor.
as notícias, sobretudo nos Avisos, da 4a página. Among many other pieces of news, we unfold
De igual modo, Notícias marítimas, partida e maritime news including departure and arrival
chegada de navios, mercadorias transacionadas, of ships, goods traded, auctions, lotteries, sale
leilões, loterias, venda de livros. of books, and highlight especially the Notices
on page 4
Palavras-chave: Gazeta do Rio de Janeiro; se- Keywords: Gazeta do Rio de Janeiro; Septem-
tembro de 1815; Guerras Napoelônicas; anún- ber 1815; Napoleonic wars; notices, urban life.
cios; vida urbana.

É, sempre, satisfação redobrada participar de programação, asso-


ciando-nos a Portugal em suas relações com esta Cidade, a propósito,
agora, dos 450 anos da Fundação de São Sebastião do Rio de Janeiro.

Portugal, meu avôzinho, de Davi Nasser (1965), já não bate com mi-
lhões dos do lado de cá do Atlântico, senão metaforicamente. O que não
nos deixa, no entanto, perder os laços, as raízes, louvá-los, tentar reme-
morar algo que lhes devemos, caso deste comparecimento no Seminário
“Presença portuguesa no Rio de Janeiro”.

Quando o prof. Arno anunciou, lá atrás, a data, a ligação foi ime-


diata: 10 de setembro, da Gazeta do Rio de Janeiro. Hoje, aniversaria o
primeiro jornal editado no Brasi, jovem de 7 anos, que tomamos por mote
para a Mesa “Livros e Impressos”, junto às ilustres confreiras.

1  –  Livre-Docente e Doutora em Comunicação pela UFRJ. Sócia do Instituto Histórico


e Geográfico Brasileiro.

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A Gazeta não era, porém, diária, não houve um número de 200 anos
atrás, 10 de setembro de 1815, razão por que optamos por analisar todo
o mês em causa, o que justificaria, sem espanto (como foi o caso), o tí-
tulo para o pronunciamento: dentre muitas Gazetas, privilegiaram-se as
daquele mês.

Ela foi bastante enfocada por Alfredo do Vale Cabral2 e Rubens Bor-
ba de Moraes,3 em seus aspectos formais, ao lado de exames e interpreta-
ções de seu papel, social ou político, na socieade joanina do século XIX,
por outros autores.4

Anunciada semanal, já no segundo número foi bissemanal, passan-


do, muito depois, a ter três saídas por semana (julho de 1821).

Para o entendimento da Gazeta, fundamental na circulação das


ideias, embora o formato bem pequeno com que nasceu – 19 x 13,5 cm e
4 páginas –, aumentado progressivamente, repitam-se duas informações
sediças, avivadas, porém. Primeiro, o pertencimento:
Esta Gazeta, ainda que pertença por Privilégio aos Oficiais da Secre-
taria de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, não é con-
tudo Oficial; e o governo somente responde por aqueles papeis que
nela manda imprimir em seu nome. (Gazeta do Rio de Janeiro, nº 1,
10.09.1808).

Prática observada em Portugal.

Não ficou nesse exclusivismo. Mesclavam-se atos oficiais do gover-


no, notícias da Europa e da América, chegadas, que era mister repassar
2 – CABRAL, Alfredo do Vale. Anais da Imprensa Nacional do Rio de Janeiro – 1808-
1822. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1881.
3  –  CAMARGO, Ana Maria de Almeida; MORAES, Rubens Borba de. Bibliografia da
Impressão Régia do Rio de Janeiro. São Paulo: Edit. da Universidade de São Paulo: Kos-
mos, 1993, 2 vol.
4  –  Por exemplo: CARDOSO, Thereza Maria Fachada Levy. A Gazeta do Rio de Janei-
ro: subsídios para a história da cidade (1808-1821). RIHGB, n. 371, pp. 341-436, abr./jun.
1999. SILVA, Maria Beatriz Nizza da. A Gazeta do Rio de Janeiro (1808-1822): cultura
e sociedade. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2007. MEIRELLES, Juliana Gesueli. Imprensa e
poder na corte joanina. A Gazeta do Rio de Janeiro (1808-1821). Rio de Janeiro: Arquivo
Nacional/UNIRIO, 2008.

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aos leitores, necrológios, eventos da família real, notícias marítimas e


os Avisos, de natureza variadíssima, a parte quiçá mais proveitosa para
o conhecimento, de duas mãos, do conjunto da população. Era, se não a
folha oficial, oficiosa.

Não é desprezível, também, que se acople a informação de que sai-


riam, se necessário, números extraordinários “quando houverem notícias
tão interessantes que se julgue a propósito comunicá-las ao Público antes
do sábado” (a data do número seguinte que, logo, deixou de ser esse dia
da semana). Podia acontecer que essas notícias momentosas se antecipas-
sem em edição a outras regulares. Esclarecem:
... essa espécie de anacronismo não é prejudicial à Coleção destas Fo-
lhas considerada como Resumo da História dos Tempos (grifo nosso).
O Editor julga pois que deve mais depressa satisfazer a curiosidade do
Público, do que seguir uma ordem que, só à primeira vista, parecerá
incompetente. (Idem, ibidem).

Achamos um cuidado dos redatores, responsáveis, retrato da preocu-


pação de oferecer um produto tanto mais útil.

As edições da Gazeta Extraordinária do Rio de Janeiro tinham ca-


beçalho ligeiramente diferente das regulares, seguindo, de igual modo,
numeração independente.

Eventualmente, saíam Suplementos à Gazeta tal.

Nessa altura da vida da Gazeta, 1815, o redator era Manuel Ferreira


de Araújo Guimarães, cujo cargo exerceu por nove anos, assumindo-o em
1812. O primeiro fora frei Tibúrcio José da Rocha, sendo o último, entre
1821 e o término do jornal, 31 de dezembro de 1822, ano em que reduziu
o título para Gazeta do Rio, o cônego Francisco Vieira Goulart.

Dos três, bastante ilustrado foi o segundo, com trajetória na Marinha,


em especial no magistério. Nascido na Bahia, iria cursar matemáticas em
Coimbra, o que não ocorreu, mas que não foi impeditivo da carreira de-
senvolvida e de produzir larga bibliografia na área de engenharia. Retor-

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nou à terra natal e posteriomente veio para a corte. Deteve o posto de bri-
gadeiro ou coronel. Agraciado com ordens honoríficas. Poeta e tradutor,
inclusive de Legendre que dedicou ao príncipe regente.5

Sua saída da redação da Gazeta, em 1821, não foi muito tranquila, o


que o fez incluir notas no Diario do Rio de Janeiro.6

Foi, também, o redator de O Patriota (1813-1814)7 e de O Espelho


(1821-1823).8

A coleção a que nos propusemos examinar, ligação, sem dúvida, de


Portugal – que possibilitou o aparecimento da Gazeta do Rio de Janeiro,
em seguida à criação da Impressão Régia – e a cidade-símbolo de home-
nagens em 2015, objeto do presente Seminário, contempla, do no 70, de
02.09.l815, ao no 78, de 30 do mesmo mês e ano, com a interpolação de
um número extraordinário, o 15, de 4 de setembro, 10 números, portanto,
totalizando 44 páginas, pois um tem 8, em lugar de 4.

Conteudisticamente, a matéria, pode-se dividir em quatro blocos: a


transcrição das informações do exteior (praticamente, ¾ do jornal), os
atos oficiais (só uma vez aparecem), as notícias marítimas, de fundamen-
tal importância em uma cidade-porto, e os Avisos. Era o que tinham nos-
sos ancestrais, habitantes do Rio de Janeiro, à mão, para suas informação
e formação, naquele ano de 1815.

Como dito, o exame da Gazeta do Rio de Janeiro utilizada para esta


fala se cingiu ao total de 10 números, em 44 páginas, o que nos permite

5  –  BLAKE, Augusto Vitorino Alves Sacramento. Dicionário bibliográfico brasileiro.


Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1900, 6o vol., pp. 71-75. Ed. fac-similar, CFC, 1970.
6  –  Primeiro jornal diário do Brasil, iniciado a circular em 1o de junho de 1821, criação
de Zeferino Vito de Meireles, em moldes originais. Viveu até 1878.
7  –  Primeira revista do Rio de Janeiro e segunda do Brasil, antecedida em 1812 por As
Variedades ou Ensaios de literatura, da Bahia.
8  –  Importante periódico da época da Independência que acolheu, por exemplo, produ-
ções embuçadas por pseudônimos, de d. Pedro I, conforme Helio Viana, transcritas em
D. Pedro I – proclamações, cartas, artigos (confronto crítico de textos e notas, de Cybelle
de Ipanema). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional. 1973.

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lhes pedir nos dispensarmos de indicar todas as referências, as quais po-


dem ser recuperadas sem trabalho muito exaustivo.

Os despachos, os comunicados, as cidades responsáveis pela emissão


das notícias da guerra na Europa não aparecem em ordem cronológica,
mas cobrem o período, justamente, da queda de Napoleão. Acompanha-se
a sequência de batalhas, a movimentação dos exércitos, êxitos de parte a
parte e a presença maciça e vitoriosa das forças combinadas de ingleses,
belgas, austríacos, prussianos, piemonteses, holandeses... partes, alguns,
de futuras nações constituídas, como Alemanha e Itália.

Em 18 de junho de 1815, trava-se a batalha definitva, de Waterloo,


como se acabou de lembrar, há três meses atrás. E está aqui, nas notas
transcritas – atente-se para tempo versus comunicação – o orgulho dos
combatentes vencedores, a alegria da população de cidades, por “repique
de todos os sinos”.

Exaltar a vitória corresponde a não poupar o vencido, cobrindo-o de


apodos, encontráveis em obras sobre o período.9

Após a grande vitória das forças comandadas pelo duque de Welling-


ton, é o comunicado, com data de 19 de junho:
O duque de Wellington ganhou a batalha mais completa, mais forte-
mente disputada, mais gloriosa, e talvez mais importante que refere a
história. O tirano da França e o inimigo da Europa foi vencido depois
de um combate que durou nove horas. O inimigo está plenamente der-
rotado; perdeu a artilharia e, provavelmente, perderá os restos do seu
exército disperso. Nada pode igualar o heroico valor que mostraram
os exércitos inglês, prussiano e bélgico. (Gazeta do Rio de Janeiro, no
70, 02.09.1815).

9  – NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. Napoleão Bonaparte: imaginário e política
em Portugal c. 1808-1810. São Paulo: Alameda, 2008.

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O marechal príncipe Blucher não quer ser ingrato “aos bravos bél-
gicos”.
... Adeus, /.../ A lembrança do hospitaleiro gasalhado, que nos destes,
e a memória de vossas virtudes estarão eternamente gravadas nos nos-
sos corações. Proteja o Deus de paz vosso belo país; e afaste dele por
muito tempo as desordens da guerra; sede tão felizes, como mereceis.
– Adeus! (de 21 de julho). (Idem, ibidem, p. 3).

Não era, porém, neste caso, parcial a Gazeta. Não deixava de trans-
crever, por exemplo, esta “Declaração de Bonaparte ao povo francês”, de
23 de junho:
Franceses! Começando a guerra para manter a independência nacio-
nal, descansava na união de todos os esforços, de todas as vontades e
no concurso de todas as autoridades nacionais. /.../ A minha vida polí-
tica expirou, e eu aclamo meu filho debaixo do título de Napoleão II,
imperador dos Franceses /.../ (Gazeta do Rio de Janeiro, nº 71,
06.09.1815, p. 4).

O termos privilegiado o exame deste mês da Gazeta, dentre Gazetas,


proporcionou (feliz coincidência!), ainda uma vez ao auditório, a chance
de tomar ao pé da letra as notíciais do epílogo de uma era de que, até nós,
fomos partícipes em grande.

O resto... Não desprezem a Gazeta como fonte, lembrando, sempre,


que se editou quase toda em época de censura. Ao tempo desta fala, vigia
a Carta de Lei de 17 de dezembro de 1794, de d. Maria I, ampliada, com
“Regras de Censura” e explicitação dos “Livros que se hão de proibir” e
dos “Livros que se hão de expurgar”.10 Censura só levantada em 1821,
antes do término da folha, em circunstâncias para outro exame.

Em igual período da Gazeta, 1808 a 1822, editou-se em Londres,


sem censura, o Correio Braziliense ou Armazem Literario, do brasileiro

10  – Texto em IPANEMA, Marcello de. Legislação de imprensa. Rio de Janeiro: Graf.
Edit. Aurora, 1949, 2 vol. 1o vol., pp.102-131. Copiado de Coleção da Legislação Por-
tuguesa... pelo desembargador Antônio Delgado da Silva. Lisboa, 1828, pp. 193-198 e
225-238.

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Hipólito da Costa, muitas vezes proibido de circular no Brasil, objeto de


muitos estudos e, até, de edição fac-similar.

Em meio a tão farto material do exterior, uma única vez tem na Ga-
zeta agasalho, com a rubrica “Rio de Janeiro”, ocupando duas e meia
páginas, das quatro da edição, uma “Relação dos despachos que baixaram
da Real Assinatura pelo expediente da Secretaria de Estado dos Negócios
Estrangeiros e da Guerra”.

As “Notícias marítimas”, que integram as edições, têm, naturalmen-


te, um público cativo. Em um movimentado porto do Atlântico Sul, mui-
ta gente estava interessada nas embarcações, datas em que chegavam,
ou que deixavam o Rio, seus nomes, procedências, ou destinos, número
de dias de viagem (para ou do Rio), comandantes e cargas. Estas eram,
por exemplo, ferro, tinta, sabão, louça, fazendas, café, aguardente, porco,
toucinho, gêneros do país, arroz, carne, trigo, carne-seca, farinha etc. etc.
Informam, quando o caso, em lugar de mercadorias, lastro.

Em relação a navios, interessante registrar – já agora, constante da


seção “Avisos” –, provindos da Administração Geral do Correio Maríti-
mo, sobre horários em que se deviam entregar cartas.

Também na seção de Avisos, chamada para interessados em carregar


em navios a saírem: para Lisboa e Buenos Aires, com indicações de nome
da embarcação e pessoa com quem tratar.

Com a chegada da Gazeta, estava aberto um canal de comunicação


que faltara aos moradores. Fluminenses eram ditos, pela vinculação do
nome da baía (Rio de Janeiro, além de Guanabara) e da capitania que se
ligava, ao latim flumen, inis (o rio).

No primeiro jornal de nossa série, já duas informações nos “Avisos”


necessitavam divulgação. Diz a primeira que, os que tivessem negócios
com a casa de Kirwan e Companhia deveriam entregar suas contas, pois
a casa estava findando. Aos devedores, indica-se um endereço, à Rua dos

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Pescadores (hoje, Visconde de Inhaúma), onde saldá-las, para “não haver


dúvidas para o futuro”.

A mesma precaução tomada por José Fernandes Figueiredo, dono


de uma loja de fazendas, na Rua da Quitanda, à qual fugira o administra-
dor, José da Costa Miragaia. Apresentar “letras, créditos e clarezas” para
se ajustarem as contas, em prazo que é estipulado, em endereço forneci-
do. Anúncio repetido na edição seguinte.

Importante comunicar o encerramento de sociedade em loja de lou-


ças, na Rua do Ouvidor, por José Antunes da Costa, ora em litígio com
o antigo sócio, João Antônio Sersedelo, a fim de se desonerar de futuras
obrigações “de compras”.

Igual convocação de credores e devedores do falecido Guilherme


Barney, a se apresentarem a Lourenço Heyworth, até o dia tal, em endere-
ço na Rua das Violas (Teófilo Otoni), “com pena de perderem o direito”.
Anúncio repetido uma semana depois.

Da maior relevância para uma parcela da população, a nota a seguir


que, pelo Juizo da Conservatória dos Privilegiados da Real Junta do Co-
mércio, se arrematariam em hasta pública os bens do finado José Caetano
Alves, “postos em administração pelo mesmo Tribunal”.

E que dizer de um comunciado de João Jones, sobre vacina? Decla-


ra-se membro do Real Colégio de Cirurgiões de Londres e que “se acha
em seu poder a legítima vacina que ele deseja estender o mais possível”.
Tece considerações, participa que vacinará “gratuitamente duas vezes por
semana”, em dias e horários tais, na Rua dos Pescadores, no 3, rogando
aos vacinados retornarem para serem inspecionados. Aos professores,
forneceria a Linfa Vacina, nos citados horários.

De interesse, também da população, era a Loteria extraída a favor do


Teatro de São João. Na série estudada, há notícias explícitas de Plano da
Loteria e Lista de prêmios, em total de quatro referências. Sendo a Lista,
publicava-se a data, os números sorteados e os valores respectivos.

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Havia Loterias mensais. Nos Planos, lógico, o quadro previsto de


premiações. Os bilhetes achavam-se à venda nos lugares de costume. Se
o dia da extração caísse em domingo, antecedia-se para sábado.

O magnífico Real Teatro de São João, no Rocio (Praça Tiradentes),


como se lembrará, foi mandado construir pelo príncipe D. João e inau-
gurado em 1813. Era amplíssimo e realizava espetáculos louvados. Con-
sumiu-se em um incêndio, no dia da Constituição, 25 de março de 1824,
sendo substituído por um mais modesto, com muito menos lugares, com
o nome de Teatro de São Pedro de Alcântara.

Louvável serviço prestava à população a pequenina Gazeta.

Em grande quantidade, os Avisos contemplam anúncios de transa-


ções imobiliárias – venda, sempre; só um aluguel. Aparecem:

– uma chácara nas Laranjeiras, “junto de onde esteve a Fábrica das


chitas”. O chamariz de “boa água para beber” justifica-se, pois as fábricas
de tecido levavam o requisito água em consideração. “Boa horta plantada
com curiosidade” (sic).

– outra, “no princípio do caminho que vai para a Fábrica de Pólvo-


ra”. Estamos pensando, naturalmente, nas proximidades da lagoa Rodrigo
de Freitas. Algo enfatizado no anúncio, o capim de Angola, remete para
a criação de gado.

– uma fazenda às margens do Rio Macacu. Possui 20 escravos “e o


mais à proporção”. “À proporção” é para se pensar na situação econômica
do proprietário, já que possui 20 braços para o trabalho? Quem tratava era
um padre, morador defronte do convento da Ajuda, nº tal. Ao interior da
capitania do Rio de Janeiro atingiria a Gazeta (um assinante?) ou, apenas,
o intermediário é que deve ser levado em conta?

– um sítio na Ilha de Paquetá. Propriedade rural, dialogando com as


chácaras de Catete, Laranjeiras, Botafogo.

