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Coppighv 2005 dec aucoees “Tos ou dito: desea ego mura Bairon Conese (Eto Pinsky Led) snag de caps ‘Waldomira Sanna, “Mops leade? (Glen sobre tly Montage de cpa saris ‘Govt 5. Vilas Bose Revids Lilia Aquino ide Bevan Dales lmeuacioais de Catlosacio a Publicaio (CIP) (Cimars Brass do Livy SP, Braid Fonte hisGnica / Cala Baranen Fas, orgie “Red I iimapesto~ Sie Palo» Content, 2008, Yasin aor Bibligeae ISBN 978.85.7246.297-8 1, Hiss ~ Fons 2, Hiseoiograia 1. Pegs Cala Basan esagpg cso Trios pare catloge avematons 1 Bonne iis 202 2 Huts Forres 902 Epirosa Comresro Diver edicoral Jtne Poy a Dr José Bhs, $20 = leo de Lapa 195083-050 ~ Sao Paula ~ 32 Pa: (LI) 3832 $838 comes: @ediorssotcte come ‘wonwediorecorexs.com be ae Probida 2 teproducio woul ou pucial (Qs indtors sin proces a ume da id A Hlistria depois do papel Marcos Napaltane Os historiadores ¢ as fontes audiovisuais ¢ musicais Vivemos em um mundo dominado por imagens e sons obtidos “diretamente" da sealidade, seja pela encenagio ficcional, seja pelo registro documental, por meio de aparatos técnicas cada vez, mais sofisticados. E tudo pode ser visto pelos meias de comunicagées € representado pelo cinema, com um grau derealismoimpressionante, Cada vezmais, tudoédadoa vereaouvir, fatosimportantesebanais, pessoas publicase influentes ouanénimasecomuns, Esse fenémeno, ja secular, nao pode passar despercebido pelos historiadores, principalmente para aqueles especializadios em Historia do século xx As fontes audiovisuais ¢ musicais ganham crescentemente espaco na pesquisa histérica. Do ponto de vista metodoidgico, s4o vistas pelos historiadores como fontes primétias novas, desafiadoras, mas seu estatutto € paradoxal, Por um lado, as fontes andiovisnais (cinema, televisdo e registros sonoros em geral) sao consideradas por alguns, tradicional e erroneamente, Fen Bian testemunhos quase diretos ¢ objetivos da historia, de alto poder ilustrativo, sobretuido quando possuiem um carter estritamente documental, qual seja, 0 registro direto de eventos e personagens histéricos. Por outro lado, as fontes audiovisuais de natureza assumidamente artistica (filmes de ficgao, teledramaturgia, cangbes e pecas musicais) sio percebidas muitas vezes sob 0 stigma da subjetividadeabsoluta, impressbesestéticasde fatos sociais objetivos quelhessfoexieriores. A questio, noentanto, é perceberas fontes audiovisuais, e musicais em suas estruturas internas de linguagem e seus mecanismos de representagio da realidade, a partir de seus cédigos internos. Tanto a visd0 “objetivista” quantoestizma “subjetivista” falhamem perceber tais problemas. A primeira visao ~ “objetivista” - decorre do “efeito de realidade” que o registro técnico de imagens ¢ sons denota pata o espectador ou ouvinte. Com efeito, todas as imagens e sons obtidos pelo registro técnico do real criam um “ofeito de reatidade” imediato sobre o observador, efeito esse —ja notado por Roland Barthes, semislogo frances, no seu trabalho classico sabre fotografia — produzido pela impressao de uma adesao imediata do referente (a "realidade” fotogralada) representagio (0 registro fotogeéfico em si)." Entce as fontes, audiovisuais aqui discutidas, os filmes documentirios e os diversos tipos de jornalismo (no radio, no cinema e na 1¥) podem potencializar esse “efeito de realidade”, pois a busca de eventos e processos fornece o mote para a criacao. Emrelagaoa visao “subjetivista”, oexemplomaisnitidoseriaodocumento musical, dada sua natureza estética e polissémica* que sugere certa “lustoda subjetividade”, cujos significados socioldgicos e histéricos seriam produto de uma dose de especulacao por parte do historiador, na medida em que a obra teria um conjunto de significados quase insondaveis e relatives, variivel de acordo coma fruigio do ouvinte. Prova disso é a supervalorizagao da “letra” na abordagem da “cangio” como documento histérico, dominante até bem pouco tempo entre historiadores e outros cientistas socials, ou seja, a crenga de que o sentido histérico da cangio estaria restrito a0 seu contetido verbal, inuuitas vezes tomado em si mesmo ¢ apartado da estrutura musical que Ihe acompanha e, como experiéncia estética, Ihe ¢ inseparavel. O cinema, ou o audiovisual de ficgio, ocupa um estatuto intermediario entre as duas ihisies aludidas, a “objetivista” e a “subjetivista’. Seu carster ficcional e sua linguagem explicitamente artistica, por um lado, Ihe conferem ‘uma identidade de documento estético, portanto, 2 primeita vista, cubjetivo. Sua natureza técnica, sua capacidade de registrar e, hoje em dia, de criar 236 ‘A Histone depts do papel realidades objetivas, encenadas num outro tempo e espago, remetem, por outro lado, a certo Setiche da objetividade e realismo, reiteracto no pacto que ‘0s espectadores efetuam quando entram numa sala de cinema on ligam um aparelho de televisdo, A fora das imagens, mesmo quando puramente ficcionais, tem a capacidade de criar uma “realidad” em si mesma, ainda ‘que limitada a0 munde da fice, de fabula encenada e filmada. A experiéncia social do cinema e da televisdo apdia sua forga nese pacta, ainda que os mecanismos de constiéneia possam ser diferentes para cada um dos dois meios.? Em alguns casos, 0 historiador pode reproduzir esse fetiche em seu trabalho de anélise, 0 que fica claro nos casos em que a andlise é pautada pela avaliacaa do grau de "realismo” e "fidelidade” do filme hist6rico, em relagao 0s eventos “realmente” ocorridos. Fm outras palavras, é menos importante saber se tal ou qual filme foi fiel aos distogos, & caracterizaggo fisica dos personagens ou reprodugées de costumes e vestimentas de um determinado século. © mais importante ¢ entender o porgué das adaptagdes, omissdes, {alsificagdes que s8o apresentadas num filme. Obviamente, é sempre louvavel quando um filme consegue ser “fiel” ao passado representado, mas esse aspecto nao pode ser tomado como absoluto na andlise historica de um filme. A tensio entre subjetividade e objetividade, impressao e testemunho, intervencao estética e registto documental, matea as fontes histéricas de natureza andiovisnal ¢ musical. Nao é raro 0 historiador — sobretudo aquele mais treinado para a andlise das fontes escritas ¢ que passa a se aventura nas fontes audiovisuais e musicais ~ ficar um tanto indeciso entre a andlise das fontes em si, tomadas como texto documental auto-suticiente, ou cotejé- Jas com informagdes histéricas que Ihes so extrinsecas, deixando que contexto determine © sentido do texto. Nossa perspectiva aponta para um conjunto de possibilidades metodologicas pautadas por uma sbardagem freqiientemente enfatizada por historiadores especialistas em fontes de natureza nfo-escrita: a necessidade de articular a linguagem técnico-estética das fontes audiovisuais e musicais (ou seja, seus cédigos internos de funcionamento} ¢ as representacdes da realidade historica ou social nela contidas (ou seja, seu “contetido” narrativo propriamente dito). Se essa é uma tendéncia cada vez mais forte entre os Ristoriadores, que vém questionando a transparénicia dos documentos, mesmo os documentos escritos, tradicionalmente considerados “objetivos” e diretos, para 0 caso dos documentos de natureza audiovisual ou musical, tal 237 Fores ase abordagem deve ser mais cuidadosa ainda, pois 05 cédigos de funcionamento de sua linguagem nao sto ido acessiveis 20 leigo quanto parece, exigindo certa formagio técnica, Mesmo que o historiador mantenha sua identidade disciplinar e nao queira se converter em comunicélogo, musicéloge ou critica de cinema, ele nao pode desconsiderar a especificidade técnica de linguagem. os suportes tecnolégicos e 05 géneros narrativos que se insinuam nos documentos audiovisuais, sob pena de enviesar a analise. A primeira decodificacao € de natureza técnico-estética: quais os mecanismos formaisespecificas mobilizados pela linguagem cinematografica, televisual ou musical? A segunda decodificagao ¢ de natureza representacional: quais os eventos, personagens ¢ processes historicos nela representados? Na pratica, essas duas decodificagdes nio so feitas em momentos distintos, mas 4 medida que analisamos a escritura especifica do material audiovisual ou musical, suas formas de representacio da realidade vio tornando-se mais nitidas, desvelando os “fatos” social e histérico nela encenados direta ow indiretamente. O cotejo com informacdes contextuais, localizadas fora do filme, do programa de Tv ou da cangio, 6 importante, mas somente