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Trimestral.
Continuação de: Revista da Universidade de São Paulo
Descrição baseada em: N. 93 (2012)
ISSN 0103-9989
5 Editorial
51 Esquerda, direita e o politicamente correto: breve estudo comparado João Feres Júnior
textos
69 Um Plano Marshall para os pobres ou os caminhos da modernização brasileira Antônio Pedro Tota
89 Doença de Chagas – mais de 100 anos depois de sua cientificamente brilhante descoberta,
há poucas razões para se comemorar? J. Antonio Marin-Neto
arte
106 O Pavilhão Japonês de São Paulo Kengo Kuma
livros
125 Os primórdios da geografia como ciência Magali Gomes Nogueira
Conselho Editorial
Albérico Borges Ferreira da Silva
Ana lucia duarte lanna
belmiro mendes de castro filho
cicero romão resende de araujo
eduardo victorio morettin
eugênio bucci (membro nato)
Fernando luis medina mantelatto
Flávia Camargo Toni
franco maria lajolo
José Antonio Marin-Neto
oscar josé pinto éboli
Francisco Costa
6 REVISTA USP • São Paulo • n.92 • p. xx-xx • dezembro/fevereiro 2011-2012
politicamente
correto
Apresentação
Cicero Araujo
A
questão do “politicamente cor- correto dentro de seu próprio campo de especia-
reto” tem suscitado intensa lidade, uma vez que questões relevantes sobre a
controvérsia na opinião públi- natureza da linguagem estão no centro da contro-
ca brasileira. Ecoa, até certo vérsia. Da perspectiva não apenas de estudioso
ponto, polêmica desencadeada dos direitos humanos, mas de seu engajamento
anteriormente em outras para- prático, o embaixador José A. Lindgren-Alves
gens, em particular nos Estados toma o politicamente correto como ponto de
Unidos e na Europa. Em sua re- partida para discutir os caminhos e descaminhos
cepção nacional, contudo, revela da política internacional dos direitos humanos
peculiaridades. nas últimas décadas. Silvana de Souza Ramos,
Os quatro artigos que com- filósofa, inspirada no pensamento de Claude Le-
põem o presente dossiê buscam fort, resgata a importância da controvérsia para
esclarecer o leitor a respeito dos questionar a desigualdade social nos processos
diferentes contextos históricos e sociais de sua de ocupação do espaço público. E o cientista po-
emergência, assim como entender o fundo político lítico João Feres Júnior retoma análise dos usos
e ideológico dos embates que provoca. Ao fazê-lo, do termo em ambiente brasileiro, encontrados
porém, não deixam de tomar posição, retomando em artigos de imprensa e nas redes sociais, para
(e enriquecendo) a própria polêmica. anotar correlações entre seu sentido afirmativo ou
Os autores destes artigos foram provocados a negativo e a clássica dicotomia esquerda/direita.
elaborar uma reflexão sobre o tema, a partir de Cumprida a missão proposta pelo editor da Re-
suas diferentes perspectivas disciplinares. O re- vista USP, cabe, por fim, registrar nossa profunda
sultado, como se verá nas páginas a seguir, ficou gratidão a ele pela oportunidade e pela paciência,
muito interessante, não só porque enriquece de fato assim como aos articulistas convidados, pela ex-
a compreensão do problema, mas também porque, celente reflexão coletiva com que nos brindaram.
ao embasar posições nuançadas ou mesmo diver-
gentes, qualifica-o academicamente.
Edwiges Morato e Anna Christina Bentes, CICERO ARAUJO é professor de Teoria Política do
linguistas, situam a polêmica do politicamente Departamento de Ciência Política da FFLCH-USP.
Tendo por escopo questões que se Drawing from issues of the interaction
colocam na interação entre linguagem, between language, cognition and society,
cognição e sociedade, este ensaio tem this essay aims to reflect on the socio-
o objetivo de refletir sobre os sentidos cognitive dimensions of political correctness
sociocognitivos do politicamente by taking into account some discursive
correto, considerando determinadas practices in contemporary Brazilian context.
práticas discursivas no contexto brasileiro We argue that political correctness, as a
contemporâneo. A tese que defendemos regulatory body of discursive and social
neste ensaio é a de que o politicamente practices, can be taken in a weak sense
correto, como regulador de práticas as a pragmatic resource fundamentally
discursivas e sociais, pode ser tomado associated to the attempt to promote a
num sentido fraco – como um recurso high degree of reflexivity of social actors
pragmático fundamentalmente associado in relation to the production of certain
à tentativa de promover um grau alto categorizations and/or statements, or
de reflexividade dos atores sociais em in a strong sense - both as a normative
relação à produção de determinadas system, capable of pointing to desirable
categorizações e/ou enunciados – ou symbolic ways of living in society, and as
num sentido forte – tanto como um a guide to situations to be overcome, such
sistema normativo, capaz de assinalar as social inequality, injustice, prejudice,
regimes simbólicos desejáveis da vida discrimination, and violence.
em sociedade, quanto um norteador
de situações a serem superadas, como Keywords: political correctness; language
a desigualdade social, a injustiça, o practices; social reflexivity; socio-cognition.
preconceito, a discriminação, a violência.
avaliação5 sobre a linguagem a ser per- algum modo em seu esvaziamento semântico
formatizado pelos militantes dos novos e social, resta forte a impressão de que, como
movimentos sociais no interior dos quais pondera a linguista Maria Helena Moura
emergiu. Como resultado, tanto a ideia de Neves (2014, p. 140), ele – o politicamente
controle/avaliação como a sua rejeição têm correto – nem sempre tem tido êxito em
marcado a recepção social do politicamente tentar governar “equilibradamente” as ava-
correto, transformando-o em um espaço de liações do uso linguístico.
lutas e/ou disputas em torno dessa estratégia Outra reflexão importante é desenvolvida
política, tal como a categorizou Hall (1994). pelo linguista Kanavillil Rajagoplan em
Passadas décadas da nossa experiência artigo de 2000, no qual lança uma pergunta
com os vários sentidos da expressão “poli- que ainda está a exigir uma resposta: qual
ticamente correto”, vale a pena refletir sobre o “porquê de tanto ódio” (escárnio, aversão,
sua vitalidade conceitual e política e passar menosprezo, ridicularização, mofa), pergunta
uma vista d’olhos sobre como ela ainda pode o autor, em relação ao politicamente correto?
ser tomada nos dois sentidos acima mencio- Uma resposta a essa questão poderia vir de
nados. Ao final desse empreendimento refle- ponderações como a de Luiz Eduardo Soares
xivo, talvez possamos desenhar um cenário (1998), que vincula a rejeição ao politica-
no qual o politicamente correto, longe de mente correto às atitudes misógina, racista
embaraçar as interações nos planos micro e homofóbica da sociedade brasileira.
e macrossocial, pode mesmo expandi-las e, Para gáudio de poucos que pretendem
de certo modo, explicá-las. dominar muitos (sob a forma de deploração
de seus estilos, de sua variedade linguística,
VISÕES SOBRE O POLITICAMENTE de seu perfil sociolinguístico, de suas carac-
terísticas étnicas, sexuais, culturais ou ideo-
CORRETO NO CONTEXTO BRASILEIRO lógicas) ou arbitrar como os demais devem
se sentir ao serem categorizados de forma
Como sabemos, as palavras podem dis- social e subjetivamente inaceitável, o politi-
criminar, ofender e humilhar, de maneira camente correto, que tem lá seus problemas,
mais ou menos consciente e voluntária. Se como de resto toda e qualquer regulação
é certo que a reificação ou o uso trivial socialmente construída, tende a chamar a
do politicamente correto tem incorrido de atenção para uma dimensão de empatia e
coesividade intersubjetiva a ser integrada ao
nosso capital cooperativo em tempos local
5 As práticas de linguagem baseadas no politicamente e globalmente conturbados.
correto podem ser compreendidas no contexto em
que concepções culturais não apenas sobre a língua
Por outro lado, talvez preocupado com
e a variação que lhe é inerente, mas também sobre o cerceamento de liberdades individuais e
a natureza e o propósito da comunicação e sobre
comportamentos coletivos como representação de outras questões tão caras a um país mar-
uma ordem coletiva, são estudadas, especialmente cado pelas agruras históricas do preconceito
por linguistas antropólogos, como práticas que cons-
tituem o fenômeno da ideologia linguística. A respeito e da discriminação social, bem como por
dos estudos sobre essa ligação entre linguagem e
ideologia, ver Schieffelin, Kroskrity & Woolard (1992),
intolerâncias político-ideológicas, o pensa-
Cameron (1995; 2006), Van Dijk (2008). mento mais progressista não tem deixado de
mos, a título de exemplo, um dos comentários sendo, é tão intolerável quanto as próprias
extraídos do documento: “[...] a coisa ficou incorreções políticas (Neves, 2012, p. 203).
preta – a frase é utilizada para expressar o
aumento das dificuldades de determinada Algumas decisões politicamente corre-
situação, traindo forte conotação racista con- tas, como sugerem vários autores brasileiros
tra os negros” (Queiroz, 2004, p. 7). Apesar que se dedicaram ao tema (Possenti, 1995;
de pretender contribuir para a construção de Possenti & Baronas, 2006; Ribeiro, 2000;
uma cultura de direitos humanos no país, o Fiorin, 2008; Neves, 2014, dentre outros),
documento da Secretaria de Direitos Huma- malogram na compreensão pouco sutil e/ou
nos, hoje extinta, foi fortemente criticado de complexidade desse fenômeno que rela-
tanto por escritores, professores universitários ciona estreitamente língua e sociedade. Tome-
e jornalistas, quanto por setores do próprio mos o exemplo do uso do termo “surdo”,
governo, o que levou à suspensão imediata por exemplo. O termo nem sempre foi tido
de sua distribuição. como insultante ou pejorativo pela comuni-
O que teria faltado à sensibilidade lin- dade de pessoas surdas, mesmo porque ele foi
guística da referida cartilha e mesmo de sendo historicamente esvaziado de conteúdo
um governo que soube criar, no período de negativo e tomado como fator identitário
2003 a 2014, vários setores institucionais (como é possível perceber pela postulação
com vistas à proteção de direitos sociais? Ao de uma “cultura surda”, por exemplo). Já a
que parece, uma visão mais sociolinguística expressão “deficiência auditiva”, alternativa
de linguagem. Faltou a compreensão de que por vezes tomada como politicamente cor-
língua não é só signo; é também e, sobre- reta, nem sempre é bem-aceita por surdos e
tudo, ação, prática, cognição social. ouvintes, uma vez que, menos precisa, faz
Uma segunda posição observada no referência a pessoas com redução de audi-
campo dos estudos da linguagem, bastante ção por distintos motivos, como a idade ou
próxima à primeira, é a que requer para o alguma condição física de ordem funcional,
politicamente correto uma região de equi- por exemplo.
