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Marcos Santos/USP Imagens

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comissão de credenciamento

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da Universidade de São Paulo. – N. 1 (mar./maio 1989) -
- São Paulo, SP: Universidade de São Paulo, Superintendência
de Comunicação Social, 1989-

Trimestral.
Continuação de: Revista da Universidade de São Paulo
Descrição baseada em: N. 93 (2012)
ISSN 0103-9989

1. Ensaio acadêmico. I. Universidade de São Paulo.


Superintendência de Comunicação Social
CDD-080
ISSN 0103-9989 115 outubro/novembro/dezembro 2017

dossiê politicamente correto

5 Editorial

9 Apresentação Cicero Araujo

11 “O mundo tá chato”: algumas notas sobre a dimensão sociocognitiva


do politicamente correto na linguagem Edwiges Morato e Anna Christina Bentes

29 Metamorfoses dos direitos humanos José A. Lindgren-Alves

41 O politicamente correto e a topologia da exclusão Silvana de Souza Ramos

51 Esquerda, direita e o politicamente correto: breve estudo comparado João Feres Júnior

textos
69 Um Plano Marshall para os pobres ou os caminhos da modernização brasileira Antônio Pedro Tota

77 Os Contos antes de Sagarana: desdobramentos da participação de Guimarães Rosa e


Graciliano Ramos no Prêmio Humberto de Campos Gustavo Milano e Thiago Mio Salla

89 Doença de Chagas – mais de 100 anos depois de sua cientificamente brilhante descoberta,
há poucas razões para se comemorar? J. Antonio Marin-Neto

arte
106 O Pavilhão Japonês de São Paulo Kengo Kuma

livros
125 Os primórdios da geografia como ciência Magali Gomes Nogueira

130 Um livro de cavalarias Isabel Almeida


A é uma publicação trimestral da
Superintendência de Comunicação Social (SCS) da USP.
Os artigos encomendados pela revista têm prioridade
na publicação. Artigos enviados espontaneamente poderão
ser publicados caso sejam aprovados pelo Conselho Editorial.
As opiniões expressas nos artigos assinados
são de responsabilidade exclusiva de seus autores.

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Reitor Marco Antonio Zago


Vice-reitor Vahan Agopyan

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Superintendente Eugênio Bucci

Editor chefe Francisco Costa


Editor executivo Jurandir Renovato
Editora de arte LEONOR TESHIMA SHIROMA
Revisão MARIA ANGELA DE CONTI ORTEGA
SILVIA SANTOS VIEIRA
Secretária maria catarina lima duarte
Colaboradores Marcos Santos (fotografia)
Saulo Adriano (tradução)

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belmiro mendes de castro filho
cicero romão resende de araujo
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eugênio bucci (membro nato)
Fernando luis medina mantelatto
Flávia Camargo Toni
franco maria lajolo
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oscar josé pinto éboli

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C
aro leitor(a), o dossiê estava programado para se
chamar “Esquerda, Direita e o Politicamente Correto”.
Não conseguimos. E o mais interessante é que, se há
“culpa” nisso, não podemos imputá-la a ninguém.
Não conseguimos porque, como dizia Camões,
“um brado mais alto se alevanta”. No nosso caso, o
que gerou esse “brado” foi o “politicamente correto”.
Mas o que é o politicamente correto e por que gera
tantas polêmicas? Essas perguntas são muito bem respondidas pelos autores do
presente dossiê, coordenado de forma habilidosa e atenta aos meandros da vida
prática acadêmica, por Cicero Araujo. Segundo ele, aliás, uma das coisas a se tomar
cuidado era justamente o fato de que não poderíamos prescindir da participação
das mulheres em nosso dossiê – isso foi cumprido plena e brilhantemente nos
ensaios das colaboradoras.
Outro veio, que inclui desde logo a questão, foi uma discussão – alguns autores
dizem que o termo não comportou até hoje essa esperada agudeza, resvalando
unicamente para a “polêmica” desde seu início, nos EUA dos anos 60 e depois lá
se articulando, definitivamente, nos anos 90 – sobre se o agente do politicamente
correto provém da esquerda ou da direita. Muito rico esse debate, que se
espraiou pelas páginas da seção. A Cicero Araujo, portanto, nossas mais efusivas
congratulações.
Não posso deixar de mencionar aqui o trabalho, na seção Arte da Revista, muito
bem realizado, sobre o Pavilhão Japonês no Parque do Ibirapuera, do arquiteto
Sutemi Horiguchi. Assinado por Kengo Kuma, considerado um dos maiores
arquitetos do Japão hoje, o artigo aponta a dificuldade de Horiguchi ao conceber o
projeto do Pavilhão, em papel e madeira – unindo o novo e o clássico de seu país –,
ao lado dos trabalhos ondulados e de concreto de Niemeyer. Confira tudo isso nas
próximas páginas.

Francisco Costa
6 REVISTA USP • São Paulo • n.92 • p. xx-xx • dezembro/fevereiro 2011-2012
politicamente

correto
Apresentação

Cicero Araujo

A
questão do “politicamente cor- correto dentro de seu próprio campo de especia-
reto” tem suscitado intensa lidade, uma vez que questões relevantes sobre a
controvérsia na opinião públi- natureza da linguagem estão no centro da contro-
ca brasileira. Ecoa, até certo vérsia. Da perspectiva não apenas de estudioso
ponto, polêmica desencadeada dos direitos humanos, mas de seu engajamento
anteriormente em outras para- prático, o embaixador José A. Lindgren-Alves
gens, em particular nos Estados toma o politicamente correto como ponto de
Unidos e na Europa. Em sua re- partida para discutir os caminhos e descaminhos
cepção nacional, contudo, revela da política internacional dos direitos humanos
peculiaridades. nas últimas décadas. Silvana de Souza Ramos,
Os quatro artigos que com- filósofa, inspirada no pensamento de Claude Le-
põem o presente dossiê buscam fort, resgata a importância da controvérsia para
esclarecer o leitor a respeito dos questionar a desigualdade social nos processos
diferentes contextos históricos e sociais de sua de ocupação do espaço público. E o cientista po-
emergência, assim como entender o fundo político lítico João Feres Júnior retoma análise dos usos
e ideológico dos embates que provoca. Ao fazê-lo, do termo em ambiente brasileiro, encontrados
porém, não deixam de tomar posição, retomando em artigos de imprensa e nas redes sociais, para
(e enriquecendo) a própria polêmica. anotar correlações entre seu sentido afirmativo ou
Os autores destes artigos foram provocados a negativo e a clássica dicotomia esquerda/direita.
elaborar uma reflexão sobre o tema, a partir de Cumprida a missão proposta pelo editor da Re-
suas diferentes perspectivas disciplinares. O re- vista USP, cabe, por fim, registrar nossa profunda
sultado, como se verá nas páginas a seguir, ficou gratidão a ele pela oportunidade e pela paciência,
muito interessante, não só porque enriquece de fato assim como aos articulistas convidados, pela ex-
a compreensão do problema, mas também porque, celente reflexão coletiva com que nos brindaram.
ao embasar posições nuançadas ou mesmo diver-
gentes, qualifica-o academicamente.
Edwiges Morato e Anna Christina Bentes, CICERO ARAUJO é professor de Teoria Política do
linguistas, situam a polêmica do politicamente Departamento de Ciência Política da FFLCH-USP.

Revista USP • São Paulo • n. 115 • p. 9 • outubro/novembro/dezembro 2017 9


“O mundo tá chato”: algumas notas
sobre a dimensão sociocognitiva
do politicamente correto na linguagem
Edwiges Morato
Anna Christina Bentes
resumo abstract

Tendo por escopo questões que se Drawing from issues of the interaction
colocam na interação entre linguagem, between language, cognition and society,
cognição e sociedade, este ensaio tem this essay aims to reflect on the socio-
o objetivo de refletir sobre os sentidos cognitive dimensions of political correctness
sociocognitivos do politicamente by taking into account some discursive
correto, considerando determinadas practices in contemporary Brazilian context.
práticas discursivas no contexto brasileiro We argue that political correctness, as a
contemporâneo. A tese que defendemos regulatory body of discursive and social
neste ensaio é a de que o politicamente practices, can be taken in a weak sense
correto, como regulador de práticas as a pragmatic resource fundamentally
discursivas e sociais, pode ser tomado associated to the attempt to promote a
num sentido fraco – como um recurso high degree of reflexivity of social actors
pragmático fundamentalmente associado in relation to the production of certain
à tentativa de promover um grau alto categorizations and/or statements, or
de reflexividade dos atores sociais em in a strong sense - both as a normative
relação à produção de determinadas system, capable of pointing to desirable
categorizações e/ou enunciados – ou symbolic ways of living in society, and as
num sentido forte – tanto como um a guide to situations to be overcome, such
sistema normativo, capaz de assinalar as social inequality, injustice, prejudice,
regimes simbólicos desejáveis da vida discrimination, and violence.
em sociedade, quanto um norteador
de situações a serem superadas, como Keywords: political correctness; language
a desigualdade social, a injustiça, o practices; social reflexivity; socio-cognition.
preconceito, a discriminação, a violência.

Palavras-chave: politicamente correto;


práticas de linguagem; reflexividade
social; sociocognição.
E
m outubro de 2017, o depu- sua condenação por danos morais, Bolsonaro
tado federal Jair Bolsonaro alegou, em relação à ação que sofrera, que
foi condenado judicialmente se tratava de “demanda com flagrante cunho
por declarações proferidas político”, lembrando ainda que gozava de
contra quilombolas em abril “imunidade parlamentar, sendo inviolável,
do mesmo ano, em palestra civil e penalmente, por quaisquer de suas
realizada no Clube Hebraica, opiniões, palavras e votos, conforme dispõe o
no Rio de Janeiro1. artigo 53 da CRFB”. A juíza do caso, Frana
Segundo relatos da im- Elizabeth Mendes, afirmou em sua sentença:
prensa, entre os enunciados
proferidos pelo deputado, que “Impende ressaltar que, como parlamentar,
foi condenado a pagar R$ 50 membro do Poder Legislativo, e sendo uma
mil por danos morais à comu-
nidade ofendida, estava o que afirmava que
os quilombolas “não servem nem para pro- O título deste ensaio é também o título de um vídeo
dos humoristas do programa Porta dos Fundos (coletivo
criar”. Na ocasião, o deputado ainda teria de humor brasileiro criado em agosto de 2012), vídeo
afirmado, ao comentar que havia feito uma este que busca tematizar os limites do humor a partir
da exibição de uma série de comportamentos verbais e
visita a uma comunidade quilombola, que sociais, performatizados pelo protagonista, considerados
homofóbicos, machistas, racistas e infratores pelos outros
“o afrodescendente mais leve lá pesava sete participantes do esquete. Tal como mostra o vídeo, o
arrobas”. A arroba, como sabemos, é uma enunciado faz parte da performance verbal de sujeitos
comuns no contexto do questionamento de suas atitu-
antiga medida de massa e volume utilizada des, consideradas politicamente incorretas. Uma menção
para pesar produtos comerciais como animais ao significado social desse vídeo será feita na parte final
deste ensaio.
vivos, porcos e bois, por exemplo. Ainda
segundo relatos da imprensa, ao comentar

EDWIGES MORATO e ANNA CHRISTINA


1 Disponível em: http://www.gazetaonline.com.br/ BENTES são professoras do Departamento
noticias/politica/2017/10/justica-condena-bolsonaro- de Linguística do Instituto de Estudos
-por-fala-sobre-quilombolas-1014102246.html. da Linguagem (IEL) da Unicamp.

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dossiê politicamente correto

pessoa de altíssimo conhecimento público se deixa ver em várias ordens de relação:


em âmbito nacional, o réu tem o dever de entre indivíduo e sociedade, entre categorias
assumir uma postura mais respeitosa com da língua e categorias do pensamento, entre
relação aos cidadãos e grupos que representa, práticas discursivas e práticas sociais.
ou seja, a todos, haja vista que suas atitudes A necessidade de existência de um pro-
influenciam pessoas, podendo incitar reações tocolo linguístico e comportamental em
exageradas e prejudiciais à coletividade”. relação ao que se considera como sendo
politicamente correto não apenas nas ações
Tanto a interpretação quanto a sanção de Estado, mas especialmente em distintos
social aplicadas aos enunciados proferidos contextos, interações e práticas discursivas e
pelo deputado são licenciadas por vários sociais cotidianas, assinala o caráter sociopo-
processos que interatuam na construção da lítico do fenômeno aqui destacado. Um dos
relação entre categorias linguísticas e sociais traços desse caráter é sua função atenuadora
por ele aventadas de forma explícita e implí- e conciliatória, algo providencial às demo-
cita. Tais processos envolvem: 1) o sistema cracias modernas, especialmente as que se
linguístico e o seu modo de funcionamento; caracterizam por desigualdades e tensões
2) o conhecimento social sobre a figura do sociais constantes e profundas. Outro traço
deputado Jair Bolsonaro e sobre a comuni- é sua iniciativa republicana, emancipatória,
dade ofendida; 3) o reconhecimento de todo empoderadora, inclusiva. Nesse caso, a exis-
um conjunto de conhecimentos comparti- tência do politicamente correto é capaz de
lhados e coletivizados em torno do racismo desvelar e/ou combater certos pressupostos
brasileiro e de suas formas de manifestação espraiados na sociedade e também aquelas
e contenção, mesmo que esses conhecimen- situações e práticas que, naturalizadas, per-
tos sejam distribuídos de forma desigual e maneceriam silenciadas ou tomadas como
estejam, atualmente, no centro das disputas consensuais. Trata-se, como vemos, de uma
político-ideológicas; 4) o contexto situacional expressão polissêmica.
de produção dos enunciados do deputado e a No entanto, o politicamente correto, mais
reação pública a eles. Todos esses processos do que uma expressão é, como veremos mais
dão-se em um espaço simbólico marcado adiante, uma estratégia política fundamental
pelo papel mediador da linguagem, sendo das sociedades pós-modernas. Ele não é ape-
que essa mediação, nas práticas discursivas2, nas um conjunto de eufemismos e/ou regras
de etiqueta pouco espontâneas que induzem
à boa e tolerante convivência nas práticas
2 Em consonância com uma perspectiva de base so- sociais, de modo a irritar constantemente
ciocognitiva, assumiremos ao longo deste ensaio a
concepção de discurso resumida na formulação de
Garay, Íñinguez e Martinez (2005, pp. 110-11): “[...] um
conjunto de práticas linguísticas que mantém e pro- 2005, p. 111). O grupo também dialoga com autores
move certas relações sociais”. O interesse desse grupo que consideram centralmente três premissas: a do in-
de pesquisadores é o de investigar como os próprios teresse sobre como as pessoas constroem a realidade
atores sociais elaboram suas interações sociais e social; a da consideração da linguagem não como uma
verbais a partir de perspectivas variáveis e diversas descrição da realidade, mas como uma construção
do mundo social, considerando que a “orientação do dessa realidade; e a da compreensão da linguagem
discurso para funções específicas é uma indicação de como uma prática social (Garay, Íñinguez & Martinez,
seu caráter construtivo” (Garay, Íñinguez & Martinez, 2005, p. 112).

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com seus paroxismos, vigilâncias ideoló- relação à produção de determinadas catego-
gicas e excrescências linguísticas, tanto os rizações e/ou enunciados, ou num sentido
intelectuais e militantes progressistas quanto forte, isto é, tanto como um sistema norma-
os conservadores. tivo, capaz de assinalar regimes simbólicos
O politicamente correto tem se mostrado desejáveis da vida em sociedade, quanto um
certamente um sistema de pressão a partir norteador de situações a serem superadas,
do qual pressupostos ideológicos e evidên- como a desigualdade social, a injustiça, o
cias empíricas de violência contra determi- preconceito, a discriminação, a violência.
nados grupos sociais são desvelados de forma Tanto um sentido quanto outro indicam uma
particular; dizer dele que é um sistema de dimensão não apenas linguística do politica-
opressão sobre a liberdade de expressão e de mente correto, mas também sociocognitiva.
(inter)ação é negligenciar os motivos pelos Queremos dizer com isso que o politicamente
quais ele se fez e se faz necessário. correto na linguagem (e a discussão sobre
Tendo por escopo questões que se colo- ele) está vinculado à construção sociointe-
cam na interação entre linguagem e socie- racional de objetos simbólicos, largamente
dade, este ensaio tem o objetivo de refletir mediada pelas práticas discursivas.
sobre os sentidos sociocognitivos do politi-
camente correto, considerando determinadas ALGUNS ASPECTOS DA TRAJETÓRIA
práticas discursivas no contexto brasileiro
contemporâneo. Mais especificamente, a
DO POLITICAMENTE CORRETO
tese que defendemos neste ensaio é a de
que o politicamente correto, como regula- Uma das hipóteses ou narrativas sobre a
dor de práticas discursivas e sociais, pode origem do “politicamente correto” (Beard &
ser tomado num sentido fraco, isto é, como Cerf, 1992; Handke, 2001; Mangeot, 1997;
um recurso pragmático fundamentalmente Friedman & Narveson, 1995; dentre outros) é
associado à tentativa de promover um grau a de que a expressão teria sido aventada com
alto de reflexividade3 dos atores sociais em o objetivo de descrever a linha partidária
pós-Revolução de Outubro de 1917. Como
política de Estado, teria sido importante para
3 Koike e Bentes (no prelo), ao analisarem as tweetstorms
os revolucionários russos a construção de
de Donald Trump, consideram fundamental discutir a um novo tempo social e cultural, moldado
exibição de práticas reflexivas, concebidas como um
traço social da pós-modernidade (Adams, 2006). Para por uma linguagem à altura desse desafio.
este último autor, a reflexividade origina-se de uma No entanto, a expressão teria sido utilizada
diversidade de mudanças sociais, dentre elas, a ex-
pansão de estruturas e tecnologias de comunicação, a bem antes do século XX, o que pode sig-
nossa exposição aos outros e a relativização de nossas
práticas socioculturais mais estabilizadas. Para autores
nificar que a sensibilidade política (conce-
clássicos como Giddens (1992) e Beck (1992), a reflexi- bida aqui como um tipo de reflexividade)
vidade é um requisito necessário à estruturação de
identidades e subjetividades sociais. Para Bourdieu e em relação à linguagem, ao seu contexto
Wacquant (1992), a reflexividade faz parte do habitus, de produção (como, por exemplo, as esferas
sendo um constituinte fundamental, necessariamen-
te requerido para a participação em determinados públicas parlamentar, jurídica, médica, reli-
campos, como o científico e o acadêmico. Ainda para
estes últimos autores, a reflexividade se mostraria
giosa, universitária, midiática, etc.) e seus
mais fortemente em tempos de crise. impactos sobre a categorização social de

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dossiê politicamente correto

indivíduos e comunidades inteiras, é antiga. ainda segundo o autor, o politicamente cor-


Já aí se nota o desafio de identificar o escopo reto parecia empoderar minorias militantes
de correção: mais do que a enunciação em apenas no interior da esfera escolar (básica
si de uma palavra, expressão ou enunciado, e/ou superior).
o que importa de fato é a ação sociopolí- Como é possível perceber, o politicamente
tica a ela associada, evocada ou formulada: correto foi sempre disputado e assim con-
assim, importa não apenas o que é dito, mas tinua nos dias de hoje. Para Hall (1994), o
quem diz o quê, para quem e como e com politicamente correto é uma das questões
qual propósito. que atravessam a divisão esquerda/direita
Stuart Hall, em seu texto Some Politically e que seguem separando certos setores da
Incorrect Pathways to PC, de 1994, afirma esquerda de outros. O autor defende a tese
que, de acordo com uma determinada narra- de que, na esteira das rápidas modificações
tiva, a expressão teria tido origem em uma políticas dos anos 1980 e 1990, o fator mobi-
brincadeira interna de estudantes universitá- lizador para a crítica à sociedade capitalista
rios de esquerda nos diferentes campi uni- por parte dos sujeitos passou a ser não o
versitários americanos. Ao criticarem com- interesse material ou a desvantagem coletiva,
portamentos machistas ou sexistas de seus mas sim a identidade (étnica e/ou de gênero,
colegas, diriam em um tom que imitava os por exemplo) compartilhada. Essa é uma das
guardas vermelhos da Revolução Cultural: fragmentações do cenário político e social
“Não é politicamente correto, camarada!”. apontadas por Hall que se reflete nas práticas
Ainda a esse respeito, Stuart Hall conta do politicamente correto, especialmente em
uma história interessante: em meados dos função do fato de o pessoal ter “invadido”
anos 1980, ele estava dando uma confe- a esfera política – “O pessoal é político”,
rência em uma universidade americana slogan feminista da época e de hoje.
quando foi avisado de que deveria ficar Um outro fator levantado pelo autor para
atento ao que dissesse porque, nos novos a emergência do politicamente correto é o
tempos das eleições pós-Reagan, a direita reconhecimento, a partir dos anos 1980, do
tinha estabelecido comitês para monitorar papel mediador da linguagem na percepção
os palestrantes e tomar notas sobre tudo o de nós mesmos e do mundo social: “O
que eles dissessem que pudesse ser inter- politicamente correto surge no interior de
pretado como solapamento da Constituição uma cultura intelectual que passou pela cha-
americana ou da fibra moral da melhor e mada ‘virada linguística’” (Hall, 1994, p.
mais iluminada nação. Para o autor, isso 168). Nesse sentido, o politicamente correto é
constituía o uso do politicamente correto caracterizado pelo autor como uma estratégia
por parte da direita americana – e não mais política e um estilo político, sendo que este
da esquerda autoritária – como uma reação último seria reconhecido como uma “voz”
dos anos 1980 contra os anos 1960. “Era a em modo permanente de confrontação e de
direita e a Maioria Moral que estavam ten- exibição de uma autorretidão. Ao dar con-
tando prescrever o que poderia ser pensado tinuidade à sua argumentação, Hall (1994)
e dito nas salas de aula da academia” (Hall, afirma que o politicamente correto traz em
1994, p. 165). Enquanto isso, como tática, si um paradoxo: ele permitiria a emergên-

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cia de lutas novas com armas antigas. As Essa percepção do poder da linguagem
novas lutas sociais dizem respeito às lutas na construção da/e na intervenção sobre a
contra a invisibilidade de questões sociais realidade social é aprofundada no campo
tais como racismo, homofobia e machismo, linguístico sobretudo a partir dos trabalhos
trazendo à baila novas visões sobre gênero, do filósofo inglês John Langshaw Austin
sexualidade, etnicidade, etc. As armas antigas (1962) acerca dos atos de fala. De acordo
seriam justamente a atitude de policiamento com essa abordagem de natureza pragmá-
da linguagem e a tentativa de substituição tica, falar não é apenas descrever ações e
de um conjunto de verdades e identidades estados de coisas do mundo, mas sim agir
por outro conjunto de identidades e/ou ver- sobre ele. Ao falar, realizamos atos com
dades mais corretas. Para o autor, a proposta consequências sociopolíticas, sociocomuni-
deveria ser a de desarranjar permanentemente cativas e sociocognitivas. Trata-se, pois, de
todas as configurações de poder e, ao mesmo saber como a linguagem é capaz de, a um
tempo, aceitar e negociar a diferença. só tempo, informar e ser informada pela
Anne-Charlotte Husson (2014), por seu realidade de falantes reais em situações
turno, salienta que a ideia inicial das chama- reais de uso e de interação social.
das práticas linguísticas politicamente cor- A nosso ver, ao ser empregado no con-
retas era restaurar o poder a determinados texto dos novos movimentos sociais norte-
grupos sociais; era “mudar a sociedade”. Afi- -americanos e ingleses emergentes nas
nal, como reconhecem muitos autores dentro décadas de 1980 e 1990, o politicamente
e fora da linguística, linguagem é poder ou, correto estaria mais dirigido à implemen-
em outras palavras, “o exercício do poder tação de uma constante reflexividade (nos
também passa pelo exercício das práticas de termos postulados anteriormente) por parte
linguagem”, em consonância com os tipos dos atores sociais em relação à significa-
de relações de força que são possíveis de ção e ao uso de determinadas expressões
ser estabelecidos. linguísticas, ou mesmo à avaliação do seu
A consideração de uma estreita relação uso, do que propriamente às orientações de
entre língua, linguagem e modos de per- conduta social. A correção a que se alude
ceber e constituir a realidade social tem nesse emprego parece querer indicar a
sido explorada pela linguística sobretudo a necessidade de observação de princípios
partir de meados do século XX, na esteira cooperativos essenciais às normas culturais
da chamada hipótese de Sapir e Whorf, e sociopolíticas de convivência desejáveis
segundo a qual, nas categorias da língua ou recomendadas no âmbito das democra-
inscrevem-se categorias do pensamento 4. cias modernas.
Ainda que a preocupação com práticas
tidas como politicamente corretas não seja
4 Em breves linhas, a chamada “hipótese Sapir-Whorf”
(HSW), formulada por Harry Hoijer em 1954, é atri- uma novidade, o que aconteceu nas duas
buída a Edward Sapir e a Benjamin Lee Whorf. No últimas décadas do século XX e na primeira
contexto do relativismo linguístico, a HSW, creditada
a reflexões de ambos os autores no começo do século década do século XXI parece ter incre-
XX, postula que a estrutura da língua afeta ou con-
diciona nossa conceitualização do mundo e a forma
mentado o sentido social de que o politi-
pela qual pensamos. camente correto pressupõe forte controle/

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dossiê politicamente correto

avaliação5 sobre a linguagem a ser per- algum modo em seu esvaziamento semântico
formatizado pelos militantes dos novos e social, resta forte a impressão de que, como
movimentos sociais no interior dos quais pondera a linguista Maria Helena Moura
emergiu. Como resultado, tanto a ideia de Neves (2014, p. 140), ele – o politicamente
controle/avaliação como a sua rejeição têm correto – nem sempre tem tido êxito em
marcado a recepção social do politicamente tentar governar “equilibradamente” as ava-
correto, transformando-o em um espaço de liações do uso linguístico.
lutas e/ou disputas em torno dessa estratégia Outra reflexão importante é desenvolvida
política, tal como a categorizou Hall (1994). pelo linguista Kanavillil Rajagoplan em
Passadas décadas da nossa experiência artigo de 2000, no qual lança uma pergunta
com os vários sentidos da expressão “poli- que ainda está a exigir uma resposta: qual
ticamente correto”, vale a pena refletir sobre o “porquê de tanto ódio” (escárnio, aversão,
sua vitalidade conceitual e política e passar menosprezo, ridicularização, mofa), pergunta
uma vista d’olhos sobre como ela ainda pode o autor, em relação ao politicamente correto?
ser tomada nos dois sentidos acima mencio- Uma resposta a essa questão poderia vir de
nados. Ao final desse empreendimento refle- ponderações como a de Luiz Eduardo Soares
xivo, talvez possamos desenhar um cenário (1998), que vincula a rejeição ao politica-
no qual o politicamente correto, longe de mente correto às atitudes misógina, racista
embaraçar as interações nos planos micro e homofóbica da sociedade brasileira.
e macrossocial, pode mesmo expandi-las e, Para gáudio de poucos que pretendem
de certo modo, explicá-las. dominar muitos (sob a forma de deploração
de seus estilos, de sua variedade linguística,
VISÕES SOBRE O POLITICAMENTE de seu perfil sociolinguístico, de suas carac-
terísticas étnicas, sexuais, culturais ou ideo-
CORRETO NO CONTEXTO BRASILEIRO lógicas) ou arbitrar como os demais devem
se sentir ao serem categorizados de forma
Como sabemos, as palavras podem dis- social e subjetivamente inaceitável, o politi-
criminar, ofender e humilhar, de maneira camente correto, que tem lá seus problemas,
mais ou menos consciente e voluntária. Se como de resto toda e qualquer regulação
é certo que a reificação ou o uso trivial socialmente construída, tende a chamar a
do politicamente correto tem incorrido de atenção para uma dimensão de empatia e
coesividade intersubjetiva a ser integrada ao
nosso capital cooperativo em tempos local
5 As práticas de linguagem baseadas no politicamente e globalmente conturbados.
correto podem ser compreendidas no contexto em
que concepções culturais não apenas sobre a língua
Por outro lado, talvez preocupado com
e a variação que lhe é inerente, mas também sobre o cerceamento de liberdades individuais e
a natureza e o propósito da comunicação e sobre
comportamentos coletivos como representação de outras questões tão caras a um país mar-
uma ordem coletiva, são estudadas, especialmente cado pelas agruras históricas do preconceito
por linguistas antropólogos, como práticas que cons-
tituem o fenômeno da ideologia linguística. A respeito e da discriminação social, bem como por
dos estudos sobre essa ligação entre linguagem e
ideologia, ver Schieffelin, Kroskrity & Woolard (1992),
intolerâncias político-ideológicas, o pensa-
Cameron (1995; 2006), Van Dijk (2008). mento mais progressista não tem deixado de

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apontar uma diligente crítica (na esteira do exemplo: a) considera que a troca de pala-
arrazoado feito por Stuart Hall na década vras marcadas por palavras não marcadas
de 1990, apresentado na seção anterior) à ideologicamente pode produzir a diminui-
censura e ao patrulhamento ideológico, que ção dos preconceitos. Trata-se de uma tese
tanto pode recair sobre o sistema linguístico simplista, já que é mais provavelmente a
(o dictus) quanto sobre seu funcionamento existência dos preconceitos que produz
em uso efetivo nas práticas sociais cotidia- aqueles efeitos de sentido, embora não se
nas (o modus). possa desprezar o fato de que o discurso
Contudo, ao levarmos em conta as infle- pode servir para realimentar as condições
xões gerais observadas no campo linguístico sociais que dão suporte às ideologias e aos
a respeito do politicamente correto na lin- próprios discursos. A hipótese das palavras
guagem, procurando proceder a um exame ‘puras’ é certamente ingênua; b) em certos
do que está nele envolvido ou requerido, casos, adota um ‘etimologismo’ insuportável,
somos levados a considerar que também como quando considera que palavras como
no campo mais progressista a reflexão não history se relacionam ao ponto de vista mas-
deixa de resvalar num relativismo teórico que culino, com base na identificação da primeira
pouco ajuda a entender de forma dialética sílaba dessa palavra com a forma pronomi-
as relações entre o individual e o social, nal ‘bis’ [...]; c) frequentemente, quando não
entre liberdade de expressão e compromisso há uma palavra sinônima que determinado
social, entre legitimação e deslegitimação movimento possa considerar politicamente
de enquadramentos ou categorizações de correta (como é o caso de ‘homossexual’ ou
classe de indivíduos, grupos sociais e prá- ‘homófilo’, ao invés de ‘bicha’, por exemplo),
ticas discursivas. Sem o advento da “praga” para evitar mesmo assim o uso de palavras
do politicamente correto, tais enquadramen- marcadas, sugerem-se eufemismos de certa
tos não seriam desvelados, (re)conhecidos e forma cômicos, ou verdadeiras definições
modificados. [...]” (Possenti, 1995, pp. 138-9).
Vejamos, a propósito, algumas posições a
respeito do politicamente correto no campo Reação crítica próxima a essa suscitou o
dos estudos da linguagem. documento publicado em 2004 pela Secre-
Uma primeira posição, representada taria Especial de Direitos Humanos da Pre-
pelos trabalhos de Possenti (1995) e Pos- sidência da República do Brasil, intitulado
senti e Baronas (2006), por exemplo, destaca Politicamente Correto e Direitos Humanos.
os limites do “etimologismo” e da ilusão Na Cartilha do Politicamente Correto,
denotativa. Aponta-se, nesse tipo de crítica como ficou conhecido esse documento, busca-
ao politicamente correto, certos equívocos -se chamar a atenção dos leitores para uma
teóricos sobre o funcionamento da língua: série de expressões que, de uso cotidiano e
corriqueiro nem sempre consciente, veicu-
“O movimento por um comportamento lam preconceitos, estigmas e estereótipos.
politicamente correto tem méritos políticos No documento são assinaladas 96 expressões
óbvios. Mas, em relação à linguagem, comete linguísticas consideradas politicamente incor-
alguns equívocos relativamente banais. Por retas, tais como “denegrir” e “judiar”. Veja-

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dossiê politicamente correto

mos, a título de exemplo, um dos comentários sendo, é tão intolerável quanto as próprias
extraídos do documento: “[...] a coisa ficou incorreções políticas (Neves, 2012, p. 203).
preta – a frase é utilizada para expressar o
aumento das dificuldades de determinada Algumas decisões politicamente corre-
situação, traindo forte conotação racista con- tas, como sugerem vários autores brasileiros
tra os negros” (Queiroz, 2004, p. 7). Apesar que se dedicaram ao tema (Possenti, 1995;
de pretender contribuir para a construção de Possenti & Baronas, 2006; Ribeiro, 2000;
uma cultura de direitos humanos no país, o Fiorin, 2008; Neves, 2014, dentre outros),
documento da Secretaria de Direitos Huma- malogram na compreensão pouco sutil e/ou
nos, hoje extinta, foi fortemente criticado de complexidade desse fenômeno que rela-
tanto por escritores, professores universitários ciona estreitamente língua e sociedade. Tome-
e jornalistas, quanto por setores do próprio mos o exemplo do uso do termo “surdo”,
governo, o que levou à suspensão imediata por exemplo. O termo nem sempre foi tido
de sua distribuição. como insultante ou pejorativo pela comuni-
O que teria faltado à sensibilidade lin- dade de pessoas surdas, mesmo porque ele foi
guística da referida cartilha e mesmo de sendo historicamente esvaziado de conteúdo
um governo que soube criar, no período de negativo e tomado como fator identitário
2003 a 2014, vários setores institucionais (como é possível perceber pela postulação
com vistas à proteção de direitos sociais? Ao de uma “cultura surda”, por exemplo). Já a
que parece, uma visão mais sociolinguística expressão “deficiência auditiva”, alternativa
de linguagem. Faltou a compreensão de que por vezes tomada como politicamente cor-
língua não é só signo; é também e, sobre- reta, nem sempre é bem-aceita por surdos e
tudo, ação, prática, cognição social. ouvintes, uma vez que, menos precisa, faz
Uma segunda posição observada no referência a pessoas com redução de audi-
campo dos estudos da linguagem, bastante ção por distintos motivos, como a idade ou
próxima à primeira, é a que requer para o alguma condição física de ordem funcional,
politicamente correto uma região de equi- por exemplo.
líbrio entre o sociopolítico e o uso linguís- Numa perspectiva mais pragmática da
tico. O arrazoado da linguista Maria Helena relação entre linguagem e mundo social,
Moura Neves expressaria esta posição: Rajagopalan (2000) não hesita em caminhar
em direção a uma clara defesa do politica-
“O ‘politicamente correto’ é, atualmente, ban- mente correto nas práticas discursivas coti-
deira que se levanta para interpretar atos do dianas. Indo ao ponto da celeuma, o autor se
dia a dia, numa onda de patrulhamento que pauta menos por querelas linguísticas pro-
tem presença notável na sociedade, com dupla curando, antes, proceder a um diagnóstico
influência e significação: bem-intencionada sociocultural mais preciso a respeito do que
que é, cria a impossibilidade de qualquer está em questão. Rajagopalan concentra-se
refutação, parecendo intolerável que seja con- não no que a linguagem (“em si”) contém,
denada, ou que seja sequer questionada; por mas em seu uso social e sua capacidade de
outro lado, mal inserida nas mais diversas construir e destruir formas de perspectivar
atividades, como indiscriminadamente vem o outro e (inter)agir com ele. Nesse texto,

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Rajagopalan instaura essa discussão já no sentido, considerando o terreno das práticas
título: “Sobre o Porquê de Tanto Ódio Con- discursivas politicamente corretas, é possí-
tra a Linguagem ‘Politicamente Correta’”. vel pensar que não deixamos de combater
Sua posição é algo diferente da de Possenti preconceitos e discriminações ao monitorar,
(1995), autor ao qual se reporta para admi- via regulação social, os efeitos de sentido
tir críticas aos exageros e erros cometidos da nossa própria linguagem e/ou da lin-
em nome do politicamente correto, como a guagem alheia.
afirmação segundo a qual a língua em si Rajagopalan, como outros autores do
carrega sentidos com preconceito, estigma, campo de estudos linguísticos, também reco-
estereótipo, etc. nhece os limites do politicamente correto na
Uma pergunta a ser lançada neste ponto linguagem enquanto correção consciente da
da reflexão aqui desenvolvida é: nossos pen- ordem social, dado que “a linguagem poli-
samentos são modificados mesmo que a lin- ticamente correta não é nenhum remédio
guagem não se modifique? A resposta para milagroso contra os preconceitos que estão
essa questão é possivelmente negativa, ou fortemente arraigados em nossa sociedade”
seja, não mudamos inteiramente nossa com- (Rajagopalan, 2000, p. 101). Certamente, o
preensão do mundo se não mudamos, pelo preconceito, a discriminação e toda sorte de
menos, e de algum modo, a forma de nos violência simbólica arraigados sociocultural-
referirmos a ele. mente não dependem diretamente da lingua-
Para Rajagopalan, há situações em que gem para existir, e não deixarão de existir
a linguagem tem, sim, impacto sobre as sob a forma de uma contenção linguística:
coisas e os acontecimentos aos quais ela
se refere. Ele põe em discussão, assim, “[...] o combate aos nossos preconceitos
alguns aspectos da reflexão empreendida pode ter na nossa própria linguagem um
por alguns linguistas sobre o politicamente bom começo. O que não quer dizer que os
correto com base no uso da noção saussu- preconceitos simplesmente sumam como em
riana de arbitrariedade do signo. Rajago- um passe de mágica, assim que elimina-
palan (2000, p. 99) considera que os obje- mos da nossa linguagem certas práticas que
tos simbólicos estão presentes “em nossa denunciam a existência de tais preconceitos.
consciência junto com a imagem que cada [...] Entretanto, uma das maneiras mais efi-
um deles adquiriu ao longo dos tempos”. O cazes de combater os preconceitos sociais
autor considera que o objeto percepcionado que, ao que tudo indica, sempre existirão, é
não está preso num mundo extralinguístico monitorando a linguagem por meio da qual
impossível de ser recuperado pelas cate- tais preconceitos são produzidos e mantidos
gorias linguísticas. Para ele, os sentidos e obrigando os usuários, em nome da lingua-
estão estreitamente ligados ao seu “modo gem politicamente correta, a exercer controle
de apresentação”. Assim, ao substituirmos sobre sua própria fala e, ao controlar sua
termos pelos quais identificamos ou cons- própria fala, constantemente se conscientizar
truímos um determinado referente, podemos da existência de tais preconceitos. Intervir
modificar também seu sentido social e a na linguagem significa intervir no mundo”
forma como são conceitualizados. Nesse (Rajagopalan, 2000, p. 102).

