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Vivência de trabalhadores de um centro

TEMAS LIVRES FREE THEMES


de atenção psicossocial: estudo à luz do pensamento
de Martin Heidegger e Hans-Georg Gadamer

Workers experiences from psychosocial


assistance center: study in Martin Heidegger
and Hans-Georg Gadamer approach

Maria Lúcia Pinheiro Garcia 1


Maria Salete Bessa Jorge 2

Abstract This study is the result of a public Resumo Este estudo é resultado de uma disser-
health mastership dissertation and had the pur- tação de mestrado em saúde pública e teve por
pose of comprehend the mental health workers objetivo compreender as vivências dos trabalha-
experiences from Psychosocial Assistance Center dores de saúde mental do Centro de Assistência
in Regional III Executive Secretary (Caps-SER Psicossocial da Secretaria Executiva Regional III
III) – Fortaleza/CE. It’s a phenomenological/ (Caps-SER III) em Fortaleza/CE. É uma aborda-
hermeneutic approach (interpretative), in the light gem fenomenológica/hermenêutica (interpretati-
of the thought of Martin Heidegger and Hans- va) à luz do pensamento de Martin Heidegger e
Georg Gadamer, using the hermeneutic situation Hans-Georg Gadamer, utilizando a situação her-
to analyze the discourses. Ten phenomenological menêutica para analisar os discursos. Foram rea-
interviews were carried out with a guide question: lizadas ao todo dez entrevistas fenomenológicas
“How do you experience the mental health atten- com a pergunta norteadora: “Como você vivencia
tion in Caps?” Five health workers and five base a atenção à saúde mental no Caps?” Participa-
workers took part in the interviews, respecting the ram das entrevistas cinco trabalhadores da saúde
theoretical saturation process. The discourses ex- e cinco de apoio, sendo respeitado o processo de
press the psychiatric circumvision in a continuous saturação teórica. Os discursos expressam a cir-
process of transformation producing the Caps cir- cunvisão da psiquiatria em um processo contínuo
cumvision. In this process, Caps workers resound de transformação, dando origem à circunvisão do
distinct feelings with experiences that generate Caps. Neste processo, os trabalhadores do Caps
psychic suffering to some workers, and acting on ressoam sentimentos diferenciados, com vivências
their mental health. With the disclose of their ex- que geram sofrimento psíquico para alguns tra-
periences, I hope this study could contribute to balhadores, influenciando em sua saúde mental.
enrich the mental health care construction of Caps Com o des-velamento de suas vivências, espera-se
workers, insert in the psychiatric reform process. que este estudo possa contribuir para o enriqueci-
1 Universidade Key words Psychosocial, Mental health, Phe- mento da construção do cuidado à saúde mental
Estadual do Ceará. nomenology dos trabalhadores do Caps inseridos no processo
Av. Paranjana 1700,
Campus do Itapery, da reforma psiquiátrica.
60740-903, Fortaleza CE. Palavras-chave Psicossocial, Saúde mental, Fe-
branca@secrel.com.br nomenologia
2 Grupo de Pesquisa Saúde
Mental, Família e Práticas
de Saúde da UECE.
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Garcia, M. L. P. & Jorge, M. S. B.