na medida em que a fonte espevifica demanda e sugere questoes € problemas para 9 historiador responder. Como em toda operasio historiogrética, critica externa e critica interna, andlise e sintese, devem estar dlevidamente articuladas. Nessesentido, ousode fontesaudiovisuaise musicais pelohistoriador pode ir além da “itustragao" docontexto oudo “complemento soft de outras fontes mais “objetivas” (escritas ou iconogréficas), revelando- se uma possibilidade a mais de trabalho historiogréfico. © debate metodolégico sobre 0 uso dessas fontes ainda ¢ incipiente, ao ‘menos no campo historiografico brasileiro, em que pese o grande nimero de trabalhos mais atentos a suas especificidades, surgidos a partir de meados dos anos 1980. Vamos a um breve resumo dos principais problemas. Uma finguagem nao-verbal ¢ néo-leonogréfica: 0 entrelugar das fontes audiovisuais musicais no trabalho do historiador “Bscreve-se Historia com documentos", proclamavam os metédicos, pais fundadores da historiogratia académica. A Histéria nasce come técnica de busca dos fatos nas "pistas” ou nos “testemunhos” fornecidos pelos 238 1 Hise depo de pape documentos de época, ou seja, aqueles que foram produzidos dentro da periodizagao estudada pelo pesquisador, o qual se debruga sobre as fontes dotado de uma técnica de critica documental. Mediante a critica extema [..] 05 historiadores conseguiram exporas falsificag6es, datar os documentos veriticos, Pela critica interna, 0 exame da coeréncia interna e a comparac3o com documentos contemporaneos,o documento adquize um sentido para o historiador [.,] Esta concepedo € muito resteta porque privilegia os documentos escritos de carder narrativo tomado femsua singularidade. Coma histéria serial ecom a incorporago dle outras linguagens documentais (imagem, filme, fotografia, estaifstieas, ete.) este tipo de concepgs0 documental fo: questionada, Por outzo lado, com o tempo o historiader tomou consciéncia que o documento é um monumento, dotado de seu Proprio sentido, a que néo pode recorrer sem precaucéo. ‘Cumpre entao restitssclo a0 contexto, aprender 9 propdsito consciente ou inconsciente mediante o qual foi produziciodiante de outtos textos ¢ lovalizar seas modos de transmissio, sew estino, suas sucessivas inéerpretagies* © conceito modemo de documento rejeita a maxima metédica “o documento fala por si”. Portanto, as armadilhas de um documento audiovisual ou musical podem ser da mesma natureza das de um texto escrito. Mas é inegvel que a maior armadilha reside na ilusio de objetividade do documento audiovisual, tomade como registro mecanico da realidade (vivida ow encenada) ou da pretensa subjetividade impenetravel do documento artistico-cultural. No trato com a imagem, como fonte, o historiador Roger Chartier jd destacava a falsa transparéncia de “conteuido": A imagem €, para o historiador, ao mesmo tempo, transmissora de mensagens enunciadas claramente, que vvisam seduzir e convence:, ¢ tradutora, a despeito de si ‘mesma, de convengies partilhadas que permitem que ela sea compreendida, reeebids, decityavelé Por exempio, nurn quadro como 0 Grito do Ipinmga, de Pedro Américo, 0 observador parece ter acesso imediato a cena historica da proclamacéo da Independéncia, por D. Pedra : esuacomitiva emurtas vezes se esquece de pensar sobre as convencdes e linguagens da “pintura histérica”, genera especitico que floresceu no século 20 e que possufa regras préprias de composicdo, para além da representacao “verdadeira” dos fatos histéricos retratadles. 239 Fons Hien| Enunciagio direta ¢ convengio de linguagem sio os pélos de tensio no trabalho de andlise das imagens-sons registradas mecanicamente, como no cinema ¢ na televisao. Fundamentalmente, no entanto, essa tensio também ocorre na anélise do documento escrito, mesmo naqueles mais oficiais e informativos. Na perspectiva da modema pritica historiogréfica, nenhum documento fala por si mesmo, ainda que as fontes primérias continuem sendo a alma do oficio de historiador. Assim, as fontes atidiovisusis e musicais s40, como qualquer outro tipo de documento histérico, portadoras de uma tensio entre evidéncia e representasio. Em outras palavras, sem deixar de ser representagao construida socialmente por wm ator, por um grupo social ou por uma instituicao qualquer, a fonte é uma evidéncia de um proceso ou de tum evento ocorrido, cujo estabelecimento do dado bruto é apenas o comeco dle um proceso de interpretacio com muitas varidveis. Ao contrério da tradigdo metédica e positivista, que acteditava na neutralidade e na transparéncia das fontes eseritas, desde que “verdadeiras”, estabelecicias sua autoria e datacao, a Nova Histéria e seus herdeiros apontam para o cardier representacional das fontes, inesmo as tradicionais fontes escritas, que s80 documentos e monumentos carregadis de intencionalidade ¢ parcialidade.” Em que pesem essas questoes metodologicas gerais, cada tipo de fonte audiovisual e musical possui caracteristicas peculiares, conforme a sua linguagem constituinte. Problemas teéricos Cinema Ocinema descobrit a historia antes de a Historia descobsi-lo como fonte de pesquisa e veiculo de aprendizagem escolar, No inicio do séeuilo xx, 05 “filmes histéricos” quase foram sindnimo da idéia de cinema, tantos foram os filmes que busearam na historia 0 argumento para seus enredos® Nunca é demais reiterar as trés possibilidades basicas de relacdo entre histéria e cinema: O cinema ita Historia; a histdria no cinema e a Histéria do cinema. Cada uma das trés abordagens implica uma delimitagao especifica: O cinema na Histiria € o cinema visto como fonte primaria para a investigacao Ristoriografica; a histéria wo cinema é 0 cinema abordado como produtor de “discurso hist6rico” ecomo “intérprete do passado";e, finalmente, a Historia do 240 | Hintca dep do papel cinema enfatiza o estudo dos “avancos téenicos” da linguagem cinematogréfica econdigdes sociais de producdo e recepeao de filmes“ Neste texto, enfatizaremos a primeira abordagem, com algumas consideracées sobre a segunda, na medida em que o historiador € constantemente chamado a se posicionar sobre o “filme histérico”, Nesse tipo de filme, o cinema como fonte para o estudo de um determinado contextoe ocinema comorepresentacaodo passado se confundem. ‘Numa perspectiva mais acurada, o historiador e pesquisador decinema Eduardo Morettin aponta quatro maneiras pelas quais a historia se manifesta no cinema:!® Uheranca positivista: preocupagdo com a exatiddo da reconstituigso filmica do passado ou com o registro mais fiel possivel de eventos ocorridos; Opredoninio da ideologia (“discurso ideoldgico”) dos realizadores sobrea historicidade, subvertendo o sentido dos personagens e dos fatos; Dapelo ao “discurso novelesco”, predominant a0 discurso histérico, tomando mais sutil a “subversio" dos fatos ¢ processos; Doriacdo de uma narrativa histérica propria, que opera dentro do discurso histérico instituido, utilizando técnica de citagdo bibliogratica e documental, legitimada por pesquisadores. © que est em jogo, portanto, séo varias opcdes de representacdo cinematogréfica da historia que terdo implicagdes ndo apenas estéticas, mas ideolégicas, completamente diferentes. Em muitos casos, essas quatro maneiras interpenetram-se, exigindo do historiador um olhar atento que va além da iradicional dicotomia entre “realismo” ou “ficgéo”, ou filmes documentais tomados como tealistas ¢ filmes ficcionais tomades como fantasias hist6ricas, O historiador Claudio Aguiar Almeida chama a atencao para a importancia da andlise historiografica nao se limitar a filmes de carter documentai, como se eles fossem testemunhos mais autorizados de uma sociedade, pois o longa-metragem ficcional, independentemente de sua “qualidade” ou reconhecimentoa partir de valoresestéticos, também pode ser percebido, porpartedo ptiblico, como fonte de "verdadehistérica”. Analisando a producao brasileira das décadas de 1930 ¢ 1940, tradicionalmente desvalorizada pela critica, o autor destaca que “grande parte das produgdes 241 Fes bine do perfodo esconde, sab a aparente simplicidade dos seus enredos mnelodraméticos, uma compiexaestratégia propagandistica que, sem pretender espelhar a realidade, buscou influenciar as massas para adlerirem aos ideais defendidos pelo Estado Novo"! Assim, para quem se dispéeaanalisarocinema como parte da propaganda politica, digarse, tema muito instigante dentro do campo da Historia politica, documentérios, cinejornais e filmes de ficgio constituem um corpo dacumental muito rico e ainda pouco explorado.