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dossiê politicamente correto

A julgar pelo debate que a expressão por sua aplicação beneficiam a sociedade
suscita muito especialmente no atual con- como um todo. Essa observação sobre a cor-
texto sociopolítico brasileiro, julgamos que reção política parece dizer respeito a certos
a reflexão sobre o politicamente correto é movimentos e partidos políticos (incluídas
pertinente e nos ajuda a compreender temas suas políticas institucionais) identificados
de grande relevância contemporânea, como a com o campo progressista, bem como ao
cognição social, a moralidade, a questão da conjunto historicamente constituído de rei-
avaliação dos usos linguísticos. Esta seria, a vindicações de entidades e movimentos de
nosso ver, uma terceira posição do campo dos direitos humanos. Sendo assim, a expressão
estudos da linguagem a respeito do politica- “politicamente correto”, na forma como é
mente correto, ou seja, aquela que procura usada na maioria das vezes, implica que uma
conciliar a linguagem com processos afeitos proporção significativa de atores sociais faz
a ela, como a ação política, a reflexividade, uma escolha política (mais) consciente de
a cognição social. determinadas expressões linguísticas usadas
em suas práticas discursivas orais cotidianas
ALGUNS PRINCÍPIOS PARA A e em seus textos escritos, com a intenção
de divulgá-las mais amplamente e, assim,
COMPREENSÃO DO POLITICAMENTE
melhor objetivar as relações sociais.
CORRETO NA LINGUAGEM No caso do contexto sócio-histórico bra-
sileiro, o politicamente correto tem desenvol-
Longe de defender o politicamente cor- vido uma “educação pela pedra” no âmbito
reto enquanto uma espécie de Eldorado lin- da nova, inconstante e pouco segura demo-
guístico ou social e, do mesmo modo, longe cracia brasileira, marcada por um passado
de dizer dele que é uma afronta à liber- escravagista, uma história colonial predatória
dade de expressão ou de opinião de “cada e assaltos constantes ao processo de redemo-
um”, forjada num relativismo providencial cratização pelo qual estamos a passar desde
aos tempos neoliberais, podemos tomá-lo o fim do longo período de regime militar.
grosso modo, como já afirmamos anterior- Por exemplo, o primeiro presidente da Repú-
mente, como uma disposição (seja ela ins- blica depois da ditadura militar saudava em
titucional ou não) orientada pela percepção 1985 os cidadãos do país com a expressão
de que o emprego de certas categorias lin- “brasileiras e brasileiros”, marcando o início
guísticas e/ou enunciados pode causar danos de um tipo de interlocução específica com as
a indivíduos e comunidades minoritárias ou mulheres, alçadas ao status de interlocutoras
socialmente vulneráveis e desprestigiadas, diretas, interpeladas a serem copartícipes da
como negros, mulheres, indígenas, deficien- construção do futuro do país àquela época,
tes, homossexuais, etc. pelo menos no modo de endereçamento enun-
O princípio do politicamente correto nas ciativo. Deixou também avanços no terreno
práticas discursivas parece partir da ideia de sociopolítico, como a elaboração de políti-
que: 1) a escolha das palavras pode encorajar, cas públicas voltadas para o empoderamento
promover ou mesmo estabelecer certas rela- feminino e para a contenção de práticas de
ções sociais; e que 2) os resultados obtidos discriminação e preconceito de várias ordens

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(etnia, credo, gênero, idade, dentre outras), portadora de deficiência” tornou-se social e
fortemente implementadas nos governos do epistemologicamente limitada, assim como
Partido dos Trabalhadores (2002/2016) por o modelo estritamente biomédico que a nor-
meio da criação de diversas secretarias com teia. Nesse caso, os processos que levaram
estatuto de ministério, bem como de portarias às mudanças descritas acima, envolvendo
específicas (como a que trata do Estatuto do as formas de categorização de um grupo
Idoso, de 2003)6. social específico, podem ser considerados
Dentro desse contexto, a defesa de práti- como elementos fundamentais de políticas
cas de linguagem de orientação politicamente públicas de linguagem que tomam como base
correta tem procurado tornar cada um dos os princípios do politicamente correto, ou
usos discriminatórios, injuriosos ou precon- seja, que buscam dar voz e fazer respeitar as
ceituosos já naturalizados e inconscientes visões dos grupos a respeito de si mesmos e
em função de sua reificação nas práticas de suas reivindicações para serem vistos de
discursivas cotidianas em usos conscientes forma mais adequada e não preconceituosa
e reflexivos. pela sociedade.
É o caso, por exemplo, da proposta de uso Como podemos observar, práticas de
em documentos oficiais da expressão “pessoa avaliação dos usos linguístico-discursivos
com deficiência”, que substitui a expressão de orientação politicamente correta não se
“portador de deficiência” por recomendação referem apenas a princípios comunicativos
da Portaria Sedh nº 2.344, de 3 de novembro centrados em eufemismos e modalizações
de 2010, que segue uma decisão da Conven- cheios de exageros e proselitismos, inócuos
ção Internacional para a Proteção e Promo- na modificação do status quo social. A ques-
ção dos Direitos e Dignidade das Pessoas tão é, pois, de natureza conceitual, e não
com Deficiência, de 20077. apenas terminológica.
Recorrentes até os anos 1980, termos De forma a refutar o argumento de que
como “inválido”, “defeituoso” ou “incapa- o politicamente correto poderia colocar em
citado” foram substituídos, sob influência do risco a liberdade de expressão, é possível
Ano Internacional e da Década das Pessoas dizer que as práticas a ele relacionadas têm
Deficientes estabelecidos pela Organização por base o republicanismo, a convivência
das Nações Unidas, pelo termo “deficiente” democrática e uma visão progressista da
e, posteriormente, pelas expressões “pessoa experiência política e da vida social. Con-
com necessidades especiais” e “portador de tudo, um argumento ainda tão ou mais forte
deficiência”. que esse seria o de que o debate público
Valorizando-se a pessoa (que não apenas suscitado pelo politicamente correto em torno
“porta” sua condição como uma excrescência de processos por vezes sutis de discrimi-
ou um objeto estranho, mas convive com ela) nação, preconceito e incitação ao ódio não
e políticas inclusivas, a expressão “pessoa pode – em si mesmo – constituir algum tipo
de censura, constrangimento ou diminuição
da liberdade de expressão.
6 Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003.
7 Disponível em: http://www.udop.com.br/download/
O traço forte do politicamente correto
legislacao/trabalhista/pcd/port_2344_pcd.pdf. na linguagem, tal como estamos defen-

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dendo, foi invocado no episódio da penali- Também a filósofa norte-americana Judith


dade imposta ao deputado Jair Bolsonaro, Butler destaca a relação entre violência e
tendo funcionado não apenas para questio- linguagem ao questionar onde se situa a
nar, quanto para prescrever sanções con- ofensa, no insulto em si mesmo ou em sua
tra o uso de vocabulário empregado para enunciação por alguém. Para a autora, em
designar com desprezo e desrespeito mino- sua obra Le pouvoir des mots. Politiques du
rias ou comunidades inteiras, bem como performatif (1997/2004), a responsabilidade
revelar, em termos linguísticos e socio- ético-discursiva está ligada à repetição do
cognitivos, algo hoje socialmente intole- insulto. Tal repetição, vale dizer, ancora-se
rável, o racismo. Nesse caso, uma reação não raramente na reprodução de uma vio-
social apoiada no sentido fraco de politi- lência (social) já sistêmica.
camente correto, tal como mencionamos
anteriormente, colocaria em risco todo um NOTAS SOBRE A DIMENSÃO
regime simbólico de vida social baseada em
SOCIOCOGNITIVA DO
valores constitucionais que envolvem, entre
outras coisas, igualdade civil, indistinção de POLITICAMENTE CORRETO
qualquer natureza, sanção contra crimes de
ódio, discriminação étnico-religiosa, injúria Longe de dissociar a língua de todo tipo
qualificada e racismo. de ação performatizada pelos falantes (inclu-
Um aspecto particular de práticas de sive as de natureza avaliativa), certos pro-
linguagem politicamente incorretas, tais cessos linguístico-sociocognitivos, como a
como as que vêm sendo implementadas por categorização, por exemplo, base de nosso
movimentos de direita brasileira de forma sistema conceitual (Lakoff, 1987), são fun-
bastante ampla e contundente, é a sua rela- damentais para os modos de emoldurar a
ção com a violência verbal, o insulto e a nossa compreensão do mundo e as nossas
repetição do insulto. ações sociais. Se concebemos o mundo de
Em seu texto “Des visées de l’injure” maneira altamente motivada, a língua é cer-
(2008), Patrick Djian pondera que a vio- tamente uma de nossas possibilidades para
lência verbal está ligada a uma espécie de perspectivar as coisas, compartilhar inten-
contenção do ato violento, do afrontamento ções, estabelecer relações entre elas, presi-
físico. Assim, a violência, segundo o autor, dir interações sociais e reconhecer nossos
estaria potencialmente alojada no “coração semelhantes como seres sociocognitivamente
de todo discurso que a permite moderar”. iguais a nós (Tomasello, 1999; 2014).
Essa ponderação sobre a relação entre lin- Portanto, os processos de significação
guagem e violência pode ser vista também (explícitos ou implícitos, verbais e não ver-
na obra de Paul Ricoeur, que, em artigo de bais) mobilizados e construídos pela língua
1967, afirma: “[...] a violência que fala é já são um bom domínio empírico para entender,
uma violência que procura ter razão; é uma entre outras coisas, o caráter performativo e
violência que se coloca na órbita da razão e sociocognitivo da linguagem, por meio do
que já começa a se negar como violência” qual acionamos e compartilhamos conheci-
(Ricoeur, 1967, p. 87). mentos de mundo e experiências psicosso-

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ciais, consolidamos, negociamos, conciliamos vamente motivada e perspectivada, à qual são
e disputamos perspectivas e pontos de vista, incorporados graus distintos de reflexividade.
identificamos esquemas de ação conjunta, Nesse sentido, o politicamente correto seria
enquadramos conceitualmente contextos apenas uma das facetas que dá visibilidade,
sociointeracionais ou estruturas figurativas talvez de forma mais ampla e contundente,
(como as metáforas, as analogias, as alu- a processos cotidianos relativos à natureza
sões, etc.). acional e reflexiva das práticas de linguagem.
Observando a trajetória e os sentidos No entanto, porque envolve necessariamente
sociocognitivos da expressão “politicamente a explicitação e a defesa de posições (mais
correto”, vemos bem que não apenas eti- ou menos visíveis) nos diferentes campos
quetamos, concebemos ou significamos as sociais, ele também envolve lutas mais ou
coisas do/no mundo por meio da linguagem; menos legitimadas pela manutenção e/ou con-
nós também construímos versões públicas do quista dessas posições, mais especialmente
mundo (Mondada & Dubois, 1995). Assim, nos campos político, midiático e jurídico,
por meio da linguagem não apenas percep- se considerarmos tanto o contexto brasileiro
cionamos o mundo extralinguístico, mas o quanto o contexto internacional de disputas
constituímos e nele atuamos, com o concurso por naturalização e/ou questionamento de
de outras semioses, não verbais, e outras determinadas categorizações ou enunciados.
formas de conceitualizar8 o mundo. No encaminhamento das palavras finais
Dificilmente poderíamos pensar em for- deste ensaio, chamamos a atenção para a
mas de interação humana, ou mesmo em asserção presente em nosso título. Na pers-
conteúdos cognitivos, social e culturalmente pectiva do personagem principal do esquete
constituídos, sem uma participação direta ou humorístico a que fazemos alusão, o mundo
indireta da linguagem – falada e/ou escrita. estaria chato ou politicamente correto por-
Nesse sentido, como preconiza a linguística que tudo está sob questionamento, o que
interessada na análise de práticas discursivas acaba por inviabilizar a comunicação e o
e sociocognitivas centradas no uso real da direito de determinados atores sociais de
língua (em contextos reais, com interlocu- simplesmente dizerem o que pensam, dada
tores reais), dizer é fazer. a hipercriticidade (“mimimi”) e/ou mesmo
Nossa exposição ao longo deste texto a censura das “minorias”.
buscou focalizar o politicamente correto no Ao final do esquete, enquanto os créditos
interior de um entrecruzamento teórico de vão passando, uma outra cena é mostrada.
perspectivas sobre a linguagem que a consi- Ao ser interpelado por um outro personagem
deram como uma forma de ação sociocogniti- (uma pessoa com deficiência), pelo fato de
ter colocado o seu carro em uma vaga para
deficientes, o personagem principal catego-
8 Citamos aqui apenas alguns dos trabalhos brasileiros riza essa sua ação no mundo como apenas
que se enquadram na perspectiva da análise socio- uma piada, um “sarcasmo”, “humor inglês”,
cognitiva das práticas linguísticas: Salomão (1999;
2005); Koch (2002); Marcuschi (2007); Miranda (1999); mandando-o “pesquisar”. A cena é, a nosso
Koch, Morato & Bentes (2005); Falcone (2008); Morato
& Bentes (2013); Morato (2016); Bentes, Mariano &
ver, uma metáfora interessante para o tipo de
Accetturi (2015); Bentes, Ferreira & Accetturi (2017). futuro que se desenha caso não lutemos para

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dossiê politicamente correto

que as motivações atuais do politicamente o fenômeno linguístico e sociocognitivo


correto na linguagem sejam compreendidas é central. Sendo este o fenômeno central
como uma busca pelo exercício da chamada na compreensão do politicamente correto,
“democracia radical”, no interior da qual o demos saliência aos processos de construção
conceito de liberdade de expressão possa ser de estabilizações referenciais historicamente
identificado com o de aceitação e negocia- contingenciadas a partir da emergência das
ção das diferenças, e afastado dos contornos disputas sobre certas categorizações sociais
atuais pelos quais vem sendo retomado no por expressão nominal.
contexto sociopolítico contemporâneo: o de Vale ainda salientar que as mudanças na
liberdade para oprimir ou destruir. conceitualização de certas categorias linguís-
tico-cognitivas por parte dos diversos atores
CONSIDERAÇÕES FINAIS sociais ao longo do tempo são capazes de
mostrar a relação dialética existente entre os
Procuramos, no escopo deste ensaio, tecer dois sentidos postulados ao longo deste texto
algumas considerações sobre uma tese que para o politicamente correto. Considerando-se
defendemos: a de que o politicamente cor- as expressões nominais “surdo” e “pessoa
reto na linguagem pode ser tomado em um com deficiência”, tomadas inicialmente, como
sentido mais forte e/ou mais fraco. A nosso reivindicação de certas comunidades específi-
ver, a crítica de Stuart Hall e de outros seto- cas (pacientes, clínicos, familiares), é possível
res da esquerda a essa estratégia política dizer que as mudanças nas categorizações
relativa ao policiamento da linguagem e à e as lutas a elas relacionadas, pela força da
tentativa de substituição de um conjunto de adesão social mais ampla, transformaram-
verdades e identidades por outro conjunto de -se em elementos-chave na construção das
identidades e/ou verdades mais corretas pode políticas públicas deste campo específico,
ser vista em outros termos. Essas disputas o da saúde.
e reivindicações por parte dos atores e/ou Pelo que evoca não apenas em relação ao
grupos sociais por verdades ou identidades conceito de correção, como também ao de
podem ser consideradas como parte de um política, salientamos neste ensaio a articu-
fenômeno típico da pós-modernidade, a saber, lação entre os sentidos forte e fraco dessa
o da exibição de um alto grau de sensibili- estratégia nomeada “politicamente correto”.
dade política (reflexividade), especialmente Essa posição, a nosso ver, salienta certas
(mas não só) em relação às categorizações características do fenômeno em termos socio-
sociais produzidas nos mais diversos con- cognitivos, tais como: reflexividade, contex-
textos e interações. tualização, intersubjetividade, conhecimento
Tanto no sentido mais fraco (a exibição e compartilhado, perspectivação, intencionali-
promoção da reflexividade) como no sentido dade. Essas características podem e devem
mais forte (fomento de regimes simbólicos encontrar-se conjugadas nas ações sociais
que superem situações de desigualdade, pre- de construção de novos ordenamentos, mais
conceito e injustiça social) do politicamente justos, democráticos e pluralistas. Enfim, um
correto e das ações que nele se baseiam, mundo menos chato.

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Metamorfoses dos direitos humanos
José A. Lindgren-Alves
resumo abstract

Modificações do conceito de direitos Changes taking place in the concept of


humanos, associadas a exageros human rights, related to exaggerated
do “politicamente correto” voltado political correctness towards minorities
para minorias, depreciam ambas as diminish both expressions. Political
expressões. Historicamente de esquerda, correctness is historically a left-wing
seu abuso serve de munição às posições idea, and its abuse mobilizes right-wing
de direita, absorvidas por cidadãos attitudes taken up by insecure citizens.
inseguros. Diante de criminalidade, em Faced with criminality, in a consumerist
cultura de sedução consumista sobre culture grounded on a deeply unequal
estrutura econômica profundamente economic structure, particularist rights,
desigual, direitos particularistas, em replacing politics, oppose integration to
substituição à política, são contrários à progress. To avoid defeats in ballot, one
integração com progresso. Para evitar had better defend rights to everyone again.
derrotas eleitorais é melhor regressar à
defesa dos direitos de todos. Keywords: human rights; political
correctness; elections.
Palavras-chave: direitos humanos;
politicamente correto; eleições.
E
VISITA A EX-CENTRO DE TORTURA

m setembro de 2017 tive a nadas de detidos; o perfume de rosas no


oportunidade de participar percurso por onde eram levados, às cegas.
de seminário em Santiago Mais marcantes do que a torre da caixa
do Chile para comemorar 20 d´água como câmara de tortura, a piscina
anos de abertura ao público vazia como esconderijo dos presos durante
da Villa Grimaldi, utilizada inspeções da Cruz Vermelha ou o jardim
nos anos 1973-78 como em que nomes de mulheres mortas fazem
centro clandestino da dita- as vezes das rosas nunca vistas, foram,
dura, restaurada como sítio para mim, os “mausoléus” de desapareci-
de memória do terrorismo dos. Com fotografias em hastes cravadas
de Estado. Na visita a esse na terra a perguntarem ¿donde está?, tais
local, muito aprazível apesar “flores” são plantadas em covas coletivas,
de apresentado por sobrevi- demarcadas por símbolos dos movimentos
ventes que relatavam suas experiências como a que os ausentes pertenciam. Uma delas,
prisioneiros, o que mais me impressionou não com lâminas de vidro arranjadas na forma
foram descrições de sevícias como interlúdio de mapa da América do Sul, é do Partido
a “desaparecimentos” finais. Nem as ínfimas Socialista; outra, do Partido Comunista, é
dimensões das celas em que eram postos, assinalada por bandeira vermelha com foice
amontoados ou em isolamento, desprovidos e martelo nas cores do Chile; uma terceira
de qualquer direito. Tudo isso era conhecido, tem o estandarte rubro-negro do Movimiento
na pele ou indiretamente, por minha geração de Izquierda Revolucionaria (MIR).
de brasileiros. O que mais me tocou foram
detalhes transmitidos por aqueles homens e
mulheres, militantes ou não da resistência
JOSÉ A. LINDGREN-ALVES é embaixador,
armada, encarcerados com vendas e corren- secretário executivo do Instituto de
tes: a batida do portão de ferro ao se fechar, Políticas Públicas de Direitos Humanos
do Mercosul (Buenos Aires) e membro do
reiterando sua desesperança; o ruído de pés Comitê para Eliminação da Discriminação
descalços no cascalho, a indicar novas for- Racial (ONU-Genebra).

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dossiê politicamente correto

Ao observar esses túmulos sem corpos, gramaticamente inclusiva, foi instrumento


indagava-me se os respectivos movimen- valioso tanto para os militantes de esquerda
tos, antes “progressistas”, hoje anacrônicos da América Latina e da Europa Ocidental
e “politicamente incorretos”, seriam sequer contra os sistemas militares respectivos,
considerados “de esquerda”. Doía-me pensar como para os dissidentes dos regimes comu-
que, em passado não distante, pessoas como nistas da Europa Oriental. Constituiu, além
as de agora eram capazes de tanto sacrifício disso, fonte de conscientização importante
por causas sociais abrangentes. Comparava para os movimentos de libertação nacional
aquele tempo de utopias, vistas como rea- dos povos colonizados, assim como para o
lizáveis, com o ceticismo contemporâneo, movimento pelos direitos civis nos Estados
acomodado a um cenário ainda mais peri- Unidos e para o combate ao apartheid na
goso. Apavora-me notar que a normaliza- África do Sul.
ção da ganância pela lógica do mercado é Apesar da interpretação de Marx, no
contrabalançada por obsessões diferenciais século XIX, preocupado com a legitima-
limitadas, crenças religiosas ambíguas e fana- ção da exploração capitalista dos trabalha-
tismos retrógrados. Sem contar o paliativo dores com base na declaração francesa, os
humanitário e o “realismo” da direita mais direitos humanos sempre foram restrições
tacanha. Custa-me crer que os direitos usa- político-jurídicas ao arbítrio dos detentores
dos para derrubar ditaduras sejam os mes- do poder. Eram, portanto, construções his-
mos hoje, brandidos como panfleto nos mais tóricas “de esquerda”, ainda que o avanço
diversos sentidos. fosse dos burgueses contra a monarquia
absoluta. Isso nunca impediu a utilização
AVATARES DO seletiva dos direitos fixados na Declaração
Universal das Nações Unidas pelos liberais e
CONCEITO DE DIREITOS social-democratas como instrumento contra
adversários comunistas. Mas foi somente na
Para quem acompanha a evolução ideo- década de 1970 que os direitos civis passa-
lógica do mundo contemporâneo pela ótica ram a ser utilizados também como elemento
dos direitos humanos, a mudança de sentido de pressão do Ocidente para a liberação de
da linguagem neles empregada é fenômeno prisioneiros políticos e a redemocratização
marcante, que passa despercebido. A começar na América Latina.
pela própria expressão “direitos humanos”, Tendo em conta que nas batalhas de pro-
versão corrigida dos “direitos do homem” paganda a versão ocidental prevaleceu, é
registrados nas declarações norte-americanas surpreendente a afirmação atual “da direita”
e francesas do século XVIII, “naturalmente” de que “direitos humanos são coisa de comu-
excludentes das mulheres, dos escravos e de nistas”. Precedida com outros termos pela
indivíduos de baixa renda. velha Doutrina da Segurança Nacional, essa
Conquanto considerada burguesa e “libe- inversão de atribuições tem sido exumada
ral de direita” ao longo de toda a Guerra em campanhas eleitorais de diversos con-
Fria, a Declaração Universal dos Direitos tinentes. Surpreendente porque incomum e
Humanos, de 1948, das Nações Unidas, pro- supostamente anacrônica, a distorção des-

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picienda, certamente desinformada, do real, atinar para a implicação antifeminista da
não é desprovida de base histórica. posição de “primeira-dama”. Disso, aliás,
Um pouco inspirado pela referida inver- até hoje, o Ocidente modelar parece não ter
são, um pouco provocado pelo radicalismo consciência. Talvez os delegados chiques,
da mudança ideológica ocorrida na Europa homens e mulheres jovens da restabelecida
Oriental, decidi agir de maneira heterodoxa, “Rússia Eterna”, desvinculada da Declaração
em agosto de 2017, ao examinar, no órgão de Direitos do Povo Trabalhador e Explorado,
de tratado competente – o Cerd1 –, relatório de 1918, tampouco tivessem conhecimento
periódico da Federação Russa. Levando em da liderança que o extinto bloco socialista
conta informações abundantes de que as dis- sempre mantivera na promoção dos direitos
criminações raciais têm crescido assustadora- econômicos e sociais nas normas interna-
mente no país, perguntei aos delegados, todos cionais de direitos humanos.
“produzidos” à maneira de yuppies nova- Se, por um lado, a inversão discursiva
-iorquinos, como estariam planejando celebrar feita pela direita dessas “coisas de comu-
a contribuição da Revolução de Outubro de nistas” pode ter um sentido literal que ela
1917 aos direitos humanos, no centenário que desconhece, por outro, os aspectos emanci-
se avizinhava2. A delegação sorriu e, como patórios do conceito não justificam a vul-
esperado, não respondeu3. Provavelmente garização da expressão “direitos humanos”
as integrantes femininas nem sabiam que para tudo o que se queira obter para grupos
seus direitos civis, sexuais e reprodutivos, e categorias. A luta contra privilégios é polí-
e à igualdade com o homem, eram observa- tica. A igualdade de direitos individuais e
dos em sua terra muito antes dos países do coletivos é condição jurídica necessária da
Ocidente. Estes últimos preferiam utilizá-los democracia. Aumentos salariais, escolas ade-
como espantalho anticomunista até os anos quadas, creches, centros de saúde e outros
80, não hesitando em ridicularizar as direto- avanços são objetivos para a realização de
ras de empresas soviéticas, na imprensa e por direitos, assim como proteção policial efi-
outros meios, como “camaradas” grotescas caz e administração equitativa de justiça.
em trajes pesados e malfeitos. O estereótipo Não se deve confundir o “progressismo” dos
somente foi superado com o aparecimento movimentos atuais de promoção de minorias
da “primeira-dama” Raissa Gorbatchov, ful- com o igualitarismo “de todos os membros
gurante ao lado de Nancy Reagan, sem se da família humana”, conforme a Declara-
ção Universal. Esse documento fundador,
de 1948, omitia o termo “minorias” para
1 Cerd são as iniciais em inglês pelas quais é conhecido ser observado por todos os Estados. E os
o Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial,
integrado por 18 peritos eleitos pelos Estados-partes países das Américas eram os primeiros que
da convenção respectiva. o consideravam contrário à nacionalidade
2 Não fui eu o único membro do Cerd a recordar a situ- respectiva, criada pela fusão constitucional
ação anterior. Alguns mencionaram a Universidade Pa-
trice Lumumba como formadora de líderes africanos. de grupos diversos. Fossem ou não misci-
3 Meu colega de comitê Alexis Avtonomov, professor de genadas as populações.
Direito em Moscou, veio, contudo, agradecer a inda-
gação, contando que ele próprio causara perplexidade
Reivindicações de minorias podem ser
ao propor seminário sobre esse tema. pertinentes por muitas razões não genera-

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dossiê politicamente correto

lizáveis. Não se confundem com o “direito -estruturalismo, de Michel Foucault a denun-


de ter direitos”, explicitado por Hannah ciar a capilaridade do poder na sociedade
Arendt, denegado pelos totalitarismos, no moderna, a expressão “politicamente correto”
caso da Alemanha nazista até pela retirada parece haver derivado do “ambientalmente
da nacionalidade alemã dos judeus. Ao con- correto”. Ambas vêm da academia, que,
trário do que visava a Declaração Univer- funcionando como intelligentsia, inspira e
sal, o “progressismo” atual das diferenças orienta a ação social.
é, por definição, particularista. Destinado Muito usado no final dos anos 80, na
a elas como identidade distinta no corpo mobilização para a Conferência do Rio de
social, esse particularismo pode ser útil para Janeiro sobre Meio Ambiente e Desenvol-
a adoção de medidas especiais, temporárias, vimento, de 1992, o “ambientalmente cor-
para a equalização de condições concretas4. reto” era de significado ecológico preciso,
Pode também ser egocêntrico, propiciador literal. Correspondia, por exemplo, a fontes
de crispações defensivas e discriminações de energia limpas e a produtos não poluen-
agravadas. Elevado a extremos, gera sepa- tes. O “politicamente correto”, originalmente
ratismos políticos e repressões violentas, de feminista, exigiu, desde logo, para a Con-
que foi exemplo o fim da Iugoslávia nos anos ferência de Viena de Direitos Humanos, de
90, que outros vêm seguindo. Sem falar na 1993, reparação da denominação “Direitos
regressão fundamentalista que tal particu- do Homem”, já então em desuso, pois a
larismo extremado, consciente ou inadver- palavra “homem” não podia ser significante
tidamente, estimula. da espécie. E foi no contexto da Conferên-
Por mais que o “comunitarismo” se jus- cia de Beijing (Pequim) sobre a Mulher,
tifique como defesa contra discriminações, de 1995, que se generalizou a expressão
as práticas por ele exigidas em nome da “igualdade de gênero”, sendo “gênero” uma
identidade não correspondem, como dito por construção cultural, diferente de “sexo”, de
alguns teóricos, a uma “versão atualizada” conotação biológica.
dos direitos humanos. Tal interpretação é No âmbito da linguagem dos direitos
vista como “progressista” porque politica- humanos as adaptações a novas interpre-
mente correta na ótica pós-moderna do mul- tações sempre ocorreram. Algumas novas
ticulturalismo hegemônico, sem misturas. criações vernaculares, traduzidas do inglês,
correspondiam a ajustes inteligíveis. Foi o
A LINGUAGEM COMO PODER/SABER caso do “empoderamento”, barbarismo angló-
fono aparecido também na preparação da
E COMO CAMISA DE FORÇA
Conferência de Beijing, como tradução para
empowerment. Em se tratando de ação para
Conquanto a interpretação da linguagem
e pela mulher, é inegável que os termos cor-
como suporte da dominação advenha do pós-
respondentes “capacitação” ou “habilitação”
soavam fracos diante de outro que tem como
4 Analisei as medidas especiais previstas na Convenção raiz power, “poder”. Depois o termo se esten-
em “Cinquenta Anos da Convenção sobre a Eliminação
da Discriminação Racial: Uma Apreciação Crítica de
deu para a participação de qualquer grupo
Dentro”, in Lua Nova, São Paulo, 2017. em decisões que o afetem. Harassment foi

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corretamente traduzido por “assédio”, em rência de Durban sobre o Racismo, de 2001,
espanhol acoso, geralmente sexual, mas para abranger os negros e mulatos – não
não “de gênero”. O bullying, como provo- os mestiços de outras ascendências, nem os
cação grupal com base em características negros da África –, conforme as posições do
da vítima (cor, gordura, tendência sexual, movimento norte-americano, incorporadas
origem, descendência, religião, etc.), não pelas lideranças de outras áreas.
chegou a ser traduzido, entrando no voca- Tendo em conta que todos esses grupos
bulário “da mídia”, como o merchandising foram ou são realmente vítimas de discri-
e o estilo fashion. Outros estrangeirismos minações, não vejo problema em chamá-
felizmente não prosperaram, como o uso de -los pela denominação que eles consideram
“caucasiano” no lugar de “branco”, em que respeitosa. No Brasil, muito antes da teori-
insistem os ingleses, canadenses e outros zação pela qual “preto” é cor e “negro” é
membros brancos da Comunidade Britânica raça – e malgrado a negação contemporânea
nos relatórios ao Cerd. Esquecem ou não do conceito de raça pela ciência genética
sabem que a origem dessa substituição ter- –, já quase ninguém chamava os negros de
minológica remonta a antropólogo alemão do “pretos”, a não ser carinhosamente – “preta,
século XVIII5, precursor da falsa “ciência” preta, pretinha”, cantavam os Novos Baia-
da frenologia, usada pelos racistas até mea- nos. “Crioulo”, que na América Hispânica
dos do século XX. Assemelha-se, portanto, sempre foi o filho de espanhol, no Brasil
à ideia dos “arianos”, cultivada miticamente era termo racial essencialmente jocoso, que
ao extremo pelos nazistas. Estes últimos, por os negros também usavam entre eles7, assim
sinal, estão voltando à moda. como “branquela” era o branco sem graça,
Aparentados à construção de mitos menos que não “pegava uma cor”. Embora “afro-
inquietantes, há outros termos padronizados -brasileiro” seja expressão pouco usada como
para “a esquerda”, inclusive na academia, designação para compatriotas de ascendência
como “politicamente corretos”: roma para africana, menos aceitável para nós devia ser
os ciganos, embora o nome seja autorrefe- a rejeição a “mulato”, tipo que era ícone de
rente apenas na Europa Central e Orien- nossa brasilidade, sem que a etimologia da
tal; dalit para a casta hinduísta dos párias; palavra preocupasse ninguém8, como ninguém
LGBTI para o movimento de homossexuais rejeita “moreno”, do espanhol moro, em portu-
e variações assemelhadas, englobados pelas guês “mouro”, inimigo medieval muçulmano,
iniciais de cada tipo em inglês6. “Afrodes- de pele mais escura, na Península Ibérica.
cendentes” é neologismo oriundo da Confe- Fenômeno semelhante abarca palavras de
significado deslocado, como “comunidade”

5 Friedrich Blumenbach, que identificou cinco raças


a partir de características físicas: a mongólica ou
amarela, a vermelha dos nativos da América, a malaia 7 Paulinho da Viola surgiu no cenário musical carioca do
marrom, a negra dos etíopes e a caucasiana ou branca final dos anos 60 cantando, com três outros músicos
(os caucasianos por ele estudados eram da Geórgia e geniais, o delicioso samba “Quatro Crioulos”.
os brancos não eram necessariamente europeus).
8 Não faço aqui a apologia sexista da “mulata”, com con-
6 LGBTI são iniciais de Lesbians, Gays, Bi-sexuals, Trans- teúdo racial, embora entenda que o louvor popular
gender, Inter-sexuals não justifique o furor que acarreta.

