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EMERJ – CP III Direito Civil III

Tema I

Contratos: noções gerais. conceito e evolução. Princípios fundamentais. A nova ótica contratual. Os
princípios contratuais da autonomia da vontade, da obrigatoriedade, da relatividade e do consensualismo e
suas mitigações. A função social dos contratos. O princípio da probidade e da boa-fé. A boa-fé objetiva e sua
distinção da boa-fé subjetiva. Aplicabilidade do princípio da boa-fé objetiva nas diversas fases do contrato.

Notas de Aula1

1. Principiologia contratual: breve evolução histórica

1.1. Autonomia da vontade

Com o fim do Estado absolutista, em 1789, pela Revolução Francesa, teve início a
era do Estado liberal, em que se primou pelo repúdio a toda e qualquer interferência estatal
sobre aquilo que se considerasse privado. de fato, foi-se de um extremo a outro: da grande
ingerência do Estado, opressiva, absolutista, a uma liberdade igualmente extremada,
calcada em quatro grandes pilares: a constituição como instrumento fruto da vontade do
povo, e não mais do soberano, manifestada por meio de representantes eleitos; a lei,
representando a mesma vontade popular, em menor escala; a razão, o racionalismo,
concepção de pensamento que buscava explicar tudo à luz das regras da razão (concepção
que colocava-se em exata contraposição ao predomínio da igreja, que era quem legitimava
o absolutismo, com seu apoio, com a escolha divina dos soberanos); e, por último, e mais
importante neste estudo que se faz agora, o contratualismo.
A Revolução Francesa promoveu uma síntese das relações humanas a uma
perspectiva quase que exclusivamente contratual, entre pares e mesmo entre os cidadãos e o
Estado. Não por acaso, é desta época O Contrato Social, de Rousseau, que explica a
natureza do Estado de forma contratualizada.
Veja que este contratualismo é fruto direto do ideal libertário da época, pois nada
premiava tão claramente a liberdade do que permitir que os indivíduos pactuassem e
ajustassem, sem interferências, os seus interesses. A vontade passou a ser soberana. E isso
era a liberdade maior que se podia conceber.
Neste diapasão, o contrato surge com a mais profunda ligação ao princípio da
autonomia da vontade, princípio também chamado (emblematicamente) de liberdade de
contratar. O contratualismo liberal tinha na autonomia da vontade seu maior baluarte,
justamente porque se pensava que a maior expressão da dignidade da pessoa humana era a
possibilidade de exprimir livremente a sua vontade. Mesmo por isso, algumas expressões
representativas desse ideário foram cunhadas, e adotadas dogmaticamente à época: como
exemplo, citava-se como dogma que “tudo que é contratual é justo, desde que as partes
sejam livres para contratar”, ou “diz-se contratual, diz-se justo”. Percebia-se que a única
medida de justiça de um contrato era a liberdade em contratar, porque o próprio contratante,
ao manifestar livremente sua vontade, era fiscal daquilo que lhe iria ter pertinência.
O Estado, então, deveria preocupar-se tão-somente em garantir a liberdade em
contratar, a livre manifestação da vontade, porque o filtro de regularidade do restante seria
incumbência das próprias partes manifestantes. Este Estado liberal era um grande Pontius

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Aula proferida pelo professor Sylvio Capanema de Souza, em 28/1/2009.

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Pilatus, lavando as mãos diante do conteúdo dos contratos, alheando-se completamente de


intervir na substância dos contratos livremente pactuados.
É claro que o próximo passo evolutivo não tardou a vir. Tão breve quanto possível,
se pôde fazer notar que a autonomia da vontade, a liberdade em contratar, não representava
a medida da justiça de forma fiel, porque, na prática, o equilíbrio não vem da liberdade das
partes: mais que isso, é preciso que estas sejam iguais para que um contrato seja realmente
justo. Veja: se uma das partes é mais forte que a outra, em qualquer aspecto, a tendência é
que seus interesses prevaleçam sobre os interesses da mais fraca, e a mera possibilidade de
se manifestar autonomamente não impede que o pacto dali resultante seja tremendamente
injusto – mesmo que tenha havido livre manifestação da vontade.
As relações trabalhistas ilustram bem esta falsa liberdade. A disparidade entre os
detentores dos meios de produção e os trabalhadores fazia com que os contratos de trabalho
fossem firmados na forma e medida que melhor atendesse ao empregador, por mais que
fosse livre o trabalhador para contratar-se ou não. Anatole France, autor francês da época,
tem uma frase emblemática: o trabalhador era “maravilhosamente livre para morrer de
fome”.
Percebido isto, esta disparidade, esta desigualdade que tornava a autonomia da
vontade um tanto quanto inútil, percebeu-se também que seria necessário promover a real
liberdade, que só se poderia alcançar por meio de certa igualdade. Como é
naturalísticamente impossível produzir a igualdade total, o equilíbrio contratual precisava
ser buscado de outra forma. Dali surgiu certa mitigação à autonomia da vontade –
mitigação, jamais abolição –, consubstanciada no dirigismo contratual.
Este dirigismo se trata, em última análise, da mão invisível do Estado pousada sobre
o pacto privado, com o objetivo de equilibrar uma relação que é naturalmente
desequilibrada. O Estado, deixando de ser mero espectador e passando a dirigir o contrato
de maneira a proteger a parte mais vulnerável, promove o equilíbrio que a própria parte
mais fraca jamais conseguiria promover. Este Estado intervencionista, sucessor do Estado
liberal clássico, salomonicamente, torna a parte que é naturalmente mais vulnerável em
uma figura juridicamente mais forte. Hoje, esta mentalidade vige forte em diversos
exemplos: a legislação trabalhista, a legislação consumerista, a lei das locações, etc.
O dirigismo se manifesta de duas formas diferentes: ora impõe algumas cláusulas
contratuais que provavelmente não estariam ali presentes pela vontade pura das partes,
como quando a legislação trabalhista prevê as regras gerais do contrato individual de
trabalho, impondo carga horária máxima, por exemplo (que, fosse ainda vigente o
liberalismo clássico, certamente seria a carga horária que o empregador impusesse); ora
proíbe certas cláusulas, que se presentes exibiriam toda a sobrepujança de uma parte sobre
a outra – como as cláusulas abusivas vedadas em contratos de consumo. Hoje, aliado a esta
concepção vigente do dirigismo contratual, há alguns princípios de grande poder de
promoção da paridade contratual, e dentre eles surge com tremenda significância a função
social do contrato, mitigação ao princípio da autonomia da vontade que demonstra que a
sociedade está atenta à justiça dos pactos como medida de justiça de si própria.

1.2. Força obrigatória dos contratos

Outro princípio fundamental, elevado à categoria de norma inquestionável e


imitigável em épocas de liberalismo estatal, é o da força obrigatória dos contratos, também

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chamado de imutabilidade dos contratos, princípio originado do Direito Romano,


representado no famigerado brocardo pacta sunt servanda.
Na concepção pura, originária – e, diga-se, conceitualmente perfeita – o contrato
surge para ser cumprido. Do contrato promanam condutas obrigatórias para as suas partes,
é um vínculo jurídico que obriga as partes, não podendo ser modificado por meios outros
que não o próprio meio que se lho cria: o consenso. À mais pura expressão, a imutabilidade
do contrato significa que sequer o Judiciário pode alterar aquilo que a vontade criou.
Esta concepção tão severa do pacta sunt servanda, vigente à época do liberalismo
clássico (tão severa que Kelsen colocava este princípio, ao lado da autonomia da vontade,
no topo da pirâmide normativa do contratualismo liberal), não pôde se sustentar por muito
tempo. A cláusula rebus sic stantibus, que torna possível a revisão contratual, praticamente
desapareceu no Estado liberal clássico, pois que consiste justamente em uma fragilização
deste princípio da força obrigatória dos contratos.
No direito moderno, é claro que o pacta sunt servanda é vigente, e forte, sendo
decerto um dos pilares do contratualismo moderno. É princípio fundamental para o
equilíbrio social, para a estabilidade das relações. O que este princípio não é, agora, é
absoluto, pois a nova ordem jurídica, relendo estes conceitos pela necessária dialética
normativa que a evolução social impõe, atenuou a severidade de tal força obrigatória,
fazendo surgir as novas teorias revisionistas do contrato.
A cláusula rebus sic stantibus, então, exprime bem esta revisão da concepção
contratual. Esta cláusula permite que se resolva ou modifique um contrato a pedido de uma
só das partes, ou seja, superando o consenso como elemento inarredável que o era, sempre
que um fato superveniente provoque o rompimento grave da equação econômica do
contrato.
Entenda-se: as partes de um contrato o celebram na pressuposição de que a situação
econômica que sobre aquela relação paira permaneça a mesma. Se esta pressuposição se
rompe, com o manifesto prejuízo de uma das partes, nada mais justo que se modificar, ou
mesmo resolver o contrato, de forma a restaurar o equilíbrio inaugural da relação.
As teorias revisionistas, em suas diversas vertentes – teoria da imprevisão, da
onerosidade excessiva, da pressuposição, da quebra da base econômica dos contratos, etc
–, todas elas calcam-se em um mesmo estuário, que é justamente o reequilíbrio da equação
econômica do contrato, desequilibrada no curso temporal de sua existência. São, todas estas
teorias, mitigações justas ao pacta sunt servanda.
O novo Código Civil brasileiro, diploma típico do Estado intervencionista que
vigora, é claro que acolhe estas idéias revisionistas. O já mencionado princípio da função
social dos contratos, limitador da autonomia da vontade, vem expresso logo no primeiro
artigo do livro referente aos contratos, o artigo 421 do CC:

“Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função
social do contrato.”

Esta previsão denuncia a nova concepção do contrato, que mais do que um


instrumento de circulação de interesses, deve ser um gerador de bem estar social, capaz de
produzir efeitos positivos entre os contratantes e para além deles. Além deste dispositivo,
há uma “sensação” geral de proteção ao equilíbrio contratual espargida por todo o codex,
tal como se vê nos institutos da lesão e do estado de perigo, erigidos como vícios do

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consentimento capazes de anular o contrato, ou da onerosidade excessiva, do artigo 478 do


CC, causa resolutiva legal do contrato:

“Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de


uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a
outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o
devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar
retroagirão à data da citação.”

Há que se consignar um comentário apartado sobre este artigo 478. Em que pese ser
uma expressão altamente positiva do dirigismo contratual, o legislador pecou em sua
concepção, ao prever que a onerosidade excessiva só autoriza a resolução do contrato se
causada por evento extraordinário e imprevisível. Isto porque, tendo ou não estas
qualidades, o desequilíbrio ainda persiste, e a resolução ainda é necessária, tanto que, no
Código de Defesa do Consumidor, o mesmo instituto é traçado, no artigo 6º, V, sem esta
imprevisibilidade como elemento essencial. Veja:

“Art. 6º São direitos básicos do consumidor:


(...)
V - a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações
desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem
excessivamente onerosas;
(...)”

1.3. Consensualismo

O contrato, é certo, nasce com o consenso das vontades. Não é preciso nenhum
outro ato, senão o consenso das vontades, para que haja contratação aperfeiçoada, em regra.
O vínculo surge desde que há vontade plural manifesta. Mesmo por isso, em uma compra e
venda, por exemplo, a entrega da coisa e o pagamento do preço são atos de execução do
contrato, que já se aperfeiçoou antes, quando da emissão da proposta e da aceitação,
manifestação das vontades.
Esta regra, contudo, também conta com mitigações, e são elas os contratos
classificados como reais. Nestes contratos, não basta o consenso para que se aperfeiçoem.
Não é suficiente que haja a manifestação de vontade do proponente e do oblato. O contrato
real só se aperfeiçoa, só existe o contrato, quando há a entrega da coisa, a tradição. No
Código Civil de 2002, há quatro contratos reais típicos: o mútuo, empréstimo de coisas
fungíveis; o comodato, empréstimo de coisas infungíveis; o depósito; e, inovação, o
contrato estimatório.

1.4. Relatividade

Os contratos são oponíveis apenas entre as pessoas que deles tomam parte, ao
contrário dos direitos reais, oponíveis erga omnes. Somente quem faz parte da relação
contratual pode exigir cumprimento da conduta ajustada, ou ser compelido a cumpri-la. O
contrato só vincula os contratantes, não podendo ser oposto a quem dele não participe – são
lex inter partes.
Também este princípio enfrenta mitigações. A estipulação em favor de terceiro,
modo de contratar que tem muita presença na realidade negocial atual, é um exemplo: os

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contratantes podem estipular que uma das prestações emanadas de seu contato seja
adimplida junto a um terceiro, beneficiário alheio ao contrato, e que passa a ter legitimidade
para exigir tal cumprimento do devedor, mesmo sem ter jamais participado da formação do
contrato. Exemplo de contrato desta espécie é o contrato de seguro de vida.
O CC, de fato, apresenta mais duas modalidades expressas que consistem em
mitigações à relatividade contratual: além da estipulação em favor de terceiro, há a
promessa de fato a terceiro, e a surpreendente inovação do contrato com pessoa a declarar,
no qual uma das partes se reserva o direito potestativo a indicar uma pessoa que,
futuramente, substituirá a si mesmo no pólo contratual que ocupa. Serão, todas as hipóteses,
estudadas detalhadamente em momento oportuno.

1.5. Boa-fé

Este princípio contratual é de tamanha relevância que pode ser considerado uma
cláusula geral sobrejacente, inclusive, a todos os demais princípios. Também por isso, é o
único princípio que não comporta qualquer exceção: não há mitigações à exigência da boa-
fé nas relações contratuais.
Ocorre que, entretanto, se algum princípio sofreu alteração significativa – alteração,
veja, e não mitigação –, este princípio foi a boa-fé. A mudança da concepção da boa-fé
subjetiva para a boa-fé objetiva é realmente paradigmática. Entenda: a boa-fé subjetiva
consistia em um estado psicológico, em um princípio ético, verificado junto às intenções do
indivíduo, e por isso não tinha tanta relevância para a regularidade dos pactos, uma vez que
era um princípio ético: bastava que a parte tivesse a intenção de agir com probidade para
estar cumprida a exigência deste princípio, quando subjetivo.
Hoje, porém, a boa-fé não se refere ou se contenta com a intenção do agente. É
necessário que haja uma conduta de boa-fé, ou seja, é necessário que se possa perceber
objetivamente a presença da boa-fé. A boa-fé é um dever jurídico, cláusula implícita em
todos os contratos imagináveis. Veja o que dispõe o artigo 422 do CC:

“Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do


contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.”

Esta cláusula imposta pelo dirigismo contratual exerce uma tríplice função: é
método de hermenêutica, regra de interpretação dos negócios jurídicos, na forma do artigo
113 do CC:

“Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os


usos do lugar de sua celebração.”

Segundo esta regra, a análise da honestidade na condução do pacto é parametrizada


pela boa-fé, servindo como um trilho da conduta esperada, parâmetro da conduta standard
que se espera dos agentes, dando ao intérprete os meios para, espelhando aquilo que
analisa, saber se está ou não em consonância com o ordenamento.
A segunda função da boa-fé objetiva é justamente ser uma regra de execução do
contrato, ou seja, é a própria boa-fé contratual, que traça a forma pela qual os contratantes
devem se conduzir. Esta função é depreendida diretamente do artigo 422 do CC, há pouco
transcrito. Veja que o legislador criou ali uma obrigação às partes, e não uma mera

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exortação, um conselho de como conduzir-se: é imposta aos contratantes a atenção à boa-


fé, obrigação cujo cumprimento será objetivamente verificado.
A terceira função da boa-fé objetiva é justamente a de integração do contrato,
quando for necessário promover seu equilíbrio econômico. Veja: é de se esperar que um
homem honesto, que se porta de acordo com a expectativa social de justiça, saiba que
vantagens exageradas não promovem o escopo social do contrato. O benefício econômico
do contrato deve ser perseguido, sem sombra de dúvidas – é uma das funções do contrato,
girar riquezas –, mas não de forma exacerbada, capaz de trazer ruína ao co-pactuante. Por
isso, a boa-fé é o limite: se, objetivamente, estiver clara a disparidade excessiva, fica claro
que o contratante beneficiado não estava de boa-fé – e aí reside a enorme inovação da
concepção objetiva, pois mesmo que estivesse subjetivamente de boa-fé, crendo-se em
correção de conduta, ainda há ausência da atuação objetivamente de boa-fé.
Da boa-fé objetiva surgem consectários, desdobramentos de tremenda importância,
sub-princípios que a identificam e tornam operável o que a boa-fé dita. Vejamo-los.

1.5.1. Lealdade

Este consectário da boa-fé objetiva exige que os contratantes zelem pelas


expectativas que estão criando na mente dos seus relacionandos. É tão importante portar-se
de forma leal que até mesmo na fase das tratativas é imponível o respeito a tal preceito,
tratativas estas que, no passado, eram virtualmente ignoradas pelo direito.
Entenda: mesmo antes de se emitir a vontade de vez, firmando o contrato, é
necessário que as partes tenha cuidado com aquilo que estão a despertar umas nas outras. É
importante não obnubilar suas verdadeiras intenções, assim como deixar cristalina todas as
peculiaridades do negócio jurídico que se está pretendendo aperfeiçoar. Objetivamente,se
pode exemplificar esta reverberação da boa-fé, na lealdade exigida, pelo desencorajamento
implícito à formulação de propostas dúbias, que conduz a uma interpretação favorável ao
que se sentiu desinformado – o que nos leva ao próximo consectário da boa-fé, o princípio
da informação.

1.5.2. Informação

As partes não podem sonegar informações quaisquer, de qualquer natureza, que


possam influir no bom resultado de um contrato. Informar a respeito de absolutamente tudo
que seja pertinente ao contrato é conduta honesta, standard que se espera de todos os
indivíduos em sociedade.
O CDC considera tão relevante a informação que a sua ausência é considerada um
vício do produto ou serviço, tal como se um vício físico a inutilizar o objeto contratado
fosse presente.
Íntima correlação com o dever de informação tem o princípio da transparência: as
partes devem eximir-se de qualquer conduta que obscureça a realidade contratual, o que se
faz especialmente relevante quando da redação de contratos escritos, em que uma das partes
seja um tanto mais vulnerável.

1.5.3. Cooperação

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Este consectário da boa-fé determina que as partes têm que se ajudar na


consumação do contrato, ou seja, hão de conduzir-se de forma a facilitar o adimplemento
das obrigações uns dos outros, portando-se de forma proba,e até mesmo socorrista, em certa
monta.
Há correlação entre o princípio da cooperação e o da preservação dos contratos: as
partes devem conduzir-se de forma a favorecer a perfeita execução do contrato, evitando
sua extinção anômala, qualquer que seja – a dissolução prematura do contrato só deve
ocorrer se impossível for sua manutenção.

1.5.4. Teoria da vedação aos comportamentos contraditórios

Em razão do peso da boa-fé, hoje, surgem teorias derivativas que têm ganhado
presença cada vez mais significativa no ordenamento. Uma das mais marcantes pode ser
nomeada genericamente como teoria da vedação aos comportamentos contraditórios, que se
manifesta em diversas subespécies. Vejamos.
A primeira manifestação desta teoria é o famigerado nemo potest venire contra
factum proprium, que, em síntese, significa que a adoção comum de uma determinada
conduta impede que seja legítima uma outra conduta absolutamente contrária. Esta
situação, que certamente surpreende a outra parte, é conduta que não corresponde à boa-fé
objetiva e seus paradigmas. Isto porque a adoção de determinada conduta, por tempo
razoável, incute na mente da outra parte a expectativa de que esta conduta se solidificou e
não será alterada, sobremaneira em repente.
Outra espécie é a supressio: esta consiste em uma redução da obrigação
correspondente a um direito que, por certo tempo razoável, não foi exercido pelo seu titular.
É, de fato, a perda proporcional de um direito que não foi exercido, e que, de acordo com o
correr do tempo, passa a demonstrar que se for plenamente invocado será, de fato, abuso de
direito. Veja que, ao não exercer o direito por período significativo, o titular incutiu na
mente da outra parte a sensação de que não seria mais exercido tal direito, e por isso passa a
ser abusivo o exercício deste direito agora, após a criação da expectativa de não invocação
deste. Este exercício, nesta condição, seria conduta contrária àquela que se consideraria de
boa-fé.
Da mesma forma, mas em sentido contrário, surge a surrectio, que é a aquisição de
um direito pela reiteração, por tempo razoável, de uma conduta que não sofreu oposição
pela outra parte. Esta não oposição cria a expectativa, e cria o próprio direito a, se
porventura oposição vier, repudiá-la, pois que esta oposição tardia será contrária à boa-fé.
O CC traz duas hipóteses expressas de supressio, nos artigos 329 e 330:

“Art. 329. Ocorrendo motivo grave para que se não efetue o pagamento no lugar
determinado, poderá o devedor fazê-lo em outro, sem prejuízo para o credor.”

“Art. 330. O pagamento reiteradamente feito em outro local faz presumir renúncia
do credor relativamente ao previsto no contrato.”

O artigo 330 é que é de fato a hipótese, porque ali fica clara a perda do direito de
exigir o pagamento no local pactuado, quando reiteradamente for admitido em local
diverso.

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Mais uma reverberação desta vedação à contradição como medida de implemento


da boa-fé é o tu quoque2. Esta novel teoria consiste, em termos rasos, na vedação à
exigência de comportamento tal que, quando aquele que exige se encontrava em situação
idêntica, não adotou, ele próprio, o comportamento exigido. Explique-se: é algo como a
perda da legitimidade para exigir um comportamento por não ter, este que exige, observado
tal comportamento quando dele este era exigível.
Exemplo de invocação do tu quoque seria o de um condômino que exige prestações
de contas mensais do síndico, sendo que este condômino fora síndico outrora e, à sua
época, jamais prestou tais contas: não tem, portanto, autoridade moral para exigir tal
conduta, porque não é objetivamente de boa-fé tal exigência partida de quem não a cumpriu
quando em situação análoga.

1.5.5. Vigência da boa-fé

O princípio da boa-fé é de tal importância que se faz sentir até mesmo nas fases pré
e pós contratuais. É possível se invocar a atenção à boa-fé nas tratativas ou após a execução
extenuada do contrato, e isto é uma verdadeira revolução nesta seara do direito.
Veja: as tratativas, especialmente, sempre foram tidas como irrelevantes ao direito,
modo que o seu abandono por uma das partes, por exemplo, jamais ensejou
indenizabilidade à parte oposta. Da mesma forma, depois de findo o contrato, há ainda que
se atentar para deveres que são surgidos unicamente da boa-fé.
Como exemplo, o fornecedor que coloca um produto durável no mercado, se retirá-
lo de produção, não poderá deixar de oferecer peças de reposição por tempo razoável após a
cessação da produção do próprio produto – o que decorre da boa-fé pós-contratual, porque
o contrato em si já pode ter-se executado e exaurido. Um exemplo seria a retirada de um
automóvel de linha: a compra e venda exaure-se na entrega do bem e paga do preço, mas a
obrigação de oferecer peças de reposição perdura muito após a retirada do automóvel em
questão da linha de produção, ou seja, muito após a execução final da compra e venda, o
término do contrato.

Casos Concretos

Questão 1

2
Este nome vem da famosa expressão do imperador romano César, que, em suas últimas palavras, ao ser
esfaqueado por seu protegido Brutus, exclamou “tu quoque, Brutus, fili mi?”, significando “até tu, Brutus,
meu filho?”. A lógica da adoção deste nome, me parece, significa que quando há a demanda por um
comportamento, não tem autoridade para assim demandar aquele que deveria ter assim se portado no passado,
e não o fez. Seria algo como “até você, que não se comportou desta forma, vem exigir de mim que assim me
comporte?”. Ressalto que esta é uma interpretação pessoal, não abalizada em doutrina.

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A empresa de enlatados XIXA anualmente compra a safra de tomates do agricultor


RIBAMAR, inclusive disponibilizando-lhe materiais como sementes e caixas para o
armazenamento da produção, situação essa que se repete com habitualidade. Ocorre que,
neste ano, a empresa resolve contratar outros agricultores da mesma região, atraindo-os
para o cultivo dos tomates, e igualmente distribuindo-lhes sementes e caixas, sem
comunicar tal fato a RIMAMAR. No mês de novembro, época em que normalmente era
adquirida a colheita de RIBAMAR, este dirige-se à empresa XIXA, que lhe informa não
mais desejar comprar sua produção, tendo em vista já haver recebido tomates dos outros
agricultores da região. Inconformado, RIBAMAR ingressa com ação de reparação de
danos em face de XIXA, postulando inclusive lhe sejam ressarcidos os custos decorrentes
da parte da produção que não conseguiu vender para outras empresas. Em contestação, a
empresa XIXA invoca a ausência de contrato escrito. Decida o caso acima, à luz do
entendimento jurisprudencial sobre a matéria.

Resposta à Questão 1

Este caso deixa transparecer a aplicabilidade da vedação ao venire contra factum


proprium, pois a conduta passada da empresa, reiterada, fez surgir para Ribamar a
expectativa real e sólida de manutenção do contrato. No mínimo, deveria ter sido notificado
da descontinuidade do contrato em tempo hábil, mas ainda assim deveria ser indenizado
pelo que despendeu crendo mantido o pacto.
Assim se posicionou o TJ/RS, em caso emblemático, como se vê na apelação cível
591028295:
“EMENTA: CONTRATO. TRATATIVAS. "CULPA IN CONTRAHENDO".
RESPONSABILIDADE CIVIL. RESPONSABILIDADE DA EMPRESA
ALIMENTICIA, INDUSTRIALIZADORA DE TOMATES, QUE DISTRIBUI
SEMENTES, NO TEMPO DO PLANTIO, E ENTAO MANIFESTA A
INTENCAO DE ADQUIRIR O PRODUTO, MAS DEPOIS RESOLVE, POR
SUA CONVENIENCIA, NAO MAIS INDUSTRIALIZA-LO, NAQUELE ANO,
ASSIM CAUSANDO PREJUIZO AO AGRICULTOR, QUE SOFRE A
FRUSTRACAO DA EXPECTATIVA DE VENDA DA SAFRA, UMA VEZ QUE
O PRODUTO FICOU SEM POSSIBILIDADE DE COLOCAÇÃO.
PROVIMENTO EM PARTE DO APELO, PARA REDUZIR A INDENIZAÇÃO À
METADE DA PRODUÇÃO, POIS UMA PARTE DA COLHEITA FOI
ABSORVIDA POR EMPRESA CONGÊNERE, ÀS INSTÂNCIAS DA RÉ. VOTO
VENCUIDO JULGANDO IMPROCEDENTE A AÇÃO.”

Questão 2

Na fase final das tratativas, o proponente desiste de prosseguir nas negociações.


Tem o outro policitante direito à indenização pelas despesas que realizou? Ocorrendo ou
não o direito, qual seria a espécie de responsabilidade?

Resposta à Questão 2

Mesmo que a fase de tratativas seja isenta de vínculos, normalmente, porque é mera
pesquisa prévia à policitação – tratativa não é proposta –, na casuística em que se

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demonstre a avançada criação de expectativa de solidez no crédito a ser contratado permite


que a boa-fé seja invocada como dever a ser observado, merecendo, sua quebra,
indenização, tratando-se de responsabilidade aquiliana, e não contratual, na fase das
tratativas, por conta do abuso do direito de desistir.
Veja: se o tratamento na fase pré-contratual foi tão convincente que a parte previra
como certa a contratação, suas despesas são indenizáveis.
Assim se posicionou o TJ/RJ, na apelação cível 2003.001.34607:

“RESPONSABILIDADE CIVIL. PRE-CONTRATO. ARREPENDIMENTO DO


NEGOCIO. ABUSO DE DIREITO. RESSARCIMENTO DOS DANOS.
Acao indenizatoria. Responsabilidade civil pre-contratual. Abandono das tratativas.
Abuso de direito. Aplicacao dos principios da boa-fe' objetiva e da funcao social. A
regra geral admite que qualquer das partes pode se retirar das tratativas,
independentemente de pagar perdas e danos, e sem precisar declinar as razoes. Se,
entretanto, a parte se conduz, durante as negociacoes preliminares, de tal maneira
convincente, que incute na mente da outra a certeza da realizacao do contrato, e
depois se arrepende, nao o firmando, isto traduz abuso de direito, que se equipara
ao ato ilicito, fazendo gerar o dever de indenizar. Nao se pode considerar como
simples minuta, so' para exame, o instrumento entregue por uma parte a outra, em
2 vias, com todos os dados preenchidos, e ja' ambas as vias assinadas por
testemunhas, sendo que uma delas e' o proprio advogado da parte que encaminhou
o documento. Revestida de tais caracteristicas, o documento deixa de representar
uma minuta, e se converte em policitacao, que tem forca obrigatoria, e cuja retirada
obriga a indenizar. A boa-fe' deve ser respeitada em todas as fases do contrato,
mesmo durante a preliminar, e tal principio nao se aplica apenas apos o advento do
Novo Codigo Civil. Provimento parcial do recurso, para fixar a indenizacao no
valor de R$ 15.000,00, com a inversao dos onus sucumbenciais, por maioria,
ficando vencido o Relator original, que negava provimento ao recurso. Ementa do
voto vencido do Des. Ivan Cury. Acao pelo rito ordinario. Validade do pre-contrato
ou contrato preliminar. Parte que propoe acao para cobranca de valores clausulados
em contrato que nao chegou a ser aperfeicoado. Pedido julgado improcedente. No
sistema do Codigo Civil de 1916 o direito positivo patrio nao previa o contrato
preliminar,cujo instituto foi introduzido entre nos pelo Novo Codigo Civil, artigo
462, que exige instrumento escrito e registrado no registro competente. Recurso
conhecido e improvido.”

Questão 3

José Antonio Fernandes, proprietário de um edifício comercial no Bairro da Penha,


foi procurado por um funcionário da empresa NEXTIL, o qual lhe informou que a empresa
estava interessada em locar parte da área do imóvel em questão para instalação de uma
antena de recepção de telefonia celular. Após negociações, as partes avençaram a locação,
com prazo de 10 anos, e aluguel mensal de R$ 2.500,00, além das demais condições
locatícias. A empresa NEXTIL elaborou o contrato em duas vias, sem apor sua assinatura,
mas com todos os dados preenchidos. O contrato foi assinado por duas testemunhas, sendo
uma delas, o gerente jurídico da empresa, que negociou as condições contratuais com o
proprietário. Após receber e examinar o documento sem nada alterar, José Antonio
Fernandes assinou as duas vias contratuais, reconheceu sua firma em cartório e devolveu
uma das vias para a empresa no prazo de três dias, convencido de que o contrato se
aperfeiçoara. Passados alguns dias sem receber notícias e com sua via assinada, Jose
Antonio Fernandes entrou em contato com a NEXTIL, ocasião em que lhe foi comunicado,

Michell Nunes Midlej Maron 10


EMERJ – CP III Direito Civil III

para sua surpresa, que a empresa desistira do negócio, optando por outra área, o que,
segundo ela, se fazia possível por não ter assinado o contrato. Diante das circunstâncias
do caso, decida fundamentadamente:
1) A desistência da empresa se afiguraria regular?
2) Terá direito o outro solicitante a indenização?
3) Se afirmativa a resposta, qual o fundamento legal?
4) Ocorrendo ou não o direito, qual seria a espécie de responsabilidade?

Resposta à Questão 3

1) A desistência é irregular, pois que se criou na mente da parte a expectativa real


de contratação. Na fase das tratativas houve danos a serem reparados pela
desistência, e estes serão imputados à sociedade desistente.

2) Sim, será indenizável tudo aquilo que lhe foi causado de dano pelo abuso de
direito em desistir da contratação.

3) Como se trata de abuso de direito, o artigo 187 do CC o prevê como ato ilícito, e
por isso indenizável, na forma do artigo 927 do mesmo Código.

4) Trata-se de responsabilidade aquiliana, calcada na teoria do abuso do direito,


quando violador da boa-fé objetiva.

Tema II

Classificação dos contratos: contratos unilaterias, bilaterais e bilaterais imperfeitos. contratos gratuitos e
onerosos. contratos comutativos e aleatórios. contratos solenes e não-solenes ou consensuais. contratos

Michell Nunes Midlej Maron 11


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reais. contratos principais e acessórios. contratos típicos e atípicos. contratos paritários e de adesão. o
contrato de adesão no Código Civil (arts. 423 e 424) e no Código de Defesa do Consumidor.

Notas de Aula3

1. Classificação dos contratos

A importância da classificação dos contratos reside na necessidade de se organizar,


por meio de uma relativa padronização, as idéias que circundam uma determinada matéria.
A classificação decorre da necessidade de ordenação e clareza das idéias. Ela se dá por
meio da organização, em categorias comuns, dos fenômenos que costumam surgir de
maneira esparsa e desordenada no cotidiano.
Através da classificação é possível diferenciar e analisar as especificidades de cada
tipo contratual. Como exemplo, a diferenciação em contratos gratuitos ou onerosos é
relevante para se definir que nos contratos gratuitos a interpretação é restritiva, diante do
gravame que representa uma liberalidade, que não recebe qualquer contraprestação, diante
do animus donandi presente. Dar uma interpretação ampliativa à vontade de quem pratica a
liberalidade pode significar majorar sua depleção patrimonial mais do que por ele fora
desejado, mais do que seu animus donandi acolhera de fato. E este é um exemplo claro da
relevância da classificação contratual. Vejamos cada classificação em detalhe.

1.1. Contratos típicos ou atípicos

Também chamados de contratos nominados ou inominados, se trata da classificação


que separa os contratos segundo sua previsão ou não em lei. São nominados, ou típicos, os
contratos que a lei descreve, e inominados, ou atípicos, os que não vêm apresentados em
lei. Diz-se contratos típicos os que, além de possuírem nome próprio, nomen juris que os
distingue dos demais, constituem objeto de regulação específica. Contratos atípicos ou
inominados são aqueles em que, em razão da liberdade de contratar, foram criados fora dos
modelos traçados na lei. A atipicidade significa ausência de tratamento legislativo
específico. Veja o que dispõe o artigo 425 do CC:

“Art. 425. É lícito às partes estipular contratos atípicos, observadas as normas


gerais fixadas neste Código.”

Os contratos, por natureza, nascem da sua presença fática, e não da previsão em lei.
antes de serem previstos na lei, os contratos surgem de fatos sociais. O legislador,
verificando a necessidade de se regular aquele fato social, faz constar na regra legal a sua
tipificação, tornando-o nominado, em razão de sua majorada importância.
O contrato é típico sempre que previsto em lei, e não necessariamente no CC. Os
contratos atípicos, por sua vez, não vêm previstos em qualquer norma – são livremente
pactuados e desenhados pelas partes.
Só é possível a existência de contratos inominados válidos porque vige a atipicidade
contratual como regra. Como dito, se é o fato social que cria o contrato, não pode a lei
engessar, em rol taxativo, quais são os negócios jurídicos bilaterais possíveis. O rol de
contratos nominados é numerus appertus. Não significa, porém, que os contratos criados na
3
Aula proferida pelo professor Rafael Viola, em 28/1/2009.

Michell Nunes Midlej Maron 12


EMERJ – CP III Direito Civil III

inventividade social sejam absolutamente irrestritos em suas previsões; por óbvio, são
vinculados à observância das normas gerais dos contratos, exemplarmente consideradas a
função social, a boa-fé objetiva, o equilíbrio econômico, a autonomia da vontade e a força
obrigatória.
Há que se mencionar também os contratos mistos, que são aqueles que reúnem em
si elementos de contratos típicos, e inovações atípicas. Sendo desta espécie, há que se
identificar as cláusulas nominadas, de forma a se identificar também quais serão as normas
a elas atinentes. O interesse está na escolha das normas aplicáveis. Nas palavras de Darcy
Bessone:

“Quando não for possível harmonizar as regras reguladoras dos tipos combinados,
deve-se atender à finalidade essencial da operação, ou, quando a infração for de
determinada cláusula que se possa isolar das demais, merecerá observância a
disposição disciplinadora do contrato simples que tenha sido extraída.”

Aqui poder-se-ia mencionar a moderna técnica da interpretação fuzzy, a


metodologia fuzzy, que se presta à compatibilização lógica de normas que parecem ser
completamente colidentes, de forma a reduzir, sintetizar uma norma aplicável à casuística.
Em breves termos, esta metodologia fuzzy aproxima-se do já mais bem conhecido diálogo
das fontes, que é a compatibilização de normas que aparentam ser antagônicas, de forma a
sanar a antinomia sem execrar uma das normas.
Transportando o raciocínio do parágrafo anterior aos contratos, poder-se-ia entender
que as normas que, num contrato misto, dizem respeito a outra modalidade nominada, não
precisam necessariamente ser nulificadas ou nulificar o próprio contrato: há que se
interpretar e tentar compatibilizar tal previsão contratual, antes de se invalidar tal
pactuação.

1.2. Contratos bilaterais ou unilaterais

É mais do que sabido que todo contrato é um negócio jurídico bilateral, quanto à
pluralidade de manifestação de vontades: não há contrato sem ao menos duas manifestações
de vontades, pois se assim o for é um negócio jurídico unilateral, e não um contrato. A
classificação em bilateral ou unilateral do negócio jurídico em si não se confunde com a
classificação de mesma nomenclatura do próprio contrato.
Destarte, esta classificação diz respeito à existência de obrigações recíprocas ou
não, no bojo do negócio jurídico bilateral, do contrato. Bilateral é o contrato em que se
criam obrigações para ambas as partes. A característica fundamental do contrato bilateral é
o sinalagma, ou seja, a existência de prestações correlatas – pelo que se denominam
também de sinalagmáticos. Os contratos bilaterais caracterizam-se pela correspectividade
das prestações: a prestação de um dos contratantes é a causa da prestação do outro.
É de suma importância, aqui, abordar a diferenciação entre causa e motivo dos
contratos. Pode ser iniciada a explicação por um recurso didático que sintetiza bem a
diferença, que depois será perscrutada em si: o motivo do contrato é “por quê se contrata”;
a causa, é “para quê se contrata”. Vejamos.
Motivação é a razão que leva um indivíduo à prática de determinado ato. Reside na
mente, no âmbito unicamente subjetivo e interno do indivíduo. Mesmo por isso, a
motivação para contratar não tem relevância para a existência, validade ou eficácia do

Michell Nunes Midlej Maron 13


EMERJ – CP III Direito Civil III

contrato, a princípio, porque se não está no mundo dos fatos, não pode ser oponível. Um
exemplo clareia o conceito: se o agente vende seu automóvel com a perspectiva de, com o
dinheiro recebido, investir no mercado e ações, esta intenção de investir é o seu motivo
para realizar a compra e venda do automóvel. Como é irrelevante, se porventura não mais
for investir em ações, por conta da crise econômica que se instalou, terá seu motivo
frustrado, mas jamais poderá opor esta frustração como causa resolutiva da compra e venda
do seu automóvel.
Veja que esta irrelevância do motivo é regra geral, que se instaura em prol da
segurança jurídica mínima, porque se se admitir que a frustração do motivo, elemento
altamente subjetivo e interno, se presta a resolver contratos, serão estes absurdamente
inseguros – o pacta sunt servanda será mitigado além do razoável. Todavia, há que se fazer
uma ressalva: se o motivo vier expressamente consignado no contrato como razão
determinante de sua pactuação, passa a ser oponível, porque deixa de ser uma mera
cogitação mental, imperscrutável, para ser uma condicionante do próprio contrato. Pode-se
depreender tal raciocínio da leitura transversa do artigo 140 do CC:

“Art. 140. O falso motivo só vicia a declaração de vontade quando expresso como
razão determinante.

Perceba: se o falso motivo, quando for expresso, é capaz de viciar a declaração, o


motivo perfeito, quando expresso, integra a declaração de vontade, e deve ser observado.
Se frustrado, frustra a declaração de vontade em si.
A causa do contrato, por sua vez, como dito, em nada se confunde com a
motivação. Causa é o efeito econômico que se espera do contrato, elemento fático de
constatação objetiva. É mais simples do que aparenta, como se pode ver no exemplo dado:
a compra e venda de um automóvel tem por causa, para o vendedor, a obtenção do preço.
Só se realiza a venda para se obter o preço. O motivo por que se quer este preço é
irrelevante, mas a causa da venda – a obtenção do preço –, é absolutamente relevante,
sendo o próprio objetivo do negócio. Da mesma forma, a causa da compra do veículo é a
obtenção deste bem da vida pelo comprador: ele realiza a compra para que lhe seja entregue
o veículo. Por que motivo ele quer o veículo é irrelevante, mas não a causa da compra, que
se atine unicamente à obtenção da propriedade do veículo. A causa de qualquer contrato é
sempre a mesma, independentemente da motivação interna dos contratantes.
Voltando à classificação em comento, é importante perceber, então, que nos
contratos bilaterais há uma reciprocidade de obrigações necessária, havendo, sempre,
débito e crédito recíprocos, cada um de as natureza. Nos contratos unilaterais, apenas um
dos contratantes tem débito, e apenas um tem crédito, sem que haja qualquer reciprocidade.
A doação pura, por exemplo, só impõe obrigação ao doador, que é devedor da entrega da
coisa ao donatário.
Dito isso, há alguns efeitos diretamente decorrentes desta classificação. Se há
bilateralidade, há correspectividae de obrigações; por conta disso, se um dos contratantes
não adimplir sua obrigação, o outro não precisará adimplir a sua própria, por simples
lógica: quebrado o sinalagma, não mais se impõe a exigibilidade da contraprestação. Está
nascida, assim, a exceção do contrato não cumprido, a exceptio non adimpleti contractus.
Este instituto, consabido, só pode ser aplicado em contratos bilaterais porque nos
unilaterais simplesmente não há que se esperar qualquer cumprimento da parte contrária: só
há um devedor e um credor, não havendo reciprocidade. E mais: esta exceção só se aplica

Michell Nunes Midlej Maron 14


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em havendo simultaneidade das prestações correlatas. Veja: se há momentos diversos para


o cumprimento das obrigações, porque a lei ou o contrato assim estipulam, este momento
diferido impede que aquele que é credor do devedor que tem que pagar à frente possa
reclamar, antes do vencimento, que seu contrato foi inadimplido, como meio de deixar de
cumprir sua própria prestação. Veja o artigo 476 do CC:

“Art. 476. Nos contratos bilaterais, nenhum dos contratantes, antes de cumprida a
sua obrigação, pode exigir o implemento da do outro.”

Há que se abordar, pelo ensejo, a variante deste instituto, que se denomina como
exceptio non rite adimpleti contractus. Veja: enquanto a exceptio non adimpleti contractus
clássica diz respeito ao descumprimento da obrigação, a exceptio non rite está ligada ao
cumprimento imperfeito da obrigação. Nas palavras de Gustavo Tepedino:

“O artigo 476 prevê a hipótese de não cumprimento da prestação sem aludir


expressamente ao cumprimento incorreto, inexato ou incompleto. Entende-se que
as duas situações são equiparáveis, pois que o contrato só estará cumprido se todas
as estipulações que ele contiver estiverem satisfeitas. A defesa baseada no
cumprimento incompleto ou incorreto da outra parte designa-se por exceptio non
rite adimpleti contractus”.

Este conceito, portanto, tem íntima vinculação com a afamada violação positiva do
contrato, o adimplemento imperfeito do contrato. Por isso, se no contrato bilateral uma
obrigação for cumprida de forma insatisfatória, será argüível a exceptio, na proporção da
insatisfação. E veja que o mal cumprimento, o adimplemento imperfeito, pode assim se
configurar quando não há descumprimento do dever diretamente imposto, mas há violação
a um dos deveres impressos pela boa-fé objetiva: se uma conduta aparenta ser bastante a
adimplir uma obrigação contratual, mas se demonstra uma violação à lealdade, por
exemplo, há violação positiva do contrato, e há as conseqüências do inadimplemento,
inclusive a possibilidade de se invocar a exceptio non rite adimpleti contractus.
Um exemplo: se há no contrato de locação a imposição da obrigação de “restituir o
imóvel pintado”, sem estabelecer detalhamento da pintura, ao entregar o bem pintado com
tinta preta, estará, aparentemente, adimplindo sua obrigação; todavia, é tão imperfeito, tão
insatisfatório este adimplemento, que se equipara a inadimplemento, pois é clara
deslealdade contratual, falta de cooperação a merecer repúdio, padecendo das
conseqüências da inadimplência.
Outra reverberação da boa-fé objetiva nas questões de cumprimento das obrigações
se trata do adimplemento substancial. Veja que, mesmo não havendo a completitude do
adimplemento, há cumprimento tão significativo da obrigação que se permite dizer que o
objetivo do contrato, em relação ao interesse do credor que teve seu crédito minimamente
inadimplido, foi alcançado. Efeito desta circunstância é a redução da obrigação à proporção
faltante, ilidindo eventual direito que seria oriundo do inadimplemento, se total – exercício
que se demonstraria abuso do direito, dada a quase completa adimplência.
Há ainda que se tratar aqui da exceção de inseguridade, prevista no artigo 477 do
CC:

“Art. 477. Se, depois de concluído o contrato, sobrevier a uma das partes
contratantes diminuição em seu patrimônio capaz de comprometer ou tornar
duvidosa a prestação pela qual se obrigou, pode a outra recusar-se à prestação que

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lhe incumbe, até que aquela satisfaça a que lhe compete ou dê garantia bastante de
satisfazê-la.”

Sempre que, depois de concluído o contrato, sobrevier a uma das partes uma
diminuição do seu patrimônio que possa comprometer ou tornar duvidosa a prestação pela
qual se obrigou, pode o outro contraente recusar-se a cumprir a sua até que aquela satisfaça
sua obrigação ou dê garantia suficiente. Esta é a exceção de inseguridade.

1.2.1. Contratos bilaterais imperfeitos

Estes contratos são, de fato, unilaterais na sua formação, gerando, de início,


obrigação apenas para uma das partes. Contudo, no decorrer da execução contratual,
supervenientemente à sua formação, surge uma obrigação para o contratante que, de início,
não tinha qualquer dever.
Um bom exemplo seria o contrato de depósito, que, de início, só cria obrigações
para o depositário (cuidar da coisa e restituí-la). No curso do depósito, porém, ocorrem
despesas de manutenção da coisa; estas despesas são indenizáveis, e o depositante passa,
agora, a ter a obrigação de ressarcir o prejuízo patrimonial do depositário. Torna-se, então,
bilateral supervenientemente. Este é o contrato bilateral imperfeito.

1.2.2. Cláusulas resolutivas

Em todo contrato bilateral, uma prestação é correspectiva a outra. Isto significa que
se uma das partes não cumpre a prestação, a outra parte pode resolver o contrato, quer por
previsão contratual desta resolução, quer porque a lei assim o dispõe. Trata-se, aqui, das
cláusulas resolutivas expressa ou tácita, respectivamente.
Na execução dos contratos bilaterais, cada contratante tem a faculdade de pedir a
resolução, caso o outro não cumpra sua prestação. Essa faculdade pode resultar de
convenção pactuada expressamente ou de presunção legal.
Quando essa faculdade resulta de presunção legal, tratar-se-á de cláusula resolutiva
tácita. Não obstante a cláusula resolutiva tácita ser oriunda da lei, as partes podem
convencioná-la expressamente no bojo do contrato. Nesse caso, estaremos tratando da
cláusula resolutiva expressa. A principal diferença é que a tácita demanda interpelação
judicial enquanto que a expressa opera de pleno direito.
A cláusula resolutiva tácita é que se demonstra mais problemática em sua análise.
Há dois sistemas, o francês e o alemão. No sistema francês, é necessário que haja
interpelação judicial, porque somente o provimento jurisdicional poderá resolver o
contrato; no sistema alemão, a ação judicial é dispensada, operando-se a resolução de pleno
direito, pelas mãos do próprio contratante inadimplido. É claro que o sistema alemão
denota maior insegurança, e por isso o CC brasileiro adotou a metodologia francesa, sendo
necessário o provimento jurisdicional para a resolução do contrato.
1.3. Contratos onerosos ou gratuitos

O contrato é oneroso quando gera vantagens a ambas as partes, enquanto os


gratuitos somente trazem vantagens a uma das partes, o beneficiário – e por isso se chama
também de contrato benéfico.

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Nos contratos onerosos, cada uma das partes visa a obter vantagem. Nestes, ambas
as partes obtêm proveito, ao qual, corresponde um sacrifício. Chamam-se gratuitos os
contratos em que somente uma das partes obtém proveito: é o contrato em que um
contratante aufere vantagens ao passo que o outro suporta depleção de qualquer natureza.
A importância da distinção diz respeito às conseqüências práticas. Nos contratos
gratuitos, a interpretação é sempre restritiva, como dispõe o artigo 114 do Código Civil, e
são, ainda, tratados com maior rigor, pois podem implicar em fraude contra credores, como
se depreende dos artigos 158 e 159 do Código Civil. Veja:

“Art. 114. Os negócios jurídicos benéficos e a renúncia interpretam-se


estritamente.”

“Art. 158. Os negócios de transmissão gratuita de bens ou remissão de dívida, se


os praticar o devedor já insolvente, ou por eles reduzido à insolvência, ainda
quando o ignore, poderão ser anulados pelos credores quirografários, como lesivos
dos seus direitos.
§ 1o Igual direito assiste aos credores cuja garantia se tornar insuficiente.
§ 2o Só os credores que já o eram ao tempo daqueles atos podem pleitear a
anulação deles.”

“Art. 159. Serão igualmente anuláveis os contratos onerosos do devedor


insolvente, quando a insolvência for notória, ou houver motivo para ser conhecida
do outro contratante.”

Outra previsão altamente relevante vem no artigo 392 do CC, que trata de forma
bastante diferente os contratos benéficos, quanto à responsabilidade:

“Art. 392. Nos contratos benéficos, responde por simples culpa o contratante, a
quem o contrato aproveite, e por dolo aquele a quem não favoreça. Nos contratos
onerosos, responde cada uma das partes por culpa, salvo as exceções previstas em
lei.”

Nesse sentido, no transporte gratuito, o transportador só pode ser responsabilizado


por dolo ou culpa grave. Este foi, aliás, o entendimento sumulado pelo STJ:

“Súmula 145, STJ: No transporte desinteressado, de simples cortesia, o


transportador só será civilmente responsável por danos causados ao transportado
quando incorrer em dolo ou culpa grave.”

Repare-se que sempre que o transportador obtiver alguma vantagem, ainda que
indireta, o transporte não será gratuito, na forma do artigo 736, parágrafo único, do CC:

“Art. 736. Não se subordina às normas do contrato de transporte o feito


gratuitamente, por amizade ou cortesia.
Parágrafo único. Não se considera gratuito o transporte quando, embora feito sem
remuneração, o transportador auferir vantagens indiretas.”
Outra diferença diz respeito à evicção, que só se aplica a contratos onerosos, na
forma do artigo 447 do CC:

“Art. 447. Nos contratos onerosos, o alienante responde pela evicção. Subsiste esta
garantia ainda que a aquisição se tenha realizado em hasta pública.”

Michell Nunes Midlej Maron 17


EMERJ – CP III Direito Civil III

No entanto, a evicção permanece nos casos de doações onerosas e doações para


casamento com pessoa certa e determinada, salvo, no caso desta última, estipulação em
contrário. Veja o artigo 552 do CC:

“Art. 552. O doador não é obrigado a pagar juros moratórios, nem é sujeito às
conseqüências da evicção ou do vício redibitório. Nas doações para casamento
com certa e determinada pessoa, o doador ficará sujeito à evicção, salvo convenção
em contrário.”

Vale consignar que a doação onerosa, doação com encargo, ainda é um contrato
gratuito, e é um contrato ainda unilateral, porque o encargo não pode ser considerado como
contraprestação capaz de emprestar reciprocidade aos contratos.
É comum se confundir os conceitos de unilateralidade e bilateralidade com
gratuidade e onerosidade, respectivamente, confusão que merece ser espancada, porque
nem sempre todo contrato gratuito será necessariamente unilateral. Em regra, os contratos
gratuitos são unilaterais, mas não é vinculação absoluta: o mútuo feneratício é um exemplo
de contrato unilateral oneroso. Há, no entanto, quem defenda que este contrato é bilateral.

1.4. Contratos consensuais ou reais

O princípio do consensualismo, que determina que o mero acordo das vontades é


suficiente para criar o vínculo e gerar o contrato,parece se opor diretamente à existência de
contratos que não sejam formados pelo mero consenso. Não é assim, porém (como se verá).
Chama-se consensual o contrato que se torna perfeito e acabado por efeito exclusivo
da integração das duas vontades. Em outras palavras, formam-se exclusivamente pelo
acordo de vontades. No que diz respeito à teoria dos contratos, prevalece o princípio do
consensualismo, ou seja, a regra é que o mero acordo de vontades é suficiente para fazer
surgir o contrato, sem que se exija formalidade na manifestação, em regra.
Os contratos reais são os contratos que se perfazem com a entrega da coisa. Em
outras palavras, somente com a traditio se forma o contrato. São exemplos deste contrato o
mútuo, o depósito e o comodato.
A grande crítica a esta classe de contratos é a seguinte: o contrato consiste num
acordo de vontades e, portanto, a entrega da coisa não deveria ser considerada uma
condição para a sua formação, mas o simples cumprimento de uma obrigação contratual. A
entrega da coisa, em regra e por conceito, deveria sempre ser tida por simples execução do
contrato. Condicionar a existência do contrato real à traditio é uma afronta grosseira ao
princípio do consensualismo. A respeito, vale a leitura das palavras de Darcy Bessone:

“A conclusão é que, se a classificação em exame se prende ao modo de formação


do contrato, os chamados contratos reais são tão consensuais quanto quaisquer
outros, desde que a entrega ou o recebimento constitui simples execução de
obrigação assumida em consequência do acordo de vontades.”
Depõe ainda mais em favor desta crítica a falta de lógica em se entender que um
contrato de comodato é real, e um contrato de locação é consensual. Não há nenhum
argumento plausível que explique esta diferença (havendo quem entenda que se baseia na
maior confiança envolvida num comodato ou depósito, o que não é um argumento
juridicamente substancial).

Michell Nunes Midlej Maron 18


EMERJ – CP III Direito Civil III

Não se confundem, os contratos reais, com os contratos com efeitos reais. Estes
consistem em contratos que têm por objeto direitos reais, ou seja, não geram direito pessoal
para o credor, mas sim o próprio direito real almejado. Por exemplo, na compra e venda, a
obrigação gerada é de dar o bem comprado, em troca do preço; não se transfere, portanto, a
propriedade deste bem senão com a tradição, ou registro, se imóvel. Não se transfere o
próprio direito real de propriedade com o contrato, o que seria o efeito real: se gera apenas
um título hábil a que se exija a transmissão da propriedade, pelo meio hábil (tradição ou
registro). No Brasil, não há contrato de efeito real algum4.

1.5. Contratos formais e informais

Os contratos formais, ou solenes, são exceção ao consensualismo informal, pois a


manifestação de vontade precisa ser expressa conforme regras previstas na lei ou no próprio
contrato. Veja o artigo 107 do CC:

“Art. 107. A validade da declaração de vontade não dependerá de forma especial,


senão quando a lei expressamente a exigir.”

Contratos formais são aqueles em que não basta o mero acordo de vontades para sua
formação, mas, ao invés, dependem de uma formalidade exigida em lei. Ou seja, só se
aperfeiçoam quando o consentimento é expresso pela forma exigida em lei. Veja o artigo
108 do CC:

“Art. 108. Não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à


validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência,
modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta
vezes o maior salário mínimo vigente no País.”

É preciso distinguir, entretanto, os contratos formais ad solemnitatem dos contratos


formais ad probationem. Na formalidade ad solemnitatem, a formalidade é da própria
essência do contrato e a sua inobservância implica, diretamente, na invalidade do negócio
jurídico, de acordo com o artigo 104, III, do Código Civil:

“Art. 104. A validade do negócio jurídico requer:


I - agente capaz;
II - objeto lícito, possível, determinado ou determinável;
III - forma prescrita ou não defesa em lei.”

Se a forma é da essência do ato, sua falta é causa de nulidade – trata-se de


formalidade ad solemnitatem. Outro exemplo de forma prescrita em lei, formalidade ad
solemnitatem, é a fiança, que deve ser escrita, na forma do artigo 819 do CC:

“Art. 819. A fiança dar-se-á por escrito, e não admite interpretação extensiva.”

Sendo alheia, a formalidade, à essência do contrato, trata-se da espécie ad


probationem. Esta forma se presta tão-somente a favorecer a prova do contrato: o contrato
4
A cessão de posse poderia ser cogitada como um exemplo de contrato de efeito real, porque a posse se
transfere, ali, de forma ficta, pelo próprio contrato. Ocorre que a posse não é, para a corrente majoritária,
direito real, e por isso não seria, a rigor, contrato de efeito real.

Michell Nunes Midlej Maron 19


EMERJ – CP III Direito Civil III

não é formal, mas a formalidade é imposta como técnica probatória. Nesses, o contrato
produz seus efeitos, embora só possa ser provado pela forma especificada em lei. Exemplo
desse tipo de contrato é o depósito voluntário, do artigo 646 do CC:

“Art. 646. O depósito voluntário provar-se-á por escrito.”

Questiona-se, então: é possível a demonstração do contrato formal ad probationem


ainda que não se tenha observado a forma especifica em lei?
O entendimento predominante é que sim. A não possibilidade de demonstração
implicaria em verdadeiro cerceamento de defesa, contrariando o artigo 5º, LV, da CRFB, o
artigo 332 do CPC, além de que o próprio Código Civil, no artigo 221, parágrafo único,
admite a possibilidade de prova dos contratos celebrados por outros meios:

“(...)
LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em
geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a
ela inerentes;
(...)”

“Art. 332. Todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que
não especificados neste Código, são hábeis para provar a verdade dos fatos, em
que se funda a ação ou a defesa.”

“Art. 221. O instrumento particular, feito e assinado, ou somente assinado por


quem esteja na livre disposição e administração de seus bens, prova as obrigações
convencionais de qualquer valor; mas os seus efeitos, bem como os da cessão, não
se operam, a respeito de terceiros, antes de registrado no registro público.
Parágrafo único. A prova do instrumento particular pode suprir-se pelas outras de
caráter legal.”

Vê-se, então, que a formalidade ad probationem perde muito de sua força diante da
interpretação lógica e sistemática da matéria. De fato, não faz mais do que facilitar a prova,
quando assim respeitada a formalidade ad probationem.

1.6. Contratos comutativos ou aleatórios

O contrato é comutativo quando há prestação e contraprestação paritárias. Nesses


contratos, a relação entre vantagem e sacrifício é equivalente. Em outras palavras, as
prestações das partes são conhecidas, previamente estipuladas,existindo, por conseguinte,
um equilíbrio entre elas.
Aqui se faz relevante abordar questão principiológica importante: a nova teoria
contratual se pauta pelos novos princípios que complementam os clássicos. Nesse diapasão,
tem especial relevância o princípio do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos, que
diz respeito exatamente à comutatividade.
O princípio do equilíbrio econômico financeiro do contrato tem como escopo
impedir a desproporção entre as prestações dos contratantes. Esta idéia traz, na noção de
contrato, um ideal de equilíbrio entre as prestações dos contraentes. As maiores expressões
desse princípio são o instituto da lesão, da onerosidade excessiva, e a quebra da base
objetiva do negócio.

Michell Nunes Midlej Maron 20


EMERJ – CP III Direito Civil III

Mas veja que não se pode pensar que toda e qualquer desproporção entre as
prestações é uma violação à comutatividade, denunciando um dos institutos nulificantes do
pacto. É fato que há, em qualquer negociação, alguma medida de desproporção dada à
maior ou menor aptidão de uma das partes para o negócio. Nos dizeres de Teresa Negreiros,
este princípio tem como objetivo “vedar um desequilíbrio real e injustificável entre as
prestações dos contratantes”, ou seja, a desproporção não pode suplantar o razoável, em
medida de equidade, sob pena de fazer presente um dos mencionados vícios de
desequilíbrio.
De outro lado, surgem os contratos aleatórios, aqueles em que os contraentes não
podem antever ambas as prestações com certeza absoluta. Há uma incerteza para as duas
partes sobre se a vantagem esperada será proporcional ao sacrifício. A incerteza pode
prender-se à data de um acontecimento inevitável, como sucede no seguro de vida, ou à
própria verificação do acontecimento, como sucede no seguro contra o fogo, bem como no
jogo ou aposta.
O risco, ou alea, pode dizer respeito ou a própria existência da coisa futura ou sobre
sua quantidade. No primeiro caso, em que há incerteza sobre a existência ou não da
contraprestação, o contrato aleatório é da espécie emptio spei, no qual o preço será devido
ainda que nada venha a existir. É previsto no artigo 458 do Código Civil:

“Art. 458. Se o contrato for aleatório, por dizer respeito a coisas ou fatos futuros,
cujo risco de não virem a existir um dos contratantes assuma, terá o outro direito
de receber integralmente o que lhe foi prometido, desde que de sua parte não tenha
havido dolo ou culpa, ainda que nada do avençado venha a existir.”

Veja que ainda que nada venha a existir em contraprestação, a prestação de um lado
é devida, porque ele assumiu este risco. Soa estranha a assunção de tal risco, mas quando se
verifica que a prestação é infinitamente inferior ao que seria um preço normal pelo que se
espera como contraprestação, a lógica se faz perceptível. Aposta-se na possibilidade de um
grande ganho, esta é a verdade, assumindo-se o risco de pagar o preço e nada receber.
Por outro lado, se o risco for somente quanto à quantidade da coisa futura,
estaremos falando da emptio rei speratae. Nesta hipótese, caso nada venha a existir, o preço
será restituído à parte que assumiu o risco. No entanto, caso venha a existir alguma coisa,
ainda que em quantidade inferior à esperada, o preço será devido. Veja o que determina o
artigo 459 do CC:

“Art. 459. Se for aleatório, por serem objeto dele coisas futuras, tomando o
adquirente a si o risco de virem a existir em qualquer quantidade, terá também
direito o alienante a todo o preço, desde que de sua parte não tiver concorrido
culpa, ainda que a coisa venha a existir em quantidade inferior à esperada.
Parágrafo único. Mas, se da coisa nada vier a existir, alienação não haverá, e o
alienante restituirá o preço recebido.”

O assuntor do risco não aposta quanto à existência da contraprestação, mas apenas


quanto à sua intensidade, o que faz com que, se existente, em menor monta do que
almejava, ainda assim o preço é devido. Outrossim, se inexistente a contraprestação, o
contrato é resolvido, pois ao firmar o emptio rei speratae o agente não assumiu este risco de
inexistência.

Michell Nunes Midlej Maron 21


EMERJ – CP III Direito Civil III

O risco pode dizer respeito, ainda, a coisas existente, porém expostas ao risco de
perecimento ou deterioração. Neste caso, se o adquirente assumiu o risco, o preço será
devido, ainda que a coisa venha a se perder ou deteriorar. Veja o que dize o artigo 460 do
CC:

“Art. 460. Se for aleatório o contrato, por se referir a coisas existentes, mas
expostas a risco, assumido pelo adquirente, terá igualmente direito o alienante a
todo o preço, posto que a coisa já não existisse, em parte, ou de todo, no dia do
contrato.”

Veja que, no entanto, o dolo do alienante que sabe que o perecimento é certo não
pode ficar impune: sabedor que o risco não é mais alea, e sim certeza, estará em dolo, e o
contrato é anulável. É o que dispõe o artigo 461 do CC:
“Art. 461. A alienação aleatória a que se refere o artigo antecedente poderá ser
anulada como dolosa pelo prejudicado, se provar que o outro contratante não
ignorava a consumação do risco, a que no contrato se considerava exposta a coisa.”

Os contratos de seguro são um exemplo de contrato aleatório, para grande parte da


doutrina, e da modalidade emptio spei: a paga o preço é devida mesmo se não for recebida a
indenização, por não se implementar o sinistro – ilidindo comutatividade, portanto.
Entretanto, significativa parte da doutrina (e mais coerente, a meu ver), entende que o
contrato é comutativo: a prestação consistente no preço pago pelo segurado é equivalente à
contraprestação que é prestada ao longo da vigência do contrato pela seguradora, qual seja,
a garantia do risco. Esta garantia é uma prestação em si mesma, equivalente ao preço,
prêmio, que é estipulado em cálculo atuarial.
O STJ, em julgado recente, parece entender que a suportar o risco é uma
contraprestação em si, considerando, porém, que este risco é uma alea típica de contrato
aleatório. Veja:

“SEGURO. VIDA. INVALIDEZ. PRÊMIO. RESTITUIÇÃO. Os valores


pagos a título de prêmio pelo seguro de invalidez ou morte não são
passíveis de restituição quando da rescisão do contrato, uma vez que a
seguradora, durante sua duração, suportou o risco, como é próprio dos
contratos aleatórios. O segurado usufruiu da cobertura securitária (de
natureza onerosa), ainda que não tenha ocorrido sinistro. Precedentes
citados: AgRg no REsp 617.152-DF, DJ 19/9/2006, e REsp 573.761-GO,
DJ 19/12/2003. AgRg no Ag 800.429-DF, Rel. Min. Humberto Gomes de
Barros, julgado em 3/12/2007.”

1.7. Contratos de execução imediata, ou instantânea, ou contratos de trato sucessivo

São os contratos em que a solução se efetua de uma só vez e por prestação única.
Nesses, a prestação pode ser realizada num só instante.
Os contratos instantâneos podem, ainda, ser de execução diferida. Em tal hipótese,
mantém-se a característica de instantâneo, mas a prestação há de ser cumprida em uma
única prestação no futuro. A execução, portanto, é protraída para outro momento,
geralmente em razão de um termo.

Michell Nunes Midlej Maron 22


EMERJ – CP III Direito Civil III

Já os contratos de trato sucessivo são aqueles que têm que ser cumpridos durante
certo período de tempo, continuadamente. Nos contratos de duração, a prestação não pode
ser executada de uma só vez, mas de modo contínuo ou periódico. Eles se subdividem em
contratos de execução periódica e de execução continuada: os primeiros executam-se
mediante prestações periodicamente repetidas, ou seja, a cada novo período surge uma nova
prestação – como exemplo, os contratos de fornecimento de luz, água, ou telefonia; nos
contratos de execução continuada, a prestação é única, mas ininterrupta – como exemplo, a
locação, ou comodato.
É nesta seara de classificação, nos contratos de execução continuada ou diferida,
que tem sede natural a teoria da onerosidade excessiva. Veja o artigo 478 do CC:

“Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de


uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a
outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o
devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar
retroagirão à data da citação.”

Veja um detalhe: sempre que se der a resolução por esta causa, esta opera efeitos ex
tunc, alcançando a data da citação.
Apesar do dispositivo falar em resolução, é preferível sempre a revisão, em atenção
ao princípio da conservação dos negócios. O CJF conta com dois enunciados assim
dispondo, o 176 e o 367. Veja:

“Enunciado 176, CJF: Em atenção ao princípio da conservação dos negócios


jurídicos, o art. 478 do Código Civil de 2002 deverá conduzir, sempre que
possível, à revisão judicial dos contratos e não à resolução contratual.”

“Enunciado 367, CJF: Em observância ao princípio da conservação do contrato,


nas ações que tenham por objeto a resolução do pacto por excessiva onerosidade,
pode o juiz modificá-lo equitativamente, desde que ouvida a parte autora,
respeitada a sua vontade e observado o contraditório.”

O STJ já enfrentou o alcance da expressão “acontecimentos extraordinários e


imprevisíveis”, quando a vinculação ao dólar como indexação das parcelas de leasing levou
à majoração excessiva das prestações, por ocorrência da liberação do dólar à flutuação do
mercado, em 1999. Veja que a variação do dólar é um evento ordinário e previsível,
decerto, e por isso sua majoração estaria alheada do instituto da onerosidade excessiva, ou
seja, os prejudicados não poderiam se valer do instituto para rever o contrato.
Contudo, o STJ vem entendendo que mesmo que o evento em si seja previsível, se
os seus efeitos forem imprevisíveis, pode-se aplicar a teoria. Assim, poderia ser revisto o
contrato com base na onerosidade excessiva de uma prestação causada por um evento
ordinário, previsível, mas que tenha tido por efeito uma majoração extremada e
imprevisível da prestação.

1.8. Contratos principais ou acessórios

Principais são os contratos que têm existência própria, ou seja, são autônomos e
independentes, ao passo que os contratos acessórios são aqueles que existem vinculados e
subordinados a outros.

Michell Nunes Midlej Maron 23


EMERJ – CP III Direito Civil III

O interesse da referida classificação encontra-se nos efeitos produzidos nos


contratos acessórios em razão de vícios ou defeitos nos contratos principais. De acordo com
Orlando Gomes, em virtude do principio da gravitação jurídica, , em que o acessório segue
a sorte do principal – accessorium sequitur naturam sui principalis –, a extinção do
contrato principal acarreta a do contrato acessório, por ausência de sua razão de ser.
No entanto, nem sempre o defeito do contrato principal implicará na invalidade do
contrato acessório. Por exemplo, no caso de fiança concedida em contrato celebrado por
incapaz, salvo hipótese de mútuo feito a menor, de acordo com o artigo 824 do Código
Civil:
“Art. 824. As obrigações nulas não são suscetíveis de fiança, exceto se a nulidade
resultar apenas de incapacidade pessoal do devedor.
Parágrafo único. A exceção estabelecida neste artigo não abrange o caso de mútuo
feito a menor.”

A regra é que se o contrato principal for nulo, a fiança também será, mas se a
nulidade só diz respeito à incapacidade do contratante, não se nulifica a fiança. Mas veja
que esta exceção ainda comporta exceção ela própria, qual seja, a do mútuo feito a menor,
em razão da maior proteção do menor em relação à exploração usurária. O artigo 588 do
CC reafirma esta lógica:

“Art. 588. O mútuo feito a pessoa menor, sem prévia autorização daquele sob cuja
guarda estiver, não pode ser reavido nem do mutuário, nem de seus fiadores.”

1.9. Contratos de adesão

A produção em massa fez surgir um importante fenômeno jurídico: o da contratação


em série. O fornecedor, para racionalizar as condições que regem as suas relações, começou
a usar um modelo contratual padronizado, sem dar possibilidade à outra parte de discutir as
cláusulas que regerão a relação econômica entre elas. Esta prática não é abusiva, de per si,
pois é um importante meio de efetivação das contratações massificadas, que de outro modo,
fosse observada a puntuação amiúde, não seriam possíveis. Mas há que se regular com
bastante zelo esta prática, para que dela não surjam abusos, estes sim repreensíveis.
Contrato de adesão é aquele contrato em que uma das partes não tem a possibilidade
de discutir as cláusulas contratuais a que adere. O legislador, portanto, observando que uma
das partes fica tolhida em sua possibilidade de debater as cláusulas contratuais, passa a se
preocupar com o controle destes contratos, chamados de contratos de adesão (ou por
adesão, como prefere Orlando Gomes), justamente porque um dos contratantes não tem a
possibilidade de nada fazer, senão aderir aos termos ali expressos.
Fenômeno correlato com o do contrato de adesão, mas que com ele não se
confunde, é o das condições contratuais gerais. Esta técnica contratual consiste em
realizar-se a contratação mencionando-se no instrumento as condições que regerão a
relação jurídica, mas sem reproduzi-las no documento contratual (o que por vezes agrava
ainda mais a situação do outro contratante, em regra um consumidor). Como exemplo, a
redação de uma cláusula, por um contratante, que dispõe que o outro contratante “declara
ter ciência de que o contrato será regido por uma determinada resolução, emitida por
determinado órgão”, ou seja, remete a um documento, alheio ao corpo contratual, que prevê
mais uma série de cláusulas que têm influência sobre o pacto.

Michell Nunes Midlej Maron 24


EMERJ – CP III Direito Civil III

Nas relações de consumo, se estas condições gerais não forem oportunizadas clara,
prévia e expressamente ao consumidor, são tidas por não escritas. O artigo 54 do CDC é a
sede legal do instituto, na seara consumerista:

“Art. 54. Contrato de adesão é aquele cujas cláusulas tenham sido aprovadas pela
autoridade competente ou estabelecidas unilateralmente pelo fornecedor de
produtos ou serviços, sem que o consumidor possa discutir ou modificar
substancialmente seu conteúdo.
§ 1° A inserção de cláusula no formulário não desfigura a natureza de adesão do
contrato.
§ 2° Nos contratos de adesão admite-se cláusula resolutória, desde que a
alternativa, cabendo a escolha ao consumidor, ressalvando-se o disposto no § 2° do
artigo anterior.
§ 3º Os contratos de adesão escritos serão redigidos em termos claros e com
caracteres ostensivos e legíveis, cujo tamanho da fonte não será inferior ao corpo
doze, de modo a facilitar sua compreensão pelo consumidor.
§ 4° As cláusulas que implicarem limitação de direito do consumidor deverão ser
redigidas com destaque, permitindo sua imediata e fácil compreensão.”

O Código de Defesa do Consumidor protege o consumidor de forma muito mais


enérgica que o Código Civil, em razão de sua vulnerabilidade reconhecida no mercado de
consumo. A primeira proteção ao aderente, tanto no Código Civil como no Código de
Defesa do Consumidor, é a garantia de uma interpretação sempre mais favorável ao
aderente. Veja o artigo 423 do CC, e o artigo 47 do CDC:

“Art. 423. Quando houver no contrato de adesão cláusulas ambíguas ou


contraditórias, dever-se-á adotar a interpretação mais favorável ao aderente.”

“Art. 47. As cláusulas contratuais serão interpretadas de maneira mais favorável ao


consumidor.”

A lógica, novamente, vem da boa-fé objetiva, agora em sua segunda função, a


interpretativa: se quem elabora o contrato é uma só das partes, não pode haver interpretação
em seu favor quando há ambigüidade clausular, pois esta ambigüidade veio por suas mãos,
ao redigir o contrato.
O Código Civil traz uma proteção meramente repressiva em relação às cláusulas
leoninas, sempre que existirem cláusulas de renúncia antecipada de direitos do aderente. É
o que dispõe o artigo 424:

“Art. 424. Nos contratos de adesão, são nulas as cláusulas que estipulem a renúncia
antecipada do aderente a direito resultante da natureza do negócio.”
No CDC a proteção estatal se faz sentir até mesmo antes da colocação do contrato
em apelo de mercado, ao prever hipóteses em que a autoridade analisará o contrato antes
deste ir ao mercado (o que é previsto no caput do artigo 54, supra). Como exemplo, a ANS
e os contratos de plano de saúde.
O controle, tanto preventivo, da autoridade administrativa, quanto repressivo,
judicial, intenta evitar a presença de cláusulas abusivas, que têm rol exemplificativo no
artigo 51 do CDC:

Michell Nunes Midlej Maron 25


EMERJ – CP III Direito Civil III

“Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas
ao fornecimento de produtos e serviços que:
I - impossibilitem, exonerem ou atenuem a responsabilidade do fornecedor por
vícios de qualquer natureza dos produtos e serviços ou impliquem renúncia ou
disposição de direitos. Nas relações de consumo entre o fornecedor e o consumidor
pessoa jurídica, a indenização poderá ser limitada, em situações justificáveis;
II - subtraiam ao consumidor a opção de reembolso da quantia já paga, nos casos
previstos neste código;
III - transfiram responsabilidades a terceiros;
IV - estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o
consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a
eqüidade;
V - (Vetado);
VI - estabeleçam inversão do ônus da prova em prejuízo do consumidor;
VII - determinem a utilização compulsória de arbitragem;
VIII - imponham representante para concluir ou realizar outro negócio jurídico
pelo consumidor;
IX - deixem ao fornecedor a opção de concluir ou não o contrato, embora
obrigando o consumidor;
X - permitam ao fornecedor, direta ou indiretamente, variação do preço de maneira
unilateral;
XI - autorizem o fornecedor a cancelar o contrato unilateralmente, sem que igual
direito seja conferido ao consumidor;
XII - obriguem o consumidor a ressarcir os custos de cobrança de sua obrigação,
sem que igual direito lhe seja conferido contra o fornecedor;
XIII - autorizem o fornecedor a modificar unilateralmente o conteúdo ou a
qualidade do contrato, após sua celebração;
XIV - infrinjam ou possibilitem a violação de normas ambientais;
XV - estejam em desacordo com o sistema de proteção ao consumidor;
XVI - possibilitem a renúncia do direito de indenização por benfeitorias
necessárias.
§ 1º Presume-se exagerada, entre outros casos, a vontade que:
I - ofende os princípios fundamentais do sistema jurídico a que pertence;
II - restringe direitos ou obrigações fundamentais inerentes à natureza do contrato,
de tal modo a ameaçar seu objeto ou equilíbrio contratual;
III - se mostra excessivamente onerosa para o consumidor, considerando-se a
natureza e conteúdo do contrato, o interesse das partes e outras circunstâncias
peculiares ao caso.
§ 2° A nulidade de uma cláusula contratual abusiva não invalida o contrato, exceto
quando de sua ausência, apesar dos esforços de integração, decorrer ônus
excessivo a qualquer das partes.
§ 3° (Vetado).
§ 4° É facultado a qualquer consumidor ou entidade que o represente requerer ao
Ministério Público que ajuíze a competente ação para ser declarada a nulidade de
cláusula contratual que contrarie o disposto neste código ou de qualquer forma não
assegure o justo equilíbrio entre direitos e obrigações das partes.”

Enorme importância tem a previsão do inciso IV do caput deste artigo: ali o


legislador consignou uma cláusula geral, abrindo margem à análise casuística de hipóteses
que não se amoldarem a nenhuma outra do rol expresso, enunciativo, deste artigo. Esta
integração é parametrizada pelo § 1º deste artigo.
Outro artigo do CDC que merece menção é o 53, cláusula expressamente abusiva:

Michell Nunes Midlej Maron 26


EMERJ – CP III Direito Civil III

“Art. 53. Nos contratos de compra e venda de móveis ou imóveis mediante


pagamento em prestações, bem como nas alienações fiduciárias em garantia,
consideram-se nulas de pleno direito as cláusulas que estabeleçam a perda total das
prestações pagas em benefício do credor que, em razão do inadimplemento,
pleitear a resolução do contrato e a retomada do produto alienado.”

Casos Concretos

Questão 1

Adelaide ofereceu, no seu edifício, para empregados e vizinhos, bilhetes de rifa. O


prêmio era uma viagem para a cidade de Fortaleza com direito a dois acompanhantes.

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EMERJ – CP III Direito Civil III

Laudelino adquiriu vinte e nove dos trinta bilhetes de rifa. O faxineiro Enéas adquiriu o
30º bilhete. No dia do sorteio, foi contemplado o bilhete adquirido por Enéas.
Furioso, Laudelino alegou que Adelaide deveria reparar seu dano, pois, tratando-
se de contrato oneroso, ele não poderia ficar sem auferir vantagem. Correta a pretensão de
Laudelino?

Resposta à Questão 1

Risível a pretensão. Trata-se de contrato aleatório, da espécie emptio spei, em que a


comutatividade não é elemento certo e inarredável. Dependendo da alea, haverá ou não a
contraprestação, e nada há que atenda à pretensão de Laudelino.

Questão 2

JOSÉ é promitente comprador de um apartamento junto à incorporadora e


construtora SENSAN. Após haver sido constatado, por laudo técnico do órgão municipal
competente, um abalo na estrutura do edifício, que sequer teve o "habite-se" concedido,
José resolve sustar o pagamento das prestações mensais até que o problema seja resolvido,
tendo inclusive, notificado extrajudicialmente a incorporadora. Diante disso, a empresa
SENSAN ingressa com ação de resolução de compra e venda, cumulada com cobrança de
multa contratual em face de José. Resolva a questão acima, apontando os dispositivos
legais pertinentes.

Resposta à Questão 2

José andou bem, pois consolidou sua pretensão na exceptio non adimpleti
contractus, do artigo 476 do CC, pois a sua prestação – pagamento do preço – depende da
contraprestação perfeita da sociedade vendedora, qual seja, a entrega de bem hábil ao uso.
Diante disso, a sua atitude foi correta, e a ação da sociedade merece ser julgada
improcedente.
Assim se posicionou o STJ no REsp. 2330:

“PROMESSA DE VENDA E COMPRA. AÇÃO DE RESCISÃO POR


INADIMPLEMENTO CONTRATUAL. NÃO SENDO CUMPRIDA PELO
PROMITENTE-VENDEDOR A SUA OBRIGAÇÃO, TOCANTE A ENTREGA
DO IMOVEL EM CONDIÇÕES DE SOLIDEZ E SEGURANÇA, NÃO LHE E
DADO EXIGIR O IMPLEMENTO DA DOS COMPROMISSARIOS-
COMPRADORES QUANTO AO PAGAMENTO DAS PRESTAÇÕES
REMANESCENTES AVENÇADAS. ''EXCEPTIO NON ADIMPLETI
CONTRACTUS'' ACOLHIDA. RECURSO ESPECIAL NÃO CONHECIDO.”

Questão 3

No retorno do trabalho para sua residência Carla, que normalmente utilizava


transporte ferroviário, decidiu em virtude da hora avançada, fazer uso de transporte
coletivo rodoviário. Ingressou no ônibus e pagou a passagem normalmente. Próximo à sua
residência, em lugar ermo, Carla solicitou ao motorista que alterasse, em um pequena

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EMERJ – CP III Direito Civil III

parte do percurso, o itinerário, para deixá-la mais perto de sua residência, pois o local
onde desceria do ônibus era perigoso, havendo grande risco de assalto. Em decorrência
da recusa do motorista, Carla não teve outra alternativa senão utilizar a parada normal do
veículo de transporte. Ocorre, contudo, que no caminho de casa, Carla é assaltada e lhe é
subtraído o valor de R$ 1.200,00 (hum mil e duzentos reais) recebido por ela a título de
salário. Em razão deste fato, ajuíza ação perante a empresa de ônibus pretendendo
responsabilizá-la civilmente pelo dano sofrido. Deve prosperar a pretensão de Carla?
Explique.

Resposta à Questão 3

De forma alguma. O contrato de transporte coletivo, de adesão, obriga a empresa


apenas ao deslocamento incólume da contratante pelo percurso previamente traçado, sendo
este percurso inclusive normativo, dado o detalhamento da concessão. Mais do que isso,
não há sequer nexo de causalidade entre a conduta do transportador e o fato de terceiro.
A segurança em via pública é dever do Estado, e, diga-se, neste caso, sequer este é
imputável, prima facie, pois se omissão houve foi da espécie genérica, incapaz de despertar
dever específico de agir. O pleito é claramente improcedente.

Tema III

Interpretação dos contratos. O contrato e a norma jurídica. Métodos e normas de interpretação dos
contratos. A interpretação dos contratos no Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor.

Notas de Aula5
5
Aula proferida pelo professor Sylvio Capanema de Souza, em 29/1/2009.

Michell Nunes Midlej Maron 29


EMERJ – CP III Direito Civil III

1. Interpretação dos contratos

A interpretação contratual, tal qual a própria história dos contratos, já abordada,


veio passando por tremenda evolução, até chegar aos dias atuais. O contrato, como negócio
jurídico em essência – mas não sinônimo, porque negócios jurídicos há que não são
contratos, por serem unilaterais quanto à manifestação de vontades, como o testamento ou a
promessa de recompensa –, demanda interpretação justamente de forma a bem compor
qualquer divergência que possa surgir de uma relação jurídica desta natureza.
A gênese de qualquer contrato, então, é mesmo a vontade humana, pois que a
natureza gera apenas fatos jurídicos, e nunca negócios. Acontece que a vontade humana
nem sempre consegue ser bem representada, quando expressada, por conta de fatores
diversos, até mesmo da limitação da linguagem. E para suprir este entrave, esta disparidade
entre a vontade quista e a expressa, ou qualquer outra disparidade de ordem objetiva ou
subjetiva, é que surge a hermenêutica como instrumento hábil e necessário.
Esta hermenêutica, ciência da interpretação, é a mesma que se presta a elucidar a
leitura legislativa, apenas se transportando à análise dos contratos. A interpretação jurídica
de uma lei não é muito diferente da que se realiza em um contrato, porque, nestes como
naquela, as lacunas e obscuridade derivam da mesma fragilidade lingüística, em cotejo com
a vontade que se queria realmente expressar. A norma jurídica e o contrato desafiam
interpretação, sempre, de qualquer das diversas espécies de interpretação possíveis.
Duas teorias clássicas se apresentam sobre a interpretação dos contratos,
especificamente, tomando por base esta fragilidade lingüística. A primeira é a teoria da
declaração, que tem grande prestígio no direito germânico, e segunda é a teoria da
vontade.
A teoria da declaração prestigia o sentido gramatical, literal, das palavras
empregadas. É a bem conhecida interpretação gramatical, restritiva, literal, que toma em
conta o significado próprio das palavras, ou seja, o juiz parte da análise exata dos termos
declarados expressamente – daí ser denominada teoria da declaração. Os alemães defendem
com mais entusiasmo esta teoria justamente em razão de seu caráter mais objetivo, diante
da teoria da vontade, como se verá. Não há, na análise literal das palavras, qualquer
componente subjetivo, o que traz majorada segurança ao intérprete.
Mesmo primando pela segurança, como o faz, esta teoria da declaração tem grande
desvantagem, a qual se faz sentir com especial contundência no Brasil: a limitação
terminológica da própria linguagem. O português, até mesmo para o bom escritor, é
tremendamente peculiar, além de não oferecer muita riqueza vocabular, trazendo palavras
que apresentam significados diferentes, tanto no sentido dicionário da própria palavra
quanto na apreciação contextual do vocábulo. Desta forma, a interpretação literal, aqui, se
demonstra bastante arriscada, porque a língua dá margem, ela própria, a dubiedades.
Outro problema da literalidade, no Brasil, é sua extensão territorial, que dá ensejo a
terminologias regionais que são absolutamente desconhecidas de outras regiões. Palavras
de uso comum em uma região do país, por vezes, são absolutamente desconhecidas em
outra região, e se empregado um destes termos num contrato, a chance de se criar um
verdadeiro imbróglio é enorme.
Veja que, então, a teoria da declaração, apesar de objetivar a análise, oferece riscos
tão grandes quanto a análise subjetiva.

Michell Nunes Midlej Maron 30


EMERJ – CP III Direito Civil III

A teoria da vontade, por seu turno, determina que o intérprete, ao analisar o negócio
jurídico, deve procurar perquirir a real intenção das partes que ali se manifestaram, ou seja,
exatamente qual foi o objeto perseguido pela manifestação da vontade. O intérprete não se
aterá, aqui, apenas ao sentido literal das palavras empregadas, devendo escrutinar a mens
por trás da declaração.
O inconveniente desta teoria é exatamente aquilo que é uma vantagem na teoria da
declaração: a teoria da vontade é extremamente dada à subjetividade, permitindo que um
mesmo dispositivo seja lido de diversas formas, a partir das pré-concepções existentes na
mente do próprio intérprete.
O direito pátrio adotou, de fato, ambas as teorias clássicas para a análise
hermenêutica dos contratos, desde o codex de 1916 até o presente diploma de 2002. Nos
contratos benéficos, gratuitos, ou nos unilaterais, por exemplo, a interpretação é literal,
baseada na teoria da declaração, porque estes contratos representam depleção patrimonial
para apenas um dos contratantes, sem contraprestação qualquer que a valha para esta parte.
Veja: se estes contratos benéficos são erigidos em uma liberalidade, aquele que
pratica tal benevolência não pode padecer de ampliação de sua vontade. Não pode haver o
risco de que uma interpretação subjetiva, como a baseada na teoria da vontade, alargue a
liberalidade além do que na verdade foi desejado por seu autor; o risco de se impor, com a
interpretação literal, uma restrição maior do que pretendia o autor da liberalidade, é pena
que se justifica, pois o prejuízo do beneficiário será bem menor do que seria o prejuízo do
beneficente, caso sua liberalidade fosse estendida além de sua vontade, pelo uso de uma
interpretação ampliativa.
Os contratos bilaterais, que são onerosos, sempre, na medida em que ambas as
partes perseguem benefício econômico, prestação versus contraprestação, demandam, por
sua vez, interpretação baseada na teoria da vontade. Estes contratos exigem uma leitura
teleológica (do latim teleos, que significa fim) que busque a finalidade real das vontades,
porque se nestes contratos não há liberalidade, não há que se proteger a benevolência de
ampliações indevidas – não há benesse a ser resguardada. Destarte, deve ser buscada a
verdadeira intenção das partes, valendo a pena, para tanto, abrir espaço à subjetividade.
O CC de 2002 traz exatamente estas previsões, nos artigos 112 e 114:

“Art. 112. Nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas


consubstanciada do que ao sentido literal da linguagem.”

“Art. 114. Os negócios jurídicos benéficos e a renúncia interpretam-se


estritamente.”

Ocorre que, inovando, o CC trouxe a previsão do artigo 113 (que, em verdade, é


topograficamente mal colocado, pois deveria ter sido o primeiro artigo nesta seqüência,
dada sua importância). Veja:
“Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os
usos do lugar de sua celebração.”

Este dispositivo consigna expressamente, como método de interpretação, a boa-fé, e


como se viu, esta é a primeira função da boa-fé: a função interpretativa. Além de uma
cláusula implícita nos contratos, e de um dever jurídico, a boa-fé é uma técnica de
hermenêutica dos negócios jurídicos.

Michell Nunes Midlej Maron 31


EMERJ – CP III Direito Civil III

Destarte, ao interpretar um negócio jurídico, hoje, o juiz deverá se perguntar “qual


seria a conduta de homens honestos”, “o que homens probos perseguiriam em um contrato
desta natureza”, e assim por diante. Esta análise se faz presente, por exemplo, ao se
interpretar uma margem de lucro de um dos contratantes, que pode denunciar mera aptidão
negocial, ou falta de boa-fé objetiva, se excessiva.
Veja que não basta, portanto, mesmo na aplicação da teoria da vontade, perquirir a
real intenção das partes. É necessário que se encontre a eticidade da conduta das partes, que
deve ser leal, honesta, por trás da cláusula contratual que se esteja escrutinando.
Além disso, os costumes ganharam relevo na hermenêutica contratual como um
todo. É bem sabido que os costumes sempre tiveram relevo como norma a preencher
lacunas, e, no direito empresarial, sempre foram normas de aplicação imediata, inclusive,
constando até mesmo de rol enunciativo registrado nas juntas comerciais. Agora, porém,
são normas de interpretação conforme previsão expressa, servíveis à hermenêutica geral
dos negócios jurídicos.
Em suma, há três métodos interpretativos convivendo hoje no direito contratual, a
leitura literal, a teleológica, e a pautada na boa-fé e costumes, todas elas se interpenetrando
e comunicando, e não se excluindo. De fato, a ciência da hermenêutica tem regras
específicas, e uma delas é que, se duas cláusulas se mostram contraditórias, o intérprete
deve privilegiar aquela que mais se aproxima do objeto do contrato, da intenção em
contratar, sem abandonar a significação gramatical do texto. Por exemplo, se a quantia
grafada em números diverge da quantia redigida por extenso, prevalece esta última, pois
que maior a chance de ser errada a grafia numeral; ou se o contrato é impresso, e há
cláusula manuscrita, esta tem prevalência, etc.

1.1. Interpretação à luz do Código Civil e à luz do Código de Defesa do Consumidor

Em que pese as teorias mencionadas não serem diferentes na seara consumerista, os


contratos regidos pelo Direito do Consumidor são orientados pela alta protetividade do
consumidor, em razão de sua tripla vulnerabilidade diante do fornecedor – técnica,
econômica e jurídica. Destarte, paira sobre a hermenêutica clássica esta protetividade, como
método de dirimição das eventuais divergências.
Esta é, de fato, uma regra de ouro do direito consumerista: os contratos são sempre
interpretados de forma mais benéfica ao consumidor.
É muito freqüente a presença dos contratos por adesão no meio negocial
contemporâneo. O legislador consumerista, percebendo o perigo que estes contratos
representam à dinâmica contratual, ao suprimir a puntuação – permitindo que o elaborador
do contrato praticamente imponha as cláusulas que bem entender –, andou bem ao
estabelecer que estes contratos, que são um mal necessário em uma economia massificada,
tenham interpretação ainda mais dirigida em prol da parte aderente. O protecionismo é tal
que, em alguns casos – como nos seguros de saúde – antes mesmo de se levar o contrato à
adesão, ele é controlado pelo Estado (no exemplo, pela ANS), a fim de filtrar cláusulas
abusivas.
O CDC, então, para os contratos de adesão, traz regras de hermenêutica próprias. A
primeira é a leitura pró-consumidor, como dito. A segunda, a necessária transparência e
clareza nas cláusulas contratuais, impondo que se evitem os termos técnicos e incomuns,

Michell Nunes Midlej Maron 32


EMERJ – CP III Direito Civil III

alheios ao conhecimento o homem médio, e, se indispensável o uso do termo técnico, este


deve ser explicado para o aderente, “traduzido” imediatamente, no próprio contrato.
Outra regra importante destes contratos de adesão impõe que sejam, as cláusulas
que restringem direitos do aderente, redigidas de forma destacada, de fácil percepção e
leitura. Além disso, a impressão destes contratos deve ser feita em cor azul ou preta, em
tamanho de letra não inferior ao corpo doze.
O CC seguiu esta esteira de raciocínio, incluindo na disciplina geral dos contratos
regras de interpretação de contratos de adesão, ampliando a proteção, especialmente ao
dizer que são nulas todas as cláusulas que impliquem em renúncia prévia a direitos
inerentes àquele contrato.
O novo CC, de fato, tem grandes afinidades com o CDC. Os princípios, as normas
gerais, não se contrapõem, como dantes ocorria na vigência do antigo Código de
Bevillacqua. E esta filosofia coadunada se faz perceber bem claramente nas questões de
interpretação, de hermenêutica.

1.2. Cláusulas restritivas vs. cláusulas abusivas

Questão importante a ser enfrentada é a diferenciação entre cláusulas restritivas e


cláusulas abusivas, conceitos que não se confundem de forma alguma. A confusão quanto
aos conceitos se dá porque, na prática, muitas das cláusulas restritivas de direito são
também abusivas, mas nem toda restrição é um abuso.
A cláusula restritiva é legítima desde que não ultrapasse os limites que são impostos
por diversas circunstâncias. Como exemplo, em contratos de seguro, as cláusulas de
restrição dos direitos dos segurados são necessárias, sob pena do negócio ser inviável, dada
a abrangência majorada que teria a cobertura dos riscos. Não se pode, por exemplo,
entender que uma negativa de cobertura de acidentes pessoais em veículos a um
motociclista performático, que trabalha em um “globo da morte”, seja uma cláusula
abusiva, apesar de ser claramente restritiva.
Exemplo mais corriqueiro de cláusula restritiva legítima é a exclusão de cobertura,
em planos de saúde, de moléstias preexistentes 6. Se o segurador optar por cobrir esta
moléstia, poderá igualmente majorar a prestação a ser paga pelo segurado. De fato, os
contratos de seguro, todos eles, são calculados com base na ciência atuarial, cálculos
baseados em estatísticas complexas, e que demonstram a lógica dos valores dos prêmios.
Nada há de abusivo em se cobrar mais, por exemplo, pelo seguro de um automóvel cujo
proprietário transita em área de risco.
A cláusula será considerada abusiva quando colocar em manifesta desvantagem uma
das partes, em contraposição a uma vantagem exagerada da outra parte. Exemplo de
absurda abusividade é a cláusula que limita o número de dias de internação, consultas, etc,
em planos de saúde. Se o fornecedor tem sua responsabilidade reduzida extremadamente, é
claro que o objeto do contrato estará sendo inobservado. Por exemplo, não há sentido em
um plano de saúde no qual a internação em UTI seja limitada a tantos dias, pois que

6
Uma regra de ouro dos contratos de seguro é a estrita adstrição aos sinistros previstos: se não há previsão do
sinistro no contrato, não é possível pagar a indenização. Isto porque o pagamento das indenizações por
sinistros é feito com dinheiro pertencente a um fundo criado com os prêmios pagos pelos próprios segurados,
que é apenas administrado, mediante remuneração, pela seguradora. Sendo assim, os pagamentos de sinistros
alheios aos contratados são considerados má gestão do fundo.

Michell Nunes Midlej Maron 33


EMERJ – CP III Direito Civil III

ninguém pode imaginar quantos dias serão necessários para a recuperação, e se não mais
for coberto de tal dia em diante, a saúde estará abandonada – tendo sido inútil o contrato.
Uma outra medida de abusividade das cláusulas restritivas é formal: estas cláusulas
devem ser redigidas, como dito, com absoluto destaque e clareza.

Casos Concretos

Questão 1

Antonio (promitente vendedor) e José (promitente comprador), firmaram promessa


de compra e venda de imóvel, cuja sétima cláusula dispunha: "As despesas relativas ao

Michell Nunes Midlej Maron 34


EMERJ – CP III Direito Civil III

SPU, superiores a seis mil reais, serão da responsabilidade do promitente vendedor, bem
como todos os tributos em atraso junto à municipalidade (IPTU). Essas despesas deverão
ser pagas pelo promitente vendedor por ocasião da quitação da última parcela do preço do
imóvel". José (promitente comprador) quitou com o FISCO os impostos devidos; R$
2.000,00 de IPTU e R$ 8.000,00 de SPU. Pretende, agora, compensar a quantia de R$
4.000,00 no valor de sua última prestação, ao que resiste Antonio, ao argumento de que a
cláusula contratual não previa essa compensação. Sustenta que a ele caberia pagar os
impostos devidos e não a José, e que, tendo este efetuado o pagamento, nada pode
reclamar. José ajuizou ação consignatória em face de Antonio e pleiteia o depósito do
valor da última prestação, e que dele deve ser abatido o que pagou de impostos. Pergunta-
se: Deverá ser acolhida a pretensão de José? Justifique.

Resposta à Questão 1

É claro que a compensação é devida. Qualquer que tenha sido a redação da cláusula,
percebe-se que o que se desejava é que o ônus das referidas despesas recaísse sobre o
vendedor. Por isso, não pode ser feita interpretação literal desta cláusula: mesmo não
estando expressa a sua possibilidade no contrato, a compensação é o meio mais hábil para o
pagamento de obrigação que era da vontade das partes, qual seja, o adimplemento dos
impostos pelo promitente-vendedor. Assim, soa como deslealdade contratual de Antônio
resistir a esta compensação. Pela boa-fé e pela interpretação teleológica, a compensação é
devida.
O TJ/RJ, na apelação cível 1997.001.2345, assim se posicionou:

“CONTRATO. PROMESSA DE COMPRA E VENDA DE IMOVEL.