líbrio entre o sociopolítico e o uso linguís- Numa perspectiva mais pragmática da
tico. O arrazoado da linguista Maria Helena relação entre linguagem e mundo social,
Moura Neves expressaria esta posição: Rajagopalan (2000) não hesita em caminhar
em direção a uma clara defesa do politica-
“O ‘politicamente correto’ é, atualmente, ban- mente correto nas práticas discursivas coti-
deira que se levanta para interpretar atos do dianas. Indo ao ponto da celeuma, o autor se
dia a dia, numa onda de patrulhamento que pauta menos por querelas linguísticas pro-
tem presença notável na sociedade, com dupla curando, antes, proceder a um diagnóstico
influência e significação: bem-intencionada sociocultural mais preciso a respeito do que
que é, cria a impossibilidade de qualquer está em questão. Rajagopalan concentra-se
refutação, parecendo intolerável que seja con- não no que a linguagem (“em si”) contém,
denada, ou que seja sequer questionada; por mas em seu uso social e sua capacidade de
outro lado, mal inserida nas mais diversas construir e destruir formas de perspectivar
atividades, como indiscriminadamente vem o outro e (inter)agir com ele. Nesse texto,
A julgar pelo debate que a expressão por sua aplicação beneficiam a sociedade
suscita muito especialmente no atual con- como um todo. Essa observação sobre a cor-
texto sociopolítico brasileiro, julgamos que reção política parece dizer respeito a certos
a reflexão sobre o politicamente correto é movimentos e partidos políticos (incluídas
pertinente e nos ajuda a compreender temas suas políticas institucionais) identificados
de grande relevância contemporânea, como a com o campo progressista, bem como ao
cognição social, a moralidade, a questão da conjunto historicamente constituído de rei-
avaliação dos usos linguísticos. Esta seria, a vindicações de entidades e movimentos de
nosso ver, uma terceira posição do campo dos direitos humanos. Sendo assim, a expressão
estudos da linguagem a respeito do politica- “politicamente correto”, na forma como é
mente correto, ou seja, aquela que procura usada na maioria das vezes, implica que uma
conciliar a linguagem com processos afeitos proporção significativa de atores sociais faz
a ela, como a ação política, a reflexividade, uma escolha política (mais) consciente de
a cognição social. determinadas expressões linguísticas usadas
em suas práticas discursivas orais cotidianas
ALGUNS PRINCÍPIOS PARA A e em seus textos escritos, com a intenção
de divulgá-las mais amplamente e, assim,
COMPREENSÃO DO POLITICAMENTE
melhor objetivar as relações sociais.
CORRETO NA LINGUAGEM No caso do contexto sócio-histórico bra-
sileiro, o politicamente correto tem desenvol-
Longe de defender o politicamente cor- vido uma “educação pela pedra” no âmbito
reto enquanto uma espécie de Eldorado lin- da nova, inconstante e pouco segura demo-
guístico ou social e, do mesmo modo, longe cracia brasileira, marcada por um passado
de dizer dele que é uma afronta à liber- escravagista, uma história colonial predatória
dade de expressão ou de opinião de “cada e assaltos constantes ao processo de redemo-
um”, forjada num relativismo providencial cratização pelo qual estamos a passar desde
aos tempos neoliberais, podemos tomá-lo o fim do longo período de regime militar.
grosso modo, como já afirmamos anterior- Por exemplo, o primeiro presidente da Repú-
mente, como uma disposição (seja ela ins- blica depois da ditadura militar saudava em
titucional ou não) orientada pela percepção 1985 os cidadãos do país com a expressão
de que o emprego de certas categorias lin- “brasileiras e brasileiros”, marcando o início
guísticas e/ou enunciados pode causar danos de um tipo de interlocução específica com as
a indivíduos e comunidades minoritárias ou mulheres, alçadas ao status de interlocutoras
socialmente vulneráveis e desprestigiadas, diretas, interpeladas a serem copartícipes da
como negros, mulheres, indígenas, deficien- construção do futuro do país àquela época,
tes, homossexuais, etc. pelo menos no modo de endereçamento enun-
O princípio do politicamente correto nas ciativo. Deixou também avanços no terreno
práticas discursivas parece partir da ideia de sociopolítico, como a elaboração de políti-
que: 1) a escolha das palavras pode encorajar, cas públicas voltadas para o empoderamento
promover ou mesmo estabelecer certas rela- feminino e para a contenção de práticas de
ções sociais; e que 2) os resultados obtidos discriminação e preconceito de várias ordens
no lugar de “favela”, que antes era lugar minoria étnica não reconhecida, referên-
romantizado de pobres, mas não necessa- cia à Guerra do Vietnã como conflito pela
riamente território de gangues narcotrafi- identidade vietnamita. Será que os ameri-
cantes; “etnia” em lugar de “raça”, aludindo canos intervieram brutalmente e perderam
a uma “etnicidade negra” projetada. “Indí- uma guerra vergonhosa só por isso? Como
gena” parece mera adaptação erudita do também testemunhei tentativa de condena-
“índio” de Colombo. “Diversidade” se tor- ção ao Papa Francisco pela canonização de
nou essência do multiculturalismo, por mais missionário espanhol do século XVII, pri-
opressivas e discriminatórias que sejam as meiro catequista dos nativos da Califórnia,
culturas protegidas, em lugar de miscigena- lá objetada em manifestação indígena. Que
ção e sincretismo como tendência natural. A ambos os eventos pudessem ser contestados
isso se acrescem termos rebarbativos como pelos que se achavam afetados não era de
“islamofobia”, replicado por “cristianofobia”; surpreender. Inaceitável era não ser conside-
“homofobia”, que etimologicamente seria rado incorreto que um órgão laico de tratado
“horror ao igual”, como preconceito contra se imiscuísse em ato religioso sem qualquer
homossexuais; “afrofobia”, etc. efeito fora da Igreja9.
As novas designações e posições podem O descobrimento da América pela Europa
ser imprecisas, desnecessárias ou tolas, mas foi o acontecimento mais marcante do milê-
se tornam problemáticas quando elevadas a nio para o mundo inteiro, independentemente
extremos, como obrigações e tabus. Além de dos episódios terríveis que também propiciou.
facilmente exploradas por cabotinos, alguns Conscientes da destruição de civilizações
talentosos como Michel Houellebecq, provo- como a dos incas, os Estados da América
cam iras em contrário de quem nem seria Hispânica deixaram de celebrar a “Conquista
espontaneamente contra elas. Por volta de da América”, ou o “Dia da Raça”, em 12 de
2003, causou celeuma no Brasil, envolvendo outubro, optando por comemorar um eufemís-
escritores revoltados, a publicação pela Secre- tico “Encontro de Culturas”. Menos aceitável
taria Nacional de Direitos Humanos de um foi o Brasil fingir desconsiderar seu desco-
manual de termos politicamente corretos e brimento por Cabral com o testemunho de
termos interditos que deveriam ser obser- Caminha, ciente de que, sem esse fato, o
vados. A publicação mal chegou a ser dis- país como tal não existiria. Nem para Poli-
tribuída, sustada pelo titular da secretaria. carpo Quaresma! Enquanto isso os Estados
Não obstante, orientações congêneres con- Unidos continuam a apropriar-se do nome
tinuaram a multiplicar-se, no Brasil e no “América” e da chegada de Colombo a uma
exterior, transformando-se mais em fator de ilha caribenha para festejar o Columbus Day.
irritação para não militantes do que de apoio Os colonizadores europeus, em particular
simbólico às causas defendidas. espanhóis e portugueses, além de violentos e
Também se enquadram no “politicamente vorazes como todos os agentes de impérios,
correto” as interpretações de fatos do pas-
sado com visão particularista e simplória
do presente. No Cerd já ouvi de um colega,
9 Para descrição detalhada, ver texto indicado na nota
em plenário, ao cobrar ações em favor de 4 supra.
anos 90, “declarado guerra contra o esta- tência em contexto tão adverso têm objetivos
linismo do politicamente correto no esta- diferentes do que costuma ser esperado?
blishment feminista”13. Ao voltar da reunião do Cerd, em
Seguramente soa mais convincente do que agosto de 2017, li em jornal de Buenos
os ativistas de direitos quem critica a unila- Aires declaração significativa de conhe-
teralidade das denúncias de execuções pela cida cantora brasileira com programação
polícia sem interesse pelas mortes de agentes portenha. Dizia ela que, no Brasil de hoje,
policiais em operações legítimas de repres- o fato de haver um governo “de direita”
são à criminalidade. E são inaceitáveis, em parece incitar as pessoas a “revelar as ver-
qualquer fase pós-Bakunin, os argumentos dadeiras personalidades. Nas ruas, elas não
que explicam o assalto e esfaqueamento de têm vergonha de praticar o racismo. E o
transeuntes por adolescentes em função do feminicídio nunca esteve tão exacerbado”14.
que “eles devem ter passado”. Com isso se Não sei até que ponto as formas radicais
justificaria também o terrorismo “jihadista”. da violência criminal brasileira se acham
Igualmente leviana é a atitude de políticos que mais agravadas especificamente contra a
postulam direitos de minorias e se eximem de mulher. Comparto, porém, a sensação de que
propostas para controlar a violência. Nestes o Brasil se mostra visivelmente mais racista,
tempos pós-revolucionários, pós-liberalismo, em todos os sentidos. Mas isso eu já noto há
pós-verdade, pós-tudo, em que convivem com anos, com governos não “de direita”. Como
a perpetuação da miséria tanto a corrupção observo o crescimento do racismo alhures,
e o crime como frivolidade e provocações na Europa e nos Estados Unidos, há mais de
incontidas na esfera daquilo que ainda chama- duas décadas. Lembro, a propósito, trecho
mos “cultura”, declarações em favor de uma particularmente expressivo de entrevista da
nova ética parecem caricatura. Excessos do respeitável ativista Sueli Carneiro, fundadora
“politicamente correto” constituem munição do Geledés – Instituto da Mulher Negra:
oportuna para a direita habitual, e presente
valioso para a extrema-direita, que se elege “[...] o que temos atualmente é um racismo
democraticamente em qualquer país. que se torna cada vez mais direto, explícito e
A visível rejeição popular atual aos direi- violento, sem mediações nem medo de dizer
tos humanos, expressada pelo voto, traz-me seu nome. Minha geração se empenhou em
de volta o seminário do Chile. Diante de desmascarar o mito da democracia racial.
um centro de memória como Villa Grimaldi A geração atual terá que engendrar novas
ou o da antiga Esma (Escola de Mecânica formas de luta e organização política para
da Armada), local onde agora trabalho, na fazer frente a essa radicalização do conflito
Argentina, é quase inacreditável que o con- racial que parece se anunciar. Boa sorte às
ceito de direitos de todos possa ser entendido. futuras gerações!”15.