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dossiê politicamente correto

no lugar de “favela”, que antes era lugar minoria étnica não reconhecida, referên-
romantizado de pobres, mas não necessa- cia à Guerra do Vietnã como conflito pela
riamente território de gangues narcotrafi- identidade vietnamita. Será que os ameri-
cantes; “etnia” em lugar de “raça”, aludindo canos intervieram brutalmente e perderam
a uma “etnicidade negra” projetada. “Indí- uma guerra vergonhosa só por isso? Como
gena” parece mera adaptação erudita do também testemunhei tentativa de condena-
“índio” de Colombo. “Diversidade” se tor- ção ao Papa Francisco pela canonização de
nou essência do multiculturalismo, por mais missionário espanhol do século XVII, pri-
opressivas e discriminatórias que sejam as meiro catequista dos nativos da Califórnia,
culturas protegidas, em lugar de miscigena- lá objetada em manifestação indígena. Que
ção e sincretismo como tendência natural. A ambos os eventos pudessem ser contestados
isso se acrescem termos rebarbativos como pelos que se achavam afetados não era de
“islamofobia”, replicado por “cristianofobia”; surpreender. Inaceitável era não ser conside-
“homofobia”, que etimologicamente seria rado incorreto que um órgão laico de tratado
“horror ao igual”, como preconceito contra se imiscuísse em ato religioso sem qualquer
homossexuais; “afrofobia”, etc. efeito fora da Igreja9.
As novas designações e posições podem O descobrimento da América pela Europa
ser imprecisas, desnecessárias ou tolas, mas foi o acontecimento mais marcante do milê-
se tornam problemáticas quando elevadas a nio para o mundo inteiro, independentemente
extremos, como obrigações e tabus. Além de dos episódios terríveis que também propiciou.
facilmente exploradas por cabotinos, alguns Conscientes da destruição de civilizações
talentosos como Michel Houellebecq, provo- como a dos incas, os Estados da América
cam iras em contrário de quem nem seria Hispânica deixaram de celebrar a “Conquista
espontaneamente contra elas. Por volta de da América”, ou o “Dia da Raça”, em 12 de
2003, causou celeuma no Brasil, envolvendo outubro, optando por comemorar um eufemís-
escritores revoltados, a publicação pela Secre- tico “Encontro de Culturas”. Menos aceitável
taria Nacional de Direitos Humanos de um foi o Brasil fingir desconsiderar seu desco-
manual de termos politicamente corretos e brimento por Cabral com o testemunho de
termos interditos que deveriam ser obser- Caminha, ciente de que, sem esse fato, o
vados. A publicação mal chegou a ser dis- país como tal não existiria. Nem para Poli-
tribuída, sustada pelo titular da secretaria. carpo Quaresma! Enquanto isso os Estados
Não obstante, orientações congêneres con- Unidos continuam a apropriar-se do nome
tinuaram a multiplicar-se, no Brasil e no “América” e da chegada de Colombo a uma
exterior, transformando-se mais em fator de ilha caribenha para festejar o Columbus Day.
irritação para não militantes do que de apoio Os colonizadores europeus, em particular
simbólico às causas defendidas. espanhóis e portugueses, além de violentos e
Também se enquadram no “politicamente vorazes como todos os agentes de impérios,
correto” as interpretações de fatos do pas-
sado com visão particularista e simplória
do presente. No Cerd já ouvi de um colega,
9 Para descrição detalhada, ver texto indicado na nota
em plenário, ao cobrar ações em favor de 4 supra.

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russos, alemães, ingleses, franceses e oto- dos, membros de órgãos de tratado e outros
manos, assim como romanos, mongóis, aste- agentes influentes. Vai-se criando assim uma
cas e outros, passaram a ser vistos somente situação discursiva que leva os defensores
como genocidas, escravocratas, estupradores dos direitos universais e da liberdade de
e inventores do racismo. Que tudo isso seja expressão a temer a assunção de posições
dito pelos herdeiros das vítimas pode ser dissonantes. Sentem-se inseguros, passíveis
compreensível. Que tivesse sido espalhado de ser tachados de racistas, machistas, homó-
pela esquerda quando lutava pela indepen- fobos e islamofóbicos.
dência dos povos seria até previsível. Que Como resultado desses fatos, os direitos
seja ensinado em favor de meras asserções humanos se encontram em situação análoga
diferenciais é contraproducente. Na intenção à arte conceitual, desde Marcel Duchamp:
de promover a autoestima de grupos justifi- é arte aquilo que o artista declara como
cadamente ressentidos, o reducionismo oficial tal, respaldado no restrito, mas milionário,
encampado eleva continuamente as cobranças, mercado comprador. São hoje “direitos huma-
cuja totalidade nunca será satisfeita, dando nos progressistas” todos aqueles requisitos
força a preconceito aumentado. assim cobrados por entidades selecionadas
No Cerd, temos examinado relatórios da sociedade civil, repetidos “pela mídia”,
de Estados cujos governos não cessam de magnificada ou contraposta em termos ofen-
se escusar por abusos do passado. Os pre- sivos pelas redes sociais.
conceitos e discriminações, contudo, conti-
nuam, assim como as cobranças. Em agosto O “POLITICAMENTE CORRETO”
de 2017, por exemplo, de um total de seis
Estados, os que receberam maior número de
COMO CRÍTICA OU TÁTICA DE LUTA
recomendações para superar discriminações
alegadas foram o Canadá e a Nova Zelân- Nas condições presentes, “politicamente
dia, ambos de fama excelente10. As queixas correto” passou a ser expressão utilizada
do movimento negro canadense eram tão como galhofa por críticos e opositores, para
semelhantes às que escuto no Brasil11 que assinalar falsidades e exigências fúteis. Os
cheguei a indagar como se explicava o fato críticos não são necessariamente “de direita”.
de a imagem do país ser tão boa. A resposta É de Slavoj Zikek, que já denunciava absur-
da ONG afirmava ser resultado de grande dos antes de se tornar estrela cult, a qua-
investimento do Estado em mera propaganda. lificação do “politicamente correto” como
A proliferação de iniciativas simbólicas uma forma de autodisciplina que não é mais
“politicamente corretas” nas Nações Unidas do que “racismo oprimido e controlado”12.
agrava-se pela adoção de gestos demagógicos E é de Camille Paglia a afirmação de que
de autoridades de estado, políticos varia- “o pensamento independente foi universal-
mente silenciado”, havendo ela, desde os

10 Todos os documentos do Cerd se encontram na pági-


na do Alto Comissariado: www.ohchr.org.
11 Encarceramento judicial exagerado, mortes pela polí- 12 Disponível em: https://lanotasociologica.wordpress.
cia, “genocídio” de crianças negras, etc. com/2017/04/26.

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dossiê politicamente correto

anos 90, “declarado guerra contra o esta- tência em contexto tão adverso têm objetivos
linismo do politicamente correto no esta- diferentes do que costuma ser esperado?
blishment feminista”13. Ao voltar da reunião do Cerd, em
Seguramente soa mais convincente do que agosto de 2017, li em jornal de Buenos
os ativistas de direitos quem critica a unila- Aires declaração significativa de conhe-
teralidade das denúncias de execuções pela cida cantora brasileira com programação
polícia sem interesse pelas mortes de agentes portenha. Dizia ela que, no Brasil de hoje,
policiais em operações legítimas de repres- o fato de haver um governo “de direita”
são à criminalidade. E são inaceitáveis, em parece incitar as pessoas a “revelar as ver-
qualquer fase pós-Bakunin, os argumentos dadeiras personalidades. Nas ruas, elas não
que explicam o assalto e esfaqueamento de têm vergonha de praticar o racismo. E o
transeuntes por adolescentes em função do feminicídio nunca esteve tão exacerbado”14.
que “eles devem ter passado”. Com isso se Não sei até que ponto as formas radicais
justificaria também o terrorismo “jihadista”. da violência criminal brasileira se acham
Igualmente leviana é a atitude de políticos que mais agravadas especificamente contra a
postulam direitos de minorias e se eximem de mulher. Comparto, porém, a sensação de que
propostas para controlar a violência. Nestes o Brasil se mostra visivelmente mais racista,
tempos pós-revolucionários, pós-liberalismo, em todos os sentidos. Mas isso eu já noto há
pós-verdade, pós-tudo, em que convivem com anos, com governos não “de direita”. Como
a perpetuação da miséria tanto a corrupção observo o crescimento do racismo alhures,
e o crime como frivolidade e provocações na Europa e nos Estados Unidos, há mais de
incontidas na esfera daquilo que ainda chama- duas décadas. Lembro, a propósito, trecho
mos “cultura”, declarações em favor de uma particularmente expressivo de entrevista da
nova ética parecem caricatura. Excessos do respeitável ativista Sueli Carneiro, fundadora
“politicamente correto” constituem munição do Geledés – Instituto da Mulher Negra:
oportuna para a direita habitual, e presente
valioso para a extrema-direita, que se elege “[...] o que temos atualmente é um racismo
democraticamente em qualquer país. que se torna cada vez mais direto, explícito e
A visível rejeição popular atual aos direi- violento, sem mediações nem medo de dizer
tos humanos, expressada pelo voto, traz-me seu nome. Minha geração se empenhou em
de volta o seminário do Chile. Diante de desmascarar o mito da democracia racial.
um centro de memória como Villa Grimaldi A geração atual terá que engendrar novas
ou o da antiga Esma (Escola de Mecânica formas de luta e organização política para
da Armada), local onde agora trabalho, na fazer frente a essa radicalização do conflito
Argentina, é quase inacreditável que o con- racial que parece se anunciar. Boa sorte às
ceito de direitos de todos possa ser entendido. futuras gerações!”15.
Ou será que os que os utilizam com insis-

14 Entrevista de Maria Gadu a Gabriel Plaza, in La Nación,


Buenos Aires, 6/9/2017.
13 Entrevista a Leila Suwwan, in Folha de S. Paulo, 15 Margem Esquerda – Revista da Boitempo, 27, segundo
27/3/2006. semestre de 2016, p. 20.

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Não tenho dúvida de que essa posição é países têm as mesmas urgências que os
de esquerda. Sei que é adotada por lideran- concidadãos sentiam nos anos 80.
ças importantes do Movimento Negro Bra- 2) As conquistas em matéria de direitos
sileiro, fora e dentro de governos sucessi- humanos, obtidas pela Conferência de
vos. Não sei se, com a clareza exposta por Viena de 1993, nunca foram respalda-
Sueli Carneiro, ela corresponde àquilo que das pelo sistema econômico.
se ensina na matéria. Adaptação racial do 3) Em função dos desequilíbrios sociais e
conceito hoje descredenciado de “luta de outros fatores, a violência global não para
classes”, por mais que eu respeite essa forma de crescer, em guerras e na criminalidade.
de batalha, não a posso incluir na concepção 4) Por incapacidade ou falta de vontade do
de “antirracismo” com medidas integradoras Estado para atuar contra injustiças e con-
de iniciativa estatal. Espero, sobretudo, que ter a criminalidade, a violência incontro-
a posição expressada, compreensível ainda lável torna qualquer direito mero exercício
que transposta da experiência americana, não discursivo, sem condições de aplicação
requeira revitalização no modelo dos Esta- no real.
dos Unidos. Nem que reproduza no Brasil 5) O que mais preocupa o cidadão rico ou
aquilo que se reviu há pouco em Charlot- pobre, negro ou branco, mulato ou cabo-
teville, na Virgínia. clo, urbanita ou rural, de nossos países,
ademais do empobrecimento, é a insegu-
DE VOLTA À VILLA GRIMALDI rança comum da vida cotidiana.

O objetivo do seminário em Santiago era Embora a segurança de que falo nada
explicado no título: “Crimes Contra a Huma- tenha a ver com a Doutrina de Segurança
nidade e Terrorismo de Estado – Existem Nacional, em cujo nome operavam os agentes
Garantias de Não Repetição?”. A conclusão estatais nos Anos de Chumbo, não é difícil
unânime dos oradores foi de que não há para os oportunistas ganhar simpatias do
garantias. Que a experiência dolorosa do povo inseguro falando daquele período como
Cone Sul pode, sim, ser repetida. De minha época tranquila. A maioria dos habitantes
parte, fiz o que devia. Descrevi sumaria- de nosso país nasceu depois, não havendo
mente iniciativas da região em matéria de conhecido a opressão das ditaduras. Não
reconstrução da memória e a esperança de pode saber o que elas representavam na
harmonização de políticas no sentido oposto vida diária de todos em termos de medos,
ao da Operação Condor, dos anos 70. Lem- desconfiança, falta de liberdade e alternati-
brei, porém, dificuldades do cenário con- vas. Precisamente em função desse fato, é
temporâneo, recomendando alguns pontos imprescindível que os atores da sociedade
de reflexão. São eles: civil encontrem novas maneiras de agir pelos
direitos humanos. Patrulhar excessivamente
1) O mundo de hoje não é o dos anos 90, a linguagem é inútil. Limitar-se a fazer
quando terminou a Guerra Fria e os denúncias contra a atuação do Estado não
direitos humanos pareciam uma utopia constrange mais detentores de poder. Cons-
universal realizável. Tampouco nossos trange os que defendem a ideia da “família

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dossiê politicamente correto

humana”. Se a história se repetir, não será os atenua na cultura com imposições de con-
em tom de farsa, como dizia Marx. A farsa senso. Mas ainda é melhor do que a força.
já está montada, com elementos sinistros Num mundo em que, segundo dados
para uma enorme tragédia. recentes da Organização Internacional do
Antes que a direita tacanha e a “esquerda Trabalho, 40 milhões de pessoas se acham
progressista” esfacelem ainda mais as socie- em situação de escravidão e 152 milhões de
dades líquidas de Bauman, distanciando as crianças e adolescentes, entre 5 e 17 anos,
camadas de um conjunto não monolítico, é em trabalho irregular, dito “infantil”16, é hora
melhor deixar de lado hipersensibilidades de retomar o projeto de direitos de todos.
grupais, para não perder eleições. Demo- Pelo menos enquanto se espera uma nova
cracia é forma de governo que administra utopia terrena que dê ao planeta, aos países,
conflitos. Não os resolve na estrutura, nem alguma direção salvadora.

16 Disponível em: www.ilo.org, em setembro de 2017.

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O politicamente correto
e a topologia da exclusão
Silvana de Souza Ramos
resumo abstract

O artigo pretende explorar a hipótese The article intends to investigate


de que o desconforto com relação à the hypothesis according to which
linguagem politicamente correta é the discomfort related to politically
resultado de uma incompreensão do correct language is a result from not
sentido democrático da liberdade de understanding the democratic sense of
expressão. Partindo de alguns lugares- freedom of expression. Starting from
comuns, buscamos mostrar que até some commonplaces, we tried to show
agora prevalece a polêmica e não a that up to now, controversy prevails
discussão sobre o assunto, pois os atores and not the discussion on the subject,
que se sentem atingidos pela linguagem because the actors who feel affected by
preconceituosa não podem frequentar the language of prejudice cannot take
a esfera pública de debate e, se nela part in the public sphere of debate, and
conseguem adentrar, não a ocupam those who manage to do it don’t join it
sob as mesmas condições dos que lá já on the same conditions as those who have
estavam. Há assim uma topologia da already been there. Therefore, there is a
exclusão que precisa ser considerada e, topology of exclusion that needs to be
mais que isso, transformada, para que se considered and also transformed so as to
estabeleça um verdadeiro debate sobre establish a real debate on this issue.
essa questão.
Keywords: democracy; freedom of
Palavras- chave: democracia; expression; public sphere; political
liberdade de expressão; esfera pública; correctness.
politicamente correto.
O
POLÊMICA E DISCUSSÃO

debate sobre o discurso preconceito, dado que nada mais fariam do


politicamente correto que ecoar expressões inocentes ou tradi-
na verdade não conse- cionais. Afinal, que problema haveria em
guiu alcançar ainda o elogiar a beleza de uma mulher, mesmo que
estatuto de uma verda- isso a incomode, satirizar com desrespeito
deira discussão pública. os gestos afeminados de homossexuais ou,
Na maioria das vezes, as ainda, dizer num momento de descontra-
reclamações por conta do ção que algo malfeito é sempre “coisa de
desconforto gerado em preto”? Essa linguagem e esse comporta-
torno do uso de expres- mento não seriam a verdadeira causa do
sões preconceituosas de preconceito, pois este estaria em outro lugar,
cunho classista, racista isto é, na cabeça e na ideologia de quem
e sexista no máximo se incomoda. Substituir o costume vigente
alimentam polêmicas estéreis que em nada por um código de conduta politicamente
contribuem para um esclarecimento do que correto nada mais faria do que criar pre-
está em jogo aí. Para muitos, elas surgem conceito onde há apenas admiração, piada e
como uma oportunidade para destilar ódio e comentário inocente. O confisco da liberdade
violência em nome de uma pretensa liberdade dessa expressão seria então a negação de
de expressão. Para outros, trata-se de uma um direito fundamental em nome de uma
investida estéril que toca apenas a superfície fantasia que ganharia ares de realidade por
do problema social abarcado pela discrimi- conta de sua mera enunciação.
nação e pelo preconceito.
Por um lado, aqueles que defendem o
direito à liberdade de expressão sentem-
-se tolhidos por uma camisa de força que SILVANA DE SOUZA RAMOS é professora
os impede de apregoar antigos modos de do Departamento de Filosofia da FFLCH-USP
e autora de A Prosa de Dora: Uma Leitura
se referir a determinados grupos sociais, da Articulação entre Natureza e Cultura na
modos que em si mesmos não denotariam Filosofia de Merleau-Ponty (Edusp).

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dossiê politicamente correto

Por outro lado, aqueles que se sentem


agredidos pelo teor discriminatório des-
sas falas parecem não conseguir convencer
a audiência de que a violência social que
sofrem cotidianamente passa também pelo
uso das palavras. Boa parte da esquerda
sente dificuldade ela própria de defender a
pertinência de um código politicamente cor-
reto no intuito de evidenciar que há nesse
uso uma verdadeira faceta política de com-
bate contra a injustiça. Na verdade, muitos
intelectuais defendem que a mera discussão
sobre a linguagem é estéril para dar conta de
opressões emaranhadas na estrutura social.
Dar polimento à linguagem em nada contri-
buiria para a transformação dessa estrutura.
Seria como se buscássemos eufemismos para
enunciar uma situação degradante no intuito
de fazê-la parecer mais humana. Há nessa
percepção do problema certo descaso com
relação ao universo simbólico do discurso
e a sua função no interior da luta política.
Ao mesmo tempo, essa investida é incapaz
de reverberar nas esferas de debate a voz
daqueles que se sentem vítimas de precon-
ceito, pois em nada contribuem para que esse
sentimento ganhe verdadeiro sentido público.
Em resumo, se levamos em conta essas
duas posições antagônicas, percebemos que
na verdade elas têm um ponto em comum.
Afinal, ou a polêmica sobre o politica-
mente correto visa a denunciar a criação
de uma realidade inexistente, uma sociedade
classista, racista e sexista, ou ela acredita
que o assunto tem pouca importância pois
deixa intacta essa realidade, sendo incapaz
de transformá-la. Nos dois casos, porém, o
testemunho daqueles que afirmam sofrer a
violência da linguagem preconceituosa per-
manece sem eco. Eu gostaria de analisar
esse problema a partir da seguinte hipótese:

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se os que sofrem preconceito não se sentem Ora, um dos marcos instituintes da demo-
ouvidos, isso significa que a mera polêmica cracia moderna foi o seu apelo ao universal.
em torno do caráter político da linguagem A invenção democrática, termo cunhado por
não se elevou ao nível de uma discussão Claude Lefort para caracterizar a boa nova,
pública. Decerto, os que se sentem atingi- abre o horizonte de universalidade da cidada-
dos pelo preconceito não participam de uma nia instituída a partir do direito a ter direitos
verdadeira discussão, exatamente porque sua (Lefort, 1991; Arendt, 1958). A vida demo-
voz é cotidianamente impedida de adentrar crática não poderia dar corpo ao cidadão ou
na esfera pública de debate. Para que a polê- nomeá-lo segundo características identitárias
mica dê lugar ao debate é preciso que a voz exatamente para impedir que fosse negada
desses atores encontre espaço nessa esfera a cidadania a qualquer membro da comu-
e que ela faça parte de um diálogo mais nidade. A partir daí ser cidadão significa
amplo sobre o assunto. participar de uma humanidade portadora de
direitos universais e inalienáveis, e é por
A ESFERA PÚBLICA NÃO É UM DADO isso que a democracia moderna dá ensejo,
no século XVIII, a uma nova concepção de
Desde os gregos antigos, a experiência direito, cujo marco inaugural encontramos
política da polis democrática exigia a visi- nas declarações universais dos direitos do
bilidade da esfera pública, espaço reservado homem e do cidadão. Assim, a recusa da
ao debate e à decisão sobre os assuntos que instituição monárquica, especialmente em
afetavam a vida na cidade. A Assembleia do solo francês, tem como traço decisivo a crí-
Povo era a principal instituição responsável tica enfática à noção de privilégio, este que
por oferecer esse espaço político aos cida- pode ser desfrutado por um ou por alguns,
dãos. Embora se trate de uma experiência nunca por todos. Ora, uma vez destruída
de inegável importância na história – pela a estrutura do privilégio, transforma-se o
primeira vez uma comunidade heterogênea jogo entre inclusão e exclusão no interior
de cidadãos arcava com a tarefa de decidir do campo democrático. Se na polis antiga
coletivamente sobre assuntos comuns – não a exclusão discriminava explicitamente o
podemos nos esquecer do caráter excludente campo da cidadania, a sociedade democrá-
aí em vigor. Mulheres, escravos e estran- tica moderna entra na história sob a prerro-
geiros não podiam assumir magistraturas gativa da universalização dos direitos. Mas
na Atenas antiga, pois não pertenciam ao até que ponto a democracia pode garantir a
universo dos cidadãos. Uma vez excluídos realização universal desses direitos?
dos espaços de participação política, a fala Ao recusar a noção de que os direitos
e a opinião destes não carregavam um sen- universais nada mais são do que ideologia
tido público. Porque não podiam ocupar o responsável por mascarar as injustiças que
âmbito das instituições democráticas, mulhe- tecem a sociedade burguesa, mero conjunto
res, escravos e estrangeiros não tinham voz de mônadas mediadas pelo Estado, para as
nos debates promovidos pela cidade, tam- quais o único valor sagrado é a propriedade
pouco sua ação poderia almejar visibilidade privada (Marx, 2010), Lefort nos convida a
e sentido político. refletir sobre o direito à expressão. Em pri-

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meiro lugar, o filósofo francês afirma que notamos que esse direito exige a igualdade
os direitos do homem não são uma espécie de condições dos diferentes atores sociais
de véu, pois sua função não é mascarar a para expressar seus interesses, perspectivas e
dissolução dos liames sociais em função da opiniões (Young, 2000), e para debatê-los em
prevalência do indivíduo, mas sim atestar e, público. Quer dizer, embora a liberdade de
ao mesmo tempo, suscitar uma nova rede expressão esteja no horizonte da experiência
de relações entre os homens (Lefort, 1991, democrática moderna, a esfera pública está
pp. 47-8). Em outras palavras, a liberdade de longe de ser um dado. Ela é tão somente
expressão não deve ser concebida a partir do algo a ser conquistado, pois sua instituição
modelo da propriedade dos bens materiais, é resultado de uma ação coletiva que cava
cujo portador é o indivíduo burguês, pois um espaço comum, sendo capaz de sustentá-
ela é, em seu aspecto mais fundamental, -lo ao longo do tempo. Essa exigência de
uma liberdade de relações. A liberdade de criação mostra que a igualdade de acesso
expressão admite que a cada qual seja dada ao direito à liberdade de expressão não é
a possibilidade de se dirigir aos outros, e natural, porquanto depende da construção
de ouvi-los: eis que um espaço simbólico se e da manutenção de um espaço artificial
institui, sem fronteiras definidas, subtraído de debate em que todos e todas poderiam
a toda autoridade que pretenda regê-lo ou gozar desse mesmo direito.
decidir em seu lugar sobre o que é ou não
pensável, sobre o que é ou não dizível. Nesse EXCLUSÃO E INCLUSÃO
espaço, a fala enquanto tal mostra-se inde-
pendente da sanção de qualquer indivíduo A democracia moderna, uma vez que ainda
particular, quer dizer, ela não é propriedade não garante a todos os mesmos direitos, deixa
de ninguém, e não deve ser, por isso mesmo, entrever, não uma exclusão nomeada e explí-
privilégio de alguns. cita, como no caso da Atenas antiga, mas
Essa formulação não deve ser lida como sim uma exclusão pautada pela invisibilidade
uma simples descrição do regime democrá- e pelo silenciamento de determinados gru-
tico, como se estivéssemos diante de seu pos sociais. Iris Young, ao analisar as cinco
quadro acabado. Pelo contrário, o que está faces da opressão no interior dos regimes
em jogo aqui é o horizonte a partir do qual democráticos, a exemplo do estadunidense,
a experiência democrática visa a realizar toca nesse assunto ao mostrar que a discri-
o debate público. Esse horizonte desvela minação, a injustiça e a opressão têm um
uma liberdade de expressão que não pode elo estrutural com uma determinada exclusão
se realizar no interior de uma experiência topológica (Young, 2004). Há muros invisí-
de isolamento em que a fala de alguém seria veis que impedem o livre acesso de todos e
livre à medida que se propagasse de maneira todas a lugares de fala e de decisão, tanto no
espontânea, sem encontrar diante de si, num âmbito social quanto nas instâncias políticas.
mesmo espaço e sob as mesmas condições, Assim, os marcados por certos traços étnicos
um outro com o qual estabeleceria um diá- e culturais, por diferenças de gênero, de idade,
logo. Ao compreendermos a liberdade de de classe e de formação são cotidianamente
expressão a partir desse espaço de relações, impedidos de decidir sobre a organização do

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seu próprio trabalho, sobre a manutenção ou
destruição de direitos, sobre a existência de
leis que afetam diretamente suas vidas, sobre
a distribuição das verbas públicas e sobre
as regras segundo as quais essas discussões
devem operar. E mesmo quando atravessam
os muros invisíveis e chegam a essas esferas
de decisão, eles não as alcançam sob as mes-
mas condições dos que lá já estavam, o que
compromete sua desenvoltura diante deles.
Isso porque esses espaços não foram insti-
tuídos por eles e não estão destinados a eles.
É importante salientar que essa exclu-
são não ocorre de maneira explícita. Em
lugar algum está escrito que os não bran-
cos serão os principais responsáveis pelo
trabalho não qualificado, que as mulheres
farão as tarefas do lar e do cuidado, que os
velhos e os muito jovens serão as primei-
ras vítimas do desemprego quando houver
uma crise econômica, que as mulheres, os
não brancos e os portadores de necessida-
des especiais não ocuparão com frequência
altos cargos de representatividade na política
ou nas grandes empresas. Não é necessário
estabelecer regras explícitas para que assim
seja, pois a sociedade se estrutura de tal
modo que determinados espaços são pratica-
mente inacessíveis para determinados grupos.
Além disso, uma vez que essa exclusão é
implícita e estruturada, e em certa medida
inconsciente, porque nunca enunciada em
leis positivas e ou em regras públicas, ela
soa natural, o que faz parecer desnecessária
a discussão sobre o tema.

O POLITICAMENTE CORRETO
Mas isso não significa que nunca se fale
sobre o assunto. Na verdade, desde a emer-
gência no final dos anos 60 de uma série

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dossiê politicamente correto

de movimentos sociais e políticos cuja pauta por exemplo. Pelo contrário, a democracia
era predominantemente marcada por uma moderna pretende-se universalmente inclu-
recusa desse tipo de opressão – não ape- siva. Porém, uma vez que os direitos fun-
nas de classe, mas também de gênero, de damentais ainda não são desfrutados por
raça, de cultura, etc. –, há um esforço para certos grupos, para dar visibilidade a essa
que se produzam políticas públicas visando exclusão, estes assumem determinadas iden-
a sanar esse tipo de injustiça. Ao mesmo tidades – em busca de cidadania, eles se
tempo, há uma constante reivindicação des- apresentam como mulheres, gays, lésbicas,
ses grupos para que eles sejam representa- negros, índios, etc. – para que se torne explí-
dos e para que seja respeitado o seu lugar cita a injustiça e a opressão sofrida por eles.
de fala. É nesse novo contexto de luta que Ao demarcar identidades, esses grupos dão
a expressão “politicamente correto” inicia visibilidade à topologia da exclusão (como
sua história. Ela aparece no contexto das se dissessem: “nós, negros, mulheres, gays,
chamadas guerras culturais dos anos 1980 e pobres, migrantes, etc., nós não estamos aí”).
1990, nos Estados Unidos da América. Ainda A exclusão cotidiana os torna vulneráveis
que ela apareça em alguns textos da New a uma série de opressões, de modo que o
Left, foi seu uso pela direita estadunidense esforço para tornar audível à sociedade dis-
que lhe conferiu o sentido de acusação de cursos aos quais ela não costuma dar voz
certo autoritarismo policialesco da esquerda é uma forma de luta política.
no uso da linguagem. O ato de experimen- Os que reclamam das exigências do dis-
tar uma nomenclatura alternativa, na tenta- curso politicamente correto se incomodam
tiva de conformar a linguagem à identidade com a afirmação dessas identidades. Afir-
reclamada pelos grupos sujeitos à opressão, mam, por sua vez, falar em nome de todos,
de modo a incluí-los no debate, oferece a e não do interesse de alguns, acusam os
oportunidade, aos que defendem uma noção movimentos sociais de exigir privilégios.
abstrata de liberdade de expressão, de utilizar Mas o que acontece é exatamente o contrá-
a seguinte tática: vitimar-se para silenciar rio. Ao falar a partir de sua particularidade,
esse outro que tenta frequentar um espaço de sua identidade enquanto excluídos, esses
antes inacessível. grupos esclarecem aos demais que somente
Há aqui uma inversão do problema, pois, ao ouvi-los serão capazes de instaurar uma
lembremos, a democracia moderna abre o verdadeira universalidade. São esses gru-
horizonte de universalização dos direitos. pos, portanto, que enunciam a realização
Por consequência, ela não prescreve as carac- da universalidade democrática, ao passo que
terísticas que garantiriam a participação na os incomodados nada mais fazem do que
cidadania, incluindo-se aí o direito à fala defender uma igualdade abstrata.
pública. Uma vez que está aberta a todos, a Nestes termos, o caráter ideológico que
cidadania recusa o ato de identificar aqueles naturaliza a topologia da exclusão é deci-
que fazem parte da comunidade política. sivo. As ideologias fornecem uma carica-
Ela não diz que apenas são cidadãos os tura do outro, segundo a qual ele é visado
homens, os nascidos na cidade, os que pos- e julgado social e moralmente. O outro, no
suem determinada renda, os que são livres, caso, é exatamente aquele que está ausente

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da esfera pública e que, portanto, não pode correto e por aqueles que sofrem o racismo,
falar de si mesmo e de quem algo sempre é o sexismo, o classismo e as várias faces da
dito. Do negro, é dito que faz algo errado, opressão. Se levamos em conta a topologia
do índio, que é preguiçoso, da mulher, que da exclusão, vemos que cotidianamente é
é agredida porque provoca. A caricatura do negada ao segundo grupo qualquer liberdade
excluído substitui a voz própria e a impede de expressão. Nada lhes é concedido, nem
de tornar-se pública. Ela anula a expressão mesmo o direito de escolher o vocabulário
de um determinado sofrimento social. Assim, a partir do qual a sociedade deve a eles
denunciar o preconceito e a discriminação se referir. Eles não desfrutam do direito de
incutidos em certas práticas discursivas é dar-se um nome. Assim, a liberdade de usar
uma forma de combater essa ideologia e de uma linguagem discriminatória e preconcei-
abrir uma brecha para que os vulneráveis tuosa é afirmada diante da impotência dos
possam se defender de maneira autônoma. que sofrem a discriminação e o preconceito.
Se uma das faces da opressão é a ideologia Afinal, estes sobre quem se fala não estão
que caricatura o outro e impede que sua aí para se defender.
voz tenha lugar na esfera pública, é preciso, Em suma, não podemos discutir essa
sim, garantir que essa voz conquiste o seu questão pressupondo que já estamos em pé de
espaço. É preciso dar-lhe passagem. igualdade no que diz respeito ao acesso à fala
pública. A polêmica sobre o politicamente
CONCLUSÃO correto enuncia a necessidade de instituição
de esferas públicas onde de fato possamos
Quando falamos em esfera pública de estabelecer um debate sobre todas as formas
debate na verdade pressupomos uma esfera já de opressão que atravessam o tecido social.
dada e responsável por sustentar um debate Por enquanto, a voz dos oprimidos tem um
em que todos teriam igualmente uma voz. efeito semelhante ao do rolezinho, prática
Não é nada óbvio, porém, que diferentes surgida há alguns anos, quando jovens da
vozes tenham igual acesso à esfera pública. periferia começaram a frequentar os shop-
Daí que não tenhamos sobre isso uma discus- pings das grandes cidades e causaram, por
são, mas sim mera polêmica. Com efeito, a isso, tremendo alvoroço. Esta voz passeia por
esfera pública, os lugares oficiais de produção lugares proibidos e incomoda o público local.
de conhecimento, de debate e de decisão não O seu trânsito por aí acabará por transfor-
são igualmente ocupados por aqueles que mar esses espaços, pois a inclusão sugere
reclamam do cerceamento do politicamente sempre alguma transformação.

