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Ana Maria de Carvalho

Antônia Marly Moura da Silva


Jaciara Limeira de Aquino
Francisco Aedson de Souza Oliveira
Moisés Batista da Silva
(organização)

ARTIGOS
Ana Maria de Carvalho
Antônia Marly Moura da Silva
Jaciara Limeira de Aquino
Francisco Aedson de Souza Oliveira
Moisés Batista da Silva
(organização)

LINGUAGENS E DISCURSOS EM TEMPOS


DE CRISE

Anais do IV Colóquio Nacional de Linguagem


e Discurso - CONLID

Mossoró-RN, 23 a 25 de agosto de 2017

ARTIGOS
Reitor:
Prof. Pedro Fernandes Ribeiro Neto
Vice-Reitor:
Profa. Fátima Raquel Rosado de Morais
Diretora de Sistema Integrado de Bibliotecas
Jocelânia Marinho Maia de Oliveira
Chefe da Editora Universitária – EDUERN
Anairam de Medeiros e Silva

Conselho Editorial das Edições UERN


Emanoel Márcio Nunes; Isabela Pinheiro Cavalcante Lima; Diego Nathan do Nascimento Souza; Jean Henrique
Costa; José Cezinaldo Rocha Bessa; José Elesbão de Almeida; Ellany Gurgel Cosme do Nascimento; Ivanaldo
Oliveira dos Santos Filho; Wellignton Vieira Mendes

Anais do IV Colóquio Nacional de Linguagem e Discurso – IV CONLID


Coordenador Geral do Evento: Francisco Paulo da Silva
Organizadores dos Anais: Ana Maria de Carvalho; Antônia Marly Moura da Silva; Jaciara Limeira de Aquino;
Francisco Aedson de Souza Oliveira; Moisés Batista da Silva

Comissão Científica
Ady Canário de Souza Estevão - UFERSA; Alexandre Bezerra Alves - UERN; Amanda Batista Braga - UFPB; Ana
Maria de Carvalho - UERN; Antonia Marly Moura da Silva - UERN; Edgley Freire Tavares – UERN; Franceliza
Monteiro da Silva Dantas - UFERSA; Francisco Vieira da Silva - UFERSA; Giann Mendes Ribeiro - UERN;
Hubeonia Morais de Alencar - UERN; Iara Maria Carneiro de Freitas - UERN; Jammara Oliveira Vasconcelhos
de Sá - UERN; José Gevildo Viana - UERN; José Luiz Ferreira - UFRN; José Roberto Alves Barbosa - UERN;
José Vilian Mangueira - UEPB; Leila Maria de Araújo Tabosa - UERN; Lucas Vinício de Carvalho Maciel -
UFSCAR; Lúcia Helena Medeiros da Cunha Tavares - UERN; Maíra Fernandes Martins Nunes - UFCG; Marcília
Luzia Gomes da Costa Mendes - UERN; Maria do Rosário Gregolin - UNESP; Maria Regina Baracuhy Leite -
UFPB; Marisa Martins Gama-Khalil - UFU; Moisés Batista da Silva - UERN; Nilton Milanez - UESB; Pedro
Adrião da Silva Junior - UERN; Pedro Fernandes de Oliveira Neto - UFERSA

Revisão
Os textos aqui apresentados foram os selecionados pela comissão científica que compõe esta publicação e
integraram o IV CONLID. Cada autor foi responsável pela revisão de seu próprio texto e por ele responde por
quaisquer questões e/ou atos que venham a ser levantados.

Edição – 2018
ISBN: 978-85-7621-221-8

Catalogação da Publicação na Fonte.


Universidade do Estado do Rio Grande do Norte.

Anais do IV CONLID - Colóquio Nacional de Linguagem e Discurso/


Ana Maria de Carvalho et al (Orgs.) . - Mossoró – RN, EDUERN, 2018.

1794 p.
Grupo de Estudos do Discurso da UERN – GEDUERN, em parceria com o Programa
de Pós-graduação em Ciências da Linguagem PPCL e Faculdade de Letras e Artes –
FALA, da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte.

ISBN: 978-85-7621-221-8

1. Linguística. 2. Letras. 3. Literatura. 4. Discurso. 5. Sujeito. I. Silva, Antônia Marly


Moura da. II. Aquino, Jaciara Limeira de. III. Oliveira, Francisco Aedson de Souza. IV.
Silva, Moisés Batista da. V. Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. VI. Título.

UERN/BC CDD 410

Bibliotecária: Aline Karoline da Silva Araújo CRB 15 / 783


Sumário
APRESENTAÇÃO 14
GT1- PRÁTICAS DISCURSIVAS E MODOS DE SUBJETIVAÇÃO
A CONSTITUIÇÃO DAS IDENTIDADES DE GÊNERO NA ESCOLA: UMA ANÁLISE
DISCURSIVA 16
Ana Cláudia de Medeiros; Marco Antonio Lima do Bonfim
UMA ANÁLISE DO DISCURSO DA INCLUSÃO DO SUJEITO COM DEFICIÊNCIA NA
MÍDIA: RELAÇÕES DE PODER NA CONSTRUÇÃO DOS EFEITOS DE SENTIDO 26
Antônia Janny Chagas Feitosa; Maria Eliza Freitas do Nascimento
MULHER E O TRABALHO DOMÉSTICO: ANÁLISE DO GÊNERO MIDIÁTICO
ANÚNCIO 37
Bruna Gabrieli Morais da Silva Thorpe
A RELAÇÃO ENTRE VERDADE E CONSTITUIÇÃO ÉTICA DOS SUJEITOS NA DITADURA
MILITAR BRASILEIRA: EFEITOS DA MEMÓRIA DE MULHERES VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA
NA INFÂNCIA. 47
Camila Praxedes de Brito; Francélia Nunes de Medeiros Ferreira; Maria Arlinda de Macedo Silva
REPRESENTAÇÕES DO SUJEITO FEMININO EM ADAPTAÇÕES CINEMATOGRÁFICAS DE
CONTOS DE FADAS: A CONSTITUIÇÃO DA IDENTIDADE FEMININA NO FILME
MALEFICENT (2014) 58
Dayane Adriana Teixeira Oliveira; Maria Regina Baracuhy Leite
AS ESTRATÉGIAS DISCURSIVAS EM REVISTA: O CORPO “DEFICIENTE”
SAUDÁVEL E OS DESLIZAMENTOS DE SENTIDOS 71
Edson Santos de Lima; Maria Eliza Freitas do Nascimento
INTERDISCURSO, MEMÓRIA DISCURSIVA E RELAÇÕES DE PODER: UMA
ANÁLISE EM DISCURSOS PARLAMENTARES SOBRE O PROCESSO DE
IMPEACHMENT DE DILMA ROUSSEFF 79
Gustavo Natanael Arlindo de Souza; José Gevildo Viana
AS REPRESENTAÇÕES DISCURSIVAS DO TEMA “MULHER” NO DISCURSO DO
PRESIDENTE MICHEL TEMER 92
José Max Santana; Maria Eliete de Queiroz
“MEXEU COM UMA, MEXEU COM TODAS”: POR UMA CARTOGRAFIA DOS
DISCURSOS FEMINISTAS NA WEB 102
Lívia Alves Monteiro Carlos; Luan Alves Monteiro Carlos; Francisco Vieira da Silva
QUEM TEM A CORAGEM DA VERDADE? UM OLHAR SOBRE OS DISCURSOS DAS
MULHERES QUE SOFRERAM ASSÉDIO SEXUAL 118
Luciana Fernandes Nery; Regina Baracuhy
CORPO MONTADO, CORPO RESSIGNIFICADO: A PRODUÇÃO DE SENTIDOS NO
CROSSDRESSING 129
Marcos Paulo de Azevedo
LEITURA DE SLOGANS POLÍTICOS: DISCURSO E COSNTRUÇÃO DE SENTIDOS 142
Maria das Graças de Oliveira Pereira; Robson Henrique Antunes de Oliveira
DAS HISTÓRIAS DA MAMÃE GANSA ÀS REATUALIZAÇÕES FÍLMICAS: A
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO MULHER PELO REFLEXO DAS PRINCESAS E
BRUXAS 152
Maria Verônica Anacleto Pontes
A RESSIFIGNIFICAÇÃO DA PESSOA NEGRA A PARTIR DE PRÁTICAS DE LEITURA
DE TEXTOS MULTIMODAIS 162
Meiridiana de Oliveira Queiroz; Lúcia de Fátima Araújo dos Santos; Francisca Maria Ramos
Lopes
A REPRESENTAÇÃO MIDIÁTICA DOS CABELOS FEMININOS NA CONSTITUIÇÃO
DO SUJEITO: UMA ANÁLISE DISCURSIVA DE PROPAGANDAS DA LOLA
COSMETICS 173
Polianny Ágne de Freitas Negócio; Lúcia Helena Medeiros
ENTRELACES DE BIOPODER- O MEDO COMO ESTRATÉGIA DE SEGURANÇA NOS
DISCURSOS DA MÍDIA 186
Rosivânia Maria da Silva
OS DISCURSOS DAS PROPAGANDAS PUBLICITÁRIAS COM PROTAGONISTAS
CÉLEBRES: A CONTEMPORANEIDADE E A REPAGINAÇÃO DA FAMA 196
Shemilla Rossana de Oliveira Paiva
GT2 – ESTUDOS SOBRE GÊNEROS: DIÁLOGOS ENTRE DIFERENTES
PERSPECTIVAS
CANÇÃO: UM GÊNERO, NÃO UM RECURSO DIDÁTICO 208
Ana Angélica Lima Gondim
GÊNEROS DO DISCURSO: ARTIGO DE OPINIÃO E NOTÍCIA UMA EXPERIÊNCIA NO
PIBID 220
Francisca Berlândia Alcineide Silva Paiva; Lucimar Bezerra Dantas da Silva
ANÁLISE CRÍTICA DE GÊNEROS DA MÍDIA 231
Ivandilson Costa
DIALOGISMO BAKHTINIANO NOS ANÚNCIOS PUBLICITÁRIOS DE COSMÉTICO 241
Jammara Oliveira Vasconcelos de Sá; Bruna Gabrieli Morais da Silva Thorpe
O GÊNERO MEME E A INTERTEXTUALIDADE: PROPOSTA DE SEQUÊNCIA
DIDÁTICA PARA PRODUÇÃO DE ARTIGO DE OPINIÃO NAS AULAS DE LÍNGUA
MATERNA 253
Karla Jane dos Santos
RESPONSIVIDADE DISCURSIVA POR MEIO DO GÊNERO ARTIGO DE OPINIÃO 263
Kely Any Vasconcelos Morais; Risoleide Rosa Freire de Oliveira
A ESCRITA EM CONCURSOS PÚBLICOS: INVESTIGANDO MATERIAIS DIDÁTICOS 275
Lara Liliane Holanda; Hubeônia Morais de Alencar
REPRESENTAÇÕES SOBRE O CANGACEIRO LAMPIÃO NO GÊNERO CORDEL 287
Lícia Fernanda Dantas da Silva; Magna Eugênia Fernandes do Rêgo; Gilton Sampaio de Souza
GT3 – ENSINO DE LÍNGUA MATERNA
UMA ANÁLISE CRÍTICA MULTIMODAL DO VÍDEO CLIPE “ GELO NA BALADA”
NUMA PERSPECTIVA DA GRAMÁTICA DO DESIGN VISUAL 299
Adalberto Barbosa Junior; Moisés Batista da Silva
A VARIAÇÃO LINGUÍSTICA INTERIORANA E IMPLICAÇÕES PARA A
AUTOESTIMA DE ALUNOS NO ENSINO FUNDAMENTAL 312
Ana Cláudia do Nascimento Silva; Nádia Maria Silveira Costa de Melo
A ANÁLISE ESTILÍSTICA NO POEMA “CIDADEZINHA QUALQUER” 320
Antônia Janny Chagas Feitosa; Jordânia Kally Freitas Duarte de Assis
A CORREÇÃO TEXTUAL: ANÁLISE DAS PRÁTICAS DE PROFESSORAS DO ENSINO
MÉDIO 326
Ariane Aparecida de Oliveira
A ORALIDADE NA SALA DE AULA ENQUANTO MECANISMO DE PROMOÇÃO DA
CIDADANIA 339
Francisca Fabiana da Silva; Gleiber Dantas de Melo
PRODUÇÃO DE NARRATIVAS DIGITAIS BIOGRÁFICAS A PARTIR DA PEDAGOGIA
DOS MULTILETRAMENTOS 348
Girlene Fernandes de Sousa; Moisés Batista da Silva
UMA ANÁLISE DA METAFUNÇÃO INTERATIVA DE ANÚNCIOS PUBLICITÁRIOS
EM LIVRO DIDÁTICO DE LÍNGUA PORTUGUESA DO 6º ANO 358
Josielle Raquel Dantas da Silva; Moisés Batista da Silva
TEXTO E INFORMATIVIDADE
Cintia Lúcia Silva Ferreira; Ivanete Dias Queiroz Costa 367
A LÍNGUA EM USO: ANÁLISE DA VARIAÇÃO LINGUÍSTICA EM DOIS LIVROS
DIDÁTICOS 377
Antônia Janny Chagas Feitosa; Jordânia Kally Freitas Duarte de Assis
POR QUE DISCUTIR LEITURA EM AULAS DE LÍNGUA MATERNA? 388
José de Paiva Rebouças; Regiane S. Cabral de Paiva
LEITURA E PRÁTICAS DISCURSIVAS ÉTNICO-RACIAIS EM AULAS DE LÍNGUA
PORTUGUESA 396
Lúcia de Fátima Araújo dos Santos; Meiridiana de Oliveira Queiroz; Francisca Maria Ramos
Lopes
PRODUÇÃO DE VÍDEOS E EMPODERAMENTO NO ENSINO FUNDAMENTAL:
BREVE OLHAR SOBRE REFERENCIAIS TEÓRICOS E GÊNEROS MULTIMODAIS 405
Mari Cecilia Silvestre da Silva; Moisés Batista da Silva
REFLEXÕES SOBRE O ENSINO DA LEITURA E ESCRITA NA EDUCAÇÃO DE
JOVENS E ADULTOS 427
Maria Amélia da Silva Costa; Marcos Nonato de Oliveira
O CONCEITO DE TEXTO E SEUS ELEMENTOS COMPOSICIONAIS A PARTIR DE
DIFERENTES ABORDAGENS 437
Maria Bernadete de Santiago Ribeiro; Gilson Chicon Alves
IDENTIDADE E VARIAÇÃO LINGUÍSTICA EM A HORA DA ESTRELA DE CLARICE
LISPECTOR 447
Maria da Luz Duarte Leite Silva; Albert Ítalo Leite Ferreira; Francisco Helton Duarte Leite
A VARIAÇÃO LINGUÍSTICA: UM ESTUDO NO LIVRO DIDÁTICO DE LÍNGUA
PORTUGUESA 460
Maria do Socorro Souza Silva; Ana Paula de Oliveira; Maria Aparecida de Souza Moura
AS CONTRIBUIÇÕES DA “OLIMPÍADA DE LÍNGUA PORTUGUESA – ESCREVENDO
O FUTURO” NO PROCESSO DE LEITURA E ESCRITA NA 3ª SÉRIE DO ENSINO
MÉDIO 472
Maria Lidiana Costa; Maria do Socorro Souza Silva; Maria da Luz Duarte Leite Silva
TEXTO LITERÁRIO, RECURSO DIDÁTICO EM AULAS DE LÍNGUA? 484
Regiane Santos Cabral de Paiva; José de Paiva Rebouças
O PRAZER EM LER O LOCAL: A LITERATURA DE AFONSO BEZERRA EM UMA
ESCOLA DO SEMIÁRIDO 498
Vanessa Karoline Monteiro Assunção; Cássia de Fátima Matos dos Santos
IDENTIDADE DOCENTE: UMA CONSTRUÇÃO A PARTIR DA PRÁTICA DE ENSINO
E ESTÁGIO SUPERVISIONADO 512
Francisca Vilani de Souza
ESTRATÉGIAS DOCENTES DE CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO SOBRE
LEITURA NOS ANOS INICIAIS DO ENSINO FUNDAMENTAL 524
Alenilda de Oliveira Fernandes; Maria do Socorro da Silva Batista
GT4 – DISCURSOS E PRÁTICAS NO CAMPO DA EDUCAÇÃO
FORMAÇÃO DE PROFESSORES: UM ESTUDO SOBRE A CONTRIBUIÇÃO DO PIBID
NA ARTICULAÇÃO ENTRE TEORIA E PRÁTICA NO CURSO DE MATEMÁTICA DO
IFRN CAMPUS MOSSORÓ 532
Aleksandre Saraiva Dantas; Aila Cristina de Souza
REFLEXÕES SOBRE O ENSINO DE MATEMÁTICA FINANCEIRA NAS ESCOLAS
PÚBLICAS DE MOSSORÓ 543
Aleksandre Saraiva Dantas; Idalecio Gomes Dantas
PRODUÇÕES ACADÊMICAS SOBRE AVALIAÇÃO EXTERNA NA EDUCAÇÃO: O
DEBATE EM REVISTAS QUALIFICADAS (2000 A 2016) 555
Clarice Nunes Peixoto; Allan Solano Souza
LEITURA, IDENTIDADE RACIAL PERSPECTIVAS DISCURSIVAS 568
Dayvison Bandeira de Moura; Maria Aparecida Monteiro
DA EJA AO CEJA: DAS POLÍTICAS PARA EJA AO ENSINO SEMIPRESENCIAL DOS
CEJA NO CEARÁ 580
Edillene Rodrigues da Silva; Lilian de Oliveira Rodrigues
FORMAÇÃO COM UM RIGOR OUTRO EXPERIÊNCIAS DA DISCIPLINA DO
MESTRADO EM EDUCAÇÃO 592
Érica Renata Clemente Rodrigues; Francisca Elza Torres Fernandes; Joaquim Gonçalves
Barbosa
LETRAMENTO, CINEMA, REALIDADE 603
Georgiana Maria Ferreira da Costa; Marlúcia Barros Lopes Cabral
A DEMOCRACIA E A REGULAMENTAÇÃO DA INCLUSÃO DOS FILHOS/AS DE
CASAIS HOMOPARENTAIS NO ESPAÇO ESCOLAR EM NATAL/RN 615
Gualber Pereira Silva de Oliveira; Arilene Maria Soares de Medeiros
CONSELHO DE CLASSE: REFLETINDO A PRÁTICA AVALIATIVA SOB UM OLHAR
CONSTRUTIVISTA 627
Kelvilane Queiroz dos Santos; Maria das Graças de Oliveira Pereira
GESTÃO DEMOCRÁTICA NOS NÚCLEOS DE EDUCAÇÃO RURAL NO MUNICÍPIO
DE MOSSORÓ-RN 638
Maria Nilza Batista Luz; Francisca de Fátima Araújo Oliveira
SUBJETIVIDADE E GESTÃO NA VOZ DOS GESTORES ESCOLARES 649
Thayse Mychelle de Aquino Freitas; Arilene Maria Soares de Medeiros
GT5 – ENSINO DE MÚSICA NOS MÚLTIPLOS CONTEXTOS: PERSPECTIVAS,
EXPERIÊNCIAS, PRÁTICAS E FORMAÇÃO CONTINUADA
ENSINO DE MÚSICA NAS ESCOLAS DA REDE MUNICIPAL DE PAU DOS FERROS –
RN: UM RELATO DE EXPERIÊNCIA 662
Anne Valeska Lopes da Costa
PARA ENTENDER MELHOR AS QUIÁLTERAS 672
Antônio Carlos Batista de Souza
BATENDO O PEZINHO - CONSIDERAÇÕES SOBRE AS RELAÇÕES DE SOM, TEMPO
E ESPAÇO NA MARCAÇÃO DE COMPASSOS COM OS PÉS 684
Antônio Carlos Batista de Souza; Íris Emanuella de Castro Nascimento
POSSIBILIDADES DE JOGOS ONLINE PARA O ENSINO MÚSICA NO ENSINO MÉDIO 696
Gibson Alves Marinho da Silva; Giann Mendes Ribeiro
AS PRÁTICAS MUSICAIS DESENVOLVIDAS NAS ESCOLAS EM MOSSORÓ: UM
ESTUDO DE CASO EM TRÊS ESCOLAS CONTEMPLADAS COM O PROJETO PIBID
MÚSICA/UERN 708
Elizabeth Freire Maciel da Silva; José Ozenildo Freire dos Santos; Juliana de Souza Revoredo
POLUIÇÃO SONORA, MEIO AMBIENTE E MÚSICA: REFLEXÕES E RELATO DE
UMA PRÁTICA INTERDISCIPLINAR EM SALA DE AULA 720
Luís Fernandes de Moura; Giann Mendes Ribeiro
PIBID MÚSICA/UERN: CONCEPÇÕES DOS PROFESSORES SUPERVISORES EM
RELAÇÃO À PRÁTICA PEDAGÓGICO-MUSICAL 732
Romário Pereira da Silva; Alexandre Milne-Jones Náder
EDUCAÇÃO PROFISSIONAL E TÉCNICA EM MÚSICA: UM LEVANTAMENTO
BIBLIOGRÁFICO NOS ANAIS DA ANPPOM E ABEM (2001-2013) 740
Ruãnn Cézar Cezário Silva; Giann Mendes Ribeiro
A VALORIZAÇÃO DO REPERTÓRIO DO ALUNO (A) EM ESCOLA ESPECIALIZADA
DE MÚSICA 752
Fábio Roberto Monteiro de Lima
GT6 – LINGUAGEM LITERÁRIA CONTEMPORÂNEA: O NARRADOR E O EU
LÍRICO
TEATRALIDADE E IDENTIDADE EM NARRATIVAS DE CLARICE LISPECTOR 763
Maria da Luz Duarte Leite Silva; Albert Ítalo Leite Ferreira; Francisco Helton Duarte Leite
DOIS LADOS DO ATLÂNTICO: A CIDADE EM POEMAS DE FERREIRA GULLAR E
MANUEL DE FREITAS 775
Alexandre Alves
ESPERAS TRÁGICAS, SILÊNCIOS OPACOS: DUAS CRÔNICAS DE MILTON
HATOUM 788
Joana Tamires Silveira Bezerra
OPRESSÃO E AGRESSÃO NO CONTO “TERÇA-FEIRA GORDA” DE CAIO
FERNANDO ABREU 799
Ana Keila Tavares de Souza
DA MEMÓRIA INDIVIDUAL À COLETIVA: A VISÃO DO INFERNO NO IMAGINÁRIO
LITERÁRIO POPULAR 811
Eduarda Maria Moreira Lopes Lins
ESPERAS TRÁGICAS, SILÊNCIOS OPACOS: DUAS CRÔNICAS DE MILTON
HATOUM 820
Joana Tamires Silveira Bezerra
A IMAGEM DISTORCIDA NO ESPELHO: O JOGO DO DUPLO EM DOIS IRMÃOS, DE
MILTON HATOUM 831
Kalyn Kegia Cardoso Bezerra Costa
MEMÓRIA E ESPAÇO NOS CONTOS UM CINTURÃO, DE GRACILIANO RAMOS E
RESTOS DO CARNAVAL, DE CLARICE LISPECTOR 844
Leandro Lopes Soares; Maria Edileuza da Costa
O SILÊNCIO EMBRUTECIDO EM VIDAS SECAS: UMA NARRATIVA PERPLEXA 857
Lidiane Morais Fernandes
O SILÊNCIO E O INACABADO EM QUATRO-OLHOS, DE RENATO POMPEU 869
Paulo Guilhermino dos Santos
JORGE DE LIMA E JORGE FERNANDES: UMA REPRESENTAÇÃO REGIONAL 880
Paulo Ricardo Fernandes Rocha; Rayane Kely de Lima Fernandes
O NARRADOR NOS CONTOS FANTÁSTICOS: “TELECO, O COELHINHO” E “O
PIROTÉCNICO ZACARIAS”, DE MURILO RUBIÃO 890
Rayane Kely de Lima Fernandes; Paulo Ricardo Fernandes Rocha
O CONFRONTO ENTRE O ESPAÇO DO POSSÍVEL E DO IMPOSSÍVEL NO CONTO
“NATAL NA BARCA” DE LYGIA FAGUNDES TELLES. 900
Rosaly Ferreira da Costa Santos; Antonia Marly Moura da Silva
A CASA E A RUA: A REPRESENTAÇÃO DO “LUGAR” E DO “NÃO LUGAR” NO
CONTO “A CHAVE NA PORTA” DE LYGIA FAGUNDES TELLES 908
Monica Valéria Moraes Marinho; Rosaly Ferreira da Costa Santos
INFÂNCIA, ESPAÇO E MEMÓRIA EM “ROUPA NO CORADOURO”, DE JOSÉ J.
VEIGA 917
Samea Rafaela Lopes da Silva Diógenes; Maria Aparecida da Costa
A TOPOÁNALISE NO CONTO CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO “O CAVALO QUE
BEBIA CERVEJA” DE JOÃO GUIMARÃES ROSA 926
Will Wanderkelly de Freitas Ribeiro; Sebastião Marques Cardoso
GT7 – INFORMAÇÃO, CULTURA E PRÁTICAS SOCIAIS
DISCUTINDO A MIDIATIZAÇÃO: REFLEXÕES ACERCA DO CONCEITO E SUAS
IMPLICAÇÕES NA VIDA COTIDIANA 935
Elenilda Dias de Souza Carlos
SER FELIZ HOJE: O CORPO COMO SUPERFÍCIE DE DISCIPLINAMENTO PARA
CONQUISTA DA FELICIDADE 944
Karla Jane Eyre da Cunha Bezerra Souza; João Paulo Pereira
UM CEMITÉRIO QUE FAZ SEU SEGUIDOR MORRER DE RIR: ESTUDO DE CASO DA
GESTÃO DE MARCA DO JARDIM DA RESSURREIÇÃO NO FACEBOOK 957
Maria Naftally Dantas Barbosa; Washington Sales do Monte
DISCURSOS E EMOÇÕES EM DISPUTA: ANÁLISE DOS COMENTÁRIOS SOBRE O
IMPEACHMENT DE DILMA ROUSSEFF NA PÁGINA DA VEJA NO FACEBOOK 970
Geilson Fernandes de Oliveira; Maria das Graças Pinto Coelho
AS MANIFESTAÇÕES PELO FORA TEMER NAS OLIMPÍADAS: UMA ANÁLISE
CRÍTICA DO DISCURSO JURÍDICO-MIDIÁTICO 984
Renatha Rebouças de Oliveira
O FENÔMENO DO CONSUMO ENQUANTO ELEMENTO IDENTITÁRIO E DE
SOCIABILIDADE NA CONTEMPORANEIDADE 997
Shemilla Rossana de Oliveira Paiva
GT8 – FORMAÇÃO E PRÁTICAS DE PROFESSORES DE LÍNGUA INGLESA
ENSINO DE INGLÊS EM TURMAS NUMEROSAS: CARACTERIZAÇÃO DO CURSO
TÉCNICO DE NÍVEL MÉDIO INTEGRADO EM INFORMÁTICA 1009
Geraldo Máximo da Silva; Samuel de Carvalho Lima
A EMERGÊNCIA DE EPÊNTESE VOCÁLICA POR APRENDIZES POTIGUARES DE
LÍNGUA INGLESA 1020
Anderson Romário Souza Silva; Clerton Luiz Félix Barboza; Miriam Gurgel da Silva
METODOLOGIA PARA O ENSINO DE INGLÊS: UMA ANÁLISE COMPARATIVA DOS
PROCEDIMENTOS EM DOIS CONTEXTOS ESCOLARES 1033
Janeide Ferreira Dantas; José Roberto Alves Barbosa
CONHECIMENTO PRÉVIO E LEITURA: O GÊNERO CHARGE E SUAS IMPLICAÇÕES
PARA A PROMOÇÃO DE LETRAMENTOS NA AULA DE INGLÊS 1046
Karliane Gomes da Silva; Jorge Luis Queiroz Carvalho
O LÚDICO NO ENSINO DE LÍNGUA INGLESA 1057
Valério Silveira de Góis
INGLÊS INSTRUMENTAL: HISTÓRICO E PRESSUPOSTOS TEÓRICOS 1066
Wanderley da Silva
GT9 – SUJEITO E COTIDIANO
TESTEMUNHOS NA CNV: A CONSTRUÇÃO DA VERDADE POR SUJEITOS VÍTIMAS
DA VIOLÊNCIA DA DITADURA, NA INFÂNCIA. 1077
Camila Praxedes de Brito; Francisco Paulo da Silva
VOZES DO SERTÃO: CULTURA, IDENTIDADE E LITERATURA DE CORDEL 1088
Ênia Ramalho dos Santos; Lilian de Oliveira Rodrigues
AMOR E O DESAMOR EM BORDADOS 1100
Maria Adriana Nogueira; Sebastião Francisco de Mesquita; Geilson Fernandes de Oliveira
SUBJETIVIDADE E AMOR NO TINDER: UMA ANÁLISE SOBRE A CONSTRUÇÃO
DOS LAÇOS HUMANOS NA CONTEMPORANEIDADE 1110
Pamella Rochelle Rochanne Dias de Oliveira; Fábio Rodrigo Fernandes Araújo; Geilson
Fernandes de Oliveira
A IDENTIDADE DO PROFESSOR: AVANÇOS E RETROCESSOS NA ATUAL
CONJUNTURA SOCIAL 1126
Themis Gomes Fernandes; Pedro Ramon Pinheiro de Souza
O ROMANCE E O FEMININO EM LENDO LOLITA EM TEERÃ, DE AZAR NAFISI 1136
Maria Adriana Nogueira; Sebastião Francisco de Mesquita; Pâmela Rochelle Rochanne Dias
de Oliveira
GT10 – TRABALHO, QUESTÃO SOCIAL, DIREITOS SOCIAIS E POLÍTICAS
PÚBLICAS
CONCEPÇÃO E REFLEXÃO SOBRE A EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS - EJA
NO IFRN (CAMPUS MOSSORÓ) NA PERSPECTIVA DOS DIREITOS SOCIAIS 1149
Magnólia Maria da Rocha Melo; João Paulo de Oliveira; Ana Cristina Almeida de Oliveira
HISTÓRIAS DE VIDAS DO ABANDONO NA TERCEIRA IDADE
Mara Betânia Jales dos Santos; Sandra Maria Pereira Lima 1161
GT12 - MÍDIA, IMAGEM E SOCIEDADE
ANÁLISE TEXTUAL DISCURSIVA: REPRESENTAÇÕES DISCURSIVAS DE DILMA
ROUSSEFF EM UM DISCURSO POLÍTICO 1170
Albaniza Brigida de Oliveira Neta; Maria Eliete de Queiroz
PIXOTE: A LEI DO MAIS FRACO E ESCRITORES DA LIBERDADE: AS RELAÇÕES
IDENTITÁRIAS DE SIMILITUDE E DESSEMELHANÇA NAS DUAS PELÍCULAS NA
VISADA DOS ESTUDOS CULTURAIS 1182
Ana Rafaela Oliveira e Silva; Francisco Vieira da Silva
O USO DA PSICANÁLISE NA CRÍTICA CINEMATOGRÁFICA FEMINISTA 1195
Aline Gama de Almeida; Hionne Mara da Silva Câmara
IMAGEM E VIOLÊNCIA SIMBÓLICA: NEGAÇÃO DO INDÍGENA EM REPORTAGEM
TELEVISIVA NO JN E O ATIVISMO NA INTERNET 1208
Izaíra Thalita da Silva Lima; Higo da Silva Lima
A VERBO-VISUALIDADE: UM OLHAR PARA AS RELAÇÕES DIALÓGICAS NA CAPA
DA REVISTA MUNDO ESTRANHO 1219
Maria Fabiana Medeiros de Holanda; Maria da Penha Casado Alves
IMAGENS E FANTASIA NA PUBLICIDADE INFANTIL 1231
Maria Soberana de Paiva; Karlla Christine Araújo Souza; Jucieude de Lucena Evangelista
O DISCURSO POLÍTICO EM ANÁLISE: O ESTUDO DA REPRESENTAÇÃO
DISCURSIVA 1239
Maria Veridiana Franco Alves; Maria Eliete de Queiroz
ALICE NO PAÍS DA ESTÉTICA: A JORNADA DE UMA HEROÍNA NO MUNDO
SOMBRIO 1250
Natanael da Silva Leão; Daiany Ferreira Dantas
O EU E A ESCRITA DE SI NO BLOG CEM HOMENS: SUBJETIVIDADE E GÊNERO NO
CIBERESPAÇO 1265
Pâmella Rochelle R. Dias de oliveira; Maria Adriana Nogueira; Geilson Fernandes de Oliveira
ESPAÇO URBANO E COMUNICAÇÃO 1277
Paula Apolinário Zagui
DA EDUCAÇÃO À CIDADANIA: ESTUDO DE CASO CENTRADO NO PROGRAMA
RADIOJORNALÍSTICO MATUTINO BORBOREMA 1284
Priscilla Tatianne Dutra
GT13 – OLHARES PARA O ENSINO/APRENDIZAGEM DA LÍNGUA ESPANHOLA
E PARA AS LITERATURAS ESPANHOLA E HISPANO-AMERICANAS
MÉTODOS E ABORDAGENS: ALGUMAS REFLEXÕES 1295
Diva Wellk de Oliveira Santos; Pedro Adrião da Silva Junior
GÊNERO DO DISCURSO E LETRAMENTO DIGITAL: ESTADO DO CONHECIMENTO
SOBRE A RELAÇÃO ENTRE AS PRÁTICAS DE LEITURA EM MATERIAL DIDÁTICO
DE LÍNGUA ESPANHOLA NA EAD 1303
Luanna Melo Alves; Samuel de Carvalho Lima
LAZARILLO DE TORMES NA SALA DE AULA: PROPOSTAS DIDÁTICAS PARA O
ENSINO DA HABILIDADE LEITORA EM ESPANHOL COMO LE 1316
Vitoria Girlianny Mendes da Silva
PÔSTER
O DISCURSO POLÍTICO NA AULA DE LÍNGUAS: UMA PRÁTICA DE LETRAMENTO
MULTIMODAL CRÍTICO 1326
José Roberto Alves Barbosa; Alice Chaves de Lima; Ítala Carvalho Lima
CHARGE: UMA LEITURA DISCURSIVA SOB A PERSPECTIVA DA ANÁLISE DO
DISCURSO FRANCESA 1335
Amanda Mikaelly Nobre de Souza; Bárbara Viviany de Souza; Jailson José dos Santos
RETEXTUALIZAÇÃO E ANÁLISE DE GÊNEROS COMO ESTRATÉGIAS DIDÁTICAS
PARA O ENSINO DA LÍNGUA PORTUGUESA
Anderson Victor Gonçalves de Medeiros; Kemila Kelly Costa Bezerra; Jammara Oliveira 1343
Vasconcelos de Sá
O ENSINO DE VIOLÃO NO PROJETO SESI ARTE MOSSORÓ (RN): CONTRIBUIÇÕES
PARA A PRÁTICA DOCENTE 1353
Andrê Medeiros de Paula Firmino
O GÊNERO PROPAGANDA NO DESENVOLVIMENTO DAS PRÁTICAS DE
LINGUAGEM DOS ALUNOS: EXPERIÊNCIA DO ESTÁGIO SUPERVISIONADO 1362
Antônia Jany da Silva; Bruna Luiza Rodrigues do Nascimento; Maria Leidiana Alves
MEMES: UMA ANÁLISE DO CONTEXTO SOCIOPOLÍTICO BRASILEIRO 1370
Aristóteles Sousa Ferreira; Lývia Lorena de Souza Dantas; Thâmara Soares de Moura; Luciana
Fernandes Nery
ENIGMAS DE UM CORPO FANTÁSTICO: UM ESTUDO DE DOIS CONTOS DE
CADEIRAS PROIBIDAS DE IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO 1378
Ana Laura Oliveira Lopes; Leylyane Rafaela Silveira de Negreiros; Monica Valéria Moraes
Marinho; Antonia Marly Moura da Silv
ANÁLISE DO GÊNERO NOTÍCIA À LUZ DAS TEORIAS BAKHTINIANAS 1389
Bárbara Luíza Alves Rubio; Maria Caroline Andrade de Lima; Jammara Oliveira Vasconcelos
de Sá
O PRECONCEITO LINGUÍSTICO E O ENSINO DE LÍNGUA MATERNA: O PAPEL DO
EDUCADOR NO AMBIENTE ESCOLAR 1397
Christian Lucas Siqueira Brasil; Sávio de Souza Carlos
PINTURA EM TELA: RELEITURA DE DIVERSOS ARTISTAS PLÁSTICOS. UM
RELATO DE EXPERIÊNCIA DO PROJETO PIBID ARTE/MÚSICA NA ESCOLA
ESTADUAL DIRAN RAMOS DO AMARAL 1406
Criscianne Ellen Vasconcelos de Santana; Luandrey Célio Silva da Costa; Juliana de Oliveira
Revoredo Souza
A AMBIGUIDADE LEXICAL NAS CHARGES: POLISSEMIA E HOMONÍMIA NO
DISCURSO POLÍTICO 1413
Damasceno Medeiros; Josiender Meneses; Orientadora: Verônica Aragão
O ENSINO DE LEITURA E PRODUÇÃO ESCRITA: UMA ANÁLISE DOS GÊNEROS
TEXTUAIS/ DISCURSIVOS PRESENTES NOS LIVROS DE LÍNGUA INGLESA DO
SEXTO E SÉTIMO ANO DAS ESCOLAS PÚBLICAS DE MOSSORÓ 1424
Débora Brenda Teixeira Silva; Paulo Dhiego Oliveira Bellermann; Adriana Morais Jales
GÊNERO DISCURSIVO/ TEXTUAL RESENHA DE RESTAURANTE: UM
TRABALHO DE PRODUÇÃO ESCRITA ATRAVÉS DE SEQUÊNCIA DIDÁTICA 1432
Débora Brenda Teixeira Silva; Maria Idalina Mesquita de Morais; Adriana Morais Jales
A ANTONÍMIA COMO RECURSO LITERÁRIO SOB A PERSPECTIVA SEMÂNTICA 1440
Emanuelle Kelly Alves de Souza; Rayssa Rovanya Torquato Carvalho; Samara Augusta de
Paiva Silva; Veronica Palmira Salme de Aragão
VARIANTES LINGUÍSTICAS: UM ESTUDO SOBRE DIFERENTES LINGUAGENS EM
MEIO Á FEIRA LIVRE DE PATU 1450
Fernanda Gomes Filgueira; Fabiana Gomes Filgueira; Antônia Roberta de Menezes; Luciana
Fernandes Nery
O ENSINO DE GRAMÁTICA NAS AULAS DE LÍNGUA PORTUGUESA: UM RELATO
DE EXPERIÊNCIA DO ESTÁGIO SUPERVISIONADO 1457
Amanda Mikaelly N. de Souza; Francisca Cleidiana da Costa Barros; Maria Leidiana Alves
RETRATOS DA VIOLÊNCIA: FOTOGRAFIA E PRODUÇÃO DE SENTIDOS 1466
Francisca Meiriane da silva; Marcília Luzia Gomes da Costa Mendes
ESTUDO DA INTERDISCIPLINARIDADE NO LIVRO DIDÁTICO DE ESPANHOL DO
ENSINO MÉDIO PÚBLICO 1478
Gecina Melanie Anastácio da Silva
A ABORDAGEM DA VARIAÇÃO LINGUÍSTICA NA PRÁTICA DE ENSINO DE
LÍNGUA PORTUGUESA 1488
Gerizilda Dantas de Souza; Maria Érica Ismael Silva
A RELAÇÃO LEITURA E LITERATURA NA SALA DE AULA: EXPERIÊNCIAS DO
ESTÁGIO SUPERVISIONADO II DE LÍNGUA PORTUGUESA 1500
Gerizilda Dantas de Souza; Iara Morais Campelo; Sueilton Junior Braz de Lima
PRÁTICA DOCENTE NA TURMA DE ENSINO COLETIVO DE INSTRUMENTOS DE
SOPRO DO PROJETO SOCIAL SESI ARTE DE MOSSORÓ (RN): UM RELATO DE
EXPERIÊNCIA 1508
Gustavo Gomes Pereira; Luiz Carlos de Lima Filho; Renan Colombo Simões
A MÚSICA DESPERTANDO TALENTOS: O PROJETO “THE VOICE DIRAN” NO
MUNICÍPIO DE MOSSORÓ-RN 1520
Ítalo Soares da Silva; Juliana de Oliveira Revoredo Souza
A CRÍTICA SOCIAL EM OS BRUZUNDANGAS NA PERSPECTIVA DO NARRADOR 1527
Jessé Carvalho Nunes; Natália Regina Oliveira Silva
ETHOS, NACIONALISMO E POPULISMO: UMA ANÁLISE DO DISCURSO DE POSSE
DE DONALD TRUMP 1537
Ana Carolina da Silveira Costa Santiago; Emerson Ricardo de Souza Brasil; John Cleberson
Carlos da Silva
DRAMATURGIA BARROCA: UM ESTUDO DAS METÁFORAS PRESENTES EM EL
GRAN TEATRO DEL MUNDO, DE CALDERÓN DE LA BARCA 1546
Kamila Rayanne Alves de Melo; Márcia Socorro Ferreira de Andrade Silva
IDENTIDADE DA MULHER E IDEOLOGIA DE GÊNERO — UMA ANÁLISE DE
PROPAGANDAS TELEVISIVAS 1558
Joyce Heloísa Pascoal de Oliveira; Lara Marques de Oliveira
SEQUÊNCIA DIDÁTICA: UM TRABALHO COM O GÊNERO TIRINHA 1567
Larissa Gomes de Melo; Maria Idalina Mesquita
O ENSINO DA ESCRITA NA LÍNGUA INGLESA UTILIZANDO O GÊNERO TEXTUAL
CURRICULUM VITAE 1570
Larissa Kália Fernandes Costa; Maria Idalina Mesquita de Morais
OS LETRAMENTOS ESCOLARES E O DESENVOLVIMENTO CRÍTICO-REFLEXIVO
DO DISCENTE 1576
Lara Marques de Oliveira; Lívia Maria Pereira da Silva; David Rodrigues
O ENSINO COLETIVO DE INSTRUMENTOS DE METAL NO CONSERVATÓRIO DE
MÚSICA D’ALVA STELLA NOGUEIRA FREIRE 1585
Luandrey Célio Silva da Costa; Renan Colombo Simões
A MULHER NA POESIA DE FLORBELA ESPANCA 1593
Luzia Regina Alves Regis; Poliana Menezes Amorim
O MODERNISMO EM AUGUSTO DOS ANJOS 1601
Aristóteles Sousa Ferreira; Lývia Lorena de Souza Dantas; Maria Fabricia Dantas
DISCURSIVIDADE E SUBJETIVAÇÃO NO ESQUADRÃO DA MODA: A
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO NO ESPAÇO DO VESTIR-SE BEM 1608
Antonio Genário Pinheiro dos Santos; Marcelino Gomes dos Santos
GÊNERO DISCURSIVO/BIOGRAFIA: UM TRABALHO DE PRODUÇÃO ESCRITA
ATRAVÉS DE SEQUÊNCIA DIDÁTICA. 1619
Maria do Socorro do Nascimento Silva; Odejane Fernandes; Maria Idalina Mesquita de Morais
AS REPRESENTAÇÕES FEMININAS EM “MULHERES” E “TERESA”, DE MANUEL
BANDEIRA 1626
Francineide Dantas dos Santos; Maria Lara Alves Rocha
AS POLÍTICAS DE ASSISTENCIA ESTUDANTIL NO INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO,
CIÊNCIA E TECNOLOGIA DO RIO GRANDE DO NORTE: TEMER JAMAIS 1635
Bruna Rafaella de Sousa Silva; Mariana Gleicy de Oliveira Silva; Gilcélia Batista de Gois
“JURIDIQUÊS”: A RELAÇÃO ENTRE A LINGUAGEM JURÍDICA E O ACESSO A
JUSTIÇA 1645
Mateus Felipe Barbosa de França; Maria Alcilene Dantas; Andrea Maria Pedrosa Silva Jales
GÊNERO DISCURSIVO AVISO: UM TRABALHO DE PRODUÇÃO ESCRITA ATRAVÉS
DE SEQUÊNCIA DIDÁTICA 1653
Melissa Rafaela da Silva Morais; Ítala Carvalho Lima; Maria Idalina Mesquita de Morais
TRABALHANDO SEQUÊNCIA DIDÁTICA ATRAVÉS DE GÊNERO TEXTUAL:
ANÚNCIO PUBLICITÁRIO NO CENTRO DE EDUCAÇÃO INTEGRADA PROFESSOR
ELISEU VIANA 1661
Paloma Luana da Silva Delfino; Maria Idalina Mesquita de Morais
FORMAÇÃO E POSTURA NO CURSO DE PEDAGOGIA/UERN: UM NOVO OLHAR A
PARTIR DA MULTIRREFERENCIALIDADE 1669
Francisca Geise Varela Costa; Thalita Juliana de Freitas Meneses; Mayra Rodrigues Fernandes
Ribeiro
ISAÍAS CAMINHA: AS RECORDAÇÕES SOCIAIS DE UMA EDUCAÇÃO
SEGREGADORA NO BRASIL DO SÉCULO XX 1679
Thâmara Soares de Moura; Felícia Pinheiro Gomes; Isac Noel Fernandes Suassuna; Luciana
Fernandes Nery
DORA DOS CAPITÃES DA AREIA, A DORA DO BRASIL 1691
Wellerson Batista de Lima; Larissa Cristina Viana Lopes
ANALISE LITERÁRIA DO CONTO “TIGRELA” DE LYGIA FAGUNDES TELLES 1705
Zita Holanda de Paiva; Girlene Costa; Janiele Suyane de Lima
DISCURSOS E PRÁTICAS DOS “PROTESTANTES LEIGOS” NA DITADURA MILITAR
BRASILEIRA: ANÁLISE DA RESISTÊNCIA DESSES SUJEITOS A PARTIR DOS
REGISTROS DA CNV (BRASIL) 1714
Julysson Charles Pereira Souza; Francisco Paulo da Silva
VIOLAÇÃO AOS DIREITOS DOS POVOS INDÍGENAS NA DITADURA MILITAR
BRASILEIRA: DO REGISTRO DE PRISÕES E TORTURAS ÀS POLÍTICAS DE
REPARAÇÃO APONTADAS PELA CNV 1722
Ramon Bezerra Pereira; Francisco Paulo da Silva
A CONSTRUÇÃO DA IMAGEM MASCULINA NAS CAPAS DA REVISTA MEN’S
HEALTH: UMA ANÁLISE DISCURSIVA 1732
Fábio Dantas da Silva; Ana Maria de Carvalho
MULHER E SEDUÇÃO NO DISCURSO PUBLICITÁRIO: OS EFEITOS DE SENTIDO
DAS PROPAGANDAS DE LINGERIE 1747
Maria do Socorro do Nascimento Silva; Ana Maria de Carvalho
O ENSINO DA ESCRITA NA LÍNGUA INGLESA UTILIZANDO O GÊNERO TEXTUAL
CHAT 1758
Everton Moura dos Santos; Antonio Tássio Ferreira de Oliveira; Carlos Emerson de Souza
Santos
O ENSINO DA ESCRITA NA LÍNGUA INGLESA UTILIZANDO O GÊNERO TEXTUAL
CURRICULUM VITAE 1765
Larissa Kália Fernandes Costa; Maria Idalina Mesquita de Morais
TRABALHANDO SEQUÊNCIA DIDÁTICA ATRAVÉS DE GÊNERO TEXTUAL:
ANÚNCIO PUBLICITÁRIO NO CENTRO DE EDUCAÇÃO INTEGRADA PROFESSOR
ELISEU VIANA 1772
Paloma Luana da Silva Delfino; Maria Idalina Mesquita de Morais; Adriana Morais Jales
O GÊNERO TEXTUAL CONVITE NA ESCRITA DA LÍNGUA INGLESA POR MEIO DE
SEQUÊNCIA DIDÁTICA: UMA EXPERIÊNCIA NO ENSINO MÉDIO 1780
Sonaylli Thaise Souza Cortez; Márcio Simão do Nascimento Mendes
O USO DOS GÊNEROS TEXTUAIS/DISCURSIVOS NAS AULAS DE LÍNGUA INGLESA 1787
DO ENSINO MÉDIO
Vanessa Raíssa Benevides Oliveira; Adriana Morais Jales
Apresentação

O Grupo de Estudos do Discurso da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte -


GEDUERN, em parceria com o Programa de Pós-graduação em Ciências da Linguagem -
PPCL e a Faculdade de Letras e Artes - FALA, propôs a realização do IV CONLID –
Colóquio Nacional de Linguagem e Discurso.
O IV CONLID se pautou na necessidade de pesquisadores da área da linguagem
vivenciarem o debate acadêmico em torno de novas abordagens sobre linguagens, sujeito e
discursos em situação de crise social, política e econômica. Nesse cenário, as relações
existentes entre linguagem, discurso, sujeito e poder colocam para a pesquisa no campo dos
estudos da linguagem, assim como de outras áreas das ciências humanas e sociais, a
necessidade de problematizar o que estamos fazendo hoje, de nosso futuro.
Compreende-se que as sociedades atuais precisam realizar um trabalho sobre o tempo
em virtude do qual, se quiserem a sua sobrevivência e o seu bem-estar, são obrigadas a incluir
cada vez mais o futuro nos seus cálculos. Nos cálculos do futuro outras linguagens e discursos
devem entrar em cena: nada de uma retórica da necessidade em favor dos interesses do
mercado, ao invés de contenção, projetos; ao invés da carência de perspectivas, novas
representações do povir; ao invés de uma lógica da sobrevivência, a possibilidade de fomentar
a esperança; ao invés da perplexidade, reflexividade; ao invés da banalização do fim da
política, reivindicar a verdadeira política e novas formas de governamentalidade.
Em uma observação das mudanças ocorridas no Brasil nos últimos anos e no contexto
de crise econômica certificada por especialistas e vivenciada pela população, verifica-se que,
com relação às políticas do governo para enfrentamento da crise, emerge manifestações
sociais que exigem que a crise não pode ser enfrentada com o sacrifício dos direitos dos
trabalhadores. O clima social inscreve a instabilidade política, o confronto de ideias e
projetos, o acirramento na agenda dos movimentos sociais que reivindicam “nenhum direito a
menos”. Este cenário é propício à produção e circulação de discursos que se materializam em
diferentes linguagens, e sua descrição e interpretação.
14

Nesse cenário, o IV CONLID se propôs discutir a temática Linguagens e discursos


Página

em tempos de crise, entendendo que tal cenário é propício à produção e circulação de

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discursos que se materializam em diferentes linguagens, o que colocou para os pesquisadores
que tem o discurso e a linguagem como objeto de investigação, a necessidade de descrever e
interpretar discursos e práticas relativos ao contexto de sua temática, de modo que os
trabalhos apresentados nesse evento, pudessem oferecer contribuições teórico-metodológicas
para o entendimento, descrição e interpretação da relação discurso, sujeito e poder e
apontassem elementos para a descrição e interpretação de como os sujeitos inscrevem sua
relação com a crise atual e como materializam no discurso e práticas sociais essa relação.

15
Página

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GT1- PRÁTICAS DISCURSIVAS E MODOS DE SUBJETIVAÇÃO

A CONSTITUIÇÃO DAS IDENTIDADES DE GÊNERO NA ESCOLA: UMA


ANÁLISE DISCURSIVA

Ana Cláudia de Medeiros (UERN)


Marco Antonio Lima do Bonfim (UERN)

Introdução

A Análise do Discurso (AD) de linha francesa propõe investigar a ideologia inscrita


nos discursos que circulam nos diversos espaços sociais, atentando também para a maneira
como os discursos constituem nossas identidades sociais. Partindo da tese de língua como
uma prática social, realizamos neste estudo uma análise discursiva da constituição de
identidades de gênero masculina e feminina em uma escola pública no município de Mossoró-
RN.
Vale ressaltar que este estudo apresenta alguns dos resultados de nossa pesquisa de
mestrado (MEDEIROS, 2016) desenvolvida no âmbito do Programa de Mestrado Profissional
em Letras – ProfLetras/UERN, defendida no ano de 2016, sob orientação da Profa. Dra. Lúcia
Helena Medeiros da Cunha Tavares. Teoricamente nos apoiamos na perspectiva da Análise do
Discurso de tradição Francesa (FOUCAULT, 1996; 2009a; 2009b; 2012; PÊCHEUX, 2007) e
nas pesquisas sobre as relações de gênero e a escola (COLLING, 2004; TAVARES, 2012;
LOURO, 2008).
O artigo está estruturado em quatro seções. Na primeira, apresentamos a abordagem
discursiva da AD, discutindo os conceitos de discurso, poder e memória discursiva. Em
seguida, na segunda seção apresentamos a categoria de gênero sob a ótica dos estudos de
gênero, na sequência descrevemos a metodologia empregada e, por fim, efetuamos a análise.

1 Os dispositivos teórico-metodológicos da AD

A Análise do Discurso é uma disciplina que começou a ter lugar no Brasil somente a
partir da década de 1980. Esse novo campo de conhecimento está comprometido com a
16

produção de sentido em seu contexto de produção, e por isso não trabalha com a língua
fechada em si mesma, mas com o discurso, que é social e histórico, contemplando as
Página

condições de produção que o envolve, as quais são sócio-históricas e ideológicas,

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relacionando a linguagem à sua exterioridade. A seguir, faremos uma breve apresentação
dessa área, bem como das categorias que direcionaram este trabalho de pesquisa, a saber,
discurso, memória discursiva e poder.
Esse campo do saber teve origem na França, na década de 1960, a partir de um projeto
desenvolvido por Michel Pêcheux - filósofo que empreendeu estudos em torno do marxismo,
da psicanálise e da epistemologia - que almejava, na época, elaborar um projeto teórico que
visava à construção de uma teoria materialista do discurso aliada a um projeto político de
intervenção na luta de classes, a partir da leitura althusseriana do marxismo-leninismo
(GREGOLIN, 2006, p. 53). Essa nova área do conhecimento resultou de uma relação
interdisciplinar entre a Linguística, a História e a Psicanálise. Segundo Orlandi (2005),
Pêcheux baseou a estrutura teórica da AD nesses campos do conhecimento, mas não significa
dizer que a AD absorveu os conceitos teóricos dessas disciplinas para que pudesse existir.
Pelo contrário, a AD surge como um questionamento, reivindicando conceitos e propondo
uma nova forma de interpretar a linguagem.
Dentro desse novo campo um conceito que é importante esclarecer é o conceito de
discurso. De acordo com Fernandes (2007, p. 18), "discurso implica uma exterioridade à
língua, encontra-se no social e envolve questões de natureza não estritamente linguística".
Falar de discurso como objeto da AD diz respeito a levarmos em conta em nossas análises
linguísticas os aspectos sociais e ideológicos constitutivos das palavras.
Orlandi (2005, p. 15), argumentando sobre o discurso como ação social, nos diz que
"a palavra discurso, etimologicamente, tem em si a ideia de curso, de percurso, de correr
por, de movimento. O discurso é assim palavra em movimento, prática de linguagem: com
o estudo do discurso observa-se o homem falando”. Uma categoria importante que integra a
noção de discurso é a do sentido, compreendida como “um efeito de sentidos entre sujeitos
em interlocução (sujeitos se manifestando por meio do uso da linguagem” (FERNANDES,
2007, p.19).
Diante dessas considerações, podemos entender que para se analisar o discurso, é
necessário interpretar os dizeres dos sujeitos e a produção de sentidos do que se diz. Esses
dizeres estão estritamente relacionados às suas atividades sociais. Referindo-nos à produção
de sentidos, no discurso, “os sentidos das palavras não são fixos”, “imanentes”
17

(FERNANDES, 2007, p. 21), eles ultrapassam os significados prescritos nos dicionários. Os


sentidos vão sendo dados de acordo com a ideologia dos sujeitos em interlocução, conforme
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os lugares que estes ocupam.

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Orlandi (2005) afirma que os discursos são produzidos sob determinadas condições
de produção, as quais se relacionam à exterioridade e à história. Os sentidos produzidos por
esses discursos têm a ver com o que é dito naquele momento, naquele lugar, mas também
com o que não é dito. As condições de produção (o contexto imediato, em sentido estrito, e
o contexto sócio-histórico, ideológico, em sentido amplo) estão relacionadas com os
sujeitos e a situação, bem como com a memória.
De acordo com Halbwach, citado por Davallon, (2007, p. 25), a memória é
caracterizada como "o que ainda é vivo na consciência do grupo para o indivíduo e para a
comunidade". Para Davallon (2007), tem-se uma constatação importante: para que haja
memória, é necessário que um acontecimento ou um saber registrado deixe de ser
insignificante, que saia da indiferença. Precisa conservar uma força para que faça impressão
a posteriori.
Achard (2007), tratando da memória do ponto de vista discursivo, nos apresenta os
implícitos como necessários à reconstituição do acontecimento na memória, por meio das
retomadas, remissões e paráfrases, as quais constituem regularizações discursivas. A
memória não pode ser provada, nem mesmo ser deduzida a partir de um texto, mas no
discurso concreto ela pode ser recuperada a partir dos implícitos e das paráfrases,
operadores da língua que fazem um jogo entre o histórico e o linguístico, constituindo a
materialidade de uma certa memória social. A esse respeito Pêcheux (2007) afirma:

a memória discursiva seria aquilo que, face a um texto que surge como
acontecimento a ler, vem restabelecer os "implícitos" (quer dizer, mais
tecnicamente, os pré-construídos, elementos citados e relatados, discursos-
transversos, etc.) de que sua leitura necessita: a condição do legível em
relação ao próprio legível (PÊCHEUX, 2007, p. 52).

O referido filósofo, ainda abordando o papel da memória, nos fala: "memória deve
ser entendida aqui não no sentido diretamente psicologista da 'memória individual', mas nos
sentidos entrecruzados da memória mítica, da memória social inscrita em práticas, e da
memória construída do historiador" (PÊCHEUX, 2007, p. 50). É válido dizer então que a
inscrição do acontecimento no espaço da memória tem se apresentado constantemente sob
uma dupla forma-limite: "1) O acontecimento que escapa à inscrição, que não chega a se
18

inscrever; 2) O acontecimento que é absorvido na memória, como se não tivesse ocorrido"


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(PÊCHEUX, 2007, p. 50).

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Atravessando os conceitos de discurso e memória discursiva temos a noção de
poder, pois os sujeitos estabelecem com a História, com a linguagem e com as práticas
discursivas relações de dominação. Parafraseando Foucault (1996), não se pode falar
qualquer coisa, em qualquer tempo, em qualquer lugar. É necessário sempre se submeter à
“ordem do discurso” (GREGOLIN, 2006, p. 95). Como nos diz o referido filósofo, "sabe-
se bem que não se tem o direito de dizer tudo, que não se pode falar de tudo em qualquer
circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar de qualquer coisa." (FOUCAULT,
1996, p. 9).
Foucault (1996) analisa o poder na sociedade não como algo monopolizado pelo
Estado, mas como um elemento que está pulverizado em todas as instituições, em todas as
relações sociais, de modo que existe uma rede de micropoderes. Sob a análise foucaultiana,
o poder parte, não do centro (o Estado), mas das periferias. Foucault não entende os
mecanismos de poder como sendo um indivíduo ou um grupo dominando o outro, mas
como as “múltiplas formas de dominação que podem se exercer na sociedade”
(FOUCAULT, 2012, p. 282). Não o rei no centro do poder, mas os súditos em relações
recíprocas de poder.
Analisando as relações de poder nos níveis periféricos se pode ter uma melhor
percepção de como elas estão presentes nas estruturas sociais que se materializam nos
discursos - no caso desta investigação - produzindo as marcações de gênero para mulheres e
homens.

2 A constituição discursiva de gêneros na escola

As mulheres, historicamente, foram consideradas seres inferiores aos homens na


maioria das sociedades, desde tempos remotos. A desigualdade entre os gêneros feminino e
masculino tem sido premente, latente, desde tempos imemoriais. Segundo Tavares (2012),
o lugar designado para as mulheres, por muito tempo, foi o confinamento do lar, o espaço
privado, já que se dizia que a mulher era um ser frágil, que necessitava da proteção do
homem (pai, irmão, marido, etc), sendo “criada para enclausurar-se no espaço privado,
dedicando-se à família e às coisas domésticas, zelando pelo bem-estar do marido e filhos,
19

vocação benéfica para a sociedade inteira” (COLLING, 2004, p. 23).


Nesse contexto, é de suma importância a discussão a respeito do conceito de
Página

gênero, categoria imprescindível para a compreensão das relações entre os gêneros. A esse

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respeito Louro (2003) afirma que o termo gênero ou gender foi usado primeiro pelas
feministas anglo-saxãs como categoria distinta de sexo (sex), a fim de demonstrar que as
distinções baseadas no sexo são construções sociais, em outras palavras, uma construção
sociodiscursiva.
Citando Scott, Louro (2003, p. 21) relata que as feministas visam “rejeitar um
determinismo biológico implícito no uso de termos como sexo ou diferença sexual",
ressaltando, por meio da linguagem, "o caráter fundamentalmente social das distinções
baseadas no sexo" (SCOTT, citada por LOURO, 2003, p. 21). Para Colling (2004) o termo
gênero tem sido usado como teoria para a diferença entre os sexos e para questionar os
papéis sociais designados aos homens e às mulheres. Para a autora, “são as sociedades, as
civilizações, que conferem significado à diferença. Portanto, não há verdade na diferença
entre os sexos, mas um esforço interminável para dar-lhe sentido, interpretá-la e cultivá-la”
(COLLING, 2004, p. 17)
Assim, o debate deve se dar em torno do social, palco das relações desiguais,
hierarquizadas, entre os gêneros feminino e masculino. É nesse campo que são construídos
os gêneros, onde se dão as generalizações a respeito do que é ser homem e do que é ser
mulher. Conforme Colling (2004, p. 29), falar em “gênero” e não em “sexo” significa dizer
que não é um fato natural a condição das mulheres, mas é resultado de uma “invenção, de
uma engenharia social e política. Ser homem/ser mulher é uma construção simbólica que
faz parte do regime de emergência dos discursos que configuram sujeitos” (COLLING,
2004, p. 29).
Retomando a principal tese da AD, qual seja, a ideia de língua como prática social
e, portanto, constitutiva de nossas ações, podemos afirmar que o discurso constrói
identidades de gênero. Sendo assim, como são constituídas as identidades de gênero
feminina e masculina na escola?
Para Louro (2003) a escola tem sido um local de reprodução de hierarquias sociais
e de gênero. Segundo a autora, essa distinção também foi feita internamente, entre os que
adentraram os muros da escola, “através de múltiplos mecanismos de classificação,
ordenamento, hierarquização” (LOURO, 2003, p. 57). A instituição escolar, segundo Louro
(2003), dita o que cada um/uma pode fazer, bem como o lugar que pode ocupar.
20

A historiadora argumenta ainda que a escola, assim como diferentes comunidades


e, dentro delas, determinados grupos sociais, faz parte de um processo que induz os sujeitos
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a conceberem e lidarem com o tempo e o espaço de diversos modos: se valoriza de formas

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distintas o tempo do trabalho e do ócio; o espaço da casa ou da rua; que lugares são
permitidos ou proibidos e quem pode ou não circular por eles. Essas concepções, por meio
de práticas e instituições, são apreendidas e interiorizadas, de modo que se tornam quase
naturais, ainda que sejam construções culturais.
Diante dessas posturas teóricas a respeito de uma concepção discursiva de
linguagem, articulada com os estudos de gênero foi que propomos investigar de que forma
se materializam os discursos sobre as relações de gênero na escola e, a partir disso, como
são constituídas as identidades masculina e feminina no discurso escolar, sob a influência
dos vestígios da memória discursiva.

3 Metodologia

Adotamos a pesquisa-ação, com abordagem qualitativa, por meio da análise de


questionários na temática das relações de gênero, coletados durante as aulas ministradas.
Para Thiollent (2005), a pesquisa-ação é um tipo de pesquisa social de base empírica,
cuja realização é feita associando-se a ação com a resolução de um problema coletivo, no qual
pesquisadores e participantes se envolvem de forma cooperativa ou participativa, que no
nosso trabalho teve a ver com a problematização das relações hierarquizadas entre os gêneros
na sociedade, de modo que os sujeitos que fizeram parte da ação não sejam só pesquisados,
mas que também possam, a partir da intervenção da qual participaram, ser capazes de
questionar os papéis sociais definidos para eles historicamente, que possam ter “meios de se
tornarem capazes de responder com maior eficiência aos problemas da situação em que
vivem, em particular sob forma de diretrizes de ação transformadora” (THIOLLENT, 2005,
p.10).
Nossa pesquisa foi realizada em uma escola pública da rede estadual de ensino, na
cidade de Mossoró-RN, com alunos e alunas de uma turma de 9º ano do ensino fundamental
II, com faixa etária entre 14 e 15 anos e apenas uma aluna com 13 anos de idade, no ano de
2015. Escolhemos alunos e alunas nesse nível em vista de que a temática das relações de
gênero envolve discussões que requerem um maior grau de maturidade dos sujeitos, em
comparação com estudantes de níveis de ensino anteriores.
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No que diz respeito à delimitação do corpus, é necessário reafirmar que este é fruto
de pesquisa anterior e mais ampla da autora (MEDEIROS, 2016), composta por aplicação
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de questionários, exibição de cinco vídeos, discussão com alunas e alunos em sala de aula e,
após isso, a confecção de artigos de opinião.
Foram produzidos quatorze artigos de opinião, dos quais selecionamos trechos
discursivos de dois (de uma aluna e de um aluno), a fim de perceber a materialização das
identidades de gênero na escola. Por fim, relatamos que as categorias de análise utilizadas
foram: discurso, memória discursiva, identidade de gênero e relações de poder. Na
sequência, passaremos à análise dos dados coletados.

4 Análise dos dados

Como nosso interesse foi investigar a construção discursiva de identidades de gênero


feminino e masculino na escola, esta seção dedica-se à análise e discussão dos resultados.
Conforme já mencionado na seção de metodologia, os dados analisados neste artigo
resultaram da produção de artigos de opinião confeccionados por alunos de uma turma de 9º
ano de uma escola pública no município de Mossoró, no ano de 2015. Selecionamos para esta
análise trechos discursivos de dois artigos, um produzido por uma aluna e o outro por um
aluno.
O primeiro texto escolhido intitula-se "A luta pela igualdade". Vejamos alguns
trechos:
Excerto 1

Desde das antiguidades, houveram padrões nos quais a mulher sempre foi
rebaixada e excluída da vida na sociedade. Tendo como obrigação ser
dona de casa, e o homem com qual vivia, trabalhar e sair, para se divertir
(Aluna 01).

Assim como todo discurso, esse trecho discursivo é constituído por meio de redes
discursivas que materializam ideologias (neste caso de gênero) em conflito (re)elaborando os
sentidos que aparecem nos textos. Ao atentarmos inicialmente para o título: “A luta pela
igualdade” é possível visualizarmos como a memória, esse "já-dito", retorna para significar no
texto da referida aluna uma ideologia feminista, qual seja, a igualdade entre homem e mulher.
No entanto, cabe perguntar: porque lutar por igualdade de gênero? A pergunta, assim como o
22

título do artigo de nossa informante, remete à memória de que vivemos relações desiguais
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entre homens e mulheres. Esse discurso, que hierarquiza os gêneros e por consequência define
também as posições ocupadas por homens e mulheres nos espaços sociais, também aparece no
ISBN: 978-85-7621-221-8
trecho: "a mulher sempre foi rebaixada e excluída da vida na sociedade. Tendo como
obrigação ser dona de casa".
Note como o uso da expressão "sempre" empregada por nossa informante
materializa uma posição de que "sempre foi assim", revelando um discurso naturalizante
entre os gêneros o que pode ser evidenciado também no discurso reproduzido na escola
investigada, pois percebemos através de nossa vivência com os sujeitos pesquisados, como
a posição hierarquizante atribuída à mulher constrói sua identidade de gênero, de maneira a
ser visível a produção discursiva de uma aptidão para as tarefas domésticas, ou seja, nós
mulheres ‘leva[mos] mais jeito’ para realizar tais afazeres. Sob essa ótica, o homem, por
outro lado, "naturalmente" é desajeitado, desleixado, não leva jeito para as tarefas
consideradas ‘coisas de mulher’ (MEDEIROS, 2016, p. 67).
Passemos para o segundo artigo, produzido por um aluno, tendo como título:
"homem primata".
Excerto 2

A desigualdade genero feminino é uma coisa muito antiga que vem da do


tempos do homem dos cavernos. Atualmente esta situação vem mudono de
vagar.

De início percebemos uma interdiscursividade que retoma os sentidos do texto


anterior, isto é, aqui também a memória discursiva que naturaliza as posições de gênero para
homens e mulheres também comparece: a desigualdade de gênero [...] "vem da do tempos do
homem dos cavernos." Por outro lado, é possível também observar a mobilização de sentidos
recuperados pela memória discursiva de que "esta situação esta mudono[mudando]",
produzindo o efeito de sentido de mudanças quanto à representação dos gêneros na escola,
apontando para um questionamento do apego ao “raciocínio forjado e amparado pelo
determinismo biológico” (FURLANI, 2009, p 136), segundo o qual, por causa dos atributos
biológicos da mulher, é “natural”, faz parte da “essência” feminina o casamento, a
maternidade, os cuidados com os filhos e com o lar.

Considerações finais
23

Iniciamos este artigo apresentando a Análise do Discurso de linha francesa, que


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propõe investigar a língua na sua relação com o extralinguístico, com a ideologia inscrita nos
discursos que circulam nos diversos espaços sociais, contribuindo também para a constituição
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de nossas identidades sociais. Partimos, neste estudo, da hipótese de que os discursos que
circulam no interior da escola produzem identidades de gênero masculinas e femininas de
maneira hierárquica. Para analisar esse trabalho discursivo apresentamos os conceitos de
discurso, poder e memória discursiva. Em seguida, apresentamos a categoria de gênero sob a
ótica dos estudos de gênero e, por fim, após a descrição da metodologia, efetuamos a análise.
Os dados analisados demonstraram que as identidades de gênero para mulheres e
homens são construídas discursivamente, definindo papeis sociais para cada gênero. Nossa
análise revelou também que os sujeitos vão se constituindo a partir das relações sociais, das
práticas e dos discursos veiculados pelas instituições sociais, dentre as quais a escola.
Diante desses resultados afirmamos que é imprescindível que a escola, assim como
outras instituições, enfrente as questões de gênero e busque mecanismos para dirimir as
desigualdades entre os gêneros, a fim de que, de fato, o ambiente escolar seja um ambiente
em que estejam presentes a pluralidade, o respeito, a igualdade entre os sujeitos que dele
fazem parte.

Referências

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Papel da Memória. 2. ed. Tradução e introdução: José Horta Nunes. Campinas: Pontes,
2007.

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N.; CABEDA, Sonia T. Lisboa; PREHN, Denise R. (orgs). Gênero e Cultura: questões
contemporâneas. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004.

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Memória. 2. ed. Tradução e introdução: José Horta Nunes. Campinas: Pontes, 2007.

FERNANDES, Cleudemar Alves. Análise do discurso: reflexões introdutórias. 2. ed. São


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Sampaio. São Paulo: Loyola, 1996.

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desconstruindo significados na Educação Sexual. In: PARANÁ. Secretaria de Estado da


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e Diversidade Sexual. Sexualidade. Curitiba: SEED –PR, 2009.

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GREGOLIN, Maria do Rosário. Foucault e Pêcheux na análise do discurso: diálogos e
duelos. São Carlos: Claraluz, 2006.

LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós


estruturalista. 6.ed. Petrópolis: Vozes, 2003.

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Estado do Rio Grande do Norte, Mossoró, 2016.

ORLANDI, Eni P. Análise do discurso: princípios e procedimentos. 6. ed. Campinas: Pontes,


2005.

PÊCHEUX, Michel. Papel da Memória. In: ACHARD, Pierre et all. Papel da Memória. 2.
ed. Tradução e introdução: José Horta Nunes, Campinas: Pontes, 2007.

TAVARES, Lúcia Helena. M. C. Mulher, trabalho e família: jogos discursivos e redes de


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Pessoa, 2012.

THIOLLENT, Michel. Metodologia da pesquisa-ação. 14. ed. São Paulo: Cortez, 2005.

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GT1- PRÁTICAS DISCURSIVAS E MODOS DE SUBJETIVAÇÃO

UMA ANÁLISE DO DISCURSO DA INCLUSÃO DO SUJEITO COM DEFICIÊNCIA


NA MÍDIA: RELAÇÕES DE PODER NA CONSTRUÇÃO DOS EFEITOS DE
SENTIDO

Antônia Janny Chagas Feitosa


Universidade do Estado do Rio Grande do Norte- (UERN)
Maria Eliza Freitas do Nascimento
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN)

Introdução

A Análise do Discurso de vertente francesa é um campo de estudo que se preocupa em


relacionar a língua com a história. Desse modo, o contexto sócio-histórico da
contemporaneidade faz emergir discursos que abordam a inclusão das pessoas com
deficiência na sociedade.
Nessa perspectiva, o objetivo geral deste trabalho é analisar os efeitos de sentidos nos
enunciados que discursivizam os jogos paralímpicos ocorridos em 2016, observando algumas
estratégias do poder- saber na produção desses efeitos de sentidos ligados as superações dos
atletas com deficiência na sociedade.
Para tanto, foi necessário desenvolver uma pesquisa de natureza qualitativa. Tendo
como fundamentação teórica a Análise do Discurso de linha francesa a partir das
contribuições do autor Michel Foucault. Para escavar a emergência do discurso da inclusão,
partimos de um método que nos dá suporte para entender as questões históricas que precedem
e sucedem as práticas de inclusão. Assim, usamos o método arqueogenealógico, tendo em
vista que, através dele Foucault “construiu um modo de análise daquelas práticas culturais,
em nossa cultura, que têm sido instrumentais para a formação do indivíduo moderno tanto
como objeto quanto como sujeito”. (DREYFUS; RABINOW, 2010, p. 160).
Em seguida, selecionamos o corpus para análise, que é composto por uma reportagem
que está materializada na edição 15 de setembro de 2016, publicada pelo jornal G1, com base
no tema do esporte. Logo mais, realizamos a análise dos enunciados, a partir de uma leitura
discursiva, com sistematização de resultados, os quais apontam para a construção dos efeitos
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de sentido no discurso da inclusão.


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Saber-Poder na teoria Foucaultiana.

A relação de poder e a produção de saber são percorridas na obra Foucaultiana por


momentos distintos. Na fase Arqueológica, a autora Gregolin (2004), sintetiza que o
pensamento de Foucault está voltado para a história da loucura, da medicina e de certos
campos dos saberes que tratam sobre a linguagem e o trabalho. É nessa fase, que o filósofo
investiga os saberes ocidentais, e arqueológico para compreender a história desses saberes.
Assim, na Arqueologia do Saber, Foucault propõe estudar os enunciados como unidade
elementar até chegar na construção do arquivo das discursividades contemporâneas.
Na fase genealógica, “o poder passa a ser analisado com base nas suas práticas e nas
produções desenvolvidas pela sociedade” (SILVA, 2004, p. 160). Nesse sentido, Foucault em
sua obra Microfísica do poder aborda cinco precauções metodológicas relacionadas ao poder.
Na primeira precaução, ele enfatiza que o poder não deve ser analisado em seu centro, mas
em suas extremidades em instituições locais, regionais e materiais quer que se trate do
suplício ou encarceramento (FOUCAULT, 2007).
Na segunda precaução, o filósofo deixa claro que o poder não deve ser analisado no
plano da intenção ou decisão, ou como um meio pelo qual as pessoas querem dominar, mas
como funcionam o processo de interrupções que sujeitam os corpos, que dirigem os gestos,
regem os comportamentos, etc.
Na terceira precaução metodológica, Foucault deixa claro que o poder não deve ser
investigado como algo que é de dominação homogênea de uma classe sobre a outra de um
sujeito sobre os outros. O poder deve ser analisado como aquilo que funciona em uma cadeia
e se exerce em rede, assim, o poder não se aplica nos indivíduos, passa por eles. O sujeito é
um efeito do poder. (FOUCAULT, 2007).
Na quarta precaução, observamos a forma de investigação do poder. Para Foucault,
não se deve partir do centro do poder, pois primeiro é necessário analisar como os fenômenos,
as técnicas e os procedimentos atuam nos níveis mais baixos.
Na quinta e última precaução metodológica, Foucault acredita que as grandes
máquinas do poder não são constituídas pelas ideologias, pois o que de fato forma o poder são
os instrumentos reais de formação e de acumulação do saber, são os métodos de observação,
27

técnicas de registro, procedimento de inquéritos e de pesquisa e aparelhos de verificação,


assim, observamos que o saber atua como instrumento do poder (FOUCAULT, 2007).
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Diante dessas precauções metodológicas acerca da noção do poder, compreendemos
que a teoria Foucaultiana relaciona esta categoria com os saberes e como eles são usados para
o controle do corpo social por meio de instituições sociais.
De acordo com essas precauções, o autor destaca as relações de poder, relacionando as
estratégias do poder ligado a soberania, disciplina e biopolítica. Nesse sentido,
compreendemos que Foucault analisa o poder em suas diferentes vertentes. Inicialmente
aborda o poder soberano, cujo fundamento era castigar com a morte, marcando a era dos
suplícios sobre o corpo. Em seguida analisa o poder disciplinar que utiliza a punição e a
vigilância para a disciplinarização do indivíduo.
Nessa acepção, O poder soberano é visto como uma atribuição de poder absoluto. A
relação de poder na soberania mostra as vontades de quem domina e as técnicas de submissão
para os dominados. Nessa perspectiva, Nascimento (2013) faz uma síntese das ideias de
Foucault (2005) e apresenta os quatro papéis desempenhados pela teoria jurídica- política da
soberania.
Primeiramente o conceito de soberania foi usado como mecanismo de poder pela
monarquia feudal; segundo, esteve relacionada a maneira de erguer a monarquia
administrativa; terceiro, foi utilizada para fortalecer o poder do rei. O quarto papel, após as
divulgações das teses de Rousseau, surge alternativas contra as monarquias autoritárias e
absolutas.
Desse modo, observamos que a teoria da soberania envolve o poder como uma
estratégia em que os soberanos utilizam para atender aos seus interesses. É importante
ressaltar que o sistema jurídico surgiu no ocidente, o qual foi elaborado a pedido e em
benéfício ao rei. Segundo Foucault (2005, p. 30 apud NASCIMENTO 2013, p.75), “o direito
foi um dos instrumentos técnicos constitutivos do poder monárquico, autoritário,
administrativo e, finalmente, absoluto”.
Assim, percebemos que a teoria política dava ao rei a legitimidade de administrar suas
terras, controlar a economia do Estado e seus povos. Diante disso, “o soberano não precisava
medir esforços, mesmo diante da crueldade ou da trapaça, se o que estiver em jogo for a
integridade nacional e o bem do seu povo”. (MAQUIAVEL, 1996 apud NASCIMENTO,
2013, p.70).
28

Nessa perspectiva, o corpo passa a ser vigiado, correndo o risco de sofrer as mais
variadas formas de castigos, e no que se refere a esfera de ostentação do poder na soberania,
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Nascimento afirma que:

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O corpo era marcado, condenado, torturado, exposto, supliciado até a morte
como forma de punição para os delitos praticados. Esse fato caracterizou a
época dos grandes suplícios e marcou a morte como espetáculo público,
encenada no teatro do poder soberano, no qual o crime e o castigo são lados
da mesma moeda (2013, p. 77).

Diante dessa ressalva, observamos que o sujeito ao ser penalizado, o seu castigo
deveria ser exposto para que a sociedade pudesse assistir de perto ao espetáculo, sendo que
esta estratégia estava em consolidação com as teorias jurídicas.
Com o passar dos anos surgiram vários fatores que contribuíram para que o corpo
fosse adestrado de outra maneira, a exemplo disso temos o iluminismo, as novas teorias do
direito e as revoluções liberais que não aprovava a esfera de ostentação do poder na soberania.
Assim, surge o poder disciplinar que é capaz de regular e controlar o corpo sem a
necessidade dos suplícios e espetáculos de execução pública. Nesse sentido, Foucault (2010)
investiga os dispositivos do poder nas instituições como: hospitais, prisão e escola, dentre
outras, tendo vista que estes ambientes eram instituições que tinham por princípio o
disciplinamento das condutas dos sujeitos, por meio de técnicas e táticas específicas. Para este
filósofo:

A disciplina é um tipo de poder, uma modalidade para exercê-lo que


comporta todo um conjunto de instrumentos, de técnicas, de procedimentos,
de níveis de aplicação, de alvos; ela é uma ‘física’ ou uma ‘anatomia’ do
poder, uma tecnologia (FOUCAULT, 2010, p. 203).

Podemos observar que o corpo ao ser docilizado pelo poder disciplinar é perpassado
por várias técnicas de disciplinamento. Diante isso, os espaços físicos eram tidos como os
principais meios em que os atos desses indivíduos eram vigiados e controlados para se
tornarem hábeis para o trabalho e viverem no meio social.
Parafraseando as ideias de Nascimento (2013) observamos que tanto a prisão quanto
as demais instituições funcionaram como aparelhos de poder e saber que agiram visando a
disciplinarização e a docilização do corpo. Com isso, todas as entidades disciplinares
apoiavam-se em um sistema que possibilitasse o controle do corpo, sendo protegidas por uma
fachada de muros altos, camuflando o modelo circular, o qual favorece a vigilância constante.
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De acordo com Nascimento (2013), o poder disciplinar tinha por finalidade acabar
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com o excesso de poder que era concedido ao rei e por outro lado tinha o intuito de não acabar

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com os castigos, mas mudar as práticas de punição por meio do adestramento e
disciplinamento do corpo em seu modo individual e restrito. Desse modo, Foucault (2010b p.
13-16) enfatiza que “[...] desapareceu o corpo supliciado, esquartejado, amputado, marcado
simbolicamente no rosto ou no ombro, exposto vivo ou morto, dado como espetáculo.
Nesse sentido, observamos que o poder disciplinar está ligado ao biopoder o qual
“enfoca os aspectos da vida da população, palavra de ordem que indica o conjunto de
indivíduos que podem ser governados” (NASCIMENTO, 2013, p. 104), fazendo surgir a
biopolítica e a governamentalidade visando a normalizar e regulamentar a vida da população
por meio de estratégias de controle. Dentre elas destacam-se as campanhas de prevenção de
doenças, acidentes, e tudo que coloque a vida em risco.
Desse modo, a sociedade passa a ser controlada em conjunto por meio do estado que
quantificava o número de nascimento das crianças, natalidade, mortalidade, migração e
criminalidade. Também havia o interesse em observar outros segmentos da sociedade, tais
como o saneamento nas maiores cidades, a ocorrência das doenças contagiosas e do racismo
de estado. Com isso se fez necessário a produção de vários saberes.
A exemplo disso temos a medicina social, que sendo uma das estratégias da
biopolítica, envolve o corpo e o saber da medicina no campo político. Na Alemanha havia
uma ciência do estado que segundo Foucault se desenvolveu a partir da estagnação e o não
desenvolvimento da economia deste país após a guerra dos anos 30, que impulsionou os
burgueses a oferecer seus homens, suas capacidades e seus recursos a organização do estado e
isso favoreceu o monitoramento e o controle das doenças.
Na França surgiu uma medicina urbana que se preocupava com as doenças
epidêmicas, as condições de moradia e saúde dos indivíduos. Assim, foi sugerido uma
“(melhor localização para cemitérios, matadouros, etc.); e o controle a qualidade da água e do
ar, dentre outras, visando atender e proteger a burguesia” (NASCIMENTO, 2013, p. 109).
Na Inglaterra havia a medicina do trabalho que tinha como objetivo controlar a saúde e
o corpo das classes mais pobres “para torna-los aptos no trabalho e menos perigosos ás
classes mais ricas” (FOUCAULT, 2007, p. 97).
Cabe ressaltar a existência do racismo de estado que segundo Nascimento tinha a
preocupação em:
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Higienizar a sociedade por meio da aniquilação da raça inferior. Isso faz


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surgir o embate entre duas forças, ou melhor, duas raças, na medida em que

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uma é promovida como verdadeira e única, que detém o poder a outra está
fora e constitui o perigo ao patrimônio biológico. (NASCIMENTO, 2013, p.
114).

A exemplo do racismo de estado temos o Nazismo preconizado na Alemanha sob a


liderança de Adolf Hitler que julgava os alemães como a raça mais pura da Europa e superior
intelectualmente e fisicamente e condenavam os judeus como uma raça inferior que deveriam
ser eliminados e assassinados de forma cruel.
O biopoder atua na vida de diversas maneiras, desse modo Foucault enfatiza outra
manifestação da biopolítica, que diferentemente do racismo de estado contribui para que o
corpo do sujeito, seja docilizado, passando a ser incluído na vida social, por meio de suas
produções, e é dessa maneira que surgem os discursos de inclusão nas materialidades
midiáticas.
Desse modo, podemos enfatizar as estratégias da governamentalidade, que sendo
“desenvolvida por relações de poder e dominação, vinculadas a estratégias que agem
desencadeando ações sobre os outros, por meio de aparelhos específicos de governo e de um
conjunto de saberes” NASCIMENTO (2013, p. 60). Nessa perspectiva, constatamos que o
corpo humano, quer que seja no individual ou coletivo, passa a ser governado e regulado pelo
Estado e por vários dispositivos do poder, que por sua vez estão vinculados a vários saberes
que são distribuídos em lugares distintos, nesse sentido, é pertinente destacar que existe uma
infinidade desses saberes e dentre eles podemos citar o saber pedagógico, psiquiátrico, o
jurídico e entre outros.
Notamos que há vários tipos de saberes e técnicas disciplinares que surgem como
estratégias da governamentalidade que passam a governar e controlar o sujeito com
deficiência, com o intituito de promover saúde e acessibilidade a escola, trabalho, lazer,
esporte, e etc, para esses indivíduos. Nessa perspectiva, apontamos o saber jurídico, que pode
ser compreendido como “o conjunto constituído pelas instituições, procedimentos, análises e
reflexões que permitem exercer esta forma bastante específica e complexa de poder, que tem
por alvo a população, por forma principal de saber a economia política” (FOUCAULT,
2007b, p. 291).
No tópico a seguir observaremos como se dá as estratégias da governamentalidade
para a inclusão dos Sujeitos com deficiência para a promoção de prevenção de doenças,
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integração social e superação.


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As estratégias da governamentalidade para a inclusão do sujeito com deficiência

A materialidade a ser analisada está na edição 15 de setembro de 2016, publicada pelo


jornal G1 no dia 15/09 de 2016 que tem como título “Projetos oferecem esportes gratuítos
aos cadeirantes no Rio” a qual aborda o apoio de projetos a todos os deficientes , dentre eles
os atletas paralímpicos Walacce Antônio e Ricardo Nunes.

De início, o jornal discursiviza de maneira destacada, com letras em negrito “Projetos


oferecem esportes gratuitos aos cadeirantes no Rio”. Desse modo, essa enunciação faz um
resgate da existência de várias instituições que tentam garantir a acessibilidade a todos os
sujeitos com deficiência por meio do esporte. Dentre elas, podemos citar o clube ´novo ser´,
‘Clube Novo Ser de Power Soccer’ e o projeto ‘renascer, servir e proteger ´ todos localizados
no RJ que disponibilizam projetos grátis com atividades paralímpicas para todos os
deficientes.
No enunciado em que o esporte atua como uma das maneiras para os jovens voltarem
ao convívio social, notamos que esse discurso tem como efeito de sentido mostrar as
superações desses indivíduos que, possivelmente após se tornarem deficientes nem saiam de
casa, e em contato com esporte perceberam que ainda poderiam voltar a interagir na sociedade
como os ditos normais.
Nesta mesma reportagem, o sujeito enunciador apresenta em suas materialidades
alguns projetos que além de operarem na reabilitação do corpo do sujeito com deficiência
contribui para a formação de alguns atletas paralímpicos. Assim, foi apresentado o projeto
“Renascer, servir e proteger” que a partir do próprio nome tem como efeito de sentido
esclarecer que se trata de um programa que cuida e desperta a vida de pessoas que
possivelmente não estão bem e precisam reiniciarem através de apoio.
32

Como estratégia discursiva, o G1 usa o sujeito autorizado a falar sobre esse projeto
Página

inclusivo. Assim, a subtenente da Polícia militar, Adinéa Trubat ,ao conceder uma entrevista a

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este jornal, enfatiza que “a ideia inicial era incluir apenas os policiais militares com
deficiência por conta do trabalho. Com o aumento da demanda, recebemos também os civis e
hoje atendemos a todos [...]”.
Desse modo, enfatizamos que o projeto “Renascer" ao atender no começo apenas os
militares feridos em combates, essa ação nos faz resgatar um acontecimento semelhante do
Centro Nacional Lesionados de Medulares que incialmente atendia apenas os soldados
mutilados da guerra e depois a todos os deficientes, tanto para a reabilitação do corpo como
para prepará-los para a disputas no esporte.
Destarte, enfatizamos que este projeto ao passar a cuidar de todos os sujeitos com
deficiência, notamos uma estratégia da biopolítica em que todos são tratados da mesma
forma, ao contrário do passado em que de um lado os mutilados da guerra eram vistos como
heróis e tinham todo o atendimento do estado que lhes garantiam educação e arte de
guerrilhar, enquanto que os deficientes por nascença não tinham o direito de viver já que eram
considerados como um empecilho.
Conforme o enunciado acima “A polícia militar já formou vários atletas” podemos
enfatizar que esse discurso nos permite fazer um resgate da participação dos atletas Wallace
Antônio e Ricardo Nunes, que com o apoio do projeto renascer foram selecionados para
disputar os jogos paralímpicos Rio 2016. Com isso, percebemos que o poder disciplinar está
presente nessa instituição como lugar de disciplinamento do corpo, pois o esporte ao atuar
como estratégia de normalização para esses atletas, também os disciplina para a competição, e
a busca pela conquista de medalhas. Nas palavras de Foucault (2010) a disciplina fabrica
corpos submissos e exercitados, corpos dóceis. Ela aumenta a força do corpo em termos
econômicos de utilidade. Nesse sentido, o corpo desses atletas, ao serem disciplinados,
tornam-se produtivos por meio do esporte.
No decorrer das leituras deste noticiário, a subtenente Adinéa afirma que realmente
esses dois atletas do projeto foram convocados para paralímpiada: temos dois atletas
convocados para a paralímpiada; Wallace Antônio e Ricardo Nunes, ambos do arremesso de
peso. E nós estaremos lá no Engenhão na próxima sexta (16), para fazer uma torcida
organizada bem barulhenta para ele.
Nesse enunciado, é possível perceber um discurso de satisfação e orgulho da
33

subtenente por ter entre os pacientes do projeto Renascer dois atletas que foram selecionados
para participarem dos jogos paralímpicos Rio 2016. Cabe enfatizar que essa “convocação” se
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dá por um processo de classificação em que uma comissão composta por fisioterapeutas e

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outros profissionais da área esportiva avaliam o atleta. Assim, “Estabelecem-se relações de
poder, alicerçadas por diferentes saberes que são necessários ao controle e regulação da
população, pois estimulam o acompanhamento e a intervenção de vários fenômenos relativos
à vida” (NASCIMENTO, 2012, p. 161). Desse modo, o saber médico e pedagógico como
professores de educação física, surgem como uma estratégia da governamentalidade em que
governam os atletas paralímpicos, para que possam participar dos maiores jogos disputados
entre pessoas com deficiência.
Destare, observamos que na contemporaneidade há uma medicina que tem o objetivo
de incluir os grupos minoritários, como os sujeitos com deficiência, ao contrário da medicina
social no final do século XXIII, que com base nas abordagens folcaltianas, tratava-se de uma
medicina de exclusão tendo em vista que o objetivo maior era controlar a saúde dos enfermos
por meio de “um cordão sanitário autoritário estendido no interior das cidades entre ricos e
pobres: os pobres encontrando a possibilidade de se tratarem gratuitamente ou sem grandes
despesas e os ricos garantindo não serem vítimas de fenômenos epidêmicos originários da
classe pobre” (FOUCAULT 2007c, p. 95).
O g1 nessa mesma materialidade apresenta a fala do cadeirante Daniel Gonçalves que
ao ser atendido pelo projeto da PM, após ficar tetraplégico aos 25 anos de idade devido da
síndrome de Gullian Barré, enfatiza a importância do esporte para a vida das pessoas com
deficiência: Nós, tetraplégicos, somos vistos como pessoas frágeis e que necessitamos de uma
proteção maior que os demais PNEs. O esporte quebra essa visão que as pessoas têm da gente,
tira esse estereótipo de fragilidade.
Dessa forma, o efeito de sentido deste enunciado, está dentro da memória de que ser
deficiente é ser normal, e os eventos esportivos quebram o tabu quando se diz que eles não
têm capacidade para desenvolver atividades físicas e alcançar as metas como os ditos
normais. Com isso, Daniel desconstrói a ideologia de algumas pessoas que ainda veem os
sujeitos com deficiência como coitadinhos.
Segundo Daniel, “o esporte trouxe não só uma melhora no condicionamento físico como
também uma evolução social muito grande”. Nessa perspectiva, notamos que o esporte
funcionou como estratégia de normalização do corpo, pois além de melhorar a saúde do atleta,
permitiu uma maior socialização. A presença do advérbio de intensidade “grande” tem como
34

efeito de sentido mostrar que esses indivíduos vêm ganhando cada vez mais espaço no meio social,
tendo em vista que muitos projetos contribuem para que estes indivíduos busquem a acessibilidade
Página

tanto no esporte como na educação, transporte, lazer, cultura, e etc.

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O que se vê no discurso de Daniel é o efeito do poder disciplinar, que favorece as
pessoas com deficiência a normalização e superação por meio do esporte, fazendo dialogar
com o sentido de que “ser diferente é normal”.

Considerações finais

Os primeiros resultados desse trabalho foram alcançados a partir da leitura do


referencial teórico, que contribuiu para o reconhecimento da relação dos efeitos de poder-
saber na sociedade.
A partir dos estudos foucaultianos, observamos uma variedade de poder que controla e
manipula a vida, assim, constatamos que na contemporaneidade, o corpo do sujeito com
deficiência já não é submetido a morte, ou enclausuramento como nas instituições do passado,
mas são perpassados pelas estratégias da biopolítica para viverem na sociedade da mesma
forma que os ditos “normais”.
Com base na materialidade analisada, notamos que as instituições docilizam o corpo
por meio do poder disciplinar, pois além de garantirem a reabilitação da saúde de todos
atletas, oferecem o acesso ao lazer por meio de jogos adaptados. Também observamos que
muitos deficientes após a prática do esporte conseguem interagir na sociedade, superam as
limitações e acreditam em si mesmo. Além disso, esses projetos controlam o corpo dos
atletas, por meio de treinamentos e acompanhamento do saber-médico e pedagógico para que
possam desenvolver um alto nível de rendimento no esporte e através disso consigam ser
selecionados para participarem nos jogos de alto rendimento, como os paralímpicos.
Nessa perspectiva, observamos que o poder disciplinar, atua como uma das principais
estratégias da governamentalidade para o controle e normalização das pessoas com
deficiência na sociedade.

Referências

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FOUCAULT, M. O sujeito e o poder. In: DREYFUS, Hubert. e RABINOW, Paul. Michel
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GT1- PRÁTICAS DISCURSIVAS E MODOS DE SUBJETIVAÇÃO

MULHER E O TRABALHO DOMÉSTICO: ANÁLISE DO GÊNERO MIDIÁTICO


ANÚNCIO

Bruna Gabrieli Morais da Silva Thorpe (PPCL/UERN)

Introdução

No âmbito dessa pesquisa, interessamo-nos por analisar o gênero anúncio publicitário,


buscando investigar de que forma estão sendo tecidas as relações entre os discursos presentes
que dialogam entre si em concordância ou em discordância. Pontuaremos também aspectos
que consideramos relevantes, como por exemplo, de que forma a ideologia e os vestígios de
memória aparecem nesses anúncios.
Desenvolvemos esse tema pela curiosidade de investigar a representação da mulher
nos anúncios, que, apesar do decorrer dos anos, ainda apresenta uma imagem feminina e
delicada, que tem como funções primordiais os cuidados com o lar e a família, demonstrando
uma visão de que, mesmo depois de tantas lutas por direitos, o papel principal da mulher, de
acordo com essa ideologia, é cuidar da família e dos afazeres da casa.
Para essa análise, na seção seguinte abordaremos a respeito da fundamentação teórica,
apresentando alguns aspectos sobre os gêneros discursivos, o discurso midiático e a mulher e
o trabalho doméstico, para, em seguida, apresentarmos a análise do corpus.

1 Gêneros discursivos e dialogismo em uma perspectiva bakhtiniana

Bakhtin (2003) afirma que o uso da linguagem é desenvolvido através de formas


relativamente típicas de enunciados, denominadas gêneros do discurso. Para o estudioso, toda
comunicação é feita através de gêneros do discurso, que variam de acordo com a esfera em
que eles se encontram, para que os enunciadores adaptem os gêneros às suas finalidades
comunicativas, uma vez que os gêneros são produzidos por sujeitos sociais e históricos. O
autor destaca ainda que os gêneros discursivos são materializações do enunciado, o qual tem
como elementos constitutivos o conteúdo temático, o estilo e a construção composicional.
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O conteúdo temático é o tema do enunciado, o assunto abordado, que varia de acordo


com o enunciador, para quem ele está falando e em que contexto social ele se encontra. O
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estilo dos enunciados são as escolhas lexicais, gramaticais e fraseológicas que o autor do

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enunciado realiza, de acordo com o local em que ele está, a partir da esfera de comunicação
em que se encontra. E a construção composicional é a estrutura do gênero, ou seja, a forma.
Dessa forma, sempre que buscamos desenvolver algum gênero que desconhecemos,
recorremos a informações sobre esse gênero, e a primeira que podemos observar é a sua
construção, em seguida o estilo, depois adaptamos o conteúdo temático ao que necessitamos.
Seguindo ainda por essa perspectiva, todo enunciado, seja ele escrito ou dito, tem um
destinatário, pois todo enunciado tem alguém a quem se destina, uma pessoa específica, com
uma intenção, propósito e finalidade específica. E ao mesmo tempo, todo enunciado está
ligado a enunciados anteriores e a futuros enunciados também, tendo-se, assim, uma cadeia
discursiva que nunca termina.
Ao nos voltarmos para essa linha de pesquisa, seria impossível falar sobre os
enunciados sem remetermos às relações dialógicas que são tecidas através desses enunciados,
uma vez que elas fazem parte fundamental da linguagem. A respeito do dialogismo, Bakhtin
(2003) afirma que não existe falante ativo e ouvinte passivo, mas um diálogo entre eles, pois
todo enunciado espera uma resposta. Partindo dessa perspectiva, ambos são ativos, pois,
quando o falante externa o seu enunciado ao outro, ele expõe a sua voz, a sua ideologia e
opinião, e o ouvinte também é ativo, pois ele responde à fala do outro, a partir de sua
ideologia, que pode ser favorável ou contrária à do outro. E mesmo que o ouvinte (ou leitor)
fique em silêncio, ele está respondendo de alguma forma àquele enunciado, pois mesmo em
pensamentos, ou atitudes, aquele enunciado tem uma resposta real. Dessa forma, todo
enunciado carrega dentro dele enunciados anteriores que foram utilizados pelo enunciador, do
mesmo modo que buscará suscitar respostas futuras, ou seja, sempre há uma resposta para um
enunciado anterior, tornando, assim, o diálogo infinito, uma cadeia de vozes infinitas.
Na próxima seção abordaremos sobre a questão do discurso que se propaga nas
mídias e a forma que eles são utilizados para a manipulação do dizer e poder.

O discurso midiático

No âmbito do discurso midiático, utilizamos como base estudos desenvolvidos por


Charaudeau (2012, p. 18) o qual afirma que as mídias muitas vezes mascaram, pervertem ou
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revelam em parte a realidade, mas mesmo que essa realidade apareça fragmentada, o autor
defende que ela está presente, de alguma forma, no discurso. A respeito das mídias, o autor
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complementa seu pensamento ao explicar:

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As mídias acham-se, pois, na contingência de dirigir-se a um grande
número de pessoas, ao maior número, a um número planetário, se
possível. Como fazê-lo a não ser despertando o interesse e tocando a
afetividade do destinatário da informação? A não ser distribuindo “no
mundo inteiro as mesmas simplificações e os mesmo clichês”?
(CHARAUDEAU, 2012, p. 19).

Dessa forma, as mídias utilizam-se da afetividade, de forma que demonstre o que o


destinatário quer ver e tocar a parte sentimental do outro. No entanto, as mídias também
demonstram discursos cristalizados e moldados, estabelecidos, que carregam uma história, e
esses discursos podem aparecer de forma explícita ou mesmo implícita.
Ainda de acordo com Charaudeau (2012), a mídia tem alto poder manipulador, uma
vez que necessita da audiência, utilizando recursos para atrair, tanto de forma consciente
como inconsciente. No entanto, achamos interessante pontuar nessa pesquisa que os gêneros
que trouxemos para análise são anúncios estrategicamente elaborados, para atingir uma
finalidade comunicativa. Seguindo essa perspectiva, discordamos do autor quando ele faz essa
afirmação de que a mídia trabalha de forma inconsciente, uma vez que, atualmente, elas são
conhecidas por serem feitas para persuadir a acreditar em uma ideologia.
Diante dos assuntos aqui abordados, no próximo tópico relataremos a situação em que
a mulher é vista dentro da sociedade e a sua relação com o trabalho doméstico.

3 A mulher e o trabalho doméstico

De acordo com Freitas e Dantas (2012, p. 179), feministas afirmam que "não existe
nada intrínseco no ser mulher que nos condenasse a lavar, passar e cozinhar", porém, apesar
dessa afirmação, segundo a pesquisa que fizeram, constataram que a mulher é responsável por
cerca de 80% do trabalho doméstico.
No decorrer dos anos, a mulher sempre foi associada aos cuidados do lar e da família.
Seu papel fundamental era cuidar da casa, de tudo o que acontecia nela. A mulher deveria
acima de tudo amar e respeitar seu esposo, além de ser a principal fonte de educação dos
filhos. Porém, com a Segunda Guerra mundial, a sociedade se encontrou em um impasse, uma
vez que os homens foram chamados para defender seu país e não havia como as indústrias
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continuarem sua produção, pois não havia mão de obra. Nesse momento, passou-se a pensar
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nas mulheres e em como elas poderiam fazer esse trabalho (TAVARES, 2012).

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Com o tempo, a mulher foi se desenvolvendo no mercado de trabalho, mas, apesar
disso, não deveria deixar a desejar no quesito feminilidade. A respeito desse ponto, Tavares
(2012, p. 109) afirma que:

A mídia estrangeira já construía um estereótipo de "mulher na


guerra", sem perder de vista o cuidado com a aparência, que sempre
foi imposto à mulher. Afinal, é preciso disciplinar os corpos, e a
mídia, seja pela linguagem verbal ou imagética, consegue chegar até
os sujeitos sociais invadindo, de uma certa forma, sua vida privada ou
pública.

Ou seja, apesar de a mulher ser vista como alguém para executar todo o serviço
doméstico e algumas delas ainda trabalharem fora de casa, a mídia publicava e divulgava uma
imagem da mulher que, trabalhando fora ou em casa, deve-se manter vaidosa, feminina e
arrumada, mesmo enquanto faz o serviço pesado.
É importante pontuar aqui que, ao ser inserida no mercado de trabalho, apesar de ter
passado a receber remuneração, os salários das mulheres eram sempre inferiores aos dos
homens. É fato que até os dias atuais a mulher ainda se depara com uma sociedade que não é
justa nos salários, pois, muitas vezes ela executa o mesmo trabalho (precisando sempre provar
que é mais eficiente) e ainda recebe menos que os homens. É um ponto que ainda deve ser
considerado, pois esse fato prova que ainda estamos em uma sociedade que tem como base o
preconceito e o machismo, demonstrando que muitos direitos ainda faltam ser conquistados.
No entanto, mesmo depois de tantas lutas e conquistas, neste século XXI nos
deparamos com mulheres que, apesar de serem estudadas e terem seus trabalhos fixos, estão
deixando-os para passarem a tomar conta de suas casas e filhos, e o que para algumas
mulheres pode ser considerado um retrocesso, para outras é a mulher utilizando o seu livre-
arbítrio, pois o feminismo defende que é um direito ter a liberdade de escolher o que se
deseja.
No próximo tópico, passaremos a análise, visando utilizar de base as questões aqui
desenvolvidas no decorrer desse estudo e buscando fazer relações entre a história, descrever e
interpretar os anúncios selecionados para a pesquisa.
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4 mulher e o trabalho doméstico: análise do gênero anúncio publicitário

Propomo-nos a investigar as relações dialógicas tecidas no gênero midiático anúncio


publicitário, relacionando esses vestígios de memória com os discursos atuais. Bakhtin (2003,
p. 289) afirma que “Todo enunciado é um elo na cadeia de comunicação discursiva”, ou seja,
qualquer enunciado está ligado a textos anteriores e esse enunciado poderá ser futuramente
empregado em outros enunciados, dessa forma estão todos os enunciados dentro de uma
cadeia discursiva, em um tecido de vozes.
Para a nossa pesquisa, analisaremos de forma crítica quatro anúncios publicitários,
dois que podemos considerar antigos e comparamos com um outro anúncio atual.
Pontuaremos aspectos relacionados ao trabalho doméstico e como ele se refere à mulher.
Observe o anúncio publicitário de 1947, da marca Epel1, que vendia aparelhos
elétricos:

Figura 1: Gênero Anúncio da marca Epel

Nesse anúncio, a empresa afirmava que com esses aparelhos domésticos, a mulher
teria uma vida melhor, sua vida seria facilitada e, reproduzindo as palavras do gênero acima, a
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1
Anúncio disponível no site: http://www.propagandashistoricas.com.br/2013/12/epel-vida-melhor-para-
mulheres-1947.html, acesso em 18 de novembro de 2016, às 11h9min.

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mulher usufruiria de "Aparelhos elétricos de real utilidade para o conforto das donas de casa".
Percebe-se que nesse anúncio a mulher está totalmente vinculada ao trabalho doméstico, ao
ato de limpar e cuidar da casa, sendo esses aparelhos destinados especificamente a ela, a qual,
na imagem, aparece sorrindo e feliz por estar adquirindo o produto, sem deixar, obviamente,
de estar bem arrumada, demonstrando a sua feminilidade.
Uma vez observando esse anúncio não podemos deixar de retornar ao momento
histórico em que ele circulou, pois esse fato contribui para a imagem da mulher que esse
anúncio nos deseja passar. Em 1928 aconteceu o primeiro voto feminino por Celina
Guimarães, em Mossoró/RN e no mesmo ano é eleita a primeira prefeita no Brasil, a Alzira
Soriano de Sousa, em Lajes/RN. Apesar de ambos serem logo anulados, não deixaram de
serem notados, abrindo um espaço para que se fosse pensado no direito à cidadania da mulher.
Após a Constituição de 1946, a mulher recebeu o direito ao voto e à candidatura.
Ao buscarmos essas informações, percebemos que estão influenciando a construção
desse anúncio publicitário que circulou um ano após a Constituição de 1946. As relações
dialógicas estão aparecendo de forma explícita, pois o que o anúncio apresentado busca
afirmar, deixar de forma clara e concisa, é o discurso de que o que a mulher deve fazer é ser
feminina, agradável e cuidadora do lar em vez de estar preocupada com assuntos, que ao ver
da sociedade patriarcal, não tem nenhuma utilidade para a mulher.
Percebemos nesse exemplo como a mídia influencia na formação de ideias, na
construção de sentidos e entendimentos, pois busca influenciar de forma direta os leitores,
demonstrando aos homens o que suas mulheres precisam e às mulheres com o que elas devem
se preocupar.
Agora passemos ao próximo anúncio publicitário, que circulou alguns anos após o
exemplo anterior, no ano de 1968, da marca Tomorrow's Lestoil2, que apresenta um produto
de limpeza:
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Anúncio disponível no site:http://www.propagandashistoricas.com.br/2013/07/tomorrows-lestoil-anuncio-
machista-1968.html, acesso em 18 de novembro de 2016, às 11h30min.

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Figura 2: Gênero anúncio da marca Tomorrow's Lestoil

Na imagem acima, mais uma vez, o trabalho da limpeza está associado à mulher.
Observe o humor que é sugerido com a mulher futurista, que mais uma vez é feminina, pois
aparece maquiada, com as unhas feitas e está vestida como se fosse uma astronauta,
segurando o produto de limpeza da marca, a qual faz uma afirmação machista com os dizeres
"A mulher do futuro fará da lua um lugar limpo para se viver".
Nesse momento histórico, enquanto essa marca mostrava essa imagem da mulher que
aparece segurando um produto que ajuda na limpeza de manchas pesadas, a NASA (sigla em
inglês de National Aeronautics and Space Administration – Administração Nacional da
Aeronáutica e Espaço) exibia seus astronautas masculinos, fortes, heroicos, que se
preparavam para ir à Lua. Vemos nesse ponto uma reafirmação do lugar da mulher como
responsável pelo trabalho doméstico.
No entanto, ainda no mesmo ano em que surgiu o anúncio anterior, a marca
Tomorrow’s Lestoil, buscando rever o seu discurso, apresenta outro anúncio que seria a
continuação do primeiro. Segue abaixo a segunda parte:
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Figura 3: Segundo anúncio da marca Tomorrow's Lestoil

Nesse anúncio, o filho diz à mãe “Mãe, meu amigo marciano deixou pegadas no teto”,
ao qual ela responde “Aqui está Tomorrow’s Lestoil! Agora, limpe”. Percebemos que a marca
quis, de alguma forma, mudar a imagem da mulher que foi passada no anúncio anterior,
deixando de forma clara que o garoto faria a limpeza nesse momento.
Apresentamos, por último, mas não menos impactante, um anúncio de 2015, veiculado
na internet, especificamente na rede social Twitter, em que a marca Mr. Músculo3 utiliza para
divulgar os seus produtos.
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Anúncio disponível em :https://twitter.com/mrmusculobrasil, acesso em 18 de novembro de 2016, às 11h45min.

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Figura 4: Gênero anúncio da marca Mr. Músculo

Observamos nesse anúncio que a ideia antiga de que os afazeres domésticos são
destinados especificamente à mulher mais uma vez aparece de forma explícita, veiculada em
um anúncio recente. É demonstrado na imagem uma mulher descansando após um exausto dia
de faxina em que utilizou o produto anunciado e conseguiu concluir seus afazeres em
oposição com uma imagem dela cansada de tentar limpar a casa sem os produtos da marca.
Diante desses anúncios observamos que os discursos se repetem, ou seja, as relações
dialógicas entre eles podem ser visualizadas de forma clara, uma vez que remetem ao mesmo
ponto: o de que o trabalho doméstico é um dever feminino e que apesar de terem circulado em
momentos históricos diferentes, os discursos são reafirmados.

Considerações finais

A partir da pesquisa, percebemos que nos gêneros midiáticos anúncio, os quais


selecionamos como corpus, apresentam relações de diálogo entre eles, e esses vestígios de
memória, além de se repetirem, concordam entre si. Os anúncios abordam de forma clara
sobre a ideologia que há explícita, que é a de que o trabalho doméstico é algo estritamente
voltado para a mulher. A imagem que temos é a de que, apesar das diferenças de anos entre
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um anúncio e outro, ainda estamos vivenciando uma sociedade que cobra principalmente da
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mulher os cuidados com o lar.

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Concordamos que, de acordo com essas análises, os anúncios que retratam produtos
de limpeza, ou seja, que são voltados ao trabalho doméstico, ainda se utilizam da imagem da
mulher para divulgação dos produtos, reafirmando a imagem da mulher e sua relação com o
trabalho doméstico.
Sabemos que hoje ainda existem muitas conquistas a serem alcançadas pelas
mulheres e que, apesar dessa visão de mulher doméstica, muitas estão buscando estudar mais,
trabalhar e se tornarem cada vez mais independentes, o que não deixa de ser uma resistência
ao discurso cristalizado de que lugar de mulher é em casa. Com este trabalho buscamos trazer
contribuições e reflexões para a área de estudos da análise do discurso, dos gêneros
discursivos e ajuda a refletir a respeito do papel da mulher na sociedade.

Referências

BAKHTIN, M. M. Os gêneros do discurso. In: Estética da criação verbal. Trad. Paulo


Bezerra. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

CHARAUDEAU. P. Discurso das mídias. Tradução Angela S. M. Corrêa. 2. ed. São Paulo:
Contexto, 2012.

SARAIVA, L. A. S. Além dos estigmas profissionais. In: FREITAS, Maria Ester de.
DANTAS, Marcelo. (Orgs.) Diversidade sexual e trabalho. São Paulo: Cengage Learning,
2012.

TAVARES, L. H. M. Mulher, trabalho e família: jogos discursivos e redes de memória na


mídia. 253f. 2012. Tese (Doutorado em Linguística) - UFPB, João Pessoa, 2012.

SITES CONSULTADOS
EPEL - VIDA MELHOR PARA AS MULHERES
Disponível em: http://www.propagandashistoricas.com.br/2013/12/epel-vida-melhor-para-
mulheres-1947.html, acesso em 18 de novembro de 2016, às 11h9min.

MR. MÚSCULO – HORA DO DESCANSO


Disponível em: https://twitter.com/mrmusculobrasil. Acesso em: 18 nov. 2016, às 11h45min.

TOMORROW’S LESTOIL – MULHER FUTURISTA


Disponível em: http://www.propagandashistoricas.com.br/2013/07/tomorrows-lestoil-
anuncio-machista-1968.html. Acesso em: 18 nov. 2016, às 11h30min.
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ISBN: 978-85-7621-221-8
GT1- PRÁTICAS DISCURSIVAS E MODOS DE SUBJETIVAÇÃO

A RELAÇÃO ENTRE VERDADE E CONSTITUIÇÃO ÉTICA DOS SUJEITOS NA


DITATURA MILITAR BRASILEIRA: EFEITOS DA MEMÓRIA DE MULHERES
VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA NA INFÂNCIA

Camila Praxedes de Brito (UERN/PPCL/GEDUERN)


Francélia Nunes de Medeiros Ferreira (UERN/PPCL/GEDUERN)
Maria Arlinda de Macedo Silva (UERN/PPCL/EFEL)

Introdução

A Comissão Nacional da Verdade, doravante CNV – Brasil, realizou uma série de


audiências em que crianças, que sofreram, direta ou indiretamente, com a ditatura militar trazem à
tona as suas lembranças sobre esse período da história. Testemunhos importantes para a construção
da verdade e da justiça sobre a política ditatorial. E como falar dessas crianças, que foram
sequestradas, abandonas, torturadas ou nascidas nos centros clandestinos da repressão, sem lembrar
de suas mães, mulheres militantes, ou esposas de militantes, que sofrem ao verem seus filhos
(crianças ou bebês) serem retirados de seus braços como uma forma de arrancar desses sujeitos da
resistência uma delação. As que se recusavam a “cooperar” com o governo foram perseguidas,
presas e, muitas vezes, desaparecidas ou mortas, pelos agentes da ditadura.
Quando essas crianças foram abruptamente arrebatadas de suas mães, como incidiu com o
emprego deliberado dos Destacamentos de Operações e Informações e ao Centro de Operações de
Defesa Interna (DOI-CODI) elas perderam irremediavelmente a oportunidade de crescerem
rodeadas de carinho, amor e afeto, além dos cuidados mínimos de saúde e alimentação que toda
criança deve ter nessa fase da vida, carência que pode ter influenciado profundamente na construção
de suas identidades futuras. Cada criança teve que lidar, ou ainda tem, com essas lembranças
doloridas, não só da separação de suas mães, mas também da imagem de vê-las serem torturadas,
estupradas e humilhadas, e assistir a tudo isso sem poder fazer nada para ajudá-las, o mesmo ocorria
com seus pais, que também eram mortificados aos seus olhares. Hoje como adultos, a única saída
para tentar amenizar as rememorações infantis desses sujeitos é através de suas subjetivações como
sujeitos éticos na contemporaneidade, na qual a CNV é o espaço autorizado para que eles possam
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proferir sua enunciação de verdade sobre o golpe de 64.


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Levando em consideração tais informações, o presente estudo tem por objetivo
descrever/interpretar a relação entre verdade e constituição ética do sujeito-mulher vítima da
violência na infância durante a ditadura militar brasileira. Para tanto recolhemos do arquivo da
CNV (2013; 2014) testemunhos de mulheres vítimas desse período, na infância. Do ponto de vista
epistemológico, nossa pesquisa insere-se no campo da Análise do Discurso de tradição francesa,
com base nos conceitos de Foucault (2008; 2010; 2014) sobre a ética, as técnicas de si e a
subjetivação, fazendo uma ponte com os estudos filosóficos de Ricoeur (2009), e históricos de Nora
(1993) e Le Goff (1990), para descrever a relação entre memória e história, nos testemunhos
mencionados.

I A Ditadura Militar

De acordo com Couto (1999), na madrugada de 31 de março para 01 de abril de 1964, um


grupo de militares, apoiados por uma parcela da sociedade – empresários, latifundiários e
integrantes da Igreja Católica, em sua maioria – depôs o Presidente, eleito por voto popular, João
Goulart, que recebeu exilio no Uruguai. A partir desse golpe militar, foi implementada uma série de
“reformas políticas” no país, que durou 21 anos. Iniciou-se assim o governo do General Castelo
Branco, indicado à presidência pelos militares, e votado na câmara pelo legislativo.

No dia 11 de abril, o Congresso elege o presidente da República, para completar o


mandato do presidente deposto, João Goulart, o marechal Humberto de Alencar
Castello Branco, chefe do Estado-Maior do Exército, conspirador e coordenador do
movimento (COUTO, 1999, p. 96).

Apesar de, em seu discurso de posse, o Castelo Branco ter-se designado como defensor da
democracia no país, implantou-se um sistema de eleição indireta, no qual o povo não poderia
participar das eleições, além de dissolver os partidos políticos em apenas dois: Aliança Renovadora
Nacional (ARENA) e Movimento Democrático Brasileiro (MDB), este último, tido como de
oposição, mas irrestritamente vigiado pelas forças do governo, que se tornava a cada dia mais
autoritário.
Com a intensificação da repressão à luta armada e a instauração de uma severa política de
censura – comandadas por órgão do governo, como os DOI-CODI – na qual meios de comunicação,
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livros e expressões artísticas de toda a sorte foram censuradas, o que levou muitos professores,
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políticos, artistas e integrantes dos movimentos de resistência a serem presos, torturados, exilados,
mortos e desaparecidos.

II A Comissão Nacional da Verdade – CNV e os Testemunhos

A Comissão Nacional da Verdade foi criada em 2012 com a intenção de recontar a história
de vítimas e familiares de vítimas da Ditadura Militar, que sofreram graves violações aos direitos
humanos. Buscando esclarecer os fatos não revelados, em sua totalidade, pela historiografia oficial,
a Comissão recolheu uma série de depoimentos – Testemunhos – de vítimas e familiares, dentre as
quais, destacamos neste estudo, mulheres que sofreram violações de direitos durante a infância,
demonstrando como ocorre a relação verdade e constituição ética do sujeito-mulher no contexto da
CNV.
Percebemos nos testemunhos analisados uma relação de compromisso com a “recontação”
da história, há um comprometimento das vítimas em se contar “a verdade” sobre os fatos: “No
campo pessoal, então, eu fui chamada a esse processo, porque esse aqui seria o meu terceiro
depoimento, tirando os outros depoimentos, movimentos pessoais mesmo, profissionais, que tem a
ver com essa história” (Priscila Arantes, CNV, 2014,). Há uma preocupação em estar
constantemente rememorando a história, para que esta não caia no esquecimento, e não venha a se
repetir no presente ou futuro.
De acordo com Catroga, a rememoração se faz para que haja uma aproximação com as
recordações do passado que se subordina “ao princípio de realidade, o que exige que as evocações,
apesar de conjugarem um tempo passado (anterioridade), mobilizem argumentos de veridição,
tendo em vista garantir a fidelidade do narrado” (CATROGA, 2001, p. 22). No processo de
restauração da verdade, a rememoração é construída, por meio da memória que é compartilhada por
um grupo de sujeitos, e, dessa forma, há uma verificação da memória de um, por meio da memória
do outro. Observemos essa preocupação nos testemunhos das vítimas.

Porque a minha mãe não conseguia me carregar, ela não conseguia me carregar,
ela estava muito fraca e ela ia andando muito devagar, mas o piloto do avião me
pegou no colo e me levou, e tem uma foto que eu não consegui resgatar, mas tem a
foto dele comigo no colo (Ângela Telma Lucena, CNV, 2014).
Então, é uma visibilidade pública de uma situação que está acontecendo ali, na
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sua família... Que foi o dia da decretação da anistia. Mas, eu também participei de
atos em prol da anistia, obviamente, e, assim. Mas, apesar de ter participado
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desses atos, lógico, e dos inúmeros atos do 1º de maio (Priscila Arantes, CNV,
2014).

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Nestes enunciados, notamos a preocupação em se construir uma verdade, que possa ser, de
fato, verificada, no primeiro caso, através de uma possível fotografia, e no segundo caso, por
datações de eventos públicos, que podem ser confirmados pela história oficial, em que tanto a
fotografia, quanto a datação, representam um enunciado de verdade. Sobre o enunciado, Foucault
(2008) afirma que este consiste em toda a série de símbolos e signos que produzem efeitos de
sentido. O autor defende que esses efeitos de sentido somente são construídos por meio da
memória, que trazem para o presente os princípios de nossas formações discursivas. A ativação da
memória – lembrança – proporciona a produção desses efeitos. Assim, “a rememoração, de um
lado, fornece ao domínio da atualidade os vestígios de um passado que retorna como recordação e,
de outro, legitima a interpretação desses vestígios pelos valores sociais do presente” (VENTURINI,
2009, p, 78), daí a importância do testemunho para os processos de constituição da “verdade”, por
meio da “recontação” ou reescrita da história oficial, através do mesmo.

Denominamos por testemunho, grosso modo, o depoimento e/ou a fala de alguém,


comumente, em juízo, ou seja, uma fala construída a partir da recuperação da
lembrança de um evento importante para o indivíduo que dá seu testemunho e/ou
para grupo ao qual ele pertence (BATISTA; SARMENTO-PANTOJA, 2014, p. 03-
04).

Dessa forma, podemos dizer que os testemunhos das mulheres vítimas de violência na
infância se inserem como um efeito de verdade, que pode ser confirmado, em razão da importância
do fato apresentado, para sociedade em geral, por meio da reescrita da história, e para um
determinado grupo social, no caso, as vítimas da ditadura e seus familiares, para a constituição
ética de suas verdades, pois, parte do pressuposto do “eu estava lá”, portanto, foi sujeito ativo no
fato, e que estes pertencem a um período de transição de um regime ditatorial para um democrático.
O referido período é denominado de justiça transicional, e tem por objetivo o reconhecimento das
vítimas e a promoção da reconciliação para a instauração da democracia. Sobre a justiça de
transição, Silva e Batista Neto (2016, p. 120), afirmam que esta é

[...] entendida como uma resposta concreta às violações sistemáticas ou


generalizadas aos direitos humanos. [...] mas uma justiça de caráter restaurativo, na
qual as sociedades transformam a si mesmas depois de um período de violação
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generalizada dos direitos humanos.


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Parte-se da perspectiva, de que, no contexto da CNV, há um acordo entre as partes, que
regulamenta que se deve falar somente “a verdade”, com um propósito restaurativo, posto que se
busca uma transformação social num período pós-ditatorial, por meio da memória das
vítimas/testemunhas da história. Para Gagnebin (2004), há dois tipos de testemunhas: aquela que de
fato presencia e/ou participa do ocorrido e aquela que ouve os relatos de alguém que o fez, nessa
perspectiva,

A testemunha não seria somente aquela que viu com os próprios olhos [...], a
testemunha direta. Testemunha também seria aquele que não vai embora, que
consegue ouvir narração insuportável do outro e que aceita que suas palavras
reagem a história do outro [...] somente essa retomada reflexiva do passado pode
nos ajudar a não repeti-lo infinitamente, mas a ousar esboçar uma outra história, a
inventar o presente (GAGNEBIN, 2004, p. 91).

Logo, podemos dizer que o objetivo principal do testemunho, no contexto da CNV, é evitar
a repetição de fatos traumáticos do passado, trazendo-o para o presente por meio da rememoração,
da lembrança individual de quem presenciou os fatos ou ouviu relatos destes de forma plena. Nos
relatos das vítimas selecionados para este estudo, pudemos perceber a preocupação com a não-
repetição do passado no presente e no futuro. Como vemos no trecho do depoimento de Kátia Pinto
(CNV, 2014): “A história precisa ser contada. Recontada. É como os judeus falam: Precisa ser
lembrado para não voltar a acontecer. [...] quem não conhece a sua história está fadado a repeti-
la”. E o que seria, então, a história?

III Entre a história e a memória: a constituição dos efeitos de “verdade”

A relação existente entre a história e memória é muito mais de oposição do que de


complementariedade. Apesar de a história ser composta a partir da memória dos sujeitos sociais – a
memória coletiva – ambas trazem em seu cerne essa relação de oposição, haja vista que a memória
possui um caráter concebido como inconstante e suspeitável, enquanto a história funciona como
uma representação do passado, por meio de provas.
Devido ao seu caráter de suspeição a memória é por vezes confundida com a imaginação, no
entanto, Ricoeur nos apresenta a memória como lembrança do passado, enquanto que a imaginação
é vista como ficção, como irrealidade. Para o autor, “se essas duas afecções estão ligadas por
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contiguidade, evocar uma – portanto, imaginar – é evocar a outra – portanto, lembrar-se dela”
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(RICOEUR, 2007, p. 25). Dessa forma, memória e imaginação constituem recursos diferentes na
contação de histórias ou estórias.
De acordo com Nora (1993), a história consiste na representação do passado, um retrato
fidedigno dos fatos que ocorreram ao homem, durante a sua trajetória evolutiva. Le Goff (1990),
afirma que a dialética da história se reafirma em um diálogo entre o passado e o presente ou vice-
versa, para ele, a mesma se apresenta como a história dos homens na sociedade. Para o autor, a
história não é feita a partir do que é constatável, como a biologia, por exemplo, ela é construída por
meio do testemunho, realizado através da memória coletiva. Pois as memórias individuais precisam
ter condições de verificação, como no trecho do testemunho de Marília Benevenuto Chidichimo
(CNV, 2014):

[...] menos de um ano após meu nascimento, meu pai teve de abandonar a família,
a honrada profissão e a casa onde vivíamos, para não ser preso e morto por
motivos ideológicos. Nunca mais tivemos paz e nem direito a uma infância
respeitada. Nunca mais voltamos àquela casa, abandonamos o lar de nossa
família, o quarto e o quintal de nossa infância, nossos brinquedos e nossa
referência de vida, fomos afastados do convívio de nosso pai.

Os fatos por ela relatados são verificáveis, posto que outras pessoas podem confirmar seus
relatos, ou seja, outros rastros de memória podem ser encontrados a partir das informações dadas
por ela.
De acordo com Le Goff (1990, p. 09), “a história começou como um relato, a narração
daquele que pode dizer "eu vi, senti". Este aspecto da história-relato, da história-testemunho, jamais
deixou de estar presente no desenvolvimento da ciência histórica”. Então, o papel principal dos
testemunhos é trazer para o presente o passado de um determinado grupo social, mantendo viva na
memória dos atores sociais a sua história.

O apelo que nossa sociedade faz de preservação de sua memória é, em última


instância, a necessidade de reconstituição de si mesma, encarada como algo
formado do passado para o presente, por isso, é importante preservar vestígios,
trilhas, fósseis, etc. (ARÉVALO, 2004, p. 94).

O homem sente, constantemente, a necessidade de preservar suas impressões de fatos que


vivencia, e uma das formas encontradas para este fim, é a transformação das suas memórias
individuais (testemunhos) em memórias coletivas. O processo de transformação do testemunho em
52

documento é feito pelos historiados, que são “responsáveis” pela contação da história do homem,
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que é inscrito como sujeito do social.

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Nos testemunhos analisados neste estudo, notamos que as mulheres entrevistadas se sentem
bem em estarem contribuindo com suas memórias individuais para a construção da história, como
também apresentam relatos de como os fatos vivenciados por elas as constituem enquanto sujeitos
éticos.

[...] eu queria agradecer o convite e me sinto bastante honrada de poder participar


desse processo de resgate da história, de parcela significativa da história do
Brasil, eu acho que... depois eu vou falar de como eu ressignifiquei a minha
história, mas acho essa ação de extrema importância, e me sinto honrada de poder
participar com a minha história e da minha família, dessa história, que é uma
história de todos os brasileiros, é a história do nosso país (Priscila Arantes, CNV,
2014).

Observamos neste enunciado que a entrevistada ressalta a importância de se resgatar a


história da ditadura, como também a importância de se utilizar como exemplo a não ser seguido, ou
seja, ela usa sua história como exemplo para a não repetição das graves violações aos direitos
humanos que ela e sua família sofreram no período da ditadura militar brasileira. Assim sendo, cada
uma dessas pessoas que testemunharam e vivenciaram os fatos que relatam, tornam-se sujeitos de
suas memórias. Para Ricoeur (2007, p. 23),

Podemos dizer que o sujeito da memória é o eu, sem perder de vista a importância
do conceito de memória coletiva, pois, cada sujeito é constituído no social,
portanto, considerando o fato de que o sujeito é heterogêneo, a sua memória
individual, também é coletiva.

Assim, mesmo de forma individual, a memória individual também é coletiva, pois as várias
memórias individuais podem ser comprovadas por meio umas das outras, ou seja, quando
confrontamos os relatos das diversas memórias das vítimas aqui estudadas, podemos comprovar os
fatos narrados durante os testemunhos, posto que elas citam nomes, fotografias ou documentos que
dão ao seu depoimento – testemunho o status de “verdade”. Sobre a verdade, denominada de
Parresía pelos gregos, Foucault descreve-a da seguinte forma:

[...] a parresía é uma maneira de se vincular a si mesmo no enunciado da verdade,


de vincular livremente a si mesmo e na forma de um ato corajoso. A parresía é a
livre coragem pela qual você se vincula a si mesmo no ato de dizer a verdade. Ou
ainda, a parresía é a ética do dizer-a-verdade, em seu ato arriscado e livre. Nessa
53

medida, para essa palavra parresía, que era, em seu uso restrito à direção de
consciência, traduzida por "fala franca", poderemos, creio eu, se [dela] dermos essa
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definição um tanto ampla e geral, propor [como tradução] o termo de


‘veridicidade’ (FOUCAULT, 2010, p. 63).

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Foucault nos traz que a parresía consiste em se assumir os riscos de se contar a verdade, ou
seja, quando se é livre para contar a verdade conscientemente, e decide-se fazê-lo por questões
éticas subjetivas, pessoais, contribuindo para a construção de uma verdade coletiva. Nessa
perspectiva, o autor apresenta quatro aspectos fundamentais da mesma: em primeiro lugar
representa uma certa maneira de falar, traduzida por "fala franca”. Mais precisamente, é uma
maneira de dizer a verdade; em segundo lugar, o autor defende que a parresía está condicionada à
liberdade na enunciação da verdade que o sujeito tem; em terceiro lugar, o assumir dos riscos que
essa enunciação da verdade pode acarreta; e por fim, de demonstrar a existência desse risco ao se
falar a verdade.
Assim sendo, podemos dizer que os testemunhos dados pelas vítimas, à CNV, constituem
uma forma de parresía, visto que essas mulheres assumem os possíveis “riscos” de se dizer a
verdade sobre os fatos ocorridos durante a ditadura militar, e dos quais foram vítimas e/ou
testemunhas, como também percebemos, nas falas dos entrevistadores que não há rigidez nas
perguntas, todas as entrevistadas são deixadas a vontade, ou seja, lhes é dada a liberdade de
contarem apenas aquilo que desejem de suas memórias, que contribuirão para a recontação da
história. Como vemos no testemunho de Tessa Moura Lacerda (CNV, 2013): “Eu confesso que eu
imaginei que iam ter perguntas que iam guiar o meu depoimento, então, eu não sei se eu conto a
minha história, o que vocês querem?”
Por meio desse e de outros enunciados, comprovamos a liberdade enunciativa na contação
da verdade, constituindo assim uma parresía, pois para Foucault (2010, p. 63), “só há parresía
quando há liberdade na enunciação da verdade, liberdade do ato pelo qual o sujeito diz a verdade, e
liberdade também desse pacto pelo qual o sujeito que fala se liga ao enunciado e à enunciação da
verdade”.

IV A constituição dos sujeitos éticos: subjetividade e verdade

De acordo com Carvalho (2008), o conceito de ética nos estudos foucaultianos desvencilha-
se do que temos em sua denotação, que traz a ética relacionada ao caráter individual, dos modos de
ser de cada um ou de determinado grupo, para a autora,
54

O que determina uma ação como ética é se há ou não contribuição para a formação
Página

de subjetividade. Não consiste, dessa forma, na proibição, mas na relação consigo

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mais criativa, mais produtiva. [...] Assim a ética é a própria relação consigo
mesmo; ela significa o tipo de relação que é necessário ter consigo mesmo, que
determina como se supõe que o indivíduo se constitui a si mesmo como sujeito de
suas próprias ações (CARVALHO, 2008, p. 27).

Assim, a ética é concebida a partir do sujeito e sua subjetividade, ou seja, o relacionamento


do sujeito com ele mesmo, e que contribuem para sua formação, sua identidade, quando demonstra
domínio sobre si próprio. No contexto da CNV, pudemos observar que os fatos vivenciados pelas
vítimas, trazidos para o presente, por meio de suas memórias, influenciaram nas suas constituições
enquanto sujeitos sociais, como também contribuíram para a criação de técnicas de domínio de si.

[..] o que eu estou falando é você se encontrar, assim, na vida, o que você quer
fazer, como que você quer fazer e se sentir. E, se empoderar da sua história,
querer falar dela, entendeu? É uma construção mais recente. [...] O pessoal, ele
foi caminhando ao lado do social. Não é desplugado. Eu poder fazer um livro, um
pós-doutorado, sei lá, e uma exposição que fala sobre arquivo e que problematiza
as discussões do arquivo na ditadura militar, não poderia ser possível, lá... porque
o indivíduo, ele não é... Ele não está isolado, ele está junto com o coletivo
(PRISCILA ARANTES, CNV, 2014).
Às vezes, a gente ia encontrar com alguém, quando estava com ele e daí é assim,
era uma brincadeira de: “Ah, que nome você quer ter?” Então, eu até hoje, tanto é
que, hoje, eu escrevo com pseudônimo. Eu até brinco, eu falo: “Gente, foi uma
coisa que eu aprendi lá atrás.” E eu não consigo. Eu... É que eu quero separar...
Eu, no fim, acho que... Eu acabo querendo separar minha vida... (KÁTIA PINTO,
CNV, 2014).

Nos enunciados acima podemos notar que as experiências vivenciadas por essas mulheres
contribuíram para as suas constituições enquanto sujeitos, para a fixação de suas identidades e para
o conhecimento de si mesmas. Dessa forma, as vítimas identificam que as características
psicológicas de sua personalidade atual são reflexos do que foram e viveram durante a infância, de
tudo o que suas memórias, voluntárias ou involuntárias lhes trazem de lembrança. Foucault
denomina esses procedimentos que são propostos aos sujeitos para a demarcação de suas
identidades de “técnicas de si”, para ele, esses métodos têm a função de “fixar sua identidade,
mantê-la ou transformá-la em função de certo número de fins, e isso graças a relação de domínio de
si sobre si ou de conhecimento por si” (FOUCAULT, 2014, p. 349). Através dessas técnicas do eu
podemos notar, por exemplo, que a Priscila e a Kátia se subjetivaram como escritoras na atualidade,
como uma forma de pôr para fora todo o sofrimento vivido na meninice, uma espécie de catarse
55

para purificação da alma e dos pensamentos, tentando modificar o seu ser singular, fazendo de sua
vida uma obra de arte.
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Considerações finais

No contexto da nova história sobre a ditadura militar no Brasil, a CNV surge como uma
conciliadora entre a memória dessas crianças e o seu novo “eu” subjetivado, por meio da promoção
da justiça, que vai desde a reparação das vítimas e revelação da verdade, até a conciliação com seus
algozes. Tudo isso, proporciona ao sujeito uma forma de “investigação sobre os modos instituídos
do conhecimento de si e sobre sua história” (FOUCAULT, 2014, p.349), tentando responder a
seguinte pergunta: o que fazer de si mesmo, levando em conta o passado, que no caso em questão,
foi tão doloroso e traumático?
Apesar dos sofrimentos, essas crianças cresceram e definiram certos preceitos à seguir a
partir de suas verdades, enquanto sujeitos éticos, ao estabelecerem uma relação moral com elas
mesmas, procurando conhecer-se, controlar-se, aperfeiçoar-se, pôr-se a prova, e transformar-se, não
em um estágio de solidão e sim em um prática social, a partir do momento que os seus testemunhos
são abertos para o mundo inteiro como uma forma de fixar uma identidade que não é única, mas
compartilhada por muitas crianças que viveram na época, e como forma de relembrar coletivamente
o passado para que ele não se repita no presente.

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57 Página

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GT1- PRÁTICAS DISCURSIVAS E MODOS DE SUBJETIVAÇÃO

REPRESENTAÇÕES DO SUJEITO FEMININO EM ADAPTAÇÕES


CINEMATOGRÁFICAS DE CONTOS DE FADAS: A CONSTITUIÇÃO DA IDENTIDADE
FEMININA NO FILME MALEFICENT (2014)

Dayane Adriana Teixeira Oliveira (PROLING/UFPB)


Maria Regina Baracuhy Leite (PROLING/UFPB)

Introdução

Os clássicos contos de fadas que permeiam o imaginário de crianças e adolescentes no


mundo todo têm resistido ao tempo e se reinventado ao longo da história. De acordo com
Nelly N. Coelho (2012), no que se refere à educação e aos contos de fadas, podemos entender
que é por intermédio da literatura que o homem desenvolve sua consciência cultural, pois a
arte da escrita é essencial para dar forma e significação a valores culturais, padrões e
estereótipos que dinamizam a sociedade.
Nessa perspectiva, Coelho (2012) entende o universo da “literatura maravilhosa”
como intimamente ligado ao mundo dos símbolos, mitos e arquétipos, e por tanto, para
entender a natureza desse tipo de literatura, “é preciso entender a natureza da matéria-prima
(mitos, arquétipos), que a alimenta, e da linguagem (símbolos), que a expressa e a torna
comunicável” (p. 91).
Atualmente o mundo virtual deu origem ao que Coelho chama de mitologia
cibernética, que descontrói os grandes mitos e arquétipos (nobreza de caráter, idealismo,
amor, fidelidade aos seus ideias, solidariedade e grandeza interior) o que resulta em uma
inversão de valores provocada pelo “mito dominante”: a lei do mercado. Portanto, no corrente
processo de deslocamento contínuo de identidades do indivíduo não podemos desconsiderar a
expressiva participação da cultura midiática, sobretudo a cinematográfica, por constituir uma
das principais fontes de significados, foco de identificações e sistema de representação da
sociedade dos nossos dias.
De maneira geral, o que se pretende nesta pesquisa é investigar quais são as
representações do sujeito feminino no filme Maleficent (2014), produzido pela Disney, e mais
especificamente analisar como se constituem as posições desse sujeito, observando como ele
58

se representa em relação a si mesmo e ao outro, bem como compreender que relações


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interdiscursivas há entre o discurso da versão cinematográfica contemporânea e do discurso

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tradicional dos contos de fadas no que se refere à constituição dessas posições e
representações na construção da identidade feminina.
Essa pesquisa se inscreve no campo teórico da Análise do Discurso (AD) de vertente
francesa, cujo principal mentor é o francês Michel Pêcheux, o qual se sustenta uma
formulação teórica particular da relação entre linguagem, sujeito e ideologia, bem como uma
concepção própria de discurso. Além disso, apostamos em um diálogo com Michel Foucault,
para tratar de identidade, considerando suas contribuições para o campo da AD.
O corpus selecionado é de natureza sincrética, portanto, reúne em si diferentes
linguagens (verbal, visual, audiovisual) que articuladas num texto cinematográfico produzem
um efeito de unidade narrativa. Dessa forma, metodologicamente selecionamos cenas do
filme e as dividimos sequencialmente em cinco partes, que constituem o fio narrativo,
destacando elementos que contribuem para a construção da identidade do sujeito feminino,
que é a personagem principal Malévola.
Essa reflexão nos permite entender as diferentes formas de constituição do imaginário
social sobre o sujeito feminino em sua historicidade, colocando em questão a maneira como a
cultura dos contos de fadas, particularmente representada no discurso cinematográfico,
continua sendo um instrumento importante para a construção da identidade dos sujeitos,
especialmente o sujeito feminino.