PAGAMENTO DE TRIBUTO. CONSIGNACAO EM PAGAMENTO.
INTERPRETACAO DE ACORDO.
Contrato. Interpretacao de clausula. Busca da vontade das partes. Havendo
divergencia sobre a interpretacao de clausula contratual, o hermeneuta tem de
procurar a vontade real das partes, devendo atentar, na busca desse objetivo, para
os elementos exteriores que envolveram a formacao do contrato e os efeitos
economicos pretendidos. No caso, evidenciado que o ojetivo do aditivo contratual
foi garantir o pagamento dos impostos atrasados do imovel com a ultima parcela
do seu preco, nao ha' como negar ao promitente comprador o direito de fazer a
correspondente compensacao. Provimento ao recurso.”

Questão 2

Henrique fornece produtos alimentícios para um comerciante local há três anos


aproximadamente. O dia da entrega da mercadoria é sempre ás quintas-feiras e durante
todo este tempo não falha na entrega. Ocorre que em determinada quinta-feira, o
entregador de Henrique lhe telefonou comunicando que o novo gerente do estabelecimento
não queria receber a entrega, argumentando que havia mudado o fornecedor daqueles
produtos alimentícios e não lhe interessava mais a mercadoria de Henrique. Ao fazer
contato com o novo gerente para argumentar, Henrique se deparou com a alegação de que
não havia contrato formalizado e muito menos cláusula estabelecendo que o seu comércio
estaria obrigado a aceitar a mercadoria enviada semanalmente. Assiste razão ao novo
gerente da loja? Explique.

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EMERJ – CP III Direito Civil III

Resposta à Questão 2

O gerente está errado. A reiteração da conduta de envio da mercadoria erigiu aquilo


que se denomina surrectio, significando que fez nascer, no fornecedor, o direito derivado da
expectativa, que mesmo não positivado em contrato, é exigível. Para rescindir este contrato,
tácito, seria necessária atenção à boa-fé, pelo novo gerente, buscando evitar prejuízos ao
seu fornecedor. Aplica-se perfeitamente o artigo 113 do CC.
Ademais, não comprar os produtos é um direito do comprador, mas da forma que
foi exercido, ignorando a boa-fé, trata-se de um ato ilícito.

Tema IV

A estrutura interna e a formação dos contratos. Os elementos subjetivos do contrato. A parte contratante.
Capacidade e legitimação. O contrato celebrado pelo incapaz. O consentimento. As formas de manifestação
da vontade. O silêncio vinculativo. O objeto do contato. Causa e motivo. Fases da formação dos contratos.

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EMERJ – CP III Direito Civil III

Tratativas ou negociações preliminares. Proposta ou policitação. A oferta ao público (art. 429). Aceitação.
Celebração dos contratos entre ausentes. Teorias aplicáveis. O lugar da celebração do contrato.

Notas de Aula7

1. Elementos internos dos contratos

A estrutura de um contrato conta com três elementos que não podem deixar de estar
presentes, sob pena de inexistência do próprio negócio: o elemento subjetivo, os sujeitos; o
elemento objetivo, o objeto; e o elemento material, que é o vínculo jurídico.
Não havendo um destes elementos, o contrato não existe. Não existindo, a eventual
análise da relação jurídica que porventura se esteja fazendo deverá ser feita não pelas regras
contratuais, mas sim pela lei. se a análise for sobre eventuais responsabilidades, por
exemplo, estas serão da espécie aquiliana.
Exemplo corriqueiro desta dinâmica, que ilustra a relevância da verificação dos
elementos internos do contrato, é a negativação do nome de uma pessoa por uma outra, em
razão de uma dívida que por esta não foi contraída. A indenização se dá justamente por
inexistir contrato que autorize a negativação, pois que falta o elemento vínculo jurídico, a
demonstrar que se trata de responsabilização extracontratual.
Os elementos de existência têm adjetivação que identifica-lhes como elementos de
validade. Vejamos.

1.1. Partes

O sujeito deverá ser capaz para que o contrato seja válido, tratando-se de
capacidade de fato, e não jurídica, aqui. Ocorre que há que se diferenciar capacidade de
legitimação: a capacidade de fato diz respeito à possibilidade genérica de praticar atos da
vida civil por si só; a legitimação, de seu lado, é uma capacidade de fato específica para
determinado ato.
Entenda: a capacidade de fato pode ser limitada ampla e genericamente, quando se
diz que o agente é incapaz para a prática de qualquer ato da vida civil. Entretanto, a
capacidade de fato pode ser limitada apenas em relação a um determinado ato da vida civil,
significando que mesmo que o agente seja capaz, macroscopicamente, é incapaz para um
certo aspecto, apenas. Um bom exemplo vem do pródigo, apresentado no artigo 4º, IV, do
CC:

“Art. 4o São incapazes, relativamente a certos atos, ou à maneira de os exercer:


(...)
IV - os pródigos.
(...)”

Apenas os atos de disposição patrimonial escapam à capacidade de fato do pródigo,


ou seja, é capaz de fato para todos os demais atos da vida civil, à exceção dos atos
patrimoniais. Não há capacidade para o pródigo celebrar uma compra e venda, por
exemplo. É uma incapacidade de menor alcance, mas ainda é genérica (todos os atos de
cunho patrimonial escapam-lhe à capacidade de fato).

7
Aula proferida pelo professor Ricardo Cyfer, em 29/1/2009.

Michell Nunes Midlej Maron 37


EMERJ – CP III Direito Civil III

A legitimação, por seu lado, é uma limitação ainda mais específica da capacidade: o
agente que é plenamente capaz, ainda assim pode ter um determinado ato que lhe seja
impossível praticar. Bom exemplo é a impossibilidade, de alguém que não tenha qualquer
interesse, de anular um negócio jurídico qualquer: a pessoa, plenamente capaz, não terá
legitimidade para aquele ato de anulação. Veja o que dispõe o artigo 496 do CC:

“Art. 496. É anulável a venda de ascendente a descendente, salvo se os outros


descendentes e o cônjuge do alienante expressamente houverem consentido.
Parágrafo único. Em ambos os casos, dispensa-se o consentimento do cônjuge se o
regime de bens for o da separação obrigatória.”

Assim, fora as pessoas envolvidas neste negócio jurídico, ninguém mais tem
legitimação para intentar a anulação, mesmo sendo pessoa plenamente capaz.

1.2. Objeto

Em relação ao objeto, este deve ser lícito, não podendo ser pactuado negócio que
envolva objeto ilícito. Veja que se assim o for, o contrato existe, porque há objeto, mesmo
que ilícito; o vício é na validade, porque a adjetivação “lícito” diz respeito a este espectro
do contrato, à validade, e não à existência. E assim o é com todos os requisitos de validade
do contrato, não só do objeto.
O objeto também deve ser determinado ou determinável, e possível, sendo a
possibilidade jurídica e fática, como se sabe.

1.3. Vínculo jurídico

Estando presentes as partes e o objeto, passa a ser necessário o vínculo jurídico,


último elemento essencial dos contratos, que consiste exatamente na manifestação de
vontade. Para existir contrato, é necessário o consenso, a manifestação de vontade das
partes.
A adjetivação que indica validade do vínculo jurídico, à manifestação de vontade, é
a liberdade: trata-se de um requisito negativo, representado pela ausência de vícios de
vontade, quais sejam, o erro, dolo, coação, lesão e o estado de perigo.
Não existe contrato que seja negócio jurídico unilateral, porque a pluralidade de
vontades livres, o vínculo jurídico, é elemento essencial de existência dos contratos. A
doação, portanto, é contrato, é negócio jurídico bilateral, mas é unilateral quanto à
reciprocidade de obrigações – somente o doador tem obrigações.
Sobre o vínculo jurídico, ainda há que se reiterar que este se forma através da
coligação de duas vontades, ao menos, e o meio pelo qual se colima tais vontades, a sua
estrutura, é a emissão da proposta e da aceitação. Estas são as espécies de manifestação de
vontades, que geram o vínculo jurídico.
A manifestação de vontades pode ser expressa ou tácita, ou mesmo ser depreendida
do silêncio. Será expressa quando se dirige diretamente ao interlocutor; será tácita quando
não se dirige desta forma direta à outra parte. Vale o exemplo: o ônibus de linha concedida
circulando pelas ruas consiste em uma constante oferta, manifestação expressa de vontade
da empresa em contratar, oferecendo o serviço de transporte; da mesma forma, ao fazer o
sinal para o ônibus, para ser transportado, o indivíduo está manifestando aceitação expressa

Michell Nunes Midlej Maron 38


EMERJ – CP III Direito Civil III

daquele contrato de transporte, de forma gestual. Ser expresso em nada se confunde com
ser formal: é a direção direta ao interlocutor que identifica ser expressa a vontade.
A manifestação tácita, ao contrário, não é dirigida diretamente ao proponente pelo
aceitante, ou vice-versa. Veja um exemplo: se a operadora de cartões de crédito envia um
cartão ao indivíduo, esta é uma oferta expressa. Se o consumidor passa a utilizar este cartão
em compras, estará manifestando tacitamente sua aceitação, na medida em que seu
comportamento, mesmo não sendo dirigido à operadora – pois que fez compra em lojas,
não tendo respondido ao envio do cartão expressamente –,indica clara aceitação do crédito
que lhe foi ofertado. A manifestação tácita, então, é a prática de atos tais que fazem concluir
a vontade, sem que tenha havido expressão desta diretamente à parte policitante.
Quanto ao silêncio, este pode ou não ser manifestação de vontade. Geralmente,
quando o for, será manifestação da aceitação, e não da proposta, porque é difícil se
vislumbrar um exemplo de proposta por meio de silêncio. A cláusula geral do silêncio está
no artigo 111 do CC:

“Art. 111. O silêncio importa anuência, quando as circunstâncias ou os usos o


autorizarem, e não for necessária a declaração de vontade expressa.”

A parte final deste artigo é de suma importância, pois de plano elimina dúvidas
casuísticas quanto ao valor do silêncio: se a lei ou o próprio contrato exigir a forma
expressa, não há manifestação de vontade qualquer se houver silêncio. Não sendo o caso,
aplica-se a primeira parte do artigo. Vejamos.
O silêncio representa anuência por conta da interpretação casuística. Se, no caso
concreto, a circunstâncias da negociação ou a praxe negocial determinarem que o silêncio
indica aceitação, estará configurada a manifestação de vontade positiva se se quedar silente
a parte. Repita-se, a análise é casuística, e esta tem se demonstrado com freqüência maior
em se tratando de contratos que se renovam periodicamente. Vale o exemplo: se um
assinante de uma revista vem renovando-a por diversas vezes, anualmente, o silêncio
quando do fim de um período leva a crer que pretende renovar mais uma vez sua assinatura.
Aqui surge uma problemática. Como dito, a necessidade de expressão da vontade
não implica em necessária formalidade. No exemplo dado, para terminar o contrato, para
cancelar a assinatura, é necessário que o assinante se dirija à editora com manifestação
negativa da sua vontade em renovar, pois se ficar silente impele à interpretação de que
queria continuar assinante da revista. Contudo, como não precisa, a sua negativa, ser formal
– apenas expressa –, poderá fazê-la por mero telefonema. Mas suponha que a editora ignore
a existência deste telefonema, e continue o contrato como se nada houvesse: em se
instaurando o litígio nesta relação, o consumidor não poderá provar que fez tal telefonema,
e por isso, havendo silêncio, significaria que houve anuência. Como resolver?
Aplica-se, certamente, a inversão do ônus da prova, neste caso autorizada pelo
CDC, ao seguinte argumento: o contrato é de adesão, e por isso tanto a forma de
contratação quanto de distrato foi estabelecida pela editora, fornecedora. Sendo assim, o
consumidor aderiu também à forma de cancelamento, e se o meio telefônico foi admitido, é
incumbência da fornecedora produzir a prova de que não houve tal telefonema. É, de fato,
prova de fato negativo, mas não é prova diabólica, porque se é de difícil produção para a
empresa, ainda mais difícil será para o consumidor, e por isso se justifica a sua imputação à
fornecedora, diante do risco do empreendimento por esta suportado – inexistindo a prova da
não resolução, presumir-se-á que esta se deu.

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EMERJ – CP III Direito Civil III

Outro exemplo que indica que o silêncio é anuência é o contrato de locação, que
prorroga-se automaticamente, não havendo manifestação expressa de vontade em resolver o
trato. Da mesma forma, os contratos de seguro de saúde. Veja que, em regra, os exemplos
são de contratos de prestação continuada, renováveis periodicamente.
Quando for caso de aplicação desta cláusula geral do silêncio, do artigo 111 do CC,
este recebe o nome de silêncio simples, que é o silêncio interpretável. Quando a lei,
expressamente, impuser outro significado ao silêncio, este deverá ser observado, bem como
será observado o que o próprio contrato dispuser sobre o silêncio. Nestes casos, não se
aplicando o artigo 111 do CC, trata-se do que se chama de silêncio qualificado, que tem seu
sentido literalmente descrito, não interpretável. Assim ocorre, por exemplo, com os artigos
299, parágrafo único, 303, e 539, todos do CC:

“Art. 299. É facultado a terceiro assumir a obrigação do devedor, com o


consentimento expresso do credor, ficando exonerado o devedor primitivo, salvo
se aquele, ao tempo da assunção, era insolvente e o credor o ignorava.
Parágrafo único. Qualquer das partes pode assinar prazo ao credor para que
consinta na assunção da dívida, interpretando-se o seu silêncio como recusa.

“Art. 303. O adquirente de imóvel hipotecado pode tomar a seu cargo o pagamento
do crédito garantido; se o credor, notificado, não impugnar em trinta dias a
transferência do débito, entender-se-á dado o assentimento.”

“Art. 539. O doador pode fixar prazo ao donatário, para declarar se aceita ou não a
liberalidade. Desde que o donatário, ciente do prazo, não faça, dentro dele, a
declaração, entender-se-á que aceitou, se a doação não for sujeita a encargo.”

1.4. Esquema gráfico

Tendo sintetizado quais são os elementos internos dos contratos e seus requisitos de
validade, vale traçar um esboço gráfico simples, para efeito de memória:

Elemento essencial do contratoRequisitos de validade


Capaz e legitimada

Partes

Lícito, possível, determinado ou determinável

Objeto

Ausência de vícios na manifestação de vontade

Vínculo jurídico2. Proposta e aceitação

Estas modalidades de manifestação de vontade são absolutamente fundamentais,


porque é de sua perfeita identificação que se conclui se existiu ou não contrato, em
determinada relação.

2.1. Proposta

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EMERJ – CP III Direito Civil III

A proposta é uma manifestação de vontade inicial, unilateral, que se põe a aguardar


a manifestação da outra parte, aceitando-a, para que então se forme o contrato. De acordo
com os artigos 107 e 108 do CC, em regra não se impõe forma para a proposta:

“Art. 107. A validade da declaração de vontade não dependerá de forma especial,


senão quando a lei expressamente a exigir.”

“Art. 108. Não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à


validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência,
modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta
vezes o maior salário mínimo vigente no País.”

Não sendo caso de solenidade imposta por lei, ou de formalidade quista pelas
próprias partes, a proposta é informal.
Antes da aceitação válida, a relação se encontra em fase pré-contratual, negocial, a
chamada fase de puntuação, de tratativas, em que se percebe um certo interesse em
contratar, mas ainda se está desenhando a exata pactuação que será procedida. Sendo fase
extracontratual, não há, por óbvio, responsabilidade contratual alguma; contudo, esta fase já
é guiada pelas normas atinentes à boa-fé objetiva, e por isso pode haver responsabilização
de uma parte pela causação de danos quaisquer à outra, danos que serão oriundos da
frustração da expectativa criada na outra parte – responsabilidade que, como dito, será
aquiliana, porque não há contrato.
A proposta tem elementos objetivos e subjetivos de existência. O elemento subjetivo
é a seriedade da oferta: é necessário que se perceba que o proponente realmente tem
intenção em contratar como está manifestando. Havendo qualquer tom de jocosidade na
suposta proposta, não se a pode considerar existente.
O elemento objetivo da proposta é a descrição das condições do que se quer
contratar. Tais condições essenciais são, genericamente: o preço, o prazo, e as
circunstâncias do negócio.
O artigo 427 do CC traz princípio basilar da proposta, o princípio da vinculação:

“Art. 427. A proposta de contrato obriga o proponente, se o contrário não resultar


dos termos dela, da natureza do negócio, ou das circunstâncias do caso.”

A proposta, contendo os elementos objetivos e o subjetivo, é geradora de uma carga


severa de responsabilidade para o proponente, pois o oblato estará crendo naquilo que lhe
foi ofertado, e por vezes estará se mobilizando para aceitá-la. Destarte, em regra, a proposta
gera esta vinculação aos seus termos.
Ocorre que não há como se pretender que alguém fique vinculado ad aeternum a
uma proposta que exarou. Por isso, o legislador criou, como antítese da vinculação da
proposta, as regras de desvinculação do proponente. Estas regras, em verdade, só são
necessárias nos contratos entre ausentes, pelo que se faz necessário, antes de explicá-las,
traçar a diferença da contratação entre pessoas presentes e pessoas ausentes. Vejamos.
O contrato é considerado entre presentes sempre que houver interlocução recíproca,
por qualquer meio. Veja: interlocução recíproca é a conversa direta, imediata, entre o
policitante e o oblato, qualquer que seja o meio pelo qual este diálogo se opere. Desta
forma, a conversa face a face é claramente contrato entre presentes, assim como a
contratação telefônica, ou mesmo por meio de mensagens eletrônicas instantâneas. Veja que

Michell Nunes Midlej Maron 41


EMERJ – CP III Direito Civil III

o e-mail não pode ser considerado uma mensagem instantânea: a sua emissão e retorno não
é automática, instantânea, sendo necessário um aguardo da resposta – e por isso a
contratação por e-mail é considerada entre ausentes.
Os contratos de compra e venda eletrônica, em sítios da internet, são controvertidos.
A maioria da doutrina entende que são contratos entre presentes, porque há aceitação do
consumidor no mesmo momento em que há a oferta, mas há uem defenda, de outro lado,
que são ausentes, porque a interlocução não está bem configurada.
Dito isto, as regras de desvinculação só fazem sentido nos casos em que se dá
contratação entre ausentes, porque a desvinculação, em caso de contratação com pessoa
presente, se dá tão imediatamente quanto a própria vinculação: se não for imediatamente
aceita, no curso da interlocução, não mais estará vinculado o proponente. Veja o artigo 428
do CC:

“Art. 428. Deixa de ser obrigatória a proposta:


I - se, feita sem prazo a pessoa presente, não foi imediatamente aceita. Considera-
se também presente a pessoa que contrata por telefone ou por meio de
comunicação semelhante;
II - se, feita sem prazo a pessoa ausente, tiver decorrido tempo suficiente para
chegar a resposta ao conhecimento do proponente;
III - se, feita a pessoa ausente, não tiver sido expedida a resposta dentro do prazo
dado;
IV - se, antes dela, ou simultaneamente, chegar ao conhecimento da outra parte a
retratação do proponente.”

Destarte, a regra de desvinculação entre presentes é justamente a imediatidade, na


forma do inciso I deste artigo supra. É claro que enquanto se estiver no curso da
negociação, não há vinculação, pois estarão as partes ainda nas tratativas; findando a
negociação, e havendo emissão de proposta final, sua aceitação forma o contrato, estando
vinculado o proponente.
Os demais incisos deste artigo 428, II a IV, tratam justamente das propostas feitas a
pessoa ausente, em que o deslocamento temporal entre proposta e aceitação produz variada
gama de efeitos possíveis. Vejamos as três regras de desvinculação entre ausentes.
A primeira regra, do inciso II do artigo supra, quando a proposta vem sem prazo
estipulado, analisar-se-á a desvinculação de acordo com a razoabilidade do prazo praticado.
Cabe ao intérprete verificar se o prazo decorrido na casuística ainda mantém o proponente
vinculado ou não. Como exemplo, um e-mail enviado com a proposta de venda de um
carro, não respondido em dois dias: se estes dois dias se demonstrarem mais tempo do que
o comumente praticado, ou de acordo com as partes, ou com as praxes negociais, estará
desvinculado o proponente.
A segunda regra, do inciso III deste artigo, faz mais fácil a tarefa de verificar a
desvinculação, porque consiste em proposta feita a ausente com a estipulação de prazo de
vinculação. Neste caso, basta verificar se o prazo foi cumprido. Se ultrapassado, não mais
há vinculação do policitante à proposta feita.
Nesse segundo caso, se o proponente, no curso do prazo de vinculação por si
estabelecido, pretender desvincular-se, poderá operar a retratação eficaz, que consiste na
retirada da proposta se o oblato ainda não a aceitou. Se já houve aceitação, não há que se
falar em desvinculação pela retratação, pois esta é ineficaz.

Michell Nunes Midlej Maron 42


EMERJ – CP III Direito Civil III

A terceira regra de desvinculação diz respeito justamente à retratação: se esta


alcançar o aceitante antes ou simultaneamente à proposta, estará operada a desvinculação.
Simples assim.
Há ainda uma quarta regra de desvinculação do proponente, alheia a este artigo 428
do CC,que consiste na desvinculação objetiva, apresentada no artigo seguinte, 429 do CC:

“Art. 429. A oferta ao público equivale a proposta quando encerra os requisitos


essenciais ao contrato, salvo se o contrário resultar das circunstâncias ou dos usos.
Parágrafo único. Pode revogar-se a oferta pela mesma via de sua divulgação, desde
que ressalvada esta faculdade na oferta realizada.”

Este dispositivo rata da proposta feita a sujeito não determinados, por proponente
que não seja fornecedor de produtos e serviços (porque se for, estará sujeito ao artigo 30 do
CDC). Veja que a vinculação é mais forte do que quando se trata de proposta a indivíduo
certo. A regra da desvinculação objetiva impõe duas condições para que esta seja operável,
como se depreende do parágrafo único deste artigo: o meio de divulgação da revogação
deve ser o mesmo meio pelo qual se divulgou a oferta; e a própria oferta deve ter contido a
ressalva da possibilidade de desvinculação.
Veja o que dispõe o artigo 30 do CDC:

“Art. 30. Toda informação ou publicidade, suficientemente precisa, veiculada por


qualquer forma ou meio de comunicação com relação a produtos e serviços
oferecidos ou apresentados, obriga o fornecedor que a fizer veicular ou dela se
utilizar e integra o contrato que vier a ser celebrado.”

Se a vinculação da proposta ao público é mais forte do que a vinculação de proposta


interpessoal, a vinculação da oferta ao público por fornecedor é ainda mais severa. Não é
absoluta, pois há como desvincular-se, o fornecedor, da sua oferta, mas é muito mais difícil,
como se vê no artigo supra.
Os artigos 31, 32, 34 e 35 do CDC são de alta importância, neste tema:

“Art. 31. A oferta e apresentação de produtos ou serviços devem assegurar


informações corretas, claras, precisas, ostensivas e em língua portuguesa sobre
suas características, qualidades, quantidade, composição, preço, garantia, prazos de
validade e origem, entre outros dados, bem como sobre os riscos que apresentam à
saúde e segurança dos consumidores.”

“Art. 32. Os fabricantes e importadores deverão assegurar a oferta de componentes


e peças de reposição enquanto não cessar a fabricação ou importação do produto.
Parágrafo único. Cessadas a produção ou importação, a oferta deverá ser mantida
por período razoável de tempo, na forma da lei.”

“Art. 34. O fornecedor do produto ou serviço é solidariamente responsável pelos


atos de seus prepostos ou representantes autônomos.”

“Art. 35. Se o fornecedor de produtos ou serviços recusar cumprimento à oferta,


apresentação ou publicidade, o consumidor poderá, alternativamente e à sua livre
escolha:
I - exigir o cumprimento forçado da obrigação, nos termos da oferta, apresentação
ou publicidade;
II - aceitar outro produto ou prestação de serviço equivalente;

Michell Nunes Midlej Maron 43


EMERJ – CP III Direito Civil III

III - rescindir o contrato, com direito à restituição de quantia eventualmente


antecipada, monetariamente atualizada, e a perdas e danos.”

Os requisitos da própria oferta do fornecedor são muito mais complexos, muito


mais detalhados pelo legislador.
Veja que as conseqüências do descumprimento da proposta feita ao público são bem
diferentes na relação paritária e na relação de consumo. Se aplicar-se o artigo 429 do CC,
aquele que demonstrar-se prejudicado pelo descumprimento do proponente às regras deste
artigo poderá ser indenizado, por prejuízo qualquer, sob argumento de responsabilidade
contratual – pois se a regra de desvinculação não foi cumprida, mas foi demonstrado o
interesse em contratar ainda pelo oblato, há contrato, pois houve aceitação.
Sendo descumprida a oferta ao público em relação de consumo, nos moldes do
CDC, aplicar-se-á o artigo 35 deste codex: surge a tripla opção ao consumidor ali prevista.
Ocorre que aquelas opções só serão aplicadas se a proposta for descumprida, e com
moderação (pois o cumprimento específico forçado pode ser extremamente danoso, pelo
que se aplicará outra opção). O artigo 429 não prevê opções ao aceitante, mas apenas a
possibilidade de indenizar-se.
Veja, agora, um exemplo bastante peculiar: se uma oferta ao público de um produto
contiver um preço extremamente baixo, diante do usualmente praticado, porque houve um
erro de tipografia na escrita do preço, como se solucionar a questão, diante da suposta
vinculação que a proposta operou?
Observe: se o proponente ofertou um produto que usualmente custa cem, pelo preço
de dez, tendo a carência de um zero sido um erro de impressão, é claramente inábil a gerar
a vinculação que se impõe normalmente às propostas. Neste caso, dois são os argumentos
para a não vinculação (e não desvinculação, porque sequer houve vinculação, como se
verá): haveria uma certa má-fé do consumidor, aceitante, porque é objetivamente óbvia a
disparidade absurda do preço proposto diante do preço de mercado (tese não muito sólida,
porque não se pode ter por certa esta má-fé); e o segundo argumento, este sim forte, é de
que se o veículo de divulgação conteve erro material, a oferta é nula, pois há um vício de
validade num dos elementos objetivos, qual seja, o preço.
Sendo nula a proposta, não houve contrato, e não há que se indenizar
contratualmente. Ocorre que, extracontratualmente, ainda há que se indenizar os
consumidores que de qualquer forma foram lesados pelo erro material da oferta. Veja:
contratualmente, não há que se exigir respeito à proposta, mas se esta oferta nula causou
algum prejuízo ao consumidor, ele deverá ser indenizado, por responsabilidade aquiliana.
Como exemplo, se o oblato se deslocou de localidade distante, com o fito de contratar,
tendo despesa por conta disso, haverá que ser reparado neste dano. E veja que esta
indenização será devida pelo fornecedor, e não pelo eventual causador do erro material – a
gráfica, por exemplo –, a qual poderá ser imputada em regresso pelo fornecedor
responsabilizado (havendo quem entenda ser possível entender que a gráfica, aqui,
participaria da cadeia de consumo, e por isso seria solidária).
É importante se abordar a comuníssima cláusula “enquanto durarem os estoques”,
bastante usada em ofertas ao público por fornecedores. Esta impossibilidade material de
cumprimento deve ser analisada na casuística, quando efetivamente findarem os estoques, a
fim de que não haja a criação de uma expectativa, pelo fornecedor, em falsas bases, mas

Michell Nunes Midlej Maron 44


EMERJ – CP III Direito Civil III

também não pode ser exacerbada a protetividade do consumidor, sob pena de se impor ao
fornecedor a manutenção de estoques irrazoáveis8.

2.2. Aceitação

Esta manifestação do oblato será pura, ou simples, quando apenas expressa a


concordância com a proposta feita. Quando o aceitante aduzir novas condições ou
circunstâncias, operar-se-á uma inversão da sua posição negocial: ele passará a ser
considerado proponente. Da mesma forma assim vai ocorrer se a aceitação vier fora do
prazo, quando será entendida como uma nova proposta feita pelo oblato ao proponente
original (uma vez que se desvinculou pela expiração do prazo de vinculação). Veja o artigo
431 do CC:

“Art. 431. A aceitação fora do prazo, com adições, restrições, ou modificações,


importará nova proposta.”

A regra, então, é simples: o aceitante não pode alterar a proposta jamais, pois se o
fizer, deixa de ser aceitante, passando a proponente.
A aceitação pode ser tácita, expressa, ou depreendida do silêncio, como já se viu.
Reiterando, a tácita, como já se viu, é a prática de atos que levam a entender aceita a a
proposta, sem que haja manifestação diretamente dirigida neste sentido ao proponente.
Por toda esta dinâmica, fica claro que o contrato só surge quando o aceitante se
manifesta: é ele o responsável pelo exato momento de criação o contrato. A aceitação não
vai criar o contrato, contrariando a normalidade, em três hipóteses, quais sejam, a aceitação
tardia, a retratação simultânea ou prévia, e os contratos reais.
A aceitação tardia vem prevista no artigo 430 do CC:

“Art. 430. Se a aceitação, por circunstância imprevista, chegar tarde ao


conhecimento do proponente, este comunicá-lo-á imediatamente ao aceitante, sob
pena de responder por perdas e danos.”

Se a aceitação for emitida em prazo irrazoável, ou fora do prazo estipulado, se o há,


estará o policitante desvinculado, como se viu. Sendo assim, esta aceitação não terá
potencialidade de criação de contrato. Mas veja que este artigo 430 do CC impõe um ônus
de informação ao proponente, que deverá avisar ao oblato que sua manifestação foi tardia,
não existindo o contrato. Por óbvio, se se tratou de proposta com prazo certo de vigor, não
será imposta esta informação, porque o aceitante sabia que sua aceitação era tardia,
objetivamente: esta informação só é devida quando se tratar de aceitação tardia por emissão
em prazo irrazoável, não tendo sido traçado prazo fixo de vinculação pelo proponente.
Descumprida a obrigação de informar ao oblato da inexistência do contrato, há
responsabilidade aquiliana pelos eventuais prejuízos, porque logicamente, se aceitação for
tardia, não se formou contrato, não podendo haver responsabilidade contratual: a
responsabilidade é justamente pela inexistência do contrato não comunicada ao aceitante,
que pode ter entendido que o contrato se formou.

8
Cogito se esta assertiva não poderia ser considerada uma retratação simultânea à oferta, método legítimo de
desvinculação, quando se analisar a aceitação feita pelos consumidores que alcançarem a loja depois de
terminados os estoques. Fica a questão.

Michell Nunes Midlej Maron 45


EMERJ – CP III Direito Civil III

A segunda hipótese de aceitação que não cria o contrato é a do artigo 433 do CC,
esta bem óbvia:

“Art. 433. Considera-se inexistente a aceitação, se antes dela ou com ela chegar ao
proponente a retratação do aceitante.”

A terceira hipótese é a dos contratos reais. Como se sabe, são reais aqueles
contratos que só passam a existir se houver a entrega do bem, a tradição (ou registro dos
bens imóveis). Veja que, no Brasil, o contrato não se forma com fato outro que não a
existência do consenso, a não ser nestes contratos reais, que são excepcionais (e muito
criticados, por desconsiderarem o consensualismo). Nos contratos consensuais, há
obrigação pessoal desde a plural manifestação das vontades, enquanto nos reais esta só
surge na transmissão ou na transcrição do registro. Daí entender-se que os contratos reais
são exceção à regra de que a aceitação cria o contrato: neles, mesmo havendo aceitação
válida, sem a tradição não há contrato9.
Pelo ensejo, é necessário adentrar na discussão sobro o exato momento de formação
do contrato. Vejamos, então, em tópico próprio, as teorias sobre este fenômeno.

2.3. Momento de formação dos contratos

A primeira tese sobre este momento é a teoria da informação, ou cognição. Esta


defende que o contrato se forma, passa a existir, somente quando o proponente toma
conhecimento da aceitação. Denomina-se teoria da informação porque depende de que o
proponente esteja informado da aceitação feita pelo oblato. A crítica a esta primeira tese é
seu caráter altamente subjetivo: é necessário que seja mais precisa, objetivamente, a
definição do momento em que se deu a contratação, pois tamanha subjetividade cria
insegurança. Mesmo por isso, esta corrente não tem prevalência.
A segunda é a teoria da declaração, ou agnição. Esta tese, de fato, se subdivide em
três sub-teses, quais sejam, a da declaração pura, a da expedição e a da recepção. Vejamos.
A teoria da declaração pura assevera que a mera declaração do aceitante faz surgir,
naquele exato momento, o vínculo jurídico, e o contrato em si. Da mesma forma que na
teoria da cognição, o alto grau de subjetividade, por estar a vontade na mente do aceitante,
é crítica que se apõe a esta teoria.
A teoria da expedição, por sua vez, é bem objetiva: o contrato se forma no exato
momento em que o aceitante expede, envia sua aceitação ao proponente, ou seja, emite sua
vontade externamente. Não é necessário que chegue a aceitação ao proponente, para haver
contrato; basta a emissão da aceitação (sendo certo que esta difusão de teorias só faz
sentido, novamente, em contratos entre ausentes). Para grande parte da doutrina, esta é a
teoria adotada pelo CC, na forma do artigo 434:

“Art. 434. Os contratos entre ausentes tornam-se perfeitos desde que a aceitação é
expedida, exceto:
I - no caso do artigo antecedente;
II - se o proponente se houver comprometido a esperar resposta;
III - se ela não chegar no prazo convencionado.”

9
No Brasil, o contrato não transmite propriedade, mas somente uma obrigação pessoal, como se vê. O que
gera a transmissão da propriedade é a tradição ou o registro.

Michell Nunes Midlej Maron 46


EMERJ – CP III Direito Civil III

A terceira sub-teoria da declaração é a teoria da recepção: segundo esta, não é


suficiente a mera expedição da aceitação para que haja, já, o contrato; é preciso que a
aceitação fique à disponibilidade do proponente. Veja que não se impõe que haja a prova da
ciência efetiva, interna, do proponente, de que tenha havido aceitação – pois que se
restauraria o subjetivismo da teoria da cognição; se impõe, objetivamente, que o conteúdo
da aceitação esteja disponível para o proponente.
Em que pese a adesão majoritária à tese da expedição, parte da doutrina entende que
as exceções que vêm apresentadas nos incisos deste artigo 434 do CC são indícios de
adesão à teoria da recepção. Veja: o inciso II diz que só há contrato quando a aceitação
alcançar efetivamente o proponente, o que se chama de recepção contratada; o inciso III
dispõe que, tendo havido prazo convencionado, a não recepção impede a formação do
contrato – é complemento ao inciso II, também denunciando a recepção contratada.
O inciso I, que se combina com o já transcrito artigo 433 do CC, é grande
fundamento da corrente que identifica a teoria da recepção como regra. Isto porque a leitura
combinada indica o seguinte: “o contrato entre ausentes não se forma desde que a aceitação
é expedida, se antes da aceitação, ou com ela, chegar ao proponente a retratação do
aceitante, caso em que se entende inexistente a aceitação”. Ora, a lógica é clara: não há
como se dizer que não gera contrato a retratação simultânea, se este contrato já surgira
quando da expedição. Se a expedição gerou contrato, a retratação não pode não gerar o
contrato – é, no mínimo, uma incongruência legal.
Outro argumento a favor da tese da recepção é o artigo seguinte, o 435 do CC:

“Art. 435. Reputar-se-á celebrado o contrato no lugar em que foi proposto.”

Entenda: se o contrato se forma no local em que foi proposto, não se formou onde
foi expedida a aceitação, e sim onde o proponente a recebeu, em regra o mesmo lugar onde
propôs.

Casos Concretos

Questão 1

Determinada empresa responsável pela manutenção de filtros de purificação de


água envia carta registrada para a sede de empresa de transporte e oferece seus serviços.
Após quinze dias da expedição da oferta, dois empregados da empresa de manutenção
comparecem à sede da empresa de transporte. O representante legal da empresa de

Michell Nunes Midlej Maron 47


EMERJ – CP III Direito Civil III

transporte não permite o ingresso dos empregados, afirmando que não havia nenhum
contrato celebrado. Consultado o representante legal da empresa de manutenção, é dito
que o contrato estava celebrado, pois não houve negativa expressa. A quem assiste razão?

Resposta à Questão 1

É claro que não há contrato. Não se impõe a negativa expressa como evento
determinante da não contratação, mas sim o assentimento expresso para se aperfeiçoar a
vontade. Não tendo se manifestado o oblato, e não sendo caso em que a lei dá ao silêncio o
caráter de manifestação positiva, não há contrato, nada indicando que o silêncio importe, in
casu, em anuência.
Veja o que disse o TJ/RJ, na apelação cível 2002.001.26132:

“PRESTACAO DE SERVICOS. CONCORDANCIA TACITA. ACEITACAO DA


PROPOSTA. CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. Tratativas.
Aceitação Tácita. Efeito do Silêncio. O início das tratativas visando a celebração
de contrato de associação em empreendimento, com envio posterior de proposta de
cobrança de comissão sobre o valor do contrato celebrado pelo oblato com
terceiro, não o vincula sem comprovação de sua aceitação expressa ou tácita. O
silêncio só é decisivo quando é analisado em confronto com as circunstâncias e se
a atitude inequívoca do aceitante permite a concluir pela integração de sua vontade
na declaração embutida na proposta, levando-se ainda em consideração as provas
produzidas pelas partes nos autos. Provimento do segundo apelo e desprovimento
do primeiro.”

Questão 2

Joaquim encaminhou proposta para José cujo objeto era a alienação de 200
cabeças de gado pelo preço de R$ 50.000,00. Na referida proposta, o policitante se
obrigou a aguardar resposta no prazo de 30 dias. Ocorre que o proponente faleceu no 10º
dia do encaminhamento da proposta. Comprovado que houve a aceitação no prazo
veiculado na proposta, responda se os herdeiros do falecido estão obrigados a cumprí-la.

Resposta à Questão 2

Em regra, os herdeiros devem responder pelas obrigações, nas forças da herança, e


como a proposta vincula o proponente, este vínculo também se transfere pela saisine,
mesmo que o contrato não tenha sido finalizado. Há que se obrigar o espólio, então. Ocorre
que, se a obrigação contratual objetivada era personalíssima, não pode haver esta imposição
aos herdeiros, pelo que não há vinculação, nesta exceção.
Questão 3

André remete proposta de contrato para Caio estabelecendo o prazo de cinco dias
para a resposta e fazendo constar uma cláusula segundo a qual o silêncio implicará
celebração do negócio na forma do que dispõe o art. 432 do Código Civil.
Decorrido o prazo, Caio não remete a resposta e André cobra-lhe judicialmente o
cumprimento das obrigações contratuais pactuadas.
Deve prosperar a pretensão de André? Explique.

Michell Nunes Midlej Maron 48


EMERJ – CP III Direito Civil III

Resposta à Questão 3

Não. Mesmo que o dispositivo determine que o contrato assim se aperfeiçoaria, não
pode haver a imposição, unilateral, de nenhuma cláusula, e aí se inclui a cláusula que
dispõe que o silêncio é anuência do oblato. Não há contrato, pois esta cláusula que cria
silêncio qualificado, ela própria, não foi contratada, na medida que apenas uma das partes,
o proponente, a ela aderiu com sua vontade.

Questão 4

Caio enviou a Mévio, através de correspondência epistolar, proposta de contrato


estipulando o prazo de cinco dias para a resposta. No terceiro dia Mévio expediu a
aceitação. Acontece, entretanto, que em virtude da queda de uma ponte, Caio recebeu a
correspondência somente uma semana depois. Considerando que a teoria a princípio
adotada no Direito Brasileiro para formação dos contratos epistolares é o da expedição,
houve a celebração do contrato? Explique.

Resposta à Questão 4

O artigo 434, III, do CC, responde diretamente a questão: não tendo alcançado o
proponente no dies ad quem estabelecido, não há contrato, qualquer que tenha sido o
motivo do atraso. Tendo sido contratada a recepção, mesmo sendo adotada a teoria da
expedição, há esta exceção expressa.
Vale dizer que, neste caso, mesmo não havendo contrato, há que se impor ao
proponente que recebeu tardiamente a aceitação a comunicação deste atraso, e portanto da
existência do contrato, porque mesmo que o dever de informar ao oblato só se imponha em
aceitação tardia sem prazo fixado, o fortuito faz necessária esta comunicação, sob pena de
arcar com perdas e danos do aceitante, que acreditou formado o contrato –
responsabilidade, como visto, extracontratual.
Ad arguentandum, já que o enunciado estabeleceu por premissa a adoção da teoria
da expedição, se assim não fosse, entendendo aplicada a teoria da recepção, não haveria
qualquer dúvida: o contrato não se formou por não haver recepção.

Tema V

Contrato preliminar. Noções gerais. Evolução do contrato preliminar. Aplicabilidade. O contrato preliminar
no Código Civil de 2002. Classificação, requisitos e efeitos do contrato preliminar. Registro do contrato
preliminar. Contrato com pessoa a declarar. Conceito. Aplicabilidade. Regulamentação no Código Civil de
2002. Estipulação em favor de terceiro. Promessa de fato de terceiro.

Notas de Aula10
10
Aula ministrada pelo professor Rafael Viola, em 30/1/2009.

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EMERJ – CP III Direito Civil III

1. Contrato preliminar

A mais importante diferenciação, que se tem que deixar bem clara, é a que se faz
entre contratos preliminares e tratativas. O contrato está celebrado e perfeito quando
coincidem as vontades dos contratantes em um mesmo ponto e para a obtenção de certos
efeitos. No entanto, até o momento da convergência das manifestações de vontades dos
contratantes, decorrem uma série de momentos e atos preparatórios e sucessivos até se
alcançar o perfeito consenso e formação do contrato com a aceitação da proposta.
Ocorre que esta negociação prévia ao contrato não é parte do contrato, ela mesma.
As tratativas, a fase de puntuação, é fase pré-contratual, extracontratual, e não um contrato
preliminar. Só há contrato, existente e perfeito, quando há a manifestação plural de
vontades consignada, como já se viu.
Entretanto, a fase de contatos prévios merece proteção jurídica, porque o contato
social qualificado, nome que se dá à relação que insemina na outra parte a expectativa
legítima de que o contato será firmado em momento futuro, está também sob a égide da
boa-fé objetiva. E é esta a proteção que se oferece na fase pré-contratual, bem como na pós-
contratação, como já se viu. É claro que as meras tratativas não vinculam: é necessário que
na casuística se apure a criação real da expectativa de contratação.
Na ocorrência da quebra da boa-fé objetiva na fase pré-contratual, a
responsabilidade é aquiliana, porque não há contrato. Sendo assim, a responsabilidade se
aterá aos danos causados e provados, e não à obrigação contratual frustrada, que não será
forçosamente cumprida, mas pode servir de parâmetro de lucros cessantes, ou da perda dos
interesses negativos, como a perda do tempo, por exemplo. Sobre o tema, é interessante ler
o julgado da apelação cível 2008.001.04713. Veja a ementa:

“INDENIZAÇÃO. RESPONSABILIDADE PRÉ-CONTRATUAL. PRINCÍPIOS


DA BOA-FÉ OBJETIVA E DA CONFIANÇA. No caso em apreço, grande grupo
financeiro, por intermédio de conhecida agência de publicidade, procurou afamado
artista objetivando obter licença para utilização, em futura campanha publicitária,
de um dos personagens por aquele criados. Depois de alguns meses de tratativas,
elaborada a minuta de um contrato, os réus desistiram da contratação, ao que se
soube depois, por considerarem inadequado o personagem ao perfil da referida
campanha. Evidente quebra da boa-fé objetiva pré-contratual, eis que os réus
levaram os autores a crer que o personagem já havia sido previamente escolhido
para a campanha, dando por certa a contratação. Assiste razão aos réus apenas no
tocante a alegadas despesas, eis que devidamente impugnadas e que, a bem da
verdade, são inerentes à fase pré-contratual, estando, pois, abarcados na
indenização reconhecida sob tal rubrica. Sentença que se retoca.”
Tudo isso serve para demonstrar que a fase pré-contratual não se confunde com o
contrato preliminar. Este é um contrato, é um pacto autônomo, em si, com suas
responsabilidades contratuais específicas, que se presta a positivar uma contratação prévia,
porque a contratação definitiva ainda não é conveniente para as partes, por diversos
motivos. Passemos, então, ao estudo específico do contrato preliminar.
Pelo contrato preliminar, ou pactum de contrahendo, as partes se obrigam a
celebrar um futuro contrato, chamado de contrato definitivo. Esse contrato preliminar é
usualmente utilizado quando não se mostra conveniente às partes celebrar o contrato de
forma definitiva, seja pela necessidade de delimitação ou ocorrência de algum fato futuro,
seja porque o pagamento será realizado de modo parcelado.

Michell Nunes Midlej Maron 50


EMERJ – CP III Direito Civil III

Veja que a obrigação das partes, no pactum de contrahendo, é uma obrigação de


fazer, consistente na emissão de uma declaração de vontade futura. Os contratantes se
obrigam a celebrar o contrato definitivo. A não celebração do contrato definitivo é
inadimplemento contratual do contrato preliminar. Como se verá, o CC, modernamente,
permite que haja a tutela específica do crédito neste contrato, o que representa que pode, o
juiz, suprindo a vontade da parte inadimplente, cumpra a obrigação de fazer, ou seja,
celebre por ela o contrato definitivo – a sentença servirá como contrato definitivo.
Podemos distinguir o contrato preliminar do principal, então, pois o objeto deste é
uma prestação substancial, enquanto que o daquele é concluir outro contrato. O conteúdo
do contrato preliminar, portanto, é uma obrigação de fazer, qual seja, declarar uma vontade.
Vale aqui transcrever a conceituação emprestada por alguns doutrinadores clássicos.
Para Caio Mário Pereira da Silva, contrato preliminar é:

“Aquele por via do qual ambas as partes ou uma delas se comprometem a celebrar
mais tarde outro contrato, que será contrato principal.”

Para Orlando Gomes, é a:

“Convenção pela qual as partes criam em favor de uma delas, ou de cada qual, a
faculdade de exigir a imediata eficácia de contrato que projetaram.”

E para Washington de Barros Monteiro, é a:

“Convenção provisória, contendo os requisitos do art. 104 do Código Civil e os


elementos essenciais do contrato (res, pretium e consensum), tem por objeto
concretizar um contrato futuro e definitivo, assegurando pelo começo de ajuste a
possibilidade de ultimá-lo no tempo oportuno.”

Veja que a conceituação de Washington de Barros é um quanto equivocada, porque


o contrato preliminar, de fato, não demanda exatamente os mesmos elementos essenciais do
contrato, especialmente a forma. Veja o artigo 462 do CC:

“Art. 462. O contrato preliminar, exceto quanto à forma, deve conter todos os
requisitos essenciais ao contrato a ser celebrado.”

Assim, exsurge um princípio dos contratos preliminares: a liberdade em relação à


forma, especialmente se cotejada em relação à forma do contrato definitivo.
Observe que o artigo 463, parágrafo único, do CC, aparentemente contradiz esta
liberdade da forma:

“Art. 463. Concluído o contrato preliminar, com observância do disposto no artigo


antecedente, e desde que dele não conste cláusula de arrependimento, qualquer das
partes terá o direito de exigir a celebração do definitivo, assinando prazo à outra
para que o efetive.
Parágrafo único. O contrato preliminar deverá ser levado ao registro competente.”

A doutrina tem entendido, de forma pacífica, que esta exigência do registro público
é somente para fins de ciência a terceiros, porque como o consensualismo impõe, o contrato

Michell Nunes Midlej Maron 51


EMERJ – CP III Direito Civil III

não precisa do registro para ser imponível perante as partes pactuantes. Neste sentido, o
CJF emitiu o enunciado 30:

“Enunciado 30, CJF: A disposição do parágrafo único do art. 463 do novo Código
Civil deve ser interpretada como fator de eficácia perante terceiros.”

1.1. Modalidades de contratos preliminares

O contrato preliminar pode ser unilateral ou bilateral. Na modalidade unilateral,


também chamada de promessa unilateral, as partes estipulam que, enquanto uma das partes
assume a obrigação de celebrar o contrato definitivo, a outra fica livre para decidir se deseja
ou não a conclusão do contrato.
Esta modalidade, também conhecida como opção, especialmente nos negócios de
incorporação imobiliária, faz com que um dos contratantes vinculados, o promitente, fique
obrigado a emitir a declaração de vontade, enquanto o outro contratante, promissário, ou
optante, ganha apenas a faculdade de emitir ou não a sua vontade em pactuar o contrato
definitivo.
O promissário deste contrato, então, passa a ter uma preferência na realização do
contrato definitivo, de fato. Em se tratando de incorporação imobiliária (edificação edilícia
para alienação de unidades autônomas), é muito comum esta modalidade como meio de
criar o vínculo necessário à futura compra e venda de um imóvel que está embaraçado (um
terreno em inventário, por exemplo): quando este imóvel se desembaraçar, haverá a opção
de compra pelo promissário, a faculdade em pactuar o contrato definitivo. Veja o artigo 466
do CC:

“Art. 466. Se a promessa de contrato for unilateral, o credor, sob pena de ficar a
mesma sem efeito, deverá manifestar-se no prazo nela previsto, ou, inexistindo
este, no que lhe for razoavelmente assinado pelo devedor.”

O artigo estabelece previsão bastante lógica: sem que haja prazo, a promessa deve
ter efeito em prazo razoável, sob pena de implicar, se assim não fosse, em uma vinculação
ad aeternum. Notificado pelo devedor, o credor da promessa deverá exercer ou não sua
faculdade, em prazo casuístico – razoavelmente assinado, como diz esta cláusula aberta.
Veja que esta razoabilidade no prazo é diretamente relacionada à complexidade do
próprio contrato, sendo realmente casuística.
A faculdade em emitir ou não a vontade não se trata, neste caso, de uma condição
puramente potestativa: é o próprio objeto do contrato a criação desta faculdade, e não uma
condição potestativa.
A promessa bilateral, por óbvio, vincula ambos os contratantes à manifestação de
vontade em contratar o pacto futuro definitivo. Na promessa bilateral, cada parte pode
exigir da outra a execução do contrato que projetaram. Sem embargo, na medida em que é
um contrato bilateral, gera obrigações para ambas as partes e, portanto, fica desde logo
fixada a obrigação de dar o consentimento para conclusão do contrato definitivo.
O artigo 463 do Código Civil, há pouco transcrito, prevê que, realizado o contrato
preliminar sem que dele conste cláusula de arrependimento, qualquer das partes poderá
exigir a celebração do contrato definitivo. Para tanto, deverá assinar prazo ao outro
contraente, que será aquele previsto no contrato ou, em sua ausência, prazo razoável para o
cumprimento do pactuado.

Michell Nunes Midlej Maron 52


EMERJ – CP III Direito Civil III

Havendo recusa em cumprir a obrigação descrita no contrato preliminar – obrigação


de fazer, de firmar o contrato futuro –, o juiz suprirá a vontade da parte que descumpriu o
pactum de contrahendo e a sentença judicial equivalerá ao próprio contrato que era a
prestação ajustada no preliminar. Esta é a solução aventada pelo Código Civil no seu artigo
464, e que está em perfeita consonância com o princípio da execução específica das
obrigações e do moderno processo civil. Veja:

“Art. 464. Esgotado o prazo, poderá o juiz, a pedido do interessado, suprir a


vontade da parte inadimplente, conferindo caráter definitivo ao contrato preliminar,
salvo se a isto se opuser a natureza da obrigação.”

Veja que quem celebrará o contrato definitivo neste caso de recusa, então, é o
próprio juiz, na sentença. O problema é que o contrato é um instrumento complexo,
continente de diversas particularidades, como as cláusulas penais, ou as obrigações
acessórias. Outro problema é que estará sendo criado um contrato em nome de pessoa que
não quer contratar, ou seja, não tem o compromisso com o bom curso do contrato, da
obrigação como um processo. Entretanto, como a busca pela satisfação do credor é o norte,
supera-se estas críticas.
Nas hipóteses de obrigações infungíveis ou em que não haja mais interesse do
credor na realização do contrato, ao prejudicado restará, somente, exigir perdas e danos. As
obrigações personalíssimas não permitem a invasão da esfera pessoal do devedor para
cumprimento específico. Trata-se da ressalva constante da parte final do artigo supra,
adicionada da previsão do artigo seguinte, 465 do CC:

“Art. 465. Se o estipulante não der execução ao contrato preliminar, poderá a outra
parte considerá-lo desfeito, e pedir perdas e danos.”

A promessa de compra e venda merece comentários detalhados, pelo que será


enfrentada em tema dedicado. Este contrato não é propriamente um contrato preliminar,
porque é um contrato que gera direito real para o promitente-comprador, enquanto o
contrato preliminar gera direito pessoal, obrigacional – tendo o STJ inclusive já se
pronunciado sobre este efeito mesmo quando não há registro do pacto, o que é altamente
controvertido. A promessa de compra e venda prevê, inclusive, direito à adjudicação
compulsória ao promitente-comprador, que poderá desde já exigir o cumprimento do
contrato definitivo, por meio da adjudicação – sabendo-se que a regra é que o promitente
credor deverá postular o suprimento da vontade de pactuar o contrato definitivo, como
visto, e não o cumprimento direto do contrato definitivo, como aqui.

2. Estipulação em favor de terceiros

Um dos princípios básicos do direito contratual é a relatividade das avenças,


significando que apenas quem toma parte no pacto, quem manifesta sua vontade, tem-se
vinculado ao contrato. Sendo assim, não se pode exigir que quem não tenha manifestado
sua vontade no contrato seja por ele alcançado, diretamente, vez que os contratos, como se
sabe, só geram direitos pessoais, e não direitos reais, oponíveis erga omnes (como já se viu,
não há contrato com efeitos reais no Brasil).
Veja que os efeitos do contrato não são completamente ignorados por terceiros,
tampouco se pode entender que os contratos sejam isentos de influências causadas por

Michell Nunes Midlej Maron 53


EMERJ – CP III Direito Civil III

pessoas alheias ao pacto. É que a função social do contrato aparece como uma mitigação a
esta relatividade contratual, na medida em que o contrato não pode aviltar, ele próprio, os
direitos relevantes do meio social – o que se denomina de função social exógena –, bem
como não pode ser atacado por pessoas a ele alheias – o que se diz função social
autoprotetiva. Gustavo Tepedino defende que o que propugna esta vinculação de pessoas
alheias ao pacto, de fato, é a boa-fé objetiva, e não a função social, mas é praticamente
isolado em sua tese.
Um exemplo famoso de efeito de terceiros sobre o contrato é o caso da quebra da
exclusividade na venda de um medicamento: determinado laboratório pactua contrato de
exclusividade de venda de um de seus medicamentos com uma farmácia. Ocorre que há
uma epidemia da doença tratada com tal medicamento. O Estado, então, vê necessidade de
quebrar tal contrato, a fim de atender à demanda pelo medicamento. Nada mais é, esta
quebra de exclusividade, do que a inadimplência causada por pessoa alheia ao contrato, o
que se permite em razão do interesse público em que seja inadimplida a obrigação
contratual.
A regra, porém, é que não haja a interferência no contrato por terceiros, tampouco
do contrato sobre terceiros, não sendo caso de respeito à função social. Há, todavia, três
institutos que excepcionam esta regra, vinculando terceiros alheios ao pacto: a estipulação
em favor de terceiros, que se analisa agora; a promessa de fato de terceiro; e a contratação
com pessoa a declarar. Vamos, então, ao estudo da primeira destas modalidades de
contratação excepcionais, a estipulação em favor de terceiro.
Neste contrato, o estipulante e o promitente celebram o pacto, sendo que a prestação
a ser adimplida pelo promitente será dedicada a beneficiar um terceiro, alheio ao contrato.
Segundo Orlando Gomes, a estipulação em favor de terceiro é:

“O contrato por via do qual uma das partes se obriga a atribuir vantagem
patrimonial gratuita a pessoa estranha à formação do vínculo contratual, submetido
à condição resolutiva da aquisição do estipulante e à condição suspensiva da
aquisição do terceiro.”

Veja que o terceiro não pode sofrer imposição de obrigação contratual alguma. A
estipulação é em favor do terceiro, o que significa que este somente poderá por esta ser
beneficiado.
O exemplo mais corriqueiro deste contrato é o seguro de vida, em que a prestação
do promitente deve ser cumprida perante o beneficiário do seguro. A doação com encargo
revertido para terceiro é outro exemplo, pois que o donatário promete cumprir o benefício
em favor de um terceiro, que não o doador.
Exemplo também comum é a concessão do serviço público: quem angaria os efeitos
benéficos este contrato não é o Poder Público concedente, ele próprio, e sim a coletividade,
os indivíduos administrados.
O contrato de transporte de cargas é uma estipulação em favor de terceiros, na
medida que quem receberá a prestação, em ultima análise, é o destinatário da carga.
Ressalte-se que o consentimento do beneficiário não é necessário à constituição do
contrato que já é válido desde a comunhão de declarações de vontade do estipulante e
promitente. A estipulação também independe da capacidade do beneficiário, pois que sua
vontade não é relevante na formação do contrato (o sendo na eficácia, pois que deve aceitar
a prestação, mas não na existência do contrato). Mas este deverá ter legitimidade

Michell Nunes Midlej Maron 54


EMERJ – CP III Direito Civil III

(capacidade específica), isto é, a fim de evitar fraude, é preciso verificar se o terceiro


poderia adquirir o benefício diretamente do estipulante.
Entenda: o beneficiário do seguro de vida, por exemplo, não pode ser a concubina,
sob pena de se permitir uma espécie de burla à impossibilidade de doação a esta pessoa.
Veja o que diz o artigo 739 do CC:

“Art. 793. É válida a instituição do companheiro como beneficiário, se ao tempo


do contrato o segurado era separado judicialmente, ou já se encontrava separado de
fato.”

O direito do terceiro está diretamente ligado ao contrato, isto é, a sorte do direito do


terceiro depende da sorte da relação contratual. O promitente pode, portanto, opor as
exceções derivadas do contrato, mas não aquelas que advenham de outra relação entre o
estipulante e o promitente. Veja, por exemplo, o artigo 376 do CC:

“Art. 376. Obrigando-se por terceiro uma pessoa, não pode compensar essa dívida
com a que o credor dele lhe dever.”

Entenda: se o promitente tiver alguma exceção perante o estipulante, não poderá


opor esta em relação ao beneficiário, salvo se decorrente do próprio contrato, ou seja: se a
exceção disser respeito ao próprio contrato – como a prescrição, por exemplo –, é alegável.
A estipulação em favor de terceiro, como dito, não depende da anuência do
beneficiário para existir, mas depende desta para ter eficácia, em relação ao benefício a ser
prestado. Por isso, este contrato é dividido em dois momentos: antes e depois da aceitação
pelo beneficiário.
Antes da aceitação, o estipulante pode livremente revogar a estipulação, exonerar ou
substituir o beneficiário. Com a aceitação, o direito do terceiro consolida-se, tornando-se
irrevogável, salvo na hipótese do artigo 438 do CC:

“Art. 438. O estipulante pode reservar-se o direito de substituir o terceiro


designado no contrato, independentemente da sua anuência e da do outro
contratante.
Parágrafo único. A substituição pode ser feita por ato entre vivos ou por disposição
de última vontade.”
Se esta ressalva estiver prevista, o estipulante poderá substituir o terceiro
beneficiário sem a anuência deste, mesmo após a aceitação. Se não estiver previsto no
contrato este resguardo de direito, a aceitação do beneficiário torna impossível a sua
substituição.
Quanto aos efeitos, tanto o estipulante como o terceiro podem exigir o cumprimento
da prestação devida pelo promitente. Veja o artigo 436 do CC:

“Art. 436. O que estipula em favor de terceiro pode exigir o cumprimento da


obrigação.
Parágrafo único. Ao terceiro, em favor de quem se estipulou a obrigação, também é
permitido exigi-la, ficando, todavia, sujeito às condições e normas do contrato, se a
ele anuir, e o estipulante não o inovar nos termos do art. 438.”

No entanto, se ao terceiro em favor de quem se fez o contrato for deixado o direito


de reclamar a execução, o estipulante não poderá exonerar o promitente. Se somente o

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EMERJ – CP III Direito Civil III

terceiro pode exigir, somente este pode remitir. Veja o que dispõe o artigo seguinte, 437 do
CC:

“Art. 437. Se ao terceiro, em favor de quem se fez o contrato, se deixar o direito de


reclamar-lhe a execução, não poderá o estipulante exonerar o devedor.”

3. Promessa de fato de terceiro

A promessa de fato de terceiro consiste na obrigação assumida pelo promitente, em


face do promissário, de obter a anuência do terceiro em se obrigar a prestar algo em seu
favor. O promitente se obriga apenas a obter este fato de terceiro, qual seja a anuência do
terceiro em se obrigar e um pacto futuro.
O objeto da prestação do promitente é obter a anuência do terceiro. Portanto, após
essa anuência, está liberado, eis que adimpliu sua prestação, de acordo com o artigo 440 do
Código Civil:

“Art. 440. Nenhuma obrigação haverá para quem se comprometer por outrem, se
este, depois de se ter obrigado, faltar à prestação.”

Veja: a obrigação do promitente resume-se a obter a anuência do terceiro. Se este


terceiro vai dar cumprimento ao contrato que vier a anuir, em nada importa ao promitente,
vez que seu pacto se exaure quando da aquisição da anuência, que foi o que prometera ao
contratante da promessa11.
Uma vez dado o aceite por parte do terceiro, o promitente adimpliu sua obrigação
que era, somente, obter a anuência do terceiro. Dessa forma, em caso de inadimplemento do
terceiro, o promitente não responde. Ressalte-se que a obrigação do promitente é de
resultado, e não de meio, e, portanto, se não obtiver a anuência, estará inadimplente.
A recusa do terceiro não exonera o promitente, que responderá, perante o
promissário, por perdas e danos – e somente por perdas e danos, não podendo ser instado a
cumprir, ele próprio, a prestação que era incumbência do terceiro. Veja que a recusa que se
fala, aqui, é a não anuência, ou seja, a inadimplência do promitente – que não conseguiu
que o terceiro anuísse no contrato prometido, e não a inadimplência deste terceiro em seu
próprio contrato, em que anuiu posteriormente. Esta inadimplência apenas a este terceiro
pertine, entre ele e o promissário.
É claro que, pela autonomia da vontade, nada impede que o promitente se obrigue
pela adimplência do próprio terceiro, e não pela mera anuência. Basta que inclua esta
obrigação, mal comparando, “pro solvendo”, na sua promessa. A prestação prometida só
não pode ser, jamais, ilícita ou absolutamente impossível.
Essa responsabilidade, do promitente, é eximida na hipótese do parágrafo único do
artigo 439 do Código Civil, pois nessa hipótese, a responsabilidade recairá sobre o terceiro,
cônjuge, em razão do regime patrimonial do casal. Assim, se o promitente for casado com o
terceiro de uem prometeu colher anuência, e este não anua, o promitente não será
responsabilizado por sua inadimplência da promessa, porque eventual imputação

11
Vejo, aqui, bom campo para a boa-fé objetiva na fase pós-contratual: se se comprovar que o promitente
sabia, de antemão, que o terceiro não cumpriria a prestação que a si incumbia, cuja anuência foi objeto da
promessa adimplida, revela-se falta de lealdade, induzindo perdas e danos.

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EMERJ – CP III Direito Civil III

patrimonial recairia sobre o patrimônio do próprio terceiro, cônjuge. A idéia é proteger o


cônjuge inocente.

“Art. 439. Aquele que tiver prometido fato de terceiro responderá por perdas e
danos, quando este o não executar.
Parágrafo único. Tal responsabilidade não existirá se o terceiro for o cônjuge do
promitente, dependendo da sua anuência o ato a ser praticado, e desde que, pelo
regime do casamento, a indenização, de algum modo, venha a recair sobre os seus
bens.”

Sendo regime que não comprometa a meação do terceiro, este artigo não opera seus
efeitos, porque não há perigo para o cônjuge inocente.

4. Contrato com pessoa a declarar

Neste contrato, há duas pessoas inicialmente contratantes, mas uma das partes,
desde o início, se reserva a faculdade de indicar um terceiro que irá, retroativamente,
tornar-se o titular dos direitos e das obrigações decorrentes desse contrato em face do outro
contratante.
Entenda: se uma pessoa faz esta reserva de indicar o terceiro como substituto
contratual, quando fizer esta nomeação, significará que o terceiro assumirá o contrato como
se o houvesse pactuado desde o início. Não se trata de cessão de posição contratual, porque
nesta os efeitos são ex nunc, ou seja, aquele que assume a posição cedida passa a ser tido
por contratante dali em diante, enquanto no contrato com pessoa a declarar ocorre a
substituição com efeitos ex tunc, como se o terceiro que é nomeado sempre tivesse sido
contratante original.
A função deste contrato, desta cláusula, pode ser a necessidade de se manter oculto
o nome do contratante final, que será revelado apenas quando aquele que se reservou o
direito de nomear o exercer; outra função é a necessidade, por vezes, de contratar em nome
próprio, já com a intenção de que o terceiro seja o real contratante, sem que seja realizada
mais de uma operação, evitando outra tributação, etc.
Veja os artigos 467 e 469 do CC:

“Art. 467. No momento da conclusão do contrato, pode uma das partes reservar-se
a faculdade de indicar a pessoa que deve adquirir os direitos e assumir as
obrigações dele decorrentes.”

“Art. 469. A pessoa, nomeada de conformidade com os artigos antecedentes,


adquire os direitos e assume as obrigações decorrentes do contrato, a partir do
momento em que este foi celebrado.”

Se não constar a faculdade de indicar no momento da contratação original, não se


fala neste contrato com pessoa a declarar: se a substituição for convencionada
ulteriormente, haverá cessão de posição contratual, apenas.
A indicação da pessoa deve ser feita no prazo estipulado ou, em sua falta, no de
cinco dias a contar da conclusão do contrato. Veja o artigo 468 do CC:

“Art. 468. Essa indicação deve ser comunicada à outra parte no prazo de cinco dias
da conclusão do contrato, se outro não tiver sido estipulado.

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EMERJ – CP III Direito Civil III

Parágrafo único. A aceitação da pessoa nomeada não será eficaz se não se revestir
da mesma forma que as partes usaram para o contrato.”

Aceitação do nomeado deve ser da forma que for pactuado o próprio contrato, por
viger a atração das formas, segundo o parágrafo único deste dispositivo acima.
O contrato só produzirá efeitos entre os contratantes originários caso não seja
indicada a pessoa no prazo estipulado; ou se o nomeado se recusar; ou, ainda, se a pessoa
nomeada era incapaz ou insolvente no momento da indicação. Veja o artigo 470 do CC:

“Art. 470. O contrato será eficaz somente entre os contratantes originários:


I - se não houver indicação de pessoa, ou se o nomeado se recusar a aceitá-la;
II - se a pessoa nomeada era insolvente, e a outra pessoa o desconhecia no
momento da indicação.

Também só produzirá efeitos entre os contratantes originários se a pessoa nomeada


era incapaz ou insolvente no momento da nomeação, como dito, mas por conta do artigo
471 do CC:

“Art. 471. Se a pessoa a nomear era incapaz ou insolvente no momento da


nomeação, o contrato produzirá seus efeitos entre os contratantes originários.”

Esta incapacidade deve ser lida como legitimidade, pois a incapacidade de fato é
óbice óbvio à validade da nomeação.

Casos Concretos

Questão 1

José, promitente vendedor, celebrou com Marcos, promitente comprador, contrato


preliminar de compra e venda de imóvel situado em Niterói, por instrumento particular
não averbado no registro imobiliário, sem qualquer cláusula de arrependimento.
Pergunta-se:
a) Cumpridas todas as prestações por parte de Marcos, esclareça se é cabível, no
caso em tela, pedido de adjudicação compulsória do imóvel em face de José,
considerando o que estabelecem os artigos 1.417 e 1.418 do Código Civil.
b) Supondo que na hipótese acima José, na pendência do contrato preliminar,
alienou o referido imóvel para Caio, esclareça se Marcos, cumprindo todas as
prestações decorrentes do pré-contrato, poderá legitimamente requerer a
adjudicação compulsória do imóvel em face do adquirente do aludido bem (Caio).

Michell Nunes Midlej Maron 58


EMERJ – CP III Direito Civil III

Resposta à Questão 1

a) Sim, é cabível, a despeito da exigência do registro,que parece ser exigido nos


artigos citados. A interpretação desta necessidade de registro é que este só é
demandado para, dando publicidade ao negócio, ser este oponível perante
terceiros. Contudo, mesmo sem a publicidade, é oponível entre as partes, pela
própria força obrigatória dos contratos.

b) Há três correntes. A primeira defende que todo direito real, para ter eficácia,
demanda registro, sustentando a literalidade do artigo 1.418 do CC, o que era
jurisprudência do STF, quando dado este tema à sua competência.
A segunda corrente, da qual comunga o STJ, como se vê na súmula 239
desta Corte, defende que é possível, desde que a promessa não tenha cláusula de
arrependimento. O CJF, no enunciado 95, assim também se posicionou. Veja:

“Súmula 239, STJ: O direito à adjudicação compulsória não se condiciona ao


registro do compromisso de compra e venda no cartório de imóveis.”

“Enunciado 95, CJF: Art. 1.418: O direito à adjudicação compulsória (art. 1.418 do
novo Código Civil), quando exercido em face do promitente vendedor, não se
condiciona ao registro da promessa de compra e venda no cartório de registro
imobiliário (Súmula n. 239 do STJ).”

A terceira corrente, de Flávio Tartuce, defende que se o terceiro adquire


a propriedade, levando a registro o bem, a promessa gerou apenas direito
obrigacional, pessoal, ao promissário frustrado em face do devedor da promessa
– caso em que caberá a demanda de outorga de escritura definitiva, que não
transfere propriedade, apenas permitindo exigir perdas e danos em face do
inadimplente da promessa.

Tema VI

Elementos naturais do contrato. Vícios redibitórios. Conceito. Requisitos. Efeitos. Ações edilícias. Prazos.
Evicção. Conceito. Requisitos. Cláusula de reforço, diminuição e exclusão da garantia. Efeitos da evicção.
Evicção parcial.

Notas de Aula12

1. Vícios redibitórios

Nos contratos comutativos, em que há sinalagma, uma prestação sendo causa da


recíproca, pode acontecer de a coisa transferida ao adquirente possuir defeitos que a tornem
inadequada ao fim a que se destinam ou lhes diminuam sensivelmente o valor. Nestes
casos, poderá o adquirente rejeitar a coisa, sendo restituído o preço por ele pago.
12
Aula ministrada pelo professor Rafael Viola, em 30/1/2009.

Michell Nunes Midlej Maron 59


EMERJ – CP III Direito Civil III

Veja que esta possibilidade reside justamente no desequilíbrio que se percebe nas
causas do contrato: uma causa passa a não mais corresponder ao que dela se esperava, não
mais tendo equivalência entre as prestações. Daí a lógica da redibição.
Caio Mário preleciona que, na hipótese de transferência de coisa de qualquer
natureza, deve ser assegurado ao adquirente a sua posse útil, sem frustrar as suas
expectativas: o adquirente tem direito à posse útil da coisa. Para este autor, o vício
redibitório é:

“O defeito oculto de que portadora a coisa objeto de contrato comutativo, que a


torna imprópria ao uso a que se destina, ou lhe prejudica sensivelmente o valor.”

Para Orlando Gomes, são vícios redibitórios:

“Defeitos ocultos que desvalorizam a coisa ou fazem-na imprestável.”

E para Gustavo Tepedino, são:

“Os defeitos ocultos que afetam a coisa transferida nos contratos comutativos,
tornando-a imprópria para o uso a que se destinava ou diminuindo-lhe o valor, por
tal forma que, se conhecesse o vício, o adquirente da coisa não teria realizado o
contrato ou teria oferecido uma contraprestação maior.”

Veja o que dispõe o artigo 441 do CC:

“Art. 441. A coisa recebida em virtude de contrato comutativo pode ser enjeitada
por vícios ou defeitos ocultos, que a tornem imprópria ao uso a que é destinada, ou
lhe diminuam o valor.
Parágrafo único. É aplicável a disposição deste artigo às doações onerosas.”

A partir do próprio conceito já se pode colher os requisitos deste defeito oculto.


Antes de abordá-los, é importante, porém, deixar claro que há brutal diferença entre os
vícios redibitórios, tal como tratados no CC, e o tratamento dado pela teoria da qualidade
às relações de consumo.
A teoria da qualidade está diretamente adstrita à confiança que se deposita nos
produtos e serviços postos no mercado de consumo, e por isso suas bases são diversas das
bases dos vícios redibitórios. O artigo 4º, II, “d”, do CDC, traça esta política da qualidade
como almejada pelo legislador:

“Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o


atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde
e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade
de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos
os seguintes princípios: (Redação dada pela Lei nº 9.008, de 21.3.1995)
(...)
II - ação governamental no sentido de proteger efetivamente o consumidor:
(...)
d) pela garantia dos produtos e serviços com padrões adequados de qualidade,
segurança, durabilidade e desempenho.
(...)”

Michell Nunes Midlej Maron 60


EMERJ – CP III Direito Civil III

A idéia por trás da teoria da qualidade é que não só o bem ou serviço tem que se
adequar ao fim a que se destina, como deve também garantir a incolumidade física do
consumidor – respectivamente, a qualidade-adequação e a qualidade-segurança. Daí surge
a maior diferença: quando se fala em qualidade-adequação, se fala em vício; quando se fala
em qualidade-segurança, se fala em fato do produto ou serviço, ou o acidente de consumo.
Assim, não se pode confundir um fundamento com outro, porque o vício de
consumo é regido pela protetividade imposta pelo CDC, enquanto o vício redibitório da
relação regida pelo CC é baseado tão somente na disparidade entre as causas do negócio.
Vale consignar apenas uma peculiaridade: o CC, de fato, apenas em matéria de
prazos, é mais protetivo ao contratante padecente do vício. Pelo diálogo das fontes, e pela
ausência de lógica que seria detrir proteção ao consumidor simplesmente porque a norma
não está no CDC, a doutrina entende que o prazo para argüir vício redibitório em bens
imóveis a ser aplicado em relações e consumo é o mais favorável ao consumidor, qual seja ,
o prazo de um ano do caput do artigo CC, enquanto que, na literalidade, seria de noventa
dias, pois que imóveis são bens duráveis, adequando-se aos incisos I e II do caput do artigo
26 do CDC:

“Art. 445. O adquirente decai do direito de obter a redibição ou abatimento no


preço no prazo de trinta dias se a coisa for móvel, e de um ano se for imóvel,
contado da entrega efetiva; se já estava na posse, o prazo conta-se da alienação,
reduzido à metade.
(...)”

“Art. 26. O direito de reclamar pelos vícios aparentes ou de fácil constatação


caduca em:
I - trinta dias, tratando-se de fornecimento de serviço e de produtos não duráveis;
II - noventa dias, tratando-se de fornecimento de serviço e de produtos duráveis.
(...)”

Feita esta introdução, ficando claro que o tratamento dispensado ao vício


redibitório, aqui, não se aplica às relações de consumo, passemos ao estudo dedicado ao
vício redibitório do Código Civil.
Quatro são os fundamentos para a existência da redibição: a própria equidade, vez
que as prestações são injustas, se uma é boa e a outra imprestável; a teoria do erro, pois que
o adquirente houve para si produto diverso do que desejava, pois que não desejava produto
imprestável; a teoria do risco, vez que quem tem que suportar os ônus do risco é o
alienante; e o princípio da garantia, que impõe que haja satisfação do adquirente. Parece,
diante de toda a normatividade civilista atual, que o melhor fundamento é o que se baseia
no princípio da garantia, segundo o qual é necessário que seja resguardada a posse útil ao
adquirente.

1.1. Requisitos do vício redibitório

1.1.1.Existência de contrato comutativo

O contrato comutativo é o único que comporta a disparidade de causas, pois


somente ali estas são recíprocas, e por isso só nele há lógica para tal instituto. A exceção é a
doação onerosa, doação com encargo, em que, mesmo não havendo obrigações recíprocas,

Michell Nunes Midlej Maron 61


EMERJ – CP III Direito Civil III

há encargo a ser suportado, equiparando-se ao contrato oneroso como dispõe o próprio


parágrafo único do artigo 441, acima transcrito – não deixando de ser liberalidade, porém.
A alienação em hasta pública gera divergência sobre comportar ou não o vício
redibitório. Isto porque, no antigo CC de 1916, havia vedação expressa à invocação deste
vício quando da venda em hasta pública, mas esta vedação não se repetiu no CC de 20002.
Assim, Carlos Roberto Gonçalves, por exemplo, defende que pode ser invocado o vício
hoje, nesta alienação pública.
Data venia, Caio Mario tem a posição mais coerente sobre este aspecto. Este autor
defende que a alienação em hasta pública, por ser um ato compulsório, imposto ao alienante
pelo Poder Público, não permite a aplicação do instituto, que apenaria o proprietário do
bem arrematado por ato que lhe foi imposto. Ademais, o adquirente pode perscrutar as
qualidades do bem antes de adquiri-lo em hasta pública.

1.1.2. Existência de defeito oculto

Os vícios aparentes, ou de fácil constatação, não podem ser objetos de redibição.


Esta é uma grande diferença entre este instituto do CC e os vícios tratados no CDC: na
seara consumerista, o vício não precisa ser oculto para ensejar redibição.
Se o adquirente, regido pelo CC, tem à sua disposição o em que está adquirindo,
antes de consumar o contrato, presume-se que teve como identificar o vício aparente ou de
fácil constatação, pelo que se entende que aquiesceu em havê-lo no estado em que se
encontrava.

1.1.3. Existência de defeito grave

Não é qualquer vício que autoriza a redibição. Segundo Carlos Roberto Gonçalves:

“Defeitos de somenos importância ou que possam ser removidos são insuficientes


para justificar a invocação da garantia.”

Esta exigência se deve à necessária atenção ao princípio da conservação dos


contratos, pois se o vício é pouco relevante, se entende que satisfaz a vontade do
adquirente, ou seja, a causa de sua contratação não foi abalada. E mais: o vício
insignificante é exemplo claro de adimplemento substancial, capaz de satisfazer o interesse
do credor.

1.1.4. Existência de defeito preexistente

É bastante óbvio: o defeito que surge, que inicia sua existência, após a entrega ao
adquirente, não pode ser argüido como causa à redibição. Isto porque vige a lógica do res
perit domino, segundo a qual a coisa perece para o dono.
Não se pode confundir com o vício que já existia, mas apenas se revelou após a
tradição: se assim for, é claro vício redibitório, pois que o vício preexistia, estando apenas
oculto. A lógica vem do artigo 444 do CC:

Michell Nunes Midlej Maron 62


EMERJ – CP III Direito Civil III

“Art. 444. A responsabilidade do alienante subsiste ainda que a coisa pereça em


poder do alienatário, se perecer por vício oculto, já existente ao tempo da
tradição.”

Veja que, mesmo no caso em que o vício seja redibitório, há sim uma certa
mitigação à regra do res perit domino, porque a tradição já se tendo operado imporia que o
adquirente suportasse, agora, os riscos do perecimento.

1.2. Efeitos dos vícios redibitórios

O principal efeito oriundo dos vícios redibitórios é possibilitar ao adquirente os


meios de não sofrer a perda, que seria injusta. Para tanto, tem em suas mãos as chamadas
ações edilícias: a ação redibitória, que intenta resolver o contrato, e a ação estimatória, ou
quanti minoris, que tem por escopo reduzir a contraprestação devia até patamar que o faça
equivalente à coisa defeituosa.
Vale frisar que, uma vez eleita a via, o adquirente não pode alterar sua pretensão: se
ajuíza a redibitória, não pode pretender, ulteriormente, a quanti minoris. Nem mesmo o
pedido alternativo é possível, eis que se demonstram absolutamente contraditórios: não há
lógica em se entender que é satisfatória a redução do preço e ao mesmo tempo a coisa é
absolutamente imprestável. Assim, a escolha da ação é uma espécie de concentração da
opção do adquirente.

1.3. Relevância da boa-fé

Para caracterização dos vícios redibitórios, basta a existência de um vício oculto,


desconhecido, preexistente e grave. Pouco importa a ignorância do alienante. Significa que,
mesmo sendo responsabilidade subjetiva, a garantia é que fundamenta a redibição, ou seja,
é a necessidade de haver posse útil ao adquirente que sustenta o instituto, e não a culpa, o
dolo, a boa ou má-fé do alienante.
Entretanto, este elemento subjetivo, mesmo não sendo relevante para imputar-lhe ou
não responsabilidade pelo vício redibitório – imputa-se independentemente do elemento
subjetivo –, é relevante para configuração de responsabilidade por perdas e danos, assim
como dispõe o artigo 443 do CC:

“Art. 443. Se o alienante conhecia o vício ou defeito da coisa, restituirá o que


recebeu com perdas e danos; se o não conhecia, tão-somente restituirá o valor
recebido, mais as despesas do contrato.”

Destarte, se estava de má-fé, ao alienante, além de restituir o preço, impõe-se


responsabilidade por demais despesas oriundas de perdas e danos. Se de boa-fé, apenas o
preço e as despesas de contrato são imponíveis.

1.4. Prazos

O direito do adquirente exigir a redibição ou o abatimento proporcional do preço


está sujeito à um prazo decadencial variável, conforme a natureza do bem, prazo que é
contado da entrega efetiva.
Veja o que dispõe o artigo 445 do CC:

Michell Nunes Midlej Maron 63


EMERJ – CP III Direito Civil III

“Art. 445. O adquirente decai do direito de obter a redibição ou abatimento no


preço no prazo de trinta dias se a coisa for móvel, e de um ano se for imóvel,
contado da entrega efetiva; se já estava na posse, o prazo conta-se da alienação,
reduzido à metade.
§ 1o Quando o vício, por sua natureza, só puder ser conhecido mais tarde, o prazo
contar-se-á do momento em que dele tiver ciência, até o prazo máximo de cento e
oitenta dias, em se tratando de bens móveis; e de um ano, para os imóveis.
§ 2o Tratando-se de venda de animais, os prazos de garantia por vícios ocultos
serão os estabelecidos em lei especial, ou, na falta desta, pelos usos locais,
aplicando-se o disposto no parágrafo antecedente se não houver regras
disciplinando a matéria.”

O caput deste artigo é de simples interpretação, se traduzindo no seguinte quadro


esquemático:

Adquirente que não estava na posseAdquirente que estava na posse


Quinze dias a contar da alienação
Trinta dias a contar da tradição

Bem móvel

Seis meses a contar da alienação


Um ano a contar da tradição
Bem imóvel

É o § 1º deste artigo que oferece problemas, e demanda bastante atenção. Veja eu


este dispositivo já se inicia por uma premissa um tanto estranha: diz ali que quando o vício,
por sua natureza, só puder ser conhecido mais tarde, há tratamento especial. Ora, todo e
qualquer vício redibitório só pode ser conhecido mais tarde, porque se for cognoscível antes
da alienação, não é oculto, e não há redibição. Parece, então, que o legislador quis criar
uma categoria de vício oculto que é, de fato, “ainda mais oculto”, ou seja, algo que vai
demorar muito para se manifestar.
E é na estipulação dos prazos especiais que surge ainda mais perplexidade: o prazo
para o bem móvel é sextuplicado, enquanto o prazo para bens imóveis permanece o mesmo.
Por conta disso, surgem duas correntes disputando a leitura deste dispositivo.
A primeira corrente defende interpretação literal: qualquer que seja o prazo, quando
se manifestar este vício de natureza “ainda mais oculta”, começa a correr o prazo para
reclamar do vício, tal qual ali escrito. É claro que esta interpretação cria uma situação de
insegurança jurídica insustentável, pois que cria garantia ad aeternum para o adquirente.
Por isso, tem mais força a segunda corrente, que diz que os prazos ali previstos são
limítrofes para o ajuizamento das ações edilícias, somados ao caput. Entenda: o prazo ali
previsto é o prazo máximo para que o vício se manifeste, a contar da tradição (ou alienação,
se o adquirente já estava na posse). A conta é a seguinte: a partir da tradição, conta-se o
prazo do § 1º; de seu fim em diante, corre o prazo do caput, que é o prazo de reclamação.
Somados, dão o prazo total para cada caso: duzentos e dez dias para bens móveis com
defeitos “ainda mais ocultos”; dois anos para imóveis com vícios desta natureza.
Esta interpretação parece mais coerente, mesmo porque é condizente com a
orientação da doutrina majoritária na interpretação de dispositivo que apresenta problema
semelhante, no CDC: o artigo 26, § 3º. Veja:

Michell Nunes Midlej Maron 64


EMERJ – CP III Direito Civil III

“Art. 26. O direito de reclamar pelos vícios aparentes ou de fácil constatação


caduca em:
(...)
§ 3° Tratando-se de vício oculto, o prazo decadencial inicia-se no momento em que
ficar evidenciado o defeito.”

Ainda, quanto aos prazos, as normas são derrogáveis pela vontade das partes: estes
prazos podem ser reduzidos ou suprimidos pelas partes, desde que não se trate de contrato
de adesão, quando então será a cláusula claramente abusiva, e portanto nula.
Por fim, vale comentar a previsão do artigo 446, que trata da garantia convencional:

“Art. 446. Não correrão os prazos do artigo antecedente na constância de cláusula


de garantia; mas o adquirente deve denunciar o defeito ao alienante nos trinta dias
seguintes ao seu descobrimento, sob pena de decadência.”

Significa que, enquanto vige a garantia contratual, não corre a garantia legal, mas se
o adquirente, no curso da garantia contratual, souber do defeito, não pode quedar-se inerte,
ou perde o direito à redibição.

2. Evicção

A evicção é um parente próximo dos vícios redibitórios. Com efeito, enquanto os


vícios redibitórios são uma garantia da coisa em relação aos defeitos materiais, a evicção é
a garantia da coisa em relação aos defeitos de direito. Vícios são defeitos na coisa; evicção
é efeito no direito.
Para Orlando Gomes:

“Dá-se evicção quando o adquirente vem a perder a propriedade ou posse da coisa


em virtude de sentença judicial que reconhece a outrem direito anterior sobre ela.”

Para Carlos Roberto Gonçalves, evicção é:

“A perda da coisa em virtude de sentença judicial, que a atribui a outrem por causa
jurídica preexistente ao contrato.”

Enquanto no vício redibitório o que se protege é a posse útil, na evicção há proteção


da posse pacífica o adquirente. O fundamento, aqui, também é o princípio da garantia.
Washington de Barros Monteiro ressalta que:

“O alienante é obrigado não só a entregar ao adquirente a coisa alienada, como


também a garantir-lhe o uso e gozo.”

O âmbito e aplicação da evicção é um tanto controvertido, havendo quem defenda


que somente se aplica esta em relação à perda da propriedade. Todavia, é praticamente
pacífico que a evicção se aplica à propriedade, posse ou uso. Mesmo por isso, o locador
responde pelos efeitos da evicção sobre seu contrato e locação, perante o locatário.
Diz Gustavo Tepedino que:

Michell Nunes Midlej Maron 65


EMERJ – CP III Direito Civil III

“A teoria da evicção aplica-se, inicialmente, aos contratos onerosos. Dessa forma,


o alienante não responde nos contratos gratuitos. Nesses casos, todavia, nada
impede que as partes estipulem cláusula de responsabilidade por evicção.”

Caio Mário aduz:

“O Código Civil espaventou a dúvida, instituindo a garantia toda vez que, por
contrato oneroso, se faça a transferência tanto do domínio quanto da posse ou do
uso.”

Aplica-se a evicção, ainda, aos contratos de cessão de crédito e de direitos


obrigacionais em geral. Frise-se, entretanto, que o cedente não responde pela solvência do
devedor, mas tão somente pela existência do crédito – é em regra pro soluto, e não pro
solvendo.
O artigo 447 do CC inovou: trouxe a aplicação da evicção à venda em hasta pública:

“Art. 447. Nos contratos onerosos, o alienante responde pela evicção. Subsiste esta
garantia ainda que a aquisição se tenha realizado em hasta pública.”

Surgem duas indagações, diante desta previsão: a alienação é compulsória, e, sendo


assim, quem responderá pela evicção? E mais, se o proprietário tem o bem levado à hasta
pública, é porque ele não dispõe de patrimônio líquido – o que demonstra clara
impossibilidade de reparar o prejuízo do evicto. É questão problemática, sem aparente
solução.

2.1. Requisitos

O primeiro requisito, bastante óbvio, é a perda da coisa, que pode ser total ou
parcial. Sendo a evicção parcial, mas considerável, permite-se a faculdade entre a rescisão
do contrato ou o abatimento proporcional. Quando a perda não for considerável, não poderá
o adquirente exigir a rescisão contratual, porque o cumprimento, aqui, pode ser considerado
satisfatório ao interesse do adquirente – e a conservação dos contratos impõe a irrelevância.
Somente caberá, nesses casos, a ação quanti minoris do artigo 455 do Código Civil.
Considerável é aquela perda em que o adquirente não realizaria o contrato se conhecesse a
verdadeira situação.

“Art. 455. Se parcial, mas considerável, for a evicção, poderá o evicto optar entre a
rescisão do contrato e a restituição da parte do preço correspondente ao desfalque
sofrido. Se não for considerável, caberá somente direito a indenização.”

Outro requisito, mas este comporta exceções, é a necessidade de sentença judicial


que declare a perda. A exceção, amplamente admitida na doutrina e jurisprudência, é a
evicção acarretada por ato inequívoco de autoridade administrativa. Como exemplo, se o
policial apreende o bem que é identificado como furtado, é claro que há evicção. Outra
exceção é a perda por evento que é tão notório que deixa claro que a resistência pelo
adquirente à perda da sua coisa seria infundada. Como exemplo, a clara situação em que
um veículo roubado é identificado como tal: é considerada frívola a demanda pelo domínio
deste bem, pelo que se dispensa a sentença para considerar-se operada a evicção, mesmo

Michell Nunes Midlej Maron 66


EMERJ – CP III Direito Civil III

tendo o evicto entregue o bem de pronto. Em verdade, esta entrega é recomendada, a


cooperação é a conduta que dele se espera, nestes casos13.
Outro requisito é a anterioridade do direito do evictor. Veja: se o bem é perdido
porque o evictor usucapiu tal bem, esta usucapião deve ter completado seus requisitos antes
da efetivação do negócio que passou o domínio do bem ao adquirente que o perdeu. Do
contrário, o ônus de proteger sua posse e propriedade incumbe ao adquirente – res perit
domino. Mas veja que pode acontecer de a aquisição do direito do terceiro evictor não ser
anterior, mas ser extremamente próxima à transmissão do bem ao evicto pelo alienante, o
que tornaria praticamente impossível sua defesa. Como exemplo, se o prazo de usucapião
se completou um dia após a celebração do contrato de compra e veda entre o alienante e o
evicto. Nestes casos,segundo Caio Mário, a evicção é argüível, excepcionando-se o res
perit domino.
Registre-se, por fim, que se o evicto sabia da existência do defeito de direito, não
fará jus a qualquer indenização. Veja o artigo 457 do CC:

“Art. 457. Não pode o adquirente demandar pela evicção, se sabia que a coisa era
alheia ou litigiosa.”

Ora, sabedor que era da situação de non domino, ou sub judice, o adquirente era,
respectivamente, ou cúmplice da alienação indevida, ou complacente com o risco da perda,
e por isso não merece proteção.

2.2. Denunciação da lide

Para que seja possível o exercício dos direitos decorrentes da evicção, o artigo 456
do Código Civil traz a exigência de que o adquirente proceda à notificação do alienante
(seja imediato ou não), relativamente ao litígio travado com o evincente (terceiro). É
imposta, portanto, a denunciação da lide ao alienante.

“Art. 456. Para poder exercitar o direito que da evicção lhe resulta, o adquirente
notificará do litígio o alienante imediato, ou qualquer dos anteriores, quando e
como lhe determinarem as leis do processo.
Parágrafo único. Não atendendo o alienante à denunciação da lide, e sendo
manifesta a procedência da evicção, pode o adquirente deixar de oferecer
contestação, ou usar de recursos.”

Esta exigência da denunciação da lide faz destacados dois pontos que precisam ser
enfrentados. Primeiro: se o evicto não fizer a denunciação da lide, não terá direito algum?
Segundo: este artigo 456 do CC autoriza a denunciação da lide aos alienantes anteriores, o
que seria uma abertura à chamada denunciação per saltum, bastante combatida pela
doutrina processual.
Veja o artigo 70, I, do CPC:

“Art. 70. A denunciação da lide é obrigatória:

13
Esta última situação é problemática, pois que se o evicto se enganou quanto à certeza da situação de
evicção, deixando de oferecer a resistência terá perdido seu direito. Não sendo muito evidente o direito do
evictor, a resistência é recomendada, então.

Michell Nunes Midlej Maron 67


EMERJ – CP III Direito Civil III

I – ao alienante, na ação em que terceiro reivindica a coisa, cujo domínio foi


transferido à parte, a fim de que esta possa exercer o direito que da evicção lhe
resulta;
(...)”

Quanto ao primeiro aspecto, Caio Mário e Clóvis Bevillacqua entendem que se não
denunciar a lide, o evicto não terá qualquer direito oriundo da evicção – nenhum direito.
Miguel Maria de Serpa Lopes, por sua vez, entende que, ainda que o adquirente não
notifique o alienante através da denunciação da lide, ele sempre terá, em face do alienante,
ação de indenização pela inexecução contratual. Com efeito, enquanto na ação de
indenização o fundamento é o inadimplemento contratual que sempre subsistirá, na evicção
é a garantia que implica em conseqüências mais graves.
Quanto ao segundo ponto, a denunciação da lide per saltum parece ser autorizada,
mas o artigo fala em “quando e como lhe determinarem as leis do processo”. Alexandre
Câmara entende que esta espécie não está autorizada, justamente por esta remissão à lei
adjetiva, que impede a denunciação aos alienantes anteriores, ao falar apenas no direto14. A
doutrina civilista, em peso, defende que é, ao contrário, uma autorização legal a esta
denunciação per saltum, contando com a adesão do CJF, que se vê no seu enunciado 29:

“Enunciado 29, CJF: Art. 456: a interpretação do art. 456 do novo Código Civil
permite ao evicto a denunciação direta de qualquer dos responsáveis pelo vício.”

2.3. Extensão dos efeitos da evicção

Ocorrendo a perda judicial, através de sentença judicial, então, surgem os direitos


resultantes da evicção. O artigo 450 do CC é a sede legal:

“Art. 450. Salvo estipulação em contrário, tem direito o evicto, além da restituição
integral do preço ou das quantias que pagou:
I - à indenização dos frutos que tiver sido obrigado a restituir;
II - à indenização pelas despesas dos contratos e pelos prejuízos que diretamente
resultarem da evicção;
III - às custas judiciais e aos honorários do advogado por ele constituído.
Parágrafo único. O preço, seja a evicção total ou parcial, será o do valor da coisa,
na época em que se evenceu, e proporcional ao desfalque sofrido, no caso de
evicção parcial.”

Veja que os direitos do evicto são muito mais densos do que os direitos de um mero
credor inadimplido. Exemplo claro disso é que, de acordo com o parágrafo único deste
artigo 450, o alienante responde, também, pela plus-valia, isto é, a diferença maior entre o
preço de aquisição e o seu valor ao tempo em que se evenceu, seja a evicção total ou
parcial. Segundo Gustavo Tepedino:

“Em harmonia com o posicionamento jurisprudencial (...), unificou o regime quer


para a evicção parcial, quer para a evicção total. A plus-valia ou, alternativamente,
a depreciação da coisa, serão levadas em conta em ambos os casos, já que o preço
a ser restituído terá como base, sempre, o valor da coisa à época da evicção.”

14
O argumento é que falta legitimidade, vez que a relação material entre o adquirente e os alienantes
pretéritos, indiretos, inexiste, contrariando esta condição da ação estabelecida pela teoria eclética.

Michell Nunes Midlej Maron 68


EMERJ – CP III Direito Civil III

Caio Mário discorda quanto à depreciação, a outra faceta desta circunstância:

“Se ao contrário de valorização, estiver depreciada, a aplicação pura e simples do


disposto no art. 450 desautoriza levá-la em consideração.”

A tese de Caio Mário é reforçada pelo disposto no artigo seguinte, 451 do CC, que
afirma que subsiste a obrigação ainda que a coisa tenha se deteriorado, salvo dolo do
adquirente, pois ninguém pode se valer da própria torpeza. Veja:

“Art. 451. Subsiste para o alienante esta obrigação, ainda que a coisa alienada
esteja deteriorada, exceto havendo dolo do adquirente.”

A jurisprudência tem acompanhado a posição de Caio Mário, não contabilizando a


depreciação, nestes casos.
É pacífico, porém, que o adquirente fará jus à indenização das benfeitoras não
abonadas, ou seja, não indenizadas pelo terceiro. Caso já tenha sido feito algum abono das
benfeitorias pelo alienante, essas serão deduzidas no momento da restituição, sob pena de
se demonstrar enriquecimento sem causa. É claro que, se o evicto estava de má-fé –
objetivada pelo artigo 457 do CC, transcrito há pouco – não terá sequer este direito. Veja o
artigo 1.219 do CC:

“Art. 1.219. O possuidor de boa-fé tem direito à indenização das benfeitorias


necessárias e úteis, bem como, quanto às voluptuárias, se não lhe forem pagas, a
levantá-las, quando o puder sem detrimento da coisa, e poderá exercer o direito de
retenção pelo valor das benfeitorias necessárias e úteis.”

Vale mencionar que tudo que se aplica às benfeitorias, aqui, se aplica à acessão, por
não haver diferença ontológica entre os institutos, para fins de indenização.
Por fim, no que tange ao cálculo da indenização, caso o adquirente tenha auferido
vantagens com as deteriorações da coisa, o valor dessas vantagens deverá ser deduzido da
indenização a ser paga ao adquirente. O fundamento por trás do artigo é, justamente, evitar
o enriquecimento sem causa (compensatio lucri cum damno).