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dossiê politicamente correto

Bibliografia

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Esquerda, direita e o politicamente
correto: breve estudo comparado
João Feres Júnior
resumo abstract

A partir de uma análise de estrutura se- By analyzing the semantic structure of


mântica do conceito de “politicamente the concept of political correctness in the
correto” no contexto de sua criação e context of its emergence and development
desenvolvimento nos Estados Unidos, in the United States, and comparing it to
comparado à breve história do conceito a brief history of the concept in Brazil, we
no Brasil, identifico os principais significa- identify the main meanings attributed to it
dos associados a ele e as principais forças and the main political forces making use of
políticas que dele fizeram uso. Dois mo- it. Two moments of the debate on political
mentos do debate sobre o politicamente correctness in our country were chosen for
correto em nosso país foram escolhidos our analysis: the debate on the attempt
para análise: o debate sobre o affair Ca- to legally ban the book As caçadas de
çadas de Pedrinho, do começo da presen- Pedrinho in the beginning of this decade,
te década, e as páginas das redes sociais and today’s social networking web pages
sobre o tema do politicamente correto on the issue of political correctness. We seek
no presente. Tento mostrar que há um to show there is a strong similarity between
forte paralelo entre o desenvolvimento the development of the concept in the USA
do conceito nos EUA e no Brasil e que, em and in Brazil; and that in our country there
nosso país, há uma continuidade entre os is a continuance between the two studied
dois momentos estudados que se assen- moments that is grounded on the definition
ta na definição do politicamente correto of political correctness as an authoritarian
como imposição autoritária da ideologia imposition from the left-wing ideology of
esquerdista do PT. PT, the Worker’s Party.

Palavras-chave: politicamente correto; Keywords: political correctness; right


direita; PT. wing; PT.
P
erguntado sobre o que para a gente poder ter certeza disso e assim
achava do politicamente falar com mais propriedade. Então, eu acho
correto em entrevista no que o politicamente correto ajuda a piada a
programa “Roda Viva”, da ter mais força. Eu falei aquilo e queria ter
TV Cultura, o humorista dito aquilo mesmo”.
Fabio Porchat respondeu
da seguinte maneira: Porchat mostra em sua resposta um agudo
senso analítico, algo que certamente é o pro-
“Dentro da minha cabe- duto da reflexão reiterada sobre a prática de
ça eu posso fazer todo seu ofício de humorista – infelizmente não
tipo de piada possível, vemos com muita frequência na mídia de
piadas ofensivas, horrí- entretenimento brasileira dos dias de hoje
veis, piadas [pelas quais] profissionais com essa capacidade. A intenção
eu poderia ir preso, mas elas estão na minha do humorista em sua fala me parece ser a de
cabeça. Do mesmo lugar que sai a piada boa, refutar o argumento comumente ouvido nos
sai a piada ruim. Eu não penso assim: agora dias de hoje de que o politicamente correto
vou fazer uma piada boa, agora uma ruim... reprimiria a expressão artística e política.
Eu penso que vou fazer uma piada. E claro Porchat faz isso chamando a atenção para
que imagino eu que a piada é boa. Mas eu a natureza comunicativa do humor, isto é,
só vou saber depois que ela for ouvida por para o fato de que a graça é produzida na
alguém que fale: ‘hmmmm, essa não deu mediação entre humorista e audiência. Do
certo’. Então tem um lugar, que o politica-
mente correto faz e que eu acho ótimo, que
é você parar para pensar. Você não fala a
primeira coisa que te vem na cabeça. Isso é JOÃO FERES JÚNIOR é professor de
ótimo para qualquer situação, para qualquer Ciência Política do Iesp-UERJ, coordenador
do Grupo de Estudos Multidisciplinares da
coisa, não só na comédia. Sempre a gente Ação Afirmativa (Gemaa) e do Laboratório
parar para pensar no que vai falar é melhor de Estudos da Mídia e Esfera Pública (Lemep).

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dossiê politicamente correto

ponto de vista do humorista, ele descreve o politicamente correto algo de esquerda


um processo criativo reflexivo, de introjeção ou não? Ou: o que há no conceito de poli-
moral do ponto de vista do outro, ao falar ticamente correto que o faz significativo no
de dois momentos da criação: um anterior debate político-ideológico e, assim, capaz
e mais livre e um posterior de teste men- de ser localizado neste ou naquele campo?
tal das ideias por meio de sua submissão É sempre bom começar qualquer dis-
a critérios morais advindos do reconheci- cussão acerca de um conceito por traçar,
mento da alteridade do mundo externo. E mesmo que brevemente, a sua história. Tal
conclui o seu raciocínio com a frase: “O exercício tem no mínimo o efeito terapêu-
politicamente correto ajuda a piada a ter tico de evitar nossa adesão a ingenuidades
mais força”. Claro, tal força só pode advir e deslumbramentos intelectuais quando não
de uma maior aceitação da graça da piada ao erro interpretativo puro e simples1. “Poli-
por parte da audiência, ou melhor, da con- ticamente correto” no português brasileiro
quista de audiências mais amplas. Em outras pertence à categoria das expressões importa-
palavras, o humorista parece trabalhar com a das dos Estados Unidos, assim como “ação
noção de que o politicamente correto marca afirmativa”, “igualdade de oportunidades”
um consenso moral social acerca do que e tantas outras, e que foram produzidas na
deve ser tomado como humor e, portanto, segunda metade do século XX. São pro-
também sobre aquilo que não deve ser dito duto da expansão do Estado de bem-estar
por constituir ofensa. social naquele país após a Segunda Guerra
No artigo intitulado “Monteiro Lobato e Mundial e de vigorosos movimentos sociais
o Politicamente Correto” publicado há alguns que vieram no esteio dessas transformações,
anos (Feres Júnior et al., 2013), utilizei o particularmente o dos direitos civis e a resis-
caso do debate público acerca do racismo tência à Guerra do Vietnã, ambos com seu
contido no livro Caçadas de Pedrinho, do auge na década de 1960. Como tal, é inequí-
escritor paulista Monteiro Lobato, para defen- voco seu pertencimento ao campo político
der argumentos muito similares a esses feitos progressista norte-americano, cujos adeptos
por Fabio Porchat na entrevista, sem a graça são frequentemente chamados de liberals.
e a leveza típicas da verve humorística, mas Como declara o Dicionário do Pensa-
com um pouco mais de sistematicidade ana- mento Político da Palgrave:
lítica e detalhe, coisas que o formato artigo
acadêmico possibilita com mais facilidade. “[…] the concept of ‘political correctness’
No presente ensaio, pretendo não me afas- has become a topic of intense controversy
tar muito do esquema explicativo de minha in the US and elsewhere, those on the right
contribuição anterior, assim como ressaltar attacking it as a threat to free speech and
alguns aspectos importantes do que pode- an excuse for witch-hunts, those on the left
mos chamar de uma teoria do politicamente endorsing it” (Scruton, 2007).
correto, particularmente seu aspecto político-
-ideológico, evidenciado no título do artigo
pelas palavras “esquerda e direita”. Partamos 1 Para uma discussão sobre as virtudes da contextualiza-
ção histórica de conceitos, ver Koselleck (1985), Richter
da questão inicial que propõe tal título: seria (1996) e Tully (1988).

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A reação conservadora ao politicamente são mútua. Descontando usos instrumentais
correto nos Estados Unidos começou na era altamente retóricos, a esquerda sempre vem
Reagan, que marca de várias maneiras o fim associada à defesa dos muitos e, portanto, do
do grande ciclo progressista iniciado com valor da igualdade, e a direita, à defesa do
o término da guerra e que teve como um privilégio dos poucos2. Como muitos outros
dos seus principais manifestos intelectuais o conceitos que existiram antes mesmo das
livro The Closing of the American Mind, de palavras que mais tarde os nomearam, noções
Allan Bloom (1987), intelectual conservador de direita e esquerda parecem ter existido
discípulo de Leo Strauss. Helenista e literato, pelo menos desde o período clássico da Gré-
Bloom é um autor de grande sofisticação cia antiga, se podemos nos fiar no relato de
retórica. O livro como um todo é uma crítica Aristóteles, que chama a atenção para os
ao relativismo moral, que, segundo ele, está dois princípios fundamentais da política do
destruindo a liberdade de pensamento dentro seu tempo: o oligárquico e o democrático
dos campi universitários norte-americanos. (Aristotle, 1996). A narrativa que Tucídi-
Sua tese sobre a importação e a banalização des nos apresenta da Guerra do Peloponeso
do pensamento de pensadores alemães como confirma a interpretação feita pelo estagirita
Nietzsche e Weber pela cultura de massas décadas depois. O conflito entre Atenas e
dos EUA é bastante inteligente e sofisticada, Esparta semeou em cada cidade do mundo
mas para o debate público mais amplo, The grego a cizânia entre o partido dos muitos,
Closing of the American Mind foi consumido democrático, e o partido dos poucos, aris-
como um libelo contra o multiculturalismo, tocrático (Thucydides, 2013).
as políticas de ação afirmativa e o feminismo. O conhecimento mínimo da estrutura
Podemos concluir após essa breve incursão semântica e do significado histórico dos
histórica que, pelo menos no seu país de ori- conceitos de esquerda e direita não resolve
gem, o termo “politicamente correto” se associa todos os problemas advindos de sua apli-
claramente com a banda esquerda do espectro cação como ferramentas analíticas. Nós,
político, não uma esquerda marxista revolucio- estudiosos da política, somos frequente-
nária, mas liberal com inclinações igualitárias. mente forçados a enfrentar a fatalidade
Já que estamos falando de conceitos, é de adotarmos conceitos analíticos que são
preciso introduzir também algumas pala- também termos nativos da própria política3.
vras de esclarecimento acerca dos outros
dois conceitos que compõem o título: o par
dicotômico “esquerda-direita”. É importante 2 A associação da direita com o valor da liberdade,
expor algumas características de sua estru- como querem alguns autores e publicistas, é pura-
mente retórica, pois sempre redunda na defesa do
tura semântica. Esquerda e direita formam gozo máximo da liberdade de poucos em detrimento
ou ao arrepio da real capacidade de gozo da liberdade
um par de contraconceitos simétricos. Em dos muitos.
outras palavras, eles se definem mutuamente 3 O uso da expressão “má sorte” aqui é puramente retó-
em oposição frontal: um significa o contrário rico, pois o interesse despertado por nossa disciplina
advém exatamente do fato de tratar de conceitos tão
ou a negação do outro. Historicamente, con- fundamentais para as teorias, argumentos e ideologias
tudo, podemos observar alguma estabilidade que constituem o aspecto comunicativo da política,
que é a atividade que cuida da organização coletiva
semântica nessa relação estrutural de exclu- da vida humana.

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dossiê politicamente correto

“Democracia”, “república”, “direitos” e mui- assistencialistas que restringem a liberdade


tos outros termos da linguagem política dos indivíduos 5.
cotidiana são também conceitos analíticos Não precisamos nos estender muito
acadêmicos. A complicação em nosso caso mais para mostrar que tanto os termos
é que, por ter a política uma natureza for- “esquerda” e “direita” como “politicamente
temente antagônica, como bem notou Carl correto” sofrem do mesmo “mal”: são usa-
Schmitt (Schmitt & Schmitt, 2007), tais dos como termos de pugna, de ofensa pes-
termos nativos são quase sempre apropria- soal e pública. Mas enquanto os termos
dos para efeito de pugna (Kriegsbegriffen), “esquerda”, “direita”, “república”, “demo-
isto é, para ofender, rebaixar e desmora- cracia” e tantos outros são frequentemente
lizar adversários 4. utilizados em análises acadêmicas, ou seja,
Tomemos o exemplo do termo liberal têm seu campo semântico demarcado e con-
em inglês: de elogio no século XIX ele se trolado como conceito analítico, inclusive
converteu em imprecação no pós-guerra. diferenciando-os de seus usos na linguagem
Originalmente o termo, assim como “libe- cotidiana da pugna, “politicamente correto”
ral” em português, significava generoso e é um conceito folk, do debate político, com
tolerante, algo sempre virtuoso e admirável. baixíssima densidade acadêmica. Boa parte
Com o surgimento do Estado de bem-estar do esforço empreendido no artigo “Monteiro
social no New Deal, essas características Lobato e o Politicamente Correto” foi dar
pessoais da generosidade e da tolerância consistência teórica ao termo, algo que será
foram traduzidas em apoio a uma plata- preciso resgatar, ainda que brevemente, no
forma política que define uma relação entre presente ensaio, mais adiante.
Estado e sociedade na qual o primeiro Diferentemente do par “esquerda-direita”,
cuida para que as desigualdades agudas “politicamente correto” é um termo de pugna
geradas pelos processos sociais não se particularmente assimétrico; em outras pala-
traduzam em injustiças para com aqueles vras, ele é usado para atacar adversários,
menos afortunados. Ou seja, o conceito mas estes adversários não o aceitam como
foi politizado, passando a denominar uma parte de sua identidade. O mesmo Dicio-
determinada posição no espectro político- nário Palgrave informa que aqueles iden-
-ideológico e não mais meramente uma tificados com a esquerda “raramente usam
característica de personalidade. Com a onda o termo, pois ele agora adquiriu um sabor
de conservadorismo que se abateu sobre pejorativo” (Scruton, 2007). Conceitos como
os Estados Unidos a partir do governo “republicano” ou “civilizado”, por exemplo,
Reagan, liberal adquiriu tom pejorativo, sempre têm caráter positivo. Assim, quando
associado à suposta adesão irresponsável a são usados para desqualificar adversários é
um modelo de Estado inflado por políticas sempre pela negação: a prática não é repu-

5 É interessante notar que em português o termo seguiu


4 Ninguém melhor que Reinhart Koselleck deslindou as direção contrária, passando a denominar pejorativa-
consequências da natureza política para a semântica mente pessoas que defendem o Estado mínimo e os
dos conceitos. (Koselleck & Gadamer, 1987). interesses do mercado.

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blicana, esse ritual é incivilizado. Esquerda ridades locais, é claro. Isso não quer dizer
e direita (ou conservador) são identidades que as intenções que aqui se apropriaram do
políticas aceitas por agentes políticos, ainda conceito não fossem genuinamente as mais
que os termos sejam usados frequentemente frescas, ou seja, domésticas e localizadas no
como formas de abuso verbal6. Contudo, tempo presente. Elas só são muito similares
ninguém parece gostar de levar a pecha às norte-americanas.
de politicamente correto. Voltemos a alguns dados relativos ao
Isso não significa, no entanto, que o termo affair Caçadas de Pedrinho. Antes, contudo,
“politicamente correto” seja usado igual- é necessário algum contexto histórico. Em
mente para atacar direita e esquerda. Pelo 30 de junho de 2010, ou seja, ao final do
contrário, pelo menos no que tange ao uso segundo mandato do ex-presidente Lula, a
do conceito nos EUA, é quase sempre uma Câmara de Educação Básica do Conselho
ofensa brandida por grupos conservadores Nacional de Educação (CEB/CNE) acatou
contra os adeptos de políticas de igualdade solicitação encaminhada pela Ouvidoria
de oportunidades, multiculturais, de defesa da Secretaria de Políticas de Promoção da
dos direitos de minorias, de mulheres, etc. Igualdade Racial (Seppir) questionando a
Ou seja, ainda que frequentemente rejeitem utilização, pela Secretaria de Estado da
a pecha de politicamente correto, essas pes- Educação do Distrito Federal, de livro
soas são acusadas de tal prática. que veicularia “preconceitos e estereótipos
Será que tal divisão político-ideológica contra grupos étnico-raciais”. Tratava-se do
em torno da expressão é a mesma no Brasil, clássico Caçadas de Pedrinho de Monteiro
e que a dinâmica da evolução semântica do Lobato (2008)7. O mesmo livro, da Editora
conceito foi similar? Conceitos são sempre Globo, era distribuído pelo Programa Nacio-
apropriados pelas mais frescas intenções nal de Biblioteca na Escola (PNBE) e tido
– este é o grande conselho de Nietzsche há muitas décadas como obra de referên-
para os historiadores (Nietzsche, 1990), uma cia em escolas públicas e particulares de
pedra fundamental do historicismo contra todo o Brasil. A CEB/CNE produziu dois
idealismos de toda espécie. Se isso é ver- pareceres recomendando a adição de nota
dade, nada garante que aqui no Brasil o explicativa na introdução do livro, expli-
politicamente correto tenha sido recebido da cando o contexto histórico da utilização de
mesma maneira. Contudo, os sinais apon- seu conteúdo racista. Tais pareceres foram
tam para uma resposta plenamente positiva fonte de imensa controvérsia midiática na
à questão levantada, com algumas peculia- qual o conceito de politicamente correto
teve papel central.
De outubro de 2010 a março de 2012
6 No Brasil há uma rejeição histórica às identidades foram publicados 84 textos jornalísticos
públicas de direitista ou conservador, que nos últimos
tempos está sendo mitigada. As razões históricas sobre o assunto, em um conjunto de 12
para tal rejeição estão ligadas, a meu ver, ao fraco meios de mídia impressa de grande circula-
desempenho que tal posição explícita teria em termos
eleitorais em um regime democrático representativo,
particularmente em um país com um enorme con-
tingente de pobres. Mas não há espaço aqui para 7 Não me escapa a ironia de esse ter sido o primeiro
desenvolver essa tese. livro que li na vida.

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dossiê politicamente correto

ção no país. Somente na Folha de S. Paulo basta, contudo, identificar o caráter belige-
foram 16, em O Globo, 15 e no Estado de rante associado à expressão, é preciso tentar
S. Paulo, 8. Desse total de textos, 62 eram identificar se os papeis de agressor e alvo
de natureza opinativa. Quase metade das da agressão verbal estão associados às posi-
matérias opinativas (42%) tratou do poli- ções ideológicas de direita e de esquerda, a
ticamente correto. Uma leitura rápida dos fim de compararmos com o exemplo norte-
trechos em que o conceito é citado confirma -americano. Os textos são também bastante
as hipóteses que levantamos até aqui. A claros acerca desse aspecto, pelo menos no
expressão é claramente usada como instru- que tange ao alvo. Vejamos abaixo mais
mento de pugna, frequentemente associado alguns exemplos:
a outros termos derrogatórios, como:
“Mas o extenso histórico de medidas com
“E aí chegamos a uma questão que me o viés do politicamente correto, em obedi-
parece muito representativa dos equívocos ência à linha ideológica de áreas do PT e
do debate ao redor da ‘questão gay’ (um adotadas desde o primeiro governo Lula,
belo exemplo do fascismo do politicamente recomenda prudência e boa dose de ceti-
correto)” (Pondé, 2011); cismo em relação ao desmentido. Afinal,
“Ao lado do avanço nos direitos dos gays, não é a primeira vez que o governo federal
legítimo e importante, a indústria do poli- tenta empurrar goela abaixo da sociedade
ticamente correto vai criando um monstro” uma pílula supostamente progressista, que,
(Fiuza, 2011); na realidade, é um composto no qual mal
“Essa é mais uma amostra das ‘panes men- se disfarça o DNA do autoritarismo e da
tais’ que a obsessão com ações politica- intolerância” (O Globo, 2011);
mente corretas costuma produzir” (Edito- “Depois que Dilma Rousseff virou sím-
rial, 2010); bolo meteórico de afirmação feminina,
“Monteiro Lobato, por sinal outra vítima ninguém mais segura os gigolôs da ideo-
da sanha persecutória das baterias politi- logia” (Fiuza, 2011);
camente corretas” (Editorial, 2011 ); “O parecer que indica o perigo de incentivar
“O politicamente correto pode ser perigoso preconceito e pede a retirada do livro das
e hipócrita” (Luft, 2010); escolas é um exemplo de leitura viciada pela
“Se a escola fundamental fracassa em ideologia, que perde em dimensão estética
suas tarefas elementares, como poderá e humana para bater continência ao politi-
incluir no currículo as disciplinas inven- camente correto. Para a Abrale, o avaliador
tadas pelos luminares politicamente cor- extrapolou seu papel, caracterizando um
retos?” (Kuntz, 2011). ‘policiamento pedagógico e ideológico’”
(Werneck et al., 2010).
Não é preciso repetir a lista de termos
pejorativos associados à expressão “politi- Fica explícita a associação do politi-
camente correto” nas passagens acima para camente correto à suposta ideologia de
provar nosso ponto, sua mera leitura deixa esquerda do PT na Presidência da República.
bastante clara a intenção dos autores. Não O politicamente correto é descrito como

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imposição autoritária de valores e padrões era, sim, racista para os padrões de sua época
culturais por parte de um Estado domi- e para os de nossa. Não há dúvida acerca
nado pela ideologia de esquerda. Em outras da infeliz obsessão do escritor de Taubaté
palavras, a associação entre politicamente pela questão da raça, sua feroz oposição à
correto e esquerda se repete aqui, também miscigenação e seu desprezo pelos negros.
de modo pejorativo. Seria ela enunciada Na nossa amostra, 21 textos contêm algum
também pela direita? Gostaria de enumerar tipo de negação ou relativização do racismo
alguns fatores que apontam para uma ine- de Lobato. Alguns chegam a ser hilariantes
quívoca resposta positiva para essa questão. por sua candura. Por exemplo, o próprio Rolf
Primeiro, em um plano mais geral, boa Kuntz diz que o racismo é “uma estranhís-
parte dos textos encontrados em nossa pes- sima acusação a Monteiro Lobato” (Kuntz,
quisa – que cobriu todas as instâncias de 2011). Segundo Martha Neiva Moreira, Ruy
utilização da expressão “politicamente cor- Castro declarou que “as pessoas que acusam
reto” no período naqueles veículos – tem Monteiro Lobato de racismo e de querer
autores identificados com a direita ideoló- ‘extinguir a raça negra’ certamente nunca
gica. Os editoriais citados acima provêm dos leram uma linha do que ele escreveu” (apud
jornais O Estado de S. Paulo e O Globo, Barrucho, 2012). O mesmo Ruy Castro hoje
dois baluartes do conservadorismo político em dia ataca Lula repetidamente em seus
em nosso país, apoiadores do Golpe Mili- artigos de jornal.
tar de 1964 e do regime autoritário que se A título de teste final para confirmar a
sucedeu e ferozes opositores de partidos e tese da similaridade entre o uso do conceito
políticos de esquerda desde o retorno do de politicamente correto nos EUA e no Bra-
país ao regime democrático. Os autores sil, proponho que saiamos do exemplo do
das passagens são quase sempre direitis- affair Caçadas de Pedrinho e cheguemos
tas convictos, como Luiz Felipe Pondé e ao presente, e que troquemos de meio de
Guilherme Fiuza, ou colunistas como Lya comunicação. Ao invés de analisarmos os
Luft e Rolf Kuntz, que, a despeito de não conteúdos veiculados pela mídia tradicional,
serem confessos reacionários, foram críticos tomemos as mídias sociais, mais especifi-
acerbos dos governos petistas e defensores camente o Facebook, que é de longe a rede
de ideais bastante liberais no campo da social mais utilizada no Brasil. Segundo
economia, ou seja, também estão à direita dados da própria empresa, 92 milhões de
do espectro ideológico. pessoas domiciliadas no Brasil acessam a
É irônico notar que essa campanha plataforma todos os meses, sendo que 62
contra o politicamente correto no affair milhões fazem isso todos os dias8. A des-
Caçadas de Pedrinho contou inclusive peito do viés econômico que condiciona esse
com vários autores que vieram a público acesso, isto é, quanto mais pobre, menor a
negar o racismo de Monteiro Lobato. Ora, probabilidade de usar o Facebook, é difí-
a acusação de ideologia feita à esquerda do
poder se fez em nome da afirmação de uma
inverdade. O entusiasta da eugenia Lobato, 8 Disponível em: https://www.facebook.com/business/
news/BR-45-da-populacao-brasileira-acessa-o-Face-
além de grande escritor de obras infantis, book-pelo-menos-uma-vez-ao-mes.

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dossiê politicamente correto

cil imaginar fonte mais direta ao uso cor- abaixo de 100. Das 15 páginas que utili-
rente de termos e expressões na linguagem zam a expressão “politicamente correto”
comum do que os dados recolhidos nessa em seus títulos, endereços ou descrições,
rede social. somente duas não são claramente de direita,
Utilizando a ferramenta Netvizz, pro- uma não é política, uma é de esquerda e
vida pelo próprio Facebook para análise de outras duas estão praticamente desativadas.
dados de sua rede por parte de terceiros, Isto é, nove páginas exibem características
fizemos uma busca simples da expressão que hoje podemos associar à posição polí-
“politicamente correto” nas páginas da tica de direita no espectro ideológico bra-
rede. Os resultados encontrados podem sileiro. Não se trata de uma amostra, mas
ser observados na Tabela 1. de todas as páginas com mais seguidores
Nela filtramos as 15 páginas com maior que versam sobre o tema do politicamente
número de seguidores – que obtivemos correto explicitamente. É digno de nota o
usando um número de corte um pouco texto que descreve a página campeã, com

TABELA 1

Nome Categoria No seguidores

Brasil, Maior Comunidade do Facebook Community 37.141

Contra a Ditadura do Politicamente Correto Community 4.244

Politicamente inCORRETO Community 1.226

Antro dos Politicamente Corretos Community 509

Politicamente Correto Community 311

Politicamente correto Politician 309

POLITICAmente Correto Community 283

Politicamente #in-correto Community 203

Politicamente correto Interest 183

Politicamente Correto Community 154

Politicamente correto News & Media Website 145

Politicamente in Correto Community 131

Politicamente Correto Movie/Television Studio 93

NÃO SOU POLITICAMENTE CORRETO Community 91

Politicamente (in)Correto Community 91

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37.141 seguidores, intitulada “Brasil, Maior tocada diretamente no texto da descrição.
Comunidade do Facebook” 9: O trecho contém outras dicas sobre o posi-
cionamento político de seus autores, que,
“O brasileiro sempre foi ‘educado’ para ao rejeitarem a ideia de “mudar o mundo”
‘calar a boca’ para não morrer, não sofrer e a pecha de “ideologistas cegos”, preten-
pressões, etc. Não é possível mais ver o dem se afastar de imprecações comuns
brasileiro calado ao ver tanta corrupção, atribuídas à esquerda por seus críticos de
inflamada pela impunidade. Somente quando direita. Isto é, a mensagem, a despeito de
todos os brasileiros começarem a falar, essas se apresentar como mudancista, pois prega
pressões terminarão... FALE... USE AS o fim da corrupção, deixa bem claro que
REDES SOCIAIS PARA MANIFESTAR não se trata de uma agenda de esquerda.
A SUA INDIGNAÇÃO. Não é mais possí- A imagem de capa da página é uma
vel aceitarmos tanta roubalheira e ficarmos fotografia tirada durante uma manifestação
calados. Chega de ‘esquecer’ do que já pas- gigante em frente do Congresso Nacional,
sou. Chega de correligionários julgarem seus de junho de 201311. A foto também traz
próprios amigos no governo, CHEGA DE em letras maiúsculas os dizeres “DES-
VERMOS POLÍTICOS CALADOS PARA CULPE O TRANSTORNO, SÓ ESTAMOS
NÃO RESPINGAR EM SEUS TELHADOS TENTANDO MELHORAR O BRASIL!”,
DE VIDRO [...] está na hora deste país celebrizados nas manifestações de junho
‘empregar’ apenas quem queira o melhor de 2013. Aqui vemos uma estratégia de
para todos e não apenas para uns poucos! apresentação que se repete nas páginas de
Não... não queremos mudar o mundo, tão direita que combatem o politicamente cor-
pouco somos ideologistas cegos... apenas reto: a associação com símbolos de junho
possuímos o grande sonho de ver o bra- de 2013. Não temos dados suficientes para
sileiro reclamar por seus direitos! Agora dizer que se trata de uma apropriação da
também através do Twitter: http://twitter. simbologia criada naquele momento ou se
com/PoliticamenteC”10. aquele momento foi a gênese desse movi-
mento de direita. Deixaremos isso para
É interessante notar que o foco na uma futura contribuição. Para além dessa
corrupção, que na verdade serve como simbologia, a página é recheada de posta-
base para o discurso antipolítica e para gens contra o governo, contra a política,
o antipetismo em todas as páginas aqui contra o PT e contra a corrupção e a favor
identificadas, é tão intenso que a questão da Lava Jato.
do politicamente correto em si sequer é Já o segundo lugar da lista vai direto
ao ponto. Seu nome é “Contra a Ditadura
do Politicamente Correto” e sua descrição
é a seguinte:
9 Essa página foi selecionada pelo mecanismo de busca,
pois, apesar de o termo “politicamente correto” não
aparecer no seu título, ele está em seu endereço: ht-
tps://www.facebook.com/BrasilPoliticamenteCorreto/.
11 Disponível em: http://g1.globo.com/distrito-federal/
10 Disponível em: https://www.facebook.com/pg/Brasil- noticia/2013/06/manifestantes-invadem-cobertura-do-
PoliticamenteCorreto/about/?ref=page_internal. -congresso-nacional.html.

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dossiê politicamente correto

“De alguns anos pra cá, uma verdadeira dita- mos nas nove páginas características que
dura do politicamente correto tomou conta do hoje podemos associar à posição política
nosso país. Dizer o que pensa virou crime, de direita no espectro ideológico brasileiro,
algo inaceitável. Nem mesmo os políticos entre elas o discurso da antipolítica (nove
conseguem debater, tudo é dito com muito páginas), o antipetismo (nove páginas), a ode
cuidado. Quem diz a verdade é estigmatizado, à Bandeira Nacional como símbolo de luta
atacado. Resolvemos criar essa página para contra a corrupção política (quatro páginas) e
que aqueles que não concordam com isso, o uso da máscara que se tornou símbolo do
possam abertamente dizer o que se passa em grupo Anonymous (duas páginas) e de outras
sua mente. Se você apoia temas polêmicos alusões a junho de 2013 (cinco páginas),
como pena de morte, prisão perpétua, redu- distribuídas como mostra a Tabela 213.
ção da maioridade penal ou simplesmente Como é fácil observar, o discurso anti-
não compactua em ser mais um boi no meio política e o antipetismo têm total correla-
da boiada, esse é o seu espaço”12. ção nessa amostra. Basta ler as postagens
para entender que estão de fato misturados
Como o trecho indica claramente, essa em uma narrativa em que o PT e Lula são
página tem uma agenda de direita ligada à apresentados como os parteiros da corrup-
questão da segurança pública, com um foco ção que assola o Brasil. Essa mesma nar-
forte no punitivismo. É só rolar a barra das rativa é corroborada por posts frequentes
postagens para encontrar vários que têm Jair em defesa da Operação Lava Jato e do juiz
Bolsonaro como personagem principal, entre Sergio Moro. Os símbolos de junho de 2013
outros a favor do porte de armas, contra são também bastante frequentes e repre-
o PT, contra a exibição de arte do MAM sentam o ativismo de direita que surgiu a
e contra as cotas raciais. Mas isso não é partir daquelas manifestações massivas que
tudo. A imagem do perfil da página é uma assolaram nosso país. A simbologia mudan-
foto de um rosto de homem com os lábios cista dos movimentos sociais, antes seara
costurados, ladeado por uma foto de capa exclusiva da esquerda, agora aparece ao lado
que contém somente o rosto risonho do ex- de propostas claramente direitistas, como
-presidente dos EUA, Ronald Reagan, e uma a diminuição da maioridade penal, a pena
citação atribuída a ele: “Quando uma pessoa de morte, o porte de armas e o ataque ao
ou uma empresa gastam mais do que ganham
elas vão à falência. Quando um governo gasta
mais do que ganha ele te manda a conta”.
13 O Anonymous é um grupo ativista internacional
Por meio de exame das principais carac- defensor da liberdade on-line e alhures. O capítulo
terísticas estéticas e textuais da página (foto brasileiro do Anonymous ganhou visibilidade nas
manifestações de junho de 2013 já com um perfil
de perfil, foto de capa, texto de apresenta- fortemente antigoverno, o qual em muitos pontos se
confundia com a agenda antipetista da direita que
ção e postagens mais recentes) identifica- então começava a se organizar. A máscara que se
tornou marca registrada do grupo é emprestada do
filme V de Vingança, produzido e roteirizado por Andy
Wachowski e Lana Wachowski, cujo roteiro é uma
12 Disponível em: https://www.facebook.com/pg/Contra- adaptação da HQ V FOR VENDETTA, escrita por Alan
ADitaduraDoPoliticamenteCorreto/about/?ref=page_ Moore e desenhada por David Lloyd, publicada entre
internal 1982 e 1988 no Reino Unido.