1 Considerações acerca da Análise do Discurso (francesa)

Filiada a três domínios disciplinares diferentes – Linguística, Marxismo, Psicanálise –


a Análise do Discurso (AD) inicialmente era definida como “o estudo linguístico das
condições de produção de um enunciado”, e apoiava-se sobre conceitos e métodos da
linguística, o que logo mostrou-se insuficiente para marcar a especificidade da AD no interior
dos estudos da linguagem. Para tal, foi necessário considerar outras dimensões como a
história, o sujeito, a ideologia e o próprio discurso enquanto acontecimento simbólico. Há,
portanto, um deslocamento da noção de homem ou indivíduo (para a psicanálise) para a de
sujeito que se constitui, em AD, na relação, inconsciente e ideológica, com o simbólico na
história.
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Assim é que a proposta epistemológica do francês Michel Pêcheux (1969) de articular


Ciências Sociais (História, Sociologia e Filosofia), Linguística, Teoria do Discurso e
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Psicanálise inaugurou um novo período de reflexão não só sobre a linguagem, mas também
sobre a ideologia.
Cabe observar que, concebida discursivamente, a ideologia não tem um valor negativo
de deformação ou dominação, mas de interpretação. Dessa forma, no caso da análise dos
filmes selecionados para esta pesquisa, não os consideraremos como lugares de dominação ou
deformação, mas como lugares de produção de sentidos que se repetem, se legitimam, mas
que também podem ser negados ou transformados no processo discursivo.

 Discurso e Interdiscurso

A AD tem como objeto de estudo o discurso, que pode ser entendido como “palavra
em movimento, prática de linguagem” (ORLANDI, 2007, p. 15). O discurso é um fenômeno
exterior à língua, no entanto, necessita desta para se materializar, uma vez que a língua
funciona como uma condição de possibilidade do discurso.
Com isso, dizemos que o discurso, na AD é uma instância simbólica de ordem própria,
de natureza sócio-histórica, constituída pela relação da língua com sua exterioridade, tendo
essas categorias também definições próprias. A língua é entendida como materialidade
linguístico-histórica – sistema significante sujeito à falha, ao deslocamento de sentidos – e
não apenas como “materialidade” empírica, abstrata ou formal, é, portanto, um acontecimento
social e histórico, que funciona por e para os sujeitos que a usam. Por conseguinte, a língua é
o sistema dinâmico pelo qual o discurso se materializa em forma de texto. A exterioridade,
por sua vez, é pensada em termos de “condições de produção do discurso”, compreendendo
isso um conjunto de elementos que inclui os sujeitos, as circunstâncias imediatas da
enunciação, o contexto sócio-histórico-ideológico mais amplo e, sobretudo, a memória
discursiva, que é o espaço exterior significante a partir do qual se produz sentidos
(ORLANDI, 2001).
A formulação de sentidos em qualquer pratica social de linguagem em AD, se dá
sempre em função de sentidos outros, o que anteriormente mencionamos como sendo
memória discursiva, ou interdiscurso. Dessa forma, a produção de sentidos não é entendida
como uma correspondência direta entre significado e significante nem tão pouco entre língua
60

e contexto (situação). Se sustenta em AD que o sentido formulado em uma prática social de


linguagem é sempre função de sentidos-outros, “já-ditos”, dado que “só podemos dizer
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(formular) se nos colocamos na perspectiva do dizível” (ORLANDI, 2001, p. 34). Em outros

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termos, os sentidos só fazem sentido pela (re)filiação em redes e trajetos de significação
historicamente constituídos.
A partir dessa perspectiva discursiva é possível observar as adaptações
cinematográficas de contos infantis enquanto objetos simbólicos, históricos e políticos,
lugares ao mesmo tempo de estabilização e de movimento de sentidos, e para os quais, antes
de se pretender fixar, de uma vez por todas, uma interpretação já sabida ou desejada, cabe
expor as interpretações sobre as quais se constituem. Essa é uma posição de interpretação
comprometida com uma leitura não subjetivista e materialista da produção de sentidos, ou
seja, uma leitura linguístico-histórica ou discursiva.

 Sujeito e Posição-sujeito

De modo geral, o sujeito em AD é forma-sujeito histórica, marcada pelo social e o


ideológico, que o indivíduo deve ocupar para significar. É pela forma-sujeito histórica
compreende diferentes posições sujeito para o exercício da linguagem, que alçam os
indivíduos à condição de sujeitos de discurso, ao mesmo tempo os assujeitando e os
legitimando de acordo com o lugar social historicamente determinado. Pêcheux (1988) ao
relacionar sujeito e ideologia, nos ajuda a compreender o processo de
identificação/assuejitamento dessa forma-sujeito com as formações discursivas (FD) diversas
e como essas FDs podem “regular e organizar o dizer das diferentes posições sujeito que nela
convivem” (CAZARIN, 2007, p. 110).
Considerando o sócio-histórico e o ideológico como elementos constitutivos do sujeito
Orlandi (1998) afirma que, na verdade, posição-sujeito é um lugar social representado no
discurso. Isso significa dizer que o lugar que sujeito ocupa na sociedade é determinante para a
formulação de seus dizeres. Pechêux defende que as imagens que os interlocutores de um
discurso atribuem a si e ao outro são determinadas por “lugares empíricos”, construídos no
interior de uma “formação social”. Mas ao se identificar com determinada FD, o sujeito ocupa
o lugar discursivo, que é efeito do lugar social. Por isso, podemos dizer que o lugar discursivo
está no entremeio do lugar social e da forma-sujeito, podendo abrigar diferentes e até mesmo
contraditórias posições-sujeito. Vesse, por exemplo, o lugar socialmente determinado para o
61

sujeito feminino em diferentes momentos da história (clássica, medieval, contemporânea),


que no discurso, enquanto forma-sujeito histórica, assume diferentes posições-sujeito,
Página

movimentando sentidos para as formas de representação do feminino e de seu lugar social.

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Nas diversas formações discursivas que compõem o discurso sobre o sujeito feminino
contemporâneo, está o discurso das adaptações cinematográficas de contos de fadas
(DACCF), enquanto lugar ideológico de representações desse sujeito. Essas representações
materializam-se em forma de linguagem (verbal e não verbal) onde atuam discursos
transversos que se dissolvem no intradiscurso e produzem diferentes representação do
feminino, de sua identidade e posições, movimentando sentidos para a sua forma-sujeito no
discurso tradicional dos contos de fadas (DTCF).

2 Representação e identidade numa perspectiva foucaultiana

As representações (imaginárias) são resultantes de projeções de lugares e referentes


sociais no discurso. Isto é, o sujeito atribui imagens do destinatário, do referente e de si. Essas
imagens, por sua vez, condicionam o processo de elaboração discursiva, as quais remetem a
mecanismos de funcionamento da linguagem: relações de sentido, relação de força e
antecipação condicionados pelas formações imaginárias (PÊCHEUX, 1969). Podemos, assim,
dizer que a imagem do sujeito feminino contemporâneo, por exemplo, é condicionada pelo
lugar social a ele atribuído por uma determinada formação discursiva.
Intrínseco a concepção de representações, está a noção de identidade. As identidades
sociais são construídas discursivamente e por isso estão em constante processo de construção,
sendo assim, múltiplas, fragmentadas, complexas e contraditórias. Podemos dizer, que as
identidades são uma forma de identificação e contra-identificação no processo discursivo.
Considerando o sujeito uma forma ideológica situada historicamente de acordo com
Foucault (1995) a identidade é resultado das relações de poder, e que, portanto, é um ato
político, um espaço de conflitos, de lutas e jogos de poder, mas ao mesmo tempo de
resistência:

Qualquer luta é sempre resistência dentro da própria rede do poder, teia que
se alastra por toda a sociedade e a que ninguém pode escapar, ele está
sempre presente e se exerce como uma multiplicidade de relações de força. E
como onde há poder há resistência, não existe propriamente o lugar da
resistência, mas pontos móveis e transitórios que também se distribuem por
toda a estrutura social (MACHADO, 1989, p. 18).
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Foucault já apontava que a luta contra as formas de sujeição – contra a submissão da
subjetividade – estava se tornando cada vez mais expressiva. O que vem se confirmando nos
dias atuais, principalmente no que diz respeito às questões de gênero.
Atualmente, a mídia contribui para a fortificação e equiparação de determinadas
identidades, fornecendo base ideológica para a iniciação, consolidação e repetição de
determinadas performances identitárias durante as práticas discursivas; ela pode favorecer
tanto uma ruptura, quanto legitimar certas identidades tradicionais.

3 Contos de fadas e a representação do feminino

Nos contos de fadas tradicionais, a figura feminina traz a marca da submissão. Seu
principal atributo é a beleza: todas as heroínas dos contos de fadas, orgulhosas ou humildes,
são belas e, quase sempre, boas. São geralmente premiadas por um comportamento que prima
pela passividade e pela bondade. Abordando os contos de Grimm, Coelho (2012) distingue
como “qualidades exigidas à Mulher: Beleza, Modéstia, Pureza, Obediência, Recato... total
submissão ao Homem (pai, marido ou irmão)”. (p.147). Ainda que o discurso dos contos
realce a ambiguidade da natureza feminina, a mesma é apontada como causadora tanto de
bem, quanto de mal à figura masculina, dependendo do lugar que ocupa dentro na narrativa.
Na Contemporaneidade, no entanto, presenciamos os discursos tradicionais sobre o
feminino sendo confrontados por novas formas de concepção desse sujeito e dos lugares que
pode/ocupa em na sociedade atual. Dentre elas Tedeschi destaca, sobretudo, o movimento
feminista, que teve seu início na Revolução Francesa (1789-1799), mas que só tomou forma e
força em fins da década de 1960. Começou-se a reivindicar o lugar da mulher enquanto
sujeito político, emancipação ante a subordinação masculina, liberdade de expressar-se e
vestir-se como deseja, desenvolvimento intelectual (educação/capacitação), exercício dos
direitos constitucionais, equidade de gêneros etc.
Em face desse contexto, cumpre então analisarmos que atributos configuram o que se
poderia chamar de identidade feminina – que definem o ser mulher – tanto a partir de sua
relação consigo mesma (seus dilemas, conflitos, conquistas etc) bem como em relação ao
sujeito masculino (o ser homem; que “figura” ele representa para o sujeito feminino).
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4 Uma estória “mal contada”: Malévola (2014)

Para fins de análise, dividimos a narrativa fílmica em cinco partes com recortes de algumas
cenas que dizem respeito ao percurso narrativo da personagem principal Malévola.

PARTE I

Figura 1 Figura 2

Figura 3

PARTE II
Figura4
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PARTE III
Figura 5

PARTE IV
Figura 6

PARTE V
Figura 7

Vejamos agora como a versão contemporânea dessa adaptação cinematográfica


representa o sujeito feminino, movimenta sentidos e posições-sujeito e que relações
interdiscursivas sustentam essas posições no que diz respeito a constituição das identidades
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femininas.
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Na PARTE I, as cenas correspondem ao primeiro momento do filme, que corresponde
a apresentação da personagem e desenvolvimento da relação com Stefan e os demais
humanos. A figura 1, apresenta tons claros, como azul e verde, a claridade do dia ilumina toda
a paisagem e no centro está Malévola ainda criança com as asas abertas. A posição da câmera,
que captura de cima produz um efeito de elevação do objeto central, que é Malévola. Toda
essa cena contribuí para a construção de uma imagem de liberdade e serenidade da
personagem e do ambiente em que vive. Já na figura 2 temos a concretização do afeto de
Stefan e Malévola através do beijo de amor verdadeiro. Os tons são mais quentes, porém
amenos, que resulta do pôr-do-sol, produzindo assim um cenário romântico. Malévola está
com as asas elevadas e levemente abertas, revelando relaxamento e ao mesmo tempo
excitação. O desenho do casal centralizado é formado por linhas pictóricas, cuja opacidade,
profundidade e sombras produzem esse efeito de unificação dos corpos no ato simbólico que é
o beijo. Em contraste, temos a figura 3, em que Malévola, num conflito com os humanos
protege o seu povo. Nesse figura destacamos o posicionamento da câmera que mostra o corpo
da personagem de baixo para cima, elevando sua postura, provocando um efeito de grandeza,
de elevação que é confirmado por seu olhar firme e compenetrado da fada. As asas estão
fechadas, porém elevadas, destacando suas pontas afiadas, construindo para a personagem
uma imagem mais ameaçadora. Os tons são mais escuros e acinzentadas, que contribuem para
dar seriedade a cena. Na PARTE I, vemos que a imagem construída para o sujeito feminino é
a de um sujeito livre, romântico, bondoso, mas ao mesmo tempo forte, confiante, corajoso.
Percebemos então, alguns deslocamentos de sentido para esse sujeito, pois no DTCF, o sujeito
fada é dotado de muita magia e bondade, no entanto, não se coloca como sujeito ativo,
corajoso ou forte, mas auxilia os outros sujeitos oferecendo seus serviços e concedendo
desejos.
Na PARTE II, temos apenas uma figura que corresponde ao momento em que
Malévola descobre a traição de Stefan. É uma cena muito importante que muda o rumo da
estória. Os tons são acinzentados, com a mistura da cor verde e azul, em tons mais frios, há
pouca luminosidade. A personagem está centralizada e o fundo da cena desfocado, toda a
atenção é direcionada a ela. Uma forma de comover o público e provocar solidariedade em
relação a Malévola, sua expressão de dor e ao mesmo tempo espanto, juntamente com o
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choro, comovem o espectador. As mãos apoiadas no próprio ombro, direcionada para as


costas, procuram o que não mais está lá: suas asas foram cortadas. A união da mutilação do
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corpo com a dor da traição torna essa uma das cenas mais tensas da narrativa fílmica. A partir
desse acontecimento, vemos uma mudança na imagem inicial do sujeito feminino.
Na PARTE III, a representação da Malévola muda completamente, ferida, mutilada e
cheia de ódio, vemos nas figuras um e dois uma outra postura, um novo olhar, mais sombrio e
debochado. É o momento da vingança. Os tons são mais escuros do que nunca, está presente
no cenário e na composição do visual da personagem. O tom verde escuro na figura 2 que
contorna o corpo da personagem de maneira turva/curva, denuncia a presença de um poder
que emana da fada, um poder, no entanto, ruim, uma força do mal. Nas três figuras a
personagem está centralizada, voltamos nossa atenção para a figura 3, cujo cenário com
nenhuma luminosidade, totalmente obscurecido é composto por um estilo pictórico que
mescla o corpo de Malévola com o cenário, o que revela ao mesmo tempo, o endurecimento
da alma e extensão do seu poder.
Já na PARTE IV, que corresponde ao reencontro e confronto final entre os sujeitos
masculino e feminino, temos uma composição diferente. Os tons quentes e vibrantes
contribuem para a construção de uma cena mais agitada e tensa, mesclando com as emoção
dos personagens, de fúria e medo. Na figura 1 Malévola está posicionada no canto inferior à
direita, revelando sua posição subjulgada e oprimida por Stefam que está de pé no canto
superior à esquerda. No entanto, após entrar em conjunção com as suas asas novamente, como
vemos na figura 2, ela logo ergue e aparece mais uma vez centralizada, os tons quentes são
amenizados e temos a presença tímida de um feixo de luz, num tom azul frio. Suas asas
completamente abertas em contraste com o feixo de luz que entra pela janela produz um efeito
de engrandecimento do sujeito. Dessa forma o sujeito recupera parte de sua imagem inicial,
revelando confiança e intimidando o adversário.
Por fim, na PARTE V, selecionamos uma única figura que nos ajuda a analisar a
retomada da imagem do sujeito feminino em sua apresentação inicial. Após a morte de Stefan
e unificação dos reinos, na cena final, Malévola volta a sua posição inicial de heroína. Os tons
claros, a presença de muita luz, contrastam com a obscuridade na qual se encontrava a
personagem anteriormente e conversa com a figura 1 da Parte I. Novamente a vemos
centralizada e mais uma vez elevada, as asas estão elevadas e levemente abertas, o corpo está
relaxado, o peito aberto e a cabeça elevada. Com tons mesclados, contornos turvos e abertos,
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uma disposição mais profunda das figuras e um efeito de unidade, temos a construção de
plano expressivo pictórico. Todos esses aspectos conversam perfeitamente com plano do
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conteúdo, no qual esse momento simbolização a libertação e redenção da personagem
feminina.

Considerações finais

Percebemos que a adaptação cinematográfica selecionada para essa pesquisa, retoma o


DTCF, transformando-o e até mesmo rompendo com ele, contribuindo, assim, para a
constituição de uma “nova” forma-sujeito feminino. Na narrativa filmica, o sujeito feminino é
essencialmente independente, livre. Esses elementos indicam uma ruptura com o DTCF, no
qual a figura feminina se caracteriza pela submissão e passividade são constituem a identidade
desse sujeito. Além disso o sujeito feminino é representado em sua complexidade, ocupando
diferentes posições, as vezes conflitantes, constituindo assim uma identidade heterogênea.
Isso também resulta em uma mudança no DCCF em relação ao discurso do filme, pois a
homogeneidade da representação tradicional, a partir da qual o sujeito é completamente bom
ou completamente mau, não possibilita esse deslocamento de posições, e, portanto, apenas
estabiliza sentidos.
A personagem Malévola é constituída por essa heterogeneidade e complexidade, se
movimentando por posições contrastivas como /fada boa/versus/bruxa má/,
/heroína/versus/vilã/, o que caracteriza um deslocamento em relação ao discurso tradicional.
Ainda assim, na caracterização dessa personagem, prevalece a imagem do sujeito feminino
bondoso, virtuoso, justo e materno. Essa representação complexa e conflituosa resulta em
movimentos de tensão em relação a elementos da DTCF, sem que uma ruptura aconteça
plenamente, marcando uma tensão entre duas representações possíveis do sujeito feminino:
uma tradicional e uma contemporânea no que se refere à representação do sujeito feminino.
Contudo, há uma outra representação para esse sujeito feminino no DCCF que
também é caracterizado como forte, poderoso, bondoso, independente e autossuficiente. Isso
resulta numa ruptura com o DTCF, no qual a identidade do sujeito feminino é constituída a
partir da fragilidade, submissão e passividade. Há, portanto, uma desconstrução do estereótipo
tradicional do sujeito feminino em contos de fadas, logo uma nova forma-sujeito.
Outro aspecto que nossa análise permitiu observar na adaptação foi a relação entre as
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representações do sujeito feminino e do sujeito masculino. Enquanto o sujeito feminino é


representado pela força, poder e independência, ou ainda se deslocando em diferentes
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posições-sujeito, o sujeito masculino é caracterizado pela incapacidade, mau-caratismo e

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subordinação. Nesse sentido, temos também, na versão cinematográfica analisada, uma
ruptura com o DTCF, pois o sujeito masculino é deslocado de sua posição de salvador,
corajoso, sensato e destemido, passando para o lugar da passividade, inércia e inutilidade.
Esse deslocamento do lugar discursivo masculino é determinante para o modo de
representação do sujeito feminino em relação ao outro, masculino, e ao eu, feminino, pois
constitui para esse sujeito uma nova forma de significação no discurso, que se representa não
apenas pelo olhar do outro – masculino, machista, dominante – mas por seu próprio olhar,
independente do sujeito masculino, contribuindo para a constituição da identidade feminina
autônoma.
Portanto, no discurso do filme analisado, identificamos há um rompimento com o
DTCF no que diz respeito às representações tradicionais dos contos de fadas, sustentado pelo
discurso machista. Na adaptação, a união feminina é determinante e o matrimônio já não é a
materialização do desejo e da redenção do sujeito feminino. Percebemos assim que o discurso
feminista sustenta boa parte das posições-sujeito feminino construídas na narrativa fílmica.
Mesmo havendo retomada de elementos do DTCF, podemos afirmar que um discurso “novo”
é predominante e determinante para a constituição da imagem do sujeito feminino como livre,
autônomo e emancipado.
Todas essas questões nos levam a uma leitura menos superficial dos discursos que
constituem as adaptações cinematográficas e nos fazem refletir sobre a importância desse
objeto, tido muitas vezes como mero entretenimento, na propagação de representações dos
sujeitos e das relações sociais.

Referências

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Paulinas, 2012.

DANTAS, Aloísio de Medeiros. Sobressaltos do discurso: algumas aproximações da análise


do discurso. Campina Grande: EDUFCG; 2007.

FOUCAULT, Michel. O sujeito e o Poder. In: RABINOW, P.; DREYFUS, H. Michel


Foucault: uma trajetória filosófica para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de
Janeir: Forense Universitária, 1995.
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GRIMM. A Bela Adormecida. In: Contos escolhidos, irmãos Gimm. Tradução: Stella
Altenbernd e Mario Quintana. Porto Alegre: Globo, 1985.
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MACHADO, Roberto. Por uma genealogia do poder. In: FOUCAULT, Michel. Microfísica
do poder. Tradução: MACHADO, Roberto (Org.). Rio de Janeiro: Graal, 1989.

MALEFICENT. Direção: Robert Stromberg. Produção: Don Hahn, Joe Roth, Richard D.
Zanuck. EUA: Walt Disney Pictures, 2014. Son, Color, Formato: 97 min.

ORLANDI, Eni P. Análise de discurso: princípios e procedimentos. 2. ed. São Paulo: Pontes,
2001.
______. Análise de Discurso: princípios e procedimentos. Campinas, SP: Pontes, 1999.

______ . Discurso e leitura. Campinas, São Paulo: Cortez, 1988.

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______. Terra à vista: discurso do confronto Velho e Novo Mundo. Campinas: Cortez, 1990.

PÊCHEUX, Michel. 1969. Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio.


Tradução: Eni P. de Orlandi et alii. Campinas: Editora da UNICAMP, 1988.

PÊCHEUX, M. Análise Automática do Discurso. In: Por uma análise automática do


discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Campinas: Editora da Unicamp, 1993.

TEDESCHI, Antonio Losandro. As mulheres na história: uma introdução teórico


metodológica. Dourados MS: Editora UFGD, 2012.

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GT1- PRÁTICAS DISCURSIVAS E MODOS DE SUBJETIVAÇÃO

AS ESTRATÉGIAS DISCURSIVAS EM REVISTA: O CORPO “DEFICIENTE”


SAUDÁVEL E OS DESLIZAMENTOS DE SENTIDOS

Edson Santos de Lima - UERN


Maria Eliza Freitas do Nascimento - UERN

Introdução

Aos estudos discursivos destacamos a grande relevância que a Análise do Discurso de


linha francesa promoveu com significativas contribuições teórico-metodológicas. Na busca
pelos sentidos em diversas materialidades a analise discursiva compreende sua relação com a
história, a memória discursiva e com aspectos sociais. Desse modo, a Análise do Discurso
(doravante, AD) é fonte de inúmeras interpretações para os estudos linguísticos,
especificamente para o campo discursivo.
Na busca por interpretações de objetos no campo discursivo, evidenciamos neste
trabalho a relação dos estudos do corpo com deficiência e sua relação com o corpo saudável,
atlético e feliz. Nesta dualidade de incluir as pessoas com deficiência nas diversas esferas
sociais, a legislação4 dos direitos da pessoa com deficiência define que:

art. 1o É instituída a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência


(Estatuto da Pessoa com Deficiência), destinada a assegurar e a promover,
em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades
fundamentais por pessoa com deficiência, visando à sua inclusão social e
cidadania.

Nesta legitimação, instituída pela lei, a inclusão da pessoa com deficiência deve ser
um direito assegurado pelas condições de igualdade em toda sociedade. Observar esta ordem
discursiva com as estratégias discursivas midiáticas é atentar para os efeitos evidenciados por
propagandas de produtos da Nestlé. Na ótica que Incluir faz bem, a propaganda da marca dos
produtos Nestlé, trazendo no seu slogan Nestlé faz bem.
Partindo para as relações teórico-metodológicas da AD, atentando para as vontades de
verdades e os deslizamentos de sentidos, nosso arquivo de análise constitui-se de uma
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4
Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-
2018/2015/lei/l13146.htm>.

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materialidade (capa) da revista Incluir, que fala sobre Natália Martins, a primeira atleta surda
a atuar profissionalmente no Brasil e, a propaganda do produto da Nestlé, especificamente
produtos Nesfit. Estaremos assim em nosso artigo, fundamentados teoricamente no diálogo
entre Michel Pêcheux e Michel Foucault, aplicando o método arqueogenealogico de Foucault
(2013; 2006).
Na leitura das materialidades e dos enunciados em seu acontecimento discursivo,
podemos observar as estratégias de disciplinamento do corpo influenciando o modo de viver
das pessoas e especificamente das com necessidades especiais. Por isso pretendemos
problematizar as estratégias disciplinares do corpo “deficiente” saudável em decorrência aos
procedimentos de saber e poder que inferem a emergência deste enunciado na sua irrupção de
acontecimento.
As interpretações são possibilidades de leituras possíveis, assim discorreremos sobre
as vontades de verdades, os deslizamentos de sentidos e a relação incluir faz bem x Nestlé faz
bem, sendo analisadas nos enunciados. Esta emergência discursiva é proveniente de políticas
públicas que legitima a inclusão das pessoas com deficiência nos diversos contextos sociais,
além disso, a mídia colocando em evidência este corpo de forma estratégica na ordem da
inclusão.

2 As vontades de verdades e os deslizamentos de sentidos

Nos estudos das práticas discursivas, a leitura dos sentidos percorre o textual, o
discursivo e o imagético. Nesse processo de interpretação dos enunciados, que nunca
apresentam o mesmo sentido na sua irrupção discursiva mas, trazem sentidos outros mediante
suas condições de produção, visto que “o novo não esta no que é dito, mas no acontecimento
de sua volta” (FOUCAULT, 2013, p. 25). Percebemos assim, a íntima relação da história que
condiciona o enunciado na sua emergência de acontecimento discursivo como sendo uma
vontade de verdade.
Nesse sentido, podemos dizer que o discurso é material de inúmeras análises na busca
pelos sentidos, operados em diversas materialidades que circulam na sociedade. “O discurso é
exterior à língua, mas depende dela para sua possibilidade de existência material, ou seja, o
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discurso materializa-se em forma de texto, de imagens, sob determinações históricas”


(FERNANDES, 2012, p.16). Por isso, analisar o discurso é perceber leituras de sentidos
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possíveis, mas nunca qualquer efeito. As práticas discursivas corroboram para estratégias

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discursivas e relações de poder e saber que direcionam as vontades de verdade e seus
deslizamentos de sentidos.
Nas palavras de Foucault (2013, p. 16-17):

ora, essa vontade de verdade, como os outros sistemas de exclusão, apoia-se


sobre um suporte institucional: é ao mesmo tempo reforçada e reconduzida
por toda uma espessura de práticas como a pedagogia, é claro, como o
sistema dos livros, da edição, das bibliotecas, como as sociedades de sábios
outrora, os laboratórios hoje. Mas ela é também reconduzida, mais
profundamente sem dúvida, pelo modo como o saber é valorizado,
distribuído, repartido e de certo modo atribuído.

A vontade de verdade é discursivizada na esteira da produção de sentidos que emerge


um saber operado pelas estratégias discursivas ou midiáticas e que norteia um poder sobre o
dito em relação ao não dito.
Logo, as estratégias discursivas focalizadas neste trabalho evidenciam a superação do
sujeito dito “com deficiência” por meio do esporte sendo discursivizado na capa da revista
Incluir, os recortes; as miras; os objetivos são trabalhados no jogo discursivo em que aborda a
superação de um sujeito de forma saudável, ou seja; na materialidade Nathália é
discursivizada por relações de poder e saber, o saber da medicina de viver bem, saudável e
com saúde; colocando em evidência o efeito de apagamento da deficiência. A vontade de
verdade é conduzida para a possibilidade das pessoas com deficiência à serem trazidas na
evidência saudáveis, atletas e superando obstáculos, participando de competições, e felizes.

3 O corpo como objeto discursivo: Incluir faz bem x Nestlé faz bem

Aos estudos discursivos, o estudo do corpo aborda uma relevância significativa aos
estudos das relações de poder e saber que são operados pelo universo midiático que imputa
regimes de verdades, interdições e silenciamentos. Por isso, a importância em analisarmos o
enunciado na sua irrupção discursiva e percebendo a emergência do discurso da inclusão nas
práticas sociais.
Portanto, percorrendo a leitura do enunciado em seu acontecimento discursivo,
podemos observar as estratégias de disciplinamento do corpo influenciando o modo de viver
73

das pessoas e especificamente das com necessidades especiais. A incisão do sujeito com
deficiência na materialidade é discursivizada por regimes que subjetiviza o ser saudável em
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boa forma no espaço da vida, da competição. Vejamos a capa abaixo, da revista Incluir:

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Fonte: Revista Incluir, edição 43.

O discurso da inclusão de pessoas com deficiência é legitimado pela lei que


condiciona a inclusão das pessoas com deficiência nas diferentes instâncias sociais. A
propaganda de produtos da Nestlé enfatiza o consumo de produtos saudáveis, assim como o
discurso da inclusão nos dias de hoje ser primordial, à boa qualidade de vida de pessoas com
necessidades especiais. A estratégia discursiva coloca em atenção inédita na matéria de capa,
Nathália Martins, a jogadora de vôlei surda da seleção brasileira de pan-americano que
venceu as barreiras de suas necessidades. A vontade de verdade que é emergida da
materialidade é o seu aspecto saudável, esportivo, atleta e feliz. Essas inferências são
possíveis devido às condições de produção desse enunciado nesse período histórico, em suas
condições de produções. Ainda na matéria de capa, temos o seguinte enunciado: “A primeira
jogadora de vôlei surda a atuar profissionalmente no Brasil se destaca na superliga de vôlei, é
eleita a melhor jogadora do Pan-americano e promove a inclusão dentro e fora das quadras”.
Neste trecho, remontemos para o corpo atleta, que promove a inclusão e, o corpo deficiente
atuando profissionalmente, desejo de toda pessoa que pretende ter condições de igualdade na
sociedade contemporânea.
O processo histórico da inclusão de pessoas que nasciam com alguma deficiência foi
amplamente modificado, a concepção de corpo foi sendo reconfigurado na sociedade,
74

passando a ser visto como objeto de produção e lucratividade. Por muito tempo o sujeito que
nascia com alguma deficiência era concebido pela sociedade como um sujeito improdutivo e
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que ocasionaria apenas gastos para o governo. Com a lei que passou a legitimar a inserção do

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sujeito com deficiência as barreiras foram sendo sanadas por normas institucionais
regulamentares que promovem a igualdade destes sujeitos assim como os ditos “normais” da
sociedade. Embora a lei tenha sido um fator importante, não podemos deixar de mencionar o
fator capitalista e economia que vivenciamos nos dias atuais, esse outro aspecto também
influenciou na mudança de trabalho de empresas e organizações preocupados com os direitos
de promover a igualdade na sociedade.
Por esse viés capitalista, as organizações, empresas e comércios se tornam obrigados a
aderirem a inclusão de pessoas com deficiência nos seus ambientes de trabalho. Para o
governo, este corpo não será mais objeto de repressão e assim sendo visto e pensado para
produzir e contribuir com a economia social. De acordo com Nascimento (2013, p. 16):

o corpo com deficiência desloca-se, então, do foco de exclusão social, para


um foco de preocupação do poder, tendo em vista que não basta segregá-lo
em instituições fechadas, mas sim, transformá-lo em produtivo, pois ele pode
também ser uma força de trabalho.

Na leitura da materialidade, percebemos o jogo discursivo da evidência do sujeito com


deficiência aparentando sem nenhuma deficiência, além disso, fazendo relação com a
propaganda da Nestlé, os produtos Nesfit. Estes produtos direcionam um discurso da boa
alimentação, do estilo saudável, do corpo em forma, do corpo atleta. Sendo assim, é possível
um diálogo do enunciado Nestlé faz bem com o discurso da inclusão na contemporaneidade
que Incluir as pessoas com deficiência faz bem, reiteramos assim o dizer perpassado pela
memória discursiva, que antes a inclusão do corpo deficiente não era aceitável na sociedade,
diferente dos dias de hoje.
Atualmente percebemos a grande evidência midiática que propagandas usam estes
sujeitos para direcionar sua marca, seu produto, como sendo o melhor ou o mais apropriado
para aquela ocasião ou ação. Dessa maneira, “a população será o objeto que o governo deverá
levar em consideração em suas observações, em seu saber, para conseguir governar
efetivamente de modo racional e planejado”. (FOUCAULT, 2008, p. 289-290).
Vejamos abaixo, a propaganda da Nestlé:
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Propaganda da Nestlé: produtos Nesfit Slogan da Nestlé

A incisão do sujeito com deficiência na materialidade é discursivizada por regimes que


subjetiviza o ser saudável em boa forma no espaço da vida, da competição, do “sentir-se em
forma”. Pelas estratégias da biopolítica e da governamentalidade que imputam regimes de
viver bem e melhor, percebemos que os deslizamentos de sentidos trazem como possível
leitura nas materialidades analisadas vontades de verdades e efeitos de sentidos no embate
entre a inclusão de pessoas com necessidades especiais e os produtos Nestlé, ambos “fazem
bem” para toda a sociedade, especialmente para o corpo atleta deficiente em ser e/ou manter o
efeito de saudável com o consumo de Nesfit.
Quando o governo gerencia esses índices e assim conseguindo que as pessoas vivam
mais e melhor isto influencia em seu governo pelo fato de estar preocupado com a vida da
população. Embora, percebamos que todas as estratégias de governamentalidade nos dias de
hoje são direcionadas pelo fator econômico, em ganhar e lucrar estrategicamente no atual
cenário mundial globalizado.
Na estratégia midiática dos enunciados, o efeito de sentido é operado na esteira da
produção de subjetividade da posição-sujeito, Nathália Martins que ocupa uma posição de
destaque na capa da revista, demostrando por meio do sorriso o efeito de competidora um
sujeito saudável. A relação possível de ser estabelecida é com o slogan da Nestlé- Nesfit – um
corpo saudável, esportivo, competidor, com energia. Para isto, “esse processo de visibilidade
é acentuado pela lógica capitalista que incide sobre o indivíduo como objeto de valor”
(SANTOS, 2017, p. 171). Assim é na leitura possível do enunciado compreendendo o
discurso na sua dispersão e o sentido como efeito, as estratégias discursivas operadas na e
76

pela mídia evidenciando uma comparação beneficente entre o sujeito para ficar em forma,
saudável e atleta que precisa usar os produtos Nesfit que deixa o corpo em forma e com muita
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disposição para qualquer competição. Desse modo, como afirma Santos (2017, p. 95):

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as práticas midiáticas se voltam, portanto, para um feixe imensurável de
técnicas e de estratégias que se renovam a todo instante. Estratégias inscritas
no bojo do trabalho com o dizer e com a produção de efeitos de sentidos na
dispersão discursiva.

No dialogo das materialidades as reconstruções interdiscursivas são possíveis diante


das inferências que o corpo como objeto discursivo aborda. O corpo é apreendido no seu
aspecto social, histórico e discursivo. Ocupar uma posição de visibilidade na mídia é
reconstruir ressignificações para os discursos e especificamente para o discurso da inclusão.
Aspecto esse, na qual a posição- sujeito direcionada para a jogadora de vôlei na matéria de
capa é significativa para a construção dos sentidos, tendo como aparato analítico a história e
sua operação na e pela evidência midiática.

Considerações finais

A propaganda de produtos da Nestle evidencia uma vontade de verdade de produtos


saudáveis, assim como o discurso da inclusão nos dias de hoje ser primordial, por aspectos de
igualdade e legitimidade deste sujeito na sociedade. O efeito de Incluir as pessoas com
deficiência em espaços midiáticos, e o consumos dos produtos Nesfit; para ter uma
alimentação saudável, um corpo em forma e atleta; ambas similitudes de que fazem bem é
atualizado pela leitura do enunciado no seu batimento entre descrição e interpretação
(PÊCHEUX, 2006), tendo em vista a relação com a história e a memória discursiva.
Pelas estratégias da biopolítica e da governamentalidade que imputam regimes de
viver bem e melhor, percebemos que os deslizamentos de sentidos emanam nas
materialidades analisadas vontades de verdades e efeitos de sentidos na similitude entre a
inclusão de pessoas com necessidades especiais e os produtos Nestle, ambos “fazem bem”
para toda a sociedade, especialmente para o corpo atleta deficiente em ser saudável.
O corpo deficiente recebe uma carga de sentido em ser saudável com o consumo dos
produtos Nesfit, em que temos Nes da marca Nestlé e o Fit empregado para o corpo em forma
e/ou saudável. No diálogo com o corpo, a jogadora veste essa camisa, ou seja reconfigura o
efeito do produto saudável para o corpo atleta de modo que é discursivizado na capa da
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revista.
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Assim, observando estes objetos discursivos na engrenagem das produções de
subjetividades e relações de poder e saber que são operados pela mídia. Os sentidos são
colocados na interpretação mediante a atenção que objetivamos em reportar para as vontades
de verdades e interdiscurso na ordem do discurso da inclusão. Esta analisa discursiva não é
estanque e sim fonte de outras interconexões possíveis diante do arcabouço teórico que a AD
pode proporcionar.

Referências

FERNANDES, C. A. Discurso e sujeito em Michel Foucault. São Paulo: Intermeios, 2012.

FOUCAULT, M. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 2013.

FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.

FOUCAULT, M. O sujeito e o poder. In: DREYFUS, H. L; RABINOW, P. Michel Foucault:


uma trajetória filosófica para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2009, p. 231 -250.

FOUCAULT, M. A governamentalidade. In: ________ . Microfísica do poder. 25. ed. Trad.


Roberto Machado. São Paulo: Graal Edições, 2008, p. 277- 293.

NASCIMENTO, M. E. F. A pedagogia do sorriso na ordem do discurso da inclusão da


Revista Sentidos: poder e subjetivação na genealogia do corpo com deficiência. Tese
(Doutorado)- UFPB: João Pessoa, 2013.

PÊCHEUX, M. O discurso: estrutura ou acontecimento. Campinas, SP: Pontes Editores,


2006.

SANTOS, A. G. P. Poder, Discurso e Mídia: subjetivação e enunciabilidade no


acontecimento político-discursivo norte-americano. Paraíba: Marcas da Fantasia, 2017.
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GT1- PRÁTICAS DISCURSIVAS E MODOS DE SUBJETIVAÇÃO

INTERDISCURSO, MEMÓRIA DISCURSIVA E RELAÇÕES DE PODER: UMA


ANÁLISE EM DISCURSOS PARLAMENTARES SOBRE O PROCESSO DE
IMPEACHMENT DE DILMA ROUSSEFF

Gustavo Natanael Arlindo de Souza


Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN)
José Gevildo Viana
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN)

1 Considerações iniciais

Compreender a linguagem em seu caráter dialógico, cultural, histórico e social é ter o


discernimento sobre as diversidades linguísticas que configuram as relações sociais que
permeiam a sociedade, as quais configuram uma rede linguística e um amplo modo de
interação entre os sujeitos, sejam por enunciados orais ou escritos. Adentrando nesses fatores
que buscam a compressão da linguagem em seus aspectos histórico-sociais, dialógicos, a
Análise do Discurso, enfatizando a AD de origem francesa, engloba estudos que relacionam a
língua/discurso com seu exterior, com toda sua entidade linguística discursiva, ou seja, analisa
a língua não apenas nos fatores estruturais para sua compreensão de sentidos, mas levando em
conta as ideologias\relações de poder, as condições de produção, o sujeito etc.
A língua é regida pelas relações sociais e os sujeitos ao produzirem discursos se
situam no enredo da língua com a história. Nessa perspectiva, os enunciados proferidos pelos
sujeitos são sempre marcados por valores discursivos advindos de todo um movimento de
posições assumidas por estes sujeitos em suas relações sócio histórica e ideológicas. Deste
modo, o discurso se configura como um lugar em movimento, uma prática que engendra
efeitos de sentidos mobilizados por processos de agrupamentos de discursos\interdiscurso,
acionados pela atuação da memória discursiva sob o jogo das relações de poder. Assim sendo,
propomos com este trabalho, descrever\analisar o discurso parlamentar no processo de
impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, focalizando a memória discursiva, o
interdiscurso e as relações de poder.
Trabalhar com o discurso, aqui especificamente do espaço político, requer lidar com
uma problematização discursiva permeada de ideologias, memória e entrecruzamentos de
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outros discursos marcados numa determinada situação de produção. Ao que cabe ao nosso
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recorte, situamo-nos, na conjuntura do processo de impeachment da, no momento, presidenta

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Dilma Rousseff, na qual resultou numa proliferação de discursos advindos dos parlamentares
ao declararem seu voto publicamente, quer seja de apoio ou contra ao processo em curso. Para
procedimentos de análise, nos respaldamos nos pressupostos teóricos da Analise do Discurso,
de origem francesa, a partir de Michel Pêcheux, bem como, em seus produtivos diálogos com
o filósofo Michel Foucault.

2 Conversando um pouco sobre a origem da Análise do Discurso e algumas de suas


categorias

Os estudos voltados para a Análise do Discurso ganharam maior notoriedade a partir


da década de 1960 na França, tendo como maior fundador teórico, o filósofo Michel Pêcheux.
Nesse percurso histórico, a Análise do Discurso surge como principal linha de pensamento de
estudo, como o próprio nome está intitulado, analisar o discurso. Orlandi (2013) ressalta que
esse discurso deve ser analisado em sua materialização histórica.
Ao longo da formação desse campo disciplinar, houve influências de diversos campos
de estudos e de autores consagrados, como a relação da materialidade linguística, pela
abordagem estruturalista de Saussure, o materialismo histórico, desenvolvidos pelos estudos
Marxistas, a ideia de sujeito discursivo a partir de releitura de Lacan sobre a psicologia do
ponto de vista de Freud. Essas releituras fomentaram questões fundamentais para se pensar
diversos fatores que contribuíram para as formulações dos pressupostos que iriam
fundamentar essa perspectiva teórica da AD, como a ideia de maquinaria discursiva,
formações discursivas, sujeito discursivo, dentre tantos outras.
A AD francesa surgiu destinada a analisar, inicialmente, o discurso político, como
aponta Mazola (2009), com a finalidade de investigar as entidades linguísticas que estavam
por trás desses discursos, enfatizando discursos políticos escritos. Fernandes (2007) aponta
sistematicamente as três fases da AD; A primeira AD1, trata-se da noção de maquinaria
discursiva estrutural, que é considerada fechada em si, pois o sujeito tem a ilusão de ser a
fonte, a origem dos seus dizeres, mas na verdade ele é apenas um reprodutor de discursos já
estabelecidos, com isso, é tratado como assujeitado, pois na voz desse sujeito quem fala é uma
instituição, na qual esse sujeito está inserido.
Na perspectiva da AD 2, o sujeito ainda se mantém assujeitado, mas é interpelado,
80

clivado pela noção de maquinaria discursiva. Nessa segunda fase, a AD, por intermédio de
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Pêcheux, recebe contribuições do pensamento filosófico de Michel Foucault com a noção de

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formação discursiva, isto é, as FDs passam a tomar um mecanismo de observação de análise,
como o mecanismo que serve como espaço que regula o que pode ser ou não dito em
determinado lugar e momento histórico de sua produção discursiva.
Na AD3, a noção de maquinaria discursiva é radicalmente desconstruída, nesse
momento, é abandonada a ideia de sujeito homogêneo, o sujeito é extremamente heterogêneo,
e são colocados em evidência a noção de interdiscurso, heterogeneidade, e também o
inconsciente. É justamente nessa fase que a filosofia foucaultiana ganha notoriedade no
campo da análise do discurso, enfatizando categorias como efeitos de sentidos, sujeito, e
principalmente, conforme abordagem arqueológica e genealógica em que o próprio frisa, a
ideia de relações de poder que o discurso capta nas relações sociais.

2.1.1 Memória Discursiva e Interdiscurso

A memória é fator primordial para análise da produção de sentidos. No discurso no


político, por exemplo, ela traz à tona elementos históricos a partir das fronteiras entre os
grupos, num sentido cultural, artístico, econômico cujas noções são caracterizadas como
lugares de memória e memória coletiva na vivência entre os sujeitos e grupos em sociedade.
A memória discursiva contribui para o funcionamento do discurso, uma vez que opera
para os efeitos de sentidos numa relação de encontro e desencontro com a história, motivado
por uma construção coletiva, exterior a própria linguagem, mas que ao mesmo tempo a
constitui. Mais precisamente de acordo com Fernandes (2007, p. 65):

Memoria discursiva: espaço de memória como condição do funcionamento


discursivo constitui um corpo-sócio-histórico-cultural. Os discursos
exprimem uma memória social coletiva na qual os sujeitos estão inscritos.
Trata-se de acontecimentos exteriores e anteriores ao texto, e de uma
interdiscursividade, refletindo materialidades que intervêm na sua
construção. (FERNANDES, 2007, p. 65)

Ao tratar de memória pela ótica da AD, o autor diz que não se faz alusão a uma
memória e um indivíduo único, que nos remete a uma memória individual passada, mas uma
memória coletiva, social, materializada nas relações históricas, culturais e sociais, ou seja, a
memória social é estabelecida pelos fatores exteriores da linguagem em que se insere na sua
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materialidade de enunciação nas interações socais com os sujeitos.


Página

Fernandes (ano) nos fala sobre o interdiscurso, dizendo se tratar da

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Presença de diferentes discursos, oriundos de diferentes momentos na
história e de diferentes lugares sociais, entrelaçados no interior de uma
formação discursiva. Diferentes discursos entrecruzados constitutivos de
uma formação discursiva dada; de um complexo dominante (FERNANDES,
2007, p. 65-66).

O interdiscurso, portanto, diz respeito a um conjunto de discursos outros que se


estabelecem no espaço do discurso proferido, como necessários para sua constituição como
prática de linguagem, ou seja, o interdiscurso é a presença de uma rede discursiva fazendo
entrecruzamentos com outros discursos já estabelecidos, pré-construídos, dos já ditos. Nessa
perspectiva, o interdiscurso vai se relacionar a outros enunciados em diferentes momentos, em
determinados espaços históricos e sociais, inseridos e regulados por uma formação discursiva
o que culmina um enunciado ser originado em um lugar e não em outro.
Memória discursiva e Interdiscurso são duas categorias estudadas no campo teórico da
AD francesa. Para melhor compreensão dessas categorias, apreciamos que: “para sustentação
dessa memória, conta-se com a manutenção de arquivos que passam por um processo político
de difusão ou de esquecimento” (SARGENTINI, 2011, p. 91). Daí, a relação inerente entre
intradiscurso e interdiscurso, os quais são formulados e reformulados de acordo com a
situação histórica a que se aplicam.

2.1.2 Relações de Poder para AD

As contribuições de Michel Foucault (2003) para análise do discurso ganham maior


notoriedade a partir dos seus pressupostos teóricos com base especificamente no método
arqueológico e genealógico. Do ponto de vista foucaultinano, a fase arqueológica é entendida
pelo fato de Foucault (2005) desconsiderar as verdades já impostas por aqueles “discursos”
tidos como verdadeiro, que são controlados, selecionados pelas instituições detentoras do
poder no que diz respeito às causas, origens etc para legitimar esse discurso, a verdade é
relativizada, haja vista que o que pode ser verdadeiro para um sujeito A não poderá ser
verdade para um sujeito B.
A fase da genealogia, do ponto de vista foucaultiano (2003), toma o discurso como
uma ferramenta de poder, e o poder é próprio discurso pelo que se luta, norteado como uma
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prática discursiva. A genealogia estabelece que a relação entre discurso e poder se dá por uma
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relação de interdependência, um ligado ao outro, pois, o discurso nesse sentido é um

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instrumento, um mecanismo de poder no qual o sujeito faz de seu enunciado um modo de
poder com uma determinada finalidade. Essa abordagem de análise arquegenealógica tem
justamente como finalidade estudar o discurso enquanto objeto pelas interpretações dos
saberes existentes nas práticas discursivas.
Como é enfatizado por Araújo (2004), o filósofo parte da pressuposição de que o
discurso deve ser analisado com base nas relações de poder que fizeram um enunciado
aparecer e não em uma determinada época, devido quais fatores legitimaram esse discurso
surgir nesse determinado espaço e não em outro, analisando por um embasamento
cronológico, mas pela arqueologia do seu significado, por uma determinada época. O poder,
para o filósofo, é tido como uma ferramenta de prática social constituído historicamente.
Nessa fase, é justamente o saber/poder quem determina o surgimento dos discursos ditos
como verdadeiros ou falsos num dado momento de sua produção.
O próprio discurso para Foucault é dotado de poder, quando falamos de poder sobre a
ótica foucaultiana, falamos de poder dentro das relações sociais, pois ele traz o poder como
uma prática discursiva que estuda/analisa os discursos nas relações sociais entre os sujeitos. O
próprio termo poder estabelece uma relação extremamente importante nos estudos
foucaultianos, pois para Foucault (2007) o poder não é apenas centrado como um mecanismo
de força de uma macroestrutura como a do Estado. O poder é visto como uma rede de práticas
discursivas que se divide em instituições detentoras de poderes no meio social, tais como: a
igreja, família, sistema repressivo, ou escola.
Para o teórico mesmo numa forma de dominação por uma macroestrutura de poder, os
dominantes, também são detentores de um poder específico em seu convívio em sociedade, o
poder é estabelecido em microrelações, tanto de uma forma maior como menor. Nessa ideia
que, o poder não é apenas de uma macroestrutura como o Estado, mas uma rede
microrelações de poderes estando em todas as partes na sociedade, funcionando como uma
rede de ligação Foucault frisa que: “Não é possível que o poder se exerça sem saber, não é
possível que o saber não engendre poder” (FOUCAULT, 2011, p. 142), tomando esse
pensamento, o poder só se executa através do sujeito que se utiliza de um determinado
discurso detido de um saber específico, científico, religioso ou outro, a fim de legitimar o
próprio discurso pela sua ideologia, persuasão, haja vista que poder e discurso estão numa
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relação de interdependência.
Foucault nos chama atenção colocando a linguagem como inteiramente permeada por
Página

relações de poder que se exercem numa relação de saber em práticas discursivas entre os

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sujeitos, num determinado espaço, em uma situação sócio-histórico de produção, carregando
efeitos de sentidos em determinadas conjunturas sociais, estabelecendo poder em todas as
esferas nas relações, seja de macro ou micro-relações.

3 análise e discussão dos dados

Iniciamos este tópico fazendo uma discussão mesclando com a teoria de análise sobre
os quatros discursos dos parlamentares sobre o processo de impeachment da ex-presidente
Dilma Rousseff, na Câmera Federal, com a finalidade de descrever e analisar esses discursos,
focalizando a memória discursiva, o interdiscurso e as relações de poder.
Abordaremos de início os discursos favoráveis, iniciando com o do parlamentar Jair
Messias Bolsonaro. O deputado Jair Bolsonaro, de acordo com sua biografia, é uma figura
discursiva bem consistente para o nosso aparato de análise, pois o parlamentar pertence a uma
formação discursiva de um sujeito que engloba tanto o pensamento conservador, como
nacionalista. Antes de ser parlamentar, o mesmo pertence ao campo do militarismo, sendo
capitão da reserva do Exército Brasileiro. Temos o seguinte discurso proferido pelo então
deputado:

Neste dia de glória para o povo brasileiro, um nome entrará para a história
nesta data pela forma como conduziu os trabalhos desta Casa: Parabéns,
Presidente Eduardo Cunha! Perderam em 1964. Perderam agora em 2016.
Pela família e pela inocência das crianças em sala de aula, que o PT nunca
teve... Contra o comunismo, pela nossa liberdade, contra o Foro de S.Paulo,
pela memória do Cel. Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma
Rousseff! Pelo Exército de Caxias, pelas nossas Forças Armadas, por um
Brasil acima de tudo, e por Deus acima de todos, o meu voto é sim! (JAIR
BOLSONARO, 2016).

No momento de seu voto para a cassação do mandato de Dilma, o ex-militar quando


faz a referência “Perderam em 1964. Perderam agora em 2016”, a partir dessa situação
discursiva, é reativada a memória discursiva, reportada ao período do Regime Militar
brasileiro, quando naquele momento histórico crítico, o congresso em 2 de Abril 1964 cassou
o presidente da época, o João Goulart, conhecido como “Jango”. Nesse momento, o deputado
eleito pelo Rio de Janeiro, estabelece uma aproximação entre os dois períodos com suas
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condições de produções políticas, haja vista que, de acordo com sua formação discursiva, esse
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cenário de condições facilitou esse enunciado dito no plenário da câmara, pois estava

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legitimado pelo lugar e a situação discursiva vigente, a fim de fazer essa comparação das
cassações presidenciais, em 1964 com Jango e em 2016 com Dilma Rousseff.
Podemos também observar a presença do interdiscurso no momento do voto do
deputado pelo partido do PSC, pois como o interdiscurso é a “presença de diferentes
discursos, oriundos de diferentes momentos na história e de diferentes lugares sociais,
inserida por um FD”. (FERNANDES, 2007, p 65-66), de acordo com o enunciado “Pela
família e pela inocência das crianças em sala de aula, que o PT nunca teve...” percebemos que
no momento desse discurso oralizado na Câmera culminou com a presença dos
entrecruzamentos construídos, do já dito. Nesse sentido sabemos que um PL (Projeto de Lei)
foi criado com a finalidade de incluir junto ao PNE (Plano Nacional de Educação), o projeto
que visava a escola estabelecer debates, sobre ideologia de gênero.
Percebemos o interdiscurso, justamente no enunciado “Pela família”, pois esse
discurso se refere ao pensamento da Família Tradicional, discurso este que é recuperado na
Constituição Federal, precisamente no Artigo 226 parágrafo terceiro: “Para efeito da proteção
do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar,
devendo a lei facilitar sua conversão em casamento” (BRASIL, 1988).
“Contra o comunismo, pela nossa liberdade, contra o Foro de S.Paulo, pela memória
do Cel. Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff”. Neste momento, a
Memória Discursiva opera no discurso do parlamentar devido dos sujeitos e os aspectos que
são referenciados. De acordo com Fernandes (2007), a memória é materializada pelas relações
sociais em determinados momentos históricos. Portanto, ao referenciar o comunismo em sua
fala e o Foro de São Paulo, a memória discursiva é mobilizada por uma temporalidade
histórica no momento histórico político social do Brasil no período de 1964.
O Foro de São Paulo é outro marco na memória da história política brasileira que
ganha maior notoriedade depois do modelo pós-regime militar, estabelecendo um novo
modelo democrático. Esse movimento foi desenvolvido na cidade de São Paulo com as
diversas forças políticas de linha de esquerda dos países latinos americanos, como a presença
ilustre de Fidel Castro, grande líder revolucionário de Cuba.
“Pela memória do Cel. Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff!
Pelo Exército de Caxias, pelas nossas Forças Armadas, por um Brasil acima de tudo, e por
85

Deus acima de todos, o meu voto é sim”. Já nesse enunciado do discurso do ex-militar,
observamos a persistência da memória discursiva. No momento em questão, quando o
Página

parlamentar cita figuras como o Cel. Carlos Alberto Brilhante Ustra e Dilma Rousseff, a

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memória discursiva nos faz reportar para o período do Regime Militar, pois esses sujeitos
citados foram figuras que tiveram um papel muito crítico naquela época. Por um lado da
mídia, o Cel. Carlos Alberto Brilhante Ustra é visto como um sujeito que teve um papel que
desempenhou práticas de torturas naquele contexto histórico do Brasil, precisamente com
Dilma Rousseff, por isso, o discurso do parlamentar ganhou uma repercussão polêmica
midiática ao citar esse Coronel.
Mas, por outra ótica, o Cel. Brilhante Ustra é tido como um combatente de grupos que
praticavam atos terroristas no período autoritário brasileiro, haja vista que em 1966 começou
a luta armada por grupos guerrilheiros como Ação Popular Marxista Leninista, que tinham
como objetivo sucumbir o então governo, e instalar um modelo político baseado em Cuba e
na União Soviética, grupos esses que eram treinados nesses países para formar guerrilheiros e
praticar atos contra o modelo vigente, como é bem constatada em sua obra A verdade
Sufocada, livro este que narra como foi conturbado o Regime Militar brasileiro pelo Cel.
Brilhante Ustra.
O segundo discurso favorável ao impeachment é do parlamentar Eduardo Bolsonaro,
filho do Jair Bolsonaro, os dois pertencentes ao mesmo partido, com a mesma finalidade de
ganhar adesão à causa, no caso, o desligamento da ex-presidente Dilma Rousseff. No rito do
processo de impeachment, o deputado profere, no plenário, o seguinte discurso:

Pelo povo de São Paulo nas ruas, com o espírito dos revolucionários de
1932; em respeito aos 59 milhões de votos contra o Estatuto do
Desarmamento, em 2005; pelos militares de 1964, hoje e sempre; pelas
polícias e, em nome de Deus e da família brasileira, é sim. E Lula e Dilma na
cadeia (EDUARDO BOLSONARO, 2016.).

Em seu discurso, o parlamentar, de início, reativa uma memória com base nas
movimentações de ruas nas quais o povo foi manifestar-se em prol do afastamento da então
presidente Dilma, levando em conta a grande repercussão da mídia para impactar de forma
consistente o governo petista. Essa memória ainda é mais marcante devido o deputado em sua
fala, dizer: “com os espíritos dos revolucionários de 1932”, haja vista que nesse período da
história política brasileira, o país enfrentava uma turbulência com o governo de Getúlio
Vargas quando esse movimento eclodiu em São Paulo, precisamente no dia 9 de julho de
86

1932.
Outro aspecto que nos remonta à memória discursiva é quando no momento que o
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parlamentar paulista frisa “Em respeito aos 59 milhões de votos contra o Estatuto do

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Desarmamento, em 2005”. Diante dessa materialidade, observamos um retorno ao antigo
governo que também era do PT, mas administrado pelo ex-presidente Lula. O parlamentar faz
questão de registrar esse acontecimento na política do PT anteriormente sobre o decreto 5123,
sancionado por Lula, na proibição do uso de armas de fogo em todo território nacional,
mesmo com a rejeição da maioria da população que queria permanecer com o porte de arma e
perante o enunciado “pelos militares de 1964”.
Diante desses dois discursos analisados anteriormente, outra questão que observamos
são as relações de poder que permearam essa prática discursiva do impeachment. Como Silva
(2004) aborda, a partir dos estudos foucaultianos que o discurso deve ser analisado com base
na relação de poder que culminaram para o aparecimento de um enunciado em uma
determinada época. Nesse caso dos dois parlamentares o que se convencionou para esses
enunciados aparecerem foram com base nas condições de produção e o espaço que o deram
legitimidade a proferirem seus discursos em pró do impeachment.
Para Foucault (2011) o poder é uma prática social permeada pela linguagem,
construída pela história entre os sujeitos, os parlamentares se preocuparam por meio do
discurso em estabelecer essa marca do poder em diferentes posições, como na citação do
campo teológico, na menção de Deus, utilizando como um paradigma de saber/poder que está
acima de qualquer coisa, para que por isso os discursos tomassem mais adesões retoricamente
para a finalidade que era a cassação de Dilma Rousseff.
Como o poder em Foucault (2011) é discutido e estabelecido em micropoderes, tanto
de uma forma maior como menor, de dominantes quanto de dominados, apesar de todos
serem pares e assumirem o papel de igualdade na câmera, o que permite um sobressair sobre o
outro nesse processo é justamente as condições e os efeitos de sentidos que são atribuídos por
uma lógica discursiva interativa entre os sujeitos proliferando seus argumentos sobre a pauta.
O discurso do parlamentar Glauber Braga ganhou repercussão na mídia por uma forma
polêmica, devido mencionar diversos sujeitos que tiveram um papel muito crítico na história
política brasileira por diferentes literaturas no que diz respeito aos sujeitos citados, o que
observamos mais a frente. De acordo com o discurso do parlamentar, temos:

Eduardo Cunha, você é um gângster. O que dá sustentação à sua cadeira


cheira enxofre. Eu voto por aqueles que nunca escolheram o lado fácil da
87

história. Eu voto por Marighella, eu voto por Plínio de Arruda Sampaio, eu


voto por Evandro Lins e Silva, eu voto por Arraes, eu voto por Luís Carlos
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Prestes. Eu voto por Olga Benário. Eu voto por Brizola e Darcy Ribeiro. Eu
voto por Zumbi dos Palmares. Eu voto não! (BRAGA, 2016).

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Quando o político frisou em seu discurso o sujeito Carlos Marighella, a memória
aciona um passado histórico na política brasileira de uma figura bem turbulenta nos regimes
autoritários que foram adotados no Brasil. Por uma visão do lado da história, o Carlos
Marighella foi um grande revolucionário que em sua trajetória política visava o bem coletivo
e social para o povo brasileiro por meio de um modelo político adotado em Cuba.
Por outro lado da história o então revolucionário era tido como um agitador de massas
que lutava por um regime totalitário em prol da ditadura do proletariado, pois Marighella
ficou conhecido também como um terrorista, de grande ameaça nacional devida o seu famoso
manual de guerrilha urbana. É importante ressaltar que Marighella ficou conhecido como
grande ameaça nacional no período de 1964, pois ele também teve uma passagem turbulenta
na política brasileira no então Estado Novo de Getúlio Vargas, em que também foi preso na
época por ser contrário a política adotada por Vargas.
Luís Carlos Prestes e Olga Benário também são sujeitos ao serem citados que ganham
maior destaque, pois nos remetem para uma memória histórica e política crucial. Carlos
Prestes desempenhou em primeiro âmbito carreia de militar, depois ingressando no campo
político, filiado a linha de pensamento comunista, ganhou os holofotes pelo papel de
revolucionário, exercendo uma reforma política, social e econômica, liderou seu principal
movimento conhecido como Coluna Prestes, onde marchas foram realizadas no Brasil,
percorrendo grandes territórios em busca de ganhar integração de povos para adesão da causa
em que lutava. Até que em 1927 a marcha tem o seu fim, quando foram exilados para
Argentina e na Bolívia.
O período colonial brasileiro é retomado a partir do momento que o parlamentar
Glauber torna registrado um dos ícones essenciais da história afro-brasileiro na conclusão do
seu voto. Zumbi dos Palmares é conhecido como um dos grandes líderes de etnia africana no
Brasil que desempenhou lutas travadas para combater a escravatura étnica que se permeou
pela Coroa portuguesa no Brasil Colônia, o que no decorrer da história configurou-se como
um herói nacional.
O discurso da deputada Maria do Rosário foi um dos demais votos que repercutiu na
mídia pela postura que marcou sua enunciação na Câmera Federal. O discurso (voto) da
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parlamentar se processou da seguinte maneira:


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Pela democracia, pela soberania do voto popular, pela dignidade humana,
por todos os que lutaram contra a ditadura militar, pelo Deputado Rubens
Paiva, cassado e morto pela ditadura, pelas novas gerações, eu voto não a
este golpe, e sim ao Brasil (MARIA DO ROSÁRIO, 2016).

Diante da materialidade discursiva “Pela democracia, pela soberania do voto popular”,


notamos a marca do interdiscurso que está direcionada para um discurso populista, em que o
povo é colocado em primeiro plano, enfatizando a democracia brasileira numa forma de
respeito para o povo que elegeu Dilma Rousseff para o cargo.
Outra referência marcante que observamos em torno do interdiscurso é a memória
discursiva quando a deputada nos remonta ao período de 1964. Precisamente no enunciado
“pela dignidade humana, por todos os que lutaram contra a ditadura militar, pelo Deputado
Rubens Paiva, cassado e morto pela ditadura, pelas novas gerações”, notamos que os efeitos
de sentidos que são inseridos nesse momento do discurso estão relacionados às marcas
negativas do período de 1964, haja vista que, dos grupos que foram combater o governo e
instalar um modelo democrático, vários foram capturados e mantidos presos, exilados, e pelo
principal lado sombrio da época, as técnicas de torturas que foram desenvolvidas. Essa
memória é ainda mais atualizada quando a parlamentar registra que o deputado Rubens Paiva,
assim como outros também tiveram exílio, retornando ainda no governo do militarismo, por
terem sido contra os termos do então governo, com isso sua prisão foi decretada, depois tido
como desaparecido pelo governo, o que se configurou tempos depois, pela Comissão da
Verdade, como um crime político, assassinado e torturado pelo governo militar.
Percebemos nesses discursos contrários ao processo de impeachment as relações de
poder inseridas neles assim como nos pró-impeachment, pois na genealogia, na ótica
foucaultiana, o discurso político, é tido como uma ferramenta de poder, um mecanismo em
que o sujeito faz de seu discurso um modo de poder com uma determinada finalidade, que é
interromper, neste acaso em específico, o impeachment de Dilma Rousseff. O deputado
Glauber, ao se utilizar do termo gângster se referindo ao Eduardo Cunha, presidente da Casa
naquela condição de produção, já estabelece uma forma de saber/poder que evidencia que o
presidente estaria comprometido com uma conspiração política para acatar um processo que
não tinha legitimidade política para entrar em trâmite no parlamento.
O poder incluso no voto do parlamentar estabelece uma relação por uma prática
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linguística de saber/poder relacionado aos diferentes sujeitos, Brizola, Zumbi, Carlos Prestes e
Página

os demais que desempenharam um papel complexo na história política brasileira. Nesse

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sentido, o deputado ao utilizar dessas figuras procura situar, de modo consistente, os sujeitos
naquela parte que contribuíram para a formação política brasileira legitimar o seu
posicionamento contrário ao processo de impeachment.
A ideia de relações de força, também se materializa no que diz respeito ao discurso
proferido pela deputada Maria do Rosário. No momento em que a parlamentar se utiliza dos
termos “Pela democracia, pela soberania do voto popular”, o efeito de sentido de poder
presente nessa expressão material da língua, tem com base, a soberania do povo brasileiro,
pois diante da constituição brasileira no novo modelo democrático, todo poder emana do
povo, assim como é previsto como lei maior do país, o que é notório no artigo primeiro da
Constituição brasileira, Parágrafo único: “Todo poder emana do povo, que o exerce por meio
de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. A deputada coloca
como poder maior nesse fragmento de seu discurso o povo brasileiro que elegeu Dilma
Rousseff por meio do voto.

4 considerações finais

Apesar dos discursos escolhidos apresentarem duas perspectivas, uma de apoio ao


impeachment e outro contrário, observamos a importância desse trabalho que, apesar das
divergências, eles pertencem ao mesmo campo, que é o campo político, e apesar deles serem
de perspectivas diferentes, entre conservador x progressistas, observamos que além do
discurso político serem um ponto comum entre eles, nota-se também que todos ativa a
memória discursiva, precisamente ao período de 64, com efeitos de sentidos diversificados.
Em toda essa prática discursiva, percebemos, por meio dos discursos dos sujeitos
parlamentares analisados, a retomada de marcos históricos políticos brasileiros como
estratégias de ativação recorrente ao interdiscurso e a memória discursiva, que nos remonta
desde o Brasil Colônia, navegando entre os períodos de Getúlio Vargas, Estado Novo, o
Regime Militar até a Nova República, consolidado por meio do sistema democrático, levando
em conta suas perspectivas políticas baseadas nas relações de saber/poder para ganharam
adesão discursivamente a causa estabelecida.
Deste modo, nos discursos parlamentar analisados, Jair Bolsonaro, Eduardo Bolsonaro
90

do Glauber Braga e da Maria do Rosário, percebemos a presença constante do interdiscurso,


da memoria discursiva e das relações de poder, mobilizando efeitos de sentido para cada
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posicionamento conforme posições assumidas no cenário politico, situando os parlamentares,

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legitimando-os em suas condições de promover suas concepções políticas durante o rito do
impeachment, sejam por ideias mais progressistas ou conservadoras.

Referências

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ISBN: 978-85-7621-221-8
GT1- PRÁTICAS DISCURSIVAS E MODOS DE SUBJETIVAÇÃO

AS REPRESENTAÇÕES DISCURSIVAS DO TEMA “MULHER” NO DISCURSO DO


PRESIDENTE MICHEL TEMER

José Max Santana (UERN)


Maria Eliete de Queiroz (UERN)

Introdução

O presente trabalho situa-se no campo dos estudos da Análise Textual dos Discursos
(ATD), de Jean-Michel Adam. Adam (2011) apresenta uma articulação da Linguística Textual
(LT) com a Análise do Discurso (AD). Propondo ao mesmo tempo uma separação e uma
complementariedade entre as duas áreas, considerando o texto em um contexto linguístico e
discursivo.
Os estudos de Adam busca analisar os sentidos que compõem o texto, este sendo
constituído a partir da interação entre os sujeitos. É por meio das estruturas linguísticas que o
produtor apresenta seus pontos de vista, dando significado a si, ao outro e ao tema tratado. É
possível, assim, percebermos a partir dos elementos linguísticos e discursivos uma construção
de representação discursiva (Rd) do locutor, do interlocutor e do tema.
Nossa proposta é analisar a construção de representações discursivas do tema
“Mulher” no discurso do Presidente Michel Temer em cerimônia alusiva ao Dia Internacional
da Mulher. Buscaremos identificar como é construída a Rd do tema mulher a partir das
categorias da referência, da predicação e da aspectualização.
Adotamos na pesquisa como método de análise, um caráter descritivo e interpretativo
em que buscaremos descrever e interpretar a Rd e como ela se constitui linguístico e
discursivamente no texto/discurso. O corpus foi coletado diretamente no site oficial do
Palácio do Planalto e encontra-se acessível a todos. Metodologicamente começaremos o nosso
trabalho situando a base teórica e em seguida faremos a análise do corpus.

2 Análise Textual dos Discursos


92

Conceituamos a Análise Textual dos Discursos (ATD) como uma perspectiva teórica
Página

proposta pelo Linguista Francês Jean-Michel Adam, em que se busca estudar e analisar a

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produção contextual de sentidos dos textos, articulando a Linguística Textual e a Análise do
Discurso. Para Adam (2011, p. 23) “trata-se de uma teoria da produção co(n)textual de
sentido, que deve fundar-se na análise de textos concretos”. Essa proposta teórica busca
estudar os sentidos e suas representações discursivas no texto, este sendo produzido com
determinadas finalidades, seja informar, esclarecer ou persuadir o outro, a respeito de assunto
ou tema tratado.
A ATD busca, assim, estudar e analisar os textos, levando em consideração o seu
contexto de produção e pensando o texto como uma prática discursiva. Nesse sentido, Adam
(2011, p. 43) “define a linguística textual como um subdomínio do campo mais vasto da
análise das práticas discursivas”. O texto é visto como um meio de comunicação entre dois ou
mais sujeitos em constante processo de interação em diferentes contextos sociais.
Adam apresenta, então, o esquema para demostrar a relação da Linguística Textual
(LT) nesse subdomínio do campo discursivo.

Figura 1 – Esquema 3: determinações textuais “ascendentes” e regulares “descendentes”


Fonte: Adam (2011, p. 43)

O esquema elaborado por Adam mostra a relação entre a Linguística Textual e a


Análise do Discurso (AD). Essa relação da LT com a AD se dá por meio da interação dos
sujeitos na constituição de textos, por meio dos elementos linguísticos, nesse processo de
constituição são levados em consideração às formações discursivas dos locutores,
influenciando, assim, na seleção e construção linguística.
93

As determinações “ascendentes” são os elementos textuais pertencentes à categoria da


Página

língua, desde as unidades menores (palavras), até o plano textual. Para Adam, os elementos

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textuais regem os encadeamentos de proposição no sistema que constitui a unidade texto. As
regulações “descendentes” referem-se às situações de interação nos lugares sociais, nas
línguas e nos gêneros. Queiroz (2013, p. 24) diz que Adam “distribui os elementos
linguístico-discursivos na figura 1 para permitir a compreensão de que elementos textuais à
direita estão como um subdomínio da Análise do Discurso”. Percebemos, assim, a ligação
entre a LT e a AD, concebendo o texto, como sendo um produto fruto de uma interação
sociodiscursiva em circulação na sociedade.
O texto é visto como uma ação de linguagem, um instrumento de realizações
comunicativas e discursivas. Adam (2011, p. 63) diz, “toda a ação de linguagem inscreve-se,
como se vê, em um dado setor do espaço social, que deve ser pensado como uma formação
sociodiscursiva, ou seja, como lugar social associado a uma língua (socioleto) e a gêneros de
discurso”. Ainda de acordo com Queiroz (2013, p. 24) “a união dos dois lados (direito e
esquerdo) dá origem a Análise Textual dos Discursos, a qual passa a entender os elementos
linguísticos do texto integrados aos fenômenos do campo discursivo”. O texto é
compreendido a partir do contexto em que foi produzido, bem como das formações
sociodiscursivas dos sujeitos que os produz.
A ATD surge como perspectiva teórica para melhor discutir e analisar o texto, levando
em consideração, o viés discursivo. Nas palavras de Lourenço (2015, p. 27) a proposta de
Adam “é relevante porque funda o entendimento do texto enquanto circunscrito em um
discurso – caracterizado por uma formação sociodiscursiva, pela interação autor/leitor [...]”. O
texto sendo fruto de uma interação entre os sujeitos produz enunciados de acordo com as
finalidades pretendidas pelos enunciadores na relação com os seus interlocutores.
Dessa forma, as situações sociocomunicativas, sejam orais ou escritas, são
manifestadas por meio de texto. Por meio dele, construímos representações discursivas que
são as imagens que construímos do locutor/produtor, uma imagem do interlocutor/alocutário e
imagem de temas ou assuntos tratados. A estas imagens construídas, de acordo com os
estudos da ATD, são denominadas de Representação discursiva (Rd).

Representação discursiva (Rd)


94

A representação discursiva se constitui como categoria semântica do texto, fazendo


parte do campo textual descrito por Adam. O texto é visto como uma concretização de ideias
Página

e pensamentos sobre determinados assuntos. Todo texto, no entanto, traz em seus elementos

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linguísticos marcas que revelam uma representação do seu enunciador, do seu interlocutor e
do assunto ou tema tratado. Rodrigues, Passeggi e Silva Neto (2010, p. 173) dizem “todo
texto constrói, com maior ou menor explicitação, uma representação discursiva do seu
enunciador, do seu ouvinte e dos temas ou assuntos que são tratados”. O texto ao ser
construído sofre influências do meio social, revelando assim, peculiaridades sociodiscursivas
particulares.
A construção da representação discursiva se concretiza por maio de elementos
linguísticos presentes no texto, ou seja, essa representação é construída a partir do sentido das
palavras. Esse sentido é compreendido pelo interpretante, de modo que este interprete consiga
perceber as imagens presentes. Nesse sentido, Adam (2011, p. 114) aponta que:

É o interpretante que constrói a representação discursiva dos enunciados


(esquematização), em função de suas próprias finalidades (objetivos,
intenções) e de suas representações psicossociais da situação, do enunciador
e do mundo do texto, assim como seus pressupostos culturais.

A constituição do texto se dá pela união dos enunciados, constituídos de acordo com


as intenções e finalidades do seu enunciador. Esses enunciados trazem sentidos que revelam
de alguma maneira, representações discursivas. O interpretante desses enunciados é levado a
construir essas representações, podendo se ter uma ou mais de uma, a depender dos elementos
linguísticos presentes nos enunciados.
A representação discursiva se consolida em atos de interação orais e/ou escritos, em
que os sujeitos expressam seus pontos de vista. Esse ponto de vista é compreendido, então,
como a manifestação sociodiscursiva do enunciador, perante seus interlocutores. Neste
sentido, Adam (2011, p.113) afirma que “toda Representação discursiva (Rd) é expressão de
um ponto de vista (PdV)”.
Para o processo de construção da representação discursiva recorremos às categorias
semânticas propostas por Rodrigues, Passeggi e Silva Neto (2010, p. 176). Essas categorias
são apresentadas com base nas operações que a ATD define para o período/sequência
descritivo e com base nas operações lógico-discursivas propostas por Grize (1990). As
categorias são as seguintes: referência, predicação, aspectualização, relação e localização.
Neste trabalho abordamos as categorias da referência, predicação e aspectualização. A
95

categoria da referência nomeia os sujeitos e objetos tematizados no texto. A categoria da


Página

predicação descreve os processos e as ações verbais. Já a categoria da aspectualização

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qualifica e caracteriza os referentes e as predicações. Em seguida, faremos a análise do corpus
com base nessas categorias.

3 Análises dos dados

O presente trabalho busca analisar as representações discursivas do tema “Mulher” no


discurso do Presidente Michel Temer em Cerimônia do Dia Internacional da Mulher. A
cerimônia aconteceu no Palácio do Planalto no dia 08 de março de 2017. O evento foi
marcado com a presença de diversas autoridades políticas, artística, entre outras.
O Presidente Michel Temer fez uso da palavra para proferir o seu discurso em
homenagem à mulher pelo seu dia 08 de março. O discurso, no entanto, é recebido nos meios
de comunicação, principalmente nas redes sociais, com muitas críticas pela maioria do
público feminino. O Presidente em seu discurso ora fez referência à mulher como
independente, lutadora, conquistadora. Ora fez referência à mulher como cuidadora do lar,
educadora dos filhos, doméstica.

3.1 Mulher: cuidadora do lar, dos filhos e dos afazeres doméstico

O Presidente iniciou seu discurso saudando a todos os presentes na solenidade e


destacando a importância de se comemorar o dia da mulher. Após a parte introdutória, o
Presidente começou a voltar sua fala especificamente às mulheres, destacando suas conquistas
e sua independência.
No entanto, em seu discurso o Presidente coloca a mulher na condição de dona do lar,
como sendo a responsável pelo cuidado com a casa e filhos, reduzindo, assim o papel da
mulher na sociedade. Podemos perceber esse posicionamento no trecho a seguir:

L. 20-27: “Eu digo isso com a maior tranquilidade, porque eu tenho absoluta convicção, até
por formação familiar e por estar ao lado de Marcela, o quanto a mulher faz pela casa, o
quanto faz pelo lar, o que faz pelos filhos. E, portanto, se a sociedade de alguma maneira
vai bem, quando os filhos crescem, é porque tiveram uma adequada educação e formação
em suas casas. E seguramente isso quem faz não é o homem, isso quem faz é mulher”.
96

Neste trecho, percebemos o referente “a mulher” utilizado para dar ênfase e


Página

determinar por meio do artigo “a” que, de fato e de direito, é a mulher representada como a

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dona do lar, a que possui a função de cuidar desse lar e zelar pelos filhos. Retemos então ao
contexto histórico da sociedade patriarcal, em que a mulheres eram tidas e submissas à
autoridade masculina, sendo que elas deveriam cuidar apenas dos afazeres domésticos, não
podiam ter uma profissão nem trabalhar.
Nos dias atuais ainda persiste em muitos lugares essa submissão da mulher. Muitas
encontram resistência e preconceito na sociedade, principalmente quando o assunto é
trabalho. Há quem defenda a ideia que lugar de mulher é na cozinha e não a frente de
empresas ou na gerência de assuntos importantes, antes controlados somente por homens.
Destacamos também outra tarefa executada cotidianamente em sua maioria pelas
mulheres, que é o cuidado com a educação dos filhos. O Presidente em seu discurso fez
questão de deixar claro que não é o homem o responsável pela educação dos filhos, mas sim
as mulheres. Podemos perceber uma visão minimalista e até patriarcal do Presidente, em que
as mulheres devem ser as únicas responsáveis pela educação dos filhos, quando na verdade
essa responsabilidade deve ser compartilhada com seus esposos.
No trecho, por maio da predicação, o Presidente utilizou por quatro vezes o verbo faz
no presente do indicativo, marcando a ação praticada, enfatizando e reforçando o papel da
mulher no cuidado do lar e dos filhos. A utilização do verbo descreve as ações realizadas
cotidianamente pelo referente. Ações essas, que limita a mulher ao contexto apenas familiar.
Em outro trecho do discurso, o Presidente reduz o papel da mulher ao espaço
doméstico, destacando a sua contribuição no orçamento da família, sendo que ela além da
função de cuidar do lar e dos filhos, também tem, a função de ir ao supermercado fazer as
compras de casa. Vejamos no seguinte trecho:

L. 105-110: “[...] na economia também, a mulher tem uma grande participação. Ninguém
mais é capaz de indicar os desajustes, por exemplo, de preço de supermercados do que a
mulher. Ninguém é capaz de melhor detectar as eventuais flutuações econômicas do que a
mulher, pelo orçamento doméstico maior ou menor”.

No trecho em destaque, novamente o referente “a mulher” é visto pelo Presidente


como importante, dessa vez, ele destacou a contribuição da mulher na economia. Em seu
discurso percebemos mais uma vez a visão minimalista, e a maneira como ele reduz a mulher
ao espaço doméstico. A mulher é vista como observadora das flutuações e variações
97

econômicas pelo fato de está sempre indo ao supermercado fazer compras.


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Por meio da aspectualização, o Presidente utilizou o adjetivo capaz para qualificar o
referente ninguém. O adjetivo capaz denota capacidade, competência e preparação para
realizar determinadas funções. O Presidente deixou claro que ninguém é capaz o quanto a
mulher para melhor identificar os desajustes nos preços e elevações da economia. Podemos
aferir que essa delimitação da mulher na participação na economia, vai de contra ponto a
necessidade de a sociedade ampliar o espaço feminino na participação de assuntos
importantes, entre eles, os econômicos.
Desse modo, podemos perceber a partir das categorias da referência, da predicação e
da aspectualização, a construção da Rd da mulher como cuidadora do lar, dos filhos e dos
afazeres domésticos. Essa Rd é constituída a partir dos pontos de vistas apresentados pelo
Presidente Michel Temer em seu discurso. É perceptível e necessário recorrer ao contexto
político adotado pelo Presidente na formação de seu governo.
No processo de formação de seu governo o Presidente foi criticado por fazer a
nomeação de poucas mulheres para comporem pastas importantes. Essa limitação de
participação das mulheres na administração proporciona uma exclusão da mulher nas decisões
políticas sociais e econômicas do país. Favorecendo assim, preconceitos e estereótipos de que
a mulher só tem capacidade para gerir negócios domésticos.

3.2 Mulher: lutadora e conquistadora de espaços na sociedade

O discurso do Presidente apresenta uma contradição, ora percebemos a mulher sendo


reduzida a apenas ao contexto do lar, ora ela aparece como conquistadora de espaço na
sociedade. No discurso do Presidente, destacamos conquistas alcançadas pelas mulheres e que
são consideradas marcas importantes no percurso histórico. As mulheres vêm travando
grandes lutas e enfrentando preconceitos para mostrar suas capacidades e deixar claro que elas
têm potencial para ocupar cargos antes ocupados somente por homens. Vejamos o trecho a
seguir:

L. 14-19: “[...] dizer da importância da mulher e da luta permanente que a mulher vem
fazendo ao longo do tempo no Brasil e no mundo. Que aqui e fora do Brasil, em outras
partes do mundo, a mulher ainda é tratada como se fosse uma figura de segundo grau,
98

quando na verdade, ela deve ocupar o primeiro grau em todas as sociedades”.


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No trecho em destaque percebemos que o Presidente fez referência à mulher dando
ênfase as lutas travadas por elas ao longo do tempo. O referente “mulher” é visto como
lutadora que enfrenta desafios para conquistar seu espaço na sociedade, muitas vezes elas são
tidas como figura de segundo plano. Como se o espaço da mulher na sociedade fosse
reduzido, apagado.
O referente “mulher” é retomado no trecho pelo pronome ela, enfatizando a
importância da mulher ocupar seu espaço na sociedade, tendo garantia de que ela pode ser
protagonista, estando à frente de empresas, negócios, administração pública, entre outras
funções.
A utilização da categoria da predicação é identificada quando o Presidente utilizou a
locução verbal deve ocupar para enfatizar que as mulheres podem ocupar o espaço na
sociedade. O termo deve na situação exposta, assume a posição de verbo auxiliar do verbo
principal, ocupar. O verbo deve, tem um valor significativo no discurso, uma vez que nos
remete a uma obrigação da mulher de ocupar esse primeiro grau na sociedade.
O verbo principal ocupar descreve, assim, uma ação, uma atitude a ser tomada pelas
mulheres. Ocupar significa assumir um espaço, uma posição diante dos assuntos e decisões. O
presidente faz uso da locução verbal para chamar a atenção da mulher, para que ela continue
lutando para alcançar e conquista seu espaço na sociedade, bem como solucionar problemas
de violência sofridos cotidianamente por elas.
O Presidente abordou em seu discurso, medidas de combate à violência sofrida por
mulheres, como a criação do Plano Nacional de Segurança Pública que traz ações efetivas de
combate a este tipo de violência. O plano é bem aceito e representa uma esperança
principalmente a mulheres que sofrem ou já sofreram algum tipo de violência.
O Presidente dar ênfase a ações adotadas pelo seu governo para enfrentar e resolver o
problema da violência contra as mulheres. A ênfase dada às ações aparece de forma pensada
para mostrar a preocupação do governo e do Presidente em especial em prestar amparo e
defesa das mulheres brasileira.
Vejamos um trecho em que o Presidente fala sobre a mulher no mercado de trabalho,
sobre suas oportunidades hoje na empregabilidade.
99

L. 125-137: “E hoje, graças a Deus, as mulheres, sem embargo das dificuldades, têm uma
possibilidade de empregabilidade que não tinham no passado. Então, a queda da inflação
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que nós estamos assistindo, a queda dos juros, o superávit recorde da nossa balança
comercial, o crescimento do investimento externo, tudo isso significa empregos. E significa
também que a mulher, além de cuidar dos afazeres domésticos, vai vendo um campo cada
vez mais largo para o emprego. Porque hoje homens e mulheres são igualmente
empregados. Com algumas restrições ainda. Mas a gente vê em muitas reportagens, das
mais variadas, como a mulher hoje ocupa um espaço executivo de grande relevância”.

O Presidente em seu discurso destacou a ascensão do referente “mulher” no mercado


de trabalho, mesmo diante das dificuldades enfrentadas, elas vêm conseguindo superar e
conquistando espaços antes ocupados em sua maioria por homens. O uso do verbo ter no
presente do indicativo (têm) reforça essa ideia, mostrando que no contexto atual, a mulheres
estão mais presentes no mercado de trabalho.
A mulher além do cuidado com o lar e dos filhos, se ver na oportunidade de exercer
uma profissão e mostrar suas habilidades e capacidades, podendo ser independentes. Então,
elas hoje, se veem diante de um campo de possibilidade. O Presidente faz uso do termo largo
para caracterizar esse campo, denotando ser um campo vasto e com muitas possibilidades a
ser seguidas por todas as mulheres.

Conclusão

O nosso trabalho teve como objetivo analisar as representações discursivas do tema


“mulher” no discurso do presidente Michel Temer. Em seu discurso em homenagem ao Dia
Internacional da Mulher, O presidente fez uso da palavra para prestar homenagem a todas as
mulheres, no entanto, seu discurso é alvo de muitas críticas.
Essas críticas são feitas por mulheres que veem o discurso como sendo machista e
retrógado diante o que se espera da sociedade, bem como do poder público, no tocante a
valorização da mulher e sua ascensão na vida profissional e pessoal. No discurso do
Presidente percebemos nitidamente duas maneiras diferentes dele se reportar as mulheres,
fazendo assim, uma espécie de paralelismo.
O Presidente em seu discurso trata do referente “mulher” por meio das categorias
100

semânticas da predicação e aspectualização, sendo possível, assim, construirmos a partir dos


Página

elementos linguísticos discursivos uma Rd da mulher como cuidadora do lar, dos filhos e dos

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afazeres domésticos. E em contraponto percebemos outra Rd da mulher como lutadora e
conquistadora de espaços na sociedade.
Essas Rds vão sendo construídas ao longo do texto podendo ser percebidas no
emprego das palavras, a partir delas percebemos o objetos sendo tematizados nos textos, bem
como os termos que os qualifica e os termos que descreve as ações. Percebemos assim, no
discurso do Presidente o uso das categorias semânticas acionadas na construção da Rd do
tema “mulher”.
É dentro dos estudos da análise textual dos Discursos que propusemos analisar a
representação discursiva. A representação estando para o nível semântico do texto, revela
imagens do enunciador, do interlocutor e do assunto tratado. Essas imagens devem ser
detectadas e interpretadas pelos interlocutores.

Referências:

ADAM, Jean-Michel. A Linguística Textual: introdução à análise textual dos discursos.


Trad. RODRIGUES, Maria das Graças Soares; SILVA NETO, João Gomes; PASSEGGI,
Luis; LEURQUIN. Eulália Vera Lúcia Fraga. São Paulo: Cortez, 2011.

LOURENÇO, Maria das Vitórias N. Silva. Análise textual dos discursos: responsabilidade
enunciativa no texto jurídico. Curitiba, PR: CRV, 2015.

PASSEGGI, Luis et al. A análise textual dos discursos: para uma teoria da produção
co(n)textual de sentido. In: LEITE, Marli Quadros; BENTES, Anna Christina (Org.).
Linguística de texto e análise de conversação: panorama das pesquisas no Brasil. São
Paulo: Cortez, 2010.

QUEIROZ, Maria Eliete de. As representações discursivas do locutor e dos alocutários no


discurso político de renúncia (Antonio Carlos Magalhães). 2013. 187 f. Tese (Doutorado
em Letras) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2013.

TEMER, Michel. Discurso do Presidente da República, Michel Temer, durante Cerimônia de


Comemoração pelo Dia Internacional da Mulher. Brasília/DF. Disponível em:
<http://www2.planalto.gov.br/acompanhe-planalto/discursos/discursos-do-presidente-da-
republica/discurso-do-presidente-da-republica-michel-temer-durante-cerimonia-de-comemoracao-pelo-
dia-internacional-da-mulher-brasilia-df>. Acesso em: 07 set. 2017.
101
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GT1- PRÁTICAS DISCURSIVAS E MODOS DE SUBJETIVAÇÃO

“MEXEU COM UMA, MEXEU COM TODAS”: POR UMA CARTOGRAFIA DOS
DISCURSOS FEMINISTAS NA WEB

Lívia Alves Monteiro Carlos5


Universidade do Estado do Rio Grande do Norte
Luan Alves Monteiro Carlos6
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte
Francisco Vieira da Silva7
Universidade Federal Rural do Semi-Árido
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte

Introdução

O feminismo é um movimento coletivo de lutas surgido no século XIX. As lutas


realizadas pelos grupos feministas nasceram através do reconhecimento por parte das
mulheres acerca da opressão social, a qual privilegiava o homem em relação à mulher,
tornando-as apenas uma subordinada no jogo social. Nessas condições, foi negado à mulher,
por muito tempo, o direito de estudar, exercer cargos públicos, participar da política entre
outros direitos, o que transformava as ações desempenhadas pelas mulheres na sociedade em
se constituírem como donas de casa, mães e esposas. No entanto, as reivindicações de direitos
para as mulheres, feitas por grupos feministas nascem como afirma Soares (2004, p. 170) “da
distância entre a afirmação dos princípios universais da igualdade e a realidade da divisão
desigual dos poderes entre homens e mulheres.”. Ainda de acordo com Soares (2004, p. 162),
o feminismo alude que as mulheres busquem a transformação do mundo e de si mesmas “em
ações coletivas, individuais e existenciais, na arte, na teoria, na política. [...] Reconhece uma
multiplicidade de sujeitos que, desde sua opressão específica, questionam e atuam para
transformar esta situação”.
Em março de 2017, o blog #AgoraÉQueSãoElas, da folha de S. Paulo, traz como
matéria um relato de uma mulher, que exercia profissão de figurinista na rede Globo de
televisão. Na ocasião, a profissional confessava um caso de abuso sexual sofrido dentro da

5
Mestranda em Letras pelo Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGL) da Universidade do Estado do Rio
Grande do Norte – UERN. E-mail: lyviamonteiro_21@hotmail.com.
102

6
Mestrando em Letras pelo Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGL) da Universidade do Estado do Rio
Grande do Norte – UERN: E-mail: luan_alvesmonteiro@hotmail.com.
7
Doutor em Linguística pela Universidade Federal da Paraíba – UFPB. Professor Adjunto da Universidade Rural
Página

do Semi-Árido – UFERSA e do Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGL) da Universidade do Estado do


Rio Grande do Norte (UERN): E-mail: francisco.vieiras@ufersa.edu.br.

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emissora, ao relatar que, enquanto trabalhava com a responsabilidade de cuidar dos figurinos
do ator José Mayer, o qual na época protagonizava um vilão na novela das nove, A lei do
amor, além de receber cantadas abusivas e de cunho sexual, teve suas partes íntimas tocadas
pelo ator. Ao ser publicado no blog, o relato provocou certo alarde na vida do famoso ator,
tendo em vista que as principais mídias digitais passaram a discursivizar sobre o assunto,
pondo em perigo a imagem de bom ator construída por muitos anos na emissora. Nesse caso,
o ator chegou a sugerir que a figurinista estava confundindo seu posicionamento com o do
personagem misógino, Tião Bezerra, ao negar a confissão feita pela figurinista.
O depoimento, ao ganhar grande repercussão nas mídias digitais, reverberou de
modo que vemos emergir a campanha Mexeu com uma, mexeu com todas. O enunciado
brotou no espaço virtual com imagens nas quais os sujeitos celebridades apareciam vestindo
uma camiseta, com o enunciado anteriormente citado, nelas estampadas, com o intuito de
protestar e mostrar apoio a figurinista assediada, bem como as mulheres que sofrem qualquer
tipo de violência, o que leva-nos a compreender que as mulheres estão unidas para
conscientizar que o machismo não pode ter vez na sociedade. Os enunciados produzidos
através do caso invadiram a Web e, consequentemente, movimentaram as redes sociais,
levantando um acirrado debate sobre a violência contra a mulher. Esses acontecimentos
tornam esses discursos próximos de movimentos feministas que têm surgido nos últimos
anos, visto que em seus efeitos de sentidos convida mulheres a protestar, incentivando vítimas
de violência a não se calarem e não sentirem medo de denunciar toda forma de abuso sofrido,
fazendo assim o convite para a não aceitação da opressão feminina diante desses casos.
O objetivo deste texto é analisar discursos que versam sobre a violência contra a
mulher que emergem na web, tendo como foco principal o acontecimento discursivo Mexeu
com uma, mexeu com todas, cujo enunciado desencadeia diversas produções de sentido na
sociedade contemporânea. Para tanto, as materialidades selecionadas para nossa análise fazem
parte de uma sucessão de arquivos que foram construídos através de um relato de denúncia de
assédio sexual, o qual fez emergir enunciados possíveis de análise sobre o machismo na
sociedade, bem como, a produção discursivo-midiática que versa sobre o feminismo em que
posicionamentos discursivos são defendidos pelo sujeito celebridade.
Assim, este artigo busca descrever/interpretar as seguintes materialidades, a saber:
103

(i) recortes do relato publicado no blog #AgoraÉQueSãoElas por Su Tonani, com o título:
José Mayer me assediou; (ii) recortes da carta escrita pelo ator José Mayer e enviada ao Jornal
Página

Extra; (iii) imagens da campanha protagonizada por atrizes globais dentro da emissora de TV

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Globo que circularam na web. Sendo assim, analisaremos os efeitos de sentido presentes na
campanha midiática Mexeu com uma, mexeu com todas, a qual utiliza do poder de afetação do
sujeito celebridade para discursivizar dizeres relativos ao feminismo.
Este texto encontra-se estruturado da seguinte maneira: Na seção seguinte
discutiremos sobre alguns conceitos foucaultianos, mobilizando noções sobre discurso,
enunciado, interdição e confissão. Posteriormente, lançaremos um olhar analítico sobre as
materialidades selecionadas.

Algumas considerações sobre a análise do discurso

Analisar o discurso em sua inscrição histórica constitui em desbravar um estudo que


intente investigar como os dizeres produzem efeitos de sentido de acordo com o tempo e o
lugar em que surgem, por isso, devem ser compreendidos como acontecimentos que emergem
conforme condições materiais e sócios históricos definidas. Neste tipo de estudo é de extrema
importância que compreendamos os dizeres nos termos discursivos propostos por Foucault
(2016) em sua obra A arqueologia do saber. Nesta obra, o autor propõe que os discursos
devem ser tomados como construções que aparecem em determinados contextos sociais e
institucionais, e sua análise deve ser empreendida considerando-se que:

trata-se de compreender o enunciado na estreiteza e singularidade de sua


situação; de determinar as condições de sua existência, de fixar seus limites
da forma mais justa, de estabelecer suas correlações com os outros
enunciados a que pode estar ligado, de mostrar que outras formas de
enunciação exclui. Não se busca, sob o que está manifesto, a conversa semi-
silenciosa de um outro discurso: deve-se mostrar por que não poderia ser
outro, como exclui qualquer outro, como ocupa, no meio de outros e
relacionado a eles, um lugar que nenhum outro poderia ocupar
(FOUCAULT, 2016, p. 34).

Os discursos, portanto, devem ser pensados através de sua relação com a história,
devendo ser tomados para análise como um acontecimento singular e impossível de ser
repetido, uma vez que, mesmo que um sujeito social pronuncie um mesmo enunciado já
produzido antes, as suas condições de possibilidade não serão sempre as mesmas. Nesse viés,
104

ao atentarmos para analisar um determinado discurso, devemos nos preocupar em observar as


condições que possibilitaram o aparecimento deste discurso em um determinado momento
Página

histórico.

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Em A Arqueologia do saber Foucault (2016) traz o conceito de enunciado, afirmando
que o enunciado não se confunde com a frase, o ato de fala e a proposição, dessa maneira ele
não está nem dentro, nem fora de um signo linguístico, ao invés disto encontra-se regido por
leis dentro de uma regularidade que só surge depois de encontrar as regras de formação de um
discurso, assim, os enunciados encontram-se não nos signos, mas em sua separação, em seus
interstícios, no limite dos signos, por isso é concebido na prática discursiva, ou seja, o
enunciado é tratado como um acontecimento discursivo. Destarte, o discurso para Foucault é
concebido como um conjunto de enunciados que se amparam em uma mesma formação
discursiva, sobre o conceito de Formação Discursiva o autor afirma:

No caso em que se puder descrever, entre um certo número de enunciados,


semelhante sistema de dispersão, e no caso em que entre os objetos, os tipos
de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se puder definir uma
regularidade (uma ordem, correlações, posições e funcionamentos,
transformações), diremos, por convenção, que se trata de uma formação
discursiva (FOUCAULT, 2016, p.47).

Segundo o autor supracitado, os enunciados, mesmo que dispersos, não estando


ligados a um princípio único, se estes possuírem uma regularidade, se formar um conjunto ao
se referir a um mesmo objeto, existe aí uma formação discursiva, pois se encontrou nesta
dispersão um domínio de conhecimentos, ou seja, um grupo de enunciados que estão ligados
por se relacionar a um mesmo objeto. Nesse sentido, todo enunciado pertence a uma
determinada formação discursiva que é regida por regras que as determinam. Sobre isso
Foucault (2016, p. 47) frisa que “as regras de formação são condições de existência (mas
também de coexistência, de manutenção, de modificação e de desaparecimento) em uma dada
repartição discursiva”.
Foucault (2016) vê o discurso como uma prática, essa prática discursiva é definida
como um conjunto de regras anônimas e históricas, engendradas num determinado tempo e
espaço, os quais definem as condições de produção do discurso. Essas regras delimitam o que
pode ser dito em determinado lugar e época, pois como ressalta Foucault (2011) os sujeitos
sociais não estão autorizados a pronunciar toda enunciação em determinadas conjunturas.
Bem como, essas regras também delimitam quem pode enunciar tais discursos em
105

determinados ambientes.
Foucault (2016) discorre sobre as regra de formação que são condições de existência
Página

do discurso: os objetos, as modalidades enunciativas, os conceitos e as estratégias. Desse

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conjunto que formam as unidades do discurso interessa-nos como categorias de análise as três
primeiras. Ao falar da formação dos objetos o autor estuda a psicopatologia e se questiona
sobre o regime de existência dos objetos do discurso. Assim, projeta três fases de análise que
são: as superfícies primeiras de emergência, ou seja, de onde partem esses discursos, mostrar
o surgimento desses enunciados, levando em consideração que essas superfícies de
aparecimento mudam de acordo com a sociedade, a época. Posteriormente, o autor descreve
as instâncias de delimitação que são instituições sociais superiores, como a medicina e a
justiça, que são autorizadas a designar os objetos. Por fim, as grades de especificação que são
os sistemas que opõe os diferentes objetos do discurso.
Sobre a formação das modalidades enunciativas, Foucault (2016) esclarece questões
importantes a respeito de quem fala, pois o sujeito do discurso tem que possuir um status que
o qualifique capaz de enunciar determinado enunciado, para esclarecer essa questão Foucault
(2016) toma como exemplo o discurso médico, vejam:

A fala médica não pode vir de quem quer que seja; seu valor, sua eficácia,
seus próprio poderes terapêuticos e, de maneira geral, sua existência como
fala médica não são dissociáveis do personagem, definido por status, que
tem o direito de articulá-lo, reivindicando para si o poder de conjurar o
sofrimento e a morte (FOUCAULT, 2016, p.62).

Nesse sentido, existem sujeitos autorizados a falar tais discursos. Foucault (2016)
ressalta também a importância de descrever, além de quem fala, o lugar de onde se fala. O
discurso dentro da sociedade é controlado, selecionado, regulado e organizado e para que os
sujeitos sociais possam se apossar de um determinado discurso, ele tem que ter direito a essa
enunciação, direito que é adquirido através do lugar que o sujeito ocupa na sociedade. Em A
Ordem do discurso apreendemos que: “O ritual define a qualificação que deve possuir os
indivíduos que falam [...] um ritual que determina para os sujeitos que falam, ao mesmo
tempo, propriedades singulares e papeis preestabelecidos.” (FOUCAULT, 2011, p. 39).
Assim sendo, é preciso que haja uma legitimação, além de um ambiente e de uma
circunstância ideal para que a palavra proferida seja verdadeira e aceita como verdade, pois
como teoriza Foucault (2011) não existe uma verdade absoluta que expresse completamente o
real, mas sim uma “vontade de verdade” que encontra base institucional, no entanto, é essa
106

vontade de verdade que legitima como verdadeiro ou falso os discursos de uma determinada
Página

época.

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Com relação à formação dos conceitos, Foucault (2016) descreve a organização do
campo enunciativo para depois lançar um olhar analítico sobre os conceitos, esse campo é
compreendido por: as disposições das séries enunciativas que compreende a “[...] ordem das
interferências, das implicações sucessivas e dos raciocínios demonstrativos; ou a ordem das
descrições, os esquemas de generalização ou de especificação progressiva [...]”
(FOUCAULT, 2016, p. 67-68). Seguidamente o autor fala dos diversos tipos de correlação
dos enunciados, ou seja, a maneira que esses enunciados se organizam, considerando que, na
maioria das vezes, são enunciados distintos e que não são suscetíveis a ser superpostos. Já as
formas de coexistência compreendem um campo de presença, sendo este a presença de
enunciados em um determinado discurso, ou seja, o discurso retoma enunciados já existentes;
de encontro a este campo é descrito outro que é o de concomitância, sendo este campo
diferente do anterior, pois se refere a enunciados com objetos distintos pertencente aos mais
variados discursos. Para finalizar o estudo do campo enunciativo, Foucault (2016) fala sobre o
domínio da memória que são enunciados que não são mais admitidos em determinado
momento histórico, apesar de já ter sido uma vontade de verdade em uma época não são mais
aceitos, pois outras vontades de verdades predominam.
Ancorada nos estudos da Arqueologia de Foucault, Gregolin (2007) esclarece o
enunciado como uma função que se encontra entre o linguístico e o material, não estando,
assim, no mesmo nível de existência da língua, “Foucault mostra que o que torna uma frase,
uma proposição, um ato de fala em um enunciado é justamente a função enunciativa: o fato
de ele ser produzido por um sujeito em um lugar institucional, determinado por regras sócio-
históricas [...]” (GREGOLIN, 2007, p. 95-96).
No volume I de História da sexualidade: a vontade de saber, Foucault (1988)
destaca que o mecanismo da confissão foi fundamental para a produção de saberes sobre o
sexo, sendo que os sujeitos Ocidentais foram induzidos a confessar e expor seus prazeres,
para formar uma ciência sobre o sexo. Há, nesse processo, uma relação de poder, pois quando
um sujeito se confessa está produzindo um discurso sobre si, sendo levado a expor sua
intimidade e segredos, já quem escuta o discurso confessional interpreta, liberta, condena,
domina. A confissão é um dos rituais mais importantes para se conseguir uma verdade, sendo
que “a confissão passou a ser, no Ocidente, uma das técnicas mais altamente valorizada para
107

produzir a verdade. Desde então nos tornamos uma sociedade singularmente confessada”
(FOUCAULT, 1988, p. 67).
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Além disso, Fischer (2013, pp.130-131) frisa que “a produção de textos, de falas, de
coisas pronunciadas ou escritas, em qualquer momento da história, em qualquer lugar, nada
tem de tranquilo: supõe sempre ‘lutas, vitórias, ferimentos, dominações, servidões’”. Nesse
sentido, devemos atentar para o fato de que o sujeito que enuncia busca sempre alcançar algo,
seja orientar, dominar, manipular, manifestar alguma indignação.
Pensando em nosso objeto de análise, entendemos que os discursos feministas
travam lutas para alcançar determinados objetivos (que a mulher assuma um lugar de
igualdade na sociedade e que não sejam vítimas de assédios e agressões de qualquer espécie).
Sendo esses discursos vontades de verdades que contrastam com as vontades de verdades do
discurso machista, sendo assim enunciados de diferentes formações discursivas que se
digladiam. Destarte, no próximo tópico trataremos da análise das materialidades anunciadas
no texto introdutório deste estudo, fundamentados nas noções da análise do discurso que
foram aqui tratadas.

Ressonâncias do discurso feminista na web

Conforme afirmamos na introdução deste trabalho, a análise que empreenderemos


aqui engloba três materialidades, a saber: um relato veiculado no blog #AgoraÉQueSãoElas,
uma carta aberta escrita pelo ator global José Mayer e enviada ao jornal Extra, e algumas
imagens da campanha encabeçada por atrizes globais denominada de Mexeu com uma, mexeu
com todas.
O blog #AgoraÉQueSãoElas publicou em março de 2017 um relato intitulado de
José Mayer me assediou. O objetivo do texto publicado era relatar e denunciar o assédio
sofrido pela figurinista Susllem Tonani. Ao fazer essa confissão, a figurinista está de certo
modo fazendo uma exibição de si, já que essa mulher é levada a contar sua verdade que estava
resguardada até ganhar o espaço da web. Nessa confissão, a voz que fala já situa a mulher que
foi abusada sexualmente como uma mulher de perfil que emana beleza feminina, logo esse
sujeito aqui ocupa uma posição que se enquadra dentro de certos padrões de beleza atribuídos
para o sexo feminino ao enunciar ser “uma mulher branca, bonita, alta. Há cinco anos vim
morar no Rio de Janeiro, em busca de meu sonho: ser figurinista”
108
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(#AGORAÉQUESÃOELAS, 2017).8 Além das características atreladas à beleza dessa
mulher, outro fator presente neste excerto é a relação que a mulher tece com o seu trabalho,
pois ela mostra o amor pelo ofício exercido na emissora, mostrando uma boa relação com a
função que desempenha.
O sujeito confidente relata a opressão sentida diante um homem que a oprime no
ambiente de trabalho. É o que vemos no trecho a seguir, ao ler a confissão da figurinista que
afirmou ter sofrido assédio sexual no seu local de trabalho: “Qual mulher nunca levou uma
cantada? Qual mulher nunca foi oprimida a rotular a violência do assédio como
“brincadeira”? A primeira “brincadeira” de José Mayer Drumond comigo foi há 8 meses.”
(#AGORAÉQUESÃO ELAS, 2017). A voz que enuncia mobiliza uma memória discursiva
relativa à frequência com que as mulheres sofrem assédio sexual, seja no local de trabalho, na
rua, no ônibus, entre outros locais, ou seja, já sofreram com manifestações sexuais abusivas
alheia à vontade da pessoa a quem se dirige. Ademais, o enunciado discursiviza como o
assédio sexual, em sua maioria das vezes, não é visto como algo sério e como este tipo de
acontecimento que as mulheres sofrem, em ambientes de trabalho, dependendo da
circunstância e situação é levado a ser silenciado pela vítima, que logo se cala por medo de
perder seu emprego.
Mais adiante, a materialidade discursiva exibe um jogo de enunciados que expõe
como aconteceu o abuso sexual, com os quais percebemos que se configuraram numa
categoria de desejo sentida pelo ator que a assedio da seguinte maneira: ““como você é
bonita”. [...]. E com ele vinham seus “elogios”. Do “como você se veste bem”, logo eu estava
ouvindo: “como a sua cintura é fina”, “fico olhando a sua bundinha e imaginando seu
peitinho”, “você nunca vai dar para mim?”(#AGORAÉQUESÃOELAS, 2017). Todos esses
enunciados mobilizam efeitos de sentido que estão atrelados à beleza feminina. Através disto,
percebemos que as posições que esse sujeito ocupa quando fala faz emergir dizeres que
coloca essa mulher numa posição de inferioridade ao homem, pois o sujeito aqui usa de um
discurso abusivo, ao tratar da beleza e do corpo feminino como se estivesse a serviço do
desejo e objeto de seu prazer.
Notamos no enunciado que segue a impotência que a mulher adquire ao assediada
sexualmente no ambiente de trabalho: “Quantas vezes tivemos e teremos que nos sentir
109

8
Disponível em: <http://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2017/03/31/jose-mayer-me-assediou/>. Acesso
Página

em 01. Jun. 2017.

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despidas pelo olhar de um homem, e ainda assim – ou por isso mesmo sentir medo de gritar e
parecer loucas?” (#AGORAÉQUESÃOELAS, 2017). A enunciada aqui explícita a maneira
como os casos de assédio, na sua maioria das vezes, faz com que a vítima seja levada a
acreditar que o assédio aconteceu devido as suas características físicas e a maneira de vestir-
se, por exemplo, fazendo com que a vítima sinta-se culpabilizada e não procure por proteção,
tendo em vista que os sujeitos em sua volta, tendem a naturalizar o ocorrido, fazendo a vítima
sentir-se fora da normalidade ao enunciar que sente-se assediada. É o que ocorre com a
figurinista ao silenciar por oito meses um caso de assédio sexual, ao sentir medo do que
poderia acontecer se fizesse uma denúncia sobre o caso, pois como o caso deu-se em seu
ambiente de trabalho o silenciamento era o mais viável, já que a denúncia do assédio poderia
implicar apenas numa possível demissão.
A relação da mulher com o trabalho em pleno século XXI ainda se configura numa
postura delicada. No recorte abaixo, podemos trazer um pouco da memória que discursiviza
sobre como a mulher ingressou no mercado de trabalho. Esse acontecimento se deu a duras
penas, sendo que essa abertura para o trabalho feminino aconteceu com o processo de
industrialização e mudanças socioeconômicas, o que acarretou a precisão de muita mão de
obra em fábricas, isso trouxe decisivamente a mulher para ocupar postos de trabalho dentro
destas fabricas, enfrentando péssimas condições trabalhistas e jornadas exageradas de
trabalho, ainda assim, recebiam seus salários inferiores aos dos homens, discute (TELES,
1999). Assim, percebemos como a mulher se manteve/mantém oprimida dentro da sociedade,
é essa memória que podemos questionar com o trecho abaixo:

A opressão é aquela que nos engana e naturaliza o absurdo. Transforma tudo


em aceitável, em tolerável, em normal. A vaidade é aquela que faz o outro
crer na falta de limite, no estrelato, no poder e na impunidade. Quantas vezes
teremos que pedir para não sermos sexualizadas em nosso local de trabalho?
Até quando teremos que ir às ruas, ao departamento de RH ou à ouvidoria
pedir respeito? (#AGORAÉQUESÃOELAS, 2017)

Esse trecho discursiviza o silenciamento da mulher diante o sentimento de opressão,


isto leva a refletir que há um machismo enraizado na sociedade, em que homens olham para a
mulher como um objeto a ser consumido. Mas o relato também enfatiza que o sujeito que
110

assumiu a posição para assediá-la confia no seu renome enquanto ator, assim os efeitos de
sentidos são de que esse sujeito ator parece ter se confiado em sua carreira construída na
Página

televisão para proceder abusando sexualmente desta mulher a ponto de pensar que tudo seria

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naturalizado. No entanto, os enunciados reclamam respeito dentro de seu ambiente de
trabalho, pois nenhuma mulher por ser bonita e desejada, merece ou pede para ser assediada
sexualmente. Assim, a voz que fala, ao levar o caso ao RH, ocupa a posição de quem
reconhece o ato praticado pelo ator como um crime, ficando marcado nestes dizeres o
reconhecimento de seu poder de denunciar qualquer tipo de abuso que possa sofrer, pelo fato
de o homem não respeitar a mulher em qualquer espaço, seja público ou privado, o caso pode
ser levado para ser investigado na delegacia da mulher. Isso mostra o conhecimento da
existência das instituições especializadas em cuidar da violência contra mulher, ao perceber
que essas instituições irão protegê-la, ouvi-la e punir homens que violentam mulheres, seja
física ou psicologicamente.

[...] dentro do camarim da empresa, na presença de outras duas mulheres,


esse ator, branco, rico, de 67 anos, que fez fama como garanhão, colocou a
mão esquerda na minha genitália. Sim, ele colocou a mão na minha buceta e
ainda disse que esse era seu desejo antigo. Elas? Elas, que poderiam estar no
meu lugar, não ficaram constrangidas. Chegaram até a rir de sua “piada”.
Eu? Eu me vi só, desprotegida, encurralada, ridicularizada, inferiorizada,
invisível. Senti desespero, nojo, arrependimento de estar ali. Não havia
cumplicidade, sororidade. (#AGORAÉQUESÃOELAS, 2017).

O enunciado acima denuncia como se deu o ápice do assédio, trazendo à tona todo o
abuso de poder do ator que se sentiu no direito de assediá-la, tocando em suas partes íntimas
para satisfazer sua virilidade de garanhão, essa conduta do ator se enquadra no que diz
Saffioti (2004, p. 75): “os homens exerçam sua força-potência-dominação contra as mulheres,
em detrimento de uma virilidade doce e sensível, portanto mais adequada ao desfrute do
prazer”. Também chama atenção neste trecho a forma pela qual o assédio foi tratado pelas
outras mulheres que presenciaram a cena e naturalizaram o ocorrido, neste momento a
figurinista mobiliza o sentimento de sororidade9 inexistente na cena, ou seja, ela se viu
rodeada de mulheres presenciando um homem tocar em suas partes íntimas sem o seu
consentimento na frente de outras mulheres que não se importam com o acontecimento. Isso
mostra que nenhuma das mulheres que ali estavam tiveram a capacidade de se colocar em seu

9
Segundo Costa o significado de sororidade é: “Os feminismos, em algum momento de sua história,
111

criaram e propagaram, como expressão de sua identidade, a noção de "sororidade" ou da irmandade, a


ideia é força de unificação das mulheres, admitidas como iguais em sua biologia, aglutinadora de
energias numa luta comum contra a desigualdade em relação aos homens”. Disponível em:
Página

<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X2004000300003 >. Acesso em


20. Jul. 2017.

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lugar e perceber que a mulher numa situação como essa constrói sentimentos de fragilidade,
quanto isto Saffioti (2004, p. 75) afirma que “As violências física sexual, emocional e moral
não ocorrem isoladamente. Qualquer que seja a forma assumida pela agressão, a violência
emocional estará sempre presente”.
Esse discurso polêmico publicado no blog #AgoraÉQueSãoElas chegou a ser
interditado e retirada do espaço da web após sua publicação, o que incomoda neste relato e
provoca essa interdição é o fato de uma mulher está divulgando na web um caso de
sofrimento de abuso sexual enquanto trabalhava; e ainda mais o fato de a vítima está expondo
o agressor, ator famoso com carreira renomada na televisão, na Web local em que todas as
pessoas que acessam a internet podem ter conhecimento do caso que construiu imagens
negativas ao sujeito ator José Mayer. Isso nos mostra o funcionamento da ordem do discurso,
que de acordo com Foucault (2011, p. 9) numa sociedade como a nossa há certos
procedimentos de exclusão, sendo que o mais utilizado “é a interdição. Sabe-se bem que não
se tem o direito de dizer tudo, que não se pode falar de tudo em qualquer circunstância, que
qualquer um, enfim, não pode falar de qualquer coisa.”. O discurso aqui analisado passou por
um procedimento de interdição, pois como trata-se de um discurso que de certa forma veio a
tona fazendo emergir uma face desconhecida do ator, José Mayer, foi urgentemente banido da
web, já que de início ele negou as acusações feitas pela figurinista, mas logo após o fato ter
sido averiguado com rigor e ser confirmada a sua veracidade, o texto volta a ser publicada no
blog de origem.
Ao sofrer o procedimento de interdição, por não ser considerado verdadeiro pelo
ator, o discurso passa por uma investigação institucional e adquire de volta o seu status de
verdade, “Ora, essa vontade de verdade, como os outros sistemas de exclusão, apoia-se sobre
um suporte institucional” (FOUCAULT, 2011, p. 17). Esse suporte institucional é o que faz
com que determinados discursos sejam aceitos como verdade em uma dada época. Por isso,
ao ser legitimada a veracidade dos fatos sobre o relato da figurinista, o ator escreve um
discurso desculpando-se de seu comportamento inadequado, através de uma carta que foi
publicada no jornal Extra. O ator aqui torna-se um sujeito confidente, pois é obrigado a dizer
a verdade, sobre o caso de abuso sexual praticado, já que é forçado a expor a situação através
da pressão feita sobre ele pelas mídias digitais, logo “Confessa-se – ou se é forçado a
112

confessar. Quando a confissão não é espontânea ou imposta por algum imperativo interior, é
extorquida; desencavam-na na alma ou arrancam-na ao corpo.” (FOUCAULT, 2010, p. 68).
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Assim, esse discurso provoca efeitos de sentido em si mesmo. Vejamos na materialidade a
seguir como o ator produz essa confissão:

Tristemente, sou sim fruto de uma geração que aprendeu, erradamente, que
atitudes machistas, invasivas e abusivas podem ser disfarçadas de
brincadeiras ou piadas. Não podem. Não são. Aprendi nos últimos dias o que
levei 60 anos sem aprender. O mundo mudou. E isso é bom. Eu preciso e
quero mudar junto com ele (EXTRA, 2017)10

O sujeito que enuncia assume ter praticado o abuso sexual. Com isso, parece
demonstrar arrependimento no que fez, mas, para tal, joga a culpa do ato praticado no
passado, podemos perceber isso quando ele faz um paralelo entre passado e presente, ao
enfatizar que, em sua juventude, o homem era incentivado a ser machista, produzindo assim
efeitos de sentidos que projeta a mulher como um objeto de prazer. De certa forma, o sujeito
chega a naturalizar o assédio se tivesse ocorrido em um tempo mais remoto. Ademais, o
sujeito insere-se nos discursos em favor das mulheres na sociedade contemporânea, fazendo
um juízo de valor ao vociferar que atitudes machistas e abusivas não devem ser disfarçadas
como se fossem brincadeiras, pois reconheceu que os tempos mudaram e atitudes como a sua
não passaram em branco, devido ao apoio especializado em cuidar da mulher, no caso as
delegacias direcionadas a tratar da violência contra a mulher, bem como também o próprio
espaço da Web torna-se um espaço de luta para combater e reivindicar, respeito, justiça e
igualdade entre homens e mulheres. O sujeito assume a culpa para si e admite que errou, mas
essa desculpa em público foi desencadeada através da militância feminina por meio da
campanha Mexeu com uma, mexeu com todas.
Esse caso de assédio e as cartas, cujos fragmentos foram analisados anteriormente,
foram o estopim para a eclosão de uma campanha nas redes sociais intitulada por Mexeu com
uma, mexeu com todas. Essa companha promovida por atrizes da rede globo utiliza o poder
que o sujeito celebridade possui para mostrar um posicionamento com relação a esse assédio
que aconteceu dentro da emissora.
As materialidades em questão podem ser vistas nas imagens abaixo em que atrizes
aparecem vestindo uma camiseta com os dizeres Mexeu com uma, mexeu com todas e em
vermelho e a hashtag #chegadeassédio.
113

10
Disponível em: < https://extra.globo.com/famosos/acusado-de-assedio-jose-mayer-admite-em-carta-que-
Página

errou-pede-desculpas-21158359.html>. Acesso em 10. Jun. 2017.

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Imagem 111 Imagem 212 Imagem 313

Esses discursos passaram a circular nos principais meios de comunicação,


produzindo efeitos de sentido de solidariedade, indignação, força, resistência e respeito. Tudo
isso são sentidos lançados a partir dessas materialidades discursivas, tanto por parte dos
enunciados midiatizados, a parte verbal do discurso, quanto pela não verbal à feição das
atrizes, à maneira como aparecem nas fotografias publicadas nos perfis do Instagram.
Nas imagens, as celebridades aparecem numa posição que denota respeito
normalmente sem fazer nenhuma pose, ato costumeiro que pode ser visto em quase todas as
imagens das redes sociais dos sujeitos em questão. Essas fotos das celebridades surgem dentro
de condições de possibilidade que não estão voltadas para o seu campo de atuação
profissional, ou seja, não está ligada a nenhuma manifestação artística, e sem dá destaque a
fatores como a beleza, isso fica evidente, pois na imagem 1, a atriz Tainá Muller não mostra
todo o rosto, e na imagem 2, a atriz Sophie Charlotte além dos óculos escuros também não
mostra uma parte do rosto. Já na imagem 3 a atriz Drica Moraes faz questão de esticar a
camisa, chamando toda a atenção para os enunciados nela inscrito.
Assim, percebemos que elas não queriam chamar atenção para si, o que normalmente
o sujeito celebridade faz, mas sim para os enunciados presentes nas camisas. Fica evidente

11
114

Disponível em: < https://www.instagram.com/p/BSdukgxDecX/?hl=pt-br&taken-by=tainamuller >. Acesso em


25. Jun. 2017.
12
Disponível em: < https://www.instagram.com/p/BSdxl_fAZkn/?hl=pt-br&taken-by=sophiecharlotte1 >.
Acesso em 25. Jun. 2017.
Página

13
Disponível em: <https://www.instagram.com/p/BSdt0-wFJPa/?hl=pt-br&taken-by=oficialdricamoraes >.
Acesso em 25. Jun. 2017.

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também que a posição que o sujeito ocupa socialmente é utilizada para promover essa
campanha.
O semblante sério das atrizes nas duas primeiras imagens e o olhar fixo
acompanhado de um leve sorriso sem graça da atriz da terceira imagem mostra a exigência de
respeito, a força dessas mulheres para enfrentar essa causa. Essa fisionomia das atrizes revela
resistência. Todos esses efeitos de sentidos surgem a partir dessas materialidades discursivas e
causam um impacto na sociedade, pois fazem os sujeitos refletir sobre essa agressão, ao
mostrar atrizes na posição-sujeito não somente de celebridade, mas de defensoras das
mulheres, de maneira a influenciar a sociedade a ocupar a posição de sujeito desse discurso.
A partir do enunciado mexeu com uma, mexeu com todas observamos um ato de
solidariedade, em que as mulheres mostram-se solidárias com o sofrimento das outras.
Afirmando que o problema não é individual, do tipo: quem sofreu busque a solução, mas sim
algo coletivo. Esses sujeitos compadecem-se com as mulheres vítimas de algum tipo de abuso
e se mostram solidárias ao dizer que o problema de uma é o problema de todas. Já a palavra
de ordem na hashtag #chegadeassédio desencadeia sentidos de indignação com essa prática
que precisa parar.
Destarte, esse acontecimento discursivo mantem uma relação com outros discursos.
Sendo assim, um discurso que desperta toda uma memória discursiva, pois como Fischer
(2013, p.138) enfatiza “[...] tratar do discurso é tratar de uma história, de um fragmento da
história, num certo campo de saber, que se movimenta simultaneamente numa continuidade e
numa descontinuidade”.
Diante das materialidades analisadas, podemos entrever que o discurso machista
continua presente no meio social, mesmo que na contemporaneidade os discursos que
defendem a mulher tenham ganhado muito espaço, comparando com outras épocas em que os
direitos da mulher eram silenciados. Portanto, os sujeitos que enunciam possuem diferentes
posicionamentos discursivos e essas vozes revelam lutas, inserindo o sujeito feminino em um
discurso de denúncia.

Considerações finais
115

Ao lançarmos um olhar analítico sobre as materialidades estudadas nessa pesquisa,


percebemos que os sujeitos que enunciam assumem posicionamentos discursivos distintos.
Página

José Mayer, em sua carta aberta, faz uma confissão quando indica que faz parte de uma

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geração que vê a forma peculiar de “conquista” executada por ele como brincadeira, piada, ou
seja, vê tal ato como algo natural. Já o sujeito que enuncia nas outras materialidades vê essa
prática como assédio, agressão, abuso. Sendo, assim, sujeitos pertencentes a diferentes
formações discursivas.
Na contemporaneidade atitudes como a do ator José Mayer são rejeitadas, tendo em
vista que a justiça defende a mulher vítima de práticas abusiva como a executada pelo ator. A
vontade de verdade do século XX, época em que o ator indica como sua geração, não é a
mesma que vigora no século XXI. Nos enunciados verbo-visuais evidenciados pelas atrizes,
percebemos essa vontade de verdade predominante na contemporaneidade. A posição
discursiva que elas ocupam vai de encontro à de sujeitos como José Mayer, pois enquanto elas
usam a hashtag #chegadeassédio, ou seja, vê essa prática como assédio, o ator global sinaliza
que em sua geração isso é considerado brincadeira, piada. Portanto, vemos vontades de
verdades que são aceitas socialmente em certas épocas e outras não, sendo os sujeitos em
questão pertencentes a formações discursivas que se chocam e se digladiam.
.O relato veiculado no blog #AgoraÉQueSãoElas, inicialmente interditado,
controlado pelos poderes que são exercidos sobre o discurso da figurinista Su Tonani foi o
que motivou os sujeitos celebridades a se mobilizarem com a campanha nas mídias digitais
Mexeu com uma, mexeu com todas. Esse acontecimento discursivo levou José Mayer a
confessar esse seu posicionamento, essa sua forma de ver as coisas que ele indica que
conservava de sua época, mas enfatiza que com este acontecimento aprendeu algo que passou
a vida toda sem aprender, ressaltando que precisa acompanhar as mudanças do mundo. O
pensamento, a forma de agir, de sujeitos como o ator em questão não está mudando por
vontade própria, mas por que a vontade de verdade predominante da contemporaneidade é
outra comparando com o século XX. Sendo essa nova configuração social que faz sujeitos
como José Mayer mudar, isso para viver bem em sociedade, esses são casos particulares, não
podemos generalizar, visto que tem sujeitos que não aceitam a mudança e também sujeitos
dessa geração do século XXI que ocupam posições discursivas que podemos chamar de
machista.

Referências
116

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 2011.


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FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense universitária, 2016.

ISBN: 978-85-7621-221-8
FOUCAULT. Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro:
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117
Página

ISBN: 978-85-7621-221-8
GT1- PRÁTICAS DISCURSIVAS E MODOS DE SUBJETIVAÇÃO

QUEM TEM A CORAGEM DA VERDADE? UM OLHAR SOBRE OS DISCURSOS


DAS MULHERES QUE SOFRERAM ASSÉDIO SEXUAL

Luciana Fernandes Nery (UERN/PROLING-UFPB)


Regina Baracuhy (PROLING/ UFPB)

Considerações Iniciais

Dizer a verdade, na sociedade atual, representa, sobretudo, um ato de coragem, uma


vez que implica em mudanças de concepções sobre si e sobre o outro. Além disso, para aquele
que decide fazer um ato de confissão há possibilidade de retaliações e questionamentos. Desse
modo, muitos sujeitos preferem ocultar determinadas verdades e fatos ou crimes deixam de
ser esclarecidos, porque não há quem tenha a coragem de confessar. Historicamente, as
mulheres eram assediadas e até mesmo abusadas por seus chefes, colegas de trabalho,
companheiros, dentre outros. No entanto, a grande maioria, por vivermos numa sociedade
machista, envergonham-se das ações sofridas e nem sempre têm a coragem de denunciar o
culpado por temer os julgamentos sociais.
Enunciados como “usava roupas que favoreciam ser abusadas”, “deu cabimento”,
“sempre se insinuava para ele” são comuns de ser ouvidos. Além disso, o sujeito-abusador,
comumente, é bem visto na sociedade, às vezes até como modelo de pai, marido, profissional.
Dessa forma, muitas mulheres, ao serem abusadas ou assediadas, ocultam o que aconteceu por
acharem que as pessoas não vão acreditar no que elas dizem e também por medo das possíveis
ameaças do abusador. Diante disso, dizer a verdade constitui num ato de coragem, um dizer
parresiástico que apresenta implicações para si e para o outro. Nesse contexto, elencamos os
seguintes questionamentos: Como o sujeito se constitui e constitui o outro a partir do dizer
parresiástico? Como os discursos que circulam na mídia propiciam a coragem da verdade do
outro e reverberam produzindo processos de subjetivações?
Perante tais reflexões, o objetivo deste trabalho é analisar os discursos de mulheres
que sofreram assédio sexual, a partir do dizer parresiástico de uma figurinista da Rede Globo
a fim de discutir como a parresia engendra modos de subjetivação em nossa sociedade. Nosso
intuito não é apenas pensar sobre a coragem de dizer a verdade da figurinista, mas como o seu
118

discurso ocasiona a coragem do dizer do outro e a reverberação desse acontecimento através


da mídia. Para a realização da nossa análise, selecionamos como corpus, os depoimentos
Página

publicados na revista Veja, durante o mês de abril de 2017. Ancoramos nossas discussões no

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campo da Análise do Discurso, a partir dos postulados foucaultianos, com ênfase nas
concepções de governo de si, parresia, vontades de verdade e a técnica da confissão.
Entendemos que, conforme afirma Foucault, ao confessar um fato, o sujeito se subjetiva e
pode colocar em xeque a sua relação com o outro, que pode aceitar ou não o que é dito ou
ainda revoltar-se contra aquele que confessa.

1 A parresia e a prática da confissão

O termo parresia ou a coragem de dizer a verdade foi discutido por Foucault nos anos
80 nos últimos cursos do Collège de France, época em que o autor se deteve a refletir sobre o
governo de si e dos outros. Comumente, parresia é traduzido como o falar francamente, o
dizer verdadeiro. A parresia “é uma tomada da palavra pública ordenada à exigência de
verdade que, de um lado, exprime a convicção pessoal daquele que a mantém e, de outro, gera
para ele um risco, o perigo de uma reação violenta do destinatário.” (GROS, 2004, p. 158).
Na Antiguidade, havia quatro formas de dizer a verdade. A primeira delas vem dos
profetas, que ao dizer a verdade utiliza um discurso oriundo da palavra de Deus, “sua boca
serve de intermediária para uma voz que fala de outro lugar” e tinha como missão profetizar o
futuro (FOUCAULT, 2011, p. 15). A segunda forma de dizer a verdade vem dos sábios, estes,
independente do lugar, não têm suas verdades questionadas, mesmo quando falam através de
enigmas. A terceira forma de dizer a verdade vem do professor, do técnico, a estes cabe a
tarefa de transmitir a verdade através do saber. Diferentemente do profeta, do sábio ou do
professor, o parresiasta, representante da quarta modalidade de dizer a verdade, fala em seu
nome, não tem obrigação de profetizar o futuro, nem tampouco transmitir um saber.
(FOUCAULT, 2011).
Considerando que a parresia consiste no falar franco, cabe ao parresiasta não esconder
nada. Portanto,

[...] analisar, em suas condições e suas formas, o tipo de ato mediante o qual
o sujeito, ao dizer a verdade se manifesta, e com isso quero dizer representa
a si mesmo e é reconhecido pelos outros como dizendo a verdade. Não se
trataria, de modo algum, de analisar quais são as formas do discurso tais
119

como ele é reconhecido como verdadeiro, mas sim, sob que forma, em seu
ato de dizer a verdade, o indivíduo se constitui e é constituído pelos outros
como sujeito pronuncia um discurso de verdade [...] (FOUCAULT, 2011, p.
Página

4).

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Diante dessa afirmação, percebemos que analisar os discursos parresiásticos não se
trata de observar os dizeres como sendo verdadeiros, mas observar como ao enunciar a
verdade, o sujeito se constitui e constitui o outro. Ao dizer a verdade sobre si mesmo, o
sujeito modifica não apenas a sua identidade, mas também a identidade do outro (SILVA,
2017). Nesse sentido, a parresia se constitui num jogo entre aquele que diz a verdade e aquele
a quem se dirige. Desse modo, a presença do outro é sempre indispensável para que se possa
dizer a verdade. Esse outro pode ser um médico, padre, psicólogo, terapeuta, um amigo
confidente. É preciso ter alguém para escutar o que temos a dizer. No entanto, não
confessamos nossos segredos a qualquer um. Segundo Foucault (2011, p. 8), “esse outro,
indispensável ao dizer-a-verdade sobre si mesmo, tem, ou antes diz ter, para ser efetivamente,
para ser eficazmente o parceiro do dizer-a-verdade sobre si, certa qualificação”. Diante disso,
percebemos que não falamos sobre nós mesmos a qualquer um e em qualquer lugar. Há várias
formas, recursos e espaços para dizer a verdade.
Entre as práticas do dizer a verdade sobre si mesmo temos as revelações nos cadernos
de anotações, os antigos diários, as cartas aos amigos, dentre outros. Tais instrumentos
constituem-se em formas “que se recomendava que as pessoas escrevessem sobre si mesmas.”
(FOUCAULT, 2011, p.5). Nesse sentido, o ato de dizer-a-verdade sobre si mesmo está
associado a uma prática de confissão. Historicamente, os fiéis confessavam seus pecados ao
pastor do rebanho e recebiam os castigos e as punições para conseguir a salvação. Essa
concepção remonta á Antiguidade grega e judaico-cristã, na qual a confissão é concebida
como uma forma de conduzir condutas, de governamentalidade através do poder pastoral.
Diante disso, “a salvação reveste um caráter individual e implica uma análise minuciosa dos
méritos e deméritos, a submissão total à vontade do outro, e a verdade deve estar orientada
para o modo de conduzir-se na vida cotidiana” (CASTRO, 2014, p. 128). Essa prática
revestida pelo exercício do poder pastoral e propagada pelo cristianismo tem na figura do
pastor do rebanho a responsabilidade para determinar a penitência e julgar se os fiéis devem
ou não ser perdoados. Era o pastor quem exercia a qualificação necessária para conduzir a
conduta dos cristãos. Castro (2014), retomando o curso ministrado por Foucault em 1981,
apresenta quatro elementos essenciais da confissão:
120

1) O ato de confissão difere de uma declaração ou constatação. [...] 2) Quem


confessa, ademais, por seu ato de confissão, estabelece uma relação a
Página

respeito do que diz de si mesmo e assume uma obrigação com o que diz [...]
3) Esse ato tem lugar no contexto de determinada forma de exercício de

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poder [...] 4) Quem confessa, ademais, não só estabelece uma relação de
obrigação a respeito do que diz, mas também adquire determinada
qualificação; [...] (CASTRO, 2014, p. 134).

De acordo com as afirmações do autor, a confissão envolve relações de poder e


vontades de verdade. Ao confessar, o sujeito se compromete com o que diz e esse dizer
provoca ações sobre o outro, cabendo a este último a possibilidade de agir sobre o que é dito.
Além disso, o sujeito que confessa passa a exercer determinados papeis, quer seja como
pecador, vítima ou réu de crimes, dentre outros. Logo, não é qualquer um que tem a coragem
de realizar uma confissão, pois, muitas vezes, o desvendamento de determinados atos pode
ocasionar punições severas ou então numa mudança das relações com o outro. “Ele pode
[sentir-]se ofendido, pode rejeitar o que lhe dizem e pode, finalmente, punir ou vingar daquele
que lhe diz a verdade” (FOUCAULT, 2011, p. 14).
A prática de confissão advinda da concepção judaico-cristã era mantida em segredo e
não havia a disseminação dos atos confessados. Na sociedade contemporânea, torna-se cada
vez mais difícil manter os segredos guardados. Há uma necessidade da exposição da vida e as
pessoas cada vez mais, conforme aponta Silva (2017), expõe as suas intimidades dizendo o
que fazem, onde estão, o que acreditam e o que rejeitam.
A mídia tem se tornado o espaço para as confissões. Através dos depoimentos para
jornais, revistas, blogs e, principalmente, nas redes sociais, os sujeitos propagam
determinados discursos sobre si e sobre os outros. O sujeito pós-moderno sente a necessidade
de falar sobre si para o outro e para isso tem utilizado a mídia, que além de um espaço para a
prática de confissão, também pode ser uma forma de projeção para aquele que confessa seus
atos influenciando nos processos de subjetivação, ou seja, na sua constituição enquanto
sujeitos.

2 O dizer parresiástico: quem tem a coragem de dizer a verdade?

Tendo em vista nosso objetivo, interessa-nos pensar não apenas na coragem de dizer a
verdade da figurinista, mas como o seu discurso propicia a coragem do dizer do outro, bem
como na reverberação do acontecimento na mídia. Primeiramente, iremos analisar o
121

depoimento de Susllem Meneguzzi Tonani e, em seguida, os desdobramentos a partir do seu


ato de dizer a verdade.
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Fígura 1
Fonte: Revista Veja/Abril de 2017

O depoimento da figurinista da rede Globo divulgado num blog e publicado na revista


Veja no dia 12 de abril de 2017 traz à tona um fato que, muitas vezes, é encoberto pela
sociedade: o assédio sexual. Muitas mulheres se sentem envergonhadas, constrangidas pelas
“piadas” dos homens, sobretudo quando estes estão num patamar mais elevado. Assim,
muitas são assediadas, mas com medo das repressões e da própria reprovação da sociedade
acabam calando-se. O ato de coragem de dizer a verdade da figurinista, de falar sobre si e
sobre o outro coloca em cheque a sua identidade e a identidade do ator global. Esse dizer a
verdade ao mesmo tempo que evidencia um crime que comumente é silenciado, representa
também um risco para quem realiza a confissão. Geralmente, quando esses casos são
denunciados, há uma série de especulações e julgamentos em relação à imagem da vítima.
Diante disso,

[...] o sujeito, [ao dizer] essa verdade que marca como sendo sua opinião, seu
pensamento, sua crença, tem de assumir certo risco, risco que diz respeito à
própria relação que ele tem com a pessoa a quem se dirige. Para que haja
parresia é preciso que, dizendo a verdade, se abra, se instaure e se enfrente o
risco de ferir o outro, de irritá-lo, de deixa-lo com raiva e de suscitar de sua
parte algumas condutas que podem ir a mais extrema violência
(FOUCAULT, 2011, p. 12).

Ao assumir o risco e dizer a verdade, a figurinista age diretamente sobre a imagem que
se tinha sobre o ator global José Mayer. Considerando que, conforme afirma Foucault (1995),
122

o exercício do poder representa uma ação sobre a ação e que só há relação de poder entre
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sujeitos livres, cabendo a cada um a possibilidade de resistir, de se rebelar contra o outro, a

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denúncia da figurinista representa um ato de coragem, um dizer parresiástico contra a ação do
ator.
A partir do momento que a figurinista denuncia José Mayer há uma publicização da
causa contra o assédio sexual. Ao mesmo tempo em que há toda uma campanha disseminada
através do slogan “Ele mexeu com todas” há uma desconstrução em torno da identidade do
ator global. É importante observar o que representa esse pronome “ele”, utilizado no título da
reportagem da revista Veja, bem como o pronome indefinido “todas”. O sujeito “ele” não se
refere a qualquer pessoa do sexo masculino, mas a um artista famoso, aquele que era tido com
galã. A imagem construída do autor pela própria mídia passa a ser substituída por a de alguém
neurótico, maníaco, obsessivo. Já o pronome indefinido “todas” é utilizado para demarcar o
lugar das mulheres, sobretudo, atrizes da rede Globo, que aderem a uma luta contra o assédio
sexual.
Outro aspecto a se observar a partir do dizer parresiástico da figurinista são as
vontades de verdade presentes no seguinte depoimento:

Quantas vezes tivemos e teremos que nos sentir despidas pelo olhar de um
homem, e ainda assim- ou por isso mesmo- sentir medo de gritar e parecer
loucas? Quantas vezes teremos que ouvir, inclusive de outras mulheres: “ai
que exagero! Foi só uma piada! Quantas vezes vamos deixar passar
constrangidas e enojadas essas ações machistas, elitistas, sexistas e
maldosas” (SUSLLEM MENEGUZZI TONANI, 28 anos).

Retomando as palavras de Foucault (2011) ao considerar o dizer parresiástico, nosso


intuito não é analisar se o depoimento da figurinista constitui um discurso verdadeiro, nem
tampouco fazer julgamentos. No entanto, é importante destacar alguns aspectos no dizer sobre
si mesmo e sobre o outro ao dizer a verdade ou aquilo que Susllem considera como verdade.
Primeiramente, o depoimento representa uma posição contra os discursos machistas que
circulam na sociedade e que, muitas vezes, são tratados como algo natural. Historicamente, o
homem pode assediar, chamar a mulher de “gostosa” e ir até mais além. Isso é normal.
Somente quando o assédio torna-se um abuso e/ou, em casos extremos, consagra-se o estupro
é que as ações masculinas são tratadas pela lei como crime. Enquanto isso, as mulheres ficam
à mercê da figura do “macho” e os seus discursos são tratados como loucura, invenção ou
123

ainda como uma forma de projeção pessoal, profissional.


O ato de denunciar o assédio sexual praticado por José Mayer representa uma forma
Página

de resistência, uma estratégia de luta utilizada pela figurinista para escapar do poder que

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exercido pelo ator. Segundo Revel (2005), as relações de poder estão em toda parte, portanto,
é preciso que haja formas de resistência como uma possibilidade de se criar espaços de lutas e
abrir espaço para as modificações na sociedade. Vale ressaltar que estas formas de resistência
não surgem como uma reação ao poder, mas aos seus efeitos. É justamente a partir dessa
resistência que surgem os processos de subjetivação e os indivíduos se constituem enquanto
sujeitos propagando, acatando ou refutando os discursos que circulam, sobretudo, através da
mídia.