“Art. 452. Se o adquirente tiver auferido vantagens das deteriorações, e não tiver
sido condenado a indenizá-las, o valor das vantagens será deduzido da quantia que
lhe houver de dar o alienante.”

2.4. Supressão, reforço ou redução da evicção

As partes podem dispor sobre a extensão da evicção. Trata-se da liberdade


contratual, expressão da autonomia da vontade, que permite que aumentem, diminuam ou
excluam os direitos decorrentes da evicção. Veja o artigo 448 do CC:

“Art. 448. Podem as partes, por cláusula expressa, reforçar, diminuir ou excluir a
responsabilidade pela evicção.”

Esta autonomia é restrita nos contratos de adesão, nos quais não será considerada
válida a cláusula que extirpa tais direitos.

Michell Nunes Midlej Maron 69


EMERJ – CP III Direito Civil III

Repare que ainda que o alienante encontre cláusula de exclusão das


responsabilidades pela evicção, o preço pago pela coisa será necessariamente restituído,
salvo se o adquirente sabia deste risco e o assumiu. Esta assunção de risco expressa torna o
contrato em aleatório, permitindo a diminuição da prestação (emptio rei speratae, evicção
parcial) ou a sua inexistência (emptio spei, evicção total). Veja o artigo 449 do CC:

“Art. 449. Não obstante a cláusula que exclui a garantia contra a evicção, se esta se
der, tem direito o evicto a receber o preço que pagou pela coisa evicta, se não
soube do risco da evicção, ou, dele informado, não o assumiu.”

Casos Concretos

Questão 1

Indústria de tintas adquire matéria prima de fábrica para a elaboração de seus


produtos. Dois anos depois do recebimento da mercadoria, propõe ação estimatória, com
base na alegação de que a tinta é imprestável para dar coloração a seus produtos. Merece
ser reconhecido o direito da Indústria?

Resposta à Questão 1

Não merece, tão-somente pela decadência do seu direito. O vício oculto, a


imprestabilidade do material, deveria ter sido suscitado em prazo legal, de trinta dias.
Perdeu-se o direito, portanto.
A respeito, veja a apelação cível 1999.001.19959, do TJ/RJ:

“ABATIMENTO DO PRECO. VICIO REDIBITORIO. PRESCRICAO.


RECONHECIMENTO. Acao estimatoria e reconvencao de cobranca. Alegacao de
vicio redibitorio. Industria de tintas adquirente de materia prima da fabricante, dita
com vicio redibitorio. Acao estimativa visando a substituicao da mercadoria ou o

Michell Nunes Midlej Maron 70


EMERJ – CP III Direito Civil III

abatimento do preco so' proposta dois anos depois do recebimento. Prescricao da


pretensao de direito material sustentada e bem reconhecida pela sentenca, com
extincao do processo na forma do inc. IV, do art. 269, do CPC. Condenacao do
pagamento da mercadoria bem disposta, ante a prova documental. Improvimento
ao recurso da autora-reconvinda qur perseguia a reversao. Unanime.”

Questão 2

Tendo ocorrido a apreensão policial da coisa, em razão de roubo ocorrido


anteriormente à sua aquisição, o adquirente sustentou ter sofrido evicção. O alienante
alegou que não havia evicção e, ademais, que esta só surge com a perda judicial do bem
adquirido. Pode a apreensão policial ser admitida como caso de evicção?

Resposta à Questão 2

Sim. De fato, a jurisprudência é pacífica em admitir que configura evicção a perda


por ato administrativo, não sendo absoluta a necessidade de sentença judicial. Há evicção,
portanto.
Veja o que disse o STJ, no REsp. 162.163:

“EVICÇÃO. ATO ADMINISTRATIVO. APREENSÃO POLICIAL. VEICULO


FURTADO. RESPONSABILIDADE DO FORNECEDOR.
1. O COMPRADOR QUE PERDE O BEM POR ATO ADMINISTRATIVO DA
AUTORIDADE POLICIAL, NA BUSCA E APREENSÃO DE VEICULO
FURTADO, PODE PROMOVER AÇÃO DE INDENIZAÇÃO CONTRA O
VENDEDOR. ART. 1.117 DO C. CIVIL. PRECEDENTES. ART. 18 DO CODIGO
DE DEFESA DO CONSUMIDOR. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO.”

Questão 3

MAURÍCIO ajuizou ação ordinária em face de COMPRE FÁCIL Ltda. para


receber indenização por danos decorrentes da compra e venda de veículo furtado. Em
defesa, a empresa Ré alegou que o autor, diante da evidência de ato criminoso, devolveu o
produto do crime à autoridade policial. Sustenta, ainda, que a entrega espontânea, sem a
espera da regular apreensão do bem, enseja a perda do direito à evicção, uma vez que é
condição de procedibilidade da ação, a necessária discussão e defesa da legitimidade de
sua posse. Considerando os fatos comprovados, decida.

Resposta à Questão 3

Não há como se exigir tal conduta do adquirente. Mesmo que tenha entregue o bem,
ainda merece reparação pela evicção sofrida, em nada impedindo, a entrega, a discussão
judicial da perda. Ao contrário, quando for inequívoca a definição da perda do direito, o
evicto deve colaborar, não devendo ingressar com demanda frívola, pretensão descabida.
Esta é a posição do STJ, no REsp. 69.496:

“CIVIL. EVICÇÃO. O direito de demandar pela evicção não supõe,


necessariamente, a perda da coisa por sentença judicial. Hipótese em que, tratando-
se de veículo roubado, o adquirente de boa-fé não estava obrigado a resistir à

Michell Nunes Midlej Maron 71


EMERJ – CP III Direito Civil III

autoridade policial; diante da evidência do ato criminoso, tinha o dever legal de


colaborar com as autoridades, devolvendo o produto do crime. Recurso especial
não conhecido.”

Questão 4

Ademar ajuizou ação de Indenização por perdas e danos em face de Valentino


Empreendimentos Imobiliários Ltda..O autor sustenta que adquiriu um terreno para o qual
já havia aprovação de dois projetos de construção. Por isso, edificou apartamentos sem
que tivesse recebido, ao longo da construção, qualquer tipo de impugnação. Após a
construção, recebeu intimação para prestar depoimento em ação ordinária, movida por
determinada empresa em face da ora Ré, na qual foi proferida sentença que anulou a
escritura de compra e venda entre esta e a outra empresa, com o que foi atingido o direito
de Ademar. Ademar requer indenização pelo preço pago pelo terreno, cumulado com o
valor das benfeitorias, na forma do art. 453 do Código Civil. Em contestação, alega
Valentino Empreendimentos Imobiliários Ltda. que: a) necessária se faz a denunciação da
lide da primeira empresa que lhes vendeu o bem; b) que o art. 453 do Código Civil não se
aplica ao caso, tendo em vista que o referido dispositivo diz expressamente que o alienante
responderá pelas benfeitorias necessárias ou úteis e a construção realizada no terreno
objeto da lide tem natureza de acessão. Decida fundamentadamente.

Resposta à Questão 4

Mesmo sendo acessões, hão de ser indenizadas, porque assim deve ser interpretado
ontologicamente o termo “benfeitorias”, a fim de medir a indenizabilidade do evicto. Não
há qualquer lógica em se diferenciar, neste caso, acessão de benfeitoria: todas são despesas
realizadas pelo evicto, e portanto indenizáveis.
Quanto à denunciação da lide, não faz qualquer sentido, in casu.
Veja a ementa do REsp. 139.178, e o enunciado 81 do CJF:

“Recurso especial. Inviabilidade em relação ao ponto do julgado em que não


alcançada unanimidade, ensejando apresentação de embargos infringentes.
Sociedade por quotas. Responsabilidade solidária do sócio, em caso de ato de má-
fé, com violação da lei e, por isso mesmo, anulado.
Evicção. Indenização. O evicto há de ser indenizado amplamente, inclusive por
construções que tenha erigido no imóvel. A expressão "benfeitorias", contida no
artigo 1.112 do Código Civil, há de ser entendida como compreendendo acessões.”

“Enunciado 81, CJF: Art. 1.219: O direito de retenção previsto no art. 1.219 do
CC, decorrente da realização de benfeitorias necessárias e úteis, também se aplica
às acessões (construções e plantações) nas mesmas circunstâncias.”

Michell Nunes Midlej Maron 72


EMERJ – CP III Direito Civil III

Tema VII

Extinção dos contratos. Adimplemento. Dissolução. Resilição bilateral ou distrato e resilição unilateral.
Denúncia, renúncia, revogação e resgate. Resolução. Cláusula resolutiva tácita e expressa. Inadimplência da
obrigação: rescisão. Exceção do contrato não cumprido.

Notas de Aula15

1. Extinção dos contratos

A extinção do contrato se opera de três maneiras possíveis: pode haver a resilição, a


resolução ou a rescisão. Vejamos cada espécie em separado.

1.1. Resilição

O artigo 472 do CC é bastante relevante:

“Art. 472. O distrato faz-se pela mesma forma exigida para o contrato.”

Quando se fala em resilição, esta pode ser bilateral ou unilateral. Quando for
bilateral, se trata do distrato, conforme previsto neste artigo 472 supra. A resilição é forma
15
Aula ministrada pelo professor Carlos Santos de Oliveira, em 2/2/2009.

Michell Nunes Midlej Maron 73


EMERJ – CP III Direito Civil III

de desfazimento do vínculo obrigacional que não extenuou seus efeitos, ou seja, a


obrigação ainda estava em curso quando terminado o vínculo por este método. Da mesma
forma que a vontade criadora das partes fez surgir o vínculo, na resilição bilateral é a
vontade das partes, mas agora extintiva, que põe termo ao vínculo.
Veja que, por óbvio, se o contrato extenuou-se pelo seu natural termo, ou seja, o
vínculo criado produziu todos os efeitos que devia – cumpriu-se a obrigação –, não há
necessidade de distrato: o contrato se desfaz naturalmente.
Sobre o artigo 472, diga-se: o distrato deve observar a forma exigida para o
contrato, e não a eleita para o contrato. Entenda: se o contrato é informal, na lei, mas as
partes elegem fazê-lo por escrito, não por isso o distrato terá que ser escrito: se a forma
escrita não é exigida na lei, o distrato pode ser feito por qualquer outra forma, mesmo
verbal. Como exemplo, se um contrato que pode ser feito em escritura particular é feito em
escritura pública, nada impede que o distrato seja feito por escrito particular.
A resilição unilateral baseia-se na assertiva de que ninguém é obrigado a contratar
ad infinitum. Há que se ter cautela, porém, nesta situação, porque nem sempre será admitida
a resilição unilateral. Esta será cabível quando a lei permitir, ou a natureza da contratação
assim fizer depreender. Geralmente, os contratos de depósito, de comodato e de mandato
admitem esta modalidade extintiva unilateral.
A resilição, de uma ou outra forma, é lógica apenas nos contratos de trato
sucessivo, os chamados contratos de duração, ou nos contratos de execução diferida, em
que se posterga o cumprimento de uma das prestações para momento adiante.
Sobre a resilição unilateral, veja o artigo 473 do CC:

“Art. 473. A resilição unilateral, nos casos em que a lei expressa ou implicitamente
o permita, opera mediante denúncia notificada à outra parte.
Parágrafo único. Se, porém, dada a natureza do contrato, uma das partes houver
feito investimentos consideráveis para a sua execução, a denúncia unilateral só
produzirá efeito depois de transcorrido prazo compatível com a natureza e o vulto
dos investimentos.”

Em síntese: a resilição bilateral é um consenso de vontades extintivas, em que,


independentemente do cumprimento integral da avença, as partes decidem liberar-se
mutuamente. Na resilição unilateral, todavia, há manifestação de vontade extintiva de uma
só das partes.
É claro que a resilição unilateral, que é um direito potestativo da parte que a opera,
quando existente, sujeitando a parte contrária, não poderá causar danos a esta parte sem por
estes responsabilizar o causador. Destarte, sempre comporta perdas e danos eventualmente
percebidos.
Aqui é relevante abordar as terminologias sobre a resilição. Há quatro: denúncia,
renúncia, revogação e resgate. De fato, são pouco relevantes as O artigo 682 do CC é
relevante para explicitar duas delas:

“Art. 682. Cessa o mandato:


I - pela revogação ou pela renúncia;
(...)”

Michell Nunes Midlej Maron 74


EMERJ – CP III Direito Civil III

A revogação é a pura e simples resilição unilateral, em sua simples expressão. No


contrato de mandato, consiste na faculdade do mandante assim terminar o vínculo. Da
mesma forma, na doação há casos de revogabilidade do contrato pelo doador.
A renúncia, da mesma forma, é a resilição unilateral perfeitamente descrita, mas
levada a cabo pelo sujeito passivo da relação obrigacional. No mandato, é o mandatário
quem renuncia. Por conta disso, esta forma de resilição unilateral se aproxima muito da
resolução unilateral, que se verá adiante.
A expressão denúncia, da mesma forma, representa bem a resilição unilateral, sendo
terminologia comum nos contratos de locação – a denúncia cheia, ou a denúncia vazia.
O importante é que a resilição seja comunicada habilmente à outra parte: há que se
fazer notificação expressa, porque a regra é que a manifestação de vontade seja receptícia,
ou seja, depende da ciência da sua existência pela outra parte (as manifestações de vontade
não receptícias são excepcionais).
O parágrafo único do artigo 473 do CC traz uma inovação legal importante. Esta
inovação, em verdade, nada mais fez do que positivar algo que a jurisprudência já vinha
aplicando: o condicionamento da eficácia da resilição unilateral à não causação de danos ao
outro contratante. Veja que a resilição unilateral não é negada ao contratante, mas apenas
contida pelo tempo que entender, o juiz, compatível com a boa-fé. E esta providência, a ser
requerida pelo prejudicado, é tida, pela doutrina, como uma hipótese em que há atenção à
tutela específica, preferencialmente, qual seja, a continuação do contrato.
Vale mencionar que a morte de um dos contratantes, quando a sua obrigação é
personalíssima, é designada como resilição unilateral, também.
O resgate é um conceito, este sim, mais peculiar. Em verdade, poderia ser
considerado instituto diverso da resilição, tal sua peculiaridade, mas a parca doutrina que o
aborda o trata como resilição unilateral. Consiste, o resgate, no meio pelo qual o foreiro, o
enfiteuta, poderia haver o bem aforado, conseguindo a propriedade plena.
Veja que o artigo 693 do antigo CC de 1916 usava o termo resgate como forma de
extinguir a enfiteuse, unilateralmente (e, como se sabe, as enfiteuses que ainda vigem são
válidas, respondendo ao CC de 1916):

“Art. 693. Todos os aforamentos, inclusive os constituídos anteriormente a este


Código, salvo acordo entre as partes, são resgatáveis 10 (dez) anos depois de
constituídos, mediante pagamento de um laudêmio, que será de 2,5% (dois e meio
por cento) sobre o valor atual da propriedade plena, e de 10 (dez) pensões anuais
pelo foreiro, que não poderá no seu contrato renunciar ao direito de resgate, nem
contrariar as disposições imperativas deste Capítulo. (Redação dada pela Lei nº
5.827, de 23.11.1972)”

No CC atual há outro exemplo de emprego do resgate: consiste no exercício, pelo


alienante, do seu direito oriundo da retrovenda, que é o ato de recobrar o bem do
adquirente. Veja o artigo 505 do CC:

“Art. 505. O vendedor de coisa imóvel pode reservar-se o direito de recobrá-la no


prazo máximo de decadência de três anos, restituindo o preço recebido e
reembolsando as despesas do comprador, inclusive as que, durante o período de
resgate, se efetuaram com a sua autorização escrita, ou para a realização de
benfeitorias necessárias.”

1.2. Resolução

Michell Nunes Midlej Maron 75


EMERJ – CP III Direito Civil III

Esta é uma forma de extinção contratual que ocorre pelo adimplemento da


obrigação, em regra. O termo resolução é também utilizado, porém, para a forma de
extinção da avença por conta de inadimplemento, que pode ser voluntário ou involuntário.
O inadimplemento involuntário, em regra, vem da ausência de culpa do
inadimplente, ou seja, quando há fortuito, lato sensu, que causa a impossibilidade de
cumprimento da avença.
O inadimplemento voluntário, por outro lado, ocorre quando há culpa lato sensu da
parte inadimplente: quer por negligência, imprudência ou imperícia, quer por simples
deliberação em não cumprir, há inadimplemento da obrigação, ensejando resolução
contratual.
É muito comum se confundir a resolução com a rescisão. É comum crer que o
inadimplemento induza rescisão, enquanto o termo correto é resolução, como se verá.

1.3. Rescisão

Consiste na extinção do contrato por conta de presença de alguma causa de nulidade


ou anulabilidade neste percebida. Ao contrário do que se vê na praxe, a rescisão não se
funda em inadimplemento, mas apenas na invalidade do pacto. Para casos de
inadimplemento, utiliza-se o termo resolução.

2. Cláusula resolutiva

Todo contrato bilateral, sinalagmático, tem ínsita uma cláusula resolutiva, expressa
ou tácita. Todo contrato desta espécie pode ser resolvido, sendo que a cláusula resolutiva
for expressa, independe de notificação, dependendo desta comunicação se for tácita. Veja o
artigo 474 do CC:

“Art. 474. A cláusula resolutiva expressa opera de pleno direito; a tácita depende
de interpelação judicial.”

A jurisprudência, no entanto, vem exigindo notificação mesmo quando a cláusula


resolutiva for expressa, como medida hábil a permitir à parte contrária que cumpra o
contrato, em prol da conservação do pacto. Esta orientação é extremamente antenada com a
boa-fé objetiva e a função social do contrato.
O artigo 475 do CC é bem preciso quanto à expressão que usa para a extinção do
contrato, que é a resolução:

“Art. 475. A parte lesada pelo inadimplemento pode pedir a resolução do contrato,
se não preferir exigir-lhe o cumprimento, cabendo, em qualquer dos casos,
indenização por perdas e danos.”

O credor poderá, então, optar pelo cumprimento da obrigação, mesmo tardia, ou a


extinção do pacto.

Michell Nunes Midlej Maron 76


EMERJ – CP III Direito Civil III

3. Exceção do contrato não cumprido

A partir do momento em que não há, por parte de um dos contratantes, o


cumprimento da sua obrigação, a parte contratada pode, nos termos do artigos 476 e 477 do
CC, deixar de cumprir com a sua própria obrigação, enquanto a pare originalmente
inadimplente não cumpra integralmente esta obrigação inadimplida. Esta é a exceptio non
adimpleti contractus.

“Art. 476. Nos contratos bilaterais, nenhum dos contratantes, antes de cumprida a
sua obrigação, pode exigir o implemento da do outro.”

“Art. 477. Se, depois de concluído o contrato, sobrevier a uma das partes
contratantes diminuição em seu patrimônio capaz de comprometer ou tornar
duvidosa a prestação pela qual se obrigou, pode a outra recusar-se à prestação que
lhe incumbe, até que aquela satisfaça a que lhe compete ou dê garantia bastante de
satisfazê-la.”

Este instituto consiste em uma matéria de defesa contratual, que tem cabimento
quando houver o inadimplemento causal do contrato: se o contrato deixa de ser adimplido
por uma das partes, a outra parte conta com essa exceção para também deixar de adimplir
sua prestação obrigacional.
Veja: ninguém pode ser responsabilizado por deixar de cumprir sua obrigação
contratual se só deixou de cumpri-la por causa do inadimplemento prévio de seu
contratante. Assim, essa exceção é oponível ao que deixou de cumprir a obrigação primeiro,
por aquele que só descumpriu o contrato por causa desse inadimplemento que sofreu.
A visualização dessa exceção é bem mais fácil em se tratando de contratos de trato
sucessivo: a parte que tem incumbência de cumprir primeiro determinada obrigação não
poderá exigir da outra o cumprimento da correspectiva, se não cumpriu primeiro a sua.
Quem descumpre primeiro sofrerá os efeitos da exceptio, pois o segundo poderá,
licitamente, deixar de cumprir com sua prestação. Nos contratos de execução instantânea,
também pode haver diferença entre os momentos de cumprimento da obrigação por cada
um dos contratantes. Se houver, aquele que cumpre depois poderá deixar de adimplir, se o
que deveria ter cumprido antes não o fez.
Uma importante ressalva consiste na possibilidade de se antecipar o vencimento da
obrigação quando o risco do inadimplemento for concreto (ou requerer garantia real ou
fidejussória). Sabendo-se que há indícios concretos da inadimplência iminente, o
vencimento pode ser antecipado, o que pode gerar uma inversão na ordem de cumprimento
das obrigações: se aquele que está em risco de ser inadimplido for quem deveria pagar
primeiro, sua posição será, agora, a de receber primeiro, e se não recebe, agora é ele quem
conta com a exceptio.

3.1. Exceptio non rite adimpleti contractus

Este instituto consiste numa evolução da exceção do contrato não cumprido: se o


primeiro obrigado, aquele que deve adimplir primeiro sua obrigação contratual, não o faz à
perfeição, o segundo contratante poderá opor essa exceção do contrato cumprido
imperfeitamente, pelo que poderá também adimplir proporcionalmente sua prestação.

Michell Nunes Midlej Maron 77


EMERJ – CP III Direito Civil III

Note-se que essa defesa deve referir-se a defeito relevante na prestação. Se a


variação no cumprimento for mínima, pouco significativa, não tem cabimento tal exceção.

Casos Concretos

Questão 1

Carlos presta a determinada empresa serviços de assessoria técnica na área de


informática há dois anos. Sempre prestou seus serviços com zelo e profissionalismo,
comparecendo à sede da empresa sempre que solicitado e solucionando satisfatoriamente
todos os problemas ocorridos. Acontece que a empresa envia uma carta a Carlos
declarando que não pretende mais manter os seus serviços e que está rescindindo o
contrato, estabelecendo o prazo de três semanas a título de aviso prévio.
Carlos, não aceitando tal situação, procura um advogado o qual lhe confirma que
a empresa jamais poderia tê-lo dispensado sem que houvesse de sua parte uma
inadimplência culposa de suas obrigações, e que é perfeitamente cabível uma medida
judicial para impedir tal fato.
Opine a respeito, levando em consideração as modalidades de extinção dos
contratos.

Resposta à Questão 1

Não se configurando como relação trabalhista, a resolução, que se desenhou como


resilição unilateral, é perfeitamente possível, não havendo que se apresentar nenhuma causa
para tanto. Trata-se de uma modalidade de contrato de trato sucessivo, caso em que
nenhuma das partes contratantes está obrigada a manter o contrato, podendo resilir

Michell Nunes Midlej Maron 78


EMERJ – CP III Direito Civil III

unilateralmente o pacto, desde que comunique com prazo razoável esta sua decisão. A
resilição unilateral é a denúncia, in casu, não se tratando de rescisão, que é extinção
decorrente da invalidade do pacto (em que pese haver quem confunda rescisão com
resolução opor inadimplemento voluntário, quando há culpa lato sensu). Nada há que
impeça a resilição, mas se comprovado algum prejuízo pela outra parte, este é indenizável.

Questão 2

Determinada empresa prometeu vender um imóvel a João obrigando-se entregar as


chaves do apartamento no dia 10/02/2003.
Por sua vez, o imóvel é entregue com vazamento na cozinha e no banheiro. Por tal
motivo, João notifica a incorporadora e concede um prazo de 30 dias para a solução do
problema. Diante do não atendimento do pedido, suspende o pagamento das prestações.
Inconformado, o promitente vendedor ajuíza ação de resolução do contrato fundada no
inadimplemento do promitente comprador. O réu, em contestação, alega que não está mais
efetuando o pagamento, pois o vendedor não cumpriu satisfatoriamente a sua prestação.
Admitindo-se como provadas as alegações, decida a questão.

Resposta à Questão 2

A entrega do imóvel defeituoso é clara hipótese de adimplemento imperfeito,


violação positiva do contrato, que também pode ensejar a exceção do contrato não
cumprido, que ocorreu de forma típica no caso em tela. Em prol da manutenção do negócio
jurídico, há que ser julgado improcedente o pedido de resolução.
Veja o posicionamento do STJ, no REsp. 2.330:

“PROMESSA DE VENDA E COMPRA. AÇÃO DE RESCISÃO POR


INADIMPLEMENTO CONTRATUAL. NÃO SENDO CUMPRIDA PELO
PROMITENTE-VENDEDOR A SUA OBRIGAÇÃO, TOCANTE A ENTREGA
DO IMOVEL EM CONDIÇÕES DE SOLIDEZ E SEGURANÇA, NÃO LHE E
DADO EXIGIR O IMPLEMENTO DA DOS COMPROMISSARIOS-
COMPRADORES QUANTO AO PAGAMENTO DAS PRESTAÇÕES
REMANESCENTES AVENÇADAS. ''EXCEPTIO NON ADIMPLETI
CONTRACTUS'' ACOLHIDA. RECURSO ESPECIAL NÃO CONHECIDO.”

Questão 3

Condomínio do Edifício Sol celebrou com a empresa Lua Ltda. contrato escrito de
prestação de serviços por prazo determinado de três anos, para manutenção dos
elevadores.
Passado o segundo ano, a empresa prestou serviço falho, o que causou danos ao
Condomínio.
Este, então, ingressou com ação de rescisão contratual, para pleitear,
cumulativamente, a devolução da remuneração até então paga pela empresa, bem como
perdas e danos a serem apurados em liquidação de sentença.
a) Analise o cabimento do pleito na sua totalidade.

Michell Nunes Midlej Maron 79


EMERJ – CP III Direito Civil III

b) Se, ao invés da propositura da ação, as partes tivessem ajustado verbalmente o


término do contrato, sem ônus para ambas, este estaria regularmente extinto?
Justifique.

Resposta à Questão 3

a) A resolução (e não rescisão), em si, é possível, pelo adimplemento imperfeito, se


este foi significativamente danoso, e pela reparação dos danos causados. Não é
cabível, porém, a devolução da remuneração até então paga, pois, trato
sucessivo que é, cada parcela teve sua correspectiva contraprestação.

b) Sim, a autonomia da vontade é suficiente para extinguir o contrato tomando por


causa a existência de um dano causado pelo contratado. Nenhum vício nesta
extinção, sequer pela forma verbal, que não é defesa em lei.

Veja a ementa da apelação cível 1995.001.02895, do TJ/RJ:

“Locação de serviços de conservação e manutenção de elevadores. Verificada a


desídia na prestação do serviço estipulado no contrato, que caracteriza
inadimplemento da obrigação assumida, há justa causa para rescisão do ajuste.
Provimento da segunda apelação.”

Em síntese: ocorreu, na espécie, o descumprimento contratual culposo, a ensejar a


resolução do contrato, na forma do artigo 475 do CC. O condomínio poderá,
cumulativamente, cobrar perdas e danos eu comprovar, que serão apuráveis em liquidação
de sentença, se não houver cláusula penal. Quanto à devolução das quantias pagas, o pleito
não merece prosperar, visto que o contrato é de duração, em parcelas periódicas, o que
revela que a resolução terá efeitos ex nunc.

Michell Nunes Midlej Maron 80


EMERJ – CP III Direito Civil III

Tema VIII

Resolução por onerosidade excessiva. Teoria da imprevisão ou onerosidade excessiva no Código de Defesa
do Consumidor e no Código Civil de 2002. Efeitos da onerosidade excessiva. A revisão dos contratos. Vícios
da vontade contratual. A lesão e o estado de perigo.

Notas de Aula16

1. Resolução por onerosidade excessiva

O novo direito civil vem acompanhando a tendência do neoconstitucionalismo, qual


seja, a aproximação da solução principiológica do direito, o pós-positivismo. O Código
Civil de 2002 vem defendendo os contratos, a família e o patrimônio, sem a prevalência
patrimonial que dantes vigia.
Bom exemplo é a introdução das teorias revisionistas do contrato, que permitem a
mitigação do pacta sunt servanda por diversos aspectos, ao exemplo da função social do
contrato. Exemplo magnífico das teses revisionistas é justamente a relevância da

16
Aula ministrada pelo professor Carlos Santos de Oliveira, em 2/2/2009.

Michell Nunes Midlej Maron 81


EMERJ – CP III Direito Civil III

onerosidade excessiva, que se vê tanto no CC quanto no CDC (o CC de 1916 não previa


esta onerosidade, tampouco a lesão). No codex consumerista, vem no artigo 6º, V:

“Art. 6º São direitos básicos do consumidor:


(...)
V - a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações
desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem
excessivamente onerosas;
(...)”

Este artigo, de fato, se divide em duas partes: a primeira, até o termo


“desproporcionais”, representa o instituto da lesão; a segunda, dali em diante, a
onerosidade excessiva.
O instituto da lesão se manifesta precisamente no momento em que se forma o
contrato. Até pode ser percebida, esta lesão, em momento posterior, mas a ocorrência da
desproporção já se fazia presente no momento da celebração do contrato.
A onerosidade excessiva, por seu turno, exige a ocorrência de fato superveniente, ou
seja, jamais poderá ocorrer onerosidade excessiva em contratos instantâneos: não há como
ocorrer qualquer fato superveniente à formação do contrato, porque esta formação coincide
com a execução.
Assim, a sede natural da onerosidade excessiva é o contrato de trato sucessivo,
cabendo, excepcionalmente, dela se cogitar em contratos de execução diferida.
No CC, a previsão vem nos artigos 478 a 480:

“Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de


uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a
outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o
devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar
retroagirão à data da citação.”

“Art. 479. A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar


eqüitativamente as condições do contrato.”

“Art. 480. Se no contrato as obrigações couberem a apenas uma das partes, poderá
ela pleitear que a sua prestação seja reduzida, ou alterado o modo de executá-la, a
fim de evitar a onerosidade excessiva.”

Veja que há severas diferenças entre a onerosidade excessiva no CDC e o instituto


no CC. Neste, o fundamento da teoria é a imprevisibilidade, o que já faz concluir pela
adoção da teoria da imprevisão. No CDC, há clara objetividade no instituto: não há
abertura à cogitação da previsibilidade ou não do fato superveniente que desequilibra a
equação econômica do contrato. Nas relações de consumo, basta que haja este
desequilíbrio, qualquer que seja a possibilidade de ser previsto quando da celebração.
O CDC prevê os institutos da lesão e da onerosidade excessiva de forma objetiva:
não há que se falar em nada mais que a desproporcionalidade entre as prestações, ou
seja,não impõe a análise da previsibilidade ou não do motivo que tornou desproporcional
tais prestações. No Código Civil, ao contrário, o legislador exige que haja a “inexperiência
ou premente necessidade”, como elementos subjetivos da lesão, e a situação “extraordinária
ou imprevisível” como ensejador da onerosidade excessiva – demonstrando ater-se aos
elementos subjetivos para configurar a circunstância revisionista.

Michell Nunes Midlej Maron 82


EMERJ – CP III Direito Civil III

Esta opção legislativa é violentamente criticada. A doutrina, em peso, beirando a


unanimidade, rechaça estas condicionantes subjetivas, reputando-as incongruências
jurídicas. Mesmo por isso, há quem aplique às relações não consumeristas a versão objetiva
dos institutos, escudando-se no necessário cotejo entre a norma e a relação social tutelada,
sobremaneira quando a vulnerabilidade for crassa, mesmo não sendo relação de consumo
(como em uma relação de inquilinato, por vezes.
Vale aqui trazer ao estudo um recurso especial que bem trata da matéria, o REsp.
80.036, no qual o Ministro Ruy Rosado foca a aplicabilidade do CDC em situações nas
quais seja cabível, mesmo que não se trate de relação consumerista. Veja:

“INCORPORAÇÃO. RESOLUÇÃO DO CONTRATO. RESTITUIÇÃO. LEI


4.591/64. CODIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR.
1. O CONTRATO DE INCORPORAÇÃO, NO QUE TEM DE ESPECIFICO, E
REGIDO PELA LEI QUE LHE E PROPRIA (LEI 4.591/64), MAS SOBRE ELE
TAMBEM INCIDE O CODIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR, QUE
INTRODUZIU NO SISTEMA CIVIL PRINCIPIOS GERAIS QUE REALÇAM A
JUSTIÇA CONTRATUAL, A EQUIVALENCIA DAS PRESTAÇÕES E O
PRINCIPIO DA BOA-FE OBJETIVA.
2. A ABUSIVIDADE DA CLAUSULA DE DECAIMENTO, COM PREVISÃO
DE PERDA DAS PARCELAS PAGAS EM FAVOR DO VENDEDOR, PODE
SER RECONHECIDA TANTO NA AÇÃO PROPOSTA PELO VENDEDOR
(ART. 53 DO CODECON) COMO NA DE INICIATIVA DO COMPRADOR,
PORQUE A RESTITUIÇÃO E INERENTE A RESOLUÇÃO DO CONTRATO E
MEIO DE EVITAR O ENRIQUECIMENTO INJUSTIFICADO.
3. POREM, NÃO VIOLA A LEI O ACORDÃO QUE EXAMINA FATOS E
CONTRATOS A LUZ DO CODECON E NEGA A EXTINÇÃO DO CONTRATO
DE INCORPORAÇÃO, AFASTANDO A APLICAÇÃO DA TEORIA DA
IMPREVISÃO E A ALEGAÇÃO DE CULPA DA EMPRESA VENDEDORA.
MANTIDO O CONTRATO, NÃO HA CUIDAR DA DEVOLUÇÃO DAS
PRESTAÇÕES PAGAS. RECURSO NÃO CONHECIDO (SUMULAS 5 E 7).”
A dinâmica correta, no diálogo das fontes normativas, é que o macrosistema irradie
seus efeitos para o microsistema, mas dada a relevância da lei consumerista e de sua lógica,
é esta que irradia suas normas altamente evoluídas ao macrosistema civil amplo, invertendo
a lógica.
A revisão contratual aceita pelo CC, na verdade, não se funda, a rigor, na
onerosidade excessiva. Em seus primórdios, esta teoria sempre foi apenas objetiva.
Destarte, o que se vê no artigo 478 do CC, criteriosamente, é a aplicação da teoria da
imprevisão, rebus sic stantibus, e não da onerosidade excessiva propriamente dita. Esta, de
fato, se manifesta na previsão do CDC, e não no artigo 478 do CC. como se vê, o
fundamento da norma não condiz com o teor da lei, muito menos com a nomenclatura
utilizada.
Há ainda uma outra crítica severa pendendo sobre este artigo, como redigido no CC:
a vinculação à comprovação de “extrema vantagem para a outra parte”. A existência desta
condicionante é absurda, mesmo que seja objetiva, pela simples dinâmica das relações
civis: já é bastante difícil comprovar o próprio prejuízo, diante do evento superveniente,
extraordinário e imprevisível exigido, que dirá conseguir demonstrar que, além de tudo, há
enorme vantagem para a outra parte contratante.
Pelo ensejo, veja o que dispõe o enunciado 375 do CJF:

Michell Nunes Midlej Maron 83


EMERJ – CP III Direito Civil III

“Enunciado 365, CJF: Art. 478. A extrema vantagem do art. 478 deve ser
interpretada como elemento acidental da alteração de circunstâncias, que comporta
a incidência da resolução ou revisão do negócio por onerosidade excessiva,
independentemente de sua demonstração plena.”

Outro problema com a redação do artigo 478 do CC: ali só se permite, a rigor, que o
devedor pleiteie a resolução do contrato, e não sua revisão. A jurisprudência vem
estendendo o sentido deste termo, fazendo interpretação ampliativa, de forma a aceitar que
o devedor requeira a revisão, e não somente a resolução.
Seria possível a revisão do contrato, com base na onerosidade excessiva, depois de
ter este sido integralmente cumprido? A jurisprudência tem entendido, majoritariamente,
que não é possível, vez que o contrato resolvido por termo natural, adimplemento integral,
está desfeito, e não merece interferência; contudo, há quem admita esta revisão póstuma,
por assim dizer.
Uma última questão correlata: no estado de perigo, apesar de o artigo 156 do CC
não falar em revisão, a doutrina unânime endente que, em prol do princípio da conservação
dos contratos, aplica-se por analogia o § 2º do artigo 157 do CC, sede da lesão:

“Art. 156. Configura-se o estado de perigo quando alguém, premido da


necessidade de salvar-se, ou a pessoa de sua família, de grave dano conhecido pela
outra parte, assume obrigação excessivamente onerosa.
Parágrafo único. Tratando-se de pessoa não pertencente à família do declarante, o
juiz decidirá segundo as circunstâncias.”

“Art. 157. Ocorre a lesão quando uma pessoa, sob premente necessidade, ou por
inexperiência, se obriga a prestação manifestamente desproporcional ao valor da
prestação oposta.
(...)
§ 2o Não se decretará a anulação do negócio, se for oferecido suplemento
suficiente, ou se a parte favorecida concordar com a redução do proveito.”

Casos Concretos

Questão 1

Diante de uma súbita desvalorização da moeda nacional, é cabível ao


arrendatário, postular, no curso da execução de contrato de leasing tendo o dólar norte-
americano como índice de atualização do crédito, e já tendo sido pagas 10 das 24
parcelas, postular a revisão do ajuste? Em caso afirmativo, sob qual fundamento legal?

Resposta à Questão 1

Sim, é caso claro de onerosidade excessiva, tendo ocorrido de fato exatamente este
evento em 1990, quando o dólar dobrou seu valor ao passar à livre indexação de mercado.
Neste caso, mesmo o evento sendo previsível – a variação cambial é certa –, seus efeitos
extremados, eles sim, eram imprevisíveis, e por isso o contrato deve ser revisto.
A respeito, veja o REsp. 447.336:

“Processo civil. Recurso especial. Ação de conhecimento sob o rito ordinário.


Contrato de arrendamento mercantil. Cláusula de indexação pela variação do dólar

Michell Nunes Midlej Maron 84


EMERJ – CP III Direito Civil III

norte-americano. Pacto de 24 parcelas. Incidência de excessiva desvalorização


cambial da moeda brasileira a partir da 10ª parcela. Propositura da demanda após o
pagamento da penúltima parcela. Possibilidade. Circunstância que não altera a
excessiva onerosidade verificada.
- Se o contrato previa o pagamento em 24 parcelas e a desvalorização cambial
ocorreu imediatamente após a 10ª parcela, resta caracterizada a onerosidade
excessiva a autorizar a revisão judicial do contrato de arrendamento mercantil,
independentemente de já ter sido paga pelo arrendatário, na data de propositura da
demanda, a quase totalidade das prestações que compõem o ajuste.
- Sustentar o contrário implicaria condicionar a procedência de tais demandas às
circunstâncias de terem sido ou propostas por arrendatário inadimplente, ou
ajuizadas imediatamente após a desvalorização cambial de janeiro de 1999, o que
não se admite, porque fatos de índole subjetiva não possuem o condão de
descaracterizar a existência de fato objetivo (desequilíbrio entre as prestações
ocorrido a partir de janeiro de 1999), necessário e suficiente à intervenção judicial
prevista no inc. V do art. 6º do CDC.”

Questão 2

O proprietário de um imóvel vendeu o bem enaltecendo a excelente vista que este


proporcionava.
Após seis meses da celebração do contrato com a efetiva entrega do bem e o
integral pagamento do preço, o vendedor conseguiu na prefeitura uma autorização
especial para edificar em frente ao imóvel vendido e com a concretização da obra o
comprador perdeu a vista que tinha para um lindo vale.
Diante da apontada circunstância, o comprador ajuíza ação de indenização em
face do vendedor que se defende dizendo que agiu no exercício regular do seu direito de
construir já que o terreno era seu e obteve do Município a devida licença para construir.
Como juiz, decida a questão.

Resposta à Questão 2

O vendedor agiu claramente de má-fé, deslealmente, e a boa-fé é exigível também


na fase pós-contratual, post pactum finitum, sendo a construção que pretende encetar este
vendedor claramente um abuso do direito, equiparado pelo artigo 187 do CC a ilícito civil,
indutor da responsabilidade aquliana. A indenização deve ser concedida, mesmo que não se
lhe possa impedir de construir, por ser conduta danosa, claramente violadora da probidade e
boa-fé, do artigo 422 do CC.

Michell Nunes Midlej Maron 85


EMERJ – CP III Direito Civil III

Tema IX

Contratos eletrônicos. Formação do contrato. Contratos entre presentes e ausentes. Documento eletrônico.
Certificação digital. Responsabilidade do provedor. Relações de consumo na internet sob o aspecto
contratual.

Notas de Aula17

1. Contratos eletrônicos

A contratação eletrônica tem como principal paradigma a confiança, que deve ser
protegida com especial atenção quando a relação social é massificada e, sobretudo,
relativamente anônima.
A idéia de fé no conhecimento de sistemas tecnológicos e especializados,
acompanhada da ignorância do leigo acerca do seu funcionamento, traz a confiança como
parâmetro para a distribuição dos novos riscos trazidos pela comodidade e facilidade
próprias da evolução tecnológica.
17
Aula ministrada pelo professor Guilherme Martins, em 13/2/2009.

Michell Nunes Midlej Maron 86


EMERJ – CP III Direito Civil III

Esta confiança precisa de proteção. A tutela da confiança aparece como defesa dos
interesses da parte de boa-fé, especialmente quando não houver uma norma específica, um
dispositivo legal específico protegendo-a, no caso.
Há, na contratação eletrônica, por meio de internet, fatores de risco que não existem
em negociações regulares, face a face, e um destes fatores de risco é o anonimato, ainda
que relativo. E veja que este anonimato é de mão dupla: tanto o consumidor não tem
absoluta certeza de que o site que está contatando é do fornecedor, como este também não
tem como saber se o consumidor é quem diz ser. Para minimizar este problema do
anonimato, há uma série de instrumentos de segurança, que serão abordados adiante.
Além do anonimato, outro problema destas contratações eletrônicas é a
concentração, em poder do fornecedor, dos termos e dados da transação: é ele quem
conserva os dados e atos da negociação, o que pesa ainda mais contra ele, em eventual
litigância sobre o pacto. Com esta concentração de provas nas mãos do fornecedor, exsurge
a possibilidade de inversão ope judicis do ônus da prova, na forma do artigo 6º, VIII, do
CDC.

“Art. 6º São direitos básicos do consumidor:


(...)
VIII - a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da
prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a
alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de
experiências;
(...)”

A respeito, veja a ementa e trecho do seguinte julgado do TJ/RJ:

“APELACAO DES. SIRO DARLAN DE OLIVEIRA - Julgamento: 20/09/2005 -


DECIMA SEGUNDA CAMARA CIVEL
APELAÇÃO. CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR POSSIBILIDADE DE
INVERSÃO DO ÔNUS PROBATÓRIO. FRAUDE EM OPERAÇÕES
FINANCEIRAS REALIZADAS ATRAVÉS DA INTERNET.
RESPONSABILIDADE DE NATUREZA OBJETIVA DO BANCO, FUNDADA
NO RISCO PROFISSIONAL. INSCRIÇÃO DO NOME DA AUTORA NO
SERASA. OBRIGAÇÃO DE RESTITUIÇÃO EM DOBRO DAS QUANTIAS
DEBITADAS ILEGALMENTE, BEM COMO DE TODOS OS VALORES
LANÇADOS NA CONTA-CORRENTE EM RAZÃO DOS REFERIDOS
DÉBITOS NÃO RECONHECIDOS. DANO MORAL CARACTERIZADO.
DEVER DE INDENIZAR. REFORMA TOTAL DA SENTENÇA.
PROVIMENTO DO RECURSO.
(...)
Não há dúvida de que somente a instituição bancária poderia provar, pois ela tem,
ou deveria ter, conhecimento de seu sistema operacional informatizado. Ao
correntista é impossível fazer essa prova.
(...)”

Destarte, a hipossuficiência técnica do consumidor e a verossimilhança das suas


alegações permitem a inversão da carga probatória, demandando que o fornecedor produza
prova do contrato.
Veja outro julgado de referência, este do TJ/RS:

Michell Nunes Midlej Maron 87


EMERJ – CP III Direito Civil III

“EMENTA: APELAÇÃO. CAUTELAR E REPARATÓRIA POR DANOS


MORAIS. DÉBITOS INDEVIDAMENTE LANÇADOS NA CONTA-
CORRENTE DOS AUTORES VIA INTERNET. 1.Admitindo o banco réu a
possibilidade de que os débitos discutidos pelos autores foram lançados via
internet por ‘hackers’, não se têm por incontroversos os valores exigidos pela
instituição financeira. 2.Ausência de inconformidade específica quanto ao estorno
de valores deferido em liminar e mantido na sentença. Incidentes na relação
contratual debatida as disposições do Código de Defesa do Consumidor e o
princípio da inversão do ônus da prova, incumbia ao réu a comprovação da
regularidade dos débitos efetuados por transações via Internet. 3.Danos morais
ocorrentes. Aponte de título, envio dos nomes dos demandantes a cadastros de
inadimplentes e cancelamento do cheque especial após o ajuizamento da demanda
cautelar. Reconhecido o maior abalo moral do co-autor que teve o nome
negativado após a concessão da medida obstativa de cadastramento. Manutenção,
quanto a ele, da verba reparatória de 50 salários mínimos. Redução, quanto ao
outro autor, para 30 salários mínimos. Apelo parcialmente provido. (Apelação
Cível Nº 70009506122, Décima Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS,
Relator: Orlando Heemann Júnior, Julgado em 18/11/2004)”

A desproporção da capacidade econômica entre consumidor e fornecedor é tão


grande, em regra, que impõe também, por si só, a inversão probatória, sobremaneira porque
por vezes a sede do fornecedor é em outra cidade ou mesmo em outro estado, praticamente
impossibilitando a colheita de qualquer prova pelo consumidor.
Além disso, da concentração do conhecimento tecnológico e de informação nas
mãos do fornecedor, ainda há que se considerar o fomento da contratação eletrônica por
parte destes mesmos fornecedores, eis que lhes é enormemente vantajosa a manutenção de
estabelecimentos virtuais do que reais.
Bom exemplo desta responsabilização são as falhas no serviço decorrentes de
operações não realizadas pelo consumidor, mas por um fraudador: é responsabilidade
objetiva do fornecedor de produtos e serviços, em função do risco criado, na forma dos
artigos 12 e 14 do Código de Defesa do Consumidor, eis que a invasão dos sistemas
tecnológicos por criminosos é claramente um fortuito interno, não elidente da
responsabilidade do fornecedor.

“Art. 12. O fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro, e o


importador respondem, independentemente da existência de culpa, pela reparação
dos danos causados aos consumidores por defeitos decorrentes de projeto,
fabricação, construção, montagem, fórmulas, manipulação, apresentação ou
acondicionamento de seus produtos, bem como por informações insuficientes ou
inadequadas sobre sua utilização e riscos.
§ 1° O produto é defeituoso quando não oferece a segurança que dele
legitimamente se espera, levando-se em consideração as circunstâncias relevantes,
entre as quais:
I - sua apresentação;
II - o uso e os riscos que razoavelmente dele se esperam;
III - a época em que foi colocado em circulação.
§ 2º O produto não é considerado defeituoso pelo fato de outro de melhor
qualidade ter sido colocado no mercado.
§ 3° O fabricante, o construtor, o produtor ou importador só não será
responsabilizado quando provar:
I - que não colocou o produto no mercado;
II - que, embora haja colocado o produto no mercado, o defeito inexiste;
III - a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro.”

Michell Nunes Midlej Maron 88


EMERJ – CP III Direito Civil III

“Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de


culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à
prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas
sobre sua fruição e riscos.
§ 1° O serviço é defeituoso quando não fornece a segurança que o consumidor dele
pode esperar, levando-se em consideração as circunstâncias relevantes, entre as
quais:
I - o modo de seu fornecimento;
II - o resultado e os riscos que razoavelmente dele se esperam;
III - a época em que foi fornecido.
§ 2º O serviço não é considerado defeituoso pela adoção de novas técnicas.
§ 3° O fornecedor de serviços só não será responsabilizado quando provar:
I - que, tendo prestado o serviço, o defeito inexiste;
II - a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro.
§ 4° A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a
verificação de culpa.”

Há um conceito altamente relevante à segurança nas contratações eletrônicas: o de


estado da arte. É conceito bastante fluido, que se altera com grande facilidade,
acompanhando a fluidez da tecnologia. Há uma frase de Arnoldo Medeiros da Fonseca, que
sintetiza bastante a fluidez do estado da arte: “o que hoje é fortuito, amanhã deixará de sê-
lo, pelo progresso da ciência, ou pela maior previdência humana”. Se, no futuro, o grau de
previsibilidade e evitabilidade de determinado evento danoso for elevado, ele deixará de ser
considerado fortuito externo, passando a ser elemento imanente do risco do negócio.

1.1. Responsabilidade do provedor

Há quem entenda que o provedor é responsável pelo dano se, notificado sobre uma
determinada irregularidade, deixa de buscar solucioná-la. É o caso de sites de hospedagem
de perfis, como o orkut, ou de vídeos, como o youtube, que será responsabilizado se
comunicado de determinada irregularidade, e, somente após tal notícia, deixar de atuar
coibindo-a.
De outro lado, há quem defenda que a notificação não é o marco determinante da
responsabilização: seria desde sempre responsável, ao argumento de que o seu poder de
controle sempre esteve presente, devendo atuar preventivamente, e não apensa sob
provocação.
Vale dizer, porém, que prevalece a primeira corrente, exigindo a notificação para
que haja a responsabilização, eis que há julgados que entendem neste sentido, porque crêem
que a verificação preventiva é impossível.

1.2. Aspectos da contratação eletrônica

O contrato eletrônico não é uma espécie nova, autônoma, de contrato. Trata-se, tão-
somente, de uma técnica de formação de contratos, que serão, em essência, os mesmos já
há muito praticados – compra e venda, prestação de serviços, etc. Salvo as limitações de
forma impostas no ordenamento, para alguns contratos, esta técnica poderá ser utilizada em
qualquer modalidade de contratação. Por exemplo, uma compra e venda de bem imóvel não
pode ser feita eletronicamente, ante a necessidade da escritura pública.

Michell Nunes Midlej Maron 89


EMERJ – CP III Direito Civil III

Além da internet, rede mais ampla existente, há contratações eletrônicas em redes


fechadas, as chamadas EDI – Electronic Data Interchange, redes de que fazem parte
números limitados de pessoas, normalmente envolvendo empresas. Em geral, estas
contratações envolvem relações duradouras, de longo prazo, cujo grande volume de
operações é facilitado pela rede EDI.
Quanto à forma de oferta, no contrato eletrônico, há basicamente duas modalidades:
mediante oferta ao público, ou seja, pela proposta ad incertam personam, dirigida a pessoa
incerta, mas determinável, desde que o site contenha todos os elementos essenciais do
negócio, constituindo-se, efetivamente, a proposta; A oferta ao público é a mesma que é
regida pelo CC, no artigo 429, e abordada no CDC nos artigos 30 e 31:

“Art. 429. A oferta ao público equivale a proposta quando encerra os requisitos


essenciais ao contrato, salvo se o contrário resultar das circunstâncias ou dos usos.
Parágrafo único. Pode revogar-se a oferta pela mesma via de sua divulgação, desde
que ressalvada esta faculdade na oferta realizada.”

“Art. 30. Toda informação ou publicidade, suficientemente precisa, veiculada por


qualquer forma ou meio de comunicação com relação a produtos e serviços
oferecidos ou apresentados, obriga o fornecedor que a fizer veicular ou dela se
utilizar e integra o contrato que vier a ser celebrado.”

“Art. 31. A oferta e apresentação de produtos ou serviços devem assegurar


informações corretas, claras, precisas, ostensivas e em língua portuguesa sobre
suas características, qualidades, quantidade, composição, preço, garantia, prazos de
validade e origem, entre outros dados, bem como sobre os riscos que apresentam à
saúde e segurança dos consumidores.”

E há a proposta feita entre o proponente da contratação de bens e serviços e um


sujeito determinado, o qual figura como destinatário da proposta, podendo esta ser
formulada por meio do correio eletrônico (e-mail), ou através de quaisquer outros meios de
comunicação da internet.

1.3. Classificação dos contratos eletrônicos

Há uma classificação de grande utilidade, proposta por Erica Brandini Barbagalo,


que divide os contratos eletrônicos em intersistêmicos, interpessoais e interativos. Vejamos.
Nos contratos intersistêmicos, o computador é um simples meio de comunicação,
em que as partes transpõem dados para o computador, após uma negociação prévia, muitas
vezes empreendida de forma tradicional, e apenas lançada no sistema eletrônico, sem que o
equipamento interfira na formação dessas vontades. Ocorrem com freqüência nas redes
fechadas, as citadas EDIs.
Nos interpessoais, ao contrário, o computador interage na formação da vontade e na
instrumentalização do contrato. Subdividem-se em interpessoais simultâneos, em tempo
real (como em chat ou videoconferência) – são contratos entre presentes; e interpessoais
não-simultâneos, em que há um lapso entre as manifestações das partes (como nos
contratos firmados por e-mail) – contratos entre ausentes.
Já nos contratos eletrônicos interativos, uma pessoa interage com um sistema de
processamento colocado à disposição por outra pessoa, sem que esta esteja ao mesmo

Michell Nunes Midlej Maron 90


EMERJ – CP III Direito Civil III

tempo conectada, e sem que tenha ciência imediata de que o contrato foi efetuado. São os
contratos feitos por meio dos web sites, e normalmente são também contratos de adesão.

1.4. Momento da formação do contrato eletrônico entre ausentes

Uma primeira corrente, a que se filiam José de Oliveira Ascensão, Marco Aurélio
Bezerra de Melo, Ana Paula Gambogi Carvalho, Erica Barbagalo, aplica simplesmente a
teoria da expedição, do artigo 434, usque 433, do CC:

“Art. 433. Considera-se inexistente a aceitação, se antes dela ou com ela chegar ao
proponente a retratação do aceitante.”

“Art. 434. Os contratos entre ausentes tornam-se perfeitos desde que a aceitação é
expedida, exceto:
I - no caso do artigo antecedente;
II - se o proponente se houver comprometido a esperar resposta;
III - se ela não chegar no prazo convencionado.”

Mas há uma segunda corrente, também respeitável, de Maristela Basso e Guilherme


Magalhães Martins, que adota a teoria da recepção. Isto porque a prudência deve ser o
norte principal desta forma de contratação, ante a insegurança que neste meio reina, como
já se pôde perceber. Em seu amparo, há o enunciado 173 do Conselho da Justiça Federal,
relativo ao artigo 434 do Código Civil:

“Enunciado 173, CJF: A formação dos contratos realizados entre pessoas ausentes,
por meio eletrônico, completa-se com a recepção da aceitação pelo proponente.”

De fato, a adoção da teoria da recepção minimiza os efeitos da insegurança do meio


eletrônico. E, ressalte-se, seria uma exceção, aplicável apenas aos contratos eletrônicos, e
não qualquer contrato entre ausentes.
Mesmo por isso, a ONU, por meio de sua Comissão de Direito do Comércio
Internacional, elaborou uma lei modelo sobre contratação eletrônica, Lei Modelo da
Uncitral, cujo artigo 15 dispõe que a mensagem de dados considerar-se-á expedida quando
do seu ingresso em um sistema de informação além do controle do emissor.
Acompanhando-a, a Comunidade Européia, na Diretiva 31/2000, em seu artigo 11, diz que
o contrato considera-se celebrado quando o destinatário do serviço tiver recebido do
prestador, por via eletrônica, o aviso de recepção da aceitação. No direito comparado,
portanto, a adesão à teoria da recepção é clara, no mercado eletrônico.

1.5. Lugar de formação do contrato

A regra geral do direito contratual, como se sabe, é a do locus regit actum, ou seja, o
contrato é considerado celebrado no local em que foi proposto, como deixa claro o artigo
435 do CC, e o artigo 9º, § 2º, da LICC:

“Art. 435. Reputar-se-á celebrado o contrato no lugar em que foi proposto.”

“Art. 9º Para qualificar e reger as obrigações, aplicar-se-á a lei do país em que se


constituirem.

Michell Nunes Midlej Maron 91


EMERJ – CP III Direito Civil III

§ 1º Destinando-se a obrigação a ser executada no Brasil e dependendo de forma


essencial, será esta observada, admitidas as peculiaridades da lei estrangeira quanto
aos requisitos extrínsecos do ato.
§ 2º A obrigação resultante do contrato reputa-se constituida no lugar em que
residir o proponente.”

A aplicação deste princípio, nos contratos eletrônicos, porém, leva a injustiças


inadmissíveis, especialmente na contratação internacional. Por isso é que na Convenção de
Roma sobre comércio internacional de 1980, já se previa a aplicação da legislação do país
consumidor, em casos desta sorte.
A regra, portanto, que se aplica aos contratos plurilocais, é a da aplicação da lei do
local mais favorável ao consumidor. Há um julgado fundamental sobre o tema, o prolatado
no REsp. 63.981:

“REsp 63.981. DJ 20/11/2000


DIREITO DO CONSUMIDOR. FILMADORA ADQUIRIDA NO EXTERIOR.
DEFEITO DA MERCADORIA. RESPONSABILIDADE DA EMPRESA
NACIONAL DA MESMA MARCA ("PANASONIC"). ECONOMIA
GLOBALIZADA. PROPAGANDA. PROTEÇÃO AO CONSUMIDOR.
PECULIARIDADES DA ESPÉCIE. SITUAÇÕES A PONDERAR NOS CASOS
CONCRETOS. NULIDADE DO ACÓRDÃO ESTADUAL REJEITADA,
PORQUE SUFICIENTEMENTE FUNDAMENTADO. RECURSO CONHECIDO
E PROVIDO NO MÉRITO, POR MAIORIA.
I - Se a economia globalizada não mais tem fronteiras rígidas e estimula e favorece
a livre concorrência, imprescindível que as leis de proteção ao consumidor ganhem
maior expressão em sua exegese, na busca do equilíbrio que deve reger as relações
jurídicas, dimensionando-se, inclusive, o fator risco, inerente à competitividade do
comércio e dos negócios mercantis, sobretudo quando em escala internacional, em
que presentes empresas poderosas, multinacionais, com filiais em vários países,
sem falar nas vendas hoje efetuadas pelo processo tecnológico da informática e no
forte mercado consumidor que representa o nosso País.
II - O mercado consumidor, não há como negar, vê-se hoje "bombardeado"
diuturnamente por intensa e hábil propaganda, a induzir a aquisição de produtos,
notadamente os sofisticados de procedência estrangeira, levando em linha de conta
diversos fatores, dentre os quais, e com relevo, a respeitabilidade da marca.
III - Se empresas nacionais se beneficiam de marcas mundialmente conhecidas,
incumbe-lhes responder também pelas deficiências dos produtos que anunciam e
comercializam, não sendo razoável destinar-se ao consumidor as conseqüências
negativas dos negócios envolvendo objetos defeituosos.
IV - Impõe-se, no entanto, nos casos concretos, ponderar as situações existentes.
V - Rejeita-se a nulidade argüida quando sem lastro na lei ou nos autos.”

1.6. Documento eletrônico

Segundo o autor italiano Natalino Irti, documento, além de traduzir um resíduo de


uma obra do passado, consistente numa ação humana em relação ao domínio das coisas,
pressupõe a reconstrução de um fato já transcorrido, que é trazido de volta ao plano do hic
et nunc, do agora.
A concepção da forma enquanto instrumento ou veículo de informação e de
transparência, é marcada pelo caráter não apenas de proteção, mas sobretudo pedagógico,
em relação a um dos contratantes tido como frágil. Mesmo por isso, o documento eletrônico

Michell Nunes Midlej Maron 92


EMERJ – CP III Direito Civil III

exige ainda mais reforço na sua forma, a fim de prevenir quebra de segurança, em um meio
tão aberto a violações.
Por conta disso, há institutos peculiares, como as assinaturas eletrônicas, que
servem sobretudo para provar a origem dos dados, ou seja, se a pessoa que se apresenta é
mesmo quem diz ser, e verificar se foram os mesmos alterados; e a criptografia, que
permite que seja assegurada a confidencialidade da comunicação.
O CJF, em sua IV Jornada de Direito Civil, elaborou algus enunciados pertinentes.
Veja:

“Enunciado 397, CJF: O documento eletrônico tem valor probante, desde que seja
apto a conservar a integridade do seu conteúdo e idôneo a apontar sua autoria,
independentemente da tecnologia empregada.”

“Enunciado 398, CJF: Os arquivos eletrônicos incluem-se no conceito de


‘reproduções eletrônicas de fatos ou de coisas’, do art. 225 do Código Civil, aos
quais deve ser aplicado o regime jurídico da prova documental.”

Assim, o artigo 225 do CC indica que a reprodução eletrônica de um fato é prova


documental plena:

‘Art. 225. As reproduções fotográficas, cinematográficas, os registros fonográficos


e, em geral, quaisquer outras reproduções mecânicas ou eletrônicas de fatos ou de
coisas fazem prova plena destes, se a parte, contra quem forem exibidos, não lhes
impugnar a exatidão.’

Além deste dispositivo, a Medida Provisória 2.200/01 trata do tema, e o artigo 10


deste diploma permite concluir da mesma forma:
“Art. 10. Consideram-se documentos públicos ou particulares, para todos os fins
legais, os documentos eletrônicos de que trata esta Medida Provisória.
§ 1º As declarações constantes dos documentos em forma eletrônica produzidos
com a utilização de processo de certificação disponibilizado pela ICP-Brasil
presumem-se verdadeiros em relação aos signatários, na forma do art. 131 da Lei
no 3.071, de 1o de janeiro de 1916 - Código Civil.
§ 2º O disposto nesta Medida Provisória não obsta a utilização de outro meio de
comprovação da autoria e integridade de documentos em forma eletrônica,
inclusive os que utilizem certificados não emitidos pela ICP-Brasil, desde que
admitido pelas partes como válido ou aceito pela pessoa a quem for oposto o
documento.”

1.6.1. Criptografia

A criptografia pode ser simétrica ou assimétrica. Criptografia simétrica, chamada


também de chave secreta, é a que faz uso da mesma chave para a cifragem e decifragem,
cabendo às partes, previamente, acordar um algoritmo, com a desvantagem de terem de
encontrar um modo seguro de trocá-lo.
A assimétrica, por seu turno, utiliza diferentes chaves para a cifragem e decifragem,
ocorrendo uma operação complexa, por intermédio de uma chave privada ou individual,
podendo ser lida apenas pelo destinatário e de poder exclusivo do seu titular, que, por sua
vez, encaminha ao destinatário a sua chave pública, possibilitando-lhe recompor a estrutura
original da mensagem.

Michell Nunes Midlej Maron 93


EMERJ – CP III Direito Civil III

1.6.2. Certificação digital

A certificação digital é um processo que visa a dar maior segurança ao comércio


eletrônico. Vulgarmente, se conhece a certificação digital como identidade virtual. O
conceito de certificado é o de mensagem eletrônica que se presta a confirmar um atributo
invocado por seu signatário.
A matéria da certificação digital, hoje, é regida pela citada MP 2.200/01, que criou o
ICP Brasil – Infra-estrutura de Chaves Públicas. O principal órgão desta estrutura, que é
hierarquizada, é o ITI, Instituto Nacional de Tecnologia da Informção, versado nos artigos
12 a 14, e seguintes, da MP:

“Art. 12. Fica transformado em autarquia federal, vinculada ao Ministério da


Ciência e Tecnologia, o Instituto Nacional de Tecnologia da Informação - ITI, com
sede e foro no Distrito Federal.”

“Art. 13. O ITI é a Autoridade Certificadora Raiz da Infra-Estrutura de Chaves


Públicas Brasileira.”

“Art. 14. No exercício de suas atribuições, o ITI desempenhará atividade de


fiscalização, podendo ainda aplicar sanções e penalidades, na forma da lei.”

O ITI não é, ele próprio, órgão certificador: ele desempenha papel de


regulamentação e fiscalização dos certificadores efetivos.
O certificador, portanto, é um órgão público ou privado destinado à emissão de
certificados contendo informações acerca de algum fato ou circunstância relativa ao
respectivo sujeito. A doutrina entende que são, estes certificadores, enquadrados no
conceito de fornecedor, eis que dispõe no mercado seus serviços e produtos.

1.7. Provedor

Segundo Sofia de Vasconcelos Casimiro, autora portuguesa, provedor é a pessoa


natural ou jurídica que presta atividades relacionadas ao aproveitamento da rede, de forma
organizada, com caráter duradouro e finalidade lucrativa, ou seja, a título profissional.
Destarte, o provedor desempenha uma atividade, através de contrato atípico,
semelhante à prestação de serviços – que é o contrato mais próximo do de provimento de
serviços eletrônicos.
Há quatro espécies de provedores hoje identificadas: provedores de conteúdo ou de
informação, que são intermediários entre o editor de um site e o internauta, cabendo-lhes
coletar, manter e organizar informações para acesso através da internet; provedores de
acesso, que realizam o serviço de conexão do usuário à internet; provedores de
hospedagem, que se destinam a dar alojamento às páginas ou sites, ou seja, oferecem aos
seus usuários um espaço no próprio disco rígido; e provedores de correio eletrônico, que
possibilitam a troca de mensagens entre seus usuários, reservando-lhes uma caixa postal em
um computador usualmente denominado servidor de e-mail.
Nada impede que uma mesma pessoa desempenhe mais de uma modalidade de
serviço de provedor, pelo que responderá, por cada atividade, da forma a ela atinente.
O provedor de conteúdo, deve-se ressaltar, é o que mais gera controvérsias quanto
ao alcance de sua responsabilidade pelo conteúdo postado. A posição prevalente defende

Michell Nunes Midlej Maron 94


EMERJ – CP III Direito Civil III

que, em matéria de responsabilidade extracontratual, é considerado como mero


intermediário, não respondendo pelos atos dos terceiros que utilizam seu serviço para
veicular material. Ocorre, segundo Ricardo Lorenzetti, uma indiferença quanto ao conteúdo
transportado, sendo tal provedor equiparado às empresas de telefonia – responsabilizar-lhes
seria o mesmo que imputar à empresa de telefonia o conteúdo das conversas entabuladas
por usuários.
Há posição contrária, minoritária, porém respeitável – tanto que é prevalente no
TJ/RJ –, que diz que se o provedor intervém na comunicação, dando-lhe origem,
escolhendo ou modificando o conteúdo ou selecionando o destinatário, responderá
objetivamente pelo fato do serviço, na forma do artigo 14 do CDC. Ao agir, de qualquer
forma, influenciando no conteúdo, indica que tem poder de controle sobre ele, e por isso é
responsável, desde então. De fato, havendo poder de controle sobre o conteúdo, há que ser
responsabilizado.
O STJ já se viu instado a se manifestar sobre o tema, em caso em que ocorreu a
exposição da autora, equivocadamente e sem autorização, em site de encontros na internet,
como “pessoa que se propõe a participar de programas de caráter afetivo e sexual”.
Entendendo altamente vexatória a situação, o TJ/RJ julgou procedente o pedido
indenizatório, que foi mantido pelo STJ.
Ao recorrer ao o STJ, o provedor pretendia a exclusão da incidência do CDC, ao
argumento de que seus serviços eram gratuitos, desnaturando-o como fornecedor; contudo,
com referência ao artigo 3º, § 2º, do CDC, pois o conceito de serviço ali previsto
compreende tanto a remuneração indireta como a direta, o STJ refutou tal tese. Assim,
pode-se concluir que provedor de conteúdo é, sim, fornecedor, o que ficou sedimentado no
V Congresso Brasileiro de Defesa do Consumidor, de 2000:

“O provedor de acesso à internet, gratuito ou não, é fornecedor para os efeitos do


CDC e os serviços prestados implicam relações jurídicas de consumo.”

“Art. 3° Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional


ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade
de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação,
exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.
§ 1° Produto é qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial.
§ 2° Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante
remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária,
salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista.”

Se o provedor de conteúdo procede à venda de produtos ou serviços em seu


website, aí então é que fica mais claro que responde por tais produtos como fornecedor, na
forma do artigo 3º do CDC. Quando for mero intermediário da venda, pode ser equiparado
ao comerciante, nas hipóteses do artigo 13 do CDC:

“Art. 13. O comerciante é igualmente responsável, nos termos do artigo anterior,


quando:
I - o fabricante, o construtor, o produtor ou o importador não puderem ser
identificados;
II - o produto for fornecido sem identificação clara do seu fabricante, produtor,
construtor ou importador;
III - não conservar adequadamente os produtos perecíveis.

Michell Nunes Midlej Maron 95


EMERJ – CP III Direito Civil III

Parágrafo único. Aquele que efetivar o pagamento ao prejudicado poderá exercer o


direito de regresso contra os demais responsáveis, segundo sua participação na
causação do evento danoso.”

Há um caso notório, na jurisprudência pátria, que é o caso Cicarelli vs. Youtube.


Vale transcrever a ementa e parte fulcral da decisão do TJ/SP na apelação cível
556.090.4/4-00:

“Ementa: Ação inibitória fundada em violação do direito à imagem, privacidade e


intimidade de pessoas fotografadas e filmadas em posições amorosas em areia e
mar espanhóis - Esfera íntima que goza de proteção absoluta, ainda que um dos
personagens tenha alguma notoriedade, por não se tolerar invasão de intimidades
[cenas de sexo] de artista ou apresentadora de tv - Inexistência de interesse público
para se manter a ofensa aos direitos individuais fundamentais [artigos 1o, III e 5o,
V e X, da CF] - Manutenção da tutela antecipada expedida no agravo de
instrumento n° 472.738-4 e confirmada no julgamento do agravo de instrumento n°
488.184-4/3 - Provimento para fazer cessar a divulgação dos filmes e fotografias
em websites, por não ter ocorrido consentimento para a publicação – Interpretação
do art. 461, do CPC e 12 e 21, do CC, preservada a multa diária de R$ 250.000,00,
para inibir transgressão ao comando de abstenção.
(...)
Embora seja duvidosa a responsabilidade do provedor de hospedagem sobre
ilicitudes de conteúdo, quando desconhecidas, a responsabilidade é incontroversa
quando toma conhecimento da ilicitude e deixa de atuar em prol da restauração do
direito violado.”

Quanto à responsabilidade do provedor de acesso, este igualmente responderá pelos


prejuízos causados às partes, em virtude de sua própria ação ou omissão, como prestador de
serviços de conexão, transmissão e retransmissão de informações, em relação às quais é
considerado como fornecedor.
A respeito, veja o que se concluiu no V Congresso Brasileiro de Direito do
Consumidor:

“A cláusula de não-indenizar constante dos contratos celebrados com o provedor


de acesso refere-se à responsabilidade decorrente da obrigação do provedor e não
pode ser transferida a terceiros. Desta forma, responsável será o provedor de
acesso, quando tratar-se de dano ocasionado ao consumidor por falta no serviço
prestado, não podendo escusar-se a empresa provedora de qualquer
responsabilidade, nem transferi-la a terceiros por meio de cláusula exonerativa de
responsabilidade.”

Michell Nunes Midlej Maron 96


EMERJ – CP III Direito Civil III

Casos Concretos

Questão 1

No dia seguinte à aquisição on line (através de atendimento direto em tempo real)


de um programa anti-vírus em um site da Internet, mediante o pagamento de um preço,
tendo sido o bem objeto de download no mesmo ato, o consumidor, ao verificar que o
produto não correspondeu às suas expectativas, se arrependeu do negócio, e resolveu
desfazê-lo. Pergunta-se:
a) A pretensão do consumidor encontra amparo no ordenamento jurídico
brasileiro?
b) Em que momento o contrato se considerou formado?

Resposta à Questão 1

a) O consumidor pode se valer do prazo de sete dias do artigo 49 do CDC, contados


do download do programa:

“Art. 49. O consumidor pode desistir do contrato, no prazo de 7 dias a contar de


sua assinatura ou do ato de recebimento do produto ou serviço, sempre que a
contratação de fornecimento de produtos e serviços ocorrer fora do
estabelecimento comercial, especialmente por telefone ou a domicílio.
Parágrafo único. Se o consumidor exercitar o direito de arrependimento previsto
neste artigo, os valores eventualmente pagos, a qualquer título, durante o prazo de
reflexão, serão devolvidos, de imediato, monetariamente atualizados.”

Michell Nunes Midlej Maron 97


EMERJ – CP III Direito Civil III

Há, apenas, que se atentar para a boa-fé do consumidor, que deve estar
presente, pois a má-fé não pode jamais ser premiada pela tutela jurídica.

b) Trata-se de contrato entre presentes, e, assim, sua formação ocorre com a


aceitação, que é imediatamente recebida pelo proponente, ocorrendo a comunicação
em tempo real – aplicando-se o artigo 428, I, do CC:

“Art. 428. Deixa de ser obrigatória a proposta:


I - se, feita sem prazo a pessoa presente, não foi imediatamente aceita. Considera-
se também presente a pessoa que contrata por telefone ou por meio de
comunicação semelhante;
(...)”

Questão 2

O provedor de conteúdo da página de um jornal veicula notícia expondo a


intimidade de uma famosa atriz, de forma difamatória. Diante disso, a atriz ingressa com
ação de reparação de danos, com fundamento no art. 5º, V e X da Constituição da
República. Argúi o provedor, em sua contestação, tratar-se de mero intermediário,
equiparado às companhias telefônicas em virtude do conteúdo das chamadas, diante do
que não cabe a sua responsabilização. Enfrente o argumento acima, enfatizando se o
provedor de conteúdo pode ou não ser responsabilizado por tal fato.
Resposta à Questão 2

Se o provedor de conteúdo tinha um efetivo controle sobre a informação difundida,


o que ocorreu no caso, em que lhe coube a origem da transmissão, trata-se de um ato de
produção, e não de mera intermediação dos dados. Neste caso, o provedor abandona a
posição de mero intermediário, transformando-se em gerador da informação. Logo, cabe
sua responsabilização, em virtude da ofensa à honra da autora, com fundamento nos
mencionados dispositivos constitucionais.
Veja a Apelação Cível 2003.001.17894, do TJ/RJ:

“APELACAO 2003.001.17894. DES. MURILO ANDRADE DE CARVALHO -


Julgamento: 10/02/2004 - TERCEIRA CAMARA CIVEL.
PROCESSUAL CIVIL, E CONSUMIDOR, RESPONSABILIDADE CIVIL,.
DANOS CAUSADOS PELA VIA DA INTERNET. C.D.C. ARTS. 14 E 17.
OBRIGAÇÃO DE FAZER COM PRECEITO COMINATÓRIO. HONORÁRIOS
ADVOCATICIOS. Danos causadospela internet. Pretensão da empresa de
comunicação de denunciar a lide ao provedor e de produzir provas para demonstrar
que o fato teria sido produzido por terceiro, incabível, seja pela vedação expressa
da possibilidade da ação regressivo em tema de consumidor (Lei 8.078,90 art.88 ),
seja pela inutilidade de produção de qualquer prova. uma vez reconhecida a
solidariedade de todos que se inseriram na cadeia de prestação de serviço,
mostrando que a matéria era exclusivamente de direito. Rejeição das preliminares.
Fatos ocorridos durante a estado de greve da Universidade Estadual do Norte
fluminense pela empresa de comunicações, de seu site na internet,com finalidade
de realizar enquete pública sobre a greve. Matéria desabonadora à universidade,
atribuída ao autor, então no exercicio de cargo em comissão, portanto de confiança
na instituição que, nega e o fez percorrer verdadeira via crucis para desconstituir
aquela situação e restabelecer sua própria credibilidade. Fato do serviço inegável

Michell Nunes Midlej Maron 98


EMERJ – CP III Direito Civil III

ao consumidor por equiparação ( CDC, art. 17). bem aferida a responsabilidade


solidária da prestadora de serviço. Quantum debeatur majorado a R$ 24.000,00 da
data da sentença, que se mostra proporcional e compensatório aos danos causados.
Obrigação de fazer com preceito cominatório fornecer à vítima o endereço do autor
da notícia que, a a princípio se mostra de impossível cumprimento, sem desprezar
o aspecto penal que poderia incidir nessa obrigação. Expurgo dessa parte da
sentença e encaminhamento de peças ao MP. Provimento parcial dos recursos para
essas finalidades, sem possibilidade de alteração da alíquota honorária no mínimo
legal, face praticidade da causa. Unânime.”

Questão 3

O site da empresa de arquitetura SCHEMA, contendo fotografias de seus projetos


já apresentados, é invadido por crackers, que ali inserem fotos pornográficas, causando
abalo na imagem daquela pessoa jurídica perante sua clientela e terceiros. Diante disso, a
mesma empresa ingressa com ação de reparação de danos em face do provedor de
hospedagem daquele site, que invoca o caso fortuito ou força maior, a afastar o nexo
causal entre sua atividade e o dano.
Qualifique a situação acima, julgando a ação movida pela empresa SCHEMA.

Resposta à Questão 3

O caso é de fortuito interno, não podendo ser considerado o dano sofrido pela
pessoa jurídica como algo estranho à atividade do provedor, mas sim integrante do risco
empresarial do seu negócio. A vulnerabilidade de um site não é um fato que se desencadeia
fora da esfera de atuação daquele prestador de serviços, não podendo ser afirmada a
ausência de nexo causal.
A respeito, veja o julgado na Apelação Cível 433.758-0, do TJ/MG:

“AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. PROVEDORA DE


INTERNET. HOSPEDAGEM DE SITES. INVASÃO DE HACKERS. FOTOS
PORNOGRÁFICAS. ABALO NA IMAGEM DA PESSOA JURÍDICA.
RESPONSABILIDADE CONTRATUAL. INDENIZAÇÃO.”

Vale dizer que, identificado que for o causador da invasão, a este se imputa a
responsabilidade pelo dano: poderá ser reconhecido o fato de terceiro, como dispõe o
CDC, no artigo 12, § 3º,III, e no artigo 14, § 3 º , III, já transcritos.

Michell Nunes Midlej Maron 99


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Tema X

Compra e venda I. Conceito. Classificação. Elementos. Restrições legais à celebração do contrato de compra
e venda. Invalidade da compra e venda. Efeitos da compra e venda. Tradição. Compra e venda de imóveis.
Venda ad corpus e ad mensuram. Venda em condomínio pro indiviso.

Notas de Aula18

1. Contrato de compra e venda

Os efeitos do contrato de compra e venda são determinados, no ordenamento, por


questão de política legislativa, e não da essência do contrato, ou seja: a compra e venda, no
Brasil, gera efeitos pessoais, e não reais, porque assim quis o legislador, e não porque a
essência do contrato não permite a geração de efeitos reais – tanto que, na França, estes
efeitos existem em contratos de compra e venda.
Há, pelo ensejo, três grandes sistemas de atribuição de efeitos aos contratos de
compra e venda, a saber: o alemão, o francês, e o antigo sistema soviético. Na França, a
celebração do contrato de compra e venda, ela própria, transfere a propriedade do objeto do
contrato. Na Alemanha, ao contrário, a celebração do contrato gera apenas direito
obrigacional, não transferindo desde já a propriedade, como na França – a transmissão da
propriedade só ocorre com algum ato posterior, translativo, qual seja, o registro do bem
imóvel ou a tradição do móvel. No antigo sistema soviético, por sua vez, vigia um
hibridismo, e o contrato será suficiente à transmissão da propriedade ou não a depender do
objeto: se se tratar de coisa certa, há transferência de propriedade; se coisa incerta, é
necessária a tradição.
18
Aula ministrada pelo professor Rafael Viola, em 13/2/2009.

Michell Nunes Midlej Maron 10


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Nosso sistema, como se sabe, segue o modelo alemão. Não há, no Brasil, contrato
com efeitos reais – não se confundindo com os contratos reais, a classificação do contrato
como real. E o contrato de compra e venda não foge à regra: este gera tão-somente direito
obrigacional, dependendo de atos posteriores para transmissão efetiva da propriedade. Não
se confunda a possibilidade de adjudicação compulsória, que surge com a promessa de
compra e venda irretratável, registrada e com preço pago, com efeitos reais: ainda assim é
preciso que haja o registro no cartório competente para que haja a transmissão da
propriedade.
Há, portanto, dois momentos no contrato de compra e venda: o momento de
formação e desenvolvimento e o seu cumprimento. Em uma compra e venda instantânea,
estes momentos não são tão bem definidos, pois a paga do preço e a entrega da coisa
ocorrem quase simultaneamente. Em um contrato de compra e venda parcelado, porém, se
pode perceber esta diferenciação: até o momento do pagamento integral do preço, de todas
as parcelas, e entrega definitiva da coisa, há diversas obrigações, ao lado da principal. É a
análise dinâmica da obrigação, a obrigação como um processo, já estudada.
Sendo assim, a transferência da coisa é ato de cumprimento, e não um elemento de
sua existência, validade ou eficácia.
No Brasil, esta separação entre formação e adimplemento é relativa. Na Alemanha,
é absoluta: o ato de registro ou tradição é completamente dissociado do contrato de compra
e venda, implicando em transmissão da propriedade. No Brasil, é causal, ou seja, a tradição
ou registro dependem do contrato de compra e venda que os precedeu. Veja: não realizar
tradição ou registro significa descumprir o contrato; de outro lado, a transmissão da
propriedade será anulável se o comprador não cumprir sua obrigação contratual principal,
qual seja, pagar o preço (o que denota a relatividade do registro, no Brasil).
Daí vem o conceito: contrato de compra e venda é aquele pelo qual o vendedor se
obriga a transferir a propriedade de uma coisa a outra parte, recebendo em contraprestação
o preço combinado, em dinheiro ou valor fiduciário equivalente. O contrato gera obrigação
de transferir, e não transfere, já, ele próprio, as propriedades envolvidas.
Veja o artigo 481 do CC:

“Art. 481. Pelo contrato de compra e venda, um dos contratantes se obriga a


transferir o domínio de certa coisa, e o outro, a pagar-lhe certo preço em dinheiro.”

Por características, o contrato de compra e venda é bilateral, oneroso, consensual,


mas por vezes solene, como no caso da compra e venda de imóvel de valor superior a trinta
salários-mínimos, na forma do artigo 108 do CC:

“Art. 108. Não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à


validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência,
modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta
vezes o maior salário mínimo vigente no País.”

É também comutativo, em regra, mas nada impede que seja pactuado com alea
presente, quer emptio spei, quer emptio rei speratae.
Pode ser de execução instantânea ou diferida, sujeito à estipulação pelas partes.

1.1. Elementos do contrato de compra e venda

Michell Nunes Midlej Maron 10


EMERJ – CP III Direito Civil III

Todo negócio jurídico tem elementos essenciais, elementos naturais, e,


eventualmente, elementos acidentais. São essenciais os elementos sem os quais o negócio
sequer existe – agente capaz, objeto lícito, possível e determinado ou determinável, e forma
prescrita ou não defesa em lei. Elementos naturais são aqueles que sempre estão presentes
no tipo de negócio em questão, e na compra e venda são o preço, a coisa e o consentimento.
E, por fim, pode haver elementos acidentais, pactuados pelas partes, que não são essenciais
ou mesmo referentes à natureza daquele contrato.
No contrato de compra e venda, os elementos naturais, também chamados
categoriais, podem ser derrogáveis ou inderrogáveis. Na compra e venda, como dito, são
elementos categoriais o preço, a coisa e o consentimento. O CC, a partir do artigo 483, trata
da coisa; do 486 em diante, trata do preço; e do 491 em seguida, versa sobre o
consentimento. Vejamos cada elemento em separado.

1.1.1. Coisa

Qualquer coisa pode ser objeto de compra e venda, quer seja própria ou alheia,
corpórea ou incorpórea, presente ou futura, desde que não seja bem fora do comércio.
Coisa inserida no comércio é aquela que é passível de suportar obrigações em seu
entorno.
O contrato de “compra e venda” de bem incorpórea tem nome específico: trata-se de
cessão de direitos, porque não há tangibilidade do objeto, não sendo coisa, propriamente
dita, mas bem, lato sensu. Como exemplo, a cessão de direitos patrimoniais sobre obra
imaterial, como a cessão de direitos sobre autoria de uma música.
A coisa deve ser existente, e ser determinada ou determinável, sob pena de nulidade.
Se a coisa é inexistente, o objeto é inexistente, e o contrato é nulo, por conta do artigo 166,
II, do CC:

“Art. 166. É nulo o negócio jurídico quando:


I - celebrado por pessoa absolutamente incapaz;
II - for ilícito, impossível ou indeterminável o seu objeto;
III - o motivo determinante, comum a ambas as partes, for ilícito;
IV - não revestir a forma prescrita em lei;
V - for preterida alguma solenidade que a lei considere essencial para a sua
validade;
VI - tiver por objetivo fraudar lei imperativa;
VII - a lei taxativamente o declarar nulo, ou proibir-lhe a prática, sem cominar
sanção.”

Mas a coisa futura pode ser vendida: é o caso dos contratos aleatórios emptio spei,
perfeitamente válidos. Além do contrato aleatório, pode haver mesmo compra e venda
comutativa de coisa futura, sem qualquer alea. Veja o artigo 483 do CC:

“Art. 483. A compra e venda pode ter por objeto coisa atual ou futura. Neste caso,
ficará sem efeito o contrato se esta não vier a existir, salvo se a intenção das partes
era de concluir contrato aleatório.”

Nada impede, portanto, a venda atual de coisa que virá a existir com certeza. Se esta
coisa inexistir, à época estabelecida para sua entrega, o contrato simplesmente se resolve,

Michell Nunes Midlej Maron 10


EMERJ – CP III Direito Civil III

restaurando-se as partes ao status quo ante – o surgimento da coisa na data aprazada é


condição suspensiva do contrato.
Não se admite jamais, porém, a pacta corvina, o contrato que tenha por objeto a
herança de pessoa viva. Assim veda o artigo 426 do CC:

“Art. 426. Não pode ser objeto de contrato a herança de pessoa viva.”

Como dito, pode haver a venda de coisa alheia, sem se configurar venda a non
domino. Só se pode transferir o direito que se tem, e, por isso, se não se dispõe da coisa,
não se a pode vender – esta é a venda a non domino, sem efeito perante o verdadeiro dono.
Contudo, nada impede que, estando o comprador de boa-fé, e o vendedor adquirindo a
propriedade antes do seu repasse efetivo – tradição ou registro – ao terceiro adquirente, o
contrato é perfeito. Entenda: no momento da celebração do pacto de compra e venda, que é
consensual, a coisa é alheia; contudo, quando de seu adimplemento, a coisa já será própria,
e por isso o contrato é perfeito. Veja o artigo 1.268, § 1º, do CC:

“Art. 1.268. Feita por quem não seja proprietário, a tradição não aliena a
propriedade, exceto se a coisa, oferecida ao público, em leilão ou estabelecimento
comercial, for transferida em circunstâncias tais que, ao adquirente de boa-fé,
como a qualquer pessoa, o alienante se afigurar dono.
§ 1º Se o adquirente estiver de boa-fé e o alienante adquirir depois a propriedade,
considera-se realizada a transferência desde o momento em que ocorreu a tradição.
§ 2º Não transfere a propriedade a tradição, quando tiver por título um negócio
jurídico nulo.”

Em verdade, há quatro correntes disputando a definição da venda a non domino, no


Brasil. O CC, na literalidade, dispõe que não há a alienação, como se vê no caput deste
artigo supra. No esteio da letra da lei, há corrente que defende que este contrato é
inexistente, porque a coisa objetivada não existe (eis que não está sob domínio do
alienante). Esta posição não é a mais acertada, vez que o objeto, a bem da verdade, existe,
ainda que não seja regularmente vendável.
Na França, o contrato é absolutamente nulo, ante a inidoneidade do objeto. O
código civil francês prevê esta nulidade expressamente.
Caio Mário, por seu turno, defende que o contrato seja anulável, porque nada
impede que haja sua retificação, quando o vendedor adquire a propriedade a posteriori,
antes da execução da prestação, da entrega do bem ao adquirente.
A corrente que prepondera, porém, tanto na doutrina quanto na jurisprudência
pátrias, é a que defende a ineficácia do contrato. A premissa que embasa esta corrente é
justamente a de que a transferência da propriedade é ato de execução, e não pressuposto de
validade ou existência do contrato. O contrato existe e é válido, tendo partes capazes,
objeto lícito, possível e determinado, e forma; coisa, preço e consentimento – só não pode
ser oposto ao real proprietário. Seu descumprimento – ou seja, a inexecução, por não ser
possível a transmissão da propriedade – implica apenas em reparação por perdas e danos
para o prejudicado, nos moldes do tratamento dispensado à evicção.
Veja a ementa da Apelação Cível 2006.001.10108, do TJ/RJ:

“APELACAO 2006.001.10108. DES. JOSE C. FIGUEIREDO - Julgamento:


31/01/2007 - DECIMA PRIMEIRA CAMARA CIVEL.

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EMERJ – CP III Direito Civil III

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE RITO ORDINÁRIO. PROMESSA DE


COMPRA E VENDA DE IMÓVEL. VENDA NON DOMINO. BEM ALIENADO
POR QUEM NÃO DETINHA OS PODERES INERENTES AO DOMÍNIO.
INEFICÁCIA DO NEGÓCIO JURÍDICO.RECURSO IMPROVIDO.”

Passando a outra situação, é possível a venda de coisa litigiosa. Há a assunção do


risco, pelo adquirente, de que a coisa seja dada como pertencente à parte contrária. O artigo
42 do CPC traz, inclusive, previsão dedicada a esta situação:

“Art. 42. A alienação da coisa ou do direito litigioso, a título particular, por ato
entre vivos, não altera a legitimidade das partes.
§ 1º O adquirente ou o cessionário não poderá ingressar em juízo, substituindo o
alienante, ou o cedente, sem que o consinta a parte contrária.
§ 2º O adquirente ou o cessionário poderá, no entanto, intervir no processo,
assistindo o alienante ou o cedente.
§ 3º A sentença, proferida entre as partes originárias, estende os seus efeitos ao
adquirente ou ao cessionário.”

Por fim, há ainda que se abordar a venda de protótipos ou amostras, regulada no


artigo 484 do CC:

“Art. 484. Se a venda se realizar à vista de amostras, protótipos ou modelos,


entender-se-á que o vendedor assegura ter a coisa as qualidades que a elas
correspondem.
Parágrafo único. Prevalece a amostra, o protótipo ou o modelo, se houver
contradição ou diferença com a maneira pela qual se descreveu a coisa no
contrato.”

A importância, aqui, é a questão da vinculação do vendedor à oferta,


consubstanciada na amostragem: a amostra, ou protótipo, deve representar a coisa que será
entregue, pois a coisa se vincula ao que foi exposto na amostragem. Veja que, mesmo que
este dispositivo não existisse, a vinculação seria depreendida dos deveres anexos da boa-fé
objetiva, especialmente lealdade e transparência.

1.1.2. Preço

Como dito, o preço é pago em dinheiro ou valor fiduciário equivalente. A prestação


feita em coisa diversa desnatura o contrato de compra e venda, passando a se tratar de
contrato de troca ou permuta.
Quando a prestação se fizer ver parte em dinheiro, parte em bem dado em
pagamento, qual é a natureza do contrato? A resposta dependerá da proporção das parcelas:
se a maior porcentagem da prestação for em dinheiro, manter-se-á a natureza de compra e
venda; se a maior parte da prestação for representada pelo bem diverso, transmutar-se-á em
troca ou permuta.
Havendo caso em que a proporção é exatamente a mesma, a solução será a
interpretação do contrato, a fim de, pela verificação dos interesses preexistentes e
supervenientes, se concluir por uma ou outra natureza. Ressalte-se que a diferença prática
será pouca.
Repare que se a pactuação for em dinheiro ou valor fiduciário, mas o pagamento,
quando do vencimento, for feito em bens diversos, a situação é um pouco diferente: tratar-

Michell Nunes Midlej Maron 10


EMERJ – CP III Direito Civil III

se-á de dação em pagamento, modalidade alternativa de adimplemento, que não desnatura


o contrato de compra e venda. Mesmo que seja absolutamente o mesmo efeito do contrato
de permuta, a diferença é que a pactuação, a formação do contrato, foi originalmente feita
em dinheiro ou valor fiduciário, ou seja, é compra e venda, inequivocamente – apenas paga
por meio de dação. Quando a pactuação, já na formação do contrato, é feita por meio de
bens diversos do dinheiro ou valor fiduciário, é que se tratará da permuta ou troca. A tênue
diferença reside apenas no momento da dação, ou seja, esta não desnatura a compra e venda
quando surge apenas na execução do contrato – e não na formação, quando o transforma
em troca ou permuta.
Preços fictícios descambam para a simulação: quando se atribui um valor irrisório à
coisa, o que se passa é um escamoteio de doação, e não compra e venda – mesmo que haja
o efetivo pagamento. Há que existir uma certa equivalência entre o preço e a coisa – não
exatamente, pois a variação mercadológica é obviamente tolerada –, sob pena de, havendo
desequilíbrio injustificado, haver simulação, ou mesmo exibir a presença de um vício
objetivo, como a lesão.
O preço deve ser certo. Contudo, este atributo pode vir a ser estratificado apenas
ulteriormente, após a celebração. Diversas são as formas de fixação do preço; é certo que a
mais comum é a livre estipulação pelas partes, decorrente da autonomia da vontade.
Entretanto, pode acontecer de se estabelecer cláusula potestativa, em que o preço fica
legado apenas ao arbítrio de uma das partes, caso em que o contrato será nulo, como dispõe
o artigo 489 do CC:

“Art. 489. Nulo é o contrato de compra e venda, quando se deixa ao arbítrio


exclusivo de uma das partes a fixação do preço.”

Pode haver ainda a tarifação estatal do preço, quando o governo estabelece preços
fixos, em forma de intervenção jus imperii no domínio econômico, tarifação que pode ser
também apenas para fixar pisos ou tetos, conforme o caso.
As partes podem, ainda, deixar o arbitramento do preço a um terceiro, na forma do
artigo 485 do CC:

“Art. 485. A fixação do preço pode ser deixada ao arbítrio de terceiro, que os
contratantes logo designarem ou prometerem designar. Se o terceiro não aceitar a
incumbência, ficará sem efeito o contrato, salvo quando acordarem os contratantes
designar outra pessoa.”

Uma vez escolhido o terceiro, o arbitramento feito por este não poderá ser discutido
pelas partes, qualquer que seja o resultado do arbitramento. Inclusive, a integração pelo
Judiciário, neste caso, somente poderá acontecer se houver, erro ou dolo do terceiro, ou se
este ultrapassar os limites de sua incumbência, ou, ainda, por questão de equidade, a fim de
preservar a base objetiva, o equilíbrio econômico e financeiro do contrato.
Os artigos 486 e 487 do CC, auto-explicativos, trazrm ainda outro método de
fixação do preço:

“Art. 486. Também se poderá deixar a fixação do preço à taxa de mercado ou de


bolsa, em certo e determinado dia e lugar.”

“Art. 487. É lícito às partes fixar o preço em função de índices ou parâmetros,


desde que suscetíveis de objetiva determinação.”

Michell Nunes Midlej Maron 10


EMERJ – CP III Direito Civil III

Se houver oscilação do preço estabelecido desta forma, quando não se estipular


exato momento de apuração, este se fixará pelo preço médio do índice.
Por fim, o CC trouxe uma inovação no sistema: a compra e venda sem fixação de
preço. Veja o artigo 488 do CC:

“Art. 488. Convencionada a venda sem fixação de preço ou de critérios para a sua
determinação, se não houver tabelamento oficial, entende-se que as partes se
sujeitaram ao preço corrente nas vendas habituais do vendedor.
Parágrafo único. Na falta de acordo, por ter havido diversidade de preço,
prevalecerá o termo médio.”

É na revelação de qual é o preço corrente que esta hipótese se demonstra


periclitante. O artigo cria uma presunção, baseada na praxe usual do mercado do bem
vendido, a fim de que seja composto o preço lacunoso.

1.1.3. Consentimento

Sem acordo de vontade das partes, não há contrato algum. O consentimento é o


elemento que revela a vontade, e para que possa manifestar vontade, a parte deve ser capaz.
Além da capacidade, porém, há que se falar em legitimidade para o contrato. Este
conceito, já abordado em estudos anteriores, consiste na capacidade específica para o
negócio, analisando a eventualidade de alguma vedação a que aquela pessoa, que pode ser
plenamente capaz, a faça ilegítima para o contrato a ser entabulado.
Exemplo de ilegitimidade para a compra e venda é a do ascendente que pretender
vender a descendente sem consentimento dos demais. A ilegitimidade é determinada por lei,
e para a compra e venda há dois artigos do CC que assim estipulam, o 496 e o 497:

“Art. 496. É anulável a venda de ascendente a descendente, salvo se os outros


descendentes e o cônjuge do alienante expressamente houverem consentido.
Parágrafo único. Em ambos os casos, dispensa-se o consentimento do cônjuge se o
regime de bens for o da separação obrigatória.”

“Art. 497. Sob pena de nulidade, não podem ser comprados, ainda que em hasta
pública:
I - pelos tutores, curadores, testamenteiros e administradores, os bens confiados à
sua guarda ou administração;
II - pelos servidores públicos, em geral, os bens ou direitos da pessoa jurídica a que
servirem, ou que estejam sob sua administração direta ou indireta;
III - pelos juízes, secretários de tribunais, arbitradores, peritos e outros
serventuários ou auxiliares da justiça, os bens ou direitos sobre que se litigar em
tribunal, juízo ou conselho, no lugar onde servirem, ou a que se estender a sua
autoridade;
IV - pelos leiloeiros e seus prepostos, os bens de cuja venda estejam encarregados.
Parágrafo único. As proibições deste artigo estendem-se à cessão de crédito.”

O consentimento dos descendentes deve ser expresso, não se admitindo-o na forma


tácita. Havendo descendente incapaz, ou o sendo o cônjuge, será nomeado curador.

Michell Nunes Midlej Maron 10


EMERJ – CP III Direito Civil III

O prazo para anulação da venda ilegítima, na forma do artigo 496 – eis que as
circunstâncias do artigo 497 geram nulidade, que não convalesce com o tempo – é de dois
anos, a contar da conclusão do ato, na forma do artigo 179 do CC:

“Art. 179. Quando a lei dispuser que determinado ato é anulável, sem estabelecer
prazo para pleitear-se a anulação, será este de dois anos, a contar da data da
conclusão do ato.”