Ou será que os que os utilizam com insis-
humana”. Se a história se repetir, não será os atenua na cultura com imposições de con-
em tom de farsa, como dizia Marx. A farsa senso. Mas ainda é melhor do que a força.
já está montada, com elementos sinistros Num mundo em que, segundo dados
para uma enorme tragédia. recentes da Organização Internacional do
Antes que a direita tacanha e a “esquerda Trabalho, 40 milhões de pessoas se acham
progressista” esfacelem ainda mais as socie- em situação de escravidão e 152 milhões de
dades líquidas de Bauman, distanciando as crianças e adolescentes, entre 5 e 17 anos,
camadas de um conjunto não monolítico, é em trabalho irregular, dito “infantil”16, é hora
melhor deixar de lado hipersensibilidades de retomar o projeto de direitos de todos.
grupais, para não perder eleições. Demo- Pelo menos enquanto se espera uma nova
cracia é forma de governo que administra utopia terrena que dê ao planeta, aos países,
conflitos. Não os resolve na estrutura, nem alguma direção salvadora.
meiro lugar, o filósofo francês afirma que notamos que esse direito exige a igualdade
os direitos do homem não são uma espécie de condições dos diferentes atores sociais
de véu, pois sua função não é mascarar a para expressar seus interesses, perspectivas e
dissolução dos liames sociais em função da opiniões (Young, 2000), e para debatê-los em
prevalência do indivíduo, mas sim atestar e, público. Quer dizer, embora a liberdade de
ao mesmo tempo, suscitar uma nova rede expressão esteja no horizonte da experiência
de relações entre os homens (Lefort, 1991, democrática moderna, a esfera pública está
pp. 47-8). Em outras palavras, a liberdade de longe de ser um dado. Ela é tão somente
expressão não deve ser concebida a partir do algo a ser conquistado, pois sua instituição
modelo da propriedade dos bens materiais, é resultado de uma ação coletiva que cava
cujo portador é o indivíduo burguês, pois um espaço comum, sendo capaz de sustentá-
ela é, em seu aspecto mais fundamental, -lo ao longo do tempo. Essa exigência de
uma liberdade de relações. A liberdade de criação mostra que a igualdade de acesso
expressão admite que a cada qual seja dada ao direito à liberdade de expressão não é
a possibilidade de se dirigir aos outros, e natural, porquanto depende da construção
de ouvi-los: eis que um espaço simbólico se e da manutenção de um espaço artificial
institui, sem fronteiras definidas, subtraído de debate em que todos e todas poderiam
a toda autoridade que pretenda regê-lo ou gozar desse mesmo direito.
decidir em seu lugar sobre o que é ou não
pensável, sobre o que é ou não dizível. Nesse EXCLUSÃO E INCLUSÃO
espaço, a fala enquanto tal mostra-se inde-
pendente da sanção de qualquer indivíduo A democracia moderna, uma vez que ainda
particular, quer dizer, ela não é propriedade não garante a todos os mesmos direitos, deixa
de ninguém, e não deve ser, por isso mesmo, entrever, não uma exclusão nomeada e explí-
privilégio de alguns. cita, como no caso da Atenas antiga, mas
Essa formulação não deve ser lida como sim uma exclusão pautada pela invisibilidade
uma simples descrição do regime democrá- e pelo silenciamento de determinados gru-
tico, como se estivéssemos diante de seu pos sociais. Iris Young, ao analisar as cinco
quadro acabado. Pelo contrário, o que está faces da opressão no interior dos regimes
em jogo aqui é o horizonte a partir do qual democráticos, a exemplo do estadunidense,
a experiência democrática visa a realizar toca nesse assunto ao mostrar que a discri-
o debate público. Esse horizonte desvela minação, a injustiça e a opressão têm um
uma liberdade de expressão que não pode elo estrutural com uma determinada exclusão
se realizar no interior de uma experiência topológica (Young, 2004). Há muros invisí-
de isolamento em que a fala de alguém seria veis que impedem o livre acesso de todos e
livre à medida que se propagasse de maneira todas a lugares de fala e de decisão, tanto no
espontânea, sem encontrar diante de si, num âmbito social quanto nas instâncias políticas.
mesmo espaço e sob as mesmas condições, Assim, os marcados por certos traços étnicos
um outro com o qual estabeleceria um diá- e culturais, por diferenças de gênero, de idade,
logo. Ao compreendermos a liberdade de de classe e de formação são cotidianamente
expressão a partir desse espaço de relações, impedidos de decidir sobre a organização do
O POLITICAMENTE CORRETO
Mas isso não significa que nunca se fale
sobre o assunto. Na verdade, desde a emer-
gência no final dos anos 60 de uma série
de movimentos sociais e políticos cuja pauta por exemplo. Pelo contrário, a democracia
era predominantemente marcada por uma moderna pretende-se universalmente inclu-
recusa desse tipo de opressão – não ape- siva. Porém, uma vez que os direitos fun-
nas de classe, mas também de gênero, de damentais ainda não são desfrutados por
raça, de cultura, etc. –, há um esforço para certos grupos, para dar visibilidade a essa
que se produzam políticas públicas visando exclusão, estes assumem determinadas iden-
a sanar esse tipo de injustiça. Ao mesmo tidades – em busca de cidadania, eles se
tempo, há uma constante reivindicação des- apresentam como mulheres, gays, lésbicas,
ses grupos para que eles sejam representa- negros, índios, etc. – para que se torne explí-
dos e para que seja respeitado o seu lugar cita a injustiça e a opressão sofrida por eles.
de fala. É nesse novo contexto de luta que Ao demarcar identidades, esses grupos dão
a expressão “politicamente correto” inicia visibilidade à topologia da exclusão (como
sua história. Ela aparece no contexto das se dissessem: “nós, negros, mulheres, gays,
chamadas guerras culturais dos anos 1980 e pobres, migrantes, etc., nós não estamos aí”).
1990, nos Estados Unidos da América. Ainda A exclusão cotidiana os torna vulneráveis
que ela apareça em alguns textos da New a uma série de opressões, de modo que o
Left, foi seu uso pela direita estadunidense esforço para tornar audível à sociedade dis-
que lhe conferiu o sentido de acusação de cursos aos quais ela não costuma dar voz
certo autoritarismo policialesco da esquerda é uma forma de luta política.
no uso da linguagem. O ato de experimen- Os que reclamam das exigências do dis-
tar uma nomenclatura alternativa, na tenta- curso politicamente correto se incomodam
tiva de conformar a linguagem à identidade com a afirmação dessas identidades. Afir-
reclamada pelos grupos sujeitos à opressão, mam, por sua vez, falar em nome de todos,
de modo a incluí-los no debate, oferece a e não do interesse de alguns, acusam os
oportunidade, aos que defendem uma noção movimentos sociais de exigir privilégios.
abstrata de liberdade de expressão, de utilizar Mas o que acontece é exatamente o contrá-
a seguinte tática: vitimar-se para silenciar rio. Ao falar a partir de sua particularidade,
esse outro que tenta frequentar um espaço de sua identidade enquanto excluídos, esses
antes inacessível. grupos esclarecem aos demais que somente
Há aqui uma inversão do problema, pois, ao ouvi-los serão capazes de instaurar uma
lembremos, a democracia moderna abre o verdadeira universalidade. São esses gru-
horizonte de universalização dos direitos. pos, portanto, que enunciam a realização
Por consequência, ela não prescreve as carac- da universalidade democrática, ao passo que
terísticas que garantiriam a participação na os incomodados nada mais fazem do que
cidadania, incluindo-se aí o direito à fala defender uma igualdade abstrata.
pública. Uma vez que está aberta a todos, a Nestes termos, o caráter ideológico que
cidadania recusa o ato de identificar aqueles naturaliza a topologia da exclusão é deci-
que fazem parte da comunidade política. sivo. As ideologias fornecem uma carica-
Ela não diz que apenas são cidadãos os tura do outro, segundo a qual ele é visado
homens, os nascidos na cidade, os que pos- e julgado social e moralmente. O outro, no
suem determinada renda, os que são livres, caso, é exatamente aquele que está ausente
Bibliografia
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ção no país. Somente na Folha de S. Paulo basta, contudo, identificar o caráter belige-
foram 16, em O Globo, 15 e no Estado de rante associado à expressão, é preciso tentar
S. Paulo, 8. Desse total de textos, 62 eram identificar se os papeis de agressor e alvo
de natureza opinativa. Quase metade das da agressão verbal estão associados às posi-
matérias opinativas (42%) tratou do poli- ções ideológicas de direita e de esquerda, a
ticamente correto. Uma leitura rápida dos fim de compararmos com o exemplo norte-
trechos em que o conceito é citado confirma -americano. Os textos são também bastante
as hipóteses que levantamos até aqui. A claros acerca desse aspecto, pelo menos no
expressão é claramente usada como instru- que tange ao alvo. Vejamos abaixo mais
mento de pugna, frequentemente associado alguns exemplos:
a outros termos derrogatórios, como:
“Mas o extenso histórico de medidas com
“E aí chegamos a uma questão que me o viés do politicamente correto, em obedi-
parece muito representativa dos equívocos ência à linha ideológica de áreas do PT e
do debate ao redor da ‘questão gay’ (um adotadas desde o primeiro governo Lula,
belo exemplo do fascismo do politicamente recomenda prudência e boa dose de ceti-
correto)” (Pondé, 2011); cismo em relação ao desmentido. Afinal,
“Ao lado do avanço nos direitos dos gays, não é a primeira vez que o governo federal
legítimo e importante, a indústria do poli- tenta empurrar goela abaixo da sociedade
ticamente correto vai criando um monstro” uma pílula supostamente progressista, que,
(Fiuza, 2011); na realidade, é um composto no qual mal
“Essa é mais uma amostra das ‘panes men- se disfarça o DNA do autoritarismo e da
tais’ que a obsessão com ações politica- intolerância” (O Globo, 2011);
mente corretas costuma produzir” (Edito- “Depois que Dilma Rousseff virou sím-
rial, 2010); bolo meteórico de afirmação feminina,
“Monteiro Lobato, por sinal outra vítima ninguém mais segura os gigolôs da ideo-
da sanha persecutória das baterias politi- logia” (Fiuza, 2011);
camente corretas” (Editorial, 2011 ); “O parecer que indica o perigo de incentivar
“O politicamente correto pode ser perigoso preconceito e pede a retirada do livro das
e hipócrita” (Luft, 2010); escolas é um exemplo de leitura viciada pela
“Se a escola fundamental fracassa em ideologia, que perde em dimensão estética
suas tarefas elementares, como poderá e humana para bater continência ao politi-
incluir no currículo as disciplinas inven- camente correto. Para a Abrale, o avaliador
tadas pelos luminares politicamente cor- extrapolou seu papel, caracterizando um
retos?” (Kuntz, 2011). ‘policiamento pedagógico e ideológico’”
(Werneck et al., 2010).