3 A reveberação dos discursos na mídia: a coragem da verdade de si e dos outros

Diante da denúncia da figurinista, há uma campanha nas redes sociais a favor não
apenas de Susllem, mas da causa. O dizer parresiástico, neste caso, representa uma forma de
fazer com que a sociedade perceba ou dê mais atenção a algo que acontece diariamente e que
muitas vezes é ignorado. O slogan da campanha “Mexeu com uma, mexeu com todas,
#chegadeassédio” tornou-se um meme e viralizou na internet, fazendo com que artistas
famosas abracem a causa e se engajem na luta pelo respeito às mulheres, conforme pode ser
visto na imagem a seguir:

Figura 2
Fonte: www.google.com.br
124

De acordo com Gregolin (2007, p.16), o dispositivo da mídia é preponderante na


sociedade contemporânea e exerce grande influência na produção de subjetividades, o slogan
Página

“Mexeu com uma, mexeu com todas” reverbera neste espaço e consegue um grande número

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de adesões para a campanha contra o assédio sexual. Ainda, segundo a referida autora, é a
mídia “em grande medida, que formata a historicidade que nos atravessa e nos constitui,
modelando a identidade histórica que nos liga ao passado e ao presente” (GREGOLIN, 2007,
p. 16). Desse modo, ao curtir ou compartilhar determinados discursos nos subjetivamos e
modificamos a nossa identidade. Além disso, tais discursos ao ser disseminados vão se
atualizando e produzindo novos discursos.
Também é interessante observar que a publicização do slogan “Mexeu com uma,
mexeu com todas” acaba funcionando como uma prática de governamentalidade, uma vez
que, conforme afirma Foucault (2004, p.286), “são indivíduos livres que tentam controlar,
determinar, delimitar a liberdade dos outros e, para fazê-lo, dispõem de certos instrumentos
para governar os outros”. Diante desta afirmação, é possível perceber, em várias instituições
da sociedade, condutas em que um tenta governar as ações dos outros, meios ou técnicas de
governamentalidade utilizadas sutilmente para influenciar, controlar ou modelar a identidade
dos sujeitos. O slogan da campanha propagado por atrizes famosas da Rede Globo, que
vestem a camisa disseminando a hastag “#chegadeassédio” constitui numa estratégia de poder
em que os sujeitos tentam controlar os outros e conseguir a adesão, sobretudo das mulheres,
para uma campanha contra um crime que comumente é silenciado. Essa estratégia de controle
da conduta do outro se constitui um meio para manter o poder.
Após a publicização da campanha nas redes sociais e a adesão de personalidades
famosas, a Veja utiliza-se desse fato e apresenta uma reportagem com o depoimento de várias
mulheres que também sofreram assédio sexual. A repercussão faz com que essa matéria seja
capa da revista, como podemos ver na imagem abaixo:

125
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Figura 3: Capa da Revista Veja
Fonte: Revista Veja/Abril de 2017

A campanha contra o assédio sexual publicizada através da mídia faz com que muitas
celebridades como Sandra Annenberg, Valeska Popozuda, Hortência, Luiza Possi, dentre
outras, também tivessem coragem de confessar que já foram assediadas. A partir do
enunciado “Eu sofri assédio sexual”, mulheres confessam sobre um crime, que segundo a
própria revista “vive nas sombras”. Para analisar sobre como a coragem da verdade da
figurinista provoca a coragem de outras mulheres, selecionamos os depoimentos a seguir,
publicados na Veja no dia 12 de abril de 2017:

Eu ainda veria esse dia! Dia em que nós mulheres não teremos mais medo de
denunciar. Não é só no meio artístico, mas em todos os meios em que os
homens se julgam superiores e, pior, donos do sexo feminino. Eu já passei
por muitas e péssimas, não tive a coragem na época de tomar a mesma
atitude de Suslem...(SANDRA ANNENBERG, apresentadora de TV, 48
anos, em depoimento no Facebook).

Eu estava no inicio da carreira quando um empresário entrou no meu


camarim, disse umas coisas e colocou o pênis para fora. [...] Eu chorava sem
parar. Nunca contei a ninguém por medo. Medo de que não acreditassem em
mim. (VALESCA POPOZUDA, cantora, 38 anos).
126

Certa vez, um casal de fãs quis fazer uma foto comigo no camarim. Pouco
antes do clique, o homem olhou para mim, longe dos olhos e dos ouvidos da
Página

companheira, e perguntou: Posso passar a mão na sua bunda? (LUIZA


POSSI, cantora, 32 anos).

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O diretor de um clube em que eu jogava me assediava constantemente.
Apesar de eu deixar sempre tudo muito claro e pôr limites, ele continuava a
me incomodar. Ele me ameaçava dizendo ‘pensa no seu futuro’, ‘seu
contrato pode ser suspenso’ (ANA PAULA, ex-jogadora de vôlei).

Os depoimentos acima mostram como as mulheres são assediadas e silenciadas por


receio da reprovação da própria sociedade. A coragem de dizer a verdade da figurinista fez
com que várias outras mulheres tivessem também a coragem de denunciar o que já passaram.
O discurso da apresentadora Sandra Annenberg, por exemplo, revela esta coragem diante da
superioridade masculina. Os desmandos comentidos pelos homens, presentes nos demais
depoimentos apresentados, costumam ser ocultados por vergonha, por medo de falar, medo de
perder o emprego e outros tipos de ameaças reinantes na sociedade machista, cujas práticas
(materializadas em músicas, propagandas), muitas vezes, estimulam o assédio e estupro.
Enquanto isso, a postura do assediador fica impune e comumente é tratada como uma
brincadeira de mau gosto.
Diante dos depoimentos e retomando ao que nos propusemos analisar, percebemos que
o sujeito parresiático ao dizer a verdade sobre si mesmo, não só denuncia quem é o outro,
como também esse dizer poderá fazer que outros sujeitos também tenham a coragem de se
arriscar e dizer a verdade sobre determinados fatos que são propagados na sociedade, mas que
nem sempre são punidos como deveriam e reconhecidos pela lei como um crime.

Considerações finais

Como na mídia os discursos se disseminam muito rapidamente, muitos fatos ao ser


divulgados acabam reverberando nesse espaço e dependendo do teor do que é divulgado se
torna uma campanha com a adesão de inúmeros sujeitos a favor ou contra a causa. Diante
disso, dizer a verdade sobre si mesmo representa um ato de coragem, pois há influências na
construção da nossa própria subjetividade e na relação com o outro. Aquilo que confessamos,
sobretudo, através do espaço midiático, pode ter grande repercussão e fazer com que outros
sujeitos tenham a mesma coragem.
Tendo em vista que nos propusemos a analisar o dizer parresiástico das mulheres que
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sofreram assédio sexual, é importante destacar que para esse crime ser evidenciado e os
Página

discursos das mulheres serem ouvidos, foi preciso que alguém realizasse uma confissão, ao

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dizer a verdade sobre si mesmo, e assumisse o risco não apenas diante do abusador, como
também da própria sociedade. Portanto, ter a coragem da verdade representa um ato de
resistência, de luta contra o poder que é exercido pelo homem e instaura modificações na
constituição de si e do outro.

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________. Ética, sexualidade, política. Organização e seleção de textos Manoel Barros da


Motta; tradução Elisa Monteiro, Inês Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Fonte
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128
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ISBN: 978-85-7621-221-8
GT1- PRÁTICAS DISCURSIVAS E MODOS DE SUBJETIVAÇÃO

CORPO MONTADO14, CORPO RESSIGNIFICADO: A PRODUÇÃO DE SENTIDOS


NO CROSSDRESSING

Marcos Paulo de Azevedo (GEDUERN/SEDUC-CE)

Introdução

O presente artigo fundamenta-se na Análise do Discurso de linha francesa, tomando


como principal orientação teórica e metodológica os estudos sobre o discurso e os modos de
subjetivação realizados por Foucault (2014). Com base nessa fundamentação teórico-
metodológica analisaremos aqui a construção da subjetividade crossdresser, observando
como isso se materializa nos corpos desses sujeitos.
Em tradução literal, o termo crossdresser significa vestir-se cruzado ou vestir-se ao
contrário. Vencato (2013) escreveu sua tese de doutorado em Antropologia sobre as
crossdressers associadas ao Brazillian Crossdresser Club e verificou que o termo pode
apresentar algumas variações de significado, mas, “grosso modo, uma pessoa que se identifica
como crossdresser pode ser definida como alguém que eventualmente usa ou se produz com
roupas e acessórios tidos como do sexo oposto ao sexo com que se nasce” (VENCATO, 2013,
p. 32, grifos da autora). Já a palavra crossdressing, por sua vez, geralmente é usada para
nomear a prática de se vestir com roupas e acessórios tidos como próprios ao sexo aposto ao
que se nasce. Vale ressaltar que nesse trabalho investigamos o crossdressing realizado por
sujeitos do sexo masculino.
É preciso também esclarecer que o crossdressing não está necessariamente ligado às
práticas sexuais dos sujeitos, ou seja, as crossdressers não são obrigatoriamente sujeitos
homossexuais que “se vestem de mulher”; Vencato (2013) constatou que a maior parte das
crossdressers que aceitaram participar de sua pesquisa eram homens heterossexuais, vários
deles casados. Ressaltamos, contudo, que não estamos afirmando não existir crossdressers
homossexuais ou que o crossdressing não possa ser, em algum caso, um fetiche sexual, mas
que esses não são aspectos definidores.
129

14
O ato de “montar” o corpo diz respeito ao processo de transformação do corpo masculino, no caso da nossa
pesquisa, por meio de roupas, adereços, enchimentos, perucas, apliques, maquiagens etc., para torná-lo
“efeminado”. O grau de feminilidade que o corpo assumirá pode variar de acordo com o objetivo que se quer
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atingir. Algumas drag queens, por exemplo, optam por adornar-se de forma mais cômica (caricata), enquanto
outras se vestem de maneira mais elegante.

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A Análise do Discurso é uma área rica em estudos sobre os processos de
subjetivação dos sujeitos, estudos esses que consideram o corpo como a principal
materialidade discursiva através da qual se manifestam as produções de sentido. Em vista
disso, destacamos aqui dois trabalhos que dialogam com nosso estudo: o primeiro deles é a
Dissertação de Nobrega Filho (2011) que estuda os corpos de travestis veiculados em
cartazes, analisando a produção de sentidos ali materializada; o segundo é a Dissertação de
Carvalho (2008), que analisou os modos de subjetivação homoafetiva inscritos em cartas
enviadas à revista G Magazine. Nosso trabalho vai ao encontro do estudo desses
pesquisadores com o objetivo aprofundar as discussões sobre o corpo e os modos de
subjetivação, partindo de um novo grupo de sujeitos: as crossdressers.
O ato de compreender a constituição do sujeito moderno passa pela compreensão
primordial de que as relações de poder-saber atuam principalmente sobre os corpos dos
sujeitos. Isso nos leva a refletir a respeito da visão dos estudos foucaultianos no que se refere
à noção de corpo. Os estudos em Análise do Discurso, talvez especialmente no Brasil,
consideram o corpo como lugar de produção de sentido, ou seja, o corpo tanto é objeto como
fonte de discursos. Nesse sentido, é necessário refletirmos sobre o modo como a AD concebe
esse corpo discursivo para que possamos pensar o lugar que o corpo ocupa em nosso estudo
sobre o sujeito crossdresser, pois é na superfície da pele que as marcas de subjetividade
crossdresser parecem ser mais perceptíveis.

1 O corpo como materialidade discursiva

Como colocado na Introdução, é na superfície da pele que notamos de forma mais


explícita as marcas dos processos de subjetivação pelos quais passam os sujeitos. No caso dos
sujeitos crossdressers Esse grau maior de percepção se dá exatamente pelo fato de que no
crossdressing – assim como no processo de montagem das travestis e drag queens – os
adereços socialmente entendidos como pertencentes ao feminino adornam os corpos dos
sujeitos e inscrevem ali, de forma bastante explícita, diferentes sentidos. Sentidos esses que
não emanam apenas da roupa e demais acessórios femininos, mas também dos gestos
corporais, trejeitos, tom de voz, enfim, comportamentos femininos que o indivíduo assume
130

quanto está montado. Tudo isso se inscreve e torna-se visível no corpo, como marcas. Marcas
que o próprio indivíduo grava em seu corpo como forma de indicar o pertencimento, ou a
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intenção de pertencer, a um determinado grupo, a uma determinada identidade (LOURO,
2000).
Tais ações realizadas sobre o corpo pelo próprio sujeito ou por terceiros são
chamadas por Foucault (2014) de técnicas ou práticas de si, que seriam exatamente as
tomadas de atitude ética, pelo indivíduo, que resultam em ações diretas sobre seu próprio
corpo ou comportamento com o objetivo claro de tornar-se sujeito de uma verdade sobre si.
Nas palavras de Foucault (2014, p. 266) as técnicas de si

permitem aos indivíduos efetuar, sozinho ou com a ajuda de outros, certo


número de operações sobre seu corpo e sua alma, seus pensamentos, suas
condutas, seu modo de ser; transformar-se afim de atingir certo estado de
felicidade, de pureza, de sabedoria, de perfeição ou de imortalidade.

Nesse sentido, o corpo é o lugar em que o sujeito inscreve sua subjetividade, é nele
que recaem as ações cotidianas de transformação e/ou adequação a determinadas formas de
ser ou viver que determinam a identidade do sujeito. É, então, como lugar de produção de
discursos, de sentido, como prática discursiva que a AD toma o corpo como uma categoria de
análise, pois é possível ver no corpo e através dele vestígios das relações de poder-saber que a
sociedade infligiu sobre ele e, principalmente, as formas de resistência, os contra-discursos15
que o sujeito pratica. Esses vestígios são linguísticamente perceptíveis seja na fala desses
indivíduos, ou nos elementos verbais e não-verbais – simbólicos – dos quais seu corpo se
torna veículo.
Destarte, a primeira consideração sobre o corpo enquanto lugar de discurso que se
faz necessária, de acordo com Milanez (2009), é a de que ele se diferencia do corpo biológico.
A AD não se atém ao corpo físico/biológico que trabalha, que pratica esportes, que faz sexo,
que estuda; ela não analisa o corpo em exercício de suas funções sociais e biológicas do
cotidiano. Importa à Análise do Discurso o corpo em sua existência histórica. “O corpo deve
ser visto como um lugar de inscrições, produções ou constituições sociais, políticas, culturais
e geográficas. O corpo não se opõe à cultura, um atavismo resistente de um passado natural; é
ele próprio um produto cultural, o produto cultural” (GROSZ, 2000, p. 84).
Entender o corpo como lugar que abriga as inscrições, produções ou constituições
131

das diferentes relações que o ser humano pode estabelecer com o outro e consigo mesmo

15
“Contra-discurso” é usado aqui para designar uma prática discursiva ou um ato discursivo que surge em
Página

oposição a outro, como forma de resistência. Nesse contexto de resistência, pode ser entendido como aquilo “que
se toma por verdade e valor positivo em um dado meio social” (NÓBREGA FILHO, 2011, p.11).

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significa vislumbrá-lo como alvo dos efeitos de sentido sócio-historicamente produzidos pelas
diferentes esferas de conhecimento que ao longo da história da humanidade foram
institucionalmente agraciadas com o poder de produzir verdades.
Para Nascimento (2013) o corpo tem se destacado na atualidade devido ao fluxo
discursivo incessante que atua sobre ele. O sujeito tem sido levado constantemente a refletir
sobre seu corpo incitado pela proliferação de diversas materialidades linguísticas que
veiculam discursos responsáveis pela construção, em diferentes esferas da sociedade, de
corpos dóceis e úteis. Segundo a autora, sobre o corpo

ecoam matizes de saberes que tentam enquadrá-lo sob as mais diferentes


designações, ressaltando que não há um único olhar sobre o corpo, mas que
esse é moldado pelo jogo das verdades fabricadas em diferentes épocas.
Com isso, os modos de definição do corpo, agregam-no sob o viés da
Antropologia, Sociologia, Psicologia, Medicina, Psiquiatria, etc.,
inscrevendo-o entre comportamentos, culturas e doenças, numa visão física,
dividindo-o entre alma e corpo, razão e emoção. O que nos interessa é o
distanciamento com essas concepções, pois pretendemos compreendê-lo na
perspectiva linguístico-discursiva, como um enunciado sobre o qual se
produzem diferentes efeitos de sentidos (NASCIMENTO, 2013, p. 19).

A partir dessa colocação da autora percebemos que o corpo se tornou objeto de


diferentes áreas de estudo e que cada uma dessas áreas promoveu um saber sobre ele, fazendo
com que este fosse atravessado por diferentes efeitos de verdade. Ao mesmo tempo em que
nos distanciamos das noções construídas por essas áreas citadas, uma vez que nos interessa a
perspectiva discursiva em que o corpo se inscreve na sociedade, também as levamos em
consideração para poder compreender a maneira pela qual os saberes produzidos por essas
ciências serviram de alicerce para relações de poder que, no decorrer da história, imprimiram-
se sobre os corpos, subjetivando-os (NASCIMENTO, 2013).
O campo da sexualidade pode ser considerado um dos principais alvos de produção
de verdades construídas ao longo da história pelas ciências supracitadas. Resultam da
produção de verdades, em determinadas épocas, por algumas dessas ciências, por exemplo, os
principais sistemas binários que dividem a humanidade até hoje: homem e mulher, hetero e
homossexual, normal e pervertido, doente e são, ou ainda práticas sexuais legítimas e
ilegítimas.
132

Louro (2000) assevera que muitos encaram a sexualidade como algo construído
“naturalmente”, como um atributo fisiológico com o qual todos nós nascemos e está fadado a
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se desenvolver para um lado ou para outro (masculinidade ou feminilidade). Para a autora,
aceitar essa ideia significa jogar por terra todos os argumentos sobre a dimensão social e
política ou do caráter construído que estudos mais recentes defendem sobre a sexualidade. Ou
seja, significa permanecer preso nas vontades de verdade produzidas em outras épocas pelas
ciências médico-pedagógicas, que encerraram os corpos em processos de disciplinarização.

Tal concepção usualmente se ancora no corpo e na suposição de que todos


vivemos nossos corpos, universalmente, da mesma forma. No entanto,
podemos entender que a sexualidade envolve rituais, linguagens, fantasias,
representações, símbolos, convenções... Processos profundamente culturais e
plurais. Nessa perspectiva, nada há de exclusivamente "natural" nesse
terreno, a começar pela própria concepção de corpo, ou mesmo de natureza.
Através de processos culturais, definimos o que é — ou não — natural;
produzimos e transformamos a natureza e a biologia e, conseqüentemente, as
tornamos históricas. Os corpos ganham sentido socialmente. A inscrição dos
gêneros — feminino ou masculino — nos corpos é feita, sempre, no
contexto de uma determinada cultura e, portanto, com as marcas dessa
cultura. As possibilidades da sexualidade — das formas de expressar os
desejos e prazeres — também são sempre socialmente estabelecidas e
codificadas. As identidades de gênero e sexuais são, portanto, compostas e
definidas por relações sociais, elas são moldadas pelas redes de poder de
uma sociedade (LOURO, 2000, s/p).

A autora é bastante elucidativa sobre o caráter cultural que a sexualidade e, por


conseguinte, o corpo, assume. Tal caráter é intensificado quando Louro liga a sexualidade a
rituais, linguagens, símbolos, convenções, dentre outros, que são elementos sócio-
culturalmente definidos. Principalmente: são elementos mutáveis, que implicam a
participação social ativa do sujeito, isto é, o sujeito também é responsável por definir sua
sexualidade e por escolher a forma como vai representar social ou simbolicamente essa
sexualidade em seu corpo. Nessa concepção não há espaço para a visão limitada no “natural”
e cria-se um contra-discurso em relação às verdades construídas em torno dos sistemas
binários.
Esse contra-discurso funda-se, como fica claro no trecho de Louro (2000), na ideia
de que os corpos são construídos socialmente e que os gêneros (masculino e feminino) são
inscritos nos corpos a partir de uma determinada cultura e, portanto, carregam marcas e são
construídos culturalmente. A sexualidade deve ser, então, entendida como fruto das relações
133

de poder-saber de uma determina sociedade, não como algo puramente natural.


Vale ressaltar que as relações de poder-saber que determinarão essa sexualidade não
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necessariamente precisam ser negativas, pois elas podem emanar não só de um sistema de

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governo que vise enquadrar o sujeito no sistema heteronormativo, como também podem
surgir das formas de resistência a esses sistemas de governo, como contra-discursos que
também exercem relações de poder-saber.
Ainda sobre o modo como os corpos são sócio-culturalmente produzidos, Nóbrega
Filho (2011) chama a atenção para as técnicas corporais que precisam ser mobilizadas para
que esse corpo seja moldado de acordo com a demanda cultural de cada sociedade. Não se
trata aqui apenas daquela demanda capitalista que disciplina o corpo visando o lucro, mas
também das demandas individuais de cada um, dos saberes socialmente construídos
necessários para que uma crossdresser, por exemplo, saiba o que significa o feminino na sua
cultura e de que modo precisa agir sobre seu corpo para imprimir nele esse gênero. As
técnicas corporais da qual fala o autor referem-se às normas, padrões e regras sobre como o
corpo deve ser produzido em cada cultura ou subcultura. Tais regras remontam às demandas
de uso do corpo nessas culturas.
Se pensarmos que o corpo feminino, nos dias atuais, para atender as exigências de
uma demanda da moda precisa ser magro e esbelto, enquanto o masculino precisa ser alto,
esguio e ao mesmo tempo malhado, podemos compreender de forma mais clara essas
imposições normativas, que também se estendem a outros campos da sociedade – algumas
profissões, por exemplo, exigem determinados “tipos” de corpo.
Nesse mesmo sentido podemos pensar o caso do sujeito crossdresser. Para atender a
demanda do gênero feminino em nossa cultura, na qual a crossdresser deseja se inscrever por
meio do uso de roupas femininas, mesmo que esporadicamente, precisa fabricar um corpo que
corresponda à vontade de verdade sobre o corpo e o modo de se vestir feminino, de
preferência bonito e atraente (VENCATO, 2013).
Tomemos de empréstimo o que Nóbrega Filho (2011) diz a respeito da travesti, que
nesse caso, de certo modo, se aplica também ao sujeito crossdresser. Com o objetivo de
ocupar o lugar de um “ser feminilizado”,

ele terá de modificar o seu corpo até que consiga atingir o resultado exigido
pela demanda performática de gênero – consequentemente atualizada no
corpo [...]. Para isso, ele terá de ter o conhecimento do que seja ser feminino,
ser mulher, o que é ser homem, como não ser masculino, qual discurso
134

atravessa tal universo (do gênero), etc. (NÓBREGA FILHO, 2011, p.26).
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Torna-se indispensável, nesse caso, o saber culturalmente construído, a verdade


sobre o que é ser mulher e o que é ser homem em nossa sociedade e de que modo reproduzir
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isso em nossos corpos. Observemos que o autor destaca a importância de se conhecer os
discursos que atravessam o universo dos gêneros, o que nos permite mais uma vez afirmar
que o gênero é também uma construção discursiva, na medida em que é preciso legitimar
como verdade um discurso, numa determinada época, sobre o que é ser mulher e o que é ser
homem.
Seguindo esse raciocínio, quando uma crossdresser coloca uma roupa feminina, usa
um acessório e usa maquiagem, ela não agiu de forma aleatória, mas sim porque pretendeu
atender a uma espécie de acordo social discursivamente construído de que aqueles elementos
o inscreveriam em uma determinada condição social que está relacionada ao feminino.
Mesmo que não seja o objetivo de muitas crossdressers assumir definitivamente o gênero
feminino, no momento que se montam elas assumem temporariamente esse papel. Nesse caso,
usando novamente as palavras de Nóbrega Filho (2011) sobre travestis, mas que nesse caso se
aplicam também às crossdressers, podemos inferir que estas se definem sobre diferentes
discursos e saberes, que o autor divide em normativos e aqueles ligados à Teoria Queer:

[...] para os discursos normativos, ele é um indivíduo patológico,


pecaminoso, transgressor da moral e da naturalizadora norma padrão do
gênero; já, segundo outros (contra)discursos, como o da Teoria Queer, ele é
um indivíduo que realiza uma performance de gênero distinta da esperada de
seu sexo, não se definindo como mulher, mas ao contrário, podendo ser visto
como estando no entremeio de todo binarismo genérico, não devendo, então,
ser compreendido como antinatural – pelo fato de apresentar
simultaneamente características daquilo que pode ser apontado como
masculino e feminino (pênis e seios, por exemplo), uma vez que a
problemática do gênero, compreendida normativamente como natural, na
verdade é, para a Teoria, de ordem discursiva (NÓBREGA FILHO, 2011,
p.27, grifos do autor).

Viver na fronteira dos binarismos é uma característica dos indivíduos queers


(LOURO, 2013). É importante ressaltar, a partir dessa citação de Nóbrega Filho (2011), que
assim como existe o discurso definidor do que é ser homem e do que é ser mulher, existem os
saberes que produzem vontades de verdade sobre o que é ser travesti, crossdresser, gay, drag
queen. E é valendo-se desse conhecimento sobre o que é ser crossdresser – no sentido
colocado pela Teoria Queer, sobre essa possibilidade de viver na fronteira, que o sujeito
135

praticante do crossdressing atua sobre seu corpo, inscrevendo discursivamente práticas de


subjetividade feminina. Para compreendermos melhor esse ato de fabricação do corpo no
Página

crossdressing, passaremos a analisar as tirinhas do cartunista Laerte Coutinho.

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2 Corpo montado, corpo ressignificado: a produção de sentidos no crossdressing

Nesta seção, analisaremos três tirinhas do cartunista Laerte Coutinho que apresentam
efeitos de sentido que remetem ao crossdressing e representam técnicas de si realizadas pelo
sujeito para inscrever em seu corpo marcas de feminilidade. É importante destacar que Laerte
não classifica essa personagem como crossdresser, travesti ou transgênero, de modo que o
tratamento dado a ela aqui como uma possível crossdresser é uma interpretação nossa.
Vejamos a primeira:

Figura 1. Processo de montagem.

Fonte: < http://murieltotal.zip.net/arch2009-03-08_2009-03-14.html>. Acesso em: 29 de maio de 2016

No primeiro quadrinho da tirinha vemos um homem diante de um espelho aplicando


batom sobre os lábios. O segundo quadrinho traz uma imagem mais aberta da cena, na qual é
possível ver o mesmo homem sentado num banquinho depilando as pernas. No terceiro, o
homem, agora diante de um espelho maior, que lhe proporciona uma imagem mais completa
de seu corpo, arruma uma peruca de fios roxos na cabeça, fixando com o auxilio de grampos
de cabelos. É possível agora visualizar seu corpo mais claramente: alto, magro e liso após a
depilação. Ele usa uma calcinha amarela e o vestido azul está colocado quase à altura da
cintura. No quarto e último quadrinho, o homem, ou melhor, a mulher, já está completamente
montada. Saltos altos vermelhos e o vestido lilás, aparentemente tomara que caia, e costas
nuas completam o “look”. A personagem também usa brincos, pulseiras e maquiagem nos
olhos. O cenário mudou: se encontra caminhando na rua com gestos elegantes e femininos. O
136

último quadrinho traz também um balão com a seguinte fala: “às vezes um cara tem que se
montar, ué!”.
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A tirinha exibe um passo a passo do processo de montagem. Primeiro o batom,
depois a depilação, em seguida o cabelo e por último o vestido. Todas essas ações e técnicas
para significar o feminino são impressas sobre o corpo, que sofre mudanças físicas
(depilação) e simbólicas para se adequar ao novo papel social que passa a desempenhar. São
esses símbolos sobre o corpo que causam efeitos de sentido sobre o feminino, que o torna
veículo de discursos e saberes sobre o crossdressing e sobre o que é ser mulher em nossa
sociedade. Os efeitos de sentido que emanam da tirinha nos permitem compreender bem
porque Grosz (2000) advoga que o corpo é social, cultural e linguisticamente produzido. Esse
é o corpo objeto da Análise do Discurso.
Outro fator que precisa ser considerado na tirinha é o enunciado verbal, que é o
posicionamento linguisticamente materializado pelo sujeito (crossdresser?) sobre o processo
de montagem: “às vezes um cara precisa se montar, ué!”. Tal enunciado parece como uma
resposta à sociedade, a alguém que poderia ter perguntado: “o que significa isso?”. Nessa
pseudo resposta é possível perceber que o sujeito não abriu mão do gênero masculino a que
biologicamente pertence, o que fica subentendido pelo uso da palavra “cara”, o que se tem é a
produção de uma vontade de verdade que legitima o desejo do sujeito de vestir-se como uma
mulher. Partindo do pensamento de Foucault: “Porque esse enunciado e não outro em seu
lugar”, podemos perguntar: porque “cara” e não outro termo ou pronome em seu lugar? Por
que ele não usou um termo feminino para designar-se naquele momento? O efeito de sentido
que emana dessa escolha linguística é que o sujeito se encontra na fronteira entre o masculino
e o feminino e que isso lhe traz satisfação. Esse parece ser um posicionamento que um sujeito
crossdresser assumiria.
Passemos agora à análise da segunda tirinha, que também aborda essa ideia de
fabricação do corpo. Observemos que no primeiro quadrinho o doutor apresenta ao “paciente”
a “forma” na qual ele precisará entrar para fazer a aplicação de silicone. Essa forma apresenta
um contorno feminino, mas não qualquer um: o molde é de um corpo magro, mas com seios e
bumbum grandes e pernas grossas. Vale ressaltar que o preenchimento será feito exatamente
nas partes do corpo que são tipicamente alteradas por mulheres. A existência do molde indica
que mesmo o sujeito que busca formas de subjetivação que fogem ao controle do poder
disciplinar acaba caindo em outras formas de objetivação, uma vez que o sujeito mulher
137

concebido no molde é um estereótipo que não representa, por assim dizer, uma mulher real,
mas sim ideal. E essa idealização é atravessada por diferentes relações de poder que se
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exercem por meio do discurso midiático, econômico, cultural e também do discurso machista.

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Figura 2: Silicone blues 1

Fonte:
< http://www2.uol.com.br/laerte/> Acesso em 20 de setembro de 2016.

No segundo quadrinho inicia-se a transformação e logo temos o resultado no terceiro


quadrinho: o homem sai da máquina com os contornos femininos que o molde possuía. O
sujeito sente-se satisfeito com a transformação: “Puxa! Obrigado, doutor!”. A fabricação de
um corpo que atenda ao desejo de subjetivação do sujeito faz com ele atinja esse estado de
felicidade.
A leitura da tirinha permite que compreendamos o corpo como uma construção
social, seja pelas inscrições materiais – silicone – seja pelas inscrições discursivas, que são
aquelas compostas por discursos de várias instituições sociais – Estado, igreja, família, escola
– que definem os padrões que moldam cada gênero. Permite também que concluamos, tal
como na tirinha anteriormente analisada, que as técnicas de si operadas sobre o corpo
constituem modos de subjetivação que permitem ao sujeito (crossdresser?) vivenciar uma
vontade de verdade sobre o que é ser mulher em nossa sociedade.
Analisemos agora a Figura 3, a qual representa também um corpo montado que é
construído a partir de práticas de si pelo sujeito. No primeiro quadrinho da tira vemos um
homem admirando o próprio corpo, que apresenta contornos femininos no quadril e ainda
mais visivelmente no bumbum e nos seios. A personagem classifica o próprio corpo como
“demais!” e acrescenta: “Silicone é uma maravilha! Posso ter isso tudo...”, no segundo
quadrinho, onde aparece de lingerie, completa: “e continuar sendo homem!”. A afirmação
corrobora com a noção de crossdressing que apresentamos em nossa Introdução. Apesar de
138

vestir-se com roupas femininas e de algumas vezes intervir cirurgicamente em seu corpo, o
sujeito crossdresser não necessariamente deseja “tornar-se” mulher, pertencer ao sexo
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feminino ou mesmo ser homossexual. Como é o caso da personagem da tirinha, que deixa
isso claro no último quadrinho: “Pena que eu não seja homossexual também...”.

Figura 3: Silicone blues 6.

Fonte: <http://murieltotal.zip.net/arch2009-03-08_2009-03-14.html>. Acesso em: 29 de maio de 2016

Pela expressão de tristeza que o sujeito apresenta no final da tira, há o efeito de


sentido de que o fato dele não ser homossexual torna a transformação em seu corpo ainda
mais “anormal” diante do olhar da sociedade. Vale ressaltar que se ele fosse homossexual não
impediria que a sociedade o visse como transgressor, uma vez que tanto a homossexualidade
quanto as transformações que ele realizou no corpo vão de encontro à vontade de verdade
sobre o que é ser normal (heterossexual) na sociedade.
Mesmo diante dessa interdição, o sujeito apresentado na tirinha realiza as
transformações sobre o corpo e vivencia seu desejo de ter um corpo feminino, ainda que a
sociedade negue a ele esse reconhecimento.
A partir dessa análise do processo de transformação e montagem representado nas
tiras, esboçamos de que modo o corpo é tratado na AD: enquanto lugar de produção de
discursos, enquanto prática discursiva; e também como é possível que o corpo seja
ressignificado a partir da ação do sujeito, que atua sobre si mesmo – um exemplo claro do que
Foucault (2014) chama de técnicas de si – para tornar-se sujeito de seus desejos.

Considerações finais
139

Neste artigo analisamos de que modo se dá a constituição subjetividade crossdresser


e como esse processo de subjetivação aparece materializado no corpo. Concluímos que a
Página

constituição da subjetividade crossdresser se dá por meio das inscrições simbólico-

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discursivas que ele realiza em seu corpo. Tais inscrições se dão por meio das tecnologias de si
que o sujeito mobiliza para chegar ao estado de subjetivação. Todas as ações que o sujeito
pratica em seu corpo para significar traços de feminilidade podem ser consideradas
tecnologias de si. Em nossa análise, o uso da vestimenta feminina, a prática de depilação e o
aplique de silicone foram as principais tecnologias identificadas.
É necessário acrescentar ainda que o processo de subjetivação desses sujeitos se dá
em constante agonística com as relações de poder-saber contemporâneas, o que significa dizer
que são várias as negociações que sujeito precisa realizar para alcançar a subjetivação. É
preciso negociar a convivência social, é preciso negociar os amigos e, principalmente,
ressignificar o corpo. Este, conforme apontamos na análise, é a arena na qual se dão as lutas e
também o palco onde se apresentam, se exibem as inscrições discursivas que o adornam e que
representam o feminino.

Referências

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2008. 104 f. Dissertação (Mestrado em Letras)- UFRN/CCHLA, Natal, 2008.

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Revista Sentidos: poder e subjetivação na genealogia do corpo com deficiência. 2013. 288 f.
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NÓBREGA FILHO, E. R. G. Sujeitos queer em cartaz: uma análise discursiva do corpo em
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GT1- PRÁTICAS DISCURSIVAS E MODOS DE SUBJETIVAÇÃO

LEITURA DE SLOGANS POLÍTICOS: DISCURSO E CONSTRUÇÃO DE


SENTIDOS

Maria das Graças de Oliveira Pereira


Robson Henrique Antunes de Oliveira
Universidade Estadual do Rio Grande do Norte- UERN

Considerações Iniciais

O discurso, em suas distintas formas, se caracteriza por diferentes diálogos (orais e escritos),
que tem como objetivo apresentar argumentos convincentes ao público por meio de palavras, atitudes
ou imagens. Um exemplo comum de discurso é o “Discurso Político”, que há muito tempo vem sendo
objeto de estudo e investigação da área língua e linguagem.
O discurso político é caracterizado como um texto persuasivo, que em meios aos argumentos
apresentados e estratégias linguísticas de poder, procura convencer os diferentes públicos em meio
social. Este discurso é frequentemente propagado pelas diversas mídias como forma de representação
simbólica da figura dos políticos.
Como por exemplo de recurso mediático, explicitaremos os slogans político, como já falamos
acima, tem como objetivo convencer e, além disso, camuflar uma verdade vivenciada pelos então
candidatos a cargos eleitorais. Por isso, Ducrot (s/d, apud, Araújo, s/d) não entendi essa citação diz
“que todo discurso é atravessado por várias vozes, tendo como objetivo central o desvelamento do
equívoco da tese de unicidade do sujeito falante”.
Neste trabalho, procuraremos fazer um estudo acerca do discurso midiático, tendo como base
teórica os trabalhos de Citelli (2007) e Baronas (2000). Por isso, procuramos discutir algumas idéias
básicas do discurso, em seguida, refletir e verificar como se configura o discurso nos slogans políticos.
Para isto, para nosso corpus de análise, selecionamos dois slogans políticos, o primeiro sendo do atual
Deputado Federal do Brasil, Tiririca, que tem como proposta - “Vote Tiririca, pior que tá não fica!”. O
segundo, do atual Presidente da República dos Estados Unidos, Obama, que tem como dialogo - “Não
vote em branco”.

Um olhar sob a ação do discurso

Partindo da visão de Bakhtin (2003, 2005), que vê a linguagem como um processo ou


142

fenômeno funcional e social, é necessário considerar as práticas discursivas do sujeito em seus


aspectos históricos e ideológicos para objetivar desvendar valores simbólicos da realidade. O texto,
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sendo trabalhado de forma oposta a visão bakhtiniana, estaria desvinculando o objetivo de estudo
linguístico das funções comunicativas da linguagem:

a língua como sistema estável de formas normativamente idênticas é apenas


uma abstração científica que só pode servir a certos fins teóricos e práticos
particulares. Essa abstração não dá conta de maneira adequada da realidade
concreta da língua; a língua constitui um processo de evolução ininterrupto
que se realiza através da interação verbal social [...] As leis da evolução
lingüística são essencialmente leis sociológicas [...] dos conteúdos e valores
ideológicos que a ela se ligam; a estrutura da enunciação é uma estrutura
puramente social (2005, p. 127).

Temos a necessidade de salientar que esse estudo linguístico traz contribuições para as
pesquisas a respeito do texto e discurso, esse processo de significação e exteriorização
funcional da linguagem praticada pelos participantes no ato da comunicação discursiva
acontece de forma complexa e polifônica. Bakhtin (2003), em suas palavras, explicita que
“em cada palavra há vozes, vozes que podem ser infinitamente longínquas, anônimas, quase
despersonalizadas (a voz das matrizes lexicais, dos estilos etc.), inapreensíveis, e vozes
próximas que soam simultaneamente” (BAKHTIN 2003, p. 353). Esse jogo da linguagem é
apresentado eminentemente em meio real, que nas condições de formação dos enunciados
podem gerar sentido que concorda ou discorda nas circunstâncias de produção e função
comunicativa dos sujeitos pelo texto escrito e falado.
Interpretamos que as palavras quando são pronunciadas consiste em representar ações
sobre as intenções, pois ao falar, tentamos por meio do discurso defender um ponto de vista.
Nesse sentido, acreditamos que o discurso está intimamente representada por meio língua e
vice e vessa.
O discurso é produzido tanto na oralidade quanto na escrita, por isso, ocorre ações
dialógica de sujeitos e, nessa ação, entre os sujeitos, faz com que os efeitos e sentidos sejam
construídos. Nesse emprego, o discurso só é discurso quando é direcionado ao(s) sujeito(s).
Por isso, a partir do momento que o discurso é proferido, o EU se faz presente, se colocando
como ponto referencial de ideologia, crítica, poder, crenças, pois o responsável pelo o que se
diz é o próprio enunciador do discurso que carrega intenções.
Maingueneau (2008, p. 55) afirma que:
143

O discurso só adquire sentido no interior de um universo de outros discursos,


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lugar no qual ele deve traçar seu caminho. Para interpretar qualquer
enunciado, é necessário relacioná-lo a muitos outros – outros enunciados que

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são comentados, parodiados, citados etc. cada gênero de discurso tem sua
maneira de tratar a multiplicidade das relações interdiscursivas. [...]

Sob esse ponto de vista, entendemos que a existência do discurso se deve a outros
discursos que foram proferidos anteriormente em momentos diferentes. O que queremos
dizer, é que uma representação discursiva não é necessariamente produzido por um só locutor
mas ele é caracterizados por discursos já existentes. Por isso, acreditamos que deve levar em
consideração que não é o caso de ser um discurso novo, mas sim, que o discurso foi inovado e
modificado no decorrer da historicidade. Nesse intento, o sentido das palavras não existe por
si mesmo, mas estão sempre em construção, se modificando e reconfigurando de acordo com
aquilo que se quer dizer em determinados momento do contexto social.
A produção do discurso, mais especificamente do discurso político, são determinados
por um processo bastante criterioso, que são fundamentas pela argumentação da linguagem
verbal e não verbal. A linguagem do discurso político são carregadas de intenções, a fim de
persuadir o público para gerar efeitos e sentidos. Percebemos também, na verdade nem
sempre essas intenções são conscientes, pois para muitos, o que realmente importar é
convencer o interlocutor independente das intenções proferidas no discurso. Isso é típico do
discurso político, que se justifica pelo princípio de obter resultado satisfatório a favor locutor.
Sobre essa perspectiva, que abrange os conceitos do discurso político Coracini (2007, p. 44)
afirma que:

A ‘evidencia empírica’ de que se serve o discurso político (DP) é, pois,


construída com base no senso comum e busca aparentar, por efeitos de
argumentação, próprios a este tipo de discurso, uma real partilha de
interesses e de pontos de vista entre locutor e interlocutor.

Fica claro, desta maneira, que o objetivo do discurso político é persuadir


positivamente o público e provocar uma reação positiva para a aquisição do voto do eleitor,
independente se as intenções e promessas são verídicas. O alvo dos locutores são geralmente
as pessoas de camadas sociais distintas, tanto da classe baixa a mais alta, sempre com o
intuito de convencer através do diálogo positivo sobre as problemáticas sociais que aflige
determinada região do país. Por isso, a produtividade do(s) sentido(s) extraído(s) durante o
144

processo discursivo políticos proferidos nos espaços sociais estão diretamente relacionada ao
jogo de palavras que convencem o público das camadas sociais.
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Neste sentido, entendemos que o discurso é dialógico, que se concretiza por meio da
linguagem; que atravessa por uma historicidade que fundamentam outros discursos; que não
há discurso inédito e acabado, mas que é dialógico e polifônico. Além disso, é carregado de
argumentação, intenção e poder, tendo como objetivo gerar efeitos e sentidos nas diversas
temáticas, nos diversos espaços sociais.

A representação do discurso em slogans políticos

Análise do Discurso e a ciência que estuda diretamente os discursos em meio social.


Segundo a Enciclopédia: Áreas Temáticas (s/d) classificando-o como: que referencia e essa?

O termo discurso pode ser definido, do ponto de vista linguístico, como


um encadeamento de palavras, ou uma sequência de frases segundo
determinadas regras gramaticais e numa determinada ordem de modo a
indicar a outro que lhe pretendemos comunicar/significar alguma coisa. O
termo discurso pode também ser definido do ponto de vista lógico.
Quando pretendemos significar algo a outro é porque temos a intenção de
lhe transmitir um conjunto de informações coerentes - essa coerência é
uma condição essencial para que o discurso seja entendido. São as
mesmas regras gramaticais utilizadas para dar uma estrutura
compreensível ao discurso que simultaneamente funcionam com regras
lógicas para estruturar o pensamento. (Enciclopédia- Áreas Temáticas,
s/d).

Podemos dizer que o discurso se configura e ganha vida diante a linguagem, para além
disso, afirmamos que o discurso se forma no meio diferentes contextos sociais, carregado de
ideologia e poder.
Entendemos também que discursos é heterogêneo, ou seja a construção do sentido do
discurso transcendem a decodificação linear do sistema do signo linguístico. O que queremos
dizer é que é na linguagem e pela linguagem que exteriorizamos e construímos os sentidos em
contexto social. Por isso, o discurso é caracterizado pelo plural, pelo múltiplos olhares, diante
as percepções diferentes, nos diversos espaços sociais.
Fazendo menção aos discursos políticos, podemos afirmar que a argumentação e
persuasão são fundamentais, já que o objetivo maior é justamente a tentativa de convencer
sobre a proposta imposta. Assim como coloca Souza e Santos (2010, p.5): “o Discurso
145

Político é influenciado, modificado, transformado e moldado sempre com vista ao


Página

convencimento, ao estabelecimento da razão e da paixão. Por tudo isso não se vê a ação

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política sem o uso da linguagem, melhor dizendo, sem o emprego da palavra.” Concordamos
os autores e, ainda acrescentamos, de acordo com Bakhtin, que discurso e linguagem não
podem ser vista separadamente, mas ambas dialogam coerentemente nas diversas práticas
sociais.
O discurso comporta várias vezes, Maingueneaus (1997, p. 113) defende a seguinte
ideia:

O interdiscurso consiste em um processo de reconfiguração incessante no


qual uma formação discursiva é levada (...) a incorporar elementos pré-
construídos, produzidos fora dela, com eles provocando sua redefinição e
redirecionamento, suscitando, igualmente, o chamamento de seus próprios
elementos para organizar sua repetição, mas também provocando,
eventualmente, o apagamento, o esquecimento ou mesmo a denegação de
determinados elementos.

Com base nesse pensamento, podemos dizer, que o discurso quando se remete a outro
discurso contribui para o desenvolvimento de um interdiscurso. Ou seja, o interdiscurso são
reproduções de novos discursos, que consequentemente, gera novos sentidos, novas
interpretações, enfim... uma visão de mundo mais abrangente diante a linguagem.
Existem diferentes formas de discursos, para isto, citamos como exemplo o discurso
de slogans políticos, que tem como premissa fundamental a persuasão, utilizadas pelos
políticos, tendo em vista exteriorização das palavras para gerar efeito e sentidos no contexto
social. Por isso, segundo Reboult (1975, apud, Baronas, 2000, p.79-80)

É uma fórmula; apresenta-se como uma frase, uma palavra, um sintagma; o


conteúdo da mensagem é inseparável da sua forma; [...] tende a ser anônimo;
destina-se a fazer agir uma coletividade, uma multidão, uma massa; fazer aderir,
prender a atenção, [...] sua função principal é justificar; serve à publicidade, à
propaganda e sobretudo à ideologia [...] o atalho é essencial; age, assim tanto
pelo que não diz quanto pelo que diz; pode ser verdadeiro ou falso [...].

Assim, os slogans desempenham a capacidade de convencer o público a proposta


política, construindo sentido, de forma positiva, frente as configurações da linguagem verbal e
não verbal. Nesse sentido, Segundo Lopes (2002, p.13) os slogans políticos se referem a:
146

[...] um grito de guerra. É esse mesmo seu significado originário: derivado


do gaélico, sluagh-ghairm, expressando “o grito de guerra de um clã”. Dessa
Página

origem podemos derivar a idéia de que a força de um slogan esta ligada a

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sua repetição, que cristaliza o seu significado, que passa a circular de forma
crítica e dogmática.

Encontramos em slogans o dito e o não dito, já que, por meio da linguagem falada ou
silenciada, é possível analisar os elemento que compõe o(s) sentido(s) produzido(s), por isso
Breton (1999, s/d) afirma que: “somos os únicos seres do universo que utilizam a
comunicação para convencer, e os únicos também capazes de mentir, fazendo crer com
palavras o que os atos não confirmam.”

Análise de slogans políticos

Como já foi enfatizado anteriormente, os slogans são ferramentas de persuasão


políticas, que são constantemente influenciados pela mídia, onde geralmente expressa um
objetivo de convencer o público em meio social. Nesse contexto iremos analisar dois slogans
que foram usados por candidatos diferentes, analisamos o (não)dito e seus efeitos e sentidos
de cada enunciado.

O primeiro slogan a ser analisado foi utilizado por Francisco Everaldo Oliveira Silva,
conhecido artisticamente como Tiririca, candidato a Deputado Federal do Estado de São
Paulo, por meio do Partido da República, na eleição de 2010. Além desse slogan, Tiririca
utilizou outro enunciado, dizendo: “O que é que faz um deputado federal, na realidade, eu não
sei. Mas vote em mim que eu te conto”. Esse último, não será analisado neste trabalho, para
147

gerou polêmica, que o levou ao Ministério Público Eleitoral, sob o fundamento de que estaria
afrontando o Congresso Nacional e o poder público em geral.
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O slogan usado como corpus de nossa análise: “Vote Tiririca, pior que tá não fica!”
recupera outras memórias discursivas, que critica ferozmente sobre as questão do passado
próximo da política da história do Brasil, para assim, descobrir que o próprio candidato, e
suas características que remete a um palhaço, não é diferente dos outros políticos que estão
atuando no governo.
Analisando as palavras ditas no discurso, é possível percebermos uma crítica, que este
proporcionará um continuísmo no governo brasileiro, pois, no de sua gestão não ocorrerá
mudanças, já que é posto que, “pior que tá não fica”. Ou seja, o Brasil, diante à Câmera dos
Deputados Federais do Brasil, vai seguir sendo do mesmo jeito, sem muitas diferenças, sem
perspectiva, sem novos horizontes.
De acordo com Fernandes (2005, p. 22) devemos compreender que: Analisar o
discurso implica interpretar os sujeitos falando, tendo a produção de sentidos como parte
integrante de suas atividades sociais. A ideologia materializa-se no discurso que, por sua vez,
é materializado pela linguagem em forma de texto.
Essa análise do sujeito é de extrema importância, pois pode relacionar as questões de
poder, da crítica em si e das questões ideológicas, que retratam um palhaço atuando diante a
política brasileira, mesmo que seja de forma ofensiva. Ou seja, essas questões, o não dito,
ajudar a construir o(s) sentido(s) para melhor compreender o que está dito no discurso.
É por isso que o slogan estudado proporciona uma relação de polêmica, colocando o
candidato no mesmo nível de caráter dos demais políticos que se encontram no poder.
Assim, ao analisar o enunciado, é possível perceber com clareza que o mesmo faz uma
crítica a política nacional, pois os políticos atuais, em maior parte, são sempre vistos como
corruptos pela maioria da população brasileira. Dessa forma, o slogan de Tiririca e sua vitória
na eleição, representa uma que crítica a ao contexto bizarro da política brasileira.
148
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O segundo slogan exposto acima: “Não vote em branco” foi utilizado pelo atual
presidente dos Estados Unidos Barack Hussein Obama, nas eleições de 2008 para a Casa
Branca, pelo Partido Democrata.
Em termos discursivos esse slogan possui um efeito pré-construído, fazendo emergir
no enunciado de duplo sentido, remetendo ao voto em branco, como também, a não votar em
pessoas brancas. Essa discurso, traz memórias discursivas sobre questões ideológicas sobre a
cultura negra na esfera social dos Estados Unidos da América - EUA.
O enunciado produz outro sentido, além de pedirem aos seus interlocutores para não
deixarem de votar em um dos candidatos propostos, como também para votar em um
candidato cuja a pele é afro descendente, já que todos os presidentes anteriores dos EUA
foram de cor branca, como por exemplo seu adversário nas eleições.
Segundo Fernandes (2005 p. 22-23):

Quando nos referimos à produção de sentidos, dizemos que no discurso os


sentidos das palavras não são fixos, não são imanentes, conforme,
geralmente, atestam os dicionários. Os sentidos são produzidos face aos
lugares ocupados pelos sujeitos em interlocução. Assim, uma mesma palavra
pode ter diferentes sentidos em conformidade com o lugar socioideológico
daqueles que a empregam [...].

Cada indivíduo possui a capacidade de construir novos sentidos a uma simples


palavra, já que os discursos não são fixos, porém eles necessitam estabelecer a relação com a
linguagem para que se transmita efeitos e sentido coerentes ao seu destinatário.
O discurso em debate faz emergir a história de passado da presidência dos Estados
Unidos, sendo comparado muitas vezes ao ex-presidente, John Kennedy, em suas intenções
de animar os eleitores e oferecer uma nova aliança.
Portanto, é notório percebermos que o slogan critica o adversário no período das
eleições e, ao mesmo tempo, convencer os negros do EUA a apoiarem ele, já que, compartilha
da mesma raça, cultura e história dos afro descendentes daquela esfera social. Tudo isso,
tendo como objetivo quebrar as barreiras diante o ideologia e história de uma pessoa negra
não poder assumir a presidência daquele país, já que Obama seria o primeiro presidente negro
149

dos EUA.
Página

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Considerações finais

Este trabalho se propôs a discutir os conceitos essenciais que perpassam o discurso em


seus diferentes aspectos, mais especificamente os discursos em slogans políticos. Dentre as
condições de produções do discurso político em slogans convém ressaltar que o plano de sua
compreensão está baseada na idealização de uma situação de enunciação já existente, e que
não significa recuperar a situação original, mas trabalhar a mesma perspectiva com idéias
inovadoras.
O resultado completo deste trabalho adquirimos através de dois distintos slogans
políticos, um de Tiririca (Vote Tiririca, pior que tá não fica!) e outro de Obama (Não vote em
branco) que foram materiais visíveis de base de operações que se realizam nos sujeitos
enunciadores responsáveis pela produção de sentido, tanto em nível de expressão, quanto ao
nível de compreensão. Inseridos no contexto histórico, atravessado de intenções e objetivos
pertencentes a sua condição de produção, nas quais estes slogans buscaram incessantemente
produzir sentido.
Assim, acreditamos que este trabalho contribuirá de forma significativa nos estudos
enunciativos voltados para a interpretação de slogans políticos. Tal proposta poderá estimular
uma ampla reflexão sobre os processos que envolvem o discurso proporcionados através das
imagens inseridas nos slogans apresentados no decorrer do trabalho como também no seu
próprio enunciado em si, já que estão sempre interligados um com o outro, para produzir
sentido, facilitando a sua compreensão.

Referências

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GT1- PRÁTICAS DISCURSIVAS E MODOS DE SUBJETIVAÇÃO

DAS HISTÓRIAS DA MAMÃE GANSA ÀS REATUALIZAÇÕES FÍLMICAS: A


CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO MULHER PELO REFLEXO DAS PRINCESAS E
BRUXAS

Maria Verônica Anacleto Pontes (UFPB)

Introdução

Desde os tempos mais remotos, em todas as sociedades, as histórias de ficção povoam o


imaginário humano, constituindo-se como uma das mais prazerosas formas de distração. Os
contos de fadas, que têm a magia como o aspecto mais explorado, fazem parte dessas histórias
de forma quase universal, constituindo-se em narrativas inicialmente orais, passadas de
geração em geração, que posteriormente foram compiladas por pesquisadores/pesquisadoras e
escritores/escritoras. Diversas versões do mesmo conto de fadas podem ser encontradas,
conforme as condições de produção a que estão imersas. Assim, apesar de sua aparência
ingênua, pueril, os contos de fadas, por vezes se tornam fortes ferramentas de reprodução de
estereótipos, caracterizando-se por movimentos de retorno, pois é possível contar e recontar
as histórias situando-as no mesmo espaço do dizer ou recriando-as. Considera-se que essas
narrativas apresentam diversos lugares ocupados pelo sujeito mulher (mães, madrastas, filhas
e esposas) que nos permitem enxergar regularidades no que concerne ao papel ideológico
representado por essas personagens mulheres e as relações de poder que perpassam sua
construção na narrativa.
Acredita-se assim na possibilidade de desvelar vontades de verdade presentes nesse tipo
de literatura, a partir da realização da leitura numa perspectiva discursiva, proposta norteadora
deste trabalho, que toma como corpus o contos de fadas A bela adormecida e sua releitura, o
texto fílmico Malévola, para vontades de verdade que corroboram para a constituição do
sujeito mulher.
Pretende-se focar as personagens femininas, representadas pelas princesas e bruxas, as
quais evidenciam estereótipos que se manifestam como uma vontade de verdade,
apresentando o objetivo de investigar vontades de verdade que constituem o sujeito feminino
152

no conto de fadas A bela adormecida, considerando as diferentes identidades assumidas pelo


sujeito mulher, através das personagens princesa e bruxa, a partir dos interdiscursos que
Página

constituem a releitura fílmica do conto selecionado.

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1. Discussão teórica

1.1 Sujeito e identidade

Na Análise do Discurso, a subjetividade também é vista da exterioridade, é uma


construção histórica sob determinadas condições, e se dá na relação com o discurso. Discorrer
sobre a subjetividade, assim como sobre o sujeito e a identidade, não significa entrar na
interioridade do sujeito, requer apreendê-lo pela exterioridade. Não se trata de uma relação do
sujeito consigo mesmo da ótica da interioridade, pois ele se constitui sob determinadas
condições de produção, é construído na relação da exterioridade.
De acordo com Fernandes (2008), as transformações sofridas nas condições sociais
manifestam-se nas produções discursivas, sempre marcadas pelo entrecruzamento de
discursos e acontecimentos anteriores. Acentua-se, dessa maneira, a fragmentação do sujeito,
a heterogeneidade constitutiva do discurso. O sujeito discursivo é plural, ou seja, é
atravessado por uma pluralidade de vozes e, por isso, inscreve-se em diferentes formações
discursivas e ideológicas.
Com esses apontamentos sobre a constituição do sujeito discursivo na/pela interação
social marcada por contrastes próprios às inscrições ideológicas que se opõem, e aos
diferentes discursos coexistentes, reitera-se, conforme Fernandes (2008) que a polifonia é um
aspecto constitutivo dos diferentes discursos e os sujeitos sofrem (trans)formações no cenário
histórico-social que lhes possibilitam, pela dispersão dos sentidos, constituírem-se
discursivamente. A identidade, assim como o sujeito, não é fixa, está sempre em produção,
encontra-se em um processo ininterrupto de construção e é caracterizada por mutações.
Para a Análise do Discurso, dada a natureza heterogênea de seus objetos de estudo, o
discurso, o sujeito e a identidade devem ser observados a partir de ocorrências linguístico-
discursivas, uma vez que os enunciados apontam para posições-sujeito. É no social que se
definem as posições-sujeito, não fixas, marcadas por mutabilidade, e a análise de discursos
deve fazer aparecer esses elementos e explicitar suas formações e transformações históricas.
Não se trata, seguramente, de pontos fixos característicos dos sujeitos, trata-se de movências,
de deslocamentos e transformações constantes na constituição dos sujeitos.
153

As discussões arroladas em torno das noções de discurso, sujeito e regimes de verdade


levam a refletir sobre transformações sociais historicamente marcadas. Para isso serão
Página

abordados no item seguinte as noções de interdiscurso e memória.

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1.2 Interdiscurso e memória: a ordem do repetível

Em AD, a leitura e, por conseguinte, a interpretação constituem-se como práticas


sociais que mobilizam a memória do dizer (o interdiscurso). A noção de “memória
discursiva”, introduzida na teoria da AD por Courtine, é entendida no sentido de que toda a
produção discursiva acontece numa conjuntura dada e coloca em movimento formulações
anteriores já enunciadas. Courtine encontra em Foucault (1972) a sustentação para a noção de
“memória discursiva”. Segundo Foucault (op. cit.),

a configuração de um campo enunciativo comporta também formas de


coexistência. Estas delineiam inicialmente um campo de presença (... todos
os enunciados já formulados alhures e que são retomados em um discurso a
título de verdade admitida, de descrição exata, de raciocínio fundado ou de
pressuposto necessário; [...] também os que são criticados, discutidos e
julgados, e os que são rejeitados ou excluídos); [...]. Finalmente, o campo
enunciativo comporta o que se poderia chamar domínio de memória (trata-se
dos enunciados que não são mais nem admitidos nem discutidos, que não
definem mais, em consequência, nem um corpo de verdades nem um de
validade, mas em relação aos quais se estabelecem laços de filiação, gênese,
transformação, continuidade e descontinuidade histórica) (op. cit., p. 72-73).

Pêcheux (1999), do mesmo modo que Courtine, salienta que a memória que interessa
para a AD não é a “memória individual”, mas aquela que entrecruza os sentidos da memória
mística, da memória social, inscrita em práticas e da memória construída do historiador. A
memória discursiva seria aquilo que, face a um texto que surge como acontecimento a ler,
vem restabelecer os pré-construídos, elementos citados e relatados, os discursos transversos,
etc. de que sua leitura necessita: “a condição do legível em relação ao próprio legível”.
Segundo ele,

uma memória não poderia ser concebida como uma esfera plena, cujas
bordas seriam transcendentais históricas e cujo conteúdo seria um sentido
homogêneo, acumulado ao modo de um reservatório: é necessariamente um
espaço móvel de divisões, de disjunções, de deslocamentos e de retomadas,
de conflitos de regularização [...].Um espaço de desdobramentos, réplicas,
polêmicas e contra-discursos. Todo o discurso é o índice potencial de uma
agitação nas filiações sócio históricas de identificação, na medida em que ele
se constitui, ao mesmo tempo, como um efeito dessas filiações e um trabalho
154

(mais ou menos consciente, deliberado, construído ou não, mas de todo


modo atravessado pelas determinações inconscientes) de deslocamento no
seu espaço: não há identificação plenamente bem sucedida (PÊCHEUX,
Página

1990, p. 56).

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É no interdiscurso que o sujeito enunciador “busca” os objetos (enunciados) que
incorpora no intradiscurso. Essa característica lacunar do discurso tem a ver com a alteridade
constitutiva do dizer, mas também com o novo vir a ser do discurso – é ela que possibilita
falar em dispersão, deslocamento, deslizamento, reinscrição, ressignificação, reatualização de
saberes. Isso nos leva a entender que os discursos, conforme Courtine e Marandin (1981, p.
28), “se repetem, ou melhor, há repetições que fazem discursos”; ou, ainda, como escreve
Serrani (1993, p. 47), estar-se-ia aí diante de uma paráfrase discursiva, entendida como uma
ressonância interdiscursiva de significação. Segundo essa autora, “as paráfrases ressoam
significativamente na verticalidade do discurso e concretizam-se na horizontalidade da cadeia,
através de diferentes realizações linguísticas”.
Segundo Pêcheux (1997), o interdiscurso é caracterizado como a decisão exercida
pelas formações discursivas sobre as produções textual-discursivas de cada sujeito, sob a
forma de um conjunto de discursos –proferidos em um outro momento histórico –desiguais,
porque veiculam algo diferente, contraditórios, pois são oriundos de lugares distintos, e
subordinados, já que são determinados sistemas culturais heterogêneos.

2 O sujeito mulher e as resistências através da história

As mulheres foram, desde os primórdios, confrontadas com a vontade do outro,


primeiro com a vontade do pai e dos irmãos, depois com a do marido. Segundo Louro (2003),
nessa relação de dissimetria, em que imperava a dependência e a submissão das mulheres aos
homens, instauraram-se práticas que, no limite, visavam a adestrar os gestos das mulheres,
regular seus comportamentos controlando-as, disciplinando-as; elas foram insistentemente
expostas à objetivação operada pelo olhar vigilante, olhar que suspeitava de seu corpo,
sobretudo de sua beleza, aparência, formas, roupas, gestos, maneiras de andar, olhar, falar e
sorrir.
A trajetória de sucesso das conquistas femininas deu-se somente a partir do século
XX, estendendo-se para o século XXI, momento em que os movimentos de luta para a
emancipação das mulheres, como o feminismo, ganham destaque e ela passa a atuar na vida
social de forma mais incisiva.
155

Nesse novo cenário do século XXI, destacam-se as várias ocupações em diferentes


ramos profissionais que as mulheres passam a atuar. A partir desse período, a mulher começa
Página

a ter sua própria renda, com isso a autoestima é renovada e surgem, então, novas

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possibilidades como conquistas no mercado de trabalho, na educação da família, na escolha
em ter uma vida sem que o casamento seja a única opção, enfim, a mulher começa a ser
cidadã.
No decorrer da história e principalmente no atual cenário, percebe-se que a mulher tem
desempenhado, simultaneamente, “vários papéis na sociedade: mãe, esposa, dona-de-casa,
conselheira e, em muitos casos, a provedora do sustento familiar” (LUCENA, 2003, p. 107).
Essa dinâmica multiplicidade de funções tornou-se ainda mais evidente nos dias de hoje, pois
a própria mulher se sente impelida a prestar todas essas atividades quando necessário, o foco
da atividade feminina, portanto, não é mais apenas a família.
Assim, a mulher se vê em meio a uma significativa transformação da sua existência e
isso a faz rever seus conceitos de vida, sua moral, costumes e comportamentos, pois o período
exige dessa mulher uma nova postura diante da realidade, já não é mais cabível pensamentos
fundados no passado.
Essas novas mulheres rompem com os dogmas que as escravizavam e as mantiveram
presas durante séculos. De acordo com Telles (2007), a mulher moderna travou uma
revolução que vai além das revoluções travadas pelos homens nos diversos momentos
históricos, ela travou uma batalha secreta, silenciosa, e, aos poucos, vai conquistando espaço
cativo no mundo em todos os âmbitos sociais.

2.1 O sujeito mulher no conto A bela adormecida

Os contos de fadas, quando escritos por autores como os irmãos Grimm, eram cheios
de moral e exemplos de comportamentos corretos, “as moças sempre pacientes, belas e doces,
e todos os maus comportamentos eram castigados” (MASSUIA e RIBEIRO, 2012, p. 01).
Essa idealização da mulher está relacionada, além de outros fatores, à ideia de amor cortês e a
separação de papéis sociais entre homem e mulher.
As atitudes demonstradas pelas princesas quase sempre se voltam para os desejos
amplamente reprimidos por muitos anos de dominação masculina. Para Bourdieu (1998), as
mulheres, de uma maneira geral, absorvem passivamente a “ordem masculina do mundo”, sob
o julgo de seus próprios dominadores.
156

É nesse viés que a identidade da personagem princesa é construída no conto A Bela


adormecida. A forma com que a princesa é colocada na narrativa fixa uma identidade do
Página

feminino desejada e perseguida por todas as demais mulheres que entendem que ser mulher é

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ser sempre jovem e consequentemente bonita. No conto A bela adormecida, dos irmãos
Grimm, essas características, somadas ao fato de ser boa e ajuizada, a fazem merecedora do
afeto de todos: “Quanto à menina, todos os desejos proferidos pelas feiticeiras se realizaram,
pois era tão bonita, bondosa, encantadora e ajuizada que não havia um que nela pusesse
os olhos e não passasse a amá-la” (p. 103).
A princesa assume, portanto, uma posição de sedutora a partir de tais características. É
a mulher que seduz com sua personalidade frágil e domina seu parceiro por sua beleza.
Depara-se assim com um discurso que fala de uma “beleza perfeita”, cujos contornos marcam
as exigências sociais, culturais e históricas da noção do ser belo da época em que foi escrito.
Além de ser bonita, dócil e amável, é ingênua e desprotegida dos perigos mundanos. O
desfecho do enredo envolve um casamento e, desta forma, a personagem vive “feliz para
sempre”. A bela adormecida, assim como outros contos de fadas, traduz o estereótipo de
mulher valorizado no século em que foram escritos os contos de fadas. Ela é resignada,
inibidas, submissa, cheia de pudores, bondosa e doce.
Chama-se a atenção, assim, para o poder constitutivo e produtivo do discurso que, ao
recitar um conjunto de padrões, assegura certos efeitos identitários a partir de imagens que
condicionam a aceitação da mulher. Em tais movimentos históricos de cristalização de
imagem da mulher jovem, bela, boa e ajuizada ganham destaque as princesas dos contos de
fadas como padrão normatizador.

2.2 A bruxa na ordem do repetível

Considerando que nos tempos atuais se concebe o sujeito mulher como diligente, dona
do seu próprio destino, as imagens do sujeito bruxa se (re)significam na verdade deste tempo,
e as reatualizações dos contos de fadas denunciam e disseminam essas “novas” verdades
acerca desse sujeito.
As bruxas, diferentemente das princesas, representam nos contos a astúcia, a
subversão, a perseverança, a inveja, a crueldade. As características da princesa do conto A
bela adormecida, a saber, a bondade, a obediência, a doçura, a delicadeza, opõem-se à
mediocridade, à avareza, à estupidez, à falsidade, entre outras características negativas
157

atribuídas a personagem bruxa. Em todas as histórias, parecem estar sempre perseguindo a


boa fortuna à custa da mentira e da trapaça. Nas reatualizações, as bruxas representam a
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mulher que diz: “Não!”, ou seja, desafia os dogmas e regras instituídos pelo patriarcalismo.

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Segundo Clark, “a História da bruxaria é, principalmente, a história da
mulher” (2006, p. 156) que se baseia nas transformações do seu papel
ocorridas ao longo da História. Para o historiador, a associação que é feita
entre as mulheres e as bruxas advém da construção do pensamento
Aristotélico, que considerava a mulher um ser imperfeito.

Para Clark, o fenômeno da bruxaria pode ser explicado por um viés que o enxerga
como crime. Pretendia-se punir as mulheres que não se submetiam ao patriarcalismo, que
incomodavam a sociedade e eram herdeiras de patrimônios (CLARK, 2006). O autor também
coloca que a bruxaria era vista como um artifício e um crime que retratava certo tipo de
regime de verdade. Portanto, essas mulheres viviam afastadas, sozinhas e usavam ervas para
curar. Esta maneira de viver as marginalizava, pois não agiam de acordo com o
comportamento da sociedade da época.
As bruxas eram vistas assim como uma ameaça à ordem patriarcal, pois representavam
a resistência, como modelo antifeminino, juntamente com o símbolo de mãe má, como
aparece nos contos de fadas. Não obstante, a bruxa é segregada por sua comunidade,
expressando a representação do mal na sociedade. Esta dicotomia preservava as relações de
poder então estabelecidas para manter a ordem vigente.
O intuito, neste ponto, é trazer à baila algumas ressignificações de sentidos, alguns
efeitos da repetição que permitem, preliminarmente, definir certas mudanças de representação
em relação à identidade da mulher, no filme Malévola (2014), dirigido por Robert Stromberg,
baseado no conto da Bela Adormecida. Conforme foi citado anteriormente, se tomará como
hipotexto o conto clássico da tradição, bem como a animação da Disney, que já consiste numa
reatualização.
Na materialidade fílmica, a reatualização do conto clássico, a história é contada tendo
como protagonista Malévola, a bruxa malvada e antagonista da história tradicional “Bela
adormecida”. O hipotexto desse filme é A Bela Adormecida (no original em inglês: Sleeping
Beauty), animação norte-americana, produzida pela Disney em 1959. O enredo do filme
Malévola, diferentemente do hipotexto, não conta a história da Bela Adormecida, da princesa.
O foco é a própria bruxa e o objetivo do filme é mostrar o porquê das maldades cometidas por
ela nesses hipotextos.
158

Os sentidos são agenciados em um lugar de memória, onde a bruxa é redimida pelo


arrependimento. Esse deslocamento é atravessado por saberes de ordem mítica, religiosa,
Página

cultural, por meio dos quais o estatuto de ser mulher boa, agora, implica o sentimento da

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maternidade: Malévola se redime tendo em vista ao amor materno que começa a sentir pela
menina. Aqui mais uma vez reafirma-se a vontade de verdade de que a maternidade é a
expressão máxima da completude do sujeito mulher, retomando enunciados assentados e
formulados em outro lugar e em outra conjuntura histórico social.
Retomando e recriando o momento do beijo que acordará a princesa, o filme coloca a
bruxa no lugar da salvadora e não mais o príncipe, que fracassa em todas as tentativas. Esse
momento de contemplação à princesa adormecida, desperta em Malévola o desejo de salvar a
menina, ressignificando um dos atos mais famosos de todos os tempos em contos de fadas, o
beijo que acorda a princesa, agora dado pela bruxa redimida.
Sua redenção não poderia vir através de um homem, visto que foi traída por um, mas
por uma menina que a faz relembrar seu lado amoroso, que a faz recordar de um tempo em
que era feliz. É pela compaixão de Aurora que ela é redimida e o mal é, então, ressignificado.
Assim Malévola consegue resgatar suas asas e rei Stephan encontra a morte como destino.
Nos novos discursos que irrompem no filme, ecoam as vontades de verdade da época
em que foi produzido, a partir de novas condições de produção. Nas ressonâncias e
reverberações dos enunciados repetidos e acomodados como memória sobre o sujeito mulher,
é possível, com o olhar voltado para os procedimentos interdiscursivos de montagem dos
discursos, depreender o lugar do sujeito-mulher inscrito na mídia cinematográfica, pensado e
definido nas relações de poder-saber que presidem os novos processos de subjetivação.
Outra vontade de verdade que irrompe na releitura fílmica do conto da Bela
Adormecida é a ressignificação do amor romântico. No momento em que Aurora conhece o
príncipe Felipe, vê-se o diálogo entre o corvo e Malévola, no qual esta põe em xeque a
existência do amor verdadeiro:

SD 1)
“Diaval: Aquele rapaz é a solução.
Malevola: Não, Diaval.
Diaval: Sim! O beijo do amor verdadeiro pode quebrar o feitiço, lembra?
Malevola: Beijo de amor verdadeiro? Ainda não entendeu? Eu fiz isso
porque não existe amor verdadeiro.”
(Tradução nossa)

Vê-se nessa passagem que o discurso sobre a identidade do ser mulher se reinventa, se
159

molda às novas condições de produção. Se antes para ser mulher era necessário encontrar um
Página

homem e casar-se, agora vê-se a construção de um discurso da mulher que não precisa do

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homem para ser completa. O amor romântico é expresso como algo negativo e do qual as
mulheres devem se libertar. Esse discurso é assim atravessado pela memória do dizer que
irrompe no cruzamento de discursos literários de conto de fadas, sob outra formulação – um
discurso que, segundo Pêcheux (1997, p. 156), provém do interdiscurso e, em regra,
“aparece” de forma não explícita – “um elemento irrompe no enunciado do sujeito enunciador
do discurso como se tivesse sido pensado antes, em outro lugar, independentemente”. E esse
entrecruzamento de discursos vai determinar a elaboração de novos sentidos, que deslizam,
que se ressignificam.
Outro conceito que é ressignificado é o da maldade, uma vez que encontra-se diluído
no decorrer da história, e não mais de forma marcada como na animação. Em uma cena em
que Aurora criança se aproxima de Malévola, esta a afasta: “Vá embora, eu não gosto de
criança”, indo de encontro ao discurso Cristão “Deixai vir até mim as criancinhas, pois é
delas o reino dos céus” (Mateus 19:13-15), o que reafirma o lugar da bruxa como o mal.
Além disso, esse discurso vai de encontro à ideia historicamente construída de que a mulher é
mãe por natureza, e portanto, gosta de crianças. Malévola então nega, nesse momento, como
sujeito mulher esse estereótipo, historicamente construído para as mulheres.
É por esse viés que é construída a personagem Malévola, forte, astuta, guerreira,
lutadora, e ao mesmo tempo que age com a doçura de uma mãe. Assim, verifica-se que ainda
permanecem no filme estereótipos acerca da mulher que preservam seu lugar de protetora,
cuidadora, maternal.
Diferentemente do hipotexto, em que a mulher estava na condição de sujeito desigual
e oposto, enraizada em aspectos biológicos, dependente do sujeito homem, a quem devia
respeito e obediência, a visão na materialidade fílmica é de sujeito emancipado, independente
e dono de seus desejos, concepção que nos leva a um desfecho antes impensável: Aurora é
uma princesa que não precisa, necessariamente, de um príncipe.

Considerações finais

Mudam-se as condições de produção, mudam-se, portanto, os discursos. O conjunto de


saberes e de práticas que permitiam falar de mulheres obedientes, submissas, dóceis, nas
160

primeiras versões dos contos analisados, foram pouco a pouco substituídos por outros
imperativos na releitura fílmica.
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Nessa perspectiva, pode-se encontrar no conto de fadas imagens do sujeito mulher
constituídas socialmente que exaltam certas singularidades desse sujeito sedimentadas no
imaginário social da época em que foi escrito. Já na releitura fílmica do conto, não foram
apenas assimilados o enredo e os personagens no processo de recriação, mas de certa forma,
foram renegados jogos de verdade que envolviam o sujeito mulher, distanciando-se de
aspectos como fragilidade, submissão, obediência e, por vezes, padrões de beleza, e recriando
personagens femininas de vigorosas personalidades e alto senso de liberdade.

Referências

COURTINE, Jean Jacques; MARANDIN, Jean Marie. Quel objet pour l’analyse de discours?
In: Matérialités discursives: Actes du Colloque, avril, 1980, Paris X. Nanterre Lille: Presses
universitaires de Lille, 1981.

CLARK, Stuart. A ideia de bruxaria no princípio da Europa Moderna. São Paulo: Edusp,
2006.

FERNANDES, Cleudemar Alves. Análise do Discurso: Reflexões Introdutórias (Edição


revista e atualizada). 2. ed. São Carlos: Claraluz, 2008.

FOUCAULT, Michel. Arqueologia do saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves.


Petrópolis: Vozes, 1972.

GRIMM, I. Contos de Grimm. São Paulo: Paulinas, 1989.

LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-


estruturalista. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 2003.

LUCENA, Maria Inês Ghilardi (org). Representações do feminino. Campinas: Átomo, 2003

MASSUIA, Caroline S. RIBEIRO, Arilda I. M. O papel das mulheres nos contos de


fadas. Disponível em: <http://www.artigosonline.com.br/o-papel-das-mulheres-nos-contos-
de-fadas/>. Acesso em: 24 nov. 2015.

PÊCHEUX, M. O discurso; estrutura ou acontecimento. 2. ed. São Paulo: Pontes, 1997.

TELLES, Lygia Fagundes. Mulher Mulheres. 9. ed. São Paulo: Contexto, 2007.
161
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GT1- PRÁTICAS DISCURSIVAS E MODOS DE SUBJETIVAÇÃO

A RESSIFIGNIFICAÇÃO DA PESSOA NEGRA A PARTIR DE PRÁTICAS DE


LEITURA DE TEXTOS MULTIMODAIS

Meiridiana de Oliveira Queiroz (UERN)


Lúcia de Fátima Araújo dos Santos (UERN)
Francisca Maria Ramos Lopes (UERN)

Introdução

O espaço escolar deve ser um dos principais locais para a formação de opiniões, trocas
de saberes, experiências e apreensão de novos conhecimentos. Uma instituição que forme
cidadãos capazes de construir e reconstruir seus valores, refletindo criticamente ao que
acontece ao seu redor, tendo o respeito ao outro e suas diferenças como base de sua vida.
Desse modo, é necessário compreender os aspectos históricos e sociais que ao longo
dos tempos fez do negro no Brasil um ser excluído e negligenciado pelas autoridades.
Apresentar aos alunos, negros ou não, uma imagem não mais do “negro no tronco”. Porém, de
um ser que rompeu as correntes de ferro e principalmente as correntes do preconceito que o
deixaram invisíveis por centenas de anos.
É deixar claro para os docentes que não se pode negar a importância do povo negro na
construção da nação, ressignificando a sua imagem através da mudança de postura do
professor, na mudança do currículo, no olhar crítico sobre o que o livro didático traz sobre
essa temática. Para que os alunos negros se encorajem de se assumirem como o são, e assim,
tenham o respeito dos demais, fazendo com que seu percurso dentro da escola seja mais
prazeroso, permeado de experiências positivas na sua formação intelectual. Não um lugar
traumático onde chacotas, apelidos e a exclusão se sobreponham e os leve a desistência do
ambiente escolar.
Deve-se perceber a escola como um lugar democrático, onde as diferenças culturais,
de gêneros e de etnias estão por toda parte. Mesmo que silenciadas. Neste último caso,
apresentar e fazer refletir que as diferenças existem e são importantes para a identidade de
cada um. E que o respeito a essas diferenças é de fundamental importância. Pois apresentar
que a pluralidade faz do Brasil um país multicultural e rico culturalmente é indispensável para
162

uma escola cidadã.


Por esse motivo, optou-se pela pesquisa-ação em seu caráter intervencionista. A
Página

escolha desse tipo de pesquisa se deu por acreditar em seu caráter transformador. Neste

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estudo, as práticas do ensino e aprendizagem da leitura e as práticas racistas dentro da escola
serão objetos desta pesquisa. Tendo como objetivo principal, desenvolver práticas de leitura
com foco na posição discursiva dos alunos frente às questões relacionadas ao enfrentamento
do racismo. A partir de oficinas, com o intuito de recontar a história da pessoa negra. Lendo,
relendo e se posicionando a partir das diferentes leituras que serão apresentadas aos docentes,
a fim de enfrentar as atitudes racistas nos âmbito escolar e fora dele.

1 Brasil, racismo e a escola

Por acreditar que o racismo acontece de forma velada no país, é que falar das questões
étnico-raciais não é tão fácil como se parece. Por isso a escola pode e deve oportunizar essa
discussão, sendo protagonista na luta contra atitudes racistas. Já que permeia em nossa
sociedade a ideologia, a crença de que nosso país é democrático, onde todos se relacionam
harmonicamente, se respeitam e se aceitam, independente da cor. Ideologia intitulada de falsa
democracia racial. No entanto, é fato percebermos ou ouvirmos falar em atos de
discriminação e racismo em diversos segmentos da sociedade. O interessante é que a maioria
dos brasileiros se reconhece como não racista e preconceituoso, dizendo que esse tipo de
conduta ou pensamento está incutido na cabeça do próprio negro. Desse modo fica difícil ou
até mesmo impossível tratar de um problema que, supostamente, não existe. Munanga (2005,
p. 18) aponta em seus estudos que:

A primeira atitude corajosa que devemos tomar, é a confissão de que nossa


sociedade, a despeito das diferenças como outras sociedades mais racistas,
por exemplo, Estados Unidos e África do Sul, é também racista, ou seja,
despojarmo-nos do medo de sermos preconceituosos.

A partir desse pressuposto, desse reconhecimento e da aceitação de que somos uma


sociedade racista e preconceituosa, e que a visão eurocêntrica, de superioridade branca, ainda
está arraigada no nosso meio, talvez tão forte como dantes. O silenciamento não é forma de
dizer que não há racismo ou preconceito. É pior ainda. É não perceber a existência do outro,
fingir que ele não está ali, e que não faz parte da coletividade. Essa invisibilidade, desrespeito
163

e desvalorização em relação aos afros-descendentes brasileiros, é uma questão histórica e


social.
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No Brasil colônia o negro era o escravo sem alma, sem inteligência, incapaz para as
artes e letras. A cor fazia dele um ser aculturado. Nascido para o trabalho braçal e servil.
Tratado como animal. Essa carga de ideias negativas sobre o negro era importada da Europa e
assimilada pelos estudiosos e elite brasileira da época. Com o fim do período escravocrata e
chegada da República, se fazia necessário repensar e inserir o negro em um Brasil que
precisava se tornar o mais parecido possível com a Europa, no que diz respeito a cor da pele.
O país buscava uma identidade própria e única, mas que não podia ter na pele a cor negra ou
mestiça.
Havia um descrédito e inúmeras interrogações quanto ao futuro do país. Diversos
pensadores brasileiros preocupavam-se em moldar a nação em uma unidade étnica. Mas como
fazê-lo, como transformar tantas diferenças nos costumes, na cultura e principalmente na cor
em um único jeito de ser, ver e viver? Não faltavam teorias e teses sobre o tema. Os
intelectuais da época debatiam e reafirmavam que era necessário o processo de
“embranquecimento” da população. Para que fôssemos vistos como uma nação íntegra, forte,
inteligente, culta e capaz de se desenvolver. Era assim que ia se constituindo o Brasil.
Gerando, consciente ou inconscientemente, o racismo, o preconceito e a discriminalização.
No Brasil contemporâneo essas ideologias ainda permeiam nossa sociedade, que tem
maioria negra. Esses posicionamentos precisam ser revistos, quanto ao trato na diferenciação
de desigualdade do negro perante o branco. É preciso apresentar a verdadeira histórica dos
afrodescendentes. Suas lutas, sua colaboração e influencia na culinária, dança, religiosidade e
costumes para a nossa brasilidade. Desmitificar a imagem do “negro no tronco”, sempre
subserviente, dominado e sem valor se faz necessário. E é principalmente na escola que essa
deve acontecer. Instituição onde as cores se misturam e se relacionam. A Lei Federal nº
10.369/2003, que obriga o ensino da história e da pluralidade ético-racial é uma realidade,
fruto de muitas lutas dos movimentos negros no país. No entanto, a efetivação da referida Lei
ainda não se deu de forma satisfatória. Há falta de conhecimento de professores, grupos
gestores das escolas e das secretarias de educação, conforme Silva (2005, p. 22):

Nesse sentido afirmo que cabe uma formação especifica para o professor de
ensino fundamental, com o objetivo de fundamentá-lo para uma prática
pedagógica com as condições necessárias para identificar e corrigir os
164

estereótipos e a invisibilidade constatadas dos materiais pedagógicos


especificamente nos textos e ilustrações do livro didático.
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Não se pode dar o que não tem. Se o professor não tem conhecimento teórico e não
reconhece o protagonismo da pessoa negra, ele não conseguirá lidar com as questões racistas
existentes em sua sala de aula. E não poderá ser mediador no processo de empoderamento do
aluno negro ali inserido. É preciso um olhar critico em torno desse profissional, e desse
profissional quanto as suas práticas pedagógicas diárias que envolvem o tema em questão, em
relação ao seu planejamento, ao currículo escolar e ao material de apoio, o livro didático, que
para a maioria dos professores é a principal ferramenta utilizada em sala de aula. O Brasil
tornou-se um país único justamente por conta dessa diversidade. Mistura de sangue, de cores,
de valores, de costumes, saberes e fazeres, que o faz particular e reconhecido em todo mundo.
No entanto, essa mesma diversidade deixou, e ainda deixa, milhares de pessoas negras
excluídas. Negligenciando seus direitos e seu lugar na sociedade como um todo. A escola
deve ensinar o respeito mútuo. Ajudando no empoderamento da criança negra. Fazendo-a
compreender que sua cor, seu cabelo e suas características não a fazem inferior, ao contrário,
que sua características são resultados das misturas étnicas ocorridas aqui. Que seus
antepassados foram sempre lutaram por liberdade, respeito e contribuíram ricamente com o
desenvolvimento do Brasil economicamente e principalmente culturalmente.

2 Falando de Leitura

O ensino da Língua Portuguesa, segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais deve


voltar-se para a função social da leitura como requisito básico para que o indivíduo ingresse
no mundo letrado e possa construir seu processo de cidadania. Para Kleiman (2013) a leitura
está intrinsecamente ligada à compreensão. Assim, ler é compreender o mundo que cerca cada
indivíduo. Desvendá-lo, construí-lo e reconstruí-lo a partir de uma visão individual e coletiva
cheio de experiências pessoais. Assim, sob essa perspectiva, nada melhor do que usar a leitura
como estratégia e mediação no enfrentamento ao racismo.
Nesse e em outros aspectos, a leitura passou a ser uma das atividades mais importantes
da contemporaneidade. Existem programas governamentais e de empresas privadas para o
incentivo a leitura. Diz-se da leitura como meio de se apropriar-se da cultura, para conseguir
um bom emprego, para passar nos exames seletivos para concursos.
165

Nesse sentido, a escola passa a ter uma importância crucial no trabalho com a leitura
dentro das salas de aula. No entanto, essa tarefa não tem sido fácil e exitosa. A leitura tem
Página

sido uma das práticas escolares que tem suscitado calorosos debates e intensos estudos por

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todos que fazem a educação. Por se tratar de uma atividade de relevância incontestável na
formação do indivíduo. Dentre as preocupações docentes para com o hábito de ler, encontra-
se em destaque o modo como a escola trabalha a leitura, afinal é um dos mais importantes
espaços de letramento, e como tal, deveria proporcionar aos alunos meios de “comprar” a
leitura como hábito prazeroso e indispensável ao seu total crescimento, visando um caráter
humanizador e transformador. A leitura vai além da decodificação de palavras. Ler nos torna
mais conhecedores de culturas diversas, mais cidadãos, mais críticos, enfim, ler é descobrir e
adentrar em diferentes mundos.
Segundo Cagliari (2008, p. 148): “A leitura é a extensão da escola na vida das pessoas.
A maioria do que se deve aprender na vida terá de ser conseguido através da leitura fora da
escola. A leitura é uma herança maior do que qualquer diploma”.
A maioria dos docentes por não possuírem formação de práticas de leitura, focando a
interação entre os envolvidos no processo trabalham essa atividade de modo mecânico,
preocupados com a decodificação da escrita, utilizando recortes de textos, sem considerar os
diversos usos sociais da leitura. Como aponta Antunes (2003) o trabalho com leitura se torna
uma atividade sem função, voltada para momentos de exercícios, avaliações e interpretações
superficiais sem despertar o interesse dos alunos.
Kleiman (2013) tece considerações acerca da concepção escolar de leitura e destaca
uma afirmação lamentosa que reina entre os professores que é a máxima de que nossos alunos
não gostam de ler. A autora elenca alguns fatores, dentre eles a necessidade do professor ter
paixão pela leitura e conhecimento na área específica, porque no momento de leitura, no
espaço de letramento literário é justamente ele que será a ponte entre aluno, texto e autor.

3 Oficina: a leitura e o discurso

Na antiguidade, os desenhos e símbolos serviam como modo de registro e


comunicação. A arte rupestre marcaram os modos de pensar e criar dos seres humanos dando
inicio a uma forma inicial de linguagem. A leitura dos textos não verbais possibilita que o
aluno se posicione e faça inferências do que ali está retratado a partir de suas vivências e do
meio a qual pertence.
166

Partindo desse pressuposto realizou-se essa oficina com o objetivo de analisar o


discurso dos discentes mapeando seu imaginário social, qual a localização social dada ao
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negro e ao branco, bem como quais estereótipos associados a “raça” negra.

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A oficina iniciou-se sendo apresentadas imagens veiculadas por meio do data show,
das primeiras máquinas digitais. Em seguida, foram distribuídos entre os alunos um texto
sobre a história da fotografia. Foi solicitado que cada aluno fizesse uma leitura silenciosa do
texto. Sublinhando o que mais chamou sua atenção. Após, sugerimos uma leitura
compartilhada onde todos tiveram a oportunidade de ler. Esse momento foi bem interessante,
pois os alunos ficaram bem surpreendidos com as descobertas que fizeram sobre algo que eles
gostam tanto de fazer, e que hoje em dia é tão rápido e fácil, que é fotografar. Depois dos
debates, cada grupo recebeu as fotografias abaixo, para que pudessem trabalhar aspectos
diferenciados de leitura e relacioná-la a possíveis atitudes racistas.

Figura 1 – Pedro Figura 2 - Olívia

Fonte:
<https://www.google.com.br/search?q=mulheres+negras&espv=2&biw=1366&bih=589&tbm=isch&tbo=u&sou
rce=univ&sa=X&ved=0ahUKEwjG6tyN-q3SAhUKmJAKHX71B0kQsAQIIQ#i>. 167
Página

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Figura 3 – Fernando Figura 4 - Marcela

Fonte:<https://www.google.com.br/search?q=homens+brancos&tbm=isch&imgil=vys-
9ivnh3QsTM%253A%253BkoGRSkyVj0XBGM%253Bhttps%>.

Com as fotos em mãos, foi solicitado que cada aluno fizesse uma leitura quanto a
possivel personalidade de cada pessoa, para depois responderem a uma série de perguntas
relacionadas às mesmas. A ideia era de que os alunos colocassem suas impressões e
discutissem no grupo. Para respoderem aos seguintes questionamentos:
1 – qual deles é mais amigo?
2 – mais simpático?
3 – mais inteligente?
4 – mais bonito?
5 – menos inteligente?
6 – mais feio?
7 – mais sujo?
8 – mais honesto?
9 – menos honesto?
10 – quem escolheria para ser cozinheiro?
11 – para ser engenheiro?
12 – para ser médico?
13 – para ser faxineiro?
168

O grupo ainda deveria elencar ou atribuir características negativas e/ou positivas para
Página

cada um. A atividade deixou a sala bem movimentada e barulhenta. Podia-se perceber em

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alguns grupos discussões bem acalouradas. Também era possivel ouvir discurso do tipo:
“coitadinho”, “o pobre”, “tenho pena”. Ao término, cada grupo expòs seus posicionamentos.
Sobre aos questionamentos 1, 2, 3, 4 e 5, Olívia, Marcela e Fernando estiveram
presentes nas respostas dos grupos.
“Fernando é lindo!”
“Marcela e Olívia são bem simpáticas e aparentam ser inteligentes.”

É perceptível que as respostas são baseadas no que a sociedade prega. Os padrões de


beleza exigidos e valorizados. A aparência determina uma empatia entre os alunos e as
imagens apresentadas. Pedro não aparece em nenhuma das respostas do grupo até esse
momento. Pedro passa a ser inserido em todas as questões a apartir dos itens 6, 7, 8 e 9.

“Pedro parece ser do sertão e tem cara de pobre.”


“Pedro tem cara de mal.”
“Acho que Pedro não tem um bom trabalho. Ele tem jeito de sujo. Parece que está
suado. Olívia tem cara de inteligente, mas acho que ela não tem um bom emprego.”

Vale ressaltar que Fernando e Marcela não foram citados em nenhum dos grupos nos
itens 6, 7 e 8. Os dois foram citados no ítem 9. Onde um grupo os indicou como menos
honestos. Fica claro que além da cor, a aparência também é fundamental para determinar
adjetivos positivos e negativos às pessoas. É interessante chamar atenção de que a foto de
Pedro é a que menos ressalta as suas vestimentas, mas, foi o que mais recebeu características
negativas. Olívia, que está bem vestida e apresenta um belo sorriso, mesmo assim foi citada
como alguém que possivelmente não teria um bom emprego. Nesta afirmação nota-se um
preconceito velado. Aquele que nem mesmo quem proferiu soube explicar o porquê dessa
desconfiança. Pedro foi rotulado como “cara de mal”. A justifivativa do grupo é de que ele é
muito sério. Fernando também está sério na foto, no entanto esse adjetivo não foi colocado à
ele. Olivia foi citada como alguém que tem cara de honesta, ao lado de Marcela e Fernando.
Porém, em menor número que os dois.
Vale chamar atenção neste ponto para a grande discussão dos movimentos negros,
onde existe uma dualidade: de um lado os que pregam que é necessário uma luta anti-racista
em separado da luta de classe. Por entenderem que no Brasil a “raça” influencia na classe. Já
169

um outro ramo dos movimentos acreditam que em países capitalistas como o nosso, a classe
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que determina as questóes raciais. Florestan Fernandes um grande escritor brasileiro e

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pesquisador dessas questóes, acredita que é necessário o encadeamento das duas vertentes
para que haja uma luta eficaz do movimento negro. Nos discursos dos alunos as duas
vertentes, classe e raça, determinam seus preconceitos. Ratificando o pensamento de Florestan
Fernandes.
Observa-se ainda mais o preconceito e o racismo existente nos discursos proferidos
dos educandos em relação as respostas dadas as perguntas 10, 11, 12, 13 e 14. Onde cada
pessoa da foto foi inseriada em uma profissão.

“Para o trabalho de cozinheira nós damos para a Olívia. Aquelas cozinheiras chiques
da televisão.”
“Para o Pedro a gente vai colocar no lugar de faxineiro. Mas também poderia ser de
cozinheiro.”
“A Olívia deve ser a cozinheira.”
“Achamos que a Marcela tem mais cara de médica. Pode ser também engenheira.”
“O engenheiro deve ser o Fernando tem uma cara de sério. Cara de gente
inteligente.”

Evidencia-se neste grupo de respostas que as profissões que trazem uma importância
social mais elevada foram dadas às pessoas brancas, Marcela e Fernando. Já as profissões de
menor prestígio social dadas aos negros, Olívia e Pedro. Atitudes que corroboram com o
senso comum. E mesmo de forma ímplicita deixa claro o racismo presente nos alunos.
questionados porque Marcela não poderia ser a cozinheira, as respostas é de que ela não teria
cara de cozinheira. Perguntei se ali não teria atitude racista e preconceituosa. Segundo alguns
não. Outros ficaram refletindo
Em todas as repostas e escolhas que foram feitas nessa atividade, ficou nítido a carga
de preconceito nos discursos dos educandos. É uma transmissão do que a sociedade brasileira,
de uma maneira geral, pensa sobre o lugar do negro e do branco na sociedade. Esse
pensamento racista é silenciado, amenizado ou justificado através de palavras que tentam
camuflar essa atitude, como na resposta de um dos grupos sobre ser “uma cozinheira chique”
ou que a outra “tem cara de médica”. Esses discursos permeiam a nossa sociedade. Fazendo
170

com que a cor associado a uma classe menos favorecida sejam determinantes para o
posicionamento social das pessoas.
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Considerações finais

Para traçarmos essas considerações, recorremos ao pensamento de Ramos-Lopes


(2010) onde afirma que os preconceitos trazem sentidos cristalizados por meio de estereótipos
cristalizados verbalmente ou imaginariamente.
É na perspectiva exposta que acreditamos que esse estudo é relevante. Posto que o
preconceito seja algo que permeia nossa sociedade. Posto que possa causar, através de ações
preconceituosas, morte social, intelectual, profissional entre outras. Principalmente entre
crianças e adolescentes que ainda estão em fase de desenvolvimento.
É necessário que a sociedade entenda que todos têm o direito de existir,
independente da classe social, gênero ou etnia. O respeito ao outro deve ser incentivado. É
nesse momento em que a escola entra como protagonista do processo. Levar informações e
debates sobre esse tema é de total relevância. O professor deve selecionar textos interessantes
e oficinas de leitura criativas referente a preconceito/discriminação, levando o aluno a
observar e fazer análise crítica do material lido e discutido. Assim como uma reflexão sobre
sua postura frente à temática.
O tema preconceito/racismo deve fazer parte do planejamento do professor.
Enxergar e fazer enxergar a beleza nas diferenças é papel de todos, e deve ser prioridade de
toda a comunidade escolar.

Referências

ANTUNES, Irandé. Aula de português: encontro & interação. São Paulo: Parábola Editorial,
2003.

BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

BRASIL. Lei n. 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de


1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo
oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”,
e dá outras providências. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/L10.639.htm>. Acesso em: 02 set. 2017.

CAGLIARI, L. C. Alfabetização & Lingüística. 10. ed. São Paulo: Scipione, 2008.
171

KLEIMAN, Ângela. Oficina de leitura: teoria e prática. 15. ed. Campinas: Pontes, 2013.
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LAJOLO, Marisa. Do mundo da leitura para a leitura do mundo. São Paulo: Ática, 1993.

ISBN: 978-85-7621-221-8
MOITA LOPES, L. P (Org.). Por uma linguística aplicada indisciplinar. São Paulo.:
Parábola Editorial, 2006.

MUNANGA, Kabengele (Org.). Superando o Racismo na Escola. Brasília: Ministério da


Educação - Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2005.

RAMOS-LOPES, Francisca Maria de Souza. A constituição discursiva de identidades


étnico-raciais de docentes negros/as: silenciamentos, batalhas travadas e histórias (re)
significadas. Tese de Doutorado (Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem).
Departamento de Letras, Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Natal, 2010. 321p.
Disponível em:
<https://repositorio.ufrn.br/jspui/bitstream/123456789/15145/1/FranciscaMSRL_TESE.pdf>.
Acesso em: 30 ago. 2017.

THIOLLENT, M. Metodologia da pesquisa-ação. São Paulo: Cortez, 2008.

172
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GT1- PRÁTICAS DISCURSIVAS E MODOS DE SUBJETIVAÇÃO

A REPRESENTAÇÃO MIDIÁTICA DOS CABELOS FEMININOS NA


CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO: UMA ANÁLISE DISCURSIVA DE
PROPAGANDAS DA LOLA COSMETICS

Polianny Ágne de Freitas Negócio (UERN)


Lúcia Helena Medeiros (UERN)
Introdução

Ao longo da história, as mulheres viveram em torno de padrões preestabelecidos pela


sociedade, os quais sempre ditaram como deveriam se comportar, se vestir e até mesmo como
arrumar os cabelos para serem mulheres adequadas ao ambiente privado e/ou público. As
propagandas de cosméticos foram, e ainda são, as principais veiculadoras desses padrões,
ajudando a construir e desconstruir muitos estereótipos, de acordo com seus interesses. Nesse
sentido, este trabalho surge da curiosidade de entender e fazer um resgate histórico de como
os padrões de beleza, com foco nos cabelos, se construíram com o passar do tempo e se
desconstruíram com a mídia moderna. Assim, questionamos: “Como se dá a constituição do
sujeito feminino na mídia, por meio das propagandas da Lola Cosmetics?”, “De que forma a
mídia exerce o poder de padronizar os corpos das mulheres?”, “Como se dá a
disciplinarização dos cabelos femininos?”.
De forma qualitativa, será feita uma análise de dados, buscando, portanto,
compreender e interpretar o corpus selecionado e relacioná-lo com os conceitos da Análise do
Discurso. A pesquisa qualitativa, de acordo com Gerhardt e Silveira (2009, p.31),

não se preocupa com representatividade numérica, mas, sim, com o


aprofundamento da compreensão de um grupo social, de uma organização,
etc. Os pesquisadores que adotam a abordagem qualitativa opõem-se ao
pressuposto que defende um modelo único de pesquisa para todas as
ciências, já que as ciências sociais têm sua especificidade, o que pressupõe
uma metodologia própria.

Dessa forma, primeiramente, foi criado um arquivo contendo diversas propagandas da


Lola Cosmetics, que foram coletadas por meio das mídias sociais, como facebook e
instagram, bem como em catálogos dessa marca de cosméticos. Considerando que este
173

trabalho é apenas um recorte da monografia e sua proporção, foram selecionadas, desse


arquivo, um corpus de 3 propagandas, tendo em vista que cada uma delas aborda um tipo
Página

diferente de beleza da mulher, motivo pelo qual são objetos de estudo desta pesquisa.

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1 A Análise do Discurso e as relações de poder

Antes de começarmos a desenvolver os objetivos desta pesquisa, é importante


entender do que se trata a Análise do Discurso e qual das vertentes será abordada aqui. O
campo de estudo da Análise do Discurso está em constante formação, mas pode ser definido
como o campo da linguística que se preocupa em analisar as construções ideológicas e os
sentidos presentes nos discursos.
Devemos considerar que o discurso é um suporte abstrato para vários textos
materializados. Segundo Gregolin (1995, p. 17) “entendemos, portanto, discurso como um
dos patamares do percurso de geração de sentido de um texto, o lugar onde se manifesta o
sujeito da enunciação e onde se pode recuperar as relações entre o texto e o contexto sócio-
histórico que o produziu”.
Quando os diferentes discursos se cruzam com as formações ideológicas, constitui
uma formação discursiva e toda formação discursiva se constitui por diversos discursos, a isto
chamamos interdiscurso. Sobre isso, Cleudemar Fernandes (2007, p. 51) diz que “trata-se de
uma interdiscursividade caracterizada pelo entrelaçamento de diferentes discursos, oriundos
de diferentes momentos na história e de diferentes lugares sociais”.
Ao analisar os discursos, precisamos verificar também os conceitos que envolvem
sujeito e poder. Foucault nos diz que há dois significados para a palavra sujeito: “sujeito a
alguém pelo controle e dependência, e preso à sua própria identidade por uma consciência ou
autoconhecimento. Ambos sugerem uma forma de poder que subjuga e torna sujeito a”
(FOUCAULT, 1995, p. 235). O autor traz, em sua obra, as três principais classificações do
sujeito: do saber, do poder e da ética.
Em todas as circunstâncias, as relações de poder exigem consentimento, portanto só é
possível exercer o poder sobre “sujeitos livres” enquanto “livres”:

entendendo-se por isso sujeitos individuais ou coletivos que têm diante de si


um campo de possibilidade onde diversas condutas, diversas reações e
diversos modos de comportamento podem acontecer. Não há relação de
poder onde as determinações estão saturadas (FOUCAULT, 1995, p. 244).
174

É interessante pensar que nem sempre a servidão ao poder é voluntária, muitas vezes o
sujeito se sente pressionado, coagido e provocado a se submeter ao poder exercido. Foucault
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(1995 p. 244-245) coloca que “mais do que um ‘antagonismo’ essencial, seria melhor falar de
um ‘agonismo’ - de uma relação que é, ao mesmo tempo, de incitação recíproca e de luta”.
Por último, não existe sociedade sem relação de poder, pois a análise, a elaboração e a
retomada dessas relações, segundo o autor, “é uma tarefa política incessante” (1995, p. 246) e
junto às relações de poder, vão estar presentes também as manifestações de resistência.

2 História das mulheres, beleza e cabelos

Desde o nascimento, as mulheres foram menos privilegiadas que os homens, já que


era mais orgulho e lucro para o pai produzir um herdeiro, o que se deve ao fato de ser
atribuído mais valor ao sexo masculino que ao feminino. Em alguns momentos essa distinção
era ainda mais forte, como no casamento, por exemplo, quando era exigido um dote para o pai
da noiva. Segundo Perrot (2016, p. 43) “não é fácil delinear a vida real das meninas. Elas
passam mais tempo dentro de casa, são mais vigiadas que seus irmãos, e quando se agitam
muito são chamadas de ‘endiabradas’”, as meninas são instruídas a serem do lar, comportadas
e domésticas.
As esposas, dependentes e donas de casa, viviam suas vidas em torno de seus maridos,
sempre submissas. Não tinham a liberdade de se expressar, não podiam ser chamativas ou
fugirem do padrão que lhes era imposto, deveriam se contentar com o seu papel doméstico e
sua função social, sentindo-se felizes apenas com isso.
Com os movimentos de emancipação feminina em alta, ocorreram transformações no
modo de pensar e de agir. Agora, não mais divididas apenas em feias e belas, existiam aquelas
que tinham seus desejos assumidos e aquelas que tinham medo de o fazer. Na mídia, as
mulheres foram abordadas sob diferentes formas e identidades.
As rupturas também se deram por meio dos cabelos, já que estes exercem um poder
significativo na construção da identidade feminina. De forma espontânea, a natureza define os
cabelos das mulheres como sendo longos e cheios e, se comparada a outras espécies, a fêmea
humana tem um crescimento excessivo destes, que no processo evolutivo surgiu como um
atrativo visual e, ao longo do tempo, foi alvo de bastante atenção. Sobre isso, Morris (2005, p.
19) diz:
175

os cabelos foram exibidos, escondidos, penteados, cortados, alisados,


Página

ondulados, presos, soltos, coloridos e enfeitados de milhares maneiras

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diferentes. Representaram um pouco de tudo: de glória da feminilidade a
motivos de tabus religiosos. Nenhuma outra parte do corpo passou por tantas
e incríveis mudanças culturais.

Hoje, no século XXI, as mudanças e influências são tantas que é muito difícil
estabelecer um único modelo dominante. No entanto, podemos fazer um resgate histórico dos
padrões que outrora foram estabelecidos, pois, durante bastante tempo, buscou-se usar o
poder disciplinar para controlar esse instrumento de sedução.
Os cabelos, a pilosidade, fazem parte do ser humano e, na mulher, é um elemento
identitário, um símbolo visível de sua feminilidade e também um instrumento de poder. Para
uma mulher, perder seus cabelos é também perder a sua identidade. Perrot (2016, p. 52) diz
que “raspar os cabelos de alguém, homem ou mulher, é tomar possessão dele ou dela: é torná-
lo anônimo” e esse ato de dominação é utilizado para disciplinar e ordenar; a disciplina
carcerária, inclusive, se utiliza desse ato para disciplinar.
Tavares (2015, p. 7) ressalta que:

em alguns países Orientais, ao ficarem viúvas e sem uma família para


ampará-la, as mulheres seguem para abrigos junto aos seus filhos menores e
têm a cabeça raspada. A “tosquia” também reflete um ato de purificação dos
pecados, da dessexualização. Como se dessa forma a mulher se tornasse
assexuada, não pudesse mais conduzir seus desejos e estivesse inapta às
seduções.

Nesses casos, a “tosquia” é utilizada como um sinal de ignomínia, que é a desonra, a


degradação social e a humilhação, o que evidencia, portanto, a importância simbólica dos
cabelos e da falta destes.
Nesse contexto, o véu já era um acessório utilizado, mas surgiu como uma obrigação
religiosa quando, de acordo com Perrot (2016), o apóstolo Paulo declarou que as mulheres
deveriam se cobrir nas assembleias, como um sinal de respeito e submissão, porém, os
homens deveriam se descobrir. Ao usar o véu, era como se a mulher estivesse com a cabeça
raspada e, como foi discutido anteriormente, este era um sinal de dominação. Nesse momento,
lembrava-se que a mulher havia sido criada para o homem e este tinha total autoridade e
propriedade sobre ela. Nos dias de hoje, ainda há culturas que adotam o uso do véu, porém,
176

os debates sobre a obrigatoriedade ou sobre a escolha de usá-lo, geram muitas controvérsias


nos países mediterrâneos e dividem opiniões.
Página

Outros símbolos de disciplina também surgiram. Perrot (2016, p. 58) diz que:

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no século XIX, uma mulher “de respeito” traz a cabeça coberta, uma mulher
de cabelos soltos é uma figura do povo, vulgar; nas feiras, distinguem-se as
burguesas que usam chapéu, que saem às compras, das feirantes que nada
usam para cobrir os cabelos.

Nesse caso, como forma de pudor, em vez do véu, é utilizado o chapéu, que aparecia
de todas as cores, formas e tamanhos. Posteriormente, aliado ao uso do chapéu, a exibição dos
cabelos entra em cena por meio dos penteados, tornando-os objeto de arte e moda. Disciplinar
os cabelos ainda era um conceito muito forte, portanto, a mulher jamais deveria exibi-los
soltos na rua.
Em contrapartida aos cabelos compridos e penteados, a moda dos cabelos curtos entra
em alta e é acelerada pela guerra, pois as mulheres que trabalhavam buscavam mais conforto
e praticidade em suas atividades. Após a guerra, além do novo corte, surgem também as
variantes de alisar, encaracolar e, principalmente, se libertar das modas antigas. Conforme
descreve Perrot (2016, p. 60):

ora são cabelos frisados em “permanentes” produzidos por bigoudis


elétricos: as mulheres ficam com a aparência de carneiros. Ora são cortes
retos que dão às mulheres a aparência de rapazes, principalmente quando
elas usam tailleur, gravata e piteira.

Os novos cabelos são aliados a novas atitudes, como fumar, dirigir, ler jornal em
público, estudar outras matérias e exercer outras profissões, que até então eram permitidas
somente aos homens.
Em meio a essas mudanças, o conceito de que havia um jeito ideal para ser mulher foi
se transformando. A ideia de aceitação da própria beleza passa assim a se propagar e, nessa
nova fase, o discurso midiático se adequa, não mais estabelecendo padrões e estereótipos, mas
sim valorizando os diferentes tipos de beleza e os diferentes tipos de mulher.

3 As mulheres Lola: uma análise dos lolabooks

Ao analisar o Discurso, “suporte abstrato que sustenta vários TEXTOS (concretos) que
177

circulam em uma sociedade” (GREGOLIN, 1995, p. 17), faremos uma análise para verificar o
que se diz e como é dito, para entender os motivos que levam a esses dizeres.
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É relevante para a análise que se compreenda a relação que se estabelece entre o
discurso e a ideologia, visto que a análise irá englobar o campo linguístico e o campo social.
A ideologia é, portanto, a visão de mundo dominante em uma determinada classe e em última
instância pode determinar a linguagem. Quando isso acontece, reconhece-se a formação
ideológica e as condições de produção do discurso.
Em uma mesma sociedade pode haver várias formações ideológicas, que
correspondem a uma formação discursiva, constituída pelos dizeres e pensamentos permitidos
naquela sociedade. Como citado no primeiro capítulo, uma formação discursiva engloba
diversos discursos e quando há o entrelaçamento entre estes, denominamos interdiscurso.
Pêcheux (apud GREGOLIN, 1995, p.18) diz que:

o discurso é um dos aspectos da materialidade ideológica, por isso, ele só


tem sentido para um sujeito quando este o reconhece como pertencente à
determinada formação discursiva. Os valores ideológicos de uma formação
social estão representados no discurso por uma série de formações
imaginárias, que designam o lugar que o destinador e o destinatário se
atribuem mutuamente.

Dessa forma, o discurso só produzirá sentido para o sujeito se estiver aliado ao tempo
e ao momento sócio histórico em que foi produzido, logo, em todas as análises será feita uma
historicização do período para entender os sujeitos e as relações de poder que os envolvem. O
sujeito discursivo traz em si formações discursivas que se relacionam com a linguagem e a
história, perpassados por uma memória discursiva. De acordo com Gregolin (2005, p. 6):

para Courtine, essa noção está subjacente às análises realizadas por Foucault
em A Arqueologia do Saber (1969), isto é, a ideia de que toda formulação
possui, em seu “domínio associado” outras formulações que ela repete,
refuta, transforma, nega, enfim, em relação às quais produzem-se certos
efeitos de memória específicos.

Brandão (apud TAVARES, 2012, p. 39) considera que “é a memória discursiva que
torna possível a toda formação discursiva fazer circular formações anteriores, já circuladas”.
Para entender as referências e os sentidos que compõem um enunciado é necessário que haja
conhecimento sobre o que se fala, pois somente assim será ativada a memória discursiva.
178

Partindo dessas considerações, iniciaremos a análise do primeiro lolabook


selecionado, observe:
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Imagem 1: Fotografia de um dos lolabooks (acervo pessoal)

O lolabook é um caderno adquirido como brinde na compra de produtos da Lola


Cosmetics, como explicado anteriormente. Todos seguem o padrão de conter uma frase
motivacional e uma pin-up moderna, representando uma mulher real. A frase apresentada
nesse objeto é um discurso direto da personagem que diz “Ok, nessa vida nada é perfeito.
Ops, mentira, o meu cabelo é! ”. Logo em uma primeira leitura, é ativada a memória
discursiva do leitor, que lembra do dizer popular de que na vida nada é perfeito, portanto,
devemos nos conformar com as falhas. A personagem, no entanto, contradiz esse discurso,
afirmando que o seu cabelo é perfeito e sem falhas.
É interessante analisarmos a personagem como um sujeito discursivo para
entendermos os motivos que garantem tal segurança, visto que seu cabelo é “normal”, não há
nada de “extraordinário”. Se pensarmos em um “cabelo perfeito”, imediatamente a nossa
memória discursiva é ativada para os comerciais de shampoo e produtos capilares, que trazem
cabelos longos, em sua maioria lisos, sedosos e soltos. Essa mulher não possui essas
características, então, o que a faz considerar seu cabelo perfeito? Qual a representação
midiática que a marca quer fazer dessa pin-up moderna?
Antes de adentrar nessas questões, vamos atentar também para o interdiscurso que há
com o clássico cartaz de propaganda we can do it, produzido durante a Segunda Guerra
Mundial para convocar as mulheres para o trabalho industrial, veja:
179
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Imagem 2: Cartaz de propaganda we can do it (Disponível em:
https://en.wikipedia.org/wiki/We_Can_Do_It!#/media/File:We_Can_Do_It!.jpg Acesso em 21/04/2017)

As duas mulheres, ao mesmo tempo que se assemelham, por meio do lenço vermelho,
olhar determinado e da pose clássica de luta, se diferenciam pelas roupas e tatuagens. A
primeira mulher, moderna, não está vestida como operária e sim de forma casual; suas
tatuagens ilustram seu corpo e complementam sua personalidade de ser livre e exercer o poder
sobre o seu próprio corpo.
A segunda mulher, inspirada em Naomi Parker16, ficou conhecida como Rosie the
Riverter, em português, A Rebitadeira, e se tornou um ícone não só americano, mas mundial,
já que representou todas as mulheres que trabalharam em estaleiros e fábricas, produzindo
armas, munições e suprimentos, substituindo os homens que haviam ido à guerra.
Na época, o cartaz não tinha a intenção de representar o empoderamento feminino, o
objetivo era motivar as mulheres a trabalharem de forma mais intensa durante aquele período
de guerra, visto que, até então, o incentivo era para que estas trabalhassem apenas em casa,
para se dedicarem mais à casa, aos filhos e ao marido. No entanto, o gesto se tornou um
símbolo de luta e resistência, sendo utilizado bastante pelo movimento feminista até hoje.
História e memória estão entrelaçadas. Silverstone (2005, p. 81) diz que “encontramos nossas
identidades nas relações sociais que nos são impostas e nas que procuramos. Nós as vivemos
diariamente. Percebemos uma necessidade de pertencer. E precisamos reestabelecer a certeza
de que realmente pertencemos”.
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Página

16
Informação disponível na página http://www.naomiparkerfraley.com/

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Se na época da Segunda Guerra Mundial as mulheres lutavam para manter a
integridade do seu país enquanto os homens estavam fora, quais os motivos que levam a
mulher moderna a também aderir o símbolo de luta?
Vimos no primeiro capítulo deste trabalho que, desde os tempos mais remotos, o
corpo da mulher era regulamentado e a mídia teve uma contribuição forte na divulgação dos
padrões de beleza estabelecidos, que ditavam uma ordem a ser seguida. A mulher que não
pertencia a essa ordem era julgada e mal vista pela sociedade.
A nova mulher, para a Lola Cosmetics, não é padronizada, não obedece a um único
modelo ideal de beleza. Ela usa seus cabelos como quer e enfeita seu corpo como uma forma
de mostrar essa liberdade. Na pin-up Lola observamos que há tatuagens, por exemplo,
ilustrando essa liberdade. Esse sujeito discursivo tem voz e considera seus cabelos perfeitos -
mesmo que não sigam um modelo especificadamente estereotipado -, simbolizando então a
luta da mulher moderna por uma representação que englobe a diversidade e a naturalidade de
ser mulher.
Considerando o que foi abordado, prosseguiremos com a análise dos lolabooks a
seguir:

Imagem 3: Fotografia de dois mini lolabooks (acervo pessoal)

No primeiro caderno, temos a frase “se te perguntarem o que você faz, responda:
sucesso!” dita por uma personagem negra, com cabelo crespo e blackpower. Seu corpo é
voluptuoso, apresenta um quadril largo, seios fartos e foge do padrão de “magreza”. Podemos
181

ver também duas tatuagens em seus ombros e a estampa de onça em sua blusa, que ressaltam
Página

sua modernidade.

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No segundo caderno, há uma mulher com cabelos loiros platinados, batom preto,
tatuagens no braço e “tirando uma selfie” (forma atual de fotografia) no espelho. Seu corpo se
difere da primeira no sentido de ser menos voluptuosa, mas também não exibe magreza. A
frase que corresponde ao que ela diz é “Acordei e me senti incrível. Me olhei no espelho e
confirmei.”
Temos a representação de duas belezas distintas, que não atendem a padrões
específicos, e, ao mesmo tempo, temos duas mulheres confiantes e com autonomia para auto
afirmar suas qualidades e atributos. Mas, por muito tempo não foi assim.
A mulher negra, principalmente, sofreu com a exigência da brancura da pele e a lisura
dos cabelos. Nos anos de 1920 e 1930, estava na moda o bronzeamento à beira-mar, porém,
nas propagandas de diversos produtos de beleza o que se destacava era a pele branca. Nos
comerciais, era propagado que havia uma proximidade entre a pele negra e a sujeira, tratando-
a muitas vezes como “encardida”, e relacionava também com o “atraso cultural”, reforçando o
preconceito e impulsionando a venda de maquiagens para clarear a pele. Sant’Anna (2014, p.
77) comenta que:

durante muito tempo, o brutal preconceito existe no Brasil diante da pele


negra e do cabelo “carapinha” foi exposto sem grandes pudores em jornais e
revistas. Às vezes, atribuía-se maior preconceito ao passado, como se dessa
maneira fosse possível amenizar as desigualdades sociais do presente.

Nesse período, o cabelo das mulheres negras era alvo desse preconceito e, já que
apresentavam muito volume, passou a ser propagada a necessidade de “domá-los”. Surgiram,
então, métodos de alisamento, como o “cabelisador”, que veio para substituir o ato de passar
ferro quente para “engomar” as madeixas e o “Hennê”, produto alisante que prometia
conservar os cabelos lisos e negros.
Em um contexto de transformações, os cachos entraram e saíram de moda várias
vezes. A cultura de alisar os cabelos das mulheres permaneceu durante o século XXI e só vem
sendo descontruída recentemente. Veja, por exemplo, uma propaganda da campanha da linha
“SEDA Anti-Sponge”, lançada em 2006:
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Imagem 4: Anúncio publicitário da marca SEDA. (Disponível em:
http://anodabiodiversidade.blogspot.com.br/2010/11/analise-de-propaganda.html Acesso em 22/04/2017)

No anúncio publicitário do SEDA Anti Sponge, há dois leões para simbolizar a figura e
os cabelos femininos. Na selva, o leão é considerado o “rei”, gerando assim uma implícita
comparação com a mulher, equiparando-a a uma “rainha”. A chamada do anúncio traz o
seguinte dizer “cabelo armado e com frizz?”, seguido do leão com a juba volumosa. Logo
após, temos a ilustração da linha de produtos e um leão com a juba lisa e sem volume, ou,
como a própria marca diz, com “volume controlado”.
Podemos inferir que a juba do primeiro leão é considerada feia e fora dos padrões,
portanto deve ser mudada, e se o leão simboliza a mulher, podemos atribuir a “juba” aos
cabelos crespos, acentuando o preconceito com esse tipo de cabelo. Se a mulher tem os
cabelos crespos, nesse caso, é induzida a alisá-los para ficar como o segundo leão, que
representa a mulher com o padrão ideal a ser seguido, caso contrário, ela será oprimida pelo
meio em que está inserida, pois o poder midiático se torna mais forte que o poder exercido por
ela mesma sobre o seu corpo e sobre os outros.
Com as transformações ocorridas em relação à história das mulheres e seus cabelos, a
mídia passou a se adequar e a produzir campanhas diferentes. Se antes as propagandas
visavam incentivar as mulheres a domesticarem seus cachos, agora temos uma mídia que as
incentiva a abraçá-los.

Considerações finais
183

Os textos analisados neste trabalho nos trazem uma nova representação da mulher na
Página

mídia. Esses discursos, que foram se transformando ao longo do tempo, atuam na constituição

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do sujeito feminino, presente em novos enunciados discursivos, assim como novas formações
discursivas, que só se tornaram possíveis devido às mudanças ideológicas em questão.
Verificamos que, no corpus analisado, não há tentativas de disciplinar os cabelos, mas
há uma disciplinarização do sujeito para que possa entender e aderir os ideais libertários
propostos pela marca e pelos produtos. O volume, os cachos e o crespo são bem aceitos. Os
produtos cosméticos destinados a esses tipos de fios não tentam alisá-los ou controlá-los e sim
revigorá-los reforçando a beleza natural que possuem. O cabelo ainda é visto como um
instrumento de poder e a mulher é o sujeito que o exerce, não mais sendo controlada e se
permitindo conquistar autonomia e liberdade, independente de um discurso que diga o
contrário.
Esta pesquisa contribui para os estudos da Análise do Discurso, mostrando como o
discurso midiático é caracterizado, de acordo com o momento sócio histórico em que se
insere, e como exerce o poder de influenciar o público alvo, neste caso, as mulheres. Vimos
que, no decorrer dos anos, os enunciados e os sentidos se transformaram, assim como os
sujeitos, que passaram a ter novas formações discursivas e novas identidades.

Referências

FERNANDES, Cleudemar Alves. Análise do discurso: reflexões introdutórias. São Carlos,


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FOUCAULT, Michel. O sujeito e o poder. In: RABINOW, Paul e DREYFUS, Hubert.


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GT1- PRÁTICAS DISCURSIVAS E MODOS DE SUBJETIVAÇÃO

ENTRELACES DE BIOPODER- O MEDO COMO ESTRATÉGIA DE SEGURANÇA


NOS DISCURSOS DA MÍDIA

Rosivânia Maria da Silva (UERN/IFPB)

Provisoriamente não cantaremos o amor,


que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,
não cantaremos o ódio, porque este não existe,
existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,
o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,
o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das
igrejas,
cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos
democratas,
cantaremos o medo da morte e o medo de depois da
morte.
Depois morreremos de medo e sobre nossos
túmulos nascerão flores amarelas e medrosas
(ANDRADE, 2006, p. 73).

Introdução

A epígrafe acima reflete claramente os temores da vida moderna, os medos irreais dão
cada vez mais lugar aos medos contemporâneos líquidos, temas como insegurança, violência
urbana, acabam por estabelecer uma íntima e real relação com aos fantasmas da vida
moderna. Estes novos medos surgem das demandas que se estabelecem em cada sociedade a
partir de sua história social, cultura, religião entre outros.
Segundo Foucault (2012a), são as condições (econômicas, políticas, sociais etc.) que
possibilitam, em certo momento histórico, o aparecimento de um determinado enunciado e
não outro em seu lugar, ou seja, os temores contemporâneos provenientes da realidade em
que vivenciamos possibilitam a necessidade da constante discursivização do caos já
instaurado por causa da violência e consequentemente do medo gerado pela mesma.
Os noticiários diariamente trazem um balanço dos mais diversificados crimes, da falta
de segurança e do aumento da criminalidade, além de também mostrar a ineficiência do poder
público para combater tamanha violência que perpetua o pânico na sociedade urbana
186

moderna.
Os discursos sobre a violência noticiados pela mídia geram uma série de expectativas
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sociais. Ansiedade, medo, companheiras da iminente ameaça de perigo, operam juntas

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provocando efeitos negativos na vida das pessoas, encarcerando-as em suas casas,
restringindo a liberdade e o direito constitucional de ir e vir, mudando seus comportamentos
noturnos ou diários, aumentando os medos, seja eles coletivos ou individuais.
Aparatos de segurança, controle e vigilância configuram-se em resposta como medidas
auto protetivas que surgem através da implementação de leis, condutas coletivas, restrições
entre outros meios com a finalidade de conter ou amenizar alguns dos nossos medos, um
verdadeiro ritual de preservação da vida. Mudanças legitimadas pela cultura do medo que são
alimentadas pela naturalidade com a qual aderimos as estratégias do biopoder e aos discursos
midiáticos, legitimados por eles como condição a vida e o bem estar em sociedade.
O capitalismo, o estado, e mídia, recorrem frequentemente ao discurso do medo, no
intuito de produzir lucro, controle e subjetivações nas sociedades modernas que vivem o
temor da violência que se institui cada dia mais. Desta vez, o governo busca através do corpo
produzir as subjetividades em forma de coletividade.
Focault(2013) por sua vez , mostra claramente que as relações de poder se
transformam conforme as necessidades de ordenar as sociedades , ainda segundo ele , no
século XVIII, havia um poder que se configurava ao mesmo tempo como disciplinador e
normalizador os quais passaram a ditar as condutas dos sujeitos sociais em uma constante
relação de saber e poder com finalidade de produzir corpos dóceis e uteis. A partir desse
controle também se estabelecia além da vigilância, a punição, àqueles que fugiam à ordem do
discurso.
A mídia por sua vez, retroalimenta o medo, através de notícias sensacionalistas,
banalizando o crime e o respeito à vida. Sugere práticas de fuga de situações de perigo e
expõe a fragilidade dos sistemas estatais de segurança gerando muitas vezes o pânico entre a
população.
Relações de poder se estabelecem entre essas práticas diariamente, são mais comuns
do que imaginamos e agem legitimadas por diversas razões. O uso do medo para manipular
condutas regula o comportamento das pessoas através dos diversos tipos de dispositivos de
segurança criados para esta finalidade.
Assim, este artigo visa realizar uma reflexão sobre o discurso do medo através das
tramas discursivas e não discursivas presentes em enunciados de um manual de segurança
187

criado por um órgão público com a finalidade de minimizar a reincidência de crimes contra
servidores que evidenciam a partir do conceito foucaultiano de dispositivo de segurança o
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controle, a vigilância e as relações de biopoder entre elas existentes.

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Mídia e medo e as relações de biopoder nelas inseridas

O medo, uma das mais inquietantes, paradoxais e singulares preocupações humanas


tem durante tempos imemoriais provocado no homem ânsias perturbadoras, atravessa séculos
despertando o imaginário, suscitando a curiosidade e sem dúvida condicionando
comportamentos humanos. Medos individuais, surreais, medos coletivos e reais, tornaram-se
nas últimas décadas, um relevante escopo de pesquisa devido ao fato de tratar-se de um
instrumento capaz de produzir praticas de controle, vigilância e disciplina dos
comportamentos humanos, manifestadas através de diversas estruturas discursivas e não-
discursivas presentes nas mais variadas relações de poder, no nosso cotidiano. Neste sentido
Milanez (2011) assinala que o discurso do medo se desmembra em mecanismos disciplinares,
os quais geram formas de controle.
O medo faz parte da constituição da natureza humana, assim ao longo da nossa
história, ainda pequenos, aprendemos a ter medo. E é justamente ele que nos mantém a salvos
de várias situações cotidianas de perigo. O medo é contraditoriamente a chave que nos
permite acionar ou não um mecanismo de defesa entre agir ou não em determinadas situações.
Desde o medo do escuro e do bicho papão, quando crianças ao medo de estar só, de ser vítima
da violência, da morte, de doenças, de atentados, eles surgem das contingências, históricas,
culturais e sociais de cada sociedade. São, portanto, produto das ansiedades das sociedades
contemporâneas e de seus problemas.
O fantasma das civilizações modernas é sem dúvida o medo da morte gerada pela
violência atual, desta forma o estado através de dispositivos de segurança busca controlar e
disciplinar paralelamente corpo através das relações de biopoder.
O biopoder segundo a perspectiva Foucoutiana é comparada ao poder soberano ,
neste há uma gestão calculista da vida sob administração do biopoder ocupando-se por
questões biológicas como problemática política , não se encarrega da morte , mas sim de
conhecer, organizar e controlar a vida. ( FOUCAULT, 2007, p. 152). Desta forma, o principal
objetivo do biopoder é a garantia da vida e a ameaça a ela devem ser
eliminados(FOUCAULT, 1999), assim a mídia se ocupa por disseminar uma serie de saberes
normativizadores (jurídicos, médicos, religiosos, do cotidiano, científicos etc.) que ancoram
188

as nossos comportamentos afim de preservar a vida em coletividade.


Nesta mesma perspectiva, Foucault diz que a configuração de poder do mundo
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ocidental organizado a partir do século XVIII pauta-se fundamentalmente em duas estratégias,

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sendo a primeira, intimamente relacionada a uma política de disciplinarização e docilização
dos corpos integrando-os ao sistema econômico de controle eficaz e a segunda controlando
seus processos de regulação biológica, como saúde, natalidade, longevidade, entre outros que
agem para com a finalidade de preservar ou controlar a vida.

Deveríamos falar de bio-política para designar o que faz com que a vida e seus mecanismos
entrem nos domínios dos cálculos explícitos, e faz do poder-saber um agente de transformação
da vida humana [...] O homem moderno é um animal em cuja política sua vida, enquanto ser-
vivo está em questão (FOUCAULT, 1988, p. 155-156).

A partir do século XIX, a arte de governar passou a agir diretamente sobre a


população, por meio de campanhas que objetivam melhorar a saúde da população e,
consequentemente, aumentar sua longevidade; ou indiretamente, utilizando-se de técnicas que
monitoram a vida do corpo populacional, sem fazer-se perceber, conduzindo-os para uma
determinada atividade ou para uma determinada região, por exemplo. Dessa forma, o governo
passou a agir como se estivesse a serviço dos governados (FOUCAULT, 2012b). Assim, a
população tem a impressão que o governo age a favor dela e legitima muitas de suas práticas
impostas.

Como salienta Foucault no curso Segurança, Território, População (1977- 1978 )um
saber político centrado na “boa governamentalidade” ou seja, na arte de governar que sugere
as práticas do bipoder através de dispositivos de segurança , que constituem um conjunto de
mecanismos políticos que gerem as características biológicas da espécie humana a fim de
produzir subjetivações .
Nessa perspectiva, os discursos que circulam socialmente constituem-se de estratégias
de controle, que geram o medo. O medo da morte, o medo de adoecer, o medo de envelhecer
entre outros, portanto, de estratégias de biopoder , de modo a produzir subjetivações
pertinentes à ordem para uma “boa governamentabilidade” .

Mídia, medo e subjetivações


189

Os atuais discursos da mídia televisiva, escrita ou sonora aderiram aos medos


contemporâneos e passaram a entreter ao público através da violência diária. Tornou-se
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corriqueiro, emocionalmente permissível além de rentável estampar com manchetes de crimes

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horrendos em jornais policiais, revistas, blogs, entre outros meios comunicativos, o horror
para alimentar o medo e perpetuar uma cultura que pauta-se no espetáculo do terror.
Nesse sentido, Courtine (2008) argumenta que, nos últimos anos, o dispositivo
midiático tem lançado mão de uma série de estratégias discursivas que sinalizam para uma
intermitente sensação de pânico, advinda dos mais diferentes lugares, de modo a delinear a
construção de um governo pelo medo, donde derivam determinadas formas de subjetividade,
emolduradas de acordo com a necessidade de temer e de se precaver dos mais diversos
perigos que nos espreitam.
Partindo dessas problematizações, interessa-nos analisar o funcionamento do discurso
midiático como dispositivo de segurança, concebido como estratégia que demarca a atuação
do biopoder. Objetivamos investigar, a partir de enunciados midiáticos, como se engendram o
discurso pedagogizante do medo através da escolha de estruturas linguísticas que
“discursivizam a violência de modo a produzir subjetivações coletivas tendo como corpus de
estudo um manual de segurança pessoal produzido e distribuído pelo Ministério Público do
Distrito Federal e Territórios MPDFT de novembro de 2012.
Segundo a Coordenadoria de Segurança Institucional do Ministério Público MPDFT,
essas recomendações visam aprimorar a segurança dos membros e servidores na prevenção de
roubos, furtos e sequestros relâmpagos, a fim de minimizarem o risco de crimes contra a
pessoa e o patrimônio. O material completo é composto de trinta e seis páginas divididas em
dicas de segurança para dez situações diferentes do cotidiano. Apresentamos as orientações do
item intitulado: No trânsito, a fim de analisarmos as relações de biopoder neles existentes:

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Fonte:http://www.mpdft.mp.br/portal/index.php/comunicacao-menu/noticias/noticias-2012/5810-mpdft-lanca-
cartilha-com-dicas-de-seguranca-pessoal

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Nos excertos anteriores retirados da cartilha que nos serve de corpus , a voz de um
especialista na área de segurança ensina o modo como o sujeito servidor deve se comportar
no trânsito com vistas a evitar situações de violência . Conforme indica o especialista, é
necessário ter o máximo de cuidado diante situações que possam expor ao perigo para não se
tornar a próxima vítima. Propõem uma serie de condutas ritualistas e determinísticas,
imperando ações extremamente melindrosas, disciplinantes e controladoras dos
comportamentos humanos, demonstrando notadamente a cultura da retroalimentação do medo
como sugere Bauman(2008). Arbitrariamente nos parece que agir cautelosamente ou não nos
torna vítimas em potenciais o que constitui, portanto, uma espécie de governo incidido sobre
o corpo, cujos movimentos devem ser calculados, controlados e disciplinados obrigando-nos
a agir de acordo com as orientações para se ter êxito através deste verdadeiro manual de
sobrevivência contra os perigos da selva urbana. Nessa lógica, urge pensar a que propósitos
servem a mídia circular estes discursos.
O corpo neste sentido, é colocado em um sistema de coação, de privação, de
obrigações e interdições, envoltos em um sistema de relação de poder, neste caso de biopoder
. Este atua expandindo seus domínios em disciplinar e controlar a vida das pessoas, como uma
politica de boa governamentabilidade, a regulação do corpo do indivíduo surge a partir da
ótica coletividade, o corpo social é a relevante preocupação, controlando taxas de natalidade,
mortalidade e saúde das pessoas, etc.
Segundo Foucault (2007) os dispositivos se inserem em relações de poder, admitindo
que todo dispositivo tem uma função estratégica dominante, cuja ação é responder a uma
urgência. Logo, o dispositivo tem natureza essencialmente estratégica, que se trata como
consequência, de certa manipulação de relações de força, de uma intervenção racional e
combinada das relações de forças, seja para orientá-las em certa direção, seja para bloqueá-las
ou para fixá-las e utilizá-las. O dispositivo está sempre inscrito num jogo de poder e, ao
mesmo tempo, sempre ligado aos limites do saber, que derivam desse e, na mesma medida,
condicionam-no. Assim, o dispositivo é: um conjunto de estratégias de relações de força que
condicionam certos tipos de saber e por ele são condicionados (FOUCAULT, Dits et écrits, v.
III apud AGAMBEN, 2009, p. 28).
193

Assim entendemos que os discursos pedagogizantes tornam-se aceitáveis e


plausivelmente justificáveis, tendo em vista que as ações impostas à vida das pessoas atuam
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aparentemente como medidas protetivas a mesma, a falsa aparência de legitimidade
mascarando muitas vezes o poder interventivo, autoritário e arbitrário.
Segundo Pastana(2003) o discurso do pânico é estrategicamente uma negociação
dialética entre os medos privados e os perigos públicos, quanto mais convincente for a
opressão, mais vulnerável ficará o oprimido. Convencendo-se de que nesta situação, não
porque o Estado o oprime, mas porque vive em um ambiente hostil e perigoso.
Neste mesmo sentido Pezza (2013) afirma que a cultura do medo é a melhor forma de
manipular as pessoas e muito utilizada para controle de massas, pois uma pessoa com medo
torna-se obediente e incapaz de impor sua vontade. Assim, o medo, se insere estrategicamente
como dispositivo de segurança a fim de provocar subjetivações que variam de acordo com as
relações de poder através de discursividades contemporâneas que criam formas de dominação
políticas, comportamentais e psicológicas nos sujeitos das sociedades modernas.

Considerações finais

Enfim, a cultura do medo é uma forma de dominação que funciona como dispositivo
de segurança , dissimuladamente justificado pelas políticas do biopoder como ações
redentoras de preservação a vida e ao bem estar da coletividade. Surge, portanto, do
sentimento de insegurança que acomete a população, devido à crescente violência urbana
instaurada nas sociedades modernas.
A dramatização da insegurança, principalmente pela mídia, propaga o pânico o que
legitima o poder arbitrário e autoritário dos governos instruídos na forma de dispositivos de
segurança, respaldados, tendo em vista o abalo das garantias e direitos constitucionais de uma
sociedade ameaçada cotidianamente pela violência o que legitima sua conduta em prol de uma
suposta segurança gerada pelo Estado.
Esses dispositivos são criados e funcionam de modo a estabelecer relações de poder,
controle e dominação, através de subjetivações do sujeito social, pois insere-se numa relação
de poder que interessa a coletividade as garantias do nosso maior patrimônio : a vida. Cuja,
responsabilidade recai sobre o Estado em proporcionar que a vida em sociedade seja plena e
possível através de suas políticas.
194

Assim entendemos que a disseminação destes discursos de medo operam como uma
eficiente forma de controle social que age diretamente no comportamento dos sujeitos e
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determina subjetivações em vários aspectos de suas vidas, refletindo a influência que estas

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discursividades possuem refletindo o controle, a vigilância e a disciplina como estratégias do
biopoder. Interfaces políticas aparentemente inofensivas mas que perpetuam formas de
controle por ações maquinadas por grupos dominantes.

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GT1- PRÁTICAS DISCURSIVAS E MODOS DE SUBJETIVAÇÃO

OS DISCURSOS DAS PROPAGANDAS PUBLICITÁRIAS COM


PROTAGONISTAS CÉLEBRES: A CONTEMPORANEIDADE E A REPAGINAÇÃO
DA FAMA

Shemilla Rossana de Oliveira Paiva

As celebridades circundam os mais diversos espaços sociais na contemporaneidade,


seja no entretenimento, política, religião, etc. Da mesma forma, é possível que “nasça” um
sujeito celebridade de qualquer área, vê-se atualmente cirurgiões, professores e palestrantes
que se tornam espécies de “showmans”, bem como personalidades do entretenimento que
conseguem penetrar em outros campos, como o caso do humorista brasileiro Tiririca que se
tornou deputado. O estatuto da fama na atualidade é muito mais fluído e metamórfico do que
em outras épocas, agora é possível construir uma celebridade com o apoio de “gurus”
especializados no assunto e da mídia. Nesse contexto a celebridade aparece como um sujeito
diferente de outrora, não mais como alguém supostamente irretocável e inalcançável, até
porque paira a sensação de que qualquer um pode vir a ser uma celebridade, desde que caia
nas graças da mídia e que se empenhe performaticamente.
Os comerciais publicitários com celebridades “gente como a gente”, como forma de
conceituar claramente, consistem em uma vertente de peças publicitárias que trazem como
promotores de seus produtos, serviços ou marcas, uma celebridade ou subcelebridade,
portanto, pessoas que estão no auge de suas carreiras, ou relegadas ao ostracismo, num
discurso de tom confessional em torno de um defeito ou assunto embaraçoso de suas próprias
vidas, ou seja, persuadindo o consumidor a comprar, paradoxalmente, através da
demonstração de seus pontos frágeis. É a quebra com o sentido do arquétipo do ídolo perfeito,
onde agora ele não pode mais estar superior ao público, mas igual ou aquém, para que só
assim conquiste sua simpatia.
Assim sendo, podemos falar em dois tipos de celebridades presentes na publicidade. O
que chamaremos de celebridade “tipo 1” é aquela primeira colocação da figura pública
induzindo ao consumo de um bem ou serviço somente através de seu carisma, beleza e fama,
num modelo de projeção, e o “tipo 2” é a utilização da celebridade na publicidade que
196

constitui o objeto dessa pesquisa, ou seja, a que persuade ao consumo através da confissão de
um ou mais pontos negativos ou frágeis da pessoa célebre. A primeira modalidade discursiva
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continua ocorrendo, mas a segunda, ainda pouco conhecida ou mesmo discutida, é o nosso
fenômeno de interesse.