Washington de Barros Monteiro defende, isoladamente, que seja aplicado o artigo


178, II, do CC, ou seja, o prazo para anulação seria de quatro anos:

“Art. 178. É de quatro anos o prazo de decadência para pleitear-se a anulação do


negócio jurídico, contado:
I - no caso de coação, do dia em que ela cessar;
II - no de erro, dolo, fraude contra credores, estado de perigo ou lesão, do dia em
que se realizou o negócio jurídico;
III - no de atos de incapazes, do dia em que cessar a incapacidade.”

As nulidades do artigo 497, como dito, não convalescem, podendo ser argüidas a
qualquer tempo, dada a importância pública das situações que as determinam. As nulidades
dos incisos I e II e IV, são absolutas, enquanto a do inciso III deve ser lida em conjunto com
o artigo 498 do CC, que relativiza este dispositivo:

“Art. 498. A proibição contida no inciso III do artigo antecedente, não compreende
os casos de compra e venda ou cessão entre co-herdeiros, ou em pagamento de
dívida, ou para garantia de bens já pertencentes a pessoas designadas no referido
inciso.”

A venda entre cônjuges é possível, desde que tenha por objeto bens que sejam
excluídos da comunhão, como dispõe o artigo 499 do CC:

“Art. 499. É lícita a compra e venda entre cônjuges, com relação a bens excluídos
da comunhão.”

A venda de coisa em condomínio indivisível encontra limitação na preempção


necessária que vige para os demais condôminos: não poderá a fração ideal do bem ser
ofertada ao mercado, sem que antes seja ofertada aos demais condôminos. Se a preferência
for ignorada, os condôminos preteridos terão seqüela da coisa onde quer que se encontre,
mediante depósito do preço. Veja o artigo 504 do CC:

“Art. 504. Não pode um condômino em coisa indivisível vender a sua parte a
estranhos, se outro consorte a quiser, tanto por tanto. O condômino, a quem não se
der conhecimento da venda, poderá, depositando o preço, haver para si a parte
vendida a estranhos, se o requerer no prazo de cento e oitenta dias, sob pena de
decadência.
Parágrafo único. Sendo muitos os condôminos, preferirá o que tiver benfeitorias de
maior valor e, na falta de benfeitorias, o de quinhão maior. Se as partes forem
iguais, haverão a parte vendida os comproprietários, que a quiserem, depositando
previamente o preço.”

Michell Nunes Midlej Maron 10


EMERJ – CP III Direito Civil III

Esta preferência é real por natureza, diferindo da preempção que é gerada para o
locatário: na relação de locação, a preferência só surge se o contrato for levado a averbação
em prazo não inferior a trinta dias, antes da alienação do imóvel. Veja o artigo 33 da Lei
8.245/91:

“Art. 33. O locatário preterido no seu direito de preferência poderá reclamar do


alienante as perdas e danos ou, depositando o preço e demais despesas do ato de
transferência, haver para si o imóvel locado, se o requerer no prazo de seis meses,
a contar do registro do ato no cartório de imóveis, desde que o contrato de locação
esteja averbado pelo menos trinta dias antes da alienação junto à matrícula do
imóvel.
Parágrafo único. A averbação far-se-á à vista de qualquer das vias do contrato de
locação desde que subscrito também por duas testemunhas.”

Vale lembrar que a preferência, do condomínio indiviso, vige para casos em que a
indivisibilidade for natural ou pactuada, da mesma forma.

1.2. Obrigações contratuais

As obrigações do devedor, no contrato de compra e venda, como já se pôde notar,


são: entregar a coisa, transferindo-lhe a propriedade; e garantir a efetividade do direito
sobre a coisa (o devedor respondendo pelos vícios redibitórios e pela evicção). A obrigação
do comprador é uma só: pagar o preço. Não sendo este pago, a exceção do contrato não
cumprido pode ser invocada – pois é ele quem deve prestar sua obrigação em primeiro
lugar. Veja o artigo 491 do CC:

“Art. 491. Não sendo a venda a crédito, o vendedor não é obrigado a entregar a
coisa antes de receber o preço.”

Esta norma não é cogente, mas meramente dispositiva, nada impedindo que as
partes pactuem inversão na ordem de prestações.
O artigo 495 do CC contempla a chamada exceção de inseguridade, especificamente
no contrato de compra e venda:

“Art. 495. Não obstante o prazo ajustado para o pagamento, se antes da tradição o
comprador cair em insolvência, poderá o vendedor sobrestar na entrega da coisa,
até que o comprador lhe dê caução de pagar no tempo ajustado.”

Apesar de o artigo não dizer, a doutrina é pacífica em admitir o inverso: se quem


demonstrar insolvência for o devedor, pode o comprador sobrestar o pagamento do preço
até que a coisa seja entregue, ou prestada caução.

1.3. Teoria dos riscos no contrato de compra e venda

A perda da coisa por fortuito ou força maior é imputável a quem tiver o domínio
desta: res perit domino. Por isso, até a tradição ou registro, o risco é do vendedor; depois,
passa às mãos do comprador, juntamente com a propriedade. Se o credor é quem está em
mora accipiendi, inverte-se a dinâmica dos riscos, na forma do artigo 492, § 2º, do CC:

Michell Nunes Midlej Maron 10


EMERJ – CP III Direito Civil III

“Art. 492. Até o momento da tradição, os riscos da coisa correm por conta do
vendedor, e os do preço por conta do comprador.
§ 1º Todavia, os casos fortuitos, ocorrentes no ato de contar, marcar ou assinalar
coisas, que comumente se recebem, contando, pesando, medindo ou assinalando, e
que já tiverem sido postas à disposição do comprador, correrão por conta deste.
§ 2º Correrão também por conta do comprador os riscos das referidas coisas, se
estiver em mora de as receber, quando postas à sua disposição no tempo, lugar e
pelo modo ajustados.”

1.4. Venda ad corpus e ad mensuram

As modalidades de venda ad corpus e ad mensuram vêm previstas no artigo 500, e


tem aplicação apenas à venda de imóveis. Veja:

“Art. 500. Se, na venda de um imóvel, se estipular o preço por medida de extensão,
ou se determinar a respectiva área, e esta não corresponder, em qualquer dos casos,
às dimensões dadas, o comprador terá o direito de exigir o complemento da área, e,
não sendo isso possível, o de reclamar a resolução do contrato ou abatimento
proporcional ao preço.
§ 1º Presume-se que a referência às dimensões foi simplesmente enunciativa,
quando a diferença encontrada não exceder de um vigésimo da área total
enunciada, ressalvado ao comprador o direito de provar que, em tais
circunstâncias, não teria realizado o negócio.
§ 2º Se em vez de falta houver excesso, e o vendedor provar que tinha motivos
para ignorar a medida exata da área vendida, caberá ao comprador, à sua escolha,
completar o valor correspondente ao preço ou devolver o excesso.
§ 3º Não haverá complemento de área, nem devolução de excesso, se o imóvel for
vendido como coisa certa e discriminada, tendo sido apenas enunciativa a
referência às suas dimensões, ainda que não conste, de modo expresso, ter sido a
venda ad corpus.”

A venda de imóveis pode se dar de duas formas: ou é calcada na extensão do bem


vendido, em razão das suas dimensões, quando então é chamada venda ad mensuram – caso
em que as dimensões do imóvel são fundamentais ao contrato; ou é baseada no bem em si,
na coisa especificada, denominando-se venda ad corpus – caso em que as dimensões do
bem não são determinantes para o contrato, sendo meramente enunciativas.
Exemplo de negócio ad corpus é a venda de um apartamento: é bem determinado,
específico, e suas dimensões são apenas um de seus atributos, tendo pouca ou nenhuma
importância se há mais ou menos um metro quarado. Exemplo de negócio ad mensuram é a
compra e venda de um terreno em um loteamento, em que a metragem é o atributo principal
do imóvel.
Na venda ad mensuram, a complementação das dimensões que diferirem da
negociada para a efetivamente percebida é devida ao comprador. Se não for possível, a
resolução ou o abatimento do preço podem ser opções, mas veja que não há uma tríplice
alternativa para o comprador: pela vigência do princípio da conservação dos negócios
jurídicos, só há resolução se a complementação ou o abatimento do preço não forem
satisfatórios, na casuística (se o imóvel, com metragem menor, não lhe for útil, por
exemplo).
A ação para impugnar a venda ad mensuram, pelo comprador prejudicado, não é a
estimatória, quanti minoris, tampouco a redibitória, porque esta ação tem por causa de

Michell Nunes Midlej Maron 10


EMERJ – CP III Direito Civil III

pedir a presença de vício redibitório, e a diferença nas medidas não é fruto de vício, e sim
inadimplemento contratual. Por isso, a ação é a denominada ex empto, por inadimplemento
contratual.
Havendo, na venda ad mensuram, situação inversa, ou seja, havendo metragem
efetiva maior do que a pactuada, o vendedor não poderá reclamar-lhe a diferença, em regra.
Assim o é porque se presume que o vendedor, proprietário original da coisa, tem
conhecimento desta e de suas dimensões. Só poderá reclamar a diferença se comprovar que,
por motivos razoáveis e plausíveis, ignorava a medida exata do imóvel. Neste caso, aplica-
se o § 2º do artigo supra.
Este artigo 500 do CC não se aplica à venda feita judicialmente, porque o bem é
dado prévia e exaustivamente à análise pelo adquirente.
Na venda ad corpus, o comprador não tem os direitos que existem na ad mensuram,
porque o escopo do negócio não se fundava nas medidas do bem, e sim na sua
especificidade.
O § 1º do artigo em comento cria uma presunção: a venda é considerada ad corpus
se a diferença é inferior à medida ali apontada, um vinte avos da área anunciada. Trata-se
de presunção relativa, porém, podendo ser afastada pela prova da relevância da metragem.
A ação ex empto tem prazo de um ano, a contar do registro do negócio, na forma do
artigo 501 do CC:

“Art. 501. Decai do direito de propor as ações previstas no artigo antecedente o


vendedor ou o comprador que não o fizer no prazo de um ano, a contar do registro
do título.
Parágrafo único. Se houver atraso na imissão de posse no imóvel, atribuível ao
alienante, a partir dela fluirá o prazo de decadência.”

Michell Nunes Midlej Maron 110


EMERJ – CP III Direito Civil III

Casos Concretos

Questão 1

Antonio adquiriu um automóvel de Bernardo, com certificado de registro de


licenciamento expedido pelo DETRAN. Seis meses após a compra, o veículo foi apreendido
pela polícia, porque era produto de furto ocorrido no estado de São Paulo. Devolvido o
automóvel para Francisco, o primitivo proprietário, Antonio moveu-lhe ação, visando
sentença declaratória e constitutiva do seu direito de propriedade, cumulada com
reintegração de posse do veículo. Alega ter adquirido o veículo de boa-fé pelo que é válida
e eficaz a aquisição.
A pretensão de Antonio pode ser acolhida? Resposta fundamentada.

Resposta à Questão 1

A despeito de ser imprópria a ação de reintegração de posse, eis que se trata de


pretensão petitória reivindicatória, em que se discute a propriedade, e não a posse, mesmo
se houvesse ajuizado a ação competente não receberia provimento. É que Antônio adquiriu
bem a non domino, de quem não era dono, não podendo perseguir a coisa nas mãos do
verdadeiro proprietário: o contrato é ineficaz perante este proprietário.
A Antônio resta apenas buscar a composição de seus danos em face do alienante que
não era proprietário.
Veja como se posicionou o TJ/RJ:

“APELACAO 1994.001.04279. DES. SERGIO CAVALIERI FILHO - Julgamento:


27/09/1994 - SEGUNDA CAMARA CIVEL.
COMPRA E VENDA DE VEICULO. VEICULO DE PROCEDENCIA
CRIMINOSA. APREENSAO DE VEICULO POR AUTORIDADE POLICIAL.
ADQUIRENTE DE BOA FE.
COMPRA E VENDA. Aquisição de Veículo Roubado. Inoponibilidade ao
Verdadeiro Dono. Registro no DETRAN Falso. Presunção de Propriedade elidida.
A compra e venda é forma derivada de aquisição e, como tal, pressupõe a
propriedade daquele que transfere a coisa. Se o alienante não mais detem o
domínio da coisa vendida, ou sequer foi o seu titular, não pode transmití-la ao

Michell Nunes Midlej Maron 111


EMERJ – CP III Direito Civil III

adquirente, por isso que ninguém transmite mais direitos do que tem. O registro do
veículo no Departamento de Trânsito estabelece mera presunção "juris tantum" de
propriedade, presunção essa elidida ante a prova de ter sido o veículo roubado e
falsamente registrado no Rio. Recurso desprovido.”

Tema XI

Compra e venda II. Cláusulas especiais da compra e venda. Retrovenda. Venda a contento e venda sujeita a
prova. Preempção ou preferência. Venda com reserva de domínio. Venda sobre documentos. Troca ou
permuta.

Notas de Aula19

1. Retrovenda

Retrovenda consiste na cláusula pela qual o vendedor pode reaver o imóvel, em


limite máximo de três anos, restituindo o preço e todas as demais despesas contratuais ao
comprador20.
A restituição do preço e demais acessórios comporta tudo o que foi despendido na
operação inicial, tal como a feitura da escritura, a tributação, etc. O STJ entende que há
atualização monetária incidente sobre estes valores, também, sob pena de enriquecimento
sem causa do vendedor que exerce a retrovenda. Destarte, o preço, o ITBI, o custo da
escritura e do registro, as certidões, todas estas despesas devem ser restituídas de forma
atualizada pelo vendedor ao comprador. Veja o REsp. 104.828:

“RETROVENDA. CORREÇÃO MONETARIA. BENFEITORIAS.


1. NÃO CONTRARIA A REGRA DO ART. 1.140 DO CODIGO CIVIL O
JULGADO QUE MANDA APURAR AS BENFEITORIAS E COMPUTAR A
CORREÇÃO MONETARIA NA FASE DE LIQUIDAÇÃO DA SENTENÇA.
2. O PARADIGMA RELATIVO A UMA IMPUGNAÇÃO AO VALOR DA
CAUSA, ALCANÇANDO EMBORA NEGOCIO JURIDICO IGUAL, A
RETROVENDA, NÃO SERVE PARA CONFIGURAR O DISSIDIO.
3. RECURSO ESPECIAL NÃO CONHECIDO.”

O instituto da retrovenda é bastante criticado, porque é um instrumento que pode


dar margem à simulação da agiotagem, maquiando a usura. Veja: o limite aos juros

19
Aula ministrada pelo professor Fábio de Oliveira Azevedo, em 4/2/2009.
20
O exercício da retrovenda não é fato imponível tributário do ITBI, vez que não há transmissão de
propriedade, mas apenas o resgate da posse do bem que foi vendido.

Michell Nunes Midlej Maron 112


EMERJ – CP III Direito Civil III

remuneratórios entre civis ou entidades não-financeiras é de um por cento (ou, segundo o


STJ, do valor da Selic). Ocorre que pode, o agiota, conseguir burlar esta limitação por meio
da retrovenda: simulam, este e o indivíduo que precisa do empréstimo, uma compra e venda
com cláusula de retrovenda, de imóvel pertencente ao demandante do empréstimo, sob a
condição de pagamento de valor exacerbado quando do exercício da retrovenda – podendo
burlar em muito, na estipulação deste valor, o limite dos juros. Sendo este o caso, o
simulacro poderá ser argüido pelo prejudicado, a fim de nulificar a relação 21. Sobre isto,
veja o REsp. 285.296:

“COMPRA E VENDA. Retrovenda. Simulação. Medida Cautelar.


- É cabível o deferimento de medida liminar para suspender os efeitos de escritura
de compra e venda de imóveis que teria sido lavrada com o propósito de encobrir
negócio usurário. Fatos processuais que reforçam essa idéia. Conveniência, porém,
de que seja prestada caução ( art. 804 do CPC ). Recurso conhecido em parte e
nessa parte provido.”

O artigo 505 do CC, sede do instituto, trata apenas da retrovenda em compra e


venda de bens imóveis. Contudo, é pacífico na doutrina o cabimento de retrovenda em
compra e venda de bem móvel, mas esta cláusula, liberada pela autonomia privada criativa
dos contratos, não será regida pelo tratamento legal da retrovenda, que se atém apenas a
imóveis. Veja:

“Art. 505. O vendedor de coisa imóvel pode reservar-se o direito de recobrá-la no


prazo máximo de decadência de três anos, restituindo o preço recebido e
reembolsando as despesas do comprador, inclusive as que, durante o período de
resgate, se efetuaram com a sua autorização escrita, ou para a realização de
benfeitorias necessárias.”

Veja que a condição potestativa pura, que deixa ao critério exclusivo de um dos
contratantes o seu implemento, é em regra inadmissível; a retrovenda é um dos poucos
exemplos excepcionais de condição potestativa pura plenamente lícita e admissível. Decidir
se o resgate do bem vai se realizar ou não depende apenas do vendedor original, e não há
problema quanto a isto, pois é exceção legal à ilicitude das condições puramente
potestativas.
O exercício da cláusula de retrovenda, em caso de recusa pelo comprador original,
responde ao artigo 506 do CC:

“Art. 506. Se o comprador se recusar a receber as quantias a que faz jus, o


vendedor, para exercer o direito de resgate, as depositará judicialmente.
Parágrafo único. Verificada a insuficiência do depósito judicial, não será o
vendedor restituído no domínio da coisa, até e enquanto não for integralmente
pago o comprador.”

Assim, é cabível ação judicial cuja pretensão consistirá na obtenção de uma


sentença substitutiva da vontade, com base no artigo 466-B do CPC, que operará o resgate:

21
O CC de 2002, diferentemente do CC de 1916, não restringe a possibilidade de alegação da simulação de
uma parte contra a outra, sobretudo porque a simulação inocente passa a ser invalidante, podendo haver
enriquecimento sem causa se não se permitir tal legitimidade.

Michell Nunes Midlej Maron 113


EMERJ – CP III Direito Civil III

“Art. 466-B. Se aquele que se comprometeu a concluir um contrato não cumprir a


obrigação, a outra parte, sendo isso possível e não excluído pelo título, poderá
obter uma sentença que produza o mesmo efeito do contrato a ser firmado.”

Parte da doutrina defende o cabimento de adjudicação compulsória, aqui, mas este


termo, que por esta corrente é usado de forma genérica, se atém mais tecnicamente aos
casos do Decreto 58/37, à ação de adjudicação compulsória propriamente dita.
A retrovenda somente será oponível erga omnes se for registrado em cartório o
pacto que a contiver. Mas repare: como o tratamento legal se destina apenas à compra e
venda de imóveis, a retrovenda sempre será oponível erga omnes, porque sempre constará
de contrato público, registrado, pois toda compra e venda de imóveis é feita por escritura
pública. Assim se depreende do artigo 507 do CC:

“Art. 507. O direito de retrato, que é cessível e transmissível a herdeiros e


legatários, poderá ser exercido contra o terceiro adquirente.”
É simples: a doutrina costuma condicionar a oponibilidade erga omnes ao registro
do contrato que contém esta cláusula, mas isto ocorrerá naturalmente, porque o direito
refere-se a bem imóvel, cuja aquisição pressupõe registro.

2. Venda a contento e venda sujeita a prova

A venda a contento consiste na cláusula que suspende a eficácia do negócio jurídico


até que ocorra a manifestação de agrado pelo comprador. Veja o artigo 509 do CC:

“Art. 509. A venda feita a contento do comprador entende-se realizada sob


condição suspensiva, ainda que a coisa lhe tenha sido entregue; e não se reputará
perfeita, enquanto o adquirente não manifestar seu agrado.”

Já a venda sujeita a prova consiste na modalidade em que se sujeita a eficácia do


negócio jurídico à constatação de qualidade do bem. Veja o artigo 510 do CC:

“Art. 510. Também a venda sujeita a prova presume-se feita sob a condição
suspensiva de que a coisa tenha as qualidades asseguradas pelo vendedor e seja
idônea para o fim a que se destina.”

A diferença entre os institutos reside na natureza da condição que se impõe à


eficácia: enquanto na venda a contento a condição é o agrado do comprador, na venda
sujeita a prova a condição é a qualidade do bem vendido.
Exemplos são bem-vindos: a compra de um vinho de estirpe condicionada à sua
qualidade, quando aberta a garrafa, é exemplo de venda sujeita a prova; a compra de um
veículo sujeita a um período de teste pelo comprador é venda a contento.
Mas perceba que o limiar entre uma e outra espécie é muito tênue. Se a venda do
vinho, por exemplo, for relacionada não à qualidade do bem, mas à qualidade para o
adquirente, deixa de ser sujeita a prova para passar a ser venda a contento.
Veja que na venda a contento, a condição é potestativa, mas não é puramente
potestativa, porque se defende que o agrado, a satisfação com o bem, extrapola o limite da
vontade do adquirente, escapando-lhe ao arbítrio – é involuntário. Assim se coloca Caio
Mário, dentre outros.

Michell Nunes Midlej Maron 114


EMERJ – CP III Direito Civil III

Parte dos autores, como Marco Aurélio Bezerra de Melo, porém, defende que seja
puramente potestativa, ao argumento de que o agrado é do exclusivo arbítrio do adquirente.
Na venda sujeita a prova, não há potestatividade alguma: a condição é inerente à
qualidade da coisa, completamente alheia à vontade de qualquer das partes. A eficácia da
compra e venda não fica condicionada apenas ao agrado do comprador, como na venda a
contento, dependendo, ao contrário, da demonstração de que a coisa reúne qualidades
essenciais ao seu fim, ao seu préstimo. A venda a contento é uma cláusula de análise
subjetiva, enquanto a venda sujeita aprova é objetivamente analisada.

3. Preempção, ou preferência

A preempção pode ser uma cláusula convencional ou legal. Na sede do estudo


contratual, o foco, por óbvio, é na preempção condicional, eis que cláusula que pode ou não
se fazer constar nos contratos. Pelo ensejo, porém, há que se mencionar o exemplo mais
clássico de preempção legal, constante do artigo 27 da Lei 8.245/91:

“Art. 27. No caso de venda, promessa de venda, cessão ou promessa de cessão de


direitos ou dação em pagamento, o locatário tem preferência para adquirir o imóvel
locado, em igualdade de condições com terceiros, devendo o locador dar - lhe
conhecimento do negócio mediante notificação judicial, extrajudicial ou outro
meio de ciência inequívoca.
Parágrafo único. A comunicação deverá conter todas as condições do negócio e,
em especial, o preço, a forma de pagamento, a existência de ônus reais, bem como
o local e horário em que pode ser examinada a documentação pertinente.”

Se o contrato de locação for registrado, ao menos trinta dias antes da alienação,


pode o locatário preterido na alienação realizar adjudicação compulsória, depositando o
preço.
A preempção legal na Lei de Locações integra o patrimônio do locatário, e qualquer
cláusula que vise a afastar este direito será nula, por fraudar a lei imperativa. E veja que se
trata e lei cogente, mesmo versando sobre interesse eminentemente privado, por conta da
leitura do artigo 48 da Lei 8.245/91:

“Art. 45. São nulas de pleno direito as cláusulas do contrato de locação que visem
a elidir os objetivos da presente lei, notadamente as que proíbam a prorrogação
prevista no art. 47, ou que afastem o direito à renovação, na hipótese do art. 51, ou
que imponham obrigações pecuniárias para tanto.”

Mas veja que esta previsão é dedicada exclusivamente aos contratos de locação, o
que desperta esta nulidade apenas nesta seara; em outras preempções, não se veda o
afastamento da preferência por vontade das partes. Outra exceção, no entanto, em que a
elisão do direito de preferência é igualmente nula, é quando o negócio que cria direito de
preempção a tiver afastada por cláusula de renúncia em contrato de adesão – em contrato
paritário, é direito patrimonial disponível, que pode ser afastado.
Na preempção convencional, cria-se uma cláusula de preferência, na qual o
vendedor de um bem recebe a faculdade de haver a coisa antes de qualquer outra pessoa,
caso o comprador de coisa móvel ou imóvel venha a vendê-la novamente. Esta cláusula se
presta a socorrer o alienante que tem pretensão a reaver o bem, recomprá-lo no futuro.

Michell Nunes Midlej Maron 115


EMERJ – CP III Direito Civil III

Diferentemente da retrovenda, na qual o regramento legal é dedicado apenas à


alienação de bens imóveis (sendo, como dito, livre a pactuação da retrovenda em alienação
de bens móveis, mas sem amparo legal), na preempção convencional há tratamento legal
englobando tanto bens móveis como imóveis. Veja o artigo 513 do CC:

“Art. 513. A preempção, ou preferência, impõe ao comprador a obrigação de


oferecer ao vendedor a coisa que aquele vai vender, ou dar em pagamento, para
que este use de seu direito de prelação na compra, tanto por tanto.
Parágrafo único. O prazo para exercer o direito de preferência não poderá exceder
a cento e oitenta dias, se a coisa for móvel, ou a dois anos, se imóvel.”

Aqui surge uma discussão sobre o prazo da preferência. Veja o que dispõe o
parágrafo único do artigo supra, e o teor do artigo 516 do CC:

“Art. 516. Inexistindo prazo estipulado, o direito de preempção caducará, se a


coisa for móvel, não se exercendo nos três dias, e, se for imóvel, não se exercendo
nos sessenta dias subseqüentes à data em que o comprador tiver notificado o
vendedor.”

Apesar de parecer uma antinomia, na verdade são situações diferentes: no artigo


513, há previsão do prazo máximo de vigência da preferência. Significa que não se pode
convencionar direito de preferência que exista por mais de cento e oitenta dias ou dois anos,
para bens móveis ou imóveis, respectivamente. No artigo 516, o que se estabelece não é o
prazo máximo de vigência da preempção, e sim o prazo máximo para efetivação da
preferência, quando o alienante por a coisa à venda.
É simples: o vendedor que tem preferência pode exercê-la, se ocorrer a venda pelo
comprador, em limite de dois anos ou cento e oitenta dias, não podendo ser convencionada
preempção por prazo maior que estes. Não havendo alienação qualquer, no prazo máximo
que a lei impõe, o direito de preferência deixa de existir. Caso haja efetiva alienação, a
preempção pode ser invocada em não mais do que três ou sessenta dias, respectivamente a
bens móveis ou imóveis.
Não podem ser ultrapassados estes prazos, mas nada impede que haja estipulação de
prazos inferiores.
O descumprimento da cláusula de preferência gera apenas perdas e danos,
independentemente de registro do pacto continente de tal cláusula.

4. Retrocessão

Veja o artigo 519 do CC:

“Art. 519. Se a coisa expropriada para fins de necessidade ou utilidade pública, ou


por interesse social, não tiver o destino para que se desapropriou, ou não for
utilizada em obras ou serviços públicos, caberá ao expropriado direito de
preferência, pelo preço atual da coisa.”

A retrocessão não permite que o expropriado pretenda reivindicatória do bem,


jamais: o STJ entende que não cabe reivindicação contra o poder público, restando ao
desapropriado a solução das perdas e danos. Veja a ementa do REsp. 43.651:

Michell Nunes Midlej Maron 116


EMERJ – CP III Direito Civil III

“ADMINISTRATIVO - DESAPROPRIAÇÃO - TREDESTINAÇÃO - DESVIO


DE FINALIDADE: PERDAS E DANOS - ART. 1.150 DO CC.
1. Resolve-se em perdas e danos o conflito surgido com o desvio de finalidade do
bem expropriado.
2. Evidenciado o desvio de bem que, destinado à construção de uma quadra
esportiva, veio a ser cedido para construção de "Loja Maçônica". Infringência ao
art. 1.150 do Código Civil.
3. REsp conhecido e provido.”

Sendo dada finalidade diferente, ao bem expropriado, daquela constante como


motivo da desapropriação, mas a finalidade real for de cunho igualmente social, não há que
se falar em retrocessão. Só haverá direito de retrocessão se o bem expropriado for
tredestinado, ou seja, se a finalidade a que se prestou efetivamente não for nem de longe
social. Veja o REsp. 13.363 e o REsp. 7.683, pela ordem:
“ADMINISTRATIVO - RETROCESSÃO - INDENIZAÇÃO.
1. Afasta-se a hipótese de retrocessão, se não houve desvio de finalidade.
2. Obra realizada e posteriormente abandonada não gera retrocessão.
3. Recurso não conhecido.”

“ADMINISTRATIVO. DESAPROPRIAÇÃO.
- RETROCESSO. DESCABIMENTO QUANDO O BEM EXPROPRIADO TEM
DESTINO DIVERSO DO DECLARADO NO DECRETO EXPROPRIATORIO,
MANTENDO, POREM, DESTINAÇÃO PUBLICA DO MESMO GENERO.”

5. Venda com reserva de domínio

Consiste em uma cláusula inserida em contrato de alienação de coisa móvel, na qual


o vendedor mantém a propriedade até que ocorra o pagamento do preço.
Esta cláusula não se confunde com a alienação fiduciária em garantia, ou com o
penhor de veículos, ou com o arrendamento mercantil.
Na alienação fiduciária em garantia, o possuidor direto, adquirente, obteve a
propriedade, inicialmente, e deu o bem à instituição financeira, em garantia de que pagará o
preço, quando então voltará a ser proprietário. Assim, há propriedade resolúvel da
instituição financeira, pois a condição “paga do preço” põe fim à propriedade da instituição
e concentra-a no adquirente. Na alienação, o comprador torna-se proprietário, e transfere
seu direito real como garantia do adimplemento. Por isso, difere-se da reserva de domínio,
na qual o comprador nunca foi proprietário, não chega a titularizar o direito real, tendo a
posse, mas tendo apenas a expectativa de propriedade futura.
No arrendamento mercantil, existe um contrato misto, que não gera a aquisição da
propriedade, mas apenas confere ao arrendatário a possibilidade de tornar-se proprietário,
se assim preferir, dadas as três opções que lhe pertinem ao final: adquirir o bem, prorrogar
o arrendamento, ou devolver o bem ao proprietário.
Há que se abordar, aqui, o conceito mais amplo de negócio fiduciário. Consiste em
um negócio que, representado por um determinado contrato, busca fins não aparentemente
atinentes a tal contrato – não sendo ilícita, esta aparente simulação. Bom exemplo é
justamente o leasing: o arrendatário não pretende locar o bem; pretende comprar o bem.
Sobremaneira, é ainda mais evidente esta finalidade real quando há a famigerada
antecipação do valor residual de garantia, que é uma espécie de antecipação do preço que
será pago quando do exercício da opção futura pela aquisição do bem. Mesmo por isso, o
consumidor teria que ter direito ao tratamento dado à compra e venda parcelada, o que

Michell Nunes Midlej Maron 117


EMERJ – CP III Direito Civil III

implicaria, por exemplo, em redução proporcional dos juros se o pagamento das parcela for
adiantado. Mas assim não se tem entendido na jurisprudência, havendo mesmoa súmula
293 do STJ a ilustrar:

“Súmula 293, STJ: A cobrança antecipada do valor residual garantido (VRG) não
descaracteriza o contrato de arrendamento mercantil.”

Veja que não há simulação: é um arrendamento mercantil, em todos os aspectos; o


que há é a sua utilização para a finalidade de aquisição de um bem, finalidade diversa da
tipicamente almejada na operação.
Por fim, no penhor de veículos, a diferença é ainda mais brutal: neste, há um direito
real de garantia sobre coisa alheia, ou seja, não se trata sequer de transmissão de posse.
6. Venda sobre documentos

Consiste na substituição da coisa vendida por um título que a representa. Aqui,


opera-se a chamada tradição simbólica, traditio longa manus, na qual um documento
representa a coisa, sendo considerada entregue a posse pela entrega do documento.
A partir da entrega do documento, há posse, e há proteção possessória possível ao
adquirente.

7. Troca ou permuta

Neste contrato, aplicam-se todas as regras da compra e venda, à exceção da despesa


de transmissão, que é dividida entre os contratantes na transferÊncia dos bens, além de ser
anulável a troca de valores desiguais entre ascendentes e descendentes, sem consentimento
dos demais descendentes. Veja o artigo 533 do CC:

“Art. 533. Aplicam-se à troca as disposições referentes à compra e venda, com as


seguintes modificações:
I - salvo disposição em contrário, cada um dos contratantes pagará por metade as
despesas com o instrumento da troca;
II - é anulável a troca de valores desiguais entre ascendentes e descendentes, sem
consentimento dos outros descendentes e do cônjuge do alienante.”

Veja a seguinte casuística: se há a aquisição de um imóvel de um valor alto, sendo


dado sessenta por cento do preço em dinheiro, e quarenta por cento em um outro imóvel,
qual a natureza deste contrato? Trata-se de um contrato de compra e venda, no qual há
pagamento parcial por meio da dação. Mas assim o é porque prevalece a natureza jurídica
do contrato preponderante, qual seja, a pura compra e venda, pois que a maior parte do
contrato se deu por meio de pagamento do preço em dinheiro. Se os valores fossem
invertidos, ou seja, fosse maior o valor do bem dado do que o dinheiro dado, a natureza do
contrato seria de permuta, pela preponderância desta troca no pacto. Se forem iguais as
proporções, há presunção de que haja compra e venda.

Michell Nunes Midlej Maron 118


EMERJ – CP III Direito Civil III

Casos Concretos

Questão 1

Arlindo ajuíza, em face de Manoel, ação de nulidade da venda de imóvel, em que


constava pacto de retrovenda.
Sustenta que o valor da avença foi inferior ao de mercado, e o contrato teria sido
realizado, na verdade, em razão do pedido de empréstimo feito por ele a Manoel, com
prazo de pagamento de um ano.
Em contestação, o réu invoca o princípio da autonomia da vontade e nega a
simulação ao fundamento de que Arlindo concordou com o negócio e não pode, agora,
alegá-la em seu favor.
Decida a questão.
Resposta à Questão 1

Na vigência do artigo 167 do novel codex civil, nada impede que haja esta argüição
da simulação por um dos participantes do negócio simulado. Se ficar provado que a compra
e venda esconde um mútuo feneratício com juros ilegais, será declarada nula.

Questão 2

Antonio adquiriu de Benedito o automóvel X, que deveria lhe ser entregue no prazo
de 15 dias, devidamente regularizado no DETRAN. Pago o preço integralmente e vencido
o prazo, o veículo não foi entregue, o que levou Antonio a mover ação para compelir
Benedito a fazer a entrega do veículo.
Em resposta, alega Benedito que o veículo não lhe pertence, mas sim a Otávio, fato
esse que sempre foi do conhecimento de Antonio; alega ainda ser nula a venda a non
domino, pelo que não pode ser compelido a transferir o veículo a Antonio.
Como você decidiria a questão. Resposta fundamentada.

Resposta à Questão 2

O inadimplemento da obrigação de dar possibilita a tutela específica consistente na


busca e apreensão do bem móvel, ou imissão na posse do bem imóvel. A venda a non
domino, para o STJ, não gera inexistência do pacto, mas sim ineficácia m relação ao

Michell Nunes Midlej Maron 119


EMERJ – CP III Direito Civil III

verdadeiro dono, o que não impede que haja busca e apreensão entre as partes da compra e
venda – só que será infrutífera, vez que o verdadeiro dono terá seqüela sobre o bem,
mediante ação reivindictória.
Veja o julgado da apelação cível 1994.001.2289:

“COMPRA E VENDA. VENDA A NON DOMINO. CONTRATO. VALIDADE.


RESSARCIMENTO DOS DANOS. COMPRA E VENDA. VENDA A NON
DOMINO.
Validade do Contrato Entre as Partes e Ineficácia Em Relação ao Proprietário da
Coisa. Inadimplemento. Perdas e Danos. A venda de coisa alheia não colide com o
sistema brasileiro, uma vez que o contrato de compra e venda cria apenas a
obrigação de transferir a propriedade da coisa vendida. Se o vendedor, até o
momento da pratica do ato translativo, consegue adquirir a coisa para fazer ao
comprador a entrega prometida, cumprirá especificamente a obrigação; caso
contrária, haverá inadimplemento, que resolve-se em perdas e danos. Provimento
do recurso.”

Vale consignar que há quem defenda que o contrato a non domino é nulo, como
Clóvis Bevillacqua, e por isso não seria possível ao adquirente requerer busca e apreensão
em face do alienante, cabendo apenas perdas e danos, eis que o juiz pronunciaria a nulidade
até mesmo de ofício. Caio Mário ainda entende que seria anulável, e não nulo, cabendo
argüição pelo interessado.

Michell Nunes Midlej Maron 12


EMERJ – CP III Direito Civil III

Tema XII

Promessa de compra e venda. Cessão da promessa de compra e venda. Efeitos do registro imobiliário.
Forma e prova do contrato.

Notas de Aula22

1. Promessa de compra e venda

Este tema tem íntima relação com o estudo dos contratos preliminares, bem como o
instituto do direito real de aquisição. Isto porque a promessa de compra e venda é apenas
uma espécie do gênero contrato preliminar, e o registro da promessa faz surgir o direito real
de aquisição do bem prometido. Façamos, então, uma análise sob dupla ótica deste
instituto, a obrigacional e a real, sob a seguinte premissa: toda promessa de compra e venda
envolve relação obrigacional, mas nem toda gera o citado direito real de aquisição (sem
registro, há contrato, mas não há direito real).
Como bem comanda a técnica didática, abordaremos o assunto partindo do gênero –
contrato preliminar – até alcançar a espécie, promessa de compra e venda.
Por conceito, contrato preliminar é o negócio jurídico bilateral pelo qual as partes se
comprometem a celebrar um outro contrato, que será denominado como definitivo. Parece
ser uma figural jurídica bastante burocrática, pela simples razão de que a sua pactuação se
demonstra objetivamente inútil: o promitente não encontra motivos outros para realizar a
contratação preliminar senão a falta de confiança na futura contratação definitiva, tendo que
resguardar sua expectativa de contrato final por meio de um pré-contrato, capaz de exercer
vinculação da vontade do outro contratante.
O motivo para a realização de uma promessa de compra e venda, por exemplo, é a
dificuldade em pagar preço integral de plano, o que impõe o parcelamento prévio à compra
e venda definitiva, no curso da promessa de compra e venda; ou a falta de condições
formais de realização da compra e venda definitiva, como quando o imóvel ainda está em
construção, por exemplo.
Todo contrato seria passível de celebração em contrato preliminar, havendo apenas
uma divergência grande acerca da promessa de doação. Isto porque a liberalidade, nota
definidora da doação, não poderia, criteriosamente, sofrer coerção judicial, quando o

22
Aula ministrada pelo professor Fábio de Oliveira Azevedo, em 4/2/2009.

Michell Nunes Midlej Maron 12


EMERJ – CP III Direito Civil III

promitente-doador se negasse a efetivar a doação definitiva. Mas há quem entenda cabível,


sendo questão que divide até mesmo o próprio STJ.
Entenda: o primeiro posicionamento, de parte do STJ, entende ser inválida a
promessa de doação, por se tratar de um negócio naturalmente retratável, vez que ninguém
pode ser compelido a praticar uma liberalidade. A doutrina apóia, majoritariamente, esta
tese. Caio Mário, por exemplo, entende que esta é a regra, de fato, sendo inválida a
promessa de doação, mas faz uma ressalva: se se tratar de doação com encargo, é possível a
sua pactuação em contrato preliminar, e será exigível o cumprimento, na forma da coerção
para pactuação do contrato definitivo.
Instado sobre o assunto, o STJ encontrou uma outra hipótese excepcional de
admissibilidade da promessa de doação: aquela feita em contemplação dos filhos ou da
cônjuge quando da separação judicial, como meio de pôr fim ao processo litigioso. A
Segunda Seção do STJ decidiu, por maioria, pela invalidade das promessas e doação,
excepcionando apenas a hipótese em que a promessa de doação constar de acordo de
separação judicial, homologado este acordo judicialmente (excluindo, aparentemente, o
caso de acordo extrajudicial, pois o que faz cabível no acordo judicial é justamente a
necessidade de que a chancela jurisdicional não seja em vão, porque se considerada
inválida significaria que a homologação judicial foi fútil).
O segundo posicionamento, minoritariamente acolhido também no STJ, defendido
por Marco Aurélio Bezerra de Melo, julga que toda promessa de doação se torna
obrigatória, na medida em que já contém, em si mesma, o exercício da liberalidade. O
animus donandi já está ínsito na promessa, apenas se confirmando na contratação
definitiva.
Outro fundamento pela admissibilidade da promessa de doação, este de Fábio
Azevedo, seria o próprio tu quoque invocável em face do promitente-doador que, ao negar-
se a cumprir a prestação – fazer a doação definitiva –, está atuando em clara contradição,
beneficiando-se da conduta prévia ilícita para o fim de, com a conduta posterior,
desobrigar-se – é clara violação à boa-fé objetiva. Mas este raciocínio só pode ser
construindo em se partindo da premissa de que o ato de promessa de doação é ilícito, pois
que se o entender como lícito, o instituto a ser invocado será o venire contra factum
proprium.
O artigo 187 do CC é o dispositivo que se levantaria contra o promitente
inadimplente: este artigo é uma barreira contra toda pretensão que extrapole
manifestamente o limite da boa-fé, especificamente a confiança que o promitente-doador
criou no promissário-donatário. Trata-se de claro exercício abusivo do direito.
É fato que a exigência de cumprimento da promessa de doação parece ser a opção
mais justa, porque do contrário se estará permitindo que quem celebre este instrumento crie
expectativas na outra parte, podendo inadimplir à vontade, escorado na invalidade do pacto
por ilicitude do objeto (recaindo na invocação do tu quoque ou do venire contra factum
proprium).
Em síntese: se se entender ilícita a promessa de doação, se entenderá,
modernamente, que ainda assim há que se indenizar o promitente-donatário pela
expectativa frustrada pela inadimplência do promitente-doador, com base no tu quoque, e
no abuso de direito; se se entender que a promessa é válida, se a poderá exigir
especificamente, com base na doutrina que entende que a liberalidade já se operou na

Michell Nunes Midlej Maron 12


EMERJ – CP III Direito Civil III

própria promessa; ou demandar indenização, com base no venire contra factum proprium,
levando ao abuso de direito.
Se o homem casado realiza promessa de compra e venda sem o consentimento de
sua mulher, a antiga outorga uxória, atual vênia conjugal, será válido? Antes do CC de
2002, seria claramente inválido, mas hoje é perfeito. Veja: o contrato preliminar cria uma
relação obrigacional, e o consentimento do cônjuge não é exigível para aperfeiçoamento de
uma relação obrigacional: é exigência para alienações, apenas, de bens imóveis. Mas veja
que dependerá do regime de bens, porque se o contrato definitivo, qualquer que seja, exige
a outorga, esta é exigida também para o contrato preliminar, pois todos os requisitos do
definitivo, à exceção da forma, são exigidos para o preliminar.

1.1. A polêmica acerca do registro

O registro da promessa de compra e venda é ou não obrigatório? Mais


especificamente: para permitir a adjudicação compulsória, é exigido o registro da
promessa?
A questão é altamente intrincada. Sérgio Cavalieri, acompanhado pelo STJ, defende
que esta medida, a adjudicação compulsória, só pode ser realizada com a efetivação do
registro, em qualquer hipótese, quer esteja o bem prometido em poder do promitente ou já
em poder de terceiros. Sem o registro, caberia, outrossim, a ação de outorga de escritura
definitiva23.
Para o STF, a orientação é a mesma: só se permitirá a adjudicação compulsória se
houver o registro, com base nas súmulas 167, 168 e 413 desta Corte. Veja:

“Súmula 167, STF: NÃO SE APLICA O REGIME DO DECRETO-LEI 58, DE


10/12/1937, AO COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA NÃO INSCRITO
NO REGISTRO IMOBILIÁRIO, SALVO SE O PROMITENTE VENDEDOR SE
OBRIGOU A EFETUAR O REGISTRO.”

“Súmula 168, STF: PARA OS EFEITOS DO DECRETO-LEI 58, DE 10/12/1937,


ADMITE-SE A INSCRIÇÃO IMOBILIÁRIA DO COMPROMISSO DE
COMPRA E VENDA NO CURSO DA AÇÃO.”

“Súmula 413, STF: O COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEIS,


AINDA QUE NÃO LOTEADOS, DÁ DIREITO À EXECUÇÃO
COMPULSÓRIA, QUANDO REUNIDOS OS REQUISITOS LEGAIS.”

Não sendo registrado, não acude ao promitente-comprador saída outra senão as


perdas e danos.
Esta posição do STF, entretanto, é anterior às evoluções sobre o tema, pois que este
foi retirado da alçada do STF e posto à alçada do STJ. Esta corte, agora detentora da
competência para o tema, emitiu as súmulas 84 e 239:

“Súmula 84, STJ: É ADMISSIVEL A OPOSIÇÃO DE EMBARGOS DE


TERCEIRO FUNDADOS EM ALEGAÇÃO DE POSSE ADVINDA DO
23
Grande parte da doutrina – por todos, Marco Aurélio Bezerra de Melo – defende que estas ações, a
adjudicação compulsória e a outorga de escritura definitiva, sequer guardam diferenças entre si.

Michell Nunes Midlej Maron 12


EMERJ – CP III Direito Civil III

COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA DE IMOVEL, AINDA QUE


DESPROVIDO DO REGISTRO.”

“Súmula 239, STJ: O direito à adjudicação compulsória não se condiciona ao


registro do compromisso de compra e venda no cartório de imóveis.”

Vê-se, então, que o STJ entende que cabe a adjudicação compulsória em face do
promitente-vendedor, se porventura o bem estiver em seu poder, mesmo sem registro (mas
não em face do terceiro adquirente, se houver, se não registrada a promessa). O STJ deu,
assim, uma feição pessoal a esta ação. O CJF, no enunciado 30, acompanha este raciocínio:

“Enunciado 30, CJF: A disposição do parágrafo único do art. 463 do novo Código
Civil deve ser interpretada como fator de eficácia perante terceiros.”

Ocorre que, suscitando ainda mais questionamentos, vêm os artigos 1.417 e 1.418
do CC e estabelecem que a adjudicação compulsória só é possível se há registro. Veja:

“Art. 1.417. Mediante promessa de compra e venda, em que se não pactuou


arrependimento, celebrada por instrumento público ou particular, e registrada no
Cartório de Registro de Imóveis, adquire o promitente comprador direito real à
aquisição do imóvel.”

“Art. 1.418. O promitente comprador, titular de direito real, pode exigir do


promitente vendedor, ou de terceiros, a quem os direitos deste forem cedidos, a
outorga da escritura definitiva de compra e venda, conforme o disposto no
instrumento preliminar; e, se houver recusa, requerer ao juiz a adjudicação do
imóvel.”

Promitente-comprador titular de direito real é aquele que levou a promessa a


registro. Destarte, somente com este registro surge o direito real, e o correspondente direito
à adjudicação compulsória. Está em claro desalinho, esta previsão legal, com as súmulas do
STJ.
O STJ tem, de fato, duas posições: a sumulada, e a recente adotada posição de
Sérgio Cavalieri. A súmula 239 é reputada como errônea pelo relator do precedente mais
recente, que entende que quando a súmula menciona adjudicação compulsória, deveria
mencionar a ação de outorga de escritura definitiva.
É diante desta confusão interpretativa que ganha ainda mais força a posição de
Sérgio Cavalieri, já citada: sendo descabida a adjudicação compulsória, por ausência do
registro, o que somente se resolveria em perdas e danos para o promitente-comprador agora
lhe permite a tutela específica, na forma da ação de outorga de escritura definitiva, que não
é ação de feição real, e sim pessoal – prescindindo do registro.
Vale diferenciar brevemente estas ações:a adjudicação compulsória é uma ação real,
que busca o bem, por seqüela, e por isso exige registro, vez que transforma o direito real de
aquisição em direito real de propriedade; a outorga de escritura definitiva é ação pessoal, na
qual a sentença produz o mesmo efeito do contrato a ser firmado, ou seja, se o bem não está
no domínio de terceiros, mas ainda com o promitente-vendedor, o efeito é o mesmo da
adjudicação – a sentença será levada a registro. Os pedidos mediatos são diferentes: na
adjudicação, o pedido é a obtenção da propriedade; na outorga de escritura, o pedido é por
uma sentença que se equipara ao contrato de compra e venda definitivo, o qual ainda pode
ser inadimplido.

Michell Nunes Midlej Maron 12


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Sintetizando o entendimento: apesar da literalidade do artigo 1.418 do CC, continua


a predominar o entendimento da súmula 239 do STJ, uma vez que a eficácia do contrato
entre as partes independe de registro, porque o artigo 1.418 refletiu a posição do STF,
quando este era competente para a matéria, desalinhando-se do entendimento do STJ.
Washington de Barros Monteiro, ao contrário, defende a interpretação literal do artigo
1.418 do CC, assim como o STF o fazia, terminando apenas com a solução em perdas e
danos. E a última corrente, de Sérgio Cavalieri, defende a distinção entre a adjudicação
compulsória e a ação de outorga de escritura definitiva, pois a primeira exige registro. Na
adjudicação, a sentença transforma o direito real à aquisição em direito real de propriedade,
enquanto na outorga de escritura definitiva a sentença é substitutiva da vontade, e produz o
mesmo efeito do contrato a ser celebrado – a compra e venda definitiva –, com as mesmas
vicissitudes que este contrato pode sofrer, inclusive a inadimplência. Em suma, esta terceira
corrente defende que não é possível adjudicação compulsória, mas não é necessária a
solução das perdas e danos, vez que cabe a ação de outorga de escritura definitiva.
O STJ, em sua mais recente posição, também defende esta distinção entre as ações,
razão pela qual o artigo 1.418 do CC deve ser interpretado literalmente, cabendo apenas a
outorga de escritura quando não houver registro24.

1.2. Cessão de promessa de compra e venda

A cessão de promessa não é cessão de crédito, nem assunção de dívida. Trata-se de


figura extraordinária, pois o Título II do Livro I da parte especial do CC somente regula a
assunção de dívida e a cessão de crédito como formas de transmissão das obrigações. Pela
autonomia privada, é possível, porém, esta negociação atípica, consistente na cessão da
posição contratual, a chamada cessão do contrato. No caso da cessão de promessa de
compra e venda, a negociação ganha a alcunha de trespasse.
A diferença mais marcante, aqui, em relação à cessão de crédito ou assunção de
dívida é a substituição do pólo contratual. Veja que na cessão de contrato, o pólo se altera,
deixando de ser integrante aquele que cede; nos demais institutos, isto não acontece.
Poder-se-ia confundir este instituto com a novação subjetiva ativa, mas não se
podem misturar os conceitos: a novação é forma de extinção da obrigação, fazendo surgir
uma nova, enquanto na cessão do contrato há apenas a substituição do pólo, mantendo-se o
mesmíssimo contrato vigente.
O STJ tem admitido, inclusive, a cessão de contrato sem necessidade de anuência
do pólo oposto.

24
Faço consideração particular: o artigo 1.418 do CC, se interpretado literalmente, não difere quanto ao
cabimento das ações ali previstas. Ali, literalmente, atribui uma ou outra ação ao mesmo sujeito, o promitente-
comprador titular de direito real. Pode-se, portanto, diferenciar a admissibilidade das ações diante da
existência ou não do registro, pela natureza da ação, real ou pessoal. Mas não se fale em interpretação literal
do artigo, pois ali, gramaticalmente, ambas são condicionadas ao registro, pois ambas são facultadas apenas
ao promitente que é titular de direito real, ou seja, aquele que é detentor de promessa registrada.

Michell Nunes Midlej Maron 12


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Casos Concretos

Questão 1

Em 1987 foi celebrado uma Promessa de Compra e Venda sem a anuência do


cônjuge do promitente vendedor.
Ajuizada a competente ação, o cônjuge do promitente vendedor logrou que a
referida Promessa de Compra e Venda fosse desfeita por sentença.
Especifique os efeitos da resolução do ato, para cada uma das partes, levando em
conta que o promitente comprador pagou integralmente as respectivas parcelas.

Resposta à Questão 1

Em 1987, quando da celebração do contrato em voga, prevalecia a orientação no


STJ de que a outorga era dispensável, por se tratar de simples relação jurídica obrigacional.
Destarte, à época, o contrato não seria desfeito.
De outra forma seria se o contrato fosse firmado na vigência do CC de 2002, pois a
outorga seria necessária se o promitente-vendedor fosse casado em regime de bens diverso
da separação absoluta. Sendo assim, não estando presente este requisito fundamental, in
casu, há nulidade, na forma do artigo 166, VII, do CC:

“Art. 166. É nulo o negócio jurídico quando:


(...)
VII - a lei taxativamente o declarar nulo, ou proibir-lhe a prática, sem cominar
sanção.”

Aplica-se esta nulidade implícita, virtual, por não ser aplicável a sanção do artigo
1.649 do CC, que trata apenas da compra e venda, e não da promessa de compra e venda –
não havendo anulabilidade por não haver sanção cominada para tal falta de requisito.

“Art. 1.649. A falta de autorização, não suprida pelo juiz, quando necessária (art.
1.647), tornará anulável o ato praticado, podendo o outro cônjuge pleitear-lhe a
anulação, até dois anos depois de terminada a sociedade conjugal.
Parágrafo único. A aprovação torna válido o ato, desde que feita por instrumento
público, ou particular, autenticado.”

Destarte, as partes deverão voltar ao status quo ante, devendo ser devolvido o preço
pago, sendo indenizáveis, inclusive, pelo promitente vendedor, os eventuais prejuízos

Michell Nunes Midlej Maron 12


EMERJ – CP III Direito Civil III

causados ao cônjuge, e também a retenção, pelo promitente-vendedor, de quantia que evite


o enriquecimento sem causa do promitente-comprador, se exerceu moradia no imóvel, sem
nada pagar.
Veja o que disse o TJ/RJ, na apelação cível 2007.001.49901:

“IMÓVEIS - PROMESSA DE VENDA E COMPRA RESCISÃO DO NEGÓCIO -


PARCELAS INTEGRALMENTE PAGAS - RESTITUIÇÃO - RETENÇÃO DE
PERCENTUAL PELO USO E GOZO - RAZOABILIDADE - DANO MORAL -
INOCORRÊNCIAA resolução de comum acordo, declarada por sentença, do
instrumento particular de promessa de venda e compra, ante a falta de anuência do
cônjuge do promitente vendedor, além de restituir as partes litigantes ao estado
anterior, implica a devolução das parcelas integralmente pagas pelo promissário
comprador, o qual, pelos mais de vinte anos que usou e dispôs dos imóveis e para
evitar o enriquecimento injusto, deve compensar pecuniariamente os proprietários.
Pelas peculiaridades que o caso apresentou e tendo em conta que não foi realizada
pesquisa de mercado a título de aluguel, razoável o percentual de 10% (dez por
cento) sobre a quantia a ser devolvida. Para a configuração do dano moral é
necessária a agressão à dignidade da pessoa humana, causando-lhe vexame, abalo
psicológico, humilhação e outras dores que perturbem sobremaneira o espírito, o
que não se vislumbrou na espécie, devendo ser aplicado o disposto na Súmula 75
deste Tribunal: O simples descumprimento de dever legal ou contratual, por
caracterizar mero aborrecimento, em princípio, não configura dano moral. Juros
legais incidentes a partir da citação, quando o promitente vendedor foi constituído
em mora. Apelação parcialmente provida e recurso adesivo prejudicado.”

Michell Nunes Midlej Maron 12


EMERJ – CP III Direito Civil III

Tema XIII

Doação: Conceito, formação e classificação. Promessa de doação. Aceitação presumida. Cláusula de


reversão. Doação remuneratória. Doação modal. Doação ao nascituro. Doação ao incapaz. Doação com
cláusulas restritivas ao exercício da propriedade. Adiantamento da legítima. Doação propter nuptias e
doação ao convivente. Doação com cláusula de reversão. Doação universal. Doação com reserva de
usufruto. Doação inoficiosa. Doação do cônjuge adúltero. Doação conjuntiva e o direito de acrescer.
Revogação da doação por descumprimento do encargo e por ingratidão do donatário.

Notas de Aula25

1. Doação

O conceito de doação está insculpido no artigo 538 do CC:

“Art. 538. Considera-se doação o contrato em que uma pessoa, por liberalidade,
transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para o de outra.”

Veja que salta aos olhos a diferença estrutural, na análise redacional, ao menos, da
doação em relação à compra e venda. Vale comparar esta redação do artigo supra com a do
artigo 481 do CC:

“Art. 481. Pelo contrato de compra e venda, um dos contratantes se obriga a


transferir o domínio de certa coisa, e o outro, a pagar-lhe certo preço em dinheiro.”

Na doação, o legislador optou por usar o termo “transfere”, enquanto na compra e


venda se valeu da expressão “se obriga a transferir”. Ocorre que a doação, para a doutrina
majoritária, não é um contrato real – apesar de haver quem assim a repute –, e o uso do
termo “transfere”, ali, não significa que não surja um direito obrigacional. De fato, consiste
apenas m uma imprecisão legislativa, pis é exatamente isto que ocorre: a doação faz surgir
um direito obrigacional, ou seja, o doador se obriga a transferir o bem para o patrimônio do
donatário.
A doação é um contrato, e não um ato unilateral. A doação só se aperfeiçoa pela
convergência das vontades, do doador em obrigar-se a transferir o bem, e do donatário em
recebê-lo. A doação não é imposta ao donatário.

1.1. Caracteres da doação

25
Aula ministrada pelo professor Leonardo de Andrade Matietto, em 5/2/2009.

Michell Nunes Midlej Maron 12


EMERJ – CP III Direito Civil III

A doação é um contrato unilateral, na medida que apenas o doador tem alguma


obrigação a ser cumprida, qual seja, a entrega do bem. A doação com encargo não
transmuta esta natureza: o encargo não é uma contraprestação, como se verá adiante;
continua havendo apenas uma obrigação, do doador – o encargo consistindo em apenas
uma restrição à liberalidade, um minus em relação ao conceito de obrigação. Se houver
contraprestação, deixa de ser doação.
A doação é, em regra, um contrato gratuito, porque apenas uma das partes, o doador,
conta com depleção patrimonial. Aqui sim, todavia, há que se considerar uma alteração
promovida pela presença de encargo: a doação com encargo é considerada onerosa. Isto
porque, mesmo que com muito menor abalo, o patrimônio do donatário também sofrerá
depleção, ônus material qualquer, ainda que infinitamente menor que o acréscimo advindo
da doação.
A doação é um contrato formal, por simples imposição legal do artigo 541 do CC:

“Art. 541. A doação far-se-á por escritura pública ou instrumento particular.


Parágrafo único. A doação verbal será válida, se, versando sobre bens móveis e de
pequeno valor, se lhe seguir incontinenti a tradição.”

Se a doação envolver bem imóvel, impõe-se ainda a escritura pública, como se vê


no artigo 108 do CC:

“Art. 108. Não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à


validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência,
modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta
vezes o maior salário mínimo vigente no País.”

O parágrafo único do artigo 541, supra, traz uma exceção peculiar: neste caso,
denominado pela doutrina como doação manual de pequeno valor, tem-se entendido que se
trata de um contrato real: a tradição é imposta para que haja o contrato26.
A definição de pequeno valor depende de interpretação casuística. É um conceito
aberto. Mesmo por isso, há casos bastante peculiares, em que, se tomando por base a pessoa
do doador, se entendeu que um valor fosse pequeno, sendo que este valor poderia ser
enorme se doado por outra pessoa menos abastada. É critério bastante subjetivo, e assim
deve ser.

1.2. Elementos da doação

Os elementos da compra e venda são bem conhecidos: coisa, consenso e preço.


Comparativamente, os elementos da doação são similares, apenas um variando um pouco:
coisa, consenso e liberalidade, ao invés de preço.
26
Em que pese ser amplamente reconhecida esta natureza real na doutrina, faço aqui uma consideração
particular. Se se tomar por norte a tripartição Pontiana do negócio jurídico, a natureza real de um contrato é
medida no plano da existência: o contrato é real se para existir demanda tradição, não bastando o consenso.
No caso da doação manual de pequeno valor, o dispositivo em questão fala em validade da doação verbal, o
que significa que a análise do plano da existência já foi superada, reputando-se existente o contrato de doação
verbal de pequeno valor, mas condicionando sua validade, apenas, à tradição incontinenti – o que,
criteriosamente, o reputaria como contrato consensual, e não real. A tradição é uma condição de validade, e
não de existência, pela leitura deste dispositivo. Fica a crítica.

Michell Nunes Midlej Maron 12


EMERJ – CP III Direito Civil III

O primeiro elemento é a coisa. Veja que o CC não fala “coisa”; fala em “bens ou
vantagens”. Assim o é porque podem ser doados tanto bens materiais, corpóreos, quanto
imateriais, incorpóreos. Destarte, açambarca, este conceito, muito mais hipóteses do que o
conceito de coisa.
O segundo elemento, o consenso, significa a própria essência do contrato, que deve
ter ambas as vontades manifestas, do doador em dar o bem, e do donatário em aceitá-lo.
Contudo, aqui se apresenta uma problemática a ser enfrentada. O CC de 1916 era mais
rigoroso neste ponto: o consenso era essencial, ou seja, fosse o donatário incapaz, ele
deveria ser representado, pelos pais, tutor, ou curador. O novo CC não traz esta exigência.
Vale aqui analisar os artigos 542 e 543 do novel codex:

“Art. 542. A doação feita ao nascituro valerá, sendo aceita pelo seu representante
legal.”

“Art. 543. Se o donatário for absolutamente incapaz, dispensa-se a aceitação, desde


que se trate de doação pura.”

O artigo 542, na verdade, não oferece questionamento, pois há consenso, ainda que
manifesto por representante. É o artigo 543 que se mostra um tanto estranho, ao dispensar a
aceitação para que se forme o contrato, na doação pura ao incapaz.
O que se diz é que este artigo criou uma aberração. Muito melhor teria andado o
legislador se, ao contrário, também condicionasse a formação do contrato à manifestação
do representante do incapaz. O que se diz, na doutrina, é que há suposição, presunção, de
que toda doação pura beneficia o incapaz, e por isso a aceitação seria presumida, mas não é
difícil vislumbrar hipóteses diversas de doações puras que não seriam de nenhum proveito
para o incapaz, subvertendo a lógica deste artigo – a doação de um automóvel velho e
imprestável, por exemplo.
Mas veja que não há muitos problemas práticos nesta situação, porque o
representante do incapaz pode simplesmente recusar a doação, o que não contraria o
dispositivo, pois por este não é vedada – ao contrário, é um dever de zelo imposto ao
representante (havendo conflito de interesses, o Judiciário dirimirá).
O último elemento, preço, que na doação substitui-se pela liberalidade, precisa de
um pouco mais de atenção. Enquanto o preço é de fácil identificação, na compra e venda,
como causa do contrato de compra e venda para o vendedor, a liberalidade é também a
causa do contrato para o doador: este só doa o bem para atender a seu animus donandi.
Enquanto o vendedor quer atender a seu ânimo em haver o preço, sendo esta a causa do
contrato de compra e venda, o doador quer atender seu ânimo de prestar sem nada receber,
sendo a liberalidade a causa de sua contratação.

1.3. Promessa de doação

A questão que paira sobre este instituto é se é cabível ou não um contrato preliminar
quando o contrato definitivo for um contrato gratuito.
A doutrina clássica afirma que não é possível a promessa e doação, pela simples
razão que não se pode exigir, na inadimplência, o cumprimento forçado de uma
liberalidade. Não se poderia sequer cogitar de uma adjudicação compulsória de um bem
prometido em doação, por exemplo.

Michell Nunes Midlej Maron 13


EMERJ – CP III Direito Civil III

Nos divórcios e separações em juízo, é muito comum que surjam, como condições
para feitura de acordos, promessas de doação de bens de um dos cônjuges para o outro, ou
para os filhos, promessas feitas como cláusulas dos acordos de separação. Esta promessa, se
fosse seguida à risca a tese da doutrina clássica, seria ineficaz. O STJ, quando instado a se
manifestar sobre este caso, digladiou-se em divergências, mas a Segunda Seção, julgando
embargos de divergência, acabou pacificando o posicionamento desta Corte: é eficaz, esta
promessa, neste caso específico.
Mesmo que a posição clássica ainda seja majoritária, há uma nova corrente que
defende o cabimento da promessa de doação, de forma ampla, e não apenas na casuística
enfrentada pelo STJ. Maria Celina Bodin de Moraes, por exemplo, é uma que defende que,
diante da nova perspectiva civil-constitucionalista dos contratos, sobremaneira sob o
espectro da boa-fé, não se permite que expectativas legitimas criadas na outra parte sejam
tão facilmente descartadas, ou seja, a frustração de expectativas pelo inadimplemento não
pode ser isenta de reprimendas. Por isso, a promessa de doação deve ser cumprida, assim
como qualquer contrato. É entendimento ainda minoritário, mas tremendamente coerente.

1.4. Doação presumida

Veja o que dispõe o artigo 539 do CC:

“Art. 539. O doador pode fixar prazo ao donatário, para declarar se aceita ou não a
liberalidade. Desde que o donatário, ciente do prazo, não faça, dentro dele, a
declaração, entender-se-á que aceitou, se a doação não for sujeita a encargo.”

O artigo traz uma hipótese de silêncio qualificado, sendo este entendido como
anuência à doação, se pura, e com prazo de aceitação ou refuto estipulado pelo doador.
Como se sabe, o silêncio é ausência de manifestação de vontade, mas quando a lei
ou a vontade das partes atribui valor ao silêncio, este exprime o sentido que se lhe conferiu.

1.5. Cláusula de reversão

Segundo o artigo 547 do CC, o doador pode estipular que os bens doados voltem ao
seu patrimônio, se o donatário vier a falecer antes do doador. Se esta cláusula não for feita
presente, a regra geral do droit de saisine se aplica, e o bem doado passa ao patrimônio dos
herdeiros. Veja:

“Art. 547. O doador pode estipular que os bens doados voltem ao seu patrimônio,
se sobreviver ao donatário.
Parágrafo único. Não prevalece cláusula de reversão em favor de terceiro.”

É claro que se o doador falecer antes do donatário, a cláusula perde o objeto, e os


bens ficam com o donatário, passando aos herdeiros quando da futura morte daquele.
O parágrafo estabelece a vedação da reversão a terceiros, limite legal que determina
que a reversão é personalíssima, somente podendo favorecer ao próprio doador, e mais
ninguém.

1.6. Doação remuneratória

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EMERJ – CP III Direito Civil III

O artigo 540 do CC pode suscitar perplexidade, mas a observação detalhada


espanca qualquer dúvida. Veja:

“Art. 540. A doação feita em contemplação do merecimento do donatário não


perde o caráter de liberalidade, como não o perde a doação remuneratória, ou a
gravada, no excedente ao valor dos serviços remunerados ou ao encargo imposto.”

Parece que cria, o artigo, uma doação com causa diversa da mera liberalidade, mas
assim não é. A doação remuneratória ainda é uma liberalidade pura, mas motivada por
gratidão, e não pela simples liberalidade. É uma doação eivada de sentimento de gratidão,
mas não é contraprestação por serviço ou bem prestado pelo donatário. É, ainda, uma
liberalidade.

1.7. Doação modal

No contrato de doação, podem surgir elementos acidentais do negócio jurídico,


quais sejam, condição, termo ou encargo. Senão há nenhum destes elementos, a doação é
pura. Se há condição, é doação condicional; se há termo, é doação a termo; e se há
encargo, é doação modal (pois que encargo, em latim, se traduz no termo modus).
A doação modal, com encargo, é também chamada doação onerosa, como já se
anteviu. Isto porque o encargo, segundo a doutrina, é uma restrição à liberalidade, seja para
afirmar o destino que se deve dar à coisa doada, seja para atribuir ao donatário uma
prestação de pequeníssima monta, se comparada ao bem doado.
Destarte, pode-se ter como exemplo de doação modal a doação de uma casa, com a
imposição de manter o jardim intacto; ou a doação desta casa com a imposição de não
alterar a fachada.
O encargo deve ser significativamente menor do que a liberalidade, sob pena de se
configurar como contraprestação. Quando o encargo superar a liberalidade, ou for de tal
monta insuportável que desnature a doação, pode ser reduzido judicialmente, e, em
situações extremas, até mesmo exonerado.
O encargo pode ser prestado em favor do próprio doador, ou em favor de terceiro
indicado pelo doador, e, até mesmo, em favor da coletividade anônima. Veja o artigo 553
do CC:

“Art. 553. O donatário é obrigado a cumprir os encargos da doação, caso forem a


benefício do doador, de terceiro, ou do interesse geral.
Parágrafo único. Se desta última espécie for o encargo, o Ministério Público
poderá exigir sua execução, depois da morte do doador, se este não tiver feito.”

Se o encargo não for cumprido, o doador – e somente ele – pode revogar a doação, e
também pode ser exigido o cumprimento da doação pelo doador, por seus herdeiros, pelo
terceiro beneficiado pelo encargo, e, quando o encargo for em benefício da sociedade em
geral, a legitimidade para reclamar seu cumprimento é do Ministério Público.

1.8. Doação com cláusulas restritivas ao exercício da propriedade

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EMERJ – CP III Direito Civil III

As cláusulas restritivas do exercício do direito de propriedade – inalienabilidade,


incomunicabilidade e impenhorabilidade – podem ser impostas pelo doador, assim como
pelo testador (seu estudo tendo sede, inclusive, no direito sucessório).
Muito já se debateu sobre a constitucionalidade destes gravames, prevalecendo o
entendimento pela constitucionalidade de tais institutos. Mas surge o problema do gravame
se tornar demasiado, excessivo, na casuística. Entenda: se o donatário, que não pode alienar
o bem doado por conta do gravame imposto pelo doador, não conseguir, por não ter renda
suficiente, manter o próprio bem íntegro, o gravame se torna irrazoável. Um exemplo:
pessoa recebe doação de imóvel com cláusula de inalienabilidade, passando a deixar de
adimplir os tributos e encargos condominiais deste bem por simplesmente serem altos
demais para sua renda. Este donatário perderá o bem em razão desta dívida, se não puder
vendê-lo.
Por conta dessa discrepância, a jurisprudência tem flexibilizado o gravame,
permitindo ao donatário adequar a situação à sua capacidade pagadora. No exemplo dado,
será permitido ao donatário alienar o bem para aquisição de um novo, de menor valor e
com menores custos de manutenção, mediante a sub-rogação deste novo na cláusula de
inalienabilidade. Em casos extremos, poder-se-ia mesmo pensar em exoneração pura e
simples da cláusula de inalienabilidade.

1.9. Adiantamento da legítima

Veja o que dispõe o artigo 544 do CC:

“Art. 544. A doação de ascendentes a descendentes, ou de um cônjuge a outro 27,


importa adiantamento do que lhes cabe por herança.”

A doação, nestes casos, consiste em adiantamento de legítima, antecipação de


quinhão que seria cabível na herança legítima. Vejamos um exemplo: imagine-se que
alguém tenha patrimônio de cem, e tenha dois filhos, sem esposa. Ao falecer, a herança de
cada um será de cinquenta. Se, em vida, este pai doou para um dos filhos um imóvel que
valia trinta, ao trazer à colação os bens, no inventário, os quinhões serão igualados,
recebendo vinte o donatário, e cinquenta o outro descendente.
Mas veja que nem toda doação a descendente será considerada antecipação de
herança, porque metade do patrimônio de qualquer pessoa é disponível em testamento, o
que significa que pode ser considerada, a doação ao descendente, como disposição desta
parcela alheia à legítima – desde que seja expressamente mencionado que não importa em
antecipação de herança, no texto da doação.
Assim, no exemplo dado, caso fosse o caso – caso tenha a doação a ressalva de que
não importa em adiantamento de legítima –, o filho que recebeu trinta ainda terá direito a
metade dos setenta restantes, ou seja, fará jus não a vinte, mas a trinta e cinco, quando do
inventário. Repise-se, porém, que se não há ressalva expressa, a doação é considerada
adiantamento de legítima.

1.10. Doação propter nuptias

27
O CC de 1916 não permitia a doação entre cônjuges, porque vigia a imutabilidade do regime de bens do
casamento, e a doação seria forma de subverter este regime fixo.

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EMERJ – CP III Direito Civil III

Esta doação, em função do casamento, dedicada aos nubentes, tem tratamento


especial. São os presentes de casamento, doações feitas em contemplação do casamento.
Esta doação, e fato, demonstra-se condicionada: é eficaz desde que a condição
suspensiva futura e incerta do casamento se implemente. Se o casamento acontecer, ass
doações tornam-se eficazes; se não se realizarem as núpcias, as doações perdem efeito – os
presentes devem ser devolvidos. Veja o artigo 546 do CC:

“Art. 546. A doação feita em contemplação de casamento futuro com certa e


determinada pessoa, quer pelos nubentes entre si, quer por terceiro a um deles, a
ambos, ou aos filhos que, de futuro, houverem um do outro, não pode ser
impugnada por falta de aceitação, e só ficará sem efeito se o casamento não se
realizar.”

1.11. Doação entre conviventes e doação à concubina

A doação ao companheiro, em união estável lícita, é absolutamente válida, tal qual a


dos cônjuges entre si. Mesmo que o CC não trate do tema, nada impede que haja esta
ilação.
Esta doação não se confunde, porém, com outro problema, que é a doação feita pelo
cônjuge adúltero à concubina. Veja que a união extraconjugal não é uma doação entre
companheiros, porque não há união estável reconhecida, vez que o casado é impedido para
tanto. Esta doação vem tratada no artigo 550 do CC:

“Art. 550. A doação do cônjuge adúltero ao seu cúmplice pode ser anulada pelo
outro cônjuge, ou por seus herdeiros necessários, até dois anos depois de dissolvida
a sociedade conjugal.”

Veja que o prazo só tem início quando se desfaz a sociedade conjugal, o que na
grande maioria dos casos faz com que as doações à concubina tenham sido feitas anos e aos
atrás, desestabilizando completamente as relações em torno desta doação.
Este artigo merece críticas, vez que ao proteger a família, como intenta, acaba por
criar desigualdades incondizentes com o atual quadro constitucional: a doação pode ser
feita a qualquer pessoa, mas não pode ser realizada a alguém que, por mais que moralmente
reprovável, tem relação de afeto com o doador. É uma quebra da isonomia, de fato.

1.12. Doação universal

Veja o artigo 548 do CC:

“Art. 548. É nula a doação de todos os bens sem reserva de parte, ou renda
suficiente para a subsistência do doador.”

É simples: a pessoa não pode abrir mão e sua subsistência mínima, sob pena de se
tornar um peso a ser suportado pelo Estado. Por isso, esta doação é nula.

1.13. Doação com reserva de usufruto

Esta prática é tremendamente comum na praxe social, sendo lícita maneira de evitar
a discussão judicial sobre os bens do proprietário, quando de sua morte, pelos herdeiros.

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EMERJ – CP III Direito Civil III

Neste caso, o contrato de doação assume função de evitar até mesmo a abertura do
inventário.
Ocorre que os pais que realizam tais doações precisam se resguardar pelo período
que ainda têm de vida, e por isso fazem constar, no contrato de doação dos bens, a reserva
de terão usufruto sobre estes bens, enquanto forem vivos. Por isso, os donatários neste caso
serão nu-proprietários, pois o uso e gozo dos bens doados permanecerão com os doadores,
até que venham a óbito.

1.14. Doação inoficiosa

O artigo 549 do CC é a sede desta causa de nulidade:

“Art. 549. Nula é também a doação quanto à parte que exceder à de que o doador,
no momento da liberalidade, poderia dispor em testamento.”

Se a pessoa não tem herdeiros necessários, ela pode dispor em testamento de todo
seu patrimônio, e assim também o é na doação (ressalvado o limite da doação universal), ou
seja, esta pessoa não praticará jamais uma doação inoficiosa, por impossibilidade fática.
Outrossim, aquele que tem herdeiro necessário somente pode dispor em testamento
de metade de seu patrimônio, também podendo dispor apenas desta metade em doações.
Sendo assim, se este indivíduo dispuser de mais de cinquenta por cento de seu patrimônio
em doação a outrem, estará incidindo em doação inoficiosa, e esta doação é parcialmente
nula, ou seja, é nula apenas a parte excedente daquilo que poderia ser doado.
O momento de aferição da reserva da legítima, para fins de configuração da dação
inoficiosa, é o momento em que se á a liberalidade, ou seja, na feitura da doação, e não o
valor do patrimônio quando do evento morte.
Sendo assim, se o patrimônio do doador é cem, no momento da doação, poderá este
doar cinquenta, sem problema algum. E veja que se o doador doar os cinquenta por cento,
se seu patrimônio não mais se alterar no período entre a doação e a morte, nenhuma outra
doação subseqüente será válida, pois que excederá à legítima.
Estas doações sucessivas são um problema claro de fraude à lei, porque se se
interpretar à literalidade, apenas ao doar se verificará o valor do patrimônio do doador, e se
em cada doação ele respeitar a legítima naquele momento, seria válida. Mas a burla é clara:
doando subseqüentemente, o doador pode fazer reduzir seu patrimônio praticamente a zero,
ignorando a legítima, se fosse possível esta interpretação28.

1.15. Doação conjuntiva

28
Em interpretação pessoal, entendo que o que se faz é a demarcação do valor mínimo da legítima quando da
primeira doação: se naquele momento o patrimônio era cem, e doou cinquenta, se não houver ulterior
alteração do patrimônio do doador, majorando-se, este não poderá doar mais nada. Se porventura aumentar
seu patrimônio, tudo que exceder aos cinquenta será passível de doação, mas novamente respeitando a
legítima: se amealhar mais dez ao seu patrimônio, poderá doar cinco, e a demarcação mínima da legítima
subirá para cinquenta e cinco, somando-se o resguardo feito na doação anterior ao resguardo feito na nova
doação. O que a isto exceder, é nulo.

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EMERJ – CP III Direito Civil III

Trata-se da doação feita a duas ou mais pessoas, simultaneamente. Esta doação, se


aceita, cria um condomínio, e se as partes não foram delimitadas, o CC presume-as iguais.
Veja o artigo 551 deste Código.

“Art. 551. Salvo declaração em contrário, a doação em comum a mais de uma


pessoa entende-se distribuída entre elas por igual.
Parágrafo único. Se os donatários, em tal caso, forem marido e mulher, subsistirá
na totalidade a doação para o cônjuge sobrevivo.”
Há que se atentar, porém, ao direito de acrescer, constante do parágrafo único deste
artigo 551 do CC. Se a doação conjuntiva tiver por donatários cônjuges, o sobrevivente
acresce, e imediato, ao seu patrimônio, a parte que incumbia ao cônjuge falecido,
escapando à regra do direito sucessório, que imporia que os cinquenta por cento do bem,
pertencentes ao falecido, seriam destinados à meação e partilha, respeitando as regras
comuns da sucessão hereditária.

1.16. Revogação da doação

A doação pode ser revogada por dois motivos: ou por ingratidão do donatário, ou
por descumprimento do encargo, como já se viu. O artigo 555 do CC deve ser observado:

“Art. 555. A doação pode ser revogada por ingratidão do donatário, ou por
inexecução do encargo.”

Como dito, somente ao doador incumbe a revogação da doação por descumprimento


do encargo. Quando a causa da revogação é a ingratidão do donatário, por sua vez, há que
se ter maior atenção.
A ingratidão é objetivamente descrita no artigo 557 do CC:

“Art. 557. Podem ser revogadas por ingratidão as doações:


I - se o donatário atentou contra a vida do doador ou cometeu crime de homicídio
doloso contra ele;
II - se cometeu contra ele ofensa física;
III - se o injuriou gravemente ou o caluniou;
IV - se, podendo ministrá-los, recusou ao doador os alimentos de que este
necessitava.”

A legitimidade para revogar a doação por ingratidão é personalíssima do doador,


mas quando a hipótese for do inciso I deste artigo supra, abre-se legitimidade aos herdeiros
do doador obituado. Assim dispõe o artigo 561 do CC:

“Art. 561. No caso de homicídio doloso do doador, a ação caberá aos seus
herdeiros, exceto se aquele houver perdoado.”

O CC não fomenta a revogação; ao contrário, a desestimula, permitindo o perdão,


como se vê no artigo supra, e cominando prazo pequeno para a decadência do direito de
revogar, como se vê no artigo 559 do CC:

“Art. 559. A revogação por qualquer desses motivos deverá ser pleiteada dentro de
um ano, a contar de quando chegue ao conhecimento do doador o fato que a
autorizar, e de ter sido o donatário o seu autor.”

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EMERJ – CP III Direito Civil III

Há ainda hipóteses de doação irrevogável, que vêm previstas no artigo 564 do CC

“Art. 564. Não se revogam por ingratidão:


I - as doações puramente remuneratórias;
II - as oneradas com encargo já cumprido;
III - as que se fizerem em cumprimento de obrigação natural;
IV - as feitas para determinado casamento.”
Casos Concretos

Questão 1

Adolfo, viúvo sexagenário vivendo em concubinato com Zoraide, doou-lhe diversos


imóveis e quantias em dinheiro. Anos após casaram-se, mas Adolfo continuou a fazer
doações a Zoraide.
Com a morte de Adolfo, suas filhas do primeiro casamento propuseram ação
anulatória de escritura de doação, cessão de direitos e registro de imóveis em face de
Zoraide, sob o fundamento de que as primeiras doações teriam infringido o art. 312 do
CC/16 (dispositivo legal sem correspondente no CC/02) e as doações realizadas na
constância do casamento teriam frustrado o regime da separação absoluta, imposta pelo
art. 1.641, II, do CC/02.
Em contestação, a ré sustenta que as doações não foram realizadas em pacto
antenupcial, ou com vistas ao casamento futuro e, portanto, configuram doações puras.
Decida a questão indicando os fundamentos de fato e de direito aplicáveis à
espécie.

Resposta à Questão 1

As doações feitas antes do casamento não padecem de nenhum óbice, não podendo
ser o sexagenário impedido de doar tão-só por sua idade. De forma alguma se aplica o
dispositivo que invocaram as autoras, porque não há pacto antenupcial algum, in casu.
A respeito, veja o REsp. 236.013:

“CIVIL. DOAÇÃO NA VIGÊNCIA DO CONCUBINATO. CASAMENTO


POSTERIOR SOB O REGIME LEGAL DE SEPARAÇÃO DE BENS. Se a
doação levada a efeito na vigência do concubinato não foi condição do casamento
posterior, a regra do artigo 312 do Código Civil deixa de incidir. Hipótese em que
o recurso especial é impróprio para o exame do artigo 258, parágrafo único, II, do
Código Civil, porque o Tribunal a quo deixou de aplicá-lo, ao fundamento de que
não foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988. Recursos especiais não
conhecidos.”

Já as doações realizadas no curso do casamento são problemáticas, porque quem é


casado no regime da separação obrigatória não é herdeiro do cônjuge falecido, na forma do
artigo 1.829, I, do CC:

“Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:


I - aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado
este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação

Michell Nunes Midlej Maron 13


EMERJ – CP III Direito Civil III

obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão


parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares;
(...)”

Destarte, estas doações demonstram-se burla à lei, tanto da sucessão quanto da


própria lógica do regime de bens, que está sendo subvertida por via transversa.

Questão 2

João realiza uma doação com encargo em favor de José. O donatário Francisco
não realiza o encargo e diante de seu inadimplemento, José propõe ação de revogação da
doação onerosa. O réu se defende sob a alegação de que ele não tem legitimidade, pois
não realizou a liberalidade. Decida a questão.

Resposta à Questão 2

De fato, o autor, José, não tem legitimidade para revogar a doação. Esta pertence
apenas ao doador, cabendo ao beneficiário do encargo apenas exigir o cumprimento deste, e
não revogar a própria doação. Há que se extinguir o processo por ilegitimidade ad causam
ativa.
Há uma corrente pífia que defende que somente a revogação por ingratidão seria
personalíssima, e não qualquer revogação, pelo que a que se fundamenta em
descumprimento do encargo poderia ser pleiteada pelo terceiro beneficiado pelo encargo
descumprido.

Questão 3

Maria José, filha legítima de Francisco, ajuizou ação ordinária de nulidade de


doação de um imóvel rural, promovida por seu pai em favor de Léa. Argumenta que o
doador teria sido coagido moralmente pelo pai da donatária, Dr. Aurélio, médico que o
teria acudido em condição aflitiva, dando-lhe dinheiro e construindo uma casa no sítio do
doador, com usufruto vitalício, sob a condição de doá-lo à sua filha Léa. Afirma, ainda,
que o referido ato está eivado do vício da simulação, e que os pais da donatária foram
ingratos, por não lhe prestarem socorro médico ou material ao doador às vésperas de sua
morte. Considerando verdadeiros os fatos narrados, decida a questão.

Resposta à Questão 3

Não há coação, pois não há ameaça de mal qualquer vislumbrada. Tampouco há


simulação, subjetiva, objetiva ou cronológica, porque o bem correto foi doado ao efetivo
donatário, na época própria. Nada há, portanto, que anule a doação.

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EMERJ – CP III Direito Civil III

Tema XIV

Locação I. Locação de Coisas. Locação de imóvel. Conceito, elementos, classificação e delimitação da


incidência da Lei nº 8.245/91. Estatuto da Terra. Código de Defesa do Consumidor e Código Civil. Locação
imobiliária urbana: Multiplicidade de sujeitos. Denúncia do contrato pelo locatário, nu-proprietário,
fideicomissário e adquirente. Cláusula de vigência.

Notas de Aula29

1. Locação

O contrato de locação, genericamente considerado, é sempre bilateral, havendo


sempre prestação e contraprestação para as partes. Em regra, também, este contrato é
comutativo, havendo pleno equilíbrio e certeza entre as prestações recíprocas (ao contrário
dos aleatórios, em que o equilíbrio prestacional não é essencial30).
A locação é um contrato consensual, bastando a emissão de vontades para formar-se
o pacto perfeito. É também não solene e não formal, porque não se impõe solenidade
alguma, e sequer a forma escrita. Na locação imobiliária urbana, no entanto, há um
aconselhamento legal para que se firme na forma escrita, porque esta forma, ad
probationem, protege os interesses legítimos do locador. A Lei 8.245/91 (doravante referida
apenas como Lei de Locações), determina que se o contrato de locação residencial urbana
for escrito, e tiver prazo mínimo de trinta meses, poderá denunciar o contrato sem
justificar-se, ao término deste prazo – a chamada denúncia vazia para desocupação imediata
(ou em trinta dias, se prorrogado tacitamente). Se não for feito o termo escrito, ou seja, se o
contrato for informal, há necessidade de justificativa para a denúncia – o que se chama de
denúncia cheia. Este assunto será mais bem abordado adiante.
Outra característica típica dos contratos de locação é sua natureza de trato
sucessivo. Este contrato se protrai no tempo, qualquer que seja este tempo, não podendo
naturalisticamente haver prestação e contraprestação simultâneas, pois que a
contraprestação, incumbência do locador, é deixar o bem disponível ao uso e gozo do
locatário, o que é uma prestação que se estende no tempo.
Efeito natural dos contratos de trato sucessivo é sua sujeição às vicissitudes do
tempo. Por isso, se sujeita, a locação, à possibilidade de onerosidade excessiva, e à exceção
do contrato não cumprido, institutos já abordados. Na locação de imóveis, há um rito
próprio para rever o equilíbrio contratual: a ação revisional de contrato de locação, ação
com características bem específicas. Por exemplo, conta com legitimação bilateral,
29
Aula ministrada pelo professor Ricardo Cyfer, em 5/2/2009.
30
O contrato de seguro é exemplo de contrato aleatório, inclusive no seguro de vida, pois mesmo que a morte
seja certa, a sua ocorrência na vigência do seguro é incerta, mantendo a alea presente. No seguro de coisas, a
garantia prestada é uma contraprestação em si, devida pelo pagamento do prêmio, mas ainda há aleatoriedade,
pois pode ser que haja ou não uma outra contraprestação, qual seja, a indenização pelo sinistro, que é incerto.

Michell Nunes Midlej Maron 13


EMERJ – CP III Direito Civil III

podendo tanto o locador quanto o locatário pleitearem aumento ou redução dos aluguéis,
respectivamente. Nos demais contratos de locação, sem ser de imóveis, a permissão para a
revisão é a regra geral, qual seja, a revisão por onerosidade excessiva.
Vale observar que a teoria da imprevisão, que fundeia a onerosidade excessiva no
CC, é subjetiva, enquanto na relação consumerista o que fundamenta a revisão não é a
imprevisão, mas sim o desequilíbrio objetivo das prestações. Veja os artigos 478 e 317 do
CC, e o artigo 6º, V, do CDC:

“Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de


uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a
outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o
devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar
retroagirão à data da citação.”

“Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta


entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz
corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real
da prestação.”

“Art. 6º São direitos básicos do consumidor:


(...)
V - a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações
desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem
excessivamente onerosas;
(...)”

A locação, em regra, segue a revisão prevista especificamente para si, na Lei de


Locações; se não se tratar do caso ali previsto, segue a revisão pelos termos do CC; e,
eventualmente sendo relação de consumo, segue a revisão nos moldes do CDC.

1.1. Elementos do contrato de locação

Quanto ao objeto, este pode ser bem móvel ou imóvel, desde que seja um bem
infungível, do qual se transfere a posse. Se a locação for de bem fungível, não se trata de
locação, pois o que se transfere não é a posse, e sim da propriedade.
O contrato de locação é oneroso, pois que se for gratuito, deixa de ser locação para
ser comodato. De fato, esta é discussão recorrente em processos envolvendo este contrato,
sobremaneira quando pactuados sem forma escrita, porque a alegação do possuidor direto
do imóvel é sempre de que este foi-lhe dado em comodato, enquanto o proprietário alega
locação.

1.2. Obrigações essenciais

A Lei de Locações traz diversas obrigações atinentes ao contrato, mas são


obrigações essenciais, sem as quais sequer há contrato: do locador, transferir a posse direta
do bem ao locatário, mantendo apenas a posse indireta (o que lhe legitima às ações
possessórias contra terceiros); e do locatário, a paga do preço, que é chamado aluguel.
O termo aluguel é exclusivamente destinado a denominar o preço devido no
contrato de locação. Qualquer utilização deste termo em parcela diferente, em qualquer

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relação jurídica que não a locação, é atécnica. Repare, porém, que o próprio legislador se
equivoca, por vezes, como no artigo 582 do CC:

“Art. 582. O comodatário é obrigado a conservar, como se sua própria fora, a coisa
emprestada, não podendo usá-la senão de acordo com o contrato ou a natureza
dela, sob pena de responder por perdas e danos. O comodatário constituído em
mora, além de por ela responder, pagará, até restituí-la, o aluguel da coisa que for
arbitrado pelo comodante.”

Tecnicamente, o comodatário pagará uma indenização pelo tempo em que


indevidamente possuiu a coisa, e não aluguel.
A interpretação dos contratos gratuitos é restritiva, como se sabe. Por isso, a regra
geral é que, havendo dúvida se a relação é de comodato ou locação, presumir-se-á locação,
pois do contrário poderá ser imposta uma liberalidade que não era vontade do proprietário
do bem – o que vai contra a interpretação restritiva, que se impõe.

2. Locação residencial urbana

A Lei de Locações veio ao ordenamento em atenção à natureza dos contratos de


locação: estes contratos são de grande densidade social, chamados contratos sensíveis,
sobremaneira o contrato de locação residencial urbana, pois que, em última análise, este
vem em implemento do direito fundamental à moradia – e, mais a fundo, a própria
dignidade da pessoa humana, insubsistente sem moradia.
A relação de locação é presumidamente desequilibrada, pois de um lado há um
titular de patrimônio imóvel, e de outro há alguém que carece deste bem para implementar
sua moradia. Por isso, a Lei de Locações se trata de um exemplo de ação afirmativa.
O artigo 1º da Lei de Locações delimita o alcance deste diploma:

“Art. 1º A locação de imóvel urbano regula-se pelo disposto nesta lei:


Parágrafo único. Continuam regulados pelo Código Civil e pelas leis especiais:
a) as locações:
1. de imóveis de propriedade da União, dos Estados e dos Municípios, de suas
autarquias e fundações públicas;
2. de vagas autônomas de garagem ou de espaços para estacionamento de veículos;
3. de espaços destinados à publicidade;
4. em apart-hotéis, hotéis-residência ou equiparados, assim considerados aqueles
que prestam serviços regulares a seus usuários e como tais sejam autorizados a
funcionar;
b) o arrendamento mercantil, em qualquer de suas modalidades.”

As hipóteses de descabimento da incidência desta lei são bem claras. Os imóveis


detidos por entes públicos são regidos pela legislação administrativa, e assim continuam. As
vagas de automóvel, desde que autônomas, não integrantes de área de imóvel, não precisam
da proteção especial desta lei, em nada relacionando-se à base constitucional deste diploma;
os espaços destinados à publicidade, idem às vagas de garagem.
Os apart-hotéis e equiparados não são tidos por residência definitiva, e por isso não
são, presumidamente, destinados a implementar a moradia, escapando à função precípua
deste diploma.

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O arrendamento mercantil não tem regramento especial, mas é certo que não se trata
de simples locação, sendo uma condensação de três contratos, de fato: locação,
financiamento e eventual compra e venda. Há tríplice opção ao arrendatário, ao final: a
manutenção do arrendamento, a devolução, ou a aquisição do bem. Pelo ensejo, vale aqui
tratar de uma questão recorrente nos tribunais: a questão do valor residual de garantia, nos
contratos de leasing.
A jurisprudência já se viu diante desta questão incontáveis vezes, e está mais do que
sedimentada a natureza jurídica do VRG nos contratos de arrendamento mercantil. Esta
parcela tem natureza de adiantamento do preço que será pago pelo arrendatário ao final do
contrato, caso este exerça a sua opção pela compra do bem arrendado.
Não ocorre a desnaturação do contrato de leasing pela realização deste pagamento
de forma adiantada, eis que a redação da súmula 293 do STJ espanca qualquer dúvida. Não
consiste, o depósito mensal do VRG, em elisão da possibilidade de opção diversa da
compra do bem ao final do contrato. Consiste apenas em diluição do valor a ser pago pelo
arrendatário, caso exerça esta opção de compra: é uma amortização do preço residual que
será pago caso opte pela compra. Não sendo exercida esta opção, mas uma outra – a
devolução do bem ou a novação do contrato –, o VRG adiantado deve ser restituído ao
arrendatário.
Vê-se, então, que este adiantamento tem por escopo integralizar, compor o valor que
será usado ao final do contrato para adimplir a obrigação decorrente da opção de compra
pelo arrendatário, e não compor valor que garanta a satisfação lucrativa do arrendador se a
opção não for a aquisição do bem, ao contrário do que apregoa o apelante em sua tese.
Sendo assim, não há como admitir que tal valor seja retido, quando o contrato se extingue
por qualquer situação diversa do exercício da opção de compra pelo arrendatário. Se se
permitir tal retenção, como pretendem os bancos, estar-se-á incidindo em claro
enriquecimento sem causa, o arrendador havendo para si prestação sem contraprestação
alguma, eis que terá consigo o bem arrendado, o valor pago pelo arrendamento, e o valor
adiantado por uma opção que não se efetivou. A respeito, veja alguns julgados recentes:

“Apelação cível 2008.001.51485 – Des. Marco Aurélio Bezerra de Melo.


CONTRATO DE ARRENDAMENTO MERCANTIL. RESILIÇÃO
UNILATERAL DO CONTRATO POR IMPOSSIBILIDADE ECONÔMICA DE
PAGAR AS PRESTAÇÕES. DEVOLUÇÃO VOLUNTÁRIA DO BEM PELA
ARRENDATÁRIA À ARRENDADORA. POSICIONAMENTO PACIFICADO,
NESTE TRIBUNAL E NO STJ, QUANTO À POSSIBILIDADE DE
DEVOLUÇÃO DOS VALORES PAGOS A TÍTULO DE VALOR RESIDUAL
GARANTIDO (VRG), BEM COMO À IMPOSSIBILIDADE DE DEVOLUÇÃO
DOS VALORES PAGOS A TÍTULO DE ALUGUÉIS. INTELIGÊNCIA DA
SÚMULA 293 DO STJ. RECURSOS A QUE SE NEGA SEGUIMENTO, EIS
QUE EM CONFRONTO COM JURISPRUDÊNCIA DOMINANTE DESTA
CORTE E DAS CORTES SUPERIORES, NA FORMA DO ART. 557 DO CPC.”

“2008.001.66709 – APELACAO. DES. HENRIQUE DE ANDRADE FIGUEIRA -


Julgamento: 14/01/2009 - DECIMA SETIMA CAMARA CIVEL.
CONSUMIDOR. ARRENDAMENTO MERCANTIL. REINTEGRAÇÃO DE
POSSE. INADIMPLEMENTO DO DEVEDOR. VRG. DEVOLUÇÃO. Ação de
reintegração de posse devido ao inadimplemento da Ré quanto à obrigação de
pagar as prestações assumidas no contrato de arrendamento mercantil ajustado
pelas partes. Em pedido contraposto a Ré pretende a devolução do VRG.A
antecipação do valor residual garantido não desfigura o contrato de leasing,

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podendo o arrendante exercer o direito de ação de rescisão do contrato como


orienta a Súmula nº 293 do E. Superior Tribunal de Justiça.A rescisão do contrato
de arrendamento mercantil por inadimplemento do arrendatário implica na
devolução dos valores pagos a título de VRG à arrendatária. Precedentes do E.
Superior Tribunal de Justiça. Recurso desprovido.”