Não é preciso repetir a lista de termos
pejorativos associados à expressão “politi- Fica explícita a associação do politi-
camente correto” nas passagens acima para camente correto à suposta ideologia de
provar nosso ponto, sua mera leitura deixa esquerda do PT na Presidência da República.
bastante clara a intenção dos autores. Não O politicamente correto é descrito como
cil imaginar fonte mais direta ao uso cor- abaixo de 100. Das 15 páginas que utili-
rente de termos e expressões na linguagem zam a expressão “politicamente correto”
comum do que os dados recolhidos nessa em seus títulos, endereços ou descrições,
rede social. somente duas não são claramente de direita,
Utilizando a ferramenta Netvizz, pro- uma não é política, uma é de esquerda e
vida pelo próprio Facebook para análise de outras duas estão praticamente desativadas.
dados de sua rede por parte de terceiros, Isto é, nove páginas exibem características
fizemos uma busca simples da expressão que hoje podemos associar à posição polí-
“politicamente correto” nas páginas da tica de direita no espectro ideológico bra-
rede. Os resultados encontrados podem sileiro. Não se trata de uma amostra, mas
ser observados na Tabela 1. de todas as páginas com mais seguidores
Nela filtramos as 15 páginas com maior que versam sobre o tema do politicamente
número de seguidores – que obtivemos correto explicitamente. É digno de nota o
usando um número de corte um pouco texto que descreve a página campeã, com
TABELA 1
“De alguns anos pra cá, uma verdadeira dita- mos nas nove páginas características que
dura do politicamente correto tomou conta do hoje podemos associar à posição política
nosso país. Dizer o que pensa virou crime, de direita no espectro ideológico brasileiro,
algo inaceitável. Nem mesmo os políticos entre elas o discurso da antipolítica (nove
conseguem debater, tudo é dito com muito páginas), o antipetismo (nove páginas), a ode
cuidado. Quem diz a verdade é estigmatizado, à Bandeira Nacional como símbolo de luta
atacado. Resolvemos criar essa página para contra a corrupção política (quatro páginas) e
que aqueles que não concordam com isso, o uso da máscara que se tornou símbolo do
possam abertamente dizer o que se passa em grupo Anonymous (duas páginas) e de outras
sua mente. Se você apoia temas polêmicos alusões a junho de 2013 (cinco páginas),
como pena de morte, prisão perpétua, redu- distribuídas como mostra a Tabela 213.
ção da maioridade penal ou simplesmente Como é fácil observar, o discurso anti-
não compactua em ser mais um boi no meio política e o antipetismo têm total correla-
da boiada, esse é o seu espaço”12. ção nessa amostra. Basta ler as postagens
para entender que estão de fato misturados
Como o trecho indica claramente, essa em uma narrativa em que o PT e Lula são
página tem uma agenda de direita ligada à apresentados como os parteiros da corrup-
questão da segurança pública, com um foco ção que assola o Brasil. Essa mesma nar-
forte no punitivismo. É só rolar a barra das rativa é corroborada por posts frequentes
postagens para encontrar vários que têm Jair em defesa da Operação Lava Jato e do juiz
Bolsonaro como personagem principal, entre Sergio Moro. Os símbolos de junho de 2013
outros a favor do porte de armas, contra são também bastante frequentes e repre-
o PT, contra a exibição de arte do MAM sentam o ativismo de direita que surgiu a
e contra as cotas raciais. Mas isso não é partir daquelas manifestações massivas que
tudo. A imagem do perfil da página é uma assolaram nosso país. A simbologia mudan-
foto de um rosto de homem com os lábios cista dos movimentos sociais, antes seara
costurados, ladeado por uma foto de capa exclusiva da esquerda, agora aparece ao lado
que contém somente o rosto risonho do ex- de propostas claramente direitistas, como
-presidente dos EUA, Ronald Reagan, e uma a diminuição da maioridade penal, a pena
citação atribuída a ele: “Quando uma pessoa de morte, o porte de armas e o ataque ao
ou uma empresa gastam mais do que ganham
elas vão à falência. Quando um governo gasta
mais do que ganha ele te manda a conta”.
13 O Anonymous é um grupo ativista internacional
Por meio de exame das principais carac- defensor da liberdade on-line e alhures. O capítulo
terísticas estéticas e textuais da página (foto brasileiro do Anonymous ganhou visibilidade nas
manifestações de junho de 2013 já com um perfil
de perfil, foto de capa, texto de apresenta- fortemente antigoverno, o qual em muitos pontos se
confundia com a agenda antipetista da direita que
ção e postagens mais recentes) identifica- então começava a se organizar. A máscara que se
tornou marca registrada do grupo é emprestada do
filme V de Vingança, produzido e roteirizado por Andy
Wachowski e Lana Wachowski, cujo roteiro é uma
12 Disponível em: https://www.facebook.com/pg/Contra- adaptação da HQ V FOR VENDETTA, escrita por Alan
ADitaduraDoPoliticamenteCorreto/about/?ref=page_ Moore e desenhada por David Lloyd, publicada entre
internal 1982 e 1988 no Reino Unido.
Símbolos
Nome Nº Bandeira Anonymous Antipolítica Anti-PT
2013
Brasil, Maior Comunidade
37.141 1 1 1
do Facebook
Contra a Ditadura do
4.244 1 1 1
Politicamente Correto
Politicamente
1.226
inCORRETO
Antro dos
509
Politicamente Corretos
Politicamente
203
#in-correto
Politicamente Correto 93
NÃO SOU
POLITICAMENTE 91 1 1
CORRETO
Politicamente (in)Correto 91 1 1
TOTAL 4 2 5 9 9
politicamente correto, que pode ser traduzido Essa agenda reacionária aliada ao anti-
em ataque aos direitos de mulheres, negros, petismo resume bastante esse conjunto de
LBGTQ e outros grupos. Na verdade, trata- páginas dedicadas ao politicamente correto
-se de uma mudança reacionária que pode no Facebook, mas há um elemento novo
ser resumida no seguinte raciocínio: a pro- nelas que merece ser observado antes que
liferação de direitos de minorias que se deu terminemos este ensaio. Ele está bastante
sob o governo da esquerda petista (corrupta) presente na página “Contra a Ditadura do
deve ser não somente barrada, mas desfeita. Politicamente Correto”, segunda colocada no
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Q
Antônio Pedro Tota
-se, segundo Berle, nas camadas mais altas atenção dada, no imediato pós-guerra, pe-
da sociedade. Aqui havia certo refinamento lo governo anglo-americano ao Brasil, im-
estético e intelectual, o que não acontecia portante aliado durante o conflito. Quando
lá com a mesma frequência. Para ele, os es- era coordenador do Office of Inter-American
tadunidenses estavam mais bem preparados Affairs (OCIAA), o grupo do jovem mi-
para transitar no campo da técnica. E os lionário queria aproveitar a experiência das
brasileiros esperavam usufruir desse conhe- relações interamericanas durante a guerra
cimento. Isso nos faz pensar como Nelson para a modernização do país. Com ajuda
Rockefeller parecia antever a proposição do e cooperação de parcela da elite, esperava
chamado Ponto Quatro de Truman, anunciado difundir os princípios políticos, econômi-
em sua posse menos de dois anos depois. cos e ideológicos do americanismo. Fundou
Aliás, assessores do presidente americano duas instituições: a American International
emprestaram algumas ideias do grupo do Association (AIA), com fins filantrópicos, e
magnata do petróleo. a International Basic Economy Corporation
Aqui reside um paradoxo. Nelson pro- (IBEC), para gerir os negócios em geral.
curava ter os Estados Unidos como modelo Na agricultura e na pecuária, criou con-
para modernizar o Brasil e Berle parecia dições para o aperfeiçoamento da cultura
dizer que seria melhor ir com mais cautela de sementes de milho híbrido, promoveu
e, talvez, mesclar parte da cultura do ame- pesquisas com novas qualidades de café,
ricanismo com a cultura ibero-americana/ fez experiências com pastagens especiais
brasileira. Nisso Berle parecia, ironicamente, para gado, novas raças de porcos, criação
aproximar-se de um Oliveira Vianna. Segun- extensiva de frangos, fabricação de adubos
do a leitura de José Murilo de Carvalho, a e ração para animais. Se fosse detectada a
formação do cidadão brasileiro de Vianna necessidade de se preparar grandes extensões
“devia passar [...] pela implantação de uma de terra para plantar, a Empresa de Máqui-
sociedade cooperativa [...]” (Carvalho, 1993). nas Agrícolas (EMA) empregaria tratores,
Pode-se dizer que Vargas usou algu- arados e colhedeiras para facilitar a tarefa
mas das ideias do americanismo para o dos agricultores. A Helico, uma empresa de
take off modernizador brasileiro durante helicópteros, pulverizaria produtos para fer-
a guerra, tirando vantagens das relações tilizar e combater as pragas das plantações.
com os estadunidenses. A IBEC Technical Service faria pesquisas
Nelson Aldrich Rockefeller, como que para a introdução de novas gramíneas pa-
antevendo as dificuldades – em grande par- ra pastagem e formas mais adequadas de
te representadas pela burocracia do Depar- combate à praga do café.