Publicidade e celebridades

Se a indústria publicitária quer alguém eficiente para vender seus produtos, é preciso
que essa pessoa escolhida seja um sujeito que ainda não está totalmente realizado enquanto
um ator social, mas ainda por realizar-se, portanto, imperfeito. Igual, ou inferior aos seus
triviais receptores, que como qualquer ser humano é formado não só por qualidades. Hoje, o
arquétipo do ícone infalível do já citado “tipo 1” parece incomodar, causa antipatia e caiu em
desuso. É como se o indivíduo-consumidor afirmasse: “Eu devo ser a projeção do ídolo, e
não ele a minha”.
O que é curioso é justamente essa preferência por um representante falho, imperfeito,
em certo ponto até risível ou digno de compadecimento. Por isso tantas peças publicitárias
com ícones mostrando justamente, e não por acaso, suas características não icônicas. Na
verdade, esses comerciais sinalizam para uma mudança substancial no conceito do ícone, ou
do representante ideal, que agora não pode se impor como o único com direito a exercer o
poder, mas sim aquele que se transfigura em um modelo, evocando uma comunidade da qual
supostamente ele faz parte.
A sociedade, então, parece ter passado a demandar porta-vozes humanizados, falhos,
com defeitos, mas que mesmo assim estão ou já estiveram no sucesso. E a publicidade
prontamente entendeu e atendeu essa demanda, oferecendo ao público essas celebridades de
“tipo 2”, espécie de protagonistas mais francos, que implicitamente passam a mensagem que
todo sujeito comum deseja ouvir: “Apesar das minhas limitações eu posso chegar aonde
quiser”. Vê-se então que as ofertas de bens e a indução publicitária não são atos arbitrários,
mas, um terreno de experiências, discursos, ressignificações e efeitos de sentido.
Nessa esteira, um fato inquietante vem à mente: a sociedade brasileira nunca foi
adepta das propagandas comparativas. Diferentemente da americana, que enxerga nas
propagandas comparativas uma oportunidade de obter informações sobre os produtos, através
da concorrência explicitamente estabelecida no embate de duas marcas, os brasileiros tendem
197

a se solidarizar com a marca desfavorecida e a não verem com bons olhos o anunciante.
Alegam que para vender não se faz necessário apontar os defeitos do concorrente,
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tampouco debochar, achando mais construtivo que o anunciante se limite a mostrar suas

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próprias qualidades. Deste modo, como é possível um público rejeitar uma modalidade de
propaganda pelo fato dela depreciar uma marca, e ao mesmo tempo passar a aceitar
prontamente uma modalidade que deprecia um ser humano, e não um ser humano anônimo,
mas, celebridades?
É provável que justamente por não tratar-se de um ser humano qualquer a depreciação
tenha sido aceita. Nesse caso, novos contornos são incorporados à figura do ídolo, havendo
uma quebra com o seu sentido típico, ou seja, aquele que vivia num pedestal.
Indubitavelmente, essas propagandas não teriam o mesmo sucesso se o protagonista fosse um
ator desconhecido, muito menos se fosse apenas um produto de uma marca desmerecendo o
de outra. O que gera identificação no público é o fato de a celebridade não mais forjar ser um
herói, mas admitir ser um alguém imperfeito, comum, alcançável.

Sob o impulso subterrâneo do trabalho da igualdade as estrelas saem de seu


universo distante e sagrado [...] é o tempo das estrelas de físico
“insignificante”; seduzem não mais porque são extraordinárias, mas porque
são como nós. As estrelas eram modelos, tornaram-se reflexos; queremos
estrelas “boa gente”, última fase da dissolução democrática das alturas
acarretada pelo código da proximidade comunicacional, da descontração, do
contato, do psicologismo (LIPOVETSKY, 1989, p. 217).

Em troca de uma generosa quantia em dinheiro e de um súbito e certamente rápido


retorno à mídia, esses indivíduos aceitam, eles mesmos, quebrar a aura mítica que
acreditavam os envolver. Os motivos pelos quais as celebridades aceitam fazer esse tipo de
comercial são os mais diversos, como por exemplo, reaparecer na mídia, defender-se de algo,
mostrar que não se deixou abater por algum momento nebuloso de suas carreiras, obter
dinheiro, agarrar-se ao sonho da fama, ou mesmo virar meme17 e com isso reconquistar ou
conseguir mais público.
As razões que levam essas celebridades e subcelebridades a aceitarem protagonizar
esses comerciais, onde devem necessariamente se expor naquilo que certamente desejavam
manter em sigilo, estão intimamente ligadas ao modo como se constrói o estatuto de célebre
na contemporaneidade. A espetacularização da intimidade revela um discurso para a
celebridade que, de certo modo, descontrói categorias que alicerçavam o discurso do famoso
enquanto uma entidade eterna, irretocável e inalcançável. Essas teias que engendram
198
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Significa imitação. Uma forma "viralização" de uma informação, ou seja, qualquer vídeo, imagem, frase, ideia,
música e etc, que se espalhe entre vários usuários rapidamente, alcançando muita popularidade.

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discursos a sentidos e sentidos a novos discursos perpassam a mídia, que como o próprio
nome explicita, media a relação entre as celebridades e os sujeitos receptores.

Mídia, celebridades e produção de sentidos: uma simbiose

Dissemos que os comerciais publicitários que se utilizam de celebridades expondo


suas fragilidades no intuito de vender produtos e serviços na televisão só alcançam sucesso
pelo fato de que seus protagonistas são figuras públicas. Figuras essas que são fortemente
construídas com o apoio midiático, que horas as enaltecem em detrimento de outras, horas as
fazem sucumbir em troca de uma nova aposta, mediante o famoso que se converte na “bola da
vez”. Portanto, ninguém é celebridade na contemporaneidade, no máximo, alguém está
celebridade.
Antes de prosseguir, é necessário apresentar aquilo que acreditamos ser a natureza da
relação que esses comerciais que constituem nosso objeto, e que após um recorte configura
nosso corpus de análise, trava com seus receptores. Já antecipamos que a mídia é o suporte
possibilitador, mas, qual é a natureza dessa relação estabelecida entre os comerciais que
expõem celebridades e os telespectadores através da mídia? Entendemos que essa relação se
dá sob a forma de uma “quase- interação mediada”, posto que guarda características próprias
que os diferem de uma interação face-a-face ou meramente mediada. Esclarece Thompson:

Uso o termo “quase-interação mediada para me referir às relações sociais


estabelecidas pelos meios de comunicação de massa (livros, jornais, rádio,
televisão, etc.). Como o precedente, este terceiro tipo de interação implica
uma extensa disponibilidade de informação e conteúdo simbólico no espaço
e no tempo- ou, em outras palavras, a interação quase mediada se dissemina
através do espaço e do tempo. Em muitos casos ela também envolve um
estreitamento do leque de deixas simbólicas, se comparada à interação face a
face. Contudo há dois aspectos–chave em que as quase-interações mediadas
se diferenciam dos outros dois tipos. Em primeiro lugar, os participantes de
uma interação face a face ou de uma interação mediada são orientados para
outros específicos, para que eles produzam ações, afirmações, etc.; mas no
caso da quase-interação mediada, as formas simbólicas são produzidas para
um número indefinido de receptores potenciais. Em segundo lugar, enquanto
a interação face a face e a interação mediada são dialógicas, a quase-
interação mediada é monológica, isto é, o fluxo da comunicação é
predominantemente de sentido único. O leitor de um livro, por exemplo, é
199

principalmente o receptor de uma forma simbólica cujo remetente não exige


(e geralmente não recebe) uma resposta direta e imediata (THOMPSON,
2009, p. 78).
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Como algo que é proveniente de uma quase-interação mediada, a relação que é travada
entre os comerciais publicitários de celebridade aqui estudados e seus receptores têm caráter
monológico e implica a produção de formas simbólicas para um número indefinido de
receptores potenciais. Ela é uma quase interação porque não tem o grau de reciprocidade
interpessoal de outras formas de interação (ou seja, as mediadas e as face a face), mas é, não
obstante, uma forma de interação, mesmo que haja a impossibilidade de especificar os
receptores com exatidão e de estabelecer com eles uma via de resposta imediata.
Essa quase-interação mediada cria certo tipo de situação social na qual os indivíduos
se ligam uns aos outros num processo de comunicação e intercâmbio simbólico, porque é uma
situação onde pessoas se ocupam principalmente na produção de formas simbólicas para
outras que não estão fisicamente presentes, enquanto estes recebem formas simbólicas
produzidas por outros a quem eles não podem responder, mas com quem podem criar (e
criam) laços emocionais de amizade, afeto, lealdade, e etc, o que só é possível no
descompasso entre as categorias de tempo e espaço que ocorre na contemporaneidade, o que
será discutida no decorrer do presente trabalho.
Se a quase-interação mediada, forma sob a qual se dá a relação desses comerciais
publicitários com os sujeitos receptores, encontra dificuldades em manter um processo
dialógico, isso é recompensado através de suas duas outras características, ou seja, a
intimidade à distancia e o caráter não recíproco na maneira de estabelecer essa intimidade.
Esses dois pontos constituem aspectos fundamentais da quase-interação mediada para analisar
a natureza dos relacionamentos pessoais (aqui o relacionamento entre celebridades e sujeitos
receptores dos comerciais publicitários televisivos precisamente) que surgem através da
mídia. O primeiro quesito, a intimidade à distância, ocasiona aos indivíduos usufruir de
alguns bônus.

A intimidade não recíproca à distancia permite aos indivíduos desfrutar


alguns dos benefícios da companhia sem as exigências típicas do contexto de
interações imediatas. Dá aos indivíduos a oportunidade de explorar relações
interpessoais de uma forma vicária, sem entrar na teia de compromissos
recíprocos. Os outros distantes com quem se trava conhecimento em
interações mediadas são figuras que podem ser encaixadas em nichos
espaço-temporais da vida de cada um mais ou menos ad libitum. São
companheiros regulares e confiáveis que proporcionam diversão, conselhos,
200

informações de acontecimentos importantes e remotos, tópicos para


conversação, etc. – tudo de uma forma que evita exigências recíprocas e
Página

complexidades que são características de relacionamentos sustentados


através das interações face a face (THOMPSON, 2009, p. 191).

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Em sua proposta de uma teria social da mídia, Thompson explica que esses
companheiros distantes que tanto nos divertem, informam e emocionam diariamente são
encaixados por nós em nossas rotinas de forma relativamente opcional, assim sendo, temos
com eles um relacionamento livre das pressões típicas daqueles que se dão num grau de
reciprocidade instantâneo. Só há a parte prazerosa, sem cobranças, mas também sem maiores
garantias, o que significa dizer que estabelecemos o tempo e atenção que dedicaremos a essa
relação, já que ela é majoritariamente monológica, onde eu sou um receptor indefinido entre
tantos outros, e a intimidade que é construída com as celebridades protagonistas naqueles
comerciais publicitários televisivos será sempre à distância, o que me deixa despreocupado
quanto à obrigatoriedade de ser instantaneamente recíproco. Esse molde de relacionamento é
favorável aos sujeitos receptores, mas não para a celebridade, que pode ser facilmente
esquecida ou trocada por outra ad libitum.
É importante, porém, frisar que as relações mediadas e as quase-interação mediadas
não significam que os receptores fiquem completamente a mercê dos outros distantes (a esfera
produtora) e não possam exercer qualquer controle devido ao caráter não recíproco que rege
esses diálogos. Muito pelo contrário, isso dá ainda mais liberdade para os receptores
modelarem o tipo de relacionamento que desejam estabelecer com seus companheiros
distantes. É justamente essa distância espaço-temporal que permite aos indivíduos receptores
definir como querem se engajar, porque eles têm liberdade para isso.
De qualquer maneira, na sociedade contemporânea, muitos indivíduos estabelecem e
sustentam relações de intimidade não recíprocas com outros distantes. Atores, astros e
celebridades midiáticas que se tornam familiares e íntimos, figurando nas conversas diárias da
rotina das pessoas, e em alguns casos podem até assumir uma importância maior na vida de
alguns, a ponto de ofuscar as interações de intimidade recíprocas no mesmo espaço-temporal.
Ou seja, esse interesse dirigido às celebridades e às suas intimidades é um fenômeno
de massa que, embora revele uma necessidade de personalização num mundo tão serializado e
impessoal como é o do universo capitalista, também permite que ainda se crie laços, mesmo
que seja em meio à espetacularização do que essas pessoas têm de mais privado. Assim
sendo, essas celebridades ainda suscitam interesse, desde que vistas por outro viés, mais
201

precisamente pelo menos célebre.


Todavia, mesmo que os discursos desses comerciais tenham mudado ou
Página

proporcionado ao público uma nova relação com as celebridades, pois deixa de sugerir apenas

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admiração, mas identificação entre aquele e estas, uma coisa continua igual: o interesse pela
intimidade dessas celebridades, pois assim como acontece nos reality shows, os comerciais
com celebridades não célebres também insuflam isso, veja que a condição imprescindível para
que obtenham sucesso é que os famosos exponham suas fraquezas íntimas abertamente.
Logo, tratar sobre a contemporaneidade nos é extremamente relevante, pois temos a
hipótese de que características deste período mantém íntima correlação com o que vemos
nesses comerciais em questão. Sabemos que as celebridades em si não constituem um
fenômeno novo, e que podem ser os heróis ou mártires de outrora repaginados, mas o
percurso igualmente frenético com que alguém se torna e em seguida deixa de ser celebridade
atualmente, o quanto as celebridades servem como ponto de ancoragem para a sociedade, a
forma perspicaz com que a publicidade percebeu e se utilizou disso, e o próprio
reconhecimento de alguém enquanto celebridade no imaginário dos sujeitos são processos em
aberto para pesquisas, como se propõe essa.

No Brasil, as análises da produção, da circulação e do consumo de


celebridade ainda são escassas, diferentemente do que ocorre em países
como Inglaterra, os Estados Unidos e a Austrália, onde os celebrity studies já
constituem um campo de pesquisa bem desenvolvido. [...] Se, em variadas
épocas, diferentes sociedades produziram e cultuaram seus heróis, elas não o
fizeram da mesma maneira. Suas “entranhas” trazem as marcas da cultura de
cada tempo; elas condensam os valores que estão em voga, que agregam a
coletividade e movem a vida social. Também a relação que elas estabelecem
com seu público, a maneira como elas os convocam e o seu poder de
afetação são configurados pelo padrão de sociabilidade vigente. Por tudo
isto, falar das novas celebridades é fazer uma leitura da cultura
contemporânea (FRANÇA, 2014, p. 7-8).

“Querendo ou não, a cultura da celebridade está conosco: envolve-nos e até nos


invade. Dá forma ao nosso pensamento e conduta, estilo e modos. Afeta e é afetada não
apenas por fãs engajados, mas pela população toda” (CASHMORE, 2006, p. 6). Então
lançamos a pergunta: uma celebridade precisa ser “profissional” na área daquele produto que
oferece? Não obrigatoriamente. Ela só precisa suscitar o interesse do público através de fatos
de sua vida íntima que estão guardados na memória dos indivíduos, e que são resgatados no
momento em que o comercial aparece na televisão, o que não é tão simples, visto que o
mercado de celebridades produz com celeridade e padronização.
202

O consumo impulsionado pelas celebridades, por sua vez, é a fórmula do “sonho real”,
Página

da capacidade de dar vida ao produto, fazendo com que este deixe de ser inanimado. Assim

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como o produto ganha autonomia seu ideal também apresenta-se como verdadeiro, bastando
que o consumidor efetivamente compre e faça uso daquilo que está sendo anunciado pela
celebridade amiga, íntima e igualitária, tal como é posta no atual discurso publicitário que
forja as celebridades “gente como a gente”.
Embora as celebridades ainda continuem suscitando certo fascínio e interesse no
público, elas não perdurarão se resguardarem suas intimidades. Sabendo disso, a publicidade
ressignificou o que é ser celebridade na contemporaneidade através de seus enunciados, ou
seja, de seus campos enunciativos, que como dito por Foucault, carregam um lugar e um
status consigo (FOUCAULT, 2009). A ideologia, no sentido do que vimos em Pêcheux
(1997), é a fornecedora de evidências das posições ocupadas pelos sujeitos. Nesses
comerciais, vemos o lugar ocupado pela celebridade como sendo ditado pelos enunciados das
narrativas e seus processos ideológicos.

Considerações finais

O estudo da relação da mídia com as celebridades apontou para a paradoxal simbiose


entre espetáculo e intimidade, o que foi preponderante para a repetição do discurso dessas
celebridades cada vez menos célebres na publicidade. Amparada no passado das celebridades
a mídia constrói, então, uma “história do presente” para essas figuras e seus públicos, o que só
é possível porque faz uma cuidadosa combinação entre a memória e o esquecimento dos
indivíduos contemporâneos, que vivem imersos no que Bauman (2007) chamou de sociedade
líquido-moderna, ou seja, uma sociedade onde a rapidez das ações (afiliações, escolhas,
preferências, etc) são tão rápidas que não permitem sua solidificação, evaporando antes disso.
É essa rapidez que faz imperar a linguagem espetaculoísta como a única possível
(DEBORD, 1997), assim, ficamos ainda mais susceptíveis ao fetiche desses comerciais com
celebridades aparentemente tão semelhantes a nós. A representação (GREGOLIN, 2007),
elemento que fica entre a mídia e a realidade concreta, tende a se fazer imperceptível para o
público que tem diante de si a oportunidade irresistível de descobrir os passos em falso das
celebridades. É exatamente isso que torna o discurso proferido pelas celebridades nesses
comerciais ainda mais potente, a capacidade que a representação tem de se esconder na malha
203

discursiva. Como a AD nos ensinou, a produção de sentidos executada pelos discursos desses
comerciais aqui analisados não seria a mesma se o seu tempo histórico-social fosse outro.
Página

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A identidade dos sujeitos contemporâneos, celebridades ou anônimos, é nômade,
verdadeiros locais de apego temporários à posições de sujeito como conceituado por Hall
(2008). Na contemporaneidade, a transitoriedade é indissociável das identidades, porque estas
precisam adaptar-se, repaginar-se e adequar-se se quiserem que seus atores perdurem nas
posições sociais de aspiração.
Essa ânsia de fixar-se no local de desejo mostrou-se ainda mais nítido entre as
celebridades, que aceitaram descer de seus Olimpos (MORIN, 1987), ou seja, despir-se de
determinadas vaidades e preciosismos de suas intimidades para agradar ao público, para
alimentar a mídia, para elevar ao grau máximo o que os dispositivos de visibilidade têm a
oferecer. Conseguimos enxergar essa lógica e seu desenvolver, mas é impossível mensurar
seu ápice, já que os interesses das celebridades e do público nem sempre são harmoniosos,
por vezes até contrários.
Temos uma mídia que precisa da geração de conteúdos novos ininterruptamente, bem
como celebridades no afã de se manterem célebres para sempre e um público desejoso de
novos rostos, corpos, acontecimentos, espetáculos, intimidades e performances. Portanto,
vemos um inconteste jogo de tensões que, de acordo com tudo que foi estudado e analisado,
vai desaguar na flexibilidade dos interesses da celebridade, que tentará todas as negociações
imagináveis com os demais pólos desse contexto de interesses para manter-se no sonhado
paraíso da fama.

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GT2 – ESTUDOS SOBRE GÊNEROS: DIÁLOGOS ENTRE DIFERENTES
PERSPECTIVAS

CANÇÃO: UM GÊNERO, NÃO UM RECURSO DIDÁTICO

Ana Angélica Lima Gondim (UFC)

Linhas introdutórias

Este trabalho apresenta uma reflexão sobre uma prática habitual nas salas de aula de
ensino de língua, principalmente de língua estrangeira: o uso da música, ou utilizando o termo
acadêmico, o uso da canção como um instrumento para facilitar o aprendizado de
determinado conhecimento.
Nossa opção por problematizar esta prática surgiu da observação da presença deste
gênero em salas de aula de Português Língua estrangeira (PLE), além da predominância deste
gênero em livros didáticos (LD) produzidos para possibilitar o ensino de português nesta
perspectiva.
Entendemos que os LD exercem grande influência sobre as práticas docentes e, por este
motivo, analisamos brevemente propostas com o gênero canção em LD de PLE produzidos no
Brasil e na Argentina, locus de nossa pesquisa. Dentro das propostas metodológicas
apresentadas pelos livros didáticos analisados, observamos que a utilização da canção é mais
relacionada à abordagem de algum aspecto gramatical ou lexical, ou ainda como um
repositório de informações acabadas que deverão ser decodificadas pelos alunos, uma ou
outra proposta fazem uma breve relação com aspectos culturais. Não estamos afirmando aqui
que estas são as únicas práticas propostas, mas apresentando as propostas observadas na
grande maioria das vezes. Realizamos esta breve análise por entendermos a relação de
influência que o LD exerce sobre as práticas docentes adotadas, relação problematizada por
diversos teóricos, como Cristóvão (2006), que esclarece o papel de norteador da prática que
este material didático possui, e ratificada em nossa pesquisa de Doutorado (GONDIM, 2017).
Entretanto, o foco deste trabalho são as ações realizadas pelo professor ao utilizar o gênero
canção como instrumento de ensino: a produção de atividade visando o gênero canção e o
trabalho desenvolvido a partir dele.
208

Com relação ao trabalho desenvolvido pelo professor ao trabalhar este gênero,


observamos que este ratifica as propostas de atividades dos livros didáticos, sem que, para
Página

tanto, seja feita qualquer reflexão quanto à concepção de gênero que embasa as práticas ou

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quanto à constituição de metodologias para trabalhar o gênero. O que percebemos é um
julgamento, a nosso ver, elementar, de que a música é um recurso didático que propicia o
ensino de determinado aspecto gramatical ou lexical de uma forma mais dinâmica, mais
atraente.
Não estamos aqui desabonando o uso que é feito da música em sala de aula, ao
contrário, buscamos ampliar a visão do professor para a utilização deste gênero tão rico em
recursos linguísticos e musicais para um melhor aproveitamento deste em sala de aula de
língua estrangeira.
Para tanto, apontamos a importância de refletirmos sobre as práticas de utilização deste
gênero. Com base neste objetivo, e considerando que os documentos que orientam o ensino de
língua materna a estrangeira no país, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) e as
Orientações Curriculares Nacionais (OCN), primam por um ensino reflexivo e discursivo, que
articula as práticas comunicacionais aos contextos linguísticos que as permeiam e as
condicionam, basear-nos-emos nos pressupostos teóricos do Interacionismo Sociodiscursivo
(BRONCKART, 2003, 2005, 2008, 2010, 2013) a fim de caracterizarmos este gênero,
considerando também seu papel de megainstrumento de ensino (SCHNEUWLY & DOLZ,
2004) e diferenciando-o de um simples recurso didático.

Visão teórica dos elementos que permeiam esta pesquisa: recurso didático e gênero de
texto

Antes de apresentarmos os estudos relacionados a gêneros, desenvolvidos pelo


Interacionismo Sociodiscursivo, nas perspectivas de Bronckart, Schneuwly e Dolz,
esclareceremos a concepção que temos de recursos didáticos, fazendo uma breve
diferenciação do que entendemos por recursos e materiais didáticos.
Vários estudiosos, tais como Tomlinson (1998), Salas (2004), Kitao e Kitao (1997),
entendem recursos e materiais didáticos como sinônimos. A nosso ver, recursos didáticos são
quaisquer elementos utilizados para ensinar algo a alguém, sem que, necessariamente, estes
tenham sido construídos com este objetivo, vão desde quaisquer objetos reais a livros
didáticos, ou seja, corresponde a um conjunto amplo de tudo aquilo que pode ser utilizado
209

para facilitar o aprendizado. A fim de didatizar nossa apreensão de recurso didático, pensemos
numa aula de língua estrangeira em que o professor apresenta diversos objetos para apreensão
Página

de sua nomenclatura ou de suas funções, estes objetos são recursos didáticos, pois estão sendo

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utilizados para facilitar o aprendizado, sem que, para isso, tenham sido construídos com tal
finalidade.
Nossa compreensão de materiais didáticos é um pouco mais restrita, pois entendemos
que estes são idealizados com o objetivo de possibilitar o aprendizado, são instrumentos
construídos para possibilitar o ensino, ou, seja, são idealizados para alcançar este objetivo,
dentro deste conjunto estão livros didáticos, CD-ROM, DVD, dicionários, gramáticas,
cartilhas, etc. Desta forma, dentro do conjunto macro dos recursos didáticos está o conjunto
micro dos materiais didáticos.
Iniciamos nosso percurso teórico esclarecendo nossa compreensão de recurso didático
pela observação de uma prática constante, principalmente nas aulas de línguas, da utilização
do gênero canção como um recurso didático, ou seja, um objeto do mundo real que pode
possibilitar o ensino e aprendizagem de determinado conhecimento. Acreditamos, entretanto,
que tal utilização pode ser compreendida como superficial, dada a desconsideração da
realização da canção como um gênero de texto, que por assim constituir-se, apresenta
elementos que o identificam como tal, tais como objetivo, constituição a partir de elementos
linguísticos e musicais, etc. Costa (2002), ao se debruçar sobre este gênero, entende que ele é:

Um gênero híbrido, de caráter intersemiótico, pois é resultado da conjugação


de dois tipos de linguagens, a verbal e a musical (ritmo e melodia).
Defendemos que tais dimensões têm de ser pensadas juntas, sob pena de
confundirmos a canção com outro gênero. (COSTA, 2002, p. 107).

O teórico apresenta a importância de considerar a linguagem verbal (letra) e a


linguagem musical (ou música) em conjunto, a fim de compreender o gênero canção como o
todo que é. Corroboramos com a ideia do autor, ainda que tenhamos a consciência de que os
professores de língua não recebem formação para desenvolver uma abordagem musical do
gênero. Dessa forma, não esperamos que seja propiciado um trabalho aprofundado com os
elementos musicais, mas que estes sejam considerados a fim de possibilitar a compreensão
geral do texto que se realiza neste gênero.
O autor, buscando uma estruturação do trabalho a ser realizado com o gênero canção,
apreende três níveis de materialidade da canção e delineia conjuntos de elementos
210

constitutivos de cada nível: a materialidade formal, a materialidade linguística e a


materialidade enunciativa ou pragmática (COSTA, 2003).
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Com relação ao nível da materialidade formal, o autor a subdivide em cinco momentos,
a saber: momento de produção, de veiculação, de recepção, de registro e de reprodução.
Dentro deste conjunto, interessa-nos o momento de recepção, que acontece no momento de
audição da canção (pode ser acompanhada por leitura) e por multidimensionalidade dos sinais
percebidos (as dinâmicas da canção, os movimentos de ascendência e descendência, além dos
sentidos verbais veiculados pela letra).
No que se refere ao nível da materialidade linguística, o autor aponta alguns aspectos
como característicos deste gênero (COSTA, 2003): predominam as palavras mais cotidianas;
maior liberdade quanto às regras normativas da sintaxe; permissão para repetições e quebra de
frases, palavras, sílabas e sons com objetivos de manter o curso melódico e rítmico;
veiculação de diferentes socioletos (variações linguísticas representativas de determinados
grupos sociais); falta de atenção à coerência do texto: os sentidos que faltam podem ser
preenchidos pela melodia; jogos com movimentos de prolongamento das vogais, oscilação
da tessitura da melodia, repetição de sequências melódicas (temas), segmentação consonantal
como representação das disposições internas (inspiração) do compositor. Consideramos
relevante a abordagem destes aspectos a fim de possibilitar a compreensão da intenção do
compositor ao produzir uma canção.
Com relação ao nível da materialidade enunciativa ou pragmática, o autor esclarece que:
constrói-se predominantemente de cena enunciativa dialógica, centrada na interação entre um
“eu” e um “tu” constituídos no interior da letra; é produto de uma comunidade discursiva
pouco definida, é extremamente permissiva a relação com outras linguagens: dramática,
cênica, cinematográfica e plásticas etc. Entendemos que a relação de permissividade
característica do gênero não pode aniquilar o trabalho feito com o gênero propriamente dito.
Considerando os estudos pioneiros de Costa, mas buscando uma aproximação com a
orientação dos documentos oficiais que regem o ensino no nosso país, passamos a construção
de uma análise do gênero canção baseada no Interacionismo Sociodiscursivo (doravante,
ISD). Antes de apresentarmos as posições teóricas que este quadro teórico adota, é importante
atentarmos para sua construção. O ISD advém de vertente da Psicologia da Linguagem e
estabelece um diálogo com a Didática das Línguas, dessa forma, há teorizações que buscam
responder a questionamentos dos dois quadros, ainda assim, podemos compreender que o ISD
211

é uma corrente teórica una a partir da compreensão de que apresenta questões distintas a
serem respondidas, mas que constroem as mesmas teses centrais e os principais conceitos que
Página

as norteiam. Sendo assim, por vezes, podemos observar um viés teórico que trata da

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observação do sujeito construindo-se ao utilizar a linguagem, e um viés didático, que busca
considerar os estudos aprofundados das relações entre o desenvolvimento humano e a
linguagem para possibilitar métodos ou instrumentos que venham a funcionar como
facilitadores de tal desenvolvimento.
Para o ISD, a unidade que deve ser a objetivo de ensino é o texto, mas antes de
compreendermos o que é texto, devemos considerar o que gera um texto – a ação de
linguagem.

A ação de linguagem designa o fato de que, em uma dada situação de


comunicação, uma pessoa produz um texto, oral ou escrito, com um ou outro
objetivo, para obter um ou outro efeito. A ação de linguagem é uma unidade
psicológica, que pode ser descrita e analisada sem levarmos em conta as
propriedades linguísticas do texto efetivamente produzido. O texto é o
correspondente linguístico de uma ação de linguagem, criado pela
mobilização dos recursos linguísticos próprios de uma língua natural.
Mesmo havendo essa mobilização de unidades linguísticas, o texto não é, em
si mesmo, uma unidade linguística: suas condições de abertura e de
fechamento são determinadas pela ação que o gerou e essa é a razão pela
qual o consideramos como unidade comunicativa. Além disso, os textos
pertencem a um determinado gênero e, portanto, seu tipo de organização
depende, pelo menos em parte, das regras desse gênero. Esses gêneros são
modelos que estão disponíveis no que chamamos de arquitexto (o conjunto
dos modelos de gêneros em uso em uma determinada comunidade verbal,
em uma determinada época de sua história) e eles são indexados, isto é,
considerados como sendo adaptados a tal atividade ou a tal situação de
comunicação (BRONCKART, 2010, p. 169).

Dessa forma, o texto deve ser estudado dentro de sua identidade, de sua unicidade, mas não
devemos desconsiderar o gênero no qual o texto é configurado, ou seja, em que “espécie de texto” ele
se constitui. Considerando a conceitualização apresentada por Bronckart, devemos estudar os textos
considerando o gênero em que foi configurado, as constituições macro e micro que formam estes
textos e suas relações com os contextos nos quais são produzidos e recebidos.
O teórico entende que o texto é produzido considerando uma situação ou contexto de produção,
do qual o produtor do texto possui representações de si, do outro, do espaço, do objetivo a ser
alcançado, etc. De posse destas representações, constrói-se um texto a partir de três níveis distintos,
identificados pelo autor como um todo denominado folhado textual. Organizamos este folhado nos
níveis que possui com base no grau de superficialidade ou profundidade que estes níveis possuem,
indo do mais superficial ao mais profundo.
212

Mecanismos enunciativos (Coerência pragmática)


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– Gestão de vozes
– Modalizações

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Mecanismos de textualização (Coerência temática)
– Conexão
– Coesão nominal
Infraestrutura geral do texto
– Organização do conteúdo temático
– Tipos de discurso (e as suas modalidades de articulação: encaixe e fusão)
– Sequências (e outras formas de planificação)
Fonte: Elaborado pela autora a partir de Bronckart (2003, 2013)

Engendrando uma análise dos textos configurados no gênero canção, devemos observar,
quanto ao contexto de produção, que há que se levar em consideração dois contextos distintos
e relevantes que se entrelaçam a fim de possibilitar a construção dos sentidos: o contexto de
produção real (do compositor\intérprete), buscando compreender quem escreveu a letra e a
melodia, quando, com que objetivo, quem canta, etc. e o contexto ficcional (do eu-lírico
construído na canção).
Saindo da busca pela compreensão da relação existente entre o texto e o contexto de
produção que o permeia, passamos a análise da constituição textual. A observação dos
mecanismos enunciativos possibilita compreender a coerência pragmática do texto, pelos a
partir da explicitação das modalizações que são diversas avaliações a respeito de aspectos do
conteúdo temático com base nas representações que os produtores têm do mundo físico, social
e subjetivo (estas podem ser lógicas, deônticas, apreciativas e pragmáticas); ou as fontes
destas avaliações, as diferentes vozes presentes em um texto (do autor empírico, sociais, de
personagens), mesmo que implícitas. Os textos configurados no gênero canção são repletos
destes mecanismos e percebê-los, apreendendo sua função, permite a melhor compreensão das
informações construídas no texto, além de aproximar o interlocutor do objetivo do compositor
ao escrevê-la.
Focalizar os mecanismos de textualização permite a apreensão do texto como unidade
de sentido, constituída pela progressão do conteúdo temático do texto. São estes os
mecanismos responsáveis pela organização sintática do texto. A nosso ver, estes mecanismos,
se estudados dentro de textos representativos do gênero canção, podem contribuir
sobremaneira, visto que, muitas vezes, os compositores, propositalmente, dificultam a
percepção desta progressão, buscando alcançar objetivos como causar essa imagem de
confusão de ideias, de estar alheio à organização do conteúdo temático, etc. Enfim, até para
perceber esta desorganização organizada que, muitas vezes, aparece na construção dos textos
213

do gênero canção, é necessário compreender os elementos que possibilitam a progressão


Página

textual.

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Com relação à apreensão da infraestrutura geral do texto, há que se considerar
elementos verbais e musicais. Não estamos querendo aqui que professores de PLE tenham
conhecimentos musicais de nível avançado, mas suficientes para contribuir com a
compreensão dos textos configurados no gênero canção. Em relação à linguagem verbal,
podemos observar elementos tais como o plano geral de uma canção (título, composta por
estrofes (ou não), possui um refrão), inúmeras temáticas podem ser tratadas em canções,
podemos ter descrições de paisagens, pessoas; narrações de histórias de guerra, de amor,
diálogos entre dois personagens, enfim, podemos encontrar quaisquer discursos ou sequências
textuais na composição das canções. Nessa infraestrutura também deve ser observado o estilo
musical (bossa nova, sertanejo, samba, etc.) e o arranjo (o todo musical) composto por:
melodia (separação de sons musicais tocados e vocalização de notas que se combinam entre
si), harmonia (a combinação das notas, dos sons), ritmo (a duração do som). Pois, a nosso ver,
estes elementos entram na constituição desta infraestrutura, marcando divisões de segmentos,
apontando o ponto mais importante da canção, dentre vários outros aspectos.
No que se refere às escolhas micro, levamos em consideração o que nos apontou Costa
(2003) e observamos que: o uso de organização sintática nem sempre é convencional;
utilizam-se repetições como estratégia de coesão; podem ocorrer na vocalização a quebra de
frases, palavras, sílabas e sons, mas raramente na letra; escolhas lexicais características de
diferentes variações linguísticas, principalmente relacionadas a grupos sociais ou locais, ou
ainda onomatopeias constituidoras de ritmo; a contribuição da melodia na construção da
coerência textual; jogos com movimentos de pronúncia não convencionais de sílabas
tônicas, alongamento de certos sons. E estas escolhas micro são refletidas na constituição do
todo textual, desde a apreensão de determinado eu lírico a partir da variação linguística que
adota, chegando a organização macro de sequenciação que podem ocorrer no texto.
Entendemos, então, que a canção deve ser abordada como texto que é, configurada num
gênero que possui suas especificidades, pois é a partir desta abordagem que ela pode
corroborar para o ensino de língua que ultrapassa a compreensão do linguístico e permite a
formação do falante de PLE crítica, sensível aos sentidos que o texto permite vislumbrar,
contribuindo para a formação de um falante capacitado linguisticamente, ou seja, que
desenvolve e mobiliza suas capacidades de linguagem18 para comunicar-se linguisticamente.
214

18
Dolz, Pasquier, Bronckart (1993) e Schneuwly e Dolz (2004) entendem que as capacidades de linguagem
Página

evocam as aptidões requeridas do aprendiz para a produção de um gênero numa situação de interação
determinada. Eslas são decorrentes da prática de linguagem e contribuem na construção de sentido por meio das

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Neste momento, vamos ao encontro do posicionamento de Schneuwly & Dolz (2004),
para quem o gênero deve ser compreendido como um megainstrumento, visto que ele fornece,
ao mesmo tempo, um suporte para a atividade, para a produção dos textos em situações de
comunicação, mas também uma referência para os aprendizes que ainda não consolidaram
seus conhecimentos sobre tal construção.

Breve explanação da prática com a canção em sala de aula

Como dissemos anteriormente, este trabalho surgiu a partir de nossa pesquisa de


Doutorado (GONDIM, 2017), na qual empreendemos um modelo de formação de professores
de Português Língua Estrangeiro e refletimos sobre ele. Dentro da proposta de formação que
construímos é importante apresentamos os passos metodológicos para que possamos
contextualizar este estudo.
Anterior à formação de professores (a partir do modelo traçado, construímos um plano
de curso; com o plano construído, iniciamos a oficina de formação que abarcava os seguintes
passos: (a) Exposição dos objetivos e da corrente teórica que os baseia; (b) Explanação de
uma análise a partir dos pressupostos escolhidos; (c) Análise individual de atividades de
livros didáticos de uso dos professores participantes; (d) Discussão, em grupo, sobre os dados
analisados; (e) Produção de unidade didática; (f) Orientações e questionamentos em prol de
modificações adequadas aos objetivos; (g) Reformulação da unidade didática; (h) Utilização
da unidade didática; e (i) Reflexão sobre os processos de produção e utilização das unidades
produzidas.
Sabendo que o modelo foi construído a partir dos pressupostos teóricos do ISD, é
evidente que refletimos sobre o ensino de línguas baseado na abordagem de textos,
configurados em gêneros, buscando o desenvolvimento das capacidades de linguagem dos
discentes. Após a explanação teórica, realizamos a análise de atividades de livros didáticos
com relação ao trabalho com os gêneros de texto. Posterior à nossa análise, os professores
participantes realizaram análises com base nos mesmos critérios e observando também se o
trabalho feito em seus livros didáticos abordava os gêneros como textos e possibilitavam o
desenvolvimento das capacidades de linguagem. Até então, diversos textos configurados em
215

representações do contexto, dos elementos próprios do gênero e dos elementos linguísticos que os constitui.
Estas dividem-se em capacidade de ação (relaciona-se à forma como o produtor apreende o contexto de
Página

produção que o rodeia para que ele possa produzir seu texto), capacidade discursiva (tem relação com a
construção macro do texto) e capacidade linguístico-discursiva (possibilita a constituição micro do texto).

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diferentes gêneros foram foco das análises, mas não o gênero canção. Ao passarmos para a
produção de unidades didáticas, em que cada participante construiu uma unidade didática
buscando trabalhar um gênero de texto para seu contexto de ensino, a canção aparece nas
versões das unidades produzidas, não como gênero, e sim como um recurso didático (para o
desenvolvimento de conhecimentos lexicais ou como um repositório de informações prontas).
No momento da produção das unidades didáticas nenhum participante apontou
interesse em desenvolver uma unidade didática para trabalhar o gênero canção, por este
motivo, não focalizamos este gênero. Ao nos depararmos com as primeiras versões
produzidas das unidades didáticas, observamos a presença do gênero e de alguns comandos
relacionados a eles, entretanto, como já assinalamos, o gênero não era tratado como tal. Nos
encontros para as reformulações das unidades produzidas, sugerimos aos dois participantes
que empreenderam o uso da canção como recurso que a retirassem ou transformassem os
comandos de modo a tratá-la como gênero de texto que é. Diferente do que sugerimos, os
participantes optaram pela permanência das canções em suas unidades e os comandos que
tratavam do gênero canção foram os seguintes:

(1) Professor A:
- Ouça a música “Supertrabalhador - Gabriel O Pensador” e circule as profissões.
- Segundo o autor, quem é um supertrabalhador?

(2) Professor B:
- Após a audição da canção “Tem pouca diferença”, seguem os comandos:
- A letra dessa música faz referência a uma diferença. Qual é?
- Segundo sua opinião, por que o autor Luiz se refere ao episódio bíblico de Adão e Eva no
paraíso?
- Analisando a letra, o autor chega a alguma conclusão? Qual?
- No texto são nomeadas partes do corpo, retire-as e coloque-as no desenho abaixo, segundo
corresponda.

Observamos que os professores não consideram o gênero canção como tal, mas sim
216

como um recurso didático que serve de ensino para quaisquer conteúdos. Este posicionamento
torna-se perceptível desde o momento que eles elegem trabalhar com o gênero sem que este
Página

seja apontado como gênero a ser trabalhado, pois os dois participantes que apresentam

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trabalho com o gênero, em fase de escolha de gênero para a construção da unidade didática,
apontaram o anúncio publicitário e carta e e-mail. Desta forma, este primeiro posicionamento
já nos permite perceber essa concepção de canção como recurso didático.
A continuação, após a observação da primeira versão de unidade didática produzida, a
sugestão para remodelação dos comandos ou sua exclusão, dado o distanciamento entre este
gênero e os gêneros escolhidos para a construção das unidades, e a escolha dos participantes
em manter as atividades sem modificações, esperamos, então, que as ações docentes
realizadas com estas atividades permitissem a abordagem da canção como gênero, mas houve
pouca ou nenhuma diferença no tratamento dado às atividades.
Com relação ao trabalho com a canção “Supertrabalhador”, este não tivemos a
oportunidade de observar às ações relacionadas as atividades construídas, visto que não houve
tempo nas aulas observadas para sua abordagem.
No que tange ao trabalho com a canção “Tem pouca diferença”, percebemos uma breve
contextualização no momento da segunda audição da canção, como se o participante estivesse
recordando de orientações feitas para o trabalho com textos durante a oficina, ou seja,
retomando saberes científico quanto a relação entre texto e contexto ao tratar do estilo musical
da canção, o forró, relacionado à essência do povo nordestino. Ainda que realizada esta breve
contextualização, a nosso ver, não foi suficiente. O participante esclarece a brevidade da
contextualização ao afirmar que “depois este aspecto poderia ser melhor trabalhado” e segue
com a leitura dos comandos relacionados à canção escolhida.
A temática tratada na canção de forma lúdica foi questionada pelos alunos, que
apontaram outras diferenças ou ainda o apagamento de algumas diferenças apontadas na letra,
mas, ao perceber que a discussão poderia encaminhar-se para debater gênero ou ideologia de
gênero, o participante solicita que os alunos se restrinjam aos aspectos que estavam sendo
estudados com base nos comandos. A tentativa de tratar de posicionamentos apresentados
linguisticamente na letra da canção foi abortada pelo receio de construir uma discussão que
não seria interessante no momento. Acreditamos que este fato se deu pela incompreensão da
canção estudada como um texto que, como tal, constitui-se linguisticamente de representações
de diferentes ordens e que podem ser percebidas a partir da organização de seus elementos
linguísticos. Entendemos que permitir a aprendizagem destes elementos presentes em cada
217

um dos exemplares do gênero em questão possibilita a ampliação do conhecimento sobre este


gênero, que facilita a apreensão destes elementos em outros exemplares e este ciclo amplia a
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capacitação linguística do falante.

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Algumas considerações

As práticas dos professores de língua estrangeira nos revelam que, quando mais
produtivas, consideram somente a linguagem verbal constituinte da canção, considerando-a “o
texto em si”, questionando quanto às informações construídas no texto, a linguagem, os
recursos estilísticos, etc.; quando menos produtivos, estas canções são utilizadas para avaliar a
capacidade de compreensão auditiva dos alunos, solicitando a compreensão de determinadas
palavras (muitas vezes, as classes morfológicas de palavras que estão sendo estudadas).
Observamos que, predominantemente, as canções aparecem como um recurso didático
que possibilita um momento lúdico, leve, para a aprendizagem ou o treinamento de
determinado conteúdo gramatical ou lexical. O que, a nosso ver, é um aspecto positivo para a
construção de conhecimento durante as aulas de línguas, mas que pode ser muito melhor
aproveitado se houver a consideração desta como um gênero de texto.
Salientamos, desta forma, a necessidade de que os professores de língua compreendam
a canção como um gênero de texto e que seus exemplares devem ser estudados considerando
tal definição e ainda buscando a compreensão dos contextos de produção que os norteiam,
além da constituição do conteúdo em um folhado textual, relacionando ainda os elementos
musicais a fim de ampliar a compreensão do todo textual.

Referências

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do ensino da produção escrita. Revista Letras, nº 40, v. 20, 2010, p.163-176.

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Paulino Lopes; CRISTOVÃO, V. L. L. (orgs.). Gêneros textuais e formação inicial: uma
homenagem a Malu Matêncio. Campinas, SP: Mercado das Letras, 2013. p. 85- 107. (Série
Ideias sobre Linguagem).

COSTA, N. B. Canção popular e ensino de língua materna: o gênero canção nos parâmetros
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______. As letras e a letra: o gênero canção na mídia literária. In: Dionísio, A. P. (org.).
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CRISTOVÃO, V.L.L. Gêneros textuais e práticas de formação de professores. In: Encontro
Nacional de Didática e Prática de Ensino, 13, Recife. Anais. (CD-ROM), 2006.

DOLZ, J. PASQUIER, A. BRONCKART, J-P. L’acquisition des discours: emergence d‟une


compétence ou apprentissage de capacités langagières? Études de Linguistique Appliquée,
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GONDIM, A.A.L. Formação de professor com foco na produção de material didático de


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GT2 – ESTUDOS SOBRE GÊNEROS: DIÁLOGOS ENTRE DIFERENTES
PERSPECTIVAS

GÊNEROS DO DISCURSO: ARTIGO DE OPINIÃO E NOTÍCIA UMA


EXPERIÊNCIA NO PIBID

Francisca Berlândia Alcineide Silva Paiva (UERN)


Lucimar Bezerra Dantas da Silva (UERN)

Introdução

A presente pesquisa se justifica pelo fato de, uma vez sabendo da deficiência que o
ensino se encontra em termos de leitura, foi possível verificar que com esse projeto em sala de
aula, envolvendo dois gêneros que, normalmente abordam temas polêmicos, chamando a
atenção do leitor, lhe permite que os alunos se interessem um pouco pela informatividade nas
notícias e lhes possibilitem posicionamentos críticos para discussões e produções de textos,
principalmente após os comentários gerados nos artigos de opinião.
O aporte teórico está fundamentado em Cunha (2002), Rojo (2008), Marcuschi (2002)
e Zavam e Araújo (2008). Com isso, temos o propósito de levar os alunos a se interessarem
pela leitura, a refletirem sobre suas ideias e escritas no momento da reescrita, e também que
eles pudessem distinguir o fato na notícia e a opinião no artigo, algo simples, mas que passa
despercebido pelos receptores desses textos.
E, com base nessa perspectiva, foi possível estudar os gêneros discursivos, artigo de
opinião e notícia, por intermédio do projeto desenvolvido pelo Programa Institucional de
Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID), o qual teve como objetivo apresentar, analisar e
diferenciar esses dois gêneros através de leituras, discussões, escrita e reescrita em sala de
aula.

1 O PIBID e a Ênfase no Ensino de Gêneros Discursivos

O PIBID de Língua Portuguesa da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte


(UERN) tem como perspectiva desenvolver projetos baseados nos gêneros discursivos. Pois,
220

vale salientar que, a partir das mudanças sociais na escola, na década de 70, “sob a forma da
Lei das Diretrizes e Bases 5692/71, que estabelece a língua portuguesa como instrumento de
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Comunicação e Expressão da cultura brasileira” (ROJO, 2008, p. 10), que o ensino se volta

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para o uso da oralidade e, assim “partimos do pressuposto básico de que é impossível se
comunicar verbalmente a não ser por algum gênero, assim como é impossível se comunicar
verbalmente a não ser por algum texto” (MARCUSCHI, 2002, p. 22).
Tendo em vista que os gêneros discursivos surgiram conforme a necessidade que os
falantes têm de se comunicarem e que há uma infinidade desses gêneros ao nosso redor, quer
seja por meio da oralidade ou da escrita, que alguns estudiosos da linguística, se opuseram ao
modelo tradicional de ensino, pois este paradigma tinha como propósito ensinar a Língua
Portuguesa ou a gramática normativa nas escolas “de maneira descontextualizada, tomando
frases ou trechos isolados do seu contexto de produção. Assim, a unidade de descrição e
análise linguística passa a ser a frase solta, desarticulada de um texto, de uma situação real da
comunicação” (ZAVAM e ARAÚJO, 2008, p. 09).
Portanto, podemos perceber que o trabalho com os gêneros discursivos é de tamanha
significância para o ensino e para atividade humana, pois estamos sempre produzindo gêneros
e estes sempre se renovando. Assim, vale ressaltar que o PIBID é um programa que também
contribui para a prática desses gêneros no ensino, possibilitando uma maior competência dos
estudantes em suas atividades práticas escolares e sociais. Com tudo, a partir dos gêneros
discursivos estudados em sala de aula, os discentes terão mais conhecimentos e habilidades
com o uso da língua e com a prática dos gêneros estudados, os quais grande parte estão
presente no nosso cotidiano e, às vezes, sequer paramos para refletir sobre o seu uso ou forma
de como é composto.

2 Os Gêneros Jornalísticos Notícia e Artigo de Opinião

Os gêneros textuais artigo de opinião e notícia cada vez mais vêm se propagando na
sociedade, assim como também nas escolas, pois, por serem textos informativos e opinativos,
de interesse da sociedade como um todo, algumas escolas buscam trabalhar esses gêneros
para ativar o pensamento críticos dos alunos, já que trazem assuntos de acontecimentos
políticos, econômicos, sociais, culturais entre outros, os quais acabam influenciando o leitor.
Porém, por serem dois gêneros que buscam informar ou alertar a sociedade sobre algo,
apontando informações, acontecimentos e defendendo um ponto de vista, o artigo de opinião
221

e a notícia se distinguem, tanto pela estrutura, quanto por seu estilo, pois cada gênero têm o
seu estilo próprio.
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Sendo assim, Cunha (2002, p. 170) sob a perspectiva dos estudos de Brouker
distingue os gêneros redacionais, de informação e o de comentário, em que o texto de
informativo “visa a fazer saber, como é o caso da notícia, enquanto o de comentário procura
fazer valer uma convicção, um julgamento, um sentimento, como nos artigos de opinião”, isto
é, o gênero textual discursivo tem como intuito informar o leitor ou o telespectador sobre um
determinado fato, enquanto o artigo de opinião, muitas vezes, faz um julgamento sobre uma
específica notícia e procura defender um ponto de vista, a favor ou contra, uma temática.
Porém, por outro lado, os estudos com os gêneros trazem benefícios, pois além de
despertar a leitura dos alunos, esses discentes aprendem com as notícias, reportagens, artigos
de opinião e outros, a terem um senso crítico em suas leituras e produções textuais, já que
esses textos possuem um certo argumento em defesa de ou sobre algo, ou seja, buscam
relações dialógicas em outros dizeres ou situações reais presentes em nosso cotidiano.

2.1 Considerações sobre o gênero discursivo artigo de opinião

É necessário se valer de bons argumentos, já que o artigo de opinião busca convencer


alguém sobre um determinado fato, “geralmente, exige-se característica do estilo de
comunicação formal, dirigida a um grupo privilegiado social, econômica e culturalmente”
(KOCH, 2006. p. 110). Assim, para que a opinião seja sustentada, o autor tem que usar uma
linguagem adequada, formal e que vá de acordo com o perfil do público e tem que saber
expressar bem seus argumentos, defendo uma ideia principal com um propósito persuasivo.
Conforme Cunha (2002, p 170),

O artigo de opinião expõe o ponto de vista de um jornalista ou de


colaborador do jornal, fazendo uso de dêiticos e do presente do indicativo
como tempo de base, num texto claramente argumentativo. Comentando
algo já dito, o artigo de opinião é um gênero de “enunciação subjetiva”
[Moirand, 1999], no qual o dialogismo é raramente mostrado.

O artigo de opinião revela um certo posicionamento crítico do autor sobre


determinado acontecimento. Para tanto, ele se utiliza de métodos reflexivos para fazer com
que o leitor seja persuadido a concordar com o ponto de vista que ele defende. Em outras
222

palavras, podemos dizer que, a partir de algum fato, geralmente polêmico, o articulista busca
defender ou criticar uma ideia, por meio do emprego de argumentos convincentes e
Página

planejados, apontando causas, soluções e consequências.

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Além disso, podemos dizer que o artigo de opinião se trata de um texto
argumentativo, podendo ser enunciado em primeira pessoa do singular ou plural. Marcado
pelo “já-dito” ou pelo dialógico, o escritor aponta sua opinião de maneira crítica. Porém, o
fato de redigir um artigo e expressar-se criticamente, não quer dizer que seja suficiente para
produção desse gênero, pois é necessário que sua temática seja bem argumentada.
Com relação aos três aspectos constitutivos dos gêneros (BAKHTIN, 2003) -
conteúdo temático, construção composicional e estilo-, Simoni (2010, p. 10) relata que, em
relação à escolha do conteúdo temático, o artigo de opinião “tem estreita relação com as
informações elencadas anteriormente, ou seja, é necessário considerar todo o contexto de
produção bem como o meio de circulação para então chegar a uma compreensão mais eficaz
do tema”.
Já no que diz respeito à construção composicional, a autora vai dizer que esse gênero
é organizado em parágrafos, com uma sequência discursiva predominantemente
argumentativa, defendendo um certo ponto de vista, geralmente de assuntos polêmicos, que
chamem a atenção do público. E, para detalhar o estilo, Simioni (2010) afirma que se trata das
marcas linguísticas utilizadas pelo autor do artigo, o qual se utilizará de estratégias para
persuadir o leitor. Seu estilo pode ser marcado pelo uso de primeira pessoa do singular ou
primeira pessoa do plural.
Além disso, um aspecto que difere o artigo de opinião da notícia é o fato de ele
apresentar a opinião do autor, o que não acontece com a notícia, pois o escritor tem que ser
totalmente isento. Como afirma Gagliardi e Amaral (2009, p. 01), “artigo de opinião é um
gênero jornalístico que se caracteriza por expressar opiniões de seus autores, ao contrário das
notícias, que devem ser isentas do julgamento daqueles que as escrevem”.

2.2 Considerações sobre o Gênero Discursivo Notícia

Partindo para o estudo do gênero textual “notícia”, nos apoiamos nos estudos de Alves
Filho (2011). Esse autor afirma que não procuramos nem pedimos licença para que as notícias
cheguem até nós, mas, mesmo assim, elas se exibem e clamam para que sejam lidas, pois elas
são diversificadas, estão em diversos gostos e tendências, nas diversas temáticas, para chamar
223

a atenção do leitor, e nos variados suportes (rádio, internet, TV, revistas, jornais impressos,
celulares). Para o autor:
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A notícia é um gênero que possui status de um produto de consumo já que
ela é vendida direta ou indiretamente aos consumidores. No caso de jornais
escritos, ela é vendida diretamente quando o leitor compra ou assina um
jornal (mas também indiretamente através dos anúncios). No caso de
televisão, rádio e portal de internet, esta venda ocorre de modo indireto: o
anunciante paga ao veículo de comunicação para exibir publicidade dos seus
produtos, mais comumente circundando ou entremeando-se entre as notícias
e as reportagens (ALVES FILHO, 2011, p. 91).

Portanto, podemos perceber que, com os vários meios tecnológicos, a notícia se tornou
mais acessível, pois o número de suporte no qual a notícia é veiculada aumentou,
evidenciando várias maneiras de se adquirir informações. O que antes passava dias para que
se soubesse de algum fato, hoje obtemos informações de imediato, ao vivo. E para que um
fato se torne notícia, ele tem que ser novo, do contrário, não haverá interesse do público para
uma informação, antes já apresentada. Sendo assim, com o avanço da tecnologia, o consumo
de jornais impressos diminuiu muito, pois não há tanto interesse do público em adquirir esse
suporte se as informações são expostas “online”, em blogs, chats, WhatsApp, facebook, canais
de assinatura, entre outros.
As pessoas sentem a necessidade da informação, e para atender os diferentes gostos do
povo, a notícia expõe diversas temáticas de conhecimentos, já que o que é do interesse de um,
pode não ser do outro; e como é um gênero que “possui status de produto de consumo”, tenta
vender da melhor maneira possível. Assim, se a mídia televisiva teve um maior ibope na
exibição de tragédia, ela buscará atingir mais o emocional desse público, enfatizando o
ocorrido, para que o telespectador se sensibilize e continue assistindo. Se o público é jovem, a
mídia social criará sites, programas e canais sobre moda, futebol, fama etc.
Alves Filho (2011) também ressalta que as notícias veiculadas em jornais são
motivadas por acontecimentos recentes e considerados relevantes, ou seja, o autor afirma que
as notícias não podem ser fruto da imaginação de alguém, tampouco ser hipóteses ou
reflexões, além de que não pode ser um fato ocorrido há mais de uma semana, pois se passar
de dois dias, significa dizer que “já goza pouquíssimas chances de virar notícia” (p. 95). O
autor apresenta algumas considerações que orientam o professor para o trabalho com esse
gênero em sala de aula. Segundo ele:
224

O evento deflagrador das notícias (um fato recente) impõe uma restrição
para o trabalho com este gênero em sala de aula: a necessidade de trabalhar
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com notícias recentes e com fatos ocorridos recentemente, sob pena de se


ignorar um dos elementos mais centrais na definição do funcionamento deste

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gênero. Uma decorrência óbvia disso é que se for trabalhar com produção de
notícias em sala de aula, isso precisa ser feito respeitando o evento
deflagrador: fatos reais, recentes e (considerados) relevantes (ALVES
FILHO, 2011, p. 95).

Assim, podemos constatar que o trabalho com o gênero notícia, publicada em jornais
na sala de aula, requer um aspecto positivo e outro negativo. Positivo porque o aluno ficará
mais familiarizado com o gênero e poderá fazer uma análise crítica melhor, tendo o suporte
nas mãos; e o professor não se valerá apenas de teorias, já que, no momento da produção, o
discente já está a par do modelo, ou seja, da construção composicional, o que facilitaria tanto
para ele (aluno), pois não ficará desnorteado em relação a sua estrutura, como para o professor
que juntará a teoria e prática, facilitando a compreensão dos alunos. Mas, analisando por
outro lado, de certa forma, a notícia já não é mais novidade, isto é, já não é um fato recente,
que seja considerado relevante para aquele momento, que gere discussões e interesse da turma
sobre o que está acontecendo, mas será útil para leituras e conhecimento da forma.
E no que diz respeito aos estudos de Alves Filho (2011), a estrutura composicional da
notícia, em algumas empresas, busca manter uma estrutura bem rigorosa, padronizada, para
levar os leitores a crerem que são notícias imparciais e objetivas, com escritas impessoal, sem
que o escritor deixe qualquer marca de seu estilo. A notícia deve conter as seguintes
características: manchete, lead, episódio (eventos e consequências/ reações) e comentários.
De acordo com o autor, a manchete e o lead resumem o evento para captar a atenção do leitor,
o episódio relata os detalhes do fato noticiado e os comentários são as divulgações como
atores sociais que se envolve direta ou indiretamente no fato, no caso de ser um redator, avalia
o que ocorreu.
Como bem coloca Sventickas (2008, p. 327),

Como estrutura e conteúdo são intimamente ligados e são dependentes entre


si, pois a estrutura é preenchida pelo conteúdo semântico; o conteúdo do
texto noticioso, relacionado à função sociocomunicativa, pode mudar a
estrutura, em termos de ordem convencional e mais recorrente das categorias
da superestrutura.

A notícia não possui uma estrutura única, padrão, pois depende da empresa que vai
225

redigir o fato e o público alvo a quem se destinará, uma vez que a notícia busca atender um
público bem diversificado. As notícias “para segmentos de classes mais ricas podem diferir de
Página

notícias para segmentos de classes mais pobres; notícias para adolescentes podem ser bem

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diversas daquelas voltadas para mulheres adultas” (FILHO, 2011, p. 99). A verdade é que as
notícias são elaboradas conforme o que atrair mais o gosto do leitor destinado, aquilo que lhe
for de maior relevância, e mesmo que não esteja em uma ordem cronológica do fato,
aparecerá primeiro, para que seja atraída atenção do destinatário; com isso, os redatores fazem
com que uma informação ganhe mais privilégio que outra.
A data, o local e o horário, apesar de serem partes importantes da notícia, pois se
justifica que o fato realmente ocorreu, acaba ficando em segundo plano, dando lugar a
informações fundamentais, pois, se ao iniciar um texto o leitor perceber que não tem algo que
lhe interesse, ele logo o abandona. Sventickas (2008, p. 328) aponta que “notícias de tema
político, a realização do “Lead” logo no primeiro parágrafo, após a Manchete e Linha Fina, é
mais adequada e prende mais a atenção do leitor”. Sendo assim, a notícia utiliza várias
estratégias para que sua informação seja aceita pelo público a que se destina o fato.
No que diz respeito ao estilo desse gênero, exige-se uma escrita formal, o
coloquialismo, segundo Alves Filho (2011), apenas em citações e entre aspas. Assim como na
estrutura, o estilo também sofre variações, dependendo dos interlocutores a quem serão
dirigidas. Há também um distanciamento entre o escritor e o leitor, havendo uma
impessoalidade no decorrer do texto, porém, raro, mas há casos em que o uso da segunda
pessoa presente em notícias. Em relação à escrita, deve ser rápida, padronizada para relatar os
diversificados fatos. Possui muita nominalização e orações relativas, sua ordem varia entre
elementos sintáticos na voz ativa ou na voz passiva.
E como proposta de analisar a notícia na sala de aula a fim de que os alunos
identifiquem o fato presente, Alves Filho (2011) também propõe uma série de atividade para
o professor aplicar na sala de aula com esse gênero, dentre elas, a prática de uma leitura
crítica e perspicaz, a relevância da notícia publicada em jornal, para que seja feita discussões e
indagações sobre o gênero, com o propósito de uma comunicação e interação oral da turma.
Em seguida, depois de uma boa análise sobre o gênero, o professor pode pedir que os
discentes o construam.

3 Aspectos Metodológicos e Resultados


226

O projeto foi desenvolvido na terceira série “U”, ensino médio, do turno noturno de
uma Escola da Rede Estadual de Ensino, na cidade de Mossoró-RN e teve uma duração de
Página

quase 5 meses, pois se trata de um ensino diferenciado, em que são ministradas apenas 2 aulas

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de Língua Portuguesa por semana, com 40 minutos cada aula. Mesmo assim, buscamos
explorar o máximo do tempo possível com explanações dos temas, debates, exemplos e
algumas leituras para que os alunos se familiarizassem com as temáticas em questão, tais
como: política, violência e educação, e pudessem defender o seu ponto de vista, na elaboração
do artigo de opinião, como também apresentar fatos e informações ao leitor, a partir de suas
notícias produzidas.
Os dados dessa pesquisa foram coletados a partir do material produzido pelos alunos
da referida escola. Esses dados resultam de atividades desenvolvidas no projeto jornalístico
proposto pelos alunos bolsista do Projeto PIBID. Para a leitura e produção de notícias e de
artigos, foram selecionados alguns temas, porém, buscamos dar ênfase na temática sobre
“impeachment de Dilma Rousseff” e “violência contra a mulher”.
Inicialmente, o objetivo foi trabalhar com os alunos a estrutura composicional dos dois
gêneros, ou seja, os alunos foram levados a identificar o fato que originou a notícia e a tese
que motivou o artigo de opinião. Além disso, os alunos também observaram o modo de como
esse gênero é composto, qual o efeito que ele causa no leitor, assim como também detectar a
opinião e os argumentos que estão presentes no artigo de opinião.
E após essas atividades, foi realizado um questionário a respeito dos dois gêneros
trabalhados para certificar se os discentes conseguiram compreender a diferença entre o fato e
a opinião.
O questionário foi elaborado no intuito de analisarmos o feedback do projeto, e a partir
das respostas, obtivemos o seguinte resultado:

227
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19 alunos responderam ao questionário

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Gráfico 1: Porcentagem referente a quantidade de acertos por alunos, na primeira questão, que tinha como
objetivo distinguir o fato da opinião.

Conforme o gráfico acima, na primeira questão, a qual os alunos iriam identificar o


fato e a opinião contida em fragmentos de notícia e de artigo, eles iriam marcar “O” ou “F”
(para “opinião ou para “fato”). Assim, verificamos que o número de acertos foi superior ao
número de erros, o que podemos constatar que os alunos conseguiram diferenciar e
reconhecer as características, bem como, identificar as partes que compõe cada gênero.
Ainda de acordo com a primeira questão, foram 19 alunos que participaram do
questionário, respondendo, de maneira individual, as dez alternativas contidas e obtivemos o
seguinte resultado: dos dezenove alunos, dez conseguiram identificar o que era o fato e a
opinião em todas as alternativas, cinco identificaram em oito alternativas e quatro alunos
identificaram o fato e a opinião em 9 de 10 alternativas. No entanto, considerando o número
maior de acertos, podemos ressaltar que a teoria sobre os gêneros e o processo de distinção
deles, foram válidos, como está descrito no resultado em percentagem, 64% atingiram ao
objetivo proposto.

Gráfico 2: Porcentagem da segunda questão relativo a acertos e a erros dos alunos, em se tratando da diferença
dos gêneros artigo de opinião e notícia.

Já na segunda questão, como mostra o gráfico, o resultado é mais satisfatório, apenas


dois alunos marcaram a alternativa incorreta, a qual também se tratava de uma pergunta
228

objetiva no que diz respeito à identificação dos gêneros. Assim, obtivemos um resultado
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positivo, 98 % da turma conseguiu diferenciar uma notícia de um artigo de opinião,

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resultando em discussões e aprendizagem de que um está mais voltado a defender um ponto
de vista, argumentando a favor ou contra um determinado tema; enquanto o outro se omite a
opiniões ou comentários, se atendo apenas em informar, isto é, expor os fatos.
Sendo assim, o trabalho desenvolvido foi realizado de forma satisfatória, pois obtemos
resultados positivos no que diz respeito a diferenciação dos dois gêneros, assim como
também, da distinção de o que é fato e o que é opinião, visto que, por se tratarem de gêneros
dentro da mesma esfera jornalística, ainda há os que considerem que a notícia, assim como o
artigo de opinião, gera comentários ou emite opiniões a respeito de algum caso específico.

Considerações finais

A atividade realizada pela equipe do PIBID em sala de sala de aula, para diferenciar o
artigo de opinião da notícia, deu-se pela abordagem de cada gênero, estrutura, estilo e
temática. Com isso, os discentes puderam encontrar o fato na notícia e a opinião no artigo de
opinião, o qual foi comprovado através de um questionário que avaliava a identificação da
opinião e do fato e a distinção dos dois gêneros.
No entanto, é possível considerar que as produções dos discentes relativo aos gêneros,
notícia e artigo de opinião, atendeu ao caráter de análise referente aos elementos constitutivos
dos gêneros, pois estas apesentaram todas as características pertencentes, principalmente a
estrutura, as quais define um gênero e distingue de outro.
Com tudo, ainda vale ressaltar a significância e o enriquecimento que o PIBID
proporciona nas escolas, na vida acadêmica dos estudantes e também do professor supervisor,
pois este tem a oportunidade de realizar projetos e atividades nas salas de aula, com a ajuda
dos bolsistas, adquirindo mais conhecimentos e experiência com os gêneros discursivos, além
de ser o mediador do ensino-aprendizagem entre os pibidianos e os alunos.
Além disso, o PIBID de Língua Portuguesa é um programa que contribui diretamente
para o processo de aprendizado dos discentes, pois tem como objetivo desenvolver projetos
que estejam interligados a prática dos gêneros discursivos com leituras, escritas e reescrita.

Referências
229

ALVES FILHO, Francisco. Gêneros jornalísticos: notícia e cartas de leitor no ensino


Página

fundamental. São Paulo: Cortez, 2011.

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BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. In.: ______. Estética da criação verbal. 4. ed.
São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 261-303.

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opinião. In: DIONÍSIO, A.; MACHADO, A. R.; BEZERRA, M. A. (orgs.). Gêneros textuais
e ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2002

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Disponível em <https://www.escrevendoofuturo.org.br>. Acesso em: 14 abr. 2016.

KOCH. Igedore Villaça. Ler e compreender: os sentidos do texto. São Paulo: Contexto,
2006.

MARCUSCHI, Luiz Antônio. Gêneros textuais: definição e funcionalidade. In: DIONÍSIO,


A.; MACHADO, A. R.; BEZERRA, M. A. (orgs.). Gêneros textuais e ensino. Rio de
Janeiro: Lucerna, 2002. p. 19- 36.

ROJO, Roxane. O texto no ensino- aprendizagem de línguas hoje: desafios da


contemporaneidade. In: TRAVAGLIA, L. C.; FINOTTI, L. H. B.; MESQUITA, M. Carvalho
de; ROJO, R. [et al]. (orgs.). Gêneros de texto: caracterização e ensino. Uberlândia: EDUFU,
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SIMIONI, Claudete Aparecida. Uma análise do gênero artigo de opinião conforme a


orientação metodológica de Bakhtin, 2010. Disponível em <http://cac-php.unioeste.br>.
Acesso em: 13/03/2016

SVENTICKAS, Pollyanna H. S. A notícia e os gêneros jornalísticos: uma proposta de


definição e classificação. In: TRAVAGLIA, L. C. ; FINOTTI, L. H. B.; MESQUITA, M.
Carvalho de; ROJO, R. [et al]. (orgs.). Gêneros de texto: caracterização e ensino. Uberlândia:
EDUFU, 2008.

ZAVAM, Áurea; ARAÚJO, Nukácia. Gêneros escritos e ensino. In: PONTES, Antônio
Luciano; COSTA, Aurora Rocha. Ensino de Língua Materna na Perspectiva do Discurso:
uma contribuição para o professor. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2008. v. 1, p. 09-32.
230
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GT2 – ESTUDOS SOBRE GÊNEROS: DIÁLOGOS ENTRE DIFERENTES
PERSPECTIVAS

ANÁLISE CRÍTICA DE GÊNEROS DA MÍDIA

Ivandilson Costa (UERN)

Introdução

Um campo ainda passível de mais estudos quanto à questão da análise de gêneros é o


da abordagem crítica. Desenvolvido especialmente por Bathia (2001; 2004; 2008), ao
desenvolver estudos sobre integridade, versatilidade, inovação genéricas, o tema já seria
esboçado nos estudos da Análise Crítica do Discurso (ACD), ao pôr o aspecto discursivo de
redes de práticas sociais em combinações particulares de gêneros, discursos e estilos
(CHOLIARAKI; FAIRCLOUGH, 1999; FAIRCLOUGH, 2003).
Este trabalho tem por objetivo analisar como se dá um fenômeno crescentemente
desenvolvido atualmente, o da incorporação de caracteres promocionais por gêneros da esfera
jornalística. Para tanto, como delimitação, tratou do gênero midiático ‘capa de revista’. O
corpus provém de montante de nossa recente pesquisa de doutorado (COSTA, 2016), tendo
sido a coleta realizada no período de 19 de agosto e 24 de outubro de 2014, período
significativo da campanha eleitoral para presidente da república. Aplicou-se um método
qualitativo e interpretativista, de caráter interdisciplinar, com levantamento por amostragem,
geração de dados por registros audiovisuais e revelando, como interesses do conhecimento, a
emancipação e empoderamento.
O estudo aponta para o fato de que gêneros da mídia têm passado por transformações
quanto à sua integridade, especialmente quando se trata da incorporação de propriedades
promocionais, oriundas do domínio mercadológico da publicidade. Pela pesquisa,
pretendemos, ainda, fomentar o processo de ensino-aprendizagem de práticas de linguagem –
leitura e produção de texto, em busca da construção de um letramento crítico para o aluno,
interpelado, nessa perspectiva, pelos processos de consciência e cidadania.

ACD e análise crítica de gêneros


231

Um espaço para a apresentação da relação entre ACD e gêneros já vem desenhado


Página

desde mesmo o esboço do modelo tridimensional (FAIRCLOUGH, 2001 [1992]). Naquele

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trabalho, o problema é colocado em termos do processo de produção, distribuição e consumo
de textos, situando-se no campo das práticas discursivas, para o que propõe considerar gênero
como “um conjunto de convenções relativamente estável que é associado com, e parcialmente
representa, um tipo de atividade socialmente aprovado” (FAIRCLOUGH, 2001 [1992], p.
161).
Ao remontar à filiação do tratamento da ACD de gêneros às metafunções hallidayanas
textual e sobretudo relacional, Ramalho e Resende (2011) acentuam que os gêneros
pressupõem relações entre pessoas e, mais detidamente, relações sobre outras pessoas, o que,
muito apropriadamente pode ser remetido à distribuição assimétrica de poder.
Uma proposta de análise crítica de gêneros textuais se organiza quando, em Bhatia
(2001, p. 105), nos é apresentado um debate acerca de temas como conhecimento
convencionalizado, integridade, versatilidade e inovação. E o autor ressalta que:

Embora os gêneros sejam tipicamente associados a contextos retóricos


recorrentes e sejam identificados com base em propósitos comunicativos
compartilhados, com restrições a possíveis contribuições no uso de formas
discursivas e léxico-gramaticais, eles são construtos dinâmicos.

O autor atesta, nesse contexto, uma tendência natural dos gêneros à imbricação e à
mescla. Já nesse ponto de seu postulado, ele chama a atenção para o considerável papel dos
gêneros promocionais no campo daquilo que vem atualmente sendo visto em termos de
“mistura de valores genéricos”. O que o autor aponta a esse respeito é revelador:

Embora seja verdade que, de todos os gêneros profissionais, os gêneros


promocionais, em particular os publicitários, são os que exibem maior
criatividade na construção e no uso dos recursos genéricos, os demais
gêneros podem ser igualmente manipulados (BHATIA, 2001, p. 108).

Posteriormente, ao debater sobre domínios e colônias de gêneros, Bhatia (2004) põe a


colonização como um processo que envolve invasão da integridade de um gênero por outro,
levando à criação de uma forma híbrida. Observando o fenômeno apoiado nos estudos de
Fairclough (2001[1992]) especialmente no que este se reporta aos processos de
232

comodificação e colonização, Bhatia (2004) se propõe a investigar sobre o princípio de


invasão da integridade territorial do gênero e apropriação de recursos genéricos para o que
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adianta que fronteiras entre e através dos domínios genéricos não são necessariamente fáceis
de delimitar.
Em seguida, Bhatia (2004) passa a apresentar uma abordagem detalhada sobre
características formais e funcionais dos gêneros promocionais, dando destaque para o anúncio
publicitário, do qual explana a estrutura dos movimentos retóricos. Nesse ponto, o autor
ressalta que “um dos mais importantes movimentos no discurso da publicidade é ‘oferecer
uma descrição do produto’ como bom, positivo e favorável” (BHATIA, 2004). E aponta a
publicitária como uma das mais dinâmicas e inovadoras formas de discurso hoje em dia,
tendo influência na construção, interpretação, uso e exploração de muitas outras formas de
gêneros acadêmicos, profissionais e institucionais.
Mas o termo análise crítica de gêneros surge apenas mais tarde em Bhatia (2008), em
que temos um relato de uma pesquisa maior, que visava investigar o uso/abuso de recursos
linguísticos em documentos periódicos de divulgação da gestão de grandes corporações, para
o que o pesquisador coletou dados de 15 empresas, categorizadas segundo seu desempenho
financeiro em boas, moderadas ou fracas, durante o período de 1988 a 2005. O trabalho se
propunha, assim, a uma desmistificação da apropriação de recursos linguísticos para maquiar
resultados a fim de melhorar a imagem da corporação frente a (potenciais) acionistas e à
comunidade financeira em geral.
O autor destaca para os estudos de gênero uma crescente tendência a uma ênfase do
texto para o contexto, pelo desenvolvimento de três aspectos inter-relacionados: a necessidade
cada vez mais premente de uma análise multidisciplinar; uma atenção mais redobrada para as
complexidades dos gêneros profissionais, para o que sugere um destaque para o caráter da
interdiscursividade; a urgência de uma abordagem multidimensional para a análise de
gêneros, pela integração de proposta analítica etnográfica, sociocognitiva, institucional, a par
de procedimentos meramente textuais de análise.
Temos, assim, uma explanação acerca da natureza do objeto de análise, em que se
constata que os assim chamados documentos corporativos de divulgação, tais como relatórios
anuais de gestão da empresa, são produções cujo propósito primordial é o de informar os
acionistas da empresa sobre seu desempenho e “saúde”, especialmente seus sucessos e falhas,
problemas correntes e perspectivas para futuro desenvolvimento. O estudo aponta que esses
233

relatórios têm, nos últimos anos, passado por uma crescente transformação em seu modo de
produção, migrando de um propósito basicamente informativo para um caráter promocional.
Página

As empresas “mistificam”, assim, sua imagem perante os leitores destes documentos,

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especialmente os acionistas minoritários, através de uma sutil flexibilidade de normas
comunicativas socialmente aceitas relacionadas a esses gêneros de divulgação corporativa.
O autor, por conseguinte, imbuído da tarefa de propor uma análise crítica de gênero,
lança um objetivo para trabalhos futuros na área, propondo que “talvez seja necessário
investigar como e em que medida um gênero aparentemente inofensivo pode ser usado para
mistificar o desempenho corporativo para acionistas e demais interessados no desempenho da
empresa” (BHATIA, 2008, p. 175). Isto em um processo em que, com cada vez mais força,
gêneros cuja essência formal e funcional não está necessariamente voltada para fins
promocionais têm sido cada vez mais reestruturados em função deste caráter.
Destaca o autor, nessa perspectiva, a necessidade de se deter mais em estudo sobre
tópicos como a intertextualidade, a interdiscursividade, distância de relações sociais de poder,
desigualdade de interação na relação de produção, circulação e consumo de gênero, numa
operação de ‘mão-única’. Para tanto, apela mais uma vez para a necessidade de uma
abordagem multidimensional para melhor compreensão do fenômeno abordado. Ocupa lugar,
nesse ponto, o exame de fenômenos como mescla, imbricação e flexibililização de normas
genéricas em práticas profissionais.

Para uma análise do design visual

Baseando-se em pressupostos da Gramática Sistêmico-Funcional, de Halliday, Kress e


van Leeuwen (2006) conceberam a Gramática do Design Visual (GDV). Ela prevê que o
aparato visual, tal como se concebe quanto à linguagem verbal, trabalha com formas próprias
de representação, lida com relações entre participantes do evento sociocomunicativo e opera
com relações de significado a partir do modo como se compõem os textos do ponto de vista
de sua estruturação e formato.
De acordo com a abordagem da Gramática Sistêmico-Funcional, o significado
linguístico, em sua interface com o aparato lexicogramatical, não se apresenta em uma relação
especular com a realidade. O que temos são dimensões da estrutura semântica que se
organizam para a construção em três dimensões: como representação, como intercâmbio,
como texto. Assim, temos um princípio metafuncional ideacional, quando da utilização da
234

linguagem para organizar, compreender e expressar as nossas percepções do mundo e a nossa


própria consciência, para descrever eventos, estados e as entidades nele envolvidas; uma
Página

metafunção interpessoal, porquanto utilizamos a linguagem para participarmos de atos de

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comunicação com outras pessoas, para com elas interagirmos, para com elas estabelecermos e
mantermos relações sociais, para influenciarmos seus comportamentos ou para lhes expressar
os nossos pontos de vista sobre a realidade; uma metafunção textual, quando utilizamos a
linguagem para organizar e relacionar o que dizemos ou escrevemos com outros eventos
linguísticos e com o mundo real (HALLIDAY; MATHIESSEN, 2004, p. 20; GHIO;
FERNÁNDEZ, 2008, p. 91).
Em uma primeira instância, a função representacional, derivada da metafunção
ideacional, lida com estruturas responsáveis pela construção visual de eventos, objetos, e
elementos envolvidos na cena em foco, bem como as circunstâncias em que ocorrem. Diz
respeito, portanto, à capacidade de os sistemas semióticos representarem objetos e suas
relações com o mundo exterior ao sistema de representação ou nos sistemas semióticos de
uma cultura (KRESS; van LEEUWEN, 2006, p. 47). Aponta, portanto, para o que “nos está
sendo mostrado, o que se supõe esteja ‘ali’, o que está acontecendo, ou quais relações estão
sendo construídas entre os elementos apresentados” (ALMEIDA, 2008, p. 12).
Ao que se costuma, nesse âmbito, chamar genericamente de objetos, elementos
envolvidos em cena, a GDV dá o nome de participantes, ou, mais precisamente, participantes
representados. Por um lado, o termo funciona para pôr a característica relacional de
‘participante em algo’ e, por outro, ele chama a atenção para o fato de se trabalhar com dois
tipos de participantes envolvidos no ato semiótico: os participantes interativos e os
participantes representados. Os primeiros são aqueles envolvidos no ato comunicativo,
aqueles que falam/ouvem, escrevem/leem, produzem as imagens ou as visualizam. Já os
últimos são os participantes que constituem os sujeitos tomados como matéria do ato de
comunicação, aquelas pessoas, lugares, coisas representadas na e pela imagem, participantes
acerca de que nós produzimos imagens (KRESS; VAN LEEUWEN, 2006, p. 48).
A função representacional em seu caráter de lidar, nas imagens, com os participantes
representados, que podem ser pessoas, objetos ou lugares, assumem, na concepção de Kress e
van Leeuwen (2006) uma subdivisão entre estrutura narrativa, quando há presença de vetores
indicando que ações estão sendo realizadas, e conceitual, quando se trata de uma taxonomia.
As representações narrativas são caracterizadas pela presença de uma ação,
desempenhada por um vetor, característico de um traço indicativo de direcionalidade. O tipo
235

de vetor, bem como o número de participantes envolvidos, indica algumas modalidades de


processos representacionais narrativos, tais como ação, reação, conversão, processo verbal,
Página

processo mental.

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Diferentemente das estruturas narrativas, em que são apresentados desdobramentos de
ações e eventos, processos de mudança e arranjos espaciais transitórios, as representações
conceituais são caracterizadas por tratar de participantes em um modo mais estático, em
termos de sua mais generalizada e mais ou menos estável e atemporal essência em termos de
classe, estrutura, sentido (KRESS; VAN LEEUWEN, 2006, p. 79).
Sob outro estrato, do ponto de vista da função interativa, aponta-se para a natureza dos
recursos visuais em termos da construção das relações entre quem vê e o que/quem é visto.
Para Kress e van Leeuwen (2006, p. 114), as imagens estão relacionadas a dois modos de
participantes, participantes representados (pessoas, lugares e coisas representadas nas
imagens) e participantes interativos (as pessoas que se comunicam umas com as outras
através das imagens, os produtores e os observadores das imagens), bem como três tipos de
relações: (a) entre os participantes representados; (b) entre os participantes interativos e
representados (atitudes dos participantes interativos para com os participantes representados);
e (c) entre os participantes interativos (as coisas que os participantes interativos fazem ou as
que fazem entre si através das imagens).
No que tange a um terceiro aspecto, o da função composicional, tem-se o caráter
relativo ao formato e estruturação do texto, apontando para “os significados obtidos através da
distribuição do valor da informação ou ênfase relativa entre os elementos da imagem”
(ALMEIDA, 2008, p.12). Ou seja, tratam da colocação dos elementos (dos participantes e dos
sintagmas que os conectam entre si e em relação ao espectador) dotando-os com valores de
informação específicos.
A função composicional, por conseguinte, também envolve enquadramento (ou sua
ausência) através de dispositivos que conectam ou desconectam elementos de composição, de
modo que a proposição tal como os vemos como juntos ou independentes, de alguma forma,
onde, sem enquadramento, iríamos vê-los de um modo contínuo e complementar. O princípio
de saliência é, pois, urgente nesse campo, o que é caracterizado pelo modo como dados
elementos são mais captáveis na imagem pelo olhar do observador.
236
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Análise crítica de gênero da mídia: a capa de revista

Figura 1: capa de revista de informação

Fonte: Veja, 15 out. 2014

Do ponto de vista do design visual, no gênero capa, em questão, nota-se o emprego de


recursos, em primeira vista, recorrentes para este veículo de mídia. No campo da organização
interativa da figura representada, temos uma aproximação, marcada detidamente pela
apresentação da distância social em que se opta pelo plano mais fechado, em um
enquadramento de close-up. O recurso permite uma representação da figura em tela como em
uma relação de intimidade, com o observador, no caso, o leitor potencial da revista de
informação, instaurado, como defendemos no presente trabalho, como público-alvo da peça
genérica. Podemos constatar a representação de um sorriso largo, não comedido, o que vem
sugerir uma posição de maior desprendimento, euforia, transparência, objetividade.
Agregue-se ao explanado o fato de se ter usado aqui o recurso do ângulo oblíquo, que,
representando uma posição de alheamento, implica em uma relação menos autoritária do
participante representado com o observador, deixando a este o poder de avaliar e, por
extensão, aprová-lo com uma atitude de escolha, em se tratando da ambiência do processo
eleitoral. Isto é aliado à estratégia de, quanto ao contato, uso do olhar de oferta, em que a
figura representada é oferecida ao observador como um objeto de contemplação.
237

Já quanto à modalidade, podemos notar uma construção de contextualização como


desprovida de elementos mais detalhados de cenário: o que é posto à disposição do
Página

observador é tão somente um fundo trabalhado em tonalidades de azul que, provavelmente de

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modo não gratuito, é contrabalanceado com toques de amarelo, destacáveis do corpo dos
elementos verbais, presentes na composição da capa. O recurso se encontra entre as assim
chamadas soluções básicas de aplicação simbólica da cor (GUIMARÃES, 2001, p. 125),
aquela marcada pela aplicação da cor no fundo para assim interferir na percepção da figura
principal. O conjunto azul-amarelo vem corroborar com a conjuntura institucional do próprio
partido do candidato em questão, o que vem pôr o exemplar em tela como transitando entre
uma peça de informação a serviço de um interesse público e uma peça panfletária em função
da promoção de um candidato em detrimento de outro no âmbito do complexo processo de
atividade eletiva majoritária.
Do ponto de vista do fotojornalismo, opera-se nesse caso com a foto plástica, com a
fotografia transcendendo seu papel de registro. A figura do então candidato da oposição,
deliberada e expressamente apoiado pelo próprio veículo de mídia em foco, passa por uma
representação mais estetizada. Este caráter é ainda mais reforçado, quanto recorremos a
aspectos como enquadramento, ângulo de câmera, recursos cromáticos, já referenciados
anteriormente.
No que diz respeito ao valor notícia, a edição procura fazer com que o leitor reconheça
um caráter de empatia, aquele em que quanto mais pessoas puderem identificar-se com o
personagem e a situação da notícia, mais importante ela se projeta para ser. Também aqui há
uma aposta na característica de inesperabilidade, raridade ou imprevisibilidade do evento, fato
incitado pela própria seleção léxica compositiva da manchete, ao se reivindicar o título de “o
fator surpresa”.

Considerações finais

O modo como se configura os gênero em análise, a capa de revista, enseja destacar o


aspecto da hegemonia e lutas hegemônicas. Fairclough (2003) aponta seu valor potencial
quando segue a visão marxista/gramsciana de política como estando inserida no campo das
lutas pela hegemonia, este particular modo de conceptualização do poder em termos daquilo
que, entre outras coisas, depende do consentimento, ou pelo menos aquiescência, sem ter de
recorrer necessariamente ao uso da força. Para tanto, a importância da ideologia se mostra
238

fundamental na manutenção das relações sociais de poder. As lutas hegemônicas entre forças
políticas podem ser vistas como parte de uma disputa entre aqueles que reivindicam suas
Página

visões e representações particulares do mundo como possuindo um status universal.

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Cria-se ali, para além de um gênero jornalístico, uma espécie de panfleto de
campanha, carregando-o com todo um jogo de elementos gráficos e editoriais para esse fim.
Não se deixa, entretanto, de se ter um regulamento promocional em tais ações. Ao se inclinar
em favor de um grupo político dos envolvidos no pleito eleitoral, o segmento de mídia passa a
trabalhar com uma espécie do que em teorias de marketing se chama de nicho de mercado,
passando a adotar elementos e posturas editoriais que venham a ser desenvolvidos em função
desse grupo configurado.
Por outro lado, o cotejo da investigação revelou um gênero jornalístico prenhe de
recursos que, embora não necessariamente projetado para, veio ser constituído de valores
característicos promocionais. A estruturação do design visual concorreu para esta empresa. Na
mobilização de significados representacionais, por exemplo, não rara foi a opção por
representações simbólicas, aliadas a outros recursos que concorreram para formar uma
atmosfera de impacto na proposição noticiosa.
Uma abordagem tal como a que foi aqui implementada aponta para uma necessidade
premente de se trabalharem gêneros da mídia e suas transformações na vida social da
atualidade, principalmente quando o foco é o de fomentar o processo de ensino-
aprendizagem de práticas de linguagem – leitura e produção de texto, a fim de que se possa
oferecer ao aluno condições para que este, exercendo leituras mais críticas de exemplares das
práticas discursivas, venha ser mais auxiliado na construção de exercícios de consciência e
cidadania.

Referências

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Pessoa, Ed. UFPB, 2008.

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239

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COSTA, Ivandilson. Análise do discurso da mídia: a recontextualização promocional do
texto jornalístico. 2016. 236f. Tese (Doutorado em Letras/Linguística) – Universidade Federal
de Pernambuco, Recife, 2016.

FAIRCLOUGH. Norman. Analysing discourse: Textual analysis for social research.


London/New York: Routledge, 2003.

_____. Discurso e mudança social. Brasília: Editora da UnB, 2001[1992].

GHIO, E.; FERNÁNDEZ, M. Lingüística sistémico funcional: aplicaciones a la lengua


española. Santa Fe: UNL, 2008.

GUIMARÃES, Luciano. A cor como informação: a construção biofísica, linguística e


cultural da simbologia das cores. São Paulo: Anna Blume, 2001.

HALLIDAY, M.A.K.; MATTHIESSEN, C.M.I.M. An introduction to functional


grammar. London: Arnold, 2004.

KRESS, G.; LEEUWEN, T. van. Reading images: the grammar of visual design.
London/New York: Routledge, 1996.

240
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GT2 – ESTUDOS SOBRE GÊNEROS: DIÁLOGOS ENTRE DIFERENTES
PERSPECTIVAS

DIALOGISMO BAKHTINIANO NOS ANÚNCIOS PUBLICITÁRIOS DE


COSMÉTICO

Jammara Oliveira Vasconcelos de Sá (DLV/ UERN)


Bruna Gabrieli Morais da Silva Thorpe (PPCL/ UERN)

Introdução

Este trabalho representa a análise de 10 dos 30 anúncios de cosméticos usados na tese


de doutorado19 intitulada: “Argumentação e processo referencial anafórico no anúncio
publicitário de cosmético”. Nosso principal objetivo foi analisar as marcas do dialogismo
bakhtiniano na composição dos textos do gênero anúncio publicitário de cosmético.
Para isso, utilizamos como aparato teórico as concepções de Bakhtin ([1952-
1953]/2003) acerca do dialogismo que defende, no processo de interação genérica, a não
existência do falante ativo e do ouvinte passivo, mas um diálogo entre eles, pois de acordo
com esta perspectiva todo enunciado espera uma resposta. Outro aspecto importante a ser
salientado é a concepção de anúncio com a qual trabalhamos. É importante destacar que, na
busca em analisar o fenômeno em estudo, partimos das concepções de Bhatia (2004) e das
contribuições de Sousa (2005) sobre os anúncios publicitários e ainda dos estudos de Palacios
(2004) acerca dos cosméticos para definir o anúncio publicitário de cosmético como um tipo
de anúncio publicitário do domínio discursivo pertencente à constelação dos gêneros
promocionais de caráter persuasivo, com o propósito comunicativo de divulgar produtos
indicados para a maquiagem e para os cuidados com a pele das mulheres.
Na busca por analisar o dialogismo nos anúncios, decidimos por investigar o
fenômeno através do método qualitativo por ser este o que melhor se adequa à análise que
desenvolvemos no artigo.
Nesta perspectiva, nosso artigo divide-se em duas partes excetuando-se a introdução,
as considerações finais e as referências. Na primeira parte, oferecemos ao leitor um maior
detalhamento acerca dos aspectos importantes acerca do dialogismo. Já na segunda parte,
241

19Tese intitulada: “Argumentação e processo referencial anafórico no anúncio publicitário de cosmético”


Página

defendida por Jammara Oliveira Vasconcelos de Sá no Programa de Pós-Graduação em Linguística da


Universidade Federal do Ceará/UFC em março de 2014.

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iniciamos delineando o percurso metodológico da pesquisa para apresentarmos, logo em
seguida, como o fenômeno do dialogismo se revelou nos anúncios analisados.
Antes de discutirmos como os fenômenos analisados se apresentaram em nossa
amostra, disponibilizamos ao nosso leitor um breve panorama do aporte teórico que orientou
nossa análise.

1 As relações dialógicas

Uma questão central nos estudos do Círculo de Bakhtin, além da discussão sobre
gêneros do discurso, é a perspectiva do dialogismo. De acordo com o que defende os
estudiosos do círculo, no âmbito desse conceito, não existe falante ativo e ouvinte passivo,
mas um diálogo entre eles, pois todo enunciado espera uma resposta. Partindo dessa
perspectiva, ambos são ativos, pois, quando o falante externa o seu enunciado ao outro, ele
expõe a sua voz, a sua ideologia e opinião e o ouvinte, neste processo, também é ativo, pois
responde à fala do outro. Nesta interação, a ideologia do ouvinte pode ser favorável ou
contrária à do outro.
Desta forma, mesmo que o ouvinte (ou leitor) fique em silêncio, ele está respondendo
de alguma forma aquele enunciado, pois mesmo em pensamentos, ou atitudes, aquele
enunciado possui uma resposta real. Os aspectos mencionados nos permitem admitir que
sempre há uma resposta para um enunciado anterior, caracterizando o diálogo como uma
cadeia de vozes infinitas.
É necessário salientar que para se estabelecerem as relações dialógicas, o autor do
enunciado utiliza o conhecimento de mundo que já possui, ou seja, o que aprendeu em sua
casa, na escola, com os amigos, o que já leu e assistiu. Em linhas gerais, todos os enunciados
com os quais é familiarizado. Bakhtin ([1952-1953]/2003) nomeia esses enunciados já
conhecidos como vozes precedentes.
A partir do que postula o autor, é através dessas vozes precedentes, sejam esses
enunciados seus ou de outros, que o sujeito terá suporte para realizar seu próprio enunciado
presente, através do qual poderá concordar, discordar, complementar, etc. São as vozes
anteriores que, de forma explícita ou implícita, estarão em seu enunciado. É desse modo que
242

as vozes precedentes irão ressoar na voz do autor, como, por exemplo: para a escrita dessa
pesquisa foi necessário um estudo prévio. Para isso, tudo o que foi lido, assistido e discutido
Página

sobre o assunto aparece, de algum modo, nesse trabalho dentro da voz do autor, ou seja, serve

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de base para a realização desta pesquisa. As vozes de todos os autores aqui mencionados estão
implicitamente ou explicitamente dentro do nosso enunciado, do texto ora apresentado. Com
isso, as vozes se mesclam, formando um novo enunciado que, ao mesmo tempo, traz vozes de
enunciados anteriores. Vejamos nas palavras de Bakhtin ([1952-1953]/2003, p. 298):

O enunciado é pleno de tonalidades dialógicas, e sem levá-las em conta é


impossível entender até o fim o estilo de um enunciado. Porque a nossa
própria ideia – seja filosófica, científica, artística – nasce e se forma no
processo de interação e luta com os pensamentos dos outros.

Convergindo para o defende o autor, todo enunciado é resultado de relações


dialógicas as quais são de fundamental importância para a compreensão dele, pois são essas
relações que formam o próprio enunciado. Nesse processo, a ideologia de alguém se
manifesta quando esse enunciador externa o seu enunciado e essa ideologia nasce através da
interação com outras ideologias.
Ao mesmo tempo em que utilizamos essas vozes precedentes, também nos
preocupamos com nosso destinatário. O autor do enunciado pensa na forma como expressa
sua opinião, pois espera que o outro, que está lhe ouvindo, concorde ou goste do que ele diz.
Desse modo, seu enunciado será formulado especificamente para o outro, que não é um outro
qualquer. O enunciado é sempre desenvolvido pensando na futura resposta, na provável
resposta que poderá ter, ou seja, nas vozes posteriores que ele pode suscitar.

O papel dos outros, para quem se constrói o enunciado, é excepcionalmente


grande [...] esses outros, para os quais o meu pensamento pela primeira vez
se torna um pensamento real [...] não são ouvintes passivos mas participantes
ativos da comunicação discursiva. Desde o início o falante aguarda a
resposta deles, espera uma ativa compreensão responsiva (BAKHTIN,
([1952-1953]/2003, p.301).

Bakhtin explicita o conhecimento prévio do outro, aspecto que o autoriza também a


formular respostas, ou seja, esse outro tem uma atitude responsiva, pois não apenas ouvirá,
dado que chegará um momento em que será concedido ao interlocutor o espaço para
responder, expressar sua voz.
A partir do exposto acima, podemos afirmar que o dialogismo está completamente
243

relacionado aos gêneros do discurso e ambos devem ser estudados conjuntamente, pois os
gêneros se concretizam por meio das relações dialógicas. Nesse processo, é importante
Página

considerar, também, a esfera de comunicação em que o enunciado se encontra, observando,

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dessa maneira, as relações dialógicas que fundamentam o enunciado, as vozes e os gêneros
precedentes, assim como, as vozes e os gêneros posteriores com os quais o enunciado se
relaciona.
Nessa teia de relações, os anúncios de cosmético revelam-se como um gênero muito
produtivo para a análise das relações dialógicas. Podemos adiantar acerca de nossa análise nos
anúncios que as vozes precedentes reveladas no gênero relaciona-se com as vozes posteriores
reafirmando o projeto de dizer do anunciante. Vejamos, no item seguinte deste trabalho, como
essa relação ocorre mais detalhadamente.

2 O dialogismo nos anúncios publicitários de cosmético

Nessa seção, apresentamos os passos metodológicos que orientaram nossa pesquisa e a


análise empreendida a partir da amostra. Para isso, dividimos o capítulo em quatro subseções.
Iniciamos com algumas reflexões que delineiam nosso trabalho e justificam nossa escolha
pelo método qualitativo para o trabalho com o anúncio publicitário de cosmético. Na segunda
subseção, apontamos os passos que adotamos para a pesquisa. Já na terceira subseção desta
metodologia, apresentamos um desenho da amostra analisada e, por último, mostramos,
resumidamente, como analisamos os anúncios que constituíram nossaompõem nossa amostra.

2.1 Metodologia

Como já mencionamos em nossa introdução, esta pesquisa apresenta uma


investigação, no âmbito das relações dialógicas, de parte da amostra da tese “Argumentação e
processo referencial anafórico no anúncio publicitário de cosmético” defendida no Programa
de Pós-Graduação em Linguística da Universidade Federal do Ceará/UFC em 2014. A
amostra dos 10 anúncios da tese nos levou a problematizar acerca de como as relações
dialógicas manifestam-se na tessitura dos sentidos do gênero anúncio de cosmético.
Neste sentido, esta pesquisa caracteriza-se como qualitativa, principalmente, por
compreendermos a natureza social e dialética dos fenômenos analisados e, ainda, por
entendermos, assim como Flick (2009), que este tipo de pesquisa oferece ao pesquisador a
244

possibilidade de observar a construção do social como realidade de estudo suscetível ao


diálogo com outros discursos que norteia, neste caso, a questão das relações dialógicas no
Página

gênero analisado.

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2.1.1 Os passos da pesquisa

O primeiro passo desta pesquisa refere-se à revisão da bibliografia, quando


“vasculhamos” a literatura existente sobre o tema, em diferentes suportes teóricos, o que nos
possibilitou identificar a necessidade de produção de mais trabalhos que melhor discutissem a
temática investigada neste artigo.
Em seguida, passamos à seleção dos textos dos anúncios publicitários de cosméticos
para a observação dos fenômenos analisados. É necessário salientar que a amostra da qual
selecionamos os anúncios analisados neste artigo, é composta de anúncios das marcas: Água
de Cheiro, Avon, Boticário e Natura20 que, com base em nossa vivência, revelaram-se como
as marcas preferidas das consumidoras. A partir disso, resolvemos elegê-las como lócus de
coleta dos dados desta pesquisa.

2.1.2 A seleção da amostra

No contexto social atual, o uso da web tem-se tornado uma prática cada vez mais
comum na rotina dos seres humanos. Assim, os sites da web são usados para fins variados,
inclusive, para a aquisição de produtos e serviços. Neste cenário digital, a compra e
solicitação de produtos que antes envolvia a assistência de uma consultora de cosméticos e,
outros “meios” como revista, catálogos passou a ser realizada, individualmente, em poucos
minutos e com, apenas, alguns clicks, através da internet.
Esta mudança de “atitude” tem chamado a atenção, não somente dos anunciantes, mas
dos linguistas, aspecto que motiva o interesse, cada vez maior, em observar a linguagem no
meio digital. Essa tendência tem influenciado, também, os estudos dos gêneros discursivos,
inseridos neste contexto social da sociedade atual, interconectada pelas ferramentas
disponíveis no meio digital.
A partir desta constatação, os anúncios foram selecionados no meio digital durante o
período de dezembro de 2011 a maio de 2012. Neste período, visitamos os sites das marcas
brasileiras de cosméticos já mencionadas. Dentre os 30 anúncios coletados para a amostra da
245
Página

20Estas marcas são amplamente divulgadas nos mais diferentes e diversificados meios de divulgação como:
revistas impressas, comerciais de TV, outdoor, dentre outros.

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tese, selecionamos por amostragem teórica21 apenas 10 anúncios das marcas: Natura
(www.natura.net/) e Avon (http://www.avon.com.br). É importante salientar que os textos dos
anúncios abordam temas relacionados a produtos indicados para a maquiagem e para o
tratamento da pele feminina.

2.1.3 Algumas reflexões sobre a amostra

Diante do que já foi exposto anteriormente acerca dos passos metodológicos da nossa
pesquisa, passamos para os principais pontos que se destacaram no decorrer de nossa análise.
Por uma questão de recorte, escolhemos, dentre os 10 anúncios selecionados, apenas 03 nos
quais os aspectos revelados em nossa análise manifestaram-se mais produtivos. Vejamos nos
anúncios:

A Melhor Expressão de Você Mesma.

Natura Una é uma linha completa de maquiagem que desperta o prazer e os sentidos, unindo
performance, tecnologia e ingredientes naturais, de um jeito único. Texturas diferenciadas e
sensorial prazeroso. Cores de personalidade numa paleta exclusiva. E fórmulas que, além de
retratar a beleza, ajudam a cuidar da pele. Uma linha com atenção a cada detalhe. Tudo para
deixar a maquiagem surpreendente e o rosto ainda mais radiante e luminoso.

246

21Estratégia da pesquisa qualitativa que se caracteriza por revelar, através dos métodos e/ou do universo
Página

selecionado, um potencial de aprofundamento das hipóteses da pesquisa (FLICK, 2009).

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Figura 1: Natura Una

Fonte: Natura (2011).

Ao observarmos esse anúncio, além de outros aspectos os quais pontuaremos no


decorrer da nossa análise, como por exemplo, as vozes precedentes e as posteriores, podemos
chegar a compreensão de que, assim como é geralmente recorrente nesse gênero discursivo,
esse anúncio apresenta como uma das características principais o efeito de persuasão, o qual
pretende atrair a atenção do outro para que faça o que se pede no anúncio, que é a compra do
produto.
Seguindo os estudos a respeito das relações dialógicas, podemos perceber que na
descrição nos deparamos com a passagem: "Natura Una é uma linha completa de maquiagem
que desperta o prazer e os sentidos, unindo performance, tecnologia e ingredientes naturais,
de um jeito único". Nela, podemos perceber algumas vozes que ressoam dentro dessa
afirmação, como por exemplo, vozes anteriores que afirmam que ao utilizar maquiagem a
mulher se sentirá feliz e despertará o seu lado sensual. Esse anúncio também demonstra a
preocupação com a questão do produto ser algo atual e tecnológico, dialogando com discursos
anteriores os quais afirmam que a tecnologia é condição indispensável para a fabricação dos
247

produtos para a pele. Da mesma forma que essas vozes podem ressoar, também nos
deparamos com a ideia de serem produtos com base natural, o que remete a ideologia de que
Página

produtos naturais agridem menos a pele e ajudam no rejuvenescimento.

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Essas vozes anteriores ou precedentes são de essencial importância para a
compreensão do anúncio como um todo, uma vez que a leitora, possível compradora, precisa
ter alguns conhecimentos para concluir se esses produtos são aceitáveis ou não para ela, se ela
precisa ou não desse kit de maquiagem. Também pontuamos algumas palavras como
"iluminada" e "sofisticada", as quais remetem a vozes que afirmam que mulheres que utilizam
maquiagem são mais sofisticadas e iluminadas, o que pode refletir em suas vidas e,
consequentemente, em sua felicidade.
Da mesma forma que esse anúncio traz diálogos anteriores, ele também suscita futuras
respostas, ou seja, vozes posteriores. Podemos perceber que os produtos, as cores, as palavras
selecionadas foram previamente planejadas e organizadas com a intenção de chamar a atenção
da possível leitora, ou seja, esse anúncio foi feito para um público específico, com uma
finalidade específica. Sua principal intenção é que a leitora veja os produtos e se interesse por
eles, essa é a resposta posterior que esse anúncio espera receber.
É interessante frisar que as relações dialógicas posteriores a esse anúncio podem ser
diversas, ou seja, a leitora pode ver e não se identificar com o produto ou pode ver e achá-lo
relevante. Também pode utilizar seu conhecimento prévio ao relembrar de alguém que falou
bem do produto. Com essa perspectiva, reconhecemos que as relações dialógicas estão
presentes na construção desse discurso, assim como na mente do destinatário, que, como
citado em nossa fundamentação teórica, é um sujeito ativo, ou seja, que tem uma resposta
acerca do anúncio.
Esta constatação repete-se também no anúncio “Avon Care” apresentado em seguida.

Figura 2: Avon Care


248
Página

Fonte: Avon (2012).

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O anúncio publicitário de cosmético apresentado acima foi veiculado no site da marca
Avon e apresenta relações dialógicas que o ajudam a cumprir o seu propósito comunicativo.
Se analisarmos de uma forma mais ampla as imagens apresentadas, percebemos que
foi utilizada a imagem de uma mulher, próxima da câmera, com a pele radiante, com uma
maquiagem leve, visando demonstrar mais a beleza suave da pele. O produto é aproximado
para que possa ser posto em destaque, com uma etiqueta, em azul escuro, que afirma a
quantidade de 1 litro para o produto, ou seja, buscando enfatizar que esse hidratante é
realmente grande e que a sua imagem no anúncio não foi aumentada sem um propósito
específico.
Ainda em relação ao design do produto e a estrutura do anúncio apresentados na figura
2, as letras foram organizadas de forma que chamem a atenção para alguns pontos específicos
do produto, como por exemplo, em referência mais uma vez ao tamanho do produto, aparece
a frase “Hidratação no tamanho ideal para você”, onde a palavra “hidratação” está em letras
maiúsculas e com uma cor diferenciada, recebendo destaque e relacionando-se com a
quantidade de hidratante que o produto oferece e também com a quantidade de hidratação que
o corpo humano necessita para que esteja suave e belo.
Logo em seguida, nos deparamos com uma relação dialógica explícita, uma vez que o
anúncio afirma “Embalagem especial decorada por Paulo Von Poser”, que é um artista
plástico brasileiro que costuma utilizar as rosas como sua assinatura. De acordo com seu
próprio site22 essa obsessão iniciou-se em 1989, quando Paulo ilustrou com desenhos de rosas
o Calendário do Museu de Arte Contemporânea de São Paulo (MAC-SP), o qual o tornou
conhecido como o “artista das rosas”. Achamos interessante essa relação com as rosas na
embalagem, pois remetem à feminilidade e sensualidade. Dessa forma, as rosas com as cores
e as escolhas fraseológicas tecem o conjunto desse anúncio de propaganda, para assim,
chamar a atenção da leitora e buscar ter uma resposta positiva. Passamos para a análise da
figura 3.
249
Página

22 Disponível em http://paulovonposer.com.br/a-rosa/.

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Figura 3: Super shock max

Fonte: Avon (2012).

No anúncio Super shock max, o anunciante procura convencer a consumidora de que a


aplicação do rímel ‘Super SHOCK MAX’ tornará seus cílios com “até 15 vezes mais
volume”. Assim, ao mostrar o “close” nos cílios da modelo associado às imagens do
cosmético, o anunciante sugere à consumidora que, se usar o cosmético, terá um resultado
igual ou, no mínimo, muito semelhante ao obtido pela modelo.
A partir de nossa análise no que tange ao projeto de dizer do anunciante, observamos
que o dialogismo serve de ponte entre a linguagem verbal e as imagens dos anúncios
convergindo para o projeto de dizer dos anunciantes do produto que percebemos tentar
persuadir a consumidora a comprar o produto. Esta constatação fica evidente, no caso da
figura 3, através do enquadramento em close dado nos olhos da modelo maquiados com o
produto e no aplicador do cosmético. As imagens em close posicionam-se ao lado de
informações destacadas sobre a composição do produto que apresenta “plumping complex”,
importante, na voz do anunciante para juntamente com o formato em espiral do mesmo
aplicador, proporcionar uma melhor aplicação e resultado de “volume além do limite dos
cílios” no olhar feminino, considerado segundo o anúncio o diferencial no rosto da
consumidora. Por fim, passamos às considerações finais do artigo.
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Considerações finais

Neste artigo, baseamo-nos na teoria do dialogismo desenvolvida pelo russo Mikhail


Bakhtin ([1952-1953]/2003) e pelos estudos de Bhatia (1993) para analisar o gênero anúncio
publicitário de cosmético. De acordo com o que defende Bakhtin ([1952-1953]/2003) em seu
renomado texto: “Os gêneros do discurso”, a língua é dinâmica pois varia de acordo com o
tempo, com os sujeitos envolvidos e com a esfera de comunicação em que eles se encontram.
Assim, observamos como a língua foi adaptada para atingir um propósito comunicativo
específico que, no caso dos gêneros discursivos apresentados na análise, é a compra dos
produtos, articulados no projeto de dizer do anunciante.
É importante salientar, também, que as relações de dialógicas estão presentes em
diferentes estágios: a formação do discurso, o planejamento do anúncio a ser veiculado no
site, dentre outros aspectos. Todas essas relações articulam-se como tentativas de influenciar a
consumidora a comprar o cosmético, representando, neste caso, uma resposta ativa da
consumidora. Outro aspecto que merece destaque está na constatação de que o mecanismo
linguístico estudado atua na conexão entre o verbal e o não verbal, reforçando a tentativa de
persuadir a consumidora a adquirir os produtos anunciados.
Outra constatação que observamos no decorrer da amostra e vislumbramos poder
analisar em estudos futuros foi a de que a atividade dialógica atua na repetição de discursos e
reafirma “verdades” defendidas por esse meio social, reproduzindo também ideologias.
Dentre as ideologias observadas, podemos apresentar como as mais presentes na
sociedade contemporânea e reproduzidas nos cosméticos as seguintes: a mulher moderna para
estar bem deve consumir cosméticos, a associação do uso da maquiagem à manutenção ao
padrão de beleza, a legitimação dos produtos da marca e a padronização da mulher.
Diante do que foi exposto, acreditamos ter demostrado o quanto pode ser produtiva a
análise do fenômeno do dialogismo no gênero analisado. O que, na nossa concepção, reafirma
o quanto podem ser promissores trabalhos nesta perspectiva.

Referências
251

AVON. SUPER Shock Max. São Paulo, 2012. Disponível em:


http://www.br.avon.com/PRSuite/productdetails.page.Acesso em: 05 maio 2012.
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BAKHTIN, M. M. ([1952-1953]). Os gêneros do discurso. In: Estética da criação verbal.
Trad. Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

BAKHTIN, M. M./ VOLOSHINOV, V. N. (1929). Marxismo e filosofia da linguagem.


Tradução Michel Lahud & Yara Frateschi Vieira. 12. ed. São Paulo: Hucitec, 2006.

FLICK, U. Desenho da pesquisa qualitativa. Tradução: Roberto Cataldo Costa. Porto


Alegre: Artmed, 2009.

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PALACIOS, A. R. J. As marcas na pele, as marcas no texto: sentidos de tempo, juventude e


saúde na publicidade de cosméticos em revistas femininas durante a década de 90. 279 p.
Tese (Doutorado em Comunicação). Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2004.

SÁ, J. O. V. Argumentação e processo referencial anafórico no anúncio publicitário de


cosmético. 191 p. Tese (Doutorado em Linguística). Universidade Federal do Ceará,
Fortaleza, 2014.

SILVA, A. P. P. F. S. Capítulo 2: Bakhtin. In: OLIVEIRA, Luciano Amaral (org.). Estudos


do Discurso. São Paulo: Parábola editorial, 2013.

SOUSA, M. M. A organização textual-discursiva dos anúncios de turismo no Ceará. 212


p. Tese (Doutorado em Linguística). Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2005.

252
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ISBN: 978-85-7621-221-8
GT2 – ESTUDOS SOBRE GÊNEROS: DIÁLOGOS ENTRE DIFERENTES
PERSPECTIVAS

O GÊNERO MEME E A INTERTEXTUALIDADE: PROPOSTA DE SEQUÊNCIA


DIDÁTICA PARA PRODUÇÃO DE ARTIGO DE OPINIÃO NAS AULAS DE LÍNGUA
MATERNA

Karla Jane dos Santos (UERN)

Introdução

A leitura e a produção de textos são atividades imprescindíveis para a interação do


individuo na sociedade, para sua participação no meio comunicativo e seu aceso às inúmeras
fontes de informação, sobretudo em uma sociedade cuja comunicação atualmente é realizada
muitas vezes em textos multimodais, que exigem do leitor habilidades diversas para
compreender o uso da linguagem verbal e não-verbal. Entendemos que a leitura está
relacionada à compreensão; trata-se de um processo de construção de conhecimentos, em que,
no processo comunicativo, o leitor tem participação efetiva. Os problemas de leitura,
compreensão e produção de textos se intensificam na escola pública, mais precisamente no
Ensino Fundamental. Há uma grande resistência dos alunos em participar e produzir nas aulas
de Língua Portuguesa, e essa ausência do uso do senso crítico os torna cada vez mais apáticos
e alheios aos fatos que vem ocorrendo na atualidade.
Tendo em vista esse cenário, entendemos que é muito importante o trabalho em sala
de aula com gêneros textuais que já fazem parte do cotidiano dos nossos alunos, por meio da
utilização das redes sociais, a exemplo dos memes e do artigo de opinião, gênero tão relevante
para a formação crítica do aluno na esfera comunicativa. Para tanto, consideramos o
pressuposto bakhtiniano de que nosso discurso está repleto de representações do outro, o que
o torna polifônico, dialógico, regido pelo fenômeno social da interação verbal e da
intertextualidade. Consideramos também o procedimento Sequência Didática (SD),
desenvolvido por Schneuwly e Dolz (2004), como metodologia para o ensino da produção do
artigo de opinião, pois auxilia no ensino da compreensão da estrutura do texto e seus
mecanismos de produção, além da aprendizagem por módulos dos diversos gêneros textuais.
Portanto, pretendemos verificar se e como a SD pode influenciar na produção do gênero
253

argumentativo,através do auxílio da proposta de redação com o uso da compreensão de


memes e exemplos de outros artigos de opinião apresentados e discutidos em sala de aula.
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Entendemos, assim, que é de extrema importância compreender como o aluno
interpreta memes e outros artigos de opinião, e em seguida escreve este gênero por meio de
informações do seu próprio conhecimento de mundo, atreladas aos intertextos que tem
contato no cotidiano. Além disso, essa pesquisa pode auxiliar na busca de soluções para a
melhoria do ensino de leitura e especificamente, neste estudo, no Ensino Fundamental.

1 Os memes e os artigos de opinião

O cenário comunicativo atual na escola vem sofrendo mudanças, à medida que vão
surgindo novos letramentos e, como consequência, gêneros textuais emergentes. O professor
precisa saber lidar com o funcionamento dos textos que fazem parte do cotidiano do aluno,
sobretudo na internet, no âmbito das redes sociais.
Os memes, muito presentes nas redes sociais, constituem práticas sociais relacionadas
às temáticas polêmicas, tratando-se de um gênero bastante usual, que posteriormente ainda se
renova, ativando novas características, atualizando-se, conforme o contexto comunicativo.
Segundo Gazy Andraus (2005), a definição de meme é:

o termo “meme” foi definido pelo biólogo Richard Dawkins, a partir da


palavra grega mimeme, e pode ser entendido como um elemento não físico
que se utiliza do cérebro como artefato de replicação. Dessa forma, um
meme é qualquer unidade de imitação e de transmissão cultural, que pode se
organizar em memeplexos e influenciar toda a evolução humana (e animal
também), propagando-se como imitação. Podem-se incluir as próprias
linguagens humanas, as teorias científicas, as ideologias políticas, as crenças,
as religiões etc. (ANDRAUS, 2011, p. 3).

Portanto, segundo ANDRAUS, percebe-se que a produção do meme passa por um


processo contínuo que vai desde a transmissão da infomação, passa pelo entendimento ou
compreensão e vai até a reprodução do gênero. Nesse processo ocorre um redimensionamento
das informações e, consequentemente uma mudança de paradigma, reproduzindo discursos,
inovando modos de ver a realidade e interagir na sociedade . A participação de pessoas
conectadas com outras nas redes sociais, o repasse de conteúdos e a troca de opiniões através
do compartilhamento de arquivos contribuem para a interação social comunicativa, temática
254

muito relevante abordada por Lemos (2009, p. 39) que “trata-se de crescente troca e processos
de compartilhamento de diversos elementos da cultura a partir das possibilidades abertas pelas
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tecnologias eletrônicas digitais e pelas redes telemáticas contemporâneas”. Observando essa

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característica de fácil propagação dos memes em redes sociais, tais como o Facebook,
percebe-se que o meme possui uma característica mais social do que simplesmente
informativa e essa função social do gênero pode ser aproveitada nas aulas de língua materna
do Ensino Fundamental.
O artigo de opinião trata-se de um gênero que utiliza a argumentação para analisar,
avaliar e responder uma questão polêmica que gera controvérsias e muitas possibilidades de
discussão em sala de aula. O gênero discute um tema atual importante para os leitores,
buscando convencer o outro e utilizar uma série de opiniões para tal finalidade é essencial
para que se construa um texto pertinente. Conforme RODRIGUES, “nesse gênero interessa
menos a apresentação dos acontecimentos sociais em si, mas a sua análise e posição do
autor.” A tipologia textual de base é a dissertativa, e de acordo com Kõche “ No processo de
produção o autor coloca-se no lugar de leitor e antevê suas posições para refutá-las. Ou seja,
ele justifica suas afirmações, tendo em vista possíveis questões ou conclusões contrárias,
suscitadas pelo destinatário” (KÖCHE, 2014. p. 34).
A exposição de um ponto de vista no artigo de opinião e a divulgação em massa de
determinado argumento por meio do gênero meme pode ser considerada um ponto de
intersecção nas características entre os dois gêneros, e essa natureza argumentativa pode ser
percebida por meio da reação dos interlocutores ao visualizar o meme, concordar com
determinado argumento e passar a divulgá-lo por meio de compartilhamento. Na sala de aula,
aliamos a leitura de artigo de opinião e a interpretação dos memes para compor o processo de
análise de textos e posteriormente a escrita direcionadas com propostas de produção de texto
que contenham os dois gêneros.

2 Bakhtin e a teria do dialogismo

Para que o professor de língua materna possa exercer uma prática situada, deve
selecionar padrões de um gênero discursivo, definido por Bakhtin como formas de
composição do enunciado e seu estilo em função da composição de um tema, ou seja, de
certos efeitos de sentido visados pela vontade enunciativa do locutor e dependentes de sua
perspectiva. Conforme Silva (2013), “No pensamento bakhtiniano, o enunciado é um todo
255

formado pela parte material (verbal ou visual) e pelos contextos de produção, circulação e
recepção.” Portanto, o processo e o produto da enunciação são constitutivos do enunciado, ou
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seja, é relevante analisar as possíveis origens de um enunciado, tais como quem é o autor, em

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que suporte o gênero circula, um leitor a quem se destina; esses elementos criam sentido ao
enunciado e determina a interação dos sujeitos envolvidos na comunicação.
Conforme Bakthin, não existe enunciado concreto sem interlocutores, o dialogismo é
produto da interação entre o leitor e o ouvinte, para o qual

[...] todo discurso concreto (enunciação) encontra aquele objeto para o qual
está voltado, sempre, por assim dizer, desacreditado, contestado, avaliado,
envolvido por sua névoa escura ou, pelo contrário, iluminado pelos discursos
de outrem que já falaram sobre ele. O objeto está amarrado e penetrado por
idéias gerais, por pontos de vista, por apreciações de outros e por
entonações. Orientado para o seu objeto, o discurso penetra neste meio
dialogicamente perturbado e tenso de discursos de outrem, de julgamentos e
de entonações. Ele se entrelaça com eles em interações complexas,
fundindo-se com uns, isolando-se de outros, cruzando com terceiros; e tudo
isso pode formar substancialmente o discurso, penetrar em todos os seus
estratos semânticos, tornar complexa a sua expressão, influenciar todo o seu
aspecto estilístico (Bakhtin, 1998, p. 86).

Portanto, o dialogismo corrobora a ideia de que todo discurso é ocupado, atravessado


pelo discurso alheio e trata-se da relação de sentido que se estabelece entre enunciados. O
objeto do discurso, quando exposto, mostra-se sempre repleto de discursos de outros, que nem
sempre são voltados pra si, mas para o objeto que o circundam. Os discursos partem sempre
de outros, seja através de oposição, confirmação, comparação, ironia, e neles estão sempre
presentes lembranças de outros enunciados, tendo um acabamento específico que admite
resposta. Por isso, a relação dialógica entre discursos possibilita uma resposta e essas vozes
estão sempre presentes embora não se manifestem.

3 A intertextualidade

O fenômeno da intertextualidade é, segundo Bazerman (2007, p. 92), “uma das bases


cruciais para o estudo da prática da escrita”. Assim, conceitos como os de Bakhtin acerca
desse tema são fundamentais para o entendimento das práticas de produção textual. Ao
introduzir, em seus estudos de linguagem, o conceito de atitude responsiva ativa, Bakhtin
revela a amplitude da atividade intertextual, uma vez que lemos e escrevemos em resposta a
256

uma leitura e escrita, relacionando idéias, retomando conceitos.


O texto, por ser uma manifestação de um enunciado, trata-se de uma realidade por ser
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formada por palavras. O enunciado é a ordem do sentido e o texto é o domínio da

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manifestação. Assim, devemos observar que a intertextualidade implica a existência da
interdiscursividade, mas a interdiscursividade não implica a existência da intertextualidade,
pois nem sempre o discurso é materializado em texto. Segundo FIORIN, “Intertextualidade
deveria ser um tipo composicional de dialogismo: aquele que há no interior do texto o
encontro de duas materialidades linguísticas, de dois textos.” (FIORIN, 2016. p. 58) Na
prática, compreender um texto com predominância da intertextualidade é entender que a
interdiscursividade está presente em nele.
A relação que os textos estabelecem com os outros textos é constitutiva, seja formada
por fragmentos de outros textos ou pequenos detalhes que são percebidos geralmente pela
inferência. Os textos multimodais que não se valham somente da linguagem verbal, podemos
verificar essa inferência na maioria dos casos, o que a lingüística textual chama de
détourrnement, ou seja, “ levar o interlocutor a ativar o enunciado original, para argumentar a
partir dele; ou então ironizá-lo, ridicularizá-lo, contraditá-lo, adaptá-lo a novas situações ou
orientá-lo para outro sentido, diferente do sentido original”, como afirmam Koch, Bentes e
Cavalcante (2012, p.45), como observamos nos memes pois a intertextualidade parte de um
texto pre-existente, ressignificando-o, o que não impede a existência da alusão, paródia ou
ironia, mais recorrentes em textos com linguagem verbal predominantes, como o caso dos
artigos de opinião.

4 Sequência didática para aplicação em sala

Propomo-nos, portanto, a verificar, as categorias de intertextualidade presentes nos


artigos de opinião escritos por alunos do nono do Ensino Fundamental da discplina de Língua
Portuguesa – Produção de Texto, considerando o pressuposto bakhtiniano de que nosso
discurso está impregnado de representações do outro, o que o torna polifônico, dialógico,
regido pelo fenômeno social da interação verbal. Para tanto, entende-se necessária a aplicação
de uma sequência didática para a produção dos textos. O objetivo desse trabalho consiste em
ressaltar a importância da intertextualidade – a fim de direcionar o aluno na representação de
suas opiniões por meio da sua experiência, por meio do conhecimento de mundo e das
informações que adquiriu com a leitura de outros textos sobre o assunto em questão. A partir
257

dessa representação, é possível identificar a utilização da intertextualidade, e assim o aluno


tem a possibilidade de reinterpretar situações propostas nos memes e textos contidos nas
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propostas de redação.

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O trabalho de revisão e reescrita feito pelo aluno tem a intenção de contemplar as
ideias de Schneuwly e Dolz (2004):

O texto permanece provisório enquanto estiver submetido a esse trabalho de


reescrita. Podemos até dizer que considerar seu próprio texto como objeto a
ser retrabalhado é um objetivo essencial do ensino da escrita. O aluno deve
aprender que escrever é (também) reescrever. A estruturação da sequência
didática em primeira produção, por um lado, e em produção final, por outro,
permite tal aprendizagem (SCHEUNEWLY; DOLZ, 2004, p.112).

A pesquisa, portanto, possui um caráter interpretativista, por isso a necessidade de


análise de produções de texto, e de cunho qualitativo, com o objetivo de compreender e
interpretar as informações contidas no discurso dos sujeitos da pesquisa.
Para a aplicação desta proposta, planejamos um conjunto de sequências de atividades
com o gênero textual artigo de opinião que teve como referência o procedimento de sequência
didática proposto por Dolz e Schneuwly (2004). Segundo esses autores, “[...] uma sequência
didática é um conjunto de atividades escolares organizadas, de maneira sistemática, em torno
de um gênero textual oral ou escrito” (DOLZ; SCHNEUWLY, 2004, p. 97).
A pesquisa-ação aponta novas alternativas que estimulam os alunos a se tornarem
proficientes produtores de texto. De acordo com Thiollent (2005), [...] pesquisa-ação é um
tipo de proposta social com base empírica que é concebida e realizada em estreita associação
com uma ação ou resolução de um problema coletivo e no qual os pesquisadores e os
participantes representativos da situação ou problema estão envolvidos de modo cooperativo
ou participativo (THIOLLENT, 2005, p. 26).
O autor pontua que uma pesquisa-ação apresenta a efetiva presença dos participantes
implicados no problema proposto como alvo para intervenção. Para isso, dois objetivos
direcionam o desenvolvimento das atividades organizadas sob os pressupostos desta pesquisa,
um voltado para conhecimento e outro para prática. O primeiro visa à obtenção de
informações ou aumento de conhecimento sobre determinado tipo de problema considerado
relevante, já o segundo está relacionado à solução do problema. A sequência didática está
dividida em nove encontros, devendo ter a ordem seguinte:
No primeiro encontro, os alunos devem analisar dois artigos de opinião (exemplo no
258

anexo), por meio de uma discussão sobre o tema Racismo. Logo após a leitura, os alunos
devem responder um exercício que permitirá a identificação de vozes alheias no texto, dando
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início a análise da polifonia e da intertextualidade nos textos. No segundo encontro, os alunos

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devem ser apresentados à situação comunicativa, por meio de questões polêmicas contidas
nos memes (exemplo no anexo), no que diz respeito ao assunto Racismo, o que proporcionará
a análise de memes e debate sobre os temas que os compõem, como a motivação para a
produção do meme, criando assim posicionamentos através de argumentos.
Em seguida, no terceiro encontro, os alunos devem analisar a estrutura do artigo de
opinião, interpretando a tese central da argumentação e localizando os outos argumentos. Já
no quarto encontro, os alunos devem fazer a primeira produção do artigo de opinião a partir
dos memes e artigos de opinião lidos, nesse momento será feita a distribuição de textos
motivadores e folhas de redação.
No quinto e sexto encontros será a fase da correção, dos artigos e orientação sobre as
devidas observações a respeito dos desvios gramaticais e textuais e reescrita de texto de
acordo com a necessidade de substituir termos, reordenar ideias, reelaborar sentenças. A
segunda reescrita de texto será feita de acordo com a necessidade de substituir termos,
reordenar ideias, reelaborar sentenças, substituir conectivos.
No sétimo, oitavo e nono encontros será a produção final do artigo de opinião, junto com
a correção dos artigos e orientação sobre as devidas observações a respeito dos desvios
gramaticais e textuais. Posteriormente, será realizada a exposição das versões dos textos, para
que cada aluno visualize o avanço do outro. Sendo a etapa final a divulgação dos textos em
blog para que a comunidade escolar e outras pessoas tenham acesso aos textos.

Conclusões

A reflexão em torno dessas estratégias tem a intenção de influenciar positivamente na


produção de textos dos alunos. Os discentes do Ensino Fundamental vivenciam no cotidiano
com uma multiplicidade de gêneros, seja no meio analógico ou no meio digital, por isso a
necessidade de disponibilizá-los na sala de aula. Espera-se que com essa sequência de
atividades, uma leitura produtiva, através de discussões na sala de aula sobre os assuntos
abordados nos memes enriqueçam os textos dos alunos e ampliem a capacidade de representar
suas próprias opiniões de acordo com a leitura de textos disponibilizados para os alunos no
cotidiano.
259

Koch e Elias (2006, p. 122) sustentam a ideia da relevância dos gêneros para
produção/compreensão dos textos, afirmando que:
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[...] o estudo dos gêneros constitui-se, sem dúvida, numa contribuição das
mais importantes para o ensino da leitura e redação. [...] somente quando
dominarem os gêneros mais correntes da vida cotidiana, nossos alunos serão
capazes de perceber o jogo que frequentemente se faz por meio das
manobras discursivas.

Com base no que foi exposto e nas atividades que serão aplicadas, podemos concluir
que é necessário refletir sobre as práticas dos professores de Ensino Fundamental em sala de
aula a fim de promover uma consciência linguística e discursiva para a construção e análise de
textos na contemporaneidade. O uso de textos multimodais nas propostas de redação tem a
vantagem de inovar a aula de língua materna, e podem sim ser fundamentados por textos
escritos de acordo com norma culta, apesar de terem sido retirados da internet.
Na prática discursiva, um conjunto de ideias implícitas que se expressam consciente
ou inconscientemente, o texto vai adquirindo sua função social de convencer o leitor e o
aluno, por sua vez, demonstra a sua capacidade de ser crítico diante de situações problema e
exercer seu papel de cidadão na sociedade.
Outra reflexão importante é o modo como se constrói o texto de acordo com a
sequência didática, sobretudo com a inclusão das mídias digitais no contexto atual. No
processo de escrita e reescrita, é preciso abrir espaço para as discussões em sala de aula sobre
a configuração dos textos, as referências às vozes alheias que se fazem nos textos, entre outros
elementos que constituem o texto; tudo isso, sem retirar o espaço do uso correto da coesão,
coerência, grafia que já fazem parte do cotidiano do professor.

Referências

ANDRAUS, Gazy. O Meme nas Histórias em Quadrinhos. Trabalho apresentado no NP16 -


Histórias em Quadrinhos durante o XXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da
Comunicação, Anais... Rio de Janeiro, RJ, 05-09, setembro, 2005. Disponível em:
<http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2005/resumos/R1279-1.pdf>. Acesso em: 20.
05. 2016

DOLZ, Joaquim; NOVERRAZ, M.; SCHNEUWLY, B. Sequências didáticas para o oral e a


escrita: apresentação de um procedimento. In: SCHNEUWLY, B.; DOLZ, J. et al. Gêneros
orais e escritos na escola. Trad. e org. Roxane Rojo e Glaís S. Cordeiro. Campinas: Mercado
de Letras, 2004.
260

FIORIN: José Luiz de. Introdução ao pensamento de Bakhtin. 2. ed. São Paulo: Contexto,
2016
Página

ISBN: 978-85-7621-221-8
KOCH, Ingedore G. Villaça; BENTES Anna Christina; CAVALCANTE, Mônica
Magalhães. Intertextualidade: diálogos possíveis. São Paulo: Cortez, 2007.

KOCH, Ingedore G. V; ELIAS, Vanda M. Ler e compreender: os sentidos do texto. São


Paulo: Contexto, 2006.

KÖCHE, Leitura e produção textual: gêneros do argumentar e expor/Vanilda Salton Köche,


Odete Maria Benetti Boff, Adiane Fogali Marinello. 6.ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.

LEMOS, André. Anjos interativos e retribalização do mundo: sobre interatividade e


interfaces digitais. 2002. Disponível em:
http://www.facom.ufba.br/ciberpesquisa/lemos/interativo.pdf>. Acesso em: 03 ago. 2017.

OLIVEIRA, L.A, SILVA, J.O, SILVA, J.O et AL. Estudo do Discurso- Perspectiva
Teóricas. São Paulo. Parábola Editorial, 2013.

RODRIGUES, Rosângela Hammes. Os gêneros do discurso na perspectiva dialógica da


linguagem: uma abordagem de Bakhtin. (p.152 - 183) In: MEURER, J. L.; BONINI, Adair;
MOTTA-Roth, Désirée (orgs.). Gêneros: teorias, métodos. São Paulo: Parábola Editorial,
2005.

THIOLLENT, Michel. Metodologia da pesquisa-ação. 18. ed. 2. reimp. São Paulo: Cortez,
2011.

Anexos:

encurtador.com.br/fyQS7 Acesso em: 20 de agosto de 2017

OPINIÃO: Somos todos macacos? Publicado em 8 de maio de 2014 Por MENELAU


JÚNIOR

Semana passada, um gesto do jogador do Barcelona Daniel Alves chamou a atenção


do mundo inteiro. Quando ia cobrar um escanteio, o brasileiro foi alvo de uma banana jogada
por um torcedor. Associar morenos e negros a macacos é um xingamento em várias partes do
261

mundo. Daniel, ironicamente, pegou a banana, descascou-a e a pôs inteirinha na boca. Em


seguida, cobrou o escanteio e o jogo seguiu. Na internet, Neymar tirou uma foto ao lado do
filho segurando uma banana e escreveu a hashtag #somostodosmacacos. Pronto: o slogan
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correu o mundo. O que pouca gente sabia é que o slogan fora criado anos antes por uma
agência de publicidade.
É óbvio que a atitude de Daniel Alves ajudou a trazer à tona a sempre atual discussão
sobre racismo e preconceito. É também óbvio que a turma do oba-oba – incluindo anônimos e
muitos, muitos artistas – aderiu à “campanha”. Não aderi porque não sou macaco, embora
creia que todos sejamos uma evolução deles. Questiono o sentido literal da expressão “somos
todos macacos”. Ela, ao mesmo tempo em que dá a entender que os seres humanos são iguais,
reforça a ideia de que negros são macacos. Ou seja, pode até haver uma boa intenção na
mensagem, mas ela não deixa de reforçar preconceitos históricos.
Na internet, cada um escreve o que quer e posta o que quer. Uma amiga postou em seu
perfil numa rede social: “Homem é homem, macaco é macaco, e racismo é crime”. Foi a frase
mais inteligente que li sobre o assunto. Outro amigo aproveitou a deixa para fazer uma crítica
ao sistema de cotas: “Se somos todos macacos, para que o sistema de cotas?”, questionou.
Mas a maioria repetiu, como papagaio, o slogan “Somos todos macacos”.
Particularmente, não creio que o Brasil seja um país racista como governantes
populistas tentam nos fazer crer. Preconceito há contra gordos, contra gays, contra loiras e
contra negros. O problema por aqui é muito mais social que étnico. Por aqui, as pessoas
sofrem preconceito porque “têm jeito de pobre”, porque “se vestem como pobres” ou porque
são pobres. E aí não adianta ter olhos verdes e cabelos loiros. O nosso preconceito é contra a
pobreza. Querer dividir o Brasil em pretos e brancos é só mais um recurso vergonhoso de
quem abusa da inocência e da ignorância alheia.
Para terminar, macacos estão entre os animais mais inteligentes da natureza. Mais de
99% do nosso DNA é igual ao deles. As diferenças biológicas, portanto, são mínimas. Mas o
suficiente para que macacos não se matem por causa de times de futebol, não sejam hipócritas
em seus discursos, não matem seu semelhante por nada. Honestamente, os macacos não
merecem a comparação com os seres humanos.
<http://blogdowagnergil.com.br/vs1/2014/05/08/opiniao-somos-todos-macacos/> Acesso em:
20 de agosto de 2017.

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GT2 – ESTUDOS SOBRE GÊNEROS: DIÁLOGOS ENTRE DIFERENTES
PERSPECTIVAS

RESPONSIVIDADE DISCURSIVA POR MEIO DO GÊNERO ARTIGO DE OPINIÃO

Kely Any Vasconcelos Morais (Profletras/UERN/Unidade de Assu)


Risoleide Rosa Freire de Oliveira (Profletras/UERN/Unidade de Assu)

1 Introdução

Esta pesquisa mostra-se relevante, uma vez que pode possibilitar novos caminhos para o
ensino do gênero discursivo artigo de opinião nas aulas de língua portuguesa no ensino
fundamental, fomentando a postura crítico-argumentativa dos alunos. Para tanto, toma como
subsídio a teoria-análise dialógica do discurso do Círculo de Bakhtin, a qual pode prepará-los
para assumir uma atitude responsiva, seja concordando seja discordando de enunciados com
os quais dialogam, tanto na esfera escolar quanto extraescolar.
Tal proposta foi adotada com base na prática docente das autoras em sala de aula, a
partir da qual se observou que os alunos dos anos finais do Ensino Fundamental sentem
dificuldades em argumentar, tanto por meio de gêneros escritos quanto orais. Na tentativa de
contribuir para minimizar essa problemática, analisam-se dois artigos de opinião com o
objetivo de familiarizá-los quanto aos aspectos composicionais, estilísticos e temáticos desse
gênero e estimulá-los à discussão de ideias e opiniões. Segundo Boff, Köche e Marinello
(2009, p. 01):

O gênero “artigo de opinião” desempenha importante papel na sociedade,


pois é um meio de interação entre o autor e os leitores de jornais e revistas
impressas e de circulação online. Utilizar, portanto, esse gênero nas aulas de
língua portuguesa pode ser um caminho para alcançar com maior eficácia os
objetivos do ensino de língua materna. É com o uso do texto que se
estabelece a comunicação, ampliam-se ideias e pontos de vista, garantindo-
se um melhor entendimento da sociedade e, consequentemente, o
aperfeiçoamento das relações que nela se estabelecem.

2 Gênero discursivo

As discussões sobre o dialogismo foram desenvolvidas no chamado “Círculo de


263

Bakhtin”. Os pensadores desse grupo entendem o dialogismo como processo de interação


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entre enunciados, processo no qual um texto revela, em seu interior, a existência de outros
enunciados.

Cada enunciado deve ser visto antes de tudo como uma resposta aos
enunciados precedentes de um determinado campo (aqui concebemos a
palavra “resposta” no sentido mais amplo): ela os rejeita, confirma,
completa, baseia-se neles, subentende-os como conhecidos, de certo modo
os leva em conta. Porque o enunciado ocupa uma posição definida em uma
dada esfera de comunicação, em uma dada questão, em um dado assunto,
etc. É impossível alguém definir sua posição sem correcioná-la com outras
posições. Por isso, cada enunciado é pleno de variadas atitudes responsivas a
outros enunciados de dada esfera da comunicação discursiva (BAKHTIN,
[1952-1953],2011, p. 297).

A enunciação surge em função de um interlocutor, considerando, com antecipação,


como o outro pode vir a se relacionar com esse enunciado. O autor projeta seu texto em face
das expectativas do leitor. Na mesma obra, segundo Bakhtin (p. 271) “[...] o ouvinte. ao
perceber e compreender o significado (linguístico) do discurso, ocupa simultaneamente em
relação a ele uma ativa posição responsiva: concorda ou discorda dele (total ou parcialmente),
completa-o, aplica-o, prepara-se para usá-lo, etc.”
Da perspectiva bakhtiniana não há uma neutralidade por parte do interlocutor, que
sempre assume uma posição responsiva, podendo interferir, criticar, fazer deduções, enfim,
concordar ou discordar do enunciado anterior, com o qual se relaciona.
O autor observa ainda: “[...] o enunciado é um elo na cadeia da comunicação discursiva
e não pode ser separado dos elos precedentes que o determinam tanto de fora quanto de
dentro, gerando nele atitudes responsivas diretas e ressonâncias dialógicas.” (BAKHTIN,
[1952-1953],2011, p. 300). Para se analisar o discurso, é imprescindível observar que o
enunciado é formado tanto por vozes alheias anteriores, quanto voltado a futuras respostas
que pode gerar.
Segundo Brait e Melo (2008, p. 63):

Grosso modo, é possível dizer que enunciado, em certas teorias, equivale a


frase ou sequencias frasais. Em outras, entretanto, que assumem um ponto de
vista pragmático, o termo e consequentemente o conceito por ele gerado são
utilizados em oposição à frase, unidade entendida como modelo, como uma
264

sequência de palavras organizadas segundo a sintaxe, portanto, passível de


ser analisada “fora de contexto”. O enunciado, nessa perspectiva, é
concebido como unidade de comunicação, como unidade de significação,
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necessariamente contextualizado. Uma mesma frase realiza-se em um


número infinitos de enunciados, uma vez que esses são únicos, dentro de

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situações e contextos específicos, o que significa que a “frase” ganhará
sentido diferente nessas diferentes realizações “enunciativas”.