Também a locação imobiliária não urbana (rural) não é regida por esta Lei de
Locações, como se vê no caput do artigo 1º, pois que se subsume ao Estatuto da Terra, Lei
4.504/64, especialmente o artigo 92:

“Art. 92. A posse ou uso temporário da terra serão exercidos em virtude de contrato
expresso ou tácito, estabelecido entre o proprietário e os que nela exercem
atividade agrícola ou pecuária, sob forma de arrendamento rural, de parceria
agrícola, pecuária, agro-industrial e extrativa, nos termos desta Lei.
§ 1° O proprietário garantirá ao arrendatário ou parceiro o uso e gozo do imóvel
arrendado ou cedido em parceria.
§ 2º Os preços de arrendamento e de parceria fixados em contrato ...Vetado.. serão
reajustados periodicamente, de acordo com os índices aprovados pelo Conselho
Nacional de Economia. Nos casos em que ocorra exploração de produtos com
preço oficialmente fixado, a relação entre os preços reajustados e os iniciais não
pode ultrapassar a relação entre o novo preço fixado para os produtos e o
respectivo preço na época do contrato, obedecidas as normas do Regulamento
desta Lei.
§ 3º No caso de alienação do imóvel arrendado, o arrendatário terá preferência para
adquiri-lo em igualdade de condições, devendo o proprietário dar-lhe
conhecimento da venda, a fim de que possa exercitar o direito de perempção dentro
de trinta dias, a contar da notificação judicial ou comprovadamente efetuada,
mediante recibo.
§ 4° O arrendatário a quem não se notificar a venda poderá, depositando o preço,
haver para si o imóvel arrendado, se o requerer no prazo de seis meses, a contar da
transcrição do ato de alienação no Registro de Imóveis.
§ 5º A alienação ou a imposição de ônus real ao imóvel não interrompe a vigência
dos contratos de arrendamento ou de parceria ficando o adquirente sub-rogado nos
direitos e obrigações do alienante.
§ 6º O inadimplemento das obrigações assumidas por qualquer das partes dará
lugar, facultativamente, à rescisão do contrato de arrendamento ou de parceria.
observado o disposto em lei.
§ 7º Qualquer simulação ou fraude do proprietário nos contratos de arrendamento
ou de parceria, em que o preço seja satisfeito em produtos agrícolas, dará ao
arrendatário ou ao parceiro o direito de pagar pelas taxas mínimas vigorantes na
região para cada tipo de contrato.
§ 8º Para prova dos contratos previstos neste artigo, será permitida a produção de
testemunhas. A ausência de contrato não poderá elidir a aplicação dos princípios
estabelecidos neste Capítulo e nas normas regulamentares.
§ 9º Para solução dos casos omissos na presente Lei, prevalecerá o disposto no
Código Civil.”

O que caracteriza um imóvel como urbano ou rural não é meramente sua


localização, mas também a sua destinação: ainda que esteja em uma localização rural, se a
destinação for residencial típica, o contrato será tido por locação residencial urbana, e se
sujeitará à Lei de Locações, e vice-versa, sendo imóvel destinado à atividade rural, mas
situado em zona eminentemente urbana, quando responderá ao Estatuto da Terra.

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3. Solidariedade na locação

O artigo 2º da Lei de Locações merece ser lido em cotejo com o artigo 265 do CC:

“Art. 2º Havendo mais de um locador ou mais de um locatário, entende-se que são


solidários se o contrário não se estipulou.
Parágrafo único. Os ocupantes de habitações coletivas multifamiliares presumem-
se locatários ou sublocatários.”

“Art. 265. A solidariedade não se presume; resulta da lei ou da vontade das partes.”

Veja que o artigo 2º da Lei de Locações cria esta solidariedade como regra, sendo
necessário o afastamento desta situação expressamente no contrato, se não se quiser que
haja solidariedade.

4. Incidentes da locação

Veja o que dispõe o artigo 4º da Lei de Locações:

“Art. 4º Durante o prazo estipulado para a duração do contrato, não poderá o


locador reaver o imóvel alugado. O locatário, todavia, poderá devolvê-lo, pagando
a multa pactuada, segundo a proporção prevista no art. 924 do Código Civil e, na
sua falta, a que for judicialmente estipulada.
Parágrafo único. O locatário ficará dispensado da multa se a devolução do imóvel
decorrer de transferência, pelo seu empregador, privado ou público, para prestar
serviços em localidades diversas daquela do início do contrato, e se notificar, por
escrito, o locador com prazo de, no mínimo, trinta dias de antecedência.”

Esta regra deixa claro que o locatário não pode ser coibido a manter o contrato,
podendo deixar a relação quando quiser, mas arcando com tudo aquilo que ficar pactuado a
título de cláusula penal, ou outras perdas e danos comprovadas pelo locador. Esta é a
cláusula resolutória implícita.
Veja que se trata, de fato, de rescisão contratual, e não resolução, porque há culpa
da parte ao sair imotivadamente do pacto (havendo quem defenda que o termo rescisão só é
aplicável quando se tratar de causas de nulificação do contrato, contrapondo esta tese).
Retificando o dispositivo, onde sele artigo 924 do CC, neste dispositivo acima, leia-
se artigo 413 do CC.
O artigo 5º da Lei de Locações deve ser lido em combinação com o artigo 9º, II e
III, e com os artigos 59 a 66, todos do mesmo diploma. Os últimos artigos são o regramento
da ação de despejo, e não precisam ser transcritos aqui, pois têm sua leitura mais bem
colocada quando do estudo específico desta ação.

“Art. 5º Seja qual for o fundamento do término da locação, a ação do locador para
reaver o imóvel é a de despejo.
Parágrafo único. O disposto neste artigo não se aplica se a locação termina em
decorrência de desapropriação, com a missão do expropriante na posse do imóvel.”

“Art. 9º A locação também poderá ser desfeita:


(...)
II - em decorrência da prática de infração legal ou contratual;

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III - em decorrência da falta de pagamento do aluguel e demais encargos;


(...)”

Também nas hipóteses deste artigo 9º, II e III, há rescisão do contrato, segundo a
tese que usa esta nomenclatura para a extinção culposa do contrato.
Sobre a ação de despejo, valem algumas breves considerações: esta só existe
quando há descumprimento do contrato, e o que é despejado é o imóvel, e não o locatário –
despejo significa “retirar o que há dentro”. Quando a ação de despejo for corrente, e se
percebe que o locatário já abandonou o imóvel, não se pode entender eu a ação tenha
perdido o objeto, extinguindo-a sem resolução do mérito por perda superveniente do
interesse de agir. Isto porque o que a ação de despejo intenta não é apenas o esvaziamento
do imóvel: o que a ação pretende é a extinção do contrato, e o esvaziamento, o despejo, é
uma conseqüência material da extinção do contrato. Por isso, tecnicamente, deve ser
pedido, nesta ação, a rescisão contratual (ou resolução culposa, dependendo da tese acerca
da nomenclatura adotada), com o conseqüente desalijamento do locatário que não mais tem
título a justificar sua posse.
O artigo 6º da Lei de Locações estabelece outra causa de extinção do contrato de
locação:

“Art. 6º O locatário poderá denunciar a locação por prazo indeterminado mediante


aviso por escrito ao locador, com antecedência mínima de trinta dias.
Parágrafo único. Na ausência do aviso, o locador poderá exigir quantia
correspondente a um mês de aluguel e encargos, vigentes quando da resilição.”

Aqui, difere a situação da prevista no artigo 4º deste diploma, já abordado, porque lá


a extinção do contrato é um descumprimento unilateral, na medida que há prazo de duração
estipulado. O artigo 6º, supra, se aplica a casos em que não haja prazo estabelecido, nos
quais a saída do locatário não pode ser punida, devendo apenas ser respeitada a necessidade
de comunicação prévia, que se chama denúncia. E veja que a terminologia legal foi bem
empregada: há resilição contratual, e não rescisão ou resolução, na medida que não há
descumprimento contratual algum.
O artigo 7º da Lei de Locações é relevante:

“Art. 7º Nos casos de extinção de usufruto ou de fideicomisso, a locação celebrada


pelo usufrutuário ou fiduciário poderá ser denunciada, com o prazo de trinta dias
para a desocupação, salvo se tiver havido aquiescência escrita do nuproprietário ou
do fideicomissário, ou se a propriedade estiver consolidada em mãos do
usufrutuário ou do fiduciário.
Parágrafo único. A denúncia deverá ser exercitada no prazo de noventa dias
contados da extinção do fideicomisso ou da averbação da extinção do usufruto,
presumindo-se, após esse prazo, a concordância na manutenção da locação.”

O fideicomisso e o usufruto são situações jurídicas bastante peculiares. No


fideicomisso, em breves linhas, há a transmissão de determinado bem, que fica a cargo do
fiduciário, mas cuja propriedade é resolúvel, sendo condição resolutiva desta sua
propriedade o nascimento com vida do fideicomissário – a quem será transmitida a
propriedade do bem, então. Se a propriedade se transmite ao fiduciário, a relação locatícia
que fora contratada pelo fiduciário quando proprietário resolúvel do bem poderá ser
mantida ou denunciada pelo fideicomissário, porque este não participou da formação do

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contrato. Se o fideicomissário aquiesceu na pactuação, expressamente, participou do


contrato, e não pode haver esta denúncia.
No usufruto, por sua vez, há a figura do nu-proprietário, que titulariza apenas a
propriedade, mas não o tem à sua disposição, ao seu uso e gozo, consectários da
propriedade estes que pertencem ao usufrutuário. Se o usufrutuário pactua locação quando
na fruição do bem, ao deixar de ser usufrutuário – quando o nu-proprietário concentrará
propriedade plena, havendo para si os consectários do uso e gozo –, este proprietário pleno
poderá denunciar o contrato ou mantê-lo, mas se anuiu expressamente no contrato, não há
que se permitir tal denúncia.
Em ambos os casos, se não exercerem a faculdade de resilir o contrato em noventa
dias, decairão deste direito, entendendo-se que a inércia implicou em aceitação da
manutenção do contrato de locação. O silêncio, aqui, é qualificado como anuência.
O artigo 8º da Lei de Locações é ainda mais importante:

“Art. 8º Se o imóvel for alienado durante a locação, o adquirente poderá denunciar


o contrato, com o prazo de noventa dias para a desocupação, salvo se a locação for
por tempo determinado e o contrato contiver cláusula de vigência em caso de
alienação e estiver averbado junto à matrícula do imóvel.
§ 1º Idêntico direito terá o promissário comprador e o promissário cessionário, em
caráter irrevogável, com imissão na posse do imóvel e título registrado junto à
matrícula do mesmo.
§ 2º A denúncia deverá ser exercitada no prazo de noventa dias contados do
registro da venda ou do compromisso, presumindo-se, após esse prazo, a
concordância na manutenção da locação.”

Na alienação do imóvel locado, o adquirente só pôde adquirir o bem porque o


locatário não exerceu a preempção que o artigo 27 deste diploma lhe faculta (ou foi
preterido pelo locador):

“Art. 27. No caso de venda, promessa de venda, cessão ou promessa de cessão de


direitos ou dação em pagamento, o locatário tem preferência para adquirir o imóvel
locado, em igualdade de condições com terceiros, devendo o locador dar - lhe
conhecimento do negócio mediante notificação judicial, extrajudicial ou outro
meio de ciência inequívoca.
Parágrafo único. A comunicação deverá conter todas as condições do negócio e,
em especial, o preço, a forma de pagamento, a existência de ônus reais, bem como
o local e horário em que pode ser examinada a documentação pertinente.”

O adquirente, então, poderá denunciar o contrato, mediante o prazo de noventa dias


estabelecido no caput do artigo 8º, supra. Mas veja um detalhe: se os dois requisitos
estabelecidos como ressalva à possibilidade de denúncia neste dispositivo forem
observados, surge aquilo que se denomina de eficácia real do contrato de locação.
Averbado o contrato no Registro Geral de Imóveis, e inserida no contrato a cláusula de
vigência, o locatário tem garantida a posse dobem até o término do contrato.
O § 1º deste artigo 8º traz uma hipótese muito debatida, que é a existência ou não de
eficácia real da promessa de compra e venda. Em apertada síntese, o que a lei sempre
exigiu é que, para haver este direito real, há que se ter registro do contrato; pagamento
integral do preço pelo promitente-comprador; e ausência de cláusula de arrependimento.
Contudo, o STJ tem dispensado a existência do registro, sendo até mesmo matéria
sumulada no verbete 239 desta Corte (já abordada), defendendo que há direito real de

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aquisição mesmo sem registro. Sendo o caso, então, o promitente-comprador tem os mesmo
direito do comprador efetivo, em relação ao locatário, qual seja, a denúncia o contrato para
que o locatário deixe o imóvel em noventa dias (sujeitando-se também à ressalva do próprio
caput).
O § 2º do artigo 8º ainda traz mais uma hipótese de silêncio qualificado como
anuência.
Se o locador falecer, havendo a sucessão contratual pelos herdeiros, nada disso se
aplica: o contrato segue, sendo uma opção legislativa pela proteção ao locatário. Veja o que
diz o artigo 10 da Lei de Locações:

“Art. 10. Morrendo o locador, a locação transmite-se aos herdeiros.”

Vale ainda uma breve consideração sobre a sublocação, que será estudada melhor
adiante, em tópico próprio. Veja o artigo 16 da Lei de Locações:

“Art. 16. O sublocatário responde subsidiariamente ao locador pela importância


que dever ao sublocador, quando este for demandado e, ainda, pelos aluguéis que
se vencerem durante a lide.”

O que este dispositivo impõe, em suma, é que o sublocatário responde


subsidiariamente perante o locador, quando o sublocador deixar de pagar a importância que
ele próprio deve ao locador. Sendo assim, se há demanda de cobrança do locador em face
do sublocador, o sublocatário deverá pagar seu aluguel diretamente ao locador principal,
como amortização da dívida do sublocador, e não mais ao sublocador, que é com quem tem
contrato – excepcionando claramente o princípio da relatividade contratual, porque torna
devedor quem não tem parte no contrato original.

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Casos Concretos

Questão 1

Adamastor intentou ação de despejo em relação a contrato de locação de imóvel


residencial, com o objetivo de retomar do imóvel pela denominada denúncia vazia, nos
termos do artigo 8º da Lei 8.245/91. Alega que adquiriu a nua propriedade do imóvel
enquanto seu pai tornou-se, no mesmo ato, usufrutuário do imóvel locado. A ação merece
prosseguir?

Resposta à Questão 1

Inicialmente, pensou-se que o nu-proprietário não poderia invocar o artigo 8º da Lei


de Locações, ao argumento de que se ele não tem uso e gozo, não haveria interesse em
denunciar o contrato que trata justamente da posse direta do bem. Todavia, a jurisprudência
caminhou para o entendimento de que o legislador não fez diferença entre proprietário
pleno e nu-proprietário, neste artigo, pelo que não há motivo para o intérprete fazê-lo,
restringindo o direito do nu-proprietário.
Assim, a ação merece prosseguir. Veja, a respeito, o REsp. 37.220:

“CIVIL - LOCAÇÃO RESIDENCIAL - AÇÃO DE DESPEJO - DENÚNCIA


VAZIA - PROPRIETÁRIOS E USUFRUTUÁRIOS - LEGITIMIDADE ATIVA.
1. O dispositivo que faculta ao adquirente denunciar o contrato com o prazo de 90
dias quando a locação for por prazo indeterminado (art. 8º, da Lei nº 8.245/91),
não exige que o mesmo tenha adquirido a propriedade plena do imóvel, não
cabendo ao intérprete criar tal exigência.
2. Recurso conhecido e provido.”

Questão 2

João, sob a alegação de ser co-proprietário do imóvel que ocupa, e de estar


pagando taxa de uso de 50% do seu valor, ajuizou em face de Pedro, seu irmão e também
co-proprietário, ação de cobrança de 50% do IPTU e taxa de incêndio relativas aos anos
de 1989 a 2001, com base nos termos do artigo 1315 do Código Civil/02. Sustenta inexistir
locação, razão pela qual não está obrigado a pagar a totalidade dos impostos que incidem
sobre o imóvel. Pedro contestou o pedido inicial e aduziu, em síntese, que desde a prolação
da sentença de arbitramento do aluguel de coisa comum, na qual ficou fixada a obrigação
de João de pagar a metade do valor do imóvel, o seu comportamento tem sido o de um
locatário comum; nunca questionou, inclusive, a sua obrigação legal de arcar com as
taxas do imóvel que ocupa com total liberdade. Além disso, elucidou correr, atualmente,
em fase de execução, Ação Revisional de Aluguel perante a 42ª Vara Cível, proposta pelo
autor, visando baixar os aluguéis. Argumentou, ademais, que o autor João não é usuário
do imóvel, mas inquilino, que paga os aluguéis fixados judicialmente. Por isso, a situação
jurídica estabelecida entre as partes não pode se encaixar no instituto do uso, até porque é

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EMERJ – CP III Direito Civil III

inconcebível que, a talante da parte autora, seja alterada uma obrigação sacramentada
desde 1991 por ação judicial, com arbitramento do aluguel da casa comum, objeto da
locação. Em réplica, o autor aduz, em síntese, que mesmo que fosse locatário não estaria
obrigado ao pagamento do IPTU e outros tributos incidentes sobre o imóvel, salvo por
disposição expressa em contrato de locação, nos termos do artigo 22, VIII da Lei 8.245/91.
Diante do caso concreto, DECIDA.

Resposta à Questão 2

O bem é indivisível, e no condomínio pro indiviso a utilização do bem


exclusivamente por um dos condôminos gera dever de pagar ao co-titular um valor
indenizatório pelo uso exclusivo do bem, proporcional à fração do outro co-proprietário.
Não se trata de locação da parte titularidade do que não está no uso do imóvel, e sim
indenização por este não estar dispondo de bem que também é seu.
Veja: é incompatível haver confusão, na mesma pessoa, das situações de
proprietário e locatário do mesmo bem. Isto porque os podres do proprietário – usar, gozar
e dispor do bem – não se compatibilizam com os do locatário, que se resumem a usar e
gozar do bem.
Destarte, não há locação, e não há alugueis devidos, apenas indenização. Como não
há esta natureza locatícias, ainda que um dos co-proprietários utilize o bem exclusivamente,
só deve arcar com a sua cota-parte das despesas de conservação do bem, incluídos aí os
tributos e demais encargos reclamados.
Veja, a respeito, a apelação cível 2002.001.20802, do TJ/RJ:

“IMOVEL EM CONDOMINIO. USO EXCLUSIVO POR UM DOS


CONDOMINOS. ARBITRAMENTO DE ALUGUEL. DESPESAS DE
CONSERVACAO DO IMOVEL. RATEIO ENTRE OS CONDOMINOS. ART.
624, C.CIVIL DE 1916. DESPROVIMENTO DO RECURSO.
CONDOMÍNIO. Uso Exclusivo do Bem Comum Por Um dos Condôminos.
Pagamento de Quantia Em Dinheiro Pela Ocupação. Não Desfiguração do
Condomínio. Despesas de Conservação da Coisa. Participação de Todos os
Condôminos. Não desconfigura o condomínio o fato de um dos condôminos pagar
ao outro uma quantia em dinheiro pelo uso exclusivo do bem comum. No
condomínio todos os condôminos são obrigados a concorrer, na proporção de sua
parte, para as despesas de conservação da coisa. Desprovimento do recurso.”

Questão 3

FRANCISCO, locatário de imóvel residencial pertencente a CAIO, resolve acolher


em sua casa, por três meses, seu primo SILVIO, recém-chegado do Nordeste, enquanto este
procura emprego e moradia. No entanto, é surpreendido pela propositura de ação de
despejo movida por CAIO, tendo em vista a prática de infração contratual, haja vista a
cláusula proibindo a sublocação, na forma do art. 9º, II da Lei n º 8245/91.
Julgue o caso acima, à luz da orientação jurisprudencial vigente na matéria.

Resposta à Questão 3

Michell Nunes Midlej Maron 14


EMERJ – CP III Direito Civil III

Risível o entendimento do locador. O silencio do locador, quanto à sublocação, é


interpretado como recusa, mas é claro que, in casu, não há sublocação, mas mera
liberalidade do locatário, que pode usar como bem entender o imóvel de que tem posse,
desde que não viole as cláusulas contratuais, e não o fez, pois não se trata de sublocação,
como dito. A Lei de Locações é protetiva do locatário, e por isso há regra de hermenêutica
que impõe que seja, se necessário, interpretado favoravelmente ao locatário. Por isso, ainda
que haja alguma contribuição do ocupante temporário, que coabita com o locatário, ou
mantém-se sob as vistas deste, não revela sublocação.

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EMERJ – CP III Direito Civil III

Tema XV

Locação II. Sucessão, cessão e sublocação. O aluguel e a sua fixação, reajuste e revisão. Ação de despejo.
Direitos e deveres do locador e locatário. Direito real de aquisição. Regramento das benfeitorias. Direito de
retenção.

Notas de Aula31

1. Locação

O contrato de locação é aquele pelo qual o locador cede, temporariamente, o


exercício da posse do bem ao locatário. Temporariamente não significa por prazo
determinado; significa que em determinado momento a posse cedida vai retornar ao
locador.
A posse do bem locado se desdobra, ou seja, o locatário recebe a posse direta e o
locador mantém a indireta. Isto justifica, por exemplo, a possibilidade de que ambos
defendam a posse, em caso de ameaça, turbação ou esbulho por terceiros.
O contrato é oneroso: a cessão da posse é feita mediante remuneração paga pelo
locatário. Esta é a diferença entre este contrato e o comodato, no qual a cessão não é
remunerada. A remuneração, na locação, é feita por meio do aluguel, termo que é
encontrado, por vezes, em searas outras – como no próprio comodato, quando a falta da
restituição tempestiva pelo comodatário impõe cobrança de pagamento de indenização para
o comodante, chamada pelo legislador, impropriamente, de aluguel.
O aluguel, em regra, é pago em dinheiro, mas nada impede pagamento in natura ou
em serviços. Também em regra, o preço é fixo, mas pode haver pactuação de parte fixa,
parte variável: em shopping centers há esta variante, devida pela lucratividade da loja.
O contrato é comutativo, equilibrado, permitindo a revisão quando desequilibra-se;
é bilateral, havendo obrigações impostas a ambas as partes, pela lei e pelo contrato; e é
consensual, sendo necessária apenas a manifestação das vontades para se aperfeiçoar, não
carecendo da entrega do bem, que é ato de execução do contrato. A entrega da posse,
inclusive, é a principal obrigação do locador.
É um contrato típico, nominado, com sua normatização prevista na lei. É também
principal, em regra, porque não depende de outro contrato para existir autonomamente.

2. Locação de imóveis urbanos

As regras da parte geral desta lei são aplicáveis a imóveis residenciais ou não
residenciais, a princípio, com as exceções que serão abordadas adiante. Vejamos o artigo 1º
da Lei 8.245/91:

“Art. 1º A locação de imóvel urbano regula-se pelo disposto nesta lei:


Parágrafo único. Continuam regulados pelo Código Civil e pelas leis especiais:

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Aula ministrada pela professora Consuelo Aguiar Huebra, em 6/2/2009.

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a) as locações:
1. de imóveis de propriedade da União, dos Estados e dos Municípios, de suas
autarquias e fundações públicas;
2. de vagas autônomas de garagem ou de espaços para estacionamento de veículos;
3. de espaços destinados à publicidade;
4. em apart-hotéis, hotéis-residência ou equiparados, assim considerados aqueles
que prestam serviços regulares a seus usuários e como tais sejam autorizados a
funcionar;
b) o arrendamento mercantil, em qualquer de suas modalidades.”

O imóvel urbano pode ser edificado ou não. Será definido como urbano de acordo
com sua destinação, e não de acordo com a localização: se é desenvolvida atividade
industrial ou econômica, ou se é utilizado para residência, é imóvel urbano; se é
desenvolvida atividade rural, é imóvel rural. Se for desenvolvida atividade mista, vige o
critério da preponderância; se não há preponderância clara, valem quaisquer regras
hermenêuticas existentes, como a precedência da atividade, a vocação da área, etc.
Os imóveis rurais são tratados no Estatuto da Terra, e não na Lei de Locações.
As exceções, em que a locação urbana não é regida pela Lei de Locações, estão nas
alíneas do parágrafo único deste artigo 1º. Os bens da União são regidos pelo Decreto
9.660/46; e os estados e municípios têm legislação própria, similar a este decreto da União.
As vagas de garagem não demandam a observação da Lei 8.245/91, porque não são
locações típicas (exceto se a vaga for inclusa no imóvel maior locado). Os espaços
publicitários não são também aqui regidos, porque não há a lógica da hipossuficiência
presumida do locatário. Os hotéis-residência, da mesma forma, não são implementos típicos
da locação, sendo sim contratos de hospedagem, que guardam diferenças bastantes para
fazer-lhes alheios à Lei de Locações, como o oferecimento de serviços. E por fim, o
arrendamento mercantil é contrato peculiar, que escapa à normalidade da locação regida
pela Lei 8.245/91.
O artigo 2º da Lei de Locações cria solidariedade entre os locadores ou locatários
plurais. Veja:

“Art. 2º Havendo mais de um locador ou mais de um locatário, entende - se que


são solidários se o contrário não se estipulou.
Parágrafo único. Os ocupantes de habitações coletivas multifamiliares presumem-
se locatários ou sublocatários.”

A solidariedade é imposta por lei, mas é permitido seu afastamento expresso pelo
contrato. O pólo solidário traz consigo todos os efeitos da solidariedade, tal como estudados
na parte geral do Código Civil. Veja, por exemplo, os artigos 283 e 284 do CC:

“Art. 283. O devedor que satisfez a dívida por inteiro tem direito a exigir de cada
um dos co-devedores a sua quota, dividindo-se igualmente por todos a do
insolvente, se o houver, presumindo-se iguais, no débito, as partes de todos os co-
devedores.”

“Art. 284. No caso de rateio entre os co-devedores, contribuirão também os


exonerados da solidariedade pelo credor, pela parte que na obrigação incumbia ao
insolvente.”

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Como a solidariedade é legal, Capanema sustenta que só se pode dela exonerar


algum dos participantes do pólo solidário por expressa inclusão no contrato, desde sua
formação.
A ação de despejo, na solidariedade ativa, entre locadores, pode ser intentada por
qualquer um deles, isoladamente – se qualquer um pode cobrar, qualquer um pode
demandar pela coisa. Esta ação, se há solidariedade passiva – entre os locatários –, para a
maior parte da doutrina e jurisprudência, deve incluir todos os locatários, eis que extinguirá
o pacto que todos concorreram com manifestações de vontade para formar, culminando no
desalijamento.
O parágrafo único do artigo 2º, supra, trata de assunto totalmente desvinculado do
caput. As habitações coletivas multifamiliares a que se refere são as casas de cômodo, por
exemplo, em que a situação é tendente à irregularidade, e por isso a regra estabelece uma
presunção a favor das pessoas que ali estão, fazendo-as menos desprotegidas.
O artigo 3º da Lei de Locações demanda várias observações. Veja:

“Art. 3º O contrato de locação pode ser ajustado por qualquer prazo, dependendo
de vênia conjugal, se igual ou superior a dez anos.
Parágrafo único. Ausente a vênia conjugal, o cônjuge não estará obrigado a
observar o prazo excedente.”

Em regra, não há limite de prazo para a locação. Mas há exigência de vênia


conjugal, tanto por parte do locador quanto do locatário, se o prazo supera dez anos. A
lógica da outorga uxória para o locador é simples: o bem está sendo dedicado à locação por
tempo muito grande, podendo afetar os interesses familiares. Para o locatário, o que
demanda a outorga uxória é o comprometimento de parte da renda familiar por período
muito grande.
A falta da vênia não torna nula a locação: apenas torna ineficaz o contrato, em
relação ao cônjuge que não anuiu, no que tange ao prazo que exceder dez anos.
Esta previsão estende-se ao companheiro, pela lógica da proteção à união estável
como entidade familiar.
Vale dizer que a Lei de Locações trata da locação de imóvel urbano, mas as normas
dedicadas à locação de coisas, constantes do CC, têm aplicabilidade subsidiária, no que
forem compatíveis. Mas veja que o artigo 4º da Lei de Locações, por exemplo, trata de
norma absolutamente incompatível com as normas do CC, pois que impede a retirada do
locador do contrato, a qualquer título, vedação absoluta que não existe no CC. Veja:

“Art. 4º Durante o prazo estipulado para a duração do contrato, não poderá o


locador reaver o imóvel alugado. O locatário, todavia, poderá devolvê-lo, pagando
a multa pactuada, segundo a proporção prevista no art. 924 do Código Civil e, na
sua falta, a que for judicialmente estipulada.
Parágrafo único. O locatário ficará dispensado da multa se a devolução do imóvel
decorrer de transferência, pelo seu empregador, privado ou público, para prestar
serviços em localidades diversas daquela do início do contrato, e se notificar, por
escrito, o locador com prazo de, no mínimo, trinta dias de antecedência.”

A multa contratual será reduzida eqüitativamente, na forma do artigo 45 da Lei


8.245/91, e também do artigo 413 do CC (que deve ser lido em substituição ao artigo 924
do CC de 1916, ali apontado):

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“Art. 45. São nulas de pleno direito as cláusulas do contrato de locação que visem
a elidir os objetivos da presente lei, notadamente as que proíbam a prorrogação
prevista no art. 47, ou que afastem o direito à renovação, na hipótese do art. 51, ou
que imponham obrigações pecuniárias para tanto.”

“Art. 413. A penalidade deve ser reduzida eqüitativamente pelo juiz se a obrigação
principal tiver sido cumprida em parte, ou se o montante da penalidade for
manifestamente excessivo, tendo-se em vista a natureza e a finalidade do negócio.”

Na locação por prazo indeterminado, a regra é outra, aplicando-se o artigo 6º da Lei


8.245/91:

“Art. 6º O locatário poderá denunciar a locação por prazo indeterminado mediante


aviso por escrito ao locador, com antecedência mínima de trinta dias.
Parágrafo único. Na ausência do aviso, o locador poderá exigir quantia
correspondente a um mês de aluguel e encargos, vigentes quando da resilição.”

O dispositivo fala em locatário, mas aplica-se também para o locador, desde que o
contrato seja por prazo indeterminado ab initio, e tenha sido contrato escrito. As
notificações devem ser inequívocas, em implemento da boa-fé objetiva.
Se o locador se nega a receber o imóvel, pode o locatário consignar as chaves
judicialmente, desobrigando-se dali em diante de suas obrigações contratuais. Mesmo se o
locatário estiver inadimplente, tem o poder de entregar as chaves, de forma a não agravar
sua situação de inadimplência.
Se há danos ao imóvel, o locador poderá exigir-lhes reparo, e para tanto, após a
recepção do imóvel, deverá consignar no recibo de quitação as suas ressalvas, observadas
na vistoria final antes da entrega. Tudo que o locador tiver a cobrar deverá observar ação
própria de cobrança, posterior à extinção do contrato de locação. Se não ressalva no
documento representativo da quitação aquilo que está em desconformidade – alugueres
vencidos, defeitos no bem –, ainda será possível cobrá-los, mas a prova de sua exigibilidade
será de sua incumbência, pois instala-se uma presunção relativa de perdão de tais dívidas,
quando exara a quitação sem ressalvas.
A vistoria extrajudicial tem sido refutada pelos tribunais, dada sua alta
informalidade; por isso, o locador se resguardará melhor se, desejoso de utilizar-se do
imóvel desde sua desocupação, ajuíze ação cautelar de produção antecipada de provas, com
o fito de emprestar caráter judicial a esta vistoria. Se não o faz, só poderá fazer a vistoria
judicial quando do curso da ação de cobrança, ficando sem uso do bem até então – o que
cria problema para o locador que quer locar o bem novamente.
A regra é que o locatário deve arcar com a multa pela saída prematura do contrato,
quando há prazo determinado. O parágrafo único do artigo 4º da Lei de Locações, porém,
traz uma exceção: quando a saída é motivada por transferência de serviço para localidade
diversa daquela em que se iniciou o contrato, imposta pelo empregador, e esta é notificada
com pré-aviso de trinta dias ao locador, não se exige a multa. A transferência por mera
vontade do locatário não o isenta da multa. E veja que a transferência não precisa ser de
município, ou estado; dependendo da circunstância, pode ser até mesmo dentro do próprio
município, a depender da casuística.
Quando se aluga um imóvel, se transfere a posse, mantendo o locador a propriedade
do bem. Pode acontecer de o locador sequer ter a propriedade, e mesmo assim a locação ser
legítima: é o caso dos usufrutuários, que podem alugar o bem de que têm uso e gozo.

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Qualquer um que tem posse, a pode transferir por locação, pois não transferirá mais do que
tem. A respeito, o artigo 7º da Lei de Locações é fundamental:

“Art. 7º Nos casos de extinção de usufruto ou de fideicomisso, a locação celebrada


pelo usufrutuário ou fiduciário poderá ser denunciada, com o prazo de trinta dias
para a desocupação, salvo se tiver havido aquiescência escrita do nuproprietário ou
do fideicomissário, ou se a propriedade estiver consolidada em mãos do
usufrutuário ou do fiduciário.
Parágrafo único. A denúncia deverá ser exercitada no prazo de noventa dias
contados da extinção do fideicomisso ou da averbação da extinção do usufruto,
presumindo-se, após esse prazo, a concordância na manutenção da locação.”

No caso do usufruto ou do fideicomisso, há exceção à relatividade contratual, pois


pessoa alheia ao pacto inicial tem inflexões sobre o contrato.
O artigo 8º da Lei 8.245/91 é bastante importante:

“Art. 8º Se o imóvel for alienado durante a locação, o adquirente poderá denunciar


o contrato, com o prazo de noventa dias para a desocupação, salvo se a locação for
por tempo determinado e o contrato contiver cláusula de vigência em caso de
alienação e estiver averbado junto à matrícula do imóvel.
§ 1º Idêntico direito terá o promissário comprador e o promissário cessionário, em
caráter irrevogável, com imissão na posse do imóvel e título registrado junto à
matrícula do mesmo.
§ 2º A denúncia deverá ser exercitada no prazo de noventa dias contados do
registro da venda ou do compromisso, presumindo-se, após esse prazo, a
concordância na manutenção da locação.”

A norma se refere a alienação, genericamente, significando que qualquer forma de


alienação empresta este direito ao adquirente. Os §§ deste artigo 8º trazem o mesmo direito
aos promitentes, compradores ou cessionários, desde que a sua promessa tenha sido
registrada. Veja que trata-se, aqui, da promessa de cessão, e não da cessão da promessa de
compra e venda já efetivada (porque então há simples promessa de compra e venda normal,
com novo promitente-comprador).
O aluguel-pena por descumprimento, por parte do locatário, do artigo 8º supra, se
negando a desocupar o bem, é defendido como possível por Capanema, com base na
aplicação subsidiária do artigo 575 do CC:

“Art. 575. Se, notificado o locatário, não restituir a coisa, pagará, enquanto a tiver
em seu poder, o aluguel que o locador arbitrar, e responderá pelo dano que ela
venha a sofrer, embora proveniente de caso fortuito.”

O STJ, no entanto, rejeita esta possibilidade, na maioria dos seus julgados.


A preempção, dada ao locatário na venda do imóvel, vem acompanhada da
estipulação do valor igualitário da proposta: o locatário só terá direito a haver o bem se
equiparar a proposta feita por terceiros, em todos os seus termos. Fazendo-o, se é preterido,
o locatário poderá até mesmo ajuizar a adjudicação compulsória, ou seja, é gerado direito
real de aquisição para o locatário, desde que o contrato esteja averbado ao menos trinta dias
antes da alienação. Veja os artigos 27 e 33 da Lei de Locações:

“Art. 27. No caso de venda, promessa de venda, cessão ou promessa de cessão de


direitos ou dação em pagamento, o locatário tem preferência para adquirir o imóvel

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locado, em igualdade de condições com terceiros, devendo o locador dar - lhe


conhecimento do negócio mediante notificação judicial, extrajudicial ou outro
meio de ciência inequívoca.
Parágrafo único. A comunicação deverá conter todas as condições do negócio e,
em especial, o preço, a forma de pagamento, a existência de ônus reais, bem como
o local e horário em que pode ser examinada a documentação pertinente.”

“Art. 33. O locatário preterido no seu direito de preferência poderá reclamar do


alienante as perdas e danos ou, depositando o preço e demais despesas do ato de
transferência, haver para si o imóvel locado, se o requerer no prazo de seis meses,
a contar do registro do ato no cartório de imóveis, desde que o contrato de locação
esteja averbado pelo menos trinta dias antes da alienação junto à matrícula do
imóvel.
Parágrafo único. A averbação far-se-á à vista de qualquer das vias do contrato de
locação desde que subscrito também por duas testemunhas.”

Suponha-se que haja uma relação de condomínio do imóvel, e haja locação sobre
este imóvel. Posto à venda, a preferência é do locatário ou dos demais condôminos?
A precedência é dos condôminos. A preempção do condômino suplanta a preempção
do locatário, sendo subsidiariamente observada: se os condôminos não quiserem adquirir o
restante do bem, observar-se-á a preempção da locação, e somente não havendo interesse,
passar-se-á à oferta livre no mercado.
O registro é perfeitamente admissível, a teor do artigo 167, II, 16, da Lei de
Registros Públicos, Lei 6.015/73:

“Art. 167 - No Registro de Imóveis, além da matrícula, serão feitos. (Renumerado


do art. 168 com nova redação pela Lei nº 6.216, de 1975).
(...)
II - a averbação: (Redação dada pela Lei nº 6.216, de 1975).
(...)
16) do contrato de locação, para os fins de exercício de direito de preferência.
(Incluído pela Lei nº 8.245, de 1991)
(...)”

O artigo 27 da Lei de Locações é bem claro. O artigo seguinte, 28, estabelece prazo
para o exercício da preempção pelo locatário, o qual só começa a correr quando
inequivocamente cientificado de todas as condições da alienação proposta. A jurisprudência
entende que este prazo, se findar em domingo ou feriado, não se prorroga até o próximo dia
útil, porque se trata de prazo para comunicação entre particulares, e não depende de
expediente de órgão algum para que esta se opere.

“Art. 28. O direito de preferência do locatário caducará se não manifestada, de


maneira inequívoca, sua aceitação integral à proposta, no prazo de trinta dias.”

Vale dizer que esta aceitação pelo locatário rege-se, excepcionalmente, pela teoria
da recepção, contrariando a teoria da expedição, regra geral do CC, no artigo 434, já
estudado.
O artigo 29 da Lei de Locações é importante:

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“Art. 29. Ocorrendo aceitação da proposta, pelo locatário, a posterior desistência


do negócio pelo locador acarreta, a este, responsabilidade pelos prejuízos
ocasionados, inclusive lucros cessantes.”

Veja que a aceitação pelo locatário nem sempre forma o contrato, porque a
solenidade é imposta, na maioria dos casos. Ocorre que mesmo inexistindo formalmente o
contrato solene, já há responsabilidade pelos termos do acato à proposta, na forma deste
artigo 29, em razão da expectativa criada.
O artigo 30 da Lei 8.245/91 também é relevante:

“Art. 30. Estando o imóvel sublocado em sua totalidade, caberá a preferência ao


sublocatário e, em seguida, ao locatário. Se forem vários os sublocatários, a
preferência caberá a todos, em comum, ou a qualquer deles, se um só for o
interessado.
Parágrafo único. Havendo pluralidade de pretendentes, caberá a preferência ao
locatário mais antigo, e, se da mesma data, ao mais idoso.”

A sublocação deve ser autorizada pelo locador. Quando há sublocação total


instalada, o sublocador assume a preferência antes do locatário. Se há mais de um
sublocatário, não há ordem de preferência legalmente um ou outro sublocatário,
particionando-se a preempção, estabelecendo-se, se necessário, uma relação de condomínio
entre os interessados. Se o condomínio não for da vontade dos sublocatários, observa-se o
parágrafo único deste artigo: o sublocatário mais antigo na relação ganha a preferência, e,
não havendo, o mais idoso.
O artigo 31 da Lei de Locações trata da alienação de unidades autônomas em bloco,
que não precisa observar a preempção de uma a uma das unidades autônomas: a preferência
é dada pela totalidade do bem que se está alienando – o prédio inteiro, por exemplo. Veja:

“Art. 31. Em se tratando de alienação de mais de uma unidade imobiliária, o


direito de preferência incidirá sobre a totalidade dos bens objeto da alienação.”

Havendo mais de um interessado, aplica-se a regra do artigo 30, supra.


Existem exceções à preempção, que são mais lógicas do que legais, apesar de
constarem expressamente do artigo 32 da Lei de Locações:

“Art. 32. O direito de preferência não alcança os casos de perda da propriedade ou


venda por decisão judicial, permuta, doação, integralização de capital, cisão, fusão
e incorporação.
Parágrafo único. Nos contratos firmados a partir de 1o de outubro de 2001, o
direito de preferência de que trata este artigo não alcançará também os casos de
constituição da propriedade fiduciária e de perda da propriedade ou venda por
quaisquer formas de realização de garantia, inclusive mediante leilão extrajudicial,
devendo essa condição constar expressamente em cláusula contratual específica,
destacando-se das demais por sua apresentação gráfica. (Incluído pela Lei nº
10.931, de 2004)”

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Casos Concretos

Questão 1

JOSÉ SILVA ajuizou, em face de JUAN MARCO, ação de despejo por falta de
pagamento, cumulada com cobrança de aluguéis e encargos, alegando, em síntese, que:
1º) é o novo proprietário do imóvel; 2º) o réu firmou contrato de locação com o antigo
proprietário, estando em atraso com o pagamento dos aluguéis, desde abril de 2003.
O réu em sua contestação alegou e provou que o antigo proprietário do bem,
SALVADOR SOARES, decidiu não cobrar mais o aluguel, transformando, assim, o
contrato de locação em comodato.
Diante do caso concreto, DECIDA.

Resposta à Questão 1

Assim se posicionou o TJ/RJ, na apelação cível 1999.001.13102:

“APELACAO. DES. SIDNEY HARTUNG - Julgamento: 30/09/1999 - DECIMA


TERCEIRA CAMARA CIVEL. AÇÃO DE DESPEJO por falta de pagamento c/c
Cobrança de alugueres. - Venda de imóvel. Comodato. - Cerceamento de defesa. -
Desistência do recurso. - Se o imóvel foi alienado a terceiro, não tem o adquirente
que se sujeitar ao alegado comodato ocorrido a favor do locatário, pois em face do
princípio da relatividade dos efeitos do contrato, este não atinge terceiros. - Não há
cerceamento de defesa quando evidenciada a irrelevância da prova pretendida pelo
locatário. Se a autora conseguiu através dos embargos de declaração a providência
pretendida em seu recurso, está o mesmo prejudicado. - 1º RECURSO:
PREJUDICADO. - IMPROVIMENTO DO 2º RECURSO.”

Questão 2

Traumatizados com o falecimento repentino de seus pais, João e Maria resolveram


alugar o imóvel da família e residir em outro, que alugaram. Como não conseguiram
pagar o referido aluguel, ajuizou o locador ação de despejo por falta de pagamento
cumulada com cobrança de alugueres apenas em face do locatário João. Não tendo o réu
exercido o direito potestativo de emendar a mora, o Juiz decretou o despejo. Maria, por
seu turno, ajuizou ação de embargos de terceiro, vez que não figurou do pólo passivo da
ação de despejo. Decida os embargos de terceiro.

Resposta à Questão 2

Em verdade, há uma séria divergência na doutrina sobre a presença dos locatários


solidários no pólo passivo. Parte significativa da doutrina defende que não há necessidade
de todos figurarem no pólo passivo da ação, pois a solidariedade se presta justamente a
permitir que qualquer um responda, isoladamente. Contudo, a maioria absoluta da doutrina
e jurisprudência entende que há um litisconsórcio passivo necessário no despejo, porque
apenas a obrigação de cunho pecuniário poderia ser exigida de forma isolada, e não a
obrigação pessoal de extinguir o contrato e retirar-se do imóvel: se para fazer nascer o

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vínculo demanda-se a vontade de ambos, o mesmo se faz necessário para extinguir tal
vínculo.

Questão 3

José, na qualidade de locador, celebrou contrato de locação envolvendo bem


imóvel utilizado para fins de moradia com Edson. Admitindo-se como provado que após a
celebração do referido contrato, o locador prometeu vender o imóvel a João e que este por
sua vez tenha cedido a referida promessa a Bernardo, queira responder se teria o locatário
legitimidade para propor ação de consignação de alugueres em face do promissário
cessionário.

Resposta à Questão 3

Veja como se posicionou o TJ/RJ, na apelação cível 2003.001.21704:


“DES. SYLVIO CAPANEMA - Julgamento: 27/01/2004 - DECIMA CAMARA
CIVEL. ACAO DECLARATORIA. CONTRATO DE LOCACAO. SUB-
ROGACAO. CONSIGNACAO DE ALUGUERES. DESPEJO.
Ação declaratória. Locação. Ação de despejo. Legitimidade. O promissário
cessionário dos direitos aquisitivos do imóvel locado sub-roga-se no contrato de
locação, fato reconhecido pelo próprio locatário, que consignou os alugueis, pelo
que não pode, agora, questionar a existência de relação de locação. A ação de
despejo por denúncia imotivada dispensa a prova da propriedade, dispensando-se o
registro do título. Desprovimento do recurso.”

Questão 4

Considerando que, no contrato de locação, há direito de retenção e de indenização


por benfeitorias necessárias, por expressa previsão do artigo 35 da Lei nº 8.245/91, é
válida a cláusula de renúncia aos benefícios assegurados na cláusula?

Resposta à Questão 4

Sim, porque esta cláusula apenas dispõe de direito disponível, e não pode ser
considerada abusiva. Nada há que impeça esta renúncia.
A respeito, veja a súmula 335 do STJ, e o REsp. 265.136, pela ordem:

“Súmula 335, STJ: Nos contratos de locação, é válida a cláusula de renúncia à


indenização das benfeitorias e ao direito de retenção.”

“PROCESSUAL CIVIL. Locação. Direito de retenção e Indenização de


benfeitorias. Cláusula de renúncia. Validade. Produção de prova pericial.
Cerceamento de defesa. Inexistência.
- Ainda que a nova Lei do Inquilinato assegure ao locatário, em seu artigo 35, o
direito de indenização e retenção pelas benfeitorias, é valida a cláusula inserida nos
contratos de locação urbana de renúncia aos benefícios assegurados.
- A existência de cláusula contratual em que o locatário renuncia ao direito de
retenção ou indenização torna desnecessária a realização de prova pericial das
benfeitorias realizadas no imóvel locado. Recurso especial não conhecido.”

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Tema XVI

Locação III. Garantias locatícias. Nulidades. Fraude à lei. Regime jurídico da locação para fins residenciais
e não residenciais. A relação jurídica entre empreendedor e lojista na locação em shopping-center.

Notas de Aula32

1. Sub-rogação na locação

Os artigos 10 a 13 da Lei de Locações trazem hipóteses de sub-rogação no contrato


de locação. A hipótese do artigo 10 é bem clara:

“Art. 10. Morrendo o locador, a locação transmite-se aos herdeiros.”

Inclua-se, ali, a pessoa do legatário, compreendendo-se herdeiros em sentido amplo.


O herdeiro sucede o locador original como se ele fosse, sem poder alterar ou denunciar o
contrato, não sendo tratado como adquirente.
O artigo 11 estabelece o direito das pessoas que se sub-rogam ao locatário falecido:

“Art. 11. Morrendo o locatário, ficarão sub - rogados nos seus direitos e
obrigações:
I - nas locações com finalidade residencial, o cônjuge sobrevivente ou o
companheiro e, sucessivamente, os herdeiros necessários e as pessoas que viviam
na dependência econômica do de cujus , desde que residentes no imóvel;
II - nas locações com finalidade não residencial, o espólio e, se for o caso, seu
sucessor no negócio.”

Da mesma forma, o contrato não pode ser alterado por quem se sub-roga: continua o
contrato como se ainda fosse presente o locatário falecido. Há que se mencionar que o STJ
tem decisões que reconhecem este direito de continuidade até mesmo ao companheiro em
união homoafetiva.
Há uma ordem de preferência entre as pessoas ali arroladas, se todos estiverem
presentes. Se há apenas um deles, ele terá o direito concentrado em si. Se não há qualquer
das pessoas ali arroladas, residindo ali quem não se enquadre nas hipóteses, não se deferirá
a sub-rogação. Todavia, ainda assim deverá ser ajuizada ação de despejo, e não reintegração
de posse por esbulho (mesmo que quem esteja lá não tenha legitimidade para estar), porque
assim se depreende do artigo 59, § 1º, IV, da Lei 8245/91:

“Art. 59. Com as modificações constantes deste capítulo, as ações de despejo terão
o rito ordinário.
§ 1º Conceder - se - á liminar para desocupação em quinze dias,
independentemente da audiência da parte contrária e desde que prestada a caução
no valor equivalente a três meses de aluguel, nas ações que tiverem por
fundamento exclusivo:
(...)
IV - a morte do locatário sem deixar sucessor legítimo na locação, de acordo com o
referido no inciso I do art. 11, permanecendo no imóvel pessoas não autorizadas
por lei;
(...)”
32
Aula ministrada pela professora Consuelo Aguiar Huebra, em 6/2/2009.

Michell Nunes Midlej Maron 16


EMERJ – CP III Direito Civil III

Os artigos 12 e 13 são hipóteses bem claras, auto-explicativas:

“Art. 12. Em casos de separação de fato, separação judicial, divórcio ou dissolução


da sociedade concubinária, a locação prosseguirá automaticamente com o cônjuge
ou companheiro que permanecer no imóvel.
Parágrafo único. Nas hipóteses previstas neste artigo, a sub-rogação será
comunicada por escrito ao locador, o qual terá o direito de exigir, no prazo de trinta
dias, a substituição do fiador ou o oferecimento de qualquer das garantias previstas
nesta lei.”

“Art. 13. A cessão da locação, a sublocação e o empréstimo do imóvel, total ou


parcialmente, dependem do consentimento prévio e escrito do locador.
§ 1º Não se presume o consentimento pela simples demora do locador em
manifestar formalmente a sua oposição.
§ 2º Desde que notificado por escrito pelo locatário, de ocorrência de uma das
hipóteses deste artigo, o locador terá o prazo de trinta dias para manifestar
formalmente a sua oposição.”

A sub-rogação se opera por mera notificação do interessado ao locador, notificação


judicial ou extrajudicial, manifestando sua vontade em sub-rogar-se. Se o locador se recusar
a dar continuidade ao contrato, caberá ação de consignação dos aluguéis, mas surge uma
peculiaridade: se a consignação for procedente, a jurisprudência entende que surge uma
nova relação jurídica, passando aquele que seria sub-rogado a ser designado como
locatário, expressamente.
Veja que o locador não pode negar a sub-rogação, mas o sub-rogado pode deixar de
querer dar continuidade ao contrato. A sub-rogação é automática para o locador, mas não
para o locatário.
Havendo qualquer hipótese de sub-rogação na posição de locatário, o fiador original
pode exonerar-se da fiança, pois que pode haver perda da fidúcia. Ocorrendo esta
exoneração, o locador poderá pedir a substituição da fiança, e se esta não ocorrer, nem algo
que a valha – caução, por exemplo –, poderá o locador resolver a locação.

2. Sublocações

O artigo 14 introduz o tratamento legal do tema, na Lei 8.245/91:

“Art. 14. Aplicam-se às sublocações, no que couber, as disposições relativas às


locações.”

Assim, a sublocação responde aos mesmos limites da locação original, não podendo
subverter as características elementares desta. Por exemplo, o preço do aluguel não pode
superar o da locação, nem o prazo lá estabelecido. Veja o artigo 21 da Lei de Locações:

“Art. 21. O aluguel da sublocação não poderá exceder o da locação; nas habitações
coletivas multifamiliares, a soma dos aluguéis não poderá ser superior ao dobro do
valor da locação.
Parágrafo único. O descumprimento deste artigo autoriza o sublocatário a reduzir o
aluguel até os limites nele estabelecidos.”
O artigo 15 desta lei dita norma bem lógica:

Michell Nunes Midlej Maron 16


EMERJ – CP III Direito Civil III

“Art. 15. Rescindida ou finda a locação, qualquer que seja sua causa, resolvem - se
as sublocações, assegurado o direito de indenização do sublocatário contra o
sublocador.”

Na sublocação legítima, como se sabe, não há relação entre o sublocatário e o


locador originário. Mas veja que a lei, por diversas vezes, excepciona a relatividade
contratual e demanda comunicações diretas entre estas pessoas, que a princípio não têm
qualquer relação jurídica. Exemplo é o artigo 16 da Lei de Locações, já comentado:

“Art. 16. O sublocatário responde subsidiariamente ao locador pela importância


que dever ao sublocador, quando este for demandado e, ainda, pelos aluguéis que
se vencerem durante a lide.”

O artigo 59, § 2º, impõe a comunicação ao sublocatário para figurar como assistente
na ação de despejo:

“Art. 59. Com as modificações constantes deste capítulo, as ações de despejo terão
o rito ordinário.
(...)
§ 2º Qualquer que seja o fundamento da ação dar - se - á ciência do pedido aos
sublocatários, que poderão intervir no processo como assistentes.”

3. Aluguéis

O contrato de locação, como dito, é comutativo, e por isso demanda um certo


equilíbrio entre a prestação do locado – a disponibilização do bem – e a contraprestação do
locatário – o pagamento do aluguel.
Em que pese o aluguel ser livre pactuação, está claramente sujeito aos institutos da
lesão, como qualquer negócio jurídico, e à onerosidade excessiva, no curso da relação. O
reajuste dos aluguéis é ditado pelo artigo 17 da Lei 8.245/91:

“Art. 17. É livre a convenção do aluguel, vedada a sua estipulação em moeda


estrangeira e a sua vinculação à variação cambial ou ao salário mínimo.
Parágrafo único. Nas locações residenciais serão observadas os critérios de
reajustes previstos na legislação específica.”

O artigo 85 da mesma lei merece observância:

“Art. 85. Nas locações residenciais, é livre a convenção do aluguel quanto a preço,
periodicidade e indexador de reajustamento, vedada a vinculação à variação do
salário mínimo, variação cambial e moeda estrangeira:
I dos imóveis novos, com habite-se concedido a partir da entrada em vigor desta
lei;
II - dos demais imóveis não enquadrados no inciso anterior, em relação aos
contratos celebrados, após cinco anos de entrada em vigor desta lei.”

Esta norma do artigo 85 foi norma de transição, sendo hoje observado os artigos 17
e 18 da Lei de Locações, quanto às vedações e permissões acerca do preço. O artigo 19
desta lei, por sua vez, vem tratar da hipótese em que não haja acordo sobre a revisão:

Michell Nunes Midlej Maron 16


EMERJ – CP III Direito Civil III

“Art. 18. É lícito às partes fixar, de comum acordo, novo valor para o aluguel, bem
como inserir ou modificar cláusula de reajuste.”

“Art. 19. Não havendo acordo, o locador ou locatário, após três anos de vigência
do contrato ou do acordo anteriormente realizado, poderão pedir revisão judicial do
aluguel, a fim de ajustá-lo ao preço de mercado.”

O aluguel só pode ser cobrado quando vencido, e nunca vincendo. Na locação por
temporada, há exceção, em que a cobrança antecipada é válida, bem como quando o
locador não exigiu nenhuma garantia para o contrato. Veja o artigo 20 da Lei de Locações:

“Art. 20. Salvo as hipóteses do art. 42 e da locação para temporada, o locador não
poderá exigir o pagamento antecipado do aluguel.”

A ação para revisão do contrato, quanto ao preço do aluguel, é a revisional de


aluguel.

4. Deveres das partes

A lei traz detalhadamente as normas sobre este tema, bastando a sua leitura. Há,
contudo, alguns comentários pontuais a serem feitos. Vejamos os artigos 22 e 23 da Lei de
Locações:

“Art. 22. O locador é obrigado a:


I - entregar ao locatário o imóvel alugado em estado de servir ao uso a que se
destina;
II - garantir, durante o tempo da locação, o uso pacífico do imóvel locado;
III - manter, durante a locação, a forma e o destino do imóvel;
IV - responder pelos vícios ou defeitos anteriores à locação;
V - fornecer ao locatário, caso este solicite, descrição minuciosa do estado do
imóvel, quando de sua entrega, com expressa referência aos eventuais defeitos
existentes;
VI - fornecer ao locatário recibo discriminado das importâncias por este pagas,
vedada a quitação genérica;
VII - pagar as taxas de administração imobiliária, se houver, e de intermediações,
nestas compreendidas as despesas necessárias à aferição da idoneidade do
pretendente ou de seu fiador;
VIII - pagar os impostos e taxas, e ainda o prêmio de seguro complementar contra
fogo, que incidam ou venham a incidir sobre o imóvel, salvo disposição expressa
em contrário no contrato;
IX - exibir ao locatário, quando solicitado, os comprovantes relativos às parcelas
que estejam sendo exigidas;
X - pagar as despesas extraordinárias de condomínio.
Parágrafo único. Por despesas extraordinárias de condomínio se entendem aquelas
que não se refiram aos gastos rotineiros de manutenção do edifício, especialmente:
a) obras de reformas ou acréscimos que interessem à estrutura integral do imóvel;
b) pintura das fachadas, empenas, poços de aeração e iluminação, bem como das
esquadrias externas;
c) obras destinadas a repor as condições de habitabilidade do edifício;
d) indenizações trabalhistas e previdenciárias pela dispensa de empregados,
ocorridas em data anterior ao início da locação;
e) instalação de equipamento de segurança e de incêndio, de telefonia, de
intercomunicação, de esporte e de lazer;

Michell Nunes Midlej Maron 16


EMERJ – CP III Direito Civil III

f) despesas de decoração e paisagismo nas partes de uso comum;


g) constituição de fundo de reserva.”

“Art. 23. O locatário é obrigado a:


I - pagar pontualmente o aluguel e os encargos da locação, legal ou
contratualmente exigíveis, no prazo estipulado ou, em sua falta, até o sexto dia útil
do mês seguinte ao vencido, no imóvel locado, quando outro local não tiver sido
indicado no contrato;
II - servir - se do imóvel para o uso convencionado ou presumido, compatível com
a natureza deste e com o fim a que se destina, devendo tratá-lo com o mesmo
cuidado como se fosse seu;
III - restituir o imóvel, finda a locação, no estado em que o recebeu, salvo as
deteriorações decorrentes do seu uso normal;
IV - levar imediatamente ao conhecimento do locador o surgimento de qualquer
dano ou defeito cuja reparação a este incumba, bem como as eventuais turbações
de terceiros;
V - realizar a imediata reparação dos danos verificados no imóvel, ou nas suas
instalações, provocadas por si, seus dependentes, familiares, visitantes ou
prepostos;
VI - não modificar a forma interna ou externa do imóvel sem o consentimento
prévio e por escrito do locador;
VII - entregar imediatamente ao locador os documentos de cobrança de tributos e
encargos condominiais, bem como qualquer intimação, multa ou exigência de
autoridade pública, ainda que dirigida a ele, locatário;
VIII - pagar as despesas de telefone e de consumo de força, luz e gás, água e
esgoto;
IX - permitir a vistoria do imóvel pelo locador ou por seu mandatário, mediante
combinação prévia de dia e hora, bem como admitir que seja o mesmo visitado e
examinado por terceiros, na hipótese prevista no art. 27;
X - cumprir integralmente a convenção de condomínio e os regulamentos internos;
XI - pagar o prêmio do seguro de fiança;
XII - pagar as despesas ordinárias de condomínio.
§ 1º Por despesas ordinárias de condomínio se entendem as necessárias à
administração respectiva, especialmente:
a) salários, encargos trabalhistas, contribuições previdenciárias e sociais dos
empregados do condomínio;
b) consumo de água e esgoto, gás, luz e força das áreas de uso comum;
c) limpeza, conservação e pintura das instalações e dependências de uso comum;
d) manutenção e conservação das instalações e equipamentos hidráulicos, elétricos,
mecânicos e de segurança, de uso comum;
e) manutenção e conservação das instalações e equipamentos de uso comum
destinados à prática de esportes e lazer;
f) manutenção e conservação de elevadores, porteiro eletrônico e antenas coletivas;
g) pequenos reparos nas dependências e instalações elétricas e hidráulicas de uso
comum;
h) rateios de saldo devedor, salvo se referentes a período anterior ao início da
locação;
i) reposição do fundo de reserva, total ou parcialmente utilizado no custeio ou
complementação das despesas referidas nas alíneas anteriores, salvo se referentes a
período anterior ao início da locação.
§ 2º O locatário fica obrigado ao pagamento das despesas referidas no parágrafo
anterior, desde que comprovadas a previsão orçamentária e o rateio mensal,
podendo exigir a qualquer tempo a comprovação das mesmas.
§ 3º No edifício constituído por unidades imobiliárias autônomas, de propriedade
da mesma pessoa, os locatários ficam obrigados ao pagamento das despesas
referidas no § 1º deste artigo, desde que comprovadas.”

Michell Nunes Midlej Maron 16


EMERJ – CP III Direito Civil III

O inciso VII do artigo 22 é alvo de controvérsias. As taxas de administração do


imóvel são devidas pelo locador, sendo nula a cláusula que as repasse ao locatário. Isto
porque há algumas taxas que, embutidas no preço geral da administração, tal como a taxa
de cadastro, que é a taxa de aferição de idoneidade dos locatários – o que reverte para a
segurança do locador, e por isso não há que ser repassada.
Outro serviço que deve ser pago é a própria feitura do contrato, sendo que
Capanema permite que seja adimplida por quem quer que seja apontado no contrato – vez
que a lei não expressa quem seja, e é do interesse privado, e portanto disponível. O TJ/RJ
entende, porém, que seja dever do locador, dada a presumida vulnerabilidade do locatário.
As despesas extraordinárias de condomínio não podem ser repassadas ao locatário,
sob pena de nulidade da cláusula que assim o preveja, a teor do artigo 22, X e parágrafo
único, supra.
O direito de retenção do bem pela realização de benfeitorias pelo locatário não é
regido pela norma geral do CC, que vem no artigo 1.219. Veja:

“Art. 1.219. O possuidor de boa-fé tem direito à indenização das benfeitorias


necessárias e úteis, bem como, quanto às voluptuárias, se não lhe forem pagas, a
levantá-las, quando o puder sem detrimento da coisa, e poderá exercer o direito de
retenção pelo valor das benfeitorias necessárias e úteis.”

O momento de pleitear a retenção é a contestação, em qualquer caso; a grande


diferença reside apenas na necessidade de serem as benfeitorias úteis autorizadas
previamente na locação – o que não é uma exigência da regra civilista. Veja o artigo 35 da
Lei de Locações:
“Art. 35. Salvo expressa disposição contratual em contrário, as benfeitorias
necessárias introduzidas pelo locatário, ainda que não autorizadas pelo locador,
bem como as úteis, desde que autorizadas, serão indenizáveis e permitem o
exercício do direito de retenção.”

Veja que é bem comum que haja cláusula contratual, perfeitamente válida, elidindo
qualquer indenização por benfeitorias por parte do locador.
O artigo 25 da Lei de Locações contém uma impropriedade, no parágrafo único:

“Art. 25. Atribuída ao locatário a responsabilidade pelo pagamento dos tributos,


encargos e despesas ordinárias de condomínio, o locador poderá cobrar tais verbas
juntamente com o aluguel do mês a que se refiram.
Parágrafo único. Se o locador antecipar os pagamentos, a ele pertencerão as
vantagens daí advindas, salvo se o locatário reembolsá-lo integralmente.”

Quando ali menciona “integralmente”, quis o legislador dizer “imediatamente”, pois


do contrário não haveria lógica nesta previsão: a vantagem da antecipação só faz sentido
aproveitar ao locatário se este imediatamente reembolsar ao locador que pagou adiantado.
5. Garantias locatícias

O artigo 37 da Lei 8245/91 é a sede:

“Art. 37. No contrato de locação, pode o locador exigir do locatário as seguintes


modalidades de garantia:

Michell Nunes Midlej Maron 16


EMERJ – CP III Direito Civil III

I - caução;
II - fiança;
III - seguro de fiança locatícia.
IV - cessão fiduciária de quotas de fundo de investimento. (Incluído pela Lei nº
11.196, de 2005)
Parágrafo único. É vedada, sob pena de nulidade, mais de uma das modalidades de
garantia num mesmo contrato de locação.”

A caução, em regra, é de dinheiro, e se o locador não deposita o valor de forma que


venha a render o mínimo que seja, quando o locatário vier a levantá-lo, terá o locador que
indenizá-lo pelos frutos perdidos.
A fiança é o principal instrumento de garantia que se utiliza. Veja o artigo 39 desta
Lei de Locações, que é a principal controvérsia que hoje se percebe, nesta seara:

“Art. 39. Salvo disposição contratual em contrário, qualquer das garantias da


locação se estende até a efetiva devolução do imóvel.”

Veja: se o contrato se inicia por prazo determinado, mas vem a ser prorrogado por
prazo indeterminado, como ficará a posição do fiador? Veja a súmula 214 do STJ:

“Súmula 214, STJ: O fiador na locação não responde por obrigações resultantes de
aditamento ao qual não anuiu.”

Esta súmula não fala em prorrogação, e sim aditamento. Há diferença: o aditamento


é alteração contratual, enquanto a prorrogação é mera extensão do prazo. Veja a súmula 134
do TJ/RJ:

“PRORROGAÇÃO DA LOCAÇÃO. RESPONSABILIDADE DO FIADOR ATÉ


A ENTREGA DAS CHAVES. ALTERAÇÃO NA ORIENTAÇÃO DA SÚMULA
214 DO STJ.
Nos contratos de locação responde o fiador pelas obrigações futuras após a
prorrogação do contrato por prazo indeterminado se assim o anuiu expressamente e
não se exonerou na forma da lei.”

6. Locação não residencial

A locação em que o locatário é pessoa jurídica, ou em que se intenta desenvolver


atividade empresarial, é não residencial. O artigo 51 da Lei de Locações é a sede, bastando
sua leitura:

“Art. 51. Nas locações de imóveis destinados ao comércio, o locatário terá direito a
renovação do contrato, por igual prazo, desde que, cumulativamente:
I - o contrato a renovar tenha sido celebrado por escrito e com prazo determinado;
II - o prazo mínimo do contrato a renovar ou a soma dos prazos ininterruptos dos
contratos escritos seja de cinco anos;
III - o locatário esteja explorando seu comércio, no mesmo ramo, pelo prazo
mínimo e ininterrupto de três anos.
§ 1º O direito assegurado neste artigo poderá ser exercido pelos cessionários ou
sucessores da locação; no caso de sublocação total do imóvel, o direito a renovação
somente poderá ser exercido pelo sublocatário.

Michell Nunes Midlej Maron 16


EMERJ – CP III Direito Civil III

§ 2º Quando o contrato autorizar que o locatário utilize o imóvel para as atividades


de sociedade de que faça parte e que a esta passe a pertencer o fundo de comércio,
o direito a renovação poderá ser exercido pelo locatário ou pela sociedade.
§ 3º Dissolvida a sociedade comercial por morte de um dos sócios, o sócio
sobrevivente fica sub-rogado no direito a renovação, desde que continue no mesmo
ramo.
§ 4º O direito a renovação do contrato estende - se às locações celebradas por
indústrias e sociedades civis com fim lucrativo, regularmente constituídas, desde
que ocorrentes os pressupostos previstos neste artigo.
§ 5º Do direito a renovação decai aquele que não propuser a ação no interregno de
um ano, no máximo, até seis meses, no mínimo, anteriores à data da finalização do
prazo do contrato em vigor.”

As locações em shopping centers são não residenciais, por óbvio, e regem-se pela
norma do artigo 54 da Lei de Locações. Veja:

“Art. 54. Nas relações entre lojistas e empreendedores de shopping center,


prevalecerão as condições livremente pactuadas nos contratos de locação
respectivos e as disposições procedimentais previstas nesta lei.
§ 1º O empreendedor não poderá cobrar do locatário em shopping center :
a) as despesas referidas nas alíneas a , b e d do parágrafo único do art. 22; e
b) as despesas com obras ou substituições de equipamentos, que impliquem
modificar o projeto ou o memorial descritivo da data do habite - se e obras de
paisagismo nas partes de uso comum.
§ 2º As despesas cobradas do locatário devem ser previstas em orçamento, salvo
casos de urgência ou força maior, devidamente demonstradas, podendo o locatário,
a cada sessenta dias, por si ou entidade de classe exigir a comprovação das
mesmas.”

Uma cláusula muito comum e peculiar do shopping center é a chamada res sperata:
no momento em que o shopping está em construção, o locatário é instado a contribuir para
o empreendimento, o que nada mais é do que uma forma de garantir a localização da loja. É
uma contribuição para a formação do sobrefundo de comércio, pertencente ao shopping em
si. É um pagamento pela “coisa esperada”, incluindo-se aí o local exato demarcado e o
próprio sobrefundo.
A res sperata pode ser indenizável se o empreendedor der causa culposamente ao
fracasso do empreendimento. Se não for culposo, o fracasso, a res sperata não é
indenizável: o risco é imanente a qualquer negócio.

Casos Concretos

Questão 1

Michell Nunes Midlej Maron 16


EMERJ – CP III Direito Civil III

Determinada franqueadora que atua no ramo de fotografias incluiu no contrato de


franquia que ficaria como locatária do imóvel em que a franqueada se estabeleceria como
sublocatária, possibilitando, com isso, em caso de desconformidade com o rumo do
contrato, a realização do despejo desta. Sob o argumento de a franqueada não estar
realizando a contento da franqueadora a publicidade intensa a que se obrigara, a
locatária (franqueadora) ajuizou ação de despejo em face da sublocatária (franqueada)
em razão de cláusula que estabelecia que a locação estaria vinculada à resolução do
contrato de franquia. Analise a validade da referida cláusula.

Resposta à Questão 1

É cláusula abusiva, vez que submete o franqueado ao arbítrio do franqueador.


Assim se manifestou o TJ/RJ, na apelação cível 2003.001.29982:

“DES. BENITO FEROLLA - Julgamento: 16/03/2004 - PRIMEIRA CAMARA


CIVEL. CONDOMINIO. LOTEAMENTO. DESPESAS CONDOMINIAIS.
LOCUPLETAMENTO ILICITO. IMPOSSIBILIDADE.
CONDOMÍNIO ATÍPICO. COBRANÇA DE COTAS DOS BENEFICIADOS
PELOS SERVIÇOS DE PORTARIA, VIGILÂNCIA, LIMPEZA E SEGURANÇA.
IMPOSSIBILIDADE DO LOCUPLETAMENTO INDEVIDO. LIÇÃO DA
JURISPRUDÊNCIA DO TRIBUNAL SOBRE O THEMA. SENTENÇA QUE
DEU ADEQUADA SOLUÇÃO A QUAESTIO. DESPROVIMENTO DO APELO
QUE SE IMPÕE.”

Questão 2

JAIRO , lojista do SHOPPING CENTER UNIÃO, ainda em fase de planejamento e


construção, ingressa com ação em face da respectiva administradora, com vistas à
repetição do valor pago a título de res sperata, tendo em vista a desistência por parte da B
& B, principal loja-âncora que integraria o empreendimento. Pergunta-se: é cabível, no
caso, a restituição da res sperata?

Resposta à Questão 2

Sim, é cabível, porque a desistência da loja, causadora da provável ruína do


empreendimento, é imputável à má gestão deste pela administração.
O STJ, no REsp. 152.497, assim se posicionou:

“SHOPPING CENTER. Contrato de reserva. Res sperata. Exceção de contrato não


cumprido. O lojista pode deixar de efetuar o pagamento das prestações previstas no
"contrato de direito de reserva de área comercial para instalação de loja e de
integração no 'tenant mix' do centro comercial" se o empreendedor descumpre com
a sua obrigação de instalar loja âncora no local previsto, em prejuízo do pequeno
lojista. Para isso, não há necessidade de também rescindir o contrato de locação da
loja. Art. 1092 do CCivil. Recurso conhecido e provido.”
Questão 3

Em determinada locação de shopping-center o fiador do lojista, em razão do


malogro do empreendimento, e com dificuldades de pagar os alugueres, pretende, em

Michell Nunes Midlej Maron 16


EMERJ – CP III Direito Civil III

embargos do devedor, compensar a cobrança dos alugueres com os gastos para a


colocação de um "girau, piso, pinturas e revestimentos, ar condicionado e instalações
térmicas, instalações, móveis e etc..." que realizou no imóvel e com o pagamento da res
sperata que não proporcionou a ele o lucro e clientela que esperava. Admitindo-se como
provado que o lojista renunciou ao recebimento de indenização por benfeitorias, queira
responder se é cabível a pretensão deduzida em sede de embargos.

Resposta à Questão 3

Veja como se posicionou o TJ/RJ, na apelação cível

“DES. MURILO ANDRADE DE CARVALHO - Julgamento: 25/05/2004 -


TERCEIRA CAMARA CIVEL. EMBARGOS DO DEVEDOR. LOCACAO.
FIANCA. TRANSACAO. INEXISTENCIA.
CIVIL. EMBARGOS DE DEVEDOR. LOCAÇÃO. FIANÇA. TRANSAÇÃO.
INEXISTÊNCIA. RES SPERATA. COMPENSAÇÃO. Execução de título
extrajudicial - contrato de locação de loja em shopping center - em face do fiador.
Pretensão do obrigado, em embargos de devedor, de compensar a dívida com o
valor das benfeitorias voluptuárias abandonadas pela locatária e com a parcela até
então paga da res sperata, incabível, aquela por se cuidar de res derelictae e esta
por sua irrepetibilidade, ante se cuidar de resilição unilateral do pacto pela
afiançada, ato que não se pode atribuir ao empreendedor. Improvimento do
recurso. Unânime.”

Tema XVII

Contrato de Fiança: Conceito, classificação e conteúdo. Espécies de fiança: fianças convencional, bancária,
legal e judicial. Abonação. Retrofiança. Co-fiança. Fianças condicional e limitada. Benefícios de ordem,

Michell Nunes Midlej Maron 16


EMERJ – CP III Direito Civil III

divisão e sub-rogação. Exoneração do fiador à luz do Código Civil e da lei do inquilinato. Extinção da
fiança.

Notas de Aula33

1. Fiança

A fiança tem toda sua razão de ser no cumprimento de uma obrigação. É a garantia
de que uma obrigação será cumprida, quer pelo devedor, quer pelo garantidor.
A base legal da fiança é o CC, nos artigos 818 a 839, os quais serão pontualmente
analisados. Comecemos, portanto pelas disposições gerais, a partir do conceito de fiança,
que é um contrato típico, e que tem conceito legal como uma obrigação de garantia.
As obrigações de garantia tiveram crescimento proporcional ao crescimento da
oferta e demanda por crédito na sociedade moderna. O crédito precisa levar em
consideração a capacidade, a idoneidade e o patrimônio, para ser confiável. Com isso,
diversos institutos surgiram com o intuito de garantir o adimplemento.
Veja que o adimplemento é demasiadamente relevante, socialmente, eis que o
inadimplemento é um fator de desestabilização social enorme, na medida que torna as
relações de confiança mais fragilizadas – o que faz com que o próprio mercado de crédito
compense a insegurança com o aumento das recompensas pelo risco, tais como os juros.
Destarte, a inadimplência aumenta o risco para os credores, que repassam o peso deste risco
aos demais devedores sociais.
Neste contexto, a garantia surge com grande importância, pois que diminui a
inadimplência das obrigações, eis que incumbe a um segundo a dívida não paga pelo
devedor principal – diminuindo a chance de inadimplência, tornando a sociedade negocial
mais estável.
Neste diapasão, surge a fiança. A função econômico-social da fiança é a de
proporcionar maior segurança para o credor, incentivando o incremento dos negócios,
intensificando as relações jurídicas, impulsionando a circulação de riquezas.
A primeira garantia do negócio em favor do credor é sempre o patrimônio do
devedor. Não sendo este suficiente para fazer frente ao crédito pretendido, poderá obtê-lo
mediante a oferta de garantias especiais, que objetivam o reforço da garantia geral. Três são
as espécies de garantias existentes: as garantias pessoais, que são o aval e a fiança; as
garantias reais, a hipoteca, o penhor e a anticrese; e as garantias atípicas, que são
inovações mercadológicas, como as lettres de patronnage34, a propriedade fiduciária e a
garantia à primeira demanda35.
33
Aula ministrada pela professora Maria Cristina de Brito Lima, em 9/2/2009.
34
Lettres de patronnage (comfort letter, cold letter, letere di conforto ou patronatklärungen): é a garantia pela
qual uma sociedade-mãe (controladora), mediante a emissão de uma “carta”, garante ao credor de sua
controlada (sociedade-filha) o pagamento do débito desta última, sendo variáveis a extensão e o alcance da
expressão “garante”, porquanto esta dependerá da modalidade da lettre emanada. A lettre de patronage, forma
peculiar de garantia, é um instituto ligado a um fenômeno de crescente difusão na economia moderna, o do
holding e da sociedade coligada.
35
As garantias sob demanda, que também são reguladas pela Convenção da UNCITRAL (United Nations
Comission on International Trade Law) sobre garantias independentes e cartas de crédito standby, podem ser
definidas como um compromisso escrito de pagamento, dado geralmente por um banco, de pagar ao
beneficiário um determinado valor, mediante a apresentação de pedido em conformidade com os termos e
condições ajustados no instrumento da própria garantia, acompanhado ou não de documentos ou de decisão

Michell Nunes Midlej Maron 17


EMERJ – CP III Direito Civil III

O vocábulo crédito, etimologicamente, vem do latim credere, que significa crer,


confiar; num meio em que o risco é imanente, como o negocial, a fiança assume o papel de
representar um incremento na confiança, ao criar expectativa maior de satisfação do
crédito, pelo garante, quando não pelo devedor principal.
Vejamos, então, o conceito legal da fiança, do artigo 818 do CC:

“Art. 818. Pelo contrato de fiança, uma pessoa garante satisfazer ao credor uma
obrigação assumida pelo devedor, caso este não a cumpra.”

A fiança classifica-se como contrato acessório, subsidiário ao principal; unilateral; e


gratuito, em regra, podendo, excepcionalmente, haver convencionada compensação pelos
riscos assumidos pelo fiador – o que o torna oneroso, como na fiança bancária.
A fiança é uma obrigação fidejussória, ou pessoal, em que o fiador se compromete
junto ao credor a pagar a prestação do devedor, se este não o fizer no tempo devido.
O artigo 819 do CC estabelece que a fiança é formal, escrita, e não admite
interpretação extensiva, vez que é gratuita, em regra. Veja:

“Art. 819. A fiança dar-se-á por escrito, e não admite interpretação extensiva.”

A fiança pode ser oferecida até mesmo sem o consentimento do devedor, vez que as
relações jurídicas são completamente apartadas: a relação jurídica do devedor com o credor
não se confunde com a relação do fiador com o credor. Veja o artigo 820 do CC:

“Art. 820. Pode-se estipular a fiança, ainda que sem consentimento do devedor ou
contra a sua vontade.”

A fiança ilimitada abrange todos os aspectos do crédito garantido, na forma do


artigo 822 do CC:

“Art. 822. Não sendo limitada, a fiança compreenderá todos os acessórios da


dívida principal, inclusive as despesas judiciais, desde a citação do fiador.”

Tudo que disser respeito à fiança deve constar no contrato, vez que formal, e assim
não é diferente com a ilimitação, que deve ser expressa.
Contrário senso, a fiança pode ser limitada, quanto a sua extensão, nos termos dos
artigos 823 e 830 do CC, ou quanto ao prazo. Veja:

“Art. 823. A fiança pode ser de valor inferior ao da obrigação principal e contraída
em condições menos onerosas, e, quando exceder o valor da dívida, ou for mais
onerosa que ela, não valerá senão até ao limite da obrigação afiançada.”

“Art. 830. Cada fiador pode fixar no contrato a parte da dívida que toma sob sua
responsabilidade, caso em que não será por mais obrigado.”

Outra característica da fiança, esta oriunda da sua acessoriedade, é a gravitação


jurídica, pois que se o contrato principal for nulo, é também nula a fiança. Há, contudo, a
exceção que o artigo 824 do CC estabelece:

judicial ou arbitral.

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“Art. 824. As obrigações nulas não são suscetíveis de fiança, exceto se a nulidade
resultar apenas de incapacidade pessoal do devedor.
Parágrafo único. A exceção estabelecida neste artigo não abrange o caso de mútuo
feito a menor.”

A fiança, como dito, é unilateral, mas há parte da doutrina que reputa-a contrato
bilateral imperfeito. Assim se posiciona Clóvis Bevillacqua, por entender que o credor pode
não aceitar o fiador apontado, e o fiador tem obrigações essenciais, enquanto o afiançado
tem obrigações eventuais.
Como dito, a fiança é gratuita, mas pode haver convenção das partes no sentido de
que haja alguma compensação para o fiador, pelo risco assumido. Neste caso, se torna
onerosa, pois o devedor afiançado passará a arcar com uma contraprestação pelo risco
assumido. É esta a dinâmica assumida nas cartas de fiança bancária – o que não elide a sub-
rogação integral do fiador no crédito que vier a adimplir.
A fiança é claramente intuitu personae, porque é calcada na confiança entre as
pessoas, afiançado e fiador.

1.1. Subfiança e retrofiança

Subfiança é a fiança da fiança, quando um terceiro, chamado abonador, presta


fiança do fiador ao credor, ou seja,garante o crédito que o credor principal terá quando vier
a exigir que o fiador arque com a dívida principal.
Retrofiança, por sua vez, é o contrato pelo qual o retrofiador se obriga a assegurar o
direito de regresso do fiador contra o devedor principal, quando o fiador veio efetivamente
a adimplir a dívida que afiançou. Entenda: o retrofiador assume o pagamento pelo débito ao
fiador que pagou a dívida principal e se sub-rogou nos direitos do credor. Ele assume a
exata posição do fiador principal, quando este fiador principal passa a ser credor, pois que
pagou a dívida principal.
Não se podem confundir os institutos, porque a dinâmica é diferente. Fica mais fácil
entender a separação dos conceitos se se tomar por base quem seja o credor, titular o crédito
garantido: na subfiança, o credor é o mesmo da relação original, ou seja, o fiador pactua um
terceiro contrato com o subfiador, que faz com que este seja responsável perante o credor
principal pelo mesmo crédito principal, que ainda não foi extinto. Na retrofiança, o crédito
garantido tem por titular o primeiro fiador, que o adimpliu junto ao credor principal – que
deixa de existir na relação – e passa a titularizar este crédito, por sub-rogação, contra o
devedor principal. Neste caso, o retrofiador colocar-se-á como garantidor do devedor
principal, passando a responder por este crédito devido ao fiador, oriundo do direito de
regresso por este detido.
Veja que se o abonador, na subfiança, pagar a dívida do fiador, surge para ele o
mesmo direito de regresso contra o fiador e contra o devedor principal. Concatenando o
raciocínio, se o fiador, demandado pelo abonador, arcar com a dívida, para este repassa o
direito de regresso – sempre culminando, a dinâmica, na pessoa do devedor principal como
último acionado final possível, em qualquer caso.

1.2. Requisitos da fiança

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A declaração de vontade de garantir o crédito oriundo de outro contrato é o requisito


de existência, que denota a consensualidade deste contrato formal.
Requisito de validade da fiança é o objeto lícito, ou seja, o crédito afiançado tem
que ser lícito; a manifestação da vontade tem que ser límpida, sem vícios; e a forma escrita
tem que ser observada.
Como requisito de eficácia da fiança, há que se observar o artigo 1.647, III, do CC:

“Art. 1.647. Ressalvado o disposto no art. 1.648, nenhum dos cônjuges pode, sem
autorização do outro, exceto no regime da separação absoluta:
(...)
III - prestar fiança ou aval;
(...)”

Destarte, a vênia conjugal, antiga outorga uxória, demanda atenção. Veja: nos
regimes da comunhão parcial, da comunhão universal, ou da participação final de aquestos
necessária a autorização do cônjuge; se casados no regime de separação total de bens, não
precisa de autorização para prestar fiança.
O artigo 1.649 do CC estabelece que é anulável, pelo outro cônjuge, fiança
concedida sem a outorga uxória. Veja:

“Art. 1.649. A falta de autorização, não suprida pelo juiz, quando necessária (art.
1.647), tornará anulável o ato praticado, podendo o outro cônjuge pleitear-lhe a
anulação, até dois anos depois de terminada a sociedade conjugal.
Parágrafo único. A aprovação torna válido o ato, desde que feita por instrumento
público, ou particular, autenticado.”

O sujeito casado, que seja empresário, pode prestar fiança ou aval sem autorização
do cônjuge, desde que estes sejam atos de administração. Veja o artigo 1.642, I, do CC:

“Art. 1.642. Qualquer que seja o regime de bens, tanto o marido quanto a mulher
podem livremente:
I - praticar todos os atos de disposição e de administração necessários ao
desempenho de sua profissão, com as limitações estabelecida no inciso I do art.
1.647;
(...)”

A cônjuge que, em qualquer caso, se se entender prejudicada, tem direito a preservar


sua meação, mas a súmula 332 do STJ impõe que a falta da outorga uxória, quando
necessária, causa ineficácia total da fiança, e não apenas parcial, até o limite da meação.
Veja:

“Súmula 332, STJ: A fiança prestada sem autorização de um dos cônjuges implica
a ineficácia total da garantia.”

Esta ineficácia total é um posicionamento estranho, porque o interesse da cônjuge


seria adstrito à nulificação apenas da parte da fiança que incidisse sobre sua meação, e não
de toda a fiança – seria ineficaz parcialmente, portanto. Vale a posição do STJ, porém.
Na união estável, salvo contrato escrito entre companheiros, aplica-se às relações
patrimoniais, no que couber, o regime de comunhão parcial de bens, de acordo com o artigo

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1.725 do CC. Portanto, se desatendida a regra do artigo 1.647, III, do C., a fiança será
anulável. Veja:

“Art. 1.725. Na união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-
se às relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de
bens.”

Como peculiaridade, vale mencionar que o analfabeto pode prestar fiança em nome
próprio, uma vez que não é incapaz. Contudo, como não domina a escrita, sua manifestação
de vontade demanda atenção: o analfabeto só pode prestar fiança, pessoalmente, por
instrumento público; por instrumento particular, deve ser representado no ato por
procurador legalmente constituído através de instrumento público.
Os requisitos especiais para ser fiador estão no artigo 825 do CC. Mas perceba:
estes requisitos não são imperativos, pois nada impede que o credor, à sua discrição, admita
como fiador alguém que não preencha estas qualidades. Veja:

“Art. 825. Quando alguém houver de oferecer fiador, o credor não pode ser
obrigado a aceitá-lo se não for pessoa idônea, domiciliada no município onde tenha
de prestar a fiança, e não possua bens suficientes para cumprir a obrigação.”

A idoneidade é aferida por meios diversos, tais como a consulta a cadastros


restritivos de crédito. A exigência de domicilio no município de exigibilidade da fiança se
justifica para facilitar a cobrança. E a exigência de solvência é bem lógica, pois só assim
poderá adimplir o que lhe for exigido.
As características do fiador, ali previstas, são constatadas quando da feitura do
contrato. Isto não significa que o fiador fica imobilizado em sua vida negocial: não se trata,
como dito, de uma garantia real, e por isso nada impede que o fiador aliene seus bens, que
não são gravados por qualquer ônus real. Contudo, se o fiador reduzir-se à condição de
insolvente, no curso da contratação, ou tornar-se incapaz, o credor pode exigir a
substituição do fiador, como o autoriza o artigo seguinte, 826 do CC:

“Art. 826. Se o fiador se tornar insolvente ou incapaz, poderá o credor exigir que
seja substituído.”

O devedor que toma conhecimento destas causas de substituição do fiador e não as


comunica ao credor, está obrando de má-fé, por ela respondendo no que for danosa.

1.3. Benefício de ordem

A fiança admite o chamado benefício de ordem, significando que primeiro incidirá a


cobrança do crédito sobre o patrimônio do devedor principal, e somente quando não for
suficiente, dirigir-se-á à excussão dos bens do fiador – o fiador é devedor subsidiário,
portanto, em regra. De fato, a regra é o benefício de ordem, ou seja, o fiador conta sempre
com este benefício, a não ser quando expressamente dele abdicar no contrato. Veja o artigo
827 do CC:

“Art. 827. O fiador demandado pelo pagamento da dívida tem direito a exigir, até a
contestação da lide, que sejam primeiro executados os bens do devedor.

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Parágrafo único. O fiador que alegar o benefício de ordem, a que se refere este
artigo, deve nomear bens do devedor, sitos no mesmo município, livres e
desembargados, quantos bastem para solver o débito.”

Por isso, a fiança é subsidiária como regra, mas se há a renúncia ao benefício de


ordem, há a solidariedade no pólo devedor. Nos contratos civis, é usual esta renúncia.
Na fiança empresarial, a regra se inverte: a solidariedade vem em primeiro plano,
podendo ser pactuada subsidiariedade.
O benefício de ordem, em suma, configura a prerrogativa que o fiador tem de
pretender que primeiro sejam excutidos os bens do devedor principal, nomeando, para
tanto, bens deste no município, livres e desembaraçados. Veja o artigo 839 do CC, e o
artigo 595 do CPC:

“Art. 839. Se for invocado o benefício da excussão e o devedor, retardando-se a


execução, cair em insolvência, ficará exonerado o fiador que o invocou, se provar
que os bens por ele indicados eram, ao tempo da penhora, suficientes para a
solução da dívida afiançada.”

“Art. 595. O fiador, quando executado, poderá nomear à penhora bens livres e
desembargados do devedor. Os bens do fiador ficarão, porém, sujeitos à execução,
se os do devedor forem insuficientes à satisfação do direito do credor.
Parágrafo único. O fiador, que pagar a dívida, poderá executar o afiançado nos
autos do mesmo processo.”

Deve ser invocada, esta prerrogativa, pelo fiador, até a contestação da lide,
nomeando, nesta oportunidade, os bens do devedor principal que devem garantir o débito
inadimplido.
O fiador pode renunciar ao benefício de ordem, tornando-se, neste caso, devedor
solidário. Veja o artigo 828 do CC:

“Art. 828. Não aproveita este benefício ao fiador:


I - se ele o renunciou expressamente;
II - se se obrigou como principal pagador, ou devedor solidário;
III - se o devedor for insolvente, ou falido.”

O fiador que pactua um contrato em que há cláusula de renúncia ao benefício de


ordem poderia alegar erro na sua manifestação de vontade, quando então reduzir-se-ia esta
apenas à pactuação da fiança, se comprovado o erro, excluindo-se apenas a cláusula de
renúncia, e não a fiança como um todo.

1.4. Espécies de fiança

A fiança pode ser civil ou comercial, quanto ao objeto, e pode ter fonte
convencional, legal ou judicial.
A convencional, por óbvio, é a fiança contratual. A fiança legal é aquela prevista na
lei, a exemplo dos artigos 1.280, 1.305 e 1.400 do CC:

“Art. 1.280. O proprietário ou o possuidor tem direito a exigir do dono do prédio


vizinho a demolição, ou a reparação deste, quando ameace ruína, bem como que
lhe preste caução pelo dano iminente.”

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“Art. 1.305. O confinante, que primeiro construir, pode assentar a parede divisória
até meia espessura no terreno contíguo, sem perder por isso o direito a haver meio
valor dela se o vizinho a travejar, caso em que o primeiro fixará a largura e a
profundidade do alicerce.
Parágrafo único. Se a parede divisória pertencer a um dos vizinhos, e não tiver
capacidade para ser travejada pelo outro, não poderá este fazer-lhe alicerce ao pé
sem prestar caução àquele, pelo risco a que expõe a construção anterior.”

“Art. 1.400. O usufrutuário, antes de assumir o usufruto, inventariará, à sua custa,


os bens que receber, determinando o estado em que se acham, e dará caução,
fidejussória ou real, se lha exigir o dono, de velar-lhes pela conservação, e entregá-
los findo o usufruto.
Parágrafo único. Não é obrigado à caução o doador que se reservar o usufruto da
coisa doada.”

A fiança judicial, criada por imposição do juízo, tem exemplos nos artigos 475-O,
III, e 835 do CPC:

“Art. 475-O. A execução provisória da sentença far-se-á, no que couber, do mesmo


modo que a definitiva, observadas as seguintes normas: (Incluído pela Lei nº
11.232, de 2005)
(...)
III – o levantamento de depósito em dinheiro e a prática de atos que importem
alienação de propriedade ou dos quais possa resultar grave dano ao executado
dependem de caução suficiente e idônea, arbitrada de plano pelo juiz e prestada
nos próprios autos. (Incluído pela Lei nº 11.232, de 2005)
(...)

“Art. 835. O autor, nacional ou estrangeiro, que residir fora do Brasil ou dele se
ausentar na pendência da demanda, prestará, nas ações que intentar, caução
suficiente às custas e honorários de advogado da parte contrária, se não tiver no
Brasil bens imóveis que lhes assegurem o pagamento.”

1.5. Fiança vs. aval

São institutos absolutamente diversos, valendo traçar resumo breve destas


distinções.
A fiança tem maior amplitude: pode ser civil ou comercial, dependendo do vínculo
jurídico; o aval é mais restrito: é garantia restrita a títulos de crédito.
A fiança é garantia acessória, gravitando acerca do principal, sendo nula se este for
nulo; o aval é contrato autônomo, tem validade mesmo que nulo o título de crédito.
Em regra a obrigação contida na fiança é subsidiária; em regra, a obrigação contida
no aval é solidária.
O fiador pode opor ao credor as exceções do devedor principal; o avalista não pode
opor ao credor as exceções próprias do avalizado.

1.6. Extinção e exoneração da fiança

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Há que se consignar uma assertiva que sintetiza o ponto em que se encontra a


jurisprudência sobre o tema, quando se tratar de contrato de locação: é preciso que esteja
destacado, no contrato de fiança, o termo final estipulado para esta, para que quando o
contrato de locação, que era por prazo determinado, se tornar por prazo indeterminado, haja
a exoneração do fiador por mera notificação aos demais relacionandos (em implemento à
boa-fé). Se a fiança não tiver prazo determinado, e o contrato afiançado prorrogar-se, assim
também se dará com a fiança, automaticamente.
Dito isso, vale mencionar as causas ordinárias para a extinção da fiança, que ou são
lógicas ou se encontram nos artigos 837 a 839 do CC. São elas: pagamento da dívida
principal; extinção do prazo da fiança; existência de exceções pessoais; quando o credor
concede moratória ao devedor, sem consentimento do fiador; quando por culpa do credor, o
fiador ficar sem direito de regresso; quando o credor aceita em pagamento do devedor, algo
diferente do que havia ajustado; ou se o credor que demora a cobrar a dívida do devedor,
que se torna insolvente.
Já a exoneração da fiança vem prevista no artigo 835 do CC:

“Art. 835. O fiador poderá exonerar-se da fiança que tiver assinado sem limitação
de tempo, sempre que lhe convier, ficando obrigado por todos os efeitos da fiança,
durante sessenta dias após a notificação do credor.”

Assim, o fiador pode se exonerar da fiança, que tiver contratado por tempo
indeterminado, a qualquer momento, ficando vinculado a seus efeitos por 60 dias, a partir
da notificação do credor .
A renúncia ao direito de exoneração, previsto neste artigo 835, é cláusula potestativa
pura, deixando apenas ao arbítrio do locador a extensão da garantia do fiador,
desequilibrando irrazoavelmente o contrato, e por isso sendo evidentemente nula.

Casos Concretos

Questão 1

Rose e Pablo, a pedido de uma sobrinha, tornaram-se fiadores em contrato de


locação de imóvel no ano de 1999 com prazo de duração de um ano. Em 2001, Pablo vem
a falecer e em 2004 a viúva é surpreendida por uma ação executória, cobrando encargos
da locação não pagos no período de março de 2002 a abril de 2003, data em que se
efetuou a entrega das chaves.
Em embargos à execução, Rose sustenta a inexegibilidade eterna da fiança, uma
vez que em momento algum ela ou seu falecido marido foram notificados da prorrogação
do contrato e, portanto, não anuíram com a prorrogação da fiança, pelo que só
responderiam no período de um ano do contrato, qual seja, de 1999 a 2000. O embargado,
por sua vez, invoca cláusula contratual no sentido de serem os fiadores responsáveis até a
entrega das chaves (art. 39 da Lei 8.245/91)

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Decida a questão, indicando os fundamentos fáticos e jurídicos aplicáveis.

Resposta à Questão 1

A fiança não pode ser presumidamente aceita como vigente até que se finde a posse
do locatário, sob pena de imporão fiador mais do que este pretendia com sua fidúcia. Sendo
assim, a norma do artigo 39 deve ser interpretada como atinente aos casos em que o fiador
assume, em contrato, expressamente, esta vinculação até a entregadas chaves.
Veja a posição do STJ, no REsp. 246.809, no agrg no agrg nos edcl no agrg no ag
562.477, e no agrg no REsp. 911.240, pela ordem:

“LOCAÇÃO. FIANÇA. DESONERAÇÃO. LEI Nº 8.245/91, ART. 39.


CÓDIGOCIVIL, ART. 1.500. PRORROGAÇÃO DO CONTRATO DE
LOCAÇÃO. 1. Não pode a norma da Lei nº 8.245/91, art. 39, que determina a
perpetuação da obrigação de garantia até a devolução do imóvel, ser interpretada
em dissonância da regra contida no CC, art. 1500. 2. Não se pode querer ver o
fiador responsabilizado indefinidamente, sem sua anuência, por acordo privativo
do locador e locatário, pelo qual entendem de prorrogar o contrato de locação sem
prazo determinado. Assim sendo, conforme entendimento desta Corte, 'não é
compatível a coexistência da cláusula de responsabilidade até a entrega das chaves,
com o instituto da prorrogação contratual indefinida', só podendo vigorar tal
disposição durante a vigência do contrato ao qual o fiador se vinculou. 3. Recurso
Especial não provido.”

“AGRAVO REGIMENTAL. LOCAÇÃO. FIANÇA. EXONERAÇÃO. PROR-


ROGAÇÃOCONTRATUAL. DISTINÇÃO. SÚMULA Nº 214/STJ.
INAPLICABILIDADE. 1. O entendimento predominante neste Superior Tribunal
de Justiça era de que o contrato de fiança, por ser interpretado restritivamente, não
vincula o fiador à prorrogação do pacto locativo sem sua expressa anuência, ainda
que houvesse cláusula prevendo sua responsabilidade até a entrega das chaves. 2. A
Terceira Seção desta Corte, no julgamento dos Embargos de Divergência nº
566.633/CE, em 22/11/2006, acórdão pendente de publicação, assentou, contudo,
compreensão segundo a qual não se confundem as hipóteses de aditamento
contratual e prorrogação legal e tácita do contrato locativo, concluindo que
"continuam os fiadores responsáveis pelos débitos locatícios posteriores à
prorrogação legal do contrato se anuíram expressamente a essa possibilidade e não
se exoneraram nas formas dos artigos 1.500 do CC/16 ou 835 do CC/02, a
depender da época em que firmaram o acordo".3. Na linha da recente
jurisprudência da Terceira Seção, não sendo hipótese de aditamento, mas de
prorrogação contratual, tem-se como inaplicável o enunciado de nº 214 de nossa
Súmula, sendo de rigor a manutenção do julgado. 4. Agravo regimental provido.”

“AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO ESPECIAL. LOCAÇÃO.


EXONERAÇÃO DAFIANÇA. CABIMENTO. INTUITU PERSONAE. 1. O
entendimento que restou consolidado no âmbito da 3ª Seção desta Corte Superior
de Justiça no julgamento dos Embargos de Divergência nº 566.633/CE, é no
sentido de que os fiadores continuam responsáveis pelos débitos locatícios
posteriores à prorrogação legal do contrato até a efetiva entrega das chaves, se
anuíram expressamente a essa possibilidade e não se exoneraram na forma dos
artigos 1.500 do Código Civil de 1916 ou 835 do Código Civil de 2002. 2. Tendo o
fiador notificado o locador de sua pretensão de exoneração do pacto fidejussório,
direito lhe assiste de se ver exonerado da obrigação, uma vez que o contrato
fidejussório é intuitu personae, sendo irrelevante, no caso, que o contrato locatício

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tenha sido estipulado por prazo determinado e ainda esteja em vigor. 3. Agravo
regimental improvido.”

Questão 2

Em execução fundada em título extrajudicial (contrato de fiança), Pedro, na


condição de fiador de Tiago, interpôs embargos do devedor visando ser excluído da
execução.
O embargante não informou o seu estado de casado quando se tornou fiador e
alega que a ausência da outorga uxória eiva de nulidade o contrato de fiança estabelecido,
não podendo, assim, ser responsabilizado pelo inadimplemento de Tiago quanto ao
pagamento das prestações.
Diante do caso concreto, DECIDA.

Resposta à Questão 2

Este caso denuncia a ocorrência de venire contra factum proprium, pois está o
fiador alegando nulidade em pacto por ele efetivado sem atenção ao vício que agora alega.
É clara violação à boa-fé objetiva. Veja: se ele é quem deveria colher a outorga, e não o fez,
não pode agora valer-se desta sua falha como método de desonerar-se. Ademais, a
legitimidade para esta alegação é do cônjuge prejudicado, e não daquele que pratica o ato
desautorizado.
Veja a apelação cível 2001.001.13561, do TJ/RJ:

“EMBARGOS DO DEVEDOR. CONTRATO DE LOCACAO. FIANCA.


CONJUGE MULHER. AUSENCIA DE CONSENTIMENTO. NULIDADE DO
CONTRATO. DESCABIMENTO. PENHORA DE BENS. DEFESA DA
MEACAO DA MULHER. VIA PROPRIA. RECURSO DESPROVIDO.
Embargos do devedor. Fianca prestada em locacao de bem imovel. Fiador que nao
revela sua condicao de casado e, executado, postula a nulidade do contrato.
Contrato valido, cabendo ao conjuge mulher utilizar-se dos instrumentos
processuais tendentes a preservar sua meacao com referencia aos bens
eventualmente penhorados. Desprovimento do recurso.
(...)
O ora embargante, ao prestar fiança em favor do locatário, garantindo o
cumprimento de suas obrigações perante o locador, não informou o seu estado de
casado, reconhecendo, nestes autos, que na ocasião já encontrava-se separado de
fato de sua esposa, não podendo contar com a sua aquiescência para o ato. Não,
evidentemente, agora, pretender valer-se de sua própria omissão para postular a
nulidade do ato, pela ausência de outorga uxória, posto que, de qualquer forma,
nulo não o seria, não podendo a nulidade aproveitar a quem lhe teria provocado,
cabendo à sua esposa, única legitimada para tanto, postular, pelas vias processuais
adequadas, que a sua meação não seja alcançada por eventuais atos de apreensão
judicial decorrentes da fiança prestada. ”

Veja também a posição do STJ, no REsp. 832.669:

“CIVIL. LOCAÇÃO. ALEGADA VIOLAÇÃO AO ART. 1.483 DO CÓDIGO


CIVIL DE 1916 E AO ART. 586 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL.
AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO. SÚMULA 211/STJ. FIANÇA.
OUTORGA UXÓRIA. AUSÊNCIA. VÍCIO QUE INVALIDA TOTALMENTE A

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GARANTIA, MAS QUE SÓ PODE SER ALEGADO PELO CÔNJUGE QUE


NÃO CONCEDEU A VÊNIA CONJUGAL. PRECEDENTES.
1. Este Superior Tribunal de Justiça pacificou o entendimento, cristalizado no
enunciado da Súmula 211/STJ, segundo o qual a mera posição de embargos
declaratórios não é suficiente para suprir o requisito do prequestionamento, sendo
indispensável o efetivo exame da questão pelo acórdão objurgado.
2. É pacífico neste Superior Tribunal de Justiça o entendimento de que a falta da
outorga uxória invalida a fiança por inteiro.
3. No caso dos autos, todavia, a falta da vênia conjugal foi argüida tão-somente
pelo cônjuge que prestou a fiança sem a autorização de sua esposa. Nesse caso, é
de se aplicar a orientação desta Corte no sentido de não conferir, ao cônjuge que
concedeu a referida garantia fidejussória sem a outorga uxória, legitimidade para
argüir a sua invalidade, permitindo apenas ao outro cônjuge que a suscite, nos
termos do art. 1.650 do atual Código Civil.
4. Recurso especial parcialmente conhecido e improvido.”

Vale, ainda, mencionar a súmula 332 do STJ, que faz com que a fiança seja
absolutamente ineficaz, e não apenas quanto à parte pertinente à meação da cônjuge
prejudicada.

Questão 3

Joaquim de Oliveira, proprietário do imóvel situado na Rua das Flores, nº 264, aptº
204, nesta cidade, celebrou contrato de locação não residencial, com término estipulado
para 19/06/2002, com Fátima Antunes e seu marido, nos moldes da Lei 8245/91, tendo
sido o mesmo prorrogado com cláusula expressa, por prazo indeterminado.
Nomeado fiador do negócio jurídico em tela, Gabriel Barreiro é surpreendido ao
ter que responder como Réu em ação de cobrança movida por Joaquim, alegando o
inadimplemento da locatária em relação a 12 meses de alugueres.
O Autor alega, em síntese, que o Réu, ao celebrar o contrato de fiança à época
ainda da vigência do Código Civil de 1916, renunciou expressamente aos artigos 1.491 e
1.504 (19ª cláusula do contrato) do mesmo estatuto e que estaria caracterizado, portanto,
ato jurídico perfeito.
Gabriel, inconformado sustenta que anuíra ao contrato de fiança com prazo inicial
e final determinado e que não consentiu expressamente na continuidade do mesmo.
Pergunta-se:
Se você fosse o juiz, como decidiria a questão?

Resposta à Questão 3

A desoneração do fiador demanda expressa previsão do prazo final da própria


fiança, no contrato em que for pactuada. Do contrário, aplica-se a norma do artigo 39 da
Lei 8.245/91:

“Art. 39. Salvo disposição contratual em contrário, qualquer das garantias da


locação se estende até a efetiva devolução do imóvel.”

In casu, há previsão de termo ad quem para a fiança. Por isso, é claro que a
anuência do fiador é imperativa para que se prorrogue a fiança, sob pena de se estender a
liberalidade além do que queria o fiador, violando a interpretação restritiva que se impõe ao

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contrato de fiança. Por isso, reputa-se inválida a prorrogação, quando a fiança tem prazo
determinado para findar-se.
A respeito, veja a posição do TJ/RJ, na apelação cível 2006.001.15013:

“FIANÇA. CARÁTER RESTRITO. LOCAÇÃO. PRAZO CERTO.


1. O contrato de fiança tem caráter benéfico, o que lhe atribui cunho restrito ao seu
conteúdo, à pessoa do fiador, e ao seu tempo de vigência – non extenditur de re ad
rem, de persona ad personam, de tempore ad tempus.
2. Caracteriza a condição potestativa pura e afigura-se inválida e ineficaz a
cláusula que, no momento da celebração de fiança, por tempo limitado – acessória
de locação por prazo determinado – dispõe sobre a sua prorrogação por tempo
ilimitado se a locação também foi prorrogada por prazo indeterminado.
3. Isto porque a eficácia desse ato subordina-se ao implemento de evento futuro e
incerto: prorrogação por prazo indeterminado, que ocorre exclusivamente pelo
consentimento tácito do locador e do locatário sem participação do fiador.
4. Assim, o efeito deste ato se sujeita, exclusivamente, ao arbítrio da outra parte.
5. Dessa forma, a continuidade da fiança no contrato prorrogado por tempo
indeterminado, com a alteração da sua modalidade para fiança sem limitação de
tempo, exige o expresso consentimento do feito.
6. Nestes aspecto, a fiança celebrada por tempo limitado extingue-se com o
decurso do prazo e, se ausente o consentimento do fiador, não se prorroga com a
alteração da sua modalidade (non extenditur de tempore ad tempus).”

Vale asseverar que, se não há determinação expressa do termo ad quem da fiança,


vige a cláusula de entrega das chaves, inclusive havendo prorrogação do contrato de
locação. Para exonerar-se, o fiador deve manifestar-se pela não concordância com a
prorrogação do contrato, sendo que se não o fizer, permanecerá vigente a fiança. veja o
artigo 40, IV e V, da Lei de Locações:

“Art. 40. O locador poderá exigir novo fiador ou a substituição da modalidade de


garantia, nos seguintes casos:
(...)
IV - exoneração do fiador;
V - prorrogação da locação por prazo indeterminado, sendo a fiança ajustada por
prazo certo;
(...)”

O inciso V, supra, confirma a regra da extinção da fiança quando o prazo desta for
determinado.

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Tema XVIII

Contrato de Empréstimo. Comodato: conceito, classificação e efeitos. Mútuo: conceito, classificação,


espécies e efeitos. Limite de juros remuneratórios no mútuo feneratício nas suas diversas possibilidades. O
anatocismo. Taxa de Juros. Lei de Usura. Estipulação usuária. Mútuo feito a menor.

Notas de Aula36

1. Contratos de empréstimo

O estudo destes contratos é de altíssima relevância, eis que são, hoje, forma das
mais presentes no meio negocial, implementos natos da circulação de riqueza, fomento da
economia.
Sob a denominação de empréstimo, agrupam-se duas figuras muito próximas:
comodato e o mútuo. Ambos os contratos tem um traço comum, porquanto os dois tipos
contratuais implicam na entrega de uma coisa para ser usada e depois restituída. No

36
Aula ministrada pelo professor Rafael Viola, em 9/2/2009.

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entanto, é nos efeitos de cada contrato e, em especial, em sua função econômica, que
encontraremos a distinção.
No mútuo, há transferência de propriedade, enquanto no comodato, cede-se apenas
a posse. É por isso que o comodato é o chamado empréstimo de uso, enquanto que o mútuo
é o empréstimo de consumo. Com efeito, no comodato o empréstimo será o da própria coisa
entregue, a ser ela própria restituída; no mútuo, todavia, a restituição será de coisa
equivalente. Nas palavras de Orlando Gomes:

“Distinguem-se porque: a) no mútuo a propriedade da coisa se transfere a quem a


tomou emprestada, o que não se verifica no comodato; b) no mútuo, a coisa
emprestada é fungível ou consumível, no comodato, não fungível e não
consumível.”

É preciso lembrar que na análise dos dois tipos contratuais, em especial o mútuo,
deve-se ter em mente a aplicação dos novos princípios contratuais complementares à
clássica teoria contratual. A boa-fé objetiva e a função social do contrato têm uma aplicação
específica na análise dos juros nos mútuos feneratícios, especialmente na função
interpretativa da boa-fé objetiva, como se verá adiante.
Vejamos cada uma das espécies de empréstimo, em apartado.

2. Comodato

Vale, de início, trazer os conceitos doutrinários deste contrato. Para Caio Mário da
Silva Pereira:

“Comodato é o empréstimo gratuito de coisas não fungíveis, isto é, aquele contrato


pelo qual uma pessoa entrega a outra, gratuitamente, coisa não fungível, para que a
utilize e depois restitua.”

Para Orlando Gomes:


“Comodato é a cessão gratuita de uma coisa para seu uso com estipulação de que
será devolvida em sua individualidade, após algum tempo.”

E para Arnaldo Rizzardo, o comodato:

“Define-se, pois, como o empréstimo gratuito de coisas não fungíveis, para serem
utilizadas e depois devolvidas.”

O legislador também ofereceu conceito, no artigo 579 do CC:

“Art. 579. O comodato é o empréstimo gratuito de coisas não fungíveis. Perfaz-se


com a tradição do objeto.”

Dos conceitos apresentados já se podem colher quais são as características


determinantes deste contato. A primeira que se observa é a sua natureza de contrato real,
que se perfaz apenas quando há a tradição da coisa. O contrato só passa a existir desde a
entrega da coisa. Esta classificação, como já se pôde ver, é fortemente criticada, porque é
uma exceção, sem qualquer lógica que a justifique, ao princípio do consensualismo.

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Outra característica, já mencionada, é que o contrato de comodato não implica em


transferência de propriedade. O comodatário recebe apenas o direito de usar e fruir do bem
infungível, não obtendo a possibilidade de dispor da coisa, já que deverá restituí-la.
Por outro lado, o comodato, enquanto contrato, supõe acordo de vontades, não
configurando comodato atos de mera tolerância de uso de uma coisa – há mera detenção.
Nas palavras de Washington de Barros Monteiro, o comodato:

“É contrato. Supõe, portanto, acordo de vontades; simples inércia ou tolerância do


dono da coisa, por si só, não gera relação contratual.”

Amparando-o, veja o que diz o artigo 1.208 do CC:

“Art. 1.208. Não induzem posse os atos de mera permissão ou tolerância assim
como não autorizam a sua aquisição os atos violentos, ou clandestinos, senão
depois de cessar a violência ou a clandestinidade.”

Sendo assim, se o detentor por mera tolerância se opõe ao exercício da posse pelo
real possuidor, a ação de reintegração da posse, por parte do possuidor esbulhado, será
certamente procedente.
Há, na firma do comodato, o desdobramento da posse, tornando-se o comodante
possuidor indireto e o comodatário possuidor direto da coisa. Por isso, ambos têm
legitimidade para defesa possessória contra terceiros (não mais se aplicando a análise da
posse nova ou velha, sendo posse legítima aquela que for a melhor, diante do título e da
boa-fé37).
Havendo qualquer situação que revele posse precária, injusta, do comodatário –
como quando se nega a restituir a coisa após o termo final do contrato –, a posse do
comodante pode ser protegida contra este comodatário, que passa a ser esbulhador. Da
mesma forma, se o comodante revela conduta injusta contrária à posse do comodatário,
terá este possuidor direto ação possessória contra o comodante. Vale dizer que o comodante
nunca terá ação de despejo contra o comodatário: a ação é sempre possessória, pois o
despejo é reservado aos contratos de locação, exclusivamente.
O contrato de comodato é eminentemente unilateral, porque apenas o comodatário
tem obrigações, sendo principal a de restituir. Veja que a entrega do bem pelo comodante
não é uma obrigação contratual: é o próprio ato de formação do contrato, que é real. Sendo
assim, depois da entrega, que forma o contrato, inicia-se seu curso de execução, e nada
mais há a ser cumprido pelo comodante – e por isso é contrato unilateral.
Há autores que entendem que o comodato é bilateral imperfeito. Esta classificação
significa que, de início, é unilateral, mas como no curso da relação contratual pode haver
surgimento de obrigação para quem nada devia no início, há bilateralidade superveniente, e
esta obrigação eventual superveniente, no comodato, seria, por exemplo, o ressarcimento de
despesas extraordinárias. A bilateralidade imperfeita, portanto, é aquela eventual,
superveniente. Mas, ainda que assim se entenda este contrato, a ele se aplicam as regras dos
contratos unilaterais.
O comodato é gratuito. Se houver onerosidade, a função do contrato se altera,
desnaturando o contrato. Isto porque a causa do comodato é, para o comodatário, receber a

37
Ainda persiste a idéia de posse nova ou velha apenas para efeito de concessão de liminar em ações
possessórias, o que na verdade cria a idéia de ação de força nova ou ação de força velha, mais tecnicamente.

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disponibilidade do bem, e para o comodante, a causa é a liberalidade – tal qual na doação.


Ocorre que, havendo remuneração, estar-se-á diante de causa diversa daquela que cria o
comodato, passando a ser uma locação, que tem por causa natural esta remuneração. Nas
palavras de Orlando Gomes:

“É da essência do contrato o uso gratuito da coisa. Do contrário, haverá locação, se


a remuneração for em dinheiro, ou contrato atípico, se consistir em prestação de
fatos.”

Significa, em suma, que o comodato é feito no exclusivo interesse do comodatário.


Por conta disso, são impostas a ele as despesas com conservação, ordinárias, da coisa. Veja
o artigo 584 do CC:

“Art. 584. O comodatário não poderá jamais recobrar do comodante as despesas


feitas com o uso e gozo da coisa emprestada.”

O comodato nem sempre é desinteressado, como se pode pensar. Há contratos que


podem assim ser celebrados, mas é possível que haja o comodato modal, que é aquele feito
mediante alguma compensação de natureza diversa à de contraprestação – sob pena, como
dito, de se desnaturar o contrato de comodato. Exemplo de comodato modal é o empréstimo
das bombas de gasolina pelas distribuidoras ao postos: só o fazem mediante a assinatura de
contrato de revenda exclusiva do seu combustível, o que torna o comodato modal, sem
configurar contraprestação ou remuneração pelo comodato das bombas. Em síntese, o
contrato modal é o comodato com encargo (modus, em latim).
O comodato é um contrato temporário. O contrato nasce para ser extinto, pois que
se for perpétuo tratar-se-á de doação, posto que a causa deste, sua função econômica, deixa
de ser compatível com aquilo que se espera como causa do contrato. O prazo, no entanto,
pode ser determinado ou indeterminado, sem problemas.
A natureza intuitu personae do comodato é altamente controvertida. O Código Civil
de 2002 não menciona se o contrato de comodato é personalíssimo ou não. O que se
verifica é que, embora não seja essencialmente celebrado intuitu personae, habitualmente
traduz um favorecimento pessoal do comodatário. Deve-se, portanto, analisar o caso
concreto para verificar se o contrato se extingue ou não com a morte do comodatário, pois
qualquer contrato pode ser intuitu personae ou não, se as partes assim o reputarem, mas se
não o fizerem, e não for sua natureza legal, dependerá da análise da casuística esta
configuração.
Gustavo Tepedino, Heloisa Helena e Maria Celina Bodin de Moraes assim se
pronunciaram sobre isto:

“Tendo em vista o silêncio do legislador, caberá ao juiz, portanto, decidir em face


das características do contrato no caso concreto.”

E Silvio Rodrigues, por sua vez, disse que:

“Deve o julgador ter em vista que se trata de um negócio feito intuitu personae, de
modo que as vantagens dele oriundas, em regra, não se transmitem aos herdeiros
do beneficiário. Mas podem se transmitir.”

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Veja que Silvio Rodrigues parte da presunção que seja intuitu personae, mas
permitindo que esta seja afastada pela percepção, no caso concreto, de intentos diversos.
Exemplos vêm a calhar: se alguém empresta um trator para uma colheita, se o comodatário
morre antes de finda a colheita, é claro que o comodato se transmite aos herdeiros, pois que
seu escopo nada tem com a pessoa do comodatário estar ou não viva; já se o contrato é o
empréstimo de um carro para um amigo, este morrendo, não se passa o comodato aos
herdeiros, em regra.

2.1. Requisitos

Os requisitos subjetivos são referentes às partes do contrato. O primeiro requisito


subjetivo é a capacidade. Em regra, todas as pessoas civilmente capazes podem ser partes
no comodato.
O artigo 580 do CC, no entanto, veda que os administradores de bens alheios os
dêem em comodato. Isto se deve pelo fato de que o empréstimo gratuito não pode ser
qualificado como ato de administração normal. Sendo conveniente, no entanto, pode-se
realizar o comodato, desde que se obtenha a autorização especial do dono, ou se este for
incapaz, do juiz. Veja o dispositivo em questão:

“Art. 580. Os tutores, curadores e em geral todos os administradores de bens


alheios não poderão dar em comodato, sem autorização especial, os bens confiados
à sua guarda.”

Como visto, importando em cessão de uso, não é necessário que o comodante seja o
proprietário da coisa. Desde que tenha o uso, poderá ceder o uso gratuitamente, salvo
vedação legal ou contratual. Vale observar o artigo 13 da Lei 8.245/91:

“Art. 13. A cessão da locação, a sublocação e o empréstimo do imóvel, total ou


parcialmente, dependem do consentimento prévio e escrito do locador.
§ 1º Não se presume o consentimento pela simples demora do locador em
manifestar formalmente a sua oposição.
§ 2º Desde que notificado por escrito pelo locatário, de ocorrência de uma das
hipóteses deste artigo, o locador terá o prazo de trinta dias para manifestar
formalmente a sua oposição.”

Não havendo esta autorização, o empréstimo do imóvel de que se tem posse como
locatário implica em ineficácia e é violação contratual, ensejadora até mesmo de despejo.
Os requisitos objetivos dizem respeito a que tipo de bem pode ser emprestado. Por
certo, o objeto deve ser lícito, possível e determinado e, conforme dispõe o artigo 579 do
CC, já transcrito, pode ser objeto do comodato qualquer bem infungível, seja móvel ou
imóvel. Coisas fungíveis só podem ser objeto de mútuo.
Há também o chamado comodato ad pompam: consiste no empréstimo de produtos
quaisquer, inclusive perecíveis, tão-somente com a finalidade de serem expostos, de
servirem como objetos de exposição.
Veja o que diz Orlando Gomes sobre o objeto do comodato:

“Não só as coisas fungíveis repugnam a esse contrato, mas também as


consumíveis. Desde que tais coisas, por definição, destruam-se imediatamente em

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sua substância pelo uso, não podem ser objeto de um contrato que gera a obrigação
de restituí-las na mesma individualidade.”

É claro que a coisa consumível, ainda que infungível, não pode ser objeto de
comodato, se o que recebe a coisa a pode consumir no uso que fará. Este contrato terá
qualquer natureza, menos de comodato.

2.2. Prazo

O comodato pode ter prazo determinado ou indeterminado. No ajuste por prazo


indeterminado, as partes deverão respeitar o prazo necessário para o comodatário servir-se
da coisa para o fim a que se destinava.
Se, no entanto, o prazo for determinado, o comodante deverá aguardar o término do
prazo, salvo necessidade imprevista e urgente reconhecida pelo juiz. O comodante, ainda
que tenha uma situação imprevista e urgente, não pode arbitrariamente exigir a devolução
do bem, mas deverá ingressar com ação para obter o provimento jurisdicional que o
autorize a resolver o contrato. Veja o artigo 581 do CC:

“Art. 581. Se o comodato não tiver prazo convencional, presumir-se-lhe-á o


necessário para o uso concedido; não podendo o comodante, salvo necessidade
imprevista e urgente, reconhecida pelo juiz, suspender o uso e gozo da coisa
emprestada, antes de findo o prazo convencional, ou o que se determine pelo uso
outorgado.”

Necessidade imprevista é a que surge após a celebração da avença. Para Carlos


Roberto Gonçalves

“Compete ao juiz examinar, em cada caso, a necessidade e urgência alegadas,


negando o pedido quando verificar que foi formulado por mero capricho, havendo
abuso do direito por parte do comodante.”
Não é facultado ao comodante a resilição ad nutum, pois o contrato é celebrado no
interesse do comodatário.
Aqui repousa a mais clara diferença entre contrato de comodato e o contrato de
depósito com uso: por ser o comodato no interesse do comodatário, há que se respeitar esta
cautela com a expectativa gerada; como no depósito com uso o contrato é feito no interesse
do depositante, este pode pedir a restituição sem maiores resguardos, eis que não há
expectativa, pelo depositário, em relação ao uso da coisa. É simples: a função econômica
do contrato de comodato é o uso da coisa, e deve ser a expectativa respeitada, enquanto a
função econômica do contrato de depósito é a guarda da coisa, que não é desrespeitada se
houver a retomada a qualquer tempo pelo depositante. No depósito, ainda que tenha prazo,
a retomada do bem é ad nutum.

2.3. Obrigações do comodatário

2.3.1. Guarda e conservação da coisa

É obrigação do comodatário guardar e conservar a coisa emprestada como se sua


fosse. A análise do que seja uma guarda diligente é feita à luz do homem médio, ou seja, o

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comodatário não pode argumentar que seu cuidado com suas coisas próprias é desidioso,
pretendendo que assim também possa conduzir-se na guarda da coisa dada em comodato.
A conservação da coisa implica nos gastos ordinários, mas é claro que o
comodatário não pode ser responsabilizado pelo desgaste natural da coisa. Veja os artigos
582 e 584 do CC:

“Art. 582. O comodatário é obrigado a conservar, como se sua própria fora, a coisa
emprestada, não podendo usá-la senão de acordo com o contrato ou a natureza
dela, sob pena de responder por perdas e danos. O comodatário constituído em
mora, além de por ela responder, pagará, até restituí-la, o aluguel da coisa que for
arbitrado pelo comodante.”

“Art. 584. O comodatário não poderá jamais recobrar do comodante as despesas


feitas com o uso e gozo da coisa emprestada.”

O comodatário não pode exigir os gastos normais com a utilização da coisa, pois ele
é quem se beneficia pelo uso. No entanto, dos gastos extraordinários ele será reembolsado,
inclusive as benfeitorias necessárias que fizer. A condição é de que os gastos sejam
extraordinários e urgentes.
Para Caio Mário, não caberá reembolso pelas despesas para a melhoria da coisa,
ainda que ultrapassem da normalidade e a tornem mais prestadia. Destarte, as benfeitorias
úteis e voluptuárias não são indenizáveis jamais.
Já para Washington de Barros se o comodatário, de boa-fé, à vista do comodante,
benfeitoriza a coisa, deve ser oportunamente ressarcido, a fim de que não se tutele o
enriquecimento sem causa.
O STJ parece acompanhar a posição de Caio Mário, ao entender que as despesas
não extraordinárias e urgentes precisam da autorização prévia do comodatário. Veja, a
respeito, o Resp. 249.925, relatado pela Ministra Nancy Andrighi:

“CIVIL E PROCESSO CIVIL. CONTRATO DE COMODATO. REFORMA DE


IMÓVEL RESIDENCIAL PELO COMODATÁRIO. MAIS VALIA. ART. 1256
DO CÓDIGO CIVIL. NECESSIDADE DE REEXAME PROBATÓRIO.
ACÓRDÃO ESTADUAL QUE CONCLUI PELO PROPÓSITO DE USO E
GOZO CONJUNTO DE MARIDO E MULHER. IMPOSSIBILIDADE DE
ALTERAÇÃO DE PREMISSA FÁTICA ESTABELECIDA NAS INSTÂNCIAS
DE ORIGEM. RECURSO ESPECIAL NÃO CONHECIDO. I - As despesas feitas
pelo comodatário, com a fruição da coisa emprestada, nos termos do art. 1254 do
Código Civil, são as ordinárias, para sua conservação normal e manutenção
regular. Despesas outras realizadas sem consentimento do comodante, ainda que
impliquem na mais valia do bem, só são indenizáveis se urgentes e necessárias,
quando se classificam como extraordinárias. II - Não se aprecia em recurso
especial, o cotejo probatório realizado no primeiro e segundo grau de jurisdição,
sendo inalterável a conclusão de que as melhorias procedidas no imóvel não foram
extraordinárias, mas com o propósito de usufruto, além de destacadas
particularidades como ausência de pagamento de cotas condominiais e impostos
pelo comodatário.” (grifo nosso)

O TJ/RJ, por sua vez, alinha-se com Washington de Barros, como se pode ver na
apelação cível 2006.001.28288, relatada pelo Desembargador Milton Fernandes de Souza:

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“POSSE. REINTEGRAÇÃO. COMODATO. BENFEITORIAS.


INDENIZAÇÃO. 1- O ajuizamento da ação de reintegração de posse
configura o desejo da parte reaver o bem com a conseqüente extinção
do comodato. 2- Desta forma, a resistência do possuidor em
desocupar o imóvel, torna a posse que antes era justa, em injusta,
porque precária, e impõe o deferimento da proteção possessória
contra ele dirigida. 3-Nessas circunstâncias, o possuidor de boa fé
tem o direito de indenização pelas benfeitorias necessárias e úteis,
com o respectivo poder de retenção, e o de ressarcimento das
voluptuárias, se não puder levantá-las sem detrimento do imóvel.”
(grifo nosso)

Ainda sobre esse dever, a má conservação da coisa implica no ressarcimento das


perdas e danos ao comodante, salvo caso fortuito e força maior. Ressalte-se que em caso de
perigo, deve salvar os bens do comodante antes dos seus, sob pena de responder por perdas
e danos, ainda que por caso fortuito ou força maior – é a chamada perpetuação da
obrigação. Veja o artigo 583 do CC:

“Art. 583. Se, correndo risco o objeto do comodato juntamente com outros do
comodatário, antepuser este a salvação dos seus abandonando o do comodante,
responderá pelo dano ocorrido, ainda que se possa atribuir a caso fortuito, ou força
maior.”

O comodatário também fica responsável pelos riscos da coisa ainda que proveniente
de caso fortuito e força maior, em razão do princípio da perpetuação da obrigação.

“Art. 399. O devedor em mora responde pela impossibilidade da prestação, embora


essa impossibilidade resulte de caso fortuito ou de força maior, se estes ocorrerem
durante o atraso; salvo se provar isenção de culpa, ou que o dano sobreviria ainda
quando a obrigação fosse oportunamente desempenhada.”
2.3.2. Uso correto da coisa

É obrigação do comodatário usar a coisa de acordo com a finalidade estipulada, ou


sua própria destinação natural. Por exemplo, se o imóvel for dado em comodato para uso
residencial, o uso comercial implica em infringência contratual, tornando-o passível de
resolução.

2.3.3. Restituição da coisa

O artigo 582 do CC, há pouco transcrito, impõe a restituição da coisa como a


principal obrigação do comodatário. Se se negar a restituí-la, quando devido, padecerá o
comodatário do chamado aluguel-pena. Recusando-se o comodatário à entrega do bem,
incorre em mora, ficando sujeito à ação de reintegração de posse, e não de despejo, pois
não existe relação locatícia.
Veja que a terminologia aluguel-pena não podia ser mais enganosa: não só não é um
aluguel, porque não há locação, e este termo se dedica exclusivamente a identificar o preço
pago pelo locatário, como não é uma pena, pois que tem natureza de indenização pelos
danos sofridos pelo comodante com a indisponibilidade do bem.

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Observe-se que o aluguel-pena do referido dispositivo deve atender aos princípios


da boa-fé objetiva e função social, sendo dever do juiz reduzir a multa quando for
manifestamente excessiva, na forma do artigo 413 do CC:

“Art. 413. A penalidade deve ser reduzida eqüitativamente pelo juiz se a obrigação
principal tiver sido cumprida em parte, ou se o montante da penalidade for
manifestamente excessivo, tendo-se em vista a natureza e a finalidade do negócio.”

Uma vez encerrado o prazo contratual, opera-se o término do vínculo por tratar-se
de mora ex re, ou seja, independentemente de interpelação. No caso de prazo
indeterminado, deve o comodante notificar o comodatário para entregar a coisa em prazo
razoável, levando-se em consideração a natureza do contrato.
Destarte, o comodatário sofre uma dupla sanção: responde pelos riscos da mora e é
obrigado a pagar o aluguel-pena do artigo 582 do CC.

2.4. Obrigações do comodante

Como visto, o comodato é contrato unilateral, para a amplíssima maioria da


doutrina. Entretanto, há obrigação de não fazer em todo comodato: o comodante deve não
perturbar o uso e gozo da coisa pelo comodatário.
E, apoiando a tese dos que o consideram um contrato bilateral imperfeito, pode
haver uma obrigação positiva para o comodante, supervenientemente surgida: a de
reembolsar o comodatário das despesas extraordinárias que este vier a fazer.
Ale, a doutrina, majoritariamente, entende que se o comodatário vier a sofrer
prejuízos decorrentes de vícios ocultos que o comodante conhecia, este responderá. Isto
porque a boa-fé objetiva impõe dever de informação ao comodante, e ao deixar de
informar, pode vir a responder pelos danos decorrentes desta desinformação. Será uma
indenização por inadimplemento contratual pelo comodante, inadimplemento dos deveres
acessórios do contrato, derivados da boa-fé objetiva.
2.5. Pluralidade de comodatários

Havendo mais de um comodatário simultâneo para uma mesma coisa, consideram-


se todos solidários. Veja o artigo 585 do CC:

“Art. 585. Se duas ou mais pessoas forem simultaneamente comodatárias de uma


coisa, ficarão solidariamente responsáveis para com o comodante.”

3. Mútuo

Para Orlando Gomes:

“Mútuo é o contrato pelo qual uma das partes empresta a outra coisa fungível,
tendo a outra a obrigação de restituir igual quantidade de bens do mesmo gênero e
quantidade.”

Washington de Barros Monteiro diz que o mútuo:

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“É o contrato pelo qual alguém transfere a propriedade de coisa fungível a outrem,


que se obriga a lhe pagar coisa do mesmo gênero, qualidade e quantidade.”

O ponto fundamental do mútuo é que ele é um contrato translativo de propriedade.


Através deste contrato, o mutuário adquire a propriedade da coisa emprestada, pois a
conservação da coisa não se concilia com o seu consumo. Veja os artigos 586 e 587 do CC:

“Art. 586. O mútuo é o empréstimo de coisas fungíveis. O mutuário é obrigado a


restituir ao mutuante o que dele recebeu em coisa do mesmo gênero, qualidade e
quantidade.”

“Art. 587. Este empréstimo transfere o domínio da coisa emprestada ao mutuário,


por cuja conta correm todos os riscos dela desde a tradição.”

A distinção nodal entre o mútuo e o comodato é justamente esta: enquanto no


comodato há empréstimo de uso, no mútuo há empréstimo de consumo.
Por isso, o mutuante tem que ter a propriedade, pois se não a tiver, não poderá cedê-
la. Se não tem a propriedade, e mesmo assim realiza o mútuo, cabe ao proprietário a ação
reivindicatória, em face do mutuário; se não encontrar a coisa, pois que se consumiu,
resolver-se-á em perdas e danos38, em face do mutuante.
Mesmo que o mútuo transfira a propriedade, não se pode entender que seja uma
alienação, propriamente dita. Isto porque a transferência de propriedade não é o escopo real
do contrato, que se destina a haver a restituição da coisa, em sua conclusão.
Como o mútuo transfere a propriedade, vigora a regra res perit domino: se o
mutuário perde a coisa, como esta é de sua propriedade enquanto consigo, é ele quem
suporta a perda – deverá operar a restituição normalmente.
O mútuo é um contrato real, que só se aperfeiçoa com a entrega da coisa ao
mutuário. Por isso, tal como no comodato, é contrato unilateral, pois que a entrega é
momento de formação contratual, e a obrigação do contrato recai apenas sobre o mutuário,
quando de sua execução.
Em regra, o mútuo é contrato gratuito, devendo o mutuário apenas restituir a coisa,
sem qualquer ônus para o mutuante. Quando o mútuo se destinar para fins econômicos, a
lei permite que seja oneroso, porém: veja o que diz o artigo 591 do CC:

“Art. 591. Destinando-se o mútuo a fins econômicos, presumem-se devidos juros,


os quais, sob pena de redução, não poderão exceder a taxa a que se refere o art.
406, permitida a capitalização anual.”

E a realidade negocial demonstra que a enorme maioria dos contratos de mútuo


celebrados é onerosa.
Ressalte-se que a onerosidade não altera a característica unilateral do contrato. Nas
palavras de Orlando Gomes:

38
Não há que se falar em reclamar coisa equivalente, na ação reivindicatória, porque esta é uma ação que tem
por causa remota de pedir um direito real sobre coisa especificada, não podendo reivindicar o que não mais
existe, ou coisa similar. Contudo, poderia ajuizar uma ação ordinária demandando que o interesse específico
seja satisfeito, algo como uma ação por obrigação de dar, implementando a reparação específica, o que é
sempre aconselhável.

Michell Nunes Midlej Maron 19


EMERJ – CP III Direito Civil III

“Quem se obriga a pagá-los (juros) é a mesma parte que nele figura na qualidade
de devedor. O mútuo é o único contrato unilateral oneroso, quando feneratício.”

É simples, então, perceber que se a traditio não é uma obrigação, e sim um ato de
formação do contrato, no curso do contrato só haverá obrigações para um contratante, o
mutuário – sendo por isso unilateral –, mas haverá vantagem patrimonial para ambos os
contratantes – o mutuário dispõe do bem, o mutuante expecta os juros. Por isso, é unilateral
oneroso.
O mútuo é temporário: se for perpétuo, tratar-se-á de doação, ou compra e venda. O
prazo que vige é o do contrato, mas o artigo 592 do CC apresenta regra supletiva:

“Art. 592. Não se tendo convencionado expressamente, o prazo do mútuo será:


I - até a próxima colheita, se o mútuo for de produtos agrícolas, assim para o
consumo, como para semeadura;
II - de trinta dias, pelo menos, se for de dinheiro;
III - do espaço de tempo que declarar o mutuante, se for de qualquer outra coisa
fungível.”

Tal como no comodato, é translatício de domínio, e não se trata de contrato de


alienação, porque há a necessidade de restituição.

3.1. Requisitos

Primeiro, há os requisitos subjetivos. Para celebrar um contrato de mútuo, é


fundamental a capacidade. Tanto mutuante como mutuário devem ser capazes. Deve o
mutuante, ainda, ser proprietário, porquanto o mútuo transfere o domínio da coisa.
Aqui há que se comentar de tema bastante polêmico: o mútuo feito a menor. Há que
se proteger o menor de mutuantes inescrupulosos, impedindo que estes se valham da
inexperiência do menor para obter vantagens exageradas. O mútuo feito a menor sem
prévia autorização do seu representante legal não pode ser reavido nem do mutuário nem
dos seus fiadores. Este é o norte do tratamento dispensado a esta situação, como se vê no
artigo 588 do CC:

“Art. 588. O mútuo feito a pessoa menor, sem prévia autorização daquele sob cuja
guarda estiver, não pode ser reavido nem do mutuário, nem de seus fiadores.”

E esta ressalva se faz ver até mesmo na própria fiança, como se vê no artigo 824 do
CC:

“Art. 824. As obrigações nulas não são suscetíveis de fiança, exceto se a nulidade
resultar apenas de incapacidade pessoal do devedor.
Parágrafo único. A exceção estabelecida neste artigo não abrange o caso de mútuo
feito a menor.”

Significa que a incapacidade, em regra, não faz com que a fiança seja nulificada
juntamente com o contrato principal, a não ser que esta incapacidade venha da menoridade.
Esta inaplicabilidade da exceção trazida no caput do artigo supra tem justamente o escopo
de evitar que se burle a inexigibilidade do mútuo feito a menor.

Michell Nunes Midlej Maron 19


EMERJ – CP III Direito Civil III

A regra, portanto, é que o mútuo feito a menor faz o mutuante perca a coisa. No
entanto, esta regra não é absoluta, admitindo temperamento, previsto no artigo 589 do CC:

“Art. 589. Cessa a disposição do artigo antecedente:


I - se a pessoa, de cuja autorização necessitava o mutuário para contrair o
empréstimo, o ratificar posteriormente;
II - se o menor, estando ausente essa pessoa, se viu obrigado a contrair o
empréstimo para os seus alimentos habituais;
III - se o menor tiver bens ganhos com o seu trabalho. Mas, em tal caso, a
execução do credor não lhes poderá ultrapassar as forças;
IV - se o empréstimo reverteu em benefício do menor;
V - se o menor obteve o empréstimo maliciosamente.”

O artigo 176 faz possível a ratificação, tal como prevista no inciso I do artigo 589
do CC:

“Art. 176. Quando a anulabilidade do ato resultar da falta de autorização de


terceiro, será validado se este a der posteriormente.”

O inciso III precisa de comentários: a presunção é que se há aquisição de ganhos


pelo menor, este é hábil o suficiente para contrair um mútuo. Mas não se pode confundir
patrimônio próprio com emancipação por economia própria: não se trata de emancipação,
porque se este for emancipado, ele é capaz, e não se aplica a norma do artigo 588 do CC.
Se o mutuante comprovar que o empréstimo reverteu em benefício do menor, o que
se dá no inciso IV do artigo 589 do CC é uma previsão que visa a impedir o locupletamento
sem causa. Assim, o empréstimo que reverte em benefício do menor, e se o benefício é
revertido para quem deveria autorizá-lo, o mutuante poderá reaver o que emprestou, pois
ninguém pode se locupletar às custas de outrem. O mútuo, então, é considerado perfeito e
acabado, na forma do artigo 884 do CC:
“Art. 884. Aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será
obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos valores
monetários.
Parágrafo único. Se o enriquecimento tiver por objeto coisa determinada, quem a
recebeu é obrigado a restituí-la, e, se a coisa não mais subsistir, a restituição se fará
pelo valor do bem na época em que foi exigido.”

O menor que age dolosamente não terá esta proteção, a teor do inciso V do artigo
589 do CC. Ninguém pode se valer da própria torpeza (nemo auditur propriam
turpitudinem allegans). Esta previsão apenas redunda o que já é claro no artigo 180 do CC:

“Art. 180. O menor, entre dezesseis e dezoito anos, não pode, para eximir-se de
uma obrigação, invocar a sua idade se dolosamente a ocultou quando inquirido
pela outra parte, ou se, no ato de obrigar-se, declarou-se maior.”

O requisito objetivo do mútuo é apenas o objeto fungível, que seja de propriedade


do mutuante. O conteúdo do contrato de mútuo, por sua vez, é a obrigação principal do
mutuário, que é restituir a coisa emprestada. O mútuo gera obrigações apenas para o
mutuário, de restituir a coisa da mesma espécie e qualidade. No mútuo feneratício, o
mutuário é obrigado a pagar, também, os juros.

Michell Nunes Midlej Maron 19


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3.2. Exceção de inseguridade

Mesmo sendo um contrato unilateral, o CC prevê a aplicação de um instituto


claramente dedicado aos contratos bilaterais: a exceção de inseguridade. Caso ocorra uma
mudança notória na situação econômica do mutuário, o mutuante poderá exigir garantia
suficiente da restituição. Veja o artigo 590 do CC:

“Art. 590. O mutuante pode exigir garantia da restituição, se antes do vencimento o


mutuário sofrer notória mudança em sua situação econômica.”

É a mesma situação protegida pelo instituto constante do artigo 477 do CC, que é a
exceção de inseguridade típica os contratos bilaterais:

“ Art. 477. Se, depois de concluído o contrato, sobrevier a uma das partes
contratantes diminuição em seu patrimônio capaz de comprometer ou tornar
duvidosa a prestação pela qual se obrigou, pode a outra recusar-se à prestação que
lhe incumbe, até que aquela satisfaça a que lhe compete ou dê garantia bastante de
satisfazê-la.”

A consequência desta exceção, no mútuo, é apenas o vencimento antecipado da


dívida, eis que não há obrigação que possa, o mutuante, deixar legitimamente de adimplir,
simplesmente porque não há qualquer obrigação para si – o contrato é unilateral.

3.3. Mútuo feneratício e juros remuneratórios

Os juros podem ser conceituados como a remuneração pelo empréstimo da coisa.


Para Caio Mário:
“Chamam-se juros as coisas fungíveis que o devedor paga ao credor, pela
utilização da mesma espécie a este devidas.”

Orlando Gomes, por sua vez, conceitua como o uso do capital alheio remunerado.
Antunes Varela os define como os:

“Frutos civis, constituídos por coisas fungíveis, que representam o rendimento de


uma obrigação de capital. São, por outras palavras, a compensação que o obrigado
deve pela utilização temporária de certo capital.”

O problema dos juros remonta ao Direito Romano. Àquela época já se procurava


limitar a possibilidade de cobrança de juros em taxas que implicassem numa desproporção
desmesurada.
A matéria referente a juros é uma das que mais gera polêmica dentro do direito
obrigacional. Com efeito, o tema ora suscitado levanta uma série de questões de ordem
jurídica, econômica e sociológica.
Os juros foram, historicamente,tidos por imorais, sobremaneira quando a religião
imperava ao lado das demais fontes do direito e dos costumes: entendia-se que qualquer
fruto deveria vir do labor humano, e não apenas do fato de ter patrimônio.
Esta concepção não pôde se sustentar, porque o crédito é uma das mais importantes
molas da economia, engrenagem sem a qual simplesmente o mundo não gira. Para haver
crédito, é importante que haja recompensa para quem o entrega. Este é o papel dos juros.

Michell Nunes Midlej Maron 19


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O problema que logo se fez ver, porém, é a abusividade deste instrumento, que,
quando não controlado, poderia acarretar a ruína de quem precisasse do crédito. Mas a
definição dos juros fica a cargo das políticas econômicas, muito mais do que ao Judiciário.
Por isso, especialmente após a Emenda Constitucional 40, os juros tem sido controlados
com muita parcimônia pelo Judiciário. Vejamos o passo a passo da dinâmica evolutiva dos
juros, até o ponto em que se encontra hoje.
O CC de 1916 não estabelecia qualquer limite para a taxa de juros contratada,
apenas estabelecendo os juros legais, em meio por cento ao mês. Esta ampla liberdade, é
claro, demonstrou-se danosa, abrindo espaço a abusos por parte dos detentores do capital.
Por isso, em 1933, veio a Lei da Usura, Decreto 22.626/33, limitando os juros contratuais
ao dobro da taxa legal, ou seja, a um por cento ao mês, e vedando o anatocismo, salvo o
anatocismo anual sobre a conta-corrente.
Em 1964 foi elaborada a Lei 4.595, que tratava do Sistema Financeiro Nacional.
Com apoio nesta lei, o Banco Central editou a Resolução 389, que autorizava as instituições
financeiras à cobrança de taxas de mercado, que superavam o teto do Decreto 22.626/1933.
É claro que esta insubmissão das instituições financeiras ao Decreto não ficou sem
questionamentos, mas o STF posicionou-se rigidamente, na forma da súmula 596:

“Súmula 596, STF: As disposições do decreto 22.626/1933 não se aplicam às taxas


de juros e aos outros encargos cobrados nas operações realizadas por instituições
públicas ou privadas, que integram o sistema financeiro nacional.”

O STJ, de seu lado, somou a esta previsão a inaplicabilidade às administradoras de


cartão de crédito, porque também as reputou como instituições financeiras. Veja a súmula
283 do STJ:

“Súmula 283 STJ: As empresas administradoras de cartão de crédito são


instituições financeiras e, por isso, os juros remuneratórios por elas cobrados não
sofrem as limitações da Lei de Usura.”

Não obstante a questão ter sido resolvida momentaneamente, com a promulgação da


Constituição da República Federativa do Brasil, em 1988, a questão voltou à tona, em
virtude do disposto no artigo 192, § 3º, do Texto Maior, que limitava as taxas de juros reais
a 12% ao ano:

“Art. 192. O sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover o


desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade, será
regulado em lei complementar, que disporá, inclusive, sobre:
(...)
§ 3º - As taxas de juros reais, nelas incluídas comissões e quaisquer outras
remunerações direta ou indiretamente referidas à concessão de crédito, não
poderão ser superiores a doze por cento ao ano; a cobrança acima deste limite será
conceituada como crime de usura, punido, em todas as suas modalidades, nos
termos que a lei determinar.
(...)”

Ora, a maior fonte lucrativa das instituições financeiras é o spread: consiste na


diferença entre os juros pagos pelas instituições aos investidores e os juros recebidos por
estas instituições pelos valores emprestados aos devedores. Se esta limitação se sustentasse,
os bancos certamente viriam à bancarrota.

Michell Nunes Midlej Maron 19


EMERJ – CP III Direito Civil III

Por conta disso, e do poderoso lobby das instituições, este dispositivo foi taxado
como não auto-executável pela doutrina, dependendo de lei que o regulamentasse. Veja a
súmula 648 do STF:

“Súmula 648, STF: A norma do § 3º do art. 192 da constituição, revogada pela


emenda constitucional 40/2003, que limitava a taxa de juros reais a 12% ao ano,
tinha sua aplicabilidade condicionada à edição de lei complementar.”

Mas veja que a discussão acerca da limitação dos juros remuneratórios restou
superada com o advento da Emenda Constitucional 40/2003. Esta Emenda alterou o artigo
192 da CRFB/88, excluindo todos os seus parágrafos.
A partir de 2003, então, as entidades do Sistema Financeiro Nacional (instituições
financeiras e administradoras de cartão de crédito) não encontram qualquer limitação
prevista em lei, ao passo que os demais particulares devem observar as regras da Lei de
Usura (Decreto 22.626/1933) que limita a cobrança de juros a doze por cento ao ano. Esta é
a situação atual dos juros, no Brasil.
Com a entrada em vigor do Código Civil de 2002, estabelece-se uma gradação:
primeiramente podem as partes estipular livremente a taxa de juros; caso assim não o
façam, deverá ser observada a taxa referente aos juros moratórios conforme estabelece o
artigo 406 do Código Civil. Veja:

“Art. 406. Quando os juros moratórios não forem convencionados, ou o forem sem
taxa estipulada, ou quando provierem de determinação da lei, serão fixados
segundo a taxa que estiver em vigor para a mora do pagamento de impostos
devidos à Fazenda Nacional.”

Hoje, surge ainda mais um problema a ser enfrentado pelos intérpretes: esta taxa
apontada pelo artigo 406 do CC é a que vige no artigo 161, § 1º, do CTN, ou a taxa selic? O
STJ adotou a selic, porque esta taxa, mesmo flutuante, é bem aplicada aos tributos federais
há anos, sem óbice. Veja o EREsp. 727.842:

“CIVIL. JUROS MORATÓRIOS. TAXA LEGAL. CÓDIGO CIVIL, ART. 406.


APLICAÇÃO DA TAXA SELIC.
1. Segundo dispõe o art. 406 do Código Civil, "Quando os juros moratórios não
forem convencionados, ou o forem sem taxa estipulada, ou quando provierem de
determinação da lei, serão fixados segundo a taxa que estiver em vigor para a mora
do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional".
2. Assim, atualmente, a taxa dos juros moratórios a que se refere o referido
dispositivo é a taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e Custódia -
SELIC, por ser ela a que incide como juros moratórios dos tributos federais (arts.
13 da Lei 9.065/95, 84 da Lei 8.981/95, 39, § 4º, da Lei 9.250/95, 61, § 3º, da Lei
9.430/96 e 30 da Lei 10.522/02).
3. Embargos de divergência a que se dá provimento.”

Apesar de não existir tal limitação para as instituições financeiras, é preciso lembrar
que o instituto do abuso do direito tem total aplicação no que diz respeito aos juros. Nesse
sentido, a cobrança de juros que excedam os limites impostos pela função social,
econômica, boa-fé ou pelos bons costumes não será merecedora de tutela e, portanto, não
receberá guarida do ordenamento. Não há limite legal, mas há limitação sistêmica dos
juros, e a interpretação da abusividade é feita, regra geral, pelo Judiciário, quando instado.

Michell Nunes Midlej Maron 19


EMERJ – CP III Direito Civil III

O Superitor Tribunal de Justiça já se manifestou no sentido de que não são abusivos


os juros que não superam substancialmente a média de mercado na praça de contratação.
Esta análise é casuística, e, a todo ver, é a melhor opção, de fato. Não há que se falar em
limita rígido para a configuração da abusividade, sob pena de se engessar e ao mesmo
tempo desestabilizar a economia.
Veja, a respeito, o agrg no REsp. 947.674, o agrg no REsp. 768.768/RS, e o agrg
nos edcl no REsp. 604.470, pela ordem:

“PROCESSUAL CIVIL. CONTRATO BANCÁRIO. JUROS


REMUNERATÓRIOS. NÃO-LIMITAÇÃO. SÚMULA 596/STF. COMISSÃO DE
PERMANÊNCIA. CUMULAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE.
PREQUESTIONAMENTO. DIVERGÊNCIA COMPROVADA.
- Os juros remuneratórios cobrados por instituições que integrem o sistema
financeiro nacional não se submetem às limitações da Lei da Usura.
- Os juros remuneratórios não são abusivos se não superam, substancialmente, a
taxa média de mercado na praça da contratação.
- Impossível, nos contratos bancários, a cobrança cumulada da comissão de
permanência e juros remuneratórios, correção monetária e/ou juros e multa
moratórios.
- Para que se revele prequestionamento é necessário apenas que otema tenha sido
objeto de discussão na instância a quo, envolvendo dispositivo legal tido por
violado.
- "Se a divergência com arestos de órgãos fracionários do STJ é notória, dispensa-
se a demonstração analítica de sua existência"
(EREsp. 222.525/HUMBERTO).”

“AGRAVO INTERNO. RECURSO ESPECIAL. CONTRATO DE


ARRENDAMENTO MERCANTIL. ANTECIPAÇÃO DO VRG. TAXA DE
JUROS. ABUSIVIDADE. LEI 4.595/64. LEGISLAÇÃO ESPECÍFICA
CAPITALIZAÇÃO. CABIMENTO. JUROS DE MORA. 1% AO MÊS.
COMISSÃO DE PERMANÊNCIA. COBRANÇA. ADMISSIBILIDADE.
I – A antecipação do valor residual garantido não desnatura o contrato de leasing
(Súmula 293/STJ).
II - Os juros pactuados em limite superior a 12% ao ano não afrontam a lei;
somente são considerados abusivos quando comprovado que discrepantes em
relação à taxa de mercado, após vencida a obrigação. Destarte, embora incidente o
diploma consumerista aos contratos bancários, preponderam, no que se refere à
taxa de juros, a Lei 4.595/64 e a Súmula 596/STF.
III - A capitalização mensal dos juros somente é possível quando pactuada e desde
que haja legislação específica que a autorize.
IV - Vencido o prazo para pagamento da dívida, admite-se a cobrança de comissão
de permanência. A taxa, porém, será a média do mercado, apurada pelo Banco
Central do Brasil, desde que limitada ao percentual do contrato, não se permitindo
cumulação com juros remuneratórios ou moratórios, correção monetária ou multa
contratual.
V - Restam afastados os juros moratórios, ante a admissão da comissão de
permanência.
Agravo improvido.”

“AGRAVO INTERNO. RECURSO ESPECIAL. CONTRATO BANCÁRIO.


REVISÃO. POSSIBILIDADE. CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR.
INCIDÊNCIA. TAXA DE JUROS. LIMITAÇÃO. ABUSIVIDADE. NÃO
OCORRÊNCIA. CAPITALIZAÇÃO. CABIMENTO. COMISSÃO DE

Michell Nunes Midlej Maron 19


EMERJ – CP III Direito Civil III

PERMANÊNCIA. COBRANÇA. ADMISSIBILIDADE. CADASTRO DE


INADIMPLENTES. INSCRIÇÃO. POSSIBILIDADE.
I - Os contratos bancários são passíveis de revisão judicial, ainda que tenham sido
objeto de novação, pois não se pode validar obrigações nulas.
II - Embora incidente o diploma consumerista nos contratos bancários, os juros
pactuados em limite superior a 12% ao ano não são considerados abusivos, exceto
quando comprovado que discrepantes em relação à taxa de mercado, após vencida
a obrigação.
III - A capitalização mensal dos juros é possível quando pactuada e desde que haja
legislação específica que a autorize.
IV - Vencido o prazo para pagamento da dívida, admite-se a cobrança de comissão
de permanência. A taxa, porém, será a média do mercado, apurada pelo Banco
Central do Brasil, desde que limitada ao percentual do contrato, não se permitindo
cumulação com juros remuneratórios ou moratórios, correção monetária ou multa
contratual.
V - Em princípio, cumpridas as formalidades legais, é lícita a inscrição do nome do
devedor inadimplente nos cadastros de proteção ao crédito.
Agravo improvido.”

Dessa forma, se a taxa de juros destoar da taxa média de mercado, será considerada
abusiva, de acordo com o artigo 187 do Código Civil – é abuso de direito. Veja o agrg no ag
928.562:

“AGRAVO REGIMENTAL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO


ESPECIAL. CONTRATO DE ARRENDAMENTO MERCANTIL. REVISÃO.
OMISSÃO NO ACÓRDÃO RECORRIDO. INOCORRÊNCIA.
INTERPRETAÇÃO DE CLÁUSULAS CONTRATUAIS. IMPOSSIBILIDADE.
JUROS REMUNERATÓRIOS. NÃO LIMITAÇÃO. VALOR DOS
HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO.
I - Os Embargos de Declaração são corretamente rejeitados se não há omissão,
contradição ou obscuridade no acórdão embargado, tendo a lide sido dirimida com
a devida e suficiente fundamentação; apenas não se adotando a tese do recorrente.
II - Não se admite, em sede de recurso especial, a interpretação de cláusulas
contratuais.
III - Os juros pactuados em taxa superior a 12% ao ano não são considerados
abusivos, exceto quando comprovado que discrepantes em relação à taxa de
mercado, após vencida a obrigação, hipótese não ocorrida nos autos. IV - É
inadmissível o recurso especial quanto à questão que não foi apreciada pelo
Tribunal de origem.
Agravo improvido.”

Em segundo lugar, é preciso esclarecer que a abusividade pode se dar não somente
na taxa estipulada, mas, também, na cumulação de encargos, especialmente no que pertine à
comissão de permanência.
A comissão de permanência foi instituída pela Resolução 1.129/86 do Banco
Central, quando inexistia previsão legal de correção monetária. Ela visava a compensar a
desvalorização da moeda e a remunerar o mutuante. Veja as súmulas 30 e 296 do STJ:

“Súmula 30, STJ: A comissão de permanência e a correção monetária são


inacumuláveis.”

Michell Nunes Midlej Maron 19


EMERJ – CP III Direito Civil III

“Súmula 296, STJ: Os juros remuneratórios, não cumuláveis com a comissão de


permanência, são devidos no período de inadimplência, à taxa média de mercado
estipulada pelo Banco Central do Brasil, limitada ao percentual contratado.”

Por fim, é preciso ressaltar que a imensa maioria dos casos de mútuo estão
submetidas ao Código de Defesa do Consumidor, por se tratarem de relações de consumo.
A súmula 297 do STJ é relevante:

“Súmula 297, STJ: O Código de Defesa do Consumidor é aplicável às instituições


financeiras.”

Neste diploma consumerista, uma regra assume grande relevância, qual seja, o
artigo 51, IV:

“Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas
ao fornecimento de produtos e serviços que:
(...)
IV - estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o
consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a
eqüidade;
(...)”

Esta cláusula geral de vedação à abusividade, à iniquidade, é altamente relevante,


porque comina nulidade à cláusula de juros que se demonstrar abusiva, sem permitir
cogitação de sua manutenção no contrato.

3.3.1. Anatocismo

Tema de grande repercussão, também, é a possibilidade de capitalização de juros,


também denominada anatocismo, ou juros compostos.
Há grande mito de que o anatocismo é vedado, mas trata-se exatamente de um mito:
especialmente a partir do CC de 2002, os juros compostos são permitidos, sendo prática
mais do que usual no mercado. O CC admite a capitalização de juros em período não
inferior ao anual.
Entende-se por juros compostos, de acordo com Paulo Luiz Netto Lobo, como:

“Os juros devidos e vencidos que se incorporam, periodicamente, ao capital


principal ou à dívida, perdendo sua qualidade de frutos civis, para formarem um
novo total, sobre o qual passam a incidir os juros.”

Em outras palavras, verifica-se a capitalização de juros quando os juros vencidos de


determinado período são acrescidos ao principal para o cálculo dos juros futuros. Os juros
apurados no cálculo passam a integrar o principal, que sofrerá incidência de novos juros, no
próximo período. Por isso, mais correto do que se falar em “juros sobre juros”, é falar em
“juros sobre o principal integrado pelos juros passados.”
Trata-se de prática extremamente onerosa para o devedor. Por isso, o artigo 4º da
Lei de Usura vedava o anatocismo, exceto a acumulação de juros em conta corrente em
período anual. Na época, a súmula 121 do STF assim dizia, literalmente:

Michell Nunes Midlej Maron 19


EMERJ – CP III Direito Civil III

“Súmula 121, STF: É vedada a capitalização de juros, ainda que expressamente


convencionada.”

Ocorre que esta súmula, hoje, deve ser tida por cancelada, porque a vedação da Lei
de Usura caiu por terra quando da edição do CC, permitindo esta prática. Mas veja que,
antes mesmo do CC entrar em vigor, excepcionalmente já era admitida a cobrança de juros
capitalizados em períodos inferiores a um ano, quando prevista esta possibilidade em lei. e
a lei previa em casos da emissão de cédula rural e cédula de crédito industrial e comercial,
autorizados, respectivamente, pelo Decreto-Lei 167/67; pelo Decreto-Lei 413/69; e pela Lei
6.480/80. Neste diapasão, a súmula 93 do STJ assim dispôs:

“Súmula 93, STJ: A legislação sobre cédulas de crédito rural, comercial e industrial
admite o pacto de capitalização de juros.”

Não obstante, o Código Civil de 2002 inovou, autorizando em seu artigo 591, in
fine, a possibilidade de capitalização de juros nos contratos de mútuo, desde que respeitado
o período de um ano. Frise-se que é imperioso que esteja prevista expressamente a
capitalização, no contrato:

“Art. 591. Destinando-se o mútuo a fins econômicos, presumem-se devidos juros,


os quais, sob pena de redução, não poderão exceder a taxa a que se refere o art.
406, permitida a capitalização anual.”

Dessa forma, atualmente, é autorizada a prática do anatocismo em mútuos civis,


desde que respeitado o período anual para cômputo dos juros compostos, bem como haja
sua previsão expressa.
Por fim, a capitalização mensal de juros é possível, ainda, nos contratos de mútuo
bancário celebrados a partir de 31 de Março de 2000, desde que pactuada. A possibilidade
reside no fato de que a Medida Provisória 1.963-17/2000, reeditada sob o no. 2.170-
36/2001 e em vigor em razão da Emenda Constitucional 32/2001, autoriza a capitalização
em períodos inferiores a um ano. Veja o artigo 5º deste diploma:

“Art. 5º. Nas operações realizadas pelas instituições integrantes do Sistema


Financeiro Nacional, é admissível a capitalização de juros com periodicidade
inferior a um ano.”

Ocorre que esta capitalização em período inferior a um ano está em discussão na


Adin 2.316, na qual se prolatou liminar para tornar suspensa a eficácia do artigo 5º, supra.

Há ainda que se mencionar que há quem defenda que a Lei de Usura não mais está
em vigor, porque o CC veio para tratar de todas as matérias que ali são versadas,
revogando-a tacitamente. É tese minoritária, mas bem coerente.

Michell Nunes Midlej Maron 20


EMERJ – CP III Direito Civil III

Casos Concretos

Questão 1

Celebrado contrato de comodato de imóvel por prazo indeterminado com a


finalidade precípua de proporcionar ao comodatário a realização do Curso de Formação
de Magistrado da EMERJ, poderá o comodante, a qualquer tempo, notificar o
comodatário para que o desocupe ?

Resposta à Questão 1

Certamente que não: há que ser respeitada a finalidade estabelecida no contrato, sob
pena de se frustrar expectativas legitimamente criadas no comodatário. Somente se houver
necessidade urgente e imprevista poderá o comodante assim agir, e desde que haja
reconhecimento judicial desta urgência e imprevisibilidade.
Veja, a respeito, o REsp. 3267:

“CIVIL. COMODATO. PRAZO INDETERMINADO. APLICAÇÃO DO ART.


1250 DO CODIGO CIVIL. NÃO IMPORTA EM TORNAR PERPETUO O
COMODATO A DECISÃO QUE, APLICANDO O ART. 1250 DO CODIGO
CIVIL, ESTABELECE QUE O MESMO DEVERA DEMORAR PELO TEMPO
NECESSARIO PARA O USO CONCEDIDO, COM BASE EM PROVA DE QUE
A SITUAÇÃO DE FATO NÃO INDICA NECESSIDADE IMPREVISTA E
URGENTE, PARA A SUSPENSÃO DO CONTRATO, PELO COMODANTE,
TANTO MAIS QUANDO A SITUAÇÃO PERDURARA, NO MAXIMO, ATE A
MORTE DA COMODATARIA.”

Michell Nunes Midlej Maron 20


EMERJ – CP III Direito Civil III

Questão 2

José, portando contrato escrito de comodato, ajuíza ação de imissão de posse em


face de Manoel em razão deste não ter realizado a tradição do imóvel voluntariamente. É
cabível a referida pretensão ?

Resposta à Questão 2

De forma alguma. Não existe contrato de comodato antes da tradição: é contrato


real, que só passa a existir quando entregue o bem. O termo escrito apresentado pelo autor
não é o contrato de comodato.
Há quem defenda que este título teria a natureza de contrato preliminar ao
comodato, mas esta tese é um tanto equivocada, vez que o objeto do contrato, neste caso,
não é a obrigação de fazer típica dos contratos preliminares – pactuar o contrato definitivo.
Este termo apresenta a natureza de definitividade, sendo o próprio comodato, em si, mas
carente do requisito essencial de existência, que é a tradição. Não há contrato, portanto.
Há, porém, que se entender incidente, aqui, responsabilidade pré-contratual, porque
a celebração deste termo escrito cria, no mínimo, expectativa severa de contratação, e a
frustração desta expectativa viola a boa-fé, é merecedora de reprimenda – há que se
indenizar perdas e danos, mas não a tradição forçosa.

Questão 3

Tendo sido efetuado um contrato de comodato pelo prazo de 10 anos, veio a falecer
o comodatário, três anos após o seu início. Seu filho, que com ele residia no imóvel e no
qual permaneceu, realizou em seguida benfeitorias visando seu conforto e melhor
aproveitamento econômico do bem. Tem ele direito a permanecer no imóvel pelo restante
do prazo? Independentemente da solução apresentada, terá direito à retenção?

Resposta à Questão 3

O filho não permanecerá no imóvel, vez que presume-se que haja intuitu personae
no comodato, fazendo-o extinto com a morte do comodatário. Todavia, poder-se-ia entender
que a finalidade do comodato realizado foi a moradia da família, e não apenas do
comodatário obituado, o que perpetuaria a contratação mesmo com a morte, permitindo a
permanência.
Quanto ao direito de retenção pelas benfeitorias, não é possível, se o contrato for
tido por intuitu personae, porque o contrato se extinguiu com a morte, podendo, quando
muito, reclamar indenização em via própria, sem retenção. Para além disso, mesmo se se
entender que o contrato não se extinguiu, prevalece a posição do STJ, que reputa não
indenizáveis, com ou sem retenção, as benfeitorias úteis, como o são no caso, sem
autorização prévia do comodante.
Veja o que entende o TJ/RJ, nas apelações civis 2001.001.14465 e 2001.001.22131,
pela ordem:
“COMODATO. EXTINCAO. ESBULHO POSSESSORIO. REINTEGRACAO
DE POSSE.

Michell Nunes Midlej Maron 20


EMERJ – CP III Direito Civil III

REINTEGRAÇÃO DE POSSE. COMODATO ANTERIOR. OCUPAÇÃO


POSTERIOR POR TERCEIRO. ESBULHO CARACTERIZADO. A morte do
comodatário extingue o comodato, visto que se trata de um negócio feito instuitu
personae. Logo, quem se instala, moto proprio no lugar do de cujus, no imóvel,
comete esbulho. Recurso provido.”

“COMODATO. EXTINCAO. MORTE DO COMODANTE. FALTA DE


INTERESSE PROCESSUAL.
COMODATO - EXTINÇÃO - INTERESSE PROCESSUAL. Comodato é
modalidade de contrato unilateral, gratuito, real e intuitu personae. Havendo o
falecimento daquele a quem se deu o empréstimo, automaticamente extinto se
coloca o contrato, sem necessidade de ida ao Judiciário. Eventual continuidade na
posse do bem por terceiros deve ser resolvida pela via própria, não havendo
necessidade de se tentar desconstituir, de forma prévia, um contrato que já não
mais existe. Hipótese onde a questão fática envolve matéria diversa - direito de
propriedade e exercício de posse -, por força de relação sucessória e conjugal.
Descabimento da ação como proposta. Sentença correta, que se mantém.”

Questão 4

Antonio move ação de reintegração de posse relativa a imóvel dado em comodato


para fins residenciais.
Alega que João (comodatário) desviou a utilização do imóvel para fins comerciais,
incompatíveis com a moradia, tendo, para tanto, realizado obras.
Em resposta, alega João que a destinação do imóvel foi mudada há mais de um
ano, o que evidencia a concordância do autor. Argumentando que a modificação estava
implicitamente autorizada, a partir do momento em que foi conferida a utilização do
imóvel.
Invoca o direito de retenção pelas benfeitorias feitas no imóvel, sob pena de
configurar-se enriquecimento sem causa.
Como juiz, você acolheria a pretensão de Antonio? Resposta fundamentada.

Resposta à Questão 4

A tredestinação do bem é violação contratual clara, ensejando resolução contratual e


perdas e danos. Quanto às benfeitorias realizadas, não são indenizáveis, vez que foram
realizadas apenas para a transformação do bem e alteração do uso contratualmente
permitido: são úteis. Fossem necessárias, seriam indenizáveis, por óbvio, para que não haja
enriquecimento sem causa do comodante.

“REINTEGRACAO DE POSSE. COMODATO. NOTIFICACAO PREVIA.


ESBULHO DO COMODATARIO. CARACTERIZACAO. DIREITO DE
RETENCAO. INEXISTENCIA.
REINTEGRACAO DE POSSE.. COMODATO. MODIFICACAO DO MOTIVO
DETERMINANTE DO USO CONCEDIDO. NOTIFICACAO DO
COMODATARIO. ESBULHO CARACTERIZADO. OBRAS IRREGULARES
CONSTRUIDAS NO IMOVEL, INEXISTENCIA DE DIREITO DE
RETENCAO. ADMITIDO PELO PROPRIO COMODATARIO TER
MODIFICADO O USO DO IMOVEL DE RESIDENCIAL PARA COMERCIAL,
NAO HA COMO NEGAR AO COMODANTE O DIREITO A REINTEGRACAO
NA POSSE DO BEM OBJETO DO COMODATO. O FATO DE TER O

Michell Nunes Midlej Maron 20


EMERJ – CP III Direito Civil III

COMODATARIO MUDADO O MOTIVO DETERMINANTE DO USO


CONCEDIDO, SEM PROVA DA CONCORDANCIA DO COMODANTE,
EVIDENCIA, POR SI SO, NAO TER AGIDO COM BOA FE, O QUE
BASTARIA PARA LHE RETIRAR QUALQUER DIREITO DE RETENCAO
POR BENFEITORIAS, CIRCUNSTANCIA ESTA AGRAVADA PELA
CONSTATACAO DE IRREGULARIDADE E PREJ PREJUDICIALIDADE
IDADE DAS OBRAS CONSTRUIDAS, DE MODO A SE FAZER NECESSARIA
URGENTE DEMOLICAO. PROVIMENTO PARCIAL DO RECURSO.”

O fato de ter havido o uso tredestinado, com ciência sem oposição do comodante,
por mais de um ano, pode ensejar a alegação de eu surgiu, para o comodatário, surrectio do
direito de assim usar o bem. Mas esta seria de difícil configuração, porque a omissão do
credor deverá ser claramente configurada como meio de criação da expectativa de não
oposição à alteração. Qualquer falha na configuração desta criação de expectativa impede
que se configure a surrectio. Ademais, um ano não parece ser tempo suficiente, na
casuística, para criar este direito para o comodatário, suprimindo (supressio, o outro lado da
moeda) a possibilidade de invocação do descumprimento pelo comodante.

Tema XIX

Contrato de Depósito. Depósito voluntário: conceito, classificação, objeto, direitos e deveres do depositante
e do depositário. Direito de retenção. Depósito necessário: depósito legal e miserável. Depósito irregular.
Aspectos processuais. Prisão civil do depositário infiel. Constituição de renda.

Notas de Aula39

1. Contrato de depósito

O artigo 627 do CC permite que se conceitue o depósito como a custódia temporária


de coisa móvel.

“Art. 627. Pelo contrato de depósito recebe o depositário um objeto móvel, para
guardar, até que o depositante o reclame.”

A temporariedade é fundamental, pois que sem a devolução do bem, desnatura-se o


depósito. Além disso, o depósito é real, sendo necessária a entrega da coisa para que o
contrato exista; e é gratuito, em regra, salvo nos casos de ser atividade negocial, quando o
depositário tem na guarda de coisas o seu negócio, sua fonte de lucros.
O requisito subjetivo do contrato de depósito é a capacidade genérica para contratar,
ou seja, a capacidade civil de fato. Requisito objetivo é o bem depositado, que deve ser
móvel ou imóvel, corpóreo ou incorpóreo. O depósito de bem imóvel é presente
especialmente quando a modalidade de depósito é a judicial, necessária. Há ainda o
requisito formal, consistente na existência de contrato escrito, quando se tratar de depósito
voluntário (para o necessário, qualquer meio de prova é suficiente).
39
Aula ministrada pela professora Maria Cristina de Brito Lima, em 10/2/2009.

Michell Nunes Midlej Maron 20


EMERJ – CP III Direito Civil III

Se o depositário utiliza a coisa sem autorização do depositante, isto será uma


infração contratual direta. Veja: se o depositário do veículo, no estacionamento, usa o
veículo em proveito próprio, não só estará infringindo o contrato de depósito como pratica
o que se chama de furto de uso. Mas repare que o uso não se configura quando a utilização
se dá pela própria necessidade que a manutenção da guarda se impõe: por exemplo, ao
manobrar o veículo depositado, o depositário não está usando dobem, mas apenas
praticando ato necessário à guarda de que se incumbiu. Veja o artigo 640 do CC:

“Art. 640. Sob pena de responder por perdas e danos, não poderá o depositário,
sem licença expressa do depositante, servir-se da coisa depositada, nem a dar em
depósito a outrem.
Parágrafo único. Se o depositário, devidamente autorizado, confiar a coisa em
depósito a terceiro, será responsável se agiu com culpa na escolha deste.”

Havendo esta infringência, há que se indenizar as perdas e danos dali decorrentes.

1.1. Espécies de depósito

O depósito pode ser voluntário ou necessário. O voluntário, por óbvio, é fruto da


vontade das partes, havendo interesse em depositar e em receber o depósito,
respectivamente pelo depositante e pelo depositário. O depósito necessário, por seu turno,
desdobra em duas subespécies: o legal e o miserável. Veja o artigo 647 do CC:

“Art. 647. É depósito necessário:


I - o que se faz em desempenho de obrigação legal;
II - o que se efetua por ocasião de alguma calamidade, como o incêndio, a
inundação, o naufrágio ou o saque.”

O depósito miserável consiste no causado por evento fortuito que leve à guarda dos
bens de outrem, exatamente conforme descreve o inciso II do artigo supra.
O depósito legal, como descrito no inciso I, consiste naquele que se impõe como
obrigação por conta de qualquer situação que assim a lei preveja. Por exemplo, quando o
hospedeiro, estalajadeiro, exerce o direito de retenção das bagagens para coibir ao
pagamento de diárias impagas, estará guardando-as em depósito, e este tem que observar as
regras de manutenção das coisas retidas, como coisas depositadas que são.

1.2. Depósito regular ou irregular

O depósito é regular quando se identifica perfeitamente com a finalidade e objeto do


contrato: o bem depositado é infungível, e o contrato é em benefício do depositante. Por
óbvio, será restituída a coisa especifica, eis que infungível.
O depósito é irregular quando o bem for fungível, mas ainda é feito no interesse do
depositante: o contrato se aproxima enormemente do mútuo, eis que transfere a propriedade
do bem para o depositário, sendo inclusive merecedor da aplicação das regras do mútuo,

Michell Nunes Midlej Maron 20


EMERJ – CP III Direito Civil III

com a só diferença de que o depositante poderá reclamar a coisa ad nutum. No depósito


bancário, esta é a modalidade de contrato.
Outros dois aspectos, se presentes, podem definir como irregular o contrato de
depósito: a possibilidade de ser a coisa consumida pelo depositário; e o propósito de
beneficiar o depositário. Se se permite ao depositário utilizar-se da coisa, há o chamado
depósito de uso, que é modalidade irregular: esta modalidade só se distingue do mútuo pela
possibilidade de que haja a retomada do bem ad nutum pelo depositante. Do contrário, o
depósito não sendo no interesse do depositante, há mútuo. Se o depósito vier a beneficiar o
depositário, de qualquer forma, é irregular, e não pode ser suprimida a possibilidade de
reclame ad nutum jamais, ou sequer será depósito.

1.3. Obrigações do depositante e do depositário

São tais as obrigações do depositante, em simples rol: pagar ao depositário o preço


convencionado; pagar eventuais despesas feitas com o depósito, sendo obrigado pela lei às
necessárias; pagar pelas despesas úteis ou voluptuárias, desde que as tenha autorizado;
indenizar o depositário por eventuais prejuízos que lhe advierem do depósito por defeito
oculto e dano provocado pela coisa depositada.
Já o depositário deve: guardar a coisa, diligentemente; e restituir a coisa depositada,
inclusive com os frutos, produtos e acessórios, quando exigida, com exceção das hipóteses
dos artigos 644 e 633 do CC:

“Art. 633. Ainda que o contrato fixe prazo à restituição, o depositário entregará o
depósito logo que se lhe exija, salvo se tiver o direito de retenção a que se refere o
art. 644, se o objeto for judicialmente embargado, se sobre ele pender execução,
notificada ao depositário, ou se houver motivo razoável de suspeitar que a coisa foi
dolosamente obtida.”

“Art. 644. O depositário poderá reter o depósito até que se lhe pague a retribuição
devida, o líquido valor das despesas, ou dos prejuízos a que se refere o artigo
anterior, provando imediatamente esses prejuízos ou essas despesas.
Parágrafo único. Se essas dívidas, despesas ou prejuízos não forem provados
suficientemente, ou forem ilíquidos, o depositário poderá exigir caução idônea do
depositante ou, na falta desta, a remoção da coisa para o Depósito Público, até que
se liquidem.”

É interessante perceber que alguns contratos mistos, como o transporte de coisas,


implicam em algumas peculiaridades. Por exemplo, ao entregar a coisa, quem assume a
carga deve arcar com sua integridade, pois desde então a manutenção da coisa é sua
incumbência. Sendo assim, mesmo que a coisa viesse sem condições de ser transportada,
responderá o depositário, pois era de seu juízo negar-se a assumir a carga, e se não o fez, é
seu o ônus de eventual dano.
Como visto, o estalajadeiro é responsável pela bagagem do hóspede. Mas e quando
o hóspede esteja presente à vista do bem guardado? Veja a apelação cível 2007.001.61302,
do TJ/RJ:

“APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO ORDINÁRIA DE RESPONSABILIDADE CIVIL.


FURTO DE BAGAGEM DE HÓSPEDE NO HALL DO HOTEL. RELAÇÃO DE
CONSUMO. RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO HOTELEIRO.

Michell Nunes Midlej Maron 20


EMERJ – CP III Direito Civil III

SENTENÇA QUE JULGOU PARCIALMENTE PROCEDENTE O PEDIDO


INICIAL.
- O dano material para ser admitido deve ser efetivamente comprovado, ou seja,
será cabível o ressarcimento dos objetos furtados cuja propriedade tenha sido
demonstrada pelo autor, o que não ocorreu no tocante à pasta de couro, razão pela
qual deve ser excluído o seu valor da aludida indenização.
- Dano moral caracterizado pela falha na prestação do serviço e diante das
particularidades do caso.
- A valoração do dano moral há que considerar as circunstâncias do pleito em
questão, bem como observar o princípio da razoabilidade, razão pela qual se impõe
a sua redução para R$8.000,00 (oito mil reais).
- Provimento parcial do primeiro recurso e desprovimento do segundo.”

Aplica-se, portanto, o artigo 649 do CC:


“Art. 649. Aos depósitos previstos no artigo antecedente é equiparado o das
bagagens dos viajantes ou hóspedes nas hospedarias onde estiverem.
Parágrafo único. Os hospedeiros responderão como depositários, assim como pelos
furtos e roubos que perpetrarem as pessoas empregadas ou admitidas nos seus
estabelecimentos.”

1.4. Depositário infiel

A prisão civil do depositário no descumprimento do depósito irregular sempre foi


tida por impossível, praticamente de forma unânime na doutrina e jurisprudência. A questão
se polemiza, e tremendamente, é quando se trata da prisão do depositário infiel do contrato
de depósito regular.
Pois bem. Veja o que diz o artigo 904 do CPC:

“Art. 904. Julgada procedente a ação, ordenará o juiz a expedição de mandado


para a entrega, em 24 (vinte e quatro) horas, da coisa ou do equivalente em
dinheiro.
Parágrafo único. Não sendo cumprido o mandado, o juiz decretará a prisão do
depositário infiel.”

Se a busca e apreensão for infrutífera, segundo este dispositivo, a solução é a prisão


civil, com vistas a compelir o cumprimento da obrigação de entrega do bem pelo
depositário. Em princípio, este dispositivo encontrava base constitucional aparentemente
incontroversa, como se vê no artigo 5º, LXVII, da CRFB:

“(...)
LXVII - não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo
inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do
depositário infiel;
(...)”

O STJ, então, sempre reputou impossível a prisão civil do depositário infiel apenas
quando o contrato fosse de depósito irregular, ou quando se tratasse de conversão de
contratos outros em depósito, como sói ocorrer na alienação fiduciária até hoje – isto
porque, dizia a Corte Superior, o devedor não era depositário típico a merecer prisão pelo
inadimplemento. Todavia, não enfrentara ainda a questão da prisão do depositário típico,
que até então poderia ser preso, dada a previsão legal e constitucional permissiva.

Michell Nunes Midlej Maron 20


EMERJ – CP III Direito Civil III

Ocorre que surgiu na ordem jurídica o tão famoso Pacto de São José da Costa Rica,
do qual o Brasil é subscritor, prevendo a impossibilidade da prisão por dívida em qualquer
caso, à exceção da dívida alimentar. Por isso, surge a questão central a ser enfrentada: É
admissível a prisão civil do depositário infiel no ordenamento jurídico brasileiro no período
posterior ao ingresso do Pacto de São José da Costa Rica no direito nacional?
Partamos da conclusão para explicar, depois, a controvérsia: na atualidade, seria
correto afirmar que a única hipótese de prisão civil, no Direito brasileiro, é a do devedor de
alimentos.
Entenda: o § 2º do artigo 5º da CRFB estabelece que:

“(...)
§ 2º - Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros
decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados
internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.
(...)”

Sendo assim, o tratado em questão, o Pacto de São José, é destas normas que trazem
direitos fundamentais, estabelecendo em seu bojo a vedação à prisão civil do depositário
infiel, pois só permite a prisão de devedor de alimentos. Veja o artigo 7º do Tratado:

“Artigo 7º - Direito à liberdade pessoal:


7. Ninguém deve ser detido por dívidas. Este princípio não limita os mandados de
autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de
obrigação alimentar.”

Ocorre que esta norma parece confrontar com a previsão originária da CRFB, já
transcrita, que permite a prisão do depositário infiel. Como solucionar este conflito
aparentemente insolúvel?
Veja o entendimento do STF, em recente habeas-corpus da Ministra Ellen Gracie:

“DIREITO PROCESSUAL. HABEAS CORPUS. PRISÃO CIVIL DO


DEPOSITÁRIO INFIEL. PACTO DE SÃO JOSÉ DA COSTA RICA.
ALTERAÇÃO DE ORIENTAÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA DO STF.
CONCESSÃO DA ORDEM. 1. A matéria em julgamento neste habeas corpus
envolve a temática da (in)admissibilidade da prisão civil do depositário infiel no
ordenamento jurídico brasileiro no período posterior ao ingresso do Pacto de São
José da Costa Rica no direito nacional. 2. Há o caráter especial do Pacto
Internacional dos Direitos Civis Políticos (art. 11) e da Convenção Americana
sobre Direitos Humanos - Pacto de San José da Costa Rica (art. 7°, 7), ratificados,
sem reserva, pelo Brasil, no ano de 1992. A esses diplomas internacionais sobre
direitos humanos é reservado o lugar específico no ordenamento jurídico, estando
abaixo da Constituição, porém acima da legislação interna. O status normativo
supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil,
torna inaplicável a legislação infraconstitucional com ele conflitante, seja ela
anterior ou posterior ao ato de ratificação. 3. Na atualidade a única hipótese de
prisão civil, no Direito brasileiro, é a do devedor de alimentos. O art. 5°, §2°, da
Carta Magna, expressamente estabeleceu que os direitos e garantias expressos no
caput do mesmo dispositivo não excluem outros decorrentes do regime dos
princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República
Federativa do Brasil seja parte. O Pacto de São José da Costa Rica, entendido
como um tratado internacional em matéria de direitos humanos, expressamente, só
admite, no seu bojo, a possibilidade de prisão civil do devedor de alimentos e,

Michell Nunes Midlej Maron 20


EMERJ – CP III Direito Civil III

conseqüentemente, não admite mais a possibilidade de prisão civil do depositário


infiel. 4. Habeas corpus concedido. (HC 95967 / MS. Supremo Tribunal Federal.
Rel. Min. Ellen Gracie. J. 11.11.2008)”

Veja, então, que o STF entende que status normativo supralegal dos tratados
internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil permite a aplicação da legislação
infraconstitucional que com ele seja conflitante. Por isso, o artigo 904 do CPC, já
transcrito, não mais teria efeito, eis que o Pacto vem ao ordenamento com esta natureza
supralegal. O artigo 666, § 3º, do CPC, merece atenção, por ter sofrido a mesma destinação
que o artigo 904, neste sentido:

“Art. 666. Os bens penhorados serão preferencialmente depositados:


(...)
§ 3o A prisão de depositário judicial infiel será decretada no próprio processo,
independentemente de ação de depósito.”

Veja o que disse o STJ no RHC 24.763, de dezembro de 2008 (poucos meses após a
decisão da Ministra Ellen Gracie):

“Recurso em Habeas Corpus. Prisão civil. Depositário judicial infiel. Caso fortuito
ou força maior não comprovados. Mera alegação de furto. Possibilidade de
decretação da prisão. Precedentes.- A mera alegação de ocorrência de furto do bem
depositado, sem a efetiva comprovação, não tem força para ilidir o decreto
prisional.- É possível a decretação da prisão civil do depositário infiel que não
cumpre as obrigações advindas do depósito judicial. Recurso não provido.”

Veja outros julgados de referência:

“HABEAS CORPUS. DEPOSITÁRIO INFIEL. PRISÃO CIVIL.


IMPOSSIBILIDADE. 1- Nos temos da orientação firmada pelo Plenário do
Supremo Tribunal Federal é inconstitucional a prisão civil do depositário infiel e
do alienante fiduciário (RE nº 466.343/SP). Precedentes desta Corte. 2 - Ordem
concedida. HC 113947. J.15.12.2008.Rel. Min.Fernando Gonçalves.”

“HABEAS CORPUS. PRISÃO CIVIL. DEPOSITÁRIO JUDICIAL. BENS


PERECÍVEIS.1. A deterioração de bens perecíveis pelo decurso de tempo e sem
oconcurso de conduta culposa do depositário não é causa de sua prisãocivil.2. O
Supremo Tribunal Federal, retomando o julgamento do Recurso Extraordinário n.
466.343 - SP, relatado pelo Ministro Cezar Peluso, inclina-se em favor da possível
declaração de inconstitucionalidade da prisão civil do depositário infiel.3. Ordem
de habeas corpus concedida. HC 111562. J. 17.11.2008. Rel.Min.J.O. Noronha.”

Sendo assim, em última análise, se o depositário não mais tem o bem para a entrega,
não caberá sua prisão, hoje: converter-se-á a busca e apreensão em meras perdas e danos.
Repare, porém, que não há que se falar em inconstitucionalidade destes dispositivos
infraconstitucionais, artigo 904 do CC e 666, § 3º, do CPC. Isto porque estas normas estão
perfeitamente compatíveis com o que vem previsto no artigo 5º, LXVII, permissivo da
prisão do depositário, e que é norma constitucional originária, cuja inconstitucionalidade
não pode ser declarada. Mas como explicar essa ineficácia destes artigos, e do próprio
artigo 5º, LXVII, da CRFB, se este não pode ser declarado inconstitucional pelo tratado,
vez que é norma originária da CRFB?

Michell Nunes Midlej Maron 20


EMERJ – CP III Direito Civil III

A doutrina explica o que se passa entre as normas conflitantes, o Pacto de São José
e o artigo 5º, LXVII, não é um conflito real. A permissão originária da CRFB e esta
vedação trazida pelo Tratado se compatibilizam no seguinte critério: quando a CRFB
permitiu que tratados sobre direitos e garantias fundamentais agregassem estes direitos ao
ordenamento, com status supralegal, ela abriu caminho para que este tratado trouxesse
maior amplitude à liberdade. Se a própria CRFB, no § 2º do artigo 5º, permite a agregação
de direitos e garantias ao ordenamento, o Pacto de São José da Costa Rica nada mais faz do
que implementar mormente o direito à liberdade de locomoção, e, sendo assim, tem
primazia sobre qualquer norma infraconstitucional, e mesmo sobre a norma que pertence ao
corpo original da CRFB, como o artigo 5º, LXVII. Vence as normas infraconstitucionais
por ser supralegal; e vence a norma constitucional originária, nesta aparente antinomia, pela
aplicação do princípio da primazia da norma mais protetiva dos direitos humanos.

2. Constituição de renda

É o contrato pelo qual é destinado um capital entregue a alguém, que resultará


vantagens econômicas ou prestações periódicas para a pessoa que o recebe, ao que entrega,
ou a uma terceira pessoa.
Neste contrato, o instituidor, proprietário dos bens ou meios de produção de renda,
entrega-os a outra pessoa, o rendeiro, também chamado censuário, pessoa que se
responsabilizará pela administração dos bens,de forma que possa devolver para o instituidor
uma determinada renda agregada ao bem inicialmente entregue.
É um contrato oneroso, bilateral, comutativo, real e por tempo determinado, sempre.
Como se disse no conceito, o instituidor pode ser o beneficiário, ou estabelecer que
um terceiro, ou mesmo o próprio rendeiro, sejam beneficiários da renda gerada.
A obrigação do instituidor é simplesmente receber a renda, podendo rescindir o
contrato em caso de atraso ou falta de pagamento; do rendeiro, a obrigação é prestar
garantia real ou fidejussória, se assim solicitar o instituidor, mas pode rescindir o contrato
se as condições econômicas não favorecerem seu cumprimento.
O contrato se extingue: pelo advento do termo; resolução; morte do beneficiado;
morte do rendeiro; morte do doador; declaração de ausência do credor; anulação, redução
ou revogação da doação; perecimento do imóvel; inoficiosidade; remissão concedida ao
devedor; ingratidão, se a renda for liberalidade; renovação ou confusão; prescrição e
decadência.

Michell Nunes Midlej Maron 21


EMERJ – CP III Direito Civil III

Casos Concretos

Questão 1

João recolheu de seu vizinho Manoel bens móveis que este possuía em razão de
inundação que ocorrera no bairro em que moravam.
Manoel ingressa com ação de depósito para exigir a devolução dos referidos bens,
tendo João alegado, em sede de contestação, que os móveis foram trazidos pela força das
águas e que, portanto, se tratavam de res nullius. Ademais, sustenta que não celebrara
qualquer avença com Manoel.
Decida a questão, apontando os fundamentos de fato e de direito.

Resposta à Questão 1

Trata-se de depósito miserável, e Manoel tem direito à restituição dos bens. É claro
que não são res nullius, podendo-se provar a propriedade por qualquer meio – não há
necessidade de celebração formal de contrato, nesta modalidade de depósito, que é
subespécie de depósito necessário.
Para a configuração de depósito não é necessário que o depositante seja
proprietário. A questão retrata a figura do depósito miserável, em que é admissível qualquer
meio de prova para a sua configuração, não se confundindo com o depósito voluntário que
se prova por escrito.
O depósito miserável gera para a pessoa que recolheu os bens a obrigação de
restituir. Ao que tudo indica, os bens recolhidos por ocasião da inundação devem ser
restituídos ao titular.

Questão 2

Joaquim deixou em depósito com José inúmeros bens identificados apenas pela
quantidade e espécie e que deveriam ser restituídos no momento em que o depositante
quisesse. Assim é que Joaquim notificou José, constituindo-o em mora, para que este

Michell Nunes Midlej Maron 211


EMERJ – CP III Direito Civil III

devolvesse os referidos bens. Não logrando êxito nessa tentativa amigável, acabou
propondo ação de depósito requerendo, desta forma, a aplicação da pena de prisão para o
depositário infiel. Queira responder se é cabível o referido pedido.

Resposta à Questão 2

Em se tratando de bem fungível, depósito irregular, deverá incidir a regra prevista


no artigo 645 do CC. Deste modo, incabível a aplicação da pena de prisão civil do
depositário infiel. Confira-se a seguinte ementa e parte do julgado, a título de ilustração:
“AÇÃO DE DEPOSITO. PENHOR MERCANTIL. COISAS FUNGIVEIS E
CONSUMIVEIS. TRATANDO-SE DE BENS FUNGIVEIS E CONSUMIVEIS,
APLICAM-SE AO DEPOSITO AS REGRAS DO MUTUO, PELO QUE
INCABIVEL A AÇÃO DE DEPOSITO COM PEDIDO DE PRISÃO DO
DEVEDOR. PRECEDENTES DO STJ. RECURSO ESPECIAL CONHECIDO E
PROVIDO.
Tratando-se de bens fungíveis e consumíveis aplicam-se ao depósito as regras do
mútuo, pelo que incabível a ação de depósito com pedido de prisão do devedor.
Precedentes do STJ.”

Veja também como se manifestou o STJ no agrg no REsp. 740.385:

“CIVIL - AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL - DIREITO DAS


OBRIGAÇÕES - CONTRATO DE GUARDA E ARMAZENAGEM DE GRÃOS
DE MILHO - BEM FUNGÍVEL - EGF/AGF - AÇÃO DE DEPÓSITO - NÃO
CABIMENTO – PRISÃO CIVIL - INVIABILIDADE. A orientação pacificada no
âmbito da 2a Seção desta Corte é a de que os contratos de EGF (Empréstimo do
Governo Federal) e AGF (Aquisição do Governo Federal), como depósito de bens
fungíveis, não autorizam, em caso de inadimplência, a ação de depósito e, como
consequência, a prisão civil do responsável. Precedentes. Agravo regimental
improvido.”

Perceba, no entanto, que a solução para esta casuística passa ao largo da discussão
sobre a própria prisão do depositário infiel em si, porque elide o cabimento por ser depósito
irregular, enquanto a mais severa discussão, hoje, versa sobre a prisão no próprio depósito
regular. Mas esta discussão tem sede em outro estudo.

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EMERJ – CP III Direito Civil III

Tema XX

Contrato de Mandato: conceito, classificação, forma, espécies. A procuração e o substabelecimento.


Mandato com e sem representação. A cláusula-mandato nos contratos de consumo. Direitos e deveres do
mandante e mandatário. Extinção do mandato. Mandato em causa própria. Renúncia e revogação do
mandato. Mandato judicial.

Notas de Aula40

1. Contrato de mandato

O contrato de mandato, em simples termos, é a permissão dada por uma pessoa, o


mandante, para que outra pessoa, o mandatário, manifeste a vontade em seu nome. É o
contrato pelo qual alguém recebe poderes de outrem, para, em nome deste alguém, praticar
atos ou administrar interesses.
A representação existe em dois níveis: a preposição e a representação propriamente
dita, sendo que esta última surge por duas formas, a legal ou a convencional. Exemplo de
representação legal é a curatela, a tutela, ou a posição do inventariante, etc. A convencional
é justamente a contratada, por meio deste contrato de mandato, que será aqui estudado.
O contrato de mandato é eminentemente fiduciário, pois não há confiança maior do
que permitir que alguém fale em seu nome. Neste sentido, é também intuitu personae,
sempre.
O mandato é normalmente gratuito, mas há modalidades onerosas, como o mandato
mercantil ou o judicial. O mandato judicial é presumidamente oneroso, contrariando a
regra, porque o mandatário, aqui, é um profissional habilitado, que faz da representação, em
juízo, seu meio profissional. Da mesma forma se dá com o mandato mercantil.
É um contrato não solene, salvo expressa determinação legal.
O contrato de mandato é essencialmente revogável: há direito potestativo do
mandante em revogar o mandato, a qualquer tempo, mesmo contra a vontade do
mandatário.

1.1. Requisitos
40
Aula ministrada pela professora Maria Cristina de Brito Lima, em 10/2/2009.

Michell Nunes Midlej Maron 21


EMERJ – CP III Direito Civil III

Como requisito subjetivo, é preciso que haja capacidade plena para constituir o
mandatário. Questão reiterada é a outorga de mandato pelo relativamente incapaz: tem
valor? sendo relativamente incapaz, o mandato só terá valor se feito por instrumento
público, e houver a necessária assistência. Se se tratar de absolutamente incapaz, já não há
necessidade de instrumento público, eis que o representante do incapaz, ele próprio, é quem
outorgará os poderes, pois é ele quem se manifesta, sozinho, pelo incapaz.
O mandato pode ser expresso, materializado na procuração, ou tácito, depreendido
de conduta das partes. Pode ser geral, outorgando todos os poderes que não são
considerados especiais, ou mandato específico, dedicado justamente a outorgar algum
poder especial. Veja os artigos 660 e 661 do CC:

“Art. 660. O mandato pode ser especial a um ou mais negócios determinadamente,


ou geral a todos os do mandante.”
“Art. 661. O mandato em termos gerais só confere poderes de administração.
§ 1o Para alienar, hipotecar, transigir, ou praticar outros quaisquer atos que
exorbitem da administração ordinária, depende a procuração de poderes especiais e
expressos.
§ 2o O poder de transigir não importa o de firmar compromisso.”