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Negócios envolvendo imóveis são inúmeros, tanto casas de residên-


cia, como lojas, as segundas em menor disponibilidade.

“Casas de sobrado” induz à arquitetura urbana, alardeando-se “com


bastante fundo e bom quintal”. O endereço destas é a rua “por detrás da
Lapa e hoje convento do Carmo”. Referência, evidente, à Igreja de N. S.
do Carmo da Lapa do Desterro, aqui perto.

No século XXI, não muitas são as áreas do Rio de Janeiro onde se


mantêm os quintais com árvores frutíferas e, mesmo aquelas ornamen-
tais, como ipê, amarelo e roxo. A devastação da Mata Atlântica, desde o
século XVI, por um lado, responde pela carência, resultado conhecido de
todos, da combinação de fatores econômicos e sociais das populações das
metrópoles. Não é novidade.

Em Matacavalos (Rua do Riachuelo), nºs 46 e 47 havia, para venda,


duas propriedades de “casas nobres com suas chácaras”, com todas as
comodidades, muita água, pomar e cocheiras separadas. Detalhe muito
curioso e inusual: não se exigia o pagamento logo, contanto que prece-
dessem “as seguranças necessárias...”

Na Ladeira de João Homem (o nome ainda se mantém, na Saúde),


“lado esquerdo, nºs 31 e 32” anunciavam-se à venda duas moradas de
casa. Observar que a numeração era contínua, para um mesmo lado da
rua e não separadamente, par e ímpar (como no anúncio anterior, de Ma-
tacavalos).

A Praia da Flamengo tinha uma casa à venda “com bastantes cômo-


dos e bons fundos” (o tal quintal que não podia faltar).

Em matéria de lojas de negócio, podia-se ficar com um botequim,


na Rua do Sabão (depois, General Câmara, hoje incorporada à Avenida
Presidente Vargas) e uma “loja de varejo”, à Rua da Quitanda (nome per-
manente, no centro da cidade). E só.

A necessidade de aluguel bateu para um morador que precisa de um


sobrado “com armazém por baixo”. Seria o clássico: loja no térreo e mo-

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radia da família, em cima. Exige: “da Rua dos Ourives e Cano (Sete de
Setembro) para a praia”. Curiosa prática que, talvez, não se supunha tão
antiga (200 anos cravados): procurar na Rua do Ouvidor, no tal, a loja de
José Angelliny para os arranjos, que dará “umas boas luvas pela cessão
da chave”.

A Gazeta, entretecendo negócios, vai desenovelando a vida cotidia-


na do Rio de Janeiro de 1815. E era tão pequena, e era tão magra...

Vendiam-se, inclusive, embarcações, como um bergantim, o “Santa


Rita”, em que se utilizaram “excelentes madeiras”, chegado de Campos,
e o penque “Santa Anna”, provindo da mesma vila fluminense.

Anúncios de escravos, há três. A venda de uma, cozinheira “e para


todo o serviço da casa”, sem maus costumes. Local, Praia do Valongo
(hoje, Rua Sacadura Cabral), que lembra o Cais do mesmo nome e o
mercado de escravos, na região da Saúde-Gamboa, onde desembarcaram
levas e levas de africanos, local revitalizado nos anos 2000 com pesquisas
arqueológicas e recolhimento de numerosas peças.

Uma segunda chamada é de escrava “perdida” (fugida?). Apareceu


na chácara tal e não sabe quem é o seu senhor. A quem der os sinais, “será
imediatamente entregue”.

De um escravo desaparecido, detalham-se os sinais, para ser recam-


biado a seu dono que dará “alvíçaras”. Muito magro, alto, oficial de al-
faiate, nome tal. Ir à loja da Gazeta.

Os escravos nos anúncios de jornal é pesquisa publicada de Gilberto


Freyre, como de outros. Aos fugidos, passou-se a juntar, nas folhas, uma
ilustração, conduzindo um embornal.

Por meio da Gazeta do Rio de Janeiro, intermedia-se também a ven-


da de produtos para consumo.

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Não são muitos. Farinha de trigo superfina, anunciada por Horacio


Messeri “aos mestres cozinheiros e doceiras”, vendida em sua padaria, à
Rua dos Ourives, 55.
Outro são os chás de que se dá tipos, preços e pesos: Uxim, His-
son, Pérola e Aljofar. Lembrar, no tempo de D. João, as experiências com
chins, importados, a fim de cultivarem chá no Jardim Botânico e na Ilha
do Governador e, mais tarde, o Visconde de Mauá, em Sapopemba (Deo-
doro).
Os chás estão em um grande anúncio de venda no armazem da Rua
da Alfândega no 5, de toda “a louça vinda de Macau, no navio “Ulises”,
comportando serviços completos para mesa e chá, de porcelana dourada
e esmaltada. Também continua a vender cristais e louça inglesa, por ata-
cado e miúdo, como espelhos, paineis e outros “para ornato de salas” e
“quinquilharias para crianças”.
Anúncio de chá também figura junto a “papéis e guarnições para uso
de salas”.
Outro produto bem anunciado, comparativamente, é o rapé, bastan-
te consumido, pelo que se deduz. Vendia-se de duas qualidades: o do
Príncipe e o da Princesa, este mais barato, por óbvio... Era vendido às
libras. São quatro anúncios, um, repetido. Anúncio diferenciado, de An-
tônio Coelho da Fonseca e Ca., mercador na Rua da Quitanda. Chama a
atenção a firma e o indicativo “mercador”, única vez para ambos os casos,
nessa dezena de periódicos.
Diferente de tudo é a venda de ... um manto de Cavaleiro da Ordem
de Cristo, com bordadura e mais preparos. Em uma loja de fazenda, à Rua
Direita (Primeiro de Março), esquina da do Sabão.
Paralelamente à venda entre particulares e em lojas abertas, havia os
leiloeiros, como Guilherme Lennox que, nesta série, anuncia duas vezes.
No dia 22 de setembro, às 10 horas da manhã,
Fará leilão em sua sala grande na Rua da Alfândega e Candelária, de
uma grande coleção de livros em várias línguas, estampas francesas,

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uma lanterna mágica, e fantasmagoria, alguns aparelhos de chá muito


ricos, um telescópio completo, e feito por Gilbert, oleados para salas
e vários trastes para casa.

Guilherme Lennox apregoa lista bem variada de itens interessantes à


população, sem descartar os livros “em várias línguas”. A entrada destes
em local de censura intelectual é especulada aqui. Viriam nas bagagens de
diplomatas, de particulares... Teriam passado pela fiscalização obrigada?

Livros são mercadoria assaz apetecida e muito, muito anunciada, em


tempos sem censura e nos anteriores. O movimento intelectual alargara-
-se com a abertura de livrarias 11 e de aulas de francês e inglês, por exem-
plo. A quadra examinada, de setembro de 1815, não fez exceção. Todos os
números da Gazeta o registram, indicando as obras à venda.

Na Gazeta, como no Diario do Rio de Janeiro, nascido em 1821, e


outros, muito destaque terão os comercializados – “Livros à venda” –,
como anúncios de novas edições – “Saiu à luz...” – ou seja “Obras publi-
cadas”, o que permitiu levantar lista importantíssima de livreiros do Rio
de Janeiro ademais de locais onde se os transacionaram: lojas de outras
mercadorias ou casas particulares.

Detalhando o que se anunciou, nos Avisos, na última página de cada


Gazeta, só dois estabelecimentos o fizeram: a loja da Gazeta e o livreiro
Manuel Joaquim da Silva Porto. Este foi importantíssimo personagem na
corte, ao tempo dos reinados de D. João e de D. Pedro. Natural da cidade
do Porto, foi livreiro, identificando-se “mercador de livros”, distribuidor
e administrador de jornais, inclusive da própria Gazeta do Rio de Janeiro,
negociante de papel, tesoureiro do Montepio Literário e editor, responsá-
vel por mais de 100 obras publicadas, entre 1822 e 1825, além da edição
de 15 periódicos no mesmo espaço. Literariamente, poeta e tradutor, in-
clusive da Fedra, de Racine. Dados do livreiro e catálogo das obras por
ele editadas, em nosso Silva Porto. 12
11  –  IPANEMA, Marcello e Cybelle de. Subsídios para a história das livrarias. Revista
do Livro. Rio de Janeiro: MEC, a. XI, no 32, pp. 23-31, 1o trim. 1968.
12  –  IPANEMA, Cybelle de; IPANEMA, Marcello de. Silva Porto: livreiro na corte de
D. João, editor na Independência. Rio de Janeiro: Capivara, 2007.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (474):329-348, maio/ago. 2017. 341


Cybelle de Ipanema

A loja da Gazeta tornou-se um balcão de negócios, afora a sede,


mesmo, do jornal. Para ali se traziam anúncios, faziam-se assinaturas
(subscrições), se resgatavam escravos dados como perdidos etc.

No primeiro jornal de nossa série, a loja da Gazeta vende Atlas e


cartas geográficas, enquanto, em outro anúncio, Silva Porto, com loja
sempre no mesmo endereço, Rua da Quitanda, esquina de São Pedro (in-
corporada à Presidente Vargas), apregoa obras de medicina.

No segundo, uma obra jurídica é vendida na loja da Gazeta. No mes-


mo local, terceiro jornal da série, ambas as lojas vendem a mesma obra,
sobre processo orfanológico, e em outro anúncio, na loja da Gazeta acha-
-se a Queda de Napoleão, “ode pindárica ao Exército” (ao estilo do poeta
Píndaro).

No jornal seguinte, a loja da Gazeta é o local de venda da “obra


muito entretida”, Viola de Lereno ou Coleção de várias modinhas e can-
tigas. De Domingos Caldas Barbosa, brasileiro, poeta do século XVIII,
“Lereno” era seu nome árcade. A obra foi, também, editada na Bahia,
por Manuel Antônio da Silva Serva, 13 do primeiro jornal baiano, a Idade
D´Ouro do Brazil, saído de sua tipografia, primeira depois da Impressão
Régia. Serva, amigo de Silva Porto e, com muita probabilidade, o estimu-
lador de sua vinda para o Brasil. Não vendeu o portuense, embora não o
anunciando, o livro editado pelo compatriota?

Ainda a loja da Gazeta é o local da venda de obra naturalmente pro-


curada, dita “mui moderna”: Da febre e da sua curação... (também edita-
da na Bahia, por Silva Serva. Não se sabe se é a edição anunciada).

No número seguinte, três anúncios (o primeiro bem longo) da loja


da Gazeta. São atos legais, vários Alvarás de 1815. Seguem-se um anún-
cio de Declinação do Sol e outro, do Pensador matritense (de Madri,
entenda-se).

13  –  IPANEMA, Marcello de, IPANEMA, Cybelle de. A tipografia na Bahia, documen-
tos sobre suas origens e o empresário Silva Serva. Rio de Janeiro: Inst. de Comunicação
Ipanema, 1977; 2. ed., EDUFBA, 2010.

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Dentre Gazetas

Nos dois jornais a seguir, só a loja da Gazeta anuncia: O filósofo in-


glês ou História de Mr. Cleveland, filho natural de Cromwell, escrita por
ele mesmo, e duas obras sobre seguros.

Destarte, para venda de livros, foram 11 chamadas da loja da Gazeta


contra duas de Silva Porto, uma, no mesmo anúncio da primeira.

O único Aviso do no extraordinário é que na “quarta-feira” haveria


“Gazeta dobrada”.

Senhoras e senhores,

Exaurimos as matérias da coleção completa dos números de setem-


bro de 1815 da Gazeta do Rio de Janeiro. Só nos resta exibir a “cara” com
que ela se apresentava. Diante dos senhores o nº 70, primeiro da série, e o
frontispício da Gazeta Extraordinária, nº 15.

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Cybelle de Ipanema

bndigital.bn.br/hemeroteca-digital/Gazeta do Rio de Janeiro, nº 70, 02.09.1815.

344 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (474):329-348, maio/ago. 2017.


Dentre Gazetas

bndigital.bn.br/hemeroteca-digital/Gazeta do Rio de Janeiro, nº 70, 02.09.1815.

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Cybelle de Ipanema

bndigital.bn.br/hemeroteca-digital/Gazeta Extraordinária do Rio de Janeiro, nº 15, 04.09.1815.

Referências Bibliográficas
BLAKE, Augusto Vitorino Alves Sacramento. Dicionário bibliográfico
brasileiro. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1900, 6º vol., pp. 71-75. Ed. fac-
similar, CFC, 1970.
CABRAL, Alfredo do Vale. Anais da Imprensa Nacional do Rio de Janeiro –
1808-1822. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1881.
CAMARGO, Ana Maria de Almeida; MORAES, Rubens Borba de. Bibliografia
da Impressão Régia do Rio de Janeiro. São Paulo: Edit. da Universidade de São
Paulo: Kosmos, 1993, 2 vol.
CARDOSO, Thereza Maria Fachada Levy. A Gazeta do Rio de Janeiro: subsídios
para a história da cidade (1808-1821). RIHGB, n. 371, pp. 341-436, abr./jun.
1999.
IPANEMA, Cybelle de. D. Pedro I – proclamações, cartas e artigos (confronto
crítico de textos e notas). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1973.
IPANEMA, Cybelle de; IPANEMA, Marcello de. Silva Porto: livreiro na corte
de D. João, editor na Independência. Rio de Janeiro: Capivara, 2007.

346 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (474):329-348, maio/ago. 2017.


Dentre Gazetas

IPANEMA, Marcello de. Legislação de imprensa. Rio de Janeiro: Graf. Edit.


Aurora, 1949, 2 vol. 1º vol., pp. 102-131. Copiado de Coleção da Legislação
Portuguesa... pelo desembargador Antônio Delgado da Silva. Lisboa, 1828, pp.
193-198 e 225-238.
IPANEMA, Marcello de; IPANEMA, Cybelle de. Subsídios para a história das
livrarias. Revista do Livro. Rio de Janeiro: MEC, a. XI, no 32, pp. 23-31, 1º trim.
1968.
IPANEMA, Marcello de; IPANEMA, Cybelle de. A tipografia na Bahia,
documentos sobre suas origens e o empresário Silva Serva. Rio de Janeiro: Inst.
de Comunicação Ipanema, 1977; 2. ed., EDUFBA, 2010.
MEIRELLES, Juliana Gesueli. Imprensa e poder na corte joanina. A Gazeta
do Rio de Janeiro (1808-1821). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional/UNIRIO,
2008.
NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. Napoleão Bonaparte: imaginário e
política em Portugal c. 1808-1810. São Paulo: Alameda, 2008.
SILVA, Maria Beatriz Nizza da. A Gazeta do Rio de Janeiro (1808-1822): cultura
e sociedade. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2007.
Fontes
Gazeta do Rio de Janeiro – setembro de 1815.

Texto apresentado em dezembro/2015. Aprovado para publicação


em maio/2016.

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Memórias do governador Antônio Manuel de Melo Castro
e Mendonça (São Paulo, 1799)

349

III – DOCUMENTOS
DOCUMENTS

Memórias do governador Antônio Manuel de


Melo Castro e Mendonça (São Paulo, 1799)
The Memoirs of Governor Antônio Manuel de Melo
Castro e Mendonça (São Paulo, 1799)
Pablo Oller Mont Serrath1
Resumo: Abstract:
Em 1799, Antônio Manuel de Melo Castro e In 1799, Antônio Manuel de Melo Castro e Men-
Mendonça escreveu cinco memórias com o ob- donça wrote five memoirs with the main objec-
jetivo principal de se defender contra acusações tive of defending himself from accusations made
feitas pelo capitão-mor da Vila de Cunha, José against him by the chief captain of the town of
Gomes de Siqueira e Mota. Endereçadas ao se- Cunha, José Gomes de Siqueira e Mota. Ad-
cretário de Estado da Marinha e Domínios Ul- ressed to Don. Rodrigo de Souza Coutinho, the
tramarinos, D. Rodrigo de Souza Coutinho, as then Secretary of State for Marine Affairs and
memórias do governador e capitão-general da Overseas Domains, the memoirs of the governor
capitania de São Paulo, para além da questão and captain-general of the São Paulo captaincy
que deu azo à sua elaboração – o relacionamen- dealt not only with the question that led him to
to extraconjugal entre José Gomes e Gertrudes write them down, that is, the extramarital re-
Maria, filha do capitão Francisco Xavier Leite lationship between José Gomes and Gertrudes
–, tratam das dificuldades encontradas no exer- Maria, daughter of captain Francisco Xavier
cício da administração colonial, especialmente Leite. He also writes about the difficulties he
na relação com as elites locais, sintetizando a encountered in the exercise of colonial admin-
complexidade e a singularidade da governança istration, especially in dealing with local elites,
portuguesa no ultramar em fins do século XVIII. and summarizes the complexity and uniqueness
As memórias inéditas do governador Melo Cas- of the Portuguese governance overseas in the
tro e Mendonça, cujos originais encontram-se late 18th century. The unpublished memoirs of
no Arquivo Histórico Ultramarino, em Lisboa, Governor Melo Castro and Mendonça, whose
são, aqui, objeto de transcrição, à qual antecede originals are found in the Overseas Historical
breve introdução. Archive in Lisbon, are here transcribed and pre-
ceded by a brief introduction.
Palavras-chave: São Paulo; Colônia; governa- Keywords: Sao Paulo; colony; governors; local
dores; elites locais. elites.

Fato aparentemente pouco importante e de âmbito privado moveu,


em 1799, a elaboração de cinco memórias por Antônio Manuel de Melo
Castro e Mendonça, governador e capitão-general da capitania de São
Paulo, entre 1797 e 1802. O capitão-mor da vila de Cunha, José Gomes
1  –  Pós-doutorando do Programa de Pós-Graduação em História Econômica da Univer-
sidade de São Paulo. E-mail: pablo.montserrath@gmail.com.