tamento de Estado e instituições como o Criou ainda a Associação de Crédito e
Eximbank –, iniciou uma proposta pessoal Assistência Rural (Acar), inicialmente em
de cooperação com o Brasil, onde desem- Minas Gerais, que fornecia ajuda financeira
barcou em novembro de 1946 com muitos aos pequenos agricultores para modernizar
projetos em sua bagagem. a agricultura. Sua inspiração foi a Farmers
A visita ao país estava ligada a um Security Administration, proposta por Roo-
projeto que pretendia compensar a pouca sevelt, que salvou os pequenos agricultores
Bibliografia
E
Gustavo Milano e Thiago Mio Salla
Nas palavras de José Olympio, no proces- ilustrador da Livraria José Olympio Edito-
so de criação do prêmio, avultava também ra. Este, valendo-se do pseudônimo Plácido
o desejo de servir à literatura brasileira, da Assunção, obteve, com o original Maria Pe-
qual ele se mostrava um sincero admirador: rigosa, a preferência do júri, agora formado
por Peregrino Júnior, Prudente de Moraes
“Basta notar que a nossa casa [a Livraria José Neto, Marques Rebelo, tríade que esteve na
Olympio Editora] é a única no Brasil onde a edição inaugural da premiação, além de Dias
literatura brasileira é a grande base editorial, da Costa e Graciliano Ramos.
onde o número de traduções é menor que o Segundo a ata dessa segunda edição do
de livros originais brasileiros. E, ainda mais, Prêmio Humberto de Campos, datada de
fizemos esse concurso visando a incentivar o 2 de março de 1939, depois de sucessivos
gênero literário atualmente mais abandonado escrutínios, dos 63 trabalhos inicialmente
no Brasil: o conto” (Olympio, 1936, p. 5). inscritos restaram 17, em seguida nove, seis,
quatro e, finalmente, os originais Maria Pe-
Da comissão julgadora dessa primeira rigosa e Contos1. Entre os membros do júri,
edição do prêmio fizeram parte Peregri- Graciliano Ramos e Dias Costa votaram no
no Júnior, Prudente de Moraes Neto, Jorge primeiro, ao passo que Prudente de Mora-
Amado, Marques Rebelo e Arnaldo Tabaiá. es Neto, e Marques Rebelo optaram pelo
O vencedor foi Telmo Vergara, com o seu segundo. “Como o voto do sr. Peregrino
Cadeiras na Calçada (Rio de Janeiro, Jo- Júnior poderia decidir o resultado final do
sé Olympio, 1936), que obteve tal triunfo concurso, pediu esse membro da comissão
em meio a um conjunto de mais de oitenta um prazo para ler o original nº 11 (Contos,
inscritos. Apesar da promessa de ser anual, de Viator), votando logo depois de terminada
o prêmio teve apenas mais duas edições, a leitura” (Ata da Reunião, 1939). Dois dias
separadas entre si por intervalos distintos: depois, Peregrino Júnior manifestou seu vo-
a segunda em 1938 e a terceira em 1942. to, “ficando assim o livro Maria Perigosa,
Instabilidades políticas como a instauração de autoria do sr. Luís Jardim, vencedor do
do Estado Novo no Brasil, no início de 1937, Prêmio Humberto de Campos de 1938” (Ata
e a Segunda Guerra Mundial, a partir de da Reunião, 1939).
1939, inevitavelmente complicaram a reno- Para além do texto frio da ata lavrada e
vação periódica do concurso. assinada pelos jurados, conhecem-se ainda
Na segunda edição do prêmio, no entanto, um depoimento de Marques Rebelo (1939)2
dentre os inscritos, estava aquele que, em e dois de Graciliano Ramos (1962, pp. 155-6
perspectiva diacrônica, seria o concorrente e 200-2), publicados logo após a divulgação
mais ilustre de todas as edições do refe-
rido concurso: João Guimarães Rosa, que,
encoberto pelo criptônimo Viator, alcançou 1 Soube-se, depois de divulgados os resultados, que
apenas a segunda colocação, com um vo- entre os inscritos da segunda edição do prêmio
estava também o futuro deputado federal, e pos-
lume intitulado tão somente Contos. Não teriormente governador do estado da Guanabara,
havia formalmente um segundo colocado, Carlos Lacerda, com os contos de Uma Luz Pequenina
(Villaça, 2001, p. 133), não obtentor de relevante apre-
mas ele ficou atrás de Luís Jardim, então ço por parte dos jurados.
fase de premeditação. Restava agir. Então, garantia de que, na prosa, o autor se sairia
passei horas de dias, fechado no quarto, can- tão bem quanto na poesia.
tando cantigas sertanejas, dialogando com Depois desse volume de poemas premia-
vaqueiros de velha lembrança, ‘revendo’ pai- do, tratava-se de um movimento audacioso
sagens da minha terra, e aboiando para um migrar tão rapidamente para a confecção de
gado imenso. [...] Lá por novembro, contratei um livro de prosa. Diz ele que começou a
com uma datilógrafa a passagem a limpo. escrever esses contos motivado pela sauda-
E, a 31 de dezembro de 1937, entreguei o de do interior de Minas Gerais, “lembran-
original, às 5 e meia da tarde, na Livraria ças e saudades de Cordisburgo e Itaguara
José Olympio. O título escolhido era ‘Sezão’; me fizeram escrever Sagarana” (Coutinho,
mas, para melhor resguardar o anonimato, 1965), dirá. Essas 12 “histórias adultas da
pespeguei no cartapácio, à última hora, este Carochinha” têm as suas raízes nessas du-
rótulo simples: ‘Contos’ (título provisório, as cidades mineiras com cujas terra, fauna
a ser substituído) por Viator. Porque eu ia e população Rosa nutriu relações íntimas.
ter de começar longas viagens, logo após” Mais especificamente, ele assinala que al-
(Rosa, 1999, pp. 377-9). guns contos “pertencem” a Cordisburgo
(“O Burrinho Pedrês”; “Corpo Fechado”;
E, no posfácio “Porteira de Fim de Es- “A Hora e a Vez de Augusto Matraga”; “Mi-
trada” presente no referido volume, Rosa nha Gente” e “Duelo”) e outros ele “deve”
complementa dizendo que essas 12 histórias a Itaguara (“A Volta do Marido Pródigo”,
“foram começadas e acabadas no formoso “Sarapalha”, “São Marcos” e “Conversa de
ano de 1937, precisamente entre 20 de maio Bois”) (Borba, 1946). Mediante esse tipo
e 4 de dezembro” (Viator, 1937). Fica evi- de afirmação, o autor deixaria de se colo-
dente nesse relato a aparente despreocupa- car no centro do processo narrativo: não
ção do escritor mineiro, que parece inventar seria ele, em princípio, o “dono” daquelas
um pseudônimo e um título quaisquer, sub- histórias, a única voz capaz de produzi-las.
metendo o seu original aparentemente sem Não por acaso, tal estratégia argumentativa
muitas pretensões. Como aduz Cecília de faria com que, em certo sentido, o artista se
Lara, “Guimarães Rosa afirma que se ins- assemelhasse a um transmissor impessoal
creveu [no Prêmio Humberto de Campos] de dados da realidade, ainda que os sele-
para que sua obra fosse avaliada, visto que cionasse, elaborasse e os narrasse segundo
não possuía quase relações literárias” (Lara, sua própria cosmovisão.
1996, p. 31). Os cenários pelos quais passou, Os Contos entregues para a avaliação do
os dramas que padeceu no sertão de Minas júri do Prêmio Humberto de Campos não
Gerais deixaram marcas indeléveis na sua se constituíam nos primeiros trabalhos em
fértil imaginação, e era preciso avaliar o prosa que Guimarães Rosa tornava públicos.
valor artístico desse material bruto, pois o Entre 1929 e 1930, ele publicara na revista
prêmio da Academia Brasileira de Letras O Cruzeiro, sem recorrer a pseudônimos,
que ganhara em 1936 com a sua primei- três contos fantásticos, vencedores de con-
ra obra, o livro de poemas Magma (Rio cursos promovidos pelo mesmo periódico
de Janeiro, Nova Fronteira, 1997), não era (Gama-Khalil, 2012, p. 144): “O Mistério
2001, p. 134), tal foi a indisposição gerada Graciliano afirmou, em 1939, que:
pela diferença de juízo.
Além dos depoimentos desses dois mem- “Em virtude da decisão do júri, muita gente
bros do júri, encontram-se apenas sumárias supõe que o concorrente vencido seja um
alusões a comentários de Prudente de Moraes escritor de pequena valia. Injustiça: apesar
Neto. Em artigo de 1939, Graciliano Ra- dos contos ruins e de várias passagens de
mos assinala: “Prudente de Moraes acha que mau gosto, esse desconhecido é alguém de
ele [Viator] fez alguns dos melhores contos muita força” (Ramos, 1962, pp. 155-6).
que existem em língua portuguesa” (Ramos,
1962, p. 156). De modo análogo, o jornalista Seu voto em prol de Luís Jardim – ou
Henrique Pongetti também menciona: “No melhor, contra Viator, como prefere Gra-
livro de Viator, Prudente encontrou dois dos ciliano Ramos – só se deu por conta de
dez melhores contos brasileiros, conforme “dois contos e algumas páginas campanudas”
nos declarou” (Pongetti, 1946). E Marques (Ramos, 1962, p. 155). A narrativa “Conver-
Rebelo acrescenta: “Causou-me singular sa de Bois”, por exemplo, foi considerada
impressão este livro [Contos, de Viator], o pelo escritor alagoano como “uma verda-
mesmo acontecendo com o sr. Prudente de deira maravilha” (Ramos, 1962, p. 156), o
Moraes Neto” (Rebelo, 1939). Assim, mais que enfraquece o posicionamento de quem
do que um opaco voto a favor de Contos, o interpretasse que, com esse voto, Gracilia-
que poderia significar uma falta de melhor no estivesse dizendo não haver talento em
opção, o renomado crítico literário Prudente Viator. Em seu depoimento, Ramos também
de Moraes Neto viu no autor em questão um apoiou a publicação do livro do autor des-
exímio escritor, rasgando-lhe elogios antes conhecido, tributou admiração a persona-
mesmo de conhecer o criador encoberto pelo gens como Joãozinho Bem-Bem, referiu-se
pseudônimo. ao autor como “um sujeito que sabe o que
Outra grande figura da literatura bra- diz e observou tudo muito direito” (Ramos,
sileira do século XX, Graciliano Ramos, 1962, p. 156); enfim, disse que “realmente
como se viu, votou de forma diferente. a escolha [entre Maria Perigosa ou Contos]
Nesse sentido, Cecília de Lara afirma que era bem difícil” (Ramos, 1962, p. 156).
ele, como membro do júri da edição de Dois anos depois, em 1941, talvez movido
1938, “não soube reconhecer o talento do por algum tipo de remorso e em atendimento
novato que se assinava ‘Viator’” (Lara, a uma sugestão de José Olympio (Ramos,
1996, p. 30). E a também pesquisadora 1962, p. 251), Graciliano retoma o caso ocor-
Cássia dos Santos diz que essa edição do rido e produz uma espécie de anúncio com
concurso “entrou para a história de nossa o objetivo de saber o paradeiro do ainda
literatura por ter reunido, em lados opostos, desconhecido Viator. Antes de o romancista
talvez os dois mais importantes romancis- alagoano assinalar, ao final do texto, que
tas do século passado: Graciliano Ramos “gratifica-se quem trouxer a esta redação o
e Guimarães Rosa” (Santos, 2012, p. 117; conto ‘Conversa de Bois’” (Ramos, 2012,
grifo nosso). Com relação a esses pontos, p. 182), ele rememora que, em Contos, “há
é legítima a discordância. coisas ótimas”; que o livro “sobe muito ou
algo que contrariava as diretrizes literárias nados no Diário de Guerra, que integra o
do autor de S. Bernardo quanto à repre- Arquivo Henriqueta Lisboa do Acervo de
sentação literária dos homens do hinterland Escritores Mineiros da Universidade Fe-
brasileiro (Ramos, 2012, p. 115). deral de Minas Gerais (Rosa, 1938-1941)5.