Para Bakhtin, o sujeito não traz em seu enunciado algo totalmente inédito, já que sua
fala é fruto de outros sujeitos/enunciados. Nesse sentido, a linguagem é vista como um
fenômeno social e ideológico, e a enunciação como um processo de interação social, em que o
autor revela em seu discurso o seu contexto social, suas crenças e suas experiências.
As atividades linguísticas se materializam por meio dos gêneros discursivos que
possuem modelos relativamente estáveis, já que apresentam regularidades determinadas pelo
contexto enunciativo que os estabiliza. Essa regularidade dos gêneros se dá “pela seleção dos
recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da língua, mas, acima de tudo, por sua
construção composicional.” (BAKHTIN, [1952-1953], 2011, p. 261). Um contexto social
que, de algum modo, normatiza o gênero. Apesar dessa regularidade, a diversidade dos
gêneros discursivos é inexaurível já que seus locutores os dinamizam, tendo em vista que os
gêneros do discurso surgem e se desenvolvem para suprir uma necessidade de comunicação
específica.
O locutor/interlocutor se enquadrará em uma estrutura comunicativa padronizada
relativamente estável de enunciado – um gênero discursivo, que nasce a partir de um
determinado contexto histórico - social. Havendo mudança nas condições de produção desse
enunciado, pode haver mudanças na forma, gerando, assim, mudanças no gênero ou até
mesmo o desenvolvimento de outro gênero discursivo.
Os gêneros ilustram os textos à que podemos expor os alunos no momento do ensino-
aprendizagem. É importante que o aluno conheça os variados usos dos textos, para atividades
em salas de aula e fora dela, pois os gêneros discursivos estão presentes em diversas formas e
em variadas situações sociais.
Cada gênero tem características próprias e assim pode ser identificado. Apesar dessa
“maleabilidade”, eles possuem estruturas que os caracterizam. Um artigo de opinião, por
exemplo, tem uma forma muito diferente de um poema, de um texto de memórias ou de uma
carta. Isso acontece porque a situação de produção de cada um desses gêneros discursivos é
marcada pelas condições de produção, circulação e recepção do discurso em uma sociedade
letrada. Para Alves (2012):
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[...] os gêneros apresentam um caráter sócio-histórico, uma vez que estão


diretamente relacionados a diferentes situações sociais. Dado esse caráter, os

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gêneros não são estáticos, imutáveis ou formas desprovidas de dinamicidade.
Relativamente estáveis, eles mudam com as práticas sociais, alteram-se com
a aplicação de novos procedimentos de organização e de acabamento do todo
verbal em conformidade com o projeto de dizer dos sujeitos nas interações
as mais diversas (p. 308).

Assim, o que determina a situação de produção/uso de cada um desses gêneros é a


necessidade de cada uma das esferas sociais, já que os gêneros surgem para suprir
necessidades de comunicação específicas.
No mesmo artigo Alves (2012), pontua outro conceito importante quando estudamos os
aspectos discursivos da língua, a relação tempo/espaço que constitui o dito:

Além disso, cada gênero do discurso pressupõe um cronotopo legítimo para


serem enunciados e recebidos pelo ouvinte/leitor. Assim, o lugar e o tempo
(o cronotopo) onde o ouvinte/leitor tem acesso ao gênero discursivo é,
muitas vezes, fundamental para que ele possa compreender sua estruturação,
seu projeto discursivo e o seu direcionamento. Esses lugares/tempos não são
externos aos gêneros, mas constituintes de sua forma e de seu conteúdo,
como também, de seu modo de produção e de recepção. Isso porque tal
concepção tem em sua gênese uma visão dialógica de linguagem que jamais
desconsidera os sujeitos e a interação historicamente situada (p. 308).

3 Argumentação no gênero artigo de opinião

Nos gêneros argumentativos em geral, o autor tem a intenção de convencer seus


interlocutores e para isso precisa apresentar bons argumentos. No gênero artigo de opinião
podemos identificar toda carga ideológica e as vozes que perpassam os discursos. A partir da
leitura de vários textos acerca dos mais variados temas, o autor de um artigo de opinião terá
conhecimento de diferentes pontos de vista sobre um determinado tema, tendo assim
capacidade para expor sua posição pessoal. Segundo Cunha (2007, p. 179):

O artigo de opinião é constituído de outros discursos sobre os fatos


comentados e de antecipações das objeções do leitor, para fazer aderir ao seu
ponto de vista e para criticar os outros com os quais mantém uma relação de
conflito. Tudo isso comprova que o texto é o lugar de circulação de
discursos, mostrados ou não, e o sujeito não é a fonte do sentido, mas
constrói no trabalho incessante com o já-dito.
266

No âmbito do jornal, há vários gêneros discursivos de caráter argumentativo além do


Página

artigo de opinião, como editoriais, cartas de leitores, charges. Editoriais são textos
argumentativos, pois exprimem a posição de um órgão de imprensa diante de um assunto da
ISBN: 978-85-7621-221-8
atualidade, expondo argumentos, a favor ou contra determinada posição. A seção de cartas de
leitores constitui um veículo para a expressão da opinião dos cidadãos sobre questões que os
afetem de alguma maneira.
O gênero artigo de opinião, geralmente, se situa na seção “Opinião”, o que faz com que
o leitor perceba a que parte temática do jornalismo o texto se refere. O artigo de opinião é de
publicação diária; trata-se de um gênero que serve para a manifestação de valores a respeito
de acontecimentos sociais que são notícia jornalística.
Comumente encontramos circulando nos meios de comunicação (rádio, TV, revistas,
jornais, internet, etc.) temas polêmicos em face dos quais podemos tomar uma posição. Nesse
contexto, é que o gênero artigo de opinião se faz tão presente em nosso cotidiano, em nossas
leituras. É importante estarmos preparados para produzir esse gênero, pois em algum
momento poderá surgir a necessidade de expormos nossas ideias pessoais por meio de uma
produção escrita.
O docente ao trabalhar com o gênero artigo de opinião estará oportunizando ao aluno
desenvolver a capacidade argumentativa.

4 Análise dialógica de artigos de opinião

Por meio da linguagem, o homem, como ser social, interage com seus pares. Para
tanto, instauram-se relações dialógicas entre os diversos enunciados que circulam nas
esferas de atividades em que está inserido. Esses enunciados se constituem como discursos
“já ditos” ao estabelecer diálogo com enunciados anteriores (BAKHTIN, 2 0 1 1 ). Partindo
desse princípio, buscaremos analisar, a partir da perspectiva bakhtiniana, como se constitui o
posicionamento dos autores nos artigos de opinião a seguir transcritos.
Para tanto, consideramos as condições de produção, circulação e recepção em que os
artigos foram escritos, assim como os recursos argumentativos utilizados pelos autores para
se posicionarem sobre o tema, das escolhas lexicais às discursivas.
267
Página

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Artigo 1
Perversão da adoção

carlosgazeta@hsjonline.com23 [29/08/2012] [21h11]

Nada é mais cruel que crianças em bando, especialmente na escola. Afinal, uma das coisas que a
escola – com seus uniformes, sua separação por idade etc. – ensina é a rejeitar o diferente. Uma
criança que tenha qualquer diferença vai certamente sofrer bastante, por mais que professorinhas bem-
intencionadas tentem lutar contra o “bule”, a chaleira e a leiteira. Esse comportamento, que já é parte
da natureza humana, é exacerbado na escola.
Pois agora, além dos problemas de sempre – gordurinhas a mais ou a menos, cor de cabelo, espinhas,
nomes estranhos... –, o STJ acaba de acrescentar mais um, ao fazer com que um pobre menino, já
vitimado pelo medonho sistema de “abrigos” para órfãos, se veja com uma certidão de nascimento em
que constam dois “pais”. Ele foi entregue em adoção formal a dois homens.
Os pais de uma criança já esticam ao limite seus poderes naturais ao criar empecilhos para os filhos.
Conheço uma moça que há décadas (é, não é tão moça assim) tem de explicar que se chama Kristiany,
com “k” no começo e “y” no fim.
Uma mãe até pode entregar seus filhos para que uma dupla de amigos do mesmo sexo ou uma
comunidade religiosa ou hippie os crie. Ela vai estar criando uma dificuldade para a criança, mas ainda
estará dentro dos limites de seu poder de mãe. Esticando-os, é verdade, mas dentro dos limites.
Quando o Estado o faz, contudo, não está mais agindo dentro de seus limites. O Estado não pode
registrar como “mães” de uma criança todas as freiras de um convento em que ela seja criada, nem
como “pais” uma dupla do mesmo sexo. Uma certidão de nascimento em que constem os nomes do
pai e mãe adotivos é uma mentira piedosa, que serve para evitar constrangimentos.
Por outro lado, por mais que haja quem tente “desconstruir a família tradicional”, continua sendo
biologicamente impossível ser filho de 20 freiras ou dois barbados. Uma certidão em que constem dois
“pais” e nenhuma mãe – ou 20 “mães” e nenhum pai – é um absurdo patente, um abuso de autoridade
por parte do Estado.
O Estado reconhece a família porque é nela que a vida é gerada. Um homem e uma mulher se unem,
geram filhos e os criam, e é do interesse de toda a sociedade que isso funcione bem. Quando falta uma
família, o Estado pode entregar a criança a outra família, que a adota como nela houvesse nascido.
Conventos, comunidades hippies e uniões de pessoas do mesmo sexo, contudo, podem ser modos de
convívio agradáveis para quem neles toma parte, mas certamente não são famílias. Isso é abuso, não
adoção.

Carlos Ramalhete, jornalista da Gazeta do Povo, em seu artigo intitulado “Perversão


da adoção”, trata de uma temática bastante polêmica: a adoção de crianças por casais
gays. O autor defende ser “perversa” a decisão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) de
permitir que dois “barbados” assinem a certidão de nascimento de uma criança. Na sua
seleção lexical, o autor usa expressões que procuram aproximá-lo dos leitores, como, por
268

23
Disponível em: <http://www.gazetadopovo.com.br/opiniao/perversao-da-adocao- 2jqktzxse4l962h
Página

ezlggomz4e>. Acesso em: 12 out. 2016.

ISBN: 978-85-7621-221-8
exemplo: “barbados”, “por mais que professorinhas bem-intencionadas tentem lutar contra o
‘bule’, a chaleira e a leiteira”.
Esse recurso foi utilizado pelo autor, pois o meio de circulação de seu texto, o jornal
Gazeta do Povo, é um veículo que atende a todas as classes sociais, e um dos critérios
para a produção do discurso argumentativo é uma linguagem comum com o público.
Ramalhete defende que as crianças que venham a compor esse novo arranjo familiar
sofrerão com a discriminação na escola por não pertencerem a uma família tradicional. É
bem clara a posição ideológica de Ramalhete, ou seja, seu contexto social, suas crenças e
suas experiências. Em pesquisa sobre a biografia do autor, encontramos no sítio de sua
autoria “A Hora de São Jerônimo”24 vídeos em que ele dá aulas de Catecismo, orientando o
cumprimento dos dogmas da Igreja Católica, e é de conhecimento público que essa igreja é
contra o casamento de pessoas do mesmo sexo. Isso ajuda a explicar a posição
conservadora por parte do autor contra a formação de novos arranjos familiares.
Examinando seu discurso, observamos que alguns de seus argumentos não se
sustentam, já que o articulista compara essa nova situação, a de ter o nome de duas pessoas
do mesmo sexo em certidão de nascimento, com a de estar com “gordurinhas a mais ou a
menos”, ter um nome estranho, entre outras práticas que podem gerar bullying. Ou seja,
estabelece paralelos entre situações diversas.
O autor também defende ser um abuso permitir a adoção de uma criança por dois
“pais”, afirmando que o Estado extrapolou seus limites, ao permitir essa adoção. Ramalhete
não sana uma interrogação que poderia surgir por parte do leitor: de quem é a
responsabilidade sobre essas crianças entregues para adoção senão do Estado? A
responsabilidade pela guarda dessas crianças é do Estado, a quem cabe decidir qual o
melhor destino para encaminhá-las.
Ramalhete compara essa nova situação, a de conviver com dois “pais”, com a de morar
em conventos ou em comunidades hippies. Admite que essas situações atípicas podem ser
modos agradáveis de convívio, entretanto, as pessoas que a compõem não podem ser
consideradas como famílias. Sua posição demonstra que não admite novos arranjos
familiares fora do que considera tradicional, qual seja, casal formado por um pai e uma mãe.
O embate que o autor estabelece com outras vozes, como a do STJ ao permitir a adoção,
269

demonstra que nem sempre essas relações dialógicas são harmoniosas, ou seja, todo
Página

24
Disponível em: <http://www.hsjonline.com>. Acesso em: 12 out. 2016.

ISBN: 978-85-7621-221-8
enunciado produz no interlocutor uma resposta de concordância ou discordância, entre
outras, quanto ao dito. Segundo Bakhtin ([1952-1953], 2011, p. 271):

[...] o ouvinte [leitor], ao perceber e compreender o significado


(linguístico) do discurso, ocupa simultaneamente em relação a ele uma ativa
posição responsiva: concorda ou discorda dele (total ou parcialmente),
completa-o, aplica-o, prepara-se para usá-lo, etc. [...] (embora o grau desse
ativismo seja bastante diverso).

Ramalhete reage negativamente à posição do STJ de permitir a adoção de uma criança


por dois “pais”, e refuta totalmente essa ideia, já que, de sua posição ideológica, defende que
a sociedade deve preservar o arranjo familiar “tradicional”.
Consideramos que esse artigo poderia ser trabalhado em sala de aula como um
contraexemplo de argumentação, pois o autor não tem embasamento para seus argumentos.
Sua argumentação se baseia em um suposto “consenso popular”, para o qual essa nova
realidade ainda causa bastante estranhamento e receio. Na verdade, ele poderia argumentar
trazendo para seu artigo de opinião, por exemplo, vozes de autoridades em psicologia que
pudessem atestar suas ideias, ou casos de adoções por casais gays que foram
malsucedidos, se é isso que pretende provar. Poderia ainda, por exemplo, fazer um
levantamento dos casos em que a adoção por casais homossexuais obteve sucesso, ou
não.

Artigo 2
A rejeição ao diferente

Flávio St. Jayme25 [30/08/2012] [21h02]

Em artigo publicado ontem neste jornal, o colunista Carlos Ramalhete afirma, entre outras coisas, que
seria mais vantajoso para uma criança morar em um “medonho sistema de abrigos para órfãos” (são
suas palavras) que em uma casa com dois pais homens. É impressionante como, em um mundo onde
cada vez mais se luta por direitos iguais, uma pessoa tenha coragem de vir a público, em forma de
artigo em jornal, soltar tamanho disparate. O autor do texto afirma que o menino adotado pelos dois
homens sofrerá bullying na escola. Claro, nenhuma outra criança jamais sofreu esse tipo de agressão.
Crianças com famílias corretas, segundo ele, formadas por um pai e uma mãe, não sofrem bullying,
devemos concluir. Este pobre menino, coitado, jamais será capaz de enfrentar o mundo sendo criado
por dois pais.
270

25
Disponível em: <http://www.gazetadopovo.com.br/opiniao/a-rejeicao-ao-diferente-2n2us62y9mg5mf13
Página

c4wc8cytq>. Acesso em: 12 out. 2016. Segundo o site, Flávio St. Jayme é jornalista, empresário, sócio-
proprietário da agência Clockwork Comunicação e tem formação em Pedagogia e História da Arte.

ISBN: 978-85-7621-221-8
Quando Carlos Ramalhete diz que é um abuso de poder do Estado “entregar” uma criança aos
cuidados de um casal gay, ele está não só se valendo de conceitos retrógrados e ultrapassados, como
também preconceituosos. Acreditar em tamanha insanidade e afirmar que a criança estaria melhor sem
pais é incabível.
Pelo seu raciocínio, uma criança criada pelos avós, tios, ou somente por um dos pais não teria uma
família. Estaria sendo criada por pessoas que tentam “desconstruir a família tradicional”. O que ele
chama de “família tradicional” foi desconstruída quando houve o primeiro divórcio, quando o primeiro
pai saiu de casa. Comparar uma união homossexual a uma comunidade hippie é inconcebível, para não
dizer hilário.
Carlos Ramalhete é professor universitário, dá aulas de Filosofia. Daí podemos tirar uma perigosa
conclusão: ele é o responsável por pelo menos parte da formação dos jovens. Em uma disciplina na
qual os alunos deveriam aprender a questionar o mundo, a repensar suas realidades e dogmas,
Ramalhete pode estar perigosamente incitando o preconceito e... o bullying. Ao afirmar
categoricamente que uma criança adotada por um casal homossexual sofrerá o mesmo preconceito que
uma de nome diferente ou fora do peso, ele está não apenas afirmando, mas incentivando e
esquecendo-se de um fator extremamente importante: é da natureza das crianças reagir ao diferente.
Cabe a nós, adultos, ensiná-las a respeitar as diferenças. De outra forma estaríamos todos, como ele
mesmo afirma, “agindo como as escolas e ensinando a rejeitar o diferente”. Não muito diferente do
que ele faz em seu texto.
Chamar de “absurdo patente” uma certidão de nascimento onde constem “dois barbados” como pais só
justifica o bullying e reforça o preconceito. Existe, sim, ao contrário do que Ramalhete afirma, espaço
nas cabeças inteligentes para as novas configurações familiares. Com certeza este menino estará muito
melhor em uma casa sendo criado com amor e carinho por dois homens do que num abrigo. E o
bullying que sofrer dependerá somente de quem o cerca, protegendo-o e ensinando-o como combater e
enfrentar a discriminação.

No artigo “A rejeição ao diferente”, publicado no jornal Gazeta do Povo, em 30 de


agosto de 2012, o jornalista Flávio St. Jayme combate a posição tomada por Carlos
Ramalhete contra a adoção de crianças por casais homossexuais, no artigo “Perversão da
adoção”, publicado no dia anterior, no mesmo jornal.
Podemos observar que o texto de Jayme nasce de um processo de discordância, já que
o autor faz de forma direta críticas à posição de Ramalhete, o que justifica a análise dialógica
presente neste trabalho. Ou seja: “[...] o enunciado é um elo na cadeia da comunicação
discursiva e não pode ser separado dos elos precedentes que o determinam tanto de fora
quanto de dentro, gerando nele atitudes responsivas diretas e ressonâncias dialógicas”
(BAKHTIN, [1952-1953], 2011, p. 300).
Jayme produz seu artigo com o intuito de rebater as ideias apresentadas por Ramalhete,
o que pode ser observado nos seguintes trechos do artigo: “que seria mais vantajoso para
271

uma criança morar em um ‘medonho sistema de abrigos para órfãos’ (são suas palavras)
que em uma casa com dois pais homens. É impressionante como [...] uma pessoa tenha
Página

coragem de vir a público, em forma de artigo em jornal, soltar tamanho disparate”.

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O que causa mais estranheza ao autor do artigo “Rejeição ao diferente” é que entre as
condições de produção do enunciado que contesta esteja o fato de que o artigo “Perversão da
adoção” seja de um professor universitário de Filosofia, ou seja, um formador de opinião
com certa instrução. Para Jayme, é inadmissível uma pessoa pertencente a esse contexto
social e intelectual propagar ideias tão preconceituosas.
Em sua defesa do “diferente”, Jayme emprega argumentos bem consistentes, para
discordar do discurso de Ramalhete. Vejamos: “O autor do texto [“Perversão da adoção”]
afirma que o menino adotado pelos dois homens sofrerá bullying na escola. Claro,
nenhuma outra criança jamais sofreu esse tipo de agressão. Crianças com famílias corretas,
segundo ele, formadas por um pai e uma mãe, não sofrem bullying, devemos concluir”. O
argumento utilizado por Ramalhete o contradiz, e Jayme se vale da fragilidade do
enunciado para refutá-lo.
Assim, Jayme, ao longo de seu artigo, faz referências às palavras utilizadas por
Ramalhete para demonstrar que o autor do artigo “Perversão da adoção” não foi feliz na
seleção de palavras e na pretensa argumentação de ideias, já que são facilmente rebatidas.
Esses artigos exemplificam bem como os enunciados são produzidos em resposta
a outros enunciados, ou seja, como em um enunciado um juízo de valor pode estar se
contrapondo a outros posicionamentos axiológicos.
Após essa análise dialógica, vejamos algumas características do gênero artigo de
opinião. Observemos como alguns dos conceitos bakhtinianos expostos anteriormente, como
o de que gênero discursivo, apresentam características composicionais “relativamente
estáveis”, estando presentes em determinada situação sociodiscursiva. Dentre as
características do artigo de opinião, podemos afirmar que os dois artigos analisados estão
repletos de impressões pessoais de seus autores. Vejamos essa peculiaridade no quadro a
seguir.

Artigo 1 Artigo 2
“Conventos, comunidades hippies e uniões “Comparar uma união homossexual a uma
de pessoas do mesmo sexo, contudo, podem comunidade hippie é inconcebível, para não
ser modos de convívio agradáveis para quem dizer hilário”.
neles toma parte, mas certamente não são
272

famílias. Isso é abuso, não adoção”.


Página

ISBN: 978-85-7621-221-8
Outra característica do gênero artigo de opinião presente nos enunciados é o curto prazo
de produção, já que ambos manifestam posicionamentos a respeito de acontecimentos sociais
que foram (à época) recentemente divulgados.
Para Campos (2013, p. 43-45), ao se analisarem gêneros do discurso na perspectiva
bakhtiniana é necessário “localizar a esfera de circulação em que foi publicado”, atentando
para as relações cronotópicas, ou seja, em que tempo e espaço o discurso foi produzido;
mostrar as características internas dos textos para verificar o que há de semelhante no gênero
discursivo, podendo contribuir nessa análise trabalhar um conjunto de material divulgado na
mesma esfera para discutir como se relacionam; “observar o projeto gráfico em que o texto
está inserido e a sua função de situar o leitor e dar destaque ao gênero”. A autora também
sugere analisar como os gêneros revelam um dado aspecto da vida comparado com outros e
salienta que, ao se estudar um texto específico, e possível identificar o estilo do gênero e do
autor.
Nos artigos analisados, é possível focalizar esses critérios apontados por Campos,
atentando para os aspectos discursivos, os quais implicam as relações socioideológicas. O
objetivo como isso e mostrar outra possibilidade de analise que não apenas a prototípica da
escola. Por esse método dialógico, as aulas podem se tornar mais dinâmicas e prazerosas que
aquelas que já trazem o modelo padrão de artigo de opinião, qual seja: tese, argumentos,
contra-argumentos.

5 Considerações finais

Conforme mostramos na análise dos artigos, podemos encontrar nos conceitos


propostos pelo Círculo de Bakhtin subsídios para discutir como se estabelecem as relações
dialógicas entre posições diferentes acerca de um tema polêmico: o artigo de Jayme foi
produzido em resposta ao de Ramalhete. Observamos que os autores trouxeram vozes
anteriores, como a decisão do STJ e outras leituras que contribuíram para sua formação
ideológica, o que corrobora a observação de Bakhtin de que não há uma neutralidade no
discurso. Assim, essa relação entre enunciados, em que se revela o diálogo com outros
enunciados, é denominada pelo Círculo de Bakhtin como intrinsecamente dialógica.
273

Como afirma Bakhtin (2003), os gêneros discursivos são específicos a cada uma das
esferas sociais e se materializam para suprir uma necessidade de interação. O gênero artigo
Página

de opinião se volta a um público bastante abrangente, por isso os meios de circulação mais

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utilizados para sua veiculação são jornais, revistas de grande alcance e a internet, importante
meio de comunicação na atualidade. No caso do s dois artigos analisados neste trabalho,
ambos pertencem à esfera jornalística sendo veiculados no mesmo jornal Gazeta do Povo em
meio digital.
Assim, elegemos o gênero artigo de opinião por considerarmos que os recursos
linguístico-discursivos nele utilizados são muito importantes para formar um aluno que se
porte de modo crítico e autônomo em relação aos enunciados com os quais dialoga nas
esferas escolar e extraescolar.

Referências

ALVES, Maria da Penha Casado. O cronotopo da sala de aula e os gêneros discursivos. v.


24, n. 2, 2012. Disponível em: <https://www.revistas.ufg.br/sig/article/view/19172>. Acesso
em: 03 mar. 2017.

BAKHTIN, Mikhail Mikhailovich [1952-1953]. Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN,


Mikhail Mikhailovich. Estética da criação verbal. Tradução Paulo Bezerra. 4. ed. São
Paulo: WMF Martins Fontes, 2011.

BOFF, Odete M. B.; KÖCHE, Vanilda S.; MARINELLO, Adiane F. O gênero textual
artigo de opinião: um meio de interação. ReVEL, v. 7, n. 13, 2009. [www.revel.inf.br].
Disponível em:
http://www.revel.inf.br/files/artigos/revel_13_o_genero_textual_artigo_de_opiniao.pdf>.
Acesso em: 03 fev. 2017.

BRAIT, Beth; MELO, Rosineide de; Enunciado / enunciado concreto / enunciação. In:
BRAIT, Beth. Bakhtin: conceitos-chave. 4. ed. São Paulo: Contexto, 2008.

CUNHA, De Arruda Carneiro. O funcionamento dialógico em notícias e artigos de opinião.


In: DIONÍSIO, Angela Paiva; MACHADO, Anna Rachel; BEZERRA, Maria Auxiliadora
(Org.). Gêneros textuais e ensino. 4. ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2007.

JAYME, Flávio St. A Rejeição ao diferente. Disponível em:


<http://www.gazetadopovo.com.br/opiniao/a-rejeicao-ao-diferente-n2us62y9mg5mf13c4wc8
cytq>. Acesso em: 12 out. 2016.

RAMALHETE, Carlos. Perversão da adoção. Disponível em:


<http://www.gazetadopovo.com.br/opiniao/perversao-da-adocao-jqktzxse4l962hezlggomz4e
>. Acesso em: 12 out. 2016.
274
Página

ISBN: 978-85-7621-221-8
GT2 – ESTUDOS SOBRE GÊNEROS: DIÁLOGOS ENTRE DIFERENTES
PERSPECTIVAS

A ESCRITA EM CONCURSOS PÚBLICOS: INVESTIGANDO MATERIAIS


DIDÁTICOS

Lara Liliane Holanda (UERN)


Hubeônia Morais de Alencar (UERN)

Introdução

Os concursos públicos são uma realidade que atinge milhares de brasileiros que, na
condição de candidatos, inserem-se nesses certames, nos quais, geralmente, são solicitadas
produções textuais. Porém, ao buscar compreender e estudar melhor a temática, podemos
perceber que há poucas discussões acadêmicas sobre essas propostas, sendo o foco das
pesquisas de ensino na área de linguagens, em grande parte, mais voltadas às questões de
ensino na educação básica e ensino superior. Essa falta de atenção, tanto da academia como
dos próprios elaboradores dos exames, do modo como os conteúdos de Língua Portuguesa são
cobrados nas provas dos concursos públicos faz surgirem questionamentos acerca da
importância, adequação e necessidade das temáticas escolhidas e dá margem para concepções
tradicionais e excludentes. As investigações acadêmicas sobre os gêneros discursivos
(BAKHTIN, 2003 [1952-1953]) e concepções interacionistas de linguagem, língua e texto
acabam passando, em geral, ao largo do que tem sido apresentado e cobrado dos sujeitos os
quais aspiram a vagas no serviço público.
Diante dessa carência de investigações acadêmicas sobre essas questões, foi feita uma
pesquisa no Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC), entre 2015 e
2016, intitulada A escrita em concursos públicos: investigando práticas e crenças,
idealizada e organizada pelo professor Dr. Lucas Vinício de Carvalho Maciel, com o intuito
de pesquisarmos como são cobrados aos candidatos a produção textual nas provas. A
experiência vivenciada nessa pesquisa, na condição de bolsista, motiva a continuidade da
investigação da escrita em concursos públicos.
Assim, temos o intuito de analisar, por meio de materiais didáticos, o trabalho com a
produção textual para concursos públicos no Brasil, buscando compreender como é
275

apresentada/exigida a escrita aos candidatos e identificar as concepções de linguagem que os


fundamentam e os gêneros discursivos ou tipos textuais propostos. Para tanto, compilamos
Página

ISBN: 978-85-7621-221-8
apostilas de ensino de produção textual para concursos públicos, disponibilizadas por
cursinhos nacionais, bancas de jornais e mídia virtual (internet).
Como suporte teórico para esta investigação, nos basearemos nos pressupostos de
Bakhtin (2003 [1952-1953]) e Marcuschi (2005), acerca dos Gêneros Discursivos e Tipos
textuais, respectivamente. Em relação às concepções de língua, linguagem e texto, além das
contribuições de Bakhtin (2011 [1959-1961]), nos apoiaremos nos pressupostos de Geraldi
(2010), Oliveira (2008) e no trabalho de Alencar (2015), além de outros estudos, como
melhor suporte teórico para sustentar nossa análise e fomentar discussões acerca da produção
textual em materiais didáticos para concursos públicos no Brasil.

1 Fundamentação teórica

O tratamento dado ao texto na escola vem passando por várias transformações ao


longo dos anos, sendo ele considerado desde apenas “objeto de uma oralização (e também do
exercício de memorização), ou de uma leitura silenciosa e individual” (GERALDI, 2010, p.
75), até a forma que o concebemos hoje, como parte integrante da situação discursiva,
trabalhado enquanto objeto de reflexão, compreensão e interpretação. Como, segundo Bakhtin
(2011[1959-1961], p. 319), “O texto é o dado (realidade) primário e o ponto de partida de
qualquer disciplina nas ciências humanas”, iniciaremos este tópico com algumas
considerações acerca da concepção de texto, para que possamos apresentar a que embasará o
nosso trabalho.
Para esse autor (2011 [1959-1961], p. 308), o texto é considerado enunciado, tendo
dois elementos que o determinam como tal: “a sua ideia (intenção) e a realização dessa
intenção”. Ainda segundo Bakhtin (2011[1959-1961], p. 309-310), cada texto pressupõe um
sistema de signos aceito socialmente, ou seja, “por trás de cada texto está o sistema da
linguagem”, mas, enquanto enunciado, “é algo individual, único e singular, e nisso reside todo
o seu sentido (sua intenção em prol da qual ele foi criado)”. Dessa forma, nessa concepção, o
texto é um acontecimento único, diretamente relacionado ao indivíduo e à comunicação
discursiva a qual pertence.
Consoante a isso, Bakhtin (2011 [1959-1961], p. 328) nos diz que
276

o enunciado não é determinado por sua relação apenas com o objeto e com o
Página

sujeito-autor falante (e por sua relação com a linguagem enquanto sistema de

ISBN: 978-85-7621-221-8
possibilidades potenciais, enquanto dados), mas imediatamente [...] com
outros enunciados no âmbito de um dado campo da comunicação. Fora dessa
relação ele não existe em termos reais (apenas como texto).

O texto, enquanto enunciado, só existe em uma determinada situação comunicativa,


mesmo diante da repetição, sempre será uma novo acontecimento. Porém, o que o determina
não são apenas os elementos constitutivos da situação, como os sujeitos, propósitos e
finalidades, e sim a relação de sentindo estabelecida com outros enunciados, os quais o
antecedem e sucedem, na comunicação verbal (BAKHTIN, 2011 [1959-1961]), suas relações
dialógicas. Além disso, ao produzir textos, sempre é levado em consideração a voz do outro,
reconhecendo-o enquanto sujeito que participa da interação e é constituinte de seu próprio
discurso, ou seja, a questão da alteridade, já inerente ao ser humano.
Como seguiremos uma perspectiva discursiva e dialógica de texto neste trabalho,
baseada, principalmente, nos pressupostos de Bakhtin, é importante esclarecer suas
concepções acerca da linguagem e da língua. Dessa forma, em relação a aquela, Alencar
(2015, p. 83) diz que, para o autor, a linguagem é

constitutiva do sujeito, essência do ser humano. Em outras palavras,


para Bakhtin, a linguagem está no sujeito, e não fora dele, que só existe
como ser de linguagem. Esta é dialógica, constituída nas relações
sociais e marcada pela alteridade.

Consoante a isso, Oliveira (2008, p. 179) diz que o estudioso

considera a relação com a realidade e com a alteridade como constitutivas,


tendo como pressuposto inicial a natureza social, histórica e cultural do ser
humano, concebendo-o como um ser de linguagem, um ser ético, aquele que
não se sobrepõe à consciência do outro, um ser incompleto, constituído no
diálogo inacabado da vida, que apenas pode ser reconhecido no evento do
ser, em conjunto com o outro, com o qual não coincide.

Dessa forma, o texto verbal, seja ele oral ou escrito, é totalmente ligado aos que lhe
antecederam e o sucederam. Assim, a compreensão e a produção de textos, enquanto
enunciados, não se limita à reprodução do pensamento do outro e sim implica, segundo
Bakhtin, em atitudes responsivas dos sujeitos, os quais relacionam-se com diversas vozes
277

sociais, materializando seus textos.


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Quanto à língua, segundo GEGe (2010, p. 79), na obra Diálogo26, reunião de textos de
Bakhtin feitos em 1952, o autor afirma que as formas linguísticas “devem ser separadas e
classificadas como formas específicas que remetem a relações sociais dialógicas entre os
sujeitos”. Nesse sentido, a língua não deve ser reduzida a meros aspectos gramaticais e, sim,
ser considerada como fenômeno social, parte constituinte da interação verbal, que se dá por
meio de enunciados.
Ao considerar essas três concepções com um teor mais discursivo, não significa,
segundo Alencar (2015, p. 92), que Bakhtin descarte “o estudo do sistema da língua, das
unidades linguísticas, porém ele acredita que esse estudo é insuficiente para a compreensão do
real funcionamento da linguagem”. Dessa forma, no ensino de Língua Materna, o texto deve
ser trabalhado como unidade pertencente na e, exclusivamente, para a sociedade, sem ser
reduzido apenas a sua materialidade linguística, o que não significa que o ensino de gramática
deve ser descartado e sim ensinado com algum propósito, atendendo às exigências e
necessidades da vida real.
Ademais, como a linguagem é inerente ao ser humano e o texto, enquanto enunciado,
faz parte desse sistema no qual, ao mesmo tempo que social, é também individual, faz-se
necessário seu ensino na escola, para desenvolver, principalmente, o que os Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCN) vão chamar de competência discursiva, sendo necessária para
que o aluno seja “capaz de utilizar a língua de modo variado, para produzir diferentes efeitos
de sentido e adequar o texto a diferentes situações de interlocução oral e escrita” (BRASIL,
1998, p. 23).
Essas diversas situações comunicativas, das quais o falante participa, realizam-se por
meio de enunciados relativamente estáveis, que Bakhtin (BAKHTIN, 2003 [1952-1953])
denomina como gêneros discursivos, configurando padrões típicos os quais orientam a
comunicação. O falante sempre utiliza algum gênero para se comunicar, seja oral ou escrito,
que atenda à situação social na qual está inserido, às expectativas dos interlocutores, buscando
chegar aos efeitos de sentido que almeja.
Segundo Marcuschi (2005), os gêneros são construídos historicamente e estão
totalmente ligados à vida cultural e social. Desse modo, como a sociedade está em constante
processo de mudança, os gêneros vão concomitantemente se modificando para atender às
278

novas demandas sociais. Bakhtin (2003 [1952-1953]) destaca justamente essa extrema
Página

26
Publicada pela primeira vez em 1997, sendo essa edição de 2009.

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heterogeneidade dos gêneros discursivos, que vão desde simples diálogos orais íntimos até
grandes manifestações científicas e literárias.
É importante destacar dois fatos a respeito dos gêneros. O primeiro: eles não são
estáticos e imutáveis; pelo contrário, sempre estão se modificando para atender às situações
comunicacionais, daí sua grande variedade. Segundo: os gêneros do discurso não surgem do
nada, mas a partir de outros já existentes que, devido às necessidades comunicativas, sofrem
uma “transmutação”, assim como constata Bakhtin (2003 [1952-1953]).
Diante da importância dos gêneros discursivos não só para linguagem e, portanto, para
a vida, uma distinção se faz essencial neste trabalho: a diferença entre “gênero discursivo” e
“tipo textual”. Muitas vezes, essas duas noções são usadas de forma equivocada por
professores, concursos e livros didáticos, que não observam a diferença entre essas duas
concepções. Tal distinção é apontada por Marcuschi (2005, p. 22) como “fundamental em
todo o trabalho com a produção e a compreensão textual”.
Os tipos textuais são, segundo Marcuschi (2005 [2002]), sequências definidas por
propriedades linguísticas intrínsecas, por aspectos sintáticos, tempos verbais, relações lógicas.
Os tipos de textos não são muito variados, sendo os mais comuns a narração, a descrição, a
argumentação, a exposição e a injunção. Como são sequências, em um único texto pode haver
vários tipos textuais distintos, que se relacionam, fazendo com que o texto seja
tipologicamente heterogêneo. Já gênero discursivo é uma noção mais ampla, não restrita à
materialidade do texto, “pois se realizam em situações sociais e históricas, discursivas
portanto, que os determinam totalmente” (MACIEL; SILVA, 2015, p. 199).

2 A preparação para a escrita: análise de materiais didáticos para concursos

No levantamento de materiais didáticos com propostas de escrita para concursos


públicos, realizado neste trabalho, foram compilados quatro materiais com 89 propostas de
produção textual, sendo 1 apostila de 2016, elaborada pelo Gran Cursos Online, e
disponibilizada gratuitamente na internet, com 5 propostas; dois materiais de 2016,
elaborados pela Alfacon, cursinho online nacional, com 8 propostas; e um livro intitulado
Técnicas de Redação para Concursos (FURTADO; PEREIRA, 2010), com 76 propostas de
279

produção textual, sendo 41 questões discursivas.


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Materiais Didáticos Número de propostas de escrita
Apostila Treino Discursivo, do Gran Cursos 5
Online
Apostila de redação, da Alfacon 5
Apostila de redação por tópicos – direito 3
penal, da Alfacon
Livro Técnicas de redação para concursos 76
Tabela 01 – Materiais didáticos analisados e número de propostas de produção textual

Desses materiais compilados, é pertinente esclarecer a relação existente neles entre as


partes teórica e prática, pois, assim como Alencar (2015) pontua, uma das dificuldades das
pessoas que se submetem à produção de textos, sejam elas alunos de ensino superior, ou
candidatos a concursos públicos, é o fato de haver um distanciamento entre o “como” e o
“fazer”, ou seja, entre a teoria e a prática.
Assim, dos quatro materiais, dois iniciavam com o conteúdo teórico e, posteriormente,
exibiam as propostas de escrita; e dois já submetiam os alunos às propostas, comentando e
ensinando, depois, como deveria ser organizado cada parágrafo e sugerindo exemplos.
Importante pontuar que um dos principais fatores que dificultaram a compilação do
corpus foi o fato de muitos materiais não fazerem a união entre a teoria e a prática, ensinando,
na maioria dos livros e apostilas, teorias acerca de construções de frases, argumentos e
parágrafos e/ou de alguns gêneros ou tipos textuais, porém limitando-se a questões mais
estruturais, sem, posteriormente, propor exemplos práticos para os alunos exercitarem,
submetendo, muitos deles, a praticar apenas na prova, sem nunca terem aprendido de fato, na
prática, como construir um texto.
Em relação às propostas sugeridas nos materiais, ilustramos a tabela a seguir, a partir
da análise dos tipos textuais ou gêneros discursivos distintos que foram solicitados:

Frequência
Resolução de caso concreto 4
Estudo de caso 1
Formulário de recrutamento 1
Gêneros Discursivos solicitados Ofício 1
Programa de higiene do trabalho 1
Parecer Jurídico 1
Texto Jornalístico 1
Análise Jurídica 1
280

Terminologias Frequência
empregadas
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Texto dissertativo 28
Questão discursiva 25

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Dissertação 15
Texto dissertativo- 3
Tipo textual solicitado Dissertativo - argumentativo
argumentativo Texto 3
Texto expositivo- 2
argumentativo
Texto argumentativo 1

Texto opinativo 1
Tabela 02 – Tipo de texto ou gêneros discursivos solicitados

A partir desse quadro e com base nos pressupostos teóricos de Bakhtin (2003 [1952-
1953]) e Marcuschi (2005) acerca dos gêneros discursivos e tipos textuais, respectivamente,
consideramos como gênero: ofício, resolução de caso concreto, estudo de caso, formulário de
recrutamento, programa de higiene do trabalho, parecer jurídico, texto jornalístico e análise
jurídica. Como tipos textuais: questão discursiva, texto dissertativo, dissertação, texto
dissertativo-argumentativo, expositivo-argumentativo, argumentativo, opinativo e texto.
Assim, das propostas analisadas, foram solicitados oito tipos textuais e oito gêneros distintos.
Com base nos resultados apresentados na Tabela 02, depreende-se que os tipos
textuais são mais cobrados nas propostas de escrita do que os gêneros discursivos,
principalmente, o texto dissertativo-argumentativo, que, mesmo nomeado com diversas
terminologias, principalmente como texto dissertativo, ainda possuem a mesma natureza. Esse
fato pode ser reflexo das propostas de escrita da maior parte dos concursos públicos, os quais
ainda priorizam os tipos textuais, como podemos perceber na pesquisa feita por Holanda,
Cunha e Maciel (2016), o que pode indicar que as propostas são elaboradas apenas com fins
avaliativos, sem a intenção de fins práticos na vida real.
Partindo dessa constatação, analisamos também a relação entre a futura atuação
profissional e os tipos textuais ou gêneros das propostas de escrita encontradas nos materiais
didáticos, o que levou à tabela a seguir:

Tipo textuais ou gêneros relacionados ao cargo


Sim 11
Não 78
Tabela 03 – Tipos textuais ou gêneros relacionados ao cargo
281

A partir dos resultados apresentados na tabela 03, podemos perceber que a maior parte
dos concursos e, consequentemente, dos cursinhos destinados a esses certames não se
Página

preocupam em elaborar propostas que situem os candidatos em uma determinada situação

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comunicativa, com todos os elementos inerentes a ela, de forma que elaborem textos cuja
produção será exigida no exercício da função do cargo pretendido. Podemos ilustrar esse fato
com o exemplo a seguir, retirado do livro de Furtado e Pereira (2010),

Figura 01 – Proposta de escrita do concurso para Policial Rodoviário Federal, de 2009.


Fonte: Técnicas de Redação para concurso (FURTADO; PEREIRA, 2010).

Nessa proposta de um concurso para Policial Rodoviário Federal, é exigido um texto


dissertativo. Esse tipo textual não possui nenhuma relação com o cargo pretendido, na medida
que um policial, no exercício de sua função, provavelmente nunca produzirá um texto
dissertativo. Na verdade, esse tipo textual usualmente não é utilizado na vida, a não ser em
processos avaliativos e na escola quando o texto é mais visto como um exercício para treinar a
escrita ou auferir o domínio da norma padrão, sem preocupação efetiva com qualquer prática
significativa de comunicação.
Porém, em contraposição, há concursos que preocupam-se em situar o candidato em
um momento real, o qual ele provavelmente viverá no exercício de sua função e precisará
elaborar determinado gênero, como é o caso da proposta a seguir:
282
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Figura 02 – Proposta de escrita do concurso para Diretor de Escola da prefeitura de São Paulo, de 2009.
Fonte: Técnicas de Redação para concurso (FURTADO; PEREIRA, 2010).

Os elaboradores da prova discursiva desse concurso para Diretor de Escola prepararam


toda uma situação comunicativa típica que um diretor de escola provavelmente se depara e
pediu para o candidato, exercendo essa função, resolver o problema hipotético, dando
orientações de como prosseguir sobre o caso. Dessa forma, consideramos como gênero a
Resolução de caso concreto, o qual está totalmente relacionado ao cargo pretendido.
Ademais, outro aspecto analisado nesta pesquisa foi a relação das temáticas solicitadas
com o cargo pretendido.

Tema relacionado ao cargo


Sim 67
Não 20
Parcial 2
Tabela 04 – Relação da temática com o cargo

Essa tabela 04 foi elaborada com base em três aspectos: se a temática tinha total
relação com o cargo pretendido, se tinha ligação apenas parcialmente ou não tinha relação
alguma. Assim, percebe-se que há uma preocupação dos materiais didáticos em sugerirem
propostas em que as temáticas tenham relação com os cargo pretendidos. Como é o caso do
exemplo a seguir:
283
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Figura 03 – Proposta de escrita para o concurso da Polícia Rodoviária Federal (PRF).
Fonte: Apostila de Redação por Tópicos da Alfacon, 201 6.

Essa proposta faz parte de uma apostila para o concurso da Polícia Rodoviária Federal,
com conteúdo programático de Direito Penal, e pede aos candidatos, diante do texto
motivador, para escreverem sobre a temática do contrabando ilegal.
Porém, apesar da temática de algumas propostas terem relação com a futura carreira
profissional, ainda é relevante o número das que não tem. Por exemplo, a proposta a seguir,
com o tema O contexto social na realização das Olimpíadas no RJ em 2016, retirada
também de uma apostila vendida para candidatos ao cargo na Polícia Rodoviária Federal:
284
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Figura 04 – Proposta de escrita para o concurso da Polícia Rodoviária Federal (PRF).
Fonte: Apostila de Redação da Alfacon, 2016.

Portanto, a partir das análises aqui feitas e com base nas Tabelas 03 e 04, podemos
concluir que há uma preocupação dos elaboradores dos materiais didáticos para concursos em
disponibilizar propostas de produção textual nas quais os temas possuam relação com a área
de atuação que o candidato irá submeter-se. Porém, em relação aos tipos textuais e gêneros, os
números são mais preocupantes, sendo mais comum serem cobrados tipos de texto ou gêneros
os quais, possivelmente, no exercício da função do cargo pretendido, jamais utilizarão. Isso se
dá na medida que ainda são cobrados muitos textos dissertativos e não gêneros discursivos, os
quais poderão ser utilizados em situações práticas e situadas, para um público determinado,
com finalidades e propósitos específicos, estabelecendo uma comunicação real e relevante.

Conclusão

Os materiais didáticos para concurso público, no que diz respeito à produção de textos,
ainda são bastante falhos, pois, na sua maioria, ainda disponibilizam propostas em que os
tipos textuais ou gêneros exigidos pouco ou nada têm a ver com o cargo pretendido. Em
relação à temática, esse fato melhora um pouco, ainda que seja considerável o número de
propostas que não trazem temas de interesse para a área de atuação dos futuros servidores
públicos. Isso ocorre, provavelmente, devido a maior parte das propostas de escrita
285

encontradas nesses materiais seguirem a realidade dos próprios concursos públicos, não
sendo, a maior parte delas, nem mesmo elaboradas pelos autores do livro ou apostilas das
Página

quais foram retiradas e sim reunidas de concursos públicos passados. Isso se dá,

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possivelmente, pela tendência que os cursinhos têm de fazer os alunos praticarem a escrita de
textos para determinados concursos com as provas antigas, por se assemelharem mais com a
realidade a qual eles enfrentarão no dia do exame.

Referências

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textos de alunos de Letras. 2015. 231 p. Tese (Doutorado em Estudos da Linguagem) -
Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem, Universidade Federal do Rio Grande
do Norte, Natal/RN, 2015.

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de Paulo Bezerra. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011. p. 307- 335.

______. ([1952-1953]). Os gêneros do discurso. In: Estética da criação verbal. Tradução de


Paulo Bezerra. São Paulo, Martins Fontes, 4. ed., p. 261-306, 2003.

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http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/portugues.pdf.

FURTADO, Lilian; PEREIRA, Vinícius Carvalho. Técnicas de redação para concurso:


teoria e questões. 1. Ed. [Reimpr.] – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2010.

GEGE, Grupo de Estudos dos Gêneros. Palavras e contrapalavras: conversando sobre os


trabalhos de Bakhtin. São Carlos: Pedro e João Editores, 2010, 128p.

GERALDI, João Wanderley. A aula como acontecimento. São Carlos: Pedro & João
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HOLANDA, L. L.; CUNHA, L. V. M.; MACIEL, L. V. C. Escrevendo para concursos


públicos: gêneros discursivos e tipos textuais. PIBIC 2015/2016. Mossoró.

MACIEL, L. V. C.; SILVA, L. B. D. Ensino de gêneros discursivos: pela consideração das


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MARCUSCHI, L. A. (2002). Gêneros textuais: definição e funcionalidade. In: DIONÍSIO, A.


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OLIVEIRA, M. B. F de. Formação de professores de Língua Materna e a sociedade do


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conhecimento: discutindo concepções de linguagem. In: ZOZZOLI, R. M. D; OLIVEIRA, M.


B. F. de. (Org.). Leitura, escrita e ensino. Maceió: EDUFAL, 2008, p. 171-190.

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GT2 – ESTUDOS SOBRE GÊNEROS: DIÁLOGOS ENTRE DIFERENTES
PERSPECTIVAS

REPRESENTAÇÕES SOBRE O CANGACEIRO LAMPIÃO NO GÊNERO CORDEL

Lícia Fernanda Dantas da Silva (UERN) 27


Magna Eugênia Fernandes do Rêgo (UERN) 28
Gilton Sampaio de Souza (UERN) 29

Introdução

O gênero cordel é um importante instrumento de transmissão de saberes e crenças


populares, bem como de representações oriundas do senso comum acerca de objetos e
personagens reais ou imaginários. Esse gênero traz uma enorme contribuição para construção
do juízo popular e costuma ser caracterizado como um registro da cultura de um povo, da
realidade que os cercam e dos acontecimentos cotidianos.
Como veremos mais adiante, no decorrer deste estudo, são variados os temas, “ciclos
temáticos” retratados na literatura de cordel brasileira e existem diferentes posicionamentos
quanto a origem desse gênero no Brasil.
O presente trabalho tem por objetivo analisar as representações sobre Virgulino
Ferreira, o Lampião, no cordel, tendo em vista a importante contribuição deste gênero para a
construção do juízo popular. Em nossa análise, o corpus é constituído por dez folhetos de
autores diversos que versam sobre Lampião. Utilizando-se da Análise de Conteúdo de Bardin
(2016), direcionamos olhar para os adjetivos que são atribuídos ao personagem e os termos
que são utilizados para tal, focando, pois, em estrofes que ressaltem descrições da
personalidade do cangaceiro.
Este fazer teórico está respaldado nos estudos de Santos (2013; 2015) sobre
representações do cangaço no cinema, Silva e Patroclo (2013) sobre as representações dos
cangaceiros Antonio Silvino e Lampião em versos da literatura de cordel, Aléssio (2004)
sobre a representação social da violência na literatura de cordel sobre o cangaço, Abreu
(1999) sobre Histórias de cordéis e folhetos, Ramos e Pinto (2015) sobre a questão temática

27
Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGL) da Universidade Estadual do Rio Grande do
287

Norte (UERN).
28
Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGL) da Universidade Estadual do Rio Grande do
Norte (UERN).
29
Professor Doutor da Pós-Graduação em Letras (PPGL) da Universidade Estadual do Rio Grande do Norte
Página

(UERN).

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no âmbito da literatura de cordel no Brasil, Silva (2015) sobre o cordel no Brasil e Bardin
(2005) sobre Análise do conteúdo.
Os resultados apontam para uma dualidade de representações, sendo Lampião ora
visto como bandido, ora visto como herói. Ademais, traduz-se, portanto, com esse trabalho
que as representações acerca de Lampião são alternantes, contendo teor positivo e negativo
sobre o personagem.

1 Um pouco da origem do cordel no Brasil

Conforme mostram alguns estudos, existe um confronto de posicionamentos a respeito


da origem do cordel no Brasil. Enquanto alguns estudiosos apontam o cordel no Brasil como
sendo oriundo de Portugal, de “origem ibérica”, outros buscam mostrar que não houve
dependência entre a produção de folhetos nordestinos e a lusitana.
Silva (2015), assim como muitos estudiosos defende que o cordel foi introduzido no
Brasil em meio ao processo de colonização pelos portugueses. Segundo Aciole (2010): [...] a
‘trova portuguesa ao se unir a poética do caboclo’ brasileiro, fez emergir um ‘estilo literário
essencialmente sertanejo’, consagrando-se como ‘sinônimo de criatividade e humor’
(ACIOLE apud SILVA, 2015, p. 78)
De tal modo, para esses estudiosos, foi por sua vez a união, o entrelaçamento, entre a
produção literária portuguesa, especificamente a trova e, a produção nordestina, a poética, que
resultou na culminância a literatura de cordel no Nordeste. Os responsáveis pela introdução
dessa arte literária no Brasil teriam sido os portugueses, que trouxeram desde logo em suas
bagagens exemplares denominados “folhas soltas”.
Abreu (1999) ao apresentar um percurso histórico da origem do cordel no Brasil,
estabelece uma distinção, confronto entre o que opta por chamar de Literatura de cordel
(pertencente a Portugal) e Literatura de folheto (Pertencente ao Brasil), a autora busca mostrar
em seus estudos que a origem do cordel no Brasil não sofreu influências da produção de
folhetos lusitana.
A mesma, esclarece desde logo a questão terminológica, no que se refere ao emprego
do termo “literatura de folheto”, afirmando, pois, que essa expressão esteve em uso desde o
288

início desse tipo de produção literária no Brasil. Entretanto, nos dias atuais se emprega a
expressão “literatura de cordel” para se referir aos dois tipos de produção, porém defende que
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foi somente em 1970 se passou a empregar tal nomenclatura, importando assim esse termo
português que em Portugal já era empregado popularmente.
Após apresentar um percurso histórico da literatura de cordel portuguesa, registrando
sobretudo a dificuldade de se definir tal literatura e conceituar o cordel português, Abreu
(1999), mostra que a literatura de cordel lusitana atravessou o atlântico e chegou ao Brasil,
todavia tenha deixado alguma contribuição, como por exemplo, o tipo de estrutura
composicional poética que hoje adotado na maioria dos cordéis, isto é, poemas em quadras,
busca deixar claro que aconteceram modificações e que a literatura lusitana não pode ser
apontada como fonte principal da origem da produção nordestina, não se pode apontar uma
“origem ibérica” “incontestável”.
A autora, supõe que essa literatura chegada ao Brasil era caracterizada como
narrativas que contavam a história de figuras como “Carlos Magno”, “Bertoldo. Bertodinho e
Cacasseno”, “Belizário”, “Magalona”, “D. Pedro”, dentre outros e foram publicadas em
forma de livros com vistas somente à circulação entre as elites, que somente depois as obras
passaram por adaptações e se configuraram como literatura de cordel.
Ao discutir sobre a literatura de folhetos nordestina, Abreu (1999) defende que a
constituição dessa forma literária se deu entre os finais do século XIX e os últimos anos da
década de 1920, esteve ligada principalmente a prática da linguagem oral e precisamente as
cantorias. Segundo Abreu (1999):

No Nordeste têm grande relevância as cantorias, espetáculos que


compreendem a apresentação de poemas e desafios. O estilo característico da
literatura de folhetos parece ter iniciado seu processo de definição nesse
espaço oral, muito antes que a impressão fosse possível (ABREU, 1999, p.
78).

Assim sendo, a autora ressalta que o folheto surgiu do universo das cantorias, em que
a principal marca foi o caráter de produção oral, tanto no que se referia à composição dessa
forma literatura como também à sua própria transmissão.
Ainda segundo a estudiosa, houve resistência dos cantadores em importar a sua arte
para forma escrita, uma vez que consideravam que se perderia toda a sua essência. Entretanto,
passado algum tempo, a publicação dos folhetos começou a ganhar importância, surgindo a
289

forma impressa no formato de livrinho.


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Por conseguinte, conclui-se que não há concordância entre os estudiosos com relação
a origem do cordel no Brasil, enquanto alguns buscam provar que sua principal fonte de
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inspiração seria produção lusitana, outros apontam a incoerência de ligação entre as duas
formas literárias.

2 As temáticas nos cordéis...

Conforme mostram Ramos e Pinto (2015) existe uma ampla diversidade de temas que
podem se fazer presente nos cordéis. De tal modo defendem:

[...] o conteúdo temático dos folhetos de cordel é bastante variado, chegando


mesmo a não poder ser aquilatada a sua abrangência. Ciente disso, Ariano
Suassuna, ao se referir aos ciclos temáticos, afirmou que ‘dentro deles tudo
cabia’ (RAMOS; PINTO, 2015, p. 16).

Os estudiosos mostram que não é possível estimar toda a abrangência que envolve a
temática. Assim, destacam que essa diversidade temática levou alguns estudiosos a classificar
tal diversidade em chamados “ciclos temáticos”. Esta classificação, tida como reflexo de
estudos europeus, leva em conta não somente os temas, mas ainda os acontecimentos de
ordem social.
Os autores mostram que não existe consenso entre os estudiosos quanto a classificação
temática dos cordéis e com base no pensamento de Fiorin e Bakhtin (2003), Ramos e Pinto
(2015) explicam que o conteúdo temático trata-se de um domínio de sentido de que se ocupa
o gênero.
Mesmo considerando a abrangência da diversidade temática dos cordéis no Brasil,
Ramos e Pinto (2015), ressaltam que é possível observar a recorrência a certos temas. Assim,
apresentam algumas classificações temáticas as quais consideram como representativas e que
são destacadas nos estudos de alguns críticos literários como Manuel Diégues Júnior (1973),
Ariano Suassuna (1976), Liêdo Maranhão de Souza e Gustavo Barroso.
Na classificação trazida por Manuel Diégues Júnior (1973), destacam temas
tradicionais como romances e novelas, contos maravilhosos, estória de animais, cidade e vida
urbana, anti-heróis e tradição religiosa.
Em Ariano Suassuna (1976), Ramos e Pinto (2015) alertam para uma divisão de dois
290

grupos: poesia improvisada e literatura de cordel e enfatizam que o autor prefere falar em
“ciclos temáticos”, assim destacam o ciclo heroico, cômico, satírico, picaresco, de amor,
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religioso e de moralidades, maravilhoso, histórico e circunstancial, safadeza e putaria.

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Ao decorrer sobre a classificação abrangida por Souza, destacam que acontece um
enfoque centralizado em personagens e não em temas como por exemplo, cangaço e religião.
Personagens como Lampião, Antônio Silvino, Frei Damião e Padre Cícero são figuras
centrais.
Por último, discutem sobre a classificação de Gustavo Barroso, que conforme
observam propõe a categorização da poesia sertaneja em dois grupos: poesia tradicional e
poesia repentista. Nesses grupos apontam ciclos como o natal, os vaqueiros, os cangaceiros
ou heroico e caboclos. Podemos dizer que é esta última classificação de proposta de temática
apresentada por Barroso e também a compreendida por Souza que se enquadra a perspectiva
de enfoque temático para o qual o nosso trabalho se volta, que é a representação do
cangaceiro Lampião.
Ao concluírem sua discussão, Ramos e Pinto (2015), destacam:

[...] a classificação do cordel, de acordo com categorias orientadas pelo


tema, recaem, justamente no nível do gênero onde mais fortemente atuam as
forças de expansão, responsáveis pelas inovações, o que torna praticamente
impossível qualquer busca de classificação mais sedimentada e/ou definitiva
(RAMOS; PINTO, 2015, p. 16).

Portanto, não é possível uma classificação enraizada, fixa e definitiva para a questão
da temática em torno da qual se configuram os cordéis, dada a sua diversidade e abrangência.

3 A Análise de conteúdo de Bardin

Antes de partimos para a análise do nosso corpus apresentamos um breve histórico a


respeito da análise do conteúdo de Bardin, categoria a qual que embasa a nossa análise.
De acordo com o exposto na obra estudada Análise de Conteúdo, a autora, Laurence
Bardin (2016) é professora-assistente de Psicologia na Universidade de Paris V e “aplicou as
técnicas de Análise de Conteúdo na investigação psicossociologica e no estudo das
comunicações de massa”.
Ao delimitar o campo de estudo da Análise de Conteúdo na primeira parte da obra:
história e teoria, Bardin (2016) declara o seguinte:
291

A análise de conteúdo é um conjunto de técnicas de análise das


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comunicações. Não se trata de um instrumento, mas de um leque de

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apetrechos; ou com maior rigor, será um instrumento, mas marcado por uma
grande disparidade de formas e adaptável a um campo de aplicação muito
vasto: as comunicações (BARDIN, 2016, p. 37).

À vista disso, segundo a estudiosa a análise de conteúdo envolve procedimentos


metodológicos que tem como campo de aplicação as comunicações. Em razão da amplitude
desse seu campo de aplicações, isto é, as comunicações, Bardin (2016, p. 38) ressalva que
existe uma infinidade de análises de conteúdo possíveis, uma vez que qualquer comunicação,
“qualquer veículo de significados de um emissor para um receptor, controlado ou não por
este, deveria poder ser escrito, decifrado pelas técnicas de análise de conteúdo”.
Ao reconhecer o alargamento do domínio de aplicação desse campo, reconhece além
disso a dificuldade que surge para se definir a análise de conteúdo a partir desse seu campo. A
autora propõe, então, uma sistematização do conjunto dos tipos de comunicação, a partir de
dois critérios: a quantidade de pessoas implicadas na comunicação e a natureza do código e
do suporte da mensagem.
Bardin (2016) ressalva que a finalidade de qualquer análise de conteúdo não reside na
descrição dos conteúdos, todavia sim, naquilo que o conteúdo pode ensinar, transmitir.
Destarte, assegura que:

A intenção da análise de conteúdo é a inferência de conhecimentos relativos


às condições de produção (ou, eventualmente, de recepção), inferência esta
que recorre a indicadores (quantitativos ou não de conteúdo é um conjunto
de técnicas de análise das comunicações (BARDIN, 2016, p. 44).

A partir do exposto, se observa que autora esboça que a análise do conteúdo vale-se de
“procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens” (BARDIN,
2016, p.44), sendo a inferência apenas um dos três procedimentos envolvidos. O analista recorre a três
procedimentos (ou fases), os quais são: a descrição analítica, a inferência e a interpretação.
A primeira fase, descrição analítica, corresponde a etapa de tratamento dado a informação
contida nas mensagens. A segunda fase, isto é, a inferência, conforme discutido anteriormente seria o
procedimento intermediário no qual o analista recorre a dedução de conhecimentos sobre as condições
de produção, meio ou mensagem. E a última fase, interpretação, a fase de “significação concedida a
estas características” (BARDIN, 2016, p. 45).
292

Veremos mais adiante como essa categoria de análise se aplica ao corpus escolhido
para compor a nossa análise, os cordéis.
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4 Análise

O corpus do nosso trabalho é composto por onze cordéis, sendo estes distribuídos em
dez folhetos de cordel, com nove autorias diferentes. Para tratamento dos dados, será utilizada
a Análise de Conteúdo de Bardin, bem como se recorrerá ao Estado da Arte para eventuais
comparações de resultados.
A princípio, distinguiremos na tabela quatro características, na primeira coluna estão
elencadas as “Variáveis de Inferência”, contendo enxertos dos cordéis que trazem
características acerca de Lampião, à frente destes enxertos, a página aonde está localizado no
folheto. Na segunda coluna, intitulada “Material Analisado”, temos os títulos do cordel,
acompanhado na coluna seguinte do seu “Autor”. Por fim, uma coluna contendo a “Descrição
ou hipósteses/interpretação” aonde o pesquisador realiza a análise da leitura feita e dos
enxertos encontrados.

TABELA 1: Análise de Conteúdo de Bardin


VARIÁVEIS DE INFERÊNCIA MATERIAL ANALISADO AUTOR DESCRIÇÃO OU
HIPÓTESES/
INTERPRETAÇÃO
[...] Lampião assombrado (p.11) O fracassado ataque de Antonio Lampião representado por
[...] valente Lampião (p.13) Lampião à cidade de Mossoró Américo duas vieses: da covardia e da
[...] temido capitão (p.14) de valentia (dicotomia)
Medeiros
[...] Rei do cangaço (p.02) O massacre de Angico – A Paulo Lampião visto pelas suas
Homem forte de verdade (p.07) morte de Lampião Moura façanhas e representado pela
Foi o maior bandoleiro (p.08) viés do heroísmo
[...] foi herói do sertão (p.08)
Sempre foi trabalhador (p.1) As ruindades que Lampião João Apesar do título sugerir algo
Lampião, rei do cangaço (p.6) fez: sua vida e sua morte Peron negativo, as representações
encontradas sugerem
características positivas.
[...] tirano [...] famoso bandoleiro Lampião: o resumo da história Antonio Representações de suas
(p.1) Costa alcunhas e fama alcançada,
[...] afamado (p.8) não há predominância de
[...] bruto (p.11) caráter negativo ou positivo,
[...] rei (p.16) apenas descrições.
[...] gente mau (p.5) O grande debate de Lampião José Predominância de
[...] ruim [...] bandido/ roubador com São Pedro Pacheco representações negativas
da vida humana?/ Alma ferina e
tirana/ coração cruel, perverso!
[...] bandido, perverso, estompra,
voraz (p.6)
293

[...] cabra safado [...] bandoleiro


(p.07)
Assombro do mundo inteiro (p.02) A chegada de Lampião no José Predominância de
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[...] bandido/ ladrão de inferno Pacheco representações negativas


honestidade (p.03)

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Lampião – rei do cangaço (capa) Lampião – rei do cangaço: Gilton Lampião representado em
O valente cangaceiro (p.2) histórias Silva dois tempos: antes do
Era um caba inteligente [...] era Thomaz ingresso no cangaço e após,
um moço diligente, honesto e tendo representações
trabalhador [...] monstro assassino positivas na primeira fase e
(p.03) negativas na segunda. Na
[...] monstro criminoso [...] análise geral ocorre
bandido mais temível, perigoso predominância de
[...] cangaceiro afamado (p.04) características negativas
[...] pior cangaceiro (p.05)
Lampião era um capeta, esperto,
cheio de malícia (p.09)
Foi um bandido desumano (p.11)
Foi terrível cangaceiro [...] era
herói justiceiro (p.15)
O temível lampião [...] desalmado
(p.16)

[...] homens valentes; [...] astuto, Lampião e Padre Cícero num Moreira Lampião representado por
[...] inteligentes, [...] dois debate inteligente de duas vieses: bandido e herói,
exploradores (p. 02) Acopiara predominância de
[...] bandido (p.06, 08 e 10) características positivas
[...] sanguinário, [...] bandido
moderno (p.07)
[...] sujeitos carismáticos [...] reis
do sertão (p.16)

[...] não fora somente um homem Lampião Absolvido Moreira Lampião representado por
ruim (p.19) de duas vieses: bandido e herói,
Foi ele um injustiçado (p. 19) Acopiara predominância de
Justiceiro (p.21) características positivas
Para alguns eu fui bandido, mas
para muitos fui herói (p.23)
[...] Não ser covarde (p.24)

[...] bandido lutador [...] bandido Chuva de Balas Gualter Representações negativas,
[...] violador da honra [...] bandido Alencar predominância da alcunha
violento/truculento e sanguinário “bandido”
(p.1)
[...] perverso (p.9)

É possível constatar nos cordéis analisados que há cordéis que são dicotômicos em
sua fala e ora representam Lampião como herói, ora como bandido, como é o caso de Moreira
de Acopiara. Acerca disso, Dantas (2005, p.355) também especifica a visão potiguar acerca de
Lampião como um “misto de herói e bandido” e complementa que “Seu nome permanece até
294

hoje e restará por todo o sempre. Como uma sombra. Ou simplesmente, um mito”.
Sobre a predominância da palavra bandido, também Chandler (1980, p. 13) ao iniciar
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sua obra já evoca a palavra bandido para descrever a figura de Lampião, “o bandido que teve

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maior sucesso no século XX” e descreve-o assim ao longo do texto, explicando que tudo
começou através de vingança.
No geral, há predominância de cordéis com características positivas, sendo que apenas
os autores: José Pacheco, Gualter Alencar e Gilton Thomaz elencaram com mais frequência
características negativas. Por outro lado, houve uma predominância de adjetivos negativos, de
modo geral, pela frequência de palavras, sendo que 66% dos adjetivos são negativos e 34%
são positivos, conforme a tabela 2 pode ilustrar:

TABELA 2 – Frequência e predominância de adjetivos


f 12 f5 f3 f2 f1
Bandido rei Valente, Temido, tirano, Assombrado, bruto, forte, mau, ruim,
bandoleiro, afamado, cruel, roubador, estompra, voraz, safado,
herói, inteligente, assombro, ladrão, diligente, honesto,
perverso trabalhador, assassino, perigoso, criminoso, pior,
monstro, justiceiro, capeta, esperto, malicioso, desumano,
sanguinário terrível, desalmado, astuto, explorador,
carismático, injustiçado, violento,
truculento
+1 +1 +2 e -2 +4e-3 + 4 e – 26

A tabela está organizada de modo a conter a frequência de palavras, dispondo cinco


colunas, conforme tais palavras se repetiram ao longo dos cordéis e nestas colunas estão
elencadas as referidas palavras. Na última linha, ocorre a predominância de palavras,
classificadas como positivas (+) ou negativas (-).
Na literatura podemos perceber, ainda, conforme estado da arte encontrado que Silva e
Patroclo (2013) em pesquisa similar, porém descrevendo Lampião ao lado de Antonio Silvino
pontuou o ingresso de ambos como forma de vingança e a violência praticada por seus
bandos, porém, tendo um misto com o heroísmo, em virtude de que os sertanejos o viam
assim, por estes sujeitos terem a prática de tirar dos ricos e dar aos pobres. Silva (2010)
também estuda as representações sobre Lampião e Antonio Conselheiro e esta autora opina
que nem sempre o cordel traduz a realidade concreta, por sua vez, ela traz uma visão negativa
até então não vista já que os outros autores concordam que o cordel traduz a realidade por
trazer a voz do povo. Dutra (2011) também encontrou contradições acerca de Lampião e
295

justifica que o estigma de bandido foi difundido pela mídia enquanto a de herói foi difundida
pelo povo.
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Conclusão

A análise dos cordéis permitiu apreender o conteúdo de significados difundidos acerca


de Lampião, porém, para uma maior evidência disso se faz necessária uma amostra maior, a
qual justifica-se não ter sido feita devido o trabalho ainda está em processo, sendo esta apenas
uma amostra que será ampliada adiante.
Nota-se ainda que, apesar de a maioria dos cordéis retratarem Lampião de forma
positiva, a análise de adjetivos predominou alcunhas negativas, tendo em vista que os cordéis
que optaram por essa viés eram muito repetitivos em sua fala. A dicotomia foi encontrada,
porém sem predominância, mas configura um pensamento social que ainda não ficou bem
definido e que necessita de um olhar mais aprofundado por região e culturas que aparentam
dissociações conforme o que foi difundido sobre Lampião em determinados lugares.
A literatura científica elencada como estado da arte confirma os resultados
encontrados até então, mostrando que os caminhos estão coerentes e que na amplitude da
pesquisa os resultados serão melhor constatados
Acerca do gênero cordel observa-se que é uma importante ferramenta de
representação, trazendo a voz do povo nas rimas traçadas por seus cordelistas, sendo pois,
uma alternativa possível para tal estudo, confirmado na literatura científica dos artigos e livros
que abordam o assunto, aonde apenas um deles trouxe uma contrariedade a esse pensamento.
Ademais, encerra-se o presente artigo em versos para não dizer que não falei das
flores, tendo em vista que é o gênero escolhido para análise do tema, bem como, trazendo o
desfecho da presente pesquisa até então:

Leitores vou terminar


tratando de Lampião
muito embora que não possa
vos dá a explicação
no inferno não ficou
no céu também não chegou
por certo está no sertão
(José Pacheco)

Referências
296

ALENCAR, Gualter. Chuva de balas [folheto]. Coleção Queima-Bucha. Mossoró: Queima-


Página

Bucha, 2002.

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(Mestrado em História) – Universidade Federal da Paraíba – UFPB. João Pessoa, 2011.

MEDEIROS, Antonio Américo de. O fracassado ataque de Lampião à cidade de Mossoró.


[folheto]. [s.l.]: editora coqueiro, [s.d.]

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PACHECO, José. O grande debate de Lampião com São Pedro [folheto]. Maceió:
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PACHECO, José. A chegada de Lampião no inferno [folheto]. Bezerros: J. Borges, 2003.

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Natal, 2013.

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298
Página

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GT3 – ENSINO DE LÍNGUA MATERNA

UMA ANÁLISE CRÍTICA MULTIMODAL DO VÍDEO CLIPE “ GELO NA


BALADA” NUMA PERSPECTIVA DA GRAMÁTICA DO DESIGN VISUAL

Adalberto Barbosa Junior (PPCL/UERN)30


Moisés Batista da Silva (PPCL/UERN)31

Considerações iniciais

O clip é um gênero de natureza musical, produzido pela indústria fonográfica, com


vistas a divulgar seu material. Existem vários canais de televisão que distribuem esse gênero,
além da possibilidade de serem vistos através da internet. Os clips posicionam os sujeitos na
sociedade, dependendo da maneira como os discursos são construídos. Analisamos um clipe
musical da banda norte-rio-grandense Cavaleiros do forró, produzido em 2014, da autoria de
Jota Reis, Ranieri Mazille e Neto Barros. O clipe “Gelo na balada” tem sido amplamente
divulgado nas rádios do Norte e do nordeste do Brasil assim como teve um número
expressivo de aproximadamente 2.800.000 nas redes sociais.
Como o enfoque deste trabalho se encontra na leitura das letras e das imagens,
recorremos à Análise Crítica do Discurso (ADC) idealizada por Fairclough (2001, 2003) e da
Gramática do Design Visual (GDV), de Kress e van Leeuwen (2006). Esses aspectos
abordados pela GDV oferece uma nova perspectiva de letramento no que se refere a leitura de
imagens, permitindo ao leitor analisar imagens sobre uma nova perspectiva.
Na primeira parte do trabalho, faremos uma incursão teórica sobre o surgimento da
ADC, elencando sua contribuição tanto para o campo da linguística como da sociologia,
permitindo o surgimento de uma Teoria Social do Discurso. Na segunda parte, faremos uma
incursão teórica pela GDV, considerando que este será o enfoque principal deste trabalho, nos
deteremos mais especificamente a metafunção interativa. Em seguida, falaremos um pouco
sobre o videoclipe, seu surgimento, características e seu papel transformador da sociedade
através das ideias que nela são veiculadas. Por fim, nos voltaremos para três imagens
extraídas do videoclipe “Gelo na balada”, a fim de identificar como a imagem do homem e da
mulher é construída ao longo do video e quais posicionamentos ideológicos são marcados
299

explicita ou implicitamente por meio delas.


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30
Mestrando
31
Orientador

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1 Uma breve introdução à Análise do Discurso Crítica

A ADC teve suas origens na sociolinguística e na etnografia da fala, e sofrendo forte


contribuição da Linguística Crítica. A Teoria Social do Discurso, mas comumente chamada
por aqui de Análise Crítica do discurso, tem encontrado relevante espaço pelos estudiosos da
linguística e da sociologia. Esse novo olhar abrange tanto aspectos linguísticos como sociais,
considerando que dialeticamente, a linguagem não pode ser desvinculado ou mesmo analisado
desconsiderando seus aspectos ou elementos sociais (RESENDE e RAMALHO, 2009).
A ADC foi consolidada como disciplina em meados da década de 1990, quando na
realização de um simpósio realizado em janeiro de 1991, em Amsterdã, em que participaram
nomes como Teun van Dijk, Normam Fairclough, Gunter Kress, Theo van Leewen e Ruth
Wodak. A Teoria Social do Discurso faz uso de uma abordagem transdisciplinar, buscando
romper fronteiras epistemológicas, operacionalizando-as e buscando transformar tais teorias
em favor da abordagem sociodiscursiva (RESENDE e RAMALHO, 2009).
A ADC tem em Fairclough, o seu maior baluarte. Fairclough abarca, em sua Teoria
Social do Discurso, diversos nomes das ciências linguística e social como Bakhtin, Bourdieu,
Foucault, Hallyday, entre outros. Em Fairclough, encontramos aspectos de Bakhtin (1997,
2002). Bakhtin contribuiu significativamente ao apresentar os vínculos existentes entre
discurso e poder, por ter sido o fundador da teoria semiótica de ideologia, em que apresenta o
signo linguístico como elemento imbuído de carga ideológica, pela inserção dos gêneros nos
estudos da linguagem, também por ter sido um dos precursores a criticar o objetivismo
abstrato de Saussure (RESENDE e RAMALHO, 2009).
É por meio de Hallyday, em sua Gramática Sistêmico-Funcional que a ADC orienta-se
para suas análises linguísticas. Essa abordagem funcionalista:

Tem por objetivo, além de estabelecer princípios gerais relacionados ao uso da


linguagem, investigar a interface entre as funções e o sistema interno das
línguas. A compreensão das implicações de funções sócias na gramática é
central à discursão que relaciona linguagem e sociedade. (RESENDE e
RAMALHO, 2009, p. 56).

A Linguística Sistêmico-Funcional remete a uma teoria geral ao funcionamento da


300

linguagem inerentemente humana, concebida por meio de uma abordagem descritiva e


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baseada tanto na sua forma quanto em suas muitas formas de uso linguístico. Na Gramática
Sistêmico-Funcional, verificamos que sua abordagem multifuncional abarcaria três aspectos:
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função ideacional, função interpessoal e função textual. Essas metafunções levam em
consideração o fato da língua servir tanto para expressão de conteúdos quanto para dar conta
das nossas experiências vivenciadas, para estabelecimento e manutenção de relações sociais
assim como para que possamos desempenhar papeis sociais comunicativos, ora de falante ora
de ouvinte (BARBOSA, 2013, p. 64).
Esclarecido esses aspectos sobre a Linguística Sistêmico-Funcional elaborada por
Halliday a qual também serve como ferramenta pela ADC, verificamos que o próprio
Fairclough justifica a importância do material elaborado por Halliday, para a Teoria Social do
Discurso, ao explicitar o papel que o texto tem na ADC:

A prática discursiva manifesta-se em forma linguística, na forma do que


referirei como ‘texto’, usando ‘texto’ no sentido amplo de Halliday,
linguagem falada e escrita (Halliday, 1978). A prática social (política,
ideológica, etc.) é uma dimensão do evento discursivo, da mesma forma que o
texto [...] A análise de um discurso particular como exemplo de prática
discursiva focaliza os processos de produção, distribuição e consumo textual.
[...] A prática social como alguma coisa que as pessoas produzem ativamente
e entendem com base em procedimentos de senso comum compartilhados [...]
as práticas dos membros são moldadas, de forma inconsciente, por estruturas
sociais, relações de poder e pela natureza da prática social em que estão
envolvidos, cujos delimitadores vão sempre além da produção de sentidos
(FAIRCLOGH, 2001, p. 99-100).

Importante ressaltar aqui a noção de texto para Halliday (1978, p. 122) como:

Uma forma linguística de interação social. É uma progressão contínua de


significados [...] Os significados são as seleções feitas pelo falante das opções
que constituem o potencial de significado; o texto é a atualização desse
potencial de significado, o processo de escolha semântica.

Feita essas colocações, devemos ver o texto, segundo Halliday, como uma
instanciação do sistema, de maneira que sistema e língua não são fenômenos separados. São o
mesmo fenômeno visto de diferentes perspectivas. Faz-se ainda necessário o conhecimento
dos conceitos de Ideologia, baseado na perspectiva de Thompson (1995) e de hegemonia,
baseado na perspectiva de Gramsci (1988), onde o primeiro, a ideologia, apresenta aspectos
inerentemente negativos uma vez que se presta a serviço da manutenção e sustentação das
301

relações de poder, e o segundo, a hegemonia, como um domínio que é exercido pelo poder de
um grupo melhor favorecido em detrimento de outros menos favorecidos.
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Essa luta hegemônica pela manutenção do poder é refletida nos textos e enunciados
que são produzidos e difundidos no meio social, palco dos conflitos entre as classes. Como
bem expressa Resende e Ramalho (2009, p. 18), são esses textos/vozes objetos de análise da
ADC:

Essa noção de várias vozes, que se articulam e debatem na interação, é crucial


para a abordagem da linguagem como espaço de luta hegemônica, uma vez
que viabiliza a análise de contradições sociais e lutas pelo poder que levam o
sujeito a selecionar determinadas estruturas linguísticas ou determinadas
vozes, por exemplo, e articulá-las de determinadas maneiras num conjunto de
outras possibilidades.

Desse modo a ADC, segundo Fairclough (2003) deve prestar-se a serviço dos menos
favorecidos uma vez que busca desvelar, tornar visível a existência de um desequilíbrio
social, devendo considerar os meios que permitiram a construção do discurso do favorecido,
onde

[...] toda tarefa crítica, pondo em questão as instâncias de controle, deve


analisar ao mesmo tempo as regularidades discursivas através das quais elas se
formam; e toda descrição genealógica deve levar em conta os limites que
interferem nas formações reais (p. 66).

Uma vez considerada como potencial dotada de carga negativa, e geradora do


desequilíbrio, é exatamente o desvelamento da ideologia que permitiria a sua perda de forças
a medida que se torna conhecida pelo corpo social e as classes que se posicionam abaixo das
classes favorecidas, como expressa Fairclough (1989, p. 85):

A ideologia é mais efetiva quando sua ação é menos visível. Se alguém se


encontra consciente de que um determinado aspecto do senso comum sustenta
desigualdades de poder em detrimento de si próprio, aquele aspecto deixa de
ser senso comum e pode perder a potencialidade de sustentar desigualdades de
poder, isto é, de funcionar ideologicamente.

É nesse aspecto que a ADC busca identificar e desconstruir a ideologia presentes em


textos que permeiam as práticas sócias, trazendo luz, podendo de algum modo intervir,
permitindo desvelar essas relações de dominação, mostrando as causas e conexões que estão
302

aparentemente ocultas para que de algum modo produzir mudanças que possam favorecer
àqueles ou àquelas classes que se encontram em situação de desvantagem (RESENDE e
Página

RAMALHO, 2009).

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2 A Gramática do Design Visual

Uma vez que vivemos em um mundo rodeado por imagens, e visando repensar o modo
como os textos imagéticos são constituídos no concernente ao seu significado e às suas
implicações na sociedade, Kress e van Leeuwen (2006) elaboraram a Gramática do Design
Visual que gira em torno das três metafunções linguísticas sugeridas pelas premissas teóricas
propostas por Halliday (1994), ao considerar as funções e o contexto no qual as imagens são
produzidas, pois acreditam que “assim como as estruturas linguísticas, as estruturas visuais
apontam para interpretações de experiências particulares e formas de interação social”
(KRESS; VAN LEEUWEN, 2006, p. 02). A proposta de Kress e Van Leeuwen nas palavras
de Barbosa (2013, p. 77) é:

[...] descrever as imagens partindo do pressuposto de que os seus elementos


internos são combinados entre si para comunicar um ‘todo coerente’ para
expressarem significados distintos. A análise das estruturas visuais pode
incluir pessoas, lugares ou objetos na forma de participantes representados que
podem estar organizados em diferentes níveis de complexidade.

Desse modo, os significados expressos na língua por meio da escolha entre classes de
palavras e estruturas gramaticais podem ser expressos na imagem por meio da diferenciação
de cores, tonalidade, foco, dentre outros, e tais diferenças podem afetar e modificar o sentido
proposto pelo produtor do texto imagético.
Como dito acima, a teoria da gramática visual foi adaptada por Kress e Van Leewen a
partir das metafunções propostas por Halliday (1994), no entanto, enquanto a Linguística
Sistêmico Funcional se organiza em torno das metafunções ideacional, interpessoal e textual,
a GDV as assume como Representacional, Interativa e Composicional, respectivamente, uma
vez que cada meio semiótico possui suas próprias regras e estrutura, apesar de uma estar
ancorada na outra e ambas possuírem um foco nas metafunções da linguagem (verbal e não
verbal). A Linguística Sistêmico-Funcional de Halliday (1994) enfatiza um código semiótico
da linguagem, enquanto que a Gramática do Design Visual ressalta o código semiótico da
imagem.
303

A metafunção representacional é responsável pelas estruturas que constroem


visualmente a natureza dos eventos, objetos e participantes envolvidos, e as circunstâncias em
Página

que ocorrem. A metafunção interativa nos permite representar uma relação social particular

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entre o produtor da imagem, seu receptor e o próprio objeto representado. Por fim, a
metafunção composicional nos dá a habilidade de criar representações coerentes, ao distribuir
seu valor entre os elementos da imagem de forma contextualizada. Almeida (2008) explica
que os significados visuais representacionais (as relações entre participantes representados em
uma estrutura visual) correspondem à metafunção ideacional; os significados visuais
interativos (a relação entre imagem e espectador) correspondem à metafunção interpessoal; os
significados composicionais (relação entre os elementos da imagem) correspondem à
metafunção textual. Nos ateremos aqui a metafunção interacional, para fins de análise.

2.1 Metafunção interacional.

A metafunção interacional lida com os participantes representados e sua relação com


os interativos, ou seja, seu observador do mundo real. Os participantes interativos são pessoas
do mundo real as quais produzem ou consomem a imagem, ditando como deva ser
representada e interpretada, que mensagem ela deve passar, como ela o fará, etc., desse modo,
ela estabelece uma relação tanto entre os elementos que compõem a imagem quanto entre
quem a produz e quem a observa, exigindo deste último uma atitude. Essas interações se dão
por meio do Contato, da Distância Social, da Perspectiva e da Modalidade, categorias que
serão abordadas na análise do corpus desta pesquisa. O contato, faz referência ao foco do
olhar dos participantes representados na imagem. Ele pode ser de Demanda, caso os
participantes estejam focando o seu olhar para o observador da imagem, ou de Oferta, caso
não seja possível determinar a direção do olhar do participante. Quanto à distância social, os
participantes podem nos ser apresentado em Plano fechado (quando o participante nos é
apresentado em close up) que permite certa proximidade/intimidade com aquele que o
observa. Já o plano médio nos apresenta o participante no mesmo nível do observador. O
participante é considerado em plano médio quando aparece na imagem dos joelhos para cima.
Por fim, o Plano aberto nos apresenta o participante de corpo inteiro aumentando assim a
distância social entre participante e observador. A perspectiva diz respeito ao ângulo ou ponto
de vista que os participantes representados nos sãos mostrados. O ângulo frontal vem sugerir
certo envolvimento do observador com o participante representado e caso a imagem esteja no
304

nível do olhar, pode-se dizer que há uma relação igualitária entre o observador e o
participante representado. O ângulo oblíquo nos mostra o participante de perfil, estabelecendo
Página

uma sensação de alheamento, como se o observador não fizesse parte do mesmo mundo do

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participante representado. Já o ângulo vertical pode tanto nos mostrar os objetos e/ou
participantes representados em câmara alta como em câmara baixa. Na câmara alta, os objetos
e participantes nos é apresentado de cima para baixo, estabelecendo uma relação de poder do
observador em relação aos objetos e participantes representados na imagem; Na câmara baixa,
temos exatamente uma inversão de poder, quando os objetos e participantes representados nos
são apresentados de baixo para cima, quando estes passam a exercer uma posição de poder em
relação ao observador.
Por fim, no que diz respeito ao modo interativo, a modalidade nos diz o quanto uma
imagem está próxima ou não da realidade. Nesse aspecto, o modo como as cores são
distribuídas na imagem pode nos dizer o quanto uma imagem sua modalidade é natural ou
imaginária. Uma imagem terá uma modalidade alta quando se aproxima do que é visto e
percebido no mundo real. Por sua vez, a imagem terá uma modalidade baixa à medida que se
distancia do que é visto e percebido como real no mundo.

3 O videoclipe musical

O surgimento do videoclipe pode ser associado à criação dos artefatos tecnológicos,


amplamente utilizados na indústria musical. Para Mozdzenski (2012), a criação desse gênero
ocorreu em 1894, quando Edward Marks e Joe Sterns editores de partituras musicais,
contrataram o eletricista George Thomas para divulgar suas canções. Em 1940, com a criação
do jukebox visuais tornou-se possível não apenas ouvir as músicas, mas também visualizar
alguns recursos, ainda que esses não tivessem diretamente ligados às letras. Na década de
1960, os programas de auditório, ao trazerem músicos ao palco, acabaram produzindo várias
gravações, que posteriormente se tornaram videoclipes. Os videoclipes passam a romper com
as restrições de tempo e espaço que eram impostas pelas apresentações ‘presenciais’ dos
artistas. Justamente com esse propósito que no ano de 1966, os Beatles filmaram um vídeo
para a canção de rock “Paperback writer”, sendo considerado por Peeters (2004), o primeiro
videoclipe a ser mostrado na TV. Em meados de 1960, surgiu uma nova tecnologia que
mudaria completamente o modo de consumo de sons e imagens: o videotape. Sedeño
Valdellós (2007), afirmava que com a possibilidade de registro sincrônico do som e de
305

imagem, era possível o controle imediato dos resultados simultaneamente com sua filmagem,
podendo manipular o material produzido. Era possível a partir de então, gravar fragmentos
Página

curtos e montá-los plano a plano, apagar cenas indesejáveis, reelaborando, desse modo, sua

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estrutura narrativa no processo de edição (passando a ser possível iniciar o filme pelo seu fim,
por exemplo e incorporar um grande número de novos recursos visuais e sonoros).
Roy Armes (1999, p. 45) afirmou que o desenvolvimento dos fatores que permitiram o
surgimento do vídeo, no caso dos videoclipes:

[...] só é compreensível se levarmos em conta o contexto econômico e social


amplo, em particular a transformação do próprio capitalismo nesse período”.
Segundo o autor, “o impulso por trás desse desenvolvimento não é
humanitário, nem científico, nem artístico – é a busca de lucros cada vez
maiores no sistema capitalista”

Por isso, é importante discutirmos a emergência desse gênero a partir do cenário


socioeconômico e das mudanças vividas pela sociedade nas últimas décadas. Diz ainda que os
fatores que permitiram o surgimento do videoclipe só são compreensíveis “se levarmos em
conta o contexto econômico e social amplo, em particular a transformação do próprio
capitalismo nesse período” (ARMES, 1999, p. 46) e que o impulso responsável pelo seu
desenvolvimento não estaria em razões humanitárias, nem científicas, nem artísticas, tratando-
se aqui na verdade de uma busca de lucros cada vez maior no sistema capitalista. Além de
vender um produto, a música produzida pela indústria, os videoclipes também investem em
(re)posicionamentos sociais. Como demarca Pontes (2003), valores família, ensino,
sexualidade e consumo assumiram a pauta dos videoclipes. No contexto da liberdade,
inclusive a sexual, o conteúdo desse material visava subverter determinadas práticas,
assumidas como naturais pela sociedade.
É também possível perceber nos videoclipes uma tentativa de (re)afirmação de certos
posicionamentos sociais, como da superioridade masculina em relação a ao papel que a
mulher ocupa na sociedade, da objetificação da mulher e do corpo feminino, da tentativa de
consolidação de práticas sociais visando novos hábitos e consumos. O vídeo clipe nos
apresenta esses aspectos numa tentativa de apresentar essas práticas ideológicas para como
naturais aos telespectadores. Entre esses, o videoclipe da música Gelo na balada, da banda
norte rio-grandense Cavaleiros do Forró, se destaca pela ampla difusão e (re)construção do
papel social da mulher, da sua objetificação, bem como na apresentação de novos padrões
sociais. Gelo na balada de Cavaleiros do Forró é um videoclipe produzido pela Padang
306

promoções. Cantada e interpretada por Israel Peruano, vocalista e protagonista do vídeo. A


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música foi composta por Jota Reis, Raniere Mazille e Neto Barro. A elaboração do roteiro
ficou na responsabilidade de Ricardo Lago, Alex Padang e Janine Lago. Sua publicação no
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Youtube data de 08 de agosto de 2014. O vídeo clipe Gelo na balada apesar de pouco mais de
quatro meses atingiu uma grande quantidade de acessos no youtube, atingindo mais de
2.800.000 visualizações, também é tocada em várias rádios do nordeste e diversas outras
rádios em todo o Brasil. A grande divulgação e aceitação que a música e vídeo clipe tem
principalmente entre os jovens e adolescentes, torna oportuno sua investigação e explanação
seguindo a proposta da ADC e da GDV junto aos alunos do ensino médio da rede de ensino,
para que estes possam atentar para o modo como as imagens são dispostas no vídeo e o que
ela nos diz sobre os posicionamentos ideológicos ali apresentados.

4 Videoclipe Gelo na balada: uma análise crítica da imagem

Este trabalho tem como proposta fazer uma análise de alguns recortes do videoclipe da
música “Gelo na balada” da banda Cavaleiros do Forró, seguindo os referenciais teóricos
apresentados da ADC e da GDV, mas especificamente focaremos na metafunção interacional.
Em seguida, selecionamos três imagens extraídas do videoclipe que pode ser facilmente
encontrado no YouTube, para que possamos analisar os seus aspectos visuais, seguindo a
proposta de Kress e van Leeuwen em sua Gramática do Design Visual e as orientações de
Fairclough. Cada imagem apresentada terá em sua legenda o exato tempo em que aparece no
videoclipe, seguindo o modelo [HH/MM/SS] ou seja, a hora, o minuto e o segundo em que a
imagem aparece na tela do videoclipe. Será feita uma breve contextualização dos
acontecimentos que antecedem a cena recortada e quando necessário, os acontecimentos que
sucederão o trecho recortado. Conjuntamente a essas observâncias, será analisada a imagem
como um todo levando em consideração seus aspectos interacionais propostos pela GDV,
assim como procuraremos verificar as ideologias presentes e a tentativa de seus produtores de
subverter o telespectador a aceitar determinadas práticas sociais.
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4.1 Analisando imagens do clipe Gelo na balada

(Imagem 01 – tempo: 00:01:38 min)

Em (01), quanto à interação, todos os participantes focam o olhar para o observador


em olhar de demanda, aparecem em plano aberto e são focados em câmera baixa, desse
modo os participantes estão emponderados em relação ao observador, indicando um estilo de
vida melhor do que daqueles que apenas observam. Quanto ao valor da informação, os
participantes aparecem em posição central e a garrafa de whisky aparece em saliência. Há na
imagem (01) exposição de um estilo de vida que incita a luxuria, a vida boêmia e a poligamia
como uma condição que permite um indicador de maior status social.

(Imagem 02 – tempo: 00:02:52 min)


308

Nas imagens (02), temos uma representação narrativa que mostra o participante
Página

homem dançando e sorridente rodeado de diversas garotas que dançam ao seu redor. Quanto à

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interação, verificamos que todos os participantes apresentam olhares de oferta dispersados
para diversas direções, assim como todos são apresentados em plano médio como indicador
de que o próprio observador poderia estar presente juntamente com os participantes caso
queira. Não há como deixar de citar que em (02) temos praticamente a ausência de outros
homens a não ser do vocalista da banda, como um possível indicador de sucesso, ressaltando
a ideia de que uma pessoa de poder aquisitivo poderia ter tantas mulheres quanto quisesse aos
seus pés e tantas bebidas quanto se pode pagar.

(Imagem 03 – tempo: 00:03:29 min)

Por fim, temos a imagem (03) que encerra o videoclipe. Essa representação é
narrativa, quando todos os participantes lançam o olhar em direção ao observador e as
mulheres realizam a ação inclinando-se e apoiando-se sobre o participante homem. O
participante homem e as mulheres lançam um olhar de demanda. A expressão séria e de tom
distante na face do homem é como se estivesse direcionado a mulher que o rejeitara,
indicando que poderia e conseguiu situação melhor esquecendo-a, pois ganhara três mulheres
em troca. As mulheres, por sua vez, não apresentam o mesmo olhar desafiador do participante
homem, mas sim um olhar convidativo em que seduz o observador como se dissesse que este,
o observador, pudesse encontrar-se em igual situação do participante masculino, o fato da
imagem nos ser apresentada em plano médio e em ângulo frontal permite essa intimidade
entre os participantes representados e o observador.
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Considerações finais

Após a análise da letra e do videoclipe “Gelo na balada” identificamos como esse


gênero musical, amplamente difundido nas rádios e internet funciona para posicionamento de
sujeitos sociais. No caso do videoclipe analisado, percebemos a mulher representada como
objeto, como em momentos em que o participante masculino exibe “possuir” mais de duas
mulheres. Há também forte indicador de machismo nas imagens do videoclipe. As presenças
de bebidas caras em diversos ângulos também caracterizam uma forte propaganda ao
consumismo, que para uma pessoa mostrar-se numa condição melhor precisa ter todas essas
regalias. O distanciamento social por meio do qual o homem é apresentado nas imagens apela
para uma aproximação do observador, principalmente do observador masculino, a fim de que
esse se torne participante, ou pelo menos que testemunhe esse processo. Por isso, o
participante homem geralmente é apresentado no plano central e em ângulos que empoderam
o homem, enquanto a mulher muitas vezes aparece como pano de fundo como um leve
indicador de seu apagamento em contrapartida com o foco que é dado ao participante
masculino, revelando, assim, mais uma vez uma forte marca do machismo presente nas
imagens do vídeo.

Referências

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João Pessoa: Editora da UFPB, 2008.

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Bucha, 2013.

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Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

BAKHTIN, M. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Huciteg, 2002

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FAIRCLOUGH, N. Discurso e mudança social. Brasília: Ed. Unb, 2001.


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HALLIDAY, M. A. K. An introduction to functional grammar. 2nd ed. London: Arnold,


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KRESS, G.; VAN LEEWEN, T. Reading images: the grammar of visual design. London:
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MOZDZENSKI, L. P. O ethos e o pathos em videoclipes femininos: construindo


identidades, encenando emoções. (Tese de Doutorado). Recife: UFPE, 2012.

PONTES, P. Linguagem dos videoclipes e as questões do indivíduo na pós-modernidade.


Sessões do Imaginário, n. 10, nov. 2003, p. 47-51.

RESENDE, Viviane de Melo; RAMALHO, Viviane. Análise de discurso crítica. São Paulo:
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SEDEÑO VALDELLÓS, A.M. El videoclip como mecanarrativa. Signa, n. 16, 2007, p.


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THOMPSON, J. Ideologia e cultura moderna. Petrópolis: Vozes, 1995.

Site consultado:
Videoclip Gelo na balada – Banda Cavaleiros do Forró
YOUTUBE.COM. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=kUhHhahysJg>
Acesso em 20 dez. 2014.
311
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GT3 – ENSINO DE LÍNGUA MATERNA

A VARIAÇÃO LINGUÍSTICA INTERIORANA E IMPLICAÇÕES PARA A


AUTOESTIMA DE ALUNOS NO ENSINO FUNDAMENTAL

Ana Cláudia do Nascimento Silva (UERN)


ana_claudia222@hotmail.com
Nádia Maria Silveira Costa de Melo (UERN)
solinadia@bol.com.br

Considerações iniciais

Este artigo é resultado de uma investigação do uso da variedade linguística interiorana


e a implicação desse uso para a autoestima dos que a utilizam. Sua relevância consiste em
buscar formas de combater/atenuar o preconceito que existe no âmbito escolar, tendo em vista
que a discriminação dessa variedade linguística traz consequências para o ensino-
aprendizagem, em específico, para as aulas de língua portuguesa.
As questões que nortearam este estudo foram as seguintes: a) os alunos já
experienciaram o preconceito por causa de suas variantes linguísticas? b) os alunos têm
preconceito em relação as variedades linguísticas estigmatizadas? c) será que os estudantes
têm consciência reflexiva e crítica sobre o fenômeno da variação linguística? d) o que os
alunos revelam de si mesmo e /ou de outras variedades?
Diante disso, o nosso objetivo geral foi analisar, à luz da Sociolinguística
Variacionista, o uso das variedades linguísticas estigmatizadas por alunos do ensino
fundamental geradoras de preconceitos que implicam baixa autoestima. A pesquisa foi
realizada com 14 alunos do 8º ano do ensino fundamental de uma escola pública de Triunfo
Potiguar/RN. Como objetivos específicos: a) Investigar o uso das variedades linguísticas
estigmatizadas por estudantes de um 8º ano de uma escola pública do RN; b) analisar a
implicação do preconceito linguística para a autoestima dos alunos do 8º ano do ensino
fundamental; c) propor atividades de intervenção que amenize o preconceito existentes entre
os alunos sobre o uso linguístico divergente da norma tradicional. A abordagem metodológica
usada foi a qualitativo-intrepretativista com suporte quantitativo. O corpus de análise foi
constituído a partir de um questionário semi-estruturado para verificar qual era percepção dos
312

participantes acerca da variação linguística interiorana.


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O artigo está organizado em quatro seções, essas considerações iniciais, a
fundamentaçao teórica, a análise das amostras e, por fim, as considerações finais, seguido das
referências.

2 Sociolinguística variacionista

Esta pesquisa está fundamentada nos pressupostos teórico-metodológicos da


Sociolinguística Variacionista. Essa teoria enfatiza o papel decisivo dos fatores sociais na
explicação da variação linguística. Alguns de seus principais rerpresentantes são Labov
(2008); Camacho (2005); Tarallo (1985); entre outros, que enfatizam nos seus estudos a
heterogeneidade da língua bem como apresentam dados referentes às regras em processo de
variação e mudanças; e Bagno (1999; 2003; 2007), Scherre (2009), Faraco (2008), Leite
(2008), que discutem os conceitos de norma linguística e o preconceito linguístico.
A escolha por esta linha teórica se deve ao fato das muitas contribuições dadas para a
compreensão da diversidade linguística. Ainda, por não ser mais possível pensar o ensino de
uma língua que ignore essas contribuições nas últimas décadas, principalmente no que diz
respeito ao conhecimento da heterogeneidade da língua, e por considerar que seus postulados
podem ajudar a conscientizar e, consequentemente, a reduzir o preconceito linguístico e a
propiciar o respeito às diversidades linguísticas dos alunos com base nas sugestões de novas
práticas educacionais
A Sociolinguística Variacionista, que tem como seu principal representante Labov,
defende que a variação linguística é um fenômeno natural inerente às todas as línguas “É
comum que uma língua tenha diversas maneiras alternativas de dizer a mesme coisa” (
LABOV, 2008, p. 221). Não há, pois, uma variedade melhor que outra do ponto de vista
linguístico, já que segundo Bortoni-Ricardo (2005, p.15) “essas formas alternativas servem a
propósitos comunicativos distintos e são recebidos de maneira diferente pela sociedade”.
Respaldada nessa concepção, compreende-se que a teoria da variação linguística,
trata-se de “um modelo metodológico que assume o caos linguístico como objeto de estudo”
(TARALLO, 1985, p. 6). Posto em prática esse modelo metodológico, o estudo da língua
passaria a dar ênfase às variedades linguísticas brasileiras e com isto amenizar o preconceito
313

linguístico, que corresponde ao julgamento depreciativo e desrespeitoso da fala do outro ou da


própria fala (SCHERRE, 2009). O preconceito linguístico parece ainda estar presente dentro e
Página

fora da escola com quem não utiliza a variedade eleita como padrão ou norma culta. Porém,

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Leite (2008) esclarece que, por não causar e não provocar tantos abalos sociais da mesma
forma que aqueles provenientes da intolerância religiosa ou política, parece nem existir.
Esta ‘’invisibilidade”, no entanto, não diminui os seus efeitos, apenas contribui para
que seja praticado normalmente e encontre apoio tanto na escola como fora dela. Cyranka
(2014, p. 142) afirma que “o preconceito linguístico não é constituído apenas na escola, há
todo um aparato na sociedade que o sustenta”. É recorrente, no meio social, rotular o que não
obedece aos preceitos estabelecidos pela comunidade como “engraçado” ou que “não sabe
falar“. Como consequência, surge a discriminação, a exclusão e o silenciamento dos
falares diversificados que adentram o universo escolar. Essa atitude tende a inibir e a
inviabilizar a interação, na sala de aula, entre alunos e professores, reafirmando, assim,
práticas ideológicas mantenedoras de um discurso que privilegia e legitima uma variedade
linguística como sendo a certa.
No entanto, a escola precisa ter consciência desses fatos e entender que os alunos não
podem ser julgados pelam linguagem que utiliza. Segundo Possenti (1996, p. 34), se faz
necessária “uma análise mais cuidadosa e menos anedótica”. Porém, sabe-se que não é
comum no âmbito escolar práticas reflexivas a respeito desta temática bem como sua prática
no trabalho escolar de Língua Portuguesa do Ensino Fundamental.
É necessário reconhecer o fenômeno da variação linguística e que os indivíduos não
falam da mesma forma que o outro. Entender que uma variedade linguística é um dos muitos
modos de falar uma língua. Segundo Bagno (2007, p. 47), “esses diferentes modos de falar
se correlacionam com fatores sociais como lugar de origem, idade, sexo, classe social, grau de
instrução.
Entende-se com essa afirmação que não existe uma única maneira de se falar uma
língua, mas diferentes falares que estão associados a vários fatores linguísticos e
extralinguísticos. O autor ainda acrescenta que não há uma variedade melhor ou mais bonita
do ponto de vista linguístico e ainda esclarece que cada variedade tem suas características
próprias que servem para diferenciá-las das demais
Em consonância com esse pensamento, compreende-se que não há uma variedade
superior às demais, o que existe é uma ideologia dominante que faz essa distinção elegendo
uma variedade como sendo a de maior prestígio, na tentativa de padronizar a língua, o que
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resulta em uma norma-padrão e outra não padrão. Com relação a isso, Bortoni-Ricardo (2004,
p. 34) enfatiza:
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[...] as variedades faladas pelos grupos de maior poder político e econômico
passam a ser vistas como variedades mais bonitas e até mais corretas. Mas
essas variedades, que ganham prestígio porque não faladas por grupos de
maior poder, nada têm de intrinsecamente superior às demais. O prestígio
que adquirem é mero resultado de fatores políticos e econômicos. O dialeto
(ou variedade regional) falado em uma região pobre pode vir a ser
considerado um dialeto “ruim”, enquanto o dialeto falado em uma região
rica e poderosa passa a ser visto como um “bom” dialeto.

Em função desses discursos ideológicos carregados de preconceitos se estabelecem


normas a serem seguidas, desconsiderando que todas as variedades têm seu valor e são
eficazes em sua utilização, e que elas surgem de acordo com as necessidades de seu grupo.
Scherre (2005, p.14) assim se posiciona, “todas as variedades linguísticas são manifestação da
cultura de um povo, de um grupo, de uma comunidade, e que, portanto, merecem respeito.”.
Nota-se que se as variedades linguísticas fossem analisadas por esse enfoque, e se a
escola atentasse para essa concepção, o preconceito linguístico e o julgamento depreciativo
aos diferentes falares seriam amenizados e o resultado seria que os alunos passariam a ter
mais segurança com relação a sua variedade e prontidão para incluir no seu repertório
linguístico a variedade padrão.
Porém, ainda persiste no meio educacional a concepção de que a escola deve trabalhar
unicamente com a variedade padrão e, mais do que isto, o aluno deve substituir o seu modo de
falar pelo que é institucionalizado. Camacho (2005, p. 68) assim se posiciona: “Essa
variedade de linguagem é, com efeito, uma forma institucionalizada de imposição e que, por
isso, adquire o direito de ser a língua, restando às demais variedades cuidados repressivos”.
Na verdade, deveria a escola trabalhar com as variedades linguísticas permitindo a
formação da consciência crítica e reflexiva sobre os usos da língua e da linguagem, pois
aquilo que os alunos leem e produzem por meio da escrita são cruciais para a aprendizagem
eficaz da língua portuguesa. Para Possenti (1996, p. 86), “Ensinar gramática é ensinar a língua
em toda a sua variedade de usos, e ensinar regras é ensinar o domínio do uso”.
Por essa razão é preciso que nas aulas de Português, os enfoques nas variedades
linguísticas sejam feitos a fim de que essas crenças negativas com relação ao seu modo de
falar tão enraizadas nos alunos possam ser desfeitas e eles consigam ter consciência que
sabem falar sua língua. Cyranka (2016, p. 170) explica que” crenças positivas levam a
315

atitudes linguística positivas, o que garante boa autoestima e entusiasmo do aluno”.


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3 Análise dos dados

Os dados analisados atestam que o uso de variedades linguísticas estigmatizadas


implica baixa autoestima por quem as usa, acarretando prejuízos para o ensino-aprendizagem
de português, no tocante, à produção de textos falados/escritos. Isso pode ser verificado em
cada resposta dada pelos participantes da pesquisa, como apresentado a seguir.

3.1 Percepção da diferença linguística

A questão “Você conhece alguém que fala diferente de você” obteve 100% de
respostas afirmativas. Todos os participantes, independente do sexo, idade e origem
geográfica, conhecem alguém que usa variedades linguísticas diferentes da sua. Diante disso,
é importante, que o usuário da língua tenha conhecimento da variação linguística como um
fenômeno inerente a todas as línguas naturais. Como afirma Bortoni,

os alunos têm que estar bem conscientes de que existem duas ou mais
maneiras de dizer a mesma coisa. E mais, que essas formas alternativas
servem a propósitos comunicativos distintos e são recebidos de maneira
diferente pela sociedade (BORTONI, 2005, p. 15).

Logo, é necessário que a escola trate das variedades linguísticas e de seu uso
adequado à situação comunicativa.

3.2 Percepções do que é considerado diferente

Alguns dos usos diferentes notados pelos alunos foram “promode, açoitar, muié, véi,
bás noite, barrer”. Todas essas expressões fazem referência às variedades usadas,
geralmente, por pessoas provenientes da zona rural e baixo grau de instrução,
consequentemente, de classe social menos favorecida.
É possível pois entender que essas variedades sofrem discriminação social por serem
consideradas ‘diferentes’, e, por isso são avaliadas como “erradas” ou “engraçadas”. Isso
316

ocorre devido ao desconhecimento de que a língua é fruto de diversos fatores (diacrônicos,


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geográficos, sociais etc). Como posto por Bagno (2007, p. 47), os “diferentes modos de falar

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se correlacionam com fatores sociais como lugar de origem, idade, sexo, classe social, grau de
instrução”. As variações não são “deturpações, corrupções, degradações da língua, mas são a
própria língua” (FARACO, 2008, p. 73). Por essa razão, há muito preconceito, devido ao
valor positivo atribuído à variedade padrão em detrimento das que se distanciam dele que são
vistas como inferiores, logo devendo ser evitadas. Isso implica preconceitos relacionados ao
modo de falar do outro e, consequentemente, gera baixa autoestima e silenciamento aos que a
usam. É bom sabermos que “qualquer língua, falada por qualquer comunidade, exibe sempre
variações, pode-se afirmar mesmo que nenhuma língua se apresenta como uma entidade
homogênea” (ALKIMIM, 2005, p. 33).

3.3 Avaliações das diferenças

Ao ser questionado sobre qual era a avaliação dada às diferenças percebidas, o


resultado foi o seguinte: engraçada, incorreta, estranha, legal, bonita e normal. Observamos
um posicionamento que se opunha. De um lado, a diferença foi avaliada como positiva, por
outro como negativa. Esse posicionamento antagônico corrobora as palavras de Possenti
(1996, p. 34), quando afirma ser necessária “uma análise mais cuidadosa e menos anedótica”
do fenômeno.

3.4 Auto avaliação

No quesito autoavaliação de sua forma de falar, 51% fizeram uma avaliação negativa
com relação ao seu modo de falar. Para, os participantes, o uso padrão da língua pare estar
associado à maior prestígio social, já que é vista como a “correta” e “mais bonita”.
Confirmando o que diz Bortoni-Ricardo (2004, p. 34).

[...] as variedades faladas pelos grupos de maior poder político e econômico


passam a ser vistas como variedades mais bonitas e até mais corretas. Mas
essas variedades, que ganham prestígio porque não faladas por grupos de
maior poder, nada têm de intrinsecamente superior às demais. O prestígio
que adquirem é mero resultado de fatores políticos e econômicos. O dialeto
(ou variedade regional) falado em uma região pobre pode vir a ser
317

considerado um dialeto “ruim”, enquanto o dialeto falado em uma região


rica e poderosa passa a ser visto como um “bom” dialeto (BORTONI-
RICARDO, 2004, p. 34).
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Segundo Possenti (1996), a variedade usada pelo aluno, ainda que não esteja na
variedade-padrão, é muito complexa e articulada, logo não deve ser avaliada de forma tão
negativa. Porém isso acontece em decorrência, do valor atribuído à variedade-padrão e ao
estigma associado às variedades não-padrão, consideradas inferiores ou erradas pela
gramática, gerando dessa forma uma avaliação negativa que acarreta insegurança e baixa
autoestima.

3.5 Vivenciando o preconceito linguístico

Ao ser questionado se já tinham sofrido preconceito e o que sentiram, todos afirmaram


que já sofreram preconceito e ressaltaram algumas sensações que sentiram ao serem alvos do
preconceito linguístico. Responderam: tristeza, discriminação, vergonha; mágoa, e também
sentiram-se excluídos. Com base nesses relatos, pode-se deduzir que os alunos têm clara
percepção do preconceito vivenciado por usar uma variedade linguística não-padrão, essa
percepção afeta seu comportamento linguístico no meio social.
Segundo Ilari e Basso (2009, p. 195), essa atitude preconceituosa é a mesma que levou
os gregos a chamarem de bárbaros todas as pessoas que não falavam a língua deles. Segundo
os autores, isso consiste em desqualificar o outro, desclassificando, portanto, sua língua,
Os relatos atestam que as experiências do cotidiano têm afetado sua autoestima, pois
internalizaram que a sua forma de falar não é “correta”, por isso lhes causa constrangimento.
Por isso, é de suma importância sensibilizar os alunos a respeito da variação linguística, de
forma a atenuar o preconceito, fazendo surgir um sentimento de pertencimento e valorização
identitária da língua.

4 Considerações finais

Esta pesquisa atestou que os alunos possuem uma clara percepção de que a língua
varia, porém não tem uma reflexão crítica sobre o fenômeno da variação, de forma que
discriminam as variedades linguísticas estigmatizadas. Em sua concepção, falar bem é saber
usar a variedade linguística de prestígio, já que as demais são “deturpações” da língua usadas
318

por quem não sabe “falar corretamente”. Diante dos resultados apresentados, compreendemos
que é necessário que o ensino da variedade linguística deve ser mais fomentado nas aulas de
Página

português, pois o conhecimento acerca da heterogeneidade da língua extinguirá o preconceito

ISBN: 978-85-7621-221-8
linguístico, amenizando, assim, a baixa autoestima acerca da variedade usada. É relevante que
o aluno domine as variedades de sua língua e saiba adequar seu uso, no intuito, de atender
aos seus propósitos comunicativos.

Referências

ALKIMIM, Tânia Maria. Sociolinguística. Parte I. In: MUSSALIM, Fernanda; BENTES,


Anna Christina (Org). Introdução à linguística: domínios e fronteiras. v. I. São Paulo:
Cortez, 2005.

BAGNO, Marcos. Preconceito Linguístico: o que é, como se faz. São Paulo: Loyola, 2007.

BORTONI-RICARDO, Stella Mariz. Educação em língua materna: a sociolinguística na


sala de aula. São Paulo: Parábola , 2004.

BORTONI-RICARDO, Stella Mariz. Nós cheguemu na escola, e agora? Sociolinguística e


educação. São Paulo: Parábola, 2005.

CAMACHO, Roberto. Sociolinguística. Parte II. In: MUSSALIM, Fernanda; BENTES, Anna
Christina (Orgs). Introdução à linguística: domínios e fronteiras. v. 1. São Paulo: Cortez,
2005.
CYRANKA, Lúcia. Avaliação das variantes: atitudes e crenças em sala de aula. IN:
MARTINS, Marco Antonio; VIEIRA, Silvia Rodrigues; TAVARES, Maria Alice (Org.).
Ensino de português e Sociolinguística. São Paulo: Contexto, 2014.

FARACO, Carlos Alberto. A. Norma culta brasileira: desatando nós. São Paulo: Parábola,
2008.

ILARI, Rodolfo; BASSO, Renato. O português da gente – a língua que estudamos a língua
que falamos. São Paulo: Contexto, 2009.

LABOV, William. Padrões sociolinguísticos. São Paulo: Parábola, 2008.

LEITE, Marli Quadros. Preconceito e intolerância na linguagem. São Paulo: Contexto,


2008.

POSSENTI, Sírio. Por que (não) ensinar gramática na escola. Campinas: Mercado das
Letras, 1996.

SCHERRE, Maria Marta Pereira. Doa-se lindos filhotes de poodle: variação linguística,
mídia e preconceito. São Paulo: Parábola, 2005.
319

SCHERRE, Maria Marta Pereira. O preconceito linguístico deveria ser crime. Galileu.
Globo, nov./2009.
Página

TARALLO, Fernando. A pesquisa sociolinguística. São Paulo: Ática, 1985.

ISBN: 978-85-7621-221-8
GT3 – ENSINO DE LÍNGUA MATERNA

A ANÁLISE ESTILÍSTICA NO POEMA “CIDADEZINHA QUALQUER”

Antônia Janny Chagas Feitosa


Universidade do Estado do Rio Grande do Norte- (UERN)
Jordânia Kally Freitas Duarte de Assis
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN)

Introdução

A estilística é a ciência que estuda o estilo como as pessoas se expressam por meio da
linguagem, assim tudo que é materializado, mesmo que inconscientemente tem uma
finalidade.
Assim, este trabalho tem como objetivo analisar o poema “Cidadezinha qual quer” do
autor Carlos Drummond de Andrade, levando em consideração os estilos que estão presentes
neste poema, com base na estilística léxica, fônica, sintática e algumas figuras de linguagem.
Para tanto, o nosso trabalho é subsidiado nos estudos do autor Mattoso Câmara Júnior (2004).
Inicialmente, apresentamos o surgimento da estilística a partir dos métodos teóricos de
Charles Bally que por sua vez é o pioneiro a estudar a estilística e a língua, assim como as
ideias de Léo Spitzer que estuda a estilística com base nos textos literários.
Procuramos entender através do pensamento de Mattoso Câmara Júnior, a relação
existente entre gramática e o estilo. Em seguida, analisamos os poemas buscando identificar
os recursos estilísticos que estão presentes no texto poético, que por sua vez é construído com
estilos próprios, de acordo com a intencionalidade de quem escreve.
A escolha em analisar o poema “Cidadezinha qual quer”, se dá por esta obra, está
inserida em um gênero (poema), que apesar de ser curto sem soma de dúvidas utiliza muitos
recursos da estilística. Também acreditamos que a análise proposta, após ser publicada ou
apresentada pode ser relevante para as pessoas que se interessarem por esta área de
conhecimento.
Antes de adentrar nas análises é necessário que conheçamos alguns recursos
estilísticos, pois são eles que nos ajudam a entender a construção de um enunciado e sua
interpretação. Nesse sentido, trouxemos nos tópicos a seguir algumas considerações acerca da
320

temática em estudo.
Página

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1 Fundamentação teórica da estilística

A Estilística surge nas primeiras décadas do século XX, pois até o século anterior ela
estava contida dentro da retórica. Isso se deveu principalmente aos estudos de Charles Bally
doutrinador da estilística e da língua e Léo Spitzer que se preocupa com a estilística literária.
Dando continuidade aos estudos de seu mestre Saussure, Bally por sua vez amplia suas ideias,
abordando em sua pesquisa não somente a língua, mas acrescentando a fala como objeto de
suas investigações. Assim, a língua passa a não ser mais vista como um sistema fechado e
homogêneo. O autor dá ênfase aos processos “afetivos da fala, da língua a serviço da vida
humana, língua viva, espontânea, mas gramaticalizada, lexicalizada e possuidora de um
sistema expressivo” (MARTINS, 1989, p.3).
Spitzer se mostrava preocupado com a manifestação do autor na obra. Inicialmente,
concebeu um método de estudo de estilo que ficou conhecido como círculo “filológico”, dessa
forma o autor lia e relia textos de grandes artistas que serviam como ponto de partida para a
embrenhar-se nas produções de suas obras, uma das marcas de seu trabalho está relacionado
com o pensamento de que a intenção do autor é algo específico.
Bally foi sem dúvida o primeiro a distinguir o conteúdo estilístico do conteúdo
linguístico e opõem a sua estilística aos estudos de estilos individuais e afasta-se da literatura
e da gramática normativa, pois para esse autor a gramática vai além das regras preescritas.
Desse modo, um conteúdo pode ser expresso de diferentes modos. É válido ressaltar que os
estudos de Bally não estão voltados para a língua individual, pois sua preocupação era estudar
os fatos de expressão de um idioma particular e de certa época. Assim, para este autor não
havia espaço para se estudar a estilística na literatura já que esta área de conhecimento está
vinculada com as expressões individuais.
Cabe ressaltar que a estilística de corrente literária, foi iniciada por Leo Spitzer que
parte de reflexão psicolinguística referente aos desvios da linguagem em relação aos usos
comuns, e que estando baseada no estado psíquico normal, tem como efeito provocar um
afastamento do uso linguístico normal. Podemos enfatizar que o estilo do escritor está voltado
para os modos individuais de expressar-se, que por sua vez refletia a sua vivencia.
No Brasil, os estudos da linguística tiveram como um dos principais percussores o
321

professor Mattoso Câmara Júnior, que por sua vez considera a estilística como “a parte do
estudo da linguagem que opõe à gramática. Segundo este autor o papel da estilística é
Página

depreender todos os processos linguísticos que permitem a atuação da manifestação psíquica e

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do apelo dentro da linguagem intelectiva” (MATTOSO, 1972, p.137). Podemos compreender
que para Mattoso, a gramática estuda a língua como meio de representação, enquanto que a
estilística estuda a língua como um meio de exprimir estados psíquicos ou de atuar sobre o
interlocutor por meio de apelos.
Assim, a linguística em seu sentido mais amplo pode abranger tanto a gramática como
a estilística, no entanto em seu sentido restrito abrange somente a gramática, e isto ocorre
porque a língua atua como uma espécie de materialidade quer que seja por meio da fala ou da
escrita, para que através desses elementos linguísticos possamos exprimir nossas emoções e
atuar sobre os outros. Nesse sentido, “a estilística […], nada mais é que uma maneira de
exprimir o pensamento por intermédio da linguagem”. (GUIRAUD, 1970, p. 11). Dessa
maneira, podemos entender que a língua representa a nossa realidade e o seu uso pode
ultrapassar o seu plano intelectivo, considerado estilo.
A palavra estilo, no domínio da linguagem tem várias funções. No entanto, muitos
linguistas vêm procurando definir este termo com base nos critérios em que se fundamentam.
Assim, muitos teóricos relacionam o estilo aos diversos usos da língua, enquanto que Sptizer
considera o estilo na língua literária, outros teóricos relacionam o estilo ao autor e ao leitor.
Podemos observar que o estilo é um fenômeno humano de grande complexidade e
com base nas abordagens de Guiraud, podemos enfatizar que o texto ao ser produzido por
determinados estilos, tais expressões contidas nele, não estão inseridas por acaso, visto que
quem fala e escreve tem algum objetivo, ou seja, uma intencionalidade quer que seja para
informar, apelar, convencer ou persuadir, assim fica evidente que sempre existe uma
intencionalidade no discurso do enunciador, seja por meio da fala ou da escrita. Notamos
ainda que a interpretação nos efeitos de sentido pode variar e isto vai depender dos
conhecimentos prévios do leitor.
O estilo, por sua vez, não se restringe somente a maneira como se escreve, mas
também, o modo de se escrever de uma época, de um escritor, de uma escola artística, de um
gênero e de uma cultura.
Alguns estudiosos dividiram a estilística em vários campos como: estilística fônica,
estilística léxico-semântica ou léxico-estilística e estilística sintática. “A estilística fônica ou
fono- estilística, está voltada para a expressividade do material fônico dos vocábulos isolados
322

ou não da língua, e tem como materialidade para a análise os sons das palavras, o ritmo do
verso ou da frase e a musicalidade referente à palavra” (MATTOSO, 1997, p. 110).
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Já estilística léxico-semântica ou léxico-estilística estuda a seleção vocabular e os
fenômenos de conotação e polissemia, referentes aos valores afetivos e emotivos. As
investigações estão voltadas para os vocabulários, que empregam os diminutivos e
aumentativos afetivos, a polissemia, e os antagonismo entre determinados campos
semânticos. Há também a presença das figuras de linguagem tais como as comparações, as
metáforas, metonímias hipérboles e os neologismos.
A estilística sintática tem como intuito analisar a ordem sintática e os fenômenos a
ela inerentes, tais como ruptura da ordem sintática preferencial dentro de um verso ou de uma
frase. Nesse caso, à estilística sintática interessam pelas variantes de colocação, suscetíveis de
causar emoção ou sugestionar o próximo.
Vale ressaltar que “a estilística vem complementar a gramática” (MATOSSO, 1979,
P.14) e isto ocorre devido à relação da estilística com a gramática por meio dos elementos da
morfologia, fonética, fonologia o léxico e a sintaxe. A seguir, faremos a análise do poema
“Cidadezinha qualquer” com base nessas categorias pertencentes ao campo da estilística.

2 Análise estilística no poema “Cidadezinha Qualquer”

Cabe ressaltar que o modernismo brasileiro foi iniciado no século XX, sendo
considerado como responsável pela nossa emancipação artística. O poema “Cidadezinha qual
quer”, do autor Carlos Drummond de Andrade representa o estilo dessa movimentação
brasileira.
Com a preocupação de aceitar o estilo estrangeiro: Dadaísmo, futurismo,
expressionismo, cubismo e etc., os artistas brasileiros quer que seja na pintura, escultura,
arquitetura, músicas e poesias, transformaram a arte estrangeira em algo que é nosso. Segundo
Antônio Cândido (2009) “a literatura representa um veículo midiático para dar legitimidade
ao conhecimento da realidade local, foi o ponto de partida para o projeto nacionalista que
iniciou no romantismo, que de certa forma teve auge no modernismo”. A seguir, faremos uma
análise do poema pertencente ao estilo do modernismo, fazendo uma relação com a estilística
léxica e fônica.
323

Cidadezinha Qualquer

Casas entre bananeiras


Página

mulheres entre laranjeiras


pomar amor cantar.

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Um homem vai devagar.
Um cachorro vai devagar.
Um burro vai devagar.
Devagar… as janelas olham.
Eta vida besta, meu Deus.

O poema “Cidadezinha qual quer” se enquadra na estilística léxico-semântica ou


léxico-estilística, e a partir do título notamos que o substantivo cidade está no grau diminutivo
o que expressa um local que é pequeno, uma vila afastada da civilização e cultura dos centros
urbanos, o adjetivo “qual quer” é referente à cidadezinha o que de fato reforça a ideia de um
lugarzinho sem importância.
O poema é composto por versos livres com ausência de rimas e de pontuações. Nos
três primeiros versos observamos a ausência de verbo, o que demonstra a falta de ação
relacionada à cidade do interior retratada. “Mulheres entre laranjeiras” remete a
domesticidade da vida feminina que é indicada apenas para ser dona de casa e essa ideia é
reforçada pela presença da árvore laranjeira, que com base nos acontecimentos ocorridos na
história à flor desta planta servia de buquê para as noivas e os substantivos soltar, pomar,
amor, cantar denotam a falta de atividades inéditas.
Na segunda estrofe constatamos a presença do estilo fônico nos vocábulos, pois com
base na repetição do advérbio “devagar” que é utilizado para demonstrar o modo como o
homem, o burro e o cachorro caminham tudo isso reforça um ritmo de lentidão, tranquilidade
da vida interiorana. Logo após a esse advérbio, observamos a presença do substantivo
“janela”, que por sua vez nos faz resgatar as características de uma cidade do interior, de um
lugar que é anti-moderno na qual as pessoas saem as janelas à procura de novidade ou para
tomar conhecimento da vida dos outros. Hábito comum nas cidades pequenas.
No último verso “Eta vida besta, meu deus”, percebemos que o poeta faz uma espécie
de desabafo, pois já não aguenta viver naquele lugar em que a vida é rotineira, sem graça, há
também o uso de uma linguagem coloquial no poema no caso “Eta”, termo este que é bastante
utilizado pelas pessoas do interior.
Constatamos que os elementos estilísticos contidos no poema não estão inseridos por
acaso, pois o autor ao utilizar os recursos da estilística léxica e fônica no poema “Cidadezinha
qual quer” tem a finalidade de mostrar como é a vida na cidade do interior e o que ela tem de
324

rotineira.
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Considerações finais

Podemos observar que a organização da linguagem na poética analisada de


Drummond é composta por elementos da estilística que abarcam tanto o uso lexicologia
quanto da fonologia.
Com isso, percebemos a presença da estilística léxica no poema “Cidadezinha qual
quer” se dá a partir das emoções de um eu lírico que ao residir em uma cidade do interior
sente-se entediado e descontente com a vida rotineira. Ainda é possível perceber que no
poema há também o uso da fono-estilística, pois com base no advérbio de intensidade “devar”
que é apresentado várias vezes notamos um ritmo de lentidão.
Por fim, concluímos que a presença dos elementos linguísticos apresentados nesse
gênero poético com diferentes estilos, permite ao leitor conhecer o dia-a-dia de uma cidade
interiorana. Assim, compreendemos que cada indivíduo tem o seu próprio modo de escrever o
seu texto e cada escolha particular tem um objetivo a ser alcançado.

Referências

ANDRADE, Carlos Drummond de. Alguma poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

CÂMARA JUNIOR, Joaquim Matoso. História e estrutura da língua portuguesa. 3. ed.


Rio de Janeiro: Padrão, 1979.

CÂMARA JR., J. M. Dicionário de filologia e gramática. 2. ed. Rio de Janeiro: Ozon, 1964.

GUIRAUD, Pierre. A estilística. Trad. de Miguel Maillet. São Paulo: Mestre Jou, 1970.

325
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GT3 – ENSINO DE LÍNGUA MATERNA

A CORREÇÃO TEXTUAL: ANÁLISE DAS PRÁTICAS DE PROFESSORAS DO


ENSINO MÉDIO

Ariane Aparecida de Oliveira (UERN)

Muitas discussões são feitas, nas universidades e escolas, em torno das correções
efetivadas pelos docentes nos textos dos alunos. Essas discussões vão desde questionamentos
acerca da concepção do professor sobre correção, a eficácia de sua intervenção no texto,
passando pelas condições de trabalho do professor, a própria tarefa de corrigir e as possíveis
contribuições da correção.
Nesse sentido, nosso trabalho tem como objetivo estudar as práticas de correção de
textos realizada por professores. Procuramos assim compreender como se estabelecem as
práticas de correção de texto implementadas pelas professoras de Língua Portuguesa, no
âmbito da escola pública.
A pesquisa se insere no campo da Linguística Aplicada (LA), uma vez que esta estuda
as práticas de uso da linguagem em contextos específicos, (SIGNORINI, 1998). Nesse
sentido, direcionamos nosso olhar, especificamente, para as correções de textos de professoras
que trabalham com a disciplina Língua Portuguesa.
A LA contemporânea envolve-se em uma reflexão contínua sobre si mesma: um
campo que se repensa insistentemente (cf. PENNYCOOK apud Moita Lopes, 2006).
Assim, procuramos nos distanciar um pouco da tradição perpetuada por muitos
professores e alunos que, de alguma forma, tendem pela tradição gramatical em considerar a
correção de texto apenas como um aspecto negativo, no sentido de que o professor estaria
apenas “caçando erros” cometidos pelos alunos durante a produção. Porém, entendemos que a
ação interventiva do professor, registrada no texto no momento da correção, constitui-se numa
atividade de extrema relevância, no sentido de contribuir para ajudar o aluno a melhorar sua
produção escrita.

1 A metodologia da pesquisa
326

Este trabalho objetiva compreender como ocorre a prática de correção de textos por
Página

docentes de Língua Portuguesa do Ensino Médio. Enquanto área de concentração, nosso

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estudo insere-se como investigação em Linguística Aplicada (LA), uma vez que esta é uma
ciência que tem como objetivo estudar o uso da linguagem e que

privilegia as relações entre a ação humana e os processos de uso da


linguagem, ou seja, a inter-ação de atores sociais (usuários da linguagem:
falantes, ouvintes, leitores, escritores e tradutores) em um determinado
contexto e os problemas da prática de uso da linguagem com que se
defrontam (MOITA LOPES, 1996a, p. 04).

Nossa investigação centra foco nos aspectos semânticos das correções efetivadas pelas
docentes nos textos dos alunos. Para isso, nos reunimos com as professoras de Língua
Portuguesa, com o objetivo de discutirmos inicialmente sobre a experiência delas enquanto
examinadoras de textos, no sentido de sabermos como se estabelecem as práticas de correção
dessas professoras.
Destacamos que as discussões oriundas desses encontros com as docentes se
constituíram como um instrumento fundamental para a construção dos dados, uma vez que
nos possibilitaram compreender as experiências dos sujeitos, suas representações e os
conceitos que elaboram (cf. CHIZZOTTI, 2005).
Assim, os dados foram gerados com a colaboração das professoras que lecionam a
disciplina Língua Portuguesa nas turmas do Ensino Médio do turno matutino. Identificamos
as professoras colaboradoras que atuam no 1º, 2º e 3º anos do Ensino Médio, por P1, P2 e P3,
respectivamente, conforme o quadro abaixo:

QUADRO 02 – CARACTERIZAÇÃO DAS PROFESSORAS


PROFESSORA 01 PROFESSORA 02 PROFESSORA 03 (P3)
(P1) (P2)
SÉRIE DE ATUAÇÃO 1º ano 2º ano 3º ano
IDADE 38 anos 38 anos 38 anos
SEXO F F F
TITULAÇÃO Especialista Especialista Especialista
TEMPO DE EXPERIÊNCIA DOCENTE 22 anos 17 anos 17 anos
TEMPO DE EXPERIÊNCIA DOCENTE EM 06 anos 17 anos 14 anos
LÍNGUA PORTUGUESA
OUTRAS ATIVIDADES Professora Professora da rede Professora da rede
particular em sua pública estadual de pública municipal de
residência ensino em outra ensino em outra escola
escola
327

Os dados da nossa pesquisa compreendem 92 textos, coletados entre julho e agosto de


Página

2008, 33 textos foram corrigidos pela professora que atua no 1º ano (P1), 25 pela P2 e 34,

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pela professora do 3º ano (P3). Para este artigo selecionamos um recorte de 06 seis textos. Os
textos escritos pelos alunos são dissertativos, de função referencial dominante, contemplando
introdução, desenvolvimento e conclusão, através dos quais os alunos buscam demonstrar sua
habilidade de expor ideias e argumentar em torno de um tema.

2 Discutindo a correção textual

2.1 Conceituando correção

Alguns aspectos devem ser abordados com mais atenção quando se trata de produção
textual, entre eles a própria concepção de correção que permeia o trabalho do professor em
sua prática efetiva enquanto revisor do texto do aluno.
Para Serafini (1989, p. 107) a correção de texto “é o conjunto de intervenções que o
professor faz para apontar defeitos e erros”. O objetivo secundário da correção é o de reunir
elementos para poder avaliar. A dificuldade em corrigir nasce da falta de modelos de
referência que permitam proceder de modo automático, como num exercício de matemática.
Porém, o professor deve basear-se na lógica e na estrutura interna da redação e assumir uma
postura diferente para cada gênero textual.
Mayrink-Sabinson (1997, p. 117) denomina as correções de interferências visíveis.
Segundo ela, tratam-se de “marcas deixadas pelo adulto no texto do aluno, tais como sinais
feitos à margem ou sob elementos do texto, círculos desenhados em volta de palavras/letras,
comentários, perguntas, sinais deixados no texto ou na página”.
Para Ruiz (2001, p. 27):

correção é o trabalho que o professor (visando à reescrita do texto do aluno)


faz nesse mesmo texto, no sentido de chamar a sua atenção para algum
problema de produção. Correção é, pois, o texto que o professor faz por
escrito no (e de modo sobreposto ao) texto do aluno, para falar desse mesmo
texto.

Corrigir, nessa acepção, consiste em um trabalho interventivo em que o professor atua


como observador, no sentido de chamar a atenção do aluno às possíveis falhas encontradas na
328

sua produção escrita. A correção consiste, também, em comentar o texto para falar desse
Página

mesmo texto. Corrigir é intervir. É alterar o texto do aluno, de modo a concretizar marcas que
possibilitarão a reescrita desses textos pelos próprios escreventes.
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Dessa forma, corrigir é um trabalho estratégico e que possui algumas implicações (cf.
SOLÉ, 1998, p.69):

[...] se as estratégias são procedimentos e os procedimentos são conteúdos de


ensino, então é preciso ensinar estratégias para a compreensão dos textos.
Estas não amadurecem, nem emergem, nem aparecem. Ensinam-se – ou não
se ensinam – e se aprendem ou não se aprendem.

Durante a correção, o professor analisa os problemas presentes no texto e, a partir daí,


propõe soluções. A etapa de correção é de fundamental relevância durante a produção do
texto, porque consiste em uma fase decisiva que encaminhará, a depender dos objetivos do
professor, a reescrita do texto. A ação de corrigir não tem um fim em si mesma, mas só
adquire significação se conduzir o aluno à reescrita de seu texto, consequentemente, visando
melhorar sua competência comunicativa com os interlocutores (SOUZA; OSÓRIO, 2007).
Para Oliveira (2005, p. 03):

Saber responder ou tecer comentários ao texto escrito pelo aluno no contexto


escolar tem sido um dos maiores desafios e motivo de preocupação para o
professor de língua, seja materna ou estrangeira. [...] Em razão disso, os
professores, frente às “redações” dos alunos, perpetuam a prática de apenas
assinalar os erros de grafia, pontuação e concordância, e de registrar, às
margens do texto, observações do tipo: incoerente, confuso, estruturação
inadequada etc., sem oferecer comentários que promovam a qualidade do
texto produzido ou levem o aluno a se interessar pela sua produção textual e
a olhá-la de forma crítica.

O professor deve saber responder, tecer comentários ao texto escrito. Este é um dos
desafios. Corrigir, nesse sentido, deve ajudar o aluno a melhorar suas produções textuais,
ressaltando a escrita como processo e não como produto. Nessa perspectiva, o aluno é
chamado a reconstruir seu texto através de um processo reflexivo e efetuar as devidas
alterações.
A correção deve ser um espaço em que o professor discuta, não apenas os problemas
encontrados, mas também a própria tarefa de corrigir, de forma que sua ação interventiva
contribua para a melhoria da produção escrita do aluno.

2.2 Estratégias de correção textual


329

Nesta seção, discorremos acerca das estratégias de correção textual a partir do estudo
Página

de Ruiz (2001).

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2.2.1 A correção indicativa

A correção indicativa consiste em marcar, junto à margem, as palavras, as frases e os


períodos inteiros que apresentam erros ou são pouco claros.
A intervenção do docente limita-se apenas a indicar o erro, ele altera muito pouco. No
geral, o que ocorre são as correções ocasionais no que diz respeito aos erros ortográficos e
lexicais. Esse tipo de correção subdivide-se em duas outras, que são as que ocorrem no corpo
do texto e as efetuadas na margem no texto.
Nas estratégias indicativas no corpo do texto, o professor circunda ou sublinha a
palavra, circunda ou sublinha a sequência de letras, traça um “X” no local de ocorrência do
problema ou pode optar por traçar sinais acompanhados de expressões breves, localizando-os
próximo à ocorrência do problema.
Nas intervenções feitas na margem do texto, o professor traça um “X” ou um asterisco
na direção da linha onde ocorre o problema ou ainda traça linha(s) vertical (is) paralela(s),
chave(s) ou colchete(s) na direção do trecho com problema.
É possível dizer que a correção indicativa “consiste na estratégia de simplesmente
apontar, por meio de alguma sinalização (verbal ou não, na margem e/ou no corpo do texto), o
problema de produção detectado” (RUIZ, 2001, p. 55).

2.3.2 A correção resolutiva

As correções resolutivas de cunho indicativo consistem em corrigir todos os erros,


reescrevendo palavras, frases e períodos inteiros. O professor empenha-se por eliminar os
erros através da solução.
As estratégias resolutivas são subdivididas por Ruiz (2001) em: Estratégias resolutivas
no corpo do texto (Estratégia de adição, de substituição, de deslocamento e de supressão),
Estratégias resolutivas na margem do texto e Estratégias resolutivas no pós-texto.
As estratégias resolutivas no corpo do texto são chamadas de Estratégias de adição, o
professor acrescenta forma(s) no espaço interlinear superior ou inferior à linha em que ocorre
330

o problema. Quando o professor reescreve a forma substitutiva no espaço interlinear superior


ou inferior à linha em que ocorre o problema, temos uma estratégia de substituição. A
Página

estratégia de deslocamento pode ser vista quando o docente reescreve, em outro lugar do

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texto, a forma problemática, além de indicar o item a ser deslocado. Na estratégia de
supressão, a forma problemática é riscada.
As estratégias resolutivas na margem do texto são “ditas” a partir da reescrita da forma
alternativa na direção da linha em que ocorre o problema. No pós-texto, o professor escreve a
forma alternativa à forma problemática.
Nesse tipo de estratégia, apenas o professor reflete sobre o texto e imediatamente
resolve aquilo que considera problemático. Nas palavras de Ruiz (2001, p. 98): “ao corrigir
resolutivamente, o professor assume ou uma atitude de alterar a forma de dizer do aluno, ou
uma atitude de alterar o próprio dizer do aluno”. Nos demais tipos de correção, ambos,
professor e aluno, refletem, uma vez que entra em cena a linguagem em análise, a linguagem
do próprio texto e a linguagem que fala sobre o texto, isto é, a linguagem da intervenção, que
narra o processo interventivo realizado pelo professor.