* Conforme Alcides Ramos, professor e pesquisador de cinema, os historiadores de inspiracdo positivista enfatizam o carater realista des imagens cinematograficas, registradas por um “instramento objetivo” - a c&mera ~, cariter que é muito mais acentuado quando o documento filmico se filia & categoria de cinejomais e documentéios de atualidades.” Para essa corrente de historiadores, ctiticada pelo autor, ba uma crenca de que o documentatio restringe a capacidade de manipulagao da “linguagem’, pois a objetividade do instrumento cinematogréfico & gritante ante um evento efetivamente acontecide, ¢ nao encenado, Os historiadores mais identificados com a concepgio positivista de documento como “testemunho objetivo e verdadeiro de um fato” acreditam que a possibitidade de “falsificacdo documental” no cinema 6 0 resultado da montagem de planos que podem realizar uma teucagem de documentos/fatos originalmente auténticos.™ Nessa linha de pensamento, 0 material filmado deveria ser analisado pelo historiador como portador de uma autenticidade documental, perdida ou ameagada no provesso de montagem (manipulacio dos planos pele diretor ou pelo editor), Alguns historiadores que pensaram a qnestio do cinema como fonte hhistérica ainda trabalham com uma dicotomia bastante rigida entre os actility {films (documentarios) e os featured films (filmes encenados)."* No primeira tipo, conforme essa visdo, cada plano, seqiiéneia ou producéo completa é um registro primdrio do passado ¢ seu conjunto editade transforma-se num documento em si; no segundo tipo de filme fem contraste com os filmes decumentals, sua utilidade como {onte histérics tem valor reduzidose os hragmentamos na ordem inversa da sua criagfo: da producio completa para a seqiiencia © plano, Sua utilidade ¢ maior quando ele esta editado e completo. Ao contririo, materials go editados de filmes docamentais s8¢ mais valorizados como fontes primérias do que um filme documental editado € completo, exeetn que este, assim como o filme de ficeao editado, tem valor simplesmente coma afirmacio do ponto de vista do seu etiador* 242 A Hin soos oe aed [A preferéncia histortogréfica pelos actuaity films e a desconfianca em relagio & “manipulagio” do material filmado so tributérias originalmente de uma tradigao iniciada per Mare Ferro, que possui o mérito de ter sido ‘um dos primeiros historiadores de oficio a refletir sobre o filme como material de pesquisa, numa perspectiva além da Histérla do cinema stricto sensu. Entretanta, seu ponto de vista teérico compartitha a crenga de que o documento filmico possui valor de “testemunho” indireto e involuntario de um evento ou processo histérico ¢ sua veracidade ou nio estaria diretamente ligada a manipulagdo intencional dos realizadores (edigo, trucagem, censua), no sentido de deturpar o seu contetido original. Suas famosas concepgdes de filme como “agente da histéria” ou camo exemplo de “contra-analise da sociedade” implicam a erenca de que a ficco, o documentario e o naticiério intervém na sociedade como “testemunhos indiretos” de processos sécio- histéricos. Ferro afirma que “mesmo fiscalizado, um filme testemunha” e é& nessa brecha que o historiador deve atuar, atento para as manipulagtes do documento primario. Alcides Ramos explicita a concepeao de “testemunho” de Ferro: “registrar mediante a utilizagaio de meios ténicos € neutros aquilo que se apresenta como realidad diante da camera”. Esse processo ocorreria independentemente ou mesmo contra a vontade do operador da camera e do diretor do filme. Assim, 0 filme seria um documento afeito a uma “contra- andlise” da sociedade, critica da Histéria oficial. A fiegdo e documentirio podem revelar aspectos sdcio-histéricos nao previstos pelo realizador, na medida em que o historiador possa perceber a realidade bruta por trés da obra lapidada. Em siltima instancia, para o autor, hd uma realidade extema a0 document, & qual este pode ser fiel ou nao. Ascriticas que a nova historiografia, brasileira e estrangeira, vem fazendo Ferro enfatizam o cardter de manipulagio intrinseco & linguagem do cinema, focando as escolhas dos realizadores manifestadas no enquadramento, didlogos e edigao, entre outros elementos, Além disso, apontam para certas lacunas na maneira como Ferro pensa a relagio entre histéria e cinema: como a finguagem intringeca ao filme, seja ele documentario ou ficgao, interfere no registro de um evento, de um processo ou de um personagem de valor “histérico”? Como o filme com tema histérico, documental ox fiecional traduz © presente ao representar o pasado? Quais sfios as tensdes intemas do filme, 243 Frnts hatin pensadas a partir da sua estrutura narrativa, na tentativa de registrar ou representar fatos histérieos? © pesquisador Eduardo Morettin sistematizou algumas dessas criticas.”” De acordo com ele, as tenses intemnas de um filme vao além do jogo “histéria oficial” ou “contra-histéria”, da “manipulagio” filmica em oposicio a uma “verdade” por tris do filme, como coloca Ferto. O que € mais importante, para 0 pesquisador brasileiro, € perceber a ambigtiidade das imagens que ‘nem sempre conseguem apresentar uma leitura coerente € univoca do fato hhistérico, mesino quando 6 0 desejo dos seus realizaderes, como nos filmes histéricos patrocinados pelo Estado, Morettin lembra que Ferro chegou a propor uma metodologia para avaliar a “veracidade” do documento fiimico, conseqiientemente do valor do filme como documento histérico: angulo adotado pela cdmera, distancia das imagens de um mesmo plano, grau de legibilidade das imagens e da iluminacio; grau de intensidade de acio, grau de pelicula (mais afeita a trucagem ou nao). Tal metodologia deveris avaliar se o documento filmico ¢ auténtico ou nao, em relagdo aos fatos registrados, Menos “manipulagao” do material bruto filmado significaria mais veracidade. © problema esté em separar, no cinema, o que é “manipulagéo” e “adulteracio” dos eédigos narrativos bésicos que estruturam a imagem filmica e que sdo compartithados, guardadas as diferencas de estilos, géneros ¢ linguagens, pelo conjunto de cineastes. A nova historiografia que trabalha com filmes como documentos histéricos vem chamando a atengao pata os “abusos” ¢ problemas decorrentes dessas posigdes metodologicas classicas, sem o devido exercicio critico. Eduardo Morettin cita trés visdes distorcidas acerca do documento filmico: 1D filme como contraponto/complemento do documento escrito; 1D filme como registro mecinico do real, sem linguagem (ou linguagern como “manipulagao”,evitsvel pelo cineasta). Nesse caso o filme seria uum “documento brute”; U filme como resgate do passado ¢ testemunho do presente prentincio do futuro (no sentido de apresentar uma anteviséo do, que seré ou do que deveria ser a sociedade encenada).” 244 A ‘A Haina dense de prea Em cantraposigio a essas armadilhas de abordagem, Morettin propde o exame de como 0 sentide ¢ produzido [..[ para que possames recuperar © significado de uma obra cinematografica, as questiies que presidem o seu exame devem emengir le sua proptia andlise. A indicacio do que 6 zelevante para a resposta de nossas quostées ‘em relacio 20 chamaco contexta somente pode ser alcangeda depois de feito o caminho acima citado, © que signifiea aceitar todo e qualquer detalhe (do films) [..] trata-se ce desvendar os projetos ideoldgicas com 0s quais a obra dialoga ¢ ecessariamente tava contata, sem perder de vista a sua singularidede dentro do seu contexto. 