Introdução nários. Oliveira & Silva6 complementam ainda,


dizendo que é um percurso que possibilita o
Dos avanços e retrocessos na história da refor- resgate da autonomia por meio do aumento do
ma sanitária, firmou-se constitucionalmente em poder de contratualidade psicológica e social. E
1988 a ampliação das fronteiras da saúde, es- acrescentam: tratar e reabilitar são dois momen-
tando inserida em seu arcabouço a reforma psi- tos inseparáveis. Para se reabilitar o usuário, é
quiátrica. As mudanças, que vinham ocorrendo necessário oferecer diariamente um tratamento
nas políticas de saúde desde os finais de 1970, de qualidade cujo objetivo central seja a criação
propiciaram maior inclusão de outros profis- de um espaço de [...] acolhimento [...] de possi-
sionais na equipe de saúde, além dos médicos. bilidades maiores de autonomia, liberdade e soli-
O novo enfoque punha fim ao “reinado” do hos- dariedade6.
pital psiquiátrico, garantindo que a saúde men- O Centro de Atenção Psicossocial – Caps,
tal fosse conquistada em outros espaços que per- através de sua estrutura física e ideológica con-
mitissem o exercício da cidadania pelos “doen- cretiza o resultado da reflexão sobre a forma de
tes mentais”. Essa conquista foi germinada num cuidado da saúde mental dirigida aos portado-
contexto sociopolítico que deu suporte às críti- res de transtorno mental no século 20. Rompe
cas acirradas que os profissionais da saúde men- com os pressupostos da psiquiatria clínica ini-
tal teciam ao modelo hospitalocêntrico1. ciada no século 18, intervindo de forma a dire-
De acordo com Ribeiro & Gonçalves2, [...] cionar o portador de transtorno mental para
a reforma psiquiátrica ultrapassa as formas téc- uma maior autonomia. A noção de reabilitação
nicas, científicas, administrativas, jurídicas, le- psicossocial norteia as ações da equipe multi e
gislativas, constitui-se em uma mudança da so- interdisciplinar; a medicação é utilizada após
ciedade no lidar com loucura. uma cuidadosa avaliação e em complementari-
Com a finalidade de respaldar a reforma, o dade com ações interdisciplinares.
deputado Paulo Delgado sugeriu em 1989 um Após um levantamento dos artigos publica-
projeto de lei que visava, entre outras coisas, a dos por este periódico nos últimos anos (2000-
progressiva extinção dos manicômios e sua subs- 2005), encontrei cinco que se reportam à temá-
tituição por outros recursos assistenciais. Essa tica da saúde mental: Campos & Soares7 descre-
lei foi aprovada em 2001, em virtude da inten- vem as concepções de saúde mental de trabalha-
sa mobilização popular. dores de diferentes serviços de saúde mental do
No Brasil, segundo Guimarães et al.3, os município de São Paulo, e conclui que a concep-
Novos Movimentos Sociais (NMSs) surgiram ção do processo saúde-doença mental, no Caps,
nas décadas de 1970/80, ou seja, em um mo- aproxima-se da teoria da determinação social,
mento político de transição democrática pós- ou seja, relaciona o indivíduo à sua rede social.
ditadura. De acordo com Oliveira et al.4, [...] Torre & Amante8 refletem sobre as práticas
paralelamente à luta pela redemocratização e atuais no campo da saúde mental que têm co-
reorganização da sociedade civil brasileira, in- mo proposta a construção coletiva do sujeito
tensificaram-se no país os debates e as reflexões não mais como alienado, mas como protagonis-
sobre a assistência à saúde mental. ta de uma nova relação social com a loucura.
Outrora as políticas de saúde mental atua- Medeiros & Guimarães9 trazem a cidadania
vam de forma excludente, ou seja, marginali- para o debate no campo da saúde mental; e Oli-
zante. Com as mudanças, elas atingiram direta- veira & Alessi10 a analisam como instrumento
mente o modelo manicomial e hoje estão, se- e finalidade do processo de trabalho das equi-
gundo Pegoraro & Ogata5, voltadas para não pes de instituições de atenção extra-hospitalar
cronificar novos pacientes, mas para desospitali- da rede pública de Cuiabá (MT). Concluem
zar e também desinstitucionalizar a população que o conceito de cidadania e “doente mental”
asilada que tenha potencial e/ou condições para não foi problematizado e, portanto, não resulta
tal, através do incentivo (muitas vezes insuficien- em atitudes terapêuticas que possibilitem ou
te) à criação de serviços alternativos. assegurem a participação cidadã de profissio-
Podemos concluir que os autores citados nais e usuários.
nos parágrafos anteriores almejam a reabilita- Trazemos então um estudo que também re-
ção do sofredor psíquico. Conforme Oliveira & flete sobre a temática da saúde mental. A pes-
Silva6, a reabilitação psicossocial é um processo quisa traz as vivências de trabalhadores do Caps
que aumenta a capacidade do usuário de esta- que transitam no contexto sócio-histórico da
belecer trocas sociais e afetivas nos diversos ce- reforma psiquiátrica.
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Na busca de tornar o texto mais acessível, A existência do Ser se dá em um horizonte
devido à utilização do complexo quadro con- experiencial que contém concomitantemente a
ceitual fenomenológico utilizado pelas autoras condicionalidade da finitude humana, a tradi-
e da interpretação hermenêutica para a com- ção constituída pelo contexto sócio-histórico e
preensão dos discursos, viu-se a necessidade de a incondicionalidade da abertura do Ser, pois o
uma definição mais extensa dos termos utiliza- Ser é linguagem. Todas as possibilidades de ser
dos. Entretanto, mesmo assim, é recomendada em sua potencialidade estão contidas no uni-
uma pesquisa à obra dos filósofos, visto que os verso experiencial e são escolhidas pelo Ser a
termos já traduzidos da obra original em alemão cada ins-tante de sua ex-sistência.
podem deixar margem a dificuldades na com- As interpretações que o Ser faz de sua própria
preensão contextual. Em conformidade com as existência, portanto, já foram de alguma forma
exigências deste periódico relativas ao número compreendidas por ele, pois nasceram do uni-
de caracteres, não será possível retratar os dois verso experiencial; e por ser aberto para possi-
núcleos de sentido que constam na dissertação bilidades, ao entrar em contato com a tradição,
que serviu de base para este texto. Para não não a retrata fielmente. Isto porque a com-
prejudicar a compreensão do estudo como um preensão, segundo Gadamer12, [...] nunca é um
todo, será discorrida a análise de dois aspectos comportamento reprodutivo, mas [...] sempre
do núcleo de sentido, que refletem a vivência produtivo; [...] Face ao perguntar cabe um com-
de trabalhadores do Caps imersos na tradição. portamento potencial, de simples teste, porque
perguntar não é pôr, mas provar possibilidades.
Como o Ser, além de estar condicionado
Metodologia pela tradição, pertence também a uma dimen-
são incondicional, está aberto para possibilida-
Este estudo configura-se como predominante- des em seu pre, o questionamento que se faz é:
mente qualitativo, utilizando-se a abordagem como os trabalhadores do Caps, com um hori-
hermenêutica/interpretativa de Martin Hei- zonte experiencial, compreendem-se como se-
degger e Hans-Georg Gadamer, fazendo uso da res-no-mundo-com-os-outros no cuidado à
situação hermenêutica (constituída de posição saúde mental, na perspectiva de se abrirem pa-
prévia, visão prévia e concepção prévia) para a ra novas possibilidades de atuação? O objetivo
análise compreensiva dos discursos. é trazer à tona a compreensão que têm da tradi-
O enfoque metodológico da hermenêutica ção, tornar transparentes os preconceitos atuan-
interpretativa de Heidegger11 e Gadamer12 pos- tes nas concepções de cuidado ao portador de
sibilitam conhecer a tradição da reforma psi- transtorno mental e que os condicionam na for-
quiátrica que, mediante a linguagem utilizada ma que prestam esse cuidado.
por seus trabalhadores, vem à tona. A tradição O trabalhador de saúde mental do Caps
é a bagagem de conceitos repassados ao longo (pre-sença), ao relatar sua vivência no cuidado
dos tempos e que condicionam as ações presen- à saúde mental, disponibiliza para o pesquisa-
tes de forma inconsciente. dor a interpretação que faz do seu horizonte
A tradição se manifesta através da lingua- experiencial, que é singular.
gem. Para Heidegger11 e Gadamer12, o Ser é lin- Para Heidegger11, a interpretação herme-
guagem, nomeia o mundo. A linguagem carac- nêutica em sua instância única se reporta ao ser
teriza a relação do Ser com o mundo, diferen- da pre-sença: [...] Em seu caráter existencial de
ciando-o de todos os demais seres vivos. Com a projeto, a compreensão constitui o que chama-
linguagem, o Ser torna-se livre face ao mundo mos de visão da pre-sença. A visão que, junto
que o circunda, pois é aberta a possibilidade de com a abertura do pre, se dá existencialmente é,
interpretá-lo, o que lhe traz a dimensão onto- de modo igualmente originário, a pre-sença, nos
lógica. Então, ao mesmo tempo em que o Ser é modos básicos de seu ser, já caracterizados, a sa-
temporal, finito como ser sócio-histórico, é ber, a circunvisão da ocupação, a consideração
aberto para possibilidades em seu Ser. Este Ser da preocupação, a visão do ser como tal em fun-
é designado por Heidegger11 como “Dasein”, ção do qual a pre-sença é sempre como ela é [...].
terminologia alemã que significa pre-sença. A O trabalhador do Caps, antes de expor sua
palavra “pre-sença” é hifenizada (como todas as vivência para o pesquisador, passa por um pro-
outras criadas por Heidegger) para retratar a cesso de reflexão e organização intelectiva de
dimensão ontológica, incondicional do Ser, que suas experiências, para que estas sejam expos-
em sua essência está aberto para possibilidades. tas de forma organizada dentro de uma racio-
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Garcia, M. L. P. & Jorge, M. S. B.