Em 1944, quando Ramos e Rosa se co- Na altura de 1942, quando Brasil e Ale-
nheceram pessoalmente, ambos estavam manha romperam relações diplomáticas, e
de acordo a respeito da má qualidade de Guimarães Rosa e outros funcionários do
três dos Contos: além de “Uma História de Itamaraty na Alemanha foram trocados por
Amor”, os também já mencionados “Bicho diplomatas alemães no Brasil, Rosa se apro-
Mau” e “Questões de Família”. Não se pode xima do também diplomata Cícero Dias, a
presumir, como ficou exposto, que Rosa te- quem deu a ler os seus contos, recebendo
nha mandado apenas a porção mais cuidada deste ânimo para publicá-los (Perez, 1968,
de sua produção literária ao julgamento do p. 31). De volta ao Rio, entrou em contato
Prêmio Humberto de Campos, nem um tra- com Marques Rebelo para marcar um almo-
balho demoradamente burilado. Conforme ço, chamando também Prudente de Moraes
declara o próprio Viator no posfácio aos Neto, que não pôde estar presente. No já
Contos (Sezão), em se tratando da capina citado discurso na ABL, Marques Rebelo
e da poda dos textos apresentados “muita relata o acontecimento:
moita má ainda era a ser foiçada” (Viator,
1937). Tal caráter ainda transitório da cole- “Desconfiado, [Rosa] passou-me uma sabatina
tânea, e não uma suposta cegueira crítica de em regra sobre a leitura do livro, como se
Graciliano naquele momento, parece estar eu não o tivesse lido e defendido. Acalma-
na base do voto contrário que ela recebe- do, pediu-me conselhos, a que respondi ser
ra do romancista alagoano. Para além das muito humilde para aconselhar um escritor
virtudes dos Contos, este último concedeu que se revelava daquela maneira superlativa,
excessiva importância aos textos considerados mas, usando da minha modesta experiência
ruins, que compunham somente um quarto no trato literário, sugeria que ele cortasse
da obra. O critério, pois, assumido por ele uns dois contos, e fizesse em outros uns
foi o da oscilação no que diz respeito à apuros que achava necessários para a melhor
qualidade literária dos contos do volume, e compreensão de certos trechos um tanto em-
não o mérito elevado de parte considerável bolados, digamos bizantinos ou gongóricos.
do conjunto. Respondeu-me que era sua intenção refazer
De fato, o escritor mineiro não esperava o volume [...]” (Rebelo, 1968, p. 137).
grandes aplausos ao seu original. Em 1938,
como cônsul-adjunto, foi a Hamburgo, na
Alemanha, onde ficou “por quatro anos e
5 Para este artigo, entretanto, consultou-se aquela que
meio” (Coutinho, 1965), até 1942. De lá, se imagina ser a cópia de tal documento presente no
sabendo do resultado desfavorável obtido acervo João Guimarães Rosa do IEB/USP. Na entrada
de 30 de maio de 1940 desse diário, por exemplo,
pelos Contos no concurso, empreendeu a em meio ao alerta de bombardeios na Alemanha
reformulação do conjunto de textos. Alguns em guerra, o escritor registra: “Estou trabalhando,
corrigindo o último trecho de ‘O Burrinho Pedrês’.
relatos referentes a tal processo são mencio- Mugiram as sirenes. Alarme!” (Rosa, 1938-1941, p. 17).
C
J. Antonio Marin-Neto
ensejou o contato de seres humanos com da doença associou-se a não negligível taxa
novos insetos hematófagos infectados pelo de mortalidade. Típica expressão da precá-
T. cruzi, que se tornam rapidamente domi- ria inclusão social vigente, essa forma de
ciliados nas pobres e precárias moradias. transmissão oral seria passível de controle
O professor Rodrigues Coura, pesquisador mais efetivo, se medidas educacionais de
do Instituto Oswaldo Cruz/Fiocruz, muito incentivo a uma melhor higienização dos
apropriadamente rotulou a Amazônia como alimentos forem implementadas.
“a última fronteira da doença de Chagas”. Todavia, o mais conspícuo aspecto des-
Pois há ampla e munificente documenta- sa atual fase de transição epidemiológica
ção, inclusive em 2015 e 2016, de nume- liga-se à emigração de milhões de latino-
rosos surtos microepidêmicos de infecção -americanos, cronicamente infectados, para
aguda pelo T. cruzi especialmente no Pará, países mais afluentes economicamente (Sch-
Ilha de Marajó, Acre, Amazonas e outros munis, 2007). Dessa maneira, somente nos
estados. Muito oportunamente, desde 2013 EUA estima-se a presença de pelo menos
existe relato detalhado dessas ocorrências 300 mil portadores da doença de Chagas
em várias localidades do Pará, elaborado (Bern et al., 2007; 2009). O mesmo fenô-
pelas professoras da Universidade Federal meno se registra em quase todos os países
do Pará Dilma S. M. de Souza e Maria Rita europeus (Guerri-Guttenberg, 2008; Gascon
C. Monteiro, na forma de um manual de re- et al., 2009; DiGirolamo et al., 2016) – com
comendações para o diagnóstico, tratamento destaque para a Espanha, onde 60 a 80 mi-
e seguimento ambulatorial de portadores da lhões de infectados se estima ali viverem –,
doença de Chagas. no Japão e na Austrália. Um efeito paradoxal
Essa nova inflexão epidemiológica assume bem-vindo desse alastramento dos indivídu-
requintes de crueldade sociológica, quando os vitimados pela doença de Chagas reside
se considera que em anos recentes a trans- em renovado interesse por suas proteiformes
missão da doença passou a ocorrer – talvez manifestações e na consequente demanda
predominantemente – sob nova forma, pela por soluções médicas e sociais. Assim, a
ingestão de cargas volumosas de parasitos, Espanha e os Estados Unidos congregam
quando alimentos – como os baseados em atualmente vários centros de pesquisa em
açaí, preparados sem condições higiênicas torno do problema. Isso tem potencial para
adequadas – se contaminam pela macera- eventualmente retirar a doença do rol das
ção conjunta de restos ou mesmo de insetos mais negligenciadas entre as de cunho tro-
transmissores inteiros (Coura et al., 2006). pical. Em contexto francamente desanima-
Essa forma de transmissão oral da doença dor, havendo até hoje somente dois agentes
reveste-se de maior gravidade, porquanto a farmacológicos comprovadamente tripanos-
carga parasitária recebida é muito maior do somicidas disponibilizados para uso clínico,
que quando a contaminação se relaciona à já há cerca de 40 anos, são auspiciosas as
picada do inseto, e também por ser a mucosa iniciativas correntes testando fármacos novos
do trato digestório superior muito permeável e promissores – fosravuconazol, fexinidazol
ao parasito. Por conta desses fatores, em al- – em confronto com o clássico benznida-
guns surtos microepidêmicos a fase aguda zol ou a ele associados, conforme pesquisas
ponta. Contudo, a prova sorológica da in- dera que, de acordo com as normas vigentes,
fecção pelo T. cruzi em vários desses casos inclusive pela OMS, uma prova sorológica
mostrava-se consistentemente negativa. negativa seria suficiente para se descartar o
Há poucos anos relatamos, durante con- diagnóstico etiológico, mesmo em indivíduos
gresso internacional, o encontro de algumas com alto grau de suspeição da doença. Sendo
dezenas de casos sucessivos com essas ca- assim, esses indivíduos são habitualmente
racterísticas, a partir de amostra populacio- credenciados para doação sanguínea ou de
nal de pacientes que nos foram encaminha- órgãos sólidos e, com esses resultados fal-
dos para realização de cateterismo cardíaco samente negativos da sorologia, tornam-se
diagnóstico e coronariografia, entre 1o de potenciais transmissores da infecção pelo
julho de 2011 e 31 de dezembro de 2012, T. cruzi. Há cerca de dez anos relatamos
pois eram todos portadores de dor precor- o caso surpreendente de paciente receptora
dial suficientemente intensa e iterativa, para de um transplante hepático, realizado pela
demandar a realização desses exames (Pa- equipe do professor Orlando Castro e Silva
vão et al., 2013). Caracteristicamente, não da FMRP-USP, paciente esta que, dez meses
havia obstruções coronárias significativas, depois, desenvolveu um quadro muito gra-
mas encontravam-se as típicas alterações de ve de fase aguda da doença de Chagas. A
contratilidade ventricular regional, um sinal intensa miocardite, comprovada por biópsia
inequívoco ligado à etiologia da doença de do coração, que efetuamos como recurso
Chagas. Estranhamente, de 65 pacientes, in- derradeiro, com a paciente em estado tóxico-
cluindo 28 em que o aneurisma de ponta foi -infeccioso grave, quase in extremis, para
detectado, apenas 11 (17%) tiveram a etiolo- corroborar um diagnóstico que era conside-
gia da infecção tripanossomótica confirmada rado improvável, dado que tanto a paciente
por teste de imunofluorescência positiva para receptora como o doador do fígado haviam
anticorpos contra o parasito. Em nossa ins- testado negativamente para a doença de Cha-
tituição, esse tipo de situação também tem gas, revelou a presença no tecido cardíaco
sido constatado pelo professor Ricardo Bran- de incontáveis parasitos em plena multipli-
dt de Oliveira, da Faculdade de Medicina cação tissular (Souza et al., 2008). Embora a
de Ribeirão Preto (FMRP) daUSP, que se infecção aguda fosse prontamente debelada
dedica ao estudo de alterações de etiologia por medicamento anti-T. cruzi, com recupe-
da doença de Chagas em órgãos do sistema ração clínica praticamente completa pouco
digestório. O professor Brandt de Oliveira tempo após, o coração, testado por exames
tem observado diversos pacientes, portadores de imagem, não teve restabelecimento total.