7 Analisando Descobrimento do Brasil, de Humberto Mauro, considerado filme “oficial” ¢ “pedagégico”, representative dos anos 1930, Morettin demonstra a dificuldade de controlar o discurso oficial dentro do filme, pois. seja pela precariedade técnica do cinema brasileiro da época, seja pelo carster ambiguo das imagens cinematograficas, o filme nao se realiza plenamente como propaganda oficial ou coma espetculo pata fins pedagégicas. ‘Nessa perspectiva, que nos parece mais fecunda,o filme se traduz como uma “phuralidade de canais”, conforme expressio do professor e eritico de cinema Ismail Xavier. Portanto, nem as “manipulagies” sao evitaveis pelo dixetor, nem as contradigaes internas do filme representam indicio de “falsificagdo”, tornando-se um trunfo de andlise para o historiador. Retomando Pierre Sorlin, pesquisador francés,® Morettin e Ramos enfatizam que ohistoriador deve “partir dos proprios filmes”, de sua significacao interna, 4 partir da qual se insere determinadia base ideoligica de representagao do passado, Portanto, a questio da autenticidade e da objetividade do registro, importantes na perspectiva cléssica de Ferro, pouco importam. Trata-se de buscar os elementos narratives que paderiam ser sintetizados na dupla pergunta: “o que um filme diz e como o diz”. Alcides Ramos chama a atengao para um problema especifico da relagao cinema-historia, que é a representagio filmica do passado, na qual ficaria superada a perspectiva do filme como documento stricto sensu. Ramos lembra que “os historiadozes podem também se interrogar sobre © modo de constituicio da escritura da histéria pelos filmes, mesmo realizados por nao historiadores” ¥e destaca a questo especifica do “filme hist6rico”, um outro tipo de fonte (e perspectiva) para pensar a relagio hist6ria e cinema. Pierre Sorlin, ao definir 0 “filme histérico”, den importante contribuigdo a fim de 245 Foie hats delimitar um género cinematogréfico que, dentro do campo ficcional, encena © passado com os olhos voltades para o presente. © filme histérico é um “espidio da cultura histérica de um pats, de seu patrimdnio historico”. Trata- se de um outro olhar sobre o cinema, como fonte ¢ veiculo de disseminagao de uma cultura histérica, com todas as implicagées ideoldgicas e culturais que isso representa. Na definigao de filme histérico, Pierre Sorlin estrutura sua forma de pensar a relagao cinema-histéria em tés proposigdes bésicas: 1 relacio presente/passado: o filme hist6rieo ancora-se no presente {produgao/ distribuigio/exibiggo) ¢ no passado {datas/eventos/ personages que marcam o tema dos filmes); (1 _ filmes histéricos sio formas peculiares de “saber histézico de base”. Eles nao criam esse saber, mas o reproduzem eo reforgam. O filme histérico est4 insetido numa cadeia de produgio social de significados que envolvem historiadores, criticos, cineastas e publ 1D problematizagao da “narragio filmica da histérla”: tensao entre ficcdo e histéria, ou seja, entre documentos nao-ficcionais € imaginacdo /encenacdo ficcional. Nesse sentido, a narrativa filmica ea historiografica estruturam-se como formas de narragio literiria, coma particularidade de esta tiltima buscar efeito de realidade /verdade. Do ponto de vista mais amplo de uma “sociologis do cinema”, Pierre Sorlin propde algumas perguntas sociolégicas basicas para a andlise sécio- histérica do filme: como o filme representa, por meio dos seus personagens, 08 papéis sociais que identifica as hierarquias e lugares na sociedade representada? Quais os tipos de conflitos sociais descritos no roteiro? Quais ‘as maneiras como aparecem a organizacao social, as hierarquias e instituigdes sociais; como se dé a selecao de fatos, eventos, tipos e lugares sociais encenados? Qual 6 a maneira de conceber o tempo: histér biografico? O que se pede ao espectador: identificacdo, simpatia, emogio, rejeigdo, reflexdo, co-acdo?* Outros historiadores, mesmo nao sendo especialistas em cinema, destacam a capacidade dos filmes nao apenas de registrar 0 pasado ¢ 0 social ou contexto social, mas de criar uma meméria hist6rica propria: A Hiain dep do ppl ‘Um certo segmento do cinema brasileiro se instituin como “lugar de meméria”, once divetores,roteiristas, atores e produtores, bem como o proprio piihlico que prestigiou os filmes, se csforyaram em retomare monumentaiizar certos acontecimentos ou problemaiicas da historia do Brasil °° Filmes como htdependéncia ou Morte (1972), de Carlos Coimbra, ou Carlota Foaguina (1995), de Carla Camurati, grandes sucessos de piblico, contribusram de maneiras diferentes para fixar determinada imagem do periodo da Independéncia, seja pelo viés oficial e melodramético (Independéncia..), seja pelo viés satirico da chanchada {Carloét...). No caso, essas imagens do passado propiciam muito mais formas de memoria - oficial ou debochada ~ do que a reflexao histérico-eritica daquele momento da histéria brasileira. Para a nova historiografia especializada no cinema como fonte e objeto da Historia, ocorre um duplo afastamento em relacdo as teorias mais antigas: Onega-se a énfase ao documentatio de atualidades, tio marcante nos primeiros historiadores que abordaram o problema; Deritica-se a idéia do carter imprevisto da encenagio ficcional do passado, trazendo uma outra verdade sobre a sociedade, Para essa corrente, ficgdo e histéria, no campo do cinema, nao se auto- excluiem, intesferindo mesmo no género documentitio, que a principio seria a negacho da ficgdo, Enfim, cinema é manipulacio ¢ é essa sua natureza que deve ser levada em conta no trabalho historiogratico, com todas asimplicagdes que isso representa. Vale a adverténcia de Eduardo Morettin: Se no conseguirmos identificat, por meio da andiise filmice, 9 discurso que a obra cinematografica constrdi sobre = sociedade na qual se insere, apontando para suas ambiguidades, incertezas ¢ tensdes, 0 cinema perde a sua efetiva dimensio de fonte historica Televiréo Os historiadores, no Brasil ¢ no exterior, ainda no descobriram a televisao como objeto de pesquisa. Nao se trata apenas de uma questao de preconceito tematico ou dificuldade metodolégica. A propria televisio, talvez devido ao seu cardter de produto cultural volatil, tem muita dificuldade em guardar e sistematizar a sua propria meméria, Na medida em que os érgtios 247 Fonts hati € arquivos publicos nao assumiram a guarda do material televisual como parte de uma politica de preservagio de patriménio, a maioria dos arquivos existentes € privada e pertence as proprias emissoras, que, por sua vez, 0s tratam como desdobramento das suas atividaces comerciais. Portanto, dos trés tipos de fontes aqui analisados, as em video, sobretudo aquelas produzidas pela televisdo comercial, sao as que apresentam maiores dificuldades, nao apenas tedrico-metodolégicas, mas principalmente quanto a0 acesso sistematico e organizado de fontes de época. Apesar desses problemas, alguns trabathos historiogréfices pioneiros devem ser mencionados, sem falar naqueles também importantes nas areas de Comunicacdo e Sociologia, que podem fomecer & Historia bases tedricas gerais na abordagem da televisao. Devido aos limites deste texto, vamos destacar os trabalhos voltados para a relagao enite histéria e televisao* A maior parte da bibliografia aponta questées amplas sobre as diversas fases da televisdo brasileira, desde o seu surgimento na década de 1950, com alguma énfase na inddistria de telenovelas, de longe o tema mais estudado pela historiografia da televisao. Sao trabalhos ensaisticos, amplamente ancorados ‘em fontes escritas e matérias de imprensa. Esse aspecto nao deixa de ser revelador da dificuldade de acesso ao material audiovisual propriamente dito. A importincia desses ensaios, entretanto, deve-se ao seu carter pioneiro e amplamente informativo, que esmitiga nao apenas as estruturas empresariais da televisao brasileira, mas também seus géneros consagtados e seu impacto social na modernizago sociocultural. A maior parte das fontes primérias utilizadas nesses trabalhos foi entrevistas, memérias, sinopses ¢ textos de novela, indices de audiéneia, documentagao institucional das empresas televisuais (faturamento, normas e documentos intemos ete.) O trabalho de Armand e Michelle Mattelard procura inserir a construgao do melodrama televisual latino-americano, particularmente obrasileiro, numa teia de continuidades e rupturas com outras linguagens da historia da cultura, marcando a memdria social, elemento fundamental para a reflexao histérica sobre o meio e seus contetidos: “Fato marcante da memséria narrativa de um continente, 0 melodrama transitara pelo cinemna, pelo rédio, folhetins, fotonovelas, cangdes ¢ televistio.” ” Os autores articulam a andlise de wma espécie de “economia politica da televisio” com as narrativas visuais produzidas, numa perspectiva sécio-histérica, afirmando: 248 i A hace depos do oma © poder catartico do género {melodrama televisual) sua ‘empatia com 0 publico 0 definem coro um fato excepcional de ‘comuicaqo, fato ecuménico¢transclassista, Porérnndose pode feaquacer 0 carster social do que ¢ representséo.” Aw Globo, principal objeto de reflexdo do livro, por exemplo, favoreceu um esquema de representacdo do Brasil centrado na Zona Sul do Rio de Janeiro, dentro de um projeto de integragéo nacional autoritéria, gestado na década de 1970. Além dos espagos sociais, psicolégicos e geogréficos implicados na produgdio televisiva, sobretuco na teledramaturgia, o passado tem sido objeto de sepresentacdo nas ficgdes televisuais e constitui-se num importante teara para o historiador, ainda pouco explorado, Uma das primeiras pesquisas historiograficas a esmiucar 0 material audiovisual produzido paraa televisdo foi a realizada por Ménica Kornis, pesquisadora do cepoc, da Fundacao Gettilio Vargas. Aproveitando-se, em parte, da facilidade de acesso a0 material audiovisual de produgao relativamente recente, a autora analisa um conjunto de seis minisséries - Avios Dourados, Anos Rebeldes, Agosto, Incidente em Antares, Decedéncia ¢ Hilda Furacio, A partir das imagens ficcionais, 0 trabalho articula a narrativa melodramética a representagao do passado, dentro ce uma estratégia definida pela propria tv Globo. A autora conclu que, ao fim e ao cabo, é a propria midia que se auto-representa nas séries histéricas analisadas, para sé afirmar como agente da histéria recente, muitas vezes escondendo suas contradicdes ideolégicas™ Qutro campo de produgdo da meméria e do discurse histérico na televisdo de grande impacto social, também pouquissimo explorado, é 0 telejornal. Em Como user a rv na sala de auta (Editora Contexto), apresentamos sum esbago de nma teoria da produgao da memoria social nos telejornais que vale @ pena ser retomado.