nalidade. Seu discurso é resultado desse pro- O quadro de trabalhadores efetivos é for-
cesso produtivo, que Heidegger13 e Gadamer12 mado por concursados e terceirizados, e se com-
definem como situação hermenêutica. Esta é põe de: coordenadora (1), psiquiatras (4), psi-
constituída de três momentos (posição prévia, cólogos (2), enfermeiras (2), terapeutas ocupa-
visão prévia e concepção prévia) que interagem cionais (2), assistentes sociais (3), auxiliares de
sempre que ocorre um processo de compreen- enfermagem (2), atendentes/recepcionistas (4),
são. Com relação à interação entre os momen- porteiros (2), auxiliares administrativos (4) e
tos da situação hermenêutica, Heidegger11 diz auxiliares de serviços gerais (2). O atendimen-
que a visão prévia faz um recorte do que já foi to à clientela e o desenvolvimento de projetos é
assumido na posição prévia, definindo o con- realizado também por profissionais agregados,
junto das articulações. Ou seja, entre as várias que são funcionários públicos estaduais ou fe-
possibilidades de interpretação, a visão prévia, derais cedidos para desenvolverem trabalhos
ao fazer um recorte da posição prévia, fixa o pa- no Caps por se identificarem com a proposta da
râmetro em função do qual o compreendido há reforma psiquiátrica. Além desses, há ainda os
de ser interpretado. Quando é interpretado, tor- extensionistas e alunos da UFC que utilizam o
na-se conceito (concepção prévia) numa apre- Caps como campo de prática.
ensão das duas posições anteriores. O que é ex- A escolha desta instituição decorreu pelo
posto pelo entrevistado já é o resultado da si- fato de a mesma atender às exigências da pes-
tuação hermenêutica, ou seja, uma concepção quisa, ou seja, ser um espaço que reflete os no-
prévia. vos conceitos de atenção à saúde mental.
A análise compreensiva deste estudo, então, Todos os trabalhadores responderam de
foi resultado da intermediação entre a pré-com- forma favorável ao convite; porém, foi respei-
preensão (concepção prévia) do fenômeno, co- tado o processo de saturação teórica, no qual a
mo pesquisadora (pre-sença), e os relatos (con- apreensão do fenômeno é que determina a
cepções prévias) dos entrevistados. Estes toma- quantidade de sujeitos. Dessa forma, foram rea-
ram a forma de “posição prévia” na situação lizadas ao todo dez entrevistas, das quais cinco
hermenêutica, pois foram o esteio para a inter- foram com os profissionais de apoio/burocrá-
pretação, nortearam o universo que a visão pré- ticos e cinco com os profissionais de saúde. As
via determinou para as argumentações. As me- entrevistas foram gravadas com anuência pré-
diações realizadas pelas pesquisadoras são con- via dos participantes, que também assinaram o
cepções prévias, portanto, que darão início a Termo de Consentimento Livre e Esclarecido,
uma nova situação hermenêutica para os leito- respeitando-se o protocolo do Comitê de Ética
res deste estudo. da Universidade Estadual do Ceará, parecer no
O local da pesquisa foi o Centro de Atenção 4252640-0, de 25/10/04, condizente com as di-
Psicossocial mantido pela Secretaria Executiva retrizes e normas da Resolução 196/1996 do
Regional III – SER III e pelo Hospital Universi- Conselho Nacional de Saúde, que regulamenta
tário Walter Cantídio – HUWC, da Universida- as pesquisas envolvendo seres humanos, bem
de Federal do Ceará – UFC, em Fortaleza/CE. como da Resolução no 251, de 7/08/1997, do
O Caps da SER III é um serviço especializa- mesmo Colegiado.
do em saúde mental e integra a proposta de re- Todos os entrevistados escolheram o pró-
forma psiquiátrica em desenvolvimento no prio Caps como local para a coleta de dados.
Brasil. Funciona há mais de cinco anos e aten- A transcrição das fitas ocorreu logo após as
de pessoas com os mais diversos tipos de sofri- entrevistas, para que não ficassem prejudicadas
mento psíquico, residentes em 52 bairros de as observações das expressões não verbais que
Fortaleza, 27 bairros da SER I e 25 da SER III. ocorreram durante o “diálogo”. As observações
O Caps disponibiliza atendimentos diversi- livres constatadas no campo, antes, durante e
ficados, direcionados pelo projeto terapêutico, após as entrevistas (como a fisionomia dos usuá-
incluindo grupos terapêuticos, oficinas, o ser- rios e trabalhadores, características do Caps, de
viço de balcão da cidadania, visitas domiciliá- cada profissional e suas relações), foram anota-
rias, grupo de sala de espera, entre outros. Com das no diário de campo. E o bloco de anotações
relação à comunidade, o Caps coordena o cur- utilizado constantemente no dia-a-dia conteve
so “Capacitação em saúde mental”, como for- as idéias evocadas a partir do contato com o
ma de levar aos profissionais que estão no mer- campo de pesquisa. Era a opinião prévia do fe-
cado os aspectos políticos e práticos do contex- nômeno que ora se identificava, ora se diferen-