O mandatário deve prestar contas de sua atuação, a fim de demonstrar a adstrição


aos poderes dados pelo mandante.

1.2. Mandato “em causa própria”

O mandato em causa própria é aquele outorgado no interesse do mandatário, que,


consequentemente, fica isento de prestar contas, tendo poderes amplos, inclusive para
transferir para si bens móveis e imóveis objeto do mandato, equivalendo a procuração à
venda ou cessão de direito. Veja o artigo 685 do CC:

“Art. 685. Conferido o mandato com a cláusula "em causa própria", a sua
revogação não terá eficácia, nem se extinguirá pela morte de qualquer das partes,
ficando o mandatário dispensado de prestar contas, e podendo transferir para si os
bens móveis ou imóveis objeto do mandato, obedecidas as formalidades legais.”

Este é o famigerado “contrato de gaveta”, no qual se passa o direito a ser transferido


ao mandatário, no interesse do mandatário, que é quem vai transferir em seu nome o direito
em questão. Por isso, sequer há que prestar contas, pois que não há interesse do mandante.

1.3. Obrigações do mandatário

O mandatário deve atuar com diligência e presteza. Se for mandato profissional,


judicial ou comercial, a diligência é ainda maior, porque o contrato é oneroso, em regra.
Deve também executar pessoalmente o mandato, eis que é intuitu personae, baseado
na fidúcia. Mas veja que há possibilidade de substabelecimento, que pode, sem embargos,
ser obstado pelo mandante, se fizer constar expressamente esta vedação. A quebra da
fidúcia, meramente, é suficiente para revogação do mandato, não sendo necessário que o
mandante demonstre qualquer justa causa para tanto.
Veja o artigo 667 do CC:

Michell Nunes Midlej Maron 21


EMERJ – CP III Direito Civil III

“Art. 667. O mandatário é obrigado a aplicar toda sua diligência habitual na


execução do mandato, e a indenizar qualquer prejuízo causado por culpa sua ou
daquele a quem substabelecer, sem autorização, poderes que devia exercer
pessoalmente.
§ 1o Se, não obstante proibição do mandante, o mandatário se fizer substituir na
execução do mandato, responderá ao seu constituinte pelos prejuízos ocorridos sob
a gerência do substituto, embora provenientes de caso fortuito, salvo provando que
o caso teria sobrevindo, ainda que não tivesse havido substabelecimento.
§ 2o Havendo poderes de substabelecer, só serão imputáveis ao mandatário os
danos causados pelo substabelecido, se tiver agido com culpa na escolha deste ou
nas instruções dadas a ele.
§ 3o Se a proibição de substabelecer constar da procuração, os atos praticados pelo
substabelecido não obrigam o mandante, salvo ratificação expressa, que retroagirá
à data do ato.
§ 4o Sendo omissa a procuração quanto ao substabelecimento, o procurador será
responsável se o substabelecido proceder culposamente.”

O mandatário tem que prestar contas de sua atuação, como dito. Veja o artigo 668
do CC:

“Art. 668. O mandatário é obrigado a dar contas de sua gerência ao mandante,


transferindo-lhe as vantagens provenientes do mandato, por qualquer título que
seja.”

Aqui há que se abordar questão polêmica: a cláusula-mandato, nos contratos de


cartão de crédito, cria necessidade de prestação de contas pela administradora-mandatária
ao cliente-mandante? esta prestação de contas é possível, até mesmo em ação judicial de
prestação de contas, vez que se há mandato, há esta obrigação. De fato, será abordada esta
questão, a cláusula-mandato em contratos de consumo, em tópico específico, apartado,
adiante.
Obrigação implícita é que o mandatário atue nos limites do mandato, pois do
contrário é violação do contrato.
O mandatário deverá também indenizar pelos prejuízos eventualmente causados,
vez que se descumprir o contrato poderá causar danos, e estes merecem reparo. Não pode
sequer compensar os danos causados com as eventuais vantagens auferidas para o
mandante. Veja o artigo 669 do CC:

“Art. 669. O mandatário não pode compensar os prejuízos a que deu causa com os
proveitos que, por outro lado, tenha granjeado ao seu constituinte.”

Repare que o conceito de atuação diligente é tão abrangente, que açambarca


praticamente qualquer situação de causação de dano do mandatário ao mandante como
hipótese de violação contratual, e não ato ilícito.
Vejamos uma situação peculiar: o mandatário é constituído como procurador para a
venda de parte de uma fazenda, e acaba vendendo parte maior do que a que foi autorizada
pelo mandante. Qual a conseqüência desta situação?
Se o terceiro, adquirente, agiu de boa-fé, ou seja, diligenciou a fim de cientificar-se
dos limites da procuração, e não lhe foi possível, à luz da média, perceber que o ato era
ultra vires, não poderá ser penalizado, o que faz com que o negócio não possa ser anulado.

Michell Nunes Midlej Maron 21


EMERJ – CP III Direito Civil III

O artigo 674 do CC traz outra obrigação peculiar: a de perpetuar o mandato já


extinto, se porventura há perigo a ser evitado. Veja:

“Art. 674. Embora ciente da morte, interdição ou mudança de estado do mandante,


deve o mandatário concluir o negócio já começado, se houver perigo na demora.”

A última obrigação do mandatário vem no artigo 671 do CC:

“Art. 671. Se o mandatário, tendo fundos ou crédito do mandante, comprar, em


nome próprio, algo que devera comprar para o mandante, por ter sido
expressamente designado no mandato, terá este ação para obrigá-lo à entrega da
coisa comprada.”

1.4. Obrigações do mandante

O mandante deve cumprir todas as obrigações que o mandatário contraiu em seu


nome. Deve também adiantar ao mandatário as quantias necessárias, e ressarcir as despesas
oriundas do mandato. É o mandante obrigado também a ressarcir prejuízos havidos por
terceiros, desde que o mandatário os tenha causado sem culpa; se causou com culpa, o
mandante terá regresso contra o mandatário.
Se o mandato for oneroso, há também obrigação em pagar a remuneração ajustada.
Veja os artigos 675 a 679 do CC:

“Art. 675. O mandante é obrigado a satisfazer todas as obrigações contraídas pelo


mandatário, na conformidade do mandato conferido, e adiantar a importância das
despesas necessárias à execução dele, quando o mandatário lho pedir.

“Art. 676. É obrigado o mandante a pagar ao mandatário a remuneração ajustada e


as despesas da execução do mandato, ainda que o negócio não surta o esperado
efeito, salvo tendo o mandatário culpa.”

“Art. 677. As somas adiantadas pelo mandatário, para a execução do mandato,


vencem juros desde a data do desembolso.”

“Art. 678. É igualmente obrigado o mandante a ressarcir ao mandatário as perdas


que este sofrer com a execução do mandato, sempre que não resultem de culpa sua
ou de excesso de poderes.”

“Art. 679. Ainda que o mandatário contrarie as instruções do mandante, se não


exceder os limites do mandato, ficará o mandante obrigado para com aqueles com
quem o seu procurador contratou; mas terá contra este ação pelas perdas e danos
resultantes da inobservância das instruções.”

1.5. Extinção do mandato

O mandato se extingue pela renúncia do mandatário, quando este não mais desejar
representar o mandante; e, no sentido contrário, pode o mandante revogar o mandato, caso
não queira mais outorgar representação àquele mandatário.
A morte ou interdição de uma das partes também é causa lógica da extinção, dada a
fidúcia imanente a este contrato.

Michell Nunes Midlej Maron 21


EMERJ – CP III Direito Civil III

O mandato também se extingue se houver cumprimento do objeto,quando houver


delimitação deste objeto em contrato.

1.6. Contrato consigo mesmo

Há contrato consigo mesmo quando o representante age por si e pelo representado,


ou age por dois representados seus,. É o chamado autocontrato, que vem previsto no artigo
117 do CC:

“Art. 117. Salvo se o permitir a lei ou o representado, é anulável o negócio jurídico


que o representante, no seu interesse ou por conta de outrem, celebrar consigo
mesmo.
Parágrafo único. Para esse efeito, tem-se como celebrado pelo representante o
negócio realizado por aquele em quem os poderes houverem sido
subestabelecidos.”

Este autocontrato é anulável, nesta seara da representação convencional, se não for


expressamente permitido pelo representado.
Dois exemplos de autocontrato mandatário realiza compra e venda de bem do
mandante, sendo ele próprio o adquirente – subscreve por si como comprador, e pelo
mandante como vendedor; ou mandatário de duas pessoas que subscreve compra e venda
por elas, uma adquirindo e outra alienando.
O contrato consigo mesmo é anulável porque é um tanto aberto a fraudes, eis que
fica muito poder a cargo de uma só pessoa.

1.7. Mandato judicial

Como já se mencionou, é um contrato oneroso, porque o mandatário é um


profissional, e tem por objeto a representação para defesa de interesses e direitos perante
qualquer juízo. É regido pelas normas processuais e, supletivamente, as estabelecidas no
Código Civil.
O artigo 13 do CPC estabelece as sanções por falta de representação processual:

“Art. 13. Verificando a incapacidade processual ou a irregularidade da


representação das partes, o juiz, suspendendo o processo, marcará prazo razoável
para ser sanado o defeito.
Não sendo cumprido o despacho dentro do prazo, se a providência couber:
I - ao autor, o juiz decretará a nulidade do processo;
II - ao réu, reputar-se-á revel;
III - ao terceiro, será excluído do processo.”

É requisito subjetivo para o mandatário ser advogado ou estagiário com inscrição no


quadro da OAB, nos termos do artigo 3º, § 2º, da Lei 8.906/94:
“Art. 3º.- O exercício da atividade de advocacia no território brasileiro e a
denominação de advogado são privativos dos inscritos na Ordem dos Advogados
do Brasil - OAB.
§ 1º - Exercem atividade de advocacia, sujeitando-se ao regime desta lei, além do
regime próprio a que subordinem, os integrantes da Advocacia Geral da União, da
Procuradoria da Fazenda Nacional, da Defensoria Pública e das Procuradorias e

Michell Nunes Midlej Maron 21


EMERJ – CP III Direito Civil III

Consultorias Jurídicas dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e de suas


respectivas entidades de administração indireta e fundacional.
§ 2º - O estagiário de advocacia, regularmente inscrito, pode praticar os atos
previstos no artigo 1º, na forma do Regulamento Geral, em conjunto com
advogado e sob a responsabilidade deste.”

É requisito objetivo que o mandato seja escrito, como impõem os artigos 36 e 37 do


CPC, com as exceções da nomeação ad hoc, da caução de rato, e da representação ex
officio. A caução de rato é a atuação emergencial do advogado, diante da iminência do
perecimento do direito do mandante, sendo que deve ser suprida logo após, em prazo de
quinze dias. A representação ex officio é aquela que é desempenhada pelos procuradores
públicos, tais como os procuradores do Estado.
Os poderes podem ser gerais da cláusula ad judicia, ou especiais, como enumerados no
artigo 38 do CPC:

“Art. 38. A procuração geral para o foro, conferida por instrumento público, ou
particular assinado pela parte, habilita o advogado a praticar todos os atos do
processo, salvo para receber citação inicial, confessar, reconhecer a procedência do
pedido, transigir, desistir, renunciar ao direito sobre que se funda a ação, receber,
dar quitação e firmar compromisso. (Redação dada pela Lei nº 8.952, de
13.12.1994)
Parágrafo único. A procuração pode ser assinada digitalmente com base em
certificado emitido por Autoridade Certificadora credenciada, na forma da lei
específica.”

A legislação processual estabelece, nos artigos 44 e 45 do CPC, o tratamento


dispensado a uma eventual renúncia:

“Art. 44. A parte, que revogar o mandato outorgado ao seu advogado, no mesmo
ato constituirá outro que assuma o patrocínio da causa.”

“Art. 45. O advogado poderá, a qualquer tempo, renunciar ao mandato, provando


que cientificou o mandante a fim de que este nomeie substituto. Durante os 10
(dez) dias seguintes, o advogado continuará a representar o mandante, desde que
necessário para lhe evitar prejuízo. (Redação dada pela Lei nº 8.952, de
13.12.1994)”

O artigo 254 do CPC ainda prevê:

“Art. 254. É defeso distribuir a petição não acompanhada do instrumento do


mandato, salvo:
I - se o requerente postular em causa própria;
II - se a procuração estiver junta aos autos principais;
III - no caso previsto no art. 37.”

São relevantes, aqui, os artigos 263 e 266 do CPP, porque o mandato judicial, que é
contratual, lá tem efeitos demasiado importantes:

“Art. 263. Se o acusado não o tiver, ser-lhe-á nomeado defensor pelo juiz,
ressalvado o seu direito de, a todo tempo, nomear outro de sua confiança, ou a si
mesmo defender-se, caso tenha habilitação.

Michell Nunes Midlej Maron 21


EMERJ – CP III Direito Civil III

Parágrafo único. O acusado, que não for pobre, será obrigado a pagar os
honorários do defensor dativo, arbitrados pelo juiz.”

“Art. 266. A constituição de defensor independerá de instrumento de mandato, se


o acusado o indicar por ocasião do interrogatório.”

O artigo 513, “a”, da CLT traz outra representação peculiar:

“Art. 513. São prerrogativas dos sindicatos:


a) representar, perante as autoridades administrativas e judiciárias os interesses
gerais da respectiva categoria ou profissão liberal ou interesses individuais dos
associados relativos á atividade ou profissão exercida;
(...)”
Pode haver substabelecimento do mandato, como se sabe. O substabelecimento é
com reservas quando o substabelecente guarda ainda consigo os poderes de representação
que lhe foram conferidos pelo mandante. Será sem reservas quando, ao contrário, o
substabelecente simplesmente deixa de atuar em nome do mandante.
O mandato judicial se extingue da mesma forma que qualquer mandato: revogação;
renúncia; morte ou interdição de qualquer das partes; mudança e de estado; e conclusão do
objeto, que, no caso, é a causa judicial.

1.8. Cláusula-mandato em contratos de consumo

É comum que haja, em contratos bancários, elaborados por instituições financeiras,


a inclusão da chamada cláusula-mandato, servível como uma permissão dada pelo
consumidor à instituição para, em caso de débito, emitir um título executivo daquele saldo
para demandar em face deste cliente diretamente pela via executória – algo exclusivamente
voltado para o interesse do mandatário.
O mandante não tem acesso ao conteúdo do título executivo, eis que a instituição
financeira emitia este título à sua vontade. É claro que esta situação é abusiva, cláusula
potestativa pura, causando nulidade da dita cláusula-mandato.
Por conta disso, o STJ emitiu a súmula 60:

“Súmula 60, STJ: É nula a obrigação cambial assumida por procurador do


mutuário vinculado ao mutuante, no exclusivo interesse deste.”

Ocorre que nem toda cláusula-mandato em contratos de consumo é abusiva. Há um


exemplo de cláusula desta espécie que é legítima, e recorrente no mercado: a cláusula que
permite, nos contratos de cartão de crédito, que o mandatário, a administradora, vá ao
mercado em nome do mandante, o cliente, buscar recursos para adimplir a relação de
consumo que este tenha realizado.
Entenda: o consumidor, quando realiza compra com o cartão de crédito, está
autorizando a administradora de cartões a buscar no mercado de crédito o numerário
necessário para adimplir aquele preço, pago com o cartão de crédito, se ele próprio,
consumidor, não adimplir a fatura do seu cartão. Esta busca no mercado somente é possível
por conta da cláusula-mandato, que é importante e necessária, neste caso. E não se trata de
ma cláusula potestativa pura, porque a autorização depende de evento alheio à vontade do
mandatário, qual seja, o inadimplemento do consumidor da sua fatura; e não é cláusula

Michell Nunes Midlej Maron 21


EMERJ – CP III Direito Civil III

dedicada exclusivamente ao interesse do mandatário, mas também no interesse do


mandante.
Mas veja que a instituição financeira, a administradora, cobra um preço pelo seu
serviço de busca no mercado, e, além disso, pode ser que busque valores a juros nem
sempre os melhores. Daí surge a questão mais debatida nesta seara, que é a abusividade dos
juros repassados, dando ensejo às ações de prestações de contas pelos consumidores, em
face das administradoras, que são legitimadas passivas por serem mandatárias, visando a
comparar as taxas de juros cobradas no mercado, captadas pela mandatária, e as repassadas
ao consumidor, mandante.
A respeito, veja o julgado no agrg no REsp. 808.603:

“PROCESSO CIVIL - RECURSO ESPECIAL - AGRAVO REGIMENTAL –


CONTRATO BANCÁRIO - NOTA PROMISSÓRIA - CLÁUSULA MANDATO -
VIOLAÇÃO AO ART. 51, IV, CDC - SÚMULA 60/STJ - NULIDADE -
DESPROVIMENTO. 1 - É nula a cláusula contratual em que o devedor autoriza o
credor a sacar, para cobrança, título de crédito representativo de qualquerquantia
em atraso. Isto porque tal cláusula não se coaduna com ocontrato de mandato, que
pressupõe a inexistência de conflitos entremandante e mandatário. Precedentes
(REsp 504.036/RS e AgRg Ag562.705/RS). 2 - Ademais, a orientação desta Corte
é no sentido de que a cláusula contratual que permite a emissão da nota
promissória em favor do banco/embargado, caracteriza-se como abusiva, porque
violadora do princípio da boa-fé, consagrado no art. 51, inciso IV do Código de
Defesa do Consumidor. Precedente (REsp 511.450/RS).3 - Agravo regimental
desprovido.”

Veja também o julgado na apelação cível 2008.001.34233, do TJ/RJ:


“DIREITO DO CONSUMIDOR. REVISIONAL DE CONTRATO DE CARTÃO
DE CRÉDITO. VEDAÇÃO LEGAL. ANATOCISMO. CLÁUSULA-MANDATO.
JUROS DE MERCADO. VALIDADE. Agravante não demonstrou inexistir o
pressuposto legal para aplicação do art. 557 do CPC. Do contrário, a inovação
trazida pela Lei 9756/98, colocar-se-ia às avessas dos princípios da efetividade e
celeridade que buscou prestigiar, redundando em mais um recurso, sucedâneo da
apelação. Vedação da capitalização dos juros, ainda que o contrato a preveja
expressamente. Inteligência do art. 4º do Dec. 22.626/33 e do Verbete 121 da
Súmula do E. STF. Empresas que pertencem ao Sistema Financeiro Nacional,
incluídas as administradoras de cartão de crédito, inserem-se entre as instituições
regidas pela Lei nº 4.595/64, estando autorizadas a cobrar juros nas taxas de
mercado (Verbete 283 da Sumulada Jurisprudência dominante no STJ). A cláusula-
mandato não contém condição potestativa pura porque a cada vez em que financia
o seu débito, por ausência de meios próprios para fazê-lo, o filiado elege a
administradora como sua mandatária para obter os meios necessários à realização
da sua vontade. Inaplicabilidade do art. 51, VIII, do CDC. Inaplicabilidade do art.
51, VIII, do CDC. Não incidência dos juros pactuados em contratos de crédito
pessoal em decorrência de falta de previsão legal. Nulidade da cláusula contratual
que autoriza a cobrança de juros capitalizados de forma composta, mês a mês,
devendo a periodicidade ser alterada para incidência anual. Recurso a que se nega
provimento.”

Michell Nunes Midlej Maron 22


EMERJ – CP III Direito Civil III

Casos Concretos

Questão 1

A chamada "procuração em causa própria" é contrato de mandato tradicional?

Resposta à Questão 1

O contrato de mandato tradicional entrega poderes de representação nas mãos do


mandatário, que vai emitir a vontade em nome do mandante. Nesta situação peculiar, o que
se dá é uma cessão de direitos, por meio deste instrumento, permitindo que o mandatário
opere o direito cedido em seu próprio nome, à sua vontade – e não do mandante.
A respeito, veja o REsp. 303.707:
“Ação anulatória de escritura pública de compra e venda. Alienação de imóvel de
fundação. Retorno de imóvel antes doado para o patrimônio do originário doador
por procuração in rem suam e posterior alienação a terceiro. Impossibilidade.
Ausência de autorização judicial.
- A procuração in rem suam não encerra conteúdo de mandato, não mantendo
apenas a aparência de procuração autorizativa de representação. Caracteriza-se, em
verdade, como negócio jurídico dispositivo, translativo de direitos que dispensa
prestação de contas, tem caráter irrevogável e confere poderes gerais, no exclusivo
interesse do outorgado. A irrevogabilidade lhe é ínsita justamente por ser seu
objeto a transferência de direitos gratuita ou onerosa.
- Para a validade da alienação do patrimônio da fundação é imprescindível a
autorização judicial com a participação do órgão ministerial, formalidade que se
suprimida acarreta a nulidade do ato negocial, pois a tutela do Poder Público - sob
a forma de participação do Estado-juiz, mediante autorização judicial -, é de ser
exigida.”

Veja agora o mesmo posicionamento do TJ/RJ, na apelação cível 2008.001.47972:

“Cível. Processual civil. Transferência de ações. Procuração com cláusula em


causa própria. Ação declaratória cumulada com obrigação de fazer acolhida.
Apelação. Ilegitimidade do autor e impossibilidade jurídica do pedido.
Preliminares que se confundem, por serem reciprocamente prejudiciais.
Entendimento do STJ quanto à irrevogabilidade do mandato in rem suam, mesmo
com falecimento da outorgante. Direito próprio do autor, outorgado, que se
reconhece. Inteligência do art. 685 do Cód. Civil. Rito procedimental adequado ao
caso, consoante o ordenamento processual vigente. Rejeição das preliminares.

Michell Nunes Midlej Maron 22


EMERJ – CP III Direito Civil III

Prescrição. Não ocorrência. Se a demanda veio a ser aforada no prazo de lei, por
parte do legitimado, não se reconhece a ocorrência desta prejudicial de mérito.
Direito à transferência das ações que se reconhece, sendo a morte da outorgante res
inter alios para o exercício daquele. Não provimento do recurso e manutenção da
sentença.”

Questão 2

José e João, no interesse deste, celebraram um contrato de mandato, visando a


uma futura compra e venda de imóvel, em que o primeiro conferiu poderes ao segundo
para proceder à transferência do bem para seu nome.
Falecendo José, seus herdeiros consideraram o negócio extinto e pleitearam a
devolução do imóvel, afirmando a nulidade do pacto em razão de ser o imóvel financiado e
o contrato com o banco mutuante proibir a transferência.
Examine a validade do contrato.

Resposta à Questão 2

O contrato é válido, porque há a cessão de direitos, operada pelo mandato em causa


própria. Nada há que vicie o pacto, portanto, sendo perfeitamente válida esta procuração e
seus efeitos.
Veja o posicionamento do STJ, no REsp. 64.457:

“CIVIL E PROCESSO CIVIL. AÇÃO DE IMISSÃO NA POSSE. DIREITOS


HEREDITÁRIOS. PROCURAÇÃO EM CAUSA PRÓPRIA. CONTRATO
DISTINTO DO MANDATO TRADICIONAL. TRANSFERÊNCIA DE
DIREITOS. MORTE DO PROMITENTE-VENDEDOR. IRRELEVÂNCIA.
VALIDADE DO INSTRUMENTO. DOUTRINA. JURISPRUDÊNCIA.
RECURSO PROVIDO.
I - Pelo contrato de mandato em causa própria, o mandante transfere todos os seus
direitos sobre um bem, móvel ou imóvel, passando o mandatário a agir por sua
conta, em seu próprio nome, deixando de ser uma autorização, típica do contrato
de mandato, para transformar-se em representação.
II - Ao transferir os direitos, o mandante se desvincula do negócio, não tendo mais
relação com a coisa alienada, pelo que não há que se falar em extinção do contrato
pela morte do mandante. O contrato permanece válido e, em consequência, a
procuração, que é sua forma, mesmo depois do decesso do vendedor.
III - Esse posicionamento, ademais, ajusta-se ao entendimento segundo o qual a
promessa de compra-e-venda somente reclama inscrição do instrumento para sua
validade e eficácia perante terceiros, mostrando-se hábil a obtenção da adjudicação
compulsória em relação ao promitente vendedor independentemente desse
registro.”

Michell Nunes Midlej Maron 22


EMERJ – CP III Direito Civil III

Tema XXI

Prestação de Serviços: conceito, classificação, pressupostos existenciais e institutos afins. Empreitada:


conceito, classificação, espécies, riscos, responsabilidade civil, prazo de garantia, subempreitada e revisão
do preço da obra. Contrato de Incorporação.

Notas de Aula41

1. Distinções relevantes

Antes de realizarmos um estudo acerca da prestação de serviço, importa distingui-la


de institutos congêneres. Primeiramente, importa assentar que o instituto em análise não
possui qualquer relação com o chamado “serviço voluntário”, pois este possui regramento
próprio previsto na Lei 9.608/98.
Ato contínuo, a prestação de serviço também se diferencia do contrato de trabalho.
Este pode ser definido como sendo contrato pelo qual uma pessoa física se obriga, mediante
pagamento de contraprestação, a prestar trabalho não eventual em proveito de outra pessoa,
a quem fica juridicamente subordinada. Diante disso, poderia ser afirmado que o traço
diferenciador entre o contrato de prestação de serviços e o de trabalho seria que no primeiro
o vinculo não possui o condão de criar a subordinação entre as partes. Na prestação de
serviços, o beneficiário deve receber o trabalho executado conforme o combinado, não
importando o resultado.

2. Conceito

O contrato de prestação de serviços pode ser definido como sendo o pacto


sinalagmático em virtude do qual uma parte (prestadora) obriga-se a prestar a outros certos
serviços (obrigação de fazer), e que essa outra (beneficiária) obriga-se a remunerar
(obrigação de dar).
A partir do conceito supracitado, surgem questões relevantes a serem exploradas.
Vamos a elas.
O contrato firmado em caráter eventual para realização de determinado serviço não
é emprego: a eventualidade tem o objetivo de ilidir a caracterização de uma relação de
emprego. O contrato de prestação de serviços será por prazo determinado ou determinável,
tendo como limite o período de quatro anos, sendo permitidas renovações.
A prestação de serviços é um contrato bilateral, oneroso, consensual e comutativo. A
bilateralidade decorre do fato de serem os contratantes simultaneamente credores e
41
Aula ministrada pela professora Maria Cristina de Brito Lima, no dia 11/2/09.

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devedores uns dos outros. A onerosidade denota a existência de vantagens para ambos os
contratantes. A consensualidade traz consigo a idéia de que a existência do contrato se dá
cm o “choque de vontades”, devendo convergir o desiderato das partes. Ao passo que a
comutatividade advém da certeza no momento da contratação de qual serão as prestações a
serem cumpridas pelas partes.
Deve ser consignado acerca dos motivos que ensejam a extinção do referido
contrato. Pode se dar por vícios concomitantes à celebração do mesmo, caso em que
estaremos diante de causas de nulidade e anulabilidade. Há também as causas
supervenientes, onde se encontram a rescisão, resolução e revogação.
A resolução se dá pela ocorrência do termo do contrato, bem como por uma causa
externa que não pode ser imputada as partes que celebraram o pacto, daí não haver
condenação em perdas e danos nem análise de culpa. A rescisão, ao revés, se dá quando há
culpa de uma das partes pelo descumprimento contratual, devendo a mesma ser condenada
em perdas e danos. A revogação pode ser tida como um direito potestativo existente em
contratos de mandato, onde a parte possui a faculdade de extinguir os direitos concedidos a
outrem. Por derradeiro, a resilição é o direito potestativo que a parte possui de sair da
relação contratual, mediante notificação a parte contrária, podendo ser bilateral (distrato) ou
unilateral.
São elementos deste contrato: objeto, remuneração e consentimento. A ausência de um
destes elementos conduz a modificação em sua classificação. Como exemplo poderíamos
afirmar que a ausência da remuneração teria o condão de transformar o referido contrato em
gratuito e não mais oneroso. Veja os artigos 596 e 597 do CC:

“Art. 596. Não se tendo estipulado, nem chegado a acordo as partes, fixar-se-á por
arbitramento a retribuição, segundo o costume do lugar, o tempo de serviço e sua
qualidade.”

“Art. 597. A retribuição pagar-se-á depois de prestado o serviço, se, por convenção,
ou costume, não houver de ser adiantada, ou paga em prestações.”

A execução do serviço é independente: não há qualquer hierarquia daquele que toma


o serviço em relação ao que presta. Repetindo o que foi dito, o beneficiário deve receber o
trabalho executado conforme o combinado, não importando o resultado.
Quanto à possibilidade de contratação por incapazes, deve ser consignado que o
mesmo poderá, desde que haja suprimento desta, seja por representação ou assistência.
Embora imperem restrições em outras modalidades, pois em regra o incapaz não pode
contratar por si só, na prestação de serviço não há impedimento, para não haver qualquer
discriminação. Entretanto, como em qualquer outra situação, os atos podem ser anulados
pela ocorrência de vícios do consentimento

“Art. 595. No contrato de prestação de serviço, quando qualquer das partes não
souber ler, nem escrever, o instrumento poderá ser assinado a rogo e subscrito por
duas testemunhas.

3. Características

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Quanto às formas de celebração, o contrato de prestação de serviços pode ser


realizado de forma expressa ou verbal, sendo livre. Como dito, até o analfabeto pode
contratar a depender somente da forma em que as partes entenderão o contrato.
A independência hierárquica, caracterizada pela ausência de subordinação, ou seja,
não há subserviência de quem presta o serviço em relação ao beneficiário. A tomadora não
influencia na forma ou modo que a prestação será realizada, desde que a mesma ocorra.
Quanto ao objeto da prestação de serviço, deve ser salientado que, desde que
ausentes aspectos trabalhistas, podem ser contratados qualquer espécie de prestação, seja
braçal, intelectual ou externo.
A partir do objeto do contrato verificará o diploma que será regulado a matéria,
havendo por relevante a tese do “diálogo das fontes” de autoria de Erick Jayme, trazido
para o país pela gaúcha Claudia Lima Marques. Veja os artigos 593 e 594 do CC:

“Art. 593. A prestação de serviço, que não estiver sujeita às leis trabalhistas ou a lei
especial, reger-se-á pelas disposições deste Capítulo.”

“Art. 594. Toda a espécie de serviço ou trabalho lícito, material ou imaterial, pode
ser contratada mediante retribuição.”

Assim, exemplo seria o caso em que um particular entrega um laptop para conserto,
haverá aplicação do código de defesa do consumidor. Ao revés, sendo pessoa jurídica que
leva a uma prestadora de serviço de comunicação todo o aparelhado de informatização da
referida empresa, restará latente a relação civil a ser regida pelo diploma civilista42.

3.1. Duração do contrato

Tal matéria se encontra vinculada à possibilidade de resilição, permitindo que a


parte opte por não prosseguir em uma relação mediante necessária notificação, com o
escopo de evitar prejuízo à parte beneficiária decorrente da surpresa.
O objetivo é evitar que o prestador tenha a liberdade cerceada, o que ocorreria se
ficasse indefinidamente ligado ao tomador do serviço. Para Clóvis Bevillacqua:

“A necessidade do aviso por parte do prestador e do beneficiário é uma garantia


para os interesses de ambos, que a lei resguarda. A falta de aviso dará lugar ao
pagamento de perdas e danos, por inadimplemento de cláusula legal de
obrigação.”

Veja o artigo 598 do CC:

“Art. 598. A prestação de serviço não se poderá convencionar por mais de quatro
anos, embora o contrato tenha por causa o pagamento de dívida de quem o presta,
ou se destine à execução de certa e determinada obra. Neste caso, decorridos
quatro anos, dar-se-á por findo o contrato, ainda que não concluída a obra.”

3.2. Término e resolução do contrato


42
Acerca do tema, urge ressaltar haver posicionamento minoritário no sentido de aplicação da teoria
minimalista com o escopo de ampliar o conceito de consumidor para efeito de aplicação de suas normas
protetivas.

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A matéria em epígrafe se encontra regulada pelos artigos 603 e 604, CC, sendo
necessária a sua leitura:
“Art. 603. Se o prestador de serviço for despedido sem justa causa, a outra parte
será obrigada a pagar-lhe por inteiro a retribuição vencida, e por metade a que lhe
tocaria de então ao termo legal do contrato.”

“Art. 604. Findo o contrato, o prestador de serviço tem direito a exigir da outra
parte a declaração de que o contrato está findo. Igual direito lhe cabe, se for
despedido sem justa causa, ou se tiver havido motivo justo para deixar o serviço.”

O artigo 604 do CC, ao prever a justa causa, vem a permitir a ser esta uma das
formas de rescisão do contrato. Ademais, inovação legislativa acerca da matéria se encontra
prevista junto ao artigo 606 do CC, caso este em que regula a divisão dos prejuízos em caso
de falta de habilitação profissional da parte contratada.

“Art. 606. Se o serviço for prestado por quem não possua título de habilitação, ou
não satisfaça requisitos outros estabelecidos em lei, não poderá quem os prestou
cobrar a retribuição normalmente correspondente ao trabalho executado. Mas se
deste resultar benefício para a outra parte, o juiz atribuirá a quem o prestou uma
compensação razoável, desde que tenha agido com boa-fé.”

A essência deste artigo tem o desiderato de evitar o enriquecimento sem causa,


impedindo que a parte contratante se beneficie as custas do contratado, que mesmo sem
possuir habilitação profissional, realizara o serviço como se assim o fosse.
Caso relevante acerca da matéria em análise pode ser extraído do problema a seguir:

“Condomínio do Ed. Âncara contratou a impermeabilização do telhado do seu


bicicletário com a empresa de engenharia Marca Dez, ajustando o pagamento em
duas parcelas, nos seguintes termos: 50% de entrada e 50% ao término do serviço.
Entretanto, não ficando satisfeito com o serviço realizado, o Condomínio deixou
de pagar a última parcela.
Assiste razão ao Condomínio em suspender o pagamento? De que forma poderia a
prestadora impor o cumprimento do contrato?”

O prestador poderia impor o cumprimento do contrato pautado em uma vistoria com


concordância da obra, sendo uma das formas do mesmo se proteger em sede de alegação de
exceção de contrato não cumprido. Tal situação também ocorre em sede de locação de
imóveis, caso em que há a vistoria para que confirme a devolução do imóvel em mesmas
condições com que o foi entregue.
O acórdão abaixo sintetiza a solução a indagação supracitada.

“APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE COBRANÇA. CONTRATO DE PRESTAÇÃO


DE SERVIÇOS. OBRAS DE IMPERMEABILIZAÇÃO DO TETO DO
CONDOMINIO. PROBLEMAS DE INFILTRAÇÃO QUE PERSISTIRAM
MESMO APÓS A EXECUÇÃO DO CONTRATO PELA EMPRESA DE
ENGENHARIA. EXCEÇÃO DE CONTRATO NÃO CUMPRIDO. Trata-se de
hipótese em que o réu invoca a exceção de contrato não cumprido como
justificativa para o não cumprimento da obrigação que assumiu nos contratos. Os
contratos firmados entre as partes têm caráter bilateral e estão, por conseguinte,
sujeitos à disciplina do artigo 476 do Código Civil, que dispõe que nos contratos

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bilaterais, nenhum dos contratantes, antes de cumprida a sua obrigação, pode exigir
o implemento da do outro. O artigo 422 do Código Civil de 2002 impõe aos
contratantes a observância aos princípios de probidade e boa-fé não só na
conclusão como também na execução dos contratos. O laudo pericial de fls.
380/401 foi conclusivo no sentido de que os serviços que foram objeto dos
contratos enumerados a fls. 03/08 não foram correta e satisfatoriamente executados
pela empresa de engenharia contratada pelo condomínio. Louvada na prova
pericial por expert da confiança do juízo, que convence do acerto da conclusão a
que chegou, é de se manter a sentença de improcedência que acolheu a exceptio
non adimpleti contractus, assim comprovado o fato modificativo do direito do
autor, relativo à execução incorreta das obras de impermeabilização do teto do
prédio. DESPROVIMENTO DO RECURSO. (AP. Cível 2008.001.00321. Rel.
Des. Célia Meliga; j. 18.3.2008; Décima Oita Câmara Cível).”

3.3. Contrato de prestação de serviços e contrato de empreitada

A principal diferença entre os institutos se encontra no tocante ao risco assumido em


cada modalidade de contrato. Enquanto na prestação de serviço o beneficiário recebe o
trabalho executado conforme o contratado, não havendo qualquer relação de hierarquização
com aquele que presta o serviço, o beneficiário ou o que contrata a prestação receberá o
trabalho executado conforme combinado, não importando o resultado. Ex. O pintor
renomado, de quem se contrata a pintura de um quadro, não responde se o beneficiário não
gostar do resultado final.
Ao passo que em sede contrato de empreitada há execução determinada por aquele
que se beneficia da contratação, a execução do pacto é de acordo com a forma com que o
mesmo celebra. Assim, neste o executor trabalha por conta própria, assumindo os riscos
inerentes à sua atividade.
Em sede de contrato para impermeabilização a distinção fica marcante quando o
beneficiário informa que quer o serviço, pouco importando a forma com que o mesmo será
feito, somente se preocupando com o resultado, qual seja evitar “goteiras” se estas
ocorrerem o trabalho não fora realizado a contento.

4. Contrato de empreitada

Tal contrato possui regulamentação nos artigos 610 a 626 do CC, que serão
pontualmente analisados.
Por conceito, trata-se do contrato pelo qual uma das partes se obriga a fazer ou
mandar fazer determinada obra, mediante uma determinada remuneração, a favor de
outrem.
O contrato em tela é bilateral, oneroso, comutativo e consensual. A bilateralidade
vem a criar o sinalagma entre as partes. A onerosidade é essência do contrato. A
consensualidade denota-se da existência após a manifestação de vontade das partes. Ao
passo que a comutatividade se dá em razão da prestação das partes ser certa.
Assim, caracteriza-se a empreitada pela circunstância de considerar o resultado
final, e não a atividade, como objeto de relação contratual
Por se tratar de trabalho profissional, deve o empreiteiro ser capaz tecnicamente de
discordar do projeto que lhe esta sendo entregue.
Outra peculiaridade é a responsabilidade pelas observâncias das regras técnicas
estabelecidas para a execução da obra.

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Por fim, há responsabilidade pelo dono da obra pelo pagamento dos salários devidos
aos empregados do empreiteiro. O dono da obra tem a responsabilidade de remunerar, ao
passo que o empreiteiro possui em relação as regras técnicas da obra. O projeto é do dono
da obra, porém, na medida em que o empreiteiro recebe o projeto sem questionar,
afirmando ser possível, o mesmo assume eventual responsabilidade das conseqüências.
Veja o artigo 611 do CC:

“Art. 611. Quando o empreiteiro fornece os materiais, correm por sua conta os
riscos até o momento da entrega da obra, a contento de quem a encomendou, se
este não estiver em mora de receber. Mas se estiver, por sua conta correrão os
riscos.”

4.1. Espécies

A empreitada pode ser mista ou de lavor. Na primeira, há fornecimento da obra pelo


empreiteiro e material pelo dono do serviço, ao passo que no segundo o empreiteiro se
compromete somente com a realização do trabalho. Deveras importante a análise dos
artigos 610, 612, 613 e 617 do CC:
“Art. 610. O empreiteiro de uma obra pode contribuir para ela só com seu trabalho
ou com ele e os materiais.
§ 1o A obrigação de fornecer os materiais não se presume; resulta da lei ou da
vontade das partes.
§ 2o O contrato para elaboração de um projeto não implica a obrigação de executá-
lo, ou de fiscalizar-lhe a execução.”

“Art. 612. Se o empreiteiro só forneceu mão-de-obra, todos os riscos em que não


tiver culpa correrão por conta do dono.”

“Art. 613. Sendo a empreitada unicamente de lavor (art. 610), se a coisa perecer
antes de entregue, sem mora do dono nem culpa do empreiteiro, este perderá a
retribuição, se não provar que a perda resultou de defeito dos materiais e que em
tempo reclamara contra a sua quantidade ou qualidade.”

“Art. 617. O empreiteiro é obrigado a pagar os materiais que recebeu, se por


imperícia ou negligência os inutilizar.”

A remuneração em qualquer das espécies será estabelecida de acordo com a


extensão do trabalho. A divisão entre trabalho e material gera reflexos na responsabilidade
de cada parte, sendo que na modalidade mista, será dividida entre o empreiteiro e o dono da
obra, ao passo que na de lavor cada um responderá pela sua parte prestada.

4.2. Remuneração

O artigo 619 do CC demanda leitura.


“Art. 619. Salvo estipulação em contrário, o empreiteiro que se incumbir de
executar uma obra, segundo plano aceito por quem a encomendou, não terá direito
a exigir acréscimo no preço, ainda que sejam introduzidas modificações no projeto,
a não ser que estas resultem de instruções escritas do dono da obra.

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Parágrafo único. Ainda que não tenha havido autorização escrita, o dono da obra é
obrigado a pagar ao empreiteiro os aumentos e acréscimos, segundo o que for
arbitrado, se, sempre presente à obra, por continuadas visitas, não podia ignorar o
que se estava passando, e nunca protestou.”

Dúvida há acerca da possibilidade de, uma vez estipulado o preço e o projeto, o


empreiteiro alterar o valor do trabalho em razão de uma alteração do contrato. Para
resolução deve se saber se o “plus” for realmente um acréscimo feito na obra diferente do
inicial, nada mais justo que o valor aumente.
Ocorre que muitas vezes há substituição de um serviço por outro em razão da
impossibilidade da sua realização, caracterizado por um erro de cálculo, permitindo a
aplicação da teoria da imprevisão prevista no art. 478, CC.

5. Contrato de incorporação

O referido contrato prevê que o incorporador possui a responsabilidade solidária de


edificar o empreendimento, vindo a escolher a construtora, matérias e financia a obra. Tal
contrato se encontra previsto na Lei 4.591/64, nos artigos 28 e 29:

“Art. 28. As incorporações imobiliárias, em todo o território nacional, reger-se-ão


pela presente Lei.
Parágrafo único. Para efeito desta Lei, considera-se incorporação imobiliária a
atividade exercida com o intuito de promover e realizar a construção, para
alienação total ou parcial, de edificações ou conjunto de edificações compostas de
unidades autônomas.”

“Art. 29. Considera-se incorporador a pessoa física ou jurídica, comerciante ou


não, que embora não efetuando a construção, compromisse ou efetive a venda de
frações ideais de terreno objetivando a vinculação de tais frações a unidades
autônomas, em edificações a serem construídas ou em construção sob regime
condominial, ou que meramente aceite propostas para efetivação de tais transações,
coordenando e levando a termo a incorporação e responsabilizando-se, conforme o
caso, pela entrega a certo prazo, preço e determinadas condições, das obras
concluídas.
Parágrafo único. Presume-se a vinculação entre a alienação das frações do terreno
e o negócio de construção, se, ao ser contratada a venda, ou promessa de venda ou
de cessão das frações de terreno, já houver sido aprovado e estiver em vigor, ou
pender de aprovação de autoridade administrativa, o respectivo projeto de
construção, respondendo o alienante como incorporador.”

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Casos Concretos

Questão 1

Celebrado contrato de empreitada, após sete anos, verifica-se defeito de


construção. Alega o empreiteiro que sua responsabilidade pelo trabalho executado
obedece ao artigo 618, caput, do Código Civil/02, razão pela qual o prazo para a
propositura de ação se encontra esgotado. É adequada a interpretação?

Resposta à Questão 1

Tal questão demanda análise acerca da responsabilidade do construtor. O prazo de


garantia é de norma de ordem pública, impedindo a redução, mas não a majoração, sendo
esta permitida.
“Art. 618. Nos contratos de empreitada de edifícios ou outras construções
consideráveis, o empreiteiro de materiais e execução responderá, durante o prazo
irredutível de cinco anos, pela solidez e segurança do trabalho, assim em razão dos
materiais, como do solo.
Parágrafo único. Decairá do direito assegurado neste artigo o dono da obra que não
propuser a ação contra o empreiteiro, nos cento e oitenta dias seguintes ao
aparecimento do vício ou defeito.”

O momento para se exercer o direito supracitado deve ser dentro do prazo de cinco
anos.
Caso o dono da obra opte por demandar do empreiteiro ou construtor outras falhas
contratuais, qual prazo deverá ser aplicado? O do artigo 206, § 3º, V, do CC ou artigo 27 do
CDC? E em sendo vício do produto ou serviço dos artigos 18 e 20 do CDC? São hipóteses
a serem analisadas. Tepedino entende que será o prazo geral de dez anos. No entanto, tal
entendimento possuía respaldo com a ausência de regulamentação específica, caso este em
que não ocorre mais, pois o prazo de responsabilidade civil do novo diploma assenta ser de
três anos. A jurisprudência ainda não se definiu, uns apoiando no prazo de três anos e outros
nos dez anos.
Havendo relação de consumo a discussão passa a ser outra, pois o prazo do artigo
27 do CDC é de cinco anos, ao passo que em sede de vício do produto ou serviço dos
artigos 18 e 20 do CDC demanda por prazos distintos, devendo prosperar a tese de proteção
à vulnerabilidade do consumidor, ora mens legis da Lei 8.078/90.
“Art. 27. Prescreve em cinco anos a pretensão à reparação pelos danos
causados por fato do produto ou do serviço prevista na Seção II deste

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Capítulo, iniciando-se a contagem do prazo a partir do conhecimento do


dano e de sua autoria.”

“Art. 18. Os fornecedores de produtos de consumo duráveis ou não


duráveis respondem solidariamente pelos vícios de qualidade ou
quantidade que os tornem impróprios ou inadequados ao consumo a que
se destinam ou lhes diminuam o valor, assim como por aqueles
decorrentes da disparidade, com a indicações constantes do recipiente, da
embalagem, rotulagem ou mensagem publicitária, respeitadas as
variações decorrentes de sua natureza, podendo o consumidor exigir a
substituição das partes viciadas.
§ 1° Não sendo o vício sanado no prazo máximo de trinta dias, pode o
consumidor exigir, alternativamente e à sua escolha:
I - a substituição do produto por outro da mesma espécie, em perfeitas
condições de uso;
II - a restituição imediata da quantia paga, monetariamente atualizada,
sem prejuízo de eventuais perdas e danos;
III - o abatimento proporcional do preço.”

“Art. 20. O fornecedor de serviços responde pelos vícios de qualidade que


os tornem impróprios ao consumo ou lhes diminuam o valor, assim como
por aqueles decorrentes da disparidade com as indicações constantes da
oferta ou mensagem publicitária, podendo o consumidor exigir,
alternativamente e à sua escolha:
I - a reexecução dos serviços, sem custo adicional e quando cabível;
II - a restituição imediata da quantia paga, monetariamente atualizada,
sem prejuízo de eventuais perdas e danos;
III - o abatimento proporcional do preço.
§ 1° A reexecução dos serviços poderá ser confiada a terceiros
devidamente capacitados, por conta e risco do fornecedor.
§ 2° São impróprios os serviços que se mostrem inadequados para os fins
que razoavelmente deles se esperam, bem como aqueles que não atendam
as normas regulamentares de prestabilidade.

A condição específica de procedibilidade para a propositura de demanda relacionada


a produto ou serviço passa pela reclamação junto ao fornecedor, posto que há um direito do
fornecedor em dar a oportunidade do mesmo consertar o produto em trinta dias. Não
atendido o prazo, haverá a possibilidade do consumidor demandar com base no artigo 18, §
1º, do CDC. Assim, nos casos de vício, há uma grande confusão, pois os prazos de trinta e
noventa dias não é o de demandar indenização, mas sim o de reclamar junto ao fornecedor.
Nesse diapasão, dúvida há acerca do prazo para demandar indenização em face ao
fornecedor por vício do produto, havendo entendimento no sentido de aplicação do prazo
prescricional do código civil de dez anos, bem como de aplicar o prazo consumerista de
cinco anos43.
43
Em síntese pode se assentar que em sede de fato do produto ou serviço o prazo para demandar indenização
é de cinco anos, conforme prevê o artigo 27 do CDC. Em sede de vício, há o prazo de trinta (não duráveis) e
noventa (duráveis) dias para reclamação do vício, sendo direito do fornecedor o prazo de trinta dias para
tentativa de solução do mesmo. Ainda em sede de vício, dúvida há acerca do prazo para pretensão
indenizatória, havendo entendimento no sentido de aplicação do prazo de três anos do art. 206, § 3º, V, CC,
para Tepedino o prazo geral de dez anos e para outros o prazo de cinco anos do fato do serviço.
Superadas as controvérsias, mesmo não havendo entendimento pacífico, em que pese o prazo mais
benéfico à proteção ao vulnerável se encontrar contido no prazo prescricional geral de dez anos do CC,
vislumbro pela aplicação do prazo de cinco anos do art. 27, CDC, pois se trata de norma especial e de ordem

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Questão 2
Severino realizava, sem vínculo empregatício e com remuneração quinzenal,
limpeza dos estábulos do fazendeiro João no interior da Fazenda Cantagalo. Passados
dois anos de cumprimento do referido contrato, João aliena o imóvel para José, mas
Severino pretende continuar a realização de seu serviço. É cabível a pretensão de
Severino?

Resposta à Questão 2
Deve ser levado em conta que o caso em tela há trabalho prestado em zona rural,
havendo do Estado interesse na proteção deste labor, caso em que há exceção a regra, em
razão de um ditame constitucional de proteção ao labor rural, sendo considerado o local
onde o serviço esta sendo realizado, ficando a cargo do Severino decidir se quer continuar
ou não. O respaldo legal se encontra no artigo 609 do CC:
“Art. 609. A alienação do prédio agrícola, onde a prestação dos serviços se opera,
não importa a rescisão do contrato, salvo ao prestador opção entre continuá-lo com
o adquirente da propriedade ou com o primitivo contratante.”

Assim, se conclui que Severino tem direito potestativo a continuar trabalhando para
o adquirente do referido prédio agrícola, nos termos do artigo 609 do CC. Trata-se de
obrigação com eficácia real assumida pelo adquirente do imóvel e que retrata mais uma das
exceções ao princípio da relatividade dos contratos à semelhança do que acontece com a
cláusula de vigência no contrato de locação (artigo 576 do CC e 8º da Lei de Locações).
Excepciona, outrossim, o caráter personalíssimo do contrato de prestação de serviços e tem
por fundamento a proteção do trabalhador rural.

pública, sendo imperativa a sua incidência.

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Tema XXII

Contrato de Seguro: conceito e classificação. Início da cobertura. Apólice Co-seguro. Aspectos jurídicos do
risco e da cobertura. Pluralidade de seguros. Boa-fé e probidade como deveres do segurador e segurado.
Responsabilidade civil do segurador. Seguro de dano e pessoa..

Notas de Aula44

1. Contrato de seguro

É o contrato bilateral, consensual e aleatório pelo qual uma das partes se obriga
perante a outra, mediante recebimento de um prêmio, a garantir interesse legítimo desta, no
tocante a pessoa ou coisa, relacionados a riscos previstos.
“Art. 757. Pelo contrato de seguro, o segurador se obriga, mediante o pagamento
do prêmio, a garantir interesse legítimo do segurado, relativo a pessoa ou a coisa,
contra riscos predeterminados.
Parágrafo único. Somente pode ser parte, no contrato de seguro, como segurador,
entidade para tal fim legalmente autorizada.”

O prêmio não se confunde com o valor recebido com a ocorrência do evento coberto
pelo plano, pois este é chamado de indenização, ao passo que o prêmio é o valor pago para
que àquele seja coberto.
É da própria essência do contrato a alea, ou seja, o risco inerente ao contrato. Logo,
por óbvio, o pagamento do prêmio não depende da ocorrência do evento coberto, se este
sinistro não ocorrer não fornece azo ao direito à devolução do valor pago.
Ademais, trata-se de contrato de adesão, onde as clausulas são elaboradas
unilateralmente por uma das partes, vindo à outra a somente aderir as clausulas
preestabelecidas.

1.1. Classificação

A classificação dos seguros é estabelecida de acordo com a sua natureza, podendo ser
de coisas ou dano (marítimo ou terrestre), sendo extensivamente tratado nos artigos 778 a
788 do CC, cuja leitura se faz relevante:
“Art. 778. Nos seguros de dano, a garantia prometida não pode ultrapassar o valor
do interesse segurado no momento da conclusão do contrato, sob pena do disposto
no art. 766, e sem prejuízo da ação penal que no caso couber.”

44
Aula ministrada pela professora Maria Cristina de Brito Lima, no dia 11/2/09.

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“Art. 779. O risco do seguro compreenderá todos os prejuízos resultantes ou


conseqüentes, como sejam os estragos ocasionados para evitar o sinistro, minorar o
dano, ou salvar a coisa.”

“Art. 780. A vigência da garantia, no seguro de coisas transportadas, começa no


momento em que são pelo transportador recebidas, e cessa com a sua entrega ao
destinatário.”

“Art. 781. A indenização não pode ultrapassar o valor do interesse segurado no


momento do sinistro, e, em hipótese alguma, o limite máximo da garantia fixado
na apólice, salvo em caso de mora do segurador.”
“Art. 782. O segurado que, na vigência do contrato, pretender obter novo seguro
sobre o mesmo interesse, e contra o mesmo risco junto a outro segurador, deve
previamente comunicar sua intenção por escrito ao primeiro, indicando a soma por
que pretende segurar-se, a fim de se comprovar a obediência ao disposto no art.
778.”

“Art. 783. Salvo disposição em contrário, o seguro de um interesse por menos do


que valha acarreta a redução proporcional da indenização, no caso de sinistro
parcial.”

“Art. 784. Não se inclui na garantia o sinistro provocado por vício intrínseco da
coisa segurada, não declarado pelo segurado.
Parágrafo único. Entende-se por vício intrínseco os defeitos próprios da coisa, que
se não encontra normalmente em outras da mesma espécie.”

“Art. 785. Salvo disposição em contrário, admite-se a transferência do contrato a


terceiro com a alienação ou cessão do interesse segurado.
§ 1o Se o instrumento contratual é nominativo, a transferência só produz efeitos em
relação ao segurador mediante aviso escrito assinado pelo cedente e pelo
cessionário.
§ 2o A apólice ou o bilhete à ordem só se transfere por endosso em preto, datado e
assinado pelo endossante e pelo endossatário.”

“Art. 786. Paga a indenização, o segurador sub-roga-se, nos limites do valor


respectivo, nos direitos e ações que competirem ao segurado contra o autor do
dano.
§ 1o Salvo dolo, a sub-rogação não tem lugar se o dano foi causado pelo cônjuge
do segurado, seus descendentes ou ascendentes, consangüíneos ou afins.
§ 2o É ineficaz qualquer ato do segurado que diminua ou extinga, em prejuízo do
segurador, os direitos a que se refere este artigo.”

“Art. 787. No seguro de responsabilidade civil, o segurador garante o pagamento


de perdas e danos devidos pelo segurado a terceiro.
§ 1o Tão logo saiba o segurado das conseqüências de ato seu, suscetível de lhe
acarretar a responsabilidade incluída na garantia, comunicará o fato ao segurador.
§ 2o É defeso ao segurado reconhecer sua responsabilidade ou confessar a ação,
bem como transigir com o terceiro prejudicado, ou indenizá-lo diretamente, sem
anuência expressa do segurador.
§ 3o Intentada a ação contra o segurado, dará este ciência da lide ao segurador.
§ 4o Subsistirá a responsabilidade do segurado perante o terceiro, se o segurador
for insolvente.”

“Art. 788. Nos seguros de responsabilidade legalmente obrigatórios, a indenização


por sinistro será paga pelo segurador diretamente ao terceiro prejudicado.

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EMERJ – CP III Direito Civil III

Parágrafo único. Demandado em ação direta pela vítima do dano, o segurador não
poderá opor a exceção de contrato não cumprido pelo segurado, sem promover a
citação deste para integrar o contraditório.”

Há também o seguro saúde que possui previsão legal nos dispositivos abaixo:

“Art. 789. Nos seguros de pessoas, o capital segurado é livremente estipulado pelo
proponente, que pode contratar mais de um seguro sobre o mesmo interesse, com o
mesmo ou diversos seguradores.”

“Art. 790. No seguro sobre a vida de outros, o proponente é obrigado a declarar,


sob pena de falsidade, o seu interesse pela preservação da vida do segurado.
Parágrafo único. Até prova em contrário, presume-se o interesse, quando o
segurado é cônjuge, ascendente ou descendente do proponente.”

“Art. 791. Se o segurado não renunciar à faculdade, ou se o seguro não tiver como
causa declarada a garantia de alguma obrigação, é lícita a substituição do
beneficiário, por ato entre vivos ou de última vontade.
Parágrafo único. O segurador, que não for cientificado oportunamente da
substituição, desobrigar-se-á pagando o capital segurado ao antigo beneficiário.”

“Art. 792. Na falta de indicação da pessoa ou beneficiário, ou se por qualquer


motivo não prevalecer a que for feita, o capital segurado será pago por metade ao
cônjuge não separado judicialmente, e o restante aos herdeiros do segurado,
obedecida à ordem da vocação hereditária.
Parágrafo único. Na falta das pessoas indicadas neste artigo, serão beneficiários os
que provarem que a morte do segurado os privou dos meios necessários à
subsistência.”

“Art. 793. É válida a instituição do companheiro como beneficiário, se ao tempo


do contrato o segurado era separado judicialmente, ou já se encontrava separado de
fato.”

“Art. 794. No seguro de vida ou de acidentes pessoais para o caso de morte, o


capital estipulado não está sujeito às dívidas do segurado, nem se considera
herança para todos os efeitos de direito.”

“Art. 795. É nula, no seguro de pessoa, qualquer transação para pagamento


reduzido do capital segurado.”

“Art. 796. O prêmio, no seguro de vida, será conveniado por prazo limitado, ou por
toda a vida do segurado.
Parágrafo único. Em qualquer hipótese, no seguro individual, o segurador não terá
ação para cobrar o prêmio vencido, cuja falta de pagamento, nos prazos previstos,
acarretará, conforme se estipular, a resolução do contrato, com a restituição da
reserva já formada, ou a redução do capital garantido proporcionalmente ao prêmio
pago.”

“Art. 797. No seguro de vida para o caso de morte, é lícito estipular-se um prazo de
carência, durante o qual o segurador não responde pela ocorrência do sinistro.
Parágrafo único. No caso deste artigo o segurador é obrigado a devolver ao
beneficiário o montante da reserva técnica já formada.”

“Art. 798. O beneficiário não tem direito ao capital estipulado quando o segurado
se suicida nos primeiros dois anos de vigência inicial do contrato, ou da sua

Michell Nunes Midlej Maron 23


EMERJ – CP III Direito Civil III

recondução depois de suspenso, observado o disposto no parágrafo único do artigo


antecedente.
Parágrafo único. Ressalvada a hipótese prevista neste artigo, é nula a cláusula
contratual que exclui o pagamento do capital por suicídio do segurado.”

“Art. 799. O segurador não pode eximir-se ao pagamento do seguro, ainda que da
apólice conste à restrição, se a morte ou a incapacidade do segurado provier da
utilização de meio de transporte mais arriscado, da prestação de serviço militar, da
prática de esporte, ou de atos de humanidade em auxílio de outrem.”

“Art. 800. Nos seguros de pessoas, o segurador não pode sub-rogar-se nos direitos
e ações do segurado, ou do beneficiário, contra o causador do sinistro.”

“Art. 801. O seguro de pessoas pode ser estipulado por pessoa natural ou jurídica
em proveito de grupo que a ela, de qualquer modo, se vincule.
§ 1o O estipulante não representa o segurador perante o grupo segurado, e é o único
responsável, para com o segurador, pelo cumprimento de todas as obrigações
contratuais.
§ 2o A modificação da apólice em vigor dependerá da anuência expressa de
segurados que representem três quartos do grupo.”

“Art. 802. Não se compreendem nas disposições desta Seção a garantia do


reembolso de despesas hospitalares ou de tratamento médico, nem o custeio das
despesas de luto e de funeral do segurado.”

O INSS firma contrato de seguro pessoal, este possui indenização tarifada ou


preestabelecida em caso de infortúnio laboral, a natureza jurídica da ação acidentária é de
forma latente indenizatória, sendo “benefício tarifado”.

1.2. Elementos

A apólice é a que estabelece o valor e condições do seguro, sendo de fundamental


importância, a ponto da mesma precisar ser apresentada ao beneficiário. Tal instituto possui
previsão no artigo 760 do CC:

“Art. 760. A apólice ou o bilhete de seguro serão nominativos, à ordem ou ao


portador, e mencionarão os riscos assumidos, o início e o fim de sua validade, o
limite da garantia e o prêmio devido, e, quando for o caso, o nome do segurado e o
do beneficiário.
Parágrafo único. No seguro de pessoas, a apólice ou o bilhete não podem ser ao
portador.”

As condições gerais são os riscos assumidos (podendo os mesmos ser ampliados


conforme pactuação das partes); inicio e fim da validade; limite da garantia; prêmio devido;
nome do segurado e do beneficiário (terceiro na relação que é indicado pelo segurado para
recebimento do seguro); valor do objeto do seguro e cobertura.

1.3. Limites do seguro e a boa-fé

O contrato de seguro é um tipo de pacto em que a informação é essencial para a


formação do contrato, sendo as mesmas consideradas individualmente, formando a base do
contrato.

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Nesse sentido, os artigos 782 e 789 do CC assentam pela não se admissão da


cumulação de seguro sob o mesmo interesse. Tal vedação se dá pela impossibilidade de
sub-rogação em caso de ocorrência de dano. A única exceção ocorre em sede de seguro de
vida, caso em que se permite a cumulação de seguros.

“Art. 782. O segurado que, na vigência do contrato, pretender obter novo seguro
sobre o mesmo interesse, e contra o mesmo risco junto a outro segurador, deve
previamente comunicar sua intenção por escrito ao primeiro, indicando a soma por
que pretende segurar-se, a fim de se comprovar a obediência ao disposto no art.
778.”

“Art. 789. Nos seguros de pessoas, o capital segurado é livremente estipulado pelo
proponente, que pode contratar mais de um seguro sobre o mesmo interesse, com o
mesmo ou diversos seguradores.”

Ademais, deve ser dada a comunicação sobre a complementação às seguradoras,


pois, conforme assenta o artigo 782 do CC, supracitado, havendo possibilidade de
complementação de seguros sempre que o valor seja elevado de modo a impedir que uma
mesma seguradora seja contratada. No entanto, a boa-fé objetiva demanda comunicação as
demais segurados acerca do co-seguro.
Deve ser respeitado o princípio da boa-fé na veracidade das informações ofertadas,
devendo a boa-fé estar presente mesmo antes da contratação, conforme preconiza o artigo
765 do CC:

“Art. 765. O segurado e o segurador são obrigados a guardar na conclusão e na


execução do contrato, a mais estrita boa-fé e veracidade, tanto a respeito do objeto
como das circunstâncias e declarações a ele concernentes.”

Acerca do tema, importa analisar a situação em que alguém tomou ciência de que
estava acometido de doença terminal, se dirigindo a uma seguradora com o escopo de
celebrar o contrato aleatório de vida, sem contudo informar a seguradora ou sua família
acerca da doença. Vindo a falecer a seguradora veta a pretensão sob a alegação de nulidade
por omissão de informação essencial, juntando comprovação de ida a médico requerendo
depoimento do profissional acerca da possível doença preexistente. Assim, comprova-se a
má-fé do segurado.
Ocorre que compete à seguradora tomar posturas preventivas, valendo-se de
declarações do próprio segurado, com o objetivo de evitar pagamento de indenização em
caso de situação preexistente.
Por derradeiro, o valor do seguro não pode ultrapassar o valor do bem segurado. Tal
situação ocorre em sede de seguro de veículo automotor, caso em que há depreciação
durante o contrato. Ocorre que o prêmio fora pago sob paradigma de um valor estabelecido,
não devendo prosperar a tese das seguradoras acerca de pagamento da indenização pautada
em valor de mercado, sob pena de ensejar um enriquecimento sem causa das seguradoras
que recebiam sob um valor e pagavam sob outro, ante a tendência de desvalorização.

1.4. Boa-fé e probidade como deveres das partes

Sobre o tema, importa trazer à baila a situação corriqueira em que o segurando


procura à seguradora informando do escopo em celebrar contrato em que tenha cobertura

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de todas as situações, sendo cientificado da contratação do chamado “plano total”. Ocorre


que a parte vem a precisar de atendimento médico de urgência referente à quimioterapia,
vindo o segurador a informar que o referido tratamento não se encontrava coberto pelo
plano, restando latente a má-fé da seguradora, induzindo o segurado a crer que se
encontrava coberto em toda e qualquer situação.
Importa assentar que o descumprimento a boa-fé enseja na perda da garantia para o
segurado e obrigação ao pagamento dos prêmios vencidos. Veja o artigo 776 do CC:
“Art. 766. Se o segurado, por si ou por seu representante, fizer declarações
inexatas ou omitir circunstâncias que possam influir na aceitação da proposta ou na
taxa do prêmio, perderá o direito à garantia, além de ficar obrigado ao prêmio
vencido.
Parágrafo único. Se a inexatidão ou omissão nas declarações não resultar de má-fé
do segurado, o segurador terá direito a resolver o contrato, ou a cobrar, mesmo
após o sinistro, a diferença do prêmio.”

Ao passo que para o segurador, a sua má-fé enseja o pagamento em dobro do valor
correspondente ao prêmio, conforme preconiza o artigo 773 do CC, bem como sanções
administrativas.

“Art. 773. O segurador que, ao tempo do contrato, sabe estar passado o risco de
que o segurado se pretende cobrir, e, não obstante, expede a apólice, pagará em
dobro o prêmio estipulado.”

1.5. Cosseguro

Se dá quando duas ou mais seguradoras podem assumir responsabilidade sobre um


mesmo seguro direto, com a emissão de uma única apólice, onde se fixam obrigações para
todos as cosseguradoras. Veja o artigo 761 do CC:

“Art. 761. Quando o risco for assumido em co-seguro, a apólice indicará o


segurador que administrará o contrato e representará os demais, para todos os seus
efeitos.”
1.6. Pluralidade de seguros

Ocorre quando a própria seguradora veta a cobertura total do seguro, demandando a


procura do segurado por outra seguradora. Se faz necessário salientar que em sede de
seguro quanto a dano, o valor máximo do seguro será o valor do bem. Veja os artigos 778 e
782 do CC:

“Art. 778. Nos seguros de dano, a garantia prometida não pode ultrapassar o valor
do interesse segurado no momento da conclusão do contrato, sob pena do disposto
no art. 766, e sem prejuízo da ação penal que no caso couber.”

“Art. 782. O segurado que, na vigência do contrato, pretender obter novo seguro
sobre o mesmo interesse, e contra o mesmo risco junto a outro segurador, deve
previamente comunicar sua intenção por escrito ao primeiro, indicando a soma por
que pretende segurar-se, a fim de se comprovar a obediência ao disposto no art.
778.”

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Ao revés, sendo seguro de vida não há que se falar em valor máximo legal, ficando
ao alvedrio das partes a fixação do valor a ser indenizado. Veja o artigo 789 do CC:

“Art. 789. Nos seguros de pessoas, o capital segurado é livremente estipulado pelo
proponente, que pode contratar mais de um seguro sobre o mesmo interesse, com o
mesmo ou diversos seguradores.”

Casos Concretos

Questão 1

FRANCISCO, estipulante de contrato de seguro de vida, se suicida , no primeiro


ano de vigência do contrato, logo após perder o emprego e entrar em processo depressivo
e de autodestruição, além de sofrer de crises de alcoolismo. Acionada por JOÃO e MARIA,
filhos de FRANCISCO e seus beneficiários no contrato, com vistas ao pagamento da
indenização, a seguradora invocou em contestação tratar-se de risco provocado pelo
próprio segurado, em virtude de ato doloso. Julgue o caso acima, à luz dos dispositivos
legais pertinentes e da orientação jurisprudencial sobre o tema.

Resposta à Questão 1

Neste caso, em que pese demandar análise probatória, deve ser reputada a situação
como não sendo decorrente de suicídio premeditado, demandando cobertura do risco pela
seguradora, sob pena de enriquecimento sem causa, ora repudiado pelo ordenamento
jurídico vigente.
Veja os seguintes julgados de referência:

“SEGURO. SUICÍDIO NÃO PREMEDITADO. Se o contrato de seguro prevê a


indenização em dobro para o caso de acidente pessoal, o suicídio não premeditado,
que dele é espécie, está abrangido pelo respectivo regime. Recurso especial não
conhecido. (REsp 164254) “

“SEGURO. Suicídio. Acidente. O suicídio não-premeditado equipara-se ao


acidente, tendo a segurado direito de receber a indenização correspondente à morte
acidental. Precedentes. Recurso conhecido em parte e provido. (REsp 304286)”

Há também, o enunciado 187 do CJF, e o verbete da súmula 61 do STJ:

“No contrato de seguro de vida, presume-se, de forma relativa ser premeditado o


suicídio cometido nos dois primeiros anos de vigência da cobertura, ressalvado ao
beneficiário o ônus de demonstrar a ocorrência do chamado "suicídio
involuntário”.”

Questão 2
José ajuizou em face da Companhia Nacional de Seguros ação de indenização
pelos danos materiais relativos ao veículo, acessórios e carroceria, cujo valor alcança R$
40.000,00 (quarenta mil reais). A ré contestou o pedido alegando que ocorrera infração
contratual e legal, em virtude da falta de comunicação de transferência da propriedade do

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veículo a João, o que ensejaria a perda do direito indenizatório; a aplicação da regra da


exceptio non adimpleti contractus; o CDC permite a inserção, nos contratos de adesão, de
cláusula limitativa ou condicional de direitos, a teor do artigo 54, parágrafo 4º ; a
alteração na titularidade do bem enseja nova avaliação do risco a ser segurado, podendo
a ré aceitar ou rejeitar a nova condição; incabível a alegação de que a ré deve provar que
houve o agravamento do risco para exonerar a indenização, já que o que se discute não é
simplesmente o agravamento do risco mas sim a impossibilidade da seguradora de avaliar
o risco assumido e calcular o prêmio de acordo; há de respeitar a norma legal e contratual
de sub-rogação de direitos, na forma determinada pelas cláusulas contratuais em
conjugação com o C.C. e a Súmula 188 do STF; exige-se a apresentação do DUT do
veículo para o pagamento da indenização de veículo que não é de propriedade do
segurado, impedindo-lhe a sub-rogação no salvado.
Em réplica, João pugna pela procedência do pedido, pois não há nos autos prova
da incidência de ilícito tarifário, já que a apólice não veda expressamente a transferência
a terceiros; as cláusulas contratuais alegadas não se encontram incertas na apólice;
irrelevante o argumento de não haver relação jurídica entre a seguradora e o adquirente
do veículo, já que, em se tratando de sua transferência, não havendo vedação expressa na
apólice, opera-se de pleno direito à transmissão ao direito à indenização; a pessoa a quem
o autor transferiu a obrigação (José) continuou utilizando o veículo da mesma forma, no
mesmo serviço e conduzindo-o pessoalmente, tanto que o sinistro se dera sob sua guarda;
quando do conhecimento da transferência realizada; a seguradora restringiu-se à negativa
do pagamento das verbas indenizatórias, sem efetivar o cancelamento da apólice, fato
alegado na exordial e inatacado pela ré.
Considerados incontroversos os fatos narrados, DECIDA.

Resposta à Questão 2

Deve ser resolvida a questão utilizando a teoria geral dos contratos, caso em que a
compra e venda do veículo ou propriedade, por se tratar de contrato principal, deve
preponderar em razão da contratação do seguro, que por ser acessório, aplicando-se a
gravitação jurídica devo o acompanhar.
Em razão disso a não cobertura da álea em caso de alienação do objeto segurado
deve constar expressa no pacto entre as partes, sob pena da imposição da cobertura.
Veja as seguintes ementas como referência:
“Apelação Cível n.º 2002.001.9504 - DES. SERGIO CAVALIERI FILHO -
Julgamento: 21/08/2002 - SEGUNDA CAMARA CIVEL
SEGURO DE VEICULO VENDA DE VEICULO TRANSFERENCIA APOLICE
DE SEGURO AUTORIZACAO SOCIEDADE SEGURADORA
DESNECESSIDADE INDENIZACAO PELO SINISTRO RECUSA DE
PAGAMENTO DESCABIMENTO LUCROS CESSANTES DANO MORAL
AUSENCIA DE COMPROVACAO CORRECAO MONETARIA TERMO
INICIAL SENTENCA CONFIRMADA.”

“SEGURO DE COISAS. Venda do Veículo Segurado. Transmissibilidade da


Apólice. Inexistência de Cláusula Contratual Vedando. Desnecessidade da
Anuência do Segurador. Sinistro. Indevida Recusa de Pagamento da Indenização
Securitária. Lucros Cessantes Não Comprovados. Dano Moral Não Configurado.
Correção Monetária. Termo a quo. No seguro de coisas o direito à indenização é

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acessório da propriedade e, como tal, a ela se prende, acompanhado-a quando


alienada. Inexistindo cláusula vedativa na apólice, a tramissão opera-se de pleno
direito. E mesmo que a apólice condicione a sua transferência à prévia anuência do
segurador, o novo adquirente do veículo tem direito à indenização, salvo prova
inequívoca de insuportável aumento do risco. A inexecução da obrigação de
indenizar os danos resultantes do risco assumido, após furto do veículo, importa
em perdas e danos proporcionais à comprovação do prejuízo. Não se presume o
lucro cessante, e como a sentença não pode ser condicional, deve ser provado na
fase de conhecimento, sob pena de improcedência. Para a liquidação de sentença
só pode ser remetido a apuração do respectivo quantum. Incabimento de
indenização por dano moral resultante de desconforto material. O termo a quo da
correção monetária incidente sobre o valor da condenação é o dia em que, de
acordo com o contrato de seguro, o segurador devia ter cumprido a sua obrigação.
Confirmação da sentença.”

Questão 3

CRISTINA celebrou contrato de seguro de renda por incapacidade temporária com


a Seguradora SA. Incapacitada de trabalhar, solicitou à seguradora o pagamento do
benefício em 20.9.1993. Não obtendo qualquer resposta, CRISTINA propôs ação
indenizatória em 21.9.1995, pleiteando reparação de danos em virtude do descumprimento
do contrato de seguro. Em contestação a seguradora sustenta prescrição do direito de
ação, com fundamento no artigo 206, §1º., do C.C. E no verbete 101 da Súmula do STJ. No
mérito, aduz que a doença de CRISTINA era preexistente e que estava de má-fé ao
contratar o seguro. Não há prova de que CRISTINA tinha conhecimento da doença quando
da celebração do contrato.

Resposta à Questão 3

Antes de tudo, é necessário afirmar quanto à possibilidade de realização de outro


seguro, em especial por ser a indenização do INSS tarifada.
Quanto à prescrição, deve ser informado que a relação em tela é regulada pelo
diploma consumerista, devendo incidir os prazos da Lei 8.078/90.
O descumprimento contratual neste caso configura fato ou vício no produto ou
serviço? Para responder a presente indagação deve ser verificado se as conseqüências são
endógenas ou exógenas, sendo que no primeiro pode ser tido como vício ao passo que no
segundo seria fato. Assim, uma notificação de dívida inexistente seria vício, ao passo que
uma negativação seria fato.
Em sede de fato do produto ou serviço é pacífica a aplicação do art. 27, CDC com
prazo de cinco anos. No entanto, como dito no tema anterior, divergência há em sede de
vício do produto ou serviço, caso em que para uns aplicaria o prazo do fato de cinco anos e
para outros o código civil.
Cavalieri entende que em obediência aos artigos 5º, XXXII, e 170, V, da CRFB/88,
deve prevalecer o diploma consumerista, aplicando o mesmo prazo referente ao fato do
produto ou serviço.
Por derradeiro, o ônus da prova acerca da doença preexistente incumbe a seguradora
e não ao segurado.

Questão 4

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CAIO empresta veículo de sua propriedade a um amigo, que o levou a uma oficina
para fazer um pequeno conserto. O lanterneiro, por sua vez, usou o automóvel sem
qualquer autorização, dando causa a um grave acidente do qual resultou a sua perda total,
ao dirigir embriagado. No entanto, ao requerer o pagamento da indenização do respectivo
seguro de dano, CAIO deparou-se com a recusa da seguradora, que lhe imputou o
agravamento do risco. Julgue a situação acima, sob o ponto de vista da legitimidade ou
não da conduta da seguradora, à luz dos dispositivos legais vigentes.

Resposta à Questão 4

Deve ser reputado que Caio em nenhum momento agiu de má-fé, logo a seguradora
ao recusar o pagamento do prêmio, acaba por negar ao próprio contrato, pois não vem a
cobrir o risco sobre o bem, devendo a mesma pagar a indenização e sub-rogar da oficina o
valor correspondente. A respeito, veja o seguinte julgado:
“Apelação Cível n.º 2000.001.06857 - DES. SERGIO CAVALIERI FILHO -
Julgamento: 27/06/2000 - SEGUNDA CAMARA CIVEL.
SEGURO DE VEICULO PERDA TOTAL INDENIZACAO PELO SINISTRO
RECUSA DE PAGAMENTO RESPONSABILIDADE DA SEGURADORA
OBRIGACAO DE INDENIZAR DANO MORAL NAO CONFIGURACAO
PROVIMENTO PARCIAL
Responsabilidade do segurador. Risco Contratual. Agravamento do Risco. Causa
não imputável ao Segurado. Dever do Segurador de pagar a indenização prevista
no Contrato. A responsabilidade do segurador e' objetiva, fundada no risco
contratual, muito se aproximando da responsabilidade fundada no risco integral.
Dado as peculiaridades do contrato de seguro, o fato do segurado só' pode ser
invocado como excludente da responsabilidade do segurador quando se tratar de
dolo ou ma'-fé'. O segurado só' perde o direito `a indenização se der causa ao
agravamento do risco mediante conduta intencional. E sendo presumida a boa-fé'
do segurado, o ônus da prova da ma'-fé' cabe ao segurador. Assim, provado a
ocorrência do sinistro, não pode o segurador eximir-se dos riscos assumidos no
contrato mediante meras alegações de falta de cautela do segurado. Dano moral.
Aborrecimento causado por perda patrimonial. Não configuração. Consistindo o
dano moral em lesão de bem personalíssimo, tal como a honra e a intimidade,
segue-se estar fora de sua abrangência o mero aborrecimento decorrente de lesão
patrimonial, já' abrangido pelo dano material. Vem dai' a correta definição de dano
moral ministrada por Savatier: "qualquer sofrimento que não e' causado por uma
perda pecuniária". Reforma parcial da sentença. (IRP).”

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Tema XXIII

Atos Unilaterais: Da promessa de recompensa. Da gestão de negócios. Do pagamento Indevido. Do


enriquecimento sem causa.

Notas de Aula45

1. Atos unilaterais

Esta fonte das obrigações se diferencia dos contratos porque só se exige uma
manifestação de vontade para que seja formado. Há quatro tipos: a promessa de
recompensa, a gestão de negócios, o pagamento indevido e o enriquecimento sem causa.
É estranha a concepção do enriquecimento sem causa como um instituto jurídico em
si, eis que é muito mais um fundamento para outros efeitos do que um ato, ele próprio.
Vejamos uma a uma estas espécies.

1.1. Promessa de recompensa

Dispõe o artigo 854 do CC:

“Art. 854. Aquele que, por anúncios públicos, se comprometer a recompensar, ou


gratificar, a quem preencha certa condição, ou desempenhe certo serviço, contrai
obrigação de cumprir o prometido.”

Este conceito legal é bastante preciso, mas há uma discussão acerca da natureza
jurídica da promessa de recompensa. Isto porque, antes deste conceito legal vir expresso,
muitos entendiam que a promessa de recompensa era uma proposta de contrato, que só
teria efeitos quando alguém, em busca da gratificação, aceitasse a incumbência – o que não
é verdade, pois há vinculação desde que proferida a promessa. Na verdade, porém, até hoje
há quem defenda esta tese do pré-contrato.
Tanto a aceitação não é determinante para a vinculação do proponente, que o artigo
seguinte, 855 do CC, assim estabelece:

“Art. 855. Quem quer que, nos termos do artigo antecedente, fizer o serviço, ou
satisfizer a condição, ainda que não pelo interesse da promessa, poderá exigir a
recompensa estipulada.”

É tanto assim que, mesmo se a pessoa que satisfaça a condição sequer saiba da
promessa vigente, poderá exigir-lhe cumprimento, quando da satisfação. Por exemplo, se o
dono de animal de estimação promete recompensa pela entrega, e alguém, sem saber do

45
Aula ministrada pela professora Consuelo Aguiar Huebra, em 12/2/2009.

Michell Nunes Midlej Maron 24


EMERJ – CP III Direito Civil III

prêmio, encontra o animal e o devolve, ainda terá direito à gratificação – a sua aceitação
prévia sequer existiu.
O anúncio público é pressuposto essencial para surgimento da vinculação, além de
todos os demais requisitos gerais, quais sejam, a capacidade do promitente, e o objeto lícito,
possível, determinado ou determinável. Mas é a forma pública que é peculiaridade essencial
desta negociação.
Os “anúncios públicos” a que se refere o artigo 854 do CC são aqueles que se valem
de meios de divulgação amplos, capazes de atingir uma gama plural e indeterminada de
pessoas.
A promessa de recompensa é revogável, a teor do artigo 856 do CC:

“Art. 856. Antes de prestado o serviço ou preenchida a condição, pode o


promitente revogar a promessa, contanto que o faça com a mesma publicidade; se
houver assinado prazo à execução da tarefa, entender-se-á que renuncia o arbítrio
de retirar, durante ele, a oferta.
Parágrafo único. O candidato de boa-fé, que houver feito despesas, terá direito a
reembolso.”

A revogação tem que ser hábil, porque a promessa gera expectativa de aquisição da
vantagem prometida em uma grande gama de pessoas. Por isso, o mínimo que se exige é
que a revogação seja feita pelo mesmo meio público pelo qual foi feita a promessa. Aa
maior parte da doutrina defende, inclusive, que tenha que ser observada a mesmíssima via
pela qual foi publicada a promessa – se foi prometida em um canal de televisão, a
revogação deve ser feita no mesmo canal e na mesma hora.
É claro que se a condição para recebimento da recompensa já se implementou, não
há que se falar em revogação. E mesmo que não tenha sido implementada a condição, ou
seja, mesmo que não tenha ainda cumprido o requisito estabelecido para obter a vantagem
prometida, se o candidato realizou despesas neste intuito, de boa-fé, deverá por elas ser
reembolsado pelo promitente, mesmo após a revogação da promessa.
Tendo estabelecido prazo de vigência para a promessa, esta se torna irrevogável,
desobrigando-se o promitente apenas quando terminado o prazo.
Exemplo comum de promessa de recompensa é o concurso de melhor obra, como os
concursos de monografias: quem apresentar a melhor monografia, por exemplo, terá direito
a um prêmio qualquer predeterminado. Neste caso, a lei impõe que haja prazo de vigência
para a promessa, justamente para que não haja possibilidade de revogação, eis que o
esforço envidado pelo candidato não pode ser frustrado pela mera revogação pelo
promitente. Veja o artigo 859 do CC:

“Art. 859. Nos concursos que se abrirem com promessa pública de recompensa, é
condição essencial, para valerem, a fixação de um prazo, observadas também as
disposições dos parágrafos seguintes.
§ 1o A decisão da pessoa nomeada, nos anúncios, como juiz, obriga os interessados.
§ 2o Em falta de pessoa designada para julgar o mérito dos trabalhos que se
apresentarem, entender-se-á que o promitente se reservou essa função.
§ 3o Se os trabalhos tiverem mérito igual, proceder-se-á de acordo com os arts. 857
e 858.”

Em qualquer promessa de recompensa, havendo mais de um candidato que


implemente a condição, será entregue o prêmio a quem cumpriu primeiro a tarefa; se

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cumprirem concomitantemente, a lei estabelece que o prêmio será dividido. Se o prêmio for
indivisível, a solução é a realização de um sorteio, e o que receber o prêmio in natura
deverá indenizar o segundo pela sua cota-parte, no equivalente em pecúnia. Veja os artigos
857 e 858 do CC:
“Art. 857. Se o ato contemplado na promessa for praticado por mais de um
indivíduo, terá direito à recompensa o que primeiro o executou.”

“Art. 858. Sendo simultânea a execução, a cada um tocará quinhão igual na


recompensa; se esta não for divisível, conferir-se-á por sorteio, e o que obtiver a
coisa dará ao outro o valor de seu quinhão.”

Na promessa da modalidade concurso, a regra é a mesma, quando há empate. Mas


veja que, neste caso, Caio Mário faz a ressalva de que a regra do artigo 857 é inaplicável,
pois o momento do cumprimento da condição que enseja prêmio é irrelevante, desde que no
prazo estabelecido para tal – fazendo irrelevante a ordem de cumprimento da tarefa. Sendo
assim, havendo empate, só se aplica a regra do artigo 858.
Vale ressaltar que os critérios de julgamento do concurso, quaisquer que sejam,
devem vir preestabelecidos, e por mais que sejam subjetivos, não são questionáveis pelos
candidatos. É claro que, se forem critérios absurdos, podem ser questionados previamente,
mas, em regra, o que o promitente estabelecer é válido.

1.2. Gestão de negócios

A gestão de negócio ocorre quando alguém intervém oficiosamente em negócio


alheio. É nesta oficiosidade que se diferencia do contrato de mandato,em que a gestão do
negócio se dá por acordo de vontades, enquanto aqui só há vontade manifesta do gestor –
por isso é unilateral. Veja o artigo 861 do CC:

“Art. 861. Aquele que, sem autorização do interessado, intervém na gestão de


negócio alheio, dirigi-lo-á segundo o interesse e a vontade presumível de seu dono,
ficando responsável a este e às pessoas com que tratar.

No mandato, como se trata de uma representação convencionada, quem responde


pelos atos é o mandante. Na gestão de negócios, como não há outorga prévia, não pode o
mandante ser instado a responder por atos que não permitiu: não há representação. É, de
fato, a maior diferença: o gestor atua em nome próprio – em favor do dono do negócio,
mas em nome próprio.
Há divergência sobre a natureza da gestão: a doutrina antiga chamava-a de quase-
contrato – corrente que não tem qualquer expressão hoje. Outra vertente a classificava
como representação sem mandato, o que também não pode prosperar, eis que representar é
agir em nome do representado, e não é isso que acontece na gestão, pois o gestor se obriga,
em nome próprio, agindo em favor do titular do negócio gerido.
Veja que gestão de negócio é apenas o nomen emprestado ao instituto, mas pode
haver gestão de interesses, e não propriamente negócios, sem desnaturar o instituto.
A gestão de negócios, em regra, se opera por uma premência qualquer, uma
necessidade urgente, e sempre em favor do que seria a vontade presumível do interessado.
Não pode o gestor atuar sem diligência, contra o que seria a lógica da circunstância.
Qualquer que seja o prejuízo causado pelo gestor, portanto, será por este mesmo suportado

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– presumindo-se a má gestão. Se o dono do negócio comprovar que, mais do que falta de


diligência, o gestor agiu contra a sua vontade, manifesta ou presumível, há quem equipare
até mesmo a um ilícito, respondendo objetivamente pelos danos, irrelevante a culpa,
respondendo até mesmo por fortuitos.
Veja que é mais do que uma irrelevância da culpa, aqui. trata-se de verdadeira
presunção absoluta de falta de zelo, pelo seguinte raciocínio: se o gestor deve atuar com
diligência, mas causa prejuízo, significa que sua atuação foi presumidamente arriscada,
expondo a perigo o interesse, devendo responder mesmo por fortuito. Veja o artigo 862 do
CC:

“Art. 862. Se a gestão foi iniciada contra a vontade manifesta ou presumível do


interessado, responderá o gestor até pelos casos fortuitos, não provando que teriam
sobrevindo, ainda quando se houvesse abstido.”

O único meio de o gestor safar-se da indenização é se comprovar que os danos


causados teriam ocorrido da mesma forma, mesmo se ele não houvesse intercedido.
O artigo 868 do CC é o que impõe a diligência majorada ao gestor:

“Art. 868. O gestor responde pelo caso fortuito quando fizer operações arriscadas,
ainda que o dono costumasse fazê-las, ou quando preterir interesse deste em
proveito de interesses seus.
Parágrafo único. Querendo o dono aproveitar-se da gestão, será obrigado a
indenizar o gestor das despesas necessárias, que tiver feito, e dos prejuízos, que por
motivo da gestão, houver sofrido.”

Veja o que dispõe o artigo 863 do CC:


“Art. 863. No caso do artigo antecedente, se os prejuízos da gestão excederem o
seu proveito, poderá o dono do negócio exigir que o gestor restitua as coisas ao
estado anterior, ou o indenize da diferença.”

Significa que se o dono do negócio preferir, pode pretender o desfazimento dos


efeitos, ao invés da obtenção da diferença entre o proveito e o prejuízo causado.
O gestor tem que comunicar sua atuação ao dono do negócio assim que lhe for
possível. Assim dispõe o artigo 864 do CC:

“Art. 864. Tanto que se possa, comunicará o gestor ao dono do negócio a gestão
que assumiu, aguardando-lhe a resposta, se da espera não resultar perigo.”

Comunicado, deve aguardar a decisão do gestor, que poderá ser a assunção do


negócio, a constituição de novo gestor, a simples ratificação dos atos do gestor, até então,
assumindo o negócio ou permitindo a continuação da gestão empreendida, ou a
desaprovação dos atos até então praticados. Cada atitude do dono do negócio terá uma
conseqüência diferente. Vejamos.
Se o dono do negócio e aprova e ratifica, a situação deixa de ser gestão, passando a
ser mandato tácito, quer o gestor continue atuando, quer o dono encampe o negócio, porque
retrotrai os efeitos até o início da gestão. Como mandato, passa a ter todos os regramentos
deste – inclusive remuneração, se cabível, o que não há na gestão jamais (podendo haver,
no máximo, indenização por despesas feitas pelo gestor no desempenho da gestão). Veja o
artigo 873 do CC:

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“Art. 873. A ratificação pura e simples do dono do negócio retroage ao dia do


começo da gestão, e produz todos os efeitos do mandato.”
Se o dono do negócio não aprova os atos de gestão, não terá que arcar com nada que
tenha havido, se não obteve vantagens com a gestão empreendida: quer prejuízo de
terceiros, quer prejuízo do próprio gestor, não há responsabilidade do dono do negócio.
Mas se a gestão gerou vantagens, nem que seja o não perecimento de interesse do dono do
negócio (evitar prejuízo, mesmo sem gerar lucro, já é vantagem), ou seja, se a gestão for
útil, mesmo desaprovando o dono do negócio, não poderá se enriquecer sem causa legítima,
ou seja: mesmo desaprovando, deverá indenizar as despesas do gestor. É claro que, havendo
prejuízos a terceiros, é claro que a gestão não foi útil, e não há responsabilidade do dono do
negócio, como é a regra geral. Veja os artigos 869 e 870 do CC:

“Art. 869. Se o negócio for utilmente administrado, cumprirá ao dono as


obrigações contraídas em seu nome, reembolsando ao gestor as despesas
necessárias ou úteis que houver feito, com os juros legais, desde o desembolso,
respondendo ainda pelos prejuízos que este houver sofrido por causa da gestão.
§ 1o A utilidade, ou necessidade, da despesa, apreciar-se-á não pelo resultado
obtido, mas segundo as circunstâncias da ocasião em que se fizerem.
§ 2o Vigora o disposto neste artigo, ainda quando o gestor, em erro quanto ao dono
do negócio, der a outra pessoa as contas da gestão.”

“Art. 870. Aplica-se a disposição do artigo antecedente, quando a gestão se


proponha a acudir a prejuízos iminentes, ou redunde em proveito do dono do
negócio ou da coisa; mas a indenização ao gestor não excederá, em importância, as
vantagens obtidas com a gestão.”

Se a gestão não gera vantagem ou desvantagem alguma ao dono do negócio, o dono


do negócio poderá optar por ratificar ou não a gestão, indenizando os gastos do gestor. Mas
há situações em que sequer é dado ao dono do negócio aprovar ou não a gestão: esta é
imperiosa. É o que diz o artigo 871 do CC:

“Art. 871. Quando alguém, na ausência do indivíduo obrigado a alimentos, por ele
os prestar a quem se devem, poder-lhes-á reaver do devedor a importância, ainda
que este não ratifique o ato.”

O artigo 872 do CC também é relevante, apresentando situação peculiar, também


referente a alimentos:

“Art. 872. Nas despesas do enterro, proporcionadas aos usos locais e à condição do
falecido, feitas por terceiro, podem ser cobradas da pessoa que teria a obrigação de
alimentar a que veio a falecer, ainda mesmo que esta não tenha deixado bens.
Parágrafo único. Cessa o disposto neste artigo e no antecedente, em se provando
que o gestor fez essas despesas com o simples intento de bem-fazer.”

Por fim, vale a leitura dos artigos 874 e 875 do CC:


“Art. 874. Se o dono do negócio, ou da coisa, desaprovar a gestão, considerando-a
contrária aos seus interesses, vigorará o disposto nos arts. 862 e 863, salvo o
estabelecido nos arts. 869 e 870.”

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“Art. 875. Se os negócios alheios forem conexos ao do gestor, de tal arte que se
não possam gerir separadamente, haver-se-á o gestor por sócio daquele cujos
interesses agenciar de envolta com os seus.
Parágrafo único. No caso deste artigo, aquele em cujo benefício interveio o gestor
só é obrigado na razão das vantagens que lograr.”

1.3. Pagamento indevido

O artigo 876 do CC é a sede inicial deste ato unilateral:

“Art. 876. Todo aquele que recebeu o que lhe não era devido fica obrigado a
restituir; obrigação que incumbe àquele que recebe dívida condicional antes de
cumprida a condição.”

Este é, de fato, o ato unilateral mais presente no meio negocial. O fundamento


maior do pagamento indevido é o repúdio ao enriquecimento sem causa, que, como visto, é
um instituto autônomo, a ser visto. Há pressupostos para o enriquecimento sem causa: há
alguém que ganha, alguém que perde, e não há causa legítima para esta transferência
patrimonial. O pagamento indevido é o exemplo mais claro de enriquecimento sem causa.
O pagamento pode ser considerado indevido por diversos motivos, pelas mais
amplas possibilidades casuísticas. Independentemente da boa ou má-fé de sua parte, aquele
que recebe pagamento indevido deverá restituí-lo, salvo poucas exceções, que se verá. Se
há má-fé, poderá arcar com perdas e danos.
Como dito, os pressupostos do pagamento indevido são: o ganho patrimonial de um;
a perda patrimonial de outro; e a falta de causa para esta dinâmica. Confunde-se com a
própria estrutura do enriquecimento sem causa propriamente dito.
É imperativo que haja o erro por parte de quem pagou indevidamente, e deve este
pagador comprovar este erro. Veja o artigo 877 do CC:

“Art. 877. Àquele que voluntariamente pagou o indevido incumbe a prova de tê-lo
feito por erro.”

Ocorre que, na praxe, a enorme maioria dos pagamentos indevidos ocorre em


relações de consumo, e se for o caso, poderá haver a inversão dos ônus probatórios, até
mesmo sobre este erro. Para além disso, há situações em que mais do que pagamento
indevido, há cobrança indevida de valores (como o desconto de valores em conta-corrente)
o que faz absolutamente dispensada a prova do erro, havendo até mesmo a súmula 322 do
STJ assim proclamando:

“Súmula 322, STJ: Para a repetição de indébito, nos contratos de abertura de


crédito em conta-corrente, não se exige a prova do erro.”

E veja que a quantia indevidamente cobrada do consumidor gera repetição em


dobro, a teor do artigo 42, parágrafo único, do CDC::

“Art. 42. Na cobrança de débitos, o consumidor inadimplente não será exposto a


ridículo, nem será submetido a qualquer tipo de constrangimento ou ameaça.
Parágrafo único. O consumidor cobrado em quantia indevida tem direito à
repetição do indébito, por valor igual ao dobro do que pagou em excesso, acrescido
de correção monetária e juros legais, salvo hipótese de engano justificável.”

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O artigo 878 do CC encaminha a solução da questão das benfeitorias e despesas


afins para os dispositivos que tratam da posse de boa-fé, especialmente o 1.201 do CC. Veja
os artigos:

“Art. 878. Aos frutos, acessões, benfeitorias e deteriorações sobrevindas à coisa


dada em pagamento indevido, aplica-se o disposto neste Código sobre o possuidor
de boa-fé ou de má-fé, conforme o caso.”

“Art. 1.201. É de boa-fé a posse, se o possuidor ignora o vício, ou o obstáculo que


impede a aquisição da coisa.
Parágrafo único. O possuidor com justo título tem por si a presunção de boa-fé,
salvo prova em contrário, ou quando a lei expressamente não admite esta
presunção.”

Vale dizer que é a boa-fé subjetiva que identifica a posse. Sendo de boa-fé, só
responde por danos causados por culpa; sendo de má-fé, responde objetivamente. Veja os
artigos 1.217 e 1.218 do CC:

“Art. 1.217. O possuidor de boa-fé não responde pela perda ou deterioração da


coisa, a que não der causa.”

“Art. 1.218. O possuidor de má-fé responde pela perda, ou deterioração da coisa,


ainda que acidentais, salvo se provar que de igual modo se teriam dado, estando ela
na posse do reivindicante.”

Transportando o raciocínio para o pagamento indevido, aquele que recebe a coisa


indevidamente, de boa-fé, tem direito ao proveito desta coisa, enquanto estiver de boa-fé.
Os juros são bom exemplo. Veja os artigos 1.214 a 1.216 do CC:

“Art. 1.214. O possuidor de boa-fé tem direito, enquanto ela durar, aos frutos
percebidos.
Parágrafo único. Os frutos pendentes ao tempo em que cessar a boa-fé devem ser
restituídos, depois de deduzidas as despesas da produção e custeio; devem ser
também restituídos os frutos colhidos com antecipação.”

“Art. 1.215. Os frutos naturais e industriais reputam-se colhidos e percebidos, logo


que são separados; os civis reputam-se percebidos dia por dia.”