* A produgéo de uma meméria social, sempre vinculada A Idgica de espeticulo que rege a linguagem da 1v, esté ligada a uma operagio articulada no génezo telejornal (mas nao 36) que, a nosso ver, eavolve trés momentos: o registro do D4D0; a caracterizagdo do FATO; ea natrativa do evewro. Um mesmo acontecimento histérico, dependendo do sewimpacto social ou do seu interesse para a micia, passa pelas trés operagbes. Na primeira delas (0 regisiro do dado}, o acontecimento é registrado e repassado ao ptiblico em suas informacées basicas (0 que, quando, onde, 249 Fete ities quanto ete.). Na segunda operagao (a earacterizagdo do fite), esse conjunto de informacées brutas é inserido numa rede de causalidade e efeitos imediatos. Na terceira fase (a narrativa do evento), quase sempre reservada a acontecimentos de grande impacto social ou de importancia estratégica para os interesses da micia, os elos causais ganham a conotacao nazrativa e valorativa, adensados por um conjunto de implicacdes socisis de caréter ideolégico mais amplo, Cabe ao historiador que analisar tal documento realizar 0 movimento inverso dessas operagdes, desconstruindo os fatos descritos ou 0s eventos narrados pelo documento televisual. De um ponto de vista mais tedrico, as andlises da midia parecem exigit reflexio acurada sobre o problema ndo apenas da producio e das questies de linguagem af envolvidas, mas também sobre o problema da recepca0 dessas imagens pelos grupos socials. A midia, quase sempte, foi pensada a partir do primeiro pélo, o da produgao, mas trabalhos recentes procuram encarar o desafio da recepgao como parte do problema estrutural complexe e nao subsumido pela logica da produgao." A imagem televisual, nesse sentido, apresenta um duplo desafio: por um Jado pode set analisada como fonte hist6rica, pensadaa partir deseuselementos estruturais internos: por outro, dado o grande e heterogéneo impacto social domeio,a questo da recep social dos seus produtos coloca-se come tarefa urgente para aqueles que se preocupam com uma Hist6ria social da Tv. Mas, se 0 acesso aos materiais televisuais produzidos no pasado ja nao é tao fell, a constituiglo de um corpus documental que permita uma andlise da recepeéo social dos programas éum obstéculo ainda maior para ohistoriador. As fontes, seriadas e quantitativas (indices de audiéncia, por exemplo) podem ser 0 primeiro recurso documental para uma Histéria social da recepgto de programas televisuais. Para a anélise qualitativa desse campo, no entanto, as fontes sio praticamente inexistentes, estAo desorganizadas ou sho inacessiveis (cartas de £85, relatérios qualitativos de axidiéncia, enquetes etc.. Algumas perspectivas tesricas ajudam a constituir teorias da recepeao ““qualitativa” da Tv, pensada a partir das pecutiaridades de linguagem desse meio. Umberto Eco, um dos primeiros autores que analisou a linguagem da tv, no inicio dos anos 1960, demonstravaa preocupagiode construir uma reflexao metocolégica para enfrentar 0 problema.’ No seu projeto de pesquisa sobre 0 meio televisual, Eco chamaya a atengao para que o pesquisador nao se limitasse 280 ate ec ee 1A Holi depo do wapel unicamente 20 péilo da produgo, como enfatizava a concepgdo adorniana de inclistria cultural, sugerindo um conjuntode problemasa serem abordados pelo comunicélogo e pelo socidlogo: situacées do espectador diante do video, alteragies no ritmo de vida familiare cotidiana pds o surgimento da Ty; frnigao de outros meios e circuitos culturais; mapeamento da hipertrofia sensorial, em detrimento da assimilacao conceitual, como suporte para 0 conhecimento do mundo; supervalorizacao da tealidade imediata como base para o evento televisivo, em prejutzo de uma assimilagdo mais lenta e duradoura das cexperiéncias passaclas. Anos mais tarde, Michel De Certeau, historiador francés, avangava em relacao ao problema da recepgao, propondo um outro axioma que pudesse superar 0 conceito vigente de receptor “teleguiado” pelos interesses ideolégicos do pélo produtor. “Restaainda perguntaro gueoconsumidorfabsrica comestas imagens (de 17] e durante essas horas.” Para ele, o receptor também produz sentidos, por meio de apropriagdes simbslicas,filtradas pelo repertério cultural de cada um, pouco perceptiveis pela sociologia mais tradicional. Francesco Casetti e Roger Odin sugeriram uma tipologia de linguagem que poderé auxiliar 9 histotiador 2 mapear o impacto e também na recepeao social da televisio desde a sua disseminagéo pelo mundo, a partir do final da década de 1940, Trata-se dos conceitos de palea e neo-televisao. A paleo- televisio, para os autores, vigorou até os anos 1960, sendo evidenciada pelas seguintes caracteristicas basicas: a) a existncia de um “pacto” de comunicagio com uma instituiglo que detinha “saber” e “valores” comunicavaa um piiblico que desejava partillé-los; b) uma estrutura de programagdo que se baseava em géneros cle programas ditecionados a puiblicos e interesses espectficos; c) grade de programacao que sugeria uma “escolha” por parte do puiblico, movimentando-se no eixo paradigmatico de comunicagao (opcdes exchudenies). Jéa neo-televisio, catacteristica da tv pés-1970, é assim detinida: 4) programasao conduzida por um proceso de interatividade cada vez mais sofisticado (¢ nao por um pacto pedagégico-comunicacional); b) estrutura de programas que tende a diluir a fronteira de géneros de programas direcionados a puiblicos especificos, substituindo 2 escolha (eix patadigmatico) pelo fluxo continuo de programacio (eixo sintagmatico); ¢) lum convite & vibragdo emocional ¢, principalmente, sensorial e ao convivio virtual com as celebridades, ambientes e personagens de tv, mais do que ‘uma incorporaggo conceitual das mensagens por ela veiculadas.” 251 Foner bac Para o historiador que se preocupa com a representagao do passado na televisao e com a producao da meméria social a partir desse meio, é preciso pensar a televis4o como uma nova experiéncia social do tempo histérico, na medida em que “a Tv fez coincidir o verdadeiro, o imaginério e o real no ponto indivisivel do presente”. A tv favorece e amplifica a experiéncia do tempo, mas nao a consciéncia do tempo. Nela, a “atualidade”, a exiggncia sensorial de uma co-acdo (agir junto) ganha maior dimensao, mas essa mesma “atualidade” é constantemente desvalorizada pelo ritmo alucinante da sucesso das transmissdes televisuais, volatizando a experiencia histirica.”” Portanto, akém de “testemunho” de um determinado momento histético, a televisdo interfere na concepgfo de tempo histérico e nas formas de fixagéo da memiéria social sobre os eventos passados e presentes. Esse aspecto de ordem teérica ¢ fundamental para o historiador, pois, no limite, ele estard presente no proprio material audiovisual analisado. Outro aspecto que nfo pode ser esquecido € que, atualmente, as experiéncias sociais do cinema e da televis4o estio muito imbricadas, com a invasao da linguagem cinematogréfica pelas regras do melodrama televisual e, ultimamente, pelos aiéeo gantes, o que constitu um problema que escapa 0s limites deste texto. Esse fendmeno de hibridizacao de linguagem audiovisual 6 acompanhado pela migragao de pitblicos, com a crescente ‘hegemonia de um priblico criado sob as regras da televisto e dos games demandando filmes cinematogréficos. Em contraponto, torna-se cada vez ais comum a assimilacio da experiéncia filmica em ambientes domésticos, cada vez mais capacitados pata recriar a qualidade de imagem e som das salas de cinema, Esse cruzamento de espacos, narrativas e linguagens deve se tomar mais nitido nos préximos anos e nao pode passar despercebido nas pautas de discussao e pesquisa. Finalmente, nao se pode deixar de enfatizar que nem toda produgéo em video esta direcionada para a televisao comercial, aberta ou fechada.” Os historiadores tendem a ter maior interesse pelo cinema, uma vez. que, persado ‘em sua forma classica, “estaria morrendo, devorado pela televisio”. Apesar do parentesco audiovisual, do ponto de vista do registro da vida social, cinema ¢ televise divergiziam na medida em que a televisdo é pouco seletiva, buscando noticias nos diversos aspectos da existéncia. J4 o cinema, particularmente o filme de fice4o, no se mistura com aquilo que estamos 252 A Hina depos do pine vivendo cotidianamente.