to da reforma psiquiátrica. ciava do que tinha sido relatado nas entrevis-
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tas. Encontrava-se em pleno processo compre- ela está junto aos entes intramundanos e, por
ensivo e existia ressonância nas idéias de Gada- ter a estrutura ser-com, relaciona-se com seu
mer12: [...] Quando se ouve alguém ou quando próprio mundo e o mundo dos outros que a
se empreende uma leitura, não é necessário que circundam, e tem de ser na possibilidade do
se esqueçam todas as opiniões prévias sobre seu seu poder-ser. Isto significa responder ao cha-
conteúdo e todas as opiniões próprias. O que se mado do seu ser (pre da pre-sença) para exer-
exige é simplesmente a abertura à opinião do ou- cer as potencialidades entranhadas em suas pos-
tro ou à do texto. Mas essa abertura já inclui sem- sibilidades, que só pertencem a ela, e que não
pre que se ponha a opinião do outro em alguma lhe cabe transferir esta responsabilidade para
relação com o conjunto das opiniões próprias, ou outro, suportando, inclusive, a possibilidade de
que a gente se ponha em certa relação com elas. não-ser, no sentido de que a morte pode acon-
Das leituras das entrevistas surgiu o núcleo tecer a qualquer momento e lhe tirar todas as
de sentido – a pre-sença na tradição, através de possibilidades de existir.
duas visões prévias: 1) a pre-sença na circunvi- A pre-sença como ser-no-mundo desempe-
são do hospital psiquiátrico; 2) a pre-sença na nha uma ocupação, e nela tem contato com
circunvisão do Caps – heterogeneidade de ho- instrumentos que lhe servem. Estes instrumen-
rizontes experienciais. tos, que são os entes intramundanos, têm sua
A visão prévia foi o recorte dos discursos funcionalidade inseridos em uma conjuntura
(posição prévia) dos trabalhadores do Caps, própria, e é esta conjuntura que define o “para
que se apresentaram como o conteúdo que veio quê” ele existe.
ao encontro das pesquisadoras. Condensa as A palavra manual é utilizada por Heideg-
vivências sedimentadas no processo de angús- ger11 para definir o modo de ser do ente intra-
tias e reflexões que se abriram para a possibili- mundano. A pre-sença está junto à ocupação
dade de criar alternativas para o cuidado em como ser-no-mundo e se encontra desempe-
saúde mental. nhando o “estar-com” o manual. Na relação es-
A análise transcorrida é a concepção prévia, tar-com o manual, a pre-sença pode refletir so-
como uma interpretação provisória determina- bre a serventia do manual e, a partir daí, buscar
da por uma possibilidade da interpretação do outros entes que respondam às suas necessida-
que foi manifestado na posição e visão prévia. des de ser pre-sença. A pre-sença se interpreta,
de início, pelo ser dos entes intramundanos11.
A relação que acontece entre duas pre-sen-
Resultado do estudo ças é uma relação de co-pre-sença, pois ambas
têm um mundo vivencial e a estrutura ser-com
O fenômeno que se des-vela com os trabalhado- lhes dá a capacidade de reflexão sobre ele. Com
res do Caps, a partir de seus discursos, não po- os entes intramundanos, a pre-sença “está jun-
dia deixar de ser permeado por suas inquieta- to”, é diferente da relação “ser-com”, que ela man-
ções pessoais e nem desvinculado do contexto tém com outra pre-sença. Ente é tudo que não
sociopolítico. Este se manifesta através de espa- tem a condição de reflexão sobre seus atos. A
ços físicos (hospital psiquiátrico e Caps), que já pre-sença está-em-um-mundo-com-os-outros,
são manifestações existenciais da pre-sença co- pois está em relação com os entes intramunda-
mo ser-em-um-mundo e junto a ele. nos (está junto) e com as pre-senças (ser-com).
É a partir desta relação ser-junto na ocupa- Reportando-se aos trabalhadores de saúde
ção e ser-com o usuário que os discursos dos mental, infere-se que, como pre-senças, eles de-
trabalhadores do Caps configuraram a situação senvolvem a relação de cuidado com outra pre-
hermenêutica. A seguir, apresentarei a análise sença – o portador de transtorno mental, que
dos discursos trazendo à tona algumas das es- está na relação participando seu mundo viven-
truturas da pre-sença (ser-em, ser-com) em sua cial, como também com os outros trabalhado-
historicidade, abordadas por Heidegger11 e Ga- res de saúde mental que compartilham do saber
damer12. e que possibilitam o cuidado ao usuário numa
perspectiva interdisciplinar. Além disso, estão
A pre-sença na tradição; a pre-sença na na ocupação juntos aos entes intramundanos.
circunvisão do hospital psiquiátrico No contexto desta pesquisa, a instituição
psiquiátrica e o Caps aparecem como entes cu-
A pre-sença existe como ser-no-mundo e jos instrumentos servem aos trabalhadores
está lançada na existência11. Isto quer dizer que (pre-senças) de saúde mental em seu modo de
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Garcia, M. L. P. & Jorge, M. S. B.