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Pablo Oller Mont Serrath

de Siqueira e Mota, tinha um relacionamento amoroso com a filha do


capitão Francisco Xavier Leite, sem o consentimento deste.2 A moça, de
nome Gertrudes Maria, que vivia desde criança na casa de seus avós ma-
ternos, chegou a gerar e a dar à luz um filho de José Gomes. Não bastasse
o escândalo, para a época, de se ter um filho fora do casamento, o capitão-
-mor supostamente difamava a moça ao divulgar o ocorrido a outras pes-
soas e, também, ao recomendar a alguns sujeitos que não se engraçassem
com ela, porque era sua amante. Diante do ocorrido, o pai de Gertrudes
quis tirá-la da casa dos avós e levá-la para viver consigo. José Gomes, a
fim de evitar o rompimento de seus laços com a moça, convenceu-a a fu-
gir e intentou emancipá-la; ela tinha, então, 28 anos de idade.3 Diante de
tudo isso, o capitão Francisco Xavier Leite foi reclamar com o governa-
dor Melo Castro e Mendonça, que, a partir daí, por três ocasiões, chamou
José Gomes em seu gabinete e, após algumas controvérsias, obrigou-o
a assinar um termo segundo o qual ficaria responsável pelo sustento da
moça enquanto ela estivesse num dos recolhimentos da cidade de São
Paulo, onde passaria a viver, a fim de restabelecer, ao menos em parte, a
honra dela e de seus pais. O capitão-mor, a contragosto, assinou o termo,
voltou para Cunha, a vila de sua origem, e, nesse espaço de tempo, elabo-
rou queixas contra o governo de Melo Castro e Mendonça, endereçadas
ao secretário de Estado da Marinha e Domínios Ultramarinos, D. Rodrigo
de Souza Coutinho, e à rainha D. Maria I.4

Na carta enviada a D. Rodrigo de Souza Coutinho, em 23 de abril de


1798, José Gomes reclamava ter sofrido violências do governador Melo
Castro e Mendonça, e que o motor “disto” era “um capitão Francisco Xa-
vier Leite, bem conhecido do [governador anterior] Sr. Bernardo José de
Lorena, que no tempo do seu governo lhe tirou o comando de uma Com-
panhia pela sua má conduta e extraordinários excessos, pelos quais ainda
2  –  Sigo, neste parágrafo, o relato apresentado pelo governador Antônio Manuel de Melo
Castro e Mendonça na “Memória Primeira”, de 1799. Arquivo Histórico Ultramarino, Ad-
ministração Central, Conselho Ultramarino, Brasil – São Paulo (023), Cx. 14, Doc. 701.
3  –  Quem informou a idade de Gertrudes Maria foi o capitão-mor José Gomes de Siquei-
ra e Mota em carta endereçada à rainha D. Maria I, escrita em 23 de abril de 1798. Ibidem.
4 – Cartas de José Gomes de Siqueira e Mota a D. Rodrigo de Souza Coutinho e
D. Maria I. 23 de abril de 1798. Ibidem.

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Memórias do governador Antônio Manuel de Melo Castro
e Mendonça (São Paulo, 1799)

ficou criminoso na justiça”. Francisco Xavier Leite, segundo José Gomes,


era incitado a agir contra o capitão-mor por Antônio José de Macedo, seu
desafeto de longa data, “um novo coronel” da Vila de Cunha, “sargento-
-mor que era das ordenanças da mesma [vila], que calo o como alcançou
esta nomeação por modéstia”. Pedia, enfim, o amparo da “ilustre pessoa”
de D. Rodrigo de Souza Coutinho.5

Na missiva endereçada à rainha D. Maria I, datada, também, de 23


de abril de 1798, o capitão-mor dizia que o governador de São Paulo tinha
o costume de proferir “afrontosos gritos e impropérios” a quem quer que
fosse, tendo sido ele mesmo “injuriado, decomposto e ameaçado publica-
mente”. O caso começara, segundo o capitão-mor, quando Gertrudes Ma-
ria, por vontade própria, quis emancipar-se, e, diante da reação violenta
de seu pai a esse intento, buscou o auxílio de José Gomes, com o intuito
de efetivar a sua pretensão. Em momento algum de seu relato, José Go-
mes explicita seu envolvimento amoroso com a moça. Seguindo a mis-
siva, alegava que o governador mandara prender, dentre outras pessoas,
suas irmãs, na casa das quais Gertrudes Maria refugiara-se, tendo sido
a moça, em seguida, conduzida até a cidade de São Paulo por soldados
de cavalaria auxiliar, com o maior estardalhaço. Afirmava que a ideia de
fazer com que ele custeasse a permanência de Gertrudes no recolhimen-
to partira do ajudante de ordens José Joaquim Gavião, “por querer este
pagar” ao pai da moça, à custa de José Gomes, “o ter-lhe arrendado al-
guns animais”. Segundo seu relato, respondera ao ajudante de ordens que
aceitaria aquela incumbência se ela lhe fosse endereçada por escrito, em
forma de portaria, e que o fato de ter ajudado Gertrudes no processo de
emancipação não o obrigava a assisti-la; ademais, assegurara ser “público
que a moça nem queria ir para o recolhimento e nem se casar”. Diante
dessa resposta, o governador chamou-o a uma sala interior, onde, aos
gritos, disse “que a ordem por escrito que havia de dar havia de ser para
lhe mandar despir a farda e dar-lhe uma baixa” no cargo de capitão-mor.
Passados alguns dias, o governador chamou novamente José Gomes a

5  –  Carta de José Gomes de Siqueira e Mota a D. Rodrigo de Souza Coutinho. 23 de


abril de 1798. Ibidem.

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Pablo Oller Mont Serrath

sua presença e obrigou-o a assinar, sob ameaça de ser preso ou degredado


para Angola, um termo segundo o qual se responsabilizava por Gertrudes
Maria enquanto ela estivesse no recolhimento. José Gomes pedia, enfim,
que “Vossa Majestade” mandasse “riscar” aquele termo e, outrossim, o
livrasse das “subsequentes fúrias daquele general, que parece qual lobo
voraz entre mansas ovelhas”.6 Escritas e enviadas as lamentações e as
acusações, José Gomes abandonou seu posto de capitão-mor e refugiou-
-se na capitania de Minas Gerais, de onde seguiu encaminhando cartas à
administração central.7

Em ofício de 19 de setembro de 1798, D. Rodrigo de Souza Cou-


tinho remeteu ao governador de São Paulo cópia de carta enviada pelo
capitão-mor da vila de Cunha e ordenou que fossem dadas explicações
sobre o conteúdo daquelas queixas. D. Rodrigo destacou em seu ofício
a boa fama que tinham o governador e sua administração aos olhos de
“Vossa Majestade”, lembrando que servir à rainha com distinção era só o
que se esperava de Melo Castro e Mendonça, sendo sobrinho de “um tão
virtuoso ministro como o Sr. Martinho de Melo”, importante secretário de
Estado durante os reinados de D. José e de D. Maria I.8 Em 12 de feverei-
ro do ano seguinte, Melo Castro e Mendonça informou a D. Rodrigo ter
enviado suas respostas da forma mais pormenorizada possível, conforme
exigia a gravidade da matéria, e, para tanto, tinha elaborado diferentes
memórias sobre o caso, às quais anexara inúmeros documentos compro-
batórios.9

6  –  Carta de José Gomes de Siqueira e Mota à rainha D. Maria I. 23 de abril de 1798.


Ibidem.
7  –  Carta de José Gomes de Siqueira e Mota a D. Rodrigo de Souza Coutinho. 28 de
setembro de 1798; e Carta de José Gomes de Siqueira e Mota à rainha D. Maria I. 1º de
outubro de 1798. Arquivo Histórico Ultramarino, Administração Central, Conselho Ultra-
marino, Brasil – Minas Gerais (011), cx. 145, doc. 52.
8  –  Ofício de D. Rodrigo de Souza Coutinho a Antônio Manuel de Melo Castro e Men-
donça. 19 de setembro de 1798. Arquivo Histórico Ultramarino, Administração Central,
Conselho Ultramarino, Brasil – Códices, códice 424, fls. 149-149v.
9  –  Carta de Antônio Manuel de Melo Castro e Mendonça a D. Rodrigo de Souza Cou-
tinho. 12 de fevereiro de 1799. Arquivo Histórico Ultramarino, Administração Central,
Conselho Ultramarino, Brasil – São Paulo (023), cx. 14, doc 701. Na transcrição a seguir
não estão inclusos os documentos comprobatórios anexos ao original manuscrito.

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Memórias do governador Antônio Manuel de Melo Castro
e Mendonça (São Paulo, 1799)

Em 19 de dezembro de 1800, provisão do Conselho Ultramarino


anunciava que, tendo por base as memórias de Melo Castro e Mendonça,
o príncipe regente D. João mandava dar baixa, do posto de capitão-mor da
Vila de Cunha, a José Gomes de Siqueira e Mota, “um monstro de defei-
tos e culpas”, acusado de “prostituir” a filha do capitão Francisco Xavier
Leite, de usar de “sinistros meios” para ser nomeado capitão-mor e de
desertar, “sem respeito” ao Real Serviço.10 Em ofício de 22 de setembro
de 1801, Melo Castro e Mendonça deu ordem aos oficiais da Câmara da
Vila de Cunha para cumprir o determinado pelo príncipe regente, regis-
trando a baixa de José Gomes, e, em 20 de julho do ano seguinte, mandou
que se procedesse à eleição de três pessoas aptas a concorrerem ao posto
de capitão-mor, agora vago.11 Como em um novo governo as possibilida-
des eram sempre outras, José Gomes aproximou-se do sucessor de Melo
Castro e Mendonça, Antônio José da Franca e Horta. O novo governador
e capitão-general bem que tentou destacar ao príncipe regente as qualida-
des do outrora capitão-mor da Vila de Cunha;12 pelas notícias que temos,
sem sucesso, já que D. João não recuou da decisão anterior, contrária a
José Gomes.13

10  –  ‘Provisão do Conselho Ultramarino sobre o General mandar dar Baixa ao capitão-
-mor da Vila de Cunha José Gomes de Siqueira Mota’. Documentos Interessantes para
a História e Costumes de São Paulo. São Paulo: Arquivo do Estado de São Paulo, 1967,
vol. 89, pp. 230-231.
11  –  Cf. ‘Para a Câmara da Vila de Cunha registrar a baixa do capitão-mor José Gomes
de Siqueira e Mota’. 22 de setembro de 1801, e ‘Para a Câmara da Vila de Cunha proceder
eleição de capitão-mor’. 20 de julho de 1802. Documentos Interessantes para a História
e Costumes de São Paulo. São Paulo: Arquivo do Estado de São Paulo, 1980, vol. 93, pp.
24 e 80.
12  –  Cf. ‘Carta do governador e capitão general da capitania de São Paulo, Antônio José
da Franca e Horta, ao príncipe regente [D. João], dando seu parecer favorável a respeito
da readmissão de José Gomes de Siqueira, que tivera baixa de seu posto de capitão-mor da
Vila de Cunha’. 14 de dezembro de 1804. Arquivo Histórico Ultramarino, Administração
Central, Conselho Ultramarino, Brasil – São Paulo (023), cx. 24, doc. 1095.
13  –  Cf. ‘Requerimento de José Gomes de Sequeira e Mota [...]’. 13 de fevereiro de
1805, e ‘Carta do governador e capitão-general da capitania de São Paulo, Antônio José
da Franca e Horta’. 26 de abril de 1805. Arquivo Histórico Ultramarino, Administração
Central, Conselho Ultramarino, Brasil – São Paulo – Mendes Gouveia (023-01), cx. 57,
doc. 4303 e 4332.

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Pablo Oller Mont Serrath

As Memórias de Melo Castro e Mendonça


Antônio Manuel de Melo Castro e Mendonça, ao longo de seu go-
verno na capitania de São Paulo, escreveu memórias em, ao menos, mais
três diferentes ocasiões: em 1798, “Memória dos objectos, que de recom-
mendação de Sua Magestade, e por utilidade pública devem promover
os juiz e vereadores da Câmara desta cidade”, endereçada às câmaras
da capitania de São Paulo;14 em 1800, “Memória Econômico-Política da
Capitania de S. Paulo”,15 endereçada a D. Rodrigo de Souza Coutinho;
em 1802, “Memória sobre os objetos mais interessantes da Capitania de
S. Paulo, entregue ao Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor Antonio José
da Franca e Horta”,16 endereçada ao governador que o sucedeu na admi-
nistração da capitania. Na memória de 1798, menos abrangente do que
as outras, Melo Castro e Mendonça centrou suas preocupações em re-
comendar às câmaras de São Paulo a adoção de mudanças no âmbito da
agricultura, por meio da adoção de novas técnicas e do cultivo de novos
gêneros. As memórias de 1800 e de 1802 tratam de assuntos relaciona-
dos também às necessidades de estímulo e desenvolvimento agrícola, e,
ademais, ao incremento do comércio, ao aumento da arrecadação régia, à
construção de caminhos, à defesa das fronteiras, às mudanças na organi-
zação militar, etc.

As memórias de 1799 – inéditas e objeto da transcrição a seguir –


foram elaboradas com o intuito de defender o governo de Melo Castro e
Mendonça contra as acusações feitas pelo capitão-mor da vila de Cunha.
Não obstante, mais do que apresentar o envolvimento entre José Gomes
e Gertrudes Maria, filha do capitão Xavier Leite, o governador entrou em
pormenores das dificuldades encontradas no exercício da administração
da capitania de São Paulo, especialmente na relação com as elites locais.
Discorreu sobre o uso de influências de parentes, integrantes dos mais
variados cargos da capitania, de subornos e de troca de favores para se
conseguir nomeações e confirmações em importantes funções na admi-
14 – Registo Geral da Câmara Municipal de S. Paulo (1796-1803). São Paulo: Typogra-
phia Piratininga, 1921, vol. 12, pp. 258-260.
15 – Anais do Museu Paulista. São Paulo: Museu Paulista, 1961, tomo 15, pp. 81-247.
16 – Anais do Museu Paulista. São Paulo: Museu Paulista, 1964, tomo 18, pp. 227-268.

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Memórias do governador Antônio Manuel de Melo Castro
e Mendonça (São Paulo, 1799)

nistração de São Paulo. A venalidade, conforme relatado pelo governador


na “Memória Terceira”, grassava de tal forma no Brasil que, quando se
encontrava ainda em Lisboa, em sua casa, lhe disse certo capitão: “Bem
está o brasileiro, quando lhe val o seu dinheiro.” Tratou, ainda, de prejuí-
zos na arrecadação régia, de cálculos equivocados de côngruas, do trato
com funcionários subalternos, da relação entre familiares do governador
e a administração da capitania, e, finalmente, do método por si empre-
gado ao lidar com o povo e, principalmente, com a elite paulista. Tendo
como palco a capitania de São Paulo, as memória de 1799, para além das
peripécias, dignas de uma novela, do caso amoroso entre José Gomes e
Gertrudes Maria, sintetizam a complexidade e a singularidade da admi-
nistração colonial portuguesa em fins do século XVIII.

Comentários paleográficos
O documento manuscrito autógrafo de autoria do governador e capi-
tão-general da capitania de São Paulo Antônio Manuel de Melo Castro e
Mendonça contém, no total, 31 folhas não numeradas, é datado de 1799,
foi escrito na língua portuguesa e é descritivo em forma de cinco memó-
rias.

O texto apresenta divisão de parágrafos, espaço interlinear regular e


separação entre as palavras. A escrita do manuscrito é moderna, cursiva, e
apresenta letras em formas maiúsculas e minúsculas, com módulo médio
e ângulo destrógrado.

Em algumas páginas, observa-se o uso de reclama ou chamadeira,


que é uma forma de indicar a sequência de um texto escrevendo a pri-
meira palavra da próxima página no fim da página atual; as ocorrências
apresentadas no documento foram suprimidas na transcrição. A quebra de
palavras de uma linha para outra é indicada por hífen (-) em quase todos
os casos; aqui, foram igualmente suprimidas.

As pontuações utilizadas são ponto, vírgula, ponto e vírgula, dois


pontos, sinal de igual (=). Há, ainda, sinal de parêntese em algumas
circunstâncias. Na transcrição, esses sinais estão dispostos exatamente

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (474):349-392, maio/ago. 2017. 355


Pablo Oller Mont Serrath

como se encontram no manuscrito. Nela, também, as folhas foram nume-


radas página por página, e estão entre colchetes e grifadas. O texto quase
não apresenta elementos marginais ou interlineares; quando ocorreram,
na transcrição, aparecem entre chevrons < >. Em poucos momentos a
leitura é comprometida por algum equívoco na grafia do original; quando
isso ocorreu, o [sic], entre colchetes e grifado, foi acrescentado. Algumas
letras que faltam no manuscrito foram adicionadas e aparecem entre col-
chetes [ ]. A assinatura do governador Melo Castro e Mendonça, achada
no fim de cada memória, foi transcrita com sublinhado.

O autor utiliza-se de inúmeras abreviações ao longo do texto. Em-


pregamos como referência ao significado delas a obra de Maria Helena
Ochi Flexor.17 As normas paleográficas fixadas durante o II Encontro Na-
cional de Normatização Paleográfica e de Ensino de Paleografia determi-
nam que as abreviações devem ser desenvolvidas com os acréscimos em
grifo; entretanto, julgamos que o grifo prejudicava a fluência da leitura do
texto, de modo que desenvolvemos as abreviações sem grifá-las.

Algumas letras, especialmente as que iniciam parágrafos, aparecem


com jambagem bem desenvolvida. Verificamos, ainda, o uso de pingo no
“i”, “s” caudado quando há duplicação da letra, outras letras duplicadas
como o “ll” e o “ff”, uso de “c” cedilhado e de acento indicativo de nasa-
lização em palavras terminadas em “ão”. A pontuação e a grafia originais
foram mantidas. As letras maiúsculas e minúsculas seguem, igualmente,
como aparecem no manuscrito.

Transcrição das cinco memórias elaboradas por Antônio Manuel de


Melo Castro e Mendonça, governador e capitão-general da capitania de
São Paulo (1799).18

[fl. 1]

17  –  Maria Helena Ochi Flexor. Abreviaturas: manuscritos dos séculos XVI ao XIX. São
Paulo: Editora UNESP, 1990, 2ª edição (1ª edição, 1979).
18  –  Arquivo Histórico Ultramarino, Administração Central, Conselho Ultramarino, São
Paulo – Avulsos (023), Cx. 14, Doc. 701.

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Memórias do governador Antônio Manuel de Melo Castro
e Mendonça (São Paulo, 1799)

Memória 1ª, cujo objecto hé responder ao 1º Artigo do Officio de


19 de Settembro de 1798, em que Sua Magestade he servida mandar-me
informar sobre o deduzido na Conta de Joze Gomes de Siqueira, e Motta,
Capitão Mor da Vila de Cunha d’esta Capitania escripta na mesma Vila a
23 d’ Abril de 1798.

[fl. 2]

Illustríssimo e Excelentíssimo Senhor

Para responder com methodo, e clareza á queixa, que contra mim


pôz na Real Prezença de Sua Magestade o Capitão Mor da Vila de Cunha
desta Capitania Joze Gomes de Siqueira Motta, qu[e]ixa a que deo cauza
huma filha do Capitão Francisco Xavier Leite da mesma Vila por nome
Gertrudes Maria, he precizo referir antecipadamente as differentes alter-
nativas de amizade, e odio, que tem posto já em conflicto, já em socego
estes dois homens, sendo sempre motor de toda a dezordem o Capitão
Mor denunciante pelo seu caracter soberbo, dispotico, arrogante, e tumul-
tuozo, como farei ver nas Memorias 2ª., e 3ª., sem dizer huma so palavra,
que não esteja judicialmente provada.