“Art. 1.216. O possuidor de má-fé responde por todos os frutos colhidos e


percebidos, bem como pelos que, por culpa sua, deixou de perceber, desde o
momento em que se constituiu de má-fé; tem direito às despesas da produção e
custeio.”

Em suma, tem todo o tratamento dispensado aos possuidores, a depender da


natureza de sua fé. Especialmente, veja o artigo 879 do CC:

“Art. 879. Se aquele que indevidamente recebeu um imóvel o tiver alienado em


boa-fé, por título oneroso, responde somente pela quantia recebida; mas, se agiu de
má-fé, além do valor do imóvel, responde por perdas e danos.

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Parágrafo único. Se o imóvel foi alienado por título gratuito, ou se, alienado por
título oneroso, o terceiro adquirente agiu de má-fé, cabe ao que pagou por erro o
direito de reivindicação.”
Se o pagamento indevido é uma obrigação de fazer, observe-se o artigo 881 do CC:

“Art. 881. Se o pagamento indevido tiver consistido no desempenho de obrigação


de fazer ou para eximir-se da obrigação de não fazer, aquele que recebeu a
prestação fica na obrigação de indenizar o que a cumpriu, na medida do lucro
obtido.”

Como se adiantou, há três hipóteses excepcionais, em que o pagamento indevido


não destina-se à restituição. São elas as previsões dos artigos 880, 882 e 883 do CC, que
são dispositivos bem claros, auto-explicativos:

“Art. 880. Fica isento de restituir pagamento indevido aquele que, recebendo-o
como parte de dívida verdadeira, inutilizou o título, deixou prescrever a pretensão
ou abriu mão das garantias que asseguravam seu direito; mas aquele que pagou
dispõe de ação regressiva contra o verdadeiro devedor e seu fiador.”

“Art. 882. Não se pode repetir o que se pagou para solver dívida prescrita, ou
cumprir obrigação judicialmente inexigível.”

“Art. 883. Não terá direito à repetição aquele que deu alguma coisa para obter fim
ilícito, imoral, ou proibido por lei.
Parágrafo único. No caso deste artigo, o que se deu reverterá em favor de
estabelecimento local de beneficência, a critério do juiz.”

O artigo 882 é a conhecida irrepetibilidade das dívidas inexigíveis, porque


prescritas ou naturais (como as dívidas de jogo). Criteriosamente, no entanto, estas
situações não seriam exceções à devolução do pagamento indevido, porque, em verdade,
este pagamento não é indevido: a dívida existe, só sendo desprovida de exigibilidade, pelo
que a sua devolução não é devida.
O artigo 883 trata do pagamento feito por conta de causa ilícita: se descumprida esta
causa, não há que se reclamar o que se pagou, porque o contrato em si não poderia ser
tutelado pelo direito.

1.4. Enriquecimento sem causa

Como dito, é estranho se abordar o enriquecimento sem causa, como fez o CC,
como um instituto autônomo, pois ele é fundamento a diversas situações eu são espargidas
no ordenamento, e não um instituto em si. Mas como o legislador referiu tratar dele de
forma autônoma, vejamo-lo.
Seus pressupostos, assim como do pagamento indevido, são: o enriquecimento de
uma parte, à custa do empobrecimento de outra; e a falta de causa para tanto. Repare que o
lucro cessante deve ser considerado como forma de empobrecimento, mesmo que seja
apenas deixar de ganhar.
Veja o artigo 884 do CC:

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“Art. 884. Aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será
obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos valores
monetários.
Parágrafo único. Se o enriquecimento tiver por objeto coisa determinada, quem a
recebeu é obrigado a restituí-la, e, se a coisa não mais subsistir, a restituição se fará
pelo valor do bem na época em que foi exigido.”

O valor do bem a ser restituído, quando não for possível devolvê-lo na espécie, é o
valor da época do pagamento, pois pode ser que quando da época da exigência da
restituição, tenha havido depreciação.
O artigo 885 do CC trata da superveniente perda da causa do enriquecimento,
tornando supervenientemente indevido o enriquecimento. Veja:

“Art. 885. A restituição é devida, não só quando não tenha havido causa que
justifique o enriquecimento, mas também se esta deixou de existir.”

A restituição do objeto do enriquecimento é medida subsidiária, como dispõe o


artigo 886 do CC:

“Art. 886. Não caberá a restituição por enriquecimento, se a lei conferir ao lesado
outros meios para se ressarcir do prejuízo sofrido.”

A ação que cabe em função do enriquecimento sem causa, gênero, é a chamada ação
in rem verso, desde que esta seja a única cabível, ou seja, dada a subsidiariedade da
restituição, se houver alguma ação específica capaz de solucionar o injusto, na forma do
artigo 886, supra, deverá ser intentada. Por exemplo, se for pagamento indevido a causa do
injusto, mesmo sendo este pagamento uma espécie do gênero enriquecimento sem causa, há
cabimento da ação de repetição de indébito, e esta deverá ser intentada.
Na evicção, há uma excepcionalidade: se não foi enunciada a lide ao alienante, são
perdidos os direitos oriundos da evicção, mas a jurisprudência entende que a própria perda
da coisa é um caso de enriquecimento sem causa genérico, e que por isso enseja a
propositura, posterior à perda não denunciada, da ação in rem verso – na qual reclamará
apenas aquilo que perdeu, e não os demais direitos da evicção.

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Casos Concretos

Questão 1

Qual a diferença entre a promessa de compra e venda e a promessa de


recompensa?

Resposta à Questão 1

A promessa de recompensa é negócio jurídico unilateral perfeito, principal e


acabado, e não um contrato, muito menos preliminar, como o é a promessa de compra e
venda. A promessa de recompensa sequer pode ser confundida com proposta de contrato. A
diferença é absurdamente crassa.

Questão 2

Jair, participou de um concurso denominado "Maratona Jurídica", no qual os


candidatos deveriam apresentar um artigo científico, para ser publicado em revista da
área. O vencedor receberia como prêmio uma viagem com direito a acompanhante para
Porto Seguro - Bahia. Na publicidade do evento, foi divulgado o nome de um renomado
jurista para a análise dos trabalhos e proceder à escolha do vencedor. Advindo o
resultado, Jair, indignado por ter perdido a competição, resolve propor ação visando a
anulação do concurso ao fundamento de que o jurado não possuía conhecimentos técnicos
suficientes para indicar o melhor trabalho jurídico. Além disso, insurge-se contra os
critérios adotados para a competição. Pergunta-se: O pedido de Jair deve ser julgado
procedente?

Resposta à Questão 2

Não. No momento em que aderiu ao certame propugnado pela promessa de


recompensa, anuiu com todas as condições ali impostas. Se não concordava com a eleição
do jurado ou dos critérios, questionasse-os previamente, ou não adentrasse no concurso – o
edital do concurso vincula suas condições, e, mesmo subjetivas, são válidas. Assim dispõe
textualmente o artigo 859, § 1º, do CC.

Questão 3

Celebrado contrato bancário, John efetuou pagamento dois anos após a data
convencionada. Pagou o que o Banco cobrou, ou seja, além da prestação pecuniária
devida, correção monetária, comissão de permanência e juros. Meses após, ajuizou ação
de repetição de indébito, por entender que os juros cobrados foram abusivos. Em defesa, o
Banco alegou que não estaria provado o erro exigido no artigo 877 do Código Civil/02.
Diga sobre a alegação do réu.

Michell Nunes Midlej Maron 25


EMERJ – CP III Direito Civil III

Resposta à Questão 3

Neste caso, não há pagamento indevido puramente, há cobrança indevida, e por isso
a provado erro é dispensável. Observe-se a súmula 322 do STJ, e a ementa do REsp.
249.466:

“Contrato de abertura de crédito. Juros. Restituição. Imposição de pena no Acórdão


dos embargos de declaração.
1. Não procede a pena imposta no Acórdão dos embargos de declaração quando
está nítido o propósito do prequestionamento, tal e qual permitido pela Súmula nº
98 da Corte.
2. O pensamento da Corte direciona-se para afastar a configuração de pagamento
voluntário quando a sua ausência "expõe a parte devedora ao risco de graves
constrangimentos, tanto que para livrar-se do pagamento que entende a maior deve
recorrer ao Poder Judiciário".
3. Recurso especial conhecido e provido, em parte.”

A devolução de tudo, em dobro, é devida.

Michell Nunes Midlej Maron 25


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Tema XXIV

Contrato Estimatório. Transação e Compromisso. Jogo e Aposta.

Compilação de estudos46

1. Contrato estimatório

1.1. Da prática negocial rumo à consagração legislativa

Uma das novidades do Código Civil de 2002 é a tipificação do contrato estimatório,


denominação recebida principalmente do direito italiano. No Brasil, a prática negocial o
construiu sob a designação imprópria de "venda em consignação". É imprópria porque não
é espécie do gênero compra e venda nem cláusula especial deste contrato.
Os artigos 534 a 537 reproduzem, em grande medida, os artigos 1.556 a 1.558 do
Código Civil da Itália, transplantando para o direito brasileiro as controvérsias que ainda
hoje continuam desafiando a doutrina daquele país. O art. 534 copia quase literalmente o
art. 1.556 do Código italiano, dedicado à noção desse peculiar contrato. A casuística dos
tribunais brasileiros poderia ter sido melhor considerada pelo legislador, ainda que se
aproveitasse a valiosa experiência estrangeira.
O Código Civil de 1916 dele não cogitou, mas deve-se lembrar a tentativa histórica
de elevá-lo à tipicidade legal devida a Teixeira de Freitas, no século XIX. No "Esboço",
Teixeira de Freitas destinou os arts. 2.105 a 2.108, tendo optado pela denominação "venda
com cláusula estimatória", como espécie de cláusula especial da compra e venda. Eram
efeitos da cláusula estimatória, muito próximos dos que adotou o Código Civil de 2002: a)
o consignante não poderia exigir a restituição antes do encerramento do prazo e os riscos
correriam contra ele; b) o consignatário teria direito a todos os frutos, e às acessões; c) o
domínio da coisa passaria para quem a recebeu, terminado o prazo, no caso de ter pago o
preço ajustado; d) terminado o prazo, o consignante poderia exigir a restituição da coisa, se
não tivesse sido alienada, além da indenização pelas deteriorações na coisa.
No contrato estimatório, o proprietário ou possuidor, denominado consignante, faz
entrega da posse da coisa a outra pessoa, denominado consignatário, cedendo-lhe o poder
de disposição, dentro do prazo determinado e aceito por ambos, obrigando-se o segundo a
pagar ao primeiro o preço por este estimado ou restituir a coisa. Há o intuito de alienar a
coisa, que um tem, e a livre disponibilidade, que tem o outro. O consignatário tem a posse
própria que se separou do proprietário ou consignante.

1.2. Teria sido previsto pelos antigos romanos?

46
Estudo consistente na compilação de dois artigos: sobre o contrato estimatório, material colhido do artigo
“Do contrato estimatório e suas vicissitudes”, publicado por Paulo Luiz Netto Lôbo, no endereço eletrônico
“http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6930”; sobre o contrato de jogo e aposta, o material foi colhido
do artigo “Disciplina jurídica do jogo e aposta no sistema brasileiro”, de Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo
Pamplona Filho. Ambos os trabalhos estão transcritos na íntegra.

Michell Nunes Midlej Maron 25


EMERJ – CP III Direito Civil III

Controverte a doutrina acerca da existência do contrato estimatório entre os


romanos. Para alguns a ação estimatória, referida nos textos do Digesto, abrangia mais
situações que o conteúdo atual do contrato estimatório. Para Nicolò Visalli, o contrato
estimatório não era ignorado pelo direito romano, sendo fontes significativas no Digesto:
D.19, 3, 1 pr. (Ulpiano); D. 19, 3, 2 (Paulo); D. 19, 5, 13 pr. (Ulpiano). Apesar da escassa
precisão desses fragmentos, entende o autor referido que "o contrato estimatório no direito
romano era concebido como uma convenção, com a qual alguém entregava uma coisa
estimada a um intermediário (circitor) e este se incumbia de pagar o preço fixado, se
conseguisse vendê-la, ou restituí-la (incorrupta) ao proprietário". Nesse sentido, a figura
hodierna do contrato estimatório seria oriunda do direito romano.

1.3. Características e aplicações

O contrato denomina-se estimatório tendo em vista a ênfase que se atribui à


estimação do valor da coisa feita pelo consignante (preço de estima) e à confiança que
deposita no consignatário. A autorização para venda não é essencial para a noção desse
contrato, pois o consignatário pode optar por adquirir a coisa para si ou simplesmente
restituí-la. Não há qualquer conseqüência jurídica pela não venda, seja por falta de
empenho do consignatário seja por não conseguir interessado em adquirir a coisa.
As partes do contrato são o consignante e o consignatário. No direito italiano esses
termos não são utilizados, preferindo a doutrina manter os termos genéricos tradens, no
sentido amplo de quem promove a tradição da coisa, e accipiens, no sentido de quem
recebe a coisa. O consignante é o proprietário da coisa, que possa dispor dela e transferir o
poder de disposição ao consignatário. Pode ser apenas o possuidor que não seja
proprietário, transferindo apenas o poder de disposição da posse. No direito brasileiro o
apenas possuidor não está impedido de transferir a posse, em virtude dos efeitos jurídicos
que emergem dessa situação de fato, ainda que não seja titular de direito real.
Nem sempre o consignante é empresa ou empresário. Pode ser um particular, a
exemplo do proprietário de veículo que o entrega em consignação à loja de revenda de
automóveis usados.
O contrato é útil para ambas as partes. O consignante não necessita de incumbir-se
diretamente da venda da coisa, ou porque não exerça atividade comercial, ou porque não
disponha de rede de negócios necessária para fazer chegar a coisa ou a mercadoria aos
destinatários, ou porque não queira promover essa atividade. Por seu turno, o consignatário
não necessitará investir recursos financeiros para promover sua atividade, ou para obter o
proveito que espera com a diferença para mais do preço estimado, com a vantagem de
poder devolver a coisa ao consignante se não conseguir encontrar interessado em adquiri-la,
sem custo adicional.
Sem embargo de ser mais apropriado para as relações mercantis, o contrato
estimatório pode ser concluído entre particulares, uma vez que o Código Civil não o
restringiu às hipóteses em que um dos figurantes seja uma empresa comercial. A natural
vocação comercial do contrato estimatório não exclui sua configuração quando celebrado
fora do mercado, entre sujeitos que não se enquadram como comerciantes. É a situação, por
exemplo, de quem entrega uma jóia a outro sujeito, para que consiga vendê-la a terceiro
que queira pagar, ao menos, o preço estipulado.

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EMERJ – CP III Direito Civil III

A atualidade do contrato estimatório é ressaltada por Tânia da Silva Pereira, nos


negócios de obras de arte e de jóias e pedras preciosas: "Um pintor de quadros
normalmente não costuma comercializar suas obras diretamente. Esta atividade em geral é
exercida pelas galerias de arte que têm meios de melhor acesso ao público comprador. Estas
galerias, em princípio, não dispõem de capital de giro que lhes permita adquirir todo um
acervo de um pintor para vendê-lo. Daí a eficiência desta forma de contrato que, em linha
geral, se caracteriza pela entrega de coisas móveis a outra pessoa com autorização de
alienar, mas com a ob rigação de restituí-las ao consignante, ou então pagar-lhe o preço
estipulado dentro de um certo prazo. (...) Da mesma forma, o comércio de jóias e pedras
preciosas utiliza-se desta modalidade contratual, o que permite chegar ao público objetos de
alto valor sem precisar o vendedor desembolsar grandes quantias para adquiri-los para
venda".

1.4. As controvérsias sobre sua natureza e o alcance das normas do Código Civil de 2002

No direito italiano, abriu-se longa discussão doutrinária desde o advento do Código


Civil de 1942, acerca da natureza do contrato estimatório, uma vez que o contrato basta por
si só para transferir a propriedade, quando se trata de compra e venda, cuja importância
termina por obscurecer a autonomia dos demais contratos a ela próximos. "O problema se
põe porque o tradens resulta privado, em favor do accipens, seja do poder de disposição
sobre a coisa seja da posse dela: isso em forma irrevogável, porque, tendo em vista a
previsão do art. 1.558 do Código Civil, aquele que entregou a coisa não a pode dispor até
que seja restituída". Parte da doutrina entendia que o contrato estimatório operava
verdadeira transferência da propriedade para o consignatário. Essa corrente, na própria
Itália, terminou vencida, porque transformou o consignante de proprietário em credor, ainda
que privilegiado quando em concurso com outros credores, e deixando sem resposta os
efeitos da restituição da coisa.
A redação adotada nos quatro artigos do Código Civil brasileiro, em vez de aplainar
as dificuldades, no sentido de melhor aplicação das normas, exaspera a controvérsia,
porque constitui regulamentação incompleta de todos os multiformes aspectos desse
contrato, revitalizado no mundo atual, como aqueles relativos à tutela das partes e dos
terceiros adquirentes.
A relação entre o consignante e o consignatário não é equivalente a de vendedor e
comprador. O primeiro não se obriga a transmitir ao segundo a coisa nem este se obriga a
pagar àquele o preço. O consignante transfere o poder de dispor, que não poderá exercer
enquanto perdurar o prazo, mas permanece proprietário da coisa. Tampouco se confunde
com a relação de mandante e mandatário, pois o consignatário não é representante do
consignante, exercendo direito próprio. Todavia, sustentava Antônio Chaves que "é com o
mandato que mais se assemelha essa espécie; é um mandato para vender. A operação de
venda é sempre em vantagem do mandante e só eventualmente do mandatário. Daquele o é
sempre porque, pela venda, ele recebe necessariamente o preço". Alguns enxergam estreitas
relações do estimatório com os contratos de depósito e comissão.
A questão do enquadramento do contrato estimatório com outros tipos afins de
contratos perdeu a importância, tendo em vista que o legislador optou por discipliná-lo de
modo autônomo e em sua singularidade. É contrato típico que não se confunde com
qualquer outro, não podendo o intérprete buscar em outras categorias seu enquadramento

Michell Nunes Midlej Maron 25


EMERJ – CP III Direito Civil III

sistemático, o que prejudica a correta aplicação. O esforço que se há de fazer é a construção


da natureza jurídica do instituto, a partir dos pressupostos que foram definidos na lei, ou
seja, analisando-o por dentro e a partir da tipicidade social que o conformou, sem
necessidade de relações com os demais contratos. O instituto é novo, como inserção legal,
mas antigo na prática social.
O contrato estimatório é contrato tipico, bilateral, oneroso e, principalmente, real. É
oneroso porque o sacrifício patrimonial sentido por uma das partes tem como correspectivo
uma vantagem correspondente. É real porque apenas se perfaz quando há tradição, quando
a coisa é entregue ao consignatário. Diferentemente da compra e venda, que é contrato
meramente consensual, não basta para sua existência que o consignante se obrigue a
transferir a coisa ao consignatário; é necessário que transfira a posse sobre a coisa e o poder
de disposição ou disponibilidade. Por se tratar apenas de coisas móveis, o consignatário,
para alcançar a finalidade do contrato, depende da posse física sobre a coisa para poder
transferi-la ao terceiro adquirente, fazendo uso do poder de disposição. O consignatário não
promete a transferência da coisa; transfere-a, vinculando o consignante à tradição que
operou. O legislador eliminou toda a dúvida, porque, no sentido de garantir o terceiro
adquirente de boa-fé, pôs a entrega da coisa entre os elementos existenciais do contrato,
dando lugar a uma situação que transforma o consignatário em titular do poder de
disposição sobre a coisa, cuja propriedade permanece sob a titularidade do consignante.
Diferentemente, entende Pontes de Miranda que o contrato estimatório é
consensual, concluindo-se antes de ser feita a tradição, se esta não foi simultânea. Todavia,
em outra passagem do mesmo volume de sua obra, alude à transferência da posse, deixando
entrever sua essencialidade para a natureza desse contrato: "Quem transfere a posse do bem
quer aliená-la e receber a contraprestação, fixada, pelo menos, no momento da entrega".
Sem embargo da relatividade da interpretação literal, ressalte-se que o art. 534 do Código
Civil de 2002, repetindo o paradigma italiano, estabelece que para a conclusão do contrato
"o consignante entrega bens móveis ao consignatário". Não está previsto que se obriga a
entregar, o que poderia ensejar a natureza meramente consensual. Destarte, ao contrário de
Pontes de Miranda, afirmamos que o contrato apenas se perfaz com a entrega efetiva da
coisa; enquanto não chegarem os livros, por exemplo, o livreiro não está obrigado, nem
contra ele corre o prazo determinado.
A entrega da coisa, no contrato estimatório, não produz os efeitos amplos da
tradição, ou seja, da transferência da propriedade para o consignatário. Ainda que o contrato
seja real, não produz efeitos reais. Do mesmo modo como se dá com outros contratos reais,
no direito brasileiro, a exemplo do depósito, do mútuo, do comodato. Nesses contratos, a
tradição configura elemento essencial para suas existências. No contrato estimatório, a
tradição é essencial para que o poder de disposição que foi transferido ao consignatário
possa ser exercido. Pago o preço dentro do prazo ou quando este se encerrar sem
pagamento, a transferência da propriedade operar-se-á, no primeiro caso para o adquirente,
no segundo caso para o consignatário.
O art. 534 do Código Civil de 2002 alude à autorização do consignatário para
vender os bens móveis do consignante. Essas expressões não constam da redação do art.
1.556 do Código Civil italiano, que lhe serviu de fonte e são inteiramente dispensáveis.
Autorização pode ser confundida com outorga de poderes, que se dá no mandato ou na
representação. Mas, não há outorga de qualquer poder nem representação no contrato
estimatório. O consignatário atua perante terceiros como se fosse o real proprietário das

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coisas, porque exerce em nome próprio e não como representante do consignante o poder
de disposição que lhe foi regularmente transferido. O exercício do poder de disposição
legitima-o a transferir a coisa ao adquirente, incluindo a titularidade de domínio que cessa
para o consignante, independentemente de sua vontade.
Quando o consignante transfere o poder de disposição sobre a coisa retém a
propriedade. A não transferência da propriedade ao consignatário é o traço característico do
contrato estimatório. Contudo, a retenção da propriedade (que em muito se assemelha à
situação de nua-propriedade) não autoriza o consignante a exigir a restituição. Por outro
lado, o exercício do poder de dispor pelo consignatário importa automaticamente a perda da
propriedade, que é transferida ao adquirente a quem o consignatário entregou a coisa, desde
que tenha observado o valor estimado. Neste último sentido, Penalva dos Santos: "do que
se deduz que o chamado consignatário pode usá-la, fruí-la, sem, contudo, tornar-se titular
do domínio, o qual permanecerá nas mãos do ‘tradens’, até a venda coisa a terceiro, ou se,
transcorrido o prazo estabelecido no contrato, o ‘accipiens’ não a devolver, deverá este
pagar ao ‘tradens’ o seu valor estimado, passando o domínio da coisa para o ‘accipiens’".

1.5. As coisas que podem ser objeto das prestações do contrato estimatório

Apenas as coisas móveis podem ser objeto de contrato estimatório. Coisas móveis
que estejam no comércio, isto é, que possam ser alienadas. Neste ponto, a relação com a
compra e venda torna-se inevitável, porquanto tudo que possa ser objeto de venda pode ser
suscetível de contrato estimatório.
As coisas imóveis estão excluídas porque não permitem a tradição real. A traditio
ficta constitui obstáculo à circulação da coisa do consignante para o consignatário e deste
para o adquirente, em virtude da exigência do registro público. Não apenas as coisas
imóveis mas todos os móveis que, por força de lei ou por convenção das partes, estejam
vinculados a registro. O registro imobiliário transfere a propriedade, o que desnaturaria o
contrato estimatório. Como diz Caio Mário da Silva Pereira, não somente pelo formalismo
exigido para a transmissão imobiliária, mas também porque a venda a terceiros não se
opera no contrato estimatório em nome do consignante, mas no do consignatário, como se
sua própria fosse.
O consignatário recebe a coisa, diretamente ou mediante representante, quando a
tem sob seu poder físico ou contato material (corpus), entendidos como possibilidade de
dispor da coisa em modo físico, sem mais depender do consignante. A entrega da coisa ao
transportador não é suficiente para consumar a tradição, salvo se foi indicado ou escolhido
pelo consignatário. Não se considera perfeito o contrato enquanto o transportador não
entregar fisicamente a coisa ao consignatário.
A coisa pode ser específica, singular, ou genérica. Não há impedimento que se trate
de bem fungível. A restituição, se for o caso, dar-se-á por coisa de iguais gêneros,
qualidades e quantidades. A praxe contratual demonstra a utilização com grande freqüência
de bens genéricos, a exemplo de gêneros alimentícios, de tecidos ou de exemplares de
livros.
Os bens imateriais (por exemplo, os direitos de autor) não podem ser objeto de
contrato estimatório. No direito brasileiro, os contratos de alienação desses bens são
definidos taxativamente, seja para cessão, concessão de uso ou licenciamento. Esses bens
são insuscetíveis de tradição física, porque destituídos de corpos físicos.

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6. Obrigações do consignante e do consignatário

O consignante tem o dever de garantir ao consignatário a livre disponibilidade das


coisas entregues em consignação. Deve abster-se de qualquer ato que dificulte o exercício
desse direito. Em virtude de manter a titularidade de domínio, que não é transferida ao
consignatário em razão do contrato estimatório, responde o consignante pelos vícios da
coisa e pelos riscos de evicção perante o adquirente da coisa.
O consignante não pode interferir na atividade desenvolvida pelo consignatário.
Não é admissível que faça exigências ao consignatário quanto aos procedimentos que deva
adotar, como divulgações publicitárias ou o modo de divulgar a coisa nos locais de venda.
Todavia, em virtude da real aplicação do princípio da autonomia privada, podem as partes
livremente estabelecer permissão para intervenções do consignante. Se o contrato for de
adesão serão nulas as cláusulas que importem renúncia antecipada do direito de livre
exercício da atividade do consignatário (art. 424 do Código Civil).
O negócio ajustado entre o consignatário e o terceiro adquirente é res inter allios em
face do consignante. As condições que aqueles ajustarem para a alienação da coisa
consignada não podem ser recusadas ou modificadas pelo consignante.
O consignatário contrai dívida e obrigação alternativas. Dentro do prazo
determinado, deverá ou pagar o preço ou restituir a coisa. O preço ou ele o entrega após ter
vendido a coisa, ou o paga do próprio bolso, para ficar com ela. Deve o consignatário pagar
ao consignante o preço estimado, imediatamente após recebê-lo do adquirente, ou nas
condições estipuladas no contrato. Deve, ainda, restituir a coisa dentro do prazo
determinado, se não quiser ou não puder vendê-la. Se ultrapassar o prazo determinado,
estará obrigado a pagar o preço estimado, tendo ou não vendido a coisa, ficando impedido
de restituí-la. Nascerá ao consignante a pretensão à prestação do preço.
A faculdade concedida ao consignatário para pagar a coisa ou restituí-la é
irretratável. Uma vez escolhida qual das duas irá prestar não poderá alterá-la ou arrepender-
se.
Pontes de Miranda entende que é questão de interpretação do contrato estimatório
saber-se se o consignatário já está obrigado a pagar o preço ao consignante, quando vende a
coisa ao adquirente, ou se só se obriga ao tempo em que expira o prazo. Na dúvida, afirma
que a segunda solução é mais adequada. Na prática negocial os consignatários costumam
vender a prazo (exemplo de venda de jóias) e precisam contar com o decorrer do tempo
para terem fundos para o pagamento do preço.
Se o consignatário restituir a coisa com defeito ou danos pagará ao consignante a
correspondente indenização.

1.7. Duração do contrato

O contrato estimatório é sempre a termo, de duração determinada. O consignatário


exerce os poderes de disposição ou de posse até um momento, para que cumpra sua
obrigação alternativa.
O prazo para que o consignatário possa dispor da coisa (vender a terceiro ou
comprar para si) deve ser estabelecido, o que significa dizer determinado pelas partes.

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Excepcionalmente, se as partes não estipularam prazo, devem ser observados os usos do


tráfico e a finalidade do contrato. Não pode ser admitido prazo que não dê ensejo ao
consignatário de vender as coisas que o consignante lhe entregou. Pode o consignante
interpelar judicialmente o consignatário para que realize a venda ou pague no prazo que o
juiz fixar.
Sustentou-se que a prévia determinação do prazo integraria os elementos
existenciais do contrato estimatório, porque não poderia o consignatário manter
indefinidamente o poder de dispor. Há situações, todavia, nas quais os prazos vão sendo
estabelecidos, às vezes tacitamente ou pelos usos, como na hipótese de bens fornecidos e
repostos regularmente (por exemplo, livros remetidos ao livreiro retalhista), que dependem
de maior ou menor atração de clientes. O que é inadmissível é a ausência de qualquer
prazo, ainda que varie de um a outro bem entregue ao consignatário. Transcorrido prazo
razoável ou decorrente dos usos, cabe ao consignante promover a interpelação judicial do
consignatário.
Encerrado o prazo sem pagamento do preço ou restituição da coisa consignada, o
domínio transfere-se ao consignatário, que ficará obrigado a pagar o preço estimado. O não
pagamento do preço, após o transcurso do prazo, resolve-se pelas regras gerais do
inadimplemento, inclusive quanto às conseqüências pela mora (juros moratórios, multa
contratual, perdas e danos, custos judiciais).
Não se considera inadimplente o consignatário se, dentro do prazo, se recusa a
vendê-la por não encontrar interessado na compra ou por não encontrar quem pague valor
superior ao preço estimado, correspondente ao seu lucro. O que não pode é dificultar,
impedir ou embaraçar a venda. Nesta última hipótese, vencido o prazo, ainda que o
domínio da coisa lhe seja transferido, cabe ao consignante a pretensão a indenização por
perdas e danos, além da cobrança do preço estimado.

1.8. Opção de restituir a coisa consignada

No momento em que o consignatário recebe a coisa é devedor do preço ou da


restituição. Se, dentro do prazo, não paga o preço tem de restituir. A coisa continua na
propriedade do consignante dentro do prazo determinado, mas como prefere o preço à
restituição, exigi-lo-á ao cabo do prazo.
A restituição da coisa consignada é opção livre do consignatário, sponte sua. Não
tem o consignante pretensão contra aquele para restituição. Se o preço estimado
demonstrou estar acima do praticado no mercado, ou se a coisa não despertou interesse nos
possíveis destinatários, ou por qualquer razão inclusive de índole subjetiva do
consignatário, este poderá restituir a coisa ao consignante. A restituição é direito subjetivo
do consignatário, não podendo o consignante impedi-la ou limitá-la, pois violaria a natureza
do negócio.
Impõe-se que o faça dentro do prazo determinado para a venda a terceiros.Se o
prazo for ultrapassado não estará obrigado o consignante a receber a coisa em restituição.
Poderá exigir o pagamento do preço diretamente do consignatário, em cuja titularidade se
consolidará o domínio, independentemente de sua vontade. Nesta hipótese, a transmissão
da propriedade opera-se para ele, que deve o preço.
O consignatário não poderá cobrar do consignante as despesas que efetuou para
divulgar ou manter a coisa, salvo a indenização das benfeitorias necessárias, em virtude de

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EMERJ – CP III Direito Civil III

frustração de venda, quando ou para restituir a coisa. São riscos inerentes a esse negócio
peculiar. São também do consignatário os riscos da especulação, quando não se estabeleceu
limite máximo de preço para a venda.
Os frutos da coisa (naturais ou civis) são do consignatário, que tem a posse própria.
Se optar pela restituição da coisa, restituirá a posse e tudo que dela derivar, inclusive os
frutos.
A restituição apenas opera seus efeitos liberatórios, para o consignatário, quando,
dentro do prazo: a) foi efetuada a entrega em sentido físico ao consignante, ou a seu
representante, no endereço estipulado no contrato; b) a coisa tenha sido entregue em sua
integralidade. Recupera o consignante não apenas o poder de disposição mas a posse
própria da coisa.

1.9. Impossibilidade da restituição da coisa consignada

O Código Civil estabelece o dever de pagar o preço da coisa consignada se a


restituição se tornar impossível, ainda que por fato não imputável ao consignatário. Alberto
Trabucchi encontra na obrigação alternativa do consignatário, de pagar a coisa mas com a
faculdade de restituí-la, a justificativa para que assuma o risco inclusive da perda sem culpa
sua. "Assim se explica que o risco do possível perecimento ou deterioração da coisa seja
suportado pelo que recebe a coisa, o qual poderá aproveitar-se da faculdade de restituir a
coisa recebida, tão somente quando esta se encontrar incólume em seu poder".
O consignatário suporta o risco da perda da coisa; somente poderá valer-se da
faculdade alternativa se a coisa existir na íntegra. Nessa circunstância desaparece seu
direito de escolha, que apenas seria possível se o direito admitisse que ela pudesse ser feita
antes da perda por declaração do devedor.
A impossibilidade por causa não imputável ao consignatário pode ser temporária,
cabendo distingui-la. Se a impossibilidade temporária não ultrapassar o prazo ajustado,
permitindo ao consignatário exercer a faculdade de restituição, não afetará o exercício da
escolha da obrigação alternativa. Se a impossibilidade ultrapassar o prazo, sem que nada
possa fazer o consignatário para impedi-la, estará obrigado a pagar o preço.
Se a restituição da coisa se tornou impossível por fato imputável exclusivamente ao
consignante (por exemplo, se fez contrato estimatório a respeito de bem que estava com
vício ou defeito, que causou a deterioração da coisa) o preço não é devido.

2. Transação e compromisso

Seguem os artigos do Código Civil pertinentes ao tema:

“Art. 840. É lícito aos interessados prevenirem ou terminarem o litígio mediante


concessões mútuas.”

“Art. 841. Só quanto a direitos patrimoniais de caráter privado se permite a


transação.”

“Art. 842. A transação far-se-á por escritura pública, nas obrigações em que a lei o
exige, ou por instrumento particular, nas em que ela o admite; se recair sobre
direitos contestados em juízo, será feita por escritura pública, ou por termo nos
autos, assinado pelos transigentes e homologado pelo juiz.”

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“Art. 843. A transação interpreta-se restritivamente, e por ela não se transmitem,


apenas se declaram ou reconhecem direitos.”

“Art. 844. A transação não aproveita, nem prejudica senão aos que nela
intervierem, ainda que diga respeito a coisa indivisível.”
§ 1º Se for concluída entre o credor e o devedor, desobrigará o fiador.
§ 2º Se entre um dos credores solidários e o devedor, extingue a obrigação deste
para com os outros credores.
§ 3º Se entre um dos devedores solidários e seu credor, extingue a dívida em
relação aos co-devedores.”

“Art. 845. Dada a evicção da coisa renunciada por um dos transigentes, ou por ele
transferida à outra parte, não revive a obrigação extinta pela transação; mas ao
evicto cabe o direito de reclamar perdas e danos.
Parágrafo único. Se um dos transigentes adquirir, depois da transação, novo direito
sobre a coisa renunciada ou transferida, a transação feita não o inibirá de exercê-
lo.”

“Art. 846. A transação concernente a obrigações resultantes de delito não extingue


a ação penal pública.”

“Art. 847. É admissível, na transação, a pena convencional.”

“Art. 848. Sendo nula qualquer das cláusulas da transação, nula será esta.
Parágrafo único. Quando a transação versar sobre diversos direitos contestados,
independentes entre si, o fato de não prevalecer em relação a um não prejudicará
os demais.”

“Art. 849. A transação só se anula por dolo, coação, ou erro essencial quanto à
pessoa ou coisa controversa.
Parágrafo único. A transação não se anula por erro de direito a respeito das
questões que foram objeto de controvérsia entre as partes.”

“Art. 850. É nula a transação a respeito do litígio decidido por sentença passada em
julgado, se dela não tinha ciência algum dos transatores, ou quando, por título
ulteriormente descoberto, se verificar que nenhum deles tinha direito sobre o
objeto da transação.”

“Art. 851. É admitido compromisso, judicial ou extrajudicial, para resolver litígios


entre pessoas que podem contratar.”

“Art. 852. É vedado compromisso para solução de questões de estado, de direito


pessoal de família e de outras que não tenham caráter estritamente patrimonial.”

“Art. 853. Admite-se nos contratos a cláusula compromissória, para resolver


divergências mediante juízo arbitral, na forma estabelecida em lei especial.”

3. Disciplina jurídica do jogo e aposta no sistema brasileiro

3.1. Introdução

Michell Nunes Midlej Maron 26


EMERJ – CP III Direito Civil III

“Quer apostar comigo?” Esta frase, tão comum no nosso dia-a-dia, é o início de
uma proposta para a celebração de uma modalidade contratual típica, prevista no sistema
codificado brasileiro desde a época da codificação de 1916.
Trata-se do “Contrato de Aposta”, que é tratado, juntamente com o “Contrato de
Jogo”, nos arts.814/817, CC-02 (correspondente aos arts. 1.477/1.480, CC-16, com
aperfeiçoamentos), em uma reunião de dois contratos afins na mesma disciplina jurídica, tal
qual também feito - em linha semelhante, posto não igual – na regulação dos Contratos de
Agência e Distribuição, previstos nos arts. 710/721 da vigente codificação civil (sem
correspondente no sistema anterior).
Feito tal registro inicial de afirmação da dualidade contratual na mesma
normatização, passemos a conceituar tais figuras contratuais.

3.2. Conceito

Como dito, a previsão dos arts. 814/817, CC-02 regula duas figuras jurídicas com
conceitos distintos, mas com evidentes afinidades.
De fato, o contrato de jogo pode ser definido como o negócio jurídico por meio do
qual duas ou mais pessoas prometem realizar determinada prestação (em geral, de conteúdo
pecuniário) a quem conseguir um resultado favorável na prática de um ato em que todos
participam.
Registre-se, portanto, que o jogo (e, consequentemente, o sucesso ou fracasso de
cada parte) depende necessariamente da atuação de cada sujeito (chamado jogador), seja
por sua inteligência, habilidade, força ou, simplesmente, sorte.
Já o contrato de aposta é o negócio jurídico em que duas ou mais pessoas, com
opiniões diferentes sobre certo acontecimento, prometem realizar determinada prestação
(em geral, de conteúdo pecuniário) àquela cuja opinião prevalecer.
Na aposta, portanto, não se exige uma participação ativa de cada sujeito (chamado
apostador), contribuindo para o resultado do evento, mas, sim, apenas, a manifestação de
sua opinião pessoal.
A proximidade entre os dois institutos, porém, é evidente, notadamente pelo
elemento comum da álea que os envolve, pois, apenas para recordar o velho clássico da
corrida entre a lebre e a tartaruga, nem sempre o mais habilidoso ou capaz vence uma
competição...
Há tanta afinidade entre eles que, na prática, muitas vezes acabamos fazendo
referência a um, quando pretendemos utilizar o outro. É o caso, por exemplo, quando dois
amigos dizem “vamos apostar uma corrida?”. Isto, na verdade, não é propriamente uma
aposta, mas, sim, um jogo, pois depende da participação efetiva dos contendores
(habilidade, força ou velocidade) e não somente da sua sorte. Da mesma forma, fala-se em
“jogar nos cavalos”, quando o indivíduo está realizando, de fato, apostas em corridas em
um hipódromo.
Outros elementos marcantes, que demonstram o traço comum entre os dois
institutos, são a inexigibilidade das prestações deles advindas e a irrepetibilidade do

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EMERJ – CP III Direito Civil III

pagamento efetuado por sua causa47, dados estes que evidenciam, a toda prova, a sua
natureza de obrigações naturais48.
É o que se infere do art. 814, caput e § 1o, do CC-02 (correspondente ao art. 1.477,
caput e parágrafo único, CC-16):

“Art. 814. As dívidas de jogo ou de aposta não obrigam a pagamento; mas não se
pode recobrar a quantia, que voluntariamente se pagou, salvo se foi ganha por
dolo, ou se o perdente é menor ou interdito49.
§ 1º Estende-se esta disposição a qualquer contrato que encubra ou envolva
reconhecimento, novação ou fiança de dívida de jogo; mas a nulidade resultante
não pode ser oposta ao terceiro de boa-fé.”

A ressalva do caput é imperfeita e inadequada50, pois somente abre exceção para o


dolo, quando, por uma questão de lógica e justiça, também podem ser invocados os demais
vícios de consentimento, como o erro, a coação, o estado de perigo e a lesão, além dos
vícios sociais da fraude contra credores e a própria simulação (esta última hipótese de
nulidade absoluta). Além disso, sendo o perdente menor ou interdito, a hipótese é de
incapacidade, o que também invalidaria o negócio jurídico51.
Interessante, porém, é a menção do § 1º, pois estende a inexigibilidade e a
irrepetibilidade a todo e “qualquer contrato que encubra ou envolva reconhecimento,
novação ou fiança de dívida de jogo”, o que nos parece medida das mais razoáveis, pois
harmoniza-se com a característica da inexigibilidade jurídica deste tipo de obrigação, sem
prejudicar os interesses dos terceiros de boa-fé.
Estabelecida a distinção conceitual e os elementos de aproximação entre as duas
figuras, cabe-nos compreender agora a sua natureza jurídica.

3.3. Natureza jurídica

Fixados os conceitos básicos sobre jogo e aposta, parece-nos relevante, neste


momento, reafirmar a sua natureza jurídica contratual.

47
Lembremos que a irrepetibilidade é a característica de impossibilidade de devolução da prestação havida, o
que é próprio de uma relação obrigacional efetivamente devida, como o são as obrigações naturais.
48
Sobre o tema, confira-se o Capítulo VI (“Obrigação Natural”) do Vol. II (“Obrigações”) do nosso “Novo
Curso de Direito Civil”, 8ª. ed., São Paulo: Saraiva, 2007.
49
Norma equivalente é encontrada, por exemplo, no Código Civil italiano, que preceitua, em seu art. 1933:

“1933. Mancanza di azione. [I]. Non compete azione per il pagamento di


um debito di giuoco o di scommessa, anche se si tratta di giuoco o di scommessa
no proibiti [718 c.p.].
[II[. Il perdente tuttavia non può ripetere quanto abbia spontaneamente
pagato dopo l´esito di um giuoco o di uma scommessa in cui non vi sia stata alcuna
frode [2034]. La ripetizione è ammessa in ogni caso se il perdente è um incapace.”

50
Bem mais técnico, em nossa opinião, é o Código Civil português, ao preceituar, em seu art. 1245º, que o
“jogo e a aposta não são contratos válidos nem constituem fonte de obrigações civis; porém, quandolícitos,
são fonte de obrigações naturais, excepto se neles concorrer qualquer outro motivo de nulidade ou
anulabilidade, nos termos gerais de direito, ou se houver fraude do credor em sua execução”.
51
Sobre o tema, confira-se o capítulo XIII (“Defeitos do Negócio Jurídico”) do Vol. I (“Parte Geral”) do
nosso “Novo Curso de Direito Civil”, 9ª. ed., São Paulo: Saraiva, 2007.

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EMERJ – CP III Direito Civil III

De fato, apesar de inseridos no Título VI (Das Várias Espécies de Contrato), o fato


de a lei negar alguns efeitos aos contratos de jogo e aposta, como a inexigibilidade de suas
prestações, faz com que haja profunda controvérsia doutrinária em seu derredor.
Isso decorre, por certo, da concepção tradicional de que tanto o jogo quanto a aposta
eram condutas socialmente indesejáveis, desagregadoras do ambiente familiar, pelo
estabelecimento de posturas viciadas e possibilidade de ruína do patrimônio dos seus
envolvidos.
Nessa linha, a condição de obrigação natural, em que não há exigibilidade judicial
do conteúdo pactuado, faz com que a idéia de um contrato, no sentido de autodeterminação
da vontade para a produção de efeitos, seja muito mal vista por setores da doutrina.
Afirma, por exemplo, Sílvio Rodrigues:
““O Código Civil cuida do jogo e da aposta dentro do terreno dos contratos
nominados, ao mesmo tempo que nega a esses ajustes qualquer dos efeitos
almejados pelas partes, o que constitui uma contradição.
Se o jogo e a aposta fossem um contrato, seriam espécie do gênero ato jurídico,
gerando, por conseguinte, os efeitos almejados pelos contratantes. Se isso
ocorresse, seria justa sua disciplinação entre os contratos. Todavia, tanto o jogo
lícito quanto a aposta não são atos jurídicos, posto que a lei lhes nega efeitos
dentro do campo do direito. Assim, não podem ser enfileirados entre os negócios
jurídicos e, por conseguinte, entre os contratos”52.

A crítica, em nosso sentir, embora bem fundamentada, não deve prevalecer.


A condição de obrigação natural não descaracteriza a figura contratual.
A relação jurídica de direito material existe e é válida, tendo apenas limitados
alguns dos seus efeitos, por uma opção do legislador, calcado em um (pre)conceito social,
positivando valores, conduta que deve ser respeitada. Todavia, negar a natureza contratual a
um acordo de vontades que produz efeitos, ainda que restritos, nos parece fazer sobrepujar
o preconceito à norma e à efetiva aceitabilidade social do instituto.
Ademais, por outro lado, pretensões prescritas, por exemplo, não invalidam os
contratos em que se fundam, mesmo se há a perda da exigibilidade judicial de algumas ou
de todas as suas prestações. Isso mostra que a produção limitada de efeitos não retira a
natureza contratual de um acordo de vontades para a produção de determinado resultado.
Em síntese, posto entendamos a limitação dos seus efeitos jurídicos, justificada pela
natureza peculiar desses institutos, não negamos, outrossim, a sua natureza eminentemente
contratual.
Parece-nos interessante também, no que diz respeito à natureza jurídica, diferenciar
o jogo e a aposta da promessa de recompensa.
Nas modalidades aqui estudadas, temos um negócio jurídico que potencialmente
produzirá uma obrigação natural. Já na promessa de recompensa, o que há é uma
declaração unilateral de vontade, sem destinatário determinado, mas que faz surgir um
direito, plenamente exigível, se atendida a condição ou desempenhado o serviço
estabelecido53.

52
RODRIGUES, Silvio. Direito Civil – Dos Contratos e Declarações Unilaterais de Vontade. vol 3. 25 ed.
São Paulo: Saraiva, 1997, p. 363.
53
Sobre o tema da promessa de recompensa, confira-se o Capítulo XXVII (“Atos Unilaterais”) do Vol. II
(“Obrigações”) do nosso “Novo Curso de Direito Civil”, 8ª. ed., São Paulo: Saraiva, 2007.

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3.4. Espécies de jogo

Antes de abordar as características básicas dos contratos de jogo e aposta, parece-


nos relevante fazer alguns considerações sobre as espécies de jogo.
Com efeito, o jogo pode ser classificado como ilícito (ou proibido) e lícito, sendo
que estes últimos se subdividem em tolerados ou autorizados (legalmente permitidos).
Os jogos ilícitos, como é intuitivo, são aqueles vedados expressamente por normas
legais.
Neste diapasão, o Decreto-Lei nº 3.688, de 3 de outubro de 1941 (conhecido como a
“Lei das Contravenções Penais”), estabelece, em seus arts. 50/58, diversas condutas típicas
ensejadoras da persecução criminal. Veja:

“Art. 50. Estabelecer ou explorar jogo de azar em lugar público ou acessível ao


público, mediante o pagamento de entrada ou sem ele:
Pena – prisão simples, de três meses a um ano, e multa, de dois a quinze contos de
réis, estendendo-se os efeitos da condenação à perda dos moveis e objetos de
decoração do local.
§ 1º A pena é aumentada de um terço, se existe entre os empregados ou participa
do jogo pessoa menor de dezoito anos.
§ 2º Incorre na pena de multa, de duzentos mil réis a dois contos de réis, quem é
encontrado a participar do jogo, como ponteiro ou apostador.
§ 3º Consideram-se, jogos de azar:
a) o jogo em que o ganho e a perda dependem exclusiva ou principalmente da
sorte;
b) as apostas sobre corrida de cavalos fora de hipódromo ou de local onde sejam
autorizadas;
c) as apostas sobre qualquer outra competição esportiva.
§ 4º Equiparam-se, para os efeitos penais, a lugar acessível ao público:
a) a casa particular em que se realizam jogos de azar, quando deles habitualmente
participam pessoas que não sejam da família de quem a ocupa;
b) o hotel ou casa de habitação coletiva, a cujos hóspedes e moradores se
proporciona jogo de azar;
c) a sede ou dependência de sociedade ou associação, em que se realiza jogo de
azar;
d) o estabelecimento destinado à exploração de jogo de azar, ainda que se
dissimule esse destino.”

“Art. 51. Promover ou fazer extrair loteria, sem autorização legal:


Pena – prisão simples, de seis meses a dois anos, e multa, de cinco a dez contos de
réis, estendendo-se os efeitos da condenação à perda dos moveis existentes no
local.
§ 1º Incorre na mesma pena quem guarda, vende ou expõe à venda, tem sob sua
guarda para o fim de venda, introduz ou tenta introduzir na circulação bilhete de
loteria não autorizada.
§ 2º Considera-se loteria toda operação que, mediante a distribuição de bilhete,
listas, cupões, vales, sinais, símbolos ou meios análogos, faz depender de sorteio a
obtenção de prêmio em dinheiro ou bens de outra natureza.
§ 3º Não se compreendem na definição do parágrafo anterior os sorteios
autorizados na legislação especial.”

“Art. 52. Introduzir, no país, para o fim de comércio, bilhete de loteria, rifa ou
tômbola estrangeiras:

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Pena – prisão simples, de quatro meses a um ano, e multa, de um a cinco contos de


réis.
Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem vende, expõe à venda, tem sob sua
guarda para o fim de venda, introduz ou tenta introduzir na circulação, bilhete de
loteria estrangeira.”

“Art. 53. Introduzir, para o fim de comércio, bilhete de loteria estadual em


território onde não possa legalmente circular:
Pena – prisão simples, de dois a seis meses, e multa, de um a três contos de réis.
Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem vende, expõe à venda, tem sob sua
guarda, para o fim de venda, introduz ou tonta introduzir na circulação, bilhete de
loteria estadual, em território onde não possa legalmente circular.”

“Art. 54. Exibir ou ter sob sua guarda lista de sorteio de loteria estrangeira:
Pena – prisão simples, de um a três meses, e multa, de duzentos mil réis a um
conto de réis.
Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem exibe ou tem sob sua guarda lista de
sorteio de loteria estadual, em território onde esta não possa legalmente circular.”

“Art. 55. Imprimir ou executar qualquer serviço de feitura de bilhetes, lista de


sorteio, avisos ou cartazes relativos a loteria, em lugar onde ela não possa
legalmente circular:
Pena – prisão simples, de um a seis meses, e multa, de duzentos mil réis a dois
contos de réis.”

“Art. 56. Distribuir ou transportar cartazes, listas de sorteio ou avisos de loteria,


onde ela não possa legalmente circular:
Pena – prisão simples, de um a três meses, e multa, de cem a quinhentos mil réis.”

“Art. 57. Divulgar, por meio de jornal ou outro impresso, de rádio, cinema, ou
qualquer outra forma, ainda que disfarçadamente, anúncio, aviso ou resultado de
extração de loteria, onde a circulação dos seus bilhetes não seria legal:
Pena – multa, de um a dez contos de réis.”

“Art. 58. Explorar ou realizar a loteria denominada jogo do bicho, ou praticar


qualquer ato relativo à sua realização ou exploração:
Pena – prisão simples, de quatro meses a um ano, e multa, de dois a vinte contos de
réis.
Parágrafo único. Incorre na pena de multa, de duzentos mil réis a dois contos de
réis, aquele que participa da loteria, visando a obtenção de prêmio, para si ou para
terceiro.”

Verifique-se, como nota comum, que todas estas condutas vedadas se vinculam,
necessariamente, a práticas em que o resultado depende, única e exclusivamente, da sorte 54
(como, por exemplo, jogo do bicho, roleta, dados etc), em lugar público ou acessível ao
público.
Independentemente da conveniência ou não da manutenção de tais tipos penais no
ordenamento jurídico brasileiro, o fato é que a vedação de tais condutas importa em
reconhecer a impossibilidade jurídica de reconhecer a validade plena de tais avenças55.

54
A Lei do Jogo portuguesa (Decreto-Lei nº 422, de 02 de dezembro de 1989) define, em seu artigo 1º que
“jogos de fortuna ou azar são aqueles cujo resultado é contingente por assentar exclusiva ou
fundamentalmente na sorte”.

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Todavia, até mesmo por força do princípio jurídico que impede a alegação, em seu
favor, da própria torpeza, bem como impede o enriquecimento indevido, a natureza
contratual (no sentido de um acordo de vontades livremente estabelecido) impõe, sem
dúvida, o reconhecimento da validade do pagamento já efetivado, uma vez que decorrente
de ato voluntário do pagador, e, consequentemente, da solutio retentio. Assim, ainda que
ilícitos o jogo e/ou aposta, as regras aqui tratadas lhe são plenamente aplicáveis56.
Protestando contra tal contradição do sistema normativo, ensinava Orlando Gomes:

“O contrato de jogo proibido é nulo de pleno direito, por ter causa ilícita. Nenhum
efeito produz. De ato nulo não resultam conseqüências suscetíveis de proteção
legal. Nesta ordem de idéias, não pode surgir a dívida de jogo como obrigação
válida. A rigor, não se justifica a impossibilidade de repetição do que foi pago
voluntariamente. Diz-se, no entanto, que o contrato de jogo proibido gera uma
obrigação natural. Nessa assertiva se contém difundido equívoco. O principal
efeito da obrigação natural consiste na soluti retentio. Ora, o credor de dívida de
jogo proibido não tem o direito de reter o que recebeu. A essa recebimento falta
causa, precisamente porque o contrato é nulo de pleno direito. Por outro lado,
embora imperfeita, porque desprovida de sanção, a obrigação natural tem um fim
moral e seu suporte psicológico é a convicção de que deve ser cumprida porque
assim manda a consciência. A prática de ato ilícito não pode gerar uma obrigação
com semelhante finalidade, nem desperta o sentimento de que é desonroso o
inadimplemento. Em obrigação natural pode-se falar quando o jogo é tolerado,
visto que a lei lhe não atribui sanção apenas para não fomentar a prática de ato que
não tem objetivo sério.
A dívida oriunda de contrato de jogo proibido poderia ser repetida, por consistituir
enriquecimento sem causa. O pagamento seria indevido, por ter como causa
contrato nulo. Realizado como é contra proibição legal, esse contrato não pode
originar qualquer efeito. Contudo, argúi-se que a repetição deve ser repelida com
apoio no princípio geral que manda suprimir a condictio procedente da nulidade
dos contratos quando há causa torpe para ambas as partes, in paris causa
turpitudinis, cessat repetitio. A nulidade do contrato justifica a inexistência da
obrigação, mas a repetição se excluiu pela concorrência de causa torpe”57.

Uma questão interessante e tormentosa sobre este tema é a disciplina jurídica das
“Casas de Bingo” no Brasil. Em que pese a alea evidente em tal modalidade de jogo, sua
prática foi permitida e regulamentada, em todo o território nacional, pela Lei nº 9.615/98
(“Lei Pelé”), que destinou sua receita ao financiamento dos esportes olímpicos58.
Posteriormente, a Lei nº 9.981/00 revogou os dispositivos que autorizavam e
disciplinavam os bingos, remetendo tal funcionamento à autorização da Caixa Econômica
Federal, o que já tinha sido, inclusive, objeto de uma Medida Provisória anterior59.

55
Isso reflete até mesmo nas relações trabalhistas, não se podendo reconhecer validade aos contratos de
emprego estabelecidos especificamente para a prática de tais condutas. É o caso, por exemplo, do “jogo do
bicho”, prática que, embora ilícita, encontra grande aceitação social, sobre o qual Tribunal Superior do
Trabalho, através da sua Seção de Dissídios Individuais-I, editou, desde 08.11.00, a Orientação
jurisprudencial 199, com o seguinte teor: “Orientação jurisprudencial 199: JOGO DO BICHO. CONTRATO
DE TRABALHO. NULIDADE. OBJETO ILÍCITO. ARTS. 82 E 145 DO CÓDIGO CIVIL”.
56
Quanto ao jogo do bicho, o fato é que já há, hoje, uma larga aceitação social da sua prática, o que poderia,
sobretudo em termos penais, permitir uma reflexão acerca da sua ilicitude essencial.
57
GOMES, Orlando. Contratos, 24 ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2001, p.429/430.
58
Lei nº 9.615/98.
59
Medida Provisória no 2.216-37, de 31 de agosto de 2001.

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Em seguida, proibiu-se completamente, pela Medida Provisória nº 168, de 20 de


fevereiro 2004, o funcionamento dos bingos. Tal medida provisória, porém, foi rejeitada
pelo Senado, ficando os bingos, todavia, sem uma disciplina legal, funcionando, desde
então, com base em decisões judiciais. O tema, porém, ainda comporta discussões, embora
já haja respeitável entendimento jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça no sentido
da ilegalidade da prática, bem como precedente em decisão monocrática no Supremo
Tribunal Federal. Pela ordem, veja os julgados a que nos referimos:

“AGRAVO REGIMENTAL. SUSPENSÃO DE DECISÃO CONFIRMADA EM


ACÓRDÃO. COMPETÊNCIA DO STJ. EXAURIMENTO DA INSTÂNCIA.
APREENSÃO DE EQUIPAMENTOS. JOGO DE BINGO. LESÃO À ORDEM
PÚBLICA CONFIGURADA. – Competência desta Corte para processar e julgar
pedido de suspensão de liminar, confirmada em acórdão proferido por órgão
colegiado do Tribunal de Justiça em mandado de segurança. Exaurimento da
instância ordinária realizado, mas prescindível. – "O tipo contravencional
proibitivo dos jogos de azar inclui a exploração do jogo de bingo, do que resulta
inadmissível a concessão de tutela antecipada a permitir a adoção de conduta
penalmente tipificada, ou determinar, à autoridade competente, que se abstenha de
tomar as medidas necessárias a coibi-la" (AgRg na STA n. 69, Rel. Min. Edson
Vidigal). – Violação da ordem pública caracterizada. Agravo improvido.” (STJ,
CORTE ESPECIAL, AgRg na SS 1.662/RS, Rel. Ministro BARROS MONTEIRO,
julgado em 04.10.2006, DJ 11.12.2006 p. 287)”

“CRIMINAL. RESP. EXPLORAÇÃO DE JOGOS DE BINGO. MANDADO DE


BUSCA E APREENSÃO. MANDADO DE SEGURANÇA. ORDEM
CONCEDIDA PARA LIBERAR O MATERIAL APREENDIDO E AUTORIZAR
A CONTINUAÇÃO DA ATIVIDADE. REVOGAÇÃO DO ART. 50 DA LCP.
INOCORRÊNCIA. RECURSO PROVIDO. I. Hipótese em que foram apreendidos
diversos materiais correlacionados à exploração comercial de jogos de bingos. II.
O art. 50 da LCP não restou revogado pela Lei Pelé (Lei 9.651/98), que veio
apenas permitir o funcionamento provisório de "bingos", desde que autorizados
por entidades de direito público. III. Com o advento da Lei 9.981/2000 (Lei
Maguito Vilela) foram revogados, a partir de 31/12/2001, os artigos 59 a 81 da Lei
9.651/98 (Lei Pelé), respeitando as autorizações que estivessem em vigor até a data
de sua expiração, autorização esta, com validade de 12 meses, conforme a
legislação específica. IV. A partir de 31/12/2002, ninguém mais poderia explorar o
jogo do bingo por violação expressa ao art. 50 da Lei 3.688/41 (Lei de
Contravenções Penais). V. Se o ato impugnado ocorreu em 2003, quando as
referidas empresas já não mais poderiam estar explorando a atividade, tem-se a
correção da medida de busca e apreensão. VI. Recurso provido. (STJ, QUINTA
TURMA, REsp 703.156/SP, Rel. Ministro GILSON DIPP, julgado em 19.04.2005,
DJ 16.05.2005 p. 402)”

“ADMINISTRATIVO. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE


SEGURANÇA. EXPLORAÇÃO COMERCIAL DE MÁQUINAS DE JOGOS
ELETRÔNICOS. ILEGALIDADE. 1. Cuidam os autos de mandado de segurança
preventivo, com pedido de liminar, impetrado por GSGAMES DIVERSÕES
ELETÔNICAS LTDA. em face do SECRETÁRIO DE JUSTIÇA E SEGURANÇA
DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL, almejando a liberação de máquinas de
jogos eletrônicos que porventura viessem a ser apreendidas sob o argumento de
que as mesmas estão legalizadas de acordo com os arts. 195, III, e 217 da
Constituição Federal, Leis Federais n°s 8212/91 e 9615/98, Decreto n° 2574/98,
Lei Estadual n° 11561/00 e Decreto Estadual n° 40593/01, sendo denegada a

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ordem pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul sob o fundamento de não
haver direito líquido e certo assegurado. Neste momento, a empresa interpõe
recurso ordinário defendendo a exploração da atividade lícita de acordo com a Lei
Previdenciária e lei de incentivo ao esporte, opinando o representante do
Ministério Público pelo improvimento do recurso. 2. Somente cabe à União
legislar sobre sistemas de consórcios e sorteios (art. 22, XX, CF/88). 3. Revogados
os artigos que dispunham sobre a autorização dos bingos pela Lei n° 9.981/00
regulamentada pelo Decreto n° 3.659/00. 4. É de natureza ilícita a exploração e
funcionamento das máquinas de jogos eletrônicos (bingo e similares). 5.
Precedentes desta Corte Superior. 6. Recurso ordinário improvido. ” (STJ,
PRIMEIRA TURMA, RMS 17.480/RS, Rel. Ministro JOSÉ DELGADO, julgado
em 28.09.2004, DJ 08.11.2004 p. 164)”

“Jogos de azar. Suspensa decisão que autoriza empresas a explorar bingo.


O Supremo Tribunal Federal suspendeu decisão que autorizou duas empresas a
explorar máquinas eletrônicas de caça-níqueis, vídeo-bingo e vídeo-pôquer. O
ministro Gilmar Mendes, que ocupa a presidência do STF, anulou liminares
concedidas pelo Tribunal Regional Federal da 2ª Região.
Em primeira instância, o juiz autorizou a busca e apreensão das máquinas. O TRF-
2 suspendeu, em parte, a eficácia da sentença da 4ª Vara Federal de Niterói (RJ).
Ao acolher o pedido de liminar, justificou que a apreensão das máquinas causaria
prejuízos à atividade econômica das empresas.
O procurador-geral da República recorreu ao STF por entender que há risco de
irreparável lesão à ordem à segurança pública, uma vez que a polícia está impedida
de apreender as máquinas de jogos de azar. Dessa forma, para ele, prevalecem
interesses particulares das empresas em detrimento ao interesse público de
proteção aos eventuais usuários das máquinas.
No pedido, a procuradoria-geral citou precedente do próprio STF que firmou
entendimento no sentido de que a exploração de loterias e jogos de azar por meio
de máquinas eletrônicas não pode ser autorizada por normas estaduais.
Ao suspender a decisão, o ministro Gilmar Mendes observou a
inconstitucionalidade de normas estaduais que autorizam o funcionamento de
bingos e a instalação e a operação de máquinas eletrônicas de jogos de azar. Além
disso, citou o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 2.948 que
definiu a exploração desses jogos como ilícito penal.
"No presente caso, entendo que se encontram demonstradas graves lesões à ordem
e à segurança públicas, pois a liberação das máquinas eletrônicas apreendidas, a
serem utilizadas na exploração de jogos de azar e loterias, é medida que se
incompatibiliza com a natureza contravencional dessa atividade. Defiro o pedido
formulado para suspender a execução das liminares concedidas pelo vicepresidente
do TRF da 2ª Região", decidiu. SS 3.048 Revista Consultor Jurídico, 3 de janeiro
de 2007” (http://conjur.estadao.com.br/static/text/51588,1)”

Em paralelo às condutas tipificadas, há um outro campo de relações, referente a


jogos e apostas, que merece a tutela do ordenamento jurídico.
Trata-se da área dos jogos e apostas lícitos, em que se faz mister esclarecer uma
importante distinção.
Há dois tipos de jogos lícitos.
A primeira forma de jogo lícito é aquele ocorrente no “grande mar de licitude”
existente fora das “ilhas de ilicitude”, o que é uma homenagem ao princípio ontológico da
liberdade de que “tudo que não está juridicamente proibido está juridicamente permitido”60.

60
“Tudo, pois, que não é ilícito é lícito, e vice-versa, o que não deixa margem à possibilidade de lacunas do
direito.

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Ou seja, toda modalidade de jogo ou aposta que não esteja tipificada é considera
lícita, como, por exemplo, a “corrida apostada” entre amigos para ver quem chega primeiro,
a rifa feita por uma comissão de formatura ou o “carteado a dinheiro” entre membros da
família (fora, portanto, do âmbito de incidência do art. 50, § 4º, a, da LCP).
Em tal modalidade de jogo ou aposta, há apenas a tolerância do ordenamento
jurídico, pois, em que pese a aceitação de sua licitude, não se admite a produção total dos
efeitos do negócio jurídico, gerando obrigações naturais, as quais também se aplicam as
regras aqui tratadas.
Todavia, há uma segunda forma de jogo lícito.
Trata-se do jogo ou aposta autorizado ou legalmente permitido.
Em tais modalidades, não há que se falar em obrigação natural ou juridicamente
incompleta, mas, sim, de obrigação juridicamente exigível, em todos os seus efeitos.
Tal distinção decorre da própria regra legal, inserida pelo codificador de 2002, em
consonância com a realidade existente.
Confira-se, por isso, os dois últimos parágrafos do art. 814, CC-02 (sem
equivalentes no CC-16), lembrando que o caput trata justamente da inexigibilidade e
irrepetibilidade do pagamento de dívida de jogo e aposta:

“(...)
§ 2º - O preceito contido neste artigo tem aplicação, ainda que se trate de jogo não
proibido, só se excetuando os jogos e apostas legalmente permitidos.
§ 3º - Excetuam-se, igualmente, os prêmios oferecidos ou prometidos para o
vencedor em competição de natureza esportiva, intelectual ou artística, desde que
os interessados se submetam às prescrições legais e regulamentares.”

É o caso, pois, das diversas loterias patrocinadas pelo Governo Federal, através da
Caixa Econômica Federal, como, a título exemplificativo, Lotofácil, Loteca, Lotogol,
Lotomania, Loteria Instantânea, Loteria Federal, Quina, Mega-Sena e Dupla Sena.
No mesmo sentido, enquadramos como obrigações juridicamente exigíveis, por
força do mencionado § 3º, não somente competições esportivas propriamente ditas, mas
todo tipo de premiação lícita prometida, seja em emissoras de televisão ou em qualquer
outro meio de divulgação. Nessas hipóteses, hão de ser aplicadas as “prescrições legais e
regulamentares”61, bem como, se for o caso, o Código de Defesa do Consumidor62.
Todavia, embora o princípio lógico acima enunciado ´tudo que não é lícito é ilícito´ - seja,
como uma proposição, logicamente conversível, realmente não se pode proceder à conversão do princípio
paralelo ou equivalente - ´tudo que não está proibido está juridicamente facultado´. A conversão deste
princípio, embora tivesse o mesmo resultado lógico de completar a ordem jurídica, conferindo-lhe uma
plenitude hermética, não seria compatível com a liberdade em que a vida e a conduta essencialmente
consistem; se ´tudo o que não é permitido é juridicamente proibido´, simplesmente a vida não é possível, pois
para cada contração muscular que executo para escrever este livro teria de haver uma expressa permissão por
parte da ordem jurídica” (MACHADO NETO, A. L., Compêndio de introdução à ciência do direito. 3ª. ed.,
São Paulo, Saraiva, 1975, p.152).
61
Destaque-se, por exemplo, a Lei no 5.768, de 20/12/1971, que trata da legislação sobre distribuição gratuita
de prêmios, mediante sorteio, vale-brinde ou concurso, a título de propaganda, estabelece normas de proteção
à poupança popular, e dá outras providências, bem como seu Decreto regulamentador, a saber, o Decreto nº
70.951, de 9.8.1972.
62
“TELEVISÃO. “SHOW DO MILHÃO”. Código de Defesa do Consumidor. Prática abusiva. A emissora de
televisão presta um serviço e como tal se subordina às regras do Código de Defesa do Consumidor.
Divulgação de concurso com promessa de recompensa segundo critérios que podem prejudicar o participante.
Manutenção da liminar para suspender a prática. Recurso não conhecido.” (STJ, REsp 436.135/SP, Rel.

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3.5. Características

Pela sua evidente similitude, cuidaremos de caracterizar os contratos de jogo e


aposta conjuntamente, até mesmo pelo fato de ambos terem sido tratados na mesma
disciplina tanto pelo Código Civil brasileiro de 1916, quando pela vigente codificação de
2002.
A afirmação da natureza contratual do jogo e da aposta já os consagra como
contratos típicos e nominados.
Trata-se de modalidades contratuais bilaterais, com direitos e obrigações para
ambos os contratantes, admitindo-se uma plurilateralidade (ou multilateralidade), na
medida em que haja mais de dois pactuantes.
Embora possa ser estabelecido, sem problemas, na modalidade gratuita, o jogo e a
aposta somente tem relevância para o Direito quando celebrados de forma onerosa.
Tendo em vista o elemento sorte (ou azar) que os envolve, são, obviamente,
contratos aleatórios, já que a obrigação de uma das partes somente pode ser considerada
devida em função de coisas ou fatos futuros, cujo risco da não ocorrência foi assumido pelo
outro contratante.
Podem ser estabelecidos tanto de forma paritária, como por adesão, sendo
ilustrativos, respectivamente, os exemplos da aposta entre amigos e a “fezinha” na loteria
esportiva.
Pela álea inerente ao contrato, a classificação de contrato evolutivo é inaplicável ao
jogo e aposta.
São típicos contratos civis, inaplicáveis para relações comerciais, trabalhistas e
administrativos, podendo se revestir como contratos consumeristas.
Quanto à forma, são contratos não-solenes e consensuais.
A priori, quanto à importância da pessoa do contratante para a celebração e
produção de efeitos do contrato, tais negócios jurídicos classificam-se como pessoais
(também chamados de personalíssimos ou realizados intuitu personae).
São contratos individuais, pois estipulados entre pessoas determinadas, ainda que
em número elevado, mas consideradas individualmente.
Quanto ao tempo, podem ser tanto contratos instantâneos (seja de execução
imediata ou de execução diferida), quanto de duração (determinada ou indeterminada), a
depender da situação concreta.
São contratos tipicamente causais, a ponto de a regra de irrepetibilidade e
inexigibilidade ser estendida a qualquer outra avença “que encubra ou envolva
reconhecimento, novação ou fiança de dívida de jogo”, na forma do já transcrito § 1º do art.
814, CC-02 (parágrafo único do art. 1.477, CC-16), o que afastaria a exigibilidade, por
exemplo, de títulos executivos decorrentes da dívida contraída tendo com causa o jogo ou a
aposta. Veja:

“PROCESSUAL CIVIL. MONITÓRIA. MEMÓRIA DE CÁLCULO.


INEXISTÊNCIA. INÉPCIA. NÃO OCORRÊNCIA. PRODUÇÃO DE PROVAS.
AUDIÊNCIA. NÃO REALIZAÇÃO. AFERIÇÃO. SÚMULA 7 - STJ. CAUÇÃO.
Ministro RUY ROSADO DE AGUIAR, QUARTA TURMA, julgado em 17.06.2003, DJ 12.08.2003 p. 231)”

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PESSOA JURÍDICA ESTRANGEIRA. ART. 835 DO CPC. INTERPRETAÇÃO.


DÍVIDA DE JOGO. CARACTERIZAÇÃO. REEXAME DE PROVAS. 1 – Em
nenhum dos dispositivos que regem a monitória há a exigência de ser a inicial da
ação guarnecida com planilha de cálculos ou memória discriminada do montante
da dívida em cobrança, o que fica relegado aos embargos. 2 - A necessidade ou não
de produzir prova em audiência é da exclusiva e soberana discricionariedade das
instâncias ordinárias, com apoio no acervo probatório, esbarrando, portanto, a
questão federal (arts.330, I e 332, ambos do CPC), neste particular, no óbice da
súmula 7 - STJ. 3 - Eventual retardo no implemento da caução do art. 835 do CPC
não rende ensejo à nulidade do processo, notadamente se, como na espécie,
somente foi suscitada a falta em sede de embargos declaratórios ao acórdão de
apelação. 4 - Vinculada a questão federal à existência ou não de dívida de jogo e as
implicações disso resultantes, a irresignação encontra obstáculo intransponível no
verbete sumular nº 7 - STJ, máxime porque o acórdão além de reportar-se a ampla
interpretação probatória, menciona e se fundamenta em aspectos subjetivos da
conduta do próprio recorrente. 5 - Recurso especial não conhecido.” (STJ, REsp
307.104/DF, Rel. Ministro FERNANDO GONÇALVES, QUARTA TURMA,
julgado em 03.06.2004, DJ 23.08.2004 p. 239)”

“CHEQUE - Emissão para pagamento de dívida de jogo - Inexigibilidade -


Irrelevância de a obrigação haver sido contraída em país em que é legítima a
jogatina - Inteligência dos arts. 9.° e 17 do Dec.-lei 4.657/42 e do art. 1.477 do CC.
O cheque emitido para pagamento de dívida de jogo é inexigível, nos termos do
art. 1.477 do CC, ainda que a obrigação tenha sido contraída em país em que a
jogatina é lícita, eis que o princípio do locus regit actum, consagrado no art. 9.° da
LICC, sofre restrições em face da regra insculpida no art. 17 do mesmo diploma
legal.”(TJRJ – 13ª Câmara Cível – Processo nº: 18836/00 – Apelação Cível –
Relator(a): Des. Nametala Jorge – Julg. 16.04.2001 – DORJ 28.06.2001)”

“CHEQUE – EMISSÃO PARA PAGAMENTO DE DÍVIDA DE JOGO –


INEXIGIBILIDADE – IRRELEVÂNCIA DE A OBRIGAÇÃO DE HAVER SIDO
CONTRAÍDA EM PAÍS ONDE É LEGÍTIMO O JOGO – REGRA ALIENÍGENA
INAPLICÁVEL FACE AOS TERMOS EXPRESSOS DO ART. 17 DA LICC –
APLICAÇÃO DOS ARTS. 1.477 E 1.478 DO CC – VOTO VENCIDO EM
PARTE. O título emitido para pagamento de dívida de jogo não pode ser cobrado,
posto que, para efeitos civis, a lei o considera ato ilícito (arts. 1477 e 1478 do CC).
Mesmo que a obrigação tenha sido contraída em país onde é legítimo o jogo, ela
não pode ser exigida no Brasil face aos termos expressos do art. 17 da
LICC.”(TJMG – 1ª Câmara Cível – Apelação nº 128.795-4, j. 29.9.92, Rel. Juiz
Zulman Galdino).”

Sobre tal característica, é importante registrar que quando o jogo ou a aposta é a


própria causa de um outro negócio jurídico, a sua condição de obrigação natural
“contamina” a nova avença, o que é mais evidente na hipótese de mútuo, conforme se
verifica do art. 815, CC-02 (art.1.478, CC-16)63, analisado no final deste artigo.
A classificação pela função econômica não é adequada para os contratos de jogo e
aposta, uma vez que a álea própria de tal relação contratual é um traço distintivo que o
peculiariza dentre as demais formas contratuais. O mais próximo que se pode vislumbrar é
de um contrato de atividade, que é aquele que se caracteriza pela prestação de uma conduta
de fato, mediante a qual se conseguirá uma utilidade econômica. A classificação, porém,
não é perfeita, justamente pelo fato de que a utilidade econômica não necessariamente será
63
“Art. 815. Não se pode exigir reembolso do que se emprestou para jogo ou aposta, no ato de apostar ou
jogar.”

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obtida, uma vez que depende de outros fatores, independentemente da conduta do


contratante, como a sorte e a habilidade do adversário (no jogo).
Por fim, é típico contrato principal, com existência autônoma, e definitivo, não
sendo preparatório para qualquer negócio jurídico, nem podendo sê-lo, pela inexigibilidade
a ele inerente.

3.6. Contratos diferenciais

Um modificação substancial entre a nova e a anterior codificação diz respeito ao


tratamento dos chamados “contratos diferenciais”.
São eles, no ensinamento de Orlando Gomes, “os contratos de vendas pelos quais as
partes não se propõem realmente a entregar a mercadoria, o título, ou valor, e a pagar o
preço, mas, tão-só, à liquidação pela diferença entre o preço estipulado e a cotação do bem
vendido no dia do vencimento. Se o preço subir, ganha o comprador, pois o vendedor é
obrigado a pagar a diferença. Se baixar, ganha o vendedor, que à diferença faz jus. No
primeiro caso, a diferença é paga pelo vendedor, e no segundo, pelo comprador.”64
No sistema codificado do século XX, tais modalidades contratuais estavam
equiparadas ao jogo, na forma do art. 1.479, CC-1665, motivo pelo qual não tinham
exigibilidade judicial, nem repetibilidade, caracterizando-se como obrigações naturais.
Tudo mudou o Código Civil brasileiro de 2002, que expressamente estabeleceu em
seu art. 816:

“Art. 816. As disposições dos arts. 814 e 815 não se aplicam aos contratos sobre
títulos de bolsa, mercadorias ou valores, em que se estipulem a liquidação
exclusivamente pela diferença entre o preço ajustado e a cotação que eles tiverem
no vencimento do ajuste.”

Assim, embora também existente a álea, tal qual no jogo e aposta, estabelece a regra
positivada a impossibilidade de sua equiparação a tais contratos, constituindo-se, portanto,
em obrigações juridicamente completas e exigíveis.
Tal mudança de diretriz nos parece bastante razoável, dada a importância moderna
das bolsas de futuros, cuja finalidade é a organização de um mercado para a negociação de
produtos derivados de títulos, mercadorias e valores.
Afinal de contas, tais negócios têm seu risco inerente, com a possibilidade concreta
de ganhos e perdas, como em qualquer sistema clássico de Bolsas de Valores, o que nunca
foi considerado ilegal.
Sobre o tema, vale registrar a observação de Jones Figueiredo Alves:

“O NCC aboliu o princípio da equiparação. Efetivamente, equiparar as operações


de bolsas de futuros a jogo ou aposta era algo que não podia permanecer no
Código Civil. Observe-se que o Decreto-Lei n. 2.286, de 23-7-1986, já dispõe
sobre a cobrança de impostos nas operações a termo de bolsas de mercadorias ou
mercados outros de liquidações futuras, realizadas por pessoa física, tributando os
rendimentos e ganhos de capital delas decorrentes. E no art. 3º são definidos como

64
GOMES, Orlando. Contratos, 24 ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2001, p.433.
65
“Art. 1.479. São equiparados ao jogo, submetendo-se, como tais, ao disposto nos artigos antecedentes, os
contratos sobre títulos de bolsa, mercadorias ou valores, em que se estipule a liquidação exclusivamente pela
diferença entre o preço ajustado e a cotação que eles tiverem, no vencimento do ajuste.”

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valores mobiliários sujeitos ao regime da Lei n. 6.385, de 7-12-1976, os índices


representativos de carteiras de ações e as opções de compra e venda de valores
mobiliários, sendo certo que o Conselho Monetário Nacional e o Banco Central do
Brasil, através das Resoluções n. 1.190/86 e 1.645/89, respectivamente, referiam-
se às bolsas, cujo objetivo é, justamente, a organização de um mercado livre e
aberto para a negociação de produtos derivativos de mercadorias e ativos
financeiros.
Isto já existe no Brasil desde 1986, quando foi criada a Bolsa de Mercadorias &
Futuros, que realiza um volume de negócios equivalente a dez vezes o nosso
Produto Interno Bruto. Tais bolsas existem na Alemanha, na França, na Itália, na
Suíça, na Austrália, na Áustria, na Bélgica, em Luxemburgo, na Holanda, no Reino
Unido e sobretudo nos Estados Unidos. Ser contra a existência dos negócios
realizados nas Bolsas de Mercadorias e Futuros com base na afirmativa de eles
terem por objeto negócios equiparados a jogo e aposta é despiciendo, porque nas
clássicas Bolsas de Valores as ações compradas ou vendidas também variam de
preço de um dia para o outro, sendo essa operação absolutamente aceitável e
tributada”66.

3.7. Utilização do sorteio

Não é toda decisão que depende da sorte que pode ser considerada jogo ou aposta.
Um bom exemplo disso é a técnica do sorteio que, quando não tem por finalidade o
divertimento ou ganho dos participantes, não pode ser regulada como jogo.
Sobre o tema, estabelece o art. 817, CC-02 (art. 1.480, CC-16):

“Art. 817. O sorteio para dirimir questões ou dividir coisas comuns considera-se
sistema de partilha ou processo de transação, conforme o caso.”

O sorteio, embora seja um método que envolve necessariamente a sorte dos


participantes, quando estabelecido como um critério para dirimir questões, não pode ser
encarado como um jogo.
Trata-se, apenas, de uma forma encontrada pelo sistema normativo para por termo a
controvérsias.
Tal método é utilizado pelo ordenamento em diversas hipóteses nas regras
processuais, como, a título exemplificativo, no sorteio de jurados, da distribuição de
processos em comarcas onde há pluralidade de juízos, da relatoria em recursos etc.
Nas relações jurídicas de direito material, o um bom exemplo é a da promessa de
recompensa, em que o próprio Código Civil brasileiro admite a utilização deste critério,
quando for simultânea a execução da tarefa estabelecida67.
Em pendências sobre direitos disponíveis entre pessoas capazes, a possibilidade
jurídica de renúncia e transação68 torna admissível a eleição do sorteio como forma de
solução de conflitos, o mesmo podendo se dar no âmbito do inventário ou do arrolamento,
em nível sucessório, entre os herdeiros.
66
ALVES, Jones Figueiredo. Novo Código Civil Comentado (coord. Ricardo Fiúza). São Paulo: Saraiva,
2002, p.737/738.
67
CC-02: “Art. 858. Sendo simultânea a execução, a cada um tocará quinhão igual na recompensa; se esta
não for divisível, conferir-se-á por sorteio, e o que obtiver a coisa dará ao outro o valor de seu quinhão.” (No
CC-16, § 2º do art.1.515).
68
Confira-se o Capítulo XX (“Transação”) do nosso “Novo Curso de Direito Civil”, tomo 2 (“Contratos em
Espécie”), São Paulo: Saraiva, 2007.

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Observe-se, porém, que em todas essas situações não há necessariamente a idéia de


ganho para um, em detrimento dos outros, uma vez que a sorte não tem por objetivo o lucro
ou perda, mas apenas o deslinde da controvérsia.

3.8. Exigibilidade de dívida de jogo contraída no exterior69

Um tema que sempre nos é perguntado em sala de aula diz respeito à eventual
exigibilidade de dívida de jogo contraída no exterior.
De fato, não soa como uma heresia dizer que o jogo é permitido no Brasil, seja na
modalidade tolerada, seja na legalmente permitida, pois o que há, com efeito, é a vedação
legal de algumas modalidades de jogos de azar.
Por isso mesmo, e constatando a circunstância de que um cidadão brasileiro pode
contrair dívidas de jogo no exterior (por exemplo, em um cassino em Monte Carlo, no
Principado de Mônaco; no Paraguai; ou em Punta del Este, no Uruguai), uma pergunta não
quer calar: é possível, à luz das normas de Direito Internacional Privado, cobrar, no Brasil,
de dívida de jogo regularmente contraída por brasileiro no exterior?
Para responder a questão, é importante lembrar que a competência para a
homologação das sentenças estrangeiras e a concessão do exequatur às cartas rogatórias
era, até 2004, do Supremo Tribunal Federal (art. 102, I, h, CF/1988), passando, a partir daí,
a ser, por força da Emenda Constitucional 45/2004, do Superior Tribunal de Justiça,
conforme regra hoje inscrita no art. 105, I, i, da Constituição Federal vigente.
Registre-se, inclusive, que o texto original da Constituição Federal admitia
expressamente a delegação de tal matéria ao seu Presidente, por força de norma regimental,
o que, de fato, era autorizado pelo art. 13, IX, do Regimento Interno do Supremo Tribunal
Federal.
A matéria, para ser decidida, exige a aplicação das regras de Direito Internacional
Privado, o que, no Brasil, importa na incidência do sistema normativo propugnado pela Lei
de Introdução ao Código Civil brasileiro70.
A regra básica para qualificação de obrigações está no art. 9ª da LICC, que assim
estabelece:

“Art. 9º Para qualificar e reger as obrigações, aplicar-seá a lei do país em que se


constituírem.
§ 1º Destinando-se a obrigação a ser executada no Brasil e dependendo de forma
essencial, será esta observada, admitidas as peculiaridades da lei estrangeira quanto
aos requisitos extrínsecos do ato.
§ 2º A obrigação resultante do contrato reputa-se constituída no lugar em que
residir o proponente.”

Assim, sendo o jogo legal no território estrangeiro, onde foi contraída a dívida, não
seria por isso que estaria impedida a cobrança deste valor no território nacional.
O óbice, porém, surge na colmatação de um conceito jurídico indeterminado
fundamental, que é a noção de ordem pública.
69
Sobre o tema, confira-se o interessante artigo de Armindo de Castro Júnior, “Cobrança de dívida de jogo
contraída por brasileiro no exterior”. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 1131, 6 ago. 2006. Disponível em:
<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=8752>. Acesso em: 12 dez. 2006.
70
Para um aprofundamento sobre o tema, confira-se o Capítulo III (“Lei de Introdução ao Código Civil”) do
Vol. I (“Parte Geral”) do nosso “Novo Curso de Direito Civil”, 9ª. ed., São Paulo: Saraiva, 2007.

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De fato, estabelece o art. 17 da mesma LICC:

“Art. 17. As leis, atos e sentenças de outro país, bem como quaisquer declarações
de vontade, não terão eficácia no Brasil, quando ofenderem a soberania nacional, a
ordem pública e os bons costumes.”

É este o ponto fundamental que impede tal cobrança.


E a questão, sem sombra de dúvida, é de hermenêutica, pois é possível se
vislumbrar, nas decisões proferidas na época em que o Supremo Tribunal Federal era o
competente para a matéria, o quanto essa interpretação variou 71, tendo encontrado,
inclusive, guarida, ainda que minoritária, em decisões de Tribunais de Justiça de vários
pontos do país. Veja:

“ACAO MONITORIA. NOTA PROMISSORIA. DESPESAS NO EXTERIOR.


JOGO DE AZAR. TERRITORIALIDADE. BOA FE. Ação monitória. Prévia de
cerceamento de defesa que não prevalece. Pretensão à oitiva que não desnatura o
titulo. Causa da emissão lícita no território alienígena, onde emitido. Notas
promissórias firmadas na Argentina a serem pagas no Brasil. Débito oriundo de
despesas com hospedagem, transporte, alimentação, diversão e jogo contraídas no
exterior onde o jogo é prática lícita. Alegação do réu de inexigibilidade de dívida
de jogo com base no art. 1.477 do CC de 1916 que não se aplica diante do art. 9 da
LICC. Principio da territoriedade. O principio da boa-fé deve permear as relações.
Prevalência da regra do "locus regit actum". Sentença em que é julgado procedente
a ação monitória convertendo as notas promissórias em título executivo judicial.
Irresignação que não se sustenta. Ato judicial mantido.” (TJRJ, DECIMA SEXTA
CAMARA CIVEL , APELACAO CIVEL, 2005.001.12814, DES. ROSITA
MARIA DE OLIVEIRA NETTO - Julgamento: 08/11/2005)”

“DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO. DÍVIDA DE JOGO CONTRAÍDA


NO EXTERIOR. PAGAMENTO COM CHEQUE DE CONTA ENCERRADA.
ART. 9º DA LEI DE INTRODUÇÃO AO CÓDIGO CIVIL. ORDEM PÚBLICA.
ENRIQUECIMENTO ILÍCITO. 1. O ordenamento jurídico brasileiro não

71
“Em 1993, ao julgar o Agravo Regimental na Carta Rogatória nº 5332, o eminente Ministro Octavio
Gallotti reconsiderou exequatur concedido para citação do devedor, sob o fundamento de atentado à ordem
pública, baseado em a dívida de jogo ser obrigação natural, de acordo com o CC/1916, bem como de a prática
de jogo de azar ser considerada contravenção penal, pela lei brasileira. Da mesma forma e igualmente baseada
em atentado à ordem pública, encontramos em 1996, a decisão proferida pelo Ministro Sepúlveda Pertence,
ao julgar a Carta Rogatória nº 7426 [07].
Entre 2001 e 2002, houve mudança de interpretação quanto ao tema, quando a presidência
do STF foi ocupada pelo eminente Ministro Marco Aurélio Mello. Em longo arrazoado, foi admitido o
exequatur para citação de devedores de jogo, nos autos da Carta Rogatória nº 9897 [08], oriunda dos Estados
Unidos da América (No mesmo sentido: CR 9970, CR 10415, CR 10416 e CR 10416 ED), sob o fundamento
de que a lei a ser utilizada seria a norte-americana, de acordo com o art. 9º da LICC, e que, por ser lícito o
jogo no local onde foi contraído, afastaria a incidência do art. 1.477 do Código Civil, não havendo, pois,
atentado à ordem pública, prevista no art. 17 da LICC.
Por serem decisões monocráticas, não há que se falar em tendência jurisprudencial, na
medida em que não refletem o pensamento do tribunal, mas de seu presidente. Assim, ao assumir a
presidência do STF em 2003, o Ministro Maurício Corrêa houve por modificar o entendimento de seu
antecessor, reconsiderando a decisão de concessão do exequatur, em sede de Embargos Infringentes à Carta
Rogatória nº 10415 [09] (no mesmo sentido: CR 10416 AgR), sob o fundamento de atentado à ordem
pública.” (CASTRO JÚNIOR, Armindo de. “Cobrança de dívida de jogo contraída por brasileiro no exterior”.
Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 1131, 6 ago. 2006. Disponível em:
<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=8752>. Acesso em: 12 dez. 2006)

Michell Nunes Midlej Maron 27


EMERJ – CP III Direito Civil III

considera o jogo e a aposta como negócios jurídicos exigíveis. Entretanto, no país


em que ocorreram, não se consubstanciam tais atividades em qualquer ilícito,
representando, ao contrário, diversão pública propalada e legalmente permitida,
donde se deduz que a obrigação foi contraída pelo acionado de forma lícita. 2.
Dada a colisão de ordenamentos jurídicos no tocante à exigibilidade da dívida de
jogo, aplicam-se as regras do Direito Internacional Privado para definir qual das
ordens deve prevalecer. O art. 9º da LICC valorizou o locus celebrationis como
elemento de conexão, pois define que, "para qualificar e reger as obrigações,
aplicar-se-á a lei do país em que se constituírem." 3. A própria Lei de Introdução
ao Código Civil limita a interferência do Direito alienígena, quando houver afronta
à soberania nacional, à ordem pública e aos bons costumes. A ordem pública, para
o direito internacional privado, é a base social, política e jurídica de um Estado,
considerada imprescindível para a sua sobrevivência, que pode excluir a aplicação
do direito estrangeiro. 4. Considerando a antinomia na interpenetração dos dois
sistemas jurídicos, ao passo que se caracterizou uma pretensão de cobrança de
dívida inexigível em nosso ordenamento, tem-se que houve enriquecimento sem
causa por parte do embargante, que abusou da boa fé da embargada, situação essa
repudiada pelo nosso ordenamento, vez que atentatória à ordem pública, no sentido
que lhe dá o Direito Internacional Privado. 5. Destarte, referendar o
enriquecimento ilícito perpretado pelo embargante representaria afronta muito
mais significativa à ordem pública do ordenamento pátrio do que admitir a
cobrança da dívida de jogo. 6. Recurso improvido.” (TJDF – 2ª Câmara Cível –
Processo nº: EIC 44.921/97 – Embargos Infringentes na Apelação Cível –
Relator(a): Des. Wellington Medeiros – Revisora(a): Des. Adelith De Carvalho
Lopes – Data: 14-10-1998)”

Resta, portanto, esperar qual será o posicionamento final do Superior Tribunal de


Justiça sobre a matéria, órgão hoje competente para sua apreciação.

3.9. O reembolso de empréstimo para jogo ou aposta

Como já afirmamos alhures, os contratos de jogo e de aposta são negócios jurídicos


tipicamente causais.
Por isso, suas características básicas de irrepetibilidade de pagamento e
inexigibilidade da prestação são estendidas “a qualquer contrato que encubra ou envolva
reconhecimento, novação ou fiança de dívida de jogo”, como estabelece o mencionado § 1º
do art. 814, CC-02 (parágrafo único do art. 1.477, CC-16).
O traço mais evidente deste perfil causalista do sistema codificado brasileiro se dá
na relação do jogo e aposta com o mútuo.
De fato, é perfeitamente compreensível que, tomado pela excitação do momento do
jogo ou da aposta, algum incauto queria fazer empréstimos para poder apostar ou jogar.
Tal consentimento, porém, é evidentemente viciado, motivo pelo qual a regra legal
estende a inexigibilidade do reembolso para tal empréstimo.
É o que se vislumbra no art. 815, CC-02 (art.1.478, CC-16), que estabelece:

“Art. 815. Não se pode exigir reembolso do que se emprestou para jogo ou aposta,
no ato de apostar ou jogar.”

Parece-nos lógico que o preceito somente é aplicável para situações em que o


mutuante tenha pleno conhecimento do fato, o que se depreende da menção ao momento
em que o empréstimo é feito (“no ato de apostar ou jogar”).

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Assim, por óbvio, entendemos que para os mútuos feitos sem nenhum tipo de
vinculação com o “ato de apostar ou jogar”, ainda que sua finalidade implícita seja para tal
mister, não se aplica o dispositivo, em respeito, inclusive, à boa-fé subjetiva daquele que
emprestou.
Por outro lado, acreditamos firmemente que outros negócios jurídicos, como
compra e venda de coisas móveis (pense-se na aquisição de fichas para pagamento
posterior, por exemplo), podem atrair a aplicação analógica da norma, na hipótese de ter a
mesma causa. Veja:

“DIVIDA DE JOGO. FORNECIMENTO DE FICHAS EM CLUBE


DESTINADAS A JOGO E PARA PAGAMENTO POSTERIOR. E INEXIGIVEL
O REEMBOLSO DO QUE SE EMPRESTOU NESSA SITUAÇÃO. RECURSO
EXTRAORDINÁRIO NÃO CONHECIDO.” (STF. SEGUNDA TURMA, RE
65319 / SP - SÃO PAULO, Relator: Min. EVANDRO LINS, Julgamento:
03/12/1968, Publicação DJ 27- 12-1968)”

3.10. Extinção do contrato

Por se configurarem, regra geral, como obrigações naturais, juridicamente


inexigíveis, não há grande interesse – prático ou acadêmico – no desenvolvimento deste
tópico, razão por que o legislador, corretamente, permaneceu silente.
Claro está, todavia, que, fora as situações de invalidade, o jogo e a aposta
extinguem-se com o cumprimento da prestação pecuniária, nos termos e nas condições
desenvolvidas no corpo deste capítulo.
Cumpre-nos lembrar, apenas, e em conclusão, que os jogos e apostas oficialmente
autorizados admitem a sua cobrança judicial por não se subsumirem à noção de obrigações
naturais ou imperfeitas, a exemplo da Loto ou da Mega Sena.

Casos Concretos

Questão 1

Michell Nunes Midlej Maron 27


EMERJ – CP III Direito Civil III

Em fevereiro de 2003, João estabeleceu com José um negócio jurídico pelo qual o
primeiro consignou ao segundo determinadas coisas móveis para que as vendesse por
preço convencionado, com a condição de devolver as que não fossem vendidas no prazo
estipulado.
No que se refere a esse negócio jurídico, responda:
a) que tipo de contrato foi estabelecido?
b) qual a natureza jurídica desse contrato?
c) se a restituição da coisa, em sua integridade, tornar-se impossível, ainda que por
fato não imputável a José, terá esse alguma responsabilidade?
d) pendendo sobre José processo de execução, as coisas consignadas podem ser
objeto de penhora?

Resposta à Questão 1

a) Contrato estimatório, vulgo contrato de consignação.

b) A natureza é controvertida. Consideram-no, alguns, uma modalidade de compra


e venda, enquanto outros defendem natureza de comissão. Embora o
consignatário venda, em seu nome, as coisas consignadas, age, para alguns,
como comissário, enquanto para outros é mera compra e venda,
independentemente da possível devolução dos bens: tratar-se-ia de venda sob
condição resolutiva – revenda –, sob pacto de desfazimento em caso de não
revenda.
No contrato estimatório, a obrigação do consignatário pagar o preço
estimado cumprir-se-á no momento aprazado, quando então pagará as coisas
que vendeu e devolverá as remanescentes.

c) Sim, na forma do artigo 535 do CC:

“Art. 535. O consignatário não se exonera da obrigação de pagar o preço, se a


restituição da coisa, em sua integridade, se tornar impossível, ainda que por fato a
ele não imputável.”

d) Não, enquanto não pago o preço, na forma do artigo 536 do CC:

“Art. 536. A coisa consignada não pode ser objeto de penhora ou seqüestro pelos
credores do consignatário, enquanto não pago integralmente o preço.”

Questão 2

Markito tatto, conhecido artesão da feira de artesanato de Ipanema, deixou em


consignação 50 pulseiras de couro devidamente identificadas e valoradas em uma loja de
alto luxo no referido bairro. Com o incêndio involuntário da loja todas as pulseiras
consignadas foram destruídas. Passados três meses do incêndio, o artesão ajuíza ação de
indenização em face da pessoa jurídica consignatária que se defende alegando a
incidência do artigo 393 do Código Civil. Você, juiz, como decidiria.

Resposta à Questão 2

Michell Nunes Midlej Maron 28


EMERJ – CP III Direito Civil III

As partes celebraram contrato estimatório, incidindo na hipótese o artigo 535 do


CC, não eximindo jamais o consignatário de responsabilidade pela guarda das coisas –
gerando espécie de reponsabilidade integral. Por isso, o pedido deve ser julgado
procedente, para condenar o réu a reparar os danos.

Michell Nunes Midlej Maron 28

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