ser-no-mundo. Enquanto o Caps oferece ins- sença”13. A conjuntura que define a serventia
trumentos de intervenção, inseridos no ideal da (para quê) dos instrumentos da instituição psi-
reforma e que servem aos trabalhadores na re- quiátrica “surpreende” os trabalhadores (pre-
lação de cuidado, que leva em consideração a senças) da saúde mental, ao mesmo tempo em
relação de co-pre-sença, a instituição psiquiátri- que a pre-sença se abre em seu pre por meio da
ca a direciona para o modo tradicional, que re- angústia, porque são seres-no-mundo-em-rela-
flete a impossibilidade de o portador de trans- ção-com-os-outros. É a surpresa, segundo Hei-
torno mental refletir sobre sua existência, não degger13, que tem a função de desvendar o ma-
se percebendo como pre-sença (modo impes- nual, ou seja, descobrir o ente (a instituição
soal). psiquiátrica), o próprio-impessoal, que vem ao
Mas, mesmo exercendo o cuidado em uma encontro dos trabalhadores do Caps como pre-
instituição psiquiátrica com instrumentos di- senças, mostrando sua determinação mundana
recionando para um modo impessoal, os tra- e denunciando suas faltas.
balhadores de saúde mental tinham a possibili- A surpresa só atinge o próprio-impessoal,
dade de se abrir para o modo pessoal de existir. possibilitando a manifestação do próprio-pes-
Os discursos seguintes retratam esta idéia: [...] soal, porque está na pre-sença a guarda de to-
já estou perto de me aposentar [...] trabalhei em das as possibilidades11. Assim, os trabalhado-
hospital psiquiátrico[...] paciente confinado[...] res, mesmo imersos na conjuntura hospitalo-
ficava frustrada diante do tratamento[...] a co- cêntrica, puderam criar uma nova conjuntura
munidade não era tratada [...] a reforma veio para responder a uma nova escolha na possibi-
destruir algumas barreiras[...] (Discurso VII). lidade de escutar o modo próprio-pessoal.
Os relatos revelam que os trabalhadores es- [...] Em 87 quando eu fiz a cadeira de psico-
tavam abertos em seu pre, não exerciam o cui- patologia e visitava o hospital psiquiátrico [...]
dado no modo impessoal, recusavam-se a utili- fui uma das que polemizou. Eu achava aquilo
zar os instrumentos (entes intramundanos) em um absurdo[...] E, em 1989, fui buscar isso em
sua manualidade cotidiana e a se realizarem na São Paulo e conheci uma proposta nova que [...]
de-cadência. A de-cadência tem a função de dei- há vinte anos atrás aqui achava um sonho[...] a
xar o ser-próprio fechado e obstruído nas suas Lei Mário Mamede, a Lei Paulo Delgado [...] ver
possibilidades de ser em seu pre. O ser-no-mun- o que a gente sonha na prática é uma delícia [...]
do aberto na de-cadência tem a sensação de juntando as experiências que vivi, criei uma sis-
tranqüilidade pela familiaridade cotidiana, e temática de grupo que dava certo no contexto do
não percebe que está alienado de si mesmo Caps (Discurso X).
(não desempenhando suas potencialidades co- Para Heidegger11, o mundo circundante tor-
mo ser), constantemente tentado e aprisionado na familiares seus instrumentos, mantendo-os
na medianidade11. No discurso acima, perce- em sua serventia e, por intermédio do manual,
be-se um movimento de busca de um sentido torna qualquer falta, qualquer inadequação ins-
mais autêntico de existência, porque é da essên- trumental, inacessível à circunvisão, que, desta
cia da pre-sença a possibilidade de já se com- forma, não desempenha seu papel de perceber
preender, e por isso se escolher em seu pre. A o mundo nas suas faltas, com seu vazio. [...] Na
de-cadência é a forma de ser sem reflexão das familiaridade com o mundo a pre-sença pode se
ações e atitudes como ser-no-mundo. perder e ser absorvida pelo ente intramundano
A de-cisão dos trabalhadores do Caps de se que vem ao seu encontro11.
contrapor aos instrumentos da instituição psi- Diante do exposto por Heidegger11, inferi-
quiátrica é despertada pela angústia, clamando mos que o hospital psiquiátrico, no contexto
para que a pre-sença seja em seu fundamento, deste estudo, caracteriza o ente intramundano
na cura. Para Heidegger13, a de-cisão é o “[...] com sua conjuntura na manualidade, colocan-
deixar-se proclamar no ser e estar em débito do a atuação de alguns trabalhadores imersos
mais próprio”. O estar em débito significa que na de-cadência.
a pre-sença, sempre ao escolher uma possibili- O que caracteriza o ser-no-mundo aberto
dade, deixa de escolher outra porque só existe na de-cadência, no que diz respeito à relação de
como “lançada” em seu poder-ser e permanece cuidado em saúde mental, é o modo impessoal
assim continuamente aquém de suas possibili- no qual a relação de cuidador-cuidado é de subs-
dades. O clamor, então, ao interpelar a pre-sen- tituição. Nesta, o cuidador tira do portador de
ça no que possa estar em débito “[...] abre o transtorno mental a possibilidade de ser escu-
poder-ser como a singularidade de cada pre- tado em seu ser, movendo-se: na fala comum