A desordenada ambição, e dezejo de governar, que sempre dominou


o Coração do denunciante Joze Gomes de Siqueira, foi cauza não só de
se fazerem as injustiças, e incurialidades, que na 2ª. Memoria exporei
para o fim de ser proposto, nomeado, e confirmado no emprego de Capi-
tão Mor, que indignamente exerce; mas tambem das primeiras desordens,
que n’aquella Vila se originarão com o Capitão Francisco Xavier Leite,
pai da moça, de que se tracta: porque não podendo soffrer, que ninguem
tivesse commando na mesma Vila, era por isso mesmo inimigo decla-
rado [fl. 2vº] do dito Capitão Xavier, que pelo ser de tropa de Cavallaria
auxiliar commandava a sua Companhia, que rezidia n’aquelle destricto, e
de que tinha sido commandante o mesmo Capitão Mor antes d’esta pro-
moção. Chegou a tal ponto odio, e má vontade, que lhe professava, que
recebendo o mesmo Capitão Xavier ordem do meu Antecessor para pren-
der hum soldado de Ordenanças, chamado Balthazar Rodriguez França,

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Pablo Oller Mont Serrath

(de quem faz menção o denunciante na sua conta) e tendo o prezo em sua
caza o tempo, que lhe foi precizo para apromptar a conducção d’elle para
a Cidade, não perdeo esta occazião o Capitão Mor, e induzindo o mesmo
soldado por huma parte, e sobornando por outra o Juiz, como sempre
costuma, e eu o farei ver no decurso das outras Memorias, conseguio
querellar-se do mesmo Capitão, e ser pronunciado criminozo com o fin-
gido pretexto de ter feito carcere privado em sua Caza. Este crime ainda
que falsamente imputado, e as deligências, que o mesmo Capitão Mor
exactamente fazia, constituindo-se auxiliador da Justiça, para o prender,
fizerão com que elle se subtrahisse áquella violencia, abandonando o
commando da sua Companhia, e fugindo; tempo em que achando vago o
posto pela inculpavel dezerção do mesmo Capitão, foi com effeito provi-
do n’elle pelo meu An[te]cessor Manuel Correa de Bitencourt, que Sua
Magestade não quis confirmar por haverem incoherencias formaes n’este
procedimento. Mas logo, que o reputado criminozo foi seguro pela mes-
ma Senhora appareceo, proceguio a cauza, e mostrou por huma sentença
obtida na Rellação do Estado que era nullo, falso, irrisorio, e de nenhum
fundamento o crime, que se lhe [fl. 3] arguia, sendo por tanto restituido
á sua caza, e havendo as custas do querellante (ou para melhor dizer) do
mesmo Capitão Mor que era quem figurava no negocio com o nome do
tal soldado Balthazar Rodriguez, acima mencionado.

Eis aqui o crime referido na carta, que escreve o denunciante á Vossa


Excelência pelo qual pertende pôr de má fé o pai da Rapariga, que tão
aleivozamente prostituio; crime que está tão longe de o ser que se a alg[u]
em serve de desdoiro he ao mesmo Capitão Mor e a quem proteger as
suas invectivas, sendo mais huma prova do seu indigno, e pessimo carac-
ter. Não pararão aqui as intrigas por que não perdendo de vista o Capitão
Mor toda a occazião, em que pudesse directa, ou indirectamente affligir
o Capitão Xavier, cooperou, com a influencia, que sempre teve, e quiz
ter nas Justiças, para que ficasse criminozo hum filho do mesmo Capitão
Xavier, o qual vendo-se de tal forma perturbado, e que não tinha socego,
nem quietação, e que mal era o tempo para Litigios, cortou per si, e pro-
curou captar a amizade do mesmo Capitão Mor seu inimigo.

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Memórias do governador Antônio Manuel de Melo Castro
e Mendonça (São Paulo, 1799)

Este lance d’hum homem Honrado, e que parece vinha por termo
as suas antigas afflicçoens, não foi se não origem de novas disgraças
d’aquella família: por que congraçando-se intimamente o Capitão Mor
com ella, e tendo por isso toda a franqueza, e liberdade na sua Caza, e
nas dos parentes, servio-se d’este pretexto o mais sagrado para faltar á
fé, á decencia, e a amizade desenquietando, e deshonestando á filha do
mesmo Capitão Xavier, que assistia desde criança em Caza de seu Avô
materno Diogo Lucas da Cunha. Perto de trez annos manteve o Capitão
Mor esta [fl. 3vº] illicita, alleivoza, e por todas as Leys attroz communica-
ção, sem que nem o pai da rapariga o soubesse, nem o Avô o suspeitasse,
por viverem na boa fé. D’aqui rezultou conceber a Rapariga, e parir hum
filho, que foi exposto na mesma caza do Capitão Mor, e foi baptizado
com o nome de Joaquim, que depois de alguns mezes o Capitão Mor foi
introduzindo na Caza do Bisavô dito Diogo Lucas, onde rezidia a mesma
Rapariga filha do Capitão Xavier, e Mãe do referido exposto; que ainda
hoje se acha na mesma caza.

Bastava que as coizas estivessem levadas a este ponto de devassidão


para mais tarde, ou mais cedo chegarem á noticia do Capitão Xavier,
pai da Rapariga, ainda quando o mesmo Capitão Mor fizesse o possivel
para occulttar o que entre elle, e Ella tinha havido; mas pelo contrario
esquecido de todos os sentimentos de honra de humanidade, e de justiça
o mesmo complice, o mesmo delinquente foi quem a diffamou, jactando-
-se em todas as partes, aonde chegava do seu criminozo intertenimento
com ella, como he publico e notoriamente sabido, recommendando muito
a alguns subjeitos, que por ali passavão, e se demoravão na terra não
intentassem nada d’ella, por que era sua amazia. Espalhada esta fama,
como ordinariamente acontese, chegou a todos sendo o pai o ultimo, o
qual asperamente a reprehendeo, e castigou como Ella merecia, e elle era
obrigado. E intentando conduzil-la para sua caza para d’esta sorte reme-
diar, senão a sua honra, ao menos a subsequente prostituição, a qual [fl.
4] era infalivel rezidindo ella no mesmo lugar, que tinha sido testemunha
dos seus desvarios, e entregue á froxa cautella de seu Avô summamente
decrepito, e que por tal já hé falescido, foi então, que se pôz o negocio

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Pablo Oller Mont Serrath

no estado de commetter o Capitão Mor o insulto, que deo occazião a ser


chamado, e reprehendido por mim, donde rezultou a queixa, que pôz na
Real Prezença de Sua Magestade.

Vendo pois o Capitão Mor, que se acabava por este modo toda a
esperança de continuar no pessimo, e injuriozo tracto, em que vivia com
a mesma moça com publica deshonra de seus pais, e mais parentes, pro-
curou estorvar as ajustadas medidas, que tinha tomado seu pai de a levar
para sua companhia. Para este fim hé de suppôr, que a persuadisse a fu-
gir; pois he certo, e provado, que elle deo ordem ao Alferes da Orde-
nança Antonio Maximo, Affilhado da mesma, e assistente na sua caza (o
qual tambem vem referido na queixa) para a accompanhar, quando ella
sahisse, como o mesmo Alferes declarou publicamente na minha Salla
d’Audiencia diante do Capitão Mor; o qual Alferes de facto a accompa-
nhou, para Caza de Balthazar Rodriguez (tambem referido) e que he o
mesmo soldado d’Ordenança, Compadre do Capitão Mor, que induzido
por elle foi parte no pertendido crime de carcere privado, que se imputou
ao Capitão Xavier, como ja disse.

Este soldado já instruido pelo Capitão Mor tanto, que recebeo a ra-
pariga a levou por alguns lugares menos frequentados e lh’a [fl. 4vº] foi
entregar ao Caminho, onde elle a esperava para a conduzir para sua caza.
Foi com effeito para caza do Capitão Mor, e ahi rezidiu fechada em hum
quarto trez dias, sem que a mulher d’elle o presentisse; mas conhecen-
do, que não lhe era possivel conserval-la sempre n’estas circunstancias,
levou-a para caza d’hum parente seu o Goarda Mor Pedro dos Santos
Souza, de cuja caza publicamente a conduzia pelo meio da Vila para a
sua Chácra, quando lhe parecia, e advertindo n’este escandalo o mesmo
Goarda Mor procurou eximir-se de tal hospitalidade, vendo-se então o
Capitão Mor obrigado a conduzil-la finalmente para caza de suas Irmans,
onde se achou, quando á minha ordem foi procurada.

Neste tempo, que a moça tinha fugido, ou (faltando com termos pro-
prios) tinha sido raptada he, que o Capitão Mor a quiz fazer emancipar,
e não querendo o Juiz dos Orphãos admittil-la sem consentimento dos

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Memórias do governador Antônio Manuel de Melo Castro
e Mendonça (São Paulo, 1799)

Pais, elle induzio ao Juiz Ordinario, que com effeito condescendeo com
a sua vontade, e sem compettência, nem Jurisdicção a emancipou. Eis-
-a-qui a emancipação, que elle diz na Conta tinha remettido por via do
meu secretario para eu a fazer executar. Por huma parte a incurialidade
d’este procedimento, e por outra huma justificação de todos estes factos,
que me apprezentou o pai da Rapariga o dito Capitão Xavier, os quaes
mandados examinar achei, que todos erão verdadeiros me obrigou a que
desse a este respeito a mais prompta [fl. 5] providencia, procurando, que o
Capitão Mor resarcisse d’algum modo o credito da Rapariga, mettendo-a
n’hum dos recolhimentos d’esta Cidade, pois d’este modo evitava ella a
indignação de seus Pais, e se acautelava o seu procedimento para o futuro.

Não quiz o Capitão Mor annuir ás minhas insinuaçoens, incitado por


varias pessoas, de que farei menção na Memória 5ª., sendo huma d’ellas o
Secretario do meu Governo; e todos os seus requerimentos consistião, em
que os deixasse litigar pelos meios ordinarios da justiça, bem persuadido,
de que com os seus costumados sobornos, faria quanto quizesse, ficando
reduzida aquella Moça a ser sua concubina com infamia propria, e des-
lustre de seus parentes, sendo já uzeiro, e vizeiro a practicar semilhantes
desaforos, como demonstarei na Memoria 3ª.

N’este tempo fiz vir á minha prezença a Rapariga mandando que


viesse accompanhada d’huma Senhora de probidade, e desculpando-se
deste trabalho as Irmans do Capitão Mor, em cuja caza estavão, o que pro-
va que ellas não forão prezas, como elle erradamente assevera (e quando
o fossem não passavão por inconveniente que não merecesse quem guar-
da em sua caza huma filha furtada a seus pais, para deshonestos fins) foi
então incumbida esta conducção a huma Senhora Cazada, que vinha a seu
negocio em Companhia de seu Marido; sendo, como he, falço o dizer o
Capitão Mor que lhe derão dinheiro para este fim, e bestas para a [fl. 5vº]
conduzirem; pois se hé certo, como elle mesmo affirma, que vinha a seu
negócio, isso mesmo prova, que havia de ter as bestas necessarias para o
seu transporte.

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Pablo Oller Mont Serrath

Veio pois a dita Moça a esta Cidade na Companhia de seu Irmão,


da dita mulher, e d’hum Ajudante encarregado de dar conta d’ella; sendo
precizo acrescentar a esta commitiva mais dois soldados de Cavallaria
Auxiliar pedidos pelo dito Ajudante, por lhe participarem n’aquella Vila,
que havião ordens do Capitão Mor para lhe tirarem a Rapariga das mãos
no Caminho, como o mesmo Ajudante declarou, e chegada que foi á Ci-
dade a mandei depozitar na Caza do Coronel Jozé Arouche de Tolledo,
como diz o dito Capitão Mor na sua conta, onde se conservou por minha
ordem até entrar no recolhimento.

Hé certo, que vendo o pouco cazo, que o Capitão Mor fazia das mi-
nhas instancias, querendo sempre illudir-me com disculpas simuladas já
dizendo, que o seu negócio era na justiça, já que não cumpria ordens
vocaes; propondo-se zombar das minhas determinaçoens, que só tinhão
por objecto a conservação da honestidade, e honra das familias, primeiro
movel dos meus disvellos, e dos meus trabalhos; pois queria ver se por
huma vez se acabavão taes dispotismos tão uzuaes, n’esta Capitania, com
effeito o fiz chamar para huma salla interior, e lhe disse bastantemente
irado, que a ordem que lhe havia de dar por [fl. 6] escripto, era para se
lhe despir a farda, e dar-se lhe baixa por indigno do lugar, que occupava:
reprehensão bem merecida á vista de tão criminozo, e insolente procedi-
mento, e que foi dada com mais moderação, do que pedia o cazo; porque
sendo particular, como foi, não tinha equiponderancia com os defeitos
publicos, e notorios, de que estava convencido, e elle mesmo os não ne-
gava nem podia negar.

Quanto ao dizer, que estavão mais pessoas prezentes a esta reprehen-


ção falta á verdade, assim como falta em tudo o mais, que se não cohones-
ta com a minha resposta; e do seu mesmo ditto se prova a minha asserção;
porque confessa que eu o levei para huma salla interior para o reprehen-
der, logo he certo, que n’huma sala interior do Palacio da minha reziden-
cia não estão, nem podem estar pessoas que nunca passão da primeira
salla, e que ali vem a seus requerimentos: alem do que se o levei para o
reprehender particularmente, como o fiz eu na salla interior estando pre-
zentes mais pessoas? E se foi publicamente porque o não fiz na salla de

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Memórias do governador Antônio Manuel de Melo Castro
e Mendonça (São Paulo, 1799)

fora? Bem se vê que aqui há implicancia, e falta de veracidade; o que eu


noto somente de passagem; pois ainda concedendo que foi reprehendido
em publico, tenho a meu favor a subsistente, e bem fundada razão appon-
tada no paragrapho antecedente; que era na verdade, o que exigia hum tão
indigno procedimento. Mas sobre tudo o que he bem digno de se notar he
o nenhum effeito que esta correcção produzio na inobediencia, rebeldia,
e [fl. 6vº] indocilidade do denunciante, que continuou na mesma obstina-
ção, em que esteve ate esse tempo: alem do que da Copia Nº. 1 se ve a
reprehensão que a sua caza lhe mandou dar a Camara da mesma Vila em
7 de Janeiro de 1797, a qual mandou lançar nos Livros das suas Vereanças
para sempre constar; reprehensão, que sendo dada por hum Escrivão, e de
que se fez, e Lavrou hum monumento publico, he muito mais aggravente,
e sensivel do que a minha e como se não queixou então d’este procedi-
mento a Sua Magestade, fica claro que não foi a reprehensão, que lhe dei
quem o obriga agora a manifestar a sua offensa, mas sim outras occultas
intelligencias, e talvez o dezejo de macular com os seus sequazes a minha
honra na prezença de Sua Magestade.

A conhecida repulsa, que fazia as minhas persuazoens, que só diri-


gião a concluir d’hum modo amigavel huma questão odioza ás Leys de
Sua Magestade, á honra, e honestidade das familias, sobre tudo ao lugar,
que accupava aquelle Capitão Mor na regencia, e commando dos povos
do seu destricto, me deliberou a intentar assignasse hum termo, em que
se obrigasse a assistir no recolhimento com as despezas, que ali fizesse
aquella disgraçada moça, no qual tambem devia assignar (como depois
assignou) o pai d’ella dezestindo ao mesmo tempo de toda, e qualquer
acção judicial, e contencioza, que para o futuro houvesse de pertender
contra o mesmo Capitão Mor, pelos crimes de Defloração, e aleivozia
com que profanou a amizade, que com elle contrahira. Foi com effeito
chamado, e meio perplexo, e indecizo assignou o termo, que vai na Copia
Nº. 2, e isto por que os seus [fl. 7] partidistas lhe tinhão ditto não assig-
nasse por principio algum; sendo então demovido a executar, o que eu lhe
ordenava, por huma ulterior insinuação do secretario do meu Governo,

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Pablo Oller Mont Serrath

como expoem a Sua Magestade o denunciante, com o pretexto de ser


nullo todo este procedimento.

N’este estado se achavão os negocios, quando me pedio licença para


hir a Cunha, Vila da sua rezidencia, e commando, e que logo depois vol-
tava, e concedida ella se auzentou para lá, em que dirigio a conta a Sua
Magestade, que já levava feita d’esta Cidade. Mas tardando muito em dar
complemento á palavra, que deo de voltar, foi mandado vir outra vez, e
para que não fingisse não ter recebido a ordem, foi-lhe intimada, e entre-
gue pelo Coronel Antonio Joze de Macedo, e sahindo da mesma Vila com
o titulo de voltar á Cidade, deichou-se ficar na Vila de Guarátinguetá,
donde deo huma fingida parte de doente, pedindo ao mesmo tempo ao
Ajudante d’Ordens, a quem a dirigio lhe participasse se o chamamento,
que se lhe participava era para coiza, que elle lá mesmo pudesse executar.
Mas sem esperar esta resposta, sabendo se punhão guardas nos limites da
Capitania, e ignorando o fim (que era para obviarem a sahida do Alferes
natural de Minas chamado Joaquim Pereira d’Albuquerque, que em Tau-
baté tinha escapado das guardas, que o tinhão em custodia, por não haver
cadea, nem prizão n’esta Vila) montou a cavallo, e foi accommetter as
guardas, que guarneciam a passagem da Vila de Cunha para a de Parati,
destricto do Rio de Janeiro, e como o Ajudante Manoel Joaquim [fl. 7vº]
de Mattos encarregado da deligencia o não deixasse passar, e vendo-se
na percizão de evitar a pertinacia, com que intentava proseguir no seu
projecto, disse-lhe que sem ordem minha o não podia deixar transitar
para outra capitania. Neste tempo retrocedeo, e foi accommetter outro
passo, que lhe não foi difficultozo vencer por pouco acautelado, e por elle
se auzentou para Minas; sem que a isso fosse obrigado, e constrangido;
por quanto as ordens que a esse respeito se tinham dirigido ao Coronel
Macedo só se encaminhavão a que observasse todos os movimentos que
fazia o Capitão Mor sem com tudo proceder contra elle, se não quando se
conhecesse, que directamente infringia o Direito de terceiro, ou violava
as Leys de Sua Magestade, como consta da Copia Nº. 3 da ordem, que foi
expedida em conseqüência da noticia, que tinha deixado n’esta Capital,
de que se hia auzentar para fora da Capitania, como os seus socios lhe

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Memórias do governador Antônio Manuel de Melo Castro
e Mendonça (São Paulo, 1799)

havião aconselhado persuadindo-o ao mesmo tempo pozesse este facto na


Prezença de Sua Magestade, pensando que eu não seria ouvido a produzir
sobre elle as minhas razoens.