* Entre os dots, ha um estatuto intermediério, 0 video, que nem sempre € produzido para ser exibido na televisio (tais como os campos do video independente, do video experimental ¢ do video-arte). Temios, portanto, um terceito grande grupo de documento histérico de natureza audiovisual, que genericamente poderiamos chamar de "video independente”, exigindo outro tipo de critica interna e externa. Video independente © campo de produgao conhecido genericamente como “video independente” oferece ampla érea de pesquisa para o historiador, com a ‘vantagem de que boa parte do material produzido a partir de 1980 pode ser ‘encontrada e pesquisada sem maiores impedimentos. O “video independente” estd ligado a dois tipos de expressao: Qa producao com intengdes de pesquisa estética feita por videomakers que procuraram escapar das regras rigidas e dos compromissos exigidos pela produgio comercial voltada para a 1v (telejornalismo, teledramaturgia, videoclipe ou publicidade}; Qa produgao ligada aos movimentos sociais urbanos ¢ rurais que procuram registrar suas acées politicas e institucionais, constituindo- se num importante material de meméria de lutas sociais e politicas que pode se transformar em documento histérico extremamente fecundo. Atos pablicos, passeatas, greves, assembldias, experiéncias educacionais e culturais, o cotidiano de militantes conhecidos e atores andnimos desses movimento tem sido objeto constante de registros videogréticos, realizados multas vezes pelos préprios movimentos ou por produtores simpatizantes. Esse tipo de fonte audiovisual oferece ao pesquisador um olhar diferenciado da imprensa televisiva, constituindo uma espécie de discurso audiovisual interno aos movimentos, livre de certos vicios ideolégicos liberais, quase sempre hegeménicos do discurso da televisdo comercial Nao se trata de decidir qual a fonte mais “verdadeira”, mas ampliar 0 escopo decumental na abordagem dos processos e fendmenos sociais estudados pelo historiador. 253 feats btinces| Miisica Grosse modo, a abordagem académica da musica divide-se em trés grandes Areas: a Musicologia hist6rica, a Etnomusicologia ¢ um terceito campo, ainda confuso, que poderiamos chamar de “Estudos em mtisica popular”, congregando Sociologia, Antrapalogia e Historia, Nesta secao, por limite de espago e de competéncia, enfatizaremos este iiltimo objeto, delimitando suas possibilidades como fonte histérica No campo dos “Estudos em muisica popular”, os historiadores de oficio mais uma vez chegaram atrasados. A Area de Letras e as Ciéncias Sociais ja haviam descoberto a cangao e consagtado algumas abordagens antes dos historiadores utilizarem a muisica como fonte para Histéria. Aqui nao estamos considerando a vasta produgao das “Historias da musica”, erudita ou popular, muuitas vezes esctitas por jornalistas diletantes ou eruditos. Os trabalhos historiograficos de José Ramos Tinhordo, historiador ¢ eritico musical constituem-se, desde os anos 1970, numa tentativa de estabelecer uma historiografia da miisica popular mais ancorada em fontes primarias. Entretanto, a maior parte das fontes por ele utilizadas € de natureza escrita, 0 que permite ao polmico autor tecer consideragdes de ordem socioldgica (e ideolégica) muitas vezes desvinculadas da andlise do material musical ¢ attistico, Do ponto de vista musicolégico, Tinhordo centrou suas andlises na sucessio de géneros musicais brasileiros, tomando-os como hegemdnicos em determinadas épocas (choro, samba, samba-exaltagao, samba-cangao, bossa- nova, cangio de protesto, Tropicélia etc.}. O uso de fontes escritas (aiém das “letras” das cangées) para a pesquisa histérica em tomo da miisica popular mereceria uma discuss4o especifica, pois no caso da muisica brasileira essa opgao heuristica tem dado o tom das andlises e da organizagao de uma pauta de conteridos historiograficos. As erénicas de época, memérias, autabiografias, entrevistas (radiofénicas ou impressas), artigos de critica musical, matérias de imprensa, entre outros tipos de fontes escritas, foram mais utilizados nos estudos de misica popular no Brasil do gue fonogramas, partituras ou performances registradas em video. Obviamente, néo se trata de menosprezar as fontes escritas ndo-musfcais para o estudo da musica, sobretucto a miisica popular, mas de destacar a importancia da incorporagio do material musical, em forma de partitura, fonograma ou video pelos historiadores, operacio que nao é tao simples do 254 | (A Has depo de para ponto de vista metodolégico. No caso da muisica popular, uma mesma cangio assume significados culturais e efeitos estético -ideolégicos diferenciados, dependence do suporteanatisado: sna partitura original (quemuitasvezesnem existe como dacumentoprintério, sendode trenscrigio posteriorao fonograma), seus registros em fonograma e suas performances registradas em video. Ao contrério do cinema ~ rea em que hd uma tradigdo consolidada de critica e andlise académica de filmes ~, os estudos musicais académicos pouco dialogam com a critica especializada, que até pouco tempo nem era 80 especializada. Por outro lado, os aportes tedrico-metodolégicos da Musicologia histérica ¢ da Emomusicologia, areas de tradicio acaciémiica mats consotidada, padem distorcer os resultados de pesquisa, quando aplicados mecanicamente ao campo da “rmisica popular”, Basicamente, a diferenga entre as trés dreas de estudos musicais reside néo apenas nos métodos, mas no objeto de pesquisa: a Musicologia historica concentra-se no estudo da vida 2 obra dos compositores e das formas eruditas. A Etnomusicologia enfoca estudo das formas e manifestagées musicais dos grupos comunitarios, de carater socialmente integrador ou ritualistico, cuja pratica musical nao esta voltada, @ priori, & industrializagio € ao consumo massificado. Se a primeira trabalha, prioritariamente, com a andlise de partituras, com a evolucao dos instriamentos musicais ecom a documentagao escrita gerada por compositores @ criticos, a segunda tende a enfatizar 0 “trabalho de campo”, no qual 0 etmomusicélogo faz 0 papel do etndgrafo, produzindo uma determinada documentagio a partir dos seus "informantes” (os agentes de uma determinada performance musical), Essa etnografie musical pode ter varios suportes: video, fitas magnéticas ou mesmo partituras transcritas pelo pesquisador a partir da audigao de uma performarice musical. Portanto, no caso de Etnomusicologia, temos a produgao constante de fontes audiovisuais, como parte do trabalho de campo do pesquisador. Esse material, com o passar dos anos, pode se constituir num corpus documenta a ser utilizado por historiadores da cultura e da muisica, que irdo se debrucar sobre 0 material etmogréfico transformado em fonte histérica.