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de prescrições médicas que se repete para to- tituição psiquiátrica caracterizado pela “substi-
dos os que buscam o cuidado à saúde mental; tuição”. Esta forma se define para Heidegger11
na curiosidade de experimentar as inovações como: [...] retirar o “cuidado” do outro e tomar-
mercadológicas, as novas drogas que dispersam lhe o lugar nas ocupações, substituindo-o [...] o
o portador de transtorno mental (presença) de outro pode tornar-se dependente e dominado
novas possibilidades de ser singular; e na ambi- mesmo que esse domínio seja silencioso e perma-
güidade, que imprime ao cuidador uma massi- neça encoberto para o dominado. Essa preocupa-
ficação de suas conduções na adequação às con- ção substitutiva [...] determina a convivência re-
dutas terapêuticas medicamentosas. cíproca [...] na maior parte das vezes, diz respei-
O trabalhador de saúde mental no modo to à ocupação do manual.
pessoal se move atendendo ao seu ser, criando Ao desempenhar a possibilidade de cuidar
instrumentos que respondam às necessidades na postura de anteposição, o trabalhador de saú-
de sua decisão, mesmo inserido em uma con- de mental se preocupa com a existência do por-
juntura que lhe desfavoreça: [...] No hospital tador de transtorno mental. Com ele se preo-
psiquiátrico [...] conversava com os pacientes, cupa e não “se ocupa”, ajuda-o a se tornar trans-
entrava nas alas, visitava as enfermarias, já cha- parente para si mesmo e livre para a “cura”. A
mava as famílias para conversar, já fazia relató- preocupação se guia pela consideração e pela
rios de casos, já conversava com os médicos [...] tolerância. É a relação de cuidado na qual a
era motivada pela vontade de fazer diferente [...] pre-sença exerce a solicitude, confia que o ou-
comecei a ler os prontuários, procurava saber tro tem capacidade de lidar com sua própria
porque o médico colocava que o paciente era psi- existência: [...] o que mais me satisfaz na saúde
cótico crônico [...] porque se reinternavam, e mental é ver a recuperação [...] A condição de
muitas vezes eu achava que a reinternação não um paciente, que estava à margem do convívio
tinha necessidade [...] (Discurso VI). familiar e social, ser readquirida quando ele read-
Para sair do modo impessoal, no entanto, a quire o seu equilíbrio mental minimamente [....]
pre-sença precisa escutar o clamor da consciên- (Discurso VI).
cia que é [...] uma aclamação do próprio-impes- O portador de transtorno mental é co-pre-
soal para o seu si-mesmo em seu poder-ser-si- sença, um ser que, como o trabalhador de saú-
mesmo, e assim uma proclamação da pre-sença de mental, “está lançado”, ou seja, está jogado
em suas possibilidades13, como desvelado no dis- no cotidiano, mas com a possibilidade de aber-
curso anterior e no seguinte: [...] Meu primeiro tura para o seu pre, para o seu próprio-pessoal,
emprego foi no hospital psiquiátrico[...] eu fiquei ou seja, para Heidegger11: [...] ser co-presente
muito chocada [...] tínhamos colegas do hospital: caracteriza a pre-sença de outros na medida em
assistente social, enfermeira, terapeuta ocupacio- que, pelo mundo da pre-sença, libera-se a possi-
nal, que tinham a mesma angústia que eu [...] A bilidade para um ser-com. A própria pre-sença
gente começou a se mobilizar [...] Eu gosto muito só é na medida em que possui a estrutura essen-
de trabalhar com a saúde mental, foi uma opção cial do ser-com, enquanto co-pre-sença que vem
ideológica [...] Eu busquei. Não foi por acaso [...] ao encontro de outros.
(Discurso IV). Mediante o impessoal, no entanto, o porta-
As atitudes de inovação quanto aos instru- dor de transtorno mental pode abrir-se para a
mentos de cuidado em saúde mental e a cria- possibilidade do poder-ser mais próprio, que
ção de uma estrutura física, como o Caps, no significa, entre outras coisas, colocar-se na res-
entanto, não determinam por si mesmos o mo- ponsabilidade de fazer suas escolhas. Esta for-
do de ser no pessoal, pois cada trabalhador vi- ma de o portador de transtorno mental estar
vencia diferentemente o cuidado resultado de na relação é uma possibilidade que se pode
suas posturas diante da angústia. abrir na relação com o trabalhador de saúde na
postura de anteposição. Nesta, o profissional
A presença na tradição; a presença na sabe que cada um só pode ser dentro de uma
circunvisão do Caps – heterogeneidade compreensão de suas possibilidades, pois se le-
de horizontes experienciais va em consideração o que se herda dos ante-
passados. O futuro, na realidade, nos precede
O Caps, buscando a cidadania do portador (vem antes de nós), é um porvir, ekstase da
de transtorno mental, situa-se na possibilidade temporalidade que “possibilita primariamente
de uma relação de cuidado no modo pessoal, a compreensão”13. Esta compreensão não diz
que se diferencia do cuidado ocorrente na ins- respeito à noção de uma seqüência de “agoras”,
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Garcia, M. L. P. & Jorge, M. S. B.