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TABELA 2

Símbolos
Nome Nº Bandeira Anonymous Antipolítica Anti-PT
2013
Brasil, Maior Comunidade
37.141 1 1 1
do Facebook
Contra a Ditadura do
4.244 1 1 1
Politicamente Correto
Politicamente
1.226
inCORRETO
Antro dos
509          
Politicamente Corretos

Politicamente Correto 311 1 1 1 1 1

Politicamente correto 309          

POLITICAmente Correto 283 1 1 1 1 1

Politicamente
203          
#in-correto

Politicamente correto 183          

Politicamente Correto 154 1 1

Politicamente correto 145 1 1 1 1

Politicamente in Correto 131 1 1 1

Politicamente Correto 93          

NÃO SOU
POLITICAMENTE 91 1 1
CORRETO

Politicamente (in)Correto 91 1 1

TOTAL 4 2 5 9 9

politicamente correto, que pode ser traduzido Essa agenda reacionária aliada ao anti-
em ataque aos direitos de mulheres, negros, petismo resume bastante esse conjunto de
LBGTQ e outros grupos. Na verdade, trata- páginas dedicadas ao politicamente correto
-se de uma mudança reacionária que pode no Facebook, mas há um elemento novo
ser resumida no seguinte raciocínio: a pro- nelas que merece ser observado antes que
liferação de direitos de minorias que se deu terminemos este ensaio. Ele está bastante
sob o governo da esquerda petista (corrupta) presente na página “Contra a Ditadura do
deve ser não somente barrada, mas desfeita. Politicamente Correto”, segunda colocada no

Revista USP • São Paulo • n. 115 • p. 51-66 • outubro/novembro/dezembro 2017 63


dossiê politicamente correto

quesito número de seguidores, e corresponde Doria, na página do próprio MBL – o atual


à fusão entre essa agenda regressista que prefeito de São Paulo parece ter decidido que,
acabamos de descrever e uma pauta neoli- com ou sem o PSDB, sua maior chance na
beral, isto é, de defesa do Estado mínimo. corrida para a Presidência da República é a
Tal fusão está presente em uma profusão radicalização à direita, juntando exatamente
de postagens de autoria de Kim Kataguiri, sua pauta neoliberal ao conservadorismo de
um dos líderes do Movimento Brasil Livre valores típico da agenda evangélica.
(MBL), de inclinação neoliberal radical, com-
partilhadas por essa página. Em uma delas, CONCLUSÃO
Kataguiri acusa a performance La Bête, do
artista carioca Wagner Schwartz, no Museu
A presente investigação acerca do con-
de Arte Moderna de São Paulo (MAM),
ceito do politicamente correto não só mos-
empregando tom altamente moralista, em
trou que sua estrutura semântica e padrão de
defesa das famílias e dos supostos valores
politização são bastante semelhantes aos que
da sociedade brasileira. No mesmo vídeo, o
o conceito experimentou em seu berço, os
rapaz faz referência à Queermuseu – Car-
Estados Unidos, mas também revelou idios-
tografias da Diferença na Arte Brasileira,
sincrasias do caso brasileiro. Em termos con-
exposição de arte em cartaz no Santander
cretos, “politicamente correto” é um termo
Cultural de Porto Alegre que foi alvo de
de pugna tanto cá como lá, utilizado pela
campanha contrária movida pelo MBL e
direita política para atacar políticas públicas
acabou sendo cancelada.
e posições normativas de esquerda, sendo que
A fusão entre neoliberalismo e conserva-
tal esquerda raramente assume o termo como
dorismo de valores já foi notada por alguns
parte de sua identidade. Para além dessas
analistas de redes sociais, como Esther
regularidades semânticas, os dados específicos
Solano e Pablo Ortellado14. E o MBL é iden-
ao caso brasileiro são bastante reveladores.
tificado nessas análises como o principal
A análise, mesmo que breve, do affair
hub das redes sociais fazendo essa fusão.
Caçadas de Pedrinho mostra um movimento
Tal manobra político-ideológica parece ser
altamente crítico ao politicamente correto
movida por interesses eleitorais, pois como
encabeçado pela grande mídia e tendo como
a agenda neoliberal é historicamente pobre
arautos publicistas de direita e intelectuais
de votos no Brasil, o MBL estaria tentando
públicos que, ao longo de sua carreira, reve-
capturar o voto evangélico ao incorporar a
laram um forte pendor contrário aos gover-
pauta moralista. E o movimento não faz isso
nos de centro-esquerda do PT. Tais pessoas
sem o respaldo de políticos profissionais.
pintam o politicamente correto como impo-
Duas figuras são claramente associadas a essa
sição autoritária de valores e padrões cul-
agenda: Jair Bolsonaro, na página “Contra a
turais por parte de um Estado dominado
Ditadura do Politicamente Correto”, e João
pela ideologia esquerdista. É difícil ignorar
a ironia de que, em sua sanha de criticar a
14 Ver a página “Monitor do Debate Político no Meio regulação proposta pelo MEC, alguns desses
Digital”. Disponível em: https://www.facebook.com/ intelectuais chegaram ao ponto de negar o
monitordodebatepolitico/?pnref=lhc.

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racismo de Monteiro Lobato: não há nada comparar o episódio com a peça de teatro
mais ideológico do que negar uma realidade Roda Viva, proibida pela ditadura civil-militar,
fática em nome de uma crença normativa. em 1968, após atos de violência cometidos
A segunda parte da análise foi conduzida contra o elenco por integrantes do Comando
nas redes sociais do presente, mais especifi- de Caça aos Comunistas (CCC). Só falta a
camente no Facebook. Notamos continuida- repressão estatal para retornarmos àquele
des e inovações na oposição ao politicamente triste momento de nossa história. Em suma,
correto. O termo continua a ser usado para as os arautos da liberdade de expressão agora
mesmas funções de contenda ideológica. O se voltam contra a liberdade de expressão?
politicamente correto continua a ser associado De fato, os âmbitos da política e da lógica
à esquerda e ao PT, mas agora a simbologia não são inteiramente congruentes; na prática
das Manifestações de 2013 se incorporaram é possível, sim, que os críticos do politica-
ao discurso antipoliticamente correto e, na sua mente correto sustentem as duas posições
esteira, assistimos à tentativa de fusão entre a antagônicas de defensores e críticos da liber-
agenda neoliberal (contrária ao suposto “esta- dade de expressão, particularmente se esses
tismo” de esquerda) e a agenda conservadora ataques forem feitos em momentos diferentes
de valores (contrária à defesa de direitos de e contra alvos diferentes.
minorias feita pela esquerda). Mas aqui nos O tema do politicamente correto é bas-
deparamos com outro paroxismo ainda mais tante rico e envolve uma discussão necessária
perturbador. Ora, o politicamente correto foi sobre os limites das esferas da moralidade
tradicionalmente atacado por supostamente e da legalidade, onde devemos exercitar a
cercear a liberdade de expressão – seja pelos escolha coletiva sobre quais coisas moral-
libertários dos EUA ou por figuras como mente condenáveis devem ser objeto de
Danilo Gentili e Pondé, todos defensores do legislação. Há também a questão da fun-
“direito ao insulto público” de quem quer damentação filosófica e de teoria social do
que seja. Contudo, agora a fusão neoliberal- politicamente correto, que tratei em parte
-conservadora atenta exatamente contra o no artigo sobre Lobato, mas que pode ser
direito de expressão, tentando regulá-lo a ainda mais desenvolvida. Todas essas ques-
ponto de controlar seu conteúdo. Tem razão tões devem ser deixadas, por ora, para con-
a ex-ministra da Cultura Ana de Hollanda ao tribuições futuras.

Revista USP • São Paulo • n. 115 • p. 51-66 • outubro/novembro/dezembro 2017 65


dossiê politicamente correto

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66 Revista USP • São Paulo • n. 115 • p. 51-66 • outubro/novembro/dezembro 2017


textos
Um Plano Marshall para
os pobres ou os caminhos
da modernização brasileira

Q
Antônio Pedro Tota

uando a Segunda Guerra Mundial acabou,


a Europa estava, literalmente, arrasada. A
Europa Oriental tinha sido ocupada pelo
Exército Vermelho, aumentando o fosso
entre os antigos aliados. A parte ocidental,
que havia sofrido um pouco menos, estava
paralisada pela crise fiscal e monetária. Os
Estados Unidos saíram fisicamente intactos
do conflito e, indiscutivelmente, muito mais
ricos e poderosos. No entanto, o destino do
Velho Continente que enfrentava fome, frio
e doenças era objeto de atenção especial dos
anglo-americanos.

ANTÔNIO PEDRO TOTA é professor


titular de História Contemporânea
da PUC-SP e autor de, entre outros,
O Imperialismo Sedutor (Companhia das Letras).

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textos / Homenagem

Havia divergências entre os policy makers e as habilidades da humanidade serão usa-


estadunidenses quanto à melhor política a dos para aliviar a pobreza desses povos. Os
ser adotada em relação à Alemanha, por Estados Unidos estão entre as lideranças de
exemplo. O chamado Plano Morgenthau, que nações que dominam as técnicas científicas
pregava a pastoralização da Alemanha, foi e o desenvolvimento industrial. No entanto,
suplantado pela corrente que sugeria ajuda os recursos materiais que nós podemos pôr
material aos países combalidos. à disposição para dar assistência a outros
Os Estados Unidos lançaram um auda- povos são limitados. Mas nosso conheci-
cioso plano para recuperar a economia eu- mento técnico é muito grande e inexaurí-
ropeia: o European Recovery Plan (ERP), vel... O velho imperialismo – exploração
mais conhecido pelo nome do secretário de para lucros estrangeiros – não tem lugar
Estado, George Marshall. em nossos planos”1.
Truman, eleito presidente em 1948, incluiu
no seu discurso de posse no ano seguinte O discurso de Truman, pronunciado du-
uma espécie de prêmio de consolação para rante sua posse e pouco mais de um ano
os que não foram contemplados pela gene- depois do anúncio do Plano Marshall, é um
rosa soma de cerca de 12 bilhões de dólares importante referencial da política dos EUA
destinados aos europeus. Os não contem- para a América Latina. Na verdade, não foi
plados eram os países não desenvolvidos, dirigido unicamente à América Latina, mas
ou underdeveloped (Andrade, 2015), palavra sim a todo o mundo subdesenvolvido. Para a
usada por Truman no documento de janeiro Europa foram oferecidas condições concretas
de 1949; alguns estudos indicam ter sido para recuperação. Para as áreas subdesen-
essa a primeira vez em que a palavra foi volvidas, promessas de um mundo em que
usada. A melhor tradução ainda é “subde- a tecnologia seria a quimera salvacionista.
senvolvido”, que prevaleceu até recentemente Promessas anti-imperialistas de uma potên-
quando adotamos o conceito mais compor- cia imperialista de novo tipo. Nas palavras
tado – ou politicamente correto – “em de- de Dean Acheson, secretário de Estado de
senvolvimento”. Truman, “[...] use material means to a non-
O “prêmio de consolação” a que me referi -material end”2.
foi o chamado Ponto Quatro, um plano de Resumindo, terminado o conflito, os Esta-
governo pelo qual os Estados Unidos prome- dos Unidos voltaram-se mais para a Europa
tiam ajudar áreas atrasadas (underdeveloped) do que para a parte sul do continente ame-
com seu conhecimento tecnológico. Truman ricano. O Ponto Quatro esperava compensar
resumiu-o com as seguintes palavras: isso? Nos últimos dias do governo Dutra
(1945-1950), foi assinado um acordo de coo-
“Nós devemos iniciar num novo e corajoso
programa para levar nosso avanço técnico,
científico e o grande progresso industrial às 1 Truman Inaugural Address, January 29, 1949, Public
áreas subdesenvolvidas que necessitam de Papers of the President, 1949, pp. 114-5 apud Gilman
(2003).
melhorias para crescer... Pela primeira vez
2 “Point Four”, Office of Public Affairs, Department of
na história o conhecimento, as conquistas State apud Gilman (2003).

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peração técnica. No segundo governo Vargas, com recursos fabulosos, com uma popula-
o Acordo Básico de Cooperação Técnica, de ção de mais de 40 milhões de habitantes,
maio de 1953, esperava dar continuidade ao com projeções para dobrar a cada 20 ou 25
anterior. Vários convênios foram protoco- anos. E disse também que o Brasil poderia,
lados nos anos seguintes, como ensino de num futuro, se equiparar aos Estados Uni-
técnicas para controladores de voo, técnica dos como fornecedor de alimentos para a
de construção ferroviária, etc. Houve um Europa faminta do pós-guerra. Era um pou-
considerável aumento do volume de comér- co exagerada a avaliação do estadunidense.
cio e ajuda ao subcontinente. No entanto, os Talvez ele estivesse concordando, em parte,
resultados não chegaram a ser determinantes com Nelson Rockefeller, que achava que as
para uma política de modernização; além medidas mais marcantes para modernizar
disso, os projetos eram criticados tanto por o Brasil haviam sido tomadas por Vargas
setores nacionalistas como os da esquerda. e sua equipe, em especial com o Estado
Como se não bastasse não alcançarmos a Novo. Embora Vargas não tenha mudado a
posição da Europa ocidental, passamos a estrutura agrária do país, o próprio Nelson
ser chamados de áreas subdesenvolvidas, o avaliava: “O serviço iniciado em 1937 no
que, ironicamente, sugeria que poderíamos terreno econômico e social tem alcançado
um dia dispensar o prefixo “sub”. os melhores resultados”3.
Os anglo-americanos não acreditavam que Berle continuou a exposição afirmando
a União Soviética representava um grande que não era recomendável interpretar o Bra-
risco militar, mas tinham certeza de que sil tendo somente os Estados Unidos como
os soviéticos estavam determinados a des- modelo. Isto porque, disse ele, “mesmo o
truir a credibilidade dos EUA na periferia brasileiro iletrado procura sintetizar a vida
subdesenvolvida, onde os anglo-americanos mais de um ponto de vista estético do que
tinham alianças políticas e econômicas (La- pela praticidade. Onde um americano insiste
tham, 2000, pp. 2 e segs). O Brasil era um em um produtivo sistema de fornecedor de
desses aliados. água para uma cidade, um brasileiro mos-
tra muito mais interesses em embelezá-la”
UMA PROPOSTA PARAESTATAL (Adolf, 1946). O anglo-americano continuou
seu argumento que esperava enriquecer o
entendimento de nosso país, enfatizando
No dia 3 de abril de 1946, seis meses o aspecto solidário e generoso do povo
antes de desembarcar no aeroporto Santos brasileiro. Notou também que havia uma
Dumont, no Rio de Janeiro, Nelson Rocke- forma de cooperação entre os mais pobres
feller convidou Adolf Berle para fazer uma que amenizava certas tarefas mais pesadas.
palestra no Council on Foreing Relations, Nisso ele percebia que havia algumas dife-
em Nova York. Ele esperava que o antigo renças com os norte-americanos, marcados
alto funcionário – e um dos brain trust – do pelo individualismo. Outra diferença dava-
governo Roosevelt explicasse melhor como
era o país e seus habitantes. Berle começou
dizendo que o Brasil era um grande país 3 Gazeta do Rio Pardo de 16 de novembro de 1952, p. 1.

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textos / Homenagem

-se, segundo Berle, nas camadas mais altas atenção dada, no imediato pós-guerra, pe-
da sociedade. Aqui havia certo refinamento lo governo anglo-americano ao Brasil, im-
estético e intelectual, o que não acontecia portante aliado durante o conflito. Quando
lá com a mesma frequência. Para ele, os es- era coordenador do Office of Inter-American
tadunidenses estavam mais bem preparados Affairs (OCIAA), o grupo do jovem mi-
para transitar no campo da técnica. E os lionário queria aproveitar a experiência das
brasileiros esperavam usufruir desse conhe- relações interamericanas durante a guerra
cimento. Isso nos faz pensar como Nelson para a modernização do país. Com ajuda
Rockefeller parecia antever a proposição do e cooperação de parcela da elite, esperava
chamado Ponto Quatro de Truman, anunciado difundir os princípios políticos, econômi-
em sua posse menos de dois anos depois. cos e ideológicos do americanismo. Fundou
Aliás, assessores do presidente americano duas instituições: a American International
emprestaram algumas ideias do grupo do Association (AIA), com fins filantrópicos, e
magnata do petróleo. a International Basic Economy Corporation
Aqui reside um paradoxo. Nelson pro- (IBEC), para gerir os negócios em geral.
curava ter os Estados Unidos como modelo Na agricultura e na pecuária, criou con-
para modernizar o Brasil e Berle parecia dições para o aperfeiçoamento da cultura
dizer que seria melhor ir com mais cautela de sementes de milho híbrido, promoveu
e, talvez, mesclar parte da cultura do ame- pesquisas com novas qualidades de café,
ricanismo com a cultura ibero-americana/ fez experiências com pastagens especiais
brasileira. Nisso Berle parecia, ironicamente, para gado, novas raças de porcos, criação
aproximar-se de um Oliveira Vianna. Segun- extensiva de frangos, fabricação de adubos
do a leitura de José Murilo de Carvalho, a e ração para animais. Se fosse detectada a
formação do cidadão brasileiro de Vianna necessidade de se preparar grandes extensões
“devia passar [...] pela implantação de uma de terra para plantar, a Empresa de Máqui-
sociedade cooperativa [...]” (Carvalho, 1993). nas Agrícolas (EMA) empregaria tratores,
Pode-se dizer que Vargas usou algu- arados e colhedeiras para facilitar a tarefa
mas das ideias do americanismo para o dos agricultores. A Helico, uma empresa de
take off modernizador brasileiro durante helicópteros, pulverizaria produtos para fer-
a guerra, tirando vantagens das relações tilizar e combater as pragas das plantações.
com os estadunidenses. A IBEC Technical Service faria pesquisas
Nelson Aldrich Rockefeller, como que para a introdução de novas gramíneas pa-
antevendo as dificuldades – em grande par- ra pastagem e formas mais adequadas de
te representadas pela burocracia do Depar- combate à praga do café.
tamento de Estado e instituições como o Criou ainda a Associação de Crédito e
Eximbank –, iniciou uma proposta pessoal Assistência Rural (Acar), inicialmente em
de cooperação com o Brasil, onde desem- Minas Gerais, que fornecia ajuda financeira
barcou em novembro de 1946 com muitos aos pequenos agricultores para modernizar
projetos em sua bagagem. a agricultura. Sua inspiração foi a Farmers
A visita ao país estava ligada a um Security Administration, proposta por Roo-
projeto que pretendia compensar a pouca sevelt, que salvou os pequenos agricultores

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americanos da ruína (Reich, 1996, p. 426). A uma unidade, mas mantém a distinção. “Uni-
Acar também ensinava rudimentos de higie- dos, mas distintos, como soldados de pelotão”
ne para os agricultores brasileiros. Quando (Tota, 2000, pp. 192-3). Nós oferecemos certa
Juscelino Kubitschek foi eleito presidente, resistência às ideias acabadas anglo-ameri-
assinou acordo com Nelson Rockefeller para canas de modernização que se confundem
estender a Acar para todo o Brasil. com americanização/americanismo.
Sem dúvida, os projetos de Nelson não A Ibero-América, para usar o conceito
foram aceitos com facilidade e encontraram preferido de Richard Morse, em seu semi-
resistências ante a interpretação simplifica- nal O Espelho de Próspero, parece entender
dora que o americano tinha para contribuir a nossa modernização de uma forma mais
com a modernização norte-americanizada híbrida, mais complexa.
do país (Da Silva, 2015, pp. 29-30). Os teóricos anglo-americanos da mo-
dernização sugerem, como afirmei acima,
IBERISMO OU AMERICANISMO? que a modernização deve ser entendida
como uma variante da americanização,
ou melhor, da anglo-americanização. Os
Podemos dizer que o Brasil não aceitou Estados Unidos vistos, de uma forma ou
totalmente os projetos do estadunidense. Ali- de outra, como modelos a serem seguidos
ás, segundo Luís da Câmara Cascudo, arguto para combater o atraso.
observador da cultura brasileira, indicou um O moderno como elevação do nível de
caminho para interpretar as relações entre vida para minimizar a distinção de classes,
os EUA e o Brasil, lembrando que as trocas escrevia Edward Shils na década de 1950,
culturais não são tão diretas e mecânicas. processo que pode ser sintetizado numa po-
Para ele, um povo só incorpora um de- lítica de industrialização (com ajuda do Es-
terminado valor cultural de outro povo se tado), exaltação ao racionalismo, expertise,
esse valor fizer sentido no conjunto geral da discurso que se difundiu no meio acadêmico:
sua cultura. Isso significa que a assimilação modernização se confunde com desenvolvi-
cultural não se faz por imitação, mas por mento (Gilman, 2003, pp. 1-3). Na verda-
um complicado processo de recriação. A de, era uma época de “hegemonia” do que
assimilação cultural nunca ocorre em blo- se chamou de consenso liberal, isto é, uma
co. Um povo não aceita todos os elementos base para um sistema comum de crenças
culturais do outro, mas apenas uma parte, que se solidificou com as vitórias na luta
e, mesmo assim, dando a eles novos sen- contra os nazistas. E foi nos anos do pós-
tidos. Essa assimilação envolve, portanto, -guerra que o paradigma do consenso liberal
uma escolha e uma recriação. se consolidou, difundindo um estilo de vida
Resistência, antropofagia, condição e sin- que incorporava a vida pacata da suburbia
cretismo ocorrem simultaneamente. Ou seja, (Levittown), representada nos programas de
a assimilação cultural não é uma simples rádio e televisão do tipo Papai Sabe Tudo.
imitação, como acentuam alguns de nossos A contracultura ficava isolada na aca-
críticos marxistas. A americanização “não é demia, com Wright Mills, e na cultura de
reprodução, nem repetição [...]”. Ela forma massas, com James Dean como um outsider

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textos / Homenagem

de Hollywood ou os beats de Jack Kerouac avam intactas com mudanças de governos e,


na literatura marginal. O ponto comum era às vezes, se transformavam em ditaduras e/
a rejeição à propriedade e à complacência. ou governos militares em vez de adotarem
E ainda havia os músicos heroinômanos do o modelo anglo-americano de democracia
bebop que desafiavam a formalidade discipli- (Latham, 2000, pp. 1-5).
nada das canções dançantes das big-bands. Poderíamos fazer uma longa lista das
Mas a maioria estava feliz com a Amé- obras sobre teorias da modernização pro-
rica das possibilidades, com a estrutura da duzidas nos Estados Unidos. No entanto,
sociedade americana, considerada saudável essas teorias não dão conta de explicar a
e inquestionável. Tudo isso reforçado pe- modernização de países como o Brasil. O
la crença de que o capitalismo selvagem que significa modernização para nós não
e brutal havia cedido lugar a um sistema chega a ser exatamente a mesma coisa para
verdadeiramente democrático e com opor- os anglo-americanos.
tunidades iguais para todos. Os próprios brasileiros passam um bom
Pensava-se que a abundância e a demo- tempo de nossa história tentando entender
cracia, ligadas à tecnologia e ao crescimen- essa situação paradoxal: ora defendíamos a
to econômico, davam oportunidade a todos sociedade tradicional, ora a modernidade a
e, por isso mesmo, dissolviam o conflito qualquer custo. Nossos teóricos da moder-
de classes, transformando os blue collars nidade, com base em modelos ocidentais do
numa numerosa classe média e deixando liberalismo ou do marxismo, foram classi-
no esquecimento uma possível consciência ficados por alguns estudiosos como ameri-
operária. Qualquer problema social que pu- canistas e os que queriam manter uma mo-
desse aparecer seria resolvido racionalmente, dernização com raízes em nosso passado
com programas construídos por especialistas foram definidos como iberistas.
com know-how tecnológico necessário. A Nelson Rockefeller chegou perto de en-
única ameaça era representada pelos comu- tender essa nossa situação pendular, ou bi-
nistas (cf. Maland, 1990). polar, para abusar do termo da psiquiatria.
Esse consenso liberal estava adequado Citamos no começo deste trabalho um en-
ao conceito de modernização de um Walt contro promovido por Rockefeller no Council
Rostow, que achava que o caminho para pro- on Foreign Relations. O guest speaker foi,
mover o progresso global seria guiado pelos como vimos, Adolf Berle. Quando Nelson
EUA, ocupando o vácuo das velhas potências o apresentou à plateia, lembrou que Berle
imperialistas europeias. O caminho certo foi embaixador no Brasil “quando o Brasil
para a modernização passava pela história estava passando por um período de uma
anglo-americana. Como que concordando ditadura esclarecida para uma democracia”
com Cascudo, havia ressalvas: para muitos (Adolf, 1946).
teóricos mais sensíveis, a modernização não Nelson usou a palavra “esclarecida” para
se dava por uma simples transposição. Não explicar a ditadura de Getúlio Vargas. Dota-
era aconselhável forçar o implante de demo- do de saber, de conhecimentos é como um
cracias em sociedades arcaicas. As estruturas dicionário de português do Brasil explica a
sociais de países subdesenvolvidos continu- palavra. Já em um dicionário estadunidense,

74 Revista USP • São Paulo • n. 115 • p. 69-76 • outubro/novembro/dezembro 2017


a definição é mais abrangente: “proporcionar Na instigante interpretação de Luiz Wer-
a capacidade intelectual e espiritual de dis- neck Vianna, a ordenação corporativa de
cernir a verdadeira natureza das coisas”4. E Oliveira Vianna teria o mérito de, numa “lar-
acrescenta, usando as palavras de Thomas ga operação” transformista, abrir caminho
Jefferson, “esclarecendo-se o povo, a tirania “ao moderno sem se subverter”. Isto é, sem
desaparece”. Aqui, parecia que o mecanismo perder as características singulares da nossa
se dava às avessas. história para o americanismo. O passado
Em 1920, o pensador conservador brasi- controlaria o moderno, “e em um processo
leiro Oliveira Vianna escreveu que a singu- de modernização, sob o controle social e
laridade brasileira tem raízes nas relações político das forças da tradição, bloqueia a
sociais, em especial no mundo agrário. Ele afirmação do moderno e da modernidade”
colocava-se numa posição de valorização do (Vianna, 1997, p. 161).
passado da história do país que o afastava O Plano Marshall para os pobres ou as
da posição dos americanistas. Estes enten- dificuldades para se entender a moderniza-
diam, por sua vez, o nosso passado como ção brasileira, usada no título deste texto,
uma condenação, isto é, a herança portu- passam por obstáculos que dificultam a
guesa seria uma carga de pragas. Para os compreensão. Nosso “americanismo” se
últimos, o despotismo encarna o atraso; para concentra numa política de “imitação” e
o iberista Vianna, seria uma característica de de empréstimos das técnicas estaduniden-
nossa formação histórica e social. Para ele, ses para acelerar a modernização. Nos-
so iberismo recusa algumas medidas do
“[...] uma história singular resultaria também americanismo e outras opções “estrangei-
numa democracia singular: ‘o verdadeiro ca- ras” como estranhas à nossa singularida-
minho da democracia no Brasil’ estaria na de. Resumidamente, podemos dizer que a
democracia corporativa, regime de elaboração intelligentsia brasileira continua oscilando
legislativa superior [...] ao atual baseado na sem conseguir fazer uma fusão entre as
famosa soberania das urnas, na democracia diferentes interpretações dos americanistas
representativa [...]”. e dos iberistas.

4 “To give spiritual or intellectual insight to”, in The Ameri-


can Heritage Dictionary of the English Language, 2006.

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Os Contos antes de Sagarana:
desdobramentos da participação de
Guimarães Rosa e Graciliano Ramos
no Prêmio Humberto de Campos

E
Gustavo Milano e Thiago Mio Salla

m 1936, a Livraria José Olympio Editora criou


o Prêmio Humberto de Campos, que prometia
ao vencedor a quantia de três contos de réis
e a publicação imediata da obra vencedora.
Era um concurso voltado ao gênero conto,
batizado com esse nome para homenagear a
figura do escritor maranhense Humberto de
Campos (1886-1934), que havia estabelecido
parcerias e aberto inúmeras portas para José
Olympio, depois de a livraria-editora deste
ter sido transferida para o Rio de Janeiro, no
início de 1934 (Hallewell, 2005, pp. 436-9).

GUSTAVO MILANO é pós-graduando na


Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP.

THIAGO MIO SALLA é professor


do curso de Editoração da ECA-USP.

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textos / Homenagem

Nas palavras de José Olympio, no proces- ilustrador da Livraria José Olympio Edito-
so de criação do prêmio, avultava também ra. Este, valendo-se do pseudônimo Plácido
o desejo de servir à literatura brasileira, da Assunção, obteve, com o original Maria Pe-
qual ele se mostrava um sincero admirador: rigosa, a preferência do júri, agora formado
por Peregrino Júnior, Prudente de Moraes
“Basta notar que a nossa casa [a Livraria José Neto, Marques Rebelo, tríade que esteve na
Olympio Editora] é a única no Brasil onde a edição inaugural da premiação, além de Dias
literatura brasileira é a grande base editorial, da Costa e Graciliano Ramos.
onde o número de traduções é menor que o Segundo a ata dessa segunda edição do
de livros originais brasileiros. E, ainda mais, Prêmio Humberto de Campos, datada de
fizemos esse concurso visando a incentivar o 2 de março de 1939, depois de sucessivos
gênero literário atualmente mais abandonado escrutínios, dos 63 trabalhos inicialmente
no Brasil: o conto” (Olympio, 1936, p. 5). inscritos restaram 17, em seguida nove, seis,
quatro e, finalmente, os originais Maria Pe-
Da comissão julgadora dessa primeira rigosa e Contos1. Entre os membros do júri,
edição do prêmio fizeram parte Peregri- Graciliano Ramos e Dias Costa votaram no
no Júnior, Prudente de Moraes Neto, Jorge primeiro, ao passo que Prudente de Mora-
Amado, Marques Rebelo e Arnaldo Tabaiá. es Neto, e Marques Rebelo optaram pelo
O vencedor foi Telmo Vergara, com o seu segundo. “Como o voto do sr. Peregrino
Cadeiras na Calçada (Rio de Janeiro, Jo- Júnior poderia decidir o resultado final do
sé Olympio, 1936), que obteve tal triunfo concurso, pediu esse membro da comissão
em meio a um conjunto de mais de oitenta um prazo para ler o original nº 11 (Contos,
inscritos. Apesar da promessa de ser anual, de Viator), votando logo depois de terminada
o prêmio teve apenas mais duas edições, a leitura” (Ata da Reunião, 1939). Dois dias
separadas entre si por intervalos distintos: depois, Peregrino Júnior manifestou seu vo-
a segunda em 1938 e a terceira em 1942. to, “ficando assim o livro Maria Perigosa,
Instabilidades políticas como a instauração de autoria do sr. Luís Jardim, vencedor do
do Estado Novo no Brasil, no início de 1937, Prêmio Humberto de Campos de 1938” (Ata
e a Segunda Guerra Mundial, a partir de da Reunião, 1939).
1939, inevitavelmente complicaram a reno- Para além do texto frio da ata lavrada e
vação periódica do concurso. assinada pelos jurados, conhecem-se ainda
Na segunda edição do prêmio, no entanto, um depoimento de Marques Rebelo (1939)2
dentre os inscritos, estava aquele que, em e dois de Graciliano Ramos (1962, pp. 155-6
perspectiva diacrônica, seria o concorrente e 200-2), publicados logo após a divulgação
mais ilustre de todas as edições do refe-
rido concurso: João Guimarães Rosa, que,
encoberto pelo criptônimo Viator, alcançou 1 Soube-se, depois de divulgados os resultados, que
apenas a segunda colocação, com um vo- entre os inscritos da segunda edição do prêmio
estava também o futuro deputado federal, e pos-
lume intitulado tão somente Contos. Não teriormente governador do estado da Guanabara,
havia formalmente um segundo colocado, Carlos Lacerda, com os contos de Uma Luz Pequenina
(Villaça, 2001, p. 133), não obtentor de relevante apre-
mas ele ficou atrás de Luís Jardim, então ço por parte dos jurados.