®* A critica documental, nese caso, deve ter consciéncia que existem dois niveis de Tinguagem envolvidos: em primeiro lugar, a performance, individual ow coletiva, do “informante” (0 muisico comunitario que executou a obra); em segundo luger, o othar do etnomusicélogo fazendo 0 papel do etndgrafo, ou 255 Fons Hee seja, aquele que registra e descreve os tragos culturais de um grupo social percebido em sua alteridade. © historiador, por sua vez, ao trabalhar com esse tipo de fonte aucliovisual defronta-se cam um dilema bésico que se traduz na pergunta fundamental diante das fontes: qual é o meu objeto principal? A pritica musical do grupo social “nativo”, registrada em sons e imagens, ou a perspectiva do pesquisador que a registrou? As duas abordagens sto possiveis, mas envolvem problematicas e estratégias de andlise completamente diferentes. Na anélise da chamada “musica popular” produzida pela industria fonogrifica e audiovisual, a questio das fontes coloca-se de outra maneira. O suporte privilegiado de boa parte da produgdo musical urbana, voltada para o mercado, é 0 fonograma. A partir do final da década de 1980, 0 videoclipe e a apresentacéo de cantores em programas televisuais passou a determinar as caracteristicas da producdo musical. Em outras palavras, anriscariamos dizer que, até meados da década de 1970, a musica era composta © produzida para ser ouvide ¢ dangada. A partir dai, ela ¢ produzida cada vez mais para ser vista (embora a danga continue um elemento fundamental da experiéncia sociomusical), freqiientemente subordinada ao império da imagem. Esse é um proceso que ndo pode escapar ao historiador do futuro @ que representa a integracae dos suportes sonoros ¢ audiovisuais, com a tendéncia do fim do suporte fonogrsfico tradicional, potencializado pelo fenémeno da troca de mtisicas pela internet. © fonograma, por sua vez, é 0 corpus documental privilegiado do pesquisador em miisica popular do século xx. Entre 1902 e 199 no Brasil, 0 fonograma impresso em discos de varios formatos (78 rotagdes por minuto, compactos simples e duplos, long-playings de 10 e 12 polegadas, compact discs) constitui um patriménio decumental ainda longe de ser amplamente explorado. A rigor, nao existe um levantamento completo desse material, ou seja, aquele trabatho inicial dos historiadores e arquivistas que & 0 estabelecimento das fontes. Para 0 caso dos 78 nM, que foram produzidos de 1902 a 1964, existe um catslogo geral organizado com apoio olicial, na inicio dos anos 1980, mas a conservacao desse riquissimo acerve documental deveu-se mais aos colecionadores particulares do que aos drgaos oficiais da cultura. Para o formato L»(o popular “vinil”} ou compacts (duplose simples), nao existe sequer umn levantamento amplo dos langamentos realizados pelas 256 _— a A Hints dep 2 psp gravadoras entre 1951 e 1990, petiodo conhecide como “Era do 1”, Muitas matrizes foram perdidas ou destruidas pelas proprias empresas ¢ mais uma ‘vex 0 acervo particular dos colecionadores € 0 tesouro a ser descoberto, mapeada e estudado pelos historiadores. Ha ainda uma outra fonte audiovisual importante para o estudo da misica popular comercial, que 6 o cinema. Principalmente nas décadas de 1930, 1940 e 1950, o filme-musical foi um importante ramo do consumo de imisica popular. No caso do cinema musical brasileito, apesar de muitos filmes estarem perdicios ou deteriorados, esse material esta relativamente bem presetvado gracas & mentalidade preservacionista na érea do cinema, assumica por grandes instituigdes como a Cinemateca Brasileira. Nesse caso, a abordagem tebrico-metodolégica deve levar em conta a linguagem hibrida, a encenacio dramatica ou coreogtatica da performance musical. Num certo sentido, o filme-musical é 0 antepassado do videoclipe, embora a linguagem, © estilo e as técnicas de filmagem sejam completamente diferentes. Por esse breve painel documental, é possivel petceber 6 rico manancial de fontes filmicase fonograficas qne ainda nao foram incorporadas pelo historiador da miisica. Somentea partir da década de 19900s trabalhoshistoriogrétficosesto trabalhando de maneira mais anapla e sistemética com fontes audiovisuais ¢ sonoras para o estudo da musica popular. Tal negligéncia ocorreu néo apenas pela dificuldade de acesso as fontes audiovisuais e fonogréficas, mas também porque ha, na academia brasileira, uma certa tracligao de andlise da Historia e Sociologia da anisica centrada na palavra escrita. No Brasil, a drea de Estudos Literdtios* e as Cigncias Sociais consagraram certas formas de analisar a cango ainda nos anos 1970 que acabaram influenciando os primeitos trabalhos historiogréficos: a primeira destacou o parimetro poética da cangao ~a “letra” - como foco privilegiado de andlise, enquantoa segunda enfatizou o estudo dos atores sociais envolvides na criacao, producdo ¢ consumo da masica, Em muitos trabalhos de andlise histérica por meio da cangao, a “letra” funciona como simulacro de um documento escrito — crOnica de época ou tentativa de critica social feita por um autor -, sendo analisada em sua significagao puramente verbal, com alguns elementos de andlise poética. Os historiadores, lentamente, vém tentando encontrar caminhos proprios de andlise, na medida em que nao tém formagio em critica literaria/poética, nem so treinados em pesquisas de campo € conceitos 257 Fonts Hato socioligicos, correndo o risco de fazer péssima andlise poética ¢ mé sociologia Sem falar da dificuldade, para cquem nao tem formagao em miisica, na andlise da linguagem musical, escrita em partitura ou registrada em fonograma, Para complicar ainda mais a situagao, a 4rea de Musicologia no se pautou pela teflexdiosistemdticaem tornoda congfiourbanae comercial, enfatizando oestudo da tradigao erudita ou “folelirica” (base de Emomusicologia atual), A nisica popularcomo um todo, ea cangio-em particular, atébem pouco tempo ficou éefa de reflexdo tesrico-metadolégica mais consistente e ampla. (Qual seria entio a peculiaridace da anélise da miisica popular, sobretudo da cangao, tomada come fonte histérica? Existe mesmo alguna peculiaridade, ou caberia ao historiador adaptar ferramentas tesrico-metodoldgicas de outras Areas? Qual seria o estatuto da cangio, como linguagem estética, ¢ como analisar seus cédigos intrinsecos? Fssas parecem ser as gtandes perguntas do momento, no apenas na area de Histéria, mas na grande érea conhecidla como “Estuclos em musica popular”, com precominio dos estudos em toro dos géneros cancioneiros consagrades pelo mercado musical A partir dessas inquietagdes, reiteramosa definigao de cangao, sintetizada pela historiadora Mariana Villaca, como um complexo conjuato composto pelos elementos mustcais por ‘exceléncia: harmonia, ritmo, melodia, arvanjo, instrumentacao — ‘epor uma série de outros elementos que compéem sua forza: a interpretagio e os signos visuais que formam a imagem do intéxpeete, a perforsonce envolvica, os efeitos timbsticos © 08 recursos sonoros utilizados na gravagio (..] a estes elementos acrescenta-se & letra da cangio e foda ¢ Sua complexidade estrutural, 8 medida que qualquer signo lingitstico, associado um determinado signo musical. gazha outra conotac3o semantica, que extrapola © universo da compreensio da Finguagem literaria.” Arnaldo Contier foi um dos ptimeiros historiadores de oficio 2 enfrentar essas questies tedrico-metodoligicas ¢ criticar a énfase dada a0 componente lingiiistico-verbal na anélise da cangéo. Uma de suas primeiras adverténcias é a de que amuisica nfo exprime contexido diretamente [..J mesmoquendo acompanhada da letra, no caso da eancio, 0 seu sentido esta cifrado em modes muito sutis ¢ quase sérapre incanscientes de apropriagle dos sitmos, timbres, das intessidades, das tramas smel6dicas e harménicas dos sons, 258 | Hine desis do papel Na perspectiva de Contier, 0 “sentido cifrado” da cancao, objeto altima da critica intema da fonte, comega a se desvelar na andilise do contexto istérico no qual o compositor se insere, como agente social e personagem historico. Nessa ética, 0 carater potissémico do documento musical néo é um obstaculo intransponivel ¢ as possibilidades de trabatho do historiador ancoram-se ng mapeamento das “escutas” histéricas (erftica, piblico e 08 Proprios artistas, que s3o também onvintes) que dao sentido histérico as obras musicais, Obviamente, esse senticlo sociocultural nao é nem extrinseco a obra, nem ilimitado em suas possibilidades, apoiando-se nos materiais na linguagem musical que estruturam a pega musical. A questao central é que, em que pese a estrutura intema da obra e as intengdes subjetivas do compositor, 0 sentido social, ideoligico e histérico de wma obra musical reside em convengdes culturais que permitem a formagao de uma rede de escutas sincrénica e diacronica.