2.3.3 A correção classificatória

A terceira estratégia de correção consiste na identificação não ambígua dos erros


através de uma classificação. É comum que o professor sugira ao aluno que ele corrija,
sozinho, seus erros. Esse tipo classificatório de correção pode apresentar símbolos que
pertencem a um conjunto específico de símbolos metalinguísticos, que podem ser utilizados
pelo professor, conforme o quadro abaixo (RUIZ, 2001, p. 61 e 6232). Nesse caso, os alunos
devem conhecer os sinais e assim entender a estratégia utilizada pelo professor.

SÍMBOLO SIGNIFICADO SÍMBOLO SIGNIFICADO


A Acentuação Il Impropriedade lexical
IV Impropriedade Vocabular
Voc Vocabulário
Amb Ambiguidade M Maiúscula
D Dubiedade
Coes Coesão M Minúscula
Coer Coerência LO Linguagem Oral
? Confuso
CP/ Col Colocação pronominal O Ortografia
Pron
CN Concordância Pfç Paragrafação
331

pronominal /* Parágrafo

32
A autora lista um quadro com símbolos que foram efetivamente encontrados nos textos por ela pesquisados em
Página

sua tese de doutorado, sob orientação da Profa. Dra. Ingedore Grunfeld Villaça Koch – IEL/ Unicamp, 1998, que
originou posteriormente o livro de mesmo nome, intitulado Como se corrige redação na escola.

ISBN: 978-85-7621-221-8
C Concordância X Ponto Final
CV Concordância Verbal P Pontuação
DG Desvio Gramatical
Cr Crase PDD Pontuação do Discurso
Direto
DL Desenho da Letra DD Discurso Direto
TL Traçado de Letra
DD Discurso Direto PDI Pontuação do Discurso
Indireto
DI Discurso Indireto Prep Preposição
DS Divisão Silábica Pron/ Pr Pronome
Pron rel Pronome Relativo
EI Erro de Informação Rd/ Red Redundância
EF Estrutura da Frase Rg/ Reg Regência
Fr Frase mal construída
FN Foco Narrativo R/ Rep/ Repetição
Rp
Fv Forma Verbal S/ Seq Sequênciação
G Grafia TV Tempo Verbal
X Vírgula

2.3.4 A correção textual-interativa

A correção textual-interativa são comentários mais longos do que os que se fazem na


margem. São escritos na sequência do texto (pós-texto). Tais comentários efetivam-se na
forma de pequenos “bilhetes”.
De acordo com Ruiz (2001), esses “bilhetes” em geral apresentam duas funções:
comentar sobre os problemas do texto ou falar acerca da própria tarefa de correção pelo
professor.
A autora comenta que os “bilhetes” se explicam pelo fato da impossibilidade prática
de o professor abordar certos aspectos relacionados ao trabalho interventivo escrito por meio
dos demais tipos de correção apontados ou pelo próprio espaço do texto.
A correção textual-interativa efetiva-se de um modo mais distanciado do texto do
aluno, podendo ser também escrito em outra folha e anexado à produção do discente. Ruiz
(2001) explica que denomina esse tipo de correção como textual-interativa pela razão de o
professor interagir no texto com o aluno. A correção reveste-se de um caráter dialógico,
interacional.
Souza e Osório (2007) denominam a quarta estratégia proposta por Ruiz (2001) como
332

descritiva-explicativa, porque objetiva descrever e explicar situações em que o professor ao


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final do texto do aluno escreve uma espécie de bilhete para apontar erros, tecer comentários a

ISBN: 978-85-7621-221-8
respeito de determinados problemas. O professor não se limita a indicar o erro ou classificá-
lo, mas descreve-o e oferece explicações ao aluno de como melhorar suas produções.
A correção textual-interativa é, pois, uma forma alternativa encontrada pelo professor
para dar conta de apontar, classificar ou ainda resolver os problemas do texto que não podem
ser ditos através dos demais tipos de correção.

3 O que dizem os dados

Vejamos as correções efetivadas pela P133:

Às vezes, adolescentes vive numa vida provisória


que tem um Relacionamento de fica com este relacioname- idéia confusa
ento. Tem adolecente que tem filho sem pensa e está
contribuindo para que ele seja um maginal ou fazer
as mesmas coisas que seus pais fizeram, temos que sem-
Texto 02

Nesse fragmento, vemos que a idéia confusa está no início do parágrafo. Não há
clareza com relação ao que seja uma “vida provisória”, “adolescente que tem filho sem pensa”
e ainda “contribuindo para que ele seja um marginal”.
Agora, vejamos outra correção pela P1:

se nós sofremos por amor, imagine Misturou as idéias


Deus que deu seu único filho para morrer por nós

Texto 10

Nesse, a mistura de ideias é ocasionada porque o autor discorria sobre o amor humano
(se nós sofremos por amor), porém, aparece a mistura com o amor divino, o que em muito
difere do amor humano mencionado.
As correções efetivadas pela P2 diferenciam-se das demais apresentadas pelas
docentes, uma vez que P2 escreve as correções numa folha anexa ao texto do aluno. O
trabalho de correção dessa docente, numa folha a parte, se configura como uma estratégia de
333

correção, na medida em que oportuniza a leitura do “bilhete” por parte do aluno (cf. RUIZ,
Página

33
Os textos foram digitados conforme aparecem nos originais. Não foram feitas alterações de qualquer natureza.

ISBN: 978-85-7621-221-8
2001). A seguir, temos os fragmentos dos textos digitados e as respectivas correções.
Vejamos:

Os namoros nos tempos de hoje, são mais


inferiores dos tempos passados. Por que is (a) garotos (a)
pessam mais em curtir a vida, ir para as baladas,
namorar, ficar, tem até vezes que os namorados
ficam com ciúmes da namorada e a mata por
simples besteira.
Muitos garotos vão as festas ficam com as
meninas e acabam até gostando delas, tem deles
que até se cazam com as garotas.
Tem mais meninas que acabam ficando
gravida mais cedo, com 14, 15 anos. Muitas
delas que perdem os filhos, pó que a barriga
não suporta o crescimento do filho dentro da
barriga.
Texto 03

 Nas linhas de 1 a 6, parte que se refere a introdução suas idéias não ficaram
bem organizadas. Veja novamente.
 Da linha 7 a 14, faltou o encadeamento das idéias, a fluência do texto.

Nas linhas 1 a 6, as ideias não estão organizadas. Na realidade, estão unidas por
conectores textuais (por que, tem até, e), porém, não são unidas semanticamente. Namorar,
ficar, ir para as baladas, curtir, e ficar com ciúmes são ideias diferentes de matar por simples
besteiras. Ocorre um problema de argumentação, que dificulta a compreensão do texto.
Também não está clara a ideia de namoros inferiores.
Vejamos o fragmento do texto 05:

O namoro é muito importante


que dizer, apaixonado, amoroso
namorar procurar-se inspiração amor
com insistência e afeto ter amor, afei-
cão intima querer bem estar apaixonado.
Não ficou bem estruturadas as idéias
Texto 05
334

 Em 16 a 21, o mesmo problema, procure ser clara, concisa em suas idéias.


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ISBN: 978-85-7621-221-8
A falta de clareza no fragmento acima ocorre devido a mistura, falta de precisão e
desenvolvimento das ideias propostas. O parágrafo conclusivo do texto deveria retomar as
ideias anteriores e encerrar o texto um ponto de vista, o que não acontece, neste caso, onde
temos várias ideias sobre o namoro (é muito importante querer bem, estar apaixonado, sentir
afeto), porém, nenhuma delas, ou a única ideia, está clara ou bem estruturada.
Vejamos as estratégias de correção da P3:

Namorar ou ficar hoje em dia Para


os jovem e adolecente e comum Pois isso e
conhecido já em todo mundo.
Faltou concordância de número
Para os mais velho ficar e dormir é
junto mais para os adolecentes não
é um bicho de sete cabeça basta comhece-
rem um olhar atraente é assim vai
ocorrendo um beijo e abraços Se os
jovem casal simpatizaram um com
o outro já Passam a ter relação sexual.
Pois os jovem têm que si Prevenir
contra doença sexualmente transmi-
ssivel vai uma grande PreocuPação.
Idéias inacabadas
e truncadas
Texto 04

No parágrafo destacado ({), a correção pela P3 volta-se para as ideias inacabadas e


truncadas, isto é, ideias incompletas. A afirmação de que ficar e dormir (?), seguidas da
expressão não é um bicho de sete cabeça, não sustenta o argumento de que se os jovens
simpatizam um pelo outro já passam a ter relação sexual.
A correção, nesse caso, define que uma parte importante da ideia (se os jovens
simpatizam um pelo outro já passam a ter relação sexual) foi omitida, truncada.
Vejamos a correção referente ao texto 05:

O namoro na sociedade por jovêns adolescentes que na querem


saber em namorar fixo. Mas a onda dessas pessoas adolescentes e adultos
335

agora é ficar e namorar. Jovêns que ficam com um e com outro e eles não está
nem aí mais isso e muito feio tanto para o homem Como para a mulher.
Antigamente era essa idéia de ficar, mas sim um namoro fixo e bom
Página

para os dois que estão se relacionando.

ISBN: 978-85-7621-221-8
É importante reconstruir o parágrafo para deixar a
idéia-chave mais clara
Texto 05

No fragmento acima, a autora escreve que hoje os jovens não pensam em namorar
fixo, porém, apenas em ficar. A isto, considera muito feio para ambos (mulher e homem). No
final do parágrafo, a autora defende que namorar fixo é a melhor opção para os jovens. No
entanto, a ideia-chave não está realmente clara no trecho. A nosso ver, a dúvida é se a ideia-
chave consiste em que os jovens não pensam em namorar fixo, porém, apenas em ficar ou a
discussão final de que o namoro é bom para dois.
A orientação é para que o discente reconstrua o parágrafo, que, na visão da P3, é um
fator importante para deixar a ideia-chave mais clara.

Algumas considerações

A maior recorrência das correções textuais é em relação à não clareza das ideias nos
textos, isto é, falta de explicitude. Nessa acepção, o leitor pode não compreender o que está
escrito, pois o sentido geral do texto não está claro.
As docentes corrigem, também, aspectos do texto que apresentam ideias confusas. A
partir da leitura dos textos, entendemos que às ideias confusas são também muitas vezes
ambíguas, de dupla interpretação ou ocorre também quando a interpretação não é possível.
As correções voltam-se ainda para as ideias misturadas e repetidas. Quando
misturadas, assemelham-se as ideias confusas, no entanto, ocorrem várias ideias opostas sobre
um mesmo argumento ou comentário.
Nesse sentido, a partir dos dados, podemos dizer que existe, na prática de correção de
textos dessas professoras, a tentativa de conduzir o aluno para reescrever seu próprio texto, a
partir das intervenções escritas na 1ª versão. No entanto, a reescrita do texto (2ª versão) não é
efetivamente solicitada pelas professoras.
A análise das situações de correções pesquisadas aponta para a importância das
docentes colaboradoras atentarem ao modo como efetuam intervenções na produção dos
alunos, no sentido de que as correções possam fundamentar o significado dos problemas do
336

texto, fornecendo pistas que garantam a compreensão, por parte do aluno, de que aspectos
devem ser reestruturados em seu texto.
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ISBN: 978-85-7621-221-8
As correções pelas docentes relativas às ideias são escritas, no geral, no pós-texto,
em forma de “bilhetes” (Cf. RUIZ, 2001). Esta estratégia efetiva-se de um modo mais
distanciado do texto do aluno (P1 e P3), podendo ser também escrito em outra folha e
anexado à produção do discente (P2). No geral, esses “bilhetes” apresentam duas funções:
falar sobre os problemas do texto ou falar acerca da própria tarefa de correção pelo
professor.
O principal interesse do enfoque para o campo aplicado dos estudos da linguagem está
em compreender a correção de texto como uma prática de linguagem interativa, em que
o professor corrige em resposta à escrita do aluno.
No geral, as ideias são de primeiro momento, consideradas como organizadoras
dos aspectos semânticos e sequenciais do texto. Todos os demais aspectos, tais como os
estruturais, os gramaticais e ortográficos, são importantes, porém, as ideias ocupam lugar
central na tarefa de correção.

Referências

CHIZZOTTI, A. Pesquisa em Ciências Humanas e Sociais. 7. ed. São Paulo: Cortez, 2005.

MAYRINK-SABINSON, M. L. Um evento singular. In: ABAURRE, M. B. M.; FIAD, R. S.


MAYRINK-SABINSON, M. L. Cenas de aquisição da escrita: o sujeito e o trabalho com o
texto. Campinas, SP: Associação de Leitura do Brasil (ALAB): Mercado de Letras, 1997.

MOITA LOPES, L. P. Linguística aplicada e vida contemporânea. In: FABRÍCIO, B. F. et.


al. (Org.) Luiz Paulo da Moita Lopes. São Paulo: Parábola Editorial, 2006.

______ Revista Intercâmbio, v. 5, 1996 a (3 - 14).

OLIVEIRA, M. S. Produção escrita e ensino: o texto como uma instância multimodal. Texto
apresentado no IV Seminário Nacional sobre Linguagem e Ensino – UCEPEL/RS, 2005.

RUIZ, E. Como se corrige redação na escola. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2001.

SEFAFINI, M. T. Como escrever textos. Tradução de Maria Augusta Bastos de Mattos. São
Paulo: Globo, 1989.

SIGNORINI, I. Do residual ao múltiplo e ao complexo: o objeto da pesquisa em Linguística


Aplicada. In: SIGNORINI, I. CAVALCANTI, M. C. (Org.). Linguística Aplicada e
337

transdisciplinaridade. Campinas: Mercado de Letras, 1998.

SOLÉ, I. Estratégias de leitura. Porto Alegre: ARTMED, 1998.


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ISBN: 978-85-7621-221-8
SOUZA, T. B; OSÓRIO, A. M. N. A mediação pedagógica na produção de texto: um
diálogo possível e necessário. Disponível em: <http://www.anped.
org.br/reuniões/26/trabalhos/terezabressandesouza.rtf>. Acesso em: 16 jan. 2007.

338
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ISBN: 978-85-7621-221-8
GT3 – ENSINO DE LÍNGUA MATERNA

A ORALIDADE NA SALA DE AULA ENQUANTO MECANISMO DE PROMOÇÃO


DA CIDADANIA

Francisca Fabiana da Silva (UERN)


Gleiber Dantas de Melo (UERN)

Introdução

O presente trabalho configura-se como um estudo acerca da oralidade no ensino de


língua portuguesa na perspectiva de deliberar sobre o papel dos gêneros orais na sala de aula
enquanto mecanismo de promoção da cidadania e inserção social dos educandos. Atualmente
no que diz respeito à Língua Portuguesa, não se concebe mais a ideia de que a função da
escola seja voltar-se apenas para o ensino da língua escrita, com a justificativa de que o aluno
já aprendeu a língua falada em casa, conforme advoga Castilho (2014). O desenvolvimento de
competências orais dos alunos é tão necessário quanto o da escrita nas práticas mediadas
pelos textos disponíveis nas diferentes esferas da sociedade.
Nesse sentido, compreendemos que, ao lado da escrita, além de possibilidades de uso
de outras semioses, as práticas orais são fundamentais para a construção da cidadania. Tal fato
é patente, na medida em que a participação pela oralidade é frequentemente utilizada para
expressar ideias e defender pontos de vistas em diversos domínios, possibilitando as decisões
políticas, sociais e econômicas que dizem respeito ao bem comum. Assim, o desenvolvimento
de habilidades orais contribui para que os indivíduos atuem como protagonistas e sujeitos de
sua história, oportunizando o domínio do discurso oral como instrumento de defesa e garantia
de direitos no exercício da cidadania.
Ressaltamos, assim, a necessidade de uma mudança na postura dos profissionais no
que se refere ao trabalho com a fala, sobretudo dos professores da área do ensino de Língua
Portuguesa pelo papel atribuído no ensino das questões da linguagem. Assim, tendo em vista
essa ausência no trato com a oralidade, apresentamos uma sequência didática com o gênero
oral seminário com vistas à apresentação de uma proposta que venha a preencher possíveis
lacunas observadas com relação à utilização das práticas sociais orais da Língua Portuguesa
na escola pública, já que, reconhecidamente, a modalidade escrita é a mais privilegiada em
339

sala de aula e na maioria dos manuais que orientam o ensino.


Página

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1 Os gêneros da oralidade no ensino

As orientações que regem o ensino de Língua Portuguesa ressaltam que a escola deve
privilegiar em seus currículos o ensino da oralidade, uma vez que o aluno precisa adquirir
habilidades diversas para atuar como sujeito nas diferentes situações da vida cotidiana. Assim,
não podemos priorizar apenas uma modalidade da língua, mas envolver os educandos nas
diversas formas de linguagem e expressões necessárias à prática social.
Corroboramos com o dizer de Marcuschi (2010, p.9) que: ”falar e escrever bem não é
ser capaz de adequar-se às regras da língua, mas usar adequadamente a língua para produzir
um efeito de sentido pretendido numa dada situação”. Nesta perspectiva, a escola não pode
mais concentrar o ensino de Língua Portuguesa apenas no aspecto gramatical, mas torna-se
necessário ampliar competências e habilidades envolvidas no uso da palavra, dominar o
discurso nas diversas situações comunicativas, para entender as formas de organização da
sociedade, que se torna cada vez mais plural e diversa e exige mudanças de perspectivas.
(BRASIL, 2002).
Sobre a prática do ensino da oralidade na sala de aula, Cavalcante e Melo (2007, p. 89)
afirmam que,
Um trabalho consistente com a oralidade em sala de aula não diz respeito a
ensinar o aluno a falar, nem simplesmente propor apenas que o aluno
‘converse com o colega’ sobre o assunto qualquer. Trata-se de identificar,
refletir e utilizar a imensa riqueza e variedade de usos da modalidade oral.

As observações das autoras contribuem para desmitificar equívocos recorrentes


relacionados ao ensino, no que diz respeito à modalidade oral, ainda presentes nas nossas
salas de aula. Muitos professores pensam que o ensino da oralidade se efetiva,
exclusivamente, por meio da realização de atividades direcionadas às conversas informais
sobre os temas diversos trabalhados, as trocas de ideias entre grupos e, principalmente, a
oralização do texto escrito, ou seja, a tarefa comum e habitual da leitura em voz alta.
Obviamente, essas são atividades que contribuem para o desenvolvimento de
habilidades orais e que devem fazer parte do cotidiano das práticas escolares. Porém, não
podemos reduzir o ensino da oralidade a essas propostas, que geralmente acontecem sem
340

planejamento, sem que sejam estabelecidos objetivos claros, bem como as habilidades a
serem trabalhadas e sem que se tenha uma definição do que se deseja alcançar com as
Página

atividades propostas.

ISBN: 978-85-7621-221-8
Sabemos que essas práticas estão ligadas a uma visão tradicional de ensino e ainda
muito comum na prática pedagógica de muitos educadores, de que não é necessário o ensino
de oralidade de forma sistemática, planejada como se pensa o ensino da escrita. Essa ideia
está vinculada a compreensão de que ensinar a modalidade oral da língua é propiciar
oportunidades para os alunos falarem espontaneamente, pois, assim, desenvolvem a
capacidade comunicativa e estão aptos a utilizarem a língua falada. Dessa forma, os gêneros
orais são ignorados enquanto objetos de ensino necessários nas diversas esferas.
A ausência do ensino dos gêneros orais causa diversas dificuldades para toda vida
escolar do aluno, que muitas vezes chega à universidade desconhecendo, por exemplo, o
gênero seminário e, desse modo, não consegue realizar com sucesso uma exposição oral, bem
como, participar de um debate de forma interativa, ou de uma entrevista de emprego, em que
são requeridas habilidades orais. Nesse sentido, Cavalcante e Melo (2007, p. 184) defendem:

Para ter sucesso numa tarefa dessa natureza, o aluno precisa ser orientado
sobre os contextos sociais de uso dos gêneros requeridos, bem como
familiarizar-se com suas características textuais (composição e estilo, entre
outras). O aluno necessita saber, por exemplo, que apresentar um seminário
não é meramente ler em voz alta um texto previamente escrito. ‘Também
não é se colocar á frente da turma e ‘bater um bate papo’ com os colegas
sobre aquilo que pesquisou’.

Diante dessas questões, refletimos que muitos professores de diferentes níveis de


ensino exigem dos alunos a produção de um determinado gênero, seja oral ou escrito, sem
nunca ter discutido com os educandos acerca da função e das características do gênero
solicitado e, assim, não criam oportunidades para que os alunos conheçam os contextos de
produção, as formas de organização e usos dos gêneros, o que favorece muitas vezes a
utilização equivocada dos gêneros em toda vida escolar do aluno. Sabemos que alguns
professores desconhecem essas informações, já que os materiais didáticos ainda tratam de
forma muito incipiente as questões da fala, além da ausência de formação, falta também
disponibilidade dos docentes para a leitura e pesquisa.
Independente dos motivos que levam o aluno a não ter acesso às condições necessárias
para o domínio dos gêneros orais reconhecemos que muitos são os prejuízos causados por
essa omissão da escola no tratamento com a oralidade, que no geral, passa despercebido pelos
341

alunos e pela sociedade. Há, normalmente, a preocupação com as habilidades relacionadas à


Página

língua escrita enquanto se isenta a escola de preparar os alunos para o uso da oralidade, a

ISBN: 978-85-7621-221-8
utilização dos gêneros orais, embora exigidos em diversas interações sociais; nesse aspecto
reconhecemos que ainda pouco se atribui à escola o papel e a responsabilidade dessa
aprendizagem.
As autoras explicitam, ainda, que são inúmeros os gêneros orais em circulação
diariamente no contexto social e que, muitas vezes, não nos damos conta, citando como
exemplo, os gêneros orais: seminários, júri simulado, a entrevista, a aula, entre outros,
ressaltando a importância de trabalhá-los como objeto de ensino. Destacamos, conforme as
autoras, que parte deles está presente nas práticas sociais da escola (CALVALCANTE e
MELO, 2007). Muitos desses gêneros são requeridos em toda vida escolar do aluno e têm
incidência social muito grande, aumentando na medida em que o aluno ocupa os espaços
adultos, como o mundo do trabalho.
Nessa perspectiva, Schneuwly e Dolz (2004) defendem que parece propício trabalhar
não com o oral em geral, mas com os gêneros orais, observando suas especificidades, o que
favorece o acesso aos alunos de uma série de atividades de linguagem, que possibilitam o
desenvolvimento de capacidades diversas de interação e que dão acesso a horizontes
diferenciados de acordo com a personalidade de cada um.
A participação em atividades orais promove possibilidades de desenvolvimento de
inúmeras habilidades, como a capacidade de argumentar em favor dos seus pontos de vistas,
de colocar-se de acordo com a situação de comunicação, de utilizar a voz e corpo como
recursos para expressão de ideias, desenvolvendo assim, competências comunicativas
necessárias à prática social. Se a escola tem como objetivo formar o indivíduo para tornar-se
um cidadão não pode deixar de se voltar para as habilidades que proporcionem ao aluno
intervir de forma qualificada no mundo social, nos espaços de decisões, de poder e de
exercício de cidadania.
Para que a participação dos sujeitos num dado contexto se realize de forma eficaz,
precisamos preparar pessoas para a participação e a intervenção e nesse processo as questões
da linguagem são fundamentais. Portanto, as práticas da oralidade exercem um papel
relevante para as mudanças que possibilitam o bem-estar da escola, da sociedade enfim, de
todos, uma vez que, o ensino deve direcionar suas ações para permitir as realizações e
exigências sociais que perpassam a vida prática dos alunos dentro e fora da sala de aula.
342

Para Marcuschi (2005), além de outras contribuições, o estudo da oralidade é uma


atividade relevante para se analisar em que medida a língua é um instrumento de controle
Página

social e de reprodução de modelos de dominação e poder nos usos diários linguísticos, tendo

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em vista suas relações intrínsecas com as estruturas sociais. Se analisarmos as realidades das
nossas comunidades locais, temos um retrato nítido do quanto à língua é um instrumento de
poder, dominação e intimidação, principalmente contra as classes mais populares e menos
favorecidas, historicamente, despolitizadas, habituadas a cultura do silêncio e da não
participação. Por esse viés, defendemos a preparação do aluno para o trato com a oralidade a
partir do domínio dos gêneros orais, sobretudo os gêneros públicos formais utilizados nas
diversas esferas de participação social.

2 Sequência didática com o gênero oral seminário

Ao discutir sobre as finalidades do trabalho com o oral no ensino fundamental os


autores Schneuwly e Dolz (2004) esclarecem que o papel da escola ao longo da formação é
levar os alunos de uma situação de expressão oral cotidiana, caracterizada pelo diálogo
natural, utilizado de forma autorregulada e informal para uma situação de utilização de formas
mais sistematizada, institucionais e formais. Desse modo, para uma intervenção numa
perspectiva procedimental que se desenvolve durante todo o período do ensino fundamental,
se faz necessário, entre outras questões, definir de maneira clara as características do oral a ser
ensinado e quais os gêneros orais ensinar.
Sobre quais gêneros priorizar para um trabalho na sala de aula, os autores comentam
que a escola ao invés de abordar os gêneros da vida privada cotidiana, que geralmente já
fazem parte do domínio dos alunos, deve - se priorizar o ensino dos gêneros orais da
comunicação pública que são aqueles necessários para a aprendizagem durante toda a vida
escolar, não apenas no que diz respeito à Língua Materna, mas as outras disciplinas: os
gêneros exposição, relatórios, entrevistas, seminários entre outros, e os gêneros utilizados na
vida pública em geral, necessários à prática social nas diversas situações comunicativas, como
o debate, negociação, testemunho, em instâncias oficiais, e etc..
Em se tratando de como conduzir o trabalho de ensino dos gêneros orais e escritos, os
autores apresentam como estratégia o procedimento sequência didática, definida como,

Um conjunto de atividades escolares organizadas, de maneira sistemática,


343

em torno de um gênero oral ou escrito, com a finalidade de ajudar o aluno a


dominar melhor um gênero, permitindo-lhe, assim, escrever ou falar de uma
maneira mais adequada numa dada situação comunicativa (DOLZ,
Página

NOVERRAZ e SCHNEUWLY, 2004, p. 83).

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Dessa forma, as sequências didáticas ajudam os professores na organização do
trabalho pedagógico com os gêneros, e tendo em vista os objetivos propostos, as atividades
são realizadas por etapas, conforme ilustramos:

Quadro 6 – Esquema da sequência didática

Fonte: adaptado de Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004, p.83).

Nessa perspectiva, com base no modelo elaborado por Schneuwly e Dolz (2004, p.83),
apresentamos a seguir uma proposta de sequência didática para um trabalho de produção com
o gênero oral seminário, um dos gêneros escolares que propiciam a aquisição de habilidades
relevantes para a atuação do aluno em sala de aula e fora dela.
Na apresentação da situação inicial será exposta de maneira detalhada para os alunos a
proposta de realização de um projeto coletivo, com todas as informações necessárias para que
os alunos conheçam o projeto e compreendam suas finalidades. Nesse momento deverão ser
definidas repostas para as seguintes questões:
 Qual o tema da produção?
 Qual o gênero a ser realizado?
 Quais os objetivos?
 Quais os destinatários?
 Que forma assumirá a produção?
 Quem participará da produção?
 Quais as etapas da produção?
Nessa perspectiva, nesse primeiro momento é explicitada a atividade a ser trabalhada e
indicada uma primeira produção sobre o gênero proposto. Na primeira produção será proposto
aos alunos a realização de uma exposição oral sobre temas relacionados a realidade social dos
alunos. Em seguida são realizadas uma série de atividades envolvendo o gênero em questão
aprofundando as características, organização e produção do gênero como forma de preparação
344

para a produção final, momento que o aluno põe em prática os conhecimentos adquiridos e o
professor verifica os resultados alcançados, bem como as dificuldades percebidas.
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As principais dificuldades detectadas durante a primeira produção irão determinar o
trabalho do professor nos passos seguintes. No primeiro módulo será discutido ás questões
relacionadas à oralidade, ás relações entre fala e escrita, as características, a forma de
organização e a produção do texto falado e escrito.
No segundo módulo os alunos serão convidados a assistir exposições orais em
programas de rádio e/ou TV selecionada pelo professor com objetivo de fazê-los observar os
aspectos trabalhados no primeiro módulo, além de explorar as características do gênero
seminário e analisar os papéis dos principais envolvidos na realização desse gênero: locutor e
interlocutor.
Nos módulos seguintes o professor orientará os alunos sobre a realização da pesquisa
a partir da temática escolhida utilizando a biblioteca escolar para acesso a obras relevantes e a
internet. Em seguida, a organização das ideias e a constituição do plano de exposição. De
acordo com as etapas apresentadas pelos autores Dolz, Schneuwly e Pietro (2004), o plano de
exposição contemplam uma fase de abertura, a introdução ao tema, apresentação do plano de
exposição, o próprio desenvolvimento e encadeamento dos diferentes subtemas, a conclusão e
o momento de encerramento.
Por fim, temos a produção final, momento em que os alunos irão apresentar os
seminários na sala de aula. Após as apresentações, sugere-se uma avaliação, em que os
alunos, mediados pelo professor, farão um diálogo coletivo sobre todo o processo de
realização da proposta.

Conclusão

Neste trabalho objetivamos refletir sobre o ensino da oralidade enquanto um


mecanismo capaz de contribuir para a construção da cidadania dos educandos, com ênfase no
domínio dos gêneros orais. Sabemos que embora tenhamos avançado nos estudos linguísticos,
e a língua falada tenha conquistado espaço de objeto de ensino referendado pelos documentos
oficiais, ainda há muitos equívocos com relação à modalidade oral da língua, e muitas são as
dificuldades que permeiam a prática dos professores ao lidar com o ensino dos gêneros orais.
No entanto, ressaltamos que o trabalho com os gêneros orais e seus domínios,
345

especialmente em situações reais de uso, com objetivos que perpassem a vida dos alunos,
promove a participação social dos educandos e contribui para que eles ocupem espaços de
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poder e decisão, utilizando a linguagem como meio de crescimento profissional, pessoal e
social.
Nesse sentido, acreditamos que a sequência didática proposta com o gênero oral
seminário contribui para que o professor na sua prática pedagógica possa integrar os
conhecimentos referentes às modalidades oral e a prática social dos alunos, na medida em que
se possibilita que o desenvolvimento de capacidades necessárias a participação, como as
habilidades de argumentar, debater, opinar oralmente em situações de comunicação diversas.
Destacamos que além dos aspectos discursivos e linguísticos no ensino da oralidade, é
necessário enfatizar na formação a dimensão da ética, no intuito de preparar pessoas para
utilizar a fala nos diversos contextos; sabendo respeitar as diferenças de opinião; acolhendo o
posicionamento dos outros e colaborando com processos pautados no bem comum.

Referências

ÁVILA, Ewerton; NASCIMENTO, Gláucia; GÓIS Siane. Esclarecendo o trabalho com a


oralidade: uma proposta didática. In: LEAL, Telma Ferraz; GOIS, Siane (org.). A oralidade
na escola: a investigação do trabalho docente como foco na reflexão. Belo Horizonte:
Autêntica, 2012.

ANTUNES, Irandé. Aula de português: encontro e interação. São Paulo: Parábola, 2003.

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Fundamental. Proposta


curricular para a educação de jovens e adultos: segundo segmento do ensino fundamental:
5ª a 8ª série. Brasília: SEF, 2002.

CASTILHO A. T. A língua falada no ensino de português. 8. ed. São Paulo: Contexto, 2014.

CAVALCANTE. M.C.B; MELO,C.T.V. (0rg.). Gêneros orais na escola. In: SANTOS, C.F;
MENDONÇA, M.; CAVALCANTE. M.C.B. Diversidade textual: os gêneros na sala de
aula. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.

LEAL, Telma Ferraz; GOIS, Siane (org.). A Oralidade na escola: a investigação do trabalho
docente como foco na reflexão. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.

MARCUSCHI, L.A. Da fala para a escrita: atividades de retextualização. 6. ed. São


Paulo. Cortez. 2005.
346

SCHNEUWLY, Bernard; DOLZ, Joaquim. Gêneros orais e escritos na escola. Campinas:


Mercado das Letras, 2004.
Página

ISBN: 978-85-7621-221-8
SCHNEUWLY, Bernard; DOLZ, Joaquim; NOVERRAZ, Michèle. Sequência didática para o
oral e a escrita: apresentação de um procedimento. In: SCHNEUWLY, B; DOLZ, J. Gêneros
orais e escritos na escola. Campinas: Mercado das Letras, 2004.

SCHNEUWLY, Bernard; DOLZ, Joaquim; HALLER, Sylvie. O Oral como texto: como
construir um objeto de ensino. In: SCHNEUWLY, B.; DOLZ, J. Gêneros orais e escritos na
escola. Campinas: Mercado das Letras, 2004.

347
Página

ISBN: 978-85-7621-221-8
GT3 – ENSINO DE LÍNGUA MATERNA

PRODUÇÃO DE NARRATIVAS DIGITAIS BIOGRÁFICAS A PARTIR DA


PEDAGOGIA DOS MULTILETRAMENTOS

Girlene Fernandes de Sousa (PROFLETRAS/UERN)


Moisés Batista da Silva (PROFLETRAS/PPCL/UERN)

Introdução

No atual contexto social, a prática docente é uma atividade desafiadora que requer a
percepção de que o mundo mudou e, portanto, os métodos de ensino também precisam ser
avaliados e reformulados. Vivemos em uma era digital e podemos observar que os alunos
estão cada vez menos confortáveis no ambiente escolar. Atividades que antes eram suficientes
para atrair a atenção de crianças e jovens e fazê-los aprender, podem ser consideradas
obsoletas, pois não cumprem mais o seu papel de maneira eficaz. Por isso, o trabalho do
docente de Língua Portuguesa precisa estar em consonância com os avanços tecnológicos e
suas atividades devem capacitar o aluno a explorar as diversas formas de linguagens e seus
usos na contemporaneidade, promovendo os multiletramentos.
Integrar a tecnologia ao contexto escolar possibilita a criação de uma escola em que o
papel do aluno não se limita a mero receptor de informações transmitidas por um professor
que é detentor de toda sabedoria. Ao contrário, forma cidadãos conscientes e capazes de
analisar, criticar e produzir o conhecimento ao mesmo tempo em que relaciona esse saber às
situações do cotidiano.

[...] recentemente começamos a enfrentar uma realidade social em que não


basta simplesmente saber ler e escrever: dos indivíduos já se requer não
apenas que dominem a tecnologia do ler e do escrever, mas também que
saibam fazer uso dela, incorporando-a a seu viver, transformando-se assim
seu “estado” ou “condição”, como consequência do domínio dessa
tecnologia (SOARES, 2003, p. 29).

Assim sendo, é importante que o trabalho com a linguagem seja realizado a partir de
textos os quais possuam múltiplas linguagens e, além disso, estejam presentes nos meios
348

virtuais tão valorizados e utilizados pelos educandos.


É importante considerar que a tecnologia não está presente apenas na vida dos alunos
Página

de classe média e alta, como era há alguns anos. Mesmo aqueles alunos de classe social mais

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baixa possuem pelo menos um aparelho com acesso à internet, ou seja, a informatização não é
mais um privilégio de alguns e tornou-se indispensável nos processos de comunicação, dentre
eles, o meio educacional. Dessa forma, embora as escolas públicas do país ainda precisem de
muitas adequações para atender às necessidades do aluno, o docente deve buscar meios de
aliar teoria à prática através de atividades que estimulem a criatividade do aluno e despertem
suas habilidades em pesquisar, escrever e fazer uso de aplicativos e programas digitais.
Convém lembrar que a produção dos gêneros digitais é um aprimoramento dos
gêneros textuais escritos, portanto, um não exclui o outro. A tecnologia absorveu os gêneros
já existentes, atribuindo-lhes novas finalidades e novas características. Assim sendo, é
essencial que sejam apresentados aos alunos variados textos e suportes, dando ênfase ao
processo de mudança que eles podem sofrer ao serem traduzidos para o meio tecnológico, por
exemplo, comparando-se a carta ao e-mail ou o jornal impresso ao televisionado.
Nessa pesquisa, propomos-nos a trabalhar a análise e produção do gênero narrativa
digital a partir de textos biográficos, levando o aluno a colocar em prática seus conhecimentos
tecnológicos, bem como sua habilidade de escrita. A escolha do gênero deve-se ao fato de
compreendermos a importância de colocar o aluno como protagonista das ações, levando-se
em consideração que muitos adolescentes e jovens possuem conhecimento digital até mais
avançado que muitos docentes. Além disso, a criação de narrativas digitais durante as aulas de
língua portuguesa possibilita o trabalho com a multimodalidade do texto, o qual possui
amplos significados, ao confrontar a linguagem verbal e a linguagem não-verbal.
O que nos interessa, portanto, é a realização de um trabalho que desperte o interesse
dos discentes, aproximando a sala de aula e os conteúdos estudados ao ambiente que eles se
sentem mais confiantes e confortáveis, o digital. Além disso, esperamos que a partir das ações
realizadas, os alunos consigam absorver a importância do estudo da língua portuguesa e
compreendê-la como algo primordial nos processos de comunicação na sociedade.

1 O Letramento e os Multiletramentos

Houve uma época em que o termo “letrado” era usado para designar alguém que
possuía conhecimento ou estudo das letras, da literatura. No entanto, o mesmo tomou novo
349

significado e hoje caracteriza alguém que sabe não somente ler e escrever, mas também que
faz uso competente da leitura e da escrita em diversas situações do cotidiano, denominadas
Página

práticas de leitura. É comum observarmos, por exemplo, pessoas com dificuldade em

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preencher formulários, embora saibam ler e escrever. São pessoas alfabetizadas, porém não
são letradas nesse tipo de atividade.
Ainda que haja uma ligação entre o letramento e a alfabetização, os dois processos não
devem ser confundidos, tampouco trabalhados de forma isolada. Magda Soares, em seu livro
Letramento e alfabetização: as muitas facetas (2003. p.8), defende que são processos
indissociáveis, apesar de cada um possuir suas propriedades, devem ser trabalhados juntos na
prática pedagógica. Ainda segundo Soares (2003. p.3), o letramento seria uma “ampliação da
alfabetização” e para que ele aconteça é preciso, por exemplo, que o aluno se aproprie do
hábito de ler e busque essas leituras em suportes e textos diversos. Além disso, a autora
também destaca o fato de que o letramento não é responsabilidade somente do professor de
Língua Portuguesa, visto que o processo deve acontecer em todas as áreas.
Nas últimas décadas, as mudanças ocorreram também nas formas como se dão os
letramentos, especialmente com o crescimento da área digital, que tem nos apresentado
inúmeras informações diariamente através de diversos tipos de mídias e de textos que
possuem linguagens e sentidos múltiplos, ou seja, os multiletramentos. Nessa perspectiva, o
ato de ler envolve uma articulação entre a escrita, a imagem, os sons, os símbolos, que se
torna um desafio para o leitor e para quem trabalha com a língua, como professores e a
própria escola, pois envolve, geralmente, o uso de novas tecnologias.
Para Rojo (2012. p. 13), o conceito de multiletramentos aponta para dois tipos de
multiplicidades presentes na sociedade atualmente: a multiplicidade cultural e a
multimodalidade dos textos pelos quais ela se informa e se comunica. Além disso, a autora
caracteriza esses novos textos e multiletramentos como algo interativo, pois diferentemente
dos tipos impressos das mídias anteriores, (2003. p. 23) “permite que o usuário (ou
leitor/produtor de textos humanos) interaja em vários níveis e com vários interlocutores
(interface, ferramentas, discursos etc.)”.
A multiplicidade cultural nos permite supor que não existe uma única forma de cultura
a ser considerada e analisada, e sim, um conjunto de textos de diferentes campos (popular/
erudito, culto/inculto), que devem ser acessíveis a todos. Quanto à multimodalidade dos
textos, esta deve ser entendida como a co-presença de vários modos de linguagem, que
interagem na construção dos significados.
350

Para a escola, o desafio está em como trabalhar com os multiletramentos em sala de


aula, tendo em vista que geralmente esse trabalho envolve o uso das novas tecnologias de
Página

comunicação e, nem sempre, há nas escolas estrutura para isso. Além do mais, segundo Rojo

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(2012. p. 8), o trabalho com multiletramentos “caracteriza-se como um trabalho que parte das
culturas de referência do alunado (popular, local, de massa) e de gêneros, mídias e linguagens
por eles conhecidos”. Para ela, isto também se torna um desafio, pois requer a imersão em
letramentos críticos que implica em análise, critérios, para chegar a propostas de produção
que exigem participação por parte do alunado.
É possível dizer, então, que o letramento em sala de aula ocorre ao se direcionar o
aluno às práticas sociais de leitura e escrita e não só ensiná-lo a decodificar os signos
linguísticos. É fazer com que o aluno adquira o hábito de ler e compreender o sentido do texto
e, até mesmo, torná-lo capaz de dar novos sentidos a esse texto. Nesse sentido, Dionísio e
Vasconcelos (2013. P.19) afirmam que “Trazer para o espaço escolar uma diversidade de
gêneros textuais em que ocorra uma combinação de recursos semióticos significa, portanto,
promover o desenvolvimento neuropsicológico de nossos aprendizes”. Ou seja, o trabalho
com os textos multimodais requer do aluno um esforço maior de interpretação e compreensão,
ao mesmo tempo que desenvolve nele a capacidade de realizar uma análise crítica de toda a
leitura que está ao seu redor.

2 Pedagogia dos Multiletramentos

Em 1996, um grupo de pesquisadores dos letramentos (Grupo Nova Londres – GNL),


reunidos em Nova Londres (EUA), afirmou, pela primeira vez, a necessidade de uma
Pedagogia dos Multiletramentos e, após uma semana de discussão, publicou um manifesto
intitulado A Pedagogy of Multiliteracies – Designing Social Futures (Uma pedagogia dos
multiletramentos – Desenhando Futuros Sociais). Nesse manifesto, o New London Group
apresenta três aspectos da Pedagogia dos Multiletramentos: O ‘Por quê’ dessa pedagogia, o
‘O quê’ (baseado no conceito de design) e o ‘Como’, composto por um conjunto de quatro
ações didáticas, que podem variar de acordo com os objetivos pretendidos. São elas: Prática
situada, Instrução Explícita, Enquadramento Crítico e Prática Transformada.
O GNL também destacou a necessidade de a escola incorporar os letramentos
múltiplos que surgiam na sociedade, bem como a variedade cultural presente nela. Ou seja, a
escola precisa se adequar ao perfil dos alunos, que mudou junto com a sociedade, ao passo
351

que os torna mais críticos, analistas e criativos. O grupo enfatiza que “Quando o aprendiz
justapuser diferentes línguas, discursos, estilos e abordagens, ele ganhará substantivamente
Página

em habilidades metacognitivas e metalinguísticas, as quais se refletirão na capacidade de

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pensar criticamente nos sistemas complexos e outras interações”. (NEW LONDON GROUP,
1996).

Quadro 01: O “porquê” dos Multiletramentos: transformações sociais

Esferas da vida De Para Para

vida do trabalho “Fordismo Pós-fordismo diversidade produtiva


(profissional)

vida pública Nacionalismo Estado decrescente pluralismo cívico


(cidadania) (diminuição do
pluralismo)

vida pessoal cultura de massa comunidade identidade


fragmentada multifacetada

vida escolar Institucional de massa “progressiva” Nova aprendizagem


Fonte: Adaptado de http://newlearningonline.com/multiliteracies/theory

Analisando como a sociedade era antes e como é agora, podemos observar, por
exemplo, uma mudança significativa nas relações de trabalho. Durante o que ficou conhecido
como velho capitalismo, havia uma rigidez na hierarquia e na divisão dos trabalhos. Cada
trabalhador era responsável por uma função fixa, o que o impossibilitava de obter novos
conhecimentos. Na educação não era diferente, o professor era detentor de todo o
conhecimento e não podia ser questionado. Quanto ao aluno, este era visto como um
receptáculo vazio e os conhecimentos que ele já tinha eram desconsiderados. No Novo
Capitalismo, no entanto, surge a ideia de polivalência do trabalhador, bem como a valorização
do trabalho em equipe e da produção mais personalizada em detrimento da produção em
massa.
O Grupo Nova Londres, atento às mudanças significativas ocorridas em torno do novo
capitalismo e dos impactos causados na nossa vida profissional, pública e pessoal, defende
que a educação deve formar designers de significados, de modo que o professor não deve ser
visto como um chefe que dita o que os seus “subordinados” devem fazer, e sim como um
facilitador de processos de aprendizagem, ao passo que o estudante também se torna produtor
do seu próprio conhecimento. O conceito de design, portanto, foi construído para contrapor-se
352

a concepções tradicionais de ensino pautadas em uma visão estática da linguagem, pois, ao


contrário destas, propõe a busca de novos significados através de uma concepção mais
Página

dinâmica da mesma.

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Nesse sentido, as atividades semióticas devem ser tratadas, levando-se em
consideração, além da multimodalidade, os três aspectos dos designs de significado descritos
na figura 1: os desenhos disponíveis (Available design), os desenhos (Designing) e os
redesenhos (Redesigned). O primeiro diz respeito aos recursos usados na construção dos
significados, o segundo refere-se ao processo de construção de novos sentidos realizado a
partir dos desenhos disponíveis e o último, aos recursos produzidos e transformados durante o
desenho. No processo descrito, têm-se a criatividade, o dinamismo, a inovação e a motivação
como elementos necessários e que variam de acordo com a cultura e a visão de mundo do
sujeito produtor de sentidos.
Figura 1: O “Quê” dos Multiletramentos: processo de produção de significado.

Desenhos disponíveis

PRODUÇÃO

DE SIGNIFICADO
Redesenhos Desenho
s
(Novos
desenhos) (Projetos
)

Fonte: Adaptado do Grupo Nova Londres (2000, 23).

No “como” da Pedagogia dos Multiletramentos, são apresentadas quatro etapas para a


produção dos significados. A Prática Situada, também denominada de Experenciamento,
leva em consideração aquilo que já é conhecido pelos aprendizes e, ao mesmo tempo, os leva
a relacionar aquilo que ele já sabe às novas informações a que são expostos. Segundo Cope e
Kalantzis,2009, p.184-5, “Pelo fato de a cognição humana ser socioculturalmente situada e
353

contextual, essa prática representa a imersão em práticas significativas em uma comunidade


de aprendizes, considerando-se as necessidades socioculturais e suas identidades”.
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O segundo elemento, chamado de Instrução Explícita, é, segundo Cope e Kalantzis,
2009,p. 184-5) a Conceitualização, definida como um processo de conhecimento em que os
aprendizes se apropriam de teorias e conceitos acerca dos assuntos estudados.
A análise, denominada nos textos do New London Group como Enquadramento
Crítico, constitui o terceiro elemento e envolve a capacidade crítica dos aprendizes, baseada
nos processos de raciocínio, inferências e conclusões dedutivas, bem como na avaliação dos
propósitos por trás dos sentidos e ações.
Finalmente, o quarto elemento apresentado é a Aplicação (anteriormente chamada de
Prática Transformada) que se divide em duas partes: aplicação apropriada, baseada na
capacidade do indivíduo realizar algo de forma previsível; e a aplicação criativa, baseada nas
ações capa.
Para Cope e Kalantzis (2009), esses quatro elementos são orientações pedagógicas,
mas não uma única pedagogia ou uma sequência estanque. São opções apresentadas ao
professor com o intuito de fazê-lo refletir sobre suas práticas em busca de meios adequados
para tornar os aprendizes conscientes daquilo que estão aprendendo.

Figura 2: O “Como” da Pedagogia dos Multiletramentos: Leaning by design.

354
Página

Fonte: The New London Group (1996); Cope; Kalantzis (2015).

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3 Narrativas digitais

O ato de contar histórias sempre fez parte do cotidiano do ser humano. Desde a Pré-
história, o homem sentava-se ao redor de fogueiras para contar suas aventuras e fatos do dia a
dia, além de deixar esses registros em desenhos nas paredes das cavernas. Se buscarmos em
nossa memória, relembraremos histórias contadas por nossos avós, pais, professores e amigos,
as quais, de certa forma, contribuíram para a nossa formação enquanto pessoas. A forma de
narrar fatos modificou-se com o decorrer do tempo, acompanhando os avanços pelos quais
passou a sociedade. Hoje, essa atividade pode ser realizada também usando-se os meios
digitais. O que em inglês é denominado de Digital Storytelling, no Brasil recebe o nome de
Narrativa digital, que tem como proposta unir a antiga arte de contar histórias com os recursos
tecnológicos da informação e da comunicação. Essas narrativas são elaboradas a partir das
múltiplas linguagens (texto, vídeo, fotografias, áudios) e quando prontas são divulgadas na
internet.
As histórias sempre fizeram parte do contexto escolar e eram usadas para atrair a
atenção dos alunos. No entanto, a forma como são contadas já não atende a expectativa de
grande parte dos alunos, especialmente dos adolescentes e jovens. A narrativa digital, por
outro lado, chama a atenção por utilizar uma ferramenta que faz parte do cotidiano deles, ou
seja, envolve e desperta suas maiores habilidades. De acordo com Carvalho (2008, p. 87),

A construção e produção de narrativas digitais se constituem num processo


de produção textual que assume o carácter contemporâneo dos recursos
audiovisuais e tecnológicos capazes de modernizar 'o contar histórias',
tornando-se uma ferramenta pedagógica eficiente e motivadora ao aluno, ao
mesmo tempo em que agrega à prática docente o viés da inserção da
realidade tão cobrada em práticas educativas.

As narrativas digitais combinam aspectos visuais e textuais para a produção de


histórias, possibilitando que estas possuam sons, imagens, animações, gráficos, etc. São
criadas a partir de um script, estimulando também a criatividade.
Apesar de o termo parecer novo, a narrativa digital teve origem já na década de
355

noventa e teve como pioneiro o cartunista e ilustrador Joe Lambert, cofundador do Center for
Digital Storytelling (CDS), uma organização sem fins lucrativos, localizada nos EUA, que
Página

desenvolve projetos que incentivam os indivíduos a contarem histórias. Inicialmente, o DS foi

ISBN: 978-85-7621-221-8
considerado uma prática usada para contar não só histórias pessoais, mas também as tradições
e mitos de uma comunidade, antes conhecidas pela oralidade. Embora não sigam um padrão
estabelecido, as narrativas digitais podem diferenciar-se pelo tipo de história narrada ou pela
tecnologia utilizada na edição dos vídeos. Quanto aos tipos de histórias, pode-se destacar as
memórias, relatos de viagens, biografias, acontecimentos históricos, dentre outros, quase
sempre com forte componente emocional.
A produção de narrativas digitais pressupõe a manipulação de um conjunto de
ferramentas para edição de fotografia, texto, vozes, músicas e animações, de fácil acesso para
os alunos e os professores, através da internet.

Conclusão

A proposta deste trabalho, ainda em andamento, consiste na produção de narrativas


digitais pelos alunos do 8º ano de uma escola pública estadual. Durante a realização da
atividade, será utilizada a metodologia da Pedagogia dos Multiletramentos, buscando levar os
discentes a produção de significados, através da transformação de seus conhecimentos prévios
em novos conhecimentos e conceitos. O enredo das narrativas serão criados a partir dos dados
coletados durante entrevista com personalidades da cidade de Mossoró, que destacam-se em
atividades profissionais, artísticas e sociais. Dessa forma, serão trabalhados diferentes gêneros
textuais, para que os alunos desenvolvam não somente as habilidades digitais, mas também de
escrita.
Devido ao fato de que as atividades ainda estão sendo realizadas, não é possível
apresentar os resultados. Entretanto, compreendendo a importância do trabalho com textos
multimodais em sala de aula, esperamos colaborar e incentivar a produção de narrativas
digitais, tanto nas aulas de Língua Portuguesa, quanto em outras disciplinas, feitas as
alterações necessárias.

Referências

CARVALHO, G. S. (2008). As Histórias Digitais: Narrativas no Século XXI. O Software


356

Movie Maker como Recurso Procedimental para a Construção de Narrações. Dissertação de


Mestrado em Educação. São Paulo: Universidade de São Paulo. Disponível
em:http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/48/48134/tde – 27082010 -
Página

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ISBN: 978-85-7621-221-8
COPE, B.; KALANTZIS, M. The Things You Do to Know: An Introduction to the
Pedagogy of Multiliteracies. In: COPE, B.; KALANTZIS, M. (Eds.) A Pedagogy of
Multiliteracies: Learning By Design. London: Palgrave, 2015, p. 1-36.

DIONÍSIO, Ângela Paiva. VASCONCELOS, Leila Janot. Multimodalidade, gênero textual e


leitura. In: BUNZEN, Clécio. MENDONÇA, Márcia. Múltiplas linguagens para o Ensino
Médio. São Paulo: Parábola Editorial, 2013. p. 19 - 40.

ROJO, Roxane Helena. MOURA, Eduardo. Multiletramentos na escola. São Paulo:


Parábola Editorial, 2012.

SOARES, Magda. Letramento e Alfabetização: as muitas facetas. Universidade Federal de


Minas Gerais, Centro de Alfabetização, Leitura e escrita: Contexto, 2003.

SOARES, Magda. O que é Letramento? Diário do grande ABC, Santo André, p.3, 29 de
ago. 2003.

THE NEW LONDON GROUP. A Pedagogy of Multiliteracies: designing social futures.


Harvard Educational Review, v. 66, n. 1, p. 60-92, 1996. Disponível em:
http://vassarliteracy.pbworks.com/f/Pedagogy+of+Multiliteracies_New+London+Group.pdf>.

357
Página

ISBN: 978-85-7621-221-8
GT3 – ENSINO DE LÍNGUA MATERNA

UMA ANÁLISE DA METAFUNÇÃO INTERATIVA DE ANÚNCIOS


PUBLICITÁRIOS EM LIVRO DIDÁTICO DE LÍNGUA PORTUGUESA DO 6º ANO

Josielle Raquel Dantas da Silva (PIBIC/UERN)34


Moisés Batista da Silva (PPCL/PROFLETRAS/UERN)35

Introdução

A vida na sociedade moderna tem proporcionado diferentes práticas de letramento,


que vão além de saber ler e escrever textos monomodais, adentrando outras modalidades,
incluindo aí a visual. Esse argumento baseia-se no conceito pertinente de que a comunicação
não se caracteriza somente em textos tradicionais. Os teóricos Kress e van Leeuwen mostram
que os elementos imagéticos, na construção de um texto, são tão importantes quanto os
verbais. E ainda afirmam que “o componente visual de um texto é uma mensagem organizada
e estruturada independentemente - ele é conectado com o texto verbal, mas, de jeito algum,
depende dele: e similarmente o oposto também é válido” (KRESS E VAN LEEUWEN, 2006,
p. 17).
Desse modo, o conceito de letramento expande-se, passando a referir-se não somente a
habilidade de lidar com textos estritamente linguísticos, mas manejar textos que contenham
mais de um modo semiótico, o que corresponde atualmente ao que chamamos de
multimodalidade. Conforme destaca Rojo (2012), diferentemente do conceito de letramentos
múltiplos, que nos aponta a multiplicidade de práticas letradas na sociedade atual como um
conjunto de elementos autossuficientes, a Pedagogia dos Multiletramentos (GRUPO NOVA
LONDRES, 1996, 2000; COPE e KALANTZIS, 2015), vai tratar da multiplicidade a partir de
perspectivas não monolíticas e monológicas.
Diante do panorama exposto, elementos, tanto verbais como não verbais, são
responsáveis pela construção de sentido do texto. Desse modo, a análise de um texto não pode
se limitar aos aspectos especificamente linguísticos, pois, para explorar todo o seu potencial
comunicativo, deve-se considerar a multiplicidade e integração de todos os modos de fazer

34
358

Estudante do curso de Letras - Língua Portuguesa, do Departamento de Letras Vernáculas, da Faculdade de


Letras e Artes, da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN. E-mail:
josielleraquelsilva@gmail.com
35
Professor Adjunto IV, do Departamento de Letras Vernáculas, da Faculdade de Letras e Artes, da
Página

Universidade do Estado do Rio Grande do Norte - UERN e Coordenador do Programa de Pós-Graduação em


Ciências da Linguagem; E-mail: falamoises@gmail.com

ISBN: 978-85-7621-221-8
sentido, ou seja, o seu aspecto multimodal. Em concordância com Cavalcante e Custódio
Filho:

Defendemos que o pesquisador deve assumir toda a complexidade do objeto


texto e propor análises que deem conta dessa multiplicidade, considerando-
se que, ainda que se configurem como não verbais, as diferentes
manifestações semióticas ou os diferentes processos envolvidos em situação
de interação sem o verbal passam por um tratamento linguístico quando da
interpretação; essa seria a decisão mais coerente com o panorama atualmente
delineado nos estudos sobre o texto (2010, p. 65).

Diariamente, somos bombardeados com vários textos multissemióticos: cartazes,


outdoors, anúncios, propagandas etc. Os elementos que compõem esses textos desenvolvem
uma função específica que procura persuadir, de toda maneira, os leitores. Inclusive, os
alunos, leitores em potencial de livros didáticos. Refletindo sobre o exposto, surge o
questionamento de como se inserem os gêneros multissemióticos no principal recurso
pedagógico dos professores, o Livro Didático de Língua Portuguesa.
Em consonância com os PCNs, que consideram que “a unidade básica de ensino só
pode ser o texto” (BRASIL, 1998, p. 23), os LDLP’s tem demonstrado uma resposta positiva
com relação à diversificação de gêneros, visto que:

É necessário contemplar, nas atividades de ensino, a diversidade de textos e


gêneros, e não apenas em função de sua relevância social, mas também pelo
fato de que textos pertencentes a diferentes gêneros são organizados de
diferentes formas. A compreensão oral e escrita, bem como a produção oral
e escrita de textos pertencentes a diversos gêneros, supõem o
desenvolvimento de diversas capacidades que devem ser enfocadas nas
situações de ensino. (BRASIL, 1998, p. 23-24).

Diante do exposto, nos propomos a realizar uma análise da metafunção interativa em


elementos imagéticos que componham o LDLP, em especial os anúncios publicitários. Esse
tipo de pesquisa justifica-se, portanto, não só por proporcionar uma descrição e análise de
componentes imagéticos, mas também por despertar a criticidade dos alunos em gêneros
publicitários, tornando-os leitores eficientes e empoderados para perceberem e darem sentido
aos textos multimodais com os quais interagem não só dentro como também fora do ambiente
359

escolar, para tanto, selecionamos o livro do 6º º ano do projeto Teláris de autoria de Borgato,
Bertin e Marchezi (2012), adotado pela rede municipal de ensino da cidade de Mossoró.
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ISBN: 978-85-7621-221-8
A pesquisa se fundamenta, basicamente, na Gramática do Design Visual, de Kress e
van Leeuwen (2006) que desenvolveram, em seus estudos, categorias para analisar os
significados representacional, interacional e composicional de textos visuais. Esse estudo foi
baseado no conceito sistêmico-funcional desenvolvido por Halliday. Nesse caso, para cada
categoria utiliza na análise linguística, os teóricos, criaram outra para a análise imagética,
como exposto na tabela 1.

Tabela 1 - construção das funções

HALLIDAY (1994) KRESS e van LEEUWEN (1996)

IDEACIONAL REPRESENTACIONAL

INTERPESSOAL INTERATIVA

TEXTUAL COMPOSICIONAL

De forma mais particular, procuramos descrever como se dá a metafunção interativa,


levando em consideração as categorias de contato, distância social e perspectiva que sugerem
as relações de poder através da interação dos atores representados nas imagens com os seus
espectadores.
Achamos de essencial importância utilizar elementos verbais e/ou não-verbais que
compõe o livro didático, pois, o ambiente escolar é um dos que mais contribuem para o
aperfeiçoamento crítico dos alunos. Nossa pesquisa está interessada em contribuir com as
práticas de ensino do professor, demonstrando, mais especificamente, como o docente pode
moldar a criticidade do aluno a partir das campanhas publicitárias que constituem o manual
do professor.

O livro didático como elemento multimodal

Para a devida análise escolhemos o livro didático do 6º ano do projeto Teláris de


autoria de Borgato Bertin e Marchezi (2012) utilizados por alunos da rede municipal de
ensino da cidade de Mossoró.
360

Com o intuito de verificar como é inserido um texto multimodal no LD e se existem


propostas eficazes para desenvolver nos alunos o letramento visual, nossa pesquisa seguiu as
Página

seguintes etapas metodológicas:

ISBN: 978-85-7621-221-8
a) Identificação e classificação dos gêneros multimodais presentes no livro didático
selecionado;
b) Catalogação de anúncios publicitários;
c) Análise de alguns anúncios publicitários que compõem o livro didático de português,
bem como sua eficiência para sujeitos leitores capazes de lidar com as múltiplas
formas de fazer sentido no ensino de Língua Portuguesa.
Recorrendo a tabela 1, veremos as subdivisões das categorias interativas que nos
possibilitaram analisar os anúncios, constatando como se denomina as relações de poder que
se estabelece entre o texto e o leitor. Vejamos na tabela 2, as categorias interativas que foram
levadas em consideração para análise:

Tabela 2 - Categorias interativas (Kress e Van Lenwen (2006)

De forma geral, a partir da investigação e da análise dos anúncios de teor publicitário


que tivessem pessoas como personagens representados, foi possível obter os resultados
esquematizados na tabela a seguir:

Tabela 3 - Resultados de análise à luz da metafunção interativa.


Contato Distância social Perspectiva

Livro Demanda Oferta PA PM PF CA CB AO AF

6 º Ano 4 4 5 3 4 4

Legenda: PA: plano aberto; PM: plano médio; PF: plano fechado - CA: câmara alta; CB:
câmara baixa; AO: ângulo oblíquo; AF: ângulo frontal.
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Notamos que os elementos na tabela, nos encaminham para o assujeitamento do
consumidor ao produto ou campanha que está sendo anunciada ao mesmo em que
demonstram uma posição igualitária, porém, dão ênfase maior ao produto do que ao
consumidor que irá utiliza-lo.
Das páginas 216 a 241 do capítulo 8 do LD de Borgatto, Bertin e Marchezi (2012),
foram encontrados cinco anúncios composto por elementos verbais e não verbais. Destes, três
serão utilizados para análise. Procuramos descrever como se dá a metafunção interativa nesses
anúncios, levando em consideração as categorias de contato, distância social e perspectiva que
sugerem as relações de poder através da interação dos atores representados nas imagens com
os seus espectadores. Mais especificamente, nos deteremos nos anúncios expostos nas figuras
1, 2 e 3.

Figura 1: Exemplo de anúncio publicitário do LD analisado

Fonte: Borgatto, Marchezi e Bertin (2012, p. 218)

Tendo como base a tabela das categorias interativas (tabela 2) chegamos a seguinte
análise; a partir da perspectiva de contato podemos argumentar que esse anúncio expõe um
olhar de demanda, que é quando o participante representado olha diretamente para o
observador, convidando-o à interação. O enquadramento de distância social se encontra no
plano médio, criando uma relação imaginária de familiaridade com o público leitor. E por
fim, segundo a classificação da perspectiva temos um ângulo frontal, proporcionando um
envolvimento do observador com o participante representado.
Esse anúncio propõe uma relação de poder igualitário entre o enunciador e o receptor,
compartilhando entre si informações e envolvendo o consumidor com o enunciado.
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Figura 2: Exemplo de anúncio publicitário do LD analisado

Fonte: Borgatto, Marchezi e Bertin (2012, p. 221).

Já no segundo anúncio, encontramos uma estrutura diferente do anterior. No


enquadramento de demanda temos o olhar de oferta, pois, os participantes representados não
olham diretamente para o observador, ou seja, nenhuma relação é criada entre o observador e
os participantes da imagem.
O aspecto de distância social volta-se para o plano aberto, proporcionando um
afastamento entre o observador e a imagem. E finalmente temos a perspectiva que se
enquadra no ângulo oblíquo, pois, os participantes se encontram de perfil, estabelecendo uma
sensação de que o que vemos não é real.
Esse anúncio comporta um afastamento entre o enunciador e o receptor, ao mesmo
tempo que determina quem merece receber maior atenção no enunciado, percebamos que a
imagem do tênis é bem maior do que os representantes físicos, demonstrando que o produto
em si, é mais importante que o consumidor, determinando quem exerce maior poder no
anúncio, que nesse caso é o produto.
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Figura 2: Exemplo de anúncio publicitário do LD analisado

Fonte: Borgatto, Marchezi e Bertin (2012, p. 235).

O último anúncio é constituído por um olhar oferta (contato), com o plano aberto
(distância social) e de ângulo frontal (perspectiva). Percebamos que a construção desse
anúncio busca, assim como anteriormente, mostrar que o produto em si (os livros), possui um
valor maior que o consumidor, determinando quem exerce maior poder no anúncio. Ao
mesmo tempo, é proposto uma relação igualitária entre o anúncio e o observador a partir do
eixo de perspectiva, demonstrando por fim, que é um produto acessível a todos os tipos de
consumidores.

Considerações finais

No LDLP do 6º ano, foram poucas as ocorrências do gênero analisado, apesar de toda a


importância dos anúncios publicitários, podemos perceber que é um gênero pouco explorado,
pois mesmo compondo o livro didático, deixa a desejar na forma de trabalhar o senso crítico
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do aluno e as relações de poder, já que as atividades não exploram todo o potencial do aspecto
multimodal, como exposto na figura 4, uma atividade que corresponde ao anúncio exposto
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na figura 1. A questão da atividade solicita que os alunos observem os argumentos que
constituem o anúncio e solicita:

Figura 4: Atividade do anúncio exposto na figura 1.

Fonte: Borgatto, Marchezi e Bertin (2012, p. 219).

Percebamos que mesmo quando procura-se analisar os elementos multimodais no LD,


é pouco enfatizado, as relações de poder que se constituem entre a imagem e o seu
observador. A escolha dos anúncios e a forma como são trabalhados no LDLP, não ajuda
muito os estudantes a tornarem-se, por completo, leitores eficientes e empoderados para
perceberem e darem sentido aos textos multimodais com os quais possam interagir dentro e
fora do ambiente escolar.
Mediante o exposto, pode-se concluir que, ainda que haja uma vasta abrangência de
textos multimodais no livro didático e meios de desenvolver o posicionamento critico a partir
destes, o seu tratamento deixa a desejar, ou seja, num sentido mais geral, isso prejudica a
formação do aluno enquanto leitor proficiente.

Referências
365

BORGATTO,A.T; BERTIN.V.M; MARCHEZI.V. Português. São Paulo: Ática, 2012.


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BRASIL. Parâmetros curriculares nacionais: 3º e 4º ciclos do Ensino Fundamental:
língua portuguesa. Brasília: Ministério da Educação e do Desporto, Secretaria da Educação
Fundamental, l998.

CAVALCANTE, Mônica Magalhães; CUSTÓDIO FILHO, Valdinar. Revisitando o estatuto


do texto.Revista do GELNE, Piauí, v.12, n.2, 2010.

COPE, B.; KALANTZIS, M. (Eds.). Multiliteracies: Literacy Learning and the Design of
Social Futures. London: Routledge, 2000.

KRESS, Gunther; VAN LEEUWEN, Theo. Multimodal discourse: the modes and media of
contemporary communication. London, Arnold, 2001.

______. Reading images: the grammar of visual designs. London: Routledge, 1996. p. 15-
42

ROJO, R. H. R. Pedagogia dos Multiletramentos: divercidade cultural e de linguagens na


escola. In: ROJO, R. H. R.; MOURA, E. Multiletramentos na escola. São Paulo: Parábola,
2012, p. 11-31.

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GT3 – ENSINO DE LÍNGUA MATERNA

TEXTO E INFORMATIVIDADE

Cintia Lúcia Silva Ferreira (EEPAFC)


Ivanete Dias Queiroz Costa (EEDLM)

Introdução

Desenvolver a habilidade de escrita é uma das tarefas mais importantes na formação


do aluno, e também, constitui-se em uma das mais difíceis para o professor. É comum
ouvirmos no discurso de muitos docentes: “O aluno não sabe escrever.”, “O aluno escreve
mal.”, “Os textos dos alunos não dizem coisa alguma.”, discurso esse, revelador de uma
avaliação tecnicista, baseada em uma análise quantitativa, na qual se privilegia as correções
gramaticais e os erros ortográficos, desvalorizando o dizer do aluno, o que ele sabe sobre o
assunto, o que tem de novo a acrescentar a seu texto, que deveria ser o foco principal da
avaliação.
É indispensável que o professor procure novos caminhos pelos quais possa trilhar,
para que a habilidade de produção escrita dos educandos seja aperfeiçoada satisfatoriamente
ao terminar seus estudos, principalmente diante de resultados tão insatisfatórios, identificados
não apenas pelos professores em sala de aula, como também nos exames nacionais que
avaliam a educação brasileira como o ENEM (Exame nacional do ensino médio), a Prova
Brasil e até mesmo aqueles que avaliam o ensino superior como o ENAD e o exame da OAB.
É reconhecido o papel de destaque que a avaliação desempenha no processo
educacional. Mas sabemos que, historicamente, tem predominado uma perspectiva de
avaliação quantitativa em detrimento da qualitativa, na qual se opõe o certo e o errado,
deixando-se de construir significados a respeito das práticas de ensino e das aprendizagens
realizadas pelos alunos. Trata-se de uma avaliação equivocada, na qual o texto é
compreendido apenas como uma simples unidade linguística, o que na verdade não o é, pois o
conceito de texto vai além, ele é antes de tudo uma unidade de sentido capaz de transmitir
uma comunicação, portanto, uma unidade comunicativa.
Nos últimos anos, muitos têm sido os estudos na área da avaliação da escrita,
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especificamente das formas de intervenção do professor na correção do texto do aluno, tais


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como o de Antunes (2009), Val (2002) e o de Santos (2002), que chamam a atenção para a
importância de se analisar a informatividade dos textos produzidos pelos aprendizes.
A esse respeito, Antunes (2009) comenta

Fazer do texto objeto de análise é uma tarefa que supõe paradigmas mais
amplos que aqueles definidos pelas descrições da gramática tradicional,
normalmente focalizados em questões morfológicas e sintáticas. A
relevância da linguística de texto decorre exatamente das propostas de
ampliação desses paradigmas e das categorias a serem vistas como ponto de
investigação. Para além das regularidades léxico gramaticais com que se
constroem os textos, encontram-se, e de forma igualmente pertinente, outros
fatores que constituem critérios de adequação, da qualidade e da relevância
de nossas atuações verbais (ANTUNES, 2009, p. 125).

Como podemos perceber no discurso do autor, não basta analisar apenas descrições
gramaticais, é preciso ir além, procurar outros fatores que possam contribuir para a qualidade
do texto, e que, segundo Antunes um deles é a informatividade, “uma propriedade que diz
respeito ao grau de novidade, de imprevisibilidade que a compreensão de um texto comporta”
(ANTUNES, 2009, p. 125).
Uma vez que a informatividade é responsável pelo desencadeamento das informações
apresentadas e pelo processo de construção de sentido do texto, atentamos aqui nesse trabalho
a tecer comentários sobre esse requisito, para análise textual, tão importante e pouco
considerado pelos professores em suas práticas de avaliação de textos dos alunos. Tentaremos
mostrar o que é informatividade e sua importância para a construção de sentido de um texto,
com vistas a concorrer para uma prática avaliativa que contribua para a promoção das
aprendizagens dos alunos e para a formação de bons produtores de textos. Para esse fim, faz
necessário, primeiro, falarmos um pouco sobre as concepções, apresentadas por alguns
autores renomados no assunto.

1 Afinal, o que é texto?

Segundo Geraldi (1997, p. 98), “um texto é o produto de uma atividade discursiva
onde alguém diz algo a alguém [grifo do autor].” Sendo assim, ao se produzir um texto deve-
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se ter a preocupação em se transmitir algo, acrescentar alguma informação a fim de torná-lo


mais interessante ao ser lido ou ouvido. Por ser uma atividade interativa, “ter o que dizer é,
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portanto, uma condição prévia para o êxito da atividade de escrever” (ANTUNES, 2009, p.
45).
Para Halliday & Hasan (apud Santos 2002), “o texto é uma unidade posta em uso. Não
é de caráter gramatical, como uma sentença nem é sua extensão o que o define.” Já Harris
(apud Santos, 2002) um texto é formado por uma sucessão de sentenças interligadas, mas
pode ser composto por uma só palavra. Para o referido autor, a comunicação humana ocorre
por meio de textos, e não por frases isoladas. Porém, deve-se lembrar de que o tamanho do
texto deve ser levado em consideração, pois dependendo do seu uso, textos grandes ou
pequenos demais irão atrapalhar não só a compreensão, mas também até o próprio interesse
do leitor.
Como se pode perceber através da fala dos autores, texto é todo enunciado dotado de
sentido, utilizado em uma comunicação discursiva, portanto, não se pode criá-lo de forma
aleatória, é preciso tomar cuidado ao escrevê-lo, prestar atenção nas palavras ou sentenças
utilizadas para que se forme um todo com sentido. Não obstante, o que torna uma sentença
como um texto, não é a quantidade do que se escreve, mas a qualidade do escrito. E o que
torna um texto interessante não é apenas o interesse de quem o lê ou a quantidade de
informações contidas nele, mas a qualidade dessas informações.
A escrita de um texto requer preparo. O que escrever, como e para quem escrever são
requisitos importantes, que devem ser observados na hora em que se escreve, para que o texto
tenha informações suficientes para o leitor.
Um bom texto é aquele que, além de estar bem escrito, nos passa algo novo,
informações novas, úteis ao nosso cotidiano. É imprescindível que saibamos selecionar aquilo
que escrevemos, quais informações farão parte do texto, para que este não se torne apenas um
amontoado de palavras sem informatividade alguma, o que o tornaria enfadonho e
desinteressante.

2 A informatividade do texto

O conceito de informatividade já foi definido por autores como Santos (2002),


Antunes (2009) e Val (2002) e todos nos levam a um entendimento de que um texto para que
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seja bem aceito pelo seu recebedor deve ter certo grau de informatividade. Mas afinal, o que é
informatividade?
Página

Para Santos (2002),

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A informatividade refere-se ao grau de previsibilidade — da forma e do
conteúdo — da informação apresentada no texto. (SANTOS, 2002, p. 22).
“Ao produzir um texto, o autor seleciona, consciente ou inconscientemente,
a quantidade e a qualidade das informações que oferecerá ao receptor.
Escolhe se colocará à disposição do receptor uma informação menos ou mais
conhecida, ou absolutamente nova, ou ainda com maior ou menor riqueza de
detalhes” (SANTOS, 2002, p. 23).

Para Antunes (2009), a informatividade é uma propriedade que diz respeito ao que o
texto apresenta de novidade, de imprevisível para a sua compreensão. Para o referido autor,
todo texto traz algo novo, desconhecido do interlocutor. “Ninguém fala para dizer o óbvio, ou
o que o outro já sabe.” (ANTUNES, 2009, p. 126), não é interessante informar somente algo
que já se sabe, o texto deve apresentar alguma novidade, seja no conteúdo ou na forma.
Segundo Val (2002) a informatividade é a capacidade que o texto tem de acrescentar
informações novas e inesperadas ao conhecimento do recebedor, ou seja, “é a capacidade que
tem um texto de efetivamente informar seu recebedor.” Não basta que o texto seja original,
imprevisível, é necessário que essas informações sejam interessantes, úteis e compreendidas
pelo leitor, do contrário, corre o risco de rejeição. O “novo” é a parte principal do texto, sem
ele corre-se o risco de o texto ser desvalorizado numa comunidade que preza pelo que é
novidade.
Entende-se aqui, que a informatividade diz respeito ao nível de informações e
novidades apresentadas em um texto. Por isso, ao produzir um texto o escritor deve escolher
que informações farão parte dele: novas ou antigas, conhecidas ou não, uma ou várias sobre o
assunto a ser debatido. Todas estas escolhas a serem feitas devem levar em consideração o
interesse a ser despertado no leitor. O leitor quer encontrar algo diferente para ele, um
elemento surpresa, portanto, inesperado, que lhe desperte a curiosidade e torne a leitura mais
agradável e prazerosa. São as informações novas, imprevisíveis e responsáveis por uma boa
aceitação do texto.
Para os estudiosos, a informatividade de um texto é medida pelo grau de novidade, de
imprevisibilidade que ele suporta. Portanto, quanto mais previsível, menos informativo. Por
conseguinte, quanto mais imprevisível e mais novidade ele apresentar mais informativo o
texto será.
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Antunes (2009), acrescenta que o grau de imprevisibilidade apresentado por um texto


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é dada pelo grau de novidade que ele apresenta. Para ele, o interesse que um discurso provoca

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no interlocutor depende “desse maior ou menor grau de imprevisibilidade.” (grifo do autor)
Em outras palavras, podemos dizer que o interesse por um texto é dado pelo grau de
informações novas que ele comporta, pois o interlocutor espera ouvir do locutor algo novo,
interessante porque o que já se sabe não o interessa mais. Essas novidades podem apresentar-
se tanto no conteúdo como na forma em que o texto se apresenta, por isso, o que pode ser
novidade em um texto pode não ser em outro. A esse despeito o autor comenta: “O grau de
informatividade é avaliado, portanto, na proporção das novidades de conteúdo e de forma que
ele apresenta. Portanto, mais novidade, mais informatividade” (ANTUNES, 2009, p. 127).
Para Beaugrande e Dressler (APUD Antunes, 2009, p. 128-129), a partir das
novidades e imprevisibilidades o leitor cria expectativas, as quais provêm de uma série de
fatores presentes na interação verbal. Dentre eles os autores apontam: a organização do
mundo real, a organização léxico-gramatical do sistema linguístico em atividade, a “estrutura
de informação das sentenças”, o tipo e o gênero de texto em uso e o contexto imediato onde o
texto se insere e circula.
Peguemos como exemplo a crônica “Cobrança”, de Moacyr Sclear, baseada em uma
manchete de jornal.

Cobrança

Ela abriu a janela e ali estava ele, diante da casa, caminhando de um lado para outro.
Carregava um cartaz, cujos dizeres atraíam a atenção dos passantes: "Aqui mora uma devedora
inadimplente".
- Você não pode fazer isso comigo - protestou ela.
- Claro que posso -replicou ele- Você comprou, não pagou. Você é uma devedora
inadimplente. E eu sou cobrador. Por diversas vezes tentei lhe cobrar, você não pagou.
- Não paguei porque não tenho dinheiro. Esta crise...
- Já sei -ironizou ele- Você vai me dizer que por causa daquele ataque lá em Nova York
seus negócios ficaram prejudicados. Problema seu, ouviu? Problema seu. Meu problema é lhe
cobrar. E é o que estou fazendo.
- Mas você podia fazer isso de uma forma mais discreta...
- Negativo. Já usei todas as formas discretas que podia. Falei com você, expliquei,
avisei. Nada. Você fazia de conta que nada tinha a ver com o assunto. Minha paciência foi se
esgotando, até que não me restou outro recurso: vou ficar aqui, carregando este cartaz, até
você saldar sua dívida.
Neste momento começou a chuviscar.
- Você vai se molhar -advertiu ela- Vai acabar ficando doente.
Ele riu, amargo:
- E daí? Se você está preocupada com minha saúde, pague o que deve.
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- Posso lhe dar um guarda-chuva...


- Não quero. Tenho de carregar o cartaz, não um guarda-chuva.
Ela agora estava irritada:
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- Acabe com isso, Aristides, e venha para dentro. Afinal, você é meu marido, você mora

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aqui.
- Sou seu marido - retrucou ele - e você é minha mulher, mas eu sou cobrador
profissional e você é devedora. Eu a avisei: não compre essa geladeira, eu não ganho o
suficiente para pagar as prestações. Mas não, você não me ouviu. E agora o pessoal lá da
empresa de cobrança quer o dinheiro. O que quer você que eu faça? Que perca o meu
emprego? De jeito nenhum. Vou ficar aqui até você cumprir sua obrigação.
Chovia mais forte, agora. Borrada, a inscrição tornara-se ilegível. A ele, isso pouco
importava: continuava andando de um lado para o outro, diante da casa, carregando o seu
cartaz.
(SCLEAR, Moacyr. Folha de São Paulo; Cotidiano, 24/09/2001 – Texto baseado em
manchete, publicada na edição de 10/09/2001)

Como pode ser observado, a crônica trata de um assunto cotidiano e muito comum em
nossa sociedade: “a cobrança”, assunto esse que abordado na própria notícia não criaria tanta
expectativa no recebedor, nem aguçava tanto o interesse pela leitura. Mas a maneira como o
cronista aborda o assunto, a linguagem trabalhada, já representam uma novidade. Do mesmo
modo, o fato de o cobrador aparecer, aos berros, na porta da casa do inadimplente, já
representaria um fato inusitado, sabe-se, pois, que é normal um cobrador ir até a casa de
alguém fazer cobrança, mas jamais ele poderia fazer escândalo para chamar a atenção. E o
fato surpresa é esse inadimplente ser a própria esposa do cobrador, o que torna mais inusitado
ainda, porque é bem provável que o leitor jamais imaginaria se tratar dessa situação: um
homem cobrando uma dívida da própria mulher, de modo a expô-la para todos os vizinhos. E,
mesmo se a notícia já apresentasse esse fato, a própria linguagem seca dos textos jornalísticos
não provocaria tanto envolvimento por parte do interlocutor. Isso comprova que a
informatividade varia conforme o gênero, como diz Santos (2002, p. 39) cada texto possui
uma forma específica na realização de sua informatividade.
Do mesmo modo, o nível de informatividade de um texto pode variar de acordo com o
seu recebedor, podendo ser mais ou menos informativo. Quanto mais familiar ao recebedor,
menos informativo; quanto menos familiar mais informativo. Tome-se, por exemplo, o texto

A curiosa força de uma formiga

Descubra como as formigas carregam 10 vezes seu peso...

Muitos insetos carregam objetos mais pesados que seu próprio corpo, pois precisam de força
para transportar alimentos ou para sair de baixo das folhas, galhos, terra...
372

Eles contam com um esqueleto externo resistente e leve com seis pernas, o que distribui o
peso em diferentes pontos de apoio.
O peso que a formiga aguenta é variável de acordo com sua espécie. Destacando a Formiga
Página

Saúva que suporta até 15 vezes seu peso.


O bicho mais forte do mundo é o besouro-rinoceronte, suportando até 850 vezes seu peso, se

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comparássemos o ser humano, seria como um homem de 70 kg conseguisse levantar 60 tonelada
(PEREIRA, J. A curiosa força das formigas. Curiosidades Animais. 04/03/2010).

Para a maioria das pessoas leigas nesse assunto, trata-se de um texto altamente
informativo. E o que há de novidade é o próprio conteúdo, não a forma de apresentação. Mas
para professores de ciências, cientistas, biólogos, ecologistas e pessoas interessadas no
assunto, que tenham conhecimento sobre o fenômeno descrito, o texto não apresenta nenhuma
novidade, portanto é pouco informativo.
Daí porque nem todo discurso tem o mesmo grau de informatividade, ou seja, de
interesse. Porque sendo as situações de interações verbais diferentes, os interlocutores
diferentes, os propósitos e as necessidades de comunicação diferentes, não há como
padronizar um grau de relevância e de informatividade em um texto.

3 Graus de informatividade

Beaugrande & Dressler (1974, p. 140-141) (apud Val, 2002, p. 31-32) apontam os
graus de informatividade numa escala de três ordens:
Primeira ordem - Pertencem a primeira ordem textos que apresentam um alto grau de
previsibilidade e, por conseguinte, baixa informatividade, como os clichês, as frases feitas, as
afirmações sobre o obvio. Para o autor, textos desse tipo, mesmo apresentando coerência e
coesão, tornam-se ineficientes, pois não despertam interesse. São textos, segundo Antunes
(2009, p.130), de fácil interpretação, pois não oferecem muitas possibilidades de
interpretações, praticamente todos que participam da mesma experiência de vida interpretam
da mesma maneira. Para o referido autor essa primeira ordem se faz presente em todos os
textos, pois, por mais imprevisível que seja o conteúdo de um texto seja, ela sempre traz algo
que já foi dito.
Segunda ordem – São de segunda ordem os textos que apresentam um equilíbrio entre
o original e o previsível, trazendo novidades sem provocar estranheza, o que garante uma boa
aceitabilidade. Segundo Antunes (2009, p. 131) é nessa segunda ordem que acontecem a
maioria das “atividades verbais – orais e escritas – das pessoas.” Pois, é comum fazer esse
equilíbrio entre a primeira e a terceira ordem, para apropriar o discurso a cada situação de
373

fala.
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Terceira ordem – Ficam na terceira ordem os textos que apresentam um elevado grau
de imprevisibilidade, que segundo Antunes, “desorientam, ainda que temporariamente, o
leitor.” Como exemplos dessa ordem, Val (2002, p. 132) aponta os textos de teorização ou de
exposição científica, as publicações da literatura, as reflexões mais complexas, os relatórios
especializados dentre outros. Trata-se de textos de difícil compreensão, que exigem maior
esforço de seu recebedor, por isso ganham mais interesse. Não obstante, são textos de uso
mais restrito.
Para os autores acima citados, em situações reais de comunicação, o processamento
dos textos se dá pelo alçamento das ocorrências de primeira ordem para os de segunda e do
rebaixamento das ocorrências de terceira ordem para a ordem média de informatividade, de
modo a atribuir sentido tanto a umas quanto a outras. E ressaltam ainda que o discurso em que
não acontece esse processamento, tende à rejeição, no primeiro caso, por ser pouco
informativo e desinteressante; no segundo caso, por ser de difícil compreensão.
É interessante ainda ressaltar que todo texto é um pouco informativo, pois sempre que
se produz uma situação comunicativa, nem tudo que se diz é totalmente previsto, tem-se
sempre algo a acrescentar, fato esse que pode ser constatado nas comunicações, quando
alguém conta um ocorrido a outrem, ele sempre acrescenta alguma coisa, “embora não seja
verdade”.
Para Antunes (2009), é natural que os textos com um maior grau de informatividade
despertam maior interesse e exigem maior empenho de quem o interpreta, pelo próprio fato de
se afastarem mais das produções típicas. Isso não significa que sejam melhores. No entanto,
não basta o texto trazer informações inusitadas, é importante que se tenha o cuidado para que
essas informações sejam necessárias e suficientes para a compreensão do leitor recebedor. A
esse despeito, Val (2002) comenta:

Avaliar a suficiência dos dados é examinar se o texto fornece ao recebedor


os elementos indispensáveis a uma interpretação que corresponda às
intenções do produtor, sem se mostrar, por isso, redundante ou rebarbativo.
Os dados cuja explicitação é necessária são aqueles que não podem ser
tomados como de domínio prévio do recebedor nem podem ser reduzidos a
partir dos conhecimentos que o texto ativa. [...] e acrescenta: “Avaliar a
informatividade significa, para mim, medir o sucesso do texto em levar
conhecimento ao recebedor, configurando-se como ato de comunicação
374

efetivo” (VAL, 2002, p. 32).


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A autora ressalta ainda que, além de apresentar novidades quanto às informações,
deve-se ficar atento aos elementos necessários a sua compreensão: o recebedor “(seus
conhecimentos prévios, sua capacidade de pressuposição e inferência, sua adesão ao discurso)
e o contexto (o que é texto em uma determinada situação pode não o ser em outra e vice-
versa).” (VAL, 2002, p. 34).

Conclusão

A partir da presente pesquisa fica constatado que a informatividade é um dos fatores


constitutivos da unidade textual, por isso não deve ser ignorada pelo professor na hora da
correção dos textos de seus alunos, o qual, na maioria das vezes, observa apenas desvios
gramaticais. O professor deve avaliar o que realmente o texto apresenta, isto é, o seu
conteúdo, a qualidade das informações contidas nele.
Uma vez feito isto, o educador deve analisar o grau de informatividade na situação
discursiva ao qual o texto se refere, levando em consideração todo o seu contexto de
produção, isto é, o que escreve, para quem está escrevendo, como escrever, qual o objetivo da
escrita, em que ambiente o texto vai circular, pois como foi visto, o que é novo e informativo
para um pode não ser para outro.
Não obstante o grau de informatividade de um texto é medido de acordo com o
conhecimento de mundo das pessoas a que ele se destina, portanto não existe texto sem
informação, existe sim, texto menos ou mais informativo, dependendo do seu interlocutor.
Portanto, espera-se que o professor reveja suas práticas docentes, pensando o texto de
seus alunos como uma unidade significativa, não apenas como um amontoado de sequências
linguísticas gramaticalmente “corretas”. E que as propriedades do texto, como a
informatividade (com suas variações de grau e de forma) passem a serem objetos de
exploração na sala de aula.

Referências

ANTUNES, I. Língua, texto e ensino: outra escola possível. São Paulo: Parábola, 2009.
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GERALDI, J. W. Portos de passagem. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997.


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LANGINESTRA, Maria Aparecida; PEREIRA, Maria Imaculada. A ocasião faz o escritor:
Caderno do professor: orientação para produção de textos/ crônicas. 3. ed. São Paulo: Cenpec.
(Coleção da Olimpíada de Língua Portuguesa), 2012.

PEREIRA, J. A curiosa força das formigas. Publicado em 04/03/2010. Disponível em


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ISBN: 978-85-7621-221-8
GT3 – ENSINO DE LÍNGUA MATERNA

A LÍNGUA EM USO: ANÁLISE DA VARIAÇÃO LINGUÍSTICA EM DOIS LIVROS


DIDÁTICOS

Antônia Janny Chagas Feitosa


Universidade do Estado do Rio Grande do Norte- (UERN)
Jordânia Kally Freitas Duarte de Assis
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN)
Introdução

O ensino de Língua Portuguesa em relação aos estudos relacionados a variação


linguística, torna-se muitas vezes um assunto problemático para os falantes nativos, pois
desde muito tempo a instituição escolar corresponde apenas ao uso da norma culta da língua.
Porém, com o avanço dos estudos, principalmente da sociolinguística, notamos que o ensino
da língua materna não pode se deter apenas ao uso da gramatica normativa.
Desde já, enfatizamos que as escolas devem levar em consideração o uso da língua
tanto na forma culta como também informal para que os alunos aprendam adequar o seu uso
com as diferenças culturais, regionais e sociais que existem na sociedade. É com base nesse
ponto de vista que este artigo discute o ensino de língua e suas variedades. Assim,
selecionamos dois livros didáticos para observar como está sendo abordada a variação
linguística na sala de aula.
Para tanto, foi preciso utilizar os pressupostos metodológicos dos autores: Marcos
Bagno, Mussalim e Camacho, os quais esclarecem que nenhuma língua é superior a outra, e
ainda apresentam algumas soluções de como desconstruir o preconceito linguístico.
Cabe ressaltar que a escola pode mudar esse preconceito por meio de discussões
acerca da variação linguística, disseminando novos valores, iniciando com o conhecimento
dos dialetos e seus usos, estimulando e conscientizando seus alunos sobre a importância de
conhecer e utilizar as variações da língua em suas diferentes situações sociais.

1 Fundamentação teórica da sociolinguística

A sociolinguística é o ramo da linguística que estuda a relação entre língua e


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sociedade, área que surgiu mais precisamente no ano de 1964, no congresso organizado por
William Bright na universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA), na qual estiveram
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presentes vários estudiosos como: John Gumperz, Einar Haugen, William Labov, Dell

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Hymes. Ao publicar os trabalhos discutidos no congresso sob o titulo “sociolinguística”,
Bright escreve o texto introdutório “As dimensões da Sociolinguística” caracterizando assim a
nova área de estudo. Portanto, a proposta de Bright para sociolinguística é que, a mesma
possa “demonstrar a covariação sistemática das variações linguística e social estabelecendo
assim as relações entre as variações linguísticas observáveis em uma comunidade e as
diferenciações existentes na estrutura social desta mesma sociedade”.
Segundo Alkmin (2005), a sociolinguística tem sua origem interdisciplinar e seu
objeto de estudo é a língua em seu uso real, levando em consideração as relações entre a
estrutura linguística e os aspectos sociais e culturais da produção linguística. Percebe-se então
que não se trata apenas de um estudo sobre os mesmos usos da fala, mas sobre as diferenças
existentes nas falas da comunidade. Por isso, essa ciência observa em seus estudos os aspectos
sociais e culturais que influenciam a linguagem verbal, buscando o porquê da diversidade e da
variação linguística existente na fala de uma comunidade.
Nesse sentido, Bright diz que o objeto de estudo da sociolinguística é a diversidade
linguística colocando conjuntos de fatores socialmente definidos com os quais a diversidade
linguística pode está associada a identidade social do emissor na qual observa os traços dos
dialetos das classes sociais e das falas feminina e masculina e o contexto social.

1.2 Estudos sobre a língua

De acordo Alkmim (2005), no século XIX, a conjuntura científica positivista da época


levou muitos pesquisadores a colocarem os estudos da linguagem no plano das ciências
naturais, excluindo, então, a perspectiva social, e é nessa mesma linha de pensamento que o
alemão Schleicher, linguista e estudioso das ciências naturais afirma que:

Cada língua é o produto da ação de um complexo de substâncias naturais no


cérebro e no aparelho fonador. Estudar uma língua é, portanto, uma
abordagem indireta a este complexo de matérias. Desta maneira, a
diversidade das línguas depende da adversidade dos cérebros e órgãos
fonadores dos homens, de acordo com suas raças. E associou a língua e raça
de maneira indissolúvel. Advogou que a língua é o critério mais adequado
para se proceder à classificação racial da humanidade (2005).
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Nesse sentido nota-se que Schleicher ao “relacionar a linguística com as orientações


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biológicas, percebe-se que tais considerações, se impõem na concepção de ordem social e

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cultural. Porém, Alkmim deixa bem claro que é a partir dos anos de 1930, que alguns
linguistas tratam de pensar a questão do social no campo dos estudos linguísticos” (2005,
p.24). A autora ainda diz que: “Não caberia, aqui, enumerar todos esses estudiosos, mas uma
breve referência a alguns nomes, ligados ao contexto europeu, impõem-se: Antoine Meillet,
Mikhail Bakhtin, Marcel Cohen, Emile Benveniste e Roman Jakobson” (ALKMIM, 2005, p.
24).
Para Saussure, a língua é um fato social, no sentido de que é um sistema convencional
e segundo o seu aluno Meillet, a língua é inseparável da história da cultura e da sociedade, e
diante dessa perspectiva surge Bakhtin (1929), com suas teorias que vão ao contrário das
ideias de Saussure, pois para esse linguista o centro dos estudos linguísticos estão ligados com
a comunicação social em que a língua é constituída pelo fenômeno social da interação verbal
realizada através da enunciação ou das enunciações.
O linguista russo Jakobson (1960) ao privilegiar o processo comunicativo, o autor
também privilegia os fatores funcionais da linguagem e identifica ainda os fatores
construtivos de todo ato de comunicação verbal: o remetente, a mensagem, o destinatário, o
contexto, o canal e o código.
Em 1956, o francês Marcel Cohen assume o postulado saussureano de que é preciso
separar aspectos internos e aspectos externos no estudo das línguas. Cohen ainda remete que o
objeto de estudo sociológico deve está relacionado ao estudo das relações entre divisões
sociais e as variedades de linguagem, já que permite abordar temas como: a distinção entre
variedades rurais, urbanas e de classe sociais, os estilos de linguagem (variedades formais e
informais), as formas de tratamento, a linguagem de grupos segregados (jargão de estudantes
de marginais, de profissionais).

2 O ensino de língua e suas variedades

Marcos Bagno (1961) deixa bem claro algumas possíveis soluções de como
desconstruir o preconceito linguístico, mesmo diante das implicações sociais, politicas,
econômica da língua. O teórico tenta romper com a ideia preconceituosa de que a língua culta
padrão deve ser considerada como a única, assim, o autor faz uma crítica ao mito: “É preciso
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saber gramática para falar e escrever bem”, para Banho não existe nenhuma uma língua
superior à outra, pois tudo vai depender de quem diz o quê, quem, como, quando, onde, por
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quê e visando que efeito.

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Cabe ressaltar que o ensino voltado para a variação linguística requer muito cuidado
quando abordado na sala de aula, pois qualquer deslize na atitude de um docente pode trazer
uma série de consequências ao comportamento de alunos em termos de exclusão por meio da
linguagem, pois como aponta o autor Marcos Bagno a variação linguística está ligada aos
aspectos de natureza social, cultural, política e humana. Nesse sentido, devemos observar ao
que está acontecendo no espaço pedagógico em termos de ações que podem contribuir para
aumentar mais ainda o preconceito linguístico. Pois, como aponta o autor o preconceito está aí
firme.
Diante dessa empreitada, as escolas deveriam terem acesso aos textos dos linguistas
Bakhtin, Mussalim, Bagno, Camacho e, seria de suma importância que as considerações
feitas por estes estudiosos fossem inseridas na prática, a fim de amenizar o preconceito
linguístico, visto que como afirma Camacho (2011).

O modo como a língua é ensinada na escola prática tradicionalmente o


modelo da deficiência. O principal pressuposto da tradição normativa é que
cabe a escola o papel de compensar supostas carências socioculturais.
Decorre desse pressuposto que a principal tarefa do ensino é substituir a
variedade não-padrão pela padrão. A esse modo de existência, a
Sociolinguística propôs uma alternativa fundamental, segundo a qual
variações de linguagem não devem passar por um crivo valorativo, já que
não são mais que formas alternativas que o sistema linguístico põe à
disposição do falante (CAMACHO, 2011, p. 69).

É com base nessa linha de pensamento que Bagno considera importante as escolas se
conscientizarem que todo falante de uma língua é um usuário competente dessa língua, e
dessa forma deve-se aceitar a ideia de que não existe erro de português mas existe apenas o
uso ou alternativas de uso em relação á regra única proposta pela gramática normativa, nota-
se ainda que não se pode confundir erro de português com um simples erro de ortografia pois
a ortografia é artificial e ao contrário da língua que é natural.
Bagno, ainda afirma que é necessário reconhecer que tudo o que a gramática
tradicional chama de erro é na verdade um fenômeno que tem uma explicação perfeitamente
demonstrável, porém se algumas pessoas não seguem a língua prescrita pela gramatica
tradicional pode-se perceber que o problema não está com a regra tradicional e não com as
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pessoas, que são falantes nativos. Nada é por acaso e nesse sentido percebe-se que toda língua
muda e varia assim como a língua portuguesa não vai nem bem e nem mal, e sendo assim
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deve-se respeitar a variedade linguística de toda e qual quer pessoa, visto que ela nos constitui

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enquanto seres humanos, ou seja, nós somos a língua que falamos e uma vez que a língua está
em tudo e tudo está na língua.
Pode-se perceber que a língua é heterogênea, diante disso, cabe a escola esclarecer
para o aluno que a língua culta padrão (oral ou escrita) deve ser considerada apenas como
mais uma das línguas contidas no uso das variações linguísticas, o que implica dizer que o
professor só pode considerar que uma fala é correta ou errada, de acordo com o ambiente em
que os falantes estão inseridos, o interlocutor e qual a finalidade.
Dessa maneira, é preciso que os professores esclareçam para os seus alunos que
quando as pessoas não seguem a gramática tradicional, para isto tem uma justificativa, visto
que quando os falantes de uma língua nativa digam “prantio” “pranalto” isto ocorre pela
questão de região e que tal fenômeno acontece porque os sons representados são parecidos na
qual são produzidas pelo aparelho fonador de modo semelhante e nessa perspectiva percebe-
se que existem razoes de ordem filosófica, que tem a ver com a própria configuração do nosso
organismo.
Os profissionais em educação ao desenvolverem o Programa Nacional do Livro
Didático (PNLD), têm como intuito contribuir para que esses materiais entregues nas escolas
tenham boa qualidade para o ensino e aprendizado do aluno. Porém, Bagno (2007, p. 119)
deixa bem claro que “o tratamento da variação linguística nos livros didáticos continua sendo
um tanto problemático”. Diante dessa perspectiva, no tópico a seguir mostraremos como está
sendo abordado essa temática a partir de dois livros didáticos.

3 Análise sobre o uso da variação linguística em dois livros didáticos

As variedades do português que mais se aproximam da norma-padrão são prestigiadas


socialmente. É o caso das variedades linguísticas urbanas, faladas nas grandes cidades por
pessoas escolarizadas e de renda mais alta. Outras variedades faladas em lugares distantes dos
grandes centros, por pessoas de baixa escolaridade, são menos prestigiadas e, por isso,
frequentemente aqueles que as falam são vítimas de preconceito, assim, é necessário que a
variedade linguística seja mais explorada nas aulas de Português.
381
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3.1 Análise do livro “Português Linguagem”

A seguir temos alguns exemplos que mostram como o Livro Didático tem abordado a
variação linguística. O primeiro exemplo foi tirado do livro “Português Linguagem” de Cereja
e Cochar (2012), que apresenta um fragmento em que a norma culta é prestigiada.

Exemplo 1:

Essa tira narrativa,é o exemplo que o livro traz sobre a variação linguística.
Percebemos que esse exemplo relata uma situação do cotidiano, em que uma família se
organiza para ir à uma festa de casamento. Os pais bem vestidos e prestes a saírem de casa, se
deparam com o seu filho chamado Jezo, vestido de forma inadequada ao ambiente de festa, ou
seja, com roupa do dia a dia.
Nesta tira de Adão Iturrusgarai, percebemos que durante toda a narrativa, são
apresentados o pai, a mãe e o filho (Jezo), que correspondem aos personagens da tira. Essa
narrativa é distribuída em quatro quadrinhos. No primeiro quadrinho, os três personagens são
apresentados em um mesmo ambiente da casa, na sala, o pai e a mãe vestidos de maneira
formal, e Jezo com uma roupa do cotidiano. Ainda neste quadro, o pai é apresentado por meio
da imagem visual e da parte verbal do balão, insatisfeito com a forma como o filho está
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vestido.
No segundo quadrinho, a mãe permanece da mesma forma que no primeiro, sem se
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colocar verbalmente na situação. O pai é apresentado dando uma ordem para que o filho fosse

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trocar de roupa, e diz em um outro balão, que o filho parece se vestir daquela forma de
propósito, deixando implícito que o filho sabe que se deve adequar o vestir aos ambientes
sociais. O personagem do pai é reconstruído, quando fixa o olhar no filho, enquanto este se
retira da sala. Jezo também é reconstruído, porque é mostrado saindo da sala.
No terceiro quadrinho, o pai e a mãe são apresentados da mesma forma que no quadro
anterior, e Jezo já não aparece.
No quarto e último quadrinho, a mãe permanece do mesmo jeito que nos quadros
anteriores, e o pai é novamente reconstruído, pois é apresentado com uma pequena mudança
nos braços, que são mostrados baixos, como um gesto de espanto diante do filho que aparece
vestido da mesma forma, com exceção da gravata. O filho também é reconstruído, aparece
chegando na sala com o mesmo vestuário e o acréscimo de uma gravata, indicando a tentativa
de adequar a sua roupa do cotidiano ao ambiente formal.
Em todo o exemplo notamos de forma implícita, que há uma comparação entre o uso
da língua e a troca de roupa, em outras palavras, assim como em cada situação social devemos
ter uma roupa específica para o ambiente, temos também que adequar o uso da língua de
acordo com os diferentes contextos comunicativos.
É importante ressaltar, que durante toda a tira narrativa há uma predominância na
norma culta, e isso é perceptível por meio da fala do personagem, representado pelo pai. Na
tira não há outros exemplos de falares regionais, culturais, e de classes sociais, ao contrário,
há uma valoração da variação culta, em detrimento das outras, que acaba prejudicando o
conhecimento dos alunos sobre as variadas formas de usar a língua, bem como a
aprendizagem do domínio e adequação da linguagem aos diferentes contextos.

3.2-Análise do livro “Português” (2017)

No livro “Português” de Costa, Marchetti e Soares (2017), nota-se através das


atividades e de alguns textos selecionados, que os autores discutem de forma bem esclarecida
questões relacionadas a língua e suas variedades, enfatizando as variedades regionais,
situacionais e sociais.
Exemplo 1:
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No primeiro exemplo, encontramos uma importante discussão sobre o conceito de
variação linguística e de variedade regional, esclarecendo que em cada região existem as suas
variações específicas. Ainda nesse exemplo, percebemos que os autores trazem também uma
abordagem sobre a norma culta, mas não como variação melhor do que as outras, pelo
contrário, que devido ao momento histórico, social e político, que a norma culta passou,
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acabou sendo a variação escolhida como padrão para os textos científicos, e oralidade em
ambientes formais.
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Exemplo 2:

No segundo exemplo, referente as variedades situacionais, percebemos que de início,


os autores trazem um pequeno trecho de um conto de Luís Câmara Cascudo, para
exemplificar como exemplo de variedades de situações. Nesse trecho do conto, encontramos
algumas expressões informais, como “correndo o mundo”, que mostra a presença da
linguagem coloquial no texto. Como esse fragmento é de um texto cujo gênero é o popular, a
linguagem informal está adequada ao estilo.

Exemplo3:

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Nesse exemplo, encontramos alguns comentários sobre a importância de adequar a
linguagem à situação de uso, e que há momentos em que a linguagem informal é a mais
apropriada, como em casos de conversas do cotidiano, entre familiares, e encontros com
amigos.

Exemplo 4:

No último exemplo, os autores do Livro Didático trazem uma discussão sobre a


diferença entre linguagem formal e informal, mostrando para o aluno, que a linguagem que
ele aprende na escola pode ser utilizada em situações que exigem formalidade, na escrita,
temos o exemplo dos textos científicos, e na oralidade, a apresentação de um projeto escolar,
por exemplo. Enquanto que em alguns momentos, como as conversas à mesa, de salões , é
mais adequado a linguagem informal.

Considerações finais

Com base na pesquisa realizada e no objetivo deste trabalho, que era compreender
como a variação era abordada no livro didático, conclui-se que, livro “Português Linguagem”
de Cereja e Cochar (2012), embora tente discutir sobre a variação linguística, essa discussão
se limita ao ensino da variação culta, enquanto que as outras formas de falar a língua são
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deixadas de lado, como se não fossem importantes para as diferentes situações comunicativas
do aluno.
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No entanto, no livro “Português” de Costa, Marchetti e Soares (2017), há uma
discussão de suma importância sobre as várias formas de usar a língua, enfatizando através de
exemplos, que não há uma maneira certa ou errada de falar, mas que deve se adequar a língua
as diferentes situações que estivermos inseridos.
De acordo com o que foi discutido ao longo dessa pesquisa, notamos que houve um
aperfeiçoamento nos Livros Didáticos do 6º ano, pois o modelo atual traz uma abordagem
mais consistente, no que diz respeito, a variação linguística. Com isso, propomos a inovação e
a criatividade por parte dos professores, quanto ao ensino da variação linguística proposta
pelo livro didático, pois o seu conteúdo nem sempre se mostra suficiente para se trabalhar
com essa temática.
Portanto, a variação linguística não é uma maneira errada de se falar, mas sim, um
fenômeno linguístico, que deve ser tratado nas aulas de português com respeito, amenizando
assim, o preconceito linguístico. Nesse sentido, o melhor falante não é aquele que utiliza
apenas uma única variação, mas aquele que sabe adequar a fala ou escrita de acordo com o
interlocutor e o ambiente em que está inserido.

Referências

BAGNO, Marcos. Preconceito Linguístico: o que é, como se faz. – Edições Loyola, São
Paulo, 1999.

BAGNO, Marcos. Nada na língua é por acaso: por uma pedagogia da variação linguística. –
São Paulo: Parábola Editorial, 2007.

BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. In: ______. Estética da criação verbal.


Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

CAMACHO, R. G. Sociolinguística ─ parte II, In: MUSSALLIM, F.; BENTES, A. C.


(orgs).Introdução à linguística: domínios e fronteiras. V.1 São Paulo: Cortez, 2011.

COSTA, Cibele Lopesti; MARCHETTI Greta; SOARES, Jairo J. Batista. Português, 6º anos
finais: ensino Fundamental. 4º ed.- São Paulo: Edições SM, 2015.
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GT3 – ENSINO DE LÍNGUA MATERNA

POR QUE DISCUTIR LEITURA EM AULAS DE LÍNGUA MATERNA?

Jose de Paiva Rebouças (UERN)


Regiane S. Cabral de Paiva (UERN)

Introdução

“Aprendemos a ler lendo”36. Essa frase nos causa inquietação ao pensarmos no


contexto de ensino de língua materna. Possivelmente digam que trabalhos acerca da leitura
em sala de aula seja um tema ultrapassado e, por isso, estejam fadados a uma questão menor.
Mas, o que ainda há de se falar sobre isso? Não ousamos com esta discussão bibliográfica
“receitar” a solução para este problema, pretendemos apenas elencar algumas proposições
acerca do ato de ler; do ensino da leitura e suas funções; entre outras questões, para então
discorrermos algumas reflexões que nos proporcione um novo olhar sobre o verdadeiro lugar
da leitura nas aulas de língua materna. Entendermos a leitura como mecanismo de interação
social e pessoal, permitindo que o leitor faça uma relação do seu contexto com o que está
sendo desvendado no texto. Enquanto não houver uma relação das atividades de leitura com
seus reais propósitos, elevando a compreensão do aluno, não teremos como diminuir a
aversão pela leitura.

1 Quando começamos a ler?

A leitura do mundo precede sempre a leitura da palavra e a


leitura desta implica a continuidade da leitura daquele.
Paulo Freire

Começamos a ler bem antes de nos achegarmos aos escritos. Ao percebemos o que nos
rodeia, com quem convivemos e como interagimos com tudo isso, estamos desenvolvendo a
prática da leitura. O ato de ler não está ligado apenas à tarefa de abrir um livro, uma revista ou
um jornal e decifrar, a duras penas, os seus signos e os mecanismos gramaticais impressos no
papel em forma de texto. A leitura requer uma atenção superior porque vai além da escrita.
388

Ela começa muito cedo, bem antes de o homem ter às mãos os primeiros manuais de
alfabetização. É na interação que o indivíduo realiza suas primeiras leituras; convivendo com
Página

36
(SMITH, 1997, p. 121).

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o outro e com a natureza ele desenvolve seus mecanismos sensoriais que lhe permitirão
decodificar não apenas os elementos que compõem o mundo (animal, mineral e vegetal), mas
as emoções e intenções de outrem sobre ele próprio. Só a partir desses entendimentos que
constituem parte da essência humana que o indivíduo pode ser convocado ao ato da
alfabetização.
Paulo Freire (2009), em seu livro A Importância do Ato de Ler, contextualiza com sua
própria experiência essa relação do mundo com a leitura. “Na medida, porém, em que me fui
tornando íntimo do meu mundo, em que melhor o percebia e o entendia na ‘leitura’ que dele
ia fazendo, os meus temores iam diminuindo” (FREIRE, 2009, p. 15). O ato de ler é, portanto,
um processo contínuo e inesgotável que se faz a todo o momento e que se constitui como ação
contundente da construção intelectual, sociológica e política do indivíduo. A leitura em Paulo
Freire nasce como um processo biológico que o acompanha desde os primeiros sentidos de
vida, desde a infância, e o acompanha por toda sua trajetória, principalmente a de educador,
onde ele vai lutar para destruir muitos dos mitos sobre os processos da leitura e educação. Isso
significa também que o ato de ler é também um ato político questão que faz o autor questionar
aqueles que querem se apresentar como sendo um observador neutro, um participante parcial
do processo de formação e entendimento dos atos constitutivos do processo educacional, pois
em seu entendimento:

O mito da neutralidade da educação, que leva à negação da natureza política


do processo educativo e a tomá-lo como um quefazer puro, em que nos
engajamos a serviço da humanidade entendida como uma abstração, é o
ponto de partida para compreendermos as diferenças fundamentais entre uma
prática ingênua, uma prática astuta e outra crítica. (FREIRE, 2009, p. 23)
O estudo literário precisa estar baseado no texto e só então após a leitura
trabalhar a questão do gênero – tão esquecido no trabalho em sala de aula -
as condições de produção/recepção em que o texto foi produzido, outras
obras do autor e as características presentes na obra que a relacionam com
determinado período literário. Todas essas possibilidades de estudos devem
ser abordadas a partir da leitura do texto se realmente quisermos formar
leitores críticos (MARTINS, 2010, p. 9).

Não é à toa que muitos jovens enfrentam grande dificuldade quando chegam à
universidade por não trazerem dos ensinos anteriores a prática da leitura. Isso mostra que a
389

educação ainda não conseguiu mudar sua prática formalista e, embora possua muito mais
recursos técnicos e científicos, mantém viva o que Maria Helena Martins chama de
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pedagogia do sacrifício, que ensina por ensinar sem responder as questões necessárias para
uma compreensão sobre a função da leitura, nem o seu papel na formação do indivíduo.

3 Leitura e ensino

A leitura é uma atividade de encontro.


Ângela Kleiman

Iniciamos este terceiro momento, retomando o discurso de Paulo Freire quando diz
que a leitura do mundo precede sempre a leitura da palavra. Essa postura, de perceber no
aluno o seu conhecimento prévio, de que traz consigo uma carga considerável de
conhecimento empírico, infelizmente nem sempre é observada em parte dos professores de
língua portuguesa que trabalha a leitura a partir do texto. A leitura do mundo foi sempre
fundamental para a compreensão da importância do ato de ler, de escrever ou de reescrevê-lo
e transformá-lo através de uma prática consciente, mas quando professor desvaloriza a
bagagem de mundo que o aluno traz consigo, ele desperdiça um conhecimento primordial no
processo de ensino-aprendizagem, pois a relação do aluno com o mundo é um dos aspectos
centrais do processo de alfabetização que deveria ser objeto de partida dos alfabetizadores, em
qualquer grau de ensino. Agindo dessa forma, nos ensina Paulo Freire, coloca o professor na
equivocada postura de salvador, de detentor de todo o conhecimento, o que fortalece um
elitismo simbólico responsável pelo distanciamento do aluno-professor. Por isso, o autor
combate esta prática, certo de que:

Este não pode ser o modo de atuar de uma educadora ou de um educador


cuja opção é libertadora. Quem apenas fala e jamais ouve; quem “imobiliza”
o conhecimento e o transfere a estudantes, não importa se de escolas
primárias ou universitárias; quem ouve o eco apenas de suas próprias
palavras, numa espécie de narcisismo oral; [...] não tem realmente nada que
ver com libertação nem democracia. Pelo contrário, quem assim atua e assim
pensa, consciente ou inconscientemente, ajuda a preservação das estruturas
autoritárias (FREIRE, 2009, p. 26 e 27).

É importante destacar que o conhecimento anterior à escola não se dá apenas na


leitura, mas em muitos outros contextos. “Os conhecimentos do leitor são chamados de
390

conhecimentos prévios. O conhecimento prévio é a informação que o leitor possui em relação


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ao sistema de escrita, à língua, às estruturas textuais, à familiaridade com o assunto do texto e

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ao seu conhecimento de mundo” (BARBOSA, 2004, p. 21). É preciso, portanto, conceber a
realidade de que, além de representante, o educador pode intervir na sociedade como atuante,
tornando-o assim um cidadão participante. Por isso, propomos aqui que seja rompida a
barreira do tradicionalismo e que o professor de língua materna converta o ato de ler numa
prática efetiva e que este se produza de maneira contextualizada. Como bem menciona Saveli
(2007, p. 112 e 113), é preciso “ultrapassar as práticas de leitura na escola que tomam a
escrita como um sistema de transcrição do oral, de codificação e de notação, e a leitura como
forma de decodificação”, para depois não ficar se perguntando “por que os alunos não
aprendem a ler. Por que os alunos não se interessam pela leitura”.
Neste sentido, o grande desafio da escola é romper com as práticas de leitura onde o
ato de ler se constitui como um ato submetido a mecanismos de decifração. “Ler é mais do
que operar uma decodificação de palavras e de frases, é participar das representações do autor
do texto lido e mergulhar em representações equivalentes”. (SAVELI, 2007, p. 113). Outra
forma um tanto arbitrária é conceber o ato de ler como uma habilidade inata. Para Antunes
(2009), o gosto pela leitura é aprendido por um estado de sedução, de fascínio, de
encantamento. Para isso, precisa ser estimulado, exercitado e vivido. Nesta linha, Smith
(1997) afirma que para aprender a ler é necessário ajudar as crianças a ler. Para isso é
necessário considerar dois requerimentos básicos: disponibilidade de materiais interessantes,
que tenham sentido para o aluno; e de um professor/leitor compreensivo que se faça de guia.
Olhando desta maneira, acreditamos caber ao professor reestabelecer os conceitos
pedagógicos de suas práticas, criando mecanismos que ofereçam ao aluno de primeira leitura
o direito de escolher aquilo que ele gostaria de ler, destituindo-o de obrigações subversivas
que o transformam em um inimigo dos livros. Afinal, acreditamos que o comportamento do
professor em face de sua prática pedagógica faz a diferença. Logo, “o professor tem dupla
responsabilidade de elaborar as suas intervenções pedagógicas na sala de aula e de trabalhar
com os próprios alunos no desenvolvimento de condições externas que lhes permitam ser
bem-sucedidos”. (MARTINS, 1996 apud SAVELI, 2007, p. 121-122).
Silva (1993, apud Saveli, 2007) aponta para dois princípios básicos na construção de
uma nova pedagogia da leitura: o primeiro vem dos procedimentos didático-pedagógicos que
devem partir, por parte do professor, do conhecimento, das circunstâncias de vida dos alunos,
391

dos seus familiares e das condições concretas da escola; o segundo diz respeito às orientações
das práticas de leitura no interior das salas de aula que deveria combater a sacralização dos
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textos e a visão bancária que ainda estão muito presentes. Barbosa (2004) ressalta também a

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necessidade de se levar em consideração que o indivíduo adquire experiência com o dia-a-dia,
traçando suas teorias, previsões e hipóteses, daí a importância de respeitar a natureza da
prática social do leitor. Quando o professor separa o conhecimento da prática, ele desmotiva o
aluno tornando-o dependente deste modelo tradicional de ensino.
Como citamos anteriormente, a formação educativa do indivíduo não é função apenas
da escola, mas primeiramente da família, porém seria contraditório cobrar essa compreensão
sem antes saber se o Estado permitiu às famílias a condição de contribuir para essa construção
socioeducativa. Na escola, entendemos que o professor exerce a função do Estado, pois deve
possuir autonomia e o poder simbólico de mediar o ensino e a percepção do mundo a partir de
suas experiências, por isso cabe a ele elaborar estratégias que motivem seus alunos a ler. É ele
quem tem o contato, quem constrói as relações e quem serve de espelho, tendo como missão
constante o processo educativo. “E, já que a educação modela as almas e recria os corações,
ela é a alavanca das mudanças sociais” (FREIRE, 2009, p. 28).
É verdade que nem sempre o professor dispõe de uma estrutura física ou de
equipamentos que lhe permita assegurar novos mecanismos de interação com o aluno. Ainda
assim, compreendemos que a ausência desses recursos não pode ser justificativa para a
elaboração de estratégias motivadoras. Os problemas existem, são palpáveis e inconvenientes,
mas o professor tem uma missão e precisa cumpri-la. É aqui onde podemos identificar a clara
postura política do professor que precisa ter a capacidade de se insurgir e vencer esses
obstáculos, mas sem fazer vista grossa para eles. Ao contrário, pode expor aos alunos, não
como discurso de revolta, limitante, mas como argumento para a defesa da escola e,
consequentemente da sociedade, vez que a escola é um reflexo da sociedade. O que não se
concebe é o professor que tenta se apresentar com postura de neutralidade, coisa que não
conseguirá, pois:

[...] é tão impossível negar a natureza política do processo educativo quanto


negar o caráter educativo do ato político [...] é nesse sentido também que,
tanto no caso do processo educativo quanto no ato político, uma das questões
fundamentais seja a clareza em torno de a favor de quem e do quê, portanto
contra quem e contra o quê, fazemos a educação e de a favor de quem e do
quê, portanto contra quem e contra o quê, desenvolvemos a atividade
política (FREIRE 2009, p. 23).
392

Esta postura do professor é o que lhe define em sala de aula e o que lhe permite criar
Página

mecanismos eficientes no processo de mediação educadora. O ato de ler, como primeira ação

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política de libertação, é um desses argumentos favoráveis ao trabalho discente, pois quando
conhecemos os propósitos daquilo que fazemos, tendemos a fazê-lo melhor. Neste sentido, o
professor pode utilizar a leitura a partir de dois pontos antagônicos, conforme nos coloca
Martins (1994), para sintetizar as inúmeras concepções sobre a leitura: 1) como decodificação
mecânica de signos linguísticos, por meio de aprendizado estabelecido a partir do
condicionamento estímulo-resposta (perspectiva behaviorista-skinneriana); 2) como processo
de compreensão abrangente, cuja dinâmica envolve componentes sensoriais, emocionais,
intelectuais, fisiológicos, neurológicos, tanto quanto culturais, econômicos e políticos
(perspectiva cognitivo-sociológica).
Como se percebe, é neste segundo ponto que se estabelecem os conceitos lineares e
inerentes para o leitor, visto que, como dito antes, a leitura ultrapassa a condição do texto e
começa bem antes do primeiro contato com ele, o que nos leva a refletir sobre o tecido de
inter-relações que constitui no funcionamento do ato de ler. Martins (1994) propõe pensá-lo
através de três níveis básicos de leitura, visualizados como: sensorial, emocional e racional.
A leitura sensorial é aquela que se faz antes de qualquer contato com a palavra escrita, pois
está relacionada com os nossos sentidos e incita-nos ao prazer e à descoberta do que nos
agrada ou desagrada. É a nossa primeira leitura, a que nos remete às cores, aos cheiros, aos
objetos, aos sons, e permite-nos identificar o mundo e até nós mesmos.
A leitura emocional, como o próprio nome sugere, remete aos sentimentos, ao que é
liberado a partir de situações, pessoas, temas, caracteres e nos chega muito mais como um
acontecimento do que como um objeto. A partir destes dois níveis, o professor tem em mãos o
momento da pré-leitura, onde vai usar da sua criatividade, através de diferentes recursos, para,
antes de chegar às vias de fato do texto escrito, envolver o aluno no despertar dos seus
sentidos e das suas emoções. Tudo isso seria uma abertura para o terceiro ponto, ou nível de
leitura: o racional, que apresenta um caráter reflexivo e dialético, ou seja, “Ao mesmo tempo
em que o leitor sai de si, em busca da realidade do texto lido, sua percepção implica uma volta
à sua experiência pessoal e uma visão da própria história do texto” (MARTINS, 1994, p. 66).
O que se percebe é que muitas vezes o professor valoriza a leitura racional em detrimento das
duas anteriores, o que é lamentável, levando em conta a necessidade de valorizar o
conhecimento que o aluno traz consigo antes mesmo de entrar em sala de aula. Inserir os dois
393

primeiros níveis antes do racional configura o seu caráter dialético que trata de unir o
conhecimento intrínseco do aluno com o novo que se lhe é apresentado através do texto.
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É nisto que nós professores precisamos ter consciência: que é pela leitura que se tem
acesso a “novas ideias, novas concepções, novos dados, novas perspectivas, novas e
diferentes informações acerca do mundo, das pessoas, da história dos homens, da intervenção
dos grupos sobre o mundo, sobre o planeta, sobre o universo” (ANTUNES, 2009, p. 193). Por
isso esta autora defende que a leitura respeita o princípio democrático inerente a todos, pois
todos têm direito à informação e o exercício da partilha do poder. Além do mais, a leitura se
torna fundamental para o desenvolvimento da sensibilidade artística e do gosto estético por
meio dos textos literários. Estes tipos de texto, segundo Irandé Antunes, possibilita “o contato
com a arte da palavra, com o prazer estético da criação artística, com a beleza gratuita da
ficção, da fantasia e do sonho, expressos por um jeito de falar tão singular, tão carregado de
originalidade e beleza” (ANTUNES, 2009, p. 200).
Observando tudo isso, compreendemos que leitura e ensino caminham de mãos dadas,
pois o conhecimento advém também do ato de ler e é preciso que nós professores entendamos
que esta atividade precisa ser estimulada, exercitada e vivida. Conforme nos alerta Antunes
(2009), o exercício da leitura mobiliza alguns conhecimentos: o linguístico (gramática, léxico,
segmentação de unidades menores); conhecimento textual (tipos e gêneros; estratégias e
recursos de sequencialização; recursos de coesão, da coerência; padrões de referenciação) e
conhecimento do mundo. E isso é mais do que suficiente para termos clareza quanto a
importância do ato de ler, não apenas como exercício complementar, mas como elemento
constitutivo do processo educativo escolar, como ponto de partida, mas também de chegada.

4 Por que discutir leitura, afinal?

Como observamos durante toda esta caminhada, a leitura é um lugar de privilégio


dentro da disciplina de Língua Portuguesa e, por que não dizer dentro da Literatura e das
demais disciplinas curriculares. A leitura aguça os sentidos, fomenta a fantasia, facilita e
promove as interações, a participação, torna a comunicação mecânica em consciência;
acrescenta valores, sensibilidade estética, fomenta a capacidade crítica; enriquece o léxico,
atua nas tradições, nas culturas dos povos, na gramática, mas é também divertimento,
separação, anistia, permissão e rebeldia, além de possibilitar o autoconhecimento e a
394

autoavaliação.
A leitura não deve ser vista como algo preso ao que foi escrito, e sim como
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mecanismo de interação social e pessoal, permitindo ao leitor fazer uma relação do seu

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contexto com aquilo que está sendo desvendado no texto. Essa teia de revelações e construção
de sentido é o que possibilita a sua libertação para o mundo. Enquanto não houver uma
relação das atividades de leitura com seus reais propósitos, elevando a compreensão do aluno,
não teremos como diminuir a aversão pela leitura. É preciso ultrapassar os limites do Livro
Didático, romper com exigências pedagógicas tradicionais e começar a fazer parte, não só do
aprendizado, mas da vida cotidiana de nossos aprendentes como exercício de conhecer o seu
mundo e dele tirar subsídios essenciais para a missão do ensino e da aprendizagem.
No contexto escolar, a mão é a do professor, assim como a decisão, e caberá a ele
oferecer os melhores caminhos. Pelo contexto da leitura, o profissional poderá oferecer ao
educando os seus valores mais humanos e mediar um sentido mais amplo de vivência pela
experimentação do outro e não limitá-lo apenas a atividades de decodificação e exploração do
vocabulário. Aprisionar a leitura é negar-se a si mesmo, o que é também negar ao aprendiz o
direito de aprender com liberdade e capacidade crítica.

Referências

ANTUNES. I. Língua, texto e ensino: outra escola possível. São Paulo: editora parábola,
2009.

BARBOSA, Déborah M. de Sá. O ensino de leitura: ampliando a habilidade leitora dos


alunos. In: ALEMIDA, N. & ZAVAM, A. A Língua na sala de aula- questões práticas para
o ensino produtivo. Fortaleza: Perfil Cidadão, 2004.

BLOOM, H. Como e porque ler. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler. 50. ed. São Paulo: Cortez, 2009.

MARTINS, M. H. P. O que é a leitura. 19. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.

MARTINS, S. F. Os desafios do professor no ensino de literatura: do nível médio ao superior.


In: Colóquio Nacional de Professores de Metodologia do Ensino de Língua Portuguesa e de
Literatura, 7, 2010, Pau dos Ferros – RN. Anais... Mossoró: Queima-Bucha, 2010. p. 1-10.

SAVELI. E. de L. Por uma pedagogia da leitura. In: BAGNO. M. et al. Práticas de


letramento no ensino: leitura, escrita e discurso. São Paulo: Parábola editorial; Ponta
Grossa/PR: UEPG, 2007.
395

SOLÉ. I. Estrategias de lectura. 9. ed. Barcelona: Editorial Graó, 1999.

SMITH, F. Para darle sentido a la lectura. 2. ed. Madrid: Visor, 1997.


Página

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GT3 – ENSINO DE LÍNGUA MATERNA

LEITURA E PRÁTICAS DISCURSIVAS ÉTNICO-RACIAIS EM AULAS DE


LÍNGUA PORTUGUESA

Lúcia de Fátima Araújo dos Santos (UERN)


Meiridiana de Oliveira Queiroz (UERN)
Francisca Maria Ramos Lopes – Orientadora (UERN)

1 Considerações iniciais

Convidados a refletir, discutir e traçar metas a serem atingidas para melhorar o Índice
de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) da escola, acerca dos inúmeros problemas
enfrentados por todos os envolvidos no processo educacional, geralmente pautamos nossas
discussões nos baixos índices de rendimento dos alunos, comprovados com os resultados
obtidos pela aplicação de avaliações internas e externas em questões relacionadas com leitura,
compreensão, interpretação e raciocínio lógico, e acabamos excluindo temáticas
extremamente relevantes e significantes associadas à sexualidade, identidade, racismo,
preconceito, entre outras.
Não estamos afirmando que aquelas deficiências não mereçam olhares, ações especiais
e nossos esforços em encontrar meios para mudar o atual cenário da educação nacional. O que
pretendemos colocar na pauta reflexiva está relacionado a duas questões: primeiramente,
nossa preocupação com as atividades de leitura praticadas pelas escolas. Em segundo lugar,
mas tão relevante quanto a questão anterior, as práticas de discurso e ações racistas, resultante
de um modelo de educação eurocêntrica perpetuada em nossas instituições escolares.
Baseado nesse pensamento, este trabalho foca em um projeto com a temática da
diversidade étnico-racial com o objetivo de desenvolver práticas de leitura utilizando contos
de temática africana, promovendo debates e reflexões para identificar e valorizar a cultura do
povo negro. A escola é um espaço de transformação, construção e afirmação de identidades.
Munanga (2005, p. 17) afirma que:

Não existem leis no mundo que sejam capazes de erradicar as atitudes


preconceituosas existentes nas cabeças das pessoas, atitudes essas
396

provenientes dos sistemas culturais de todas as sociedades humanas. No


entanto, cremos que a educação é capaz de oferecer tanto aos jovens como
aos adultos a possibilidade de questionar e desconstruir os mitos de
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superioridade e inferioridade entre grupos humanos que foram introjetados


neles pela cultura racista na qual foram socializados.

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Partindo de tal entendimento justifica-se a importância de criarmos um ambiente
escolar permeado de leituras diversificadas, principalmente de um amplo contato com textos
que remetam as raízes da formação do nosso povo, como meio de ajudar a transformar o
pensamento da sociedade brasileira, ainda carregado de ideias preconceituosas em relação à
raça negra.
A leitura dos contos de autores afro-brasileiros em sala de aula auxilia na formação de
jovens capazes de enxergar as diferenças como parte integrante de nosso legado, sem haver
necessidade de disputar espaços por conta de sua cor, levando-os a perceberem que não existe
ser superior ou inferior, existem, sim, seres capazes de transformar histórias e de contribuir
socialmente.
É essencial levar para a escola a oportunidade aos alunos de conhecerem textos de
autores contemporâneos da literatura afro-brasileira, ainda pouco explorados nas práticas
pedagógicas de leitura, que na maioria das vezes são abordados superficialmente durante a
semana em que comemoramos o Dia Nacional da Consciência Negra, porque será uma
contribuição para desenvolver o hábito da leitura, reflexões, compreensão e interpretação de
textos, possibilitando no ambiente escolar a manifestação de discursos de reconhecimento,
pertencimento e valorização da raça negra.

2 Caminhar teórico

2.1 Diversidade étnico-racial

O discurso idealista que reina em nosso país é o de que somos uma nação sem
preconceito de cor, vivemos uma “democracia racial”, onde todos têm os mesmos direitos
amparados pela constituição. Esse falar fica no mundo das ideias quanto a sua aplicabilidade
em relação aos brasileiros afrodescendentes porque prevalece o discurso estigmatizado,
internalizado há muito tempo por nossa sociedade, de que a raça negra é inferior à raça branca
e, portanto, deve ser subjugada, explorada e descartada. Mas, podemos e devemos
desconstruir tais discursos através da educação, que é uma poderosa ferramenta mantenedora
397

ou modificadora de discursos, como afirma Michel Foucault (2012, p. 41) em sua aula
inaugural no Collège de France:
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A educação, embora seja de direito, o instrumento graças ao qual todo
indivíduo, em uma sociedade como a nossa, pode ter acesso a qualquer tipo
de discurso, é bem sabido que segue, em sua distribuição, no que permite e
no que impede as linhas que estão marcadas pela distância, pelas oposições e
lutas sociais. Todo sistema de educação é uma maneira política de manter ou
modificar a apropriação dos discursos, com os saberes e os poderes que eles
trazem consigo.

A sociedade precisa mudar seu pensamento, discurso e ação em relação ao outro para
poder lidar com a temática da diversidade étnico-racial. A escola e todos os seus atores
precisam trabalhar não apenas a cultura branca, mas também a negra e a indígena para que
haja respeito e valorização do outro.
Temos consciência de que o método eficaz é a educação pautada no diálogo,
informação, respeito e valorização ao outro. Em estudos sobre a constituição discursiva de
identidades étnico-raciais de docentes negros/as, Ramos-Lopes (2010, p. 129) destaca que:

[...] para um grupo ou uma sociedade ser harmoniosa não significa que os
sujeitos sejam todos iguais, a começar pelo fenótipo, mas que haja
reconhecimento e aceitação da singularidade de cada um, respeitando-se as
práticas e crenças do outro. Sendo assim, a igualdade passa a ser a
oportunidade social que todos têm em demonstrar suas competências.

As preocupações abordadas anteriormente também estão presentes nas Diretrizes


Curriculares Nacionais – DCN, e cabe aqui a redundância quanto ao significado dessa
conquista. As DCN (2013, p. 498) relatam:

O parecer procura oferecer uma resposta, entre outras, na área da educação, à


demanda da população afrodescendente, no sentido de políticas e de ações
afirmativas, isto é, de políticas de reparações, e de reconhecimento e
valorização de sua história, cultura, identidade. Trata, ele, de política
curricular, fundada em dimensões históricas, sociais, antropológicas
oriundas da realidade brasileira, e busca combater o racismo e as
discriminações que atingem particularmente os negros.

O documento, ainda, versa sobre políticas de reparações, de reconhecimento, de


valorização do povo negro e da relevância da reeducação no que concerne às relações entre
brancos e negros, salientando que para acontecer, de fato, a reeducação étnico-racial em nosso
398

país, precisamos desenterrar nossos temores, tirar a roupagem do medo e refletir sobre o tipo
de sociedade que ansiamos para futuras gerações.
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2.2 Concepção escolar de leitura

A leitura é uma das práticas escolares que têm suscitado calorosos debates e intensos
estudos por todos que fazem educação por se tratar de uma atividade de relevância
incontestável na formação do indivíduo. Dentre as preocupações docentes para com a leitura,
encontra-se em destaque o modo como a escola trabalha a leitura, afinal é um dos mais
importantes espaços de letramento e como tal deveria proporcionar aos alunos meios de
“comprar” a leitura como hábito prazeroso e indispensável ao seu total crescimento visando a
um caráter humanizador e transformador.
A maioria dos docentes, por não possuir formação de práticas de leitura focando a
interação entre os envolvidos no processo, trabalha essa atividade de modo mecânico,
preocupada com a decodificação da escrita, utilizando recortes de textos sem considerar os
diversos usos sociais da leitura. Como aponta Antunes (2003), o trabalho com leitura se torna
uma atividade sem função, voltada para momentos de exercícios, avaliações e interpretações
superficiais sem despertar o interesse dos alunos.
A escola atual tem uma variedade de desafios a vencer e muitas barreiras devem ser
ultrapassadas. Um desses desafios sem sombra de dúvidas se refere à concepção de leitura
adotada pelas instituições. Quando falamos instituição, é devido ao fato de ser necessário
pontuar que a formação leitora não é apenas responsabilidade dos professores de língua
portuguesa, mas compete a todos os professores, independentemente das disciplinas ofertadas
no currículo. Em seus estudos, Solé (1998, p. 33) coloca a urgência de ensinar aos alunos a
aprender a ler como um dos grandes desafios da escola e aponta:

O problema da leitura na escola não se situa no nível do método, mas na


própria conceitualização do que é a leitura, da forma em que é avaliada pelas
equipes de professores, do papel que ocupa no Projeto Curricular da Escola,
dos meios que se arbitram para favorecê-la, e, naturalmente, das propostas
metodológicas que se adotam para ensiná-la.

A autora critica a forma aleatória como a leitura é encarada no chão da escola, sem
proposta objetiva, com as intermináveis fichas de leitura a serem preenchidas pelos discentes,
com atividades que não exigem uma reflexão crítica do leitor. Logo, o efeito de tais práticas é
399

devastador nos discentes e a tão sonhada fascinação pelos livros rapidamente se distancia,
ainda mais com os colegas docentes repetindo o mantra “os alunos não gostam de ler”.
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É extremamente relevante o planejamento das atividades para serem aplicadas antes,
durante e depois da leitura. Para a especialista, os objetivos da leitura devem ser claros para
que haja predisposição para a leitura e que os docentes estejam capacitados para nortear o
caminho facilitador da compreensão leitora. Há necessidade de desenvolver estratégias
motivadoras para preparar o caminho que o aluno irá trilhar no livro, tornando o momento
especial e esclarecendo os objetivos daquele momento. Antunes (2003, p. 70) ressalta o papel
formador dessa atividade da seguinte forma:

A atividade da leitura favorece, num primeiro plano, a ampliação dos


repertórios de informação do leitor. Na verdade, por ela, o leitor pode
incorporar novas ideias, novos conceitos, novos dados, novas e diferentes
informações acerca das coisas, das pessoas, dos acontecimentos, do mundo
em geral.

A leitura não é meramente uma ferramenta didática que deve ser utilizada,
exclusivamente para garimpagem gramatical, treinamento da habilidade oral e/ou “punição”
para casos de indisciplina. A atividade de leitura é formação de sujeito é, também, aventurar-
se no plano da beleza poética, no brincar com as palavras, no prazer de degustar a estética
literária.

3 Abordagem metodológica: tecendo práticas educativas antirracistas

Nossa proposta de trabalho está sendo desenvolvida por meio de uma pesquisa/ação
com abordagem qualitativa de caráter intervencionista, na qual procuramos, coletivamente,
intermediar a formação de agentes de leitura, multiplicadores de vozes e propagadores de
práticas antirracistas.
Esse olhar cuidadoso brota a partir de nossa concepção de que para conviver e
compreender o outro se faz necessário atravessar a contra mão do viver alheio para que
possamos ser vistos, respeitados e ouvidos.
Posto que nossas atenções estão voltadas para tal temática a partir de oficinas de
leituras, com adolescentes na faixa etária entre 12 e 14 anos, nesse modelo de investigação
estamos tendo a oportunidade de atuar positivamente e aplicar ações educativas
400

transformadoras. Xavier (2010, p. 47) define, assim, pesquisa-ação:


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É aquela em que o pesquisador faz intervenções diretas na realidade social
que se apresenta com algum problema. Ele interage de forma intensa com os
sujeitos pesquisados e com a realidade que o cerca. Além de constatar o
problema e suas causas, ele procura agir para solucioná-los de modo prático
e conscientizar os sujeitos envolvidos sobre a melhor forma de evitar a
ocorrência de tais problemas.

E por ter este caráter transformador, dar-se-á com um alto grau de proximidade entre
o professor-pesquisador e os demais envolvidos na pesquisa, visto que nos propomos a traçar
estratégias efetivas almejando minimizar um problema que diz respeito a toda comunidade
escolar. Ao refletir sobre as práticas de leitura escolar e de que modo poderia abordar
questões relacionadas ao racismo tive a certeza de que a melhor abordagem para a pesquisa
seria a pesquisa-ação. Thiollent (2011, p. 20) a define da seguinte maneira:

A pesquisa-ação é um tipo de pesquisa social com base empírica que é


concebida e realizada em estreita associação com uma ação ou com a
resolução de um problema coletivo e no qual os pesquisadores e os
participantes representativos da situação ou do problema estão envolvidos de
modo cooperativo ou participativo.

Com a adoção desse tipo de metodologia, pretendemos buscar respostas para alguns
questionamentos, a saber: Como a imersão no universo literário de contos africanos e afro-
brasileiros pode servir de ferramenta ao combate das práticas discursivas de racismo e
preconceito no ambiente escolar? Que caminhos trilhar para desconstruir conceitos que
inferiorizam a raça negra e reconstruir discursos resultantes de uma educação “seletiva” com
nuances de práticas de segregação racial? Ao trabalhar literatura afro-brasileira, quais
estratégias utilizar para despertar a prática e o prazer da leitura nos adolescentes? Como
abordar a escrita e rescrita positivamente para valorizar as produções escolares?