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do vencedor, os três aparentemente informais, de Viator que integram os Contos: “Uma
escritos e publicados pela livre iniciativa de História de Amor” (doutor), “Questões de
cada um. Além desses, houve mais um artigo Família” (professora) e “Bicho Mau” (in-
do autor de A Estrela Sobe (Rebelo, 1946) jeções antiofídicas). No entanto, pouco ou
e outros dois do escritor alagoano (Ramos, nada se sabe, em termos de crítica lite-
1962, pp. 249-52; 2012, pp. 179-184), nos rária e pesquisa acadêmica, sobre os dois
quais são mencionadas as participações de primeiros textos, pois não chegaram a ser
ambos como jurados no referido certame. incluídos em outra obra, seja publicada em
Em um deles, “Conversa de Bastidores”, o vida do autor, seja postumamente3. Não
romancista de Vidas Secas traz mais ele- obstante isso, as críticas que tais compo-
mentos a respeito da emaranhada votação: sições receberam, ao integrarem o origi-
nal Contos, tiveram papel angular para o
“Houve discussão e briga. No dia do jul- aprimoramento de todo o restante do livro
gamento, eliminadas composições menos que viria a ser Sagarana.
sólidas, ficamos horas no gabinete de Pru-
dente de Moraes hesitando entre esse vo- CONTOS, DE VIATOR
lume desigual [Contos, de Viator] e outro,
Maria Perigosa, que não se elevava nem
caía muito. Optei pelo segundo – e, em con- Em carta a João Condé, Guimarães Rosa
sequência, Marques Rebelo quis matar-me: narra sucintamente o processo de produção
gritou, espumou, fez um número excessivo dos textos que integraram os Contos e a ins-
de piruetas ferozes. Defendi-me com três crição de tal trabalho no Prêmio Humberto
armas: o doutor, a professora, as injeções de Campos de 1938:
antiofídicas. [...] Dias da Costa apoiou-me.
Prudente de Moraes sustentou Marques. E “Já pressentira que o livro, não podendo ser
Peregrino Júnior, transformado em fiel de de poemas, teria de ser de novelas. E – sen-
balança, exigiu quarenta e oito horas para do meu – uma série de histórias adultas da
manifestar-se. Escolheu Maria Perigosa – e Carochinha, portanto. [...] Bem, resumindo:
assim Luís Jardim obteve o prêmio Humberto ficou resolvido que o livro se passaria no
de Campos em 1938” (Ramos, 1962, p. 250). interior de Minas Gerais. E compor-se-ia
de 12 novelas. Aqui, caro Condé, findava a
As “armas” mobilizadas por Graciliano
estão, respectivamente, em três escritos
3 Trata-se de composições ainda inéditas em livro que
integram o Fundo João Guimarães Rosa do Arquivo
do Instituto de Estudos Brasileiros (cf. JGR-M-01,01).
2 Nesse texto, publicado na revista Dom Casmurro, em 4 Além desses dois textos, vale destacar que o posfá-
de março de 1939, Rebelo assinala que não havia sido cio “Porteira de Fim de Estrada”, aposto ao fim do
feita a ata do concurso e que, caso ela viesse a ser volume Contos submetido por Guimarães ao referido
produzida, não contaria com a sua assinatura. Entre- certame, traz importantes informações, sobretudo
tanto, o documento que consta do fundo Livraria José sobre o livro Tutameia (Rio de Janeiro, José Olympio,
Olympio Editora da Fundação Casa de Rui Barbosa foi 1967). A respeito do conto “Bicho Mau”, há uma ver-
lavrado dois dias antes da publicação do artigo do são profundamente modificada dele que compõe
autor de Oscarina e nele se encontram as assinaturas a obra póstuma Estas Estórias (Rio de Janeiro, José
de todos os membros do júri menos a dele. Olympio, 1969).

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fase de premeditação. Restava agir. Então, garantia de que, na prosa, o autor se sairia
passei horas de dias, fechado no quarto, can- tão bem quanto na poesia.
tando cantigas sertanejas, dialogando com Depois desse volume de poemas premia-
vaqueiros de velha lembrança, ‘revendo’ pai- do, tratava-se de um movimento audacioso
sagens da minha terra, e aboiando para um migrar tão rapidamente para a confecção de
gado imenso. [...] Lá por novembro, contratei um livro de prosa. Diz ele que começou a
com uma datilógrafa a passagem a limpo. escrever esses contos motivado pela sauda-
E, a 31 de dezembro de 1937, entreguei o de do interior de Minas Gerais, “lembran-
original, às 5 e meia da tarde, na Livraria ças e saudades de Cordisburgo e Itaguara
José Olympio. O título escolhido era ‘Sezão’; me fizeram escrever Sagarana” (Coutinho,
mas, para melhor resguardar o anonimato, 1965), dirá. Essas 12 “histórias adultas da
pespeguei no cartapácio, à última hora, este Carochinha” têm as suas raízes nessas du-
rótulo simples: ‘Contos’ (título provisório, as cidades mineiras com cujas terra, fauna
a ser substituído) por Viator. Porque eu ia e população Rosa nutriu relações íntimas.
ter de começar longas viagens, logo após” Mais especificamente, ele assinala que al-
(Rosa, 1999, pp. 377-9). guns contos “pertencem” a Cordisburgo
(“O Burrinho Pedrês”; “Corpo Fechado”;
E, no posfácio “Porteira de Fim de Es- “A Hora e a Vez de Augusto Matraga”; “Mi-
trada” presente no referido volume, Rosa nha Gente” e “Duelo”) e outros ele “deve”
complementa dizendo que essas 12 histórias a Itaguara (“A Volta do Marido Pródigo”,
“foram começadas e acabadas no formoso “Sarapalha”, “São Marcos” e “Conversa de
ano de 1937, precisamente entre 20 de maio Bois”) (Borba, 1946). Mediante esse tipo
e 4 de dezembro” (Viator, 1937). Fica evi- de afirmação, o autor deixaria de se colo-
dente nesse relato a aparente despreocupa- car no centro do processo narrativo: não
ção do escritor mineiro, que parece inventar seria ele, em princípio, o “dono” daquelas
um pseudônimo e um título quaisquer, sub- histórias, a única voz capaz de produzi-las.
metendo o seu original aparentemente sem Não por acaso, tal estratégia argumentativa
muitas pretensões. Como aduz Cecília de faria com que, em certo sentido, o artista se
Lara, “Guimarães Rosa afirma que se ins- assemelhasse a um transmissor impessoal
creveu [no Prêmio Humberto de Campos] de dados da realidade, ainda que os sele-
para que sua obra fosse avaliada, visto que cionasse, elaborasse e os narrasse segundo
não possuía quase relações literárias” (Lara, sua própria cosmovisão.
1996, p. 31). Os cenários pelos quais passou, Os Contos entregues para a avaliação do
os dramas que padeceu no sertão de Minas júri do Prêmio Humberto de Campos não
Gerais deixaram marcas indeléveis na sua se constituíam nos primeiros trabalhos em
fértil imaginação, e era preciso avaliar o prosa que Guimarães Rosa tornava públicos.
valor artístico desse material bruto, pois o Entre 1929 e 1930, ele publicara na revista
prêmio da Academia Brasileira de Letras O Cruzeiro, sem recorrer a pseudônimos,
que ganhara em 1936 com a sua primei- três contos fantásticos, vencedores de con-
ra obra, o livro de poemas Magma (Rio cursos promovidos pelo mesmo periódico
de Janeiro, Nova Fronteira, 1997), não era (Gama-Khalil, 2012, p. 144): “O Mistério

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de Highmore Hall”, de 7 de dezembro de de Viator foi questionado. Se Rosa chegou a
1929; “Chronos Kai Anagke”, em português hesitar em inscrever num concurso de contos
“Tempo e Destino”, de 21 de junho de 1930; um livro composto, como ele próprio disse,
e “Caçadores de Camurça”, de 12 de julho de de 12 novelas, não há registro disso. Mas o
1930; além desses, assinou o conto “Makiné”, ato de pespegar o título “Contos” na capa
publicado no suplemento dominical de O do volume, em vez de “Sezão”, pode ser
Jornal, em fevereiro de 1930. Esses quatro entendido como um ajuste de última hora,
escritos, que juntos constituem a sua estreia uma tentativa de adequação ao gênero tex-
na prosa literária, seriam compilados apenas tual pressuposto pelo concurso, apesar de o
em 2011, pela editora Nova Fronteira, no autor ter dito que a finalidade da alteração
livro Antes das Primeiras Estórias. Desse era tão somente “resguardar o anonimato”
modo, o original submetido ao certame não (Rosa, 1999, p. 379).
era a sua primeira aventura fora da poesia
propriamente dita; contudo, era a primeira
JUÍZOS CRÍTICOS
vez que Guimarães Rosa se punha a escrever
um livro em prosa e o submetia a escritores
e intelectuais de vulto. Marques Rebelo incensou os Contos, de
Todavia, a extensão das peças recolhidas Viator. Depois de dizer que o volume tinha
em Contos era, de certa maneira, inapro- sido “intensamente escrito”, vê nele “quali-
priada para o gênero conto, daí a grande dades excepcionais, não só de contista, co-
surpresa do júri e da crítica ao topar com mo de escritor propriamente. Conhecedor
um “cartapácio de quinhentas páginas dati- forte da vida brasileira, segurança absoluta
lografadas” (Ramos, 2012, p. 180). Na citada na exposição dos seus ambientes, diálogo
“Carta a João Condé”, como se viu, Rosa muito bem feito, elevação de ideias, bom
afirma que escrevera “12 novelas”, e o con- gosto” (Rebelo, 1939). Seu entusiasmo por
firma o juízo de Paulo Rónai: esse original foi tanto, que exigiu boas jus-
tificativas de quem discordara dele, ainda
“O gênero peculiar do autor é aliás a novela e que não se observasse do outro lado uma
não o conto. A maioria das narrativas reunidas veemência proporcional.
no livro são novelas, menos por sua extensão Surgiram, de fato, entre os membros
relativamente grande do que pela existência, do júri, dois grupos opostos, ambos com
em cada uma delas, de vários episódios – um líder à frente: Marques Rebelo apaixo-
ou ‘sub-histórias’, na expressão do escritor nadamente a favor de Viator e Graciliano
– aliás sempre bem concatenados e que se Ramos aparentemente contra ele. Rebelo
sucedem em ascensão gradativa. O gênero, confessa, em discurso na Academia Bra-
em suas mãos, alcança flexibilidade notável, sileira de Letras, na chamada “Sessão de
modifica-se conforme o assunto, adapta-se às Saudade”, realizada em 23 de novembro
exigências do enredo” (Rónai, 1946). de 1967, que passou dois anos sem falar
com Graciliano “por não ver um grande
Em nenhum dos depoimentos dos mem- escritor reconhecer outro grande escritor
bros do júri, entretanto, o gênero do original pelo rabinho que punha de fora” (Villaça,

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2001, p. 134), tal foi a indisposição gerada Graciliano afirmou, em 1939, que:
pela diferença de juízo.
Além dos depoimentos desses dois mem- “Em virtude da decisão do júri, muita gente
bros do júri, encontram-se apenas sumárias supõe que o concorrente vencido seja um
alusões a comentários de Prudente de Moraes escritor de pequena valia. Injustiça: apesar
Neto. Em artigo de 1939, Graciliano Ra- dos contos ruins e de várias passagens de
mos assinala: “Prudente de Moraes acha que mau gosto, esse desconhecido é alguém de
ele [Viator] fez alguns dos melhores contos muita força” (Ramos, 1962, pp. 155-6).
que existem em língua portuguesa” (Ramos,
1962, p. 156). De modo análogo, o jornalista Seu voto em prol de Luís Jardim – ou
Henrique Pongetti também menciona: “No melhor, contra Viator, como prefere Gra-
livro de Viator, Prudente encontrou dois dos ciliano Ramos – só se deu por conta de
dez melhores contos brasileiros, conforme “dois contos e algumas páginas campanudas”
nos declarou” (Pongetti, 1946). E Marques (Ramos, 1962, p. 155). A narrativa “Conver-
Rebelo acrescenta: “Causou-me singular sa de Bois”, por exemplo, foi considerada
impressão este livro [Contos, de Viator], o pelo escritor alagoano como “uma verda-
mesmo acontecendo com o sr. Prudente de deira maravilha” (Ramos, 1962, p. 156), o
Moraes Neto” (Rebelo, 1939). Assim, mais que enfraquece o posicionamento de quem
do que um opaco voto a favor de Contos, o interpretasse que, com esse voto, Gracilia-
que poderia significar uma falta de melhor no estivesse dizendo não haver talento em
opção, o renomado crítico literário Prudente Viator. Em seu depoimento, Ramos também
de Moraes Neto viu no autor em questão um apoiou a publicação do livro do autor des-
exímio escritor, rasgando-lhe elogios antes conhecido, tributou admiração a persona-
mesmo de conhecer o criador encoberto pelo gens como Joãozinho Bem-Bem, referiu-se
pseudônimo. ao autor como “um sujeito que sabe o que
Outra grande figura da literatura bra- diz e observou tudo muito direito” (Ramos,
sileira do século XX, Graciliano Ramos, 1962, p. 156); enfim, disse que “realmente
como se viu, votou de forma diferente. a escolha [entre Maria Perigosa ou Contos]
Nesse sentido, Cecília de Lara afirma que era bem difícil” (Ramos, 1962, p. 156).
ele, como membro do júri da edição de Dois anos depois, em 1941, talvez movido
1938, “não soube reconhecer o talento do por algum tipo de remorso e em atendimento
novato que se assinava ‘Viator’” (Lara, a uma sugestão de José Olympio (Ramos,
1996, p. 30). E a também pesquisadora 1962, p. 251), Graciliano retoma o caso ocor-
Cássia dos Santos diz que essa edição do rido e produz uma espécie de anúncio com
concurso “entrou para a história de nossa o objetivo de saber o paradeiro do ainda
literatura por ter reunido, em lados opostos, desconhecido Viator. Antes de o romancista
talvez os dois mais importantes romancis- alagoano assinalar, ao final do texto, que
tas do século passado: Graciliano Ramos “gratifica-se quem trouxer a esta redação o
e Guimarães Rosa” (Santos, 2012, p. 117; conto ‘Conversa de Bois’” (Ramos, 2012,
grifo nosso). Com relação a esses pontos, p. 182), ele rememora que, em Contos, “há
é legítima a discordância. coisas ótimas”; que o livro “sobe muito ou

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desce demais, nunca sendo medíocre”; que mesmo parâmetro avaliativo para repreender
“dos seus contos uns são melhores, outros o autor dos Contos:
são piores que os do escritor pernambuca-
no [Luís Jardim]”; que nele há “o diálogo “Os amores piegas dum engenheiro com
vivo, a descrição exata, a narrativa segura. uma professorinha de grupo escolar, a morte
Conhecimento perfeito do meio e dos as- inverossímil de um médico transformado,
suntos tratados”; e que, “além de conhecer por desgostos excessivos, em trabalhador
bem os homens e a terra, esse Viator é um de enxada, algumas páginas de mau gosto
animalista notável4” (Ramos, 2012, p. 181). que chegam à declamação, à propaganda,
Como se percebe, não faltaram elogios tam- ao arrazoado. Numa delas quase nos avisa
bém de Graciliano Ramos ao concorrente de que aquilo não é anúncio de soro antio-
de Maria Perigosa. fídico” (Ramos, 2012, p. 180).
Para um autor disposto a retratar a vida
no interior do país, era imprescindível, na De fato, quando se examina, por exemplo,
visão do escritor alagoano, que tal literato o conto “Uma História de Amor” (“a morte
adotasse uma postura crítica e tivesse ver- inverossímil de um médico transformado,
dadeiro conhecimento do ambiente e das por desgostos excessivos, em trabalhador de
pessoas de lá, não “confiando demais na enxada”), as ressalvas de Graciliano se mos-
imaginação, que [conforme se depreende, tram procedentes. A história é contada em
sobretudo, das crônicas do autor de Caetés] primeira pessoa por um médico que então se
sempre leva à criação de produtos fantasio- encontrava num distante e pequeno arraial
sos” (Salla, 2016, p. 165). Em conformidade no interior de Minas. Em suas andanças pela
com essa ênfase testemunhal, o ficcionista região, o narrador-protagonista trava contato
em questão também deveria conceder pri- com José-Luiz, um capiau que lhe parecia
vilégio à observação na tessitura de uma diferente dos demais, cujo olhar sugeria que
nova dizibilidade sobre o espaço sertanejo, ele já “sofrera intelectualmente”. Segundo o
que, tendo em vista o efeito de real pre- relato do fazendeiro Nhô-Virgílio, quando
tendido, procurasse se afirmar como uma chegara para trabalhar em sua propriedade,
espécie de documento. Se Graciliano Ramos José-Luiz não tinha calo nas mãos, fazen-
utiliza esse pressuposto poético para realçar do “força para falar atrapalhado que nem
as qualidades de Viator, que se destacava a gente” (Viator, 1937). Na verdade, o no-
por produzir narrativas “reais, nacionais e me verdadeiro de tal sujeito seria Adalberto
bárbaras” sem as falsidades costumeiras no Vafro, um médico que em função de uma
trato do sertão (Ramos, 2012, p. 181), o ro- desventura amorosa viera a enterrar-se vivo
mancista nordestino também se vale desse naqueles cafundós, “como um anacoreta sob
os votos de pobreza, castidade e humildade”
(Viator, 1937). Tal caráter postiço da per-
sonagem, que se autoimpõe como desterro,
4 Nesse sentido, Graciliano seria um dos primeiros a
assinalar favoravelmente o parentesco das novelas de num gesto de suposto heroísmo, viver como
Rosa com certas produções do escritor inglês Rudyard
Kipling, aproximação que marcaria, em 1946, a primei-
um simples sertanejo, acabava por conferir
ra recepção crítica de Sagarana (Bonomo, 2011, p. 37). certo caráter pitoresco e falso ao matuto,

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textos / Homenagem

algo que contrariava as diretrizes literárias nados no Diário de Guerra, que integra o
do autor de S. Bernardo quanto à repre- Arquivo Henriqueta Lisboa do Acervo de
sentação literária dos homens do hinterland Escritores Mineiros da Universidade Fe-
brasileiro (Ramos, 2012, p. 115). deral de Minas Gerais (Rosa, 1938-1941)5.
Em 1944, quando Ramos e Rosa se co- Na altura de 1942, quando Brasil e Ale-
nheceram pessoalmente, ambos estavam manha romperam relações diplomáticas, e
de acordo a respeito da má qualidade de Guimarães Rosa e outros funcionários do
três dos Contos: além de “Uma História de Itamaraty na Alemanha foram trocados por
Amor”, os também já mencionados “Bicho diplomatas alemães no Brasil, Rosa se apro-
Mau” e “Questões de Família”. Não se pode xima do também diplomata Cícero Dias, a
presumir, como ficou exposto, que Rosa te- quem deu a ler os seus contos, recebendo
nha mandado apenas a porção mais cuidada deste ânimo para publicá-los (Perez, 1968,
de sua produção literária ao julgamento do p. 31). De volta ao Rio, entrou em contato
Prêmio Humberto de Campos, nem um tra- com Marques Rebelo para marcar um almo-
balho demoradamente burilado. Conforme ço, chamando também Prudente de Moraes
declara o próprio Viator no posfácio aos Neto, que não pôde estar presente. No já
Contos (Sezão), em se tratando da capina citado discurso na ABL, Marques Rebelo
e da poda dos textos apresentados “muita relata o acontecimento:
moita má ainda era a ser foiçada” (Viator,
1937). Tal caráter ainda transitório da cole- “Desconfiado, [Rosa] passou-me uma sabatina
tânea, e não uma suposta cegueira crítica de em regra sobre a leitura do livro, como se
Graciliano naquele momento, parece estar eu não o tivesse lido e defendido. Acalma-
na base do voto contrário que ela recebe- do, pediu-me conselhos, a que respondi ser
ra do romancista alagoano. Para além das muito humilde para aconselhar um escritor
virtudes dos Contos, este último concedeu que se revelava daquela maneira superlativa,
excessiva importância aos textos considerados mas, usando da minha modesta experiência
ruins, que compunham somente um quarto no trato literário, sugeria que ele cortasse
da obra. O critério, pois, assumido por ele uns dois contos, e fizesse em outros uns
foi o da oscilação no que diz respeito à apuros que achava necessários para a melhor
qualidade literária dos contos do volume, e compreensão de certos trechos um tanto em-
não o mérito elevado de parte considerável bolados, digamos bizantinos ou gongóricos.
do conjunto. Respondeu-me que era sua intenção refazer
De fato, o escritor mineiro não esperava o volume [...]” (Rebelo, 1968, p. 137).
grandes aplausos ao seu original. Em 1938,
como cônsul-adjunto, foi a Hamburgo, na
Alemanha, onde ficou “por quatro anos e
5 Para este artigo, entretanto, consultou-se aquela que
meio” (Coutinho, 1965), até 1942. De lá, se imagina ser a cópia de tal documento presente no
sabendo do resultado desfavorável obtido acervo João Guimarães Rosa do IEB/USP. Na entrada
de 30 de maio de 1940 desse diário, por exemplo,
pelos Contos no concurso, empreendeu a em meio ao alerta de bombardeios na Alemanha
reformulação do conjunto de textos. Alguns em guerra, o escritor registra: “Estou trabalhando,
corrigindo o último trecho de ‘O Burrinho Pedrês’.
relatos referentes a tal processo são mencio- Mugiram as sirenes. Alarme!” (Rosa, 1938-1941, p. 17).

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Em 1941, Graciliano supõe que, após 1946, pp. 7-8; Rego, 1946; Grieco, 1946;
a derrota, o autor de Contos “amoitou-se, Torres, 1946; Milliet, 1946), até que rece-
naturalmente indignado; maldizendo o jú- beu o que Sônia van Dijck Lima chama de
ri, pelo menos parte dele, até certo ponto o “batismo crítico, ministrado por Álvaro
com razão. Nada mais precário que essas Lins” (Lima, 2002, p. 197):
escolhas por sufrágio. Não existe um crité-
rio, há critérios, e isto ocasiona desordem” “De repente, chega-nos o volume, e é uma
(Ramos, 2012, p. 180). Em uma coletânea grande obra que amplia o território cultural
de contos, é natural que haja disparidade de uma literatura, que lhe acrescenta alguma
no nível dos textos, que uns sejam melho- coisa de novo e insubstituível, ao mesmo
res que outros. E como o prêmio vai para tempo que um nome de escritor, até ontem
o conjunto deles, pode-se criar uma divi- ignorado do público, penetra ruidosamen-
são entre os membros do júri, separando- te na vida literária para ocupar desde logo
-se aqueles que têm receio de rejeitar bons um dos seus primeiros lugares. O livro é
trabalhos daqueles que se recusam a votar Sagarana e o escritor é o sr. J. Guimarães
num livro manchado com alguns erros. Foi Rosa” (Lins, 1946, p. 2).
isso o que aconteceu na segunda edição do
Prêmio Humberto de Campos, pois também Com a publicação de Sagarana, Graci-
Marques Rebelo apontou falhas no livro de liano Ramos e Marques Rebelo também se
Viator, apesar de ter votado nele e de o ter pronunciaram na imprensa (Rebelo, 1946;
defendido energicamente. Ramos, 1962, pp. 249-52), recepcionando de
A reestruturação de um material tão ex- modo francamente favorável o novo lança-
tenso e escrito já havia alguns anos durou, mento. Em entrevista datada de 1946, o jor-
como disse Rosa, “cinco meses de reflexão nalista Ascendino Leite fala que João Gui-
e de lucidez” (Rosa, 1999, p. 379), ou, como marães Rosa está “hoje situado, por opinião
disse em outro momento, “escrevi em sete me- unânime dos críticos, no plano em que se
ses e retoquei-o em quatro” (Coutinho, 1965). encontram os grandes escritores deste país”
Em oposição aos “sete meses de exaltação, (Leite, 1946, p. 3). Assim, ele entrava no
de deslumbramento” da escrita, a reescrita se cânone para nunca mais de lá sair.
baseou num trabalho mais consciente e siste- Desse lugar de destaque, Rosa não deixou
mático, já assimilada a experiência do fracasso de manifestar, ainda que na esfera íntima,
no concurso. E é confiando nos conselhos de admiração e gratidão a Graciliano, tal co-
Marques Rebelo – cujas dicas ecoavam os mo se pode observar nas palavras por ele
juízos críticos de Graciliano Ramos, inclusive apostas na folha de rosto do exemplar da
com a supressão dos mesmos textos, a qual primeira edição de Sagarana com que o
foi feita efetivamente pelo escritor mineiro artista mineiro presenteia o romancista ala-
– que Rosa emendou Contos. goano, bem como num cartão de visita que
O lançamento da primeira edição de Sa- acompanha tal volume:
garana pela Editora Universal, em 1946, pro-
duziu elogios mais ou menos efusivos, por “Ao Graciliano Ramos, grande e amigo –
parte da crítica (Martins, 1946; Candido, ‘Seu Joãozinho Bem-Bem’ da nossa litera-

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tura –, com a admiração e a amizade do e noutro já esteve disponível a um público


Guimarães Rosa, Rio, 21/04/1946 [folha de ampliado. Contos e Sagarana não são o
rosto de Sagarana]. mesmo livro. E as críticas de Graciliano
Mais um abraço grato, do Guimarães Rosa, Ramos, que de certa maneira foram aco-
22/04/1946 [cartão de visita]”. lhidas ou reverberaram nas avaliações de
outros membros do júri da segunda edição
Não por acaso, nessa dedicatória que do Prêmio Humberto de Campos, mostra-
consta do referido exemplar, Rosa aproxima ram-se valiosas para a reformulação feita
Graciliano de Joãozinho Bem-Bem, temido por João Guimarães Rosa. A supressão do
personagem do conto “A Hora e a Vez de posfácio e de três dos 12 contos, somada às
Augusto Matraga” que morre em duelo jun- mudanças sofridas em outros textos, impe-
tamente com o protagonista da história. Em de que se suponha um erro de julgamento
todas as ocasiões em que se manifestou a por parte dos jurados contrários à vitória
respeito dos Contos, de Viator, o autor de dos Contos, que supostamente não teriam
Vidas Secas, em meio às críticas, externava reconhecido um novo gênio das letras; do
sua admiração, sobretudo, por seu Joãozi- mesmo modo que não se observa a recusa
nho Bem-Bem, “figura notável, dessas que deles em relação ao autor, o qual não opôs
se conservam na memória do leitor” (Ramos, resistência alguma às correções propostas,
1962, p. 250). antes acatou-as agradecido, aproveitando
a oportunidade para limar o que lhe pa-
*** recia imperfeito. Supõe-se que o conjunto
da obra de Guimarães Rosa poderia não
Desse modo, tendo em vista o percurso ter a mesma dimensão se a sua primeira
trilhado até aqui, fica claro que não se po- coletânea de contos não fosse Sagarana,
de supor que o livro de 1937 fosse fazer o mas sim Contos; e quem mais ajudou nesse
mesmo sucesso que o de 1946. E não exclu- processo de aprimoramento, fazendo eco-
sivamente pela mudança na recepção, que ar as primeiras críticas ao volume, não foi
num caso foi restrita aos membros do júri senão Graciliano Ramos.

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Doença de Chagas – mais de 100
anos depois de sua cientificamente
brilhante descoberta, há poucas
razões para se comemorar?

C
J. Antonio Marin-Neto

onstitui proeza científica singular na his-


tória da medicina a divulgação, em 1909,
pelo médico brasileiro Carlos Chagas
(1879-1934), de sua notável descoberta
nos sertões de Minas Gerais. Descreveu
ele, em detalhes clínicos, a fase aguda de
nova entidade mórbida, causada por inédita
espécie de parasito, o Trypanosoma cruzi,
que isolara no sangue humano e no de
outros mamíferos. E também identificou
o ciclo fundamental de sua transmissão
vetorial naquelas paragens, que incluía a

J. ANTONIO MARIN-NETO é professor


titular de Cardiologia da Universidade
de São Paulo e diretor da Unidade
de Cardiologia Intervencionista do
Hospital das Clínicas da FMRP-USP.

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textos / Homenagem

peculiar participação de inseto hemató- Chagas, conforme relato documental re-


fago abundante na região, o famigerado cente por pesquisadores norte-americanos,
“chupança”, ou “barbeiro” (por preferir a que inclusive hipoteticamente reivindicam
face para picar), como era conhecido, entre para aquele episódio a origem do termo
outras sinonímias (Chagas, 1909). kissing bug aplicável ao inseto hematófago
(Garcia et al., 2015). De fato, eles consta-
NADA DE NOVO SOB O SOL? taram relatos múltiplos durante o ano de
1899, em diversos jornais de várias cida-
OU UM PASSADO INTANGÍVEL? des nos EUA, de ocorrência repentina de
ataques a centenas de humanos por kissing
Como a corroborar a sabedoria prover- bugs. Embora se associasse a inúmeros
bialmente derivada do milenar Eclesiastes1, sintomas, causando muitas hospitalizações
a recuperação de material genético do T. e mesmo provocando alguns óbitos, apa-
cruzi em múmia andina pré-colombiana rentemente o surto microepidêmico assim
atesta que essa parasitose já afetava o ser desencadeado desvaneceu-se de forma tão
humano há pelo menos 9 mil anos (Auf- inopinada quanto aquela como surgira. E
derheide et al., 2004). mesmo ocasionando, em alguns locais do
Também é verossímil a possibilidade de território norte-americano, verdadeira his-
ter Charles Darwin sido acometido pela tri- teria coletiva, esse intrigantemente plau-
panossomíase americana 2, em vista de sua sível capítulo da trajetória nosológica da
realística descrição de ter sido picado pelo doença de Chagas perdeu-se na incerta
vetor hematófago e de período imediato de penumbra da história4.
doença febril subsequente – quando pas- Se me fosse concedida liberdade de
sou pelo território sul-americano em 1835, parafrasear o genial escritor baiano João
durante a épica viagem do HMS Beagle, Ubaldo Ribeiro, quando afirmava, em seu
que levaria à monumental elaboração da idiossincrático Viva o Povo Brasileiro, que
teoria da seleção natural e da consequente o “problema da Verdade é o seguinte: não
origem das espécies – e também de sinto- existem fatos, só existem histórias”, eu di-
mas gerais e gastrointestinais, contraídos ria que esse é também o problema da His-
em fases posteriores de sua vida 3. tória, essa preciosa e incomparável ciência
Mais desconcertante é o ocorrido exatos da intelectualidade humana. Porquanto é
dez anos antes da descoberta de Carlos necessário remontar ao passado, mas sem-
pre com base apenas em evidências elu-
sivas (histórias) ligadas aos presumíveis
1 “[…] que foi é o que há de ser; e o que se fez, isso se
fatos, que, contudo, não mais são passíveis
tornará a fazer; nada há, pois, novo debaixo do Sol” de se testemunharem diretamente, como
(Eclesiastes 1:9).
ocorrências propriamente ditas.
2 Hipótese formulada, entre outros, por Clóvis Bühler
Vieira, quando professor de Gastroenterologia da
FMRP-USP, em 1965.
3 Embora o tema seja controverso, para breve revisão
das evidências que subsidiariam esta hipótese, ver 4 Para detalhes da relação de notícias veiculadas nos
Bernstein (1984). jornais da época, ver Garcia et al. (2015).

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UM CENÁRIO EPIDEMIOLÓGICO EM atualmente infectadas – de 30 milhões em
1990 para cerca de 7 milhões em 2010 – e
CONSTANTE TRANSIÇÃO – AINDA UM
a escassa diminuição, de apenas 30%, quan-
PROBLEMA DE SAÚDE PÚBLICA, ESPE- to ao número de indivíduos ainda expostos
CIALMENTE NA AMÉRICA LATINA, MAS ao risco de infecção – de 100 milhões em
1990 para cerca de 70 milhões em 2010
NÃO MAIS SOMENTE NELA
(Rassi Jr. et al., 2010).
Esse grave cenário geral, por si bas-
A doença de Chagas constitui a terceira tante desalentador, tornou-se, em décadas
entidade nosológica com maior expressão recentes, ainda mais sombrio, em razão de
populacional de cunho global entre as mo- sérios desdobramentos epidemiológicos.
léstias infecciosas tropicais, após a malária Desde 2006 havia-se testemunhado ganho
e a esquistossomose. E, especificamente no inequívoco com o controle da transmissão
hemisfério ocidental, representa a moléstia da doença pelo principal vetor domiciliado
de maior sobrecarga médico-social entre as até então no Brasil, o Triatoma infestans.
parasitoses humanas, como consequência Isso era fruto de mais de 20 anos de pro-
direta de sua elevada morbimortalidade. grama sistemático e centralizado de campa-
Assim, é responsável por sete vezes mais nhas inseticidas ocasionadas pela iniciativa
anos de vida perdidos, ajustados para os do Cone Sul. Entretanto, vive-se atualmen-
inúmeros agravos incapacitantes de saúde te séria ameaça à sustentabilidade desse
sofridos antes da morte, em comparação controle, em razão do enfraquecimento das
com a malária (WHO, 2015). Por sua ca- ações descentralizadas de vigilância sani-
racterística de antropozoonose, dispondo de tária, que, em muitos locais do território
amplo reservatório de animais infectados, nacional, passaram a um controle munici-
além do ser humano – e de extensa gama pal claramente inadequado e insuficiente5.
de vetores –, é virtualmente impossível Há também o problema atual de inúme-
erradicá-la completamente. ros vetores – alguns já domiciliados e ou-
Ainda endêmica em praticamente todo tros silvestres, mas com grande potencial
o subcontinente latino-americano, é justi- de adaptação ao contato com o ser humano
ficadamente classificada pela Organização –, que são altamente infectados em terri-
Mundial da Saúde (OMS) como moléstia tório boliviano e que podem devassar as
negligenciada (Marin-Neto et al., 2014). fronteiras brasileiras. E ainda se constata
Também é reflexo natural direto das con- hoje nítido recrudescimento da transmis-
dições precárias de educação, saneamen- são vetorial da doença na região amazôni-
to, habitação e baixa renda econômica em ca (Valente et al., 1998; Coura et al., 2002;
que vivem os estimados 70 milhões ainda Aguilar et al., 2007), onde o deflorestamento
expostos ao risco de infecção pelo agente indiscriminado de vastas áreas geográficas
causal, o Trypanosoma cruzi. Este aspecto
perverso de sua epidemiologia é ilustrado
pelo eloquente contraste entre a expressiva
5 Entrevista com José Rodrigues Coura, por Katia Macha-
do, in Radis, Comunicação em Saúde, 81, maio de 2009,
redução do número estimado de pessoas pp. 20-1.