mas é resultado da temporalidade da pre-sen- ma, possibilitam a forma pessoal de cuidado


ça13: [...] a decisão antecipadora abre [...] cada por meio da relação de solicitude.
situação em seu pre [...] o ser que se abre junto A estrutura física do Caps se concretiza co-
ao que, na situação, está à mão, isto é, o deixar mo resultado de trabalhadores de saúde mental
vir ao encontro do que é vigente no mundo cir- que escutaram o clamor de suas consciências e
cundante, só é possível numa atualização desse se abriram em suas possibilidades de serem-
ente [...] vindo-a-si mesma num porvir, a de-ci- em-um-mundo. O Caps interpreta a tradição
são se atualiza na situação. O vigor de ter sido em um novo sentido, ao veicular novas formas
surge do porvir de tal maneira que o porvir do de a pre-sença se manifestar no cuidado à saú-
ter sido [...] deixa vir-a-si a atualidade. Chama- de mental. Os costumes, no entanto, não desa-
mos de temporalidade este fenômeno unificador pareceram. Concretamente, estes se represen-
do porvir que atualiza o vigor de ter sido. tam no espaço do Caps com o seu principal
A relação eficiente de estar-com é germina- instrumento criado na década de 1950 – a “me-
da pelo exercício privilegiado da pre-sença (e dicalização”.
somente dela) de trazer em xeque o seu pró- Para interpretar a relação tão estreita que a
prio ser. O trabalhador de saúde mental a exer- equipe de saúde mantém tanto com a conjun-
ce quando “incentiva” naquele que está sendo tura da psiquiatria como com a do Caps, Hei-
cuidado uma postura de buscar ele mesmo op- degger11 oferece uma luz ao afirmar que a pre-
ções dentro do seu mundo próprio, que signifi- sença sempre existe no seu futuro (no seu pre)
ca questionar o seu próprio ser. Dando conti- a partir do seu passado, do que herda de sua
nuidade a este raciocínio, podemos inferir que geração, pois é próprio da “temporalização” da
quando o trabalhador de saúde mental conti- pre-sença no processo “ekstático”, no “porvir” do
nua exercendo sem reflexão uma possibilidade “já ter sido”. A partir disso, pode-se inferir que
que a cultura sistematizou como forma de aten- a conjuntura da psiquiatria é a entificação do
ção à saúde mental, a relação é de ser-com defi- cuidado à saúde mental na tradição. Ao abrir-
ciente. Ele não deixa de ser pre-sença, pois es- se, na própria tradição, a possibilidade da refor-
tar nessa forma de relação também é uma pos- ma é “porvir” daquela que se torna “já ter sido”.
sibilidade exercida pela pre-sença. Mas nesta si- A conjuntura do Caps e os instrumentos de
tuação, o cuidador experiencia o cuidado à do- que a pre-sença se utiliza no cuidado estão em
ença mental mergulhado no impessoal da coti- decurso histórico, determinando-se a partir da
dianidade mediana, em vez de se mostrar na temporalização da pre-sença dos profissionais
experiência da abertura para o seu ser mais que primeiro foram despertados em seu clamor.
próprio. O Caps também tem em seu quadro trabalha-
A pre-sença, exercendo como ente a possi- dores que desconhecem a tradição, no que diz
bilidade escolhida, faz a cada ins-tante e, por es- respeito à construção da saúde mental. Mas são
tar sempre em relação com o seu pre, continua atingidos por ela, por intermédio da relação
aberta para novas possibilidades; ou seja, ao “ser-com”, que se desenrola tanto com os por-
mesmo tempo em que para determinado aspec- tadores de transtorno mental, que trazem em
to de sua existência se escolhe em seu ser pró- suas fisionomias a inscrição do tratamento dis-
prio, em outro, se pode escolher em seu ser im- pensado, como com os outros trabalhadores do
próprio. Ser-no-mundo significa, portanto [...] Caps: Preciso ter mais experiência para lidar com
o empenho não temático, guiado pela circunvi- esse tipo de pessoa até mesmo porque eu nunca
são, nas referências da manualidade de um con- trabalhei [...] eu não conhecia o que era Caps
junto instrumental11, porque [...] o ser e a estru- [...] (Discurso I).
tura ontológica se acham acima de qualquer ente Para que o Caps continue como espaço da
e de toda determinação ôntica possível de um en- reforma, precisa estar atento ao que os traba-
te [...] a transcendência do ser da pre-sença é pri- lhadores trazem à tona: estão em um processo
vilegiada porque nela reside a possibilidade e a de “atualização” da tradição, e por isso mesmo
necessidade da individuação mais radical. se des-velam na dificuldade de manterem uma
A reforma psiquiátrica que “arquitetonica- relação de co-pre-senças entre si. O sentido da
mente” se representa no Caps é uma aclamação interdisciplinaridade parece apontar o que ne-
da pre-sença em sua consciência para a possi- cessita ser “atualizado” pela equipe de saúde.
bilidade de ser na cura. Os instrumentos – a Parece ser a “aclamação” dos trabalhadores pa-
desospitalização, a inclusão da família no trata- ra o seu poder-ser mais próprio na historicida-
mento –, veiculados pela conjuntura da refor- de do Caps: [...] é um clima gostoso, todo mun-
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Ciência & Saúde Coletiva, 11(3):765-774, 2006