de graus variáveis de esofagopatia e/ou co- Persistiu sequela que, provavelmente, viria a
lopatia, sem a correspondente comprovação ter ligação com o óbito súbito da paciente,
de um teste sorológico positivo. ocorrido já em fins de 2016, como me foi
O contexto dessa dissociação diagnóstica relatado pelo dr. Ajith Sankarankutty, da
entre as evidências clínicas da doença de equipe responsável pelo seguimento tardio
Chagas e a negatividade da sorologia especí- dos pacientes transplantados hepáticos. In-
fica, que deveria corroborar o diagnóstico, é formação adicional colhida em retrospecto
especialmente preocupante quando se consi- referia que, tendo o mesmo doador hepático
Em terceiro lugar, deve ser enfatizado hipótese de que para a população brasileira
que, embora a definição do desfecho com- de indivíduos cronicamente infectados pelo
posto primário englobando vários eventos T. cruzi, mesmo já cardiopatas, o tratamento
adversos seja usualmente defensável, para etiológico ainda consiga conferir certo grau
doença de decurso tão protraído como a do- de benefício (Rassi et al., 2017).
ença de Chagas, na qual vários deles podem Essa interpretação dos resultados do es-
se suceder, o método de análise baseado na tudo Benefit obviamente é sujeita à crítica
ocorrência do primeiro evento pode ter sido de constituir apenas análise de subgrupo,
inadequado para os propósitos do estudo. por isso induz somente à geração de hi-
E, de fato, embora sem atingir-se a signi- pótese a ser testada em estudo específico.
ficância estatística, praticamente todos os Infelizmente, não há no momento pers-
componentes do desfecho composto tiveram pectiva de que isso seja viável científica
sua incidência reduzida no grupo tratado e economicamente. Portanto, cientistas e
ativamente, em comparação com o que se especialmente médicos que lidam com in-
observou no grupo-controle (Morillo et al., divíduos cronicamente infectados pelo T.
2015). Ademais, um evento adverso dos mais cruzi, no Brasil, estão hoje confrontados
significativos clinicamente, a internação por com o dilema: tratar ou não seus pacien-
insuficiência cardíaca, ocorreu menos no gru- tes cardiopatas com o benznidazol? Haverá
po tratado do que no controle, mas não foi seguramente pesquisadores e médicos não
incorporada ao desfecho composto primário propensos a adotar a conduta de tratar, com
do estudo (Rassi et al., 2017). a justificativa de que, enquanto não se dis-
Finalmente, os resultados do estudo Be- puser de mais evidência de benefício, será
nefit, como publicados em primeira instân- preferível não adotar um recurso terapêutico
cia, necessitam de mais criteriosa análise sem eficácia comprovada e não desprovido
quanto à diversidade geográfica encontrada, de efeitos colaterais sérios (ainda que o
em especial atentando-se para a possibili- estudo Benefit tenha, como subproduto, de-
dade de variantes nos subtipos parasitários monstrado serem eles menos graves do que
geneticamente determinados influírem na se supunha). Entretanto, para os pacientes
suscetibilidade do T. cruzi ao tratamento brasileiros com cardiopatia em fases ainda
tripanossomicida com o benznidazol e, por não avançadas, acredito que seja plausível
conseguinte, também afetarem diferencia- oferecer a opção de um tratamento tripa-
damente os desfechos clínicos observados nossomicida durando apenas 2-3 meses, na
nos países participantes do estudo. Nesse forma de uma decisão compartilhada (por
sentido, no Brasil, onde o TcII é mais pre- médico e paciente). À luz dos presentes
valente (Zingales et al., 2014), os resultados conhecimentos, não é possível condenar,
do estudo mostraram acentuada tendência seja quem adote a conduta, seja quem a
a atingir-se a significância estatística (p = rejeite6. Há, tão somente, a chance de acerto
0.06) para a redução relativa de 15% (4,4%
em termos absolutos) no desfecho composto
primário. Isto, embora não possa ser tomado 6 “Ciência e Humanismo, Ainda É Possível Conciliar?”,
in Jornal da Sociedade Brasileira de Hemodinâmica e
como prova científica, permite levantar a Cardiologia Intervencionista, ano XV (3), 2012, pp. 16-9.
-sorriso9, quase um esgar, escaneada a partir que certamente lhe pareceu inevitável sem
do ricamente ilustrado livro editado pelas seu derradeiro e desatinado encontro com
historiadoras Simone P. Kropf e Aline L. a morte. Há numerosos indícios de ter Eu-
de Lacerda, Carlos Chagas, um Cientista clides, como talvez Carlos Chagas, sido
do Brasil. É oportuno assinalar que no mes- marcado para sempre pela visão presencial
mo ano de 1909, enquanto Carlos Chagas da apocalíptica tragédia de Canudos, da
despontava para o mundo científico por sua qual documentou os últimos e pungentes
brilhante descoberta, Euclides da Cunha, atos e que depois denunciou – em seu
já reconhecido e famoso literariamente, era grande livro Os Sertões, narrado à guisa
miseravelmente vitimado por outra tragédia de verdadeira epopeia às avessas – como
de clássicos contornos gregos, assassinado verdadeira loucura e crime de uma na-
por causa de drama familiar com desfecho cionalidade10.
Bibliografia
9 Carlos Chagas com um meio-sorriso, em março de 10 “É que ainda não existe um Maudsley para as loucuras
1929, durante recepção a grupo de cirurgiões norte- e os crimes das nacionalidades…” (Euclydes da Cunha.
-americanos, em Manguinhos, conforme aparece na Os Sertões – Campanha de Canudos. 3a ed. corrigida.
página 200 do livro citado acima. Rio de Janeiro, Livraria Francisco Alves, 1905, p. 614).
D
urante o ano de 1954, foi É claro que Horiguchi tinha visto o pro-
realizada a comemoração jeto de Niemeyer. Também sabia quem ele
do IV Centenário de São era e conhecia o estilo de suas obras. O que
Paulo, evento que celebrava e como Horiguchi pensou ao desenvolver
os 400 anos da história da o desenho do Pavilhão Japonês? Por que
cidade. O líder do projeto tamanho contraste foi necessário?
foi o gênio do Modernismo, Para essa resposta, é preciso primeiro
o arquiteto brasileiro mun- pensar sobre o significado da arquitetura
dialmente renomado Oscar moderna no Japão. A arquitetura moderna no
Niemeyer (1907-2012). Suas Japão está profundamente ligada a catástro-
obras podiam ser vistas nos fes, principalmente o Grande Terremoto de
1.800 km da área total do Parque Ibirapuera.
2
Kanto e a Segunda Guerra Mundial. Devido a
Ao mesmo tempo, o arquiteto de estilo estas duas tragédias que devastaram cidades,
japonês Sutemi Horiguchi (1895-1984) ficou o Japão deixou de ser um país de “cidades
responsável pela construção do Pavilhão de madeira” para tornar-se uma “metrópole
Japonês. De um lado, esculturas de concreto; de concreto”. Essa mudança foi conduzida
do outro, delicadas estruturas de madeira. como objetivo nacional e serviu para enri-
Um contraste extremo, até então nunca quecer a indústria da construção, além de
imaginado. A arquitetura de madeira do ser base do desenvolvimento econômico do
Pavilhão Japonês possui os toques distin- Japão no período pós-guerra. A arquitetura
tos de Horiguchi e foi inspirada no Palá- moderna que nasceu no início do século XX,
cio de Katsura. Entre as várias obras que na Europa Ocidental, serviu de padrão para
criou, essa foi uma das mais minuciosas. As as cidades japonesas construídas em con-
finas colunas de madeira que dão suporte creto. A história da arquitetura japonesa
ao edifício têm um alto nível de perfeição
e a delicada decoração interna parece tocar
uma música sensível. Uma arquitetura total-
KENGO KUMA é arquiteto e responsável
mente oposta às formas radicais, livres e pelo edifício da Japan House São Paulo.
maciças utilizadas por Niemeyer em suas Assina também, entre outros projetos,
o novo Estádio Olímpico de Tóquio
obras. Um contraste quase que intencional para 2020 e o Museu Nezu, em Tóquio,
poderia ser notado. dedicado à arte japonesa pré-moderna.
Roberta Rosseto
no século XX pode ser resumida por esse três anos depois, em setembro de 1923. O
objetivo nacional, o qual tanto o governo nome do grupo foi inspirado no movimento
quanto as empresas privadas se esforçaram separatista de Viena, que nasceu no final do
para concretizar. século XIX, e foi o primeiro movimento
Dentro dessa grande tendência, o arqui- relacionado à arquitetura moderna no Japão.
teto Horiguchi estava em uma situação inu- Foi o momento em que surgiu uma jovem
sitada. Na verdade, ele estava muito à frente estrela: um estudante da Universidade de
de seu tempo. Em 1920, quando Horigu- Tóquio se tornou, repentinamente, o perso-
chi estudava arquitetura na Universidade de nagem principal da arquitetura japonesa. Foi,
Tóquio, formou um grupo de seis amigos é claro, uma consagração muito mais rápida
chamado Grupo de Arquitetura Separatista. que a de Kunio Maekawa (1905-1986) ou a
Em julho, promoveu o evento “Primeira de Kenzo Tange (1913-2005), arquitetos que
Exposição do Grupo de Arquitetura Sepa- representam a arquitetura moderna japonesa.
ratista do Japão”, na loja de departamentos O ponto mais marcante é o fato de ter
Shirokiya, e lançou o livro Declaração e acontecido antes do Grande Terremoto
Obras do Grupo de Arquitetura Separatista de Kanto. Após essa grande catástrofe, a
pela Editora Iwanami Shoten. arquitetura japonesa negou a construção em
Aqui, devemos dar atenção ao ano, era madeira, iniciando a construção das cida-
1920. O Grande Terremoto de Kanto ocorreu des em concreto. A introdução do design
sumo de massa. A Escola de Amsterdã pare- O destino fez com que Horiguchi, o arqui-
cia criticar essa racionalidade criada pela teto solto no ar, projetasse o Pavilhão Japonês
sociedade. Assim, podemos considerar que dentro da exposição liderada por Oscar Nie-
tanto Horiguchi como a Escola de Amsterdã meyer, o líder do Modernismo em concreto.
queimaram a largada. Ou então, saltaram Existe uma tragicomédia maior que essa?
para um lugar onde não havia água. É possível imaginar a agonia de Horigu-
Horiguchi era prematuro, sensível e orgu- chi em São Paulo. Como reagir a esse para-
lhoso. Por isso queimou a largada e ficou doxo? Aceitar ou não esse trabalho? Hori-
solto no ar. O maior feito de Horiguchi é de guchi escreveu: “Não tinha coragem para
não ter mudado para a arquitetura de con- projetar algo perto daquela obra tão vivaz de
creto. Ele escolheu a arquitetura de madeira, Niemeyer. [...] Durante duas semanas fiquei
com a qual trabalhou até o final. Assim, pensando em como recusar este trabalho que
estudou minuciosamente a arquitetura tradi- não tinha capacidade de concluir”.
cional japonesa. Sabia que, sem a tradição, Mas no final aceitou o trabalho em
a arquitetura de madeira não passa de uma São Paulo. Como Dom Quixote, Horigu-
antiguidade e que não conseguiria sobreviver chi decidiu desafiar Niemeyer com uma
na era do concreto. Nesse sentido, a vida de “ultrapassada” arquitetura de madeira. O
Horiguchi pode ser comparada tanto a uma Pavilhão Japonês de São Paulo pode ser
tragédia quanto a uma comédia. considerado o Dom Quixote do século XX.