Logo que tive noticia da sua dezerção mandei entrar a mesma rapa-
riga no Recolhimento de Santa Tereza d’esta Cidade, onde actualmente
existe, assistida por seu pai, visto, que com a fuga do delinquente ficou
frustrada a minha deligência, e offendida a equidade, com que me tinha
comportado, sem usar de meios violentos, como elle quer fingir; pois [fl.
8] que então a querer practical-los não tinha mais do que mandal-lo pren-
der, o que com effeito nem cheguei a intentar. Nem devia esperar que a
Moça tivesse vocação para ir para huma Caza de mulheres seculares, a
onde existindo as outras para se educarem, aquella só hia para se corrigir,
e emendar; e alem disto hé outra vez falço dizer se que a este tão justo, e
santo dezignio se oppoz o Bispo, o qual (não sei se por condescendencia
meramente politica) immediatamente annuio a minha reprezentação.

Tenho narrado fielmente a Vossa Excelência todo o accontecimento


falçamente expendido na Conta, que aquelle Capitão Mor pôz na Prezença
de Sua Magestade, tendo de mais a mais de asseverar a Vossa Excelência,
que eu não fui obrigado, convencido, ou inclinado por nenhum respeito
humano, ou qualquer outra particular relação a proceder d’esta sorte com
este homem; mas sim unicamente animado d’aquelle fervor, zello, desin-
teresse, e patriotismo, com que me proponho destinguir no Real serviço
da minha Soberania, promovendo do possivel modo o socego, e tranqui-
lidade dos povos, fazendo-lhes respeitar as santas, augustas Leys, por que
nos regemos, e procurando por todos os meios manter entre elles a justiça,
a paz, e a boa ordem. He por tanto, Excelentíssimo Senhor falcissima
a proposição, que sustenta o denunciante, affirmando, que persu[a]dido
pelo Ajudante d’Ordens Joze Joaquim da Costa Gavião, he que eu tinha
procedido contra elle, maculando o bem conhecido credito, e assignallada
reputação d’hum Official honrado, que no serviço de Sua Magestade tem
dado as maiores [fl. 8vº] provas da sua inteireza, e desinteresse, como
he publico, e notorio, e eu farei ver a Vossa Excelência tratando d’outro
assumpto. Quanto mais que a expressão de que se serve o mesmo denun-

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Pablo Oller Mont Serrath

ciante, dizendo que o Capitão Xavier tinha arrendado alguns animaes ao


dito Ajudante d’Ordens Gavião na lingoagem da terra quer dizer ensinar
cavallos, coiza de nenhuma entidade, e de que os mesmos que os ensinão
nunca costumão ser pagos, porque he maior a vantagem, que lhes rezulta
de se servirem d’elles, do que o pequeno detrimento de os sustentar, e de
lhes dar algumas Liçoens.

Tudo isto bem ponderado, creio que fará conhecer a Vossa Excelên-
cia qual he o caracter do denunciante, o que não obstante com mais exac-
ção se manifestará pelo contheudo na 2ª., e 3ª. Memoria, que servirão de
satisfazer, ao que Vossa Excelência n’este artigo me ordena.

Eu affirmo a Vossa Excelência, que todo o deduzido n’esta minha


resposta he a mesmissima verdade; verdade, que eu dezejaria, que Vos-
sa Excelência soubesse por outras vias, para que não parecesse que eu
fallava com exaggeração em huma cauza, em que tambem sou parte; mas
huma parte, que sente menos perder a vida do que faltar a verdade na
prezença da Sua Soberania. Por tanto supplico a Vossa Excelência, que
mandando-se informar d’este negocio, e do mais, que faz objecto das
Memorias que accompanhão esta, queira Vossa Excelência achando-as
verdadeiras, como são, reprezentar a Sua Magestade o muito, que con-
vem que a mesma Senhora mande castigar aquelle Capitão Mor [fl. 9]
fazendo-lhe cumprir o termo, que assignou, e de que elle quer ser ab-
solvido; e isto, Excelentíssimo Senhor, para manter o credito, e reputa-
ção d’hum General, de quem Sua Magestade se digna confiar o Governo
d’huma Capitania, sendo tão conhecidas, e provadas a rectidão, e justiça,
com que procedi, em consequencia dos seus crimes, e attentados tão pu-
blicos, e manifestos; e ainda mais por haver tido o desacordo de mentir
na Prezença de Sua Magestade, coiza, que as Leys da mesma Senhora
rigorozamente punem. Alem do que sendo elle, como foi, sinistra, e cavi-
llozamente proposto para o emprego de Capitão Mor contra as formaes, e
expressas ordens de Sua Magestade, como prova na 2ª. Memoria: e sendo
outro-sim hum perturbador do socego publico, e da tranquilidade dos po-
vos d’aquelle destricto, como faço ver na Memoria 3ª.: e sobre tudo hum
dezertor infame do Commando, e encargo de Capitão Mor, e finalmente

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Memórias do governador Antônio Manuel de Melo Castro
e Mendonça (São Paulo, 1799)

hum prejuro á homenagem, que prestou, não se faz digno de ser conserva-
do no ditto emprego; mas sim de ter baixa d’aquelle posto, e occupação,
que tão indignamente exerce, para exemplo dos mais, e conservação do
respeito, e cega obediencia, que se deve ter ás justas, e santas Leys, que
nos regem, aos nossos piedozos Soberanos, que as fazem, e promulgam,
e aos Delegados do seu poder supremo, que as executão.

[fl. 9vº]

Deos guarde a Vossa Excelência muitos anos. São Paulo 6 de Feve-


reiro de 1799.

Illustríssimo e Excelentíssimo Senhor Dom Rodrigo de Souza Cou-


tinho.

Antonio Manoel de Mello Castro e Mendonça

[fl. 1]

Memória 2ª, que tem por objecto referir as incurialidades, e sobor-


nos, que houverão na eleição de Joze Gomes de Siqueira Motta, para Ca-
pitão Mor da Villa de Cunha, fazendo vir por bem provados factos, qual
seja o seu caracter, e servindo de satisfação ao 2º. Artigo do Officio de
19 de Settembro de 1798, em que Sua Magestade he servida mandar-me
informar sobre a pessoa do mesmo Capitão Mor.

[fl. 2]

Illustríssimo e Excelentíssimo Senhor

Como a dezenvolução de todos os accontecimentos extraordinarios,


que antecederão, accompanharão, e seguirão a eleição de Joze Gomes de
Sequeira e Motta para Capitão Mor da Vila de Cunha he necessaria não
só para se conhecer o seu caracter; mas tambem para dar huma idea (bem
que triste) da má administração de Justiça, que forma huma épocha infeliz
na historia d’esta Capitania, julguei acertado referir a Vossa Excelência
periodicamente os mesmos accontecimentos, para que á vista d’elles Vos-

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sa Excelência fique cabalmente informado das incurialidades, com que


ordinariamente se fazião semilhantes eleiçoens, e da injustiça, com que o
mesmo se queixa do outro pertendente do referido emprego, em que foi
proposto, e confirmado contra toda a equidade, e com insanavel desprezo
das Regias determinaçoens.

O Lugar do Facão, que fazia parte do destricto da Vila de Guará-


tinguetá, foi creada Vila no tempo do Governo do Senhor Francisco
da Cunha, denominada por isso Vila de Cunha; tempo em que o povo
d’aquelle lugar era simplesmente governado por hum Almotacel, que se
elegia na Camara de Guarátinguetá, tendo servido este emprego quatro
annos successivos Antonio Joze de Macedo, sendo em tudo, o que ex-
cedia a alçada d’este Ministro o povo subjeito [fl. 2vº] á justiça da Vila,
de que era termo o referido lugar. Havião n’este destricto duas Compa-
nhias huma de Ordenanças, de que era Capitão Commandante Victoria-
no dos Santos Souza, e outra de Cavallaria Auxiliar, de que era Capitão
Commandante Joze Gomes de Sequeira e Motta actual Capitão Mor da
mesma Vila, e que faz o objecto da prezente narração. Creada a Vila foi
eleito Sargento Mor Commandante d’ella, o dito Capitão d’Ordenação
Victoriano dos Santos, passando a ser nomeado Capitão em seu lugar o
mencionado Antonio Joze de Macedo, que foi logo confirmado no mesmo
posto por Sua Magestade.

As continuas molestias, e repettidas viagens do mesmo Sargento


Mor fazião, que estivesse quazi sempre no Commando da Vila o novo
Capitão de Ordenanças Antonio Joze Macedo, que por este motivo entrou
a ser objecto da emulação, e odio do dito Capitão Cavallaria Auxiliar dito
Joze Gomes, o qual não perdia de vista hum só ponto, em que podesse
perturbar no seu commando interino ao dito Capitão, assim como o fazia
ao Sargento Mor. N’este estado se conservarão as coizas até que Joze
Gomes de Sequeira se deliberou intentar ser proposto para Capitão Mor
da mesma Vila para o fim de entrar no Comando d’ella, e perturbar (como
tem perturbado) o socego, e tranquilidade de todo aquelle povo. Para isto
veio á Cidade requerer ao meu Antecessor mandasse, que a Camara pro-
cedesse a eleição de Capitão Mor, o que assim determinado, procurou o

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Memórias do governador Antônio Manuel de Melo Castro
e Mendonça (São Paulo, 1799)

Ouvidor, que então era Miguel Marcellino Vellozo e Gamma, e lhe fallou
para ir prezidir na mesma eleição, appromptando-lhe o dito Jose Gomez
toda a conducção, fazendo-lhe as despezas do transporte, e hospedando-o
na sua Caza, o que acconteceo no anno de 1788.

Chegado que foi o Ouvidor áquella Vila, convocou a Camara á mes-


ma Caza do dito Jose Gomez, onde rezidia, e lhe propôz a eleição de Ca-
pitão Mor. [fl. 3] Mas vendo, que a Camara não convinha de modo algum,
que o mesmo Jose Gomez fosse eleito, rezervou a solução do negocio
para outra vereança, na qual achando os Camaristas do mesmo acordo,
publicou, que recebera ordem do meu Antecessor, para sustar a eleição
de Capitão Mor, visto que por ser d’huma Villa nova pertencia imme-
diatamente a Sua Magestade, e com este desengano passou a formar os
pelouros, em que havião de entrar os Officiaes das Camaras dos annos
seguintes; ardil o mais proprio, e adequado para obter o bom exito d’hum
negocio, para que estava sobornado.

Com effeito em hum dos pelouros para hum dos Juizes foi nomeado
Ignácio de Loyola Freire, Irmão legitimo de Francisco Nabo Freire, ca-
zado com Francisca Galvoa, cunhada do dito Jose Gomez, homem sem
estabelecimento, nem Caza n’aquella Villa, e que a ella tinha vindo por
occazião d’huns dizimos, que ali remattou; sendo sempre hospede do re-
ferido Jose Gomez, que pertendia o pozto de Capitão Mor, e do qual era
especial Amigo. Foi hum dos Vereadores Jose Lopez dos Santos, cazado
com Anna Jacintha de Sequeira, Irman Legitima do mesmo Gomez; e
outro Vereador Joaquim Gomez de Sequeira; também Irmão Legitimo do
pertendente. As mais pessoas do Senado forão indifferentes; pois como
nunca consta de mais de sinco votos, tendo por sua parte trez, estava ar-
mada a cavilação, segundo queria o pertendente, e annuia o comprado ou-
vidor. Os outros pelouros forão feitos sem mais estudo, pelo que pertence
aos vereadores; mas sempre com alguns Juizes da parcialidade, e facção
do dito Jose Gomez, que esperava ser eleito, quando sahisse a celebrada
Camara; quaze toda composta dos seus parentes, e Amigos. Recolheu-
-se o Ouvidor, e forão-se extrahindo os pelouros para [fl. 3vº] os annos

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de 1789, de 1790, e sendo o terceiro o de 1791, em que erão officiaes os


acima referidos.

No fim do anno de 1790 achando-se gravemente enfermo o Sargen-


to Mor Commandante da mesma Villa na Capitania do Rio de Janeiro,
molestia, que absolutamente o impossibilitava de continuar no referido
emprego, e da qual pouco depois morreo, mandou o meu Antecessor pro-
ceder a Camara a nomeação de Sargento Mor, e com effeito convocando-
-se para esse fim, e vendo o Capitão Jose Gomes, que não era nomeado
Sargento Mor, como elle intentava para lhe ser mais facil ascender ao
posto de Capitão Mor, a que aspirava, e que pelo contrario era eleito o
Capitão das Ordenanças, Commandante Interino da mesma Vila Antonio
Jose de Macedo, de quem era declarado antagonista pelas razoens já ex-
postas; demoveo, persuadio, e subornou ao Juiz Ordinario Felix Gomez
de Sequeira seu Tio, e cunhado a fim de suspender o Escrivão da Camara,
e ficar por tanto inhabilitado para escrever a Nominata de Sargento Mor,
e de esconder o sello da mesma Camara, com que devia ser sellada.

Reprezentarão os Officiaes da Camara este injusto procedimento


do Juiz ao meu Antecessor, o qual levantando a Suspensão ao Escrivão,
mandou se procedesse a eleição na conformidade das ordens de Sua Ma-
gestade, e como o Capitão Gomez ainda queria ver se estorvava a eleição
na pessoa do dito Capitão Macedo, em quem votavão os vereadores, e
com elles todo o povo, induzio ao Juiz seu Tio, para se auzentar, por que
estando doente o outro Juiz, poderia d’esta sorte demorar-se a mesma
eleição até ao principio do anno de 1791, em que se havia de abrir o ter-
ceiro pelouro, que se compunha de pessoas [fl. 4] de sua caza, de quem
tudo esperava. Mas os Vereadores actuaes, que conheciam muito bem
qual era a intenção d’aquelle Capitão Gomez, e outro sim não ignoravam,
que no impedimento dos juizes, prezidindo o Vereador mais velho tinham
legitima jurisdicção de procederem áquella eleição, com effeito a fizerão,
votando todos na pessoa do referido Antonio Jozé de Macedo, Comman-
dante Interino da mesma Vila. Ainda veio á Capital o dito Jose Gomez,
para ver se obstava d’algum modo o entrar no pozto de Sargento Mor o
Capitão Macedo nomeado para elle; mas era tão publica, e notoria a sua

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Memórias do governador Antônio Manuel de Melo Castro
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sem razão, que apezar de ter tudo comprado não pôde conseguir realizar-
-se o seu projecto, ficando esperançado em melhorar de condicção, logo,
que entrasse na governança o Senado, que elle compoz a seu geito, como
assim acconteceo.

No mez de Dezembro de 1790 foi, que se condu[z]io a nomeação


de Sargento Mor, e immediatamente no mez de Janeiro de 1791, logo
que tomou posse a celebrada Camara voltou outra vez á cidade o mesmo
Jose Gomez com huma reprezentação d’ella, em que pedia ao meu Ante-
cessor, que para socego d’aquella Vila, e bem dos interesses publicos se
fazia necessario haver ali hum Capitão Mor, e que por tanto lhe pedião
houvesse por bem mandar se procedesse a eleição d’elle. Apezar de ser
huma reprezentação caviloza, sophistica, e falta de veracidade, pois que
era constante, e absolutamente innegavel, que o novo Sargento Mor tan-
to no tempo de Almotacel d’aquelle destricto, ainda antes de ser Vila,
como no de Capitão Commandante tinha feito hum governo todo cheio
de justiça, mostrando-se o mais activo, prompto, cuidadozo, e desinteres-
sado, que he [fl. 4vº] possivel nos negocios, que lhe forão encarregados,
e mesmo em promover o socego, e tranquilidade d’aquelle povo, como
toda esta Capitania confessa, e eu o tenho experimentado; a pezar de tudo
isto foi attendida a reprezentação, mandando-se ordem para se proceder
a eleição, que era o mesmo, que mandar pozitivamente que fosse elleito
para Capitão Mor o referido Joze Gomez; o que talvez não conseguiria se
o Sargento Mor Macedo se não fiasse na sua justiça, e merecimentos, e o
procurasse ser por aquelles meios, que nunca quiz practicar, e com que o
mesmo Jose Gomez quer macular a elle e a mim na nomeação que fiz da
sua pessoa para Coronel do Regimento de Milicias novamente levantado
n’aquella Vila, sobre o que mais extensamente fallo a Vossa Excelência
nas Memorias 3ª. e 4ª.

Obtida pois a ordem para que a Camara procedesse á nomeação


de Capitão Mor tornou o Capitão Gomez a fazer a mesma conducção, e
hospedagem em sua Caza ao Ouvidor Caetano Luiz de Barris Monteiro,
que tinha feito ao seu Antecessor Miguel Marcellino Velozo e Gamma, e
apezar de terem antecipadamente dispostas todas as coizas, para que ao

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menos o acto da eleição fosse curial, commetterão n’ella hum erro cras-
sissimo, e que só elle bastava para ser irrita, e de nenhum valor aquella
nomeação: e veio a ser que não havendo n’aquelle mesmo Senado se não
os trez votos a cima referidos a favor do Capitão Gomez, e achando-se
no mez de sua prezidência na Camara o Juiz Ordinario Antonio Montei-
ro Silva, que não era seu parcial, vinha por tanto [fl. 5] a haver só dois
votos a favor d’elle, para remediar isto, excluindo o Juiz do mez, fizerão
a eleição com o outro Juiz Ignacio de Loyola Freira, Amigo hospede do
pertendente.

Com todas estas injustiças, e incurialidades chegou o dito Jose Go-


mez de Sequeira a ser proposto, nomeado, e confirmado no posto de Ca-
pitão Mor, trazendo sempre pelo seu urgulho, dispotismo, arrogancia,
e máo comportamento toda aquella Vila, n’huma continua dezordem, e
perturbação. E o que hé mais, que sendo prezentes a Sua Magestade to-
dos estes accontecimentos, que se achão verificados com plenas justifi-
caçoens, que vim achar n’esta Secretaria, e mandando a mesma Senhora
informar-se sobre elles, a informação foi tal, qual Vossa Excelência pode
inferir dos documentos, que o mesmo Jose Gomez pôz na sua prezença,
e que diz lhe vierão á mão por accidente, sobre os quaes fallo a Vossa
Excelência na Memoria 3ª.