® Sincrénica, pois uma obra erudita ou uma cangio popular tém um tempo/espaco de nascimento e circulagde original, caso contrério ndo seria uma fonte historica, Diacrénica, pois como patriménio cultural, ela ser transmitida 20 longo do tempo, sob o rotulo de obra-prima ou obra mediocre, ¢ suas releituras poderao darthe novos ¢ inusitados sentidos ideologicos e significados socioculturais. Mesmo oesquecimento reservado a uma obra on artista é um dado para o historiador, cuja preacupacao com o juiza de valornao deve ser o foco principal da andlise, Em outras palavras, as “obras mediocres” também sao portadoras de significados sociais e histdricos, ainda que menos profundos e instigantes do que as “obras-primas” consagradas pela meméria e pelo gosto vigente. Sem falar na grande fluidez de gosto e dos critérios de julgamento estético, que podem mudar com 9 passar dos anos, resgatando obras do esquecimento € ‘emprestando-Lhes novas escutas. Qualquer que seja a problematica e abordagem do historiador, fundamental & que ele promova 0 cotejamento das manifestagdes escritas da escuta musical (critica, artigos de opiniao, andlises das obras, programas e manifestos estéticos ete.) com as obras em sta materialidade (fonogramas, partituras, filmes). A partir desse procedimento, o historiador pode perceber quais parametros foram destacades numa cangio out pega instrumental, guais foram os critérios de julgamento de uma determinada ¢poca, como foram produzicos os sentidos sociais, culturais e politicos a partir da circulagio social da obra ¢ de sua 289 Fenty itor transmissao como patrimonio cultural coletivo. No caso da musica popular, sua natureza industrial deve ser pensada como parte da estrutura de criagaio € circulagéo da obra, emprestancio-Ihe um estatuto de “obra de arte na era da reprodutibilidade técnica” que ndo pode ser abstraiclo na andlise e submetido 08 imperativos puramente estéticos, Como usar fontes audiovisuais na pesquisa historica Goleta ¢ arquives ‘Acesso as fontes fonogréficas e audiovisuals (patriménic amescado) no Brasil No Brasil, por incrivel que parega, a documentacao audiovisual do século x\estémaisameacada do queadocumentaciodeépocas histiricasmaisrematas. Existem algumas iniciativas importantes do poder puiblico para melhorar essa situagao, mas, emt linhas gerais, o que nao foi perdido estd em méos de arquivos inetitucionais privados, colecionadores particutares ou em situacao de risco, inclusive na medida em que nao hé um levantamento sistematico desse patriménio. Essa deveria ser a prioridade para os prdxinios anos, trabalho que envolveria arquivistas, historiadores, colecionadores e autoridades puiblicas na freada cultura, Obviamente, o quadro ndoéo mesmo paras trés grandes dreas documentais aqui discutidas: cinema, televisao e misica. ‘A meméria patrimonial e artistica do cinema é, de longe, a mais bem preservada, A criago da Cinemateca Brasileira, nos anos 1940, representou ‘um passo importante na coleta, catalogagao, preservacao e disponibilidade para pesquisa do material filmico e de parte da documentacao escrita na area de cinema. A Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro contra instituigdo que, até bem pouco tempo, guardava boa parte da meméria do cinema brasileiro das décadas de 1960 e 1970. O Museu. Lasar Segall, de Sao Paulo, também realizou importante trabalho de preservagdo de documentagdo ligada ao cinema brasileiro, sobretudo o material critica e informative publicado na imprensa, desde os anos 1970. Além cesses grandes acervos publicos brasileiros, a 4rea de cinema ¢ a que mais disponibiliza no mercado suas obras cléssicas. Com a disseminagdo do formato pvp é possivel encontrar no mercado brasileiro grandemimero de titulos clissicos docinema, desde filmes de escolas cinematograficas dos anos 1920 e 1930, até filmes 260 A Hsia pe mais recentes, A vantagem € que o formato vvp possibilita uma melhor qualidade de imagem e som, além de facilitar o trabalho de pesquisa ¢ andlise do filme em casa. Para 0 caso do cinema brasileiro, a Tv a cabo mantém wm canal especializado, transmitindo filmes que, em muitos casos, nao existem em DVD OU $6 existem em formato vis, editados hé muito tempo, com perda progressiva de qualidade de imagem e som. Apesar dessa facilidade, 0 ideal para o historiador que deseja se aprofundar na andlise filmica é, sempre que possivel, tomar contato com o filme em pelicula, cujo acesso quase nunca é possivel para pesquisadores que estéo fora dos grandes centros urbanes. Em sintese, seja pela melhor situacdo dos arquivos piiblicos de cinema (cinematecas e outras instituigdes), seja pelo interesse do mereado em disponibilizar obras importantes, seja pela Tv a cabo, 0 acesso ao documento filmico é relativamente mais facil do que em outros tipos de fontes audiovisuais. Além do documento filmico, ha um esforgo de sistematizagao de informacdes escritas sobre filmes (fichas técnicas, biogratias dos profissionais de cinema, criticas, manifestos etc.). No Brasil, principalmente, no exterior, ha abundante documentagto fflmica e escrita sobre cinema. Em relagdo A nisica, sobretudo ao campo da muisica popular, a questio um pouco mais complicada, A comecar peia situagdo absurda gerada pela falta de politica de preservacdo das grandes gravadoras e pela inexisténcia de uma politica publica de guarda e preservacao de fonogramas. Em muitos 4808, a8 matrizes originais de diseos produzidas nas décadas de 1950 e 1960 estio destruidas, o que representa perda de profundidade na pesquisa historiea, com lacunas de informacdes importantes e originais. As gravadoras brasileiras lancam grande quantidade de coletaneas de miisicas populares, principalmente aquelas gravadas a partir da década de 1970, A questo é que muitas coletineas nao veiculam informagoes minimas sobre os albuns originais nos quais as faixas musicais estavam incluidas, sem data de gravagio ou nomes de muisicos envolvides. Para 0 historiader, essas informagdes sto fundamentals e, nesse sentido, ao conteariv do mercado de filmes cinematogréticos, o material antigo veiculado pelo mercado fonogrifico € mais lacunar € precdrio. No caso das “caixas de crs”, que em geral possibilitam acesso a obras completas dos cancionistas (compositores ou intérpretes), o material informative tende a ser mais elaborado ¢ completo. 261 Fens isin A facilidade de acesso as fontes fonogrificas ¢ as fontes escritas conexas variaconformeo formato do suportedo fonograma. Dos trés grandes formatos do século xx~o disco 78 rw, 0 album de 12 polegadas eo compact disc —, 0 que presenta sistematizacdo mais avangada é 0 primero. Gracas a0 trabalho de jomatistas pesquisadores e de colecionadores particulares, essas fontes foram preservadas e no final dos anos 1970 foi realizado amplo trabalho de Jevantamento informativo, gerando um catélogo de todos os discos 78 nM lancadosno Brasil. Infelizmente, esse material nao foi reeditado e hoje 0 acesso aelendoé tao ficil. De qualquer forma, pormeiodessa iniciativaé possivel saber praticamente tudo o que foi gravado nesse formato, entre 1902 e 1964. Outras inicativas de levantamento documental informative, comoa da Casa Edison do Rio de Janeiro” ou a discografia completa de Noel Rosa." entre outras, 880 dignasdenota e facilitam otrabalho dohistoriador, que pode ir além das fontes J consagradas e analisadas em outras pesquisas. O trabalho feito pela Collectors, empresa do Riode Janeiro, também é importantena medida em que disponibiliza praticamente todo o acervo da Era classica do radio (1930. 1950), ‘embora boa parte do material encontre-se no Museu da Imagem e de Som do Rio de Janeiro — acervo que poderia ser deacesso mais amploe facilitado, caso fosse informatizada e digitalizado. Ainda em relagao ao formato 76 RM, deve- sedestacar o trabalho da gravadoraRevivendo, de Curitiba, ancoradanoacervo de cercade50mil discos doseu dono, Leon Barg, que disponibilizano mercado importante acervo fonografico, cobrindo os anos 1910 a 1950. No caso do album Jong playing (LP), importante formato de fonograma ne praticamente se confunde com a Era cléssiea da wpa (1960 e 1970), ainda nao ha um levantamento sistematico de titulos (de lbuns e cangdes), embora seja mais fécil encontrar esse tipo de fonte nos antiquétios e “sebos". Ha informag6es de discografias completas de artistas especificos na internet, geralmente disponiveis nos seus proprios websites. Mas ainda ha muito material a ser localizado, catalogado e disponibilizado para os pesquisadores e estudantes. A era do LP, vigente entre 1951 e 1990, jé terminou, ¢ o Brasil, que nesse periodo se tornou um dos principais mercados fonograticos do mundo, além de produtor de uma miisica popular de reconhecida qualidade, ainda nao sabe o tudo que foi gravado pelo seu parque industrial fonogeafico. Esse é 0 trabalho de levantamento ¢ catalogagao mais urgente a ser feito e, pelo volume de trabalho, deveria ser encarado coletivamente com 0 apoio oficial, diretamente ou via leis de incentivo, 262

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