Roberta Rosseto
Roberta Rosseto
É uma história heroica que alcança o cora- do concreto. Horiguchi deu um suspiro de
ção das pessoas. alívio quando soube que o Pavilhão Japonês
Como Dom Quixote desafiou o concreto? estava protegido por árvores de eucalipto ao
O Dom Quixote do século XX escolheu o seu redor. Não bastando o jardim de euca-
jardim como arma. Horiguchi é conhecido lipto para afastar a energia de Niemeyer,
por separar minuciosamente o jardim de estilo criou ainda um jardim de água para con-
japonês do jardim abstrato do Modernismo. cluir o isolamento. O design principal do
Ele protegeu a delicada arquitetura de madeira Pavilhão Japonês de São Paulo é baseado
com um jardim. Sua obra principal, chamada no jardim de água.
Okadatei (1933), é uma estrutura de madeira Muitos falam que o Pavilhão Japonês
baseada na arte japonesa, que une harmo- de São Paulo é uma cópia do Palácio de
nicamente a arquitetura moderna com um Katsura, mas eu não penso assim. A pro-
jardim ocidental abstrato. Horiguchi sabia porção dos pilares flutuantes pode parecer
que, para que o Dom Quixote de madeira com as do Shingoten (Novo Palácio) de Kat-
pudesse lidar com o modernismo de igual sura, mas o Novo Palácio não flutua sobre a
para igual, o jardim era um fator essencial. água. Na obra Okadatei, os jardins orientais
Projetou minuciosamente o jardim do e ocidentais estão separados pela água. Para
projeto de São Paulo. Ele tentou proteger Horiguchi, a água é uma substância con-
o Dom Quixote do jardim da brutalidade clusiva. A proporção da arquitetura é um
problema secundário. Por isso, na obra de arquitetônicos com tanta liberdade. E foi
São Paulo pode ser notada uma forma de nesta terra distante e livre chamada Brasil
niilismo. O personagem principal é a água, que, de forma um pouco brutal, as obras de
e a arquitetura em si não é mais do que um madeira e concreto se encontraram. Foi o
enfeite. A arquitetura da exposição, apenas encontro desta tensão no Pavilhão Japonês
uma espécie de obra para a festa, aumenta de São Paulo que criou uma arquitetura de
ainda mais o niilismo. madeira única e especial.
Por bem ou por mal, defrontando um A superfície da água criada por Hori-
oponente invencível como Niemeyer, Hori- guchi agora está coberta por um plástico
guchi trabalhou minuciosamente no iso- branco à prova d’água, criando um lago
lamento usando o jardim, ajudando Dom muito estranho. Sem os traços japoneses,
Quixote a avançar até onde foi possível. O não dá vontade de chamar de jardim. Mas
método de Horiguchi conseguiu progredir levando em conta que o lago foi usado para
e alcançar um ponto elevado graças ao efetuar o isolamento, acho que não há um
encontro com São Paulo. modo melhor de desconexão. O lago não
É nessa parte que eu sinto muito mais é mais um jardim oriental, nem ocidental.
que uma coincidência. O método de Nie- Está flutuando no espaço. Porém, vendo este
meyer evoluiu graças ao Brasil e às neces- lago branco e estranho, acho que se adapta
sidades do local. Se ele estivesse na Europa, muito bem a Horiguchi, um Dom Quixote
talvez não fosse possível ter criado traços prematuro, que queimou a largada.
A
publicação de O Iti- brasileiro realiza uma síntese entre as notas
nerário de Benja- e comentários da publicação em alemão de
min de Tudela, a A. Asher, 1840 e 1841, que traduz e publica
primeira em por- a edição flamenga acima mencionada, e a
tuguês, vem dimi- de Marcus N. Adler, que, em 1907, a ree-
nuir a enorme la- dita com atualizações para a língua inglesa.
cuna existente no Em sua edição, Asher, preocupado com
Brasil em relação a história das ciências, apresenta o texto de
à edição crítica de textos medievais, princi- Benjamin como elemento importante para
palmente no que toca à produção hebraica a história da geografia medieval, pois pos-
relacionada com a construção da represen- sibilita “resgatar uma concepção de espaço
tação do espaço medieval e o desenho do construída por relatos de viajantes”1, enten-
mapa-múndi tal como o conhecemos hoje. dendo por viajantes todos os que se loco-
O histórico desta publicação tem como fonte moviam entre o Oriente e o Ocidente, seja
principal um texto manuscrito, datado do com propósitos religiosos, comerciais ou de
início do século XIII, com introdução que conquista e observação, movimentos bas-
identifica o autor como Benjamin de Tu- tante entrelaçados nos séculos XII e XIII.
dela, atualmente em arquivo do Museu Bri- Adler, por sua vez, prioriza a questão reli-
tânico, base das primeiras edições impressas
do texto: a de 1543, feita em Constantinopla
por Eliezer Ben Gerschon, e a de 1575, em 1 As citações deste parágrafo foram retiradas da apre-
sentação que J. Guinsburg faz da obra em sua edição.
hebraico, pela oficina de Christophori Plan-
tini, em Antuérpia que irá alcançar grande
sucesso de vendas principalmente pela be-
leza de suas ilustrações. A edição que ora J. MAGALI GOMES NOGUEIRA é doutora pelo
Guinsburg apresenta e traduz para o público Departamento de Geografia da FFLCH-USP.
Um livro de cavalarias
Isabel Almeida
Palmeirim de Inglaterra, de Francisco de Moraes, edição de Lênia Márcia Mongelli, Raúl César
Gouveia Fernandes e Fernando Maués, São Paulo, Ateliê/Editora Unicamp, 2016, 744 pp.
dade’…”) e “Esta Edição”. Não custa per- a investigação já desenvolvida por estudiosos
ceber o rumo seguido. como António Dias Miguel, Aurelio Vargas
Preocupação fundamental foi enquadrar a Díaz-Toledo ou Margarida Alpalhão, e re-
obra de Moraes, lembrando que ela é parte cordam cartas de Moraes, com seus relatos
de uma tradição de raízes medievas, com miúdos de festas extraordinárias ou de um
franca afirmação (reforçada pela imprensa) quotidiano faustoso.
no século XVI. Palmeirim de Inglaterra – Proceder deste modo, i.e., contemplar,
notam os editores – surge num contexto de além do livro de cavalarias, diferentes gé-
florescimento dos ciclos fundados com Ama- neros cultivados pelo autor (cartas, um dis-
dís de Gaula e Palmerín de Oliva. Essa pro- curso autobiográfico designado “Desculpa
liferação começa por sobressair em território de Uns Amores” e ainda três diálogos), traz
castelhano, mas, como argutamente fazem benefícios: permite identificar interlocutores
crer os editores, o fenómeno revela-se tão e patrocinadores (com relevo para D. Leonor
complexo quanto fecundo: Palmeirim de In- de Áustria e sua filha, a Infanta D. Maria),
glaterra, quarto título dos Palmeirins, “des- lançando luz sobre redes de sociabilidade e
considera por completo as alterações sugeri- correspondências a distância; permite apurar
das no Platir” (p. 11), o terceiro da mesma subtis e significativas conexões entre textos
linhagem, e vincula-se aos dois primeiros, distintos (por exemplo, de acordo com os
maxime a Primaleón? Afinal, bem poderá editores, a matéria que constitui o cerne da
ter sido o auto vicentino de Don Duardos – “Desculpa” “externa-se” na misoginia fla-
recriação selecta de Primaleón – a despertar grante em Palmeirim de Inglaterra); permite,
a atenção de Francisco de Moraes para esse enfim, abarcando um todo, reconhecer nele
segundo livro do ciclo dos Palmeirins. Resta certa diversidade.
concluir: o sucesso das histórias fabulosas Asseveram os editores que, nos diálogos
superou fronteiras – genológicas e políticas. (só postumamente impressos, em 1624), Mo-
Em “Informações Biográficas”, vai sendo raes “envereda para uma outra direção: a dos
traçado o retrato de Moraes, autor moldado colóquios entre pessoas que discorrem sobre
em ambientes palacianos, ao serviço da fa- diversos temas […] para abordar assuntos po-
mília real ou da alta nobreza. Na verdade, lêmicos” (p. 19). Sem dúvida. No entanto,
mais do que um conjunto de dados, procura- apetece interrogar: trata-se, de facto, de “uma
-se aí desenhar um percurso, assinalar re- outra direção”? Este caminho não foi enge-
lações e destacar experiências. Cientes das nhosamente aberto na própria narrativa de
dificuldades próprias da pesquisa em do- Palmeirim de Inglaterra, em cujo capítulo
cumentos do século XVI, onde coexistem 106, por exemplo, se acha um embrionário
homónimos nem sempre destrinçáveis, os colóquio entre um cavaleiro e um ermitão?
editores retêm o que é inequívoco e fazem Que o género – livro de cavalarias – me-
avultar etapas como as estadas diplomáticas rece ponderada reflexão, mostra-o nitidamente
na corte de França, a respeito da qual Mo- a “Introdução”, ao apontar o carácter contro-
raes escreveu e para a qual enviou notícias. verso dessas obras, que arrastavam consigo
Lênia Márcia Mongelli, Raúl César Gouveia um antiquíssimo problema: a definição de
Fernandes e Fernando Maués não esquecem “falso” e “verdadeiro”, indissoluvelmente as-
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