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textos / Homenagem

ensejou o contato de seres humanos com da doença associou-se a não negligível taxa
novos insetos hematófagos infectados pelo de mortalidade. Típica expressão da precá-
T. cruzi, que se tornam rapidamente domi- ria inclusão social vigente, essa forma de
ciliados nas pobres e precárias moradias. transmissão oral seria passível de controle
O professor Rodrigues Coura, pesquisador mais efetivo, se medidas educacionais de
do Instituto Oswaldo Cruz/Fiocruz, muito incentivo a uma melhor higienização dos
apropriadamente rotulou a Amazônia como alimentos forem implementadas.
“a última fronteira da doença de Chagas”. Todavia, o mais conspícuo aspecto des-
Pois há ampla e munificente documenta- sa atual fase de transição epidemiológica
ção, inclusive em 2015 e 2016, de nume- liga-se à emigração de milhões de latino-
rosos surtos microepidêmicos de infecção -americanos, cronicamente infectados, para
aguda pelo T. cruzi especialmente no Pará, países mais afluentes economicamente (Sch-
Ilha de Marajó, Acre, Amazonas e outros munis, 2007). Dessa maneira, somente nos
estados. Muito oportunamente, desde 2013 EUA estima-se a presença de pelo menos
existe relato detalhado dessas ocorrências 300 mil portadores da doença de Chagas
em várias localidades do Pará, elaborado (Bern et al., 2007; 2009). O mesmo fenô-
pelas professoras da Universidade Federal meno se registra em quase todos os países
do Pará Dilma S. M. de Souza e Maria Rita europeus (Guerri-Guttenberg, 2008; Gascon
C. Monteiro, na forma de um manual de re- et al., 2009; DiGirolamo et al., 2016) – com
comendações para o diagnóstico, tratamento destaque para a Espanha, onde 60 a 80 mi-
e seguimento ambulatorial de portadores da lhões de infectados se estima ali viverem –,
doença de Chagas. no Japão e na Austrália. Um efeito paradoxal
Essa nova inflexão epidemiológica assume bem-vindo desse alastramento dos indivídu-
requintes de crueldade sociológica, quando os vitimados pela doença de Chagas reside
se considera que em anos recentes a trans- em renovado interesse por suas proteiformes
missão da doença passou a ocorrer – talvez manifestações e na consequente demanda
predominantemente – sob nova forma, pela por soluções médicas e sociais. Assim, a
ingestão de cargas volumosas de parasitos, Espanha e os Estados Unidos congregam
quando alimentos – como os baseados em atualmente vários centros de pesquisa em
açaí, preparados sem condições higiênicas torno do problema. Isso tem potencial para
adequadas – se contaminam pela macera- eventualmente retirar a doença do rol das
ção conjunta de restos ou mesmo de insetos mais negligenciadas entre as de cunho tro-
transmissores inteiros (Coura et al., 2006). pical. Em contexto francamente desanima-
Essa forma de transmissão oral da doença dor, havendo até hoje somente dois agentes
reveste-se de maior gravidade, porquanto a farmacológicos comprovadamente tripanos-
carga parasitária recebida é muito maior do somicidas disponibilizados para uso clínico,
que quando a contaminação se relaciona à já há cerca de 40 anos, são auspiciosas as
picada do inseto, e também por ser a mucosa iniciativas correntes testando fármacos novos
do trato digestório superior muito permeável e promissores – fosravuconazol, fexinidazol
ao parasito. Por conta desses fatores, em al- – em confronto com o clássico benznida-
guns surtos microepidêmicos a fase aguda zol ou a ele associados, conforme pesquisas

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em andamento sob patrocínio de programas multiplicidade de recursos acaba por desem-
em órgãos como o DNDi (Drugs for Ne- bocar na ausência de um método que seja
glected Diseases initiative), ligado à OMS unanimamente aceito como padrão-ouro, e
(DNDi Chagas Disease Programme, 2017). enseja a desconfortável sensação espelhada
Em aditamento, trabalhos recentes têm sido ironicamente pelo aforismo popular: quando
publicados sobre pesquisas já concluídas há muitos, não há nenhum…
em humanos tratados com tripanossomi- A despeito da limitação apontada acima,
cidas novos, infelizmente com resultados de forma geral admite-se que os exames
inferiores aos obtidos com o comparador que empregam atualmente essas técnicas
fundamental, o benznidazol (Molina et al., sorológicas sejam superiores, por exemplo,
2014; Morillo et al., 2017). Embora tais ao tradicional método baseado em fixação
estudos sejam ainda de alcance clínico bas- de complemento, de Guerrero e Machado,
tante limitado, traduzem perspectivas en- que tão relevante papel histórico desempe-
corajadoras no sentido de prover o campo nhou para o conhecimento da doença de
das investigações sobre a doença de Chagas Chagas. Em apoio direto a esse conceito
de iniciativas muito valiosas. pode-se aduzir a evidência do efetivo con-
trole da transmissão por via transfusional,
NÃO HÁ PADRÃO-OURO PARA quando esses testes sorológicos passaram a
ser compulsoriamente realizados em ban-
COMPROVAÇÃO ETIOLÓGICA DA cos de sangue, especialmente na esteira do
INFECÇÃO CRÔNICA PELO T. CRUZI. controle da transmissão do HIV, a partir da
MAS... E QUANDO ESSA COMPROVAÇÃO década de 1980.
Entretanto, aspecto preocupante, de per-
SURPREENDENTEMENTE FALHA?
cepção recente e ainda obscuro é a fa-
lha em detectar com provas sorológicas
Em decorrência da escassa parasitemia, a evidência da infecção crônica pelo T.
a comprovação do diagnóstico etiológico não cruzi em casos altamente suspeitos dessa
se faz habitualmente por técnicas diretas condição. Isso tem sido verificado com
de detecção do T. cruzi (intacto ou de seus frequência alarmante em indivíduos com
componentes) em portadores da doença de antecedentes epidemiológicos francamente
Chagas em sua fase crônica. Em vez disso, compatíveis com a possibilidade de terem
diversos métodos diagnósticos são baseados sido infectados muitos anos antes, pois
na detecção de anticorpos circulantes contra residiam em vivendas onde abundavam os
o agente causal. Persiste alguma controvérsia insetos transmissores, às vezes tendo fami-
quanto à relativa eficácia de cada um desses liares com diagnóstico de doença de Chagas
métodos, em termos de sensibilidade (a real comprovado ou suspeito por morte súbita
capacidade de detectar, sendo o resultado precoce. Mais significativamente, o exame
positivo, todos os casos verdadeiros) e de clínico desses indivíduos indicava a presen-
especificidade (o especular poder do méto- ça de alterações cardíacas muito sugestivas
do em não gerar falsos resultados positivos desse diagnóstico, às vezes incluindo-se o
quando a infecção não estiver presente). Essa virtualmente patognomônico aneurisma da

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textos / Homenagem

ponta. Contudo, a prova sorológica da in- dera que, de acordo com as normas vigentes,
fecção pelo T. cruzi em vários desses casos inclusive pela OMS, uma prova sorológica
mostrava-se consistentemente negativa. negativa seria suficiente para se descartar o
Há poucos anos relatamos, durante con- diagnóstico etiológico, mesmo em indivíduos
gresso internacional, o encontro de algumas com alto grau de suspeição da doença. Sendo
dezenas de casos sucessivos com essas ca- assim, esses indivíduos são habitualmente
racterísticas, a partir de amostra populacio- credenciados para doação sanguínea ou de
nal de pacientes que nos foram encaminha- órgãos sólidos e, com esses resultados fal-
dos para realização de cateterismo cardíaco samente negativos da sorologia, tornam-se
diagnóstico e coronariografia, entre 1o de potenciais transmissores da infecção pelo
julho de 2011 e 31 de dezembro de 2012, T. cruzi. Há cerca de dez anos relatamos
pois eram todos portadores de dor precor- o caso surpreendente de paciente receptora
dial suficientemente intensa e iterativa, para de um transplante hepático, realizado pela
demandar a realização desses exames (Pa- equipe do professor Orlando Castro e Silva
vão et al., 2013). Caracteristicamente, não da FMRP-USP, paciente esta que, dez meses
havia obstruções coronárias significativas, depois, desenvolveu um quadro muito gra-
mas encontravam-se as típicas alterações de ve de fase aguda da doença de Chagas. A
contratilidade ventricular regional, um sinal intensa miocardite, comprovada por biópsia
inequívoco ligado à etiologia da doença de do coração, que efetuamos como recurso
Chagas. Estranhamente, de 65 pacientes, in- derradeiro, com a paciente em estado tóxico-
cluindo 28 em que o aneurisma de ponta foi -infeccioso grave, quase in extremis, para
detectado, apenas 11 (17%) tiveram a etiolo- corroborar um diagnóstico que era conside-
gia da infecção tripanossomótica confirmada rado improvável, dado que tanto a paciente
por teste de imunofluorescência positiva para receptora como o doador do fígado haviam
anticorpos contra o parasito. Em nossa ins- testado negativamente para a doença de Cha-
tituição, esse tipo de situação também tem gas, revelou a presença no tecido cardíaco
sido constatado pelo professor Ricardo Bran- de incontáveis parasitos em plena multipli-
dt de Oliveira, da Faculdade de Medicina cação tissular (Souza et al., 2008). Embora a
de Ribeirão Preto (FMRP) daUSP, que se infecção aguda fosse prontamente debelada
dedica ao estudo de alterações de etiologia por medicamento anti-T. cruzi, com recupe-
da doença de Chagas em órgãos do sistema ração clínica praticamente completa pouco
digestório. O professor Brandt de Oliveira tempo após, o coração, testado por exames
tem observado diversos pacientes, portadores de imagem, não teve restabelecimento total.
de graus variáveis de esofagopatia e/ou co- Persistiu sequela que, provavelmente, viria a
lopatia, sem a correspondente comprovação ter ligação com o óbito súbito da paciente,
de um teste sorológico positivo. ocorrido já em fins de 2016, como me foi
O contexto dessa dissociação diagnóstica relatado pelo dr. Ajith Sankarankutty, da
entre as evidências clínicas da doença de equipe responsável pelo seguimento tardio
Chagas e a negatividade da sorologia especí- dos pacientes transplantados hepáticos. In-
fica, que deveria corroborar o diagnóstico, é formação adicional colhida em retrospecto
especialmente preocupante quando se consi- referia que, tendo o mesmo doador hepático

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à nossa paciente sido fonte de dois rins para plausível, que as consequências clínicas pu-
transplante, em um dos receptores desses dessem se instalar mesmo na ausência do
órgãos também se verificou fase aguda da T. cruzi nos tecidos do organismo humano.
infecção tripanossomótica. Isso corrobora, Mas essa noção deve ser abordada em maior
ainda que de forma circunstancial, que o detalhe, em outro ponto ulterior neste texto,
doador dos três órgãos transplantados era e também se indigita aqui a necessidade de
um portador de sorologia falsamente nega- aprofundarem-se pesquisas direcionadas ao
tiva para a doença de Chagas. esclarecimento desses aspectos ominosos da
É oportuno salientar que pacientes exteriorização da doença de Chagas.
recebendo transplante de orgãos infectados
pelo T. cruzi, como a paciente descrita, são AVANÇOS QUANTO À COMPREENSÃO
especialmente vulneráveis à instalação de
fase aguda da doença de Chagas, pois, para
E AO MANEJO CLÍNICO DE
se evitar a rejeição do órgão, são tratados PORTADORES DA DOENÇA DE CHAGAS
com regimes terapêuticos imunossupressores,
que facilitam a multiplicação do T. cruzi. Registrou-se progresso sensível nas útimas
Não há ainda explicação concreta para décadas, quanto à concepção e ao manejo
esse tipo de hiato diagnóstico. É possível que clínico dos pacientes portadores da infec-
ocorra simplesmente erro técnico na execução ção crônica por T. cruzi, e cursando com
do exame sorológico – “kit reacional de má as variadas formas e estágios evolutivos da
qualidade”, por exemplo –, mas essa prosaica doença de Chagas. Excepcional conquista
explicação é improvável para muitos casos. foi a formulação do escore de Rassi para
Poderia estar a ocorrer inibição da reação se estratificar o risco de sobrevir o óbito
detectora dos anticorpos dirigidos contra o em portadores da cardiopatia da doença de
agente etiológico, por substâncias presen- Chagas, com base em características clínicas
tes no sangue dos indivíduos testados? Na e laboratoriais simples (Rassi Jr. et al., 2006).
década de 1980, tornou-se popular o rumor De especial realce é também a compreensão
envolvendo o chamado “pó de Catanduva”, atual de que àquele indivíduo com a chama-
que, se não me falha a memória, seria ale- da forma indeterminada da doença – sem
gadamente dotado de propriedades negati- sintomas ou sinais físicos da moléstia e com
vadoras dos testes para detectar a doença exames simples, como o eletrocardiograma
de Chagas em humanos. Ou talvez se trate e os radiológicos de esôfago e cólon, den-
de real ausência ou paucidade relativa de tro da normalidade – deva ser dispensado
anticorpos, possivelmente em decorrência apenas um acompanhamento sem qualquer
de a infecção já ter sido de fato erradicada estigmatização médica ou social. Afinal, di-
(pacientes tratados com tripanossomicidas versos estudos de evolução espontânea a lon-
em passado remoto?). Se essa última hipó- go prazo evidenciaram que esses indivíduos
tese se mostrasse confiável, seria necessário têm expectativa de vida comparável à dos
admitir que ou a doença já havia progre- de mesma faixa etária, não infectados pelo
dido bastante antes de o agente etiológico T. cruzi. Portanto, enquanto permanecerem
ter sido erradicado ou, alternativa menos com a forma indeterminada requerem ape-

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textos / Homenagem

nas seguimento anual ou mesmo bianual, matórias diretamente ligadas à persistên-


repetindo-se o eletrocardiograma simples, cia parasitária e as consequentes reações
mas não se devendo impor qualquer restri- imunológicas adversas surperimpostas que
ção para atividades físicas ou intelectuais, são hoje consideradas essencialmente res-
inclusive em profissões com responsabilidade ponsáveis pelas lesões da cardiomiopatia
social mais diferenciada, como condutores crônica (Marin-Neto et al., 2007).
de veículos públicos ou pilotagem de avi- A fisiopatologia relacionada às reações
ões, por exemplo (Marin-Neto et al., 2010). imunológicas na fase crônica da doença de
O acentuado sentido humanístico dessa Chagas é extremamente complexa e assume
mentalidade e conduta médica vem sendo caráter de verdadeira “espada de dois gumes”
preconizado há bastante tempo, entre outros, quanto à gênese das lesões cardíacas (Rassi
pelo professor Wilson Oliveira Jr., de Recife, e Jr. et al., 2017). Assim é que, inegavelmente,
foi ratificada recentemente quando publicamos existem respostas protetoras do sistema imu-
o Primeiro Consenso Latino-Americano para nológico do hospedeiro que contribuem para
o Diagnóstico e Tratamento da Cardiopatia conter a multiplicação parasitária em níveis
Chagásica e o Segundo Consenso sobre a mínimos; isso é evidenciado pela constatação
Doença de Chagas, editados respectivamente de que em condições que deprimem a ativi-
por Andrade et al. e Dias et al. dade do sistema imunológico (e. g. quando há
coinfecção pelo vírus causando a Aids ou na
A ETIOPATOGENIA DA CARDIOPATIA vigência de imunodepressão iatrogênica em
indivíduos transplantados de órgãos) ocorre
CRÔNICA DA DOENÇA DE CHAGAS:
intensificação da parasitemia, do parasitismo
ESFINGE QUE CONTINUA A
tissular e das alterações inflamatórias a ele
DEVORAR PORQUE AINDA NÃO associadas. Em contraposição a esses efeitos
A DECIFRAMOS POR COMPLETO protetores, acumularam-se evidências, tanto
em modelos experimentais de infecção pelo
Em sua fase crônica, a cardiomiopatia T. cruzi como também na doença de Chagas
constitui a mais frequente e mais grave humana, de que a inflamação miocárdica
das manifestações da doença de Chagas, apresenta nítida feição de real agressão de
sendo responsável por relevante morbimor- base imunológica aos tecidos. Tais evidên-
talidade, especialmente em muitos países da cias são compatíveis com a possibilidade
América Latina. Sua patogênese continua de que para a etiopatogênese da cardiopatia
a ser incompletamente compreendida, mas da doença de Chagas concorra um estado
admite-se que pelo menos quatro mecanis- de desequilíbrio imunológico em que li-
mos participem da gênese das extensas e nhagens celulares pró-inflamatórias sejam
intensas alterações cardíacas nessa forma preferentemente ativadas, em detrimento de
da doença: os distúrbios do sistema nervo- linhagens celulares efetoras de mecanismos
so autônomo e da microcirculação corona- regulatórios que inibiriam a inflamação tis-
riana devem contribuir como mecanismos sular (Dutra et al., 2008). Ainda nesse con-
ancilares para o aparecimento da disfunção texto, relatos recentes expõem a noção de
cardiovascular, mas são as alterações infla- que esse desequilíbrio imunológico possa

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ter sua base em polimorfismos genéticos tórias (Andrade et al., 1991; Garcia et al.,
do hospedeiro humano infectado pelo T. 2005; Bahia et al., 2012).
cruzi. (Cunha-Neto & Chevillard, 2014). De
acordo com essa hipótese, aí poderia estar E SE (ENQUANTO) NÃO SE COMPROVA
uma pista plausível para se desvendar o
IRRETORQUIVELMENTE A TEORIA
enigma de por que somente 30%-40% dos
humanos infectados cronicamente desenvol- DA PERSISTÊNCIA PARASITÁRIA
vem a doença de Chagas propriamente dita COMO MECANISMO PATOGENÉTICO
(isto é, seriam geneticamente suscetíveis), PRIMÁRIO E ESSENCIAL, COMO FICAM
enquanto os demais persistem por toda a
OS INDIVÍDUOS AFLIGIDOS PELA
vida com a forma indeterminada, isto é,
sem manifestações clinicamente evidenci- INFECÇÃO COM O T. CRUZI ?
áveis (Rassi Jr. et al., 2017).
Já a teoria da persistência parasitária co- Com embasamento nos indícios e
mo o fator patogenético crucial para instala- evidências acima expostos, atualmente muitos
ção e recrudescimento progressivo das lesões pesquisadores convergem para um consenso
miocárdicas crônicas está apoiada firmemente tácito de que a persistência parasitária seja o
em vários indícios: 1) contrariamente aos fator-chave causador da miocardite crônica,
estudos que empregam técnicas histológicas de baixa intensidade mas virtualmente in-
convencionais, pesquisas em material humano cessante, acarretando progressiva destruição
de biópsias endomiocárdicas e de necróp- do músculo cardíaco e sua substituição por
sias com métodos imuno-histoquímicos ou tecido inerte, sem capacidade contrátil, de
baseados em PCR (Polymerase Chain Re- fibras colágenas. Esse conceito havia sido
action) permitiram detectar material para- negligenciado por muito tempo em função
sitário nitidamente associado aos infiltrados de teorias patogenéticas como a neurogênica
inflamatórios (Higuchi et al., 1993; Bellotti e a da autoimunidade da cardiomiopatia da
et al., 1996); 2) o material genético do T. doença de Chagas. Em essência, com esse
cruzi pode ser consistentemente detectado no consenso recuperou-se a noção de que não
tecido miocárdico de indivíduos portadores somente em sua fase aguda, mas também na
da cardiomiopatia da doença de Chagas, mas fase crônica, a doença de Chagas e a car-
não usualmente no daqueles sorologicamente diomiopatia por ela causada se comportam
positivos mas sem manifestações clínicas como real entidade infecciosa, em que o pa-
cardíacas (Jones et al., 1992); 3) em animais rasito não é efetiva e inteiramente debelado,
de experimentação a intensidade do para- apesar da proteiforme resposta imunológica
sitismo tissular correlaciona-se nitidamente defensiva do organismo humano, mas per-
com o recrudescimento das alterações infla- siste incessantemente causando inflamação
matórias causando morte celular (Zhang & e reação imune adversa.
Tarleton, 1999); também em modelos expe- O corolário da teoria patogenética da per-
rimentais o tratamento com diversos agentes sistência parasitária consiste na hipótese de
tripanossomicidas, mesmo sem erradicar o que o tratamento tripanossomicida possa al-
parasito, atenua as manifestações inflama- terar, de forma benéfica, o curso da doença

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de Chagas em sua fase crônica. Em outros como a insuficiência cardíaca, a necessidade


termos, que se pudesse, com esse tratamento de se recorrer ao implante de marcapassos,
etiológico, evitar ou ao menos minimizar a ao transplante cardíaco e a própria morte. O
progressão das lesões miocárdicas. De fa- protocolo do estudo, inicialmente elaborado
to, experiências pioneiras nesse campo de pelo professor Anis Rassi e pelo dr. Anis
investigações davam alento a essa expecta- Rassi Jr., embasado em seu estudo prévio de
tiva, porém de forma muito limitada, pelas cerca de 420 pacientes seguidos por quase
diminutas amostras populacionais testadas, nove anos (Rassi Jr. et al., 2006), conside-
e, principalmente, pelo fato de os estudos rava a razoável possibilidade de se obter
serem quase sempre apenas observacionais, redução absoluta da ordem de 6% (redução
sem real capacidade de fornecer prova cien- relativa de 20%, a partir do estimado para
tífica sobre o alcance do tratamento, mesmo o grupo-controle com 30% em cinco anos)
congregados em meta-análises após revisões na incidência daqueles desfechos graves, no
sistemáticas da literatura (Villar et al., 2002; grupo efetivamente tratado com benznidazol,
Villar et al., 2014). em comparação ao grupo-controle recebendo
A partir de uma visita ao Brasil, em 2002, apenas o placebo (Marin-Neto et al., 2008).
do professor Salim Yusuf, chefe do Depar- Esse estudo, mundialmente conhecido pe-
tamento de Cardiologia da McMaster Uni- lo acrônimo Benefit, teve o recrutamento
versity, no Canadá, e um dos três cientistas iniciado com o primeiro paciente inserido
mais citados em todos os tempos na área em novembro de 2004, em nossa instituição,
de cardiologia, por suas pesquisas de largo em que o investigador principal, dr. André
alcance em múltiplos contextos de tratamento Schmidt, foi responsável pelo arrolamento de
de inúmeras afecções cardiovasculares (mas 260 indivíduos com cardiopatia da doença
não de doença de Chagas), encetamos os de Chagas. O recrutamento desenvolveu-se
trabalhos de montagem de um estudo multi- penosamente e só terminou em novembro
cêntrico, internacional, com real capacidade de 2011, envolvendo 49 centros de pesqui-
de prover resposta àquele desafio: em 3 mil sa em cinco países latino-americanos: 1.358
indivíduos cronicamente infectados pelo T. pacientes arrolados no Brasil, 559 na Argen-
cruzi e já portadores de cardiomiopatia da tina, 502 na Colômbia, 357 na Bolívia e 78
doença de Chagas, de forma duplo-mascarada em El Salvador. Ao cabo de um período de
(sem conhecimento pelo paciente e por seu seguimento médio de 4-5 anos os resultados
médico responsável), os efeitos do tratamen- não evidenciaram que o tratamento com o
to com o melhor (longe de ideal, contudo) benznidazol reduzisse a incidência dos gra-
remédio tripanossomicida, o benznidazol, ves desfechos clínicos observados, compara-
seriam cotejados com os do placebo (pre- tivamente ao verificado no grupo-controle,
paração desprovida de ação farmacológica tratado com placebo (Morillo et al., 2015).
efetiva). Para tal comparação o estudo deve- Em face de tais resultados do estudo Be-
ria prosseguir por cerca de cinco anos, em nefit, uma primeira e óbvia conclusão é de
média, de acompanhamento dos indivíduos que a hipótese essencial não se confirmou:
arrolados, com rigorosa monitorização das ou seja, para pacientes já cardiopatas, com
eventuais complicações temíveis da doença, o perfil dos recrutados no estudo, o regi-

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me terapêutico empregado à base do melhor 3-5 décadas vários milhares de indivíduos
(embora não ideal) tripanossomicida clini- com a forma indeterminada, para se poder
camente disponível não se mostrou benéfico averiguar o efeito do tratamento etiológico
e não se conseguiu evitar as mais graves sobre as tardias manifestações e complica-
consequências do processo patológico da do- ções da cardiopatia.
ença de Chagas. Mas, então, significaria isso Em segundo lugar, diversas circunstâncias
também que a teoria patogenética da persis- e condições inapropriadas que ocorreram
tência parasitária, postulada como mecanis- durante o estudo podem ter contribuído pa-
mo essencial para as lesões cardíacas nessa ra impedir que um eventual real benefício
doença, deveria ser revogada? Seria tentador do tratamento tripanossomicida em nossos
para alguns pesquisadores assim concluir, pacientes fosse detectado. Assim, o proto-
até pelo fato de que o tripanossomicida foi colo originalmente concebido foi alterado
eficaz em reduzir a carga parasitária, pelo para estender-se a faixa etária amostral, o
menos quanto à sua detecção no sangue cir- que pode ter “diluído” o número de desfe-
culante. Mas, certamente, a resposta àquela chos causalmente atribuíveis à doença de
indagação deve ser negativa e a teoria não Chagas entre os mais idosos. Em alguns
deve ser revogada. São múltiplas as razões países como a Argentina e a Bolívia a taxa
a embasar esta convicta assertiva, que po- de eventos em ambos os grupos situou-se
dem ser encontradas quando se considera em níveis alarmantemente baixos se com-
o contexto amplo do estudo Benefit, suas parada com a verificada, por exemplo, no
limitações e características metodológicas, Brasil; no conjunto geral dos países, a ta-
e seu alcance científico pleno. xa de eventos observada no grupo-controle
Em primeiro lugar, o estudo pode ser (recebendo placebo) foi inferior à divisa-
perfeitamente válido e seus resultados neu- da no protocolo original, e o estudo po-
tros estarem a espelhar simples e fidedig- de ter sido vitimado por carência de poder
namente que, nesse estágio de cardiopatia estatístico para detectar eventual diferença
já estabelecida, o tratamento tripanosso- entre os grupos. Embora habitualmente o
micida não mais seria eficaz e as lesões processo da randomização, aliado ao vul-
miocárdicas presentes, sendo irreversíveis, toso número amostral, assegure que os dois
já condicionariam os desfechos; portanto o grupos de um estudo sejam adequadamente
remédio estaria chegando tardiamente. Se balanceados quanto às demais características
esta conclusão for verdadeira, por que não influentes sobre o desfecho, surpreendente-
teríamos optado por realizar o estudo com mente, no caso de nosso estudo Benefit, de
indivíduos portadores da forma indetermi- seis características determinantes de mau
nada da doença de Chagas, supostamente prognóstico pelo escore de Rassi (Rassi Jr.
antes de as lesões cardíacas mais ominosas et al., 2007), cinco eram mais frequentes
se estabelecerem? A objeção a essa alterna- no grupo tratado com o tripanossomicida
tiva de estudo é que ela simplesmente seria do que no grupo testemunho, tratado com
inexequível em uma doença com história placebo. Mas, infelizmente, não se reportou
natural tão longa, do ponto de vista logís- qualquer ajuste para tais diferenças basilares
tico, pois seria necessário acompanhar por (Morillo et al., 2015).

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textos / Homenagem

Em terceiro lugar, deve ser enfatizado hipótese de que para a população brasileira
que, embora a definição do desfecho com- de indivíduos cronicamente infectados pelo
posto primário englobando vários eventos T. cruzi, mesmo já cardiopatas, o tratamento
adversos seja usualmente defensável, para etiológico ainda consiga conferir certo grau
doença de decurso tão protraído como a do- de benefício (Rassi et al., 2017).
ença de Chagas, na qual vários deles podem Essa interpretação dos resultados do es-
se suceder, o método de análise baseado na tudo Benefit obviamente é sujeita à crítica
ocorrência do primeiro evento pode ter sido de constituir apenas análise de subgrupo,
inadequado para os propósitos do estudo. por isso induz somente à geração de hi-
E, de fato, embora sem atingir-se a signi- pótese a ser testada em estudo específico.
ficância estatística, praticamente todos os Infelizmente, não há no momento pers-
componentes do desfecho composto tiveram pectiva de que isso seja viável científica
sua incidência reduzida no grupo tratado e economicamente. Portanto, cientistas e
ativamente, em comparação com o que se especialmente médicos que lidam com in-
observou no grupo-controle (Morillo et al., divíduos cronicamente infectados pelo T.
2015). Ademais, um evento adverso dos mais cruzi, no Brasil, estão hoje confrontados
significativos clinicamente, a internação por com o dilema: tratar ou não seus pacien-
insuficiência cardíaca, ocorreu menos no gru- tes cardiopatas com o benznidazol? Haverá
po tratado do que no controle, mas não foi seguramente pesquisadores e médicos não
incorporada ao desfecho composto primário propensos a adotar a conduta de tratar, com
do estudo (Rassi et al., 2017). a justificativa de que, enquanto não se dis-
Finalmente, os resultados do estudo Be- puser de mais evidência de benefício, será
nefit, como publicados em primeira instân- preferível não adotar um recurso terapêutico
cia, necessitam de mais criteriosa análise sem eficácia comprovada e não desprovido
quanto à diversidade geográfica encontrada, de efeitos colaterais sérios (ainda que o
em especial atentando-se para a possibili- estudo Benefit tenha, como subproduto, de-
dade de variantes nos subtipos parasitários monstrado serem eles menos graves do que
geneticamente determinados influírem na se supunha). Entretanto, para os pacientes
suscetibilidade do T. cruzi ao tratamento brasileiros com cardiopatia em fases ainda
tripanossomicida com o benznidazol e, por não avançadas, acredito que seja plausível
conseguinte, também afetarem diferencia- oferecer a opção de um tratamento tripa-
damente os desfechos clínicos observados nossomicida durando apenas 2-3 meses, na
nos países participantes do estudo. Nesse forma de uma decisão compartilhada (por
sentido, no Brasil, onde o TcII é mais pre- médico e paciente). À luz dos presentes
valente (Zingales et al., 2014), os resultados conhecimentos, não é possível condenar,
do estudo mostraram acentuada tendência seja quem adote a conduta, seja quem a
a atingir-se a significância estatística (p = rejeite6. Há, tão somente, a chance de acerto
0.06) para a redução relativa de 15% (4,4%
em termos absolutos) no desfecho composto
primário. Isto, embora não possa ser tomado 6 “Ciência e Humanismo, Ainda É Possível Conciliar?”,
in Jornal da Sociedade Brasileira de Hemodinâmica e
como prova científica, permite levantar a Cardiologia Intervencionista, ano XV (3), 2012, pp. 16-9.

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versus o risco de erro de conduta, como do tragicamente real significado social da
é típico de situações em que não há ain- moléstia que revelara ao mundo, por afligir
da evidências conclusivas sobre a conduta literalmente milhões de indivíduos desvali-
terapêutica (lembrando que a ausência de dos em vastas áreas do território brasilei-
prova, nessas circunstâncias, não é prova ro. Em acerbo contraste com a negativa de
da inexistência de um benefício plausível). parte da comunidade acadêmica em aceitar
Assim, creio que, como expusemos ante- a própria existência da entidade mórbida,
riormente, o risco de cometer-se o erro beta possivelmente Carlos Chagas pressentisse
(deixar de adotar conduta que futuramente o caráter de tragédia nacional que se des-
se demonstre benéfica) é menos aceitável vendava a partir de sua descoberta, e que
do que o risco do erro alfa (adotar con- se desenrola em múltiplos atos e capítulos
duta que no futuro se comprove ineficaz) deploráveis socialmente até hoje.
(Marin-Neto et al., 2014). E, finalmente, Há alguns anos, em entrevista com o
conforme exposto em nossa publicação dr. Marcelo Queiroga, então presidente da
original do estudo, os presentes resulta- Sociedade Brasileira de Hemodinânica e
dos não deverão desviar os pesquisadores Cardiologia Intervencionista, tracei rápido
envolvidos da missão de investigar novos paralelo entre os retratos fotográficos e psi-
agentes tripanossomicidas, com protocolos cológicos de Carlos Chagas e de Euclides da
mais efetivos e menos sujeitos a efeitos co- Cunha7. Com destaque, além dos portentosos
laterais indesejáveis (Morillo et al., 2015). bigodes pretos que então ostentavam, para
o similar aspecto fisionômico de ambos,
CARLOS CHAGAS – MARCADO trigueiros, sempre muito graves, circuns-
pectos e austeros, em todas as fotografias e
PELA ANTEVISÃO DA TRAGÉDIA pinturas que vi desses geniais brasileiros8.
SOCIAL QUE DESCORTINOU? Eu havia comentado essas semelhanças com
várias pessoas e solicitado que me notifi-
Sabe-se que Carlos Chagas desapareceu cassem sobre qualquer documento de Car-
precocemente por morte súbita aos 55 anos los Chagas rindo ou aparentando alguma
de idade, após período final de vida repassa- alegria. Finalmente, em 11 de março de
da de grande amargura, segundo depoimentos 2010 o professor Anis Rassi enviou-me de
de familiares e amigos próximos. E é bem Goiânia foto em que Chagas esboça meio-
provável que essa amargura decorresse das
vicissitudes ligadas à negação, por alguns
médicos e acadêmicos contemporâneos, de
7 Euclides da Cunha, fotografado em sua última resi-
aspectos da conquista científica que tão pe- dência, em Copacabana, em 1909, conforme aparece
nosa e competentemente havia amealhado.
no livro de Roberto Ventura, Retrato Interrompido da
vida de Euclides da Cunha, organizado por Mário Cesar
Isso deve ter-lhe causado grande infortúnio, Carvalho e José Carlos Barreto de Santana (São Paulo,
Companhia das Letras, 2003).
talvez o gatilho adicional para morte súbi-
8 Gravura de Carlos Chagas, publicada na Revista da
ta em tabagista inveterado que era. Mas é Semana, em 15 de dezembro de 1923, conforme apa-
também plausível que sua grande perspicácia rece na página 162 do livro Carlos Chagas, Um Cientista
do Brasil, editado por Simone Petraglia Kropf e Aline
humanística lhe tenha propiciado a antevisão Lopes de Lacerda (Rio de Janeiro, Fiocruz, 2009).