Não tardou muito, que novo Capitão Mor quizesse premiar o Juiz
Ignacio de Loyola Freire, seu hospede, pela condescendencia, que teve
em votar na sua eleição, e para isto o quis fazer nomear Capitão das
Suas Ordenanças, como antes lhe tinha promettido, e se acha provado.
Convocou-se a Camara, e não annuindo o Juiz Prezidente Antonio Mon-
teiro Silva, e mais dois Vereadores ás instancias do Capitão Mor, e isto
pelas razoens de não ter estabelecimento n’aquella Vila o tal Loyola, e
de mais a mais ser Juiz, e Prezidente da Camara d’aquelle anno, e por
tanto impossebilitado para Semelhante eleição na conformidade das [fl.
5vº] Ordens de Sua Magestade; mandou ao Juiz, que autuasse aquelles
Officiaes da Camara por se opporem a sua vontade, o que não querendo
fazer o Juiz Prezidente, passou o mesmo Capitão Mor a dar-lhes a voz de
prezos a ordem do meu Antecessor, e unindo-se com o outro Juiz Loyo-

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Memórias do governador Antônio Manuel de Melo Castro
e Mendonça (São Paulo, 1799)

la, que n’aquelle mez não tinha jurisdicção nenhuma, passou a vexar os
mesmos Officiaes da Camara fazendo toda a deligência para os prender,
os quaes não tendo outro remedio (bem que sem culpa) fugirão, e vierão
apprezentar-se n’esta Cidade ao dito meu Antecessor, o qual os fez voltar
a suas Cazas, deichando impunido tão grande insulto feito ás Justiças de
Sua Magestade com total abandonoo, e manifesto desprezo das suas Re-
gias determinaçoens.

Não se limita aqui a insolencia, e proterva arrogancia d’este Capitão


Mor, por que vendo não concluia a sua eleição, como intentava com aque-
lles Camaristas, passou a convocar dois dos annos preteritos, e prezidindo
o mesmo Ignácio de Loyola, contra todas as dispoziçoens de Sua Ma-
gestade o elegerão Capitão, como faço certo pela attestação junta. Tudo
isto, Excelentíssimo Senhor, he nada; o que he mais para admirar he o ter
sido approvada esta elleição; não sendo castigado n’estes, e outros iguaes
procedimentos, de que farei menção, hum tão absoluto dispotismo. Eis-
-aqui por que não permittindo eu se obrem taes de[s]aforos; [fl. 6] porque
cuidando muito anciozamente em que se cumprão á risca as ordens da
minha Soberana; porque não consentindo que se furtem as filhas a seus
pais, as mulheres a seus Maridos, e que se infrinjão, e violem os direitos
de terceiro, ha-de haver quem tenha o dezacordo de dizer na prezença
de Sua Magestade, que sou um Lobo voraz entre manças ovelhas. Em
se consentindo que os ricos extraviem a Real Fazenda, que os poderozos
pizem os pequenos, e lhe uzurpem os seus bens, e lhe profanem o que tem
de mais sagrado, já não há queixas; porque o grito do miseravel, do pobre,
do afflicto, e consternado não chega a grande distancia, n’huma pequena
athmosphera se dissipa, e desvanece.

Eu entrego ao silencio o muito, que a este respeito poderia accres-


centar, contentando-me unicamente com affirmar a Vossa Excelência que
tudo, o que tenho referido hé tirado de documentos authenticos, judiciaes,
e veridicos, alem de serem factos publicos, e notorios n’esta Capitania.
Queira Vossa Excelência dar a esta narração o credito, que como tal me-
rece, e achando que he digna da sua providentissima attenção, espero que
em abono do meu credito maculado na prezença de Sua Magestade se

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digne outro-sim informar a mesma Senhora do Caracter do denunciante,


fazendo-lhe ver pelo deduzido, e pelo mais, que faz o objecto da Memo-
ria 3ª. quanto interessa ao seu Real Serviço, e ao Socego, e tranquilidade
d’aquelles povos [fl. 6vº] que aquelle Capitão Mor seja privado da honra
de servir a huma Soberana tão recta, tão piedoza, e justa.

Deos guarde a Vossa Excelência muitos anos. São Paulo 7 de Feve-


reiro de 1799.

Illustríssimo e Excelentíssimo Senhor Dom Rodrigo de Souza Cou-


tinho.

Antonio Manuel de Mello Castro e Mendonça

[fl. 1]

Memoria 3ª., que tem por objecto responder ao 3º. Artigo do Officio
de 19 de Settembro de 1798, em que Sua Magestade hé servida mandar-
-me informar sobre as pessoas por cuja mediação se projectava remetter
dinheiro para o fim d’obter hum Decreto para ser Capitão Mor da Vila de
Cunha o Sargento Mor Antonio Joze de Macedo: á qual se juntão mais
alguns factos avulsos, que servem de melhor, e mais completamente dar
a conhecer o caracter do seu Competidor, ou Antagonista Jose Gomez de
Sequeira e Motta.

[fl. 2]

Illustríssimo e Excelentíssimo Senhor

Assim como hum animal damninho perde os outros d’hum rebanho,


assim a perversão d’homem perverte huma sociedade. Pelo contheudo
nas antecedentes Memorias tem Vossa Excelência bem provada esta pro-
pozição, pois n’ellas com toda a evidencia se conhece, que o máo carac-
ter de Joze Gomez de Sequeira, induzindo, e sobornando tantas pessoas
para o fim de conseguir seus intentos, as perverteo, e pôz em estado de
não respeitarem já mais as Santas Leis, que com tão sabia economia, e
ajustadas providencias tem felicitado tantas vezes os fieis vassallos, que

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Memórias do governador Antônio Manuel de Melo Castro
e Mendonça (São Paulo, 1799)

tem a furtuna de o serem dos nossos tão Augustos, como piedozos sobe-
ranos. O que accontece com Antonio Joze de Macedo he huma Legitima
consequencia d’esta verdade; pois sendo incontrastavelmente certo, que o
Capitão Mor só á força do dinheiro (como elle mesmo tem ditto), pôde ser
nomeado, e elleito, e confirmado, com manifesta tortura, e expressa vio-
lencia as Reaes ordens de Sua Magestade, e naturalmente se infere pela
simples inspecção das incurialidades que na dita eleição se encontrão;
todo este procedimento por huma parte, e por outra a falta d’equidade,
com que se não attendeo ás reprezentaçoens, e authenticas provas que
produzia em abo- [fl. 2vº] no da justiça lezada, e offendida; e de mais
a mais o passar de Commandante, que tinha sido d’aquelle povo tantos
annos com geral approvação de todos, e completo dezempenho dos seus
deveres, e das ordens, e commissoens, que lhe forão encarregadas, a ser
subalterno d’hum seu inimigo; tudo isto o poz igualmente na percizão de
solicitar ser attendido pelos mesmos iniquos meios com que tinha sido
desprezada a conhecida razão da sua cauza.

Para este fim já eu sabia, que por via de João Vicente, Escrivão De-
putado da Real Junta da recadação da Fazenda d’esta Capitania mandara
fallar a hum Procurador em Lisboa para lhe agenciar a pertenção de sahir
Capitão Mor por hum Decreto, o que tambem comprova a carta do mes-
mo, que apprezentou a Vossa Excelência o referido Jose Gomez; sabia
que forão prezentes á Sua Magestade os motivos da supplica de Macedo,
com os Documentos, que provavão o mesmo que tenho referido na 2ª.
Memoria, o que veio a informar ao meu Antecessor, mas ignoro o que
respondeo a esse respeito, por não achar registro da informação, ainda
que tenho motivos para inferir, que seria esquerda, e simulada, tanto pelo
ditto do mesmo Procurador, que Vossa Excelência me envia, e que ac-
companhava a Carta surpredida, como por ver que effectivamente foi,
contra todas as dispoziçoens do Direito, confirmado aquelle Capitão Mor;
e sabia finalmente, que o Senhor Luiz Pinto de Souza estando encarrega-
do dos negocios do Ultramar tivera hum pleno conhecimento da injustiça
que se tinha practicado com o Macedo, e que promettera, que logo, que
o meu Antecessor se auzentasse para Minas o havia despachar, o que não

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fazia já [fl. 3] por que não convinha por hum rasgo de mera politica, que
estando elle ainda na Capitania recebesse, e prezenceasse huma desfeita
em desabono do governo, que acabava de fazer.

Se com effeito este negocio se intentou por via d’alguma Excellen-


cia, isso não posso eu affirmar, mas não deixo com tudo de fazer esta
reflexão, que os procuradores pela maior parte se servem d’estes expe-
dientes, para lucrarem mais a sua vontade; fazendo acreditar que se deveu
a huma grande protecção hum despacho, que muitas vezes se obtem pelo
sabido turno d’huma tarifa ordinaria. A respeito de quem era o Procurador
não pude saber, se não que era hum clerigo, por cuja via logo, que sahi
despachado, se me fallou para ver os papeis do referido Macedo; e exa-
minando lá mesmo todos os accontecimentos (que hoje conheço serem
verdadeiro, e então me parecerão exaggerados) não quiz de modo algum
cooperar para elle ser despachado, e isto por saber que se promettião ao
dito Clerigo seis centos mil reis para conseguir o bom exito d’esta per-
tenção, o que pude bem averiguar por via do meu Ajudante d’Ordens
Thomaz da Costa, a quem dei a incumbencia de examinar simuladamente
todos os particulares tendentes a este fim.

Tal he pois o meu sistema, e segundo elle, posso affirmar a Vossa


Excelência na prezença de todo o mundo, que se acabou em São Paulo
aquelle antigo adagio, que me lembro ter-me repettido em minha Caza
em Lisboa o Capitão Garcia Rodriguez, d’esta Capitania, discorrendo eu
sobre estes, e outros semilhantes assumptos, os quaes me interrompeo,
dizendo = Bem está o Brazileiro, quando lhe val o seu dinheiro = Acabou-
-se pois esta épocha, sendo no meu tempo, [fl. 3vº] e logo, que tomei
posse a primeira vez, que appareceo em São Paulo, (e talvez em toda a
America) hum soldado carregado d’Armas, n’huma Praça publica com
huma Epigraphe nas costas em caractéres mayusculos, que dizia = Por ter
o desacordo de intentar despachos por dinheiro = A guerra, e oppozição
que declarei a hum sistema tão inveterado n’este paiz he huma prova, de
que eu não sou capaz de promover ninguem por tão iniquos, e escandalo-
zos principios; e por isso a minha honra gravemente maculada, e offendi-
da perante a minha Soberana pede a Vossa Excelência huma satisfacção

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Memórias do governador Antônio Manuel de Melo Castro
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proporcional á minha injuria. Mas para que não fique a menor sombra de
duvida a respeito do meu procedimento na promoção do mesmo Anto-
nio Joze de Macedo para Coronel do Regimento, que creei no destricto
da Vila de Cunha, requeiro a Vossa Excelência obrigue aquelle Capitão
Mor a que manifestamente diga, ou vá dizer á sua Prezença, quaes são os
meios, (que por modestia calla) com que quer affectar, que eu fizera a dita
Promoção: requeiro a Vossa Excelência, torno a dizer, mande devassar
d’este crime, que tão alleivozamente se me imputa, com detrimento do
meu credito, e do bem conhecido desinteresse, com que tenho a honra de
imitar aos meus Ascendentes no Real serviço da minha Soberana, e com
especialidade, áquelle virtuozo Tio, e Respeitavel Ministro, que Vossa
Excelência tão benignamente se digna propor-me para modello das mi-
nhas acçoens.

O muito, que tenho para dizer a Vossa Excelência sobre este artigo
em abono da minha innocencia, me obriga a fazer mais huma Memoria;
e por isso mudando de assumpto passo a referir alguns [fl. 4] factos mais,
que acho provados, e que servem de dar a ultima evidencia ao maligno
caracter d’este tão perverso homem.

1º. a carta de João Vicente, que apprezentou a Vossa Excelência o


mesmo Capitão Mor he huma prova irrefragavel do crime, que se lhe
imputa em alguns papeis publicos de abrir cartas: pois tendo sido dada
aquella ao Conigo Manoel Lescure Banhero para a levar para Guarátin-
guetá, onde hia tomar os seus Estatutos em Caza d’hum Irmão Cazado,
que tinha na mesma Vila; vendo-a o Capitão Mor sobre hum Bofete se
offereceo para a conduzir para Cunha, e a furtou, abrio, e enviou para esta
Cidade a Francisco Xavier dos Santos, (medianeiro dos negocios do mes-
mo) que immediatamente a apprezentou ao meu Antecessor, que, depois
de lida, lh’a entregou, dizendo-lhe na salla, que já sabia do mesmo João
Vicente, que por sua via se tinhão remettido varios papeis do Macedo a
hum procurador em Lisboa para aquella, e outras pertençoens. Esta carta
conservou sempre em seu poder o dito Francisco Xavier dos Santos, ini-
migo jurado de João Vicente, e hum dos que concorreu na Junta, para se
suspender o ordenado a este Escrivão, unico Deputado d’ella, que punia

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Pablo Oller Mont Serrath

pela boa arrecadação da Real Fazenda, como tambem farei ver a Vossa
Excelência, quando a occazião m’o permittir, fallando do máo estado, em
que vim achar os interesses da mesma Fazenda. E fazendo-se na caza do
mesmo Francisco Xavier todas as noites hum conciliabulo sobre o meu
procedimento com o Capitão Mor, e sobre as minhas acçoens em geral,
ali mesmo em plena assembléia pelos vogaes [fl. 4vº] d’ella que erão o
dono da Caza, seu Irmão Joaquim Joze dos Santos, o Contador Clemente
Joze, Jeronimo Martins, e outros entre os quaes entrava o mesmo Capitão
Mor, e o Secretario do Governo se deliberou a que se desse conta de mim,
e que n’ella se inserisse, sem vir ao cazo, a carta de João Vicente, para
antecipadamente o porem de má fé; pois lhes constava, que elle queria
participar, ou tinha participado a Vossa Excelência o estado de crise em
que se achavão os negocios da Fazenda d’esta Capitania (o que não sei
se acconteceo) O certo he que havendo em todos os conventiculos hum
Judas, eu pude logo saber, sem-no intentar, o que ali se tractava, e pouco
mais, ou menos, o que se disse, e se escreveo contra mim; do que não fiz
cazo, nem ao menos o dei a entender, certo de que seria ouvido a produzir
as minhas razoens perante Vossa Excelência a quem assevero, que ainda
que Vossa Excelência m’o não advertisse, e o Capitão Mor se achasse
n’esta Capitania, eu o tractaria sempre com a mesma brandura, deixando
ao decurso do tempo, o conhecimento das suas intrigas, e caballas; e a
decizão de Vossa Excelência a justiça da minha cauza, o que já practiquei
a respeito da Carta diffamatoria, de que dei conta a Vossa Excelência.

2º. He publico, e plenamente provado, que o Capitão Mor soborna


todas as justiças, oppondo-se as elleiçoens, que n’aquella Vila se fazem
para Vereadores e mais Ministros; não querendo, senão que o sejão os
seus Amigos, e Parentes, para ser elle o unico, que governe na terra, fican-
do por isso [fl. 5] habilitado para obrar as violencias, que costuma: Que
esconde Inventarios, como fez aos de seus Tios o Alferes Felix Gomez de
Sequeira, e o Capitão João Gomez de Sequeira: Que de absoluto poder
occulta autos, consentindo, que os Procuradores sejão prezos, e multados
sem os restituir, como fez na demanda, que correo, e não sei se ainda
corre, com a viuva do dito Felix Gomez, e o Capitão Simão Martins: Que

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Memórias do governador Antônio Manuel de Melo Castro
e Mendonça (São Paulo, 1799)

por hum conhecido dispotismo se subtrahe ao que determinão as Leys


de Sua Magestade, não cumprindo, o que como Vassallo he obrigado, e
por isso fallecendo sua Mai não quis fazer inventário havendo menores:
Que dando hum tiro em hum Escravo seu, no tempo em que era juiz Or-
dinario, e tendo começado a competente devassa o Juiz seu companheiro,
elle a supitou, e fez desapparecer: Em fim para não ser mais extenso, que
he hum perturbador do socego publico, e da tranquilidade particular dos
moradores d’aquella Vila. Consta todo o referido d’hum traslado judicial,
e authentico, que se acha em meu poder, o qual foi extrahido dos proprios
autos, que estão no cartorio da Ouvidoria d’esta Cidade, em que como
parte se oppoz, e embargou a eleição que a Camara na forma da Reaes
Ordens tinha feito na Pessoa do mencionado Sargento Mor Antonio Joze
de Macedo para Juiz dos Orphãos em que proferio contra o Capitão Mor
embargante huma sentença o mesmo Ouvidor seu Amigo, que tinha pre-
zidido na sua eleição, e pagando finalmente as custas, em que foi con-
demnado.

3º. Andando amancebado com Maria Monteira d’Oliveira, cazada


com Francisco d’Oliveira [fl. 5vº] Montanha, para melhor colher os fruc-
tos da sua iniquidade fez desterrar o pobre Marido, ficando elle com a
mulher, com quem viveo concubinado muitos annos; até á seducção da
filha do Capitão Xavier, a quem pelas medidas, que havia lançado queria
por nas circunstancias d’aquella, de quem houve trez, ou quatro filhos,
assim como já tinha d’esta hum, de que fiz menção na 1ª. Memoria.

4º. Recebendo huma reprezentação da Junta da Fazenda do Rio, em


que me pedia acautellasse o custume, que tinhão alguns moradores d’esta
Capitania de extraviarem escravos sem pagarem os compettentes direitos,
e procedendo a examinar com muita individuação este negocio, achei,
que hum dos comprehendidos n’este defeito he o referido Capitão Mor;
porque no anno de 1778 mandando comprar varios escravos ao Rio na-
cionaes de Guiné e trazendo-os para a Vila de Cunha por João Vieira da
Silva sem pagar Direitos de parte d’elles, os fez passar com industria na
Vila de Parati, sendo Commandante d’ella Manoel da Silva Braga; mas

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Pablo Oller Mont Serrath

conhecendo-se depois o engano, que ordira o obrigarão a pagar a quantia,


que devia pelos escravos extraviados.