4 Das oficinas

Consideramos que a escola precisa educar nossas crianças com outro olhar: fazendo-
as perceber a beleza e a riqueza que existe nas diferenças; Apresentando as crianças negras e
não negras a verdadeira história da escravatura e a cultura africana; desmistificando a imagem
401

do negro como um ser inferior, sem inteligência e com capacidade apenas para o trabalho
braçal.
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Os educandos precisam saber que do povo negro foi usurpado o direito de ascender
como os brancos por puro egoísmo e falta de respeito daqueles que possuíam as correntes e
viam nelas um meio de enriquecer às custas do suor, do sangue e, não rara as vezes, com a
própria vida de homens e mulheres negros.
Por meio das oficinas de leitura e de escrita com a temática da negritude, com um
grupo de jovens estudantes de uma escola pública, estamos investigando como essa temática é
percebida e convivida na rotina diária da sala de aula. Esperamos assim, que as sementes
possam cair em terra produtiva e gerar árvores fortes com frutos doces para minimizar a
política da prática racista contra os negros e gerar um discurso de respeito e valorização. Para
alcançar os objetivos propostos estamos trilhando um caminho margeado de histórias da
cultura do povo africano utilizando as seguintes estratégias:
1. Produção de cartaz ilustrativo com desenho de um príncipe e/ou uma princesa. Após a
produção do desenho, solicitar uma narração justificando o motivo pelo qual desenhou seu
príncipe e/ou princesa daquela forma;
2. Leitura e socialização do conto O casamento da princesa – versão de Celso Sisto. Durante
esse momento debateremos sobre os estereótipos de príncipes e princesas que sempre são
apresentados nos contos clássicos e faremos uma comparação com a princesa do conto
africano;
3. Exibição do filme Vista a Minha Pele e debate sobre a temática abordada;
4. Leitura compartilhada de contos africanos e reflexões acerca das temáticas identificadas
nos textos;
5. Produção de contos sobre a temática étnico-racial.
Das estratégias listadas acima foram contempladas em oficinas, durante o segundo
semestre do ano letivo de 2016 e primeiro semestre de 2017, as três primeiras.
Didaticamente, foi traçada uma organização das oficinas visando sempre a predição sobre o
tema antes do desenvolvimento, informações sobre os objetivos pretendidos, solicitação com
antecedência de recursos tecnológicos (data show, som, notebook, etc.), materiais escolares
(lápis, tesouras colas, etc.), estipulação do tempo e materiais de apoio (vídeos, cópias de
textos, revistas, etc.)
Analisando as produções das primeiras oficinas, constatamos uma não valorização de
402

pessoas pertencentes à raça negra, apesar da presença significativa no grupo, de alunos e


alunas pertencentes à raça negra, mas que não assumem tal identidade mesmo havendo
Página

projeto na escola que trabalha a temática da diversidade racial.

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Há um sentimento de negação como forma de minimizar o desconforto e de ser
aceito pelo seu não igual de cor, sentimento esse fruto de séculos de injustiças para com os
negros, de políticas excludentes, de práticas criminosas de perseguição e humilhação.

5 Considerações finais

Há tempos que o cenário do ensino brasileiro aponta para uma implantação


educacional inclusiva e reparadora para os descendentes de africanos e afro-brasileiros
negros, uma educação de reconhecimento ao valor do seu legado cultural e histórico,
pressionado pelas reivindicações de luta dos movimentos sociais negros que sempre ansiaram
por políticas públicas que, de alguma forma, “compensariam” os séculos de exclusão social,
preconceito, racismo e desigualdades em nosso país.
Existe um grito, que não pode ser abafado, por ações afirmativas que garantam a
acessibilidade, a permanência e o sucesso de crianças e jovens afro descendentes nas escolas
públicas, que comecem uma mudança de postura no ambiente escolar, que revisem currículos
e materiais didáticos, que capacite os profissionais da educação e que reconheçam e valorizem
a história e cultura do povo negro.
O professor-educador precisa positivar na formação da nova geração afrodescendente
o verdadeiro sentimento de orgulho ao seu pertencimento étnico-racial. Os docentes que
lecionam na Área de Linguagens e Códigos, especialmente a disciplina de Língua Portuguesa,
possuem um arsenal potente para efetivar essa missão com projetos de leitura. Claro que os
demais professores de outras disciplinas podem e devem oportunizar momentos de combate
às práticas racistas, mas o momento de maior proximidade com ações que promovem a leitura
acontece, geralmente, nas aulas de português devido, ainda, a um modelo engessado de
ensino.

Referências

ANTUNES, Irandé. Aula de português: Encontro & interação. São Paulo: Parábola Editorial,
2003.
403

BRASIL / Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Diretoria de Currículos e


Educação Integral. Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica. Brasília, MEC,
2013.
Página

ISBN: 978-85-7621-221-8
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France. São
Paulo: Edições Loyola, 2012.

MUNANGA, Kabengele (Org.). Superando o Racismo na Escola. Brasília Ministério da


Educação – Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2005.

RAMOS-LOPES, Francisca Maria de Souza. A constituição discursiva de identidades


étnico-raciais de docentes negros/as: silenciamentos, batalhas travadas e histórias (re)
significadas. 321f. Tese (Doutorado em Estudos da Linguagem) – Universidade Federal do
Rio Grande do Norte, 2010.

SOLÉ, I. Estratégias de leitura. Porto Alegre: Arte Med, 1998.

THIOLLENT, Michel. Metodologia da pesquisa-ação. São Paulo: Cortez, 2011.

XAVIER, Antonio Carlos. Como fazer e apresentar trabalhos científicos em eventos


acadêmicos. Recife: Editora Réspel, 2010.

404
Página

ISBN: 978-85-7621-221-8
GT3 – ENSINO DE LÍNGUA MATERNA

PRODUÇÃO DE VÍDEOS E EMPODERAMENTO NO ENSINO FUNDAMENTAL:


BREVE OLHAR SOBRE REFERENCIAIS TEÓRICOS E GÊNEROS
MULTIMODAIS

Mari Cecilia Silvestre da Silva37


Moisés Batista da Silva - UERN38

Introdução

A discussão aqui apresentada embasa a pesquisa realizada por mim, no período de


2014 a 2016, no curso de Mestrado Profissional em Letras, PROFLETRAS-UERN, cujo título
é: Multimodalidade, produção de vídeos e empoderamento no Ensino Fundamental,
desenvolvido sob orientação do professor Dr. Moisés Batista da Silva.

1 Algumas teorias da aprendizagem

Relacionamos à teoria da aprendizagem conceitos de Bakhtin e Vygotsky, pois ambos


conferem à linguagem uma natureza social e enfatizam a relação intrínseca dela com a
aprendizagem, deslocando o aprender dos aspectos puramente formais, para aspectos
enunciativo-discursivos. As duas sessões que subdividem as discussões teóricas abordam
algumas teorias da linguagem, com foco nas pesquisas da neurologia e da neurolinguística as
quais embasam novas descobertas sobre como o ser humano aprende. Este projeto de
intervenção, buscará evidenciar esses aspectos, nessas e em outras teorias da aprendizagem
que iremos abordar

1.1 Bakhtin, Vygotsky e os processos da linguagem

A abordagem enunciativo-discursiva de Bakhtin (1992), com ênfase no processo de


interação e no enunciado, é base teórica importante para diversos estudos que se
desenvolveram nas últimas décadas do século passado, mantendo-se atual no início do
405

37
Mestre em Letras pelo Programa de Mestrado Profissional em Letras (PROFLETRAS), da Universidade do
Estado do Rio Grande do Norte, Mossoró, RN. Professora do Ensino Fundamental da Escola Horizonte da
Página

Cidadania, na comunidade de Redonda, Icapuí/CE. E-mal: maricss6@gmail.com


38
Dr. Universidade do estado do Rio Grande do Norte, Mossoró, RN. falamoises@gmail.com

ISBN: 978-85-7621-221-8
presente século. Os enunciados remetem-nos às interações que não se referem apenas ao
contato face a face, mas à compreensão ativa do leitor/orador que “aceita, reformula,
contrapõe, complementa as informações do texto, conforme seus conhecimentos e
experiências” (BEZERRA in DIONÍSIO, 2010, p. 64). Estes são emitidos de uma mixagem
de diferentes vozes sendo ouvidos, lidos e reorganizados do ponto de vista do autor.
As características dos enunciados - dialogia e polifonia, propostos por Bakhtin (1992),
levam a considerar os textos em sua relação com o contexto social em que são produzidos,
com os textos já lidos/ouvidos, com experiências de vida e com áreas do conhecimento com
as quais interagem. Essa complexidade de vozes que ressoam no texto oral ou escrito dá a
característica da polifonia e dos enunciados abertos, de que nos fala Bakhtin. Enunciados
abertos, porque nenhum texto está completo e acabado em si mesmo; ele sempre pode conter
outras leituras, em diferentes contextos.
No mesmo período, outras teorias influenciaram as metodologias de ensino-
aprendizagem da linguagem, entre elas as aprendizagens baseadas no sócio interacionismo
proposto por Vygotsky (1987, apud TONIETTO et al, 2011). Entre as inúmeras contribuições
de Vygotsky (1984, 1991) para o desenvolvimento das novas teorias da aprendizagem,
consideram-se preponderantemente os processos psico intelectuais da aquisição da escrita,
muito embora o autor não desprezasse as potencialidades da linguagem falada. Para ele, “a
compreensão da linguagem escrita é efetuada, primeiramente, através da linguagem falada.
No entanto, gradualmente, essa via é reduzida, abreviada e a linguagem falada desaparece
como elo intermediário” (VYGOTSKY, 1984, p. 131). Nesse aspecto, ressalta a importância
da aprendizagem escolar que dá acesso ao conhecimento socialmente construído, do mais
cotidiano ao mais científico e onde estão presentes as possibilidades de aquisição de formas
de pensamentos mais complexos.
De acordo com Souza (2010, in DIONÍSIO, BEZERRA, MACHADO, 2010, p. 65),
no decorrer do desenvolvimento do sujeito, as vozes, descritas por Bakhtin, vão sendo
internalizadas graças à linguagem. Essa internalização, segundo Vygotsky (1930/1988)
efetiva-se por intermédio de uma série de mudanças, isto é, as atividades externas e
interpessoais, manifestando-se, sobretudo, no que o autor denomina de zona de
desenvolvimento proximal.
406

A sua formulação para a Zona de Desenvolvimento Proximal, corresponde a um


espaço de aprendizagem ou, como afirma Oliveira (2010, p. 49), “[...] a distância entre aquilo
Página

que a criança faz sozinha e o que ela é capaz de fazer com a intervenção de um adulto

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(distância entre o nível de desenvolvimento real e potencial).” Para Vygotsky (1984-1991) a
aprendizagem resulta do engajamento de pessoas em um sistema de atividades sociais
mediado por instrumentos (textos verbais e não verbais) e regido por motivos e normas.
Noções importantes sobre participação e contexto, centrais nessa abordagem, são
analisadas por Oliveira, Tinoco & Santos (2014, p. 50):

Conhecimentos e habilidades não são coisas a serem transferidas de


indivíduo para indivíduo, mas empreendimentos sociais desenvolvidos
através de atividades conjuntas com instrumentos mediacionais. Aprender
significa participar de uma nova atividade. Na aprendizagem, os indivíduos
se integram a sistemas múltiplos de atividades, através de diferentes
contextos cruzados (por exemplo, o contexto comunitário e o escolar).

Esta proposição enfatiza aspectos que ajudam a superar relações de uma educação
tradicional, centrada no professor, para a ênfase na aprendizagem e no aluno. Afirma a
importância da ação compartilhada de conhecimentos, entre sujeitos mais e menos
experientes; o papel da imitação, como oportunidade de reconstrução interna das observações
externas, com foco na ampliação da capacidade cognitiva; no professor como mediador mais
experiente, atuando de forma desafiadora na zona de desenvolvimento proximal, nos
processos de aprendizagem e desenvolvimento dos alunos

1.2 Teoria da Aprendizagem Significativa

Avançando no conjunto de proposições que embasam esta pesquisa, levamos em


consideração os estudos de David Ausubel (1982) e seu conceito de aprendizagem
significativa, que acontece quando partimos dos conhecimentos específicos, previamente
adquiridos pelos alunos que, sendo ativados, darão suporte a novos conhecimentos. Essa
aprendizagem significativa está ligada a outro conceito subjacente chamado pelo autor de
“subsunçor”: a perspectiva de relacionar conhecimentos já adquiridos com novas descobertas
contribui na construção de estruturas mentais que permitem descobrir e redescobrir outros
conhecimentos, caracterizando, assim, uma aprendizagem prazerosa e eficaz.
É interessante observar que Ausubel (ibid.) parte das mesmas premissas de Paulo
407

Freire (1970), em relação à aprendizagem significativa, quando considera que o aluno não é
um receptor passivo e de uma educação “bancária” em que o aluno é meramente repositório
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de conteúdo, sem que eles façam, necessariamente, sentido para ele. Na aprendizagem
significativa, ao contrário,

Ele deve fazer uso dos significados que já internalizou, de maneira


substantiva e não arbitrária, para poder captar os significados dos
materiais educativos. Nesse processo, ao mesmo tempo em que está
progressivamente diferenciando sua estrutura cognitiva, está também
fazendo a reconciliação integradora de modo a identificar semelhanças
e diferenças e reorganizar seu conhecimento (MOREIRA, 2010, p. 5).

Segundo Ausubel (ibid.), para haver aprendizagem significativa são necessárias duas
condições: 1) o aluno precisa ter uma disposição para aprender; 2) o conteúdo escolar a ser
aprendido tem que ser potencialmente significativo, lógica e psicologicamente. O significado
lógico depende somente da natureza do conteúdo e o significado psicológico é uma
experiência que cada indivíduo tem. Cada um filtra os conteúdos que têm significado ou não
para ele. Segundo Pelizzari et all (2002, p. 38), partindo desses dois marcos, Ausubel (1982)
afirma em seus estudos que:

[...] os indivíduos apresentam uma organização cognitiva interna baseada em


conhecimentos de caráter conceitual, sendo que a sua complexidade depende
muito mais das relações que esses conceitos estabelecem entre si que do
número de conceitos presentes. Entende-se que essas relações têm um
caráter hierárquico, de maneira a que a estrutura cognitiva é compreendida,
fundamentalmente como uma rede de conceitos organizados de modo
hierárquico de acordo como grau de abstração e de generalização.

Para Ausubel (ibid.), a aprendizagem significativa refere-se à forma de recepção dos


conteúdos pelo aluno, sendo que propiciar descobertas estimula a aprendizagem e permite ao
aluno atitudes mais afirmativas e autônomas e maior assimilação. Isso facilita as “relações
substanciais entre os conceitos presentes na sua estrutura cognitiva e o novo conteúdo que é
preciso aprender” (MOREIRA, 1998, p. 26).
O autor chama a atenção para três fatores chaves que compõem sua teoria de
assimilação, destacados por Pelizzari et all (ibid. p. 40): 1. A aprendizagem significativa
implica a assimilação de novos conceitos e proposições na estrutura cognitiva já existente,
resultando em modificações; 2. O conhecimento organiza-se hierarquicamente na estrutura
408

cognitiva do indivíduo, e na medida em que se aprendem novos conceitos eles são


Página

organizados na estrutura hierárquica já existente e 3. O conhecimento adquirido por

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aprendizagem mecânica não é assimilado na estrutura cognitiva, nem modifica as estruturas
de proposições já existentes. Observados esses conceitos, o conhecimento deverá ser retido
por mais tempo, aumentando a capacidade de aprender outros conteúdos que, se esquecidos,
ainda assim facilitam a aprendizagem seguinte, ou reaprendizagem.
Diante do exposto, a presente pesquisa leva em consideração tais pressupostos para a
elaboração adequada dos novos conhecimentos sobre a produção de conteúdo multimodal, a
partir de conhecimentos de uso das mídias analógicas e digitais já praticadas pelos alunos.
Acrescido a isso, a vivência e compreensão do uso social da língua, em suas diversas
modalidades; da produção verbal com propósito comunicativo definido e com funcionalidade
clara.

1.3 Teoria das Inteligências Múltiplas

Teorias apresentadas a partir de meados do século XX, nos campos da neurologia e da


neurolinguística tiveram influência direta na área da psicologia, da pedagogia e na
compreensão de como as crianças aprendem. Neurologistas têm documentado que o sistema
nervoso humano não é um órgão com propósito único, nem tampouco infinitamente plástico.
Conhece-se hoje que o sistema nervoso é altamente diferenciado e que os diversos centros
neurais processam diferentes tipos de informação (GARDNER, 1987-1995). Essas novas
proposições instigaram a insatisfação com visões unitárias de inteligência que focaram
principalmente as habilidades importantes para o sucesso escolar. O padrão mais aceito de
avaliação da inteligência - os testes de QI (quociente intelectual) mediam a capacidade de
dominar o raciocínio lógico-matemático, entendido, até então, como a capacidade humana
mais elevada.
Segundo Gama (1998, p. 1), na elaboração da teoria das inteligências múltiplas,
Gardner partiu “[...] da avaliação das atuações de diferentes profissionais em diversas
culturas, e do repertório de habilidades dos seres humanos na busca de soluções,
culturalmente apropriadas para seus problemas” trabalhando no sentido retroativo para,
eventualmente, chegar às inteligências que deram origem a tais realizações. Psicólogo
construtivista, influenciado por Piaget, questiona suas afirmações em relação aos aspectos da
409

simbolização partir todos de uma mesma função semiótica, propondo que “processos
psicológicos independentes são empregados quando o indivíduo lida com símbolos
Página

linguísticos, numéricos, gestuais e outros”. (GAMA, op. cit.).

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Ainda segundo Gama (Ibid., p.1-2) temos a seguinte análise:

Gardner descreve o movimento cognitivo como uma capacidade cada vez


maior de entender e expressar significado em vários sistemas simbólicos
utilizados em um contexto cultural e sugere que não há ligação necessária
entre a capacidade ou estágio de desenvolvimento em uma área de
desempenho e capacidades ou estágios em outras áreas ou domínios. Num
plano de análise psicológico, cada área ou domínio tem seu sistema
simbólico próprio; num plano sociológico de estudo, cada domínio se
caracteriza pelo desenvolvimento de competências valorizadas em culturas
específicas.

Gardner classifica cada domínio, ou inteligência, em termos de uma sequência de


estágios: todos os indivíduos normais possuem os estágios mais básicos, em todas as
inteligências. Os estágios mais sofisticados dependem de maior trabalho ou aprendizado.

A sequência de estágios inicia-se com o que Gardner chama de habilidade


padrão cru. O aparecimento da competência simbólica é visto em bebês
quando eles começam a perceber o mundo ao seu redor. Nesta fase os bebês
apresentam capacidade de processar diferentes informações. Eles já
possuem, no entanto, o potencial para desenvolver sistemas de símbolos, ou
simbólicos. (Ibid., p. 3).

E assim se sucedem os demais estágios: o de simbolizações básicas (2-5 anos), onde a


criança demonstra sua inteligência na compreensão e uso dos símbolos: música/sons,
linguagem/conversas, histórias, espacial/desenhos etc. Em seguida, a criança adquire destreza
em domínios valorizados em sua cultura e, progressivamente, vão dominando os sistemas
simbólicos até atingir o que Gardner chama de “sistemas de segunda ordem”, ou a grafia dos
sistemas (a escrita, os símbolos matemáticos, a música escrita etc.).

Nesta fase, os vários aspectos da cultura têm impactos consideráveis sobre o


desenvolvimento da criança, uma vez que ela aprimorou os sistemas
simbólicos que demonstrem maior eficácia no desempenho de atividades
valorizadas pelo grupo cultural”. (Ibid., p. 3).

Assim, uma cultura que valorize a navegação terá um grande número de pessoas que
atingirão postos de navegador de alto nível. Finalmente, durante a adolescência e a idade
410

adulta, as inteligências se revelam através de ocupações vocacionais ou não vocacionais. O


indivíduo adota um campo específico e focalizado e se realiza em papéis que são
Página

significativos em sua cultura.

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Na elaboração de sua teoria, Gardner (1987-1995) foi levado a conceituá-la como o
potencial para resolver problemas e para criar aquilo que é valorizado em determinado
contexto social e histórico. Ele concluiu, a princípio, que há sete tipos de inteligência: lógico
matemática, a linguística, a espacial, a físico-sinestésica, a interpessoal, a intrapessoal, a
musical. Posteriormente, mais duas: a natural e a existencial e propôs a junção da
inter/intrapessoal, pois, embora estas capacidades sejam independentes, dificilmente
funcionam isoladamente.
Para Gardner (Ibid.), cada indivíduo nasce com uma bagagem genética e
neurobiológica e fatores ambientais ainda não moldados pela cultura; a educação escolar
tende a nivelar e padronizar as aptidões individuais. Em função das contribuições da
neurologia e dos estudos de Gardner (Ibid.), entre outros, como os de Mayer (1997-2001), por
exemplo, mudanças nos referenciais para a educação básica foram percebidas como
necessárias buscando adequação às novas descobertas científicas que dialogam com os
desafios do ensino-aprendizagem nos dias de hoje.
Algumas escolas tentam mudar seus procedimentos, favorecendo a manifestação de
todas as habilidades potenciais dos alunos. Gardner (Ibid.) questiona o fato das escolas
declararem que “preparam o aluno para a vida”. A vida, evidentemente, não se limita ao
raciocínio verbal e lógico. Ele propõe que as escolas favoreçam o conhecimento de várias
disciplinas básicas que encorajem seus alunos a usar esses conhecimentos para resolver
problemas e que promovam combinações intelectuais individuais, a partir da avaliação regular
do potencial de cada um.

1.4 Teoria Cognitiva da Aprendizagem Multimídia

A Teoria Cognitiva da Aprendizagem Multimídia - TCAM (MAYER, 1997-2001)


elucida a natureza da memória de trabalho humana trazendo uma grande contribuição sobre os
processos de aprendizagem da mente. Os estudos de Mayer (Ibid.) envolvem a interseção da
cognição, da instrução e da tecnologia, com destaque para a aprendizagem multimídia e, de
acordo com suas investigações, a possibilidade das pessoas aprenderem é muito maior quando
associam imagens e palavras, do que quando usam apenas palavras isoladas. De acordo com
411

seus estudos a informação processa-se por intermédio de dois canais, o verbal e o visual e, se
no processo de aprendizagem juntarmos esses dois canais, as possibilidades de êxito são
Página

muito maiores. Segundo o autor, a multimídia pode, então, ser compreendida como uma

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combinação de múltiplos recursos técnicos, cujo propósito é apresentar a informação desejada
em múltiplos formatos, por meio de múltiplas modalidades sensoriais (ALMEIDA et al.,
2014).
No entanto, existem condições de adição de palavras e imagens que devem ser
utilizadas para garantir a aprendizagem devendo ser adequada ao público a que se destina,
estando de acordo com o processo cognitivo do aluno. Para alcançar melhores resultados no
aprendizado é preciso ter claro para quem, como, quando e em que sequência se devem
utilizar imagens e palavras. Ao mesmo tempo é preciso compreender os mecanismos que são
efetuados pelo aluno para a recepção da informação, sua veiculação pelas áreas sensoriais e
encefálica que os fazem ter a compreensão do que é informado.
Existem alguns pressupostos e princípios que dão sustentação à TCAM: o pressuposto
do canal duplo, no qual os canais de processamento da informação verbal e visual são
separados; o pressuposto da capacidade limitada no processamento da informação de cada
canal e o pressuposto da aprendizagem ativa, no qual a aprendizagem requer um
processamento cognitivo essencial em ambos os canais. Baseando-se nessas premissas é
preciso estudar e descrever os caminhos de como aprender melhor utilizando palavras e
imagens, sendo este o principal objetivo da TCAM (Ibid.). A pesquisa para estas e outras
questões resultou em muitas respostas, permitindo o desenvolvimento de uma série de
princípios. Esses princípios, em conjunto, correspondem à TCAM; e devem ser empregados
na construção de modelos instrucionais que, bem planejados, devem levar a melhores
resultados do que as práticas tradicionais de ensino. São eles:
Princípios que devem ser considerados em uma apresentação multimídia:

 Princípio multimídia: os alunos aprendem melhor,


quando se combinam palavras e imagens, do que só
palavras.
 Princípio de proximidade espacial: quando as palavras e
imagens correspondentes estão próximas e não
distanciadas.
 Princípio de proximidade temporal: quando as palavras
e imagens são apresentadas simultaneamente e não
sucessivamente.
 Princípio de coerência: quando palavras, imagens ou
sons não relevantes para o assunto são excluídos.
412

 Princípio de modalidade: quando se utiliza animação e


narração em vez de animação e texto escrito.

Página

Princípio de redundância: quando se utiliza animação e


Narração em vez de animação, narração e texto.

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 Princípio das diferenças individuais: analisando os
sujeitos relativamente aos conhecimentos e à
orientação espacial, conclui-se que os sujeitos que se
beneficiam mais de um documento multimídia são os
que têm poucos conhecimentos relativamente aos que
já têm muitos conhecimentos e são os sujeitos que têm
elevada orientação espacial que mais se beneficiam
comparativamente aos que têm pouca orientação
espacial. (Mayer, 2001, p 46).

Ainda sobre os processos de aprendizagem, a TCAM nos informa que, quando se


recebe uma informação multimídia via imagens, palavras narradas ou textuais, animações,
filmes, dentre outros meios de comunicação, cria-se um modelo mental sobre a informação,
indicando sua compreensão, que é então armazenada na memória de longo prazo para
posterior utilização. (Ibid.).
Durante a recepção no processamento e passagem das informações da memória
operacional para a de longo prazo, ocorrem seleções e integrações da informação instrucional
que correspondem ao cerne da TCAM. Apresentamos, a seguir, a representação de Mayer de
como imagens e palavras são assimiladas através de uma apresentação multimídia, entrando
na memória sensorial, através da audição e visão.

Figura 1: Teoria Cognitiva da Aprendizagem Multimídia


Fonte: Mayer, 2001. Disponível em <http://goo.gl/djvnFr>. Acesso em 20.01.2016.

Para Vygotsky (1991), a relação do sujeito e do objeto é sempre mediada por


instrumentos. O sujeito não se relaciona diretamente com o objeto, pois, entre eles, existem
instrumentos de mediação que permitem atingir o objeto, o que caracteriza a aprendizagem
413

como mediada. Quando tomamos por base a concepção de Vygotsky de atividade mediada
por instrumentos (externos ao plano mental) e signos (internos ao plano mental), firmamos
Página

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ainda mais nossa compreensão de que os princípios da TCAM utilizados como ferramenta de
mediação em atividades de ensino-aprendizagem podem melhorar o desempenho dos alunos.

1.5 Trabalho pedagógico cooperativo e comunidades de práticas

É um grande desafio o trabalho colaborativo e criativo! Damiani (2008, p. 217),


reportando-se a Engeström (1994), afirma que para o autor: “[...] o ato de pensar está
aninhado em atividades socialmente organizadas e historicamente formadas, apresentando,
assim, um caráter interativo, dialógico e argumentativo”. Ressalta também que Lave e
Wenger (1991), ao estudarem os processos de aprendizagem em situações não formais,
descrevem o que ocorre no que denominam comunidades de prática - “[...] grupos que
formam uma entidade social e estão envolvidos em empreendimentos conjuntos” Ainda
segundo esses autores citados por Damiani (2008, p. 217), “[...] é pelo engajamento em
atividades cotidianas, desenvolvidas em seu grupo de trabalho, que ocorre a produção,
transformação e mudança na identidade das pessoas, em seu conhecimento e em suas
habilidades práticas”. Desenvolvendo mais essa ideia, a autora cita Schaffer (2004, apud
DAMIANI, 2008, p. 217), argumentando que:

[...] pela participação em comunidades de prática, os indivíduos internalizam


as normas, os hábitos, as expectativas, as habilidades e os entendimentos
dessas comunidades (como, por exemplo, as comunidades profissionais), que
apresentam maneiras singulares de conhecer, decidir o que é importante
saber e entender a realidade.

O pensamento desses autores, cujas raízes estão nas noções de “participação” e


“contexto” de Vygotsky (1984, 1991), parece-nos muito apropriado à fundamentação teórica
da prática que nos propomos a desenvolver em sala de aula, pois o processo de colaboração
entre pares, na escola e na comunidade, é um dos elementos no qual se sustenta este projeto.
O trabalho colaborativo e as comunidades de práticas mencionadas por Damiani são
características das comunidades de pescadores tradicionais do território que a escola atende e
a cultura local é parte importante na didática proposta na intervenção. Entendemos que o
processo de mobilização de um conjunto de saberes na produção do documentário sobre um
414

tema importante para a comunidade, produzido colaborativamente pelos alunos da escola com
Página

a participação dos moradores, pode despertar interesse, pela dimensão social que a

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intervenção visa ganhar. A escrita faz mais sentido quando tem um propósito social bem
definido.
Outro aspecto interessante da perspectiva didática é a aprendizagem da escrita
colaborativa (DAMIANI, 2008) que minimiza a frequente posição de hierarquia que tende a
se estabelecer na relação professor-aluno, em nosso complexo sistema educacional. Dessa
forma, todo o planejamento da intervenção será construído de forma colaborativa com o
grupo envolvido. Parrilla (1996, apud Damiani, 2008, p. 214) afirma que “grupos
colaborativos são aqueles em que todos os componentes compartilham as decisões tomadas e
são responsáveis pela qualidade do que é produzido em conjunto, conforme suas
possibilidades e interesses”. A autora considera que Vygotsky (1989) é um dos autores que
embasa um grande número de estudos voltados para o trabalho colaborativo na escola. Ele
argumenta que as atividades realizadas em grupo, de forma conjunta, oferecem enormes
vantagens, que não estão disponíveis em ambientes de aprendizagem individualizada.
Wells (2001, apud DAMIANI, 2008), pesquisador que também segue as ideias de
Vygotsky, descreve o que acontece entre pessoas que tentam resolver um problema
significativo para todos e estabelecem um diálogo no qual soluções são propostas, ampliadas,
modificadas ou contrapostas. A isso ele chama de “Co construção do conhecimento”,
considerando-a como parte essencial do processo de ensino-aprendizagem. Concluímos com
as afirmações de Moran (2013, p. 27) a respeito de novas formas de aprender, quando ressalta
que:
Aprendemos melhor quando vivenciamos, experimentamos, sentimos.
Aprendemos quando relacionamos, estabelecemos vínculos, laços, entre o
que estava solto, caótico, disperso, integrando-o ao contexto, dando-lhe
significado, encontrando sentido. Aprendemos quando descobrimos novas
dimensões de significação que antes se nos escapavam, quando vamos
ampliando o círculo de compreensão do que nos rodeia, quando, como numa
cebola, vamos descascando novas camadas que antes permaneciam ocultas à
nossa percepção, o que nos faz perceber de outra forma. Aprendemos mais
quando estabelecemos pontes entre a reflexão e a ação, entre a experiência e
a conceituação, entre a teoria e a prática.

Para esta intervenção que busca os novos letramentos digitais por parte dos alunos
levamos em consideração as exposições acima, partindo das teorias sobre linguagem
(BAKHTIN, 1992), dos processos de aquisição da linguagem (VYGOTSKY, 1984, 1991) e
415

da aprendizagem significativa (AUSUBEL, 1982). Entendemos como afirma Gardner (1980),


Página

que a vida e o desenvolvimento humano requerem a aplicação de vários tipos de inteligências

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utilizadas para enfrentar diferentes circunstâncias e desafios e que os avanços da neurociência
têm contribuído para novas concepções de inteligências múltiplas e novas formas de
aprendizagem. Em relação à Teoria Cognitiva da Aprendizagem Multimídia (MAYER, 1997,
2001) fica claro que ela agrega elementos das inteligências múltiplas no campo da linguagem
verbal e visual, complementada com os pensamentos de Moran (2013) sobre a mediação das
novas tecnologias e novas formas de aprender.
Passamos a discorrer sobre o trabalho com gêneros na escola, a multimodalidade
presente no gênero jornalístico e as possibilidades de empoderamento dos alunos, pela
aquisição dos meios de produção e comunicação multimodal.

2 Multimodalidade, gêneros textuais e empoderamento na escola

Nesta sessão passamos à discussão e entendimento da importância de se utilizar


gêneros discursivos e multimodais em sala de aula, com destaque para o gênero reportagem,
no sentido do aprimoramento da produção multimodal e de novos letramentos, baseando-nos
em conceitos de multiculturalidade, multimodalidade e multiletramentos.

2.1 Letramento multimodal

É fundamental, para este projeto de intervenção o suporte teórico dado pelas


abordagens do que vem sendo chamada de multiculturalidade, multiletramentos,
multimodalidade e das estreitas relações que se estabelecem entre elas (ROJO, 2009; ROJO &
MOURA, 2012). O enfoque multicultural problematiza o lugar da diversidade cultural na
escola e a importância da visão pluralista, em suas diferentes formas de expressão, muito
presentes no cotidiano escolar, mas ocultadas pelas práticas pedagógicas vivenciadas nesse
contexto. Essas discussões localizam a origem desse conceito que procura cobrir a
multiculturalidade característica das sociedades globalizadas e a multimodalidade dos textos
por meio dos quais a comunicação e a informação acontecem.
A aquisição do letramento multimodal, como parte da preparação escolar para a
inserção nas múltiplas linguagens apresentadas em todos os setores da sociedade é
416

imprescindível para a formação de leitores e produtores textuais na contemporaneidade.


De acordo com Oliveira, Tinoco e Santos (2014, p. 65):
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Rápidas transformações tecnológicas que hoje se dão afetam profundamente
o letramento, à medida que requerem do indivíduo novas habilidades e
estratégias para se adaptar e adquirir os letramentos que emergem, além de
abrir possibilidades para o uso criativo da tecnologia como uma ferramenta
útil para exercer novas funções e propósitos na formatação e composição de
mensagens. A natureza dêitica do letramento suscita, assim, uma nova
concepção ou (re)definição do que significa tornar-se letrado.

Os multiletramentos apontam para dois tipos específicos e importantes de


multiplicidade presentes em nossa sociedade, principalmente urbanas, na contemporaneidade:
a multiplicidade cultural das populações (multiculturalidade) e a multiplicidade semiótica dos
textos (multimodalidade). Nesse universo, as produções culturais surgem como “um conjunto
de textos híbridos de diferentes letramentos (vernaculares/dominantes), de diferentes campos
(ditos: popular/de massa/erudito), [...] caracterizados por um processo de escolha pessoal e
política [...]”. (ROJO, 2012, p. 13). Essa multimodalidade, multissemiose ou multiplicidade
de linguagens exige multiletramentos, quer dizer, exige, nos dizeres de Rojo (ibid., p. 19),
“capacidades e práticas de compreensão e produção de cada uma delas (multiletramentos)
para fazer significar”.
Nesse sentido, a pedagogia dos multiletramentos, proposta por ela seria uma nova
forma de:

[...] trabalhar com os multiletramentos partindo das culturas de referência do


alunado implica a imersão em letramentos críticos que requerem análise,
critérios, conceitos, metalinguagem, para chegar a proposta de produção
transformada, redesenhada, que implicam agência39 por parte do alunado.
(Ibid., p. 8-9).

E que a escola “discuta as novas estéticas que impregnam e constituem os textos


contemporâneos, multimodais, para transformar o consumidor acrítico em analista crítico”.
(Ibid., p. 28).

Trabalhar com multiletramentos pode ou não envolver (normalmente


envolverá) o uso de novas tecnologias de comunicação e de informação

39
Em termos gerais, a noção de agência atribui ao ator individual a capacidade de processar a experiência social
417

e de delinear formas de enfrentar a vida, mesmo sob as mais extremas formas de coerção. Dentro dos limites da
informação, da incerteza e de outras restrições (físicas, normativas ou político-econômicas) existentes, os atores
sociais são “detentores de conhecimento” e “capazes”. Eles procuram resolver problemas, aprender como
intervir no fluxo de eventos sociais ao seu entorno e monitorar continuamente suas próprias ações, observando
Página

como os outros reagem ao seu comportamento e percebendo as várias circunstâncias inesperadas (Giddens,
1984: 1-6). Disponível em <www6.ufrgs.br/pgdr/arquivos/ipode_38.doc>. Acesso em 26 set. 2016.

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(“novos letramentos”), mas caracteriza-se como um trabalho que parte das
culturas de referência do alunado (popular, local, de massa) e de gêneros,
mídias e linguagens por eles conhecidos, para buscar um enfoque crítico,
pluralista, ético e democrático - que envolva agência - de textos/discursos
que ampliem o repertório cultural, na direção de outros letramentos,
valorizados (como é o caso dos trabalhos com hiper e nanocontos) ou
desvalorizados (como é o caso dos trabalhos com picho). (Ibid., p. 8).

Nesse sentido, este projeto de intervenção buscou novos letramentos, partindo de


temas próprios da cultura local e dos conhecimentos prévios dos alunos acerca das
tecnologias e suas linguagens, ferramentas já utilizadas por eles, embora de forma limitada. O
foco no olhar crítico sobre a realidade vivida e a produção de conteúdo transformador do meio
e deles próprios tem como propósito o empoderamento; do “saber-fazer” ao “aprender a
aprender” como possibilidade de uso das tecnologias para a expressão criativa e criadora em
sociedade.
Refletindo sobre as práticas de letramento em que os alunos se engajam atualmente,
Paes de Barros (2005, 2009), com base em pressupostos teóricos enunciativo-discursivos e em
alguns pressupostos da Semiótica Social40, estabeleceu o que denominou de “estratégias de
observação da multimodalidade”. Tais estratégias foram utilizadas nesta intervenção para as
análises dos dados coletados. São elas:
1. Seleção e verificação das informações verbais – refere-se à ativação das
capacidades de compreensão e apreciação da leitura dos textos verbais, como parte do
processo de compreender a significação do texto como um todo.
2. Organização das informações da sintaxe visual – trata-se da observação dos
elementos pictográficos de modo a selecionar e organizar as informações relevantes à
construção da significação.
3. Integração das informações verbais e não verbais – trata-se da capacidade de
observar e conjugar as informações da materialidade verbal à pictográfica, relacionando-as no
ato de construção dos sentidos dos textos.
4. Percepção do todo unificado de sentido que se compõe através da integração
dos materiais verbais e não verbais – trata-se da ativação de diversas capacidades
linguístico-discursivas e de leitura aliadas à organização e observação das informações,
através das quais o leitor constrói um todo de significação (Ibid., p.166).
418
Página

40
Hodge & Kress (1988) propõem uma nova abordagem, fundamentada pela concepção de Halliday (1978) de
linguagem como semiótica social, cujo foco está centrado nas funções sociais da linguagem.

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Tais estratégias leitoras, aliadas aos pressupostos teóricos bakhtinianos como, por
exemplo, os de gênero discursivo e dialogia são fundamentais para as análises apresentadas,
uma vez que consideramos o texto multimodal como um enunciado concreto, cujo projeto
discursivo articula, com o mesmo grau de importância, múltiplas materialidades
comunicativas. Esse enunciado concreto constitui-se em uma determinada esfera ideológica e
circula em outra esfera (a escolar, por exemplo, dentro de livros didáticos e outros materiais
de pesquisa).

2.2 Gêneros textuais na escola

As novas orientações e os referenciais que os PCN (1998) puseram em circulação nas


escolas e nos programas de formação de professores geraram muitas dúvidas em relação ao
ensino dos gêneros escritos e orais. Surgiram, então, diferentes pesquisas e abordagens do
tema, entre elas citaremos algumas, salientando que essas discussões geraram um arcabouço
de conteúdos que, disponibilizados aos professores, em sua formação continuada possibilitam
uma ação pedagógica enriquecida por discussões diversas, renovando conhecimentos, abrindo
portas a uma visão mais crítica e autônoma nas práticas de sala de aula.
Questões colocadas por Oliveira, Tinoco, Santos (2014) nos fazem refletir sobre a
maneira como a voz dos PCN (1998) vem repercutindo no fazer pedagógico de professores e
que, segundo suas experiências em contextos de formação de professores, não têm se
efetivado em suas práticas, pois “[...] houve apenas uma ‘popularização’ de determinados
referenciais teóricos, sem que realmente tenham sido apreendidos em sua inteireza”. (Ibid., p.
326). Em suas averiguações, as pesquisadoras puderam depreender que se trata de um
“discurso vazio, com significações distorcidas e banalizadas” (Ibid.).
Oliveira, Tinoco, Santos (Ibid.) destacam um elemento importante como contribuição
à discussão do trabalho com gênero na escola, afirmando que:

No que diz respeito aos gêneros textuais, a compreensão deflagrada é a de


que estes são unidades textuais dadas, estáticas, descontextualizadas, com
características facilmente identificáveis, prontas para serem ensinadas. O
gênero, porém, não se constitui num fenômeno simples e puro. Conforme
419

atestam estudos de vários autores (JOHNS, 2006), ele é afetado por uma
rede de variáveis que operam juntas, tornando-o complexo e multifacetado.
(Ibid., p. 329).
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Quando Bakhtin (1992) afirma que os gêneros, são tipos “relativamente estáveis” de
enunciados elaborados por diferentes esferas da atuação humana, vinculou-os ao fenômeno
cultural, qualificando-o como “historicamente sensível”. Assim, “Quando dominamos um
gênero textual, não dominamos uma forma linguística e sim uma forma de realizar
linguisticamente objetivos específicos em situações particulares”. (SOUZA, in DIONISIO,
MACHADO, BEZERRA org., 2010, p. 31).
Como forma de socialização e comunicação humana, os gêneros dão sustentação às
interações, muito mais coletivas do que individuais, legitimando discursos, em grupos e
comunidades com suas práticas. Segundo Müller (1984, apud DIONISIO, MACHADO,
BEZERRA, 2010, p. 34) “Os gêneros são, em última análise, o reflexo de estruturas sociais
recorrentes e típicas de cada cultura”. Assim sendo, a variação cultural “deve trazer
consequências significativas para a variação de gêneros” e conclui que “[...] este é um aspecto
que somente o estudo intercultural dos gêneros poderá decidir”.
Entendidos como “dispositivos de comunicação” tornam-se relevantes certas
condições sócio históricas presente no momento da enunciação, “não podendo ser
considerados como formas que se encontram à disposição do locutor, a fim de que ele molde
seu enunciado nessas formas” (Maingueneau, 2001, p. 65). Oliveira (2010, p. 330),
argumenta que:

Sabemos que o mundo é textualizado. Leitura e escrita estão em toda parte.


O que circula, portanto, na rua ou em ambientes comunitários são modos de
inscrição específicos (placas, propagandas, faixas, outdoors, fachadas etc.)
de grande força comunicativa e que, por isso, merecem atenção. Consumir e
saber produzir os inúmeros textos que se distribuem nos mais variados
contextos sociais significa não apenas ter acesso a essas práticas
comunicativas, mas também assumir uma forma de poder que a muitos é
negada.

Nesse sentido, entendemos que o empoderamento a partir da escola, na fase de


aquisição de letramentos, através da multimodalidade, pode ser bastante significativo e
atrativo aos alunos, pela possibilidade de passarem de consumidores para produtores de
conteúdo. Passamos a seguir, à discussão do gênero reportagem, escolhido neste projeto de
420

intervenção para o desenvolvimento do letramento multimodal, com base nas discussões


teóricas desenvolvidas até aqui. Considerando o caráter de nossa pesquisa interventiva
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gostaríamos de nos deter em aspectos do gênero jornalístico e no vídeo reportagem, objeto de
nosso estudo.

2.2.1 O gênero reportagem e o audiovisual

O gênero reportagem está inserido no domínio discursivo do jornalismo. No que


concerne aos principais elementos caracterizadores dos gêneros jornalísticos, Alves Filho
(2011) traz as seguintes categorias: a fusão entre forma e conteúdo, os propósitos
comunicativos, o evento deflagrador, relações entre evento deflagrador e gêneros e o tema dos
gêneros. No que se refere à forma/conteúdo, Alves Filho (Ibid., p. 29) afirma que: “A forma
precisa ser vista como funcional, como tendo uma finalidade, uma razão de ser ou produzindo certo
efeito de sentido. E, em contrapartida, o conteúdo precisa ser visto como algo semiótico, já que as
ideias somente são veiculadas e mesmo pensadas através de signos”.
Alves Filho (Ibid., p. 34) considera que: “O propósito comunicativo de um gênero
equivale às finalidades para as quais os textos de um mesmo gênero são mais recorrentemente
utilizados em situações também recorrentes”. Por exemplo, se o propósito comunicativo é
relatar fatos sociais ocorridos recentemente na vida social, os gêneros comumente utilizados
são: notícia, reportagem, relatos pessoais. No entanto, outros propósitos estão associados,
como: interagir, manter contato social, reforçar vínculos, entre outros. Quanto ao “evento
deflagrador” e sua relação com os gêneros, Alves Filho (Ibid., p. 40), afirma que ele “[...] é a
razão mais ou menos imediata que impulsiona alguém a tomar a palavra escrita ou oral e
propor um ato de interação pela linguagem”. Podemos dizer que “ele faz a intermediação
entre a realidade e os textos” (Ibid.).
Para Kindermann (2003), a reportagem pode ser caracterizada em duas linhas gerais:
como uma notícia ampliada e como gênero autônomo. Referindo-se à definição de Lage
(1993, p. 61 apud KINDERMANN, 2005, p. 125) reportagem é “um gênero jornalístico que
consiste no levantamento de assuntos para contar uma história verdadeira, expor uma situação
ou interpretar fatos”. A autora apresenta as seguintes categorias, dentro da reportagem,
classificando-as como subgêneros: 1) reportagem retrospectiva, 2) reportagem de
aprofundamento de notícia, 3) reportagem a partir de entrevista; 4) reportagem de pesquisa,
421

(KINDERMANN, 2005). Estas categorias serão adotadas neste projeto de intervenção.


Complementarmente, Cristóvão e Nascimento (2005, apud Kindermann, 2005, p.126),
Página

citam algumas características próprias do gênero reportagem:

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a) Provém de uma pauta planejada (mostra um alvo que foi buscado fora da
realidade imediata dos fatos em eclosão);
b) Envolve, em relação aos quatro subgêneros levantados, pesquisa em
fontes e temas além dos limites imediatamente relacionados ao fato de
notícia;
c) Detém um estilo mais livre, rompendo com a rigidez da técnica
jornalística e podendo ser mais pessoal.

Consideramos, para fins de organização deste projeto de intervenção, as proposições


de Kindermann (2003, 2005), no que diz respeito à divisão do trabalho em subgêneros, para a
produção da reportagem, obedecendo as quatro categorias por ela propostas, seguindo a
estrutura composicional de cada uma. Os aspectos relacionados a questões técnicas da
produção de audiovisuais foram estudados, tanto por mim, quanto repassadas aos alunos,
através de alguns sites da internet que expõem princípios básicos que devem ser observados
na produção dessas mídias.
Levamos em consideração princípios bastante elementares apresentados e discutidos
por Schneider (2011), em um curso preparado por ela para a produção de mídias para a
educação.41 Esse curso básico traz elementos importantes a serem observados, principalmente
quando se trata de um trabalho desenvolvido por principiantes. Ela relaciona aspectos como: a
escolha dos equipamentos para a captação de imagens, popularizados através dos dispositivos
móveis: celulares, tablets, câmeras digitais; a previsão da capacidade de armazenamento das
imagens coletadas para futura edição, considerando a necessidade da utilização de cartões de
memória. Chama a atenção também para a opção que se fará em relação à resolução em
pixels, dependendo do canal ou suporte em que as imagens serão veiculadas. Por exemplo, se
for para o Youtube à resolução recomendada deverá ser de 1280/ 720. A necessidade de
utilização de microfones externos também deverá ser analisada, ressaltando que os próprios
celulares, smartphones e Ipads, podem ser utilizados, garantindo que o áudio não fique
comprometido, quando as captações das imagens forem em ambientes externos, em que
hajam ruídos.
Utilizamos um site do Ministério da Educação - MEC que apresentava os elementos
indispensáveis à produção audiovisual.42 Essa apresentação traz orientações sobre todas as
etapas do processo, desde as narrativas, continuidade, interação dos personagens, cenário,
422

41
Disponível em www.timtec.com.br. Acesso em 10 ago. 2015.
Página

42
Disponível em www.curtahistorias.mec.gov.br/images/pdf/dicas_producao_videos.pdf. Acesso em 10. Ago.
2015.

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objetos de cena, trilha, efeitos sonoros, enquadramentos, iluminação, cortes, transições.
Chama a atenção para as questões de ângulo e movimentação de câmera, dando boas
indicações de como conseguir qualidade, mesmo no trabalho amador.
Avaliando as imagens captadas durante as pesquisas de campo, com os celulares dos
alunos, discutimos com o núcleo gestor da escola e depois com os com alunos a viabilidade
de contarmos com a parceria de pessoas da comunidade que trabalham com comunicação e
que possuem equipamentos excelentes para a produção de vídeos. Eles já têm contribuído em
outros projetos da escola e facilitado o uso de seus equipamentos. Essa parceria seria um
ganho na qualidade das imagens e no aprendizado das técnicas conhecidas apenas
teoricamente pelos alunos e os parceiros poderiam mediar essa etapa da produção do vídeo
reportagem. Chegou então o momento de convidá-los a conhecer os roteiros e estabelecer um
cronograma de filmagens. Os equipamentos disponibilizados e utilizados sempre sob a
orientação deles: Carolina Sciotti e Alessandro Marconi, foram as câmeras GoPro 4 e Cânon
T3i.
Concluiremos com a apresentação de breve discussão sobre empoderamento na escola,
aspecto fundamental para a avaliação dos resultados deste trabalho.

3 Empoderamento

Paulo Freire está entre os mais influentes pensadores da educação no século XX e suas
reflexões e propostas para a educação continuam atuais e operantes. Uma das mais conhecidas
obras de sua extensa produção intelectual é a Pedagogia do Oprimido (1970), em que Freire
defende um sistema de educação que enfatiza o aprendizado como uma ação de cultura e
liberdade, sendo um processo interativo entre professor-aluno e aluno-professor, onde ambos
aprendem, e não só o aluno.
Alguns conceitos desenvolvidos pelo autor chamam a atenção: “educação bancária” na
qual aprendiz passivo tem conhecimentos preestabelecidos depositados em suas mentes;
“conscientização”, um processo pelo qual o aprendiz avança para a consciência crítica;
“cultura do silêncio” na qual indivíduos dominados perdem os meios de responder
criticamente ao conhecimento imposto pela cultura dominante, entre outros.
423

Empoderamento foi um desses conceitos ricamente definidos pelo educador, havendo,


no entanto, uma compreensão, muitas vezes distorcida, do significado dado por ele para
Página

empoderamento. Ao contrário do que muitos pensam, embora existisse a expressão

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“empowerment”, na Língua Inglesa, a conotação não é a mesma em Freire (1992). Enquanto
“empowerment” significa “dar poder” a alguém para realizar uma tarefa sem precisar da
permissão de outras pessoas, o conceito de empoderamento, para Freire (Idem), muda
radicalmente de sentido. Empoderamento acontece quando a pessoa, grupo ou instituição
realiza por si mesmo as mudanças e ações que a levam a evoluir e fortalecer, ganhando
autonomia. Nesse sentido, empoderamento significa conquista, avanço e superação por parte
daquele que se empodera (sujeito ativo do processo) e não receptor passivo da benevolência
de alguém. O significado dado por ele, no contexto da filosofia e da educação, está posto no
sentido de um movimento de dentro para fora, como conquista, e não de fora para dentro,
como ocorre no empowerment. Para Schiavo e Moreira (2005, p. 2), empoderamento, em
Freire,

Implica essencialmente a obtenção de informações adequadas, um processo


de reflexão e tomada de consciência quanto a sua condição atual, uma clara
formulação das mudanças desejadas e da condição a ser construída. A estas
variáveis, deve somar-se uma mudança de atitude que impulsione a pessoa,
grupo ou instituição para a ação prática, metódica e sistemática, no sentido
dos objetivos e metas traçadas, abandonando-se a antiga postura meramente
reativa ou receptiva.

Portanto, empoderamento pode ser visto como a concepção freiriana da conquista da


liberdade pelas pessoas que têm estado subordinadas a uma posição de dependência
econômica ou física ou de qualquer outra natureza. Freire, na Pedagogia do Oprimido (1970,
p. 29) disse:

O grande problema está em como poderão os oprimidos que “hospedam” o


opressor em si, participarem da elaboração como seres duplos, inautênticos
da pedagogia da sua libertação. Somente na medida em que se descobrem
“hospedeiros” do opressor poderão contribuir para o partejamento de sua
pedagogia libertadora.

Empoderamento, portanto, não trata da simples construção de competências e


habilidades normalmente ligadas ao ensino formal; difere, tanto pela ênfase nos grupos (mais
do que nos indivíduos), como pelo foco na transformação cultural (mais do que na adaptação
social). O protagonismo na escola pode ser pensado nesse sentido de apropriação dos meios
424

de produção de conteúdo comunicáveis, através das mídias analógicas e digitais.


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4 Considerações finais

Neste projeto de intervenção, a opção pela produção de um vídeo reportagem voltada


para um tema importante para a comunidade local, traz essa expectativa: o envolvimento dos
alunos, de acordo com a fundamentação teórica até aqui apresentada, a respeito das teorias da
aprendizagem, das abordagens sobre a aplicação das mídias na educação e da sequência
didática proposta por Dolz, Noverraz & Schneuwly (2004).

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fundamental. São Paulo: Cortez, 2011.

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Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/er/n31/n31a13. Acesso em 18 jan.2015>.

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DOLZ, J. & SCHNEUWLY, B. Os gêneros escolares - das práticas de linguagem aos objetos
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GARDNER, Howard. Inteligências múltiplas - a teoria na prática. São Paulo: Artmed, 1995.
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KINDERMANN, Conceição Aparecida. A reportagem jornalística no Jornal do Brasil:


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SC, 2003.

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MAYER, David. Teoria da Aprendizagem Cognitiva Multimídia.
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426
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GT3 – ENSINO DE LÍNGUA MATERNA

REFLEXÕES SOBRE O ENSINO DA LEITURA E ESCRITA NA EDUCAÇÃO DE


JOVENS E ADULTOS

Maria Amélia da Silva Costa (UERN)


Dr. Marcos Nonato de Oliveira (UERN)

Introdução

A Educação de Jovens e Adultos é uma modalidade de ensino voltada para pessoas


que não puderam iniciar, dá continuidade ou concluir seus estudos na idade adequada, logo
visa sanar um débito educacional com a classe mais desfavorecida e que não teve
oportunidade de aprender em muitos casos sequer ler e escrever, outros apesar de
teoricamente serem alfabetizados, se constitui como analfabetos funcionais que não sabem
fazer o uso social da leitura e escrita.
Esta pesquisa trata de um estudo bibliográfico de natureza qualitativa que teve por
objetivo traçar reflexões a respeito do ensino da leitura e de escrita na Educação de Jovens e
Adultos. Ressalta-se no texto o percurso histórico e as bases legais que regem tal modalidade.
A EJA no Brasil apresenta-se historicamente colocada à margem das políticas educacionais, e
com mínimos investimentos, pois não parece ser prioridade governamental e implica nos
descredito da sociedade e da própria escola.
A pesquisa apresenta a leitura e a escrita na EJA com um foco diferenciado onde o
ensino da língua Portuguesa transcende a aquisição das habilidades decodificadoras e aponta
para o uso social da língua, numa perspectiva que enfatiza o contexto histórico, cultural,
social e político que compõe a vida desses educandos. O embasamento teórico é de base
freiriana onde os processos de aquisição de leitura e escrita são encarados como ações
problematizadoras e, consequentemente, libertadoras do ser humano. A pesquisa apresenta o
pensamento de autores como Freire (2014), Soares (2004), Gadotti (2007), entre outros.
O texto está estruturado em três reflexivos, o primeiro “Contextualização histórica e
Bases legais da Educação de Jovens e Adultos no Brasil” traça de forma breve o panorama
histórico da EJA e acentua as bases legais que o longo dos anos foram conquistadas como
427

elementos de garantia para a oferta do ensino de leitura escrita a esses sujeitos que não o
tiveram na idade adequada.
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O segundo tópico reflete sobre a “Leitura e escrita como conquista social”
apresentando a visão do renomado educador Paulo Freire sobre o rompimento com uma
educação bancária e a conquista da leitura e escrita numa perspectiva problematizadora e
libertadora.
No terceiro tópico são levantadas questões sobre as “Perspectivas de trabalho com
leitura e escrita na EJA” levando em consideração que para o ensino a esses sujeitos deve-se
considerar sua história de vida e todo o conhecimento adquirido, não cabendo mais o modelo
de alfabetização tradicional.

1 Contextualização histórica e Bases legais da Educação de Jovens e Adultos no Brasil

Os primeiros registros de iniciativas no campo da educação de jovens e adultos se


deram com as iniciativas educacionais dos Jesuítas em 1549, conforme Marques (2010) com o
intuito de catequização e ensino das primeiras letras. Onde de fato observa-se que o objetivo
era domesticar os índios e facilitar o processo de colonização, desse modo a educação
propedêutica era destinada a elite, onde não se via a necessidade da população pobre aprender
a ler e escrever, já que a eles eram destinados os trabalhos mais pesados e manuais.
A história da educação brasileira é marcada por um ensino elitista, onde às pessoas de
classes sociais desfavorecidas foi negado o direito a educação, essas ao longo dos anos
ficaram as margens da sociedade, não tendo acesso ao ensino da leitura e da escrita.
Ainda de acordo com Marques (2010) durante um longo período de tempo não houve
no Brasil iniciativas governamentais significativas que se preocupassem em educar jovens e
adultos, a própria educação jesuítica tinha um carácter assistemático preocupado não com a
transmissão de conhecimentos, mas com a conquista de novos fieis ao catolicismo.
Do período de permanência dos jesuítas no Brasil até início a década de 60 pouco foi
feito em termos de educação de jovens e adultos, entrando nesse cenário histórico educacional
a figura de Paulo Freire, educador pernambucano que lutou a favor da alfabetização de jovens
e adultos, criticando o ensino até então elitista e propondo uma educação libertadora. Em
1961 inicia-se uma campanha de alfabetização, criada e coordenada por Freire, logo em 1962
o Ministério da educação e Cultura cria o Plano Nacional de alfabetização que é inspirado nas
428

experiências realizadas por Paulo Freire. (LIMA, 1997).


Essas iniciativas de alfabetização de jovens e adultos duraram pouco tempo, pois o
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regime militar imposto no país no ano de 1964 desmobilizou os movimentos de educação que

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estavam sendo postos em prática, o caráter repressor do regime militar, intimidou professores
e alunos, aqueles que defendiam uma educação democrática e libertadora foram perseguidos,
o próprio Paulo Freire foi preso e posteriormente exilado e as poucas conquistas de educação
popular para Jovens e adultos encerradas, diante da existência do Decreto-Lei 477 que previa
punição a todos que subvertessem o regime militar com suas ideias.
Durante esse período os números da população analfabeta eram alarmantes, cerca de
39,6 % da população era analfabeta, e para substituir as iniciativas de alfabetização baseadas
nas ideias de Paulo Freire foram criadas iniciativas com o propósito de ensino da leitura e
escrita, sem a preocupação com a formação humana, entre os projetos e programas destaca-se
a Cruzada ABC, e o MOBRAL (Movimento Brasileiro de Alfabetização) esse com grande
repercussão nacional buscava a alfabetização funcional, entretanto de acordo com Moura
(2009) era desenvolvido com professores improvisados, temporários e selecionados através de
políticas paternalistas e eleitoreiras, posteriormente o programa foi abolido diante das
denúncias de corrupção.
No MOBRAL o ensino da leitura e escrita era padronizado a partir de cartilhas, onde
não eram respeitadas as diferenças regionais e muito menos a história de vida de cada aluno.
O ensino se dava a partir de uma palavra geradora que diferente da prática freiriana não partia
do universo do aluno, mas sim da escolha aprovada pela equipe posta pelo regime militar,
essas palavras eram compostas e decompostas para a aprendizagem das famílias silábicas,
composição de novas palavras e estudo da formação e leitura de frases e pequenos textos. A
intenção era uma alfabetização funcional, que não estava preocupada com a problematização
das questões, nem com a formação critica do aluno.
Com relação à lei e bases legais que regem a educação de jovens e adultos destaca-se a
Lei de Diretrizes e Bases da Educação – LDB 5.692/71 que implantou o ensino supletivo,
modalidade que se tornou ao longo dos anos uma forma de recuperar os estudos desses jovens
e adultos, outro ponto dessa lei foi o fortalecimento do ensino profissionalizante. Vieira
(2004) enfatiza que:

Durante o período militar, a educação de adultos adquiriu pela primeira vez


na sua história um estatuto legal, sendo organizada em capitulo exclusivo da
Lei nº5.692/71, intitulado ensino supletivo. O artigo 24 desta legislação
429

estabelecia como função do supletivo suprir a escolarização regular para


adolescentes e adultos que não a tenham conseguido ou concluído na idade
própria (VIEIRA, 2004).
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Em 1985 chega ao fim o MOBRAL e a Fundação Educar ocupa-se da
responsabilidade de alfabetização de jovens e adultos, chegava ao fim também o Regime
Militar e com ele a promulgação de uma nova constituinte, a Constituição Federal de 1988
representou para a EJA avanços significativos, quando em seu artigo 208 no inciso primeiro
garantiu a educação para todos como um direito, inclusive para os que não tiveram acesso na
idade própria.
Já na década de 90 após discussões é elaborada a nova Lei de Diretrizes e Base de
Educação Nacional – LDBEN, 9394/96, onde a seção V é totalmente voltada para abordar
questões referentes a EJA, onde se coloca essa modalidade de ensino como direito do cidadão
e dever do estado, de forma enfática nos artigo 37 da LDB/9.394/96:

Art. 37. A educação de jovens e adultos será destinada àqueles que não
tiveram acesso ou continuidade de estudos no ensino fundamental e médio
na idade própria.
§ 1º Os sistemas de ensino assegurarão gratuitamente aos jovens e aos
adultos, que não puderam efetuar os estudos na idade regular, oportunidades
educacionais apropriadas, consideradas as características do alunado, seus
interesses, condições de vida e de trabalho, mediante cursos e exames.
§ 2º O Poder Público viabilizará e estimulará o acesso e a permanência do
trabalhador na escola, mediante ações integradas e complementares entre si.
(BRASIL, 1996).

Outro ponto destacável da LDB 9394/96 é o seu artigo 3°onde propõe a igualdade de
condições para o acesso e a permanência na escola, o pluralismo de ideias e de concepções
pedagógicas, a garantia de padrão de qualidade, a valorização da experiência extraescolar e a
vinculação entre a educação escolar, o trabalho e as práticas sociais, esse artigo específico da
LDB permite e estimula a criação de proposta metodológica para a EJA que seja diferente e
atenda as reais necessidades dos alunos, que vão muito além de aprender a ler e escrever de
forma funcional, isso porque a Lei considera educação escolar e trabalho como uma
identidade do aluno que não teve acesso ao ensino fundamental, logo o processo de ensino de
leitura e escrita precisa considerar essas especificidades do público, propondo esse ensino de
forma significativa e com utilização social da língua.
As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação de Jovens e adultos do ano 2000
por meio da escola asseguram que se assumam na EJA as funções reparadora, equalizadora e
430

qualificadora, além de reconhecimento da identidade própria da Educação de Jovens e


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Adultos considerando as situações, os perfis dos estudantes, as faixas etárias e se pautando

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pelos princípios de equidade, diferença e proporcionalidade na apropriação e contextualização
das diretrizes curriculares nacionais e na proposição de um modelo pedagógico próprio. Além
de assegurar o direito aos alunos da EJA ao Programa de Transporte do Escolar-PNATE e
quando necessário e Programa Nacional de Alimentação Escolar-PNAE.

2 Leitura e escrita como conquista social

Mesmo diante dos avanços apresentados na sessão anterior dessa pesquisa, observa-se
que o ensino noturno voltado para a educação de Jovens e Adultos enfrenta graves problemas
que se refletem num índice de evasão exorbitante em todas as esferas que oferecem essa
modalidade de ensino, mencionando ainda a repetência e o analfabetismo funcional. Esses
problemas aqui elencados podem está diretamente ligados à forma como se tem trabalhado o
ensino de leitura e escrita como podem também está relacionado, por exemplo, a utilização de
metodologias, ao uso de um currículo inadequado para atender as especificidades dos
discentes da EJA, visto que para eles a leitura e a escrita precisa ter um sentido de aplicação
prática.
Existe ao longo dos anos uma prática de ensino que se reflete também na EJA onde a
base do que se ensina está centrada nos professores e nos conteúdos, colocando o educando da
EJA em um plano secundário de receptor de informações e conhecimentos, logo ele é
solicitado a se adequar a esse sistema, tendo que se ajustar a um currículo pré-estabelecido
que não considera seus saberes prévios. Para Freire (2014, p. 81): “A rigidez destas posições
nega a educação e o conhecimento como processos de busca”, para ele a educação que se
preocupa em “encher” os educandos de conteúdos é na verdade uma educação bancária, onde
quanto mais esses sujeitos absorvem esses conteúdos de forma passiva, como depósitos,
menos eles desenvolverão a consciência crítica do mundo que os cerca e muito menos
poderão transformar suas realidades. Conforme Freire (2014, p. 94):

A educação que se impõe aos que verdadeiramente se comprometem com a


libertação não pode fundar-se numa compreensão dos homens como seres
vazios a quem o mundo “encha” de conteúdos [...]. Não pode ser a do
depósito de conteúdos, mas a problematização dos homens em suas relações
com o mundo (FREIRE, 2014, p. 94).
431

Diante do pensamento freiriano, onde a educação por ele proposta transcende o


Página

modelo que há tantos anos perdura na EJA, apresentada como uma proposta de ensino

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problematizador, onde o ensino da leitura e da escrita esteja além de uma transferência de
conhecimentos e da aquisição de habilidades codificadoras e decodificadoras, assumindo um
papel libertador do homem, para Freire a EJA deve considerar o conhecimento prévio do
educando, pois ele possui uma historia vivenciada e que não pode ser ignorada pela escola.
Marques (2010, p. 12) Ao falar sobre a figura de Paulo Freire como um referencial para a
educação de jovens e adultos coloca que:

Ele acreditava que o ato de educar deve contemplar o pensar e o concluir,


contrapondo a simples reprodução de ideias impostas - alfabetização deveria
ser sinônimo de reflexão, argumentação, criticidade e politização. Se em
práticas educacionais envolvendo alfabetização em níveis de escolaridades
“adequados”, metodologias tradicionais de ensino não despertam interesse
do educando, no EJA estas ações são um convite a evasão escolar.
(MARQUES, 2010, p. 12).

São essas experiências de vida, na família, no trabalho e na comunidade que fazem da


EJA uma modalidade de ensino diferenciada, com um público que apesar de não consciente
dessa necessidade, exigi uma abordagem de ensino-aprendizagem de leitura e escrita pautada
no seu cotidiano, no uso da língua partir de sua existência e do uso dessa língua para a vida
em sociedade.
As reflexões tecidas apontam que a EJA tem que considerar a relação entre trabalho e
educação, e para que isso ocorra é necessária uma nova estrutura que rompa com o sistema
escolar tradicional. Essa nova estrutura precisa ser desenvolvida de modo que atenda as
condições de vida e trabalho dessas pessoas.. Logo o ensino de leitura e escrita que não
considere essas especificidades do educando estará fadado ao fracasso, á falta de interesse
desse público e não cumprirão objetivo de formação cidadã. Gadotti (2007, p. 28) afirma
sobre o método de Freire:

Diga-se o mesmo em relação a seu método. Para construir seu método de


ensino, aprendizagem e pesquisa, Paulo Freire parte das necessidades
populares e não de categorias abstratas, entrelaçando quatro momentos
interdependentes: 1º – ler o mundo, o que implica o cultivo da curiosidade;
2º – compartilhar o mundo lido, o que implica o diálogo; 3º – a educação
como ato de produção e de reconstrução do saber; 4º – a educação como
432

prática da liberdade (GADOTTI, 2007, p. 28).


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O pensamento freiriano concebe o processo de ensino da leitura e escrita sob o ângulo
da práxis educativa, que implica na ação e reflexão do sujeito sobre o mundo que o cerca no
sentido de uma nova ação que vise transforma-lo, essa conquista se dá porque o jovem e
adulto já possuem um vasto conhecimento de vida, trabalham e convivem em sociedade, mas
o estudo e o domínio da leitura e a escrita permitem que essa atuação social seja ampla e que
eles passem a se reconhecer enquanto cidadãos críticos e conscientes de seus direitos e
deveres, utilizando as habilidades de leitura e escrita para a atuação na vida social.

3 Perspectivas de trabalho com leitura e escrita na EJA

Ainda tendo como base a teoria de Freire onde a educação não tem como meta única a
preocupação que o educando jovem e adulto apenas decodifique as palavras, como o próprio
Paulo Freire (1990) dizia “a leitura do mundo precede a leitura da palavra”, a realidade que
cerca o educando tem forte influência sobre a sua vida, a aprendizagem da leitura e da escrita
permite a esse educando que já enxerga o mundo que o cerca, uma releitura desse mundo com
a capacidade de interferência e mudança.
Considerar essa leitura de mundo que é muito mais ampla e profunda que a leitura da
palavra, não significa que o processo de ensino da leitura e da escrita seja desqualificado, ao
contrário ele ganha ainda mais força porque servirá como elemento de libertação, Freire
(1985, p.35) aborda a nova formar de alfabetizar jovens e adultos pontuando:

Se antes a alfabetização de adultos era tratada e realizada de forma


autoritária, centrada na compreensão mágica da palavra, palavra doada pelo
educador aos analfabetos, se antes os textos geralmente oferecidos como
leitura aos alunos escondiam muito mais do que desvelavam a realidade,
agora, pelo contrário a alfabetização como ao de conhecimento, como ato
criador e como ato político, é um esforço de leitura do mundo e da palavra
(FREIRE, 1985, p. 35).

A perspectiva de trabalho de leitura e escrita que se propõe é que seja superada a


alfabetização mecânica, e o processo de assimilação do conhecimento se caracterize como
produtivo e promotor da cidadania na sociedade contemporânea. A leitura e escrita das
433

palavras só terão sentido quando essas se conectarem com o contexto de vida dos educandos,
quando representarem os pensamentos, angustias, inquietações sobre o mundo e sobre tudo o
Página

que é significativo para o jovem e adulto.

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As propostas de alfabetização de jovens e adultos que seguem o pensamento freiriano
tem como base ideológica a proposta inicial da experiência realizada pelo próprio Paulo Freire
e necessariamente precisa ter um caráter libertador, visando não somente a alfabetização,
como uma decodificação de mensagens escritas, mas uma tomada de consciência crítica,
interferido diretamente na formação do sujeito como cidadão, conhecedor de seus direitos e
deveres dentro da sociedade, como participante que não apenas está inserido em um contexto
social, mas que faz parte direta desse contexto, não de forma passiva, mas de forma ativa,
permitindo a criação e recriação da realidade, superando a visão bancária da educação, que
em pleno século XXI ainda é tão comumente aceita. Dentro desse contexto de Beisiegel
(2004, p. 41) afirma:

A mera alfabetização já não é aceitável. (...) é preciso assegurar, pelo


menos, uma educação que realmente ajude os educandos na plena
formação dos direitos da cidadania. Os projetos que parecem emergir
da análise dos programas de educação popular praticados na
atualidade, com poucas exceções, apontam para uma vida social
marcada pelo respeito aos direitos da cidadania.

A educação servirá dentro dessa proposta um instrumento de libertação e tomada de


consciência crítica dos jovens e adultos, pois as habilidades de leitura e escrita a serem
dominadas pelos trabalhadores tornar-se-ão instrumentos para o acesso a cidadania e para a
autonomia da gestão de seus negócios. O aluno da EJA passa na maioria das vezes por um
processo de exclusão social que o impede de dar continuidade aos seus estudos, essas
perspectivas de um ensino de leitura e escrita partem da compreensão de que o aluno não
apenas sabe da realidade em que vive, mas também participa de sua transformação.
A aquisição da leitura e escrita é de fundamental importância para a vida em
sociedade, se constitui também como um processo fundamental para a tomada de
posicionamento e formação de cidadãos críticos e conscientes de seus direitos e deveres na
sociedade e nos diversos setores que a compõe, nesse sentido a Educação de Jovens e Adultos
assume um importante papel no âmbito social, pois muito mais do que trabalhar as
habilidades de leitura e escrita, ela precisa trabalhar o resgate da cidadania buscando
caminhos para a inclusão social, pode ser uma das alternativas de inclusão desses
434

trabalhadores e alunos.
Dentro das perspectivas de trabalho com a EJA se coloca a questão do letramento
Página

como alternativa para a utilização do ensino de língua materna numa proposta que vá além de

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apenas ler e escrever de forma funcional. Segundo Soares (2001, p. 47): “o ideal seria
alfabetizar letrando, ou seja: ensinar a ler e a escrever no contexto das práticas sociais da
leitura e da escrita, de modo que o indivíduo se tornasse, ao mesmo tempo, alfabetizado e
letrado”. Esse aspecto do ensino permitirá ao aluno da EJA o uso da leitura e escrita para
facilitar sua vida social, interagir e intervir no contexto onde está inserido.

Considerações finais

O estudo permitiu concluir que a história da educação brasileira no que se refere a


Educação de Jovens e Adultos, aponta para uma dívida social muito grande, onde a esses foi
negado durante séculos o direito à educação, mesmo diante das alternativas de ensino
propostas, a história de vida, cultura e identidade dessa modalidade eram desconsideradas.
Ao longo das décadas foram criados e implementados pelo governo diversos projetos
que visavam atingir o público alvo de jovens e adultos analfabetos e erradicar o índices
negativos do Brasil nessa modalidade, entretanto essas iniciativas de ensino de leitura e
escrita , não tiveram grandes resultados, haja vista que nunca se pautaram nas especificidades
da modalidade e suas práticas buscavam reproduzir um modelo de ensino que é utilizado com
crianças, sem considerar os conhecimentos prévios e a leitura de mundo que o jovem e adulto
possui ao ingressar na escola. Esses projetos e programas tinham pretensões a curto e médio
prazo e representaram pouco avanço diante da dificuldade de manter os jovens e adultos em
sala de aula fato revelado nos altos índices de evasão.
A pesquisa permitiu refletir sobre os educandos enquanto sujeitos possuidores de sua
própria história de vida, a qual não pode ser desconsiderada dentro do ensino da leitura e da
escrita, mas sim a realidade de vida precisa ser trabalhada de forma significativa, sendo
considerada durante todo o processo de ensino aprendizagem pelo educador.
A partir da teoria de Paulo Freire sobre um olhar diferenciado para a EJA foi possível
aos educadores tecerem novas reflexões sobe o ensino da leitura e escrita, transcendendo o
caráter funcional, memorizador e bancário do ensino da língua. Diante da pesquisa e de
reflexões tecidas a partir da educação libertadora e problematizadora proposta por Paulo
Freire, acredita-se que não se pode desmerecer ou ignorar os conhecimentos prévios trazidos
435

pelo público da EJA, eles têm uma história de vida que precisa ser respeitada e valorizada
fazendo os compreender seu papel diante do mundo e que a aquisição da habilidade de leitura
Página

e escrita irão proporcionar melhorias na qualidade de vida.

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Essa pesquisa permitiu ainda ver o letramento como uma alternativa de ensino da
língua, preparando o educando para lidar com a leitura e escrita enquanto práticas sociais. E
aponta para a necessidade de um maior aprofundamento dessa questão do letramento voltado
para a EJA.

Referências

BEISIEGEL, Celso. A política de educação de adultos – analfabetismo no Brasil. São


Paulo: Vozes, 2004.

BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional 9394/96. Disponível em:


http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9394.htm . Acesso em: 02 ago. 2017.

FREIRE, Paulo.; FAUNDEZ, Antonio. Por uma pedagogia da pergunta. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1985.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014.

______. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. São Paulo: Cortez,
1990.

GADOTTI, Moacir. A escola e o professor: Paulo Freire e a paixão de ensinar. 1. ed. – São
Paulo : Publisher Brasil, 2007.

______. Educação de Jovens e Adultos: teoria, prática e proposta. São Paulo: Cortez, 1997.

LIMA, L.O. Estórias da educação no Brasil: de Pombal a Passarinho. Rio de Janeiro:


Brasília 1997.

MARQUES, Cristiane Eufrásio. A construção do conhecimento na Educação de Jovens e


Adultos. Artigo de graduação (Curso de Pedagogia) Faculdade Alfredo Nasser. Instituto
Superior de Educação. Aparecida de Goiânia, 2010. 22 p.

MOURA, M.G.C. Educação de Jovens e Adultos: um olhar sobre sua trajetória histórica.
Curitiba: Educarte, 2009.

SOARES, Magda B. Alfabetização e letramento: caminhos e descaminhos. No prelo:


Revista Pátio, n. 29, fevereiro de 2004.

VIEIRA, M. C. Fundamentos históricos, políticos e sociais da educação de jovens e adultos


no Brasil. Universidade de Brasília, Brasilia, 2004.
436

.
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GT3 – ENSINO DE LÍNGUA MATERNA

O CONCEITO DE TEXTO E SEUS ELEMENTOS COMPOSICIONAIS A PARTIR


DE DIFERENTES ABORDAGENS

Prof.ª Ma. Maria Bernadete de Santiago Ribeiro (SEDUC)


Prof. Dr. Gilson Chicon Alves (UERN)

Introdução

No decorrer do tempo verificamos que os estudos realizados em torno da Linguística


Textual têm nos possibilitado compreender o que, de fato, pode ser considerado texto. Várias
teorias foram desenvolvidas em torno do assunto a partir da década de 1970. Apresentaremos
nesse artigo ideias em torno da concepção de texto, dos elementos composicionais e como
esses elementos são utilizados no processo de compreensão do texto.
Entretanto, muitos questionamentos em relação ao texto, continuam a fazer parte do
cotidiano do professor de Língua Portuguesa: o que vem a ser texto? Que elementos podem
ser considerados na constituição de um texto? Que elementos estabelecem a relação de
sentido no texto?
Nesse sentido, o presente trabalho busca refletir sobre tais questões, a partir de uma
fundamentação teórica que contempla o estudo do texto, sendo que esse pode ser considerado
essencial para o desenvolvimento de um indivíduo capaz de ser sensível, crítico e atuante nos
diferentes contextos sociais.

1 Concepções de texto

Parece simples apresentarmos um conceito para algo que já vem sendo discutido por
tanto tempo e por muitos teóricos, porém é salutar lembrar que as ideias que os indivíduos
apresentam em relação ao que entendem por texto é resultado de um longo processo de
discussão que nem sempre foi ou é consenso entre os envolvidos. Assim, continuaremos a
descrever os estudos realizados pela Linguística Textual que permanece tendo como foco o
texto, ponto central de seus estudos.
437

Nesse sentido, temos clareza que, assim como qualquer objeto, o texto pode apresentar
conceitos distintos, pois isso poderá ocorrer em consequência das orientações norteadoras nas
Página

quais o autor se fundamenta para construir a definição.

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Inicialmente, precisamos entender que, no período em que ocorreram os estudos
transfrásticos e das gramáticas textuais, a ênfase estava voltada para a estrutura do texto,
aquilo que se apresentava materializado.
Uma ideia bastante difundida, durante os estudos transfrásticos e das gramáticas
textuais, era de um texto concebido como produto acabado que não recebe influência de
fatores externos no processo de construção. Koch (2015, p. 21) afirma que “durante esta fase
os conceitos de texto variavam desde unidade linguística (do sistema) superior à frase, até
complexo de proposições semânticas”.
Dentro da perspectiva do período, visualizamos ideias de texto como unidade que
pode ser analisado independentemente do espaço de produção, este apresenta uma estrutura
maior que aquela definida como frase. Para ilustrar essa concepção, é pertinente ressaltar o
que diz Stammerjohann, citado por Bentes (2005, p. 253):

O termo texto abrange tanto os textos orais, como os escritos que tenham
como extensão mínima dois signos linguísticos, um dos quais, porém, pode ser
suprido pela situação, no caso de textos de uma só palavra, como “Socorro”,
sendo sua extensão máxima indeterminada (STAMMERJOHANN apud
BENTES, 2005, p. 253).

Quando analisamos as ideias do autor, conseguimos perceber que ele foca sua atenção
nos aspectos de constituição que se apresentam materializados no texto, como por exemplo,
sua extensão. Observamos que ocorreu uma ênfase no que poderíamos chamar de palpável,
isto é, o que aparece como visível. Portanto, o realce era dada à estrutura apresentada, fica
evidente que a materialização presente na superfície textual pode ser considerada como
pronta, necessitando apenas ser compreendida pelo leitor/receptor, mas que não precisa estar
situada em um determinado tempo e espaço.
Ainda na linha de pensamento em que concebe o texto como acabado, constituído de
conteúdo, Fávero e Koch (2012, p. 29) citam Weinreich (1971) para quem “o texto é
considerado como um conjunto de proposições semânticas”. O estudioso concebe os textos
como resultado de diferentes aspectos: “a) sequência coerente e consistente de signos
linguísticos; b) a delimitação por interrupções significativas na comunicação; c) o status do
438

texto como maior unidade linguística” (FÁVERO; KOCH, p. 29-30).


Observamos que essa definição mostra uma ampliação dos elementos que compõem o
Página

texto, entretanto, percebemos que existe uma preocupação voltada para o estudo do objeto

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como algo já constituído, necessitando ser analisado, não sofrendo assim outras interferências
que contribuam de forma determinante para a construção de sentido do texto.
Sendo assim, podemos entender que, para os autores mencionados, existe uma
preocupação com o conteúdo presente no texto e a forma na qual se apresenta organizado. As
concepções que embasam os estudos estão relacionadas com a análise transfrástica e a
elaboração de gramáticas textuais.
Entretanto, existem autores que não compartilham das ideias de Stammeijohann e
Weinreich. Bentes (2005, p. 254) cita Leontév, que afirma o seguinte: “o texto não existe fora
de sua produção ou de sua recepção”. Partindo dessa afirmação, podemos entender que sua
elaboração não deixa de lado fatores essenciais como contexto e sua intenção comunicativa.
Koch (2010, p. 25-26) salienta que, no interior de orientações de natureza pragmática,
o texto passou a ser encarado:

a. Pelas teorias acionais, como uma sequência de atos de fala; b. pelas


vertentes cognitivas, como fenômeno primariamente psíquico, resultado,
portanto de processos mentais; e c. pelas orientações que adotam por
pressuposto a teoria da atividade verbal, como parte de atividades mais
globais de comunicação, que vão muito além do texto em si, já que este
constitui apenas uma fase desse processo global.

Baseado nos escritos da autora, podemos entender que o texto não pode ser concebido
como algo que se constitui fora de um contexto social e sem intencionalidade. O ser humano,
para realizar a composição de um texto, faz uso de diversas operações e estratégias a partir de
situações concretas e em processo de interação social, buscando fazer com que seu
interlocutor seja capaz de compreender sua intenção.
Por conseguinte, o texto quando em contato com seu receptor, não pode ser
visualizado como produto, mas como processo que se constitui a partir da interação
autor/receptor mediante situações concretas. Koch (2010, p. 26) afirma que:

a produção textual é uma atividade verbal, a serviço de fins sociais [...]; b.


trata-se de uma atividade consciente, criativa, que compreende o
desenvolvimento de estratégias concretas de ação e a escolha de meios
adequados à realização dos objetivos: isto é, trata-se de uma atividade
439

intencional que o falante, em conformidade com as condições sob as quais o


texto é produzido, empreende, tentando dar a entender seus propósitos ao
destinatário através da manifestação verbal; c. é uma atividade interacional,
Página

visto que os interactantes, de maneiras diversas, se acham envolvidos na


atividade de produção textual.

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Bentes (2005, p. 254 – 255), em seus estudos, apresenta ideias que se aproximam das
defendidas por Koch quando afirma que:

a. a produção textual é uma atividade verbal, isto é os falantes, ao


produzirem um texto, estão praticando ações [...] estão inseridos em
contextos situacionais, sociocognitivo e culturais, assim como a serviço de
certos fins sociais; b. a produção textual é uma atividade verbal consciente,
isto é, trata-se de uma atividade intencional, por meio da qual o falante dará
a entender seus propósitos, sempre levando em conta as condições em tal
atividade é produzida; [...] Em outras palavras, o sujeito sabe o que faz,
como faz e com que propósitos faz. c. a produção textual é uma atividade
interacional, ou seja, os interlocutores estão obrigatoriamente, e de diversas
maneiras, envolvidos nos processos de construção e compreensão de um
texto.

Deste modo, conseguimos entender que um texto não é constituído apenas pelo autor,
mas em parceria com seu interlocutor, com finalidades definidas e a partir de um contexto
social em que ambos estão inseridos. O produtor busca estratégias que façam de seu
interlocutor um participante ativo, possibilitando a este estabelecer a conexão com o material
linguístico acessado no processo de interação.
Porém, acreditamos ser interessante lembrar que o produtor no processo de produção
deve fazer as escolhas sintáticas, buscando dialogar com o seu interlocutor, levando em
consideração o conhecimento internalizado por este na tentativa de fazê-lo chegar ao objetivo
proposto que é compreender o texto.

O leitor precisa trabalhar para entender o texto. Não basta deixar passar o
texto pelo sistema linguístico português, que o espremeria para retirar o suco
(que é o significado). O receptor tem de colocar em jogo seu conhecimento
que é relevante para a compreensão do texto em questão e construir as
“pontes” de sentido que amarram o texto, fazendo dele uma unidade. Por
isso se diz, corretamente, que o receptor produz o sentido (não apenas o
recebe); a própria palavra receptor, consagrada pelo uso, é enganosa: o
receptor faz tanto quanto o emissor para dar sentido ao texto (grifos do
autor) (PERINI, 2000, p. 64).

Percebemos assim, o receptor como um ser ativo no processo de construção do texto.


Portanto, ao contrário do que poderia pensar, quem ouve ou lê não é um simples receptor, mas
440

participa também para a elaboração do sentido atribuído ao texto. O leitor não faz apenas uma
simples recepção das informações, ele busca estabelecer sentido; para isso, levanta hipóteses
Página

com intuito de relacionar as ideias.

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Quando o leitor não consegue levantar nenhuma hipótese, quando não estabelece
sentido, isso mostra que aquele conjunto de palavras (ou imagens) para ele não é texto. Outros
autores também comungam da concepção de um texto concebido em processo de interação.
Marcuschi (2012) apresenta uma definição envolvendo a Linguística Textual e seu objeto de
estudo que é o texto, conforme exposto a seguir:

Proponho que se veja a Linguística Textual, mesmo que provisória e


genericamente, como o estudo das operações linguísticas e cognitivas
reguladoras e controladoras da produção, construção, funcionamento e
recepção de textos escritos e orais. Seu tema abrange a coesão superficial ao
semântico dos constituintes linguísticos, a coerência conceitual ao nível
semântico e cognitivo e o sistema de pressuposições e implicações ao nível
pragmático da produção de sentido no plano das ações e intenções
(MARCUSCHI, 2012, p. 48).

O texto assim é visto como resultado de um ato de comunicação realizado pelos seres
humanos, que levam em consideração diferentes elementos em seu processo de constituição.
Ao construir um texto, precisamos fazê-lo de forma organizada, utilizando os elementos
linguísticos que favoreçam ao leitor relacionar as ideias. Aqui, vale lembrar que, apesar de
darmos ênfase ao aspecto linguístico, não podemos esquecer que os conhecimentos não
linguísticos, as estratégias e as expectativas que temos quando lemos um texto constituem-se
como ferramentas essenciais aos indivíduos que apresentam vivências sociais e culturais
diferentes. Desse modo, fazem uso da semântica e da pragmática, como elementos
importantes que devem ser considerados para a construção de sentido estabelecida no texto.
Marcuschi (2012, p. 51) discorda da posição de que “a boa formação de texto seria
uma função determinada pela boa formação das sentenças, o que é, evidentemente, um
absurdo”. Nesse sentido, um texto não pode ser definido pela boa formação das sentenças.
Ainda segundo Marcuschi (2012, p. 51):

Axiomatizar a competência textual é possível apenas como perspectiva


teórica, mas impossível como realização de fato, o que não significa que não
possamos oferecer formas parciais para porções ou aspectos específicos de
T. Contudo, a soma de todas as porções não formará uma teoria unificada
geral.
441

De acordo com o fragmento, os fatores que compõem um texto apresentam-se de


Página

forma mais ampla do que aqueles elementos responsáveis pela estruturação de uma frase.

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Além disso, as organizações feitas pelos sujeitos são diversas em função das situações a que
estão expostos, e também das necessidades dos propósitos comunicativos definidos quando
em processo de interação. Fica evidente a ideia de que todo texto tem uma forma de
organização própria, que está associada à construção de sentido que precisa ser estabelecida
pelo texto.
Mediante o exposto até o presente momento, fica evidente que ao longo do tempo o
texto foi visto de formas diferentes pelos autores, sempre levando em consideração os aportes
teóricos para construções de suas concepções.

2 Elementos composicionais do texto

Para constituição de um texto, é sempre necessário conhecer as crenças e saberes já


internalizados pelo interlocutor, caso o autor não leve em consideração esses aspectos,
dificilmente o leitor conseguirá contribuir no processo de construção de sentido que deverá
ocorrer quando em contato com o texto. Koch (2010, p. 28) lembra que “a informação
semântica contida no texto distribui-se como se sabe, em pelo menos dois grandes blocos: o
dado e o novo”. Percebemos que a aproximação entre o campo semântico do autor/leitor em
relação ao objeto em estudo é fator essencial para que o ato de comunicação ocorra realmente.

2. 1 O dado

Koch (2010, p 28) faz referência a Chafe (1997) para explicitar ideias a respeito do
assunto, diz que essas informações têm por função estabelecer os pontos de ancoragem para o
aporte de informação nova. A informação considerada como dada é aquela que o interlocutor
já consegue armazenar durante suas experiências nos mais variados contextos, interagindo
com outros seres humanos em ambientes diversos.

2. 2 O novo

A informação nova é constituída por informações que se apresentam como


442

desconhecida por seu interlocutor, porém, como o texto vem ancorado por informações dadas
é possível ao interlocutor construir o valor semântico ofertado pela informação nova. Por isso,
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é sempre bom lembrar que, durante a organização do texto, deve haver um equilíbrio entre as
informações novas e dadas.

3 Elementos que estabelecem a relação de sentido no texto

Os estudos desenvolvidos pela Linguística do Texto vêm demonstrando que a


retomada de informações pode ser feita por remissão ou referência textual. Koch (2010, p. 28)
afirma que:

A remissão se faz, frequentemente, não a referentes textualmente expressos,


mas a “conteúdos de consciência”, isto é, a referentes estocados na memória
dos interlocutores, que, a partir de “pistas” encontradas na superfície textual,
são (re)ativados, via inferenciação (destaques da autora).

A partir das indagações da autora, podemos verificar que as inferências cognitivas são
extremamente importantes, pois através delas é possível estabelecer a conexão entre o
conhecimento já internalizado pelo interlocutor e o material linguístico presente na superfície
do texto. Atualmente, sabemos que um aglomerado de frases não pode ser considerado como
texto, isto quer dizer que mesmo estando reunidas são necessários outros elementos para
garantia da existência de um texto.
Para ser texto, é necessário que exista uma relação entre os elementos linguísticos
selecionados para compor o todo, permitindo que durante o processo de interação, o
interlocutor analise o conteúdo presente, mas que possa ir além disso, sendo capaz de ativar
outros conhecimentos já internalizados em decorrência de suas vivências em ambientes
socioculturais diversos (KOCH, 2010).
Koch (2009, p. 25) afirma que: “A relação que tem de ser estabelecida pode ser
semântica (entre conteúdos), mas também pragmática, entre atos de fala, ou seja, entre ações
que realizamos ao falar (por exemplo: jurar, asseverar, pedir, ameaçar, prometer, avisar,
advertir etc.)”.
Nesse sentido, compreendemos que em determinadas situações faz-se necessário
levarmos em consideração a ordem prática, sem rodeios, buscando tornar claro seu propósito
443

comunicativo. Portanto, devemos entender que um texto, mesmo apresentando vocábulos


diferentes, mas com o mesmo valor semântico, é capaz de garantir a construção de sentido
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necessária para que de fato aconteça a comunicação.

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Sendo assim, um dos princípios básicos de constituição do texto é o fato dele
constituir-se como uma unidade semântica, que deve ser percebida pelo receptor, como um
todo significativo.
Assim, vale salientar que um texto se constitui a partir de um contexto, entendemos
que ele não surge de um vazio, e sim de uma situação que influencia seu processo de
produção, verificamos, assim, uma mudança de paradigma em relação à forma de concepção
em relação ao texto.
Como afirma Koch (2010, p. 26), “o texto deixa de ser entendido como estrutura
acabada (produto), passando a ser abordado no seu próprio processo de planejamento,
verbalização e construção”. A princípio, precisamos entender que o texto só faz sentido se
tiver como base um contexto que fundamente à constituição do texto a ser produzido e, assim,
ganhe sentido. Porém, para compreendermos um texto, é necessário observar a sua totalidade,
pois todos os elementos, que se fazem presentes e aqueles acionados pelo receptor,
contribuem para o processo de compreensão.
Um aspecto simples, mas que precisamos ter clareza é que o texto tem início e fim,
porém não estamos falando de tamanho, pois existem textos compostos de apenas uma
palavra. Além disso, é preciso entender que o texto está situado em um determinado período,
com isso, compreendemos que por ser constituído a partir de um debate social, ele se constitui
das vozes que vamos construindo durante nosso processo de formação. Sua constituição leva
em consideração o espaço e o momento histórico. Sendo assim, não pode ser visto como uma
produção individual.
Oliveira (2013, p. 318) deixa evidente que:

Quando os participantes do discurso produzem ou interpretam um texto, eles


já trazem para esses atos um conjunto de crenças e conhecimentos prévios
estruturados mentalmente, o que funciona como uma interface entre as
estruturas sociais e as estruturas discursivas.

Fica evidente, nos estudos apresentados pelo autor, que os sujeitos, ao longo de sua
vida, armazenam em sua memória informações que serão utilizadas durante o processo
comunicativo e de produção, mediante o cenário que lhe for apresentado.
444

No decorrer de nossa trajetória, armazenamos em nossa memória representações que


são controladas pelos esquemas mentais, porém, (VAN DIJK, 2006) chama a atenção para um
Página

fato importante: embora as representações mentais feitas pelos participantes do evento

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discursivo sejam “subjetivas e únicas, elas não apenas apresentam conhecimentos e crenças
pessoais, como também incorporam grandes quantidades de conhecimentos, e outras crenças
socialmente compartilhadas” (VAN DIJK, 2006, p. 172).
Percebemos, assim, que as representações mentais construídas pelos indivíduos podem
variar entre os sujeitos, por isso não podemos aceitar que todos os indivíduos, mediante
determinadas situações apresentadas pelo contexto, construam uma mesma representação
mental para esse episódio. Salientamos que, para a construção do texto, levamos em
consideração nossos conhecimentos e crenças já internalizados.
Entretanto, sabemos que a coesão sozinha não define um texto. Koch e Travaglia
(2009) esclarecem que “a coesão textual, mas não só ela, revela a importância do
conhecimento linguístico (dos elementos da língua, seus valores e usos) para produção e
compreensão e, portanto, para o estabelecimento da coerência” (KOCH; TRAVAGLIA, 2009,
p.14). O texto, assim, é resultado não só dos elementos linguísticos, mas da relação destes
com seu contexto de produção, pois isso contribuirá para que ocorra a construção de sentido.
Baseando-nos nas discussões dos autores em análise, compreendemos que são muitos
os elementos considerados na constituição do texto; sendo assim, o texto não pode ser
considerado como objeto autônomo.

Considerações finais

O texto é objeto de estudo da Linguística Textual. Entretanto, como vimos, os


conceitos em relação ao objeto foram se modificando ao longo do tempo. Os estudos nos
permitiram verificar as diferentes ideias que prevaleceram do período transfrástico até as
abordagens mais recentes, com posicionamento de diferentes autores em relação ao texto e
aos elementos que os compõem. Além disso, evidenciamos aspectos relevantes que são
utilizados no estabelecimento de sentido atribuído ao texto.
Sendo assim, entendemos que o sentido de um texto é construído (ou reconstruído) na
interação texto-sujeitos e não como algo que antecede a essa interação.
A partir das reflexões foi possível concluir que o texto é visto como resultado de um
ato de comunicação realizado pelos seres humanos, que levam em consideração diferentes
445

elementos em seu processo de constituição. Com isso, não pode ser de visto como produto, e
sim, como algo em constante processo de mudança.
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Portanto, essa nova visão acerca de texto, contexto e interação resulta, inicialmente, de
uma contribuição relevante, proporcionada pelos estudiosos De acordo com essa nova
perspectiva, existe uma relação continua entre esses elementos, sendo assim, o texto não pode
ser considerado como objeto autônomo.

Referências

BENTES, Ana Christina; MUSSALIM, Fernanda. Introdução à Linguística: domínios e


fronteiras. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2005.

FÁVERO, Leonor Lopes; KOCH, Ingedore Villaça. Linguística textual: introdução. 10. ed.
São Paulo: Cortez, 2012.

KOCH, Ingedore Villaça; TRAVAGLIA, Luiz Carlos. A coerência textual. 17. ed. – 3ª
reimpressão – São Paulo: Contexto, 2009.

KOCH, Ingedore Villaça; A coesão textual. 21 ed., 3. reimp. São Paulo: Contexto, 2009.

KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça. O texto e a construção de sentido. 9. ed. 3. Reimp. São
Paulo: Contexto, 2010.

_______. Introdução à Linguística textual: trajetórias e grandes temas. 2. ed. São Paulo:
Contexto, 2015.

MARCUSCHI, Luiz Antônio. Linguística do texto: o que é e como se faz? São Paulo:
Parábola, Editorial, 2012.

OLIVEIRA, Luciano Amaral. (Org.). Estudos do discurso: perspectivas teóricas. São Paulo:
Parábola Editorial, 2013.

PERINI, Mario A. As gravatas de Mario Quintana (não basta saber uma língua para entendê-
la). In: Sofrendo a gramática: Ensaios sobre linguagem. 3. ed. São Paulo: Ática, 2000.

VAN DIJK, Teun. Context and Cognition: Knowledge Frames and Speech Act
Comprehension. Journal of Pragmatics, v. 1, n. 3, 1977.
446
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GT3 – ENSINO DE LÍNGUA MATERNA

IDENTIDADE E VARIAÇÃO LINGUÍSTICA EM A HORA DA ESTRELA DE


CLARICE LISPECTOR

Maria da Luz Duarte Leite Silva (UFRN)


Albert Ítalo Leite Ferreira (UFERSA)
Francisco Helton Duarte Leite (UFRN)

Tecendo algumas considerações

Sabemos que a linguagem é um dos principais mecanismos de interação e


comunicação entre os sujeitos, sendo essencial para o convívio dos indivíduos em sociedade.
A sociedade a qual fazemos parte é formada por povos de diferentes raças, etnias, falas,
dentre outras especificidades, que requer discernimento e, sobretudo, entendimento dos
povos, isso, porque, desde tempos remotos o ser humano já apresentava necessidade, bem
como, capacidade de comunicar-se.
Para Barbosa (2008), o homem sempre fez uso de variadas maneiras de comunicação,
tanto oral, como escrita. Essas duas modalidades fazem parte de um sistema linguístico, o
qual permite ao sujeito estabelecer contato com o mundo e com o outro. Isso posto, por
entendermos que a linguagem é natural e inata ao indivíduo, influenciando e sendo
influenciado por ela, e pelo outro que fala, refletindo diretamente na língua. Há diferenças de
fala de pessoa para pessoa de acordo com: a faixa etária, a cor, a raça, o nível social, a
cultural, a fala e a escrita. Saussure (2006) apresenta que a língua é social, já a fala é
individual, própria de cada um.
A partir, do discutido, entendemos que os sujeitos sociais muitas vezes rotulam os
falares de outros, impondo, muitas vezes o uso da língua que denominam como padrão, ou
melhor, correta, desprezando a “linguagem adquirida”, ou seja, a linguagem adquirida nas
experiências vividas ao longo da vida.
Sabemos que a língua é social e viva, ao contrário do que muitos pensam, - morta - a
língua é viva, por isso, passa por transformações ao longo do tempo. Quando falamos de
norma culta o que de imediato pensamos? A língua presente nas gramáticas, considerada para
muitos como o terror do português. Por tudo isso, sugestivamente, traz inquietações,
447

desconforto, dentre outros estereótipos.


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Para Bagno a língua é muito mais que saber gramática, a gramática não é o todo é
parte dela, por isso, compara a gramática a um Igapó no Amazonas, e a língua a um rio
caudaloso.

A língua é um rio caudaloso, longo e largo, que nunca se detém em seu


percurso, a gramática normativa é apenas um igapó, uma grande poça de
água parada, um brejo, um terreno alagadiço, à margem da língua. Enquanto
a água do rio/língua por estar em movimento, se renova incessantemente, a
água do igapó gramática normativa envelhece e só se renovará quando vier a
próxima cheia (BAGNO, 2007, p. 10).

A discussão acima leva-nos a refletir sobre o conceito e, função da gramática que


aprendemos. Por isso, podemos dizer que é interessante, voltar nosso olhar para a linguagem
que circula na sociedade, pois estamos imersos em uma sociedade cambiante, e
consequentemente em um mundo globalizado. Vivemos, convivemos e interagimos com
variados recursos tecnológicos que facilita, de certa forma, a nossa vida, ou melhor, a
comunicação das pessoas de maneira rápida e prática. E como a língua está em permanente
transformação, não podemos olhar para ela como se estivéssemos estagnados no tempo, pois
os sujeitos sociais não são seres vivos habitantes de um igapó com mentes cansadas,
intelectualidade morta, mas, de seres pensantes reflexivos, aptos a mudanças e adaptações às
demandas da sociedade em mutação como essa.
Diante do discutido, propomo-nos neste estudo, analisar algumas variações
linguísticas presente na obra: “A hora da estrela” de Clarice Lispector, por entendermos que
esta escritora retrata em suas narrativas acontecimentos aparentemente banais, corriqueiros.
Daí, podermos dizer que sua literatura é propícia para alcançarmos nosso foco. Desta feita,
subsidiamos de alguns postulados, tais como: Marcos Bagno (2007), Bortoni-Ricardo (2004),
Travaglia (1996), Possenti (1996), dentre outros. Assim sendo, iniciamos as discursões sobre
variação linguística, por entendemos ser imprescindível para alcançar nosso foco.

1 Variação linguística: iniciando nossa conversa

Podemos dizer, com base em estudos da linguística, que variação linguística, pode ser
448

entendida como sendo um fenômeno complexo que ocorre na língua dos sujeitos sociais, daí,
pode ser vista como a diversidade de usos que os falantes fazem da língua. Assim, as
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variações acontecem na formação e estruturação da nossa língua, estando associada a fatores
extralinguísticos.
Os sociolinguistas apontam que existem vários fatores sociais que ajudam na
identificação dos fenômenos da variação linguística, tais como: origem geográfica, status
socioeconômico, grau de escolaridade, idade, sexo, mercado de trabalho redes sociais etc.
Assim, percebemos que o termo variação linguística geralmente está associado à concepção
de “erro” quando na verdade deveria ser compreendida como forma de adequação da língua
às circunstâncias de uso. A concepção de “erro” está ligada a não obediência às normas
tradicionais da língua, permeada equivocadamente no âmbito escolar, uma vez que a
gramática é vista como modelo ideal de língua. De acordo com Bagno (2007): “Ninguém
comete erros ao falar sua própria língua materna, assim como ninguém comete erros ao andar
ou respirar. Só se erra naquilo que é aprendido, naquilo que constitui um saber secundário,
obtido por meio de treinamento, prática e memorização [...]” (BAGNO, 2007, p. 124).
Para Bagno, os sujeitos não cometem “erro” na oralidade, pois falamos português,
compreendemos e somos compreendidos. Não precisamos de aprender a regra de uso, e, sim
as diversas variedades linguísticas que são apresentadas em diferentes ambientes e situações.
Daí, podemos afirmar que a língua é heterogênea e dinâmica, além de ser comum a existência
das diferentes formas de linguagem utilizadas por falantes de um mesmo idioma.
A partir do discutido, vemos que a língua apresenta variações, principalmente no que
se refere ao português falado e, consequentemente, ao escrito. Assim, na língua portuguesa
não existe apenas uma linguagem – padrão (norma culta) a linguagem considerada “correta”,
há também a linguagem não-padrão, a considerada “errada”. Conforme Bagno (2007), a
concepção de que há duas variações na língua sendo uma considerada “correta” e a outra
“errada”, é equivocada, bem como preconceituosa, porque a linguagem padrão é
simplesmente uma variante da língua padrão portuguesa.
Caminhando por esse raciocínio, entendemos que na língua não há formas ou
expressões erradas, mas, há variações de acordo com o gênero, classe social, escolaridade,
dentre outros fatores. Desde muito cedo a criança é capaz de formular sentenças, sem que com
isso, vemos a gramatica “errada”. Por isso, defendemos que a gramática da Língua Portuguesa
pode ser compreendida por seus falantes, independente de serem alfabetizados ou não. Isso
449

nos mostra que não é necessário conhecer a gramática para falar bem.
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Chomsky defende que o indivíduo nasce com a capacidade inata de compreender e, de
reconhecer a estrutura de sua língua. Daí, com base na teoria gerativista de Chomsky não é
aceitável que um sujeito não saiba falar a sua própria língua.
Vale destacar que para Vygotsky o sujeito influencia, e é influenciado pelo meio em
que vive, ou seja, o meio influencia diretamente na formação do indivíduo. Embora se
confrontem os pensamentos dos teóricos acima a respeito da linguagem, compreendemos que
suas teorias contribuem de forma significativa no entendimento de como se dá o
desenvolvimento da linguagem. Assim, enquanto a linguagem para Chomsky é inata, própria
de cada um e, independe do meio, para Vygotsky a linguagem flui das interações e
socializações com outros indivíduos, sendo assim, (algo externo) ao sujeito. Seguindo esse
entendimento, podemos compreender a importância da língua como fator primordial e, as
variações linguísticas que circulam na sociedade.
Desta feita, vemos que na língua materna não há falares corretos ou errados, bonitos
ou feios, há falares diferentes. Quando afirmamos que um sujeito não sabe falar correto,
estamos imbuídos de preconceitos linguísticos. Este tem sido, um fenômeno que tem causado
muita inquietação, insatisfação e despertado nos estudiosos da língua, o direcionamento para
o estudo na área da sociolinguística.
Precisamos entender que a língua está em constante movimento e transformação,
mesmo porque é notável a mudança da linguagem na atualidade. Por isso, a sociolinguística
relaciona de maneira específica, língua e sociedade. Sem a língua o indivíduo não se organiza
socialmente, pois é pela natureza linguística e social, que o sujeito se comunica, bem como se
constitui como ser social racional. Sendo assim, não há língua sem sociedade e nem sociedade
sem língua, e, muito menos sujeito social sem o uso da língua. De acordo com Saussure “A
linguagem tem um lado individual e um lado social, sendo impossível conceber um sem o
outro.” (SAUSSURE, 2001, p. 16).
O preconceito linguístico é decorrente da não aceitação de uma palavra, quando
utilizada de forma inadequada e, na maioria das vezes, essas palavras ou expressões são
pronunciadas por falantes de classes sociais menos favorecidas, que não dominam a língua
padrão, sendo consideradas incapazes de se comunicar, tendo seu valor desmoralizado diante
de sua comunidade de fala. De acordo com Bagno (2007) o problema não é a língua em si,
450

mas a pessoa que fala, quanto mais a pessoa for de classe inferior à elite ou de região
subdesenvolvida, atrasada e pobre, seus habitantes serão desfavorecidos e ridicularizados
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diante de sua comunidade de fala, eles carregam o fardo do preconceito linguístico, são vistos
incapazes de saber português.
Para Bagno (2007, p. 66) “[...] A gramática está à margem da língua, enquanto a
língua do rio/língua se renova, isso, por estar em movimento, se revigora incessantemente, a
água do igapó/gramática envelhece e só se renovará quando vier a próxima cheia.” Para
Bagno, a língua vai muito além do que pensa, ela é construída coletivamente, uma vez que é
social. Não podemos observar seu percurso e desenvolvimento apenas por um determinado
grupo de falantes que se considera ter o domínio do sistema estabelecido na língua. A
gramática é apenas uma variante da língua e é extremamente limitada, enquanto que a língua
é ampla e tem seus, avanços e renovações de acordo com a sociedade.

2 A Escola e o Ensino de Língua Portuguesa

O ensino de Língua Portuguesa vem sendo bastante questionado, principalmente, após


os Parâmetros Curriculares Nacionais, pois seu ensino deve partir de gêneros textuais, seja
ele, oral ou escrito. Falamos muito das dificuldades que os alunos têm na leitura e na
produção textual, pois se percebe que os discentes não dominam de maneira satisfatória a
gramática imposta pela escola. Daí, perguntamos: o ensino de língua portuguesa se restringe
ao ensino de gramática? Será que o professor está contextualizando o ensino de língua
portuguesa? Será que estar-se considerando as variações linguísticas dos alunos nesse ensino?
Assim como outras disciplinas têm suas especificidades e complexidades, não seria
diferente na língua portuguesa. Segundo Travaglia, (2002) uma das razões é que o ensino de
língua materna se justifica prioritariamente pelo objetivo de desenvolver a competência
comunicativa dos usuários da língua (falante, escritor/ouvinte, leitor). Devemos considerar
que ao desenvolver a competência comunicativa os usuários adquirem conhecimentos para
empregar adequadamente a língua em diferentes situações de comunicação. Para desenvolver
essa competência seria ideal aumentar a competência gramatical dos alunos, mas isso,
também é um problema, pois muitas vezes a gramática adotada por professores na sala de aula
é considerada inadequada, apresentando falhas que desfavorecem o ensino de língua
portuguesa. De acordo com Travaglia, (1996):
451

O ensino de gramática em nossas escolas tem sido primordialmente


Página

prescritivo, apegando-se a regras de gramática normativa que [...] são

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repetidos anos a fio como formas “corretas e boas” a serem imitadas na
expressão do pensamento. Nas aulas há uma ausência quase total de
atividades de produção e compreensão de textos. (TRAVAGLIA, 1996, p.
101):

Vemos que o modelo de ensino de gramática adotado nas escolas deixado a desejar,
isso, por não contribuir significativamente para a formação intelectual do indivíduo, uma vez
que desconsidera os dialetos populares dos discentes. A escola precisa trabalhar de acordo
com a realidade do aluno, pois este algumas vezes é tratado como um mero receptor de
informações, o que ele já domina é esquecido, principalmente em se tratando da linguagem
utilizada no meio em que ele vive. Para Possenti, (1996) a concepção normativa é mais
utilizada pelos professores de primeiro e segundo graus, porque é em geral a definição que se
adota nas gramáticas pedagógicas dos livros didáticos. Nessa concepção a gramática é vista
como um manual com regras de bom uso da língua a serem seguidas por aqueles que querem
se expressar adequadamente. Conforme (TRAVAGLIA, 2002 apud FRANCHI 1991, p. 48).

A gramática é o conjunto sistemático de normas pra bem falar e escrever


estabelecidas pelos especialistas, com base no uso da língua consagrado
pelos bons escritores e dizer que alguém sabe gramática significa dizer esse
alguém conhece essas normas e as domina tanto nocionalmente quanto
operacionalmente. (TRAVAGLIA, 2002 apud FRANCHI 1991, p. 48).

Com base no discutido, vemos que para compreender a gramática, não é preciso ser
escolarizado, uma vez que mesmo antes de frequentar a escola o aprendente já fala
coerentemente. Dessa forma, os professores devem pregar que o aluno não é uma “tábua
rasa”, ao chegar na escola, pois o mesmo traz consigo conhecimentos prévios adquiridos em
seu convívio familiar e social, eles dominam no mínimo a norma coloquial. A escola é
responsável por ampliar esses conhecimentos, respeitando e valorizando o que eles já
dominam. Ao ensinar língua portuguesa nas escolas, os alunos têm sido limitados a pensar e a
raciocinar, educadores da disciplina de português não tem proporcionado aos alunos
atividades de raciocinar de construir e desenvolver novas reflexões e opiniões, ou melhor, o
professor muitas vezes não consegue lidar com determinadas situações.
A escola deve sim, possibilitar situações para que os alunos desenvolvam suas
452

capacidades, partindo de suas realidades. Em se tratando de oralidade e escrita muitas vezes


os alunos são menosprezados por professores e colegas por apresentarem variações
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linguísticas herdadas de seu convívio familiar, amigos, classe social ou região em que vive ou

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viveu. Ao apresentar palavras ou expressões que fogem do nível padrão da gramática
normativa são vistos como “matutos” ou “caipiras” alguns perdem a motivação para estudar e
acabam pedindo transferência do colégio ou deixando de estudar.
Parafraseando, Castilho (1998, p.12), entendemos que os professores em exercício de
sala de aula, precisarão capacitar-se dos novos temas, visto que eles permitem encarar,
adequadamente os problemas linguísticos suscitados por uma sociedade em mudança.
Ampliando sua prática, o professor pode ter como ponto de partida a reeducação na
perspectiva linguística, proporcionando ao aluno um ambiente mais prazeroso e rico em
aprendizagem.
A partir do discutido, podemos adentrarmos na análise das variações linguísticas em “
A Hora da Estrela”, de Clarice Lispector, pois de posse das teorias estudadas, podemos
verificar como se dá a variação linguística em narrativas literárias, e não só com base em
falares dos sujeitos reais, mas também dos ficcionais.

3 “A hora da estrela” de Clarice Lispector X Variações linguísticas

Diante do exposto, procuramos perceber na obra “A hora da estrela” da escritora


Clarice Lispector variações linguísticas nas falas das suas personagens. Esta narrativa (1977)
é mais uma das grandes obras da escritora. Nela, Clarice Lispector cria um narrador, Rodrigo
S.M. defendendo que narrador sim, pois narradora pode lacrimejar ‘piegas’. “um outro
escritor, sim mas teria que ser homem porque escritora mulher pode lacrimejar
piegas”.(LISPECTOR,1998, p. 140).
A história é narrada por um narrador – personagem, do sexo masculino, de nome
Rodrigo S. M., ele conta a história em 1ª pessoa, da qual participa como personagem, por isso,
tem o poder de decisão do destino de Macabéa. O narrador procura adiar o fim da
protagonista, daí, introduz suspense, bem como, curiosidade ao descrever sobre Macabéa.
“[...] o que escreverei não pode ser absorvido por mentes que muito exijam... Que não se
esperem, então, que se segue... Com essa história eu vou me sensibilizar, e bem sei que cada
dia é um dia roubado da morte” (LISPECTOR, 1998, p. 16).
A narrativa apresenta palavras/expressões da região nordeste, o enredo da história se
453

dá com a descrição que o narrador faz da protagonista Macabéa, uma garota nascida no Sertão
de Alagoas, que aos dois anos de idade perdeu os pais e fora criada por uma tia. Uma menina
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pobre, muito magricela, com um vocabulário limitado devido ter tido um convívio social

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restrito, bem como, pouco estudo. Macabéa não conhecia a si mesma, não se preocupava em
descobrir a sua própria identidade, o seu lugar, seus direitos e deveres na sociedade, para ela
as coisas eram do jeito que deveria ser ela simplesmente aceitava tudo não questionava o que
acontecia. Não usava argumentos nem mesmo a seu favor, não reclamava de nada, até
pensava que era feliz. “A única coisa que queria era viver” (LISPECTOR, 1998, p. 27).
A moça era datilógrafa, seu chefe o Senhor Raimundo Silveira falava com ela com
tom grosseiro a ponto de demiti-la por não ter habilidade na escrita preferindo deixar apenas a
colega de trabalho Glória. Macabéa não sabia para que vivia, simplesmente vivia. Vivia alheia
às coisas do mundo, dividia o quarto com outras quatro amigas, mas as conversas entre elas
eram muito pouco. “Ela era calada (por não ter o que dizer), mas gostava de ruídos”
(LISPECTOR, 1998, p. 33). Macabéa obtinha algumas informações através do rádio que ela
ouvia à noite, bem baixinho para não incomodar as amigas.
Conheceu Olímpico de Jesus, tiveram vários encontros, o jovem conversava com
Macabéa, mas sempre acabava irritado, pois achava que a moça falava muita bobagem e
quase sempre não compreendia o que ele dizia. Muita coisa era desconhecida para ela e, como
não entendia, ficava conformada com os desaforos que ouvia, não pedia esclarecimentos para
as suas perguntas. Olímpico trabalhava de operário em uma metalúrgica, ambos eram
nordestinos pareciam se entenderem, pois falavam a mesma língua, cada um com suas
peculiaridades, claro! Compartilhavam de algumas experiências em comum. “[...] e se
reconheceram como dois bichos da mesma espécie que se farejam” (LISPECTOR, 1998, p.
43). Vejamos outros exemplos de variações na obra em questão:

Ele...
Ele se aproximou e com voz cantante de nordestino que a deixou
emocionada e perguntou-lhe:
- E se me desculpe, senhorinha, posso convidar a passear?
-Sim, respondeu atabalhoadamente com pressa antes que ele mudasse de
ideia.
- E, se me permite, qual é mesmo a sua graça?
- Macabéa .
- Maca, o que?
- Béa, foi ela obrigada a completar.
- Me desculpe, mas, até parece doença, doença de pele.
- Eu também acho, mas minha mãe botou ele por promessa a Nossa Senhora
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da Boa Morte se eu vingasse (LISPECTOR, 1998, p. 43).

Nesse trecho, percebemos a presença da variação linguística na fala dos personagens,


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Macabéa e Olímpico, pois os vocábulos não estão organizados de acordo com a língua formal,

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percebemos que na estrutura das frases aparecem palavras/expressões específicas da região
nordeste, que são pronunciadas até os dias atuais, muitas vezes desconhecidas por pessoas de
outras regiões: atabalhoadamente, qual é a sua graça e vinguei, palavras como essas foram
utilizadas por pessoas mais velhas dessa região e permanecem em nosso vocabulário até hoje.
É compreensível o sentido dessas palavras através do contexto. Assim, podemos dizer que
essas variações estão associadas ao fator geográfico (Região Nordeste).
“Olímpico não tinha vergonha, era o que se chamava no Nordeste de “cabra safado.”
(LISPECTOR, 1998, p. 46). Essa citação apresenta a expressão “cabra safado” característica
da região Nordeste pessoa que não tem vergonha como define o narrador, e ainda pode ser
compreendida como homem que não tem respeito pelas pessoas, o dito ‘mau caráter’. “[...] “-
Santa Virgem, Macabéa, vamos mudar de assunto e já!” Santa Virgem, expressão que indica
espanto, admiração utilizada por alguns falantes. “[...] Em pequena ela vira uma casa pintada
de rosa e branco com um quintal onde havia um poço com cacimba e tudo.” (LISPECTOR,
1998, p. 48-49). A variação linguística ‘Cacimba’, é o nome que se dá a um pequeno poço no
subterrâneo cavado com ferramentas para retirar água do subsolo. Vejamos mais alguns
exemplos de variação linguística na narrativa em questão:

- Você sabe se a gente pode comprar buraco?


O que quer dizer “élgebra”?
Saber disso é coisa de fresco, de homem que vira mulher. Desculpe a palavra
de eu ter dito fresco porque isso é palavrão para moça direita (LISPECTOR,
1998, p. 49-50).

Percebemos nesses fragmentos a presença nítida da variação linguística, assim,


podemos fazer uma analogia dessa variação com o baixo nível de escolaridade da
personagem, pois a protagonista, tinha cursado apenas o 3º ano primário. Vemos que a
personagem apresentava parcos conhecimentos. Macabéa era uma moça inocente, por isso,
sofria com a sua própria tolice. A protagonista é mais um indivíduo, que não teve
oportunidade de avançar nos estudos, e como o meio que ela vivia não contribuiu para o seu
desenvolvimento essa moça permaneceu a margem da sociedade. Vale dizer, que, Olímpico,
também não se expressava adequadamente diante de uma “dama”, pois usa da linguagem
coloquial, além de utilizar expressões que não correspondem ao conceito correto do vocábulo.
455

“–Vá para o inferno, você só sabe desconfiar. Eu só não digo palavrões grossos porque você é
moça-donzela” (LISPECTOR, 1998, p. 49). Nesse trecho, Olímpico parece não aguentar mais
Página

ouvir Macabéa conversar, ficando insuportável para ele essa situação. Ele usa a expressão ‘Vá

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para o inferno’, expressão que demonstra raiva, indignação, e ainda a palavra variação ‘moça-
donzela’ que é o mesmo que ‘moça virgem’.

- O que é que quer dizer élgebra?


- Saber disso é coisa de fresco, de homem que vira mulher.
- Que quer dizer Cultura?
- Cultura é cultura, continuou ele emburrado. Você também vive me
encostando na parede.
- É que muita coisa eu não entendo bem. O que quer dizer “renda per capita?
- Ora, é fácil, é coisa de médico.
- O que quer dizer rua Conde de Bonfim? O que é conde? É príncipe?
- Conde é conde, ora essa. Eu não preciso de hora certa porque tenho relógio.
- Eu acho que sei cantar essa música. Lá-lá-lá-lá-lá.
- Você parece voz de cana rachada. (LISPECTOR, 1998, p. 50-51).

Nos trechos acima, percebemos a limitação de conhecimento de Macabéa sobre o


universo enigmático das palavras, ela parece desconhecer o significado das palavras, por isso,
ficar somente a ouvir, não consegue fazer uma relação do significante (imagem acústica) ao
significado (sentido), das palavras cultura, élgebra, renda per capita, rua do Conde do Bonfim
entre outras. E expressões utilizadas por Olímpico que até sentimos dificuldade para entender
o sentido “voz de cana rachada”.
Vale destacar, ainda, algumas expressões que são faladas na região nordeste que os
personagens dessa narrativa utilizaram. “[...] E depois de nascer ela ia morrer? Mas que fina
talhada de melancia. [...] Por exemplo, a tia lhe dando cascudos no alto da cabeça porque o
cocoruto de uma cabeça devia ser, imaginava a tia, um ponto vital” (LISPECTOR, 1998, p.
28)”.
Valem destacar, ainda, outros exemplos na narrativa em questão como basilar para
apresentarmos as variações linguísticas: “o diabo perdera as botas.” [...] É, dessa vaca não sai
leite? [...] Tudinho, tudinho! (LISPECTOR, 1998, p. 28.). Aqui, temos mais exemplos que
apresenta com exatidão a variação linguística nas personagens, e que nem por isso, deixou-se
de haver comunicação, a simplicidade da linguagem de Macabéa não impossibilitava de
comunicar-se com o outro.

[...] É que Glória lhe dissera, quando lhe fora apresentada por Macabéa: sou
456

carioca da gema!
[...] Um dia, em raro momento de confusão, disse a Glória quem ela gostaria
de ser. E Glória caiu na gargalhada:
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- Logo ela, Maca? Vê se te manca!

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[...] Ela era muito satisfatona: tinha tudo o que seu pouco anseio lhe dava. E
havia nela um desafio que se resumia em “ninguém manda em mim”. [...] De
repente não aguentou e com um sotaque levemente português disse:
- Oh mulher, não tens cara?
[...] “Ele para impressionar Glória e cantar de galo, comprou pimenta-
malagueta das brabas na feira dos nordestinos e para mostrar à nova
namorada o durão que era mastigou em plena polpa a fruta do diabo.”
[...] - Você está com começo de tuberculose pulmonar.
[...] O médico simplesmente se negou a ter piedade acrescentou. E
acrescentou: quando você não souber o que comer faça um espaguete bem
italiano.
[...] “madama Carlota era enxundiosa, pintava a boquinha rechonchuda com
vermelho vivo e punha nas faces oleosas duas rodelas de ruge brilhoso”
(LISPECTOR, 1998, p. 27-72).

Através das citações acima de “A hora da estrela”, percebemos a presença da variação


linguística, realmente, a língua é viva, e que a variação linguística que ocorre na linguagem,
transformasse de pessoa para pessoa, de acordo com a região em que o sujeito vive, bem
como, de acordo com seu status socioeconômico, grau de escolaridade, rede social, mercado
entre outros. São percebíveis as diferentes variações linguísticas na fala dos personagens, cada
um apresenta característica individual no contexto de fala. “Eu gosto mesmo de ouvir os
pingos de minutos do tempo assim: tic-tac-tic-tac-tic-tac” (LISPECTOR, 1998, p. 50).
Ainda com base nos estudos da sociolinguística, toda língua é constituída por um
emaranhado de variedades de falares. E, as variedades linguísticas têm características
próprias, por isso, ajuda a distinguir uma variação de outra. É notável também que a
linguagem é utilizada nas mais diferentes situações de uso, de acordo com a pessoa ou grupo
com quem se comunica. Assim, podemos constatar isso, na fala do médico que atendeu a
paciente Macabéa. Em um primeiro momento, ele se expressou usando uma linguagem culta
utilizando termos técnicos de sua profissão para diagnosticar a doença de Macabéa. E o que
ela deveria comer quando não soubesse o que comer. Em outro momento da conversa
percebendo a “ignorância” da jovem e sua classe social, mudou sua linguagem expressando
da seguinte maneira: [...] “Sabe de uma coisa? Vá para os raios que te partam!”
(LISPECTOR, 1998, p. 65). Desta feita, observamos que o meio no qual o sujeito está
inserido é fator favorável na influência e na formação do indivíduo, sendo a sua língua
refletida na comunicação uns com os outros.
457

A partir do discutido, podemos dizer que o sujeito social é plurilíngue, e que é nas suas
experiências, e no convívio com vários grupos sociais que favorecem o seu desenvolvimento
Página

social, pessoal e intelectual, bem como facilita a aquisição de várias linguagens. Por tudo isso,

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não podemos valorizar um único modelo de fala, pois sabemos que existem várias maneiras
de falar, e que na comunidade de fala não existe “erro”. Há apenas falares diferentes,
denominados variações linguísticas, variantes da língua padrão (norma culta).

Considerações finais

Considerando o que foi apresentado nesse artigo, pode-se concluir que o estudo da
variação linguística é amplo e complexo. A variação linguística está presente em nosso
cotidiano em todos os lugares, uma das razões é a heterogeneidade da língua. A língua é
heterogênea, social, dinâmica e está em constante movimento e renovação.
Percebemos que a linguagem é um fenômeno natural e essencial, que possibilita ao
indivíduo a comunicação e a interação com o meio social. Nas pesquisas realizadas podemos
compreender que a língua padrão (norma culta) é mais valorizada, ganhando destaque e
prestígio. A língua padrão é tida como ideal e implantada no ensino de língua portuguesa.
Esquecendo assim, as inúmeras variações linguísticas existente na sociedade.
As linguagens são valorizadas ou desvalorizadas, isso depende da posição social, da
localização geográfica, ou nível de escolaridade que uma pessoa ocupa. As variações das
regiões mais desenvolvidas são mais valorizadas do que as das regiões subdesenvolvidas.
Tendo como exemplo, a personagem Macabéa, nem ela mesma sabia quem ela era na
sociedade, não tinha nenhum status emigrante, de uma região pobre, Sertão de Alagoas na
região Nordeste do Brasil. Ela não tinha domínio de determinadas palavras e expressões, da
língua padrão, pois tinha um grau de escolaridade baixo, cursou apenas o 3° ano primário.
A fala muitas vezes é alvo de preconceito linguístico. Assim como Macabéa, há
milhares de falantes na sociedade atual, usuários da linguagem não-padrão que não serão
reconhecidos ou valorizados, são vítimas desse preconceito. Será sempre motivo de péssima
influência para os falantes da língua portuguesa. Precisamos acabar com ânsia de que há uma
língua “certa” e outra “errada”, que há falantes de uma determinada região que fala mais
bonito ou mais feio, pois na língua não há falares errados, bonitos ou feios, há diferentes
variações existente na fala das pessoas, como recurso utilizado nas mais variadas situações e
usos da língua. Esperamos que este artigo possa despertar para um olhar menos
458

preconceituoso em relação ao universo enigmático das variações linguísticas existente em


nosso cotidiano, que constituem em grande riqueza cultural e patrimônio da humanidade.
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Referências

BAGNO, Marcos. Nada na língua é por acaso: por uma pedagogia da variação linguística.
São Paulo: Parábola. Editorial, 2007.

BAGNO, Marcos. Preconceito Linguístico: como é, e como se faz. 49. ed. São Paulo – SP:
Loyola, 1999.

CASTILHO, A. T. de A Língua Falada no Ensino do Português. 6. ed. São Paulo:


Contexto; 1998.

FRANCHI, Carlos. Criatividade e gramática. São Paulo: SE/Cenp, 1991.

LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela Rio de Janeiro: Rocco,1998.

POSSENTI, Sírio. Por que (não) ensinar gramática na escola. Campinas- SP: Mercado das
Letras, 1996.

TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Gramática e interação: uma proposta para o ensino de


gramática no 1º e 2º graus. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2002.

_____. Gramática e Interação. São Paulo: Cortez, 1996.

459
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GT3 – ENSINO DE LÍNGUA MATERNA

A VARIAÇÃO LINGUÍSTICA: UM ESTUDO NO LIVRO DIDÁTICO DE LÍNGUA


PORTUGUESA

Maria do Socorro Souza Silva (UERN)


Ana Paula de Oliveira (UERN)
Maria Aparecida de Souza Moura (UERN)

Introdução

Segundo Bagno (2007) os livros didáticos de Português deram salto qualitativo desde
que foi instituído o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) em 1996. Este programa
foi instituído pelo Ministério da Educação para avaliar, comprar e fazer a distribuição de
obras didáticas que compõem o currículo do Ensino Fundamental. No que tange ao LD de
Língua Portuguesa, este ganhou uma abordagem mais aproximada de uma perspectiva
linguística, resultante das pesquisas empreendidas nas universidades que influenciam a prática
pedagógica.
A importância que o LD de Língua Portuguesa tem dado a variação linguística consta
como um grande avanço na busca de vencer o preconceito linguístico visando estudar a língua
e as particularidades do seu uso no cotidiano e nas diversas situações comunicativas. Nesta
perspectiva, este trabalho tem como corpus o LD Português Projeto Teláris do 6º ano, das
autoras Ana Trinconi Borgatto, Terezinha Bertin e Vera Marchezi pretendemos estudar como
as atividades do manual abordam a variação linguística, de modo a colaborar para amenizar o
preconceito linguístico.
Sendo assim este trabalho apresenta-se organizado de forma que apresenta
inicialmente discussões sobre a sociolinguística e a variação linguística, em seguida tratamos
da variação linguística no LD, para na sequência propor uma análise do LD com vistas para a
variação linguística, vendo como é abordada nas atividades contidas no manual. Buscamos
analisar o capitulo I na seção única de tema “Língua: usos e reflexão, variedades linguísticas:
linguagem formal e informal”, nas páginas 31 a 35. Fizemos recortes de quatro atividades que
interessam ao nosso estudo. Para tanto este estudo está pautado teoricamente nos pressupostos
de Cezario e Votre (2011), Câmara Júnior (2001), Bagno (2007), Batista (2008), Gregolin
460

(2007). dentre outros.


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1 A sociolinguística e o fenômeno da variação

A Língua Portuguesa no Brasil possui muitas variações, esse aspecto da nossa língua
significa dizer que ela é heterogênea. A diversidade existente na língua se dá por fatores
geográficos, sociais, econômicos entre outros, os quais são utilizados como forma de
identificação das pessoas. Vale salientar que as variedades presentes na língua ainda não são
bem aceitas por todos os membros da sociedade atual, pois o que ocorre, na maioria das
vezes, é o preconceito decorrente da falta de compreensão acerca desse fenômeno.
Segundo Cezario e Votre (2011) a sociolinguística constitui-se como uma área que
estuda a língua em situações cotidianas em que podem ser observados aspectos sociais e
culturais em associação aos de ordem mais estrutural, ou seja, trata-se de estudos com foco na
língua em uso, em transformação. “A sociolinguística parte do princípio de que a variação e a
mudança são inerentes às línguas e que, por isso, sempre devem ser levadas em conta na
análise linguística” (CEZARIO e VOTRE, 2011, p. 141).
A sociolinguística busca principalmente compreender quais são os fenômenos que
possam vir a causar as variações, pois para os estudiosos dessa área não basta saber da
existência das variações, é necessário conhecer suas causas e posteriormente estudá-las mais a
fundo. Sendo assim, é vista como uma área de grande importância para os estudos sobre a
língua tanto nos seus aspectos formais como em transformação. Sobre a importância da
sociolinguística Cezario e Votre destacam: “Uma das contribuições da pesquisa
sociolinguística foi a constatação de que muitas formas não padrão também ocorrem na fala
de pessoas com nível superior, principalmente nos momentos mais informais”. (CEZARIO e
VOTRE, 2011, p. 142).
Assim percebemos que a sociolinguística trata especificamente das variedades da
língua e que contribuiu principalmente por ter constatado que a língua possui formas de usos
diferentes, as quais são utilizadas de acordo com suas funções e usos, mediante contextos
comunicativos distintos, esses e outros pontos foram evidenciados por meio de pesquisas na
área da sociolinguística, daí a sua importância.

2 A Variação linguística: principais conceitos


461

A variação linguística é uma vertente que se baseia principalmente na heterogeneidade


Página

da língua, ou seja, é através das considerações feitas a respeito da língua enquanto fator social

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que podemos estudar as variedades que ela possui. Tais estudos estão sendo feitos com
frequência porque a comunidade acadêmica tem procurado apresentar de diferentes formas as
influências que os aspectos de ordem política, étnica, econômica, regional, social entre outros
que interferem e modificam a língua. Segundo Câmara Júnior (2001), a língua varia em
diversos fatores, ele diz que: “Ela (a língua) varia no espaço, criando no seu território o
conceito dos dialetos regionais. Também varia na hierarquia social, estabelecendo o que hoje
se chama dialetos sociais [...]. Varia ainda, para um mesmo indivíduo, conforme a situação
em que se acha [...]” (JUNIOR, 2001, p. 17).
De acordo com a sociolinguística há diferentes tipos de variações, tais como a variação
regional, a variação social e a variação de registro. Ressaltamos que essa divisão não quer
dizer que elas não se aproximem, pois sabemos que um mesmo falante pode empregar
diferentes formas variáveis, em contextos diferentes ou num mesmo de acordo com a
necessidade comunicativa.
As variedades linguísticas são classificadas em: Variações situacionais ou diafásicas,
variações sociais ou diastráticas, variações diacrônicas e variações geográficas ou diatópicas.
As variações situacionais como o próprio termo sugere provém das diferentes situações
comunitárias das quais fazemos parte diariamente. Por exemplo, um falante faz uso da norma
padrão da língua em seu trabalho ao lidar com um público que exige dele certo rigor ao usar a
língua, porém, ao chegar em casa a mesma pessoa se desprende dessas normas e emprega
termos mais coloquiais como gírias e outros. Isso pode ser denominado de variação diafásica
que prevê mudanças de acordo com o contexto social. (BEZERRA, 2013)
Quanto ao tratamento das variações sociais ou diastráticas, essas consistem nas
mudanças decorrentes de fatores sócias, podem ser identificadas e estudadas por meio de
recortes das falas de pessoas de diferentes camadas sociais que fazem parte de uma mesma
comunidade, ou seja, são estudados como os fatores de ordem social, étnico, econômico
influenciam na linguagem. Por exemplo, uma análise diastrática identifica as marcas das
vivências sociais, culturais de um falante em sua fala cotidiana, podendo assim compreender
o porquê de um homem do campo de pouca escolaridade empregar a linguagem coloquial
enquanto uma pessoa que possui maiores recursos para estudar possa então utilizar outras
formas como a norma padrão. (BEZERRA, 2013)
462

Tratando-se das variações diacrônicas são “[...] decorrentes do tempo. No decorrer da


história a linguagem vai modificando, enquanto umas palavras entram em desuso, outras são
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incluídas no léxico”. (BEZERRA, 2013, p. 09). Esse tipo de análise contribui para que

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possamos conhecer os aspectos da língua que vêm evoluindo cada dia com maior rapidez.
Com o uso das novas tecnologias a língua tem passado por mudanças frequentes, ou seja, nos
meios digitais atualmente são empregados formas de uso da língua bem diversificadas, nós
enquanto falantes precisamos estar atentos a tais mudanças para poder acompanhá-las e
compreendê-las. Por exemplo, hoje aquele que não se adapta ao falar/escrever/digitar dos
meios digitais fica alheio às mudanças, pode até ser considerado arcaico.
Na perspectiva de tratar das variedades geográficas ou diatópicas podemos mencionar
que “[...] são as diferenças percebidas na linguagem dos habitantes das diversas regiões do
Brasil”. (BEZERRA, 2013, p. 09). Como sabemos o Brasil é um país de grande
territorialidade e ainda repleto de culturais de povos distintos, isso ocasiona as inúmeras
formas de falar do seu povo em todo território brasileiro.
Já as variedades regionais estão relacionadas “[...] a distâncias espaciais entre cidades,
estados, regiões ou países diferentes; a variável geográfica permite opor, por exemplo, Brasil
e Portugal”. (CEZARIO E VOTRE, 2011, p. 142). As oposições também podem ser estudadas
num plano mais restrito, como por exemplo entre regiões de um mesmo país, ou mais restrito
ainda entre estados ou municípios, até comunidades.
Num panorama mais delimitado as variáveis podem ser observadas até mesmo em
meio a uma família, entre seus membros que possam ser originados de lugares distintos,
trazendo em sua fala resquícios do lugar de origem, que se misturam uns aos outros
formandos dialetos variados e o emprego de termos exclusivos de certas falas.

3 A variação linguística nos livros didáticos

Os livros didáticos desde a sua inserção no ensino passaram por muitas avaliações,
como a ocorrida até o ano de 2002, quando os livros analisados recebiam menções
representadas por estrelas, em que os “Recomendados com distinção (três estrelas),
Recomendado (duas estrelas) e Recomendado com ressalva (uma estrela)” (BATISTA, 2008,
p. 50), contando ainda com outra categoria para os excluídos, estes eram exemplares que não
podiam ser escolhidos por apresentarem erros que possivelmente comprometeriam o ensino-
aprendizagem.
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Para a solicitação e avaliação do LD é necessário seguir um cronograma de


atendimento alternado a compra de exemplares para cada categoria do ensino a partir da
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escolha que ocorre a cada três anos. Os manuais são escolhidos e trabalhados durante esse
período para depois ocorrer uma nova seleção.
Desde o seu surgimento, o livro didático é visto como uma ferramenta de grande
relevância nas salas de aula, pois estes vêm com conteúdos preparados, obedecendo
sequências organizadas, em que professores podem ter no LD um aliado para sua prática em
sala de aula.
Gregolin (1997) o livro didático utilizado nas salas de aula tem sido em sua maioria, a
única opção, porém, mesmo que estes manuais contenham conteúdos bem elaborados, devem
ser vistos como um suporte para amparar professores e alunos no cotidiano e o docente deve
dispor de outros mecanismos no auxilio das atividades propostas pelo LD. Apesar de ser
bastante útil o LD não deve ser o único subsídio a ser usado pelo professor.
Contudo, percebe-se então que ao longo de sua trajetória, o PNLD e seus parceiros
(órgãos de governo), têm contribuído no tocante a estabelecer critérios para a seleção dos
LDs, o que pode ser entendido como um ponto positivo na educação do país, atendendo às
propostas educacionais no que diz respeito à qualidade do material disponibilizado aos
professores e podendo vir a contribuir para a formação de qualidade dos alunos que usam os
LDs em sala de aula.
Partindo dessa premissa é que a escola como espaço de interação social, tem a
importante função de enfrentar e minimizar com o preconceito linguístico. Diante disso,
conforme aponta Bagno (2007, p. 93), “o problema do preconceito disseminado na sociedade
em relação às falas dialetais deve ser enfrentado na escola, como parte do objetivo
educacional mais amplo de educação para o respeito à diferença”. Dessa forma, o ensino de
Língua Portuguesa está voltando-se para um trabalho que prioriza as questões envolvendo a
variação linguística. Os livros didáticos (LD) apresentam seções inteiras tratando dessa
temática, dando-lhe relevância.
O trabalho realizado acerca da variação no LD ainda enfrenta problemas, pois
enquanto alguns autores procurando combater o preconceito linguístico e enfatizar a
diversidade linguística presente no português deixam a desejar, pois parecem não possuir
ainda uma base teórica que sustenta as suas concepções, o que se observa no emprego dos
termos e dos conceitos utilizados pelos autores acerca do fenômeno da variação. Sobre essa
464

questão, ressaltamos que:


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Um dos principais problemas que encontramos nos livros didáticos é uma
tendência a tratar da variação linguística em geral como sinônimo de
variedades regionais rurais ou de pessoas não escolarizadas. Parece estar por
trás dessa tendência à suposição (falsa) de que os falantes urbanos e
escolarizados usam a língua de um modo mais “correto”, mais próximo do
padrão, e que no uso que eles fazem não existe variação (BAGNO, 2007, p.
120).

O autor evidencia uma questão importante que é compreender que a variação não está
presente no falar das pessoas não-escolarizadas, que moram na zona rural entre outros menos
favorecidos, ela é compreendida como fator intrínseco a língua, ou seja, não existe língua
homogênea, toda forma de falar é relevante dentro da língua.
Quanto às analises acerca da variação linguística presente no LD deve ser observado
questões nas quais possam privilegiar a critica e a reflexão sobre essa discussão em sala de
aula. Entre as indagações mais relevantes, Bagno (2007, p. 125-136) sugere que:

1- O livro didático trata da variação linguística? 2- O livro didático


menciona de algum modo á pluralidade de línguas que existe no Brasil? 3 –
O tratamento se limita as variedades rurais e/ ou urbanas? 4 – O livro
didático apresenta variantes características das variedades prestigiadas
(falantes urbanos, escolarizados)? 5 – O livro didático separa norma-padrão
da norma culta, a fala cotidiana é confundida a norma-padrão com uma
variedade real da língua? 6 – O livro didático explica que também existe
variação entre fala e escrita como homogênea e não como lugar de erro?
(BAGNO, 2007, p. 125-136)

Os questionamentos propostos pelo autor são de suma importância para analisar como
variedades linguísticas são apresentadas no LD, mediante as discussões da Sociolinguística,
aspecto que faremos no tópico a seguir.

4 A variação linguística do livro Português Projeto Teláris: Descrição e análise

A obra em análise é do 6º ano do Ensino Fundamental, Português Projeto Teláris, está


organizado em quatro unidades, conteúdo dois capítulos cada. A variação linguística é
apresentada no capitulo I na seção única de tema “Língua: usos e reflexão, variedades
465

linguísticas: linguagem formal e informal”, nas páginas 31 a 35.