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textos / Homenagem

-sorriso9, quase um esgar, escaneada a partir que certamente lhe pareceu inevitável sem
do ricamente ilustrado livro editado pelas seu derradeiro e desatinado encontro com
historiadoras Simone P. Kropf e Aline L. a morte. Há numerosos indícios de ter Eu-
de Lacerda, Carlos Chagas, um Cientista clides, como talvez Carlos Chagas, sido
do Brasil. É oportuno assinalar que no mes- marcado para sempre pela visão presencial
mo ano de 1909, enquanto Carlos Chagas da apocalíptica tragédia de Canudos, da
despontava para o mundo científico por sua qual documentou os últimos e pungentes
brilhante descoberta, Euclides da Cunha, atos e que depois denunciou – em seu
já reconhecido e famoso literariamente, era grande livro Os Sertões, narrado à guisa
miseravelmente vitimado por outra tragédia de verdadeira epopeia às avessas – como
de clássicos contornos gregos, assassinado verdadeira loucura e crime de uma na-
por causa de drama familiar com desfecho cionalidade10.

Bibliografia

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9 Carlos Chagas com um meio-sorriso, em março de 10 “É que ainda não existe um Maudsley para as loucuras
1929, durante recepção a grupo de cirurgiões norte- e os crimes das nacionalidades…” (Euclydes da Cunha.
-americanos, em Manguinhos, conforme aparece na Os Sertões – Campanha de Canudos. 3a ed. corrigida.
página 200 do livro citado acima. Rio de Janeiro, Livraria Francisco Alves, 1905, p. 614).

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104 Revista USP • São Paulo • n. 115 • p. 89-104 • outubro/novembro/dezembro 2017


arte
Arte sobre foto de Roberta Rosseto
O Pavilhão
Japonês de
São Paulo
Kengo Kuma

Tradução Japan House


arte sutemi horiguchi

D
urante o ano de 1954, foi É claro que Horiguchi tinha visto o pro-
realizada a comemoração jeto de Niemeyer. Também sabia quem ele
do IV Centenário de São era e conhecia o estilo de suas obras. O que
Paulo, evento que celebrava e como Horiguchi pensou ao desenvolver
os 400 anos da história da o desenho do Pavilhão Japonês? Por que
cidade. O líder do projeto tamanho contraste foi necessário?
foi o gênio do Modernismo, Para essa resposta, é preciso primeiro
o arquiteto brasileiro mun- pensar sobre o significado da arquitetura
dialmente renomado Oscar moderna no Japão. A arquitetura moderna no
Niemeyer (1907-2012). Suas Japão está profundamente ligada a catástro-
obras podiam ser vistas nos fes, principalmente o Grande Terremoto de
1.800 km da área total do Parque Ibirapuera.
2
Kanto e a Segunda Guerra Mundial. Devido a
Ao mesmo tempo, o arquiteto de estilo estas duas tragédias que devastaram cidades,
japonês Sutemi Horiguchi (1895-1984) ficou o Japão deixou de ser um país de “cidades
responsável pela construção do Pavilhão de madeira” para tornar-se uma “metrópole
Japonês. De um lado, esculturas de concreto; de concreto”. Essa mudança foi conduzida
do outro, delicadas estruturas de madeira. como objetivo nacional e serviu para enri-
Um contraste extremo, até então nunca quecer a indústria da construção, além de
imaginado. A arquitetura de madeira do ser base do desenvolvimento econômico do
Pavilhão Japonês possui os toques distin- Japão no período pós-guerra. A arquitetura
tos de Horiguchi e foi inspirada no Palá- moderna que nasceu no início do século XX,
cio de Katsura. Entre as várias obras que na Europa Ocidental, serviu de padrão para
criou, essa foi uma das mais minuciosas. As as cidades japonesas construídas em con-
finas colunas de madeira que dão suporte creto. A história da arquitetura japonesa
ao edifício têm um alto nível de perfeição
e a delicada decoração interna parece tocar
uma música sensível. Uma arquitetura total-
KENGO KUMA é arquiteto e responsável
mente oposta às formas radicais, livres e pelo edifício da Japan House São Paulo.
maciças utilizadas por Niemeyer em suas Assina também, entre outros projetos,
o novo Estádio Olímpico de Tóquio
obras. Um contraste quase que intencional para 2020 e o Museu Nezu, em Tóquio,
poderia ser notado. dedicado à arte japonesa pré-moderna.

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Roberta Rosseto

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arte sutemi horiguchi

Roberta Rosseto

no século XX pode ser resumida por esse três anos depois, em setembro de 1923. O
objetivo nacional, o qual tanto o governo nome do grupo foi inspirado no movimento
quanto as empresas privadas se esforçaram separatista de Viena, que nasceu no final do
para concretizar. século XIX, e foi o primeiro movimento
Dentro dessa grande tendência, o arqui- relacionado à arquitetura moderna no Japão.
teto Horiguchi estava em uma situação inu- Foi o momento em que surgiu uma jovem
sitada. Na verdade, ele estava muito à frente estrela: um estudante da Universidade de
de seu tempo. Em 1920, quando Horigu- Tóquio se tornou, repentinamente, o perso-
chi estudava arquitetura na Universidade de nagem principal da arquitetura japonesa. Foi,
Tóquio, formou um grupo de seis amigos é claro, uma consagração muito mais rápida
chamado Grupo de Arquitetura Separatista. que a de Kunio Maekawa (1905-1986) ou a
Em julho, promoveu o evento “Primeira de Kenzo Tange (1913-2005), arquitetos que
Exposição do Grupo de Arquitetura Sepa- representam a arquitetura moderna japonesa.
ratista do Japão”, na loja de departamentos O ponto mais marcante é o fato de ter
Shirokiya, e lançou o livro Declaração e acontecido antes do Grande Terremoto
Obras do Grupo de Arquitetura Separatista de Kanto. Após essa grande catástrofe, a
pela Editora Iwanami Shoten. arquitetura japonesa negou a construção em
Aqui, devemos dar atenção ao ano, era madeira, iniciando a construção das cida-
1920. O Grande Terremoto de Kanto ocorreu des em concreto. A introdução do design

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avançado da arquitetura europeia e o pen- Shiensou em 1926. Shiensou era uma arqui-
samento negativo em relação à construção tetura estranha após o Grande Terremoto de
em madeira andaram juntos formando a base Tóquio, quando o Modernismo se tornou a
principal da arquitetura japonesa no século base principal. Um telhado pontiagudo feito
XX. O Modernismo e a tragédia combina- de palha montado em uma construção de
dos ao mesmo tempo definiram o rumo da madeira. Uma casa no estilo rústico, com
arquitetura japonesa. Não só marcaram a rota gosto antiquado.
da arquitetura como também configuraram Horiguchi foi influenciado pelo design da
a direção da sociedade. Foi por causa dessa Escola de Amsterdã, que criou um grande
tragédia que se tornou possível a construção impacto na arquitetura europeia entre os anos
das cidades em concreto, movendo e acele- de 1910 e 1920. A Escola de Amsterdã pode
rando a engenharia civil da nação. Tange e ser classificada como um grupo de arquite-
Maekawa lideraram esse curso abrindo uma tura moderna que, após 1930, foi a base do
nova era na arquitetura. Modernismo. Porém, é totalmente contra as
Por outro lado, Horiguchi queimou a lar- caixas de concreto. A caixa de concreto do
gada antes de o Grande Terremoto de Kanto Modernismo liderada por Le Corbusier e
dar o apito. Não só declarou o movimento Ludwig Mies van der Rohe era um design
separatista (1920) como também elaborou e ótimo para a sociedade industrial, que tinha
apresentou uma casa de madeira chamada como conceito básico a produção e o con-
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Fotos: Roberta Rosseto

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arte sutemi horiguchi

sumo de massa. A Escola de Amsterdã pare- O destino fez com que Horiguchi, o arqui-
cia criticar essa racionalidade criada pela teto solto no ar, projetasse o Pavilhão Japonês
sociedade. Assim, podemos considerar que dentro da exposição liderada por Oscar Nie-
tanto Horiguchi como a Escola de Amsterdã meyer, o líder do Modernismo em concreto.
queimaram a largada. Ou então, saltaram Existe uma tragicomédia maior que essa?
para um lugar onde não havia água. É possível imaginar a agonia de Horigu-
Horiguchi era prematuro, sensível e orgu- chi em São Paulo. Como reagir a esse para-
lhoso. Por isso queimou a largada e ficou doxo? Aceitar ou não esse trabalho? Hori-
solto no ar. O maior feito de Horiguchi é de guchi escreveu: “Não tinha coragem para
não ter mudado para a arquitetura de con- projetar algo perto daquela obra tão vivaz de
creto. Ele escolheu a arquitetura de madeira, Niemeyer. [...] Durante duas semanas fiquei
com a qual trabalhou até o final. Assim, pensando em como recusar este trabalho que
estudou minuciosamente a arquitetura tradi- não tinha capacidade de concluir”.
cional japonesa. Sabia que, sem a tradição, Mas no final aceitou o trabalho em
a arquitetura de madeira não passa de uma São Paulo. Como Dom Quixote, Horigu-
antiguidade e que não conseguiria sobreviver chi decidiu desafiar Niemeyer com uma
na era do concreto. Nesse sentido, a vida de “ultrapassada” arquitetura de madeira. O
Horiguchi pode ser comparada tanto a uma Pavilhão Japonês de São Paulo pode ser
tragédia quanto a uma comédia. considerado o Dom Quixote do século XX.
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arte sutemi horiguchi

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É uma história heroica que alcança o cora- do concreto. Horiguchi deu um suspiro de
ção das pessoas. alívio quando soube que o Pavilhão Japonês
Como Dom Quixote desafiou o concreto? estava protegido por árvores de eucalipto ao
O Dom Quixote do século XX escolheu o seu redor. Não bastando o jardim de euca-
jardim como arma. Horiguchi é conhecido lipto para afastar a energia de Niemeyer,
por separar minuciosamente o jardim de estilo criou ainda um jardim de água para con-
japonês do jardim abstrato do Modernismo. cluir o isolamento. O design principal do
Ele protegeu a delicada arquitetura de madeira Pavilhão Japonês de São Paulo é baseado
com um jardim. Sua obra principal, chamada no jardim de água.
Okadatei (1933), é uma estrutura de madeira Muitos falam que o Pavilhão Japonês
baseada na arte japonesa, que une harmo- de São Paulo é uma cópia do Palácio de
nicamente a arquitetura moderna com um Katsura, mas eu não penso assim. A pro-
jardim ocidental abstrato. Horiguchi sabia porção dos pilares flutuantes pode parecer
que, para que o Dom Quixote de madeira com as do Shingoten (Novo Palácio) de Kat-
pudesse lidar com o modernismo de igual sura, mas o Novo Palácio não flutua sobre a
para igual, o jardim era um fator essencial. água. Na obra Okadatei, os jardins orientais
Projetou minuciosamente o jardim do e ocidentais estão separados pela água. Para
projeto de São Paulo. Ele tentou proteger Horiguchi, a água é uma substância con-
o Dom Quixote do jardim da brutalidade clusiva. A proporção da arquitetura é um

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Roberta Rosseto

problema secundário. Por isso, na obra de arquitetônicos com tanta liberdade. E foi
São Paulo pode ser notada uma forma de nesta terra distante e livre chamada Brasil
niilismo. O personagem principal é a água, que, de forma um pouco brutal, as obras de
e a arquitetura em si não é mais do que um madeira e concreto se encontraram. Foi o
enfeite. A arquitetura da exposição, apenas encontro desta tensão no Pavilhão Japonês
uma espécie de obra para a festa, aumenta de São Paulo que criou uma arquitetura de
ainda mais o niilismo. madeira única e especial.
Por bem ou por mal, defrontando um A superfície da água criada por Hori-
oponente invencível como Niemeyer, Hori- guchi agora está coberta por um plástico
guchi trabalhou minuciosamente no iso- branco à prova d’água, criando um lago
lamento usando o jardim, ajudando Dom muito estranho. Sem os traços japoneses,
Quixote a avançar até onde foi possível. O não dá vontade de chamar de jardim. Mas
método de Horiguchi conseguiu progredir levando em conta que o lago foi usado para
e alcançar um ponto elevado graças ao efetuar o isolamento, acho que não há um
encontro com São Paulo. modo melhor de desconexão. O lago não
É nessa parte que eu sinto muito mais é mais um jardim oriental, nem ocidental.
que uma coincidência. O método de Nie- Está flutuando no espaço. Porém, vendo este
meyer evoluiu graças ao Brasil e às neces- lago branco e estranho, acho que se adapta
sidades do local. Se ele estivesse na Europa, muito bem a Horiguchi, um Dom Quixote
talvez não fosse possível ter criado traços prematuro, que queimou a largada.

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livros
Os primórdios da
geografia como ciência
Magali Gomes Nogueira

O Itinerário de Benjamin de Tudela, de J. Guinsburg,


São Paulo, Perspectiva, 2017, 160 pp.

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livros / Homenagem

A
publicação de O Iti- brasileiro realiza uma síntese entre as notas
nerário de Benja- e comentários da publicação em alemão de
min de Tudela, a A. Asher, 1840 e 1841, que traduz e publica
primeira em por- a edição flamenga acima mencionada, e a
tuguês, vem dimi- de Marcus N. Adler, que, em 1907, a ree-
nuir a enorme la- dita com atualizações para a língua inglesa.
cuna existente no Em sua edição, Asher, preocupado com
Brasil em relação a história das ciências, apresenta o texto de
à edição crítica de textos medievais, princi- Benjamin como elemento importante para
palmente no que toca à produção hebraica a história da geografia medieval, pois pos-
relacionada com a construção da represen- sibilita “resgatar uma concepção de espaço
tação do espaço medieval e o desenho do construída por relatos de viajantes”1, enten-
mapa-múndi tal como o conhecemos hoje. dendo por viajantes todos os que se loco-
O histórico desta publicação tem como fonte moviam entre o Oriente e o Ocidente, seja
principal um texto manuscrito, datado do com propósitos religiosos, comerciais ou de
início do século XIII, com introdução que conquista e observação, movimentos bas-
identifica o autor como Benjamin de Tu- tante entrelaçados nos séculos XII e XIII.
dela, atualmente em arquivo do Museu Bri- Adler, por sua vez, prioriza a questão reli-
tânico, base das primeiras edições impressas
do texto: a de 1543, feita em Constantinopla
por Eliezer Ben Gerschon, e a de 1575, em 1 As citações deste parágrafo foram retiradas da apre-
sentação que J. Guinsburg faz da obra em sua edição.
hebraico, pela oficina de Christophori Plan-
tini, em Antuérpia que irá alcançar grande
sucesso de vendas principalmente pela be-
leza de suas ilustrações. A edição que ora J. MAGALI GOMES NOGUEIRA é doutora pelo
Guinsburg apresenta e traduz para o público Departamento de Geografia da FFLCH-USP.

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giosa e apresenta o texto como sendo fruto lhas, geralmente quando associadas à cir-
da “luta entre o Crescente e a Cruz”, en- cunferência de territórios, entendidos estes
tendendo, porém, este movimento entre ára- como reinos e/ou conjunto de cidades sob
bes e latinos como responsável pelo avanço a mesma soberania. O segundo, dentro de
científico ocorrido no período que classifica alguma lógica projetista, coloca em um su-
como “Idade de Ouro da produção hebraica porte plano ícones e imagens visualizando
medieval” pela tradução e atualização do co- fatos e lendas em uma situação solucionada
nhecimento herdado dos antigos. Guinsburg, geometricamente a partir de medidas, limi-
acompanhando Asher, destaca o importante tes e acidentes geográficos como montanhas,
papel das “crônicas dos viajantes que dese- golfos e rios, estabelecendo relevos, mora-
nharam no mundo medieval o mapa-múndi dias e economias. Por entre as imagens,
das terras conhecidas”, destacando o caráter episódios retirados dos diários ajudam a
tanto literário como científico dessa produ- compor o espaço geográfico concebido pelos
ção tão comum ao período. desenhistas do mundo medieval.
Sem dúvida, outro exemplar famoso deste Os diários usados para compor o Itine-
gênero é o Itinerário de Peutinger2, também rário de Peutinger foram coletados durante
conhecido como Tabula Peutinger, constru- um longo período entre os séculos II a.C. e
ído e constantemente atualizado durante os II d.C., período em que Estrabão também
séculos de expansão do Império Romano, está compondo sua Geografia, que, por sua
com uma função prática de visualizar os vez, será a base da Geografia de Ptolomeu,
territórios dominados e o estabelecimento de no século II d.C. E que, após as interven-
estradas e novas cidades que ampliassem as ções árabes do século IX, reaparece atuali-
possibilidades de domínio, administração e zado no final da Idade Média como Itinerá-
integração comercial entre as partes do im- rio Pictum (Itinerário Ilustrado). Ptolomeu,
pério. Sua importância se mantém ao longo quando recebeu a Geografia de Estrabão,
de toda a Idade Média, como comprovam reclamou da diversidade e imprecisão das
as constantes cópias e atualizações. medidas, da não consideração quanto a se
Ambos os itinerários, realizados pratica- o dia de jornada foi feito em terreno plano
mente no mesmo espaço geográfico, separa- ou montanhoso. Essa dificuldade levará Pto-
dos por um tempo de mil anos, contribuí- lomeu a reforçar o uso da geometria como
ram de formas diferentes e complementares método e medida unificadora para a confec-
para o desenho do mapa-múndi medieval. ção de suas “imagens da Terra”: reduzidas
Benjamin descreve, estabelece distâncias, a uma circunferência de 360o, quadriculadas
limites e medidas: dias de jornada, às ve- em latitude e longitude, os locais terrestres
zes jornadas marítimas, quadrantes, metros assinalados de acordo com as medições as-
cúbicos, parassangas (medida persa), mi- tronômicas convertidas em graus. Para ele,
este seria o papel da geografia, que, aliada
à corografia, com seus desenhos parciais e
2 Tabula Peutingeriana. Mais de seis metros de compri- descrições culturais, comerciais e religiosas
mento por 30 cm de largura. A Tabula que conhece-
mos é uma cópia feita em 1265 de um original romano
dos habitantes locais, completa a imagem
que sofreu muitos acréscimos ao longo dos séculos. do mundo conhecido. A união da palavra

Revista USP • São Paulo • n. 115 • p. 125-129 • outubro/novembro/dezembro 2017 127


livros / Homenagem

com a imagem criando coerência entre o produção da “imagem do mundo”, como,


experimentado e o transmitido. por exemplo, o contato que Benjamin teve
Os diários, por sua vez, possuem dife- com Abraham Ibn Ezra, importante rabino
renças de enfoque de acordo com a espe- do século XII, também de Tudela, que, após
cialidade de seu autor. Os diários de bordo anos discutindo os fundamentos hebraicos,
do período em que Benjamin realizou sua parte em viagem com o objetivo de atua-
viagem, por exemplo, ficaram conhecidos lizar tábuas e refazer medições astronômi-
como Diários Portulanos, por marcarem as cas. Juntamente com estudiosos latinos do
distâncias entre portos, produtos que entram norte da França e das Ilhas Britânicas, rea-
e saem dos navios, acidentes e incidentes liza traduções de obras de Aristóteles e de
possíveis durante a viagem e pela formação Ptolomeu, acrescidas das observações dos
de um vocabulário novo, resultado de pro- estudiosos de Bagdá, escritas em árabe ou
dutos e palavras inexistentes no vocábulo hebraico. É importante destacar que esse
do autor do diário, provavelmente um sábio estudioso hebreu, em seu texto El Libro de
que se guiará pelas estrelas e por elas con- los Fundamentos de las Tablas Astronómi-
duzirá o trajeto. O trabalho de comprovação cas3, menciona a Geografia de Ptolomeu,
das localizações e das distâncias entre os cita dela coordenadas de algumas cidades
pontos selecionados extrapola as condições e mostra a necessidade de sua correção a
de descrição dos viajantes em geral e entra partir da utilização de instrumentos mais
para a área das ciências naturais de então precisos, para obter uma imagem mais re-
– a astronomia, a matemática, a geometria alista das terras conhecidas, comprovando
–, criando a necessidade de que as viagens a utilização dessa obra pelos estudiosos da
fossem acompanhadas por estudiosos que época, bem antes da tradução de Jacob An-
pudessem ler instrumentos astronômicos e geli da Scarpia, feita em 1406.
realizar conversões matemáticas, conforme O material produzido por esse grupo
determina o método ptolomaico. de estudiosos dos séculos XII e XIII, re-
Essa produção literária deixou fértil ma- visando as tábuas astronômicas anteriores,
terial das e para as comunidades de saber. encontra-se documentado, no século XIV,
Benjamin produziu um texto relatando o em mãos da comunidade judaica produtora
que viu e ouviu durante o período em que de uma “imagem do mundo” convencio-
esteve fora de casa, por volta de 1159 a nalmente conhecida como padrão portu-
1173. Pertencente a uma comunidade judaica, lano, na verdade, o globo rendilhado em
seus relatos têm sentido particularmente es- 32 direções, o que permitiria uma precisão
pecial para a compreensão das atividades maior na localização dos pontos terrestres
exercidas pelos componentes dessa comu- e territórios, utilizando-se das ciências na-
nidade espalhados por toda a Europa oci- turais, além de vários dados extraídos dos
dental, adentrando no mundo asiático que,
segundo ele, começava em Chipre. Vários
pontos poderiam ser destacados desta nar- 3 R. Abraham Ibn Ezra. El Libro de los Fundamentos de
rativa para corroborar a afirmação de que las Tablas Astronómicas. Edição crítica, introdução e
notas de José María Millás Vallicrosa. Madri/Barcelona,
os diários contribuíram para a apreensão e Consejo Superior de Investigaciones Científicas, 1947.

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diários quanto às pessoas que povoam as composta ptolomaicamente, buscando uma
regiões mapeadas. Essa produção cartográ- precisão matemática aliada a dados socio-
fica, que expande a “imagem do mundo” econômicos e culturais de suas gentes. Um
em direção ao Atlântico, tem, entre seus retrato o mais próximo possível da reali-
exemplares, o Manuscrito Espagnol 30, o dade, tendência humanista que começa a
famoso Atlas Catalão, do judeu maiorquino se impor à sociedade medieval.
Cresques Abraham. O diário de Benjamin A edição do texto de Benjamin de Tudela
corrobora a história dessa produção na me- contribui para a compreensão dos primór-
dida em que atesta a presença da família dios da geografia como ciência, antes da
Benevistes na cidade de Posquieres, no Sul expansão marítima, por isso mesmo teria
da França, juntamente com Ibn Ezra. Essa sido importante incluir mapas produzidos
família, provavelmente expulsa de Paris no contemporaneamente às peregrinações de
final do século XI, se deslocará em direção Tudela. A utilização de imagens não refe-
à Maiorca, compondo a família de Cresques rentes ao período e a não catalogação cor-
Abraham. Sem dúvida, o Itinerário contri- reta delas, por vezes, criam uma fantasia
buiu de forma decisiva para a apreensão de histórica que não corresponde à realidade
uma concepção de mundo cuja imagem é geográfica medieval.

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livros / Homenagem

Um livro de cavalarias

Isabel Almeida

Palmeirim de Inglaterra, de Francisco de Moraes, edição de Lênia Márcia Mongelli, Raúl César
Gouveia Fernandes e Fernando Maués, São Paulo, Ateliê/Editora Unicamp, 2016, 744 pp.

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E
ditar, hoje, uma nar- oferece uma edição cuidada – enriquecida
rativa quinhentista co- por ilustrações e precedida de um claro pre-
mo Palmeirim de In- âmbulo –, bem como uma bibliografia, um
glaterra, de Francisco glossário, índices e até uma genealogia dos
de Moraes (c. 1500-c. Palmeirins. Sem caírem na tentação de re-
1572), exige uma fina duzir a extensa obra de Francisco de Moraes
consciência do que se a uma antologia breve, os editores facultam
pretende com tal ini- um Palmeirim de Inglaterra integral e for-
ciativa: a que público(s) se destina? Quais necem estimulantes pistas para a sua fruição.
as metas a atingir? Lênia Márcia Mongelli, Quem percorrer o preâmbulo, vê-lo-á re-
Raúl César Gouveia Fernandes e Fernando cortado em quatro secções: “O Ciclo dos
Maués – os responsáveis pela publicação aqui Palmeirins”, “Informações Biográficas”, “In-
recenseada – não se demoram a explicitar trodução” (subdividida em mais quatro pon-
uma resposta para esses quesitos, mas tor- tos: “De que Servem Livros de Cavalarias
nam evidente que os consideraram, seja nas Fingidas?”, “Da Utilidade dos Livros de Ca-
opções tomadas, seja no conciso anúncio do valarias Fingidas”, “‘Verdades’ de ‘Fingimen-
seu propósito maior: “[...] não se tratando de tos’ no Palmeirim de Inglaterra”, “Quando
edição crítica, o trabalho de estabelecimento o ‘Fingimento’ se Eleva à Mais Pura ‘Ver-
do texto foi norteado pelo objetivo de apre-
sentar uma versão fidedigna e acessível da
obra, tal qual ela se apresenta na edição de
Neste texto foi mantida a ortografia vigente em Portugal.
1567 [...], a versão mais difundida” (p. 54).
O volume agora dado à estampa há-de in-
teressar a leitores especializados e a curiosos
decididos a ousar o primeiro contacto com ISABEL ALMEIDA é professora da
um livro de cavalarias. A uns e outros se Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

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livros / Homenagem

dade’…”) e “Esta Edição”. Não custa per- a investigação já desenvolvida por estudiosos
ceber o rumo seguido. como António Dias Miguel, Aurelio Vargas
Preocupação fundamental foi enquadrar a Díaz-Toledo ou Margarida Alpalhão, e re-
obra de Moraes, lembrando que ela é parte cordam cartas de Moraes, com seus relatos
de uma tradição de raízes medievas, com miúdos de festas extraordinárias ou de um
franca afirmação (reforçada pela imprensa) quotidiano faustoso.
no século XVI. Palmeirim de Inglaterra – Proceder deste modo, i.e., contemplar,
notam os editores – surge num contexto de além do livro de cavalarias, diferentes gé-
florescimento dos ciclos fundados com Ama- neros cultivados pelo autor (cartas, um dis-
dís de Gaula e Palmerín de Oliva. Essa pro- curso autobiográfico designado “Desculpa
liferação começa por sobressair em território de Uns Amores” e ainda três diálogos), traz
castelhano, mas, como argutamente fazem benefícios: permite identificar interlocutores
crer os editores, o fenómeno revela-se tão e patrocinadores (com relevo para D. Leonor
complexo quanto fecundo: Palmeirim de In- de Áustria e sua filha, a Infanta D. Maria),
glaterra, quarto título dos Palmeirins, “des- lançando luz sobre redes de sociabilidade e
considera por completo as alterações sugeri- correspondências a distância; permite apurar
das no Platir” (p. 11), o terceiro da mesma subtis e significativas conexões entre textos
linhagem, e vincula-se aos dois primeiros, distintos (por exemplo, de acordo com os
maxime a Primaleón? Afinal, bem poderá editores, a matéria que constitui o cerne da
ter sido o auto vicentino de Don Duardos – “Desculpa” “externa-se” na misoginia fla-
recriação selecta de Primaleón – a despertar grante em Palmeirim de Inglaterra); permite,
a atenção de Francisco de Moraes para esse enfim, abarcando um todo, reconhecer nele
segundo livro do ciclo dos Palmeirins. Resta certa diversidade.
concluir: o sucesso das histórias fabulosas Asseveram os editores que, nos diálogos
superou fronteiras – genológicas e políticas. (só postumamente impressos, em 1624), Mo-
Em “Informações Biográficas”, vai sendo raes “envereda para uma outra direção: a dos
traçado o retrato de Moraes, autor moldado colóquios entre pessoas que discorrem sobre
em ambientes palacianos, ao serviço da fa- diversos temas […] para abordar assuntos po-
mília real ou da alta nobreza. Na verdade, lêmicos” (p. 19). Sem dúvida. No entanto,
mais do que um conjunto de dados, procura- apetece interrogar: trata-se, de facto, de “uma
-se aí desenhar um percurso, assinalar re- outra direção”? Este caminho não foi enge-
lações e destacar experiências. Cientes das nhosamente aberto na própria narrativa de
dificuldades próprias da pesquisa em do- Palmeirim de Inglaterra, em cujo capítulo
cumentos do século XVI, onde coexistem 106, por exemplo, se acha um embrionário
homónimos nem sempre destrinçáveis, os colóquio entre um cavaleiro e um ermitão?
editores retêm o que é inequívoco e fazem Que o género – livro de cavalarias – me-
avultar etapas como as estadas diplomáticas rece ponderada reflexão, mostra-o nitidamente
na corte de França, a respeito da qual Mo- a “Introdução”, ao apontar o carácter contro-
raes escreveu e para a qual enviou notícias. verso dessas obras, que arrastavam consigo
Lênia Márcia Mongelli, Raúl César Gouveia um antiquíssimo problema: a definição de
Fernandes e Fernando Maués não esquecem “falso” e “verdadeiro”, indissoluvelmente as-

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sociada ao debate sobre os conceitos de his- cas paixões; é “à margem das convenções
tória e de ficção – debate aceso e melindroso e da estereotipia” (p. 50) que constrói um
numa época em que as fábulas cavaleirescas Floriano do Deserto – o gémeo “rebelde”
fingiam ser história e a história acolhia em (p. 51) de Palmeirim, capaz de um “grito
si traços ficcionais. “Tempos cavaleirosos” de liberdade” (p. 51) que, em finais de Qui-
(p. 33), “séculos ‘heroicos’” (p. 29) – en- nhentos, já não seria facilmente tolerado.
fatizam os editores, buscando, em sínteses A presente edição não dá conta do que
panorâmicas, comparar o mundo medievo e foi, em 1592, a censura infligida ao texto
o renascentista, para melhor precisarem cada de Moraes. É pena. O leitor teria mais uma
um. Assim, advertem: Amadises e Palmei- razão para apreciar este trabalho, produzido
rins teriam, num século XVI que foi ainda com irrepreensível empenho e manifesto ri-
de conquistas e descobertas, “uma função gor. Cientes da fortuna editorial de Palmei-
didático-pedagógica” (p. 33). A ficção, com rim de Inglaterra, Lênia Márcia Mongelli,
todas as suas maravilhas, possuía uma vero- Raúl César Gouveia Fernandes e Fernando
similhança que a justificava, e Palmeirim de Maués preferiram concentrar-se no texto im-
Inglaterra – sublinham – entra nesse jogo presso em 1567, tendo embora em conta a
ambíguo. Também Moraes apresentou a nar- descoberta, propalada por Margarida Alpa-
rativa como traslado de uma velha “crónica”, lhão, de uma edição hipoteticamente anterior
de origem ignota. E também ele a compôs – porventura a editio princeps, de c. 1544.
de maneira a, por meio da representação de Qualquer empresa suscita discussão (os
fantasias, excessos, desejos e lutas, projectar editores sabem-no melhor que ninguém). Po-
questões e modelos actuantes. deremos pensar que alguns dos critérios de
Lênia Márcia Mongelli, Raúl César Gou- modernização e regularização ortográfica fo-
veia Fernandes e Fernando Maués não que- ram demasiado audazes. Converter “vertude”
rem, na “Introdução”, resumir o texto de em “virtude” ou “ingres” em “inglês”; elidir
Moraes. Aplicam-se, sim, por um lado, a a oscilação entre formas como “emparar” e
fazer sobressair grandes eixos da fábula e “amparar” são saltos que a história da lín-
recursos típicos das narrativas cavaleirescas gua não aconselha. Apagar a separação de
(desde as peripécias que ensombram o nasci- “partes” da narrativa e renumerar capítulos
mento do primus inter pares até ao conflito tão pouco parece necessário ou vantajoso.
entre cristãos e “inimigos da Fé” – p. 36); Reparos desse teor, porém, não diminuem
por outro lado, salientam uma qualidade que o mérito da obra realizada.
distingue o autor: a sua destreza na imita- Francisco de Moraes, se os documentos
ção de padrões estabelecidos ou no engen- não nos enganam, terá navegado por mar
dramento de marcas singulares. V.g., é “na até Ceuta e até França. A longa travessia do
contramão do paradigma” (p. 46), “sob uma Atlântico, só a sua narrativa a fez. Sorte dos
óptica […] a que não é estranha a noção de livros. Pleno de sabedoria e de graça, Palmei-
alteridade posta em voga pelo expansionismo rim de Inglaterra continua a ser fascinante.
marítimo” (p. 46) – vincam os editores – que A edição levada a cabo por Lênia Márcia
Moraes concebe figuras como as gigantas Mongelli, Raúl César Gouveia Fernandes e
Arlança e Colambar, atribuindo-lhes trági- Fernando Maués aí está para o provar.

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Europa Central Brasil Rural Balanço da Crise


95Desafios
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Universidade
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Tecnologias 20 Anos de Cibercultura


96
Alcoolismo
106
Crise Hídrica
Redemocratização

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Computação
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da Física em Nuvem

Rumos da Ar/Fogo Humor na Mídia


98Memória
108
Jogos Olímpicos
Universidade

Alternativas para Financiamento da Ciência, Tecnologia


99 109
Futebol Democracia na
o Século XXI Pesquisa no Brasil e Inovação América Latina

50
Revista Cinquenta Pensando o Futuro: Marketing Político
100 110
Educação Ética e Sociedade
Ciências Exatas

Saúde Gestão e Política na Catástrofes


101 111
Justiça Brasileira Música Popular
Universidade Pública Brasileira na USP

Os Sertões: Bibliotecas Digitais/ Redes Sociais


102 112
Metrópoles Americanistas
Cem Anos Bibliotecas Virtuais

Revolução Virtual Nabuco


93
Caminhos do
103 113
Clima Amazônia Azul
e a República Desenvolvimento

Cosmologia Vinte Anos da


94
Semana de
104 114
Energia Elétrica Interculturalidades
Queda do Muro Arte Moderna

Já está programado o próximo volume: no 116 – Pós-Verdade e Jornalismo

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