Este he o único facto, que eu soube depois, que recebi o officio de


19 de Settembro, em que Sua Magestade he servida mandar-me infor-
mar sobre a Pessoa do denunciante Jose Gomez de Sequeira: tudo o mais
que refiro n’esta, e nas Memorias [fl. 6] antecedentes eu sabia plena, e
completamente, quando procedi d’hum modo tão brando, e tão dispro-
porcional aos Sentimentos d’aquelle Capitão Mor, e o tenho provado em
authenticos documentos, que estão em meu poder, e na Secretaria d’este
Governo, a que me reporto: Eu temo, Excelentíssimo Senhor, que a mul-
tiplicidade de provas, que produzo perante Vossa Excelência diminua
d’alguma forma o merecimento da minha cauza, pois são tantas, e tão
fundamentaes, que por muitas ficão de repor vallor.

Não era da minha intenção dizer huma só palavra fora do Argumen-


to da Reprezentação do dito Capitão Mor; mas como Sua Magestade he
servida mandar-me informar da sua pessoa, mais para obedecer á minha
Soberana, que por fazer alarde dos justificados motivos do meu proce-
dimento, he que referi todos estes accontecimentos bem dignos d’hum
exemplar castigo, para emenda de tão altivo delinquente, e exemplo dos
mais orgulhozos, que seguem o seu partido. Vossa Excelência sabe muito
bem quanto interessa a Ordem publica, e civil o respeito, que se deve ter
aos mandados das pessoas, de quem Sua Magestade confia a direcção dos
povos, e o credito, e confidencia, com que a mesma Senhora deve autho-
rizar os seus Delegados, huma vez, que se não conduzem sinistramente, e
procurão manter huma perfeita harmonia, e completa tranquilidade entre
os povos, que regem, estorvando pelos meios mais adequados as dissen-
çoens das familias, e promovendo com o maior cuidado a paz, e o socego
dos seus subditos.

[fl. 6vº]

Hé por isto, que outra vez lembro a Vossa Excelência o muito, que se
faz necessario, que Sua Magestade mande observar aquelle termo, casti-

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Memórias do governador Antônio Manuel de Melo Castro
e Mendonça (São Paulo, 1799)

gando de mais a mais o delinquente com a perda do posto, que indigna-


mente occupa, tanto por ser promovido com sobornos, e incurialidades,
como por ter faltado ao juramento de homenagem, que prestou, dezer-
tando com infamia, e sem violencia, que ao menos lhe sirva de pretexto.
Obre Vossa Excelência n’este particular, como lhe parecer mais acerta-
do, ficando d’esde já na firme persuazão, que para tudo o que houver de
determinar-me achará promptissima a minha obediencia.

Deos guarde a Vossa Excelência muitos anos. São Paulo 8 de Feve-


reiro de 1799.

Illustríssimo e Excelentíssimo Senhor Dom Rodrigo de Souza Cou-


tinho.

Antonio Manuel de Mello Castro e Mendonça

[fl. 1]

Memoria 4, em que se expoem as cautellas, e vigilancia, que tenho


sobre a minha familia; servindo de resposta ao 4º. artigo do officio de 19
de Settembro de 1798.

[fl. 2]

Illustríssimo e Excelentíssimo Senhor

Pelo referido em hum dos paragraphos da Memoria 3ª. pode Vossa


Excelência vir no conhecimento de que eu estava, quando vim para esta
Capitania, plenamente informado dos seus negocios, e das vias ordina-
rias, por onde se intentavão, e conseguião os bons exitos d’elles. Os sen-
timentos d’honra, de desinteresse, e de amor patriotico, que me nutrirão
des de a minha infancia debaixo da exacta, e virtuoza educação d’huma
[sic] Pai, cujos exemplares costumes, e virtudes sociaes tanto o destingui-
rão no serviço d’huma Soberana, que se digna confiar-me a direcção dos
seus vassallos, erão outros tantos despertadores dos meus deveres, e que
fazendo-me desapprovar na propria consciencia as maximas contrarias
as obrigaçoens, e ao decoro d’hum General, me incitavão a procurar a

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Pablo Oller Mont Serrath

gloria, á que aspirava, por hum caminho, que por escabrozo tinha sido
d’antes pouco trilhado.

Fomentar os sentimentos de honra, proteger a Agricultura, facilitar o


giro do commercio, fazer publicos elogios aos Cidadãos honrados, e dig-
nos d’elles, e finalmente reprehender com vehemencia os perturbadores
do socego publico era a minha diaria occupação: mas a experiencia me
foi ensinando, que sendo o [fl. 2vº] numero dos máos, e perversos muito
maior, que o dos bons, hia por este principio procurar huma insurreição
contra o proprio sistema, que premeditava. A Capitania precizava huma
reforma nos costumes, que se achavão levados á ultima decadencia, e
hum novo methodo de lhe infundir aquelles briozos sentimentos, que en-
thusiasmando os antigos Paulistas, os tinha feito prestadios á Nação, e ao
Estado; mas erão precizas novas medidas para tornar docil hum povo, que
sendo por educação feroz, se achava por condescendencia altivo.

Hé certo, que hum ar d’aspereza para com os desobedientes, e ini-


migos do bem, e tranquilidade do publico me parecia o mais adequado
para os fazer comprehender o novo sistema do Governo, que me propu-
nha estabelecer, quando pela outra parte a destinção, e appreço, que fazia
dos bons devia animar estes a não perderem esta qualidade, e aquelles a
seguirem o seu partido. Mas era com effeito emprehender muito, em pou-
co tempo, querer remediar em alguns mezes o estrago de longos annos.
Eis-aqui o que me grangeou na verdade alguns inimigos, e ainda mais
a verem-se os que figuravão pelos sobornos inteiramente destituidos do
antigo valimento, e protecção

Modificando os primeiros traços que para o governo tinha lançado,


sem deichar de amparar os bons, e sem diminuir os elogios das acçoens
benemeritas fui dando mais tregoas a[o]s preversos, não levando a dian-
te o meu projecto, reprehendendo-os tão somente as menores vezes que
podia, e quando absolutamente o não devia dispensar sem encorrer na
na [sic] nota de omisso, fazendo injuria ao caracter que reprezentava.
Felizmente esta maxima fez progressos indiziveis, por que tomando mais
solido fundamento a opinião dos bem comportados, e não tendo, [fl. 3]

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Memórias do governador Antônio Manuel de Melo Castro
e Mendonça (São Paulo, 1799)

de que se queixarem os do partido contrario de dia em dia se forão rees-


tabelecendo os espiritos amortecidos d’este povo, vendo-se outra vez ani-
mado do antigo zello, e fervor, que fez tão memoravel seu nome, o que
bem comprovão as voluntarias, e generozas offertas que tem feito para o
remonte da Cavallaria, como n’outro officio participo a Vossa Excelência.

Huma das primeiras vistas da minha reforma consistião em não de-


ferir a ninguem por interposta pessoa, recebendo eu mesmo as petiçoens
dos proprios pertendentes em audiencia, ou na secretaria, onde as partes
as devião entregar, e receber despachadas; e prohibir a todos os meus fa-
miliares o receberem petiçoens, e muito mais o entrarem na intelligência
dos negocios dos requerentes, com qualquer pretexto, que fosse, e bem
prova esta minha determinação o facto que refiro a Vossa Excelência na
Memoria 3ª. : por que deliberando-se hum soldado a prometter certa sôma
a <hum> creado meu, que ficou mentecapto por cauza d’hum estupor que
teve no mar, e isto para lhe obter sua baixa, e vindo elle por estupido com-
municar-me o accontecido, chamado o soldado, e convencido da sua inju-
rioza pertenção o fiz caztigar da forma que já expuz a Vossa Excelência.

Alguns outros, que não obstante a publicidade d’este castigo intenta-


rão continuar no antigo sistema forão reprehendidos, segundo as circuns-
tancias, e destincção do lugar que occupavão. Tal foi o coronel reforma-
do Paulino Ayres d’Aguirra que promettendo a hum dos meus Ajudantes
d’Ordens huma porção avultada para cooperar a fim de ser nomeado Ca-
pitão Mor da Vila de Sorocaba, onde rezidia, e participando-me este o
dito attentado fiz, que elle o reprehendesse; mas dando-lhe a entender [fl.
3vº] que eu ignorava este procedimento; pois a que ser sciente d’elle o
faria castigar proporcionalmente ao seu delicto. O mesmo tem acconte-
cido, aos que intentavão baixas por esta via, lançando-se de mais a mais
notta nos Soldados, que o pertendião, para não serem por principio algum
dispensados do serviço durante o meu governo.

Tendo eu proposto para Tenente Coronel Reformado ao Capitão Je-


ronimo Martins, muitas vezes me reprezentou o secretario do Governo,
Coronel do Regimento de Milícias da Marinha, que as occupações do seu

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Pablo Oller Mont Serrath

emprego não lhe permittião ter todo o cuidado que devia no seu Regimen-
to, e que por tanto quizesse promover a Coronel Aggregado ao dito Regi-
mento o mesmo Tenente Coronel para no seu impedimento fazer as suas
vezes, para o que tinha todos os requizitos, e intelligência; e com effeito
parecendo-me muito razoavel o promovi por Commissão; mas sabendo
pouco depois, que elle intentara este despacho por dinheiro, ainda que ig-
norava se estes bons officios do Secretario forão feitos por essa razão, não
o inclui na proposta de Coronel, como Vossa Excelência pode ver nas que
tem em seu poder só para que no meu tempo se não dicesse, que huma só
promoção foi feita por esta via.

Estão pois os meus familliares com tal prevenção a este respeito,


que ou ninguem os procura para semilhantes pertençoens, ou elles se não
deliberão a participar-m’as. Não sendo isto somente n’estes ultimos tem-
pos; por que ja quando entrei n’esta Capitania estando eu na Vila de Mogi
das cruzes e vindo procurar-me hum [fl. 4] Cavalcante para me expor que
tendo sido Capitão lhe fora tirada a Patente para se dar a outro que tinha
offerecido mais dinheiro, e impugnando com modestia estas expressoens
lhe disse que sem duvida haverião ali outras razoens, que eu examinando-
-as lhe deferiria attendendo á sua justiça, e merecimentos, se os tivesse.
E sentindo pouco depois hum pequeno ruido, e examinando o que seria,
conheci que hum dos meus creados chamado João Joaquim partia com
elle, e o reprehendia por lhe prometter hum cavallo a fim de me fallar
a seu favor. O que he mais, he que sendo verdadeiro o dito do mesmo
Cavalcante, por que achando eu registrada a Patente sobre que me fallava
era evidente que lhe fora tirado o original, nunca o promovi só por elle ter
commettido aquelle desacerto.

Todos estes factos, e alguns mais, que poderia expor a Vossa Exce-
lência servem de provar a cautella, que tenho com a minha familia não
consentindo que por nenhum principio intervenhão, nem ao menos se en-
carreguem de conduzir hum requerimento, chegando a tal ponto a minha
inteireza n’este particular, que sendo costume n’esta Capitania darem-se
aos secretarios do Governo avultadas sommas pelas Patentes, talvez por
influirem elles nas promoçoens, eu fiz saber que me resentiria infinita-

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Memórias do governador Antônio Manuel de Melo Castro
e Mendonça (São Paulo, 1799)

mente se acazo se persuadissem, que era da minha intenção que com as


suas patentes dispendessem mais do que exigia a Tarifa do costume: o
que sem duvida foi hum damno consideravel para o Secretario, mas hum
grande benefício [fl. 4vº] para o povo, que mais por caprixo, que por mera
possibilidade entra em semilhantes gastos: Eis-aqui hum motivo de quei-
xa do dito Secretario, alem da falta d’influencia, que talvez se promettia,
o que o obriga a ser-me opposto, e fazer partidos contra mim, unindo-se
com alguns descontentes, o que me não embaraça; pois me contento, e
satisfaço com ter cumprido exactamente a minha obrigação.

Por huma consequência necessaria d’este sistema, que tenho adopta-


do, não era possivel de modo algum que entrasse em promoção por taes
principios o coronel que elegi, e propuz para o Regimento que creei no
destricto da Vila de Cunha que foi o Antonio Jose de Macedo referido nas
Memorias antecedentes, e dezejarei que esta questão seja mais ventilada,
em ordem a Vossa Excelência ter d’ella hum conhecimento absoluto, para
que ou eu seja castigado pelo delicto, que tão aleivozamente me imputa
Jose Gomez de Sequeira ou elle tanto por me desacreditar contra a verda-
de conhecida, como por mentir na prezença de Vossa Excelência. Quanto
mais que pelas violencias, de que uzou o referido denunciante para obter
o posto de Capitão Mor contra a vontade dos Eleitores, e o voto do povo
bem evidentemente se prova o merecimento do seu competidor, sobre o
que Vossa Excelência se pode mandar informar com toda esta Capitania,
e por cuja razão, e não por outra qualquer intelligência foi promovido,
assim como os mais do meu tempo.

[fl. 5]

Agradeço muito a Vossa Excelência o conselho, que tão sabiamente


me dá de me conduzir n’este governo com toda a prudencia: Eu conheço,
Excelentíssimo Senhor, quanto ella he necessaria para dezempenhar bem,
e devidamente os deveres do meu emprego; mas tambem posso asseverar
a Vossa Excelência que tenho procedido em tudo, e por tudo com a maior
moderação possivel. Não se tem feito huma só violencia directa, ou seja
na regencia dos povos ou seja na formação dos corpos militares, sem

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Pablo Oller Mont Serrath

fallar d’aquellas pequenas excedencias de jurisdicção que muitas vezes


practicão os executores das ordens, e de que não he, nem pode ser culpa-
do nem quem as dá, nem quem as distribue. Para mais fazer entrar a Vossa
Excelência no conhecimento d’esta verdade, tinha determinado ajuntar
aqui huma copia de muitas ordens, que se tem expedido já pela sala, já
pela Secretaria, e das quaes clara, e manifestamente se infere, e consta
qual he o Espirito do meu Sistema: mas como se offerece agora hum as-
sumpto, que preciza ser confutado com estes mesmos factos na primeira
occazião terei a honra de os por na prezença de Vossa Excelência, certo,
de que todo este meu procedimento por exacto, e conforme as Leys de
Sua Magestade, e aos sentimentos de hum bom patriota merecera a ap-
provação d’hum tão illustrado, e recto Ministro, como Vossa Excelência,
cujas sabias instrucçoens dezejo cumprir [fl. 5vº] com toda a pontualida-
de, para credito meu, e despenho dos meus deveres.

Deus Guarde a Vossa Excelência muitos anos. São Paulo 9 de Feve-


reiro de 1799.

Illustríssimo e Excelentíssimo Senhor Dom Rodrigo de Souza Cou-


tinho.

Antonio Manoel de Mello Castro e Mendonça

[fl. 1]

Memoria 5ª. em que se expoem alguns factos, que tem sido cauza da
oppozição que me fazem algumas pessoas, com especialidade as que não
podem, como d’antes fazer extorsoens da Real Fazenda.

[fl. 2]

Illustríssimo e Excelentíssimo Senhor

Quando me propuz tomar sobre meus hombros o pezo d’hum Gover-


no já eu sabia os inconvenientes que são annexos a esta occupação, e os
differentes caminhos por que se adquirem as inni[mi]zades, que muitas
vezes obscurecem pelas suas queixas, e invectivas os mais brilhantes ras-

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Memórias do governador Antônio Manuel de Melo Castro
e Mendonça (São Paulo, 1799)

gos d’hum governo heroico. Tambem não ignorava que hum d’aquelles
he o zello da boa arrecadação da Real Fazenda, que necessaria, e infa-
livelmente grangeia tantos antagonistas, quantos são os que se mantem
á custa d’ella. Verdade bem comprovada pelos Procuradores Regio da
Fazenda do Ultramar, e Coroa no anno de 1784 respondendo sobre as
contas, que algumas pessoas d’esta Capitania pozerão na prezença de Sua
Magestade a respeito do Governador e Capitão General Martim Lopez
Lobo de Saldanha. Mas não obstante isso como Vassallo honrado não
devia temer estes escôlhos, que são o matiz que muitas vezes tornão mais
gloriozas aquellas acçoens, que sendo arguidas por injustas, se conven-
cem de acertadas, não sendo possivel haver hum só General, que em tudo
agrade a todos.

Esta lembrança, que sempre me foi prezente, era o primeiro movel


do exacto dezempenho das minhas obrigaçoens, e com especialidade das
que são tendentes a boa administração, e arrecadação da Real Fazenda,
fazendo-me desprezar as [fl. 2vº] queixas, que poderião formar de mim
os que se achassem lezados nas utilidades, que recebião da Real Fazenda;
pois que para realçar a minha honra, não precizava mais do que o zello,
actividade, e bem conhecido desinteresse com que me emprego no Real
serviço. Com estas vistas entrei a examinar todas as despezas, que na
Junta da Fazenda se practicavão sem legitima authoridade, e principian-
do por huma marcha retrograda examinei as ultimas Memorias, digo as
ultimas ordens que na mesma Junta se passarão, que forão arrespeito do
Bispo d’esta Diocese.

He para admirar, que fazendo a minha entrada n’esta Cidade somen-


te a differença de 15 dias a entrada do Bispo, e não havendo no Cofre
senão 200$000 reis se desse preça aquelle Prelado em obter a Portaria
para ser pago, não querendo esperar por mim para não ser sentenceado
por Pilatos, como elle mandou dizer ao meu Antecessor; mas isto não
era, senão para simuladamente conseguir, n’aquella idade d’oiro, se lhe
contasse, como de facto contou, a congrua originaria des de o mesmo
tempo, que Sua Magestade lhe mandava contribur com os 800$000 reis
de merce, que era des de o dia da nomeação, quando aquella não podia,

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Pablo Oller Mont Serrath

nem devia ser contada, se não d’esde o dia do Fiat em Roma, como he
costume, que foi anno, e meio depois da nomeação; ficando Sua Mages-
tade por tanto damnizada em 1:200$000 reis, que de mais lhe adjudicarão
os Deputados da Junta.

[fl. 3]

Reclamei logo esta rezolução protestando não convir em semilhante


pagamento, por ser fundado em huma errada intepretação das ordens de
Sua Magestade, que só fazião menção dos 800$000 <reis> de mera gra-
ça, sem nada dizerem a respeito da congrua originaria. Não quizerão os
Deputados annuir á minha reprezentação por muito tempo ate que vendo
a irrezolução, em que estavão, e com que me entretiverão mais de hum
anno, mandei fazer em 27 de Novembro de 1798 huma reprezentação
por escripto, determinando que rezolvessem n’aquel sessão o que lhes
parecesse, e vendo elles a minha constancia com effeito convierão em
que se reformasse a Portaria antecedente, o que tudo consta da Copia Nº.
1; ficando com esta noticia o Bispo muito mais inimizado commigo, do
que o estava d’antes quando soube, que eu me oppozera a execução da
mesma Portaria.