O LD apresenta as variedades linguísticas existentes no Brasil, discutindo os fatores
Página

que influenciam essas variedades tais como: a intenção comunicativa; a circunstancia; o

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interlocutor; a intenção; a região e o grupo social. Além de apresentar fatores que influenciam
a variação, as autoras indicam que esse fenômeno se dá devido a formação histórica brasileira,
como observa-se no trecho a seguir:

O Brasil é um país enorme. Se você pudesse percorrer todo esse imenso


território, teria a oportunidade de ouvir e conversar com as pessoas que
utilizam a língua de diferentes modos [...], dessa forma a grande pluralidade
presente na fala brasileira é decorrente das diferentes culturas do povo.
(BORGATTO, 2014, p. 30)

A variação linguística apresentada no LD, não esta limitada apenas a fatores de ordem
regional e rural, mas considera que existe variação também em casos de diferentes situações
de uso da língua, como menciona as autoras da obra em análise: “Ao empregar à língua, o
usuário também poderá fazê-lo com diferentes intenções: fazer rir, querer impressionar
alguém numa entrevista, emocionar quem o ouve ou quem o lê [...]” (BORGATTO, 2014, p.
31).
Diante disso as autoras propõem uma abordagem acerca da linguagem formal e
informal, que deve ser utilizada de acordo com a situação comunicativa na qual os sujeitos
estão inseridos. O LD esclarece que “as diferentes intenções nos levam a fazer escolhas de
linguagem de acordo com a chamada situação comunicativa” (BORGATTO, 2014, p. 31).
Diante dessa afirmação, as autoras propõem uma atividade de análise da tira a seguir:

466

A análise da tirinha proporciona a discussão acerca da norma culta em situações que


necessitam o seu emprego, mas não critica o uso da linguagem coloquial em momentos que
Página

podem ser dispensados termos cultos, como se observa no trecho da análise proposta pelo LD:

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Com que intenção Calvin e seu tigre escolheram essa linguagem tão formal e
incomum nas brincadeiras infantis? A escolha para pregar a linguagem
formal ou informal depende da situação em que o falante estiver envolvido,
de suas intenções e das pessoas a quem estiver dirigindo (BORGATTO,
2014, p. 32).

A abordagem apresentada no LD é relevante no tocante a propor ao aluno uma


reflexão quanto ao emprego da norma padrão no seu dia-a-dia, levando-o a compreender que
precisa ser empregada nos momentos necessários, mas que há situações que não cabe o
emprego da norma culta da língua, ou seja, cada falante deve saber adequar os usos às
situações comunicativas como propõem as autoras do LD na própria introdução desta
atividade.

Bagno (2007, p. 129-135) sugere questionamentos que fundamentam a presente


análise, os quais indagam: “O livro didático apresenta variantes características das variedades
prestigiadas (falantes urbanos, escolarizados)?” Explicita que também existe variação entre
fala e escrita?
As autoras discutem acerca das diferentes variações presentes nos grupos sociais, isso
se dá devido a fatores como idade, nível de escolaridade, profissão, entre outros, Assim,
propõe a análise de uma tirinha:
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Com a análise, elas propõem que os alunos assimilem o leque de variedades que temos
para empregar na fala cotidiana, principalmente nos grupos de jovens que utilizam muitas
gírias, constituindo um dialeto próprio. As autoras levantam o seguinte questionamento: “Ei,
peraí, cara! A frase destacada é uma frase bem característica da linguagem dos jovens. Se uma
das personagens fosse uma idosa, talvez a frase não fosse a mesma. Por quê?” (BORGATTO,
2014, p. 34).
Ao propor essas questões o manual aponta para uma das dificuldades enfrentadas nos
LDs, a tratarem da variação, pois muitos a compreendem apenas como marca da fala das
pessoas sem escolaridade, quando está presente na fala de todos os falantes da língua.
Quanto à relação da fala com a escrita, elas apresentam dois textos, sendo o texto A
marcado pela fala de um jovem e o texto B um comunicado feito pela direção da escola.
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Observem as diferenças entre ambos:


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(BORGATTO, 2014, p. 30).

Diante da leitura dos textos, as autoras pretendem que os discentes compreendam que
na fala geralmente utiliza-se a linguagem informal, enquanto que na escrita é necessário
muitas vezes o uso da linguagem formal. O exercício pode considerado pertinente por
levantar questões das quais os alunos provavelmente não tenham atentado no momento da
escrita, por exemplo o fato de as vezes acreditar que a norma padrão é ultrapassada e que não
deve ser usada, levando-os a cometer discordâncias quanto ao emprego da linguagem
adequada na produção de determinados gêneros. Podendo através da atividade proposta
desmistificar a ideia de que as gírias são formas erradas de uso da língua, bem como saber a
norma padrão também não é ultrapassada e deve ser usado quando for conveniente.
Diante do que foi discutido neste estudo podemos acrescentar que a proposta de
trabalho contida no LD ora analisado possui um caráter relevante no que diz respeito ao
tratamento das variedades da língua materna.

Conclusão

A análise proposta neste trabalho aponta para as discussões apresentadas nos LDs,
quanto ao trabalho acerca das variedades linguísticas presentes na linguagem dos falantes do
português.
Mediante a análise do livro didático mencionado, verificamos que este discute a
variação linguística e dá ao conteúdo tratamento pautado nos pressupostos da sociolinguística,
como área que estuda a língua em usos reais, levando em consideração as relações entre
469

estruturas linguísticas e os aspectos sociais e culturais da produção linguística.


Percebemos nas atividades propostas que as autoras do LD consideram que o mais
Página

importante de tudo sobre a variação linguística é preservar no ambiente escolar o respeito

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pelas diferenças linguísticas, isso se evidencia no manual quando as autoras apresentam
considerações que explicam as variedades da língua a partir de influências da situação
comunicativa das circunstâncias, do interlocutor, da interação, da região e do grupo social,
fatores que, segundo o manual didático analisado explicam-se a partir da formação histórica
brasileira.
A analise da variação linguística da obra didática partiu dos questionamentos de
Bagno (2007, p. 128), o qual propõe questões para se analisar um livro didático e o tratamento
que este dá a variação linguística e mediante a analise dessas questões postas por Bagno
(2007), percebemos que o livro analisado está organizado dentro dos parâmetros teóricos que
discutem o uso linguístico que deve ser dado à variação linguística nas obras didáticas de
Língua Portuguesa e na escola, para assim evitar o preconceito linguístico nas aulas de língua
materna.
O trabalho conta ainda com os pressupostos teóricos de Batista (2008), que apresenta
os critérios de avaliação e aquisição e distribuição das obras didáticas, como de suma
importância para alunos e professores nas salas de aula, bem como os questionamentos de
Gregolin (1997) que discute sobre o uso do livro didático como “tábua de salvação”, ou seja,
para alguns docentes é o único instrumento utilizado pelos mesmos, tendo em vista que o LD
é uma ferramenta no auxilio das aulas.
Portanto, percebe-se que o LD de Língua Portuguesa deu um salto qualitativo no que
se refere às discussões sobre a variação linguística, ao propor atividades que tratam de
variedades como a norma culta, as gírias e outras, propiciando aos alunos reflexões em torno
dos usos diversos que a língua tem.
Ressaltamos que o LD poderia dispor de atividades que privilegiassem outras
variedades como o regionalismo, mas mesmo assim, o LD analisado pode ser considerado
como um bom recurso para o professor trabalhar a variação linguística em sala de aula.

Referências

BAGNO, Marcos. Nada na língua é por acaso: por uma pedagogia da variação linguística.
São Paulo: Parábola Editorial, 2007.
470

BORGATTO, Ana Trinconi (Org.). Pojeto Teláris: Português. São Paulo: Ática, 2012.

CAMARA JR. Joaquim M. Estrutura da língua portuguesa. 34. ed. Petrópolis: Vozes,
Página

2001.

ISBN: 978-85-7621-221-8
CEZARIO, Maria Maura; VOTRE, Sebastião. A Sociolinguística. In: MARTELLOTA, Mário
Eduardo. (Org.) Manual de Linguística. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2011.

GREGOLIN, Maria do Rosário. O que quer, o que pode esta língua? Teorias linguísticas,
ensino de língua e relevância social. In: FARACO, Carlos Alberto [et al.]. A relevância
Social da Linguística: linguagem, teoria e ensino. São Paulo: Parábola Editorial, 2007.

VAL, Maria da Graça Costa (Org.). Livros didáticos de língua portuguesa: letramento,
inclusão e cidadania. Belo Horizonte: Caele; Autêntica, 2008.

471
Página

ISBN: 978-85-7621-221-8
GT3 – ENSINO DE LÍNGUA MATERNA

AS CONTRIBUIÇÕES DA “OLIMPÍADA DE LÍNGUA PORTUGUESA –


ESCREVENDO O FUTURO” NO PROCESSO DE LEITURA E ESCRITA NA 3ª
SÉRIE DO ENSINO MÉDIO

Maria Lidiana Costa - Graduada. (UERN)


Maria do Socorro Souza Silva - Mnda. (UERN)
Maria da Luz Duarte Leite Silva(UFRN)

Introdução

Sabemos que a escrita não é um processo fácil, por isso, exige tempo e esforço. Desse
modo, podemos dizer que a leitura é indispensável para o enriquecimento da produção
textual, seja qual for o gênero. Para isso, a escola tem um papel fundamental e o professor de
Língua Portuguesa também. No domínio escolar, ele é um mediador do conhecimento,
conduzindo o aluno rumo à aprendizagem satisfatória.
A partir do discutido, acreditamos na importância da pesquisa, ao citarmos Antunes
(2003), quando defende que a atividade de leitura pode ser vista como um complemento à
atividade de produção escrita. É uma atividade de interação entre sujeitos e supõe muito mais
que a simples decodificação dos sinais gráficos. Nesse contexto, a escola vem tentando fazer
com que no aluno seja despertado para o hábito da leitura e, ao mesmo tempo consiga
produzir textos de maneira satisfatória, afinal são processos fundamentais para o
desenvolvimento profissional e para se conviver em uma sociedade letrada, na qual exige do
cidadão a competência e familiaridade com diversas leituras.
Nos estágios supervisionados I e II, foi possível notar as dificuldades apresentadas
pelos alunos quanto ao reconhecimento dos gêneros e, consequentemente, a produção de
textos, gerando, assim, a intenção de pesquisar sobre essa realidade. Com a realização da
Olimpíada de Língua Portuguesa, vimos à possibilidade de unir o que tanto é problemático
com as propostas práticas de leitura e escrita desenvolvidas ao longo das oficinas.
A Olimpíada de Língua Portuguesa – “Escrevendo o futuro” oportunizou momentos
de aprendizagem, pois pudemos relacionar a teoria adquirida durando o curso de letras, o
material das olímpiadas de língua portuguesa com a prática de sala de aula. Por se tratar de
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um concurso de produção de textos para alunos e professores de escolas públicas brasileiras,


da 5ª série do Ensino Fundamental a 3ª série do Ensino Médio, disponibiliza material didático
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orientando atividades que só enriquecem os envolvidos. Por entender a leitura e a escrita

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como práticas sociais, podemos sugerir que esse programa contribui para a melhoria do
ensino da leitura e escrita, através de ações de formação para educadores envolvidos no
ensino de Língua Portuguesa.
Em consonância com essa discussão e refletindo sobre os processos aqui relatados,
este trabalho tem como propósito analisar a partir das produções textuais dos alunos da 3ª
série do Ensino médio as contribuições da “Olimpíada de Língua Portuguesa – Escrevendo o
Futuro” no processo de leitura e escrita, verificar quais produções atendem as características
do artigo de opinião, nos encaminhamentos apresentados pelo manual do professor.
A partir do discutido vemos que a pesquisa caracteriza-se por possuir uma abordagem
qualitativa, mas também, apresenta-se como quantitativa, isso decorre porque, tanto
apresentamos a realidade como ela é para introduzir constatações necessárias, como também
trabalhamos com um quantitativo de produções.
Quanto ao método de abordagem é o dedutivo, por partirmos de teorias e leis gerais
para se chegar a uma determinação ou previsão particular. Com isso, partimos de discussões
gerais em torno do processo de leitura e escrita, para assim chegarmos ao nosso objeto de
estudo.

1 O processo de leitura e escrita

Muitos são os estudos que tratam sobre a leitura e a escrita dos alunos no contexto
escolar. Assim como, são múltiplos os desafios que a escola vem enfrentando para possibilitar
que o aluno aprenda a ler e escrever de maneira satisfatória, ou melhor, fluente e prazerosa.
Desde então, predomina algumas inquietações: Como proceder e iniciar estratégias de leitura
na sala de aula? Como despertar o aluno para a necessidade de conhecer e escrever os mais
variados gêneros textuais?
Assim, consideramos relevante apresentar alguns conceitos que são de suma
importância para se obter um pouco de conhecimento sobre a leitura e a escrita,
principalmente, porque a leitura tem suas funcionalidades e atua como instrumento voltado
para o conhecimento e a aprendizagem, e consequentemente, a compreensão das mais
variadas leituras, é de fundamental importância e contribui para o desenvolvimento leitor do
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aluno e para a prática pedagógica. Nessa perspectiva, Solé apresenta:


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[...] sempre lemos para algo, para alcançar alguma finalidade. O leque de
objetivos e finalidades que faz com que o leitor se situe perante um texto é
amplo e variado: devanear, preencher um momento de lazer e desfrutar;
procurar uma informação concreta; seguir uma pauta ou instruções para
realizar uma determinada atividade (cozinhar, conhecer as regras do jogo);
informar-se sobre um determinado fato (ler o jornal, ler o livro de consulta
sobre a revolução Francesa); confirmar ou refutar um conhecimento prévio;
aplicar a informação obtida com a leitura de um texto na realização de um
trabalho, etc. (SOLÉ, 1998, p. 22).

A partir do discutido, podemos entender que a leitura pode trilhar vários caminhos,
variando de acordo com os objetivos pretendidos. Muitas vezes, o leitor, ler por necessidade,
para fazer um trabalho acadêmico, ou até mesmo no seu ambiente de trabalho, outras vezes
para passar o tempo, ler uma notícia em revistas ou jornal, ou seja, para cada atividade
cotidiana a leitura está presente formal ou informalmente. Como considera as Orientações
Curriculares Nacionais (OCN): “O polo da leitura, fluído e variável configura-se como espaço
potencial indispensável no processo de compreensão da criação artística de qualquer natureza,
quer manifeste como texto verbal ou não. Por meio da leitura dá-se a concretização de
sentidos múltiplos [...]” (BRASIL, 2006, p. 65).
A convivência inicial com a leitura no percurso escolar está voltada para o domínio
efetivo da língua e a formação do aluno-leitor e produtor de textos. Para isso, a escola
contribui com o desenvolvimento desse aluno, quando este, é capaz de utilizar a leitura para
interagir com o mundo. Cabe salientar que todo leitor já tem sua bagagem textual, o professor
contribui e interage com seus conhecimentos a respeito dos conteúdos abordados, assim, cada
um já vem com seus valores, crenças e atitudes formadas de acordo com o grupo no qual está
inserido, e isso não está somente nos textos, as leituras que fazemos não são aleatórias, pois
em alguma parte dos nossos conhecimentos prévios há resquícios de algum conhecimento que
auxilia no aprimoramento das leituras que sucedem. Antunes acrescenta: “Muito, mas muito
mesmo do que se consegue aprender do texto faz parte do nosso ‘conhecimento prévio’, ou
seja, é anterior ao que lá está. Um texto seria inviável se tudo tivesse que está explicitamente
presente, explicitamente posto” (ANTUNES, 2003, p. 67).
Percebe-se que a leitura que o aluno dispõe antes mesmo de frequentar a escola,
necessariamente contribui para as que irá realizar no contexto escolar, por tudo isso, podemos
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baseadas nas ideias de Paulo Freire, dizer que a leitura de mundo do aluno vai contribuir para
dá consistência a leitura da palavra.
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Com base no arcabouço teórico estudado, é possível refletirmos sobre as estratégias de
leitura no ensino, abordando algumas e quais os procedimentos que o professor de Língua
Portuguesa (LP) pode seguir para melhorar e aperfeiçoar a compreensão leitora dos alunos.
Primeiro mencionamos as teorias apresentadas por Solé (1998), que se constitui da
seguinte forma: O docente pode compartilhar seus conhecimentos com o aluno para melhor
entender e incidir sobre a realidade, assim o aluno possa relacionar seus conhecimentos
prévios com o assunto mencionado em sala de aula, esse encaminhamento dado pelo
professor contribui para que no aluno se desperte seus conhecimentos já adquiridos e
estabeleça relações de leituras realizadas, despertando o senso crítico e reflexivo acerca das
leituras propostas, dando liberdade de expressão para exposição de opinião a respeito do tema
abordado.
As estratégias de leitura são importantes e imprescindíveis, pois contribuem para o
desenvolvimento reflexivo e crítico do aluno, fazendo com que tenha segurança em opinar
diante dos temas e a partir das leituras realizadas desenvolverem o hábito de leitura.
Outra discussão aqui relevante e que merece destaque são as concepções de
linguagem no ensino de LP e como se dá as práticas de leitura a partir dessas concepções, já
que, segundo Geraldi (2001), apresentam uma ligação direta com as práticas de leitura.
Comecemos por Linguagem e expressão. Nela o texto é visto como um produto
fundado, o leitor age como sujeito passivo, capta somente as intenções do autor. Valendo
ressaltar o domínio individual do código, o bem falar e o bem escrever. Para Kleiman:

[...] essa primeira concepção de linguagem - expressão do pensamento –


correlaciona-se a ‘concepção escolar’ de ensino à medida que objetiva o
domínio individual do código e vê a escrita como um conjunto de atividades
para se apoderar do ‘bem falar’ (linguagem oral) e do ‘bem escrever’
(linguagem escrita) (KLEIMAM, 2008, p. 10).

Com base no discutido, acima, podemos dizer que na perspectiva de entender como é
vista linguagem e expressão do pensamento e como o texto é visto pelo leitor, percebemos
que ele se apropria dos códigos (letras) para ler e escrever , e que essas atividades são vistas e
atribuídas pela escola, mas que o leitor torna-se “inativo” diante do entendimento do texto
porque só interessa o uso correto das regras a serem seguidas para organizar o pensamento.
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A segunda concepção, Linguagem como instrumento de comunicação, como menciona


Giraldi (2001, p. 41) “[...] vê a língua como um código, um conjunto de signos que se
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combinam segundo regras, operando na transmissão de uma mensagem do emissor ao

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receptor”. Assim, o leitor interpreta através de códigos a mensagem do autor, mas,
necessariamente, aquele pode considerar seus conhecimentos prévios a dos pretendidos pelo
emissor (autor), tendo reconhecidamente uma conversação entre o texto e o leitor.
A terceira concepção, Linguagem como um processo de interação, pressupõe que o
sujeito aja sobre seu interlocutor, em consequência numa criação de sentidos do leitor sobre o
texto. Dentro dessa perspectiva os autores relatam a interação entre ambas as partes, leitor e
texto. Nesse sentido Koch (2009, p. 10), cita que: “Na concepção interacional (dialógica) da
língua, os sujeitos são vistos como atores/construtores sociais, sujeitos ativos que
dialogicamente se constroem e são construídos no texto [...]”.
Nessa concepção de língua, a materialidade do texto torna-se lugar de diálogo, onde o
leitor não será mais um sujeito passivo e assujeitado, mas passará a ser ativo, que através das
entrelinhas, constrói os sentidos do texto. Com isso, Koch, relata:

A leitura é, pois, uma atividade interativa altamente complexa de produção


de sentidos, que se realiza evidentemente com base nos elementos
linguísticos presentes na superfície textual e na sua forma de organização,
mas requer a mobilização de um vasto conjunto de saberes no interior do
evento comunicativo (2009, p. 11).

Nessa perspectiva, podemos notar que as concepções mencionadas até o momento


contribuem no processo de leitura, conduzindo para as estratégias de leitura utilizadas pelo
docente em sala de aula, mobilizando a interação entre professor e aluno.
É bem verdade que, percebemos muitas vezes a carência na leitura e escrita dos
alunos, ligada principalmente à falta de repertório de outras leituras realizadas e ao treino da
produção escrita. O grande equívoco é acreditar que se o aluno aprende a nomenclatura
gramatical vai estar preparado para ler, compreender e produzir textos satisfatoriamente.
O trabalho com a escrita requer amadurecimento, treino e constantes revisões. Pois na
verdade na escrita nada é aleatório. Ela cumpre diferentes funções comunicativas que podem
variar na sua forma, dependendo de qual tipo de produção se estabelece, assim como a fala.
Diante da competência escrita não podemos deixar de mencionar a fala que
corresponde a uma interação verbal entre duas ou mais pessoas, com esse desenvolvimento o
discurso vai acontecendo e se desenvolvendo. O mesmo acontece na interação verbal, mas o
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receptor da mensagem não está presente no momento, é como se esse tempo fosse prolongado
para receber a informação. Podemos pensar que no discurso proferido por alguém não tem
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como fazer correções, na escrita, sim.

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A elaboração de um texto não é um processo tão simples quanto parece. De acordo
com Antunes: “Elaborar um texto escrito é uma tarefa cujo sucesso não se completa
simplesmente pela decodificação das ideias ou informações, através de sinais gráficos. Ou
seja, produzir um texto escrito não é uma tarefa que implica apenas o ato de escrever” (2003,
p. 54).
Esse processo de escrita passa por vários caminhos, a produção necessita ser avaliada,
lida e relida para que o produtor consiga identificar falhas na produção e, consequentemente,
reescrever quantas vezes for preciso. Com isso, o texto vai sendo construído por etapas, com
posteriores reescritas e revisões.
Na perspectiva de entender qual a relevância e a relação atribuída à leitura e à escrita
no desenvolvimento dessas competências, podemos dizer que elas têm uma conexão, que
contribui para que o aluno possa adquirir habilidades nas duas competências. A leitura e a
escrita são práticas que se aperfeiçoam no decorrer de sua execução, e que para isso é de
extrema importância que o discente tenha prática não só de leitura, mas que a escrita também
seja constante, por meio da produção e refacção de textos, onde o professor possa orientá-los
em suas atividades.
Ao concluirmos este tópico, percebemos que, a produção escrita, sem dúvida, requer
um planejamento adequado, e para que isso aconteça, precisamos ver a leitura como um fator
determinante, não sendo o bastante é preciso treino, revisão e reescrita. Esses são alguns dos
fatores determinantes para a produção textual.

2 Produções textuais: análise e discussões

O material das Olimpíadas de língua portuguesa que contem sequências didáticas de


como o professor trabalhar o gênero artigo de opinião vem para as escolas municipais e
estaduais, dentro deste material tem quinze oficinas, cada uma dela trabalha com uma
característica do gênero, por fim o aluno produz um texto. Nesta perspectiva recolhemos 05
(cinco) textos para averiguar quais características do artigo de opinião, os alunos conseguiram
desenvolver, e se o processo de leitura e escrita foi relevante.
Para de analisar de forma clara e didática apresentamos algumas informações em
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forma de quadro em que contém as quinze oficinas, bem como os cinco textos que foram
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analisados com vistas para observar os resquícios das atividades proposta pela OLP durante as

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aulas. No quadro foram assinalados os textos em que foram notadas as contribuições de cada
oficina. Vejamos:

PRODUÇÕES DE ALUNOS DA 3ª SÉRIE- E. MÉDIO- 01 02 03 04 05


OFICINA – 2 – O poder da argumentação X X
OFICINA – 3 – Informação versus opinião X X
OFICINA – 4 – Questões polêmicas. X X
OFICINA – 5 – A polêmica no texto X X
OFICINA – 6 – Por dentro do artigo
OFICINA – 7 – O esquema argumentativo
OFICINA – 8 – Questão, posição e argumentos
OFICINA – 9 – Sustentação de uma tese
OFICINA - 10 - Como articular
OFICINA - 11 - Vozes presentes no artigo de opinião
OFICINA – 12 – Pesquisar para escrever X X X X X
OFICINA – 13 – Aprendendo na prática X X X X X
OFICINA – 14 – Enfim, o artigo X X X X X
OFICINA – 15 – Revisão final X X X X X
*Estas informações estão contidas no manual do professor, material disponibilizados nas Escolas
Municipais e estaduais.

Tendo em vista que o trabalho com texto deve seguir passos para que o aluno
desenvolva as habilidades necessárias para a produção, o material disponibilizado pela OLP
está dentro dessa perspectiva. Assim, Celso (2015) diz que o aluno não necessita somente de
leituras teóricas para desenvolver a produção textual, mas sim praticar a escrita e a reescrita
dos textos, possivelmente ganhando autonomia no que produz.
Sendo assim, é possível notar reflexos dos exercícios propostos nas produções dos
alunos, conforme podemos observar no trecho:

Texto 1
“Na busca de convencer o leitor, o político acaba trazendo melhorias para a cidade na época
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de campanha. como investimentos em áreas de saúde e educação por exemplo. Mas, tendo a
certeza que será eleitos não se preocupam com a população, apenas com seus próprios
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interesses não cooperando assim com a cidade”.

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Podemos notar no trecho do texto 1, o produtor apresentou as características propostas
pela sequência didática, argumentou acerca do tema em sua produção, fez a descrição do
quadro político se sua cidade, mencionando a candidatura de um único prefeito ao cargo
administrativo. O aluno utiliza dois argumentos que podem ser considerados falhos ou não,
dependendo do contexto no qual está sendo proferido. Relata que o político em época de
campanha investe em melhorias na educação, saúde, mas sempre em busca de um objetivo
para si próprio. Entretanto, aponta que esse feito realizado pelo atual candidato é somente
para convencimento do eleitor, o aluno relata ainda que mesmo eles fazendo ou não são
eleitos da mesma forma.
Diante das características aqui mencionadas, podemos perceber que a argumentação
está presente na produção do aluno, e de acordo com o que a oficina propunha, pois o aluno
apontou argumentos. Também podemos notar, em outro trecho do mesmo texto, que o aluno
citou sua opinião acerca do tema proposto:

“Precisamos colocar em prática o conceito de democracia e deixar claro que temos


garantido pela constituição o direito de escolher nossos representantes. Não podemos deixa-
los tomarem as decisões sozinhos, como se vivêssemos em um país totalitário. E temo que
fazer com que eles lembrem que o governo é do povo, pelo povo e para o povo”.

A transcrição mostra que o aluno citou sua opinião de maneira impessoal,


argumentando com posicionamentos coerentes, os quais são estabelecidos na Constituição
Federal. Em seguida, argumenta que vivemos em um país totalitário e, por último, lembra que
o governo é do povo. É notável que o discente aprendeu com ênfase as noções expostas pelo
professor durante as oficinas 1 e 2, que tratavam da arte de argumentar.

Texto 2
“Mesmo na época da seca, Lucrécia tem seu lado bonito, com longo campos e alguns
animais típicos dessa região. Lucrécia é rodeada por algumas serras que onde o sol nasce e
se põe rondeando o município pelos raios e sombra provocados pelos mesmos. Certamente
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Lucrécia tem uma beleza única, mas só quem convive que consegue compreende-la”.
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Podemos perceber que a argumentação não aparece no texto, o aluno apenas descreveu
sua cidade, não menciona nenhum tipo de argumentação. Quanto á ausência da
argumentatividade, não se pode saber ao certo o que ocasionou isso, podendo ser
consequência de pouca assiduidade às aulas, inclusive nos dias em que as oficinas foram
ministradas.
Agora nos detemos à exposição das próximas oficinas, quais as propostas que o
caderno apresenta para o professor desenvolver sua metodologia a partir dos objetivos
mencionados em cada etapa.

Texto 3
“O governo poderia investir em fazer novos hospitais, venha ter os equipamentos que aqui
em Lucrécia não tem, com recursos para atender melhor os pacientes, só assim seria
necessário tira esses pacientes com graves problemas ou outros tipos de caso.”

Podemos perceber que o aluno utilizou um tema bastante polêmico, a saúde pública. Assim
em seu texto evidencia a precariedade do hospital de sua comunidade, e ainda faz menção aos
problemas relacionados à saúde serem culpa do governo.

Texto 4
“A impunidade tem gerado insegurança para o Rio Grande do Norte. Os cidadãos
pensamentos dos bandidos, eles tiram a chance de alguém continuar no meio social, por nada
de bem, tem vivido amedrontado com tamanha violência, e com a falta de punidade para com
os criminosos. ”
Assaltos, homicídios, roubos, sequestros, são acontecimentos frequentes no meio social. A
falta de punidade para quem comete a ação criminosa é um grande caos, pois assim eles
passam a cometer frequentemente e sem medo. A vida virou banal nos. Pensamentos dos
bandidos, eles tiram a chance de alguém continuar no meio social, por nada”.

O produtor vai desenvolvendo seu texto dando exemplos de acontecimentos devido ao


uso de drogas e o que ela pode ocasionar. Para o término de sua produção, no último
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parágrafo do texto, conclui dizendo que o governo pode investir em segurança para amenizar
a onda de violência ocorrida devido a incidência de drogas no ambiente daquela localidade,
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apresenta melhorias para que os governantes utilizem em suas estratégias, vemos nesse
trecho:

“O governo deveria investir em segurança, qualificar policiais para que estejam preparados
para a segurança de cada município. ”

Podemos perceber que esse aluno conseguiu desenvolver os métodos aplicados nas
três oficinas mencionadas, pois desenvolveu questões polêmicas, produziu de acordo com as
características de um artigo de opinião, manteve a organização do texto e utilizou-se de
argumentos na defesa da tese.

Texto 5
“Mas em toda cidade as vezes acontece atentados, em governador cidade também do Rio
grande do Norte, um grupo de bandidos queimaram três ônibus escolares, esses bandidos
protestaram a favor das linhas telefônicas nos presídios, graças a Deus esses bandidos aqui
em Lucrécia, mas fiquem atentos pois a qual momento eles podem aparecer. ”

Podemos notar que o aluno fugiu das características de um artigo de opinião, falou de
um acontecimento em uma comunidade próxima de sua cidade, e mesmo diante da
reformulação dos textos e reescrita durante as etapas das oficinas, deixou de argumentar e
opinar, a organização textual não condiz com a estrutura de um artigo de opinião, o que é
possível notar em outro trecho, abaixo:

Texto 6
“Outra preocupação para os moradores de Lucrécia é a falta de água, já está com dois anos
que não temos um bom inverno o reservatório que tinha para abastecer a Lucrécia e outras
cidades vizinhas era o açude de Lucrécia, mas já secou”.

Nesse trecho percebemos que o tema não se ajusta com o outro trecho acima, pois o
aluno no primeiro e no segundo parágrafo falou sobre a violência, no terceiro e quarto
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parágrafo falou da falta de água, observa-se que houve uma fuga de tema comprometendo a
organização textual.
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A Oficina 15 tem como objetivo a revisão e o aperfeiçoamento da produção
individual. Nela há critérios estabelecidos para os examinadores dos artigos de opinião, são as
seguintes com pontuação, variando de 1 a 3 pontos, compreende os critérios: Tema “O lugar
onde vivo”; adequação ao gênero compreendendo a adequação discursiva e linguística,
marcas de autoria e convenções da escrita.
Levando em consideração tudo que foi descrito, e analisado desde a primeira oficina,
entendemos que todos os métodos e estratégias mencionadas no material são relevantes para a
leitura e produção escrita dos alunos. Com isso, podemos perceber que o trabalho pedagógico
desenvolvido durante as oficinas é importante para a formação do professor enquanto
articulador do conhecimento e para a aprendizagem dos alunos.

Conclusão

Buscamos neste trabalho refletir sobre as contribuições da “Olimpíada de Língua


Portuguesa – Escrevendo o Futuro” no processo de leitura e escrita. Para tanto, nos valemos
das produções textuais (artigo de opinião) escritas por alunos da 3ª série do Ensino Médio.
Nossa investigação se deu a partir da análise das 05(cinco) produções escolhidas,
identificando indícios dos pontos estudados nas 15 oficinas ministradas pelo professor.
Encontramos em trechos de 03 produções as caraterísticas do artigo de opinião
Verificamos também nas produções os ensinamentos sobre as questões polêmicas no
texto, no texto 03 o aluno apresentou discussões acerca da saúde, da questão hídrica, da
violência e da política, todos partiram de uma temática universal aproximando-a da realidade
do seu município.
Todos os dados analisados nos levam a crer que os alunos têm dificuldades no
emprego dos elementos coesivos, necessitam de mais tempo para melhorar essa deficiência,
mas que esse não foi propriamente o foco do estudo.
Assim notamos que dos 05 (cinco) textos pesquisados 2 (dois) não atingiram as
características do artigo de opinião, e os outros 03 (três) apresentaram características do artigo
de opinião.
Com base nesta pesquisa podemos perceber que a OLP contribuiu de forma positiva
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para o aprimoramento da leitura e escrita, pois a produção textual possibilitou leituras prévias,
treino na hora da produção e a reescrita favoreceu o desenvolvimento das competências
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necessárias para produzir o gênero solicitado.

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Por fim, podemos dizer que este trabalho servirá de reflexão aos que se mostrem
interessados nesta temática, bem como pode contribuir para outras pesquisas na área de
Língua Portuguesa. As discussões aqui mencionadas são relevantes para a prática docente,
pois tanto o aluno pratica a leitura e a escrita, quanto o docente adquiri conhecimentos a partir
do material que tem em mãos.

Referências

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SOLÉ, I. Estratégias de Leitura. 6. ed. Porto Alegre: Armed, 1998.


483
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GT3 – ENSINO DE LÍNGUA MATERNA

TEXTO LITERÁRIO, RECURSO DIDÁTICO EM AULAS DE LÍNGUA?

Regiane Santos Cabral de Paiva (UERN)


José de Paiva Rebouças (UERN)

Introdução

[...] é na literatura que a importância do sentido do texto se


manifesta em toda a sua plenitude.
Geraldi.

Depois da linguística textual, o texto ganhou mais importância no contexto do ensino


de língua. Dentre estes textos, o literário tem recebido uma especial atenção nas últimas
décadas e, em vista disso, é que apresentamos leituras a respeito desta questão, bem como
enfatizar os aspectos funcionais e didáticos do texto literário. Assim sendo, nosso trabalho
delineou três pontos chaves: texto literário e as metodologias de ensino de língua, texto
literário e seu lugar no ensino e texto literário x recurso didático. Para isto, nos apoiamos em
Barreto (2000), Koch (2007), Marcuschi (2008), Knuppel (2009), Santos (2007), Fillola (2002
e 2007), Cosson (2009), Todorov (2010) e Albadejo (2012), pois os consideramos
imprescindíveis para a consecução do nosso trabalho. Após estes estudos, pretendemos
distanciar o texto literário da nomenclatura de “recurso didático” e elevá-lo a um lugar de
possibilidades dentro do processo de ensino de língua, seja ela materna ou estrangeira.

1 Texto e as metodologias de ensino de língua

Antes de mergulharmos no universo extraordinário do texto literário (TL) e perceber


suas contribuições para o ensino de uma língua, seja ela materna ou estrangeira, é preciso que
nos voltemos a séculos anteriores para verificarmos em que momento o texto passou a fazer
parte da metodologia de ensino língua.
Fazendo esse percurso, conferimos que, mais ou menos do séc. XVII ao séc. XIX, o
estudo do latim clássico constituía a base das metodologias de ensino de línguas em meio
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institucional. Neste sentido, o TL era considerado modelo do sistema linguístico e, através


dele, o vocabulário e a gramática se constituíam como os objetivos imediatos do ensino de
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língua. Presenciamos então, uma pedagogia do modelo43 cuja abordagem é analítica e as
ferramentas se concentram nas antologias de textos ou até mesmo nas obras completas. Desta
maneira, damo-nos conta de que o texto literário se limitava a uma prática de ensino de língua
restrita unicamente ao universo do código linguístico e pela busca de um modelo perfeito da
língua. Nesta metodologia tradicional, a língua é vista como um conjunto de regras e exceções
gramaticais, em que a aprendizagem se dá por um processo dedutivo e sem qualquer interação
entre professor e estudante. Esta concepção de ensino de língua acabou sendo aplicada
também no ensino de língua materna até meados do sec. XX. O mais lamentável é perceber
que ela ainda está sendo aplicada em algumas salas de aula no nosso país, sem levar em conta
que o latim se trata de uma língua morta, enquanto que a materna ou a estrangeira são línguas
vivas.
Afastando-nos um pouco do foco da metodologia tradicional, relembremos o estudo da
língua com base no curso proposto pelo mestre genebrino, Saussure. Segundo ele, a língua era
vista como um fenômeno social, mas era analisada como um código simplesmente,
interessando-lhe apenas o sistema e a forma, sem levar em conta a sua realização na fala ou
no seu funcionamento em textos. Após esta instância, notamos o estruturalismo de Bloomfield
que se dá de maneira eminentemente analítico e descritivo, centrando-se no estudo da
morfologia e da sintaxe a partir da frase como unidade máxima analisável. Neste sentido,
empregavam-se os métodos de redução, que permitia decompô-la em seus elementos
constituintes imediatos, até chegar ao morfema, unidade mínima indivisível. Aparte disso,
Chomsky reagiu a essa forma estruturalista dos distribucionalistas e passou a analisar as
estruturas (sintática, fonológica e semântica) das orações em dois níveis: o profundo e o
superficial para indicar as transformações produzidas ao se passar de um nível para outro e as
regras que regem as transformações.
Observamos nessas últimas concepções, que o estudo da língua ainda se dá num
recorte que se limita ao contexto frasal. Felizmente, após o estruturalismo, rechaça-se o limite
frasal e o texto passa a ser visto como unidade de comunicação.

[...] o texto pode ser concebido como um resultado parcial de nossa atividade
comunicativa, que compreende processos, operações e estratégias que têm
lugar na mente humana, e que são postos em ação em situações concretas de
485

interação (KOCH, 2007, p. 26).


Página

43
Martinez, 2009.

ISBN: 978-85-7621-221-8
Neste caso, a presença do texto, seja qual for o gênero ou o tipo, desestabiliza uma
prática cristalizada no ensino de línguas e contribui para que o aluno desenvolva uma melhor
competência linguística. Inclusive, Bakhtin (1984) argumenta que os gêneros textuais fundem
a possibilidade de comunicação, constituindo-se assim, nas relações de ensino-aprendizagem
de uma língua.
Afirmar que o ensino de língua deve dar-se através do texto, segundo Marcuschi
(2008), é hoje um consenso tanto entre os linguistas teóricos como aplicados. Ele acrescentou
que “A questão não reside no consenso ou na aceitação deste postulado, mas no modo como
isso é posto em prática, já que muitas são as formas de se trabalhar o texto” (2008, p.51).
Orienta, especialmente, que através dos textos é possível trabalhar:

a) as questões do desenvolvimento histórico da língua; b) a língua em seu


funcionamento autêntico e não simulado; c) as relações entre as diversas
variantes lingüísticas; d) as relações entre fala e escrita no uso real da língua;
e) a organização fonológica da língua; f) os problemas morfológicos em seus
vários níveis; g) o funcionamento e a definição de categorias gramaticais; h)
os padrões e a organização de estruturas sintáticas; i) a organização do léxico
e a exploração do vocabulário; j) o funcionamento dos processos semânticos
da língua; k) a organização das intenções e os processos pragmáticos; l) as
estratégias de redação e questões de estilo; m) a progressão temática e a
organização tópica; n) a questão da leitura e da compreensão; o) o
treinamento do raciocínio e da argumentação; p) o estudo dos gêneros
textuais; q) o treinamento da ampliação, redução e resumo de texto; r)o
estudo da pontuação e da ortografia; s) os problemas residuais da
alfabetização (ibidem, p. 51, 52).

Ratifica, inclusive, que esta relação não se esgota nestes itens e que muitos outros
aspectos são facilmente imagináveis. No entanto, deixa claro que o trabalho com o texto não
há de resolver todos os problemas relativos ao uso da língua e que tão pouco é para reduzi-lo
a um mecanismo de motivação para o ensino. Reconhecemos que todas estas questões ainda
se encontram no âmbito linguístico, todavia cabe adiantar que o emprego do texto literário,
particularmente, alcança as dimensões extralinguísticas.

2 Texto literário e seu lugar no ensino


486

Delineando nosso pensamento em direção ao texto literário, Santos (2007) norteia que
Página

o primeiro passo para que se empregue esse tipo de texto é diferenciar uma linguagem não

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literária da literária, tendo em vista que a primeira tem uma finalidade prática; enquanto que
na segunda, não só os conteúdos são importantes, mas também a forma, que pode se
apresentar em prosa ou em verso. Ressalta que quando o professor deixa de trabalhar com o
TL em sala de aula, está impedindo que o aluno desenvolva o conhecimento da organização
textual,

[...] pois o texto literário forma parte de uma categoria de tipologia e muitas
vezes utiliza outra tipologia específica para reescrevê-la conforme sua
subjetividade. Essa prática permite ao aluno perceber que dentro de uma
sociedade se utilizam os textos para diferentes objetivos y contribui tanto
para o incremento de seu conhecimento intertextual como de sua
competência comunicativa [...] (idem, p. 35)44

Tomando o universo da literatura, o artigo proposto por Knuppel (2009, p.129)45


ressalta que:

A literatura torna as pessoas críticas, criativas, capazes de assumir com


responsabilidade e coletivamente a missão da transformação do meio social,
pois é uma forma de expressão que pode acontecer através do mito, de
estórias, de contos, de poesias, enfim, é um patrimônio cultural.

A partir disso, ela propõe um desdobramento da leitura através de uma sequência


didática para o emprego do gênero poesia como sugestão de trabalho com o TL. Este estudo e
aplicação deram-se nas aulas de Literatura na educação básica no curso de letras da
UNICENTRO, campus de Santa Cruz. Segundo ela, reconhecer a literatura como um bem
cultural

[...] é uma forma de inserção social e de produção de conceitos, pois a leitura,


vista de uma perspectiva ampla e dinâmica, desacomoda o indivíduo, que
passa questionar e criticar, aumentando sua capacidade de compreender o que
ocorre a sua volta (KNUPPEL, 2009, p. 144).

O estudioso espanhol, Fillola (2007), nos apresenta trabalhos no sentido de valorizar


os materiais literários nas aulas de língua, acentuando seus dois constituintes: um funcional
(visto, por exemplo, como um expoente cultural, um recurso motivador e estimulante para a
487

44
pues el texto literario forma parte de una categoría de tipología y muchas veces utiliza otra tipología específica
para rescribirla conforme su subjetividad. Esa práctica permite al alumno percibir que dentro de una sociedad se
utilizan los textos para diferentes objetivos y contribuye tanto para el incremento de su conocimiento intertextual
Página

como de su competencia comunicativa […] (idem, p.35. tradução nossa)


45
A escolarização da leitura literária: uma abordagem didática com o gênero literário- poema.

ISBN: 978-85-7621-221-8
compreensão da variedade discursiva, um recurso que apresenta a diversidade sócio-cultural,
entre outros); e outro didático, dividido em objetivo geral (ampliar competências e
habilidades) e objetivo de formação.
Este assunto também compõe um estudo mais apurado, como é o caso da professora
Cleudene Aragão46 que desenvolveu sua tese de doutorado a respeito da literatura como
recurso no ensino e como formador de leitores. Seu estudo compreende desde um diagnóstico
feito no curso de Letras/espanhol da Universidade Estadual do Ceará até uma proposta de
inovação. Ela recomenda que a valorização do texto literário seja enfatizada nas disciplinas de
literatura do curso de Letras para que o aluno – futuro professor – se dê conta da sua
importância para o ensino de língua espanhola.
Também vemos no programa de Pós-Graduação em Letras de nossa instituição, que
existe uma preocupação em torno desta temática. Em 2012, Cabral de Paiva (2012) 47 em sua
dissertação, discorreu sobre o lugar do TL nas disciplinas destinadas à formação (metodologia
I e II do espanhol) do curso de Letras-espanhol da Universidade do Estado do Rio Grande do
Norte e propôs ao final uma sugestão para a inserção deste tema nos programas nestes
componentes curriculares. Em 2016, também tivemos duas dissertações que atentaram para
esta questão. Pinheiro (2016)48 teve como objetivo analisar se a Literatura é tratada como
objeto de estudo, como recurso para o ensino e como formadora de leitores no curso de Letras
Espanhol da UFC. Uma de suas importantes inquietações foi saber sobre o tratamento
didático dado ao texto literário nas aulas de Literatura Espanhola e Hispano-Americana.
Numa outra dissertação, Cunha (2016)49 preocupou-se por analisar o tratamento dedicado ao
texto literário, a partir das propostas oficiais, a fim de conhecer a diversidade de gêneros,
autores e obras presentes nos livros didáticos da coleção “enlaces”, compreender o papel dos
textos literários e identificar as atividades para a prática da leitura do texto literário nestes
manuais.

46
Professora de Língua espanhola da UECE.
47
Disponível em:
<http://www.uern.br/controledepaginas/disserta%C3%A7%C3%B5es%202012/arquivos/1014dissertacao_de_re
giane_santos_de_cabral_paiva.pdf> Acesso em 14 de ago. de 2017.
48
488

Disponível em:
<http://www.uern.br/controledepaginas/defesas2016ppgl/arquivos/3857dissertacao_de_maria_michelle_colaa%
C2%A7o_pinheiro.pdf> Acesso em 14 de ago. de 2017.
49
Disponível em:
Página

<http://www.uern.br/controledepaginas/defesas2016ppgl/arquivos/3857dissertacao_de_jozadaque_pereira_da_cu
nha.pdf> Acesso em 14 de ago. de 2017.

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A partir destes estudos, notamos uma preocupação por discutir o papel do TL no
entorno “ensino”. Mas, por que levar o TL para a sala de aula? Todorov (2010, p. 23) nos
envolve ao afirmar o motivo de amar tanto a literatura: “porque ela me ajuda a viver”. Pode
parecer delírio ou exagero, mas ele justifica isso ao afirmar que a literatura o faz descobrir
mundos que se colocam em continuidade com suas experiências vividas, permitindo-lhe
melhor compreendê-las.

Somos todos feitos do que os outros seres humanos nos dão: primeiro nossos
pais, depois aqueles que nos cercam; a literatura abre ao infinito essa
possibilidade de interação com os outros e, por isso, nos enriquece
infinitamente. Ela nos proporciona sensações insubstituíveis que fazem o
mundo real se tornar mais pleno de sentido e mais belo (TODOROV, 2010,
p. 23, 24).

Este estudioso aproxima a literatura aos estudos da filosofia e das ciências humanas,
pois se trata do pensamento e conhecimento do mundo psíquico e social em que vivemos, cuja
realidade que ela aspira compreender é, simplesmente, a experiência humana. Para ele, a
literatura faz viver as experiências singulares; já a filosofia maneja conceitos. “Uma preserva
a riqueza e a diversidade do vivido, e a outra favorece a abstração, o que lhe permite formular
leis gerais” (TODOROV, 2010, p. 77). Por isso, este autor é muito categórico ao afirmar que
a literatura tem um papel vital a cumprir e que ela não merece ser marginalizada ou tomá-la
como foi proposto na Europa até fins do século XIX, onde a ênfase recaia sobre a disciplina e
não sobre o objeto. “Sendo o objeto da literatura a própria condição humana, aquele que a lê e
a compreende se tornará não mais um especialista em análise literária, mas um conhecedor
humano” (TODOROV, 2010, p. 92, 93).
Barreto (2000) acrescenta ainda que o estudo do material literário permite que
tenhamos ideia de uma comunicação literária, pois no texto literário, nos servimos da palavra
como material com que constrói o objeto artístico, onde o referente recai sobre a própria
linguagem. “A palavra deixa de ser um meio e passa a ser um fim; a finalidade última do
texto literário será a construção de uma realidade totalmente nova, servindo-nos da palavra
como objeto” (BARRETO, 2000, p. 10). Nisto, a palavra ao se desligar da realidade a que
diretamente se refere, é passível de adquirir novos sentidos, por isso o sentido conotativo no
489

produto literário.
É importante comentar que mesmo diante dessa colocação, Cosson (2009) nos
Página

permite uma visão mais realista sobre o estudo do TL em sala de aula. Para ele existe um mito

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ao achar que a leitura literária (análise literária) praticada na escola destruiria a beleza e a
magia da obra, pois a máxima que governa é que a palavra poética é uma expressão tão
absoluta que devemos apenas contemplá-la, mudos e extasiados. Sendo assim ironiza ao
afirmar que qualquer tentativa de tornar a obra (aqui entendo como TL) objeto de uma
discussão mais específica do que a enunciação do êxtase levaria a uma quebra da aura. “A
análise literária, ao contrário, toma a literatura como um processo de comunicação, uma
leitura que demanda respostas do leitor, que o convida a penetrar na obra de diferentes
maneiras, a explorá-las sob os mais variados aspectos” (COSSON, 2009, p. 29). Dito isto, ele
ressalva que o TL não está apenas para reverência e admiração do gênero humano, mas para
que suas potencialidades sejam exploradas ao máximo.
Exatamente por corroborarmos com essa discussão de Cosson (2009) é que
compartilhamos da ideia de que, através do seu emprego nas aulas de língua, seja promovido
um movimento contínuo de leitura, “partindo do conhecido para o desconhecido, do simples
para o complexo, do semelhante para o diferente, com o objetivo de ampliar e consolidar o
repertório cultural do aluno” (COSSON, 2009, p. 47 e 48). Afinal de contas, como bem
acrescenta Vargas Llosa (2004, p. 380) “Nada ensina melhor que a literatura a ver, nas
diferenças étnicas e culturais, a riqueza do patrimônio humano e a valorizá-las como uma
manifestação de sua múltipla criatividade”.
Reconhecendo o potencial que tem o TL em para o ensino, Mendoza Fillola (2007, p.
68 e 69) afirma com convicção que este texto é:

Um documento real para a atividade de aula, um recurso para complementar


o desenvolvimento das competências do aprendiz de E/LE; (…); um material
didático (valor adicional que assume sobre os próprios que já possui) pelo
fato de estar contextualizado no currículo e no quadro das atividades de
aquisição/aprendizagem; […] uma concretização discursivo-comunicativa,
destinada a ser atualizada pelo leitor aprendiz mediante sua participação
cooperativa na construção do significado e na interpretação; uma fonte de
input, selecionado segundo os objetivos de formação e a concepção do
currículo; um estímulo para suscitar no aprendiz-receptor as reações ou
respostas, conforme os fins e atividades de aprendizagem; um recurso
motivador e estimulante para a compreensão da variedade discursiva e para o
conhecimento da diversidade sociolinguística e pragmática; um expoente
cultural, condicionado (em sua criação e em sua recepção), por fatores
sociolinguísticos, pragmáticos e estéticos da cultura em que se inscreve.50
490

50
Un documento real para la actividad de aula, un recurso para complementar el desarrollo de las competencias
del aprendiz de ELE; […]; un material didáctico (valor adicional que asume sobre los propios que ya posee)
Página

por el hecho de estar contextualizado en el currículo y en el marco de las actividades de


adquisición/aprendizaje; […] una concreción discursiva comunicativa, destinada a ser actualizada por el lector

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O texto literário é parte, primeiramente, de uma criação artística de valor estético e
compreende una competência literária que ativa diferentes conhecimentos para reconhecer os
usos e convenções comunicativas da língua. Como reitera Mendoza Fillola (2002, p. 119) “No
discurso literário se aprecia o continuum que compartilham o discurso cotidiano e o discurso
poético, sem ruptura entre essas formas de discurso, porque os dois se apóiam nos princípios
gerais que regulam o uso e a estrutura dos sentidos”51. Outro aspecto relevante do discurso
literário é que nele “se mostra o sistema da língua oferecendo sua maior potencialidade
expressiva e normativa” (FILLOLLA, 2002, p. 120).52.
Ampliamos essa discussão acrescentando cinco fortes razões para incluir o TL no
ensino de língua, conforme apontou Albadalejo (2007). Primeiro, os temas literários
apresentados em seus textos possuem um caráter universal, fazendo com que o texto se
aproxime do mundo do aluno. Segundo, a literatura é um material autêntico, logo, não foi
desenvolvida para fins específicos e que, portanto, o aluno pode enfrentar amostras de língua
dirigidas a falantes nativos. Terceiro, a carga de valor cultural que a literatura apresenta,
acarreta em um benefício para a transmissão de códigos sociais e de conduta da sociedade
onde se fala a língua meta. Quarto, oferece uma ampla riqueza linguística, tanto pelo
vocabulário, como pelas estruturas sintáticas, variações linguísticas e estilísticas e formas de
conectar as ideias. Por último, o poder que dispõe em envolver o leitor para que se crie um
compromisso pessoal com a obra (ou o texto) que lê.
Diante destas constatações, faz-se necessário para a nossa prática como
professor/educador, nos voltarmos para a sensibilidade do texto literário, pois através dele,
descobrimos um diversificado universo linguístico, cultural, histórico, social e político. Sem
contar, que nos permite estreitar uma relação mais próxima com nossos alunos, permitindo-

aprendiz mediante su participación cooperativa en la construcción del significado y en la interpretación; una


fuente de input, seleccionado según los objetivos de formación y la concepción del currículo; un estímulo para
suscitar en el aprendiz-receptor las reacciones o respuestas, según los fines y actividades de aprendizaje; un
recurso motivador y estimulante par la comprensión de la variedad discursiva y para el conocimiento de la
diversidad sociolingüística y pragmática; un exponente cultural, condicionado (en su creación y en su
recepción), por factores sociolingüísticos, pragmáticos y estéticos de la cultura en que se inscribe
491

(MENDOZA FILLOLA, 2007, p. 68-69).


51
En el discurso literario se aprecia el continuum que comparten el discurso cotidiano y el discurso poético, sin
ruptura entre esas formas de discurso, puesto que las dos se apoyan en los principios generales que regulan el
uso y la estructuración de los significados.( MENDOZA FILLOLA , 2002, p. 119).
Página

52
[…] se muestra el sistema de lengua ofreciendo su mayor potencialidad expresiva y normativa (FILLOLLA,
2002, p. 120).

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lhes mergulhar num universo íntimo, além de dar-lhes a oportunidade de se revelar como
gente; como ser pensante e crítico.

3 Texto literário para além de um recurso didático

A leitura em Paulo Freire nasce como um processo biológico que o acompanha desde
os primeiros sentidos de vida, desde a infância, e o acompanha por toda sua trajetória,
transmutando-se na simbiose – homem/literatura ou literatura/homem – e que ele conceberá
como “ato”, no sentido mais amplo da palavra: não aquilo que se fez, mas aquilo que se está
fazendo. O “Ato de Ler” é, portanto, um processo contínuo e inesgotável que se faz a todo o
momento e que se constitui como ação contundente da construção intelectual, sociológica,
política e porque não dizer metafísica do indivíduo, enquanto ser vivente e convivente deste
mundo dito concreto. Se em Paulo Freire (2009) entendemos a literatura como arte que o
afasta da “[...] memorização mecânica da descrição do objeto” (p.17), talvez seja hora de nos
perguntarmos de que maneira estamos lendo os textos que nos chegam às mãos ou os textos
que se criam em nossa volta – seja como cidadãos comuns ou como educadores. O ato de ler
jamais pode ser caracterizado como uma decodificação de signos ou alívio de carga
semântica, um ato mecânico ou gutural, pois “a leitura de um texto, tomado como pura
descrição de um objeto é feita no sentido de memorizá-la, nem é real leitura, nem dela,
portanto resulta o conhecimento do objeto de que o texto fala” (FREIRE, 2009, p. 17).
Se o escritor Marcos Rey dizia que a “Literatura não se tira do nada. A vida é a
fonte”53, o filósofo Edgar Morin endossa esta assertiva definindo-a como “escola da vida: [...]
escola da qualidade poética da vida, da emoção estética e do deslumbramento” (MORIN,
2000, p. 48-9). Esse tipo de texto, o literário, é como um pássaro na mão, que pode voar no
infinito azul do céu ou envelhecer dentro de uma gaiola cantando diuturnamente os mesmo
versos de uma única canção. A mão é a do professor, assim como a decisão; o aluno pode ser
o céu ou a gaiola. Pelo contexto literário, o profissional poderá transferir para o educando os
seus valores mais humanos e desenvolver neles um sentido mais amplo de vivência pela
experimentação do outro e não limitá-lo apenas a atividades de decodificação e exploração do
vocabulário. Se se atribui ao texto literário este emprego mecânico e limitado da leitura como
492

processo de unir palavra por palavra, simplesmente, para se chegar ao assunto do texto, o
Página

53
Revista Literatura, nº 25. Artigo: Vida de escritor, p.47.

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professor deixa de realizar o proposto por Morin (2004, p. 54, 55), “O professor seria aquele
capaz de ajudar o aluno a descobrir suas próprias virtudes, verdades, limitações, aquele capaz
de despertar o sonho para viver a realidade”.
Aprisionar a literatura como mero recurso didático é negar-se a si mesmo e negar ao
aprendiz o direito de aprender com liberdade. Cabe aqui interromper este percurso e
esclarecer que o recurso didático se trata de um recurso físico utilizado com maior ou menor
frequência em todas as disciplinas e, de acordo com sua classificação 54, no campo pedagógico
estariam incluídos: o quadro, flanelógrafo, cartaz, gravura, álbum seriado, slide, maquete.
Retomando a questão iniciada na abertura do parágrafo, quando o gênero literário é
subutilizado como referência para apontamentos gramaticais, ele perde sua função, tornando-
se objeto decorador. O acesso ao texto literário só é possível através da leitura, mas o
professor evita-o atribuindo sua funcionalidade às aulas de literatura.
As contribuições do Texto Literário (TL) para o ensino da língua – materna ou
estrangeira – não se limitam aos aspectos da estrutura linguística, mas passa a ser “um
‘recurso’ (grifo nosso) motivador e estimulante para a compreensão da variedade discursiva e
para a aceitação da diversidade sócio-cultural” (FILLOLA, 2002, p. 143). Como componente
do contexto curricular e material autêntico, o TL, por ser registro da estrutura da língua,
amplia no aluno sua competência linguística, sua compreensão e expansão oral e escrita. Esta
aquisição se dá, porque no TL temos amostras de uso da língua em seus mais diversos usos.
Para isso, é preciso desenvolver atividades e habilidades de leitura, permitindo que o
significado do texto seja em si mesmo um procedimento ativo e significativo de aprendizado.
Quando do ensino de Língua, o TL assume funções ainda mais determinantes, com
diferentes possibilidades de formação. Segundo Fillola (2002, p. 142) “O texto literário
apresenta dados de valor cultural, pragmático e sociolingüístico”. Explorar este aspecto
cultural numa aula de língua é permitir que o aluno tenha acesso aos costumes e a
configuração de determinadas cidades, regiões ou países, aumentando assim, a bagagem de
conhecimento sobre o universo que o cerca. O âmbito pragmático representa o universo
literário propriamente dito, em que o professor desenvolve no aprendiz a competência literária
54
Natural, tecnológica, pedagógica e cultural, segundo Jonir Bechara Cerqueira & Elise de Melo Borba
Ferreira em <http://www.ibc.gov.br/media/common/Nossos_Meios_RBC_RevAbr2000_ARTIGO3.RTF>.
493
Página

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explorando o discurso, a forma e o conteúdo. O campo sociolingüístico, se bem explorado
pelo profissional de ensino, revela aos estudantes diferentes registros de uso da língua,
denunciando a região, a classe social, o grupo a que estes participantes do TL pertencem.
Reforçando este último valor, encontramos nos PCN’s as competências que devem ser
alcançadas pelos alunos de ensino de língua estrangeira:

Saber distinguir entre as variantes lingüísticas; escolher o registro adequado


à situação na qual se processa a comunicação; escolher o vocábulo que
melhor reflita a idéia que pretenda comunicar; compreender de que forma
determinada expressão pode ser interpretada em razão de aspectos sociais
e/ou culturais; compreender em que medida os enunciados refletem a forma
de ser, pensar, agir e sentir de quem os produz;[...] (PCNs, 1999, p. 52).

Percebemos com isso, que o TL é fonte para que o aluno adquira, através da
orientação do professor, estas exigências tão bem propostas para o ensino de língua
estrangeira e que se adequam perfeitamente ao ensino de língua materna.
Concluindo este pensamento, para SANTOS (2007), o TL é bastante proveitoso
quando o objetivo do aprendizado se faz na interação: “[...] pois também permite ao professor
o ensino dos conhecimentos, valores e atitudes interculturais, permitindo ao aluno perceber a
diferença entre os da sociedade em que vive e os da língua meta” (idem, p.36). Desta maneira,
o TL permite que os laços entre os estudantes e professores se estreitem, contribuindo para
que haja uma atmosfera suave de proliferação do conhecimento.
Seguindo ainda o estudo de Fillola, encontramos nele uma longa justificativa sobre o
aspecto funcional do TL:

[...] será o centro de uma peculiar leitura (ineludível atividade inicial)


orientada/pautada por objetivos específicos – em parte diferente aos
previstos pelo autor; componente (central ou complementário) de
determinadas sequências e/ou atividades didáticas no contexto curricular;
[...] expoente discursivo para a ativação das competências e das estratégias
(de recepção literária e as de aprendizagem linguística) do aprendiz ao que
se propõe a leitura; [...] um expoente cultural, condicionado (em sua criação
e em sua recepção) por fatores sócio-linguísticos, pragmáticos e estéticos da
cultura em que se inscreve; um recurso motivador e estimulante para a
compreensão da variedade discursiva e para a aceitação da diversidade
sócio-cultural; um documento real adquadro para a atividade de aula- é um
494

recurso para complementar o desenvolvimento das competências do


aprendiz; [...].(2002, p. 141-142).55
Página

55
[..] será el centro de una peculiar lectura (ineludible actividad inicial) orientada/ pautada por objetivos
específicos- en parte distintos a los previstos por el autor; componente (central o complementario) de

ISBN: 978-85-7621-221-8
Apropriando-se de todos estes aspectos aqui mencionados, não é possível pensar no
ensino de língua – materna ou estrangeira – sem levar em conta o TL como um rico material
autêntico que merece ser incluindo no trajeto curricular das aulas, seja para trabalhar questões
de estrutura ou de interpretação da língua. Cabe ao professor romper com o tradicionalismo e
enfrentar com suavidade e sutileza a autoridade da escola e os moldes do livro didático e
tratar o TL como fonte inesgotável de possibilidades dentro do universo de ensino e
aprendizagem de uma língua. Quando o definimos como um lugar de possibilidades, não o
limitamos a um mero recurso didático, que se insere na aula como pretexto ou como
mecanismo auxiliar para uma atividade específica, mas como um leque que permite abranger
o entorno linguístico, cultural, social, político, moral, religioso, científico e quem sabe mais, a
depender da criatividade e intencionalidade de quem decidiu não ensinar através de
transferência de conhecimentos, mas possibilitar o processo de construção como menciona o
saudoso Paulo Freire.

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BARRETO. L. de L. Aprender a comentar um texto literário. 7. ed. Lisboa: Texto Editora,


2000.

determinados secuencias y/o actividades didactas en el contexto curricular; […], exponente discursivo para la
activación de las competencias y de las estrategias (de recepción literaria y las de aprendizaje lingüístico) del
495

aprendiz al que se propone la lectura; […]; un exponente cultural, condicionado (en su creación y en su
recepción) por factores sociolingüísticos, pragmáticos y estéticos de la cultura en que se inscribe; un recurso
motivador y estimulante para la comprensión de la variedad discursiva y para la acepción de la diversidad socio-
Página

cultural; un documento real adecuado para la actividad de aula- es un recurso para complementar el desarrollo de
las competencias del aprendiz; […] (2002, p. 141-142)- tradução nossa.

ISBN: 978-85-7621-221-8
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PINHEIRO, M.M.C. O texto literário no processo de formação do professor de Língua


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Espanhola. Dissertação do mestrado. (Programa de pós-graduação em Letras). Departamento


de Letras, Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, Pau dos Ferros, RN, 2016, 98f.
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SANTOS, Ana Cristina dos. El texto literario y sus funciones en la clase de E/LE: de la
teoría a la práctica. Anuario brasileño de estudios hispánicos. Madrid: Embajada de España en

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TODOROV. T. A literatura em perigo. 3. ed. Rio de Janeiro: Difel, 2010.

497
Página

ISBN: 978-85-7621-221-8
GT3 – ENSINO DE LÍNGUA MATERNA

O PRAZER EM LER O LOCAL: A LITERATURA DE AFONSO BEZERRA EM


UMA ESCOLA DO SEMIÁRIDO

Vanessa Karoline Monteiro Assunção (UERN)


Cássia de Fátima Matos dos Santos (UERN)

Introdução

A literatura desempenha importante papel na sociedade, pois é um meio de interação


entre o escritor e os leitores. Ela “tem o poder de se metamorfosear em todas as formas
discursivas. “[...] também tem muitos artifícios e guarda em si o presente, o passado e o futuro
da palavra” (COSSON, 2007, p. 17), o que faz do uso do texto literário uma ponte entre o
leitor e as mais variadas épocas e situações de comunicação. Utilizar, portanto, a literatura nas
aulas de língua portuguesa pode ser um caminho para alcançar com maior eficácia os
objetivos do ensino de língua materna, e vai além, pois possibilita ao aluno o conhecimento
do mundo e da sociedade em que está inserido. Por meio da literatura “encontramos o senso
de nós mesmos e da comunidade a que pertencemos” (COSSON, 2007, p. 17), o que
possibilita ao leitor, por meio da leitura literária, uma integração com o meio social em que
está inserido. Através da leitura o aluno/leitor tem a possibilidade de ampliar seus saberes e
assim tornar-se um ser mais ativo e participante na sociedade, pois a leitura “é um meio para
se ter acesso ao saber, aos conhecimentos formais e, sendo assim, pode modificar as linhas do
nosso destino profissional e escolar” (PETIT, 2008, p. 63).
Diante de toda essa importância da leitura na vida do ser humano, surge a inquietação
motivadora desta pesquisa: se quando conseguimos compreender a leitura ampliamos nossa
habilidade leitora e nossa compreensão sobre o mundo, o que será dos jovens que não leem?
Esta inquietação surgiu na minha vivência docente em sala de aula na qual me deparo com
alunos que apresentam total falta de interessa na leitura de textos literários. Essa preocupação
nos levou à questão principal desta pesquisa: tendo em vista o baixo índice de leitura dos
alunos no ensino fundamental, um trabalho interventivo baseado na literatura local
contribuiria para despertar o interesse desses estudantes em relação à leitura?
498

Diante do exposto, formulamos como objetivo geral da pesquisa investigar a função da


literatura local na formação de leitores literários, por meio dos círculos de leitura literária,
Página

abordando a temática do sertão em contos do escritor Afonso Bezerra.

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Para refletir teoricamente sobre o ensino de literatura na escola, utilizamos a
perspectiva do letramento literário, nos apoiando em autores como Paulino e Cosson (2012),
Soares (2012), Lajolo (1994) e Candido (1995); metodologicamente, nos ancoramos, para a
proposta interventiva, nos círculos de leitura literária, conforme nos indica Cosson (2014);
nos diários de leitura conforme Cosson (2014) e Machado (1998). Partimos desses estudiosos
para fundamentar os procedimentos pedagógicos que são realizados na sala de aula, bem
como para desenvolver a análise dos dados constituídos.
Este artigo trata do relato e da análise da experiência de um círculo de leitura literária
desenvolvido no contexto do projeto de intervenção, que é parte fundamental da pesquisa
desenvolvida no Mestrado Profissional em Letras, Profletras, ora em andamento, na UERN,
no Campus de Açu. Para efeito de organização, o artigo se encontra dividido em cinco partes,
a saber: Letramento literário, em que discutimos o conceito de letramento e sua relação com a
formação do leitor; Afonso Bezerra e seus contos sertanejos, em que apresentamos o autor
dos contos selecionados para o trabalho em sala de aula; O contista local na sala de aula, no
qual explicamos a razão da escolha dos contos de Afonso Bezerra para trabalhar com a turma;
Proposta de círculos de leitura literária na escola, em que discorremos sobre a metodologia do
círculo, as suas funções e de como o operacionalizamos no projeto de intervenção. Por fim,
apresentamos a análise do círculo “A Religiosidade”, cujos dados resultam da etapa
vivenciada na sala de aula.

1 Letramento literário

O termo letramento, já bastante usual entre nós, remete ao domínio de um conjunto de


práticas sociais centradas na leitura e na escrita (SOARES, 2012). Esse termo, segundo Soares
(2012, p. 17), tem origem na palavra da língua inglesa literacy, que representa “o estado ou
condição que assume aquele que aprende a ler e escrever”. Esse conceito, ainda conforme
Soares (2012), está ligado a todas as capacidades desenvolvidas pelo indivíduo a partir da
aprendizagem da leitura e da escrita, o que acarreta consequências positivas de ordem social,
cultural, econômica, cognitiva, dentre outras.
Paulino e Cosson (2009) discorreram sobre a amplitude do termo “letramento” no
499

decorrer do tempo, embasados em estudos teóricos afirmam não haver uma definição
universal sobre o tema, seu sentido sofreu transformações ao passar do tempo. Inicialmente,
Página

letramento referia-se tão somente ao fato de uma pessoa ser alfabetizada ou não, se um

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indivíduo sabia ler e escrever este era considerado letrado. Posteriormente, foram acrescidas a
esse conceito as habilidades orais do ser humano ao conviver em sociedade, a competência
individualizada de ler e escrever de forma reflexiva, quando o indivíduo ultrapassa a simples
decodificação de signos linguísticos e atinge o nível de compreensão e formação de opinião a
partir do texto lido.
A partir do conceito de letramento, outros termos foram surgindo para definir o
conhecimento do homem acerca das mais diversas áreas, assim surgiram os letramentos
cinematográfico, pictórico, computacional, literário, dentre outros. Nos dedicaremos ao
letramento literário, pois neste se encontra a base para nosso trabalho de intervenção. Paulino
e Cosson (2009) veem o letramento literário como uma das práticas sociais da escrita, estando
este ligado diretamente à leitura do texto literário e à construção de sentidos alcançada por
meio desta leitura. Lajolo (2011, p. 15) já afirmava que “ou o texto dá um sentido ao mundo,
ou não tem sentido nenhum”. O processo de leitura do texto literário está diretamente ligado a
essa significação do mundo e da sociedade em que vive o leitor literário, pois este passa por
constantes transformações no decorrer de sua formação leitora.
Com o projeto de intervenção, o que pretendemos é analisar como os alunos reagem
ao serem despertados não apenas para o gosto pela leitura, mas o interesse em fazer do ato de
ler uma fonte de ampliação de conhecimento, dando significado a essa leitura, especialmente
pelo tema que circunscreve os textos selecionados. É a leitura que pode fazer surgir no ser
humano a consciência necessária para que ele se situe no mundo e se perceba como um
cidadão crítico e atuante na sociedade. Ao se ter essa concepção, cumpre-se o papel de escola
transformadora, que conforme Soares (1994) deve garantir a aquisição de conhecimentos e
habilidades transformando os indivíduos em participantes atuantes da transformação social.

2 Afonso Bezerra e seus contos sertanejos

Afonso Ligório Bezerra nasceu a 9 de junho de 1907, na antiga povoação de


Carapebas, no município de Angicos, RN, hoje cidade de Afonso Bezerra, sendo seus pais,
João Batista Alves Bezerra e Maria Monteiro Bezerra.
Afonso fez as primeiras letras em Carapebas e continuou seus estudos na capital do
500

estado no Colégio Diocesano Santo Antônio e no Ateneu Norte-rio-grandense. Iniciou suas


atividades literárias cedo. Em 1922, já fazia parte do Círculo de Estudos “Olavo Bilac”. No
Página

ano de 1925, publicou em O Beija Flor, do Rio de Janeiro, o conto “O orvalho”, na seção

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“Colaboração Infantil”. Posteriormente seguiu publicando variados textos em periódicos em
diversos estados do país. (BEZERRA, 1967).
Em 1928, ingressou na Faculdade de Direito do Recife, onde se destacou no 1˚ ano do
curso. No ano seguinte retornou, doente, a Carapebas, onde a família, ao sentir agravar-se seu
estado de saúde, o levou para ser tratado em Natal. O tratamento não surtiu o efeito esperado e
Afonso Bezerra veio à óbito no dia 8 de março de 1930, na capital do estado Rio Grande do
Norte.
Afonso Bezerra apesar de sua vida breve, deixou uma significativa contribuição para a
literatura potiguar, “[...] escreveu contos, crônicas, poemas, dramas, conferências e ensaios,
mas foi principalmente enquanto contista que ficou reconhecido” (DUARTE; MACÊDO,
2001, p. 281). Ele foi um pioneiro da vertente regionalista na literatura potiguar, e entre os
temas preferidos por Afonso, “destacam-se o sertão, os flagrantes da vida sertaneja, a
paisagem, os tipos, a flora e a fauna” (DUARTE; MACÊDO, 2001, p. 281).
A sua produção literária e intelectual foi reunida após sua morte, pelo crítico Manoel
Rodrigues de Melo e publicada sob o título “Afonso Bezerra: ensaios, contos e crônicas”, no
ano de 1967. Recentemente, no ano de 2014, o escritor Thiago Gonzaga reuniu 17 contos de
Afonso Bezerra e publicou sob o título “No Rancho dos Bentinhos e outros contos”.
O que nos desperta a atenção para a valiosa obra literária de Afonso Bezerra são seus
contos sertanejos, pois ao decidirmos tratar da temática do sertão no trabalho com o texto
literário em sala de aula, encontramos em Afonso a oportunidade de aliar a temática de
interesse dos alunos, ao trabalho com um escritor local, de valor literário reconhecido entre os
estudiosos da literatura potiguar.

3 O contista local na sala de aula

A escolha de se trabalhar com contos surgiu a partir da aplicação de questionários com


os alunos que apontaram interesse pelo gênero, conforme o gráfico 1 56. A estrutura do gênero
favorece o trabalho em sala de aula, principalmente se tratando de leitores iniciantes, visto
que são narrativas menores, se comparadas às novelas e aos romances. [...] “a economia do
estilo, e a situação e a proposição temática resumida”, (GOTLIB, 1987, p. 15) aliadas à
501

temática de interesse dos alunos torna o processo de leitura mais acessível e prazeroso.
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Resultante da aplicação de questionários.

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Gráfico 1 – Gêneros textuais de maior interesse.

Dos gêneros textuais abaixo,


qual mais o agarada?

Conto
10%
20% História em quadrinhos
45%
Romance
25%
Poemas

Durante as aulas de língua portuguesa no ano de 2016, a turma tinha abertura para
debates sobre temas de interesse específicos, e eles se mostravam bastante preocupados com a
questão da seca em nossa região e as variadas formas pelas quais esse fator climático afeta a
nossa sociedade. Por esse motivo, optamos por colocar no questionário de interesses, o tema
Sertão, como meio de englobar a seca e toda sua abrangência. Essa temática foi bem votada
pelos alunos, ficando empatada com a temática de textos de assombração e terror, conforme
gráfico 2. Como havíamos trabalhado a temática do terror durante o ano de 2016 e diante do
grande interesse também da professora em trabalhar com a literatura local, optamos por
trabalhar o tema o Sertão, nos círculos de leitura.

Gráfico 2 – Temas de interesse dos alunos

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A escolha dos textos de Afonso Bezerra se concretizou diante do interesse já presente
em se trabalhar a literatura local. Os elementos trazidos pela turma nos conduzem a essa
escolha, de um lado, por se encontrar em seus textos literários um forte domínio da temática
escolhida, ou seja, a presença marcante do sertão, da seca, da figura do sertanejo; de outro
lado, a contribuição que sua obra poderá dar para o aperfeiçoamento das práticas de leitura
dos educandos, sugerindo um interesse genuíno, uma vez que se trata de um autor local, cuja
curiosidade, supomos, ser mais fácil de despertar. Se a aproximação entre obra e leitor é feita
por meio de um processo que sugere identificação, torna-se mais significativo, cremos, que a
atividade leitora faça mais sentido para o universo de experiências leitoras dos estudantes.

4 Proposta de círculos de leitura literária na escola

O trabalho com a leitura compartilhada é uma ideia já debatida por muitos autores, que
veem nessa atividade uma maneira eficiente para a construção de significado às obras
literárias, e apresentam-se sob as mais diversas nomenclaturas (círculos de leitura,
comunidades de leitores, clube do livro, sociedade literária), porém apresentam a mesma
finalidade, a leitura compartilhada de obras literárias.
A sala de aula nessa perspectiva se apresenta como uma comunidade, considerando
que um aluno está inserido nesse ambiente comunitário, as suas interpretações advindas da
leitura podem ganhar maiores significações quando compartilhadas e confrontadas com as
ideias de seus colegas e professores, esse compartilhamento é possível através da leitura em
grupo e do trabalho por meio dos círculos de leitura, a partir do debate e reflexão das ideias da
obra literária será possível construir um sentido mais profundo dessas leituras.
A escolha do trabalho com os Círculos de Leitura advém da necessidade de
proporcionar aos educandos um ambiente coletivo de discussão da leitura literária,
possibilitando um estreitamento das relações interpessoais na sala de aula e a construção de
um espaço de aprendizado colaborativo.
Para o trabalho com os Círculos de Leitura amparamo-nos na teoria de Daniels (2002)
apud Cosson (2014) que apresenta três tipos básicos de círculos de leitura: estruturado,
semiestruturado e aberto ou não estruturado. Esses círculos funcionam obedecendo
503

integralmente ou parcialmente a uma estrutura com regras, registros e papéis definidos por
seus participantes.
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4.1 Primeiro passo: iniciando o círculo de leitura

Seguimos o modelo de círculo de leitura proposto por Daniels (2002) apud Cosson
(2014, p.140): “Trata-se [...] de uma atividade de leitura independente em que grupos de
alunos se reúnem para discutir a leitura de uma obra”. Apresentamos, a seguir, as
características priorizadas para esse círculo de leitura:

Quadro 1 – Características priorizadas para esse círculo de leitura.


a) a escolha da obra que será objeto de leitura é feita pelos próprios estudantes;
b) os grupos leem diferentes obras ao mesmo tempo;
c) registros feitos durante a leitura são fundamentais para desenvolver a discussão sobre o
livro, podendo ser um diário de leitura;
d) as atividades dos grupos obedecem a um cronograma de encontros;
e) as discussões em grupo devem ser livres para que os alunos as sintam como um processo
natural de discussão;
f) a função do professor é dar condições para que a atividade aconteça, agindo como um
facilitador.

A partir dessas orientações básicas, dá-se início à constituição do círculo de leitura.


Ainda conforme Daniels (2002) apud Cosson (2014), dentro do círculo de leitura são
definidas funções de leitura para cada aluno participante, como meio de estruturar o círculo.
No quadro 2, as funções se explicam as funções priorizadas para esse círculo.

Quadro 2 – Funções dos componentes nos círculos de leitura priorizadas nesse círculo
FUNÇÕES DESCRIÇÃO
Conector Liga a obra ou trecho lido com a vida, com o momento;
Questionador Prepara perguntas sobre a obra para os colegas, normalmente de cunho
analítico, tal como por que os personagens agem desse jeito? Qual o sentido
deste ou daquele acontecimento?
Iluminador de Escolhe uma passagem para explicitar ao grupo, seja porque é bonita, porque é
passagens difícil de ser entendida ou porque é essencial para a compreensão do texto;
Ilustrador Traz imagens para ilustrar o texto;
Dicionarista Escolhe palavras consideradas difíceis ou relevantes para leitura do texto;
504

As funções são selecionadas de acordo com a quantidade de componentes do círculo


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de leitura. Cosson (2014, p. 143) afirma “nem todas as funções precisam ser preenchidas por

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um grupo, assim como o professor pode inventar outras funções conforme as características
do texto lido e da turma”. Para este círculo utilizamos cinco, das nove funções apresentadas
por Cosson.

4.2 A escolha dos contos e a formação dos Círculos

Após a interação dos alunos sobre o que seria um círculo de leitura e a formação dos
grupos, disponibilizamos para eles uma coletânea contendo 15 contos de autoria de Afonso
Bezerra, para que eles pudessem selecionar os textos.

Quadro 4 – Contos para escolha dos alunos


Títulos dos contos
O orvalho, O Eremita, Rasga-mortalha, A cruz da estrada, A caçada, O
viajante, A ressureição, Visagem, No Rancho dos Bentinhos, Tapera,
Poldro Brabo, Mordido de Cobra, Quirino Pereira, Noite de São João e A
cruz do tabuleiro.

O livro que reúne a obra de Afonso Bezerra é de difícil acesso. Na cidade de Angicos,
só existe um exemplar, que pertence a esta professora pesquisadora. Por este motivo, foi
confeccionada a coletânea e disponibilizada impressa. Os alunos tiveram acesso ao livro
escrito e foi acordado, entre os educandos e a professora, que durante os encontros dos
círculos de leitura o livro impresso estaria sempre presente na sala de aula. A coletânea foi
confeccionada para que eles pudessem desenvolver as leituras e escolhessem, cada um, os
textos que mais os interessasse. Em seguida, os alunos dividiram-se em cinco círculos de
leitura com os seguintes temas “O sertão”, “O sertanejo e a seca”, “A religiosidade”,
“Crendices” e “Costumes”. Após a criação dos círculos, as equipes se organizaram para
leituras e organização dos círculos de leitura literária.

4.3 Os diários de leitura

Dentro da concepção de Círculos de leitura, ficou definido com os alunos que os


registros de leitura seriam concretizados na forma de Diários de leitura, nos quais os
505

educandos iriam registrar suas análises e compreensões de leitura, suas inquietações,


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encantamentos, ilustrações, registros fotográficos, enfim, tudo que acreditam ser pertinente e
enriquecedor em suas experiências dentro do Círculo.
Para que os Diários se tornassem fatos concretos, os alunos, no decorrer de suas
leituras, iriam realizar registros em suas coletâneas, pois cada coletânea tem um local
destinado para os registros individuais, e ao final de cada círculo o “Organizador57”, função
acrescentada pelos alunos e a professora, fará a reunião dos registros de cada componente do
círculo no Diário de Leitura do grupo, além das contribuições dos colegas dos outros círculos.
A importância do Diário se concretiza na relevância do registro das impressões de
leitura, “é o momento em que os participantes refletem sobre o modo como estão lendo e o
funcionamento do grupo, assim como sobre a leitura compartilhada” (COSSON, 2014, p.
171). O registro é ainda uma oportunidade de interação entre os participantes e deve ser
enriquecido com as contribuições advindas dos debates durante os encontros dos círculos.

5 Analisando o círculo “A Religiosidade”

Para este momento, optamos por realizar uma breve análise de um dos círculos
trabalhados no projeto de intervenção e escolhemos o círculo “A Religiosidade”.
O círculo “A Religiosidade” é composto por 5 alunos, sendo 1 do sexo masculino e 4
do sexo feminino. Duas meninas se intitulam católicas, duas evangélicas e o menino se dizia
ateu. Os contos escolhidos pelo grupo foram “Primeira Comunhão” e “Noite de São João”.
A escolha da temática da religiosidade pelo grupo surgiu do interesse das alunas por
questões relacionadas à fé, o aluno entrou no grupo por afinidade com as colegas e por ter se
interessado pelo conto “Primeira Comunhão”.
A turma já havia realizado a leitura prévia dos contos lidos e no dia do círculo
novamente realizaram a leitura dos contos de forma coletiva. Após a leitura do primeiro conto
“Primeira Comunhão”, os alunos responsáveis pelo círculo de leitura “A Religiosidade”
iniciaram suas intervenções. Nomearemos aqui os alunos integrantes do círculo pela função
desempenhada por eles e os demais alunos que contribuíram com suas intervenções e
observações serão nomeados por números, ALUNO 1, ALUNO 2.
O conto “Primeira Comunhão” trata do relato do dia da primeira comunhão do menino
506

Joãozinho, órfão de pai, criado com muito sacrifício pela mãe, um menino que em sua
Página

57
Função utilizada somente na transcrição dos registros no diário de leitura.

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inocência de criança sentia uma grande alegria em sentir-se próximo à Deus. A mãe sofria o
luto da recente perda do esposo, mas sentia-se confortada pela religião e orgulhosa de ver no
filho um menino obediente e com uma fé inabalável.
O CONECTOR afirmou que “Na leitura do conto é possível observar que hoje em dia
não vão sozinhas para a primeira comunhão, a família acha importante está junto com a
criança”. Esta afirmação foi motivada pelo fato de o personagem do conto, Joãozinho, que era
órfão de pai, ter ido sozinho para sua primeira comunhão, deixando sua mãe em casa a chorar
o luto. “Outra realidade importante é que nessa nova geração as crianças não sentem interesse,
vontade de participar, muitas vezes participam por vontade dos pais e no conto pode-se
observar a vontade do menino para participar da sua primeira comunhão” (CONECTOR). A
partir desta segunda afirmativa do conector, o ALUNO1 inferiu que em sua opinião “os
jovens de hoje não valorizam as questões religiosas e morais, e raramente um jovem escolhe
por sua própria vontade participar da primeira comunhão”. O ALUNO 2 acredita que “se os
pais não incentivam as crianças a frequentarem igrejas, quando eles estão na adolescência fica
mais difícil querer ir”. Pudemos perceber nas falas dos alunos que eles têm noção da
importância da fé na vida do ser humano, mas não se sentem motivados à frequentarem as
igrejas, alguns poucos alunos, no entanto, são frequentadores assíduos de templos religiosos.
Uma das questões abordadas pelo QUESTIONADOR foi se os alunos acreditavam
que “a religião cura a tristeza e por quê? ”. O ALUNO 3 afirmou acreditar, “pois o fato de
saber que tem alguém que se preocupa com a gente e entende nossas coisas, nos faz mais
feliz”. O ALUNO 1 disse que sim, pois “Deus traz alegria, e saber que ele nos ama apesar de
errarmos traz paz”. O ALUNO 4 afirma “que sim, pois ouvir músicas que falam de Deus
deixa ele mais feliz”. A fé presente na fala de cada aluno era perceptível. Destacamos que
houve mudança comportamental, embora esta não tenha sido a intenção do trabalho com a
leitura, mas é importante ressaltar as conclusões as quais os alunos chegam depois da leitura.
Como docente, conhecendo-os mais de perto, pude perceber mudanças comportamentais em
dois alunos na sala de aula após a apresentação dos círculos. o ALUNO 1 escreveu no diário
de leitura, que “ler esses textos que falam de Deus e falam como o povo antigo sofria e saber
que hoje temos coisas boas sempre que precisamos, me fez ver que eu fazia coisas erradas na
sala, que machucava meus colegas e meus professores. Não quero ser assim”. Percebe-se
507

claramente, o efeito reflexivo do conteúdo do conto sobre o jovem leitor. Dá-se o processo de
catarse, em que a descrição da dor alheia expressa por meio da realidade dolorosa das
Página

personagens do conto desperta no leitor um sentimento de responsabilidade em relação à sua

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condição, levando-o a decidir-se por mudar a postura em relação ao outro. Independentemente
de o tema ser a religião, o que mais importa é que os registros revelam posicionamentos que
se alteram e singularidades que são tocadas a partir do texto literário.
O conto “Noite de São João” relata como eram vivenciados os festejos juninos pelo
povo sertanejo naquela época e das características dos sertanejos na perspectiva do autor.
Em relação ao conto “Noite de São João” foi possível perceber uma forte identificação
dos alunos com a temática junina. O ILUMINADOR DE PASSAGENS destacou o seguinte
trecho do conto: “E por fim a música desaparatosa dos fogos de São João” (BEZERRA, 1967,
p. 74). O ILUMINADOR DE PASSAGENS afirma que esta passagem “demonstra
claramente que em todas as festas de São João os fogos de artifício é algo comum”. Já o
ALUNO 4 acredita que “os festejos juninos fazem parte da cultura sertaneja e que os fogos de
artifício representam a alegria desta data”. O ALUNO 5 afirma que “o São João é uma festa
católica, mas todos gostam por isso pessoas de outras religiões ficam criando nomes
diferentes para poderem comemorar também, como por exemplo festa da colheita”. De uma
forma geral, os alunos associam os fogos de artifícios aos festejos juninos e a maioria acredita
que para gostar de fogos a idade não importa. Um questionamento que surgiu durante a
análise do conto “Noite de São João” relaciona-se a seguinte questão, elaborada pelo
QUESTIONADOR do círculo: “O escritor afirma que os sertanejos “impressionam-se
facilmente com as projeções luminosas”. Você acredita que ele está sendo preconceituoso
com essa fala”? Esse questionamento ocasionou uma forte discussão durante o círculo, pois
alguns alunos acreditavam que Afonso estava sendo preconceituoso com essa afirmação. No
entanto, ao término da discussão, os alunos que acreditavam que não havia preconceito na fala
do escritor, mantiveram-se em maioria. O ALUNO 6 afirmou que “Afonso não falou uma
mentira nessa frase, pois é verdade que nos festejos juninos, festa de Ano Novo, aniversário
da cidade e outras festas que têm fogos, muitas pessoas saem de casa só porque acham
bonitos os fogos”, o ALUNO 3 complementou que “as pessoas do interior veem nos fogos de
artifícios algo encantador e ficam impressionados sim e isso não é feio, nem diminui
ninguém”. O ALUNO 1 afirmou acreditar que “Afonso conseguiu nessa frase perceber uma
característica do povo do sertão que permanece igual até hoje, a admiração pelos fogos de
artificio”. Esse questionamento foi muito propício e nos fez perceber um avanço em relação à
508

baixa estima que víamos em nossos jovens em relação ao se perceberem nordestinos, se


considerarem sertanejos, se antes muitos se sentiam diminuídos por sua localização
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geográfica, como era o caso do ALUNO 1 e de muitos outros, perceber em suas falas o
orgulho em dizer ser do sertão e se impressionar, sim, com “as projeções luminosas”.
O ILUSTRADOR do círculo era o aluno que se intitulava “ateu”, vamos observar as
ilustrações e as anotações que ele fez sobre os contos.

Primeira Comunhão

O ILUSTRAOR afirmou que “quando fala em primeira comunhão eu imagino uma


igreja católica, com a imagem do Cristo, pois lendo o conto e pesquisando a respeito, descobri
que a primeira comunhão significa receber Jesus, a hóstia sagrada representa o corpo de
Cristo. Cristo é filho de Deus e morreu para perdoar os pecados das pessoas. Eu achava que
Deus não se importava comigo, mas acho que não é bem assim”. Ele ainda complementou em
suas anotações que “lá em casa, minha mãe não frequenta igreja e eu também não, quando
vou para a casa do meu pai em Natal também não vamos em igreja e não vejo eles falarem em
Deus, eu acho que eu falava que era ateu sem saber o que Deus representa”. Observamos aqui
não uma questão de doutrinação, ou imposição de ideias, mas uma constatação natural
proveniente da leitura, que trouxe mudanças na visão de mundo do aluno.
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Noite de São João

Para o conto “Noite de São João”, o ILUSTRADOR fez o desenho acima, que para ele
“representa as pessoas que gostam dessas festas e as que não se interessam muito,
representadas pela imagem do jovem ajoelhado ao lado da fogueira e a jovem encostada na
árvore como se estivesse sem se incomodar, no cenário muitos fogos”. O ALUNO 7 afirmou
“gostei muito desse desenho, ele me lembrou o São João na rua em que moro”; o ALUNO 2
falou que “o jovem ajoelhado lhe lembra milho assado”; o ALUNO 8 acredita que o colega
“conseguiu representar os festejos juninos nesta imagem”. Os alunos de um modo geral
ficaram muito impressionados com as ilustrações do colega, pois não sabiam que ele tinha
tanta habilidade para desenho e que ele conseguiu representar através dos desenhos os contos
lidos.
Aqui apresentamos apenas algumas observações sobre o círculo “A Religiosidade”,
um pequeno recorte de uma análise maior e mais aprofundada que está ainda em
desenvolvimento.

Considerações finais

Até este momento, acreditamos que o trabalho interventivo vem surtindo o efeito
esperado, pois pudemos perceber nos alunos o interesse pela participação no círculo de
leitura, envolvimento nas leituras e ampla participação nas discussões, assim como mudanças
significativas em sala de aula no que se refere a outros trabalhos com leitura, comportamento
510

e interesse em atividades que envolvam leitura.


Cosson (2014) afirma que os círculos de leitura promovem o gosto pelo ato de ler, a
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formação do leitor e a leitura literária, o que vem a ser comprovado até então a partir dos

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comportamentos apresentados pelos alunos. Assim entendemos que a os contos de Afonso
Bezerra vêm se constituindo um ótimo recurso para motivar a leitura de textos literários na
escola, propiciando, assim, o letramento literário.

Referências

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GT3 – ENSINO DE LÍNGUA MATERNA

IDENTIDADE DOCENTE: UMA CONSTRUÇÃO A PARTIR DA PRÁTICA DE


ENSINO E ESTÁGIO SUPERVISIONADO

Francisca Vilani de Souza58


UNINTER \UERN.
professoravilani@gmail.com

Introdução

Nas décadas de 1920 e 1930 os movimentos educacionais no Brasil tiveram seu ápice
culminando com o manifesto dos Pioneiros da Educação Nova. Esse teve como meta propor
análise da educação nacional em todos os aspectos visando uma nova política educacional.
Assim, a partir de 1937, com a vigência do Estado Novo foi desenvolvida uma política que
contempla todos os níveis educacionais.
Piconez (2012) expressa que a Prática de Ensino tem sua origem na década de 1930,
com a criação de cursos superiores de Licenciatura. No entanto, sua definição foi explicitada
em 1939 com instituição do curso de Didática, momento em que é instituída habilitação
específica para o magistério, conhecida também como Escola Normal. O ideário educacional
relacionado à Prática de Ensino ligou-se a um momento histórico. E, portanto, considerando
tal atividade como momento privilegiado na luta para melhoria na formação docente.
Barreiro (2006) esclarece que as antigas escolas de formação de professores, também
denominadas escolas normais, eram regidas por legislação estadual, ou seja, cada estado
organizava e definia a estrutura curricular dos cursos de formação docente, e de modo
particular, a Prática de Ensino. Em 1946, foi estabelecido pela Lei Orgânica do Ensino
Normal, o Decreto Lei nº 8530/46 que estabelece um currículo único para todos os estados e
tem como finalidade:
1. Promover a formação docente necessária às escolas primárias;
2. Habilitar administradores destinados às mesmas escolas;
3. Desenvolver e propagar conhecimentos e técnicas relativos à educação da infância.
De acordo com a Lei Nº 11.788 de setembro de 2008 em seu Art. 1º estágio 59 é um
512

ato educativo escolar supervisionado, que é desenvolvido no ambiente de trabalho e, visa à

58
Doutoranda em Ciências da Educação – Universidad Internacional Tres Fronteras - UNINTER\ PY. Membro
Página

do Grupo de Análise do Discurso da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte GEDUERN \UERN.
professoravilani@gmail.com

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preparação para o trabalho produtivo de estudantes que frequentam o ensino regular em
instituições de Ensino Superior, de Educação Profissional, de Ensino Médio, da Educação
Especial e dos anos finais do Ensino Fundamental, na modalidade profissional da Educação
de Jovens e Adultos – EJA.
A referida Lei esclarece ainda que o estágio faz parte do Projeto Político Pedagógico
do Curso, integra o itinerário formativo do estudante, visa ao aprendizado de competências
próprias de atividades profissionais, bem como a contextualização curricular. Tem ainda o
objetivo de desenvolver habilidades para a vida cidadã e para o trabalho. Nesse contexto, se
faz necessário que as instituições e seus docentes responsáveis pela realização do estágio
conheçam, analisem e acompanhem as mudanças das leis, a fim de conduzir os discentes para
o conhecimento, não só no estágio, mas na construção de uma conduta profissional cidadã.
Bianchi (2014) destaca que se espera que no nível universitário, ou seja, o mais
independente, que as IES – Instituições de Ensino Superior estabeleçam regulamentos e
atividades que favoreçam um bom aproveitamento dessa atividade. E, portanto, não deve ser
apenas uma disciplina a mais no currículo. Ela cita ainda que o estágio deve ter como
principal característica o diálogo da escola com o mercado de trabalho.
Metodologicamente foram utilizados o planejamento realizado pelo professor
colaborador da escola campo de estágio e do aluno estagiário, a observação nas escolas campo
de estágio e a autoavaliação realizada pelo estagiário no final da fase de regência de sala de
aula.
Richardson (2010) esclarece que o que é classificado como universo da pesquisa ou de
população da pesquisa é na verdade o conjunto de elementos ou indivíduos que possuem as
mesmas características. Assim, o sujeito da pesquisa é o participante pesquisado, individual
ou coletivamente, de caráter voluntário, vedada qualquer forma de remuneração.
Chizzotti (1995) esclarece que as informações para uma pesquisa podem vir através de
observações, reflexões pessoais, de pessoas que vivem a experiência do assunto estudado ou
ainda do acervo reunido em bibliotecas, centro de documentações ou qualquer registro que
contenha dados. A utilização coerente dessas fontes auxilia o pesquisador, esclarece pontos
ainda obscuros e orienta na busca das informações pertinentes.
513
Página

59
Termo advindo do Latim Medieval, stagium, que significa residência, moradia. Em inglês e espanhol o termo é
practicum.

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1 Contextualizando práticas docentes e contexto escolar

A aplicação de teorias aprendidas o levará ao um melhor desempenho no decorrer das


horas e dias no desencadeamento de atividade acadêmica produtiva embasada em um
currículo bem construído. Bianchi (2014) comenta ainda que a legislação referente ao estágio
curricular supervisionado deve ser acompanhada pelas instituições, a fim de proporcionar aos
estudantes um melhor aproveitamento das oportunidades que lhes são oferecidas por ocasião
de sua atuação nas empresas.
O I Encontro Nacional de Professores de Didática realizado no ano de 1972 na
Universidade de Brasília – UNB, que foi discutido com entusiasmo pelo coordenador do
evento, Professor Valnir Chagas e o ministro Jarbas Gonçalves Passarinho sobre a legislação
que tornava obrigatório o estágio de estudantes.
Bianchi (2014 p.10 -11) esclarece que em dezembro de 1996, em Natal RN, ocorreu o
Encontro Nacional de Estágio Supervisionado de Administração – ENAESCAD, que em sua
proposta final estabeleceu as seguintes diretrizes:

1. Os trabalhos de estágio deverão ser desenvolvidos em função das


exigências das organizações, direcionadas as áreas de interesse dos alunos
e das respectivas Instituições de Ensino Superior IES às quais pertencem;
2. Os trabalhos e a orientação de estágio deverão ter acompanhamento e
avaliação sistemáticos, previamente definidos em Regulamento da
Instituição;
3. O estágio deverá ser interpretado como ponto convergente do curso,
devendo ter critérios orientadores, a excelência, a praticidade, a qualidade
e a utilidade da produção acadêmica;
4. O trabalho de estágio deverá gerar um banco de dados no qual estejam
inseridos conhecimentos, por parte do aluno, de forma que possam ser
relacionados e aplicados em outas organizações e outras instituições de
ensino;
5. As horas dedicadas ao trabalho de estágio deverão se distribuídas em
atividades teóricas e de campo;
6. Cada IES editará seu Manual de Estágio.
7. O estagiário deverá estar respaldado por instrumento legal, celebrado com
a Organização concedente e a interveniência da Instituição de Ensino,
remunerado ou não e com seguro de acidentes pessoais obrigatório.

Ainda de acordo com a Lei 11.788/2008 o estágio constitui um dos componentes


514

curriculares dos programas formativos. Poderá ser obrigatório ou não, conforme diretrizes
curriculares da etapa. Obrigatório quando definido no projeto do curso, cuja carga horária é
Página

requisito para aprovação e obtenção de diploma. Quando não obrigatório é realizado como

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atividade opcional, acrescida à carga horária regular obrigatória. Em qualquer que seja a
modalidade organizacional seguida, o estágio é uma oportunidade de aprendizagem
fundamentada no trabalho.
Zabalza (2014) registra que as contribuições oportunizadas aos estudantes já trazem
também para as instituições formadoras um diferencial, pois ao contribuir com a formação do
estudante, a instituição também está construindo, reconstruindo e colocando no mercado
profissional a sua marca. Uma vez que o estágio e as práticas profissionais construídas e
realizadas em instituições de aprendizagem entregam outras contribuições para a sociedade.
Essas práticas rompem com o isolamento da universidade em relação à sociedade e ao
mundo produtivo. Quando entrega ao mercado profissional mão de obra qualificada, essa
instituição está estabelecendo uma complexa e variada rede de relações que lhe permite
vivenciar atividades práticas aos estudantes. A universidade cumpre o papel de integrar novos
agentes no processo de formação e atuação no mercado.
É notável ainda a oportunidade de oferecer ao mundo produtivo as transformações e
demandas ocorridas concomitantemente. As diferentes metodologias construídas a partir das
práticas nas instituições trazem um melhor conhecimento do mundo através dos estudantes,
dos orientadores, dos colaboradores. Portanto, segundo Zabalza (2014, p. 50) “pouco a pouco
essa distância entre a universidade e o mundo do trabalho foi diminuída”.
Outra contribuição significativa é o ajuste entre os planos de estudo e as características
das demandas de formação para os futuros profissionais. As novas propostas curriculares
objetivam romper os modelos tradicionais, oferecendo novas habilidades, nas quais há
condições de melhoria na capacidade de intervenção pelos sujeitos em formação. Tais atitudes
e valores podem ser reconhecidos socialmente a partir da valorização e autonomia, bem como
da capacidade de tomar decisões.
O período destinado à prática permite abordar conhecimentos e habilidades que os
estudantes necessitam para complementar as aprendizagens, bem como enriquecê-la mediante
a possibilidade de aplicação em espaços reais. Somando a isso Zabalza (2014 p.99) destaca a
necessidade de desenvolver habilidades junto ao estudante estagiário como: “(...) capacidade
de trabalho em equipe, a capacidade de adaptar-se a situações novas e, às vezes, exigentes, a
capacidade de comprometer-se e assumir responsabilidades, a capacidade de idealizar e
515

empreender, entre outros.”.


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2 Dimensões na Prática de Ensino e Estágio Supervisionado

Ao associar Prática de Ensino e Estágio Supervisionado Pimenta e Lima (2012)


registram que nas disciplinas práticas dos cursos de formação nas universidades, a Didática
Instrumental utilizada com frequência alimenta a ilusão que os problemas são iguais e podem
ser resolvidas com técnicas. E, portanto, tal crítica direcionada a Didática Instrumental, num
primeiro momento criou uma negação da didática, que logo foi substituída por uma crítica
diretamente a instituição escola, por ser considerada aparelho ideológico do estado ( Foucault)
e reprodutora das ideologias dominantes.
Essa concepção trouxe uma imagem negativa da escola quando analisada por
alunos/estagiários que por falta de conhecimento e/ou orientação se voltam para apenas
observar os desvios e falhas da escola, no sentido de rotular a escola e seus profissionais
como tradicionais sem analisar o contexto situacional do entorno. Tal ação gera conflito e
situações de distanciamento entre a escola e a universidade em que a primeira passa a recusar
a receber estagiários.
Repensar essa ação no sentido de construir propostas e soluções para esse problema
estrutural do sistema de ensino e seus reflexos na comunidade escolar/acadêmica constitui
uma necessidade de pesquisa em várias áreas da educação, em destaque para a Pedagogia e a
Didática. Nesse sentido, pensar a formação de professores tendo como referência inicial a
proposição de estágio.
Pimenta e Silva (2012, p. 40-41) expressam que:

[...] no campo da formação de professores e dos estagiários, inúmeras


pesquisas tem sido produzidas para denunciar essas questões, contribuindo
para uma melhor compreensão da formação a partir de estudos críticos e
analíticos das práticas desenvolvidas nas universidades, mas também
trazendo contribuições significativas do campo prático dos cursos de
licenciatura e do campo teórico para encaminhamentos aos cursos de
formação.

Tais pesquisas apontam que a universidade é por excelência o espaço formativo para o
exercício da docência, uma vez que não é simples formar para o exercício da docência de
qualidade e que também a pesquisa é caminho metodológico para tal formação. Pimenta e
516

Silva (2012) informam ainda que essa concepção se contrapõe às orientações geridas pelo
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Banco Mundial, as quais reduzem a formação a mero treinamento de habilidades e
competências.
Cabe aqui dizer que o estágio é uma associação entre teoria e prática, e destacar ainda
que a profissão docente é uma prática social como tantas outras têm como meta intervir na
realidade social, em especial, essa na educação que ocorre não só, mas especificamente nas
instituições de ensino, logo, se justifica que a atividade docente é ao mesmo tempo prática e
ação. Sacristán (1999) a prática institucionalizada configura-se em formas de educar que se
dá em diferentes contextos institucionalizados expressando a cultura e a tradição da
instituição.
Sacristán (1999) refere – se ao modo de agir, pensar, valores, opções e compromissos
dos sujeitos. Bem como, seus desejos e vontades, conhecimentos, esquema teórico e leitura do
mundo. Modo de ensinar, de se relacionar com os alunos, de planejar e desenvolver seus
cursos. Portanto, a ação docente por designar atividade humana em uma compreensão
filosófica e sociológica referindo – se a objetivos e finalidades implicando também a
consciência do sujeito para tais escolhas.
As ações pedagógicas passam a serem denominadas atividades que os docentes
realizam no coletivo escolar tendo em vista o desenvolvimento de atividades materiais
estruturadas e orientadas. Essas atividades têm como finalidade efetivar o ensino e a
aprendizagem de professores e alunos. Por essas atividades serem constituídas de conteúdos
educativos, como habilidades e posturas científicas, sociais, afetivas, humanas.
Pimenta e Silva (2012) esclarecem que atividades materiais articulam as ações
pedagógicas e são destacadas como as interações entre professores, alunos, e conteúdos
educativos em geral para a formação humana, também as interações que estruturam os
processos de ensino aprendizagem e ainda as que atualizam os diversos saberes pedagógicos
do professor nas quais ocorrerem os processos de reorganização e ressignificação dos saberes.
Assim, a prática educativa é um traço cultural compartilhado que está também
relacionado com outros espaços da sociedade. E, portanto, no estágio de formação dos
professores precisa viabilizar que esses possam compreender a complexidade das práticas
institucionais, como também dos profissionais como formação para a inserção no mercado de
trabalho. Para atingir tal meta, o estágio precisa ser pensado por todas as disciplinas do curso
517

no sentido de oferecer conhecimentos e métodos, uma vez que essas são ao mesmo tempo
teóricas e práticas.
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Para Zabalza (2014), a prática institucional obedece a múltiplos determinantes e
justifica-se a partir de tradições metodológicas das possibilidades reais dos docentes, bem
como das como das condições estruturais disponibilizadas. O exercício de qualquer profissão
é uma atividade prática, se levado em consideração que se trata de fazer algo, realizar uma
ação.

Resultados e Conclusão

“Com a prática de ensino (...) pude perceber parcialmente como se caracteriza a educação na escola
pública”. (...) percebi que a ação de apenas um professor pode trazer muitos resultados positivos na
vida dos alunos e também no âmbito escolar. Também compreendi a dinâmica de construção do
planejamento e acompanhamento das ações planejadas, sempre podendo reorganizar, repensar e
fazer tudo novamente, e até de outra maneira.

Quadro 01 – Contribuição da disciplina Prática de Ensino. Fonte: Relatório de estágio 2015.

A disciplina Prática de Ensino contribui para o entendimento de como funciona a


escola pública. Ao proferir esse discurso no quadro 01 o estagiário contempla a perspectiva
defendida por Barreiro (2006, p.19) quando indaga: “qual o tratamento a ser dispensado à
Prática de Ensino no processo de formação de professores”? E propõe pensar a prática de
ensino como um elemento articulador da formação docente. Apresentar essa discussão
significa situar o aluno estagiário no contexto da escola pública, espaço que servirá de
laboratório de prática para o momento do estágio e posteriormente para o exercício da
profissão a qual está se capacitando para exercer.
Ao afirmar que foi possível compreender que com uma ação de apenas um professor
pode trazer muitos resultados positivos na vida dos alunos, bem como no âmbito escolar, o
estagiário corrobora com Perrenoud (2001 p.75) quando afirma que “a imagem pública de
uma profissão constitui um detalhe importante, tanto para os profissionais quanto para as
organizações que os formam ou empregam.” Portanto, a imagem pública do profissional
acrescenta apoio à instituição a qual ele está representando. E, portanto, confere equilíbrio e
desenvolvimento profissional. E, assim esclarece que o exercício da profissão docente, como
outras, é uma atividade que de certa forma, compromete a responsabilidade individual de
518

quem a exerce.
A sociedade, representada por uma instituição, nesse caso de ensino, acredita nos
Página

profissionais, tendo como aporte os saberes construídos e disseminados por eles ao longo de

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sua trajetória profissional. Logo, cada professor dispõe de certa autonomia e poder ao usar
para dá sentido a profissionalização. No entanto, não são apenas evoluções pessoais, e sim
evolução progressiva que contribuem com o desenvolvimento de competências e habilidades.
Perrenoud (2001) ainda esclarece que o ofício de professor não é exercido apenas pelos que
praticam a arte de mediar conhecimentos, mas também pelas instituições que contribuem com
essa prática possível e legítima.
Os poderes organizadores públicos ou privados, nacionais regionais ou locais que
gerenciam as escolas contratam e empregam os professores, definem e proporcionam essas
bases legais à educação e também status ao ofício. Esses exigem dos professores e escola a
formação de profissionais qualificados para que possa atender a demandas que tem inúmeras
expectativas com vistas a esses profissionais. No entanto, esses atores trabalham para
transformar a sociedade. Esses, muitas vezes decidem investir na formação contínua, na
prática reflexiva, na inovação e na pesquisa e até na parceria.
Ao se referir ao planejamento e as ações planejadas o estagiário contempla o que
Padilha (2005, p.74) afirma “se todos/as participarem da tomada de decisões deve-se
estabelecer regras claras sobre como de dará essa participação, sobre como as decisões serão
tomadas e em que cada segmento poderá contribuir [...]”. A participação de todos os
segmentos da escola está relacionada a diferentes dimensões do trabalho escolar. Nesse
sentido, a participação da comunidade escolar, representada pelos pais e alunos deve vincular-
se aos colegiados existentes na escola.
Padilha (2005) esclarece ainda que a maneira de construir o planejamento visa garantir
a participação efetiva dos vários segmentos escolares na construção do projeto, bem como na
elaboração dos seus planos de trabalho. Logo, a representação dos demais segmentos da
escola. No entanto, a maior preocupação da escola deve ser o melhor atendimento ao aluno,
suas necessidades e expectativas.
Esse planejamento deve ser elaborado tendo como referência as reais condições e
possibilidades, no entanto, devem-se estabelecer prioridades que podem ser alcançadas em
curto, médio e longo prazo. Partindo do possível, com vistas à implementação prática e
contínua e assim garantir uma avaliação periódica e problematizadora das ações propostas. O
importante nesse sentido é garantir a possibilidade do debate e assim, superar dificuldade na
519

realização das atividades propostas.


Nesse contexto, o docente se encontra em interação com outras pessoas, para realizar
Página

concretamente atividades numa dimensão que o elemento humano é determinante e

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dominante através de valores e atitudes que são passíveis de interpretação. Portanto, há a
exigência que o docente tenha capacidade de agir como sujeito em interação com pessoas,
bem como o desempenho na prática da profissão.

“ a docência abre um leque de possibilidades dentro da sala de aula: requer pulso firme, interesse e
compromisso com a formação dos brasileiros, por menor que seja a quantidade. (...) a experiência da
prática de ensino me fez criar um novo olhar sobre a educação e como posso ser importante na vida
de muitas pessoas, partindo da atividade da qual estou me formando e cuja carreira ofertada pelo
curso me põe na obrigação de fazer e refazer. As vezes o planejamento não da certo e se faz
necessário replanejar.”

Quadro 02 – Experiência da prática de ensino. Fonte: Relatório de estágio 2015.

O estagiário afirma no quadro 02 que essa atividade o fez criar um novo olhar sobre a
educação. O que confirma Barreiro (2006) que a identidade do professor é construída no
decorrer do exercício da sua profissão, no entanto, na formação inicial são sedimentados os
pressupostos e também as diretrizes que serão decisivas na construção da identidade docente.
É nesse caminho que o estágio curricular supervisionado representa um espaço de
reflexão e até embates de forma crítica. É ainda nesse momento que a identidade que o curso
objetiva legitimar deverá ser explicitada com base nos paradigmas pensados e vivenciados.
Esse novo olhar a que o estagiário se refere também está relacionado ao que Barreiro
(2006) argumenta que na formação inicial o estagiário deve pautar-se na investigação da
realidade, bem como avaliar criticamente o seu fazer, o seu pensar e a sua prática. E assim, a
aquisição de uma postura reflexiva com referência nas dimensões teóricas e práticas. Essa
parceria contribui na formação do profissional, enquanto cidadão que analisa possibilidades
de programar mudanças e até avaliar o mercado de trabalho.
Tardif (2014) ao se referir aos saberes experienciais construídos na prática docente (e
não da prática) esclarece que esses se integram a ela e dela são parte constituinte. Portanto,
forma o conjunto de representações a partir das quais os docentes interpretam, compreendem
e orientam sua profissão, bem como a prática cotidiana. Essa cultura docente em ação traz
para o estagiário saberes experienciais que representam condicionantes diversos. Esses
aparecem com base em situações concretas e que às vezes necessitam da improvisação e da
520

habilidade pessoal.
O leque de possibilidade do qual o estagiário se reporta corrobora com Tardif (2014,
Página

p.50) ao afirmar que: “os saberes experienciais fornecem aos professores certezas relativas a

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seu contexto e trabalho na escola, de modo a facilitar sua integração”. Esses saberes
experienciais possuem, portanto, três objetos:
a) As relações e interações que os professores estabelecem e desenvolvem com os
demais atores no campo de sua prática;
b) As diversas obrigações e normas as quais seu trabalho deve submeter-se;
c) A instituição enquanto meio organizado e composto de funções diversificadas.
O estagiário também reconhece a necessidade de compromisso enquanto profissional.
Planejar e replanejar para atingir objetivos, reflete o concreto da realidade escolar. No quadro
02 o estagiário expressa a angústia do planejamento que não dá certo e assim, a necessidade
de replanejar. O estágio como fase de aproximação e intervenção da realidade possibilita
conhecer procedimentos e técnicas para a operacionalização desse trabalho educativo e
confirmação de identidade docente.
Pimenta (2012) sugere a construção de um projeto de estágio. Esse deverá ser pensado
com base na experiência e poderá ter abrangência nas áreas pedagógica60, organizacional61,
profissional62 e social.63 A autora argumenta ainda que pensar o estágio em forma de projeto
estimula o olhar sensível do estagiário relacionado à realidade, a partir de uma postura
investigativa. Assim, a construção de ações que estabelecem cooperação e participação. Essa
atitude criativa possibilita a descoberta de espaços de discussão e contribuição tanto para o
estagiário quanto para a escola.
Nesse caminho, o papel exercido pelo supervisor de estágio, bem como pelo professor
colaborador é fundamental. Pois, esses profissionais com suas experiências poderão contribuir
com atitudes práticas do projeto de estágio. Essa coletividade oportuniza a formação do
estagiário no desenvolvimento das ações, bem como o diálogo pedagógico através da
problematização e também situações de aprendizagem.
Na observação no campo de estágio identifica-se certo comodismo dos docentes em
relação aos métodos de ensino. Utilizando-se quase sempre de apenas da aula expositiva.
Ayres (2012) esclarece que se os métodos de ensino forem usados de maneira correta são
excelentes ferramentas para a aprendizagem. Escolher o método de ensino, portanto, exige
cuidados específicos. É necessário observar que cada método tem vantagens e desvantagens,
521

60
Envolvendo currículo, práticas pedagógicas, avaliação (in) disciplina entre outros.
61
Relacionado ao Projeto Político Pedagógico, conhecimento, relacionado a gestão, biblioteca.
Página

62
Condições de exercício profissional, postura do professor.
63
Envolvendo a comunidade, cidadania, poder político e social entre outros.

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no entanto, cabe ao professor escolher tendo como referência a clientela a ser beneficiada. O
autor destaca como métodos exequíveis:
a) Aula expositiva,
b) Perguntas e respostas,
c) Discussão ou debate,
d) Estudo de caso.
Ayres (2012) destaca ainda que cada método necessita de recursos e esses devem ser
planejados em consonância com os objetivos de ensino a serem atingidos. Ele sugere ainda
que ao planejar o docente deve procurar responder a três perguntas:
1) O que pretende ensinar? Nesse percurso a resposta deverá levar o professor a
estabelecer o objetivo que almeja com esse assunto abordado. Assim, ele está fixando
os objetivos de ensino que pretende atingir.
2) Como vou ensinar? Para responder a essa pergunta o professor deve selecionar os
métodos que julgar mais apropriado para os objetivos propostos. Nesse item, pensando
nos métodos é possível unir diferentes métodos numa mesma aula tais como: aula
expositiva seguida de perguntas e respostas e logo após discussão e debate.
3) O que vou utilizar? Como essa pergunta o professor será induzido a selecionar os
recursos didáticos que julgar mais adequados a cada objetivo e método escolhido. É
possível perceber que a escolha do recurso está relacionada ao método escolhido e o
método relacionado ao objetivo a ser atingido.
Portanto, ao destacar saberes docentes vivenciados no campo de estágio, os estagiários
afirmam que essa atividade o fez criar um novo olhar sobre a educação. O que confirma
Barreiro (2006) que a identidade do professor é construída no decorrer do exercício da sua
profissão, no entanto, na formação inicial são sedimentados os pressupostos e também as
diretrizes que serão decisivas na construção da identidade docente. É nesse caminho que o
estágio curricular supervisionado representa um espaço de reflexão e até embates de forma
crítica.

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GT3 – ENSINO DE LÍNGUA MATERNA

ESTRATÉGIAS DOCENTES DE CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO SOBRE


LEITURA NOS ANOS INICIAIS DO ENSINO FUNDAMENTAL

Alenilda de Oliveira Fernandes (UERN)


Maria do Socorro da Silva Batista (UFERSA)

Introdução

A partir das orientações contidas em referenciais curriculares nacionais de Língua


Portuguesa e autores como Solé (1998) e Coelho (2006), dentre outros, que tratam de temas
relacionados à leitura, compreendemos a importância do ato de ler por prazer e com objetivos
definidos como condição fundamental para melhor compreensão do texto, o que também
possibilita maior capacidade de relacionamento social.
Atualmente, a sociedade tem exigido uma capacidade de leitura elevada decorrente
dos avanços tecnológicos e da informação. Trabalhar com a prática leitora no princípio
escolar dos alunos é relevante, principalmente se eles apresentarem dificuldades quanto ao ato
de ler.
Muitas crianças concluem os anos iniciais sem o desenvolvimento satisfatório das
habilidades de leitura. Muitas vezes, chegam à segunda etapa do nível fundamental com
dificuldades de aprendizagem nas demais áreas do conhecimento por não terem desenvolvido
essas aptidões leitoras, bem como da escrita.
Conforme já explicado pela literatura da área, uma prática uniforme da leitura
favorece a capacidade de adquirir conhecimentos, como também de formar o indivíduo para
viver em sociedade, interagindo com o meio social no qual vive e participando ativo e
criticamente na busca de resoluções de problemas sociais.
O interesse em tratar o tema como objeto de estudo desta pesquisa parte da observação
de um caso particular, quando observamos que uma criança com idade de 12 anos e já
cursando o 5º ano do ensino fundamental ainda não havia desenvolvido as habilidades de
leitura necessárias para ingressar no ano seguinte, qual seja: o ensino fundamental maior. Esta
etapa de ensino exige, além da capacidade de decodificação - a compreensão textual -, o
hábito de ler. Na nossa percepção isso seria um problema para a aluna no decorrer dos seus
estudos nos anos finais daquele ensino.
Mediante essa constatação, e considerando a necessidade do professor do 1º ao 5º anos
do ensino fundamental desenvolver estratégias de leitura, definimos o seguinte problema de
pesquisa: Que estratégias docentes contribuem para a construção do conhecimento,
habilidades e hábitos de leitura nos anos iniciais do ensino fundamental?
Partimos do pressuposto que existem casos de professores que buscam trabalhar a
solução do problema a partir de ações práticas em sala de aula. Nosso trabalho teve como foco
524

as estratégias de construção do conhecimento sobre leitura desenvolvidas com alunos dos


anos iniciais do ensino fundamental. Especificamente, objetivamos identificar as diferentes
Página

estratégias desenvolvidas pela docente pesquisada do 2º ano dos anos iniciais do ensino

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fundamental em uma escola pública do município de Apodi-RN para que o aluno possa
desenvolver a habilidade leitora, compreender como se realizam essas estratégias e analisá-
las, confrontando-as com os aportes teóricos que fundamentam a presente pesquisa.
Metodologicamente, trata-se de uma pesquisa de campo, com caráter descritivo e de
cunho qualitativo, na qual utilizamos como instrumento a observação e a entrevista com a
docente para sequencialmente analisarmos as informações colhidas.
Dessa forma, a pesquisa foi desenvolvida com o fim de contribuir para o
conhecimento de uma realidade escolar, no que toca ao incentivo à leitura e
consequentemente à formação como um todo, uma vez que a habilidade leitora se constitui
como um importante saber ao processo de desenvolvimento cognitivo e social.

1. As estratégias de conhecimento sobre leitura desenvolvidas na ação docente

A literatura da área em análise constata que as estratégias docentes de promoção da


aprendizagem leitora dos alunos são variadas, e as formas de desenvolvê-las também. Esta
variedade depende da realidade escolar em seus diversos aspectos, como também da atuação
docente em sala de aula, considerando-se o conhecimento dos estudantes com os quais
trabalha e a busca de uma prática que conceba o nível de aprendizagem dos mesmos. Dessa
forma, não podemos afirmar que há uma única metodologia a ser utilizada no
desenvolvimento da leitura em sua fase inicial, uma vez que diante da complexidade e
diversidade dos alunos presentes nas escolas torna-se necessário pensar no trabalho com as
diferentes estratégias para diferentes objetivos.
Nesse sentido, a leitura envolve propostas de trabalho contextualizadas que facilitam a
tarefa dos professores no auxílio à aprendizagem dos alunos (SOLÉ,1998). Assim,
destacamos a figura do professor como impulsionador, mediador e incentivador das práticas
que favorecem essa aprendizagem. Por assim considerarmos, os dedicamos a identificar suas
estratégias para promover a aprendizagem significativa da leitura, observando a situação
especifica de uma professora, o que nos permitiu reconhecer estratégias de leitura
diversificadas presentes na prática de ensino observada para incentivar a prática leitora dos
alunos, as quais passamos a apresentar de forma analítica, destacando, no entanto, a literatura
infantil.

2. A literatura infantil como estratégia de desenvolvimento da leitura

Na prática pedagógica diária a professora observada estimula a aprendizagem através


de diversos meios para que os alunos possam desenvolver a leitura, de maneira que eles se
sintam à vontade para realiza-la prazerosamente, e não apenas como uma obrigatoriedade. Os
meios utilizados variam, no entanto aquela destaca o uso da literatura infantil, consensuando
com Coelho (2006, p. 15) ao enfatizar a importância do gênero no ensino de leitura, o qual
525

afirma que a “literatura, e em especial a infantil, tem uma tarefa fundamental a cumprir nesta
sociedade em transformação: a de servir como agente de formação, seja no espontâneo
Página

convívio leitor/livro, seja no diálogo leitor/texto estimulado pela escola”.

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Sendo o trabalho com a literatura infantil frequente nas aulas ministradas pela docente,
observamos no período de uma semana a prática de leitura de contos variados, a qual fez uso
de recursos didáticos, como livros e vídeos de contos infantis. No tópico seguinte,
apresentaremos as principais estratégias utilizadas pela docente, analisando a importância
destas para a formação de leitores.

2.1. A contação de história

Oferecer às crianças o contato com o material de leitura é metodologia frequente


utilizada pela professora. Essa atividade é essencial para a promoção da aprendizagem, pois
favorece a interação dos alunos com o conhecimento e os seus objetos (Professora
entrevistada). Na prática diária de sala de aula, observamos a atividade de contação de
histórias, sempre realizada nos momentos iniciais da aula. A atividade é entoada para os
alunos, com a informação do título da obra e a exposição das ilustrações constantes,
objetivando despertar a curiosidade daqueles para o porvir da história. Outrossim, sempre em
processo de interação com eles.
Na textualidade dos Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa a
“leitura colaborativa é uma atividade em que o professor lê um texto com a classe e, durante a
leitura, questiona os alunos sobre as pistas linguísticas que possibilitam a atribuição de
determinados sentidos” (BRASIL, 1997, p. 61). Nesse sentido, a professora pesquisada está
em sintonia com um dos principais instrumentos orientadores do currículo no Brasil.
Assim, a partir dos questionamentos feitos pelo professor aos alunos a compreensão e
a interpretação das leituras diárias vão se aprofundando. Essa estratégia possibilita aqueles o
desenvolvimento da capacidade de raciocinar, relacionar e comparar. A leitura feita por outras
pessoas para as crianças instiga-as ao conhecimento sobre o texto escrito, que diferencia-se do
oral. Paulatinamente, elas vão se identificando, gostando e aprendendo através da interação
com as imagens dos textos, podendo questionar sobre as gravuras e sobre o que a outra pessoa
ler (SOLÉ, 1998).
Ao perceber essa possibilidade, questionamos à professora pesquisada sobre seus
objetivos em trabalhar dessa forma:

O objetivo é que a criança compreenda o que está sendo lido, como também que tenha prazer
durante a leitura, pois a leitura prazerosa proporciona à criança um mundo de fantasia e
emoção, e é através desse encantamento que a criança desenvolve habilidades de leitura.

Com essa fala é possível relacionar sua compreensão em referência a aprendizagem


inicial da leitura, na qual Solé (1998) se posiciona afirmando que a leitura inicialmente
ensinada aos alunos deve fundamentalmente garantir a interação destes com a língua escrita
para que tenham o conhecimento sobre a leitura. É, portanto, da interação que se realiza entre
526

leitor e texto que se pode despertar o gosto pela prática, sendo estabelecida desde o início da
aprendizagem.
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2.2. Leitura compartilhada

Uma das estratégias também usada pela professora é a leitura compartilhada. Essa
atividade é colocada em prática ao possibilitar que os alunos levem para casa os livros com o
objetivo que eles façam a leitura respondendo às atividades propostas. Todavia, há os que não
possuem a habilidade leitora desenvolvida. Nesse contexto, para os alunos que ainda leem
com dificuldade a professora escolhe o livro que estes levarão baseando-se em suas
dificuldades.
A atividade é desenvolvida duas vezes por semana, nas segundas e sextas-feiras. Os
livros são acompanhados por um roteiro de leitura e a atividade elaborada pela professora tem
como finalidade que o aluno responda o que entendeu da história, apresentando oralmente sua
compreensão na aula seguinte para a turma.
Nas atividades permanentes de leitura é permitida aos alunos a escolha do que desejam
ler, bem como a acessibilidade aos materiais são momentos importantes de aprendizagem.
Para a professora, esse momento:

Que os alunos levem os livros para a casa na sexta-feira e apresentem somente na segunda-
feira da semana seguinte é o de proporcionar que os mesmos também possam ler durante os
finais de semana, permanecendo dessa forma na prática de leitura constante e que eles
continuem praticando e adquirindo mais conhecimento sobre a leitura.

Os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa acrescentam, ainda, que


uma das condições favoráveis para a prática de leitura é:

[...] possibilitar aos alunos o empréstimo de livros na escola. Bons textos


podem ter o poder de provocar momentos de leitura junto com outras
pessoas da casa, principalmente quando se trata de histórias tradicionais já
conhecidas. (BRASIL, 1997 p. 59)

A professora pesquisada aponta ainda que a intenção dessa estratégia é desenvolver a


capacidade de interpretação da criança, possibilitando-a a compreensão do que foi lido e a
socialização com os demais colegas.
A partir dessa estratégia, analisamos que há um constante contato com diferentes
materiais de leitura, possibilitando que os alunos se identifiquem com o ato de ler durante as
práticas leitoras, despertando o gosto e a curiosidade pelo conhecer. É nesse momento que o
docente deve fazer uso de estratégias que favoreçam a compreensão leitora e estimule-os
continuamente para que possam ter prazer em realizar as leituras.

2.3. Projeto sacolinha de leitura


527

Durante a observação da prática da professora, identificamos que ela também executou


um projeto de leitura denominado “Sacolinha e Leitura”, objetivando, também, a
Página

aprendizagem leitora das crianças. O projeto consiste em favorecer a leitura contextualizada

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(BRASIL, 1997). De forma sistemática, ela seleciona os alunos que receberão a sacola. A
escolha é feita através de sorteio ou, as vezes, pela própria professora que utiliza critérios de
necessidades e possibilidades de aprendizagem. Ela explica que:

Dentro da sacolinha de leitura a criança leva para casa um livro infantil (conto de fadas,
poemas, fábulas, história em quadrinho, etc.) com um caderno contendo uma atividade de
acordo com a leitura que será realizada.

Essa estratégia possibilita a criança lê com a ajuda da família e responda a atividade


solicitada, e em seguida socialize com seus colegas (Professora pesquisada).
Mediante a elaboração desse projeto e a forma como ele é explicado e trabalhado,
percebemos que a docente além de instigar a prática leitora no interior da escola também
incentiva o hábito fora desse espaço escolar, ressaltando que a leitura pode ser realizada em
qualquer lugar, não sendo uma prática estritamente escolar.
Resultado da realização da leitura e da reflexão sobre a história que leram através de
uma interpretação pessoal, os discentes respondem as atividades em forma de textos ou
desenhos e no dia seguinte, ao apresentar para os colegas oralmente, desenvolvem a
expressividade, como também a interatividade e a socialização do saber.
A estratégia favorece ao aluno o desenvolvimento constante. Durante a execução do
projeto a professora o estimula para que possa se aprofundar no conhecimento das habilidades
da leitura, relacionando a necessidade de torna-lo reflexivo e crítico para atuar na sociedade
em que vive em decorrência de uma aprendizagem significativa.

2.4. Utilização de vídeo

Percebemos que as estratégias desenvolvidas pela docente para promover o


conhecimento das crianças sobre a leitura são diversificadas. Outrossim, que os recursos que
utiliza são variados, indo além do livro de história infantil, utilizando também o vídeo. Nesse
contexto, observamos que ela fez uma escolha prévia de um conto para o momento da leitura
em sala de aula, depois foi ao espaço da sala de vídeo da escola. Nesta, os alunos ficaram à
vontade para assistir ao filme, que exibia a história de três porquinhos e um bebê.
Antes do conto ser assistido, a docente chamou a atenção para o tema abordado na
história e explicou para as crianças o que iriam assistir. No ensejo, também fez uma avaliação
sobre o que os alunos já conheciam sobre a história, ou seja, explorou o conhecimento prévio
sobre os três porquinhos, abordado em um novo título: Os três porquinhos e um bebê. A
exploração desse conhecimento permitiu que cada um despertasse algum saber o enredo,
provocando o desejo em expressar para os colegas e para a professora o que depreendiam.
Percebemos que essa prática promove a aprendizagem da criança, desenvolvendo e
incentivando a leitura de novos contos, consiste em uma atividade importante e significativa,
528

por proporciona-la a interação, a socialização de opiniões e também momentos de


descontração. Configura-se como um procedimento educativo e também de lazer. Os PCN´s
de Língua Portuguesa faz uma relação quanto aos diferentes recursos didáticos utilizados em
Página

sala de aula pelo docente, afirmando que:

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O emprego dos recursos audiovisuais pode ser de grande utilidade na
realização de diversas atividades linguísticas. Entre as diferentes
possibilidades - slides, cartazes, fotografias, transparências de textos para
serem utilizadas no retroprojetor, etc. o gravador e o vídeo merecem
destaque: além de possibilitarem o acesso a textos que combinam sistemas
verbais e não verbais de comunicação (o que é importante do ponto de vista
comunicativo), possuem aplicações didáticas interessantes para a
organização de situações de aprendizagem da língua (BRASIL, 1997, p. 93).

Ao ser indagada sobre a importância do uso dos diversos recursos, a professora


observada defende que com os diversos tipos de vídeos a criança pode compreender as
características de cada gênero textual, percebendo suas diferenças.
Nessa visão, podemos constatar e defender que tanto o vídeo como qualquer outro
auxílio utilizado pela professora se caracteriza como um dos recursos didáticos que os
docentes podem fazer uso para facilitar o desenvolvimento de seu trabalho educativo em sala
de aula, haja vista ser a partir da diversidade de meios com diferentes textos que se pode
buscar e promover diariamente o conhecimento dos alunos acerca da leitura. Para isso,
também é importante destacar as atividades propostas para que haja aprendizado.

2.5. Confecção de portfólio - os gêneros textuais

A cada observação e momento da entrevista percebemos que as estratégias


desenvolvidas pela professora diversificaram. Dentre elas, identificamos o trabalho com os
gêneros textuais, o que contribui ainda mais para a aprendizagem da leitura.
Entre os procedimentos utilizados está a confecção de um portfólio, no qual foram
produzidos diversos gêneros textuais com a finalidade de promover a aprendizagem das
crianças, procurando através de sua prática o entendimento destas a respeito da diversidade de
textos que circulam na sociedade. Nesse sentido, Souza (2007, p. 15) argumenta que:

Neste enfoque, vale salientar que é importante apresentar ao aluno, não só


um determinado gênero textual, mas trabalhar diversidade de textos, visto
que, se a leitura parte de objetivos, temos que considerar que o aluno
também pode estabelecer e determinar suas preferências de leitura,
selecionando um gênero que lhe proporcione maior prazer e maior
compreensão.

Ao ser indagada sobre a adoção do portfólio, a professora entrevistada afirma que:

Durante todo o semestre letivo é confeccionado no portfólio diferentes atividades


529

relacionadas aos diversos gêneros textuais. Todas as crianças possuem um portfólio e


realizam atividades de acordo com o gênero proposto, porém antes de
confeccionarem a sua atividade trabalhamos o gênero textual em sala de aula para
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que a criança possa compreender a atividade que realizarei. Após esse momento
socializa com a turma a sua atividade.

Dessa atividade, percebemos que o objetivo do portfólio possibilitou o saber dos


alunos quantos às diferentes formas estruturais apresentadas nos diversos textos, bem como
em sua produção. Para isso, foi solicitado aqueles que após fazer a interpretação do gênero
apresentassem para a professora e os demais colegas da turma. A ação favoreceu uma eficácia
no reconhecimento progressivo daqueles acerca dos diversos gêneros que diariamente surgem
em situações comunicacionais.
Conforme afirma Leal (2005, p. 78):

A leitura diária na escola já vem sendo apontada como uma das estratégias
mais eficazes para inserir os alunos no mundo da literatura, da mídia, do
humor. Participando dessas situações, os alunos se familiarizam com
variados gêneros textuais e ampliam seus repertórios de textos, o que pode
leva-los a querer ter acesso a outros textos do mesmo gênero, ou do mesmo
autor, ou do mesmo tema.

Dessa forma, identificamos no decorrer da investigação que esse procedimento foi


prazeroso para os alunos e que havia um planejamento por parte da professora com o objetivo
de provoca-los à participação das atividades. Nestas não era solicitado apenas um texto, ou
qualquer texto, mas a produção de gêneros a partir da época do ano. Assim, no período de
observação, por exemplo, estavam sendo pesquisados e/ou produzidos a temática folclore.
Sobre esse evento, Souza (2007, p. 15) considera que:

No ensino de leitura, os textos do cotidiano são imprescindíveis de serem


trabalhados na sala de aula como suporte de ensino das estratégias de leitura.
Neste sentido, ler vai ter significado para o aluno, pois ele consegue
relacionar a leitura com a vida, com o mundo e com o conhecimento.

Nesse sentido é fundamental para uma aprendizagem significativa que os alunos sejam
envolvidos diariamente em atividades de leitura e que não se limitem aos conteúdos de
Língua Portuguesa. Assim, para que haja uma aprendizagem contínua do saber quanto à
leitura é imprescindível favorecer a ligação entre os diferentes tipos de textos. Que estes não
sejam abordados apenas em uma disciplina especifica, mas que haja um envolvimento de
todas as áreas, possibilitando aqueles um bom desempenho em outros conteúdos,
proporcionando-lhes uma aprendizagem significativa, contínua e promotora da ampliação de
saberes.
530
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Considerações finais

Neste trabalho objetivamos analisar as estratégias docentes de construção do


conhecimento sobre a leitura e identificar que estratégias a professora pesquisada utiliza para
promover o saber em uma turma do 2º ano dos anos iniciais do ensino fundamental.
Concluímos que as metodologias utilizadas pela professora citada para promover essa
aprendizagem com os alunos são significativas. Que a contação de histórias, a leitura
compartilhada, a interpretação de textos, a elaboração de projetos de leitura e a produção de
diversos gêneros textuais na confecção do portfólio são relevantes.
Percebemos que as metodologias usadas são estimuladoras do hábito de leitura, sendo
na prática estratégias que incentivam os alunos a gostarem de ler. Essas estratégias além de
serem importantes para o incentivo da leitura também promovem nesses o desenvolvimento
da expressividade e da oralidade, através da exposição do que leram e também do que ouvem
dos colegas, e a própria docente.
Nessa realidade diagnosticada percebemos o comprometimento da professora em
estabelecer o contato das crianças com a leitura e o interesse da própria instituição escolar em
ampliar essa aprendizagem. Embora esta não seja uma realidade comum, a maioria das
instituições escolares, especificamente a escola pública, na maioria dos casos, é o espaço onde
as crianças que a frequentam tem um contato mais efetivo com a leitura. Por isso é importante
o papel que desempenha o docente no que se refere a essa aprendizagem. Dessa forma, são as
estratégias desenvolvidas em sala de aula que podem promover um conhecimento
significativo e provocador sobre a leitura para não serem apenas uma tarefa árdua na qual os
alunos se desestimulam e apresentam dificuldades na aprendizagem.

Referências

BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais:


introdução aos parâmetros curriculares nacionais: língua portuguesa. Brasília: MEC/SEF,
1997. 126p. Disponível em:< http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/livro01.pdf>. Acesso
em: 28 jul. 2017.

COELHO, Nelly Novaes. Literatura infantil: Teoria, análise, didática. São Paulo: Moderna,
2006.

LEAL, Telma Ferraz. Organização do trabalho escolar. In: Alfabetização e Letramento:


conceitos e relações. SANTOS, Carmi; FERRAZ e MENDONÇA, Márcia. (Orgs.). Belo
Horizonte: Autêntica, 2005.

SOLÉ, Isabel. Estratégias de leitura. 6. ed.. Porto Alegre. Artmed, 1998.

SOUZA, Suami Alves de. A prática pedagógica e sua inferência na formação leitora:
531

fatores que refletem no fazer do professor. Monografia de Graduação. Faculdade de Educação


- FE, Universidade do Estado do Rio Grade do Norte - UERN, Mossoró, 2007, 53 p.
Página

ISBN: 978-85-7621-221-8
GT4 – DISCURSOS E PRÁTICAS NO CAMPO DA EDUCAÇÃO

FORMAÇÃO DE PROFESSORES: UM ESTUDO SOBRE A CONTRIBUIÇÃO DO


PIBID NA ARTICULAÇÃO ENTRE TEORIA E PRÁTICA NO CURSO DE
MATEMÁTICA DO IFRN CAMPUS MOSSORÓ

Aleksandre Saraiva Dantas (IFRN)


Aila Cristina de Souza (EEPJA)

Introdução

Durante o seu processo de formação inicial, o futuro professor se depara com muitos
desafios. Candau (2011) destaca um conjunto de problemas que permeavam os cursos
voltados para a formação inicial de professores (articulação entre conteúdo específico e
conteúdo pedagógico, hierarquia acadêmica etc.) desde a década de 1980. Dentre os diversos
problemas que afetam a qualidade da formação inicial de professores, gostaríamos de destacar
a questão da articulação entre teoria e prática, haja vista que,

Não é raro ouvir, a respeito dos alunos que concluem seus cursos,
referências como "teóricos", que a profissão se aprende na “prática”, que
certos professores e disciplinas são por demais “teóricos”. Que “na prática a
teoria é outra”. No cerne dessa afirmação popular, está a constatação, no
caso da formação de professores, de que o curso nem fundamenta
teoricamente a atuação do futuro profissional nem toma a prática como
referência para a fundamentação teórica (PIMENTA; LIMA, 2011, p. 33).

Desse modo, entendemos que as dificuldades na articulação entre teoria e prática


afetam a formação docente, contribuindo para o aprofundamento fragilidades na formação
inicial de professores, fragilidades essas que se não forem resolvidas durante a própria
formação inicial, acompanharão o licenciando após a conclusão do curso, podendo ocasionar
dificuldades e limitações na sua atuação profissional.
Diante dessa realidade, o Ministério da Educação (MEC) cria o Programa
Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID), através do Decreto no 7.219, de 24
de junho de 2010, atendendo às atribuições legais da Coordenação de Aperfeiçoamento de
532

Pessoal de Nível Superior (CAPES), buscando induzir e incentivar a formação inicial de


profissionais do magistério.
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Art. 1o O Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência - PIBID,
executado no âmbito da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior - CAPES, tem por finalidade fomentar a iniciação à docência,
contribuindo para o aperfeiçoamento da formação de docentes em nível
superior e para a melhoria de qualidade da educação básica pública brasileira
(BRASIL, 2010, p. 01).

Diante de todas as possibilidades apresentadas pelo desenvolvimento do PIBID para a


elevação da qualidade da formação inicial de professores, questionamos:
a) Quais as percepções dos ex-bolsistas, que hoje são professores da disciplina de
matemática e que estão atuando em sala de aula, acerca da articulação entre teoria e