do tá empenhado. Agora pelas condições de re- vida de como conduzir algumas situações de
muneração, [...] um trabalha num canto, outro crise do usuário.
trabalha em outro, a gente se encontra pouco, A partir dessa observação, podem-se abrir
tem poucas reuniões administrativas, de integra- espaços para potencializar uma forma autênti-
ção, não tem supervisões externas e isso torna a ca de ser cuidador de saúde mental, que passa
equipe pouco integrada [...] isso prejudica o tra- em primeiro lugar pela autenticidade que os
balho[...] até no sentido de dividir a proposta te- trabalhadores do Caps podem ter consigo mes-
rapêutica com a equipe [...] (Discurso X). mos. Estar atento a isso pode permitir a dimi-
O Caps se manifesta como uma proposta nuição dos processos defensivos que os alie-
inovadora; no entanto, para alguns trabalhado- nam do contato mais verdadeiro da relação es-
res existe uma lacuna considerável neste aspec- tar-com-os-outros-e-consigo, repercutindo em
to, o que pode contribuir determinantemente saúde mental para os próprios trabalhadores.
para a postura inautêntica na relação com o Humanizar o atendimento ao portador de
usuário. transtorno mental, que é a proposta da refor-
ma através da conjuntura do Caps, não pode
deixar de olhar para o humano que cuida: o
Reflexões sobre o estudo trabalhador do Caps.
O sentido de ser trabalhador de saúde men-
A heterogeneidade de experiências dos traba- tal no Caps, então, se traduz como um existir
lhadores do Caps, diante do cuidado à saúde no modo autêntico ou inautêntico, determina-
mental, de-monstra as diferentes dimensões do pelo universo experiencial de cada trabalha-
existenciais do ser. As diferentes experiências dor, como cada um se deixa escutar em seu cla-
possibilitam diversas formas de estarem na re- mor para a cura, que inclui, além dos saberes,
lação terapêutica com os usuários. uma reflexão crítica deles, a partir do que é des-
A pre-ocupação com a cidadania do porta- pertado na relação ser-com os usuários e ser-
dor de transtorno mental, no que diz respeito à com os outros profissionais.
sua inclusão familiar e ao acesso aos cuidados A tradição se atualiza no Caps quando os
do Caps inseridos no contexto da atenção psi- profissionais, que estão imersos na inconsciên-
cossocial, é percebida em todas as relações com cia do processo histórico da construção dos
os usuários, seja da equipe de apoio, seja da cuidados à saúde mental, passam pelo processo
equipe de saúde. Mas, apesar de a autonomia de reflexão crítica das estruturas de valores e
do usuário e de tudo o que ela implica ser o fo- crenças arraigados que influenciam várias di-
co terapêutico, o cuidado caminha ora pela pos- mensões da sociedade, inclusive as legislações
tura de substituição, ora pela postura de ante- que constituem as instituições de saúde.
posição. Isso porque os trabalhadores sofrem a Dessa forma, o cuidado no contexto do Caps
influência da tradição. Estão mergulhados ne- possibilita perceber (o que já é de bom tama-
la, ao mesmo tempo em que se abrem para a nho) que a escolha de hoje foi determinada pe-
possibilidade da proposta da reforma. Esta se las circunstâncias do processo histórico, não se
encontra em um processo contínuo de atuali- fechando na idéia de que a atual é melhor do
zação de um já ter sido (a conjuntura psiquiá- que as anteriores, e sim que é a que se conse-
trica). A proposta de atenção psicossocial nasce guiu captar como possibilidade, não ultrapas-
das entranhas da tradição, do que ela construiu sando a tradição, e sim a integrando. Orientar-
como cuidado à saúde mental. se por essa percepção permite a abertura para
É importante perceber que, apesar da hete- se manter a criticidade diante da pressuposição
rogeneidade de experiências dos trabalhadores atual: a de que o modelo hospitalocêntrico não
do Caps diante do cuidado à saúde mental, nos atende às necessidades psicossociais do porta-
seus relatos observa-se um encontro de interes- dor de transtorno mental, e que esta necessida-
ses que se dá entre a atuação que é norteada pe- de é atendida na proposta de atendimento vei-
la proposta da reforma psiquiátrica e esta que culada no Caps, sem se apegar a ela, não cain-
em sua essência mobiliza para o modo autênti- do na armadilha da verdade absoluta, manten-
co de ser. do o profissional livre para substituí-la quando
A relação entre os trabalhadores é de cum- for oportuno.
plicidade diante do cuidar do usuário, mesmo Esta pesquisa, como qualquer outra, encon-
às custas de seu próprio sofrimento psíquico, tra-se limitada às nossas possibilidades de com-
nos momentos em que precisa enfrentar a dú- preensão, porque estamos condicionadas pela
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Garcia, M. L. P. & Jorge, M. S. B.

nossa própria história. Queremos ousar dizer


que a humanização, tão gritada aos quatro ven-
tos, se define na relação autêntica de respeito e
credibilidade nas possibilidades do Ser. Ser em
suas potencialidades no processo contínuo de
superação histórica.

Colaboradores

MLP Garcia e MSB Jorge participaram igualmente de to-


das as etapas da elaboração do artigo.

Referências

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92. Aprovado em 17/10/2005
Versão final apresentada em 23/01/2005

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