Não hé menos digno de reparo, o que practicou esta Junta, dando


hum[a] irrisoria interpretação a outra Provizão do Real Erario a beneficio
a beneficio [sic] dos Conegos d’esta Cathedral; e o que hé mais para se
lastimar hé haverem n’ella tres homens formados em Direito, e contra as
simples regras da Hermeneutica, e com notavel perjuizo de Sua Magesta-
de mal, e indevidamente adjudicarem aos referidos Conegos 16:399$116
reis. Porque sendo costume pagar-se por inteiro os ordenados, ou con-
gruas dos Conegos, e Capellaens da Sé, cuja somma total em cada anno
monta a 4:979$ <reis>, quer estivessem as cadeiras todas providas quer
não, [fl. 3vº] aconteceo, que o General Martim Lopez attendendo á falta
de dinheiro, que tinha este cofre, e por outra parte, a que os Conegos pela
falta de hum não lhes acrescia mais trabalho, pois que não rezavão por
isso segunda vez o officio divino, julgou acertado não pagar, senão os
emolumentos respectivos dos Conegos vivos, e prezentes aos officios,

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Memórias do governador Antônio Manuel de Melo Castro
e Mendonça (São Paulo, 1799)

vindo por tanto Sua Magestade cada anno a lucrar o que se vê da copia
Nº. 2, que no fim de 16 annos fez o total de 16:399$116 reis.

Fizerão os Conegos a reprezentação constante da mesma copia, e em


consequência d’ella foi remettida a esta Junta hum[a] Provizão do Real
Erario inserta na referida copia, e pela qual Sua Magestade mandava =
Que a mesma Junta continuasse ao Cabbido a fazer o pagamento da folha
das destribuiçoens quotidianas das Cadeiras vagas, assim como o fazia
antes d’aquella suspenção = Quem não vê, que isto não quer dizer, se não
que se continue a fazer pagamento por inteiro aos Conegos ou estejão to-
dos, ou não, assim como se practicou antes da suspenção: sem que d’aqui
se possa tirar inducção alguma, que sirva de pretexto para se fazer a ex-
torsão de huma avultada somma como são 16:399$116 reis, que mandou
a mesmo Junta restituir aos Conegos muitos dos quaes estão mortos, e
seus parentes recebendo os taes fructos, como se vivos se achassem. Isto
só em São Paulo se vê.

[fl. 4]

Este accontecimento foi outro objecto do meu reparo, e por isso pon-
do da mesma sorte as duvidas, que me occorrião sobre esta rezolução da
Junta, depois de passar mais d’hum anno sem de deliberarem a decidir,
fiz a minha proposta por escripta, e não quizerão reformar a Portaria, fun-
dando-se em que tinhão dado conta a Sua Magestade: o que he falcissimo;
pois a unica parte, que derão, foi, que na conformidade d’aquela Provizão
do Real Erario tinhão passados as Ordens necessarias para os Conegos se-
rem embolçados da quantia, que se lhe devia. Ora isto ditto simplesmen-
te sem alguma reflexão, que fizesse analizar este incurial procedimento,
bem se vê que não havia de fazer maior impressão, deichando portanto de
ser glozada pelo Erario esta despeza; ficando servindo huma determina-
ção fundada na ignorancia, e falta de Luzes dos Deputados d’esta Junta
de principio infallivel para se executar o que huma vez disserão, apezar
de lhes mostrar o mal, que tinhão entendido o espirito d’aquella Provizão.

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Pablo Oller Mont Serrath

Eis-aqui outra pedra d’escandalo para o Cabbido d’esta Cathedral


que unido com o Bispo me fazem as auzencias, de que elles somente
são credores: mas com isso me não embaraço, porque para me encher de
satisfação não precizo mais do que o interno regozijo, que me rezulta de
cumprir á risca o meu dever, e da forma, que o entendo sem me servir
d’obstaculo as relaçoens dos differentes individuos de que se compoem
a mesma Junta.

[fl. 4vº]

He por isto, que estando elles costumados a conferir por huma cha-
mada administração os officios d’esta Capitania aos seus affilhados, eu
não consenti se não, que se dessem por arrematação, como antigamente,
no que lucrou muito a fazenda Real. Da mesma sorte os Amigos, e Pa-
rentes d’alguns Deputados tendo feito hum partido para não lançarem nos
dizimos senão ate certa quantidade, e sabendo isto cooperei para que não
houvessem intelligencias entre os rematantes, fazendo sobir os dizimos
33 mil cruzados mais sobre a remattação do trienio passado. Todas estas
coizas são outros tantos motivos para me serem oppostos os Deputados,
que entrão n’esta relação, e os do seu partido.

Do numero d’estes he o tal Francisco Xavier dos Santos, Amigo do


Capitão Mor de Cunha, em cuja caza se juntavão os outros socios para
criticarem as minhas acçoens, e deliberarem sobre a conta, que devia dar
o mesmo Capitão Mor. Em huma palavra em se zelando a Fazenda Real
necessariamente se adquirem oppostos, e são os que querem impunemen-
te usurpar-lhe os seus rendimentos. Eu fico appromptando huma Memo-
ria sobre o Estado da administração, em que achei a mesma Real Fazenda
d’esta Capitania para mostrar por hum exame comparativo do estado ac-
tual com aquelle, as vantagens provenientes das minhas fadigas, e traba-
lhos, fazendo ver o grande augmento [fl. 5] que em tão pouco tempo tem
adquerido, e quaes serão os meios de o fazer avultar progressivamente.

Sinto não poder fazer quanto dezejo; mas na falta de forças suprirá
a vontade, que me assiste de cooperar para o augmento, e riqueza não

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Memórias do governador Antônio Manuel de Melo Castro
e Mendonça (São Paulo, 1799)

só do rendimento da Fazenda Real, como tambem de toda a Capitania.


Sobejo premio me rezulta de a fazer conseguir hum gráo de prosperidade,
que nunca teve augmentando o seu commercio, e industria, e fazendo por
todos os modos cheios de furtuna os seus habitantes. Pouco importa que
alguns d’elles ingratos ao beneficio, que com todos prodigalizo intentem
denegrir, e macular a minha reputação: Na propria consciencia encontro o
lenitivo d’este mal. Obro honradamente; cumpro a minha obrigação; exe-
cuto as ordens da minha Soberana e procuro fazer ricos os meus subditos
conservando-me mais pobre do que vim. Não tenho mais que appetecer,
se não ser aceito a Vossa Excelência, e merecer a sua estima, e protecção,
para d’esta sorte com tão poderozos auspicios poder completar felizmen-
te a carreira começada. Deus Guarde a Vossa Excelência. São Paulo 12
de Fevereiro de 1799.

Illustríssimo e Excelentíssimo Senhor Dom Rodrigo de Souza Cou-


tinho.

Antonio Manoel de Mello Castro e Mendonça

Referências Bibliográficas
Obra de referência:
FLEXOR, Maria Helena Ochi. Abreviaturas: manuscritos dos séculos XVI ao
XIX. São Paulo: Editora UNESP, 1990, 2ª edição (1ª edição, 1979).
Fontes:
Manuscritas
Arquivo Histórico Ultramarino, Administração Central, Conselho Ultramarino,
Brasil – São Paulo (023), Cx. 14, Doc. 701; cx. 24, doc. 1095.
Arquivo Histórico Ultramarino, Administração Central, Conselho Ultramarino,
Brasil – São Paulo – Mendes Gouveia (023-01), cx. 57, doc. 4303 e 4332.
Arquivo Histórico Ultramarino, Administração Central, Conselho Ultramarino,
Brasil – Minas Gerais (011), cx. 145, doc. 52.
Arquivo Histórico Ultramarino, Administração Central, Conselho Ultramarino,
Brasil – Códices, códice 424.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (474):349-392, maio/ago. 2017. 391


Pablo Oller Mont Serrath

Impressas
Documentos Interessantes para a História e Costumes de São Paulo. São Paulo:
Arquivo do Estado de São Paulo, 1967, vol. 89.
Documentos Interessantes para a História e Costumes de São Paulo. São Paulo:
Arquivo do Estado de São Paulo, 1980, vol. 93.
MENDONÇA, Antônio Manuel de Melo Castro e. ‘Memória dos objectos, que
de recommendação de Sua Magestade, e por utilidade publica devem promover
os juiz e vereadores da Câmara desta cidade’. 1798. Registo Geral da Câmara
Municipal de S. Paulo (1796-1803). São Paulo: Typographia Piratininga, 1921,
vol. 12, pp. 258-260.
MENDONÇA, Antônio Manuel de Melo Castro e. ‘Memória Econômico Política
da Capitania de S. Paulo’. 1800. Anais do Museu Paulista. São Paulo: Museu
Paulista, 1961, tomo 15, pp. 81-247.
MENDONÇA, Antônio Manuel de Melo Castro e. ‘Memória sobre os objetos mais
interessantes da Capitania de S. Paulo entregue ao Ilustríssimo e Excelentíssimo
Senhor Antonio José da Franca e Horta [...]’. 1802. Anais do Museu Paulista.
São Paulo: Museu Paulista, 1964, tomo 18, pp. 227-268.

Texto apresentado em março/2017. Aprovado para publicação em


maio/2017.

392 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (474):349-392, maio/ago. 2017.


O Rei condenado à morte & outras histórias

393

V – RESENHAS
REVIEW ESSAYS

MONTEIRO FILHO, Edmar. O Rei condenado à morte & outras


histórias. Guaratinguetá-SP: Editora Penalux, 206 p. 2015.
Adelto Gonçalves1

Contos dos quais o leitor jamais sairá indiferente

I
Não se sabe quando nasceu o conto na forma como o conhecemos
hoje, mas um arremedo do gênero deve ter sido o primeiro relato que
um homem da caverna tentou fazer a um(a) companheiro(a). Basta ver
que até mesmo sociedades ágrafas guardam narrativas míticas, que foram
transmitidas oralmente de geração para geração. Seja como for, apesar de
suas raízes estarem fincadas na história da Humanidade, o conto como
gênero literário é produto nascido no século XIX, quando a imprensa
começou a se expandir.

A essa época, o leitor de jornais – obviamente, alguém alfabetizado


e possuidor de alguma cultura – passou a se interessar por literatura, o
que justifica o aparecimento não só de relatos pouco extensos nas folhas
diárias, semanais ou quinzenais bem como de capítulos de romances, os
chamados folhetins, que apareciam geralmente no rodapé da página. Ob-
viamente, o conto, como narrativa curta, foi o gênero que mais bem se
adaptou ao espaço limitado dos jornais, atraindo romancistas e contis-
tas conhecidos como Guy de Maupassant (1850-1893), em Paris, Eça de
Queirós (1845-1900), em Lisboa e Machado de Assis (1839-1908), no
Rio de Janeiro.

1 – Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo


(USP). E-mail: marilizadelto@uol.com.br.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (474):393-398, maio/ago. 2017. 393


Adelto Gonçalves

Hoje, em tempos de informática, a narrativa curta acaba de ganhar


novo fôlego, com a proliferação de blogs e sites que reproduzem micro-
textos, a já denominada microficção, ainda que já proliferem pelo menos
desde o início do século XXI os chamados e-books, que reproduzem ro-
mances e livros de todos os gêneros, embora seja a sua leitura exercício
difícil ao menos para aqueles que já carregam mais de cinco ou seis dé-
cadas às costas e foram formados na velha escola do livro impresso e das
bibliotecas públicas.
II
Provavelmente, pressionados pelo espaço reduzido dos jornais e re-
vistas, os contistas procuraram, ao longo do século XX, concentrar suas
narrativas em poucas e resumidas linhas, sem deixar de se aprofundar no
âmago de suas personagens. É de se reconhecer que, no século XX, os
argentinos Jorge Luis Borges (1899-1986) e Julio Cortázar (1914-1984)
foram aqueles que procuraram, por meio do gênero, criar uma nova forma
de fazer literatura na América Latina. Para tanto, buscaram romper com
os modelos clássicos, produzindo narrações que escapam à linearidade
temporal. Geralmente, suas personagens adquirem autonomia, graças à
profundidade psicológica que lhes creditam.

No Brasil, não foram poucos os escritores que se sentiram influen-


ciados pela maneira criativa de escrever narrativas breves que tanto Bor-
ges quanto Cortázar exibiam. Ainda hoje essa influência é visível, como
pode constatar quem vier a ler O Rei condenado à morte & outras histó-
rias (Guaratinguetá-SP, Editora Penalux, 2015), de Edmar Monteiro Fi-
lho (1959), que reúne relatos inéditos e outros já publicados e premiados.

Entre os textos inéditos, está o conto que abre o livro, uma narrativa
densa que tem como pano de fundo o futebol, curiosamente um tema pou-
co explorado pelos escritores brasileiros, embora essa seja a modalidade
esportiva mais popular no País. É de se recordar que, desde o começo do
século XX, o excepcional romancista Lima Barreto (1881-1922) sem-
pre se opôs ao futebol, não propriamente contra a prática esportiva, mas

394 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (474):393-398, maio/ago. 2017.


O Rei condenado à morte & outras histórias

contra um projeto político-ideológico das elites que procurava fazer do


football um esporte praticado só por pessoas bem-postas na vida.

O Rei, como percebe o leitor a partir da capa, é Pelé, o jogador mais


famoso do mundo, mas o foco do conto recai sobre personagens secun-
dárias, coadjuvantes, as “vítimas” do malabarismo do atacante, ou seja,
jogadores obscuros – ou pelo menos não tão notórios e famosos como Ele
(a quem se reverencia com a letra inicial em maiúscula) – que, em algum
momento de suas carreiras, tiveram de enfrentar a sua genialidade.

O conto começa com Gustavsson, zagueiro da seleção sueca, “hu-


milhado” por um “chapéu” desconcertante na derrota da Suécia para a
Seleção Brasileira, na final da Copa do Mundo de 1958. Avança com um
relato que parece saído das páginas de um jornal da década de 1950 e que
reproduz os acontecimentos de um dia de sábado à tarde, em agosto de
1959, quando, no estádio Conde Rodolfo Crespi, na Rua Javari, no tradi-
cional bairro da Mooca, em São Paulo, o Santos derrotou o Juventus pelo
Campeonato Paulista e Pelé marcou um gol antológico, depois de aplicar
dois “chapéus” em dois antagonistas e mais um no goleiro Mão de Onça.

O conto reconstitui ainda o antológico “gol de placa”, anotado por


Pelé, em 1961, no Maracanã, em lance em que metade da equipe do Flu-
minense foi driblada pelo craque. E encerra-se com os acontecimentos de
certa noite de domingo de 1969, no mesmo estádio do Maracanã, onde
ocorreu o chamado “milésimo gol” marcado por Pelé diante do goleiro
argentino Andrada, do Vasco da Gama. Desse episódio há um vídeo que
mostra como “El Gato”, depois de sofrido o gol, dá socos no chão, incon-
formado por passar para a história como coadjuvante da glória do Rei do
futebol. Anos mais tarde, Andrada voltaria às páginas dos jornais, desta
vez acusado de ter colaborado em crimes praticados em 1983, à época
da última ditadura militar (1976-1983) que tanto infelicitou a Argentina.
III
No segundo relato do livro, “Primeiro de janeiro é o dia dos mortos”,
laureado com o Prêmio Guimarães Rosa de 1997, em concurso promovi-

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (474):393-398, maio/ago. 2017. 395


Adelto Gonçalves

do pela Rádio França Internacional, o contista mergulha no inconsciente


de um policial alcoólatra, às voltas com um assassino de mendigos na
cidade de São Paulo. Em outro conto, “Alfinete”, um médico psiquiatra
sofre uma estranha metamorfose diante dos olhos do leitor, assumindo as
idiossincrasias e alucinações de seu paciente, tal como uma personagem
de Franz Kafka (1883-1924).

Aliás, no conto “Água Suja”, Edmar Monteiro Filho repete também


o cotidiano sufocante e burocrático de Kafka, ao reconstituir a vida de
um funcionário da Justiça em sua tentativa de conciliar as divergências
entre dois cidadãos. Em outro texto, “Cavaleiro negro contra o matador
de cangaceiros”, igualmente criativo, o autor investiga a alma de um filho
oprimido pelo pai, que busca conforto nos desafios de uma máquina de
fliperama.

Em “Voador”, os personagens são Kublai Khan, Marco Polo, Italo


Calvino, o rei V. e o próprio autor. Como numa fábula, o leitor pode viajar
no tempo e no espaço, indo da China a Florença, passando por Amparo,
pequena cidade do interior de São Paulo. Enfim, são oito relatos dos quais
o leitor não sairá ileso e muito menos indiferente, tal a inventividade do
seu autor.
IV
Edmar Monteiro Filho escreve e publica desde 1980. Possui gra-
duação em Ciências Biológicas, pela Universidade Federal de São Paulo
(1980), e em História, pela Fundação Municipal de Ensino Superior de
Bragança Paulista (2007), com especialização em História Cultural pela
mesma instituição de ensino (2010). É mestre em Teoria e História Lite-
rária pela Universidade Estadual de São Paulo (Unicamp), título obtido
com a dissertação “O major esquecido: Histórias de Alexandre, de Gra-
ciliano Ramos” (2013). Atualmente é doutorando em Teoria e História
Literária na Unicamp.

Recebeu também o Prêmio Cruz e Souza de Literatura, com o livro


Aquários (contos, Fundação Catarinense de Cultura, 2000). Publicou ain-

396 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (474):393-398, maio/ago. 2017.


O Rei condenado à morte & outras histórias

da Este lado para cima (poesia, edição de autor, 1993); Halma húmida
(poesia, edição do autor, 1997); Às vésperas do incêndio (contos, edição
do autor, 2000), com o qual conquistou o Prêmio Cidade de Belo Ho-
rizonte; Que fim levou Rick Jones? (contos, 2010); e a novela Azande
(edição de autor, 2004).

Nascido na cidade de São Paulo, mora em Amparo, desde a infân-


cia, mas, como funcionário do Banco do Brasil, pôde viajar por quase
todo o País recolhendo experiências que depois utilizaria em seus contos.
Também atuou como funcionário do Fórum local. Foi ainda em jornais
de Amparo que começou a publicar seus textos, em 1981, ano em que
ganhou seu primeiro prêmio literário com o conto “Maré vermelha”, na
cidade de Araguari-MG. Desde 1997, ministra oficinas literárias de con-
tos em várias cidades. Assina uma coluna em que faz resenhas de livros
no jornal semanário A Tribuna, de Amparo.

Texto apresentado em julho/2016. Aprovado para publicação em ou-


tubro/2016.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (474):393-398, maio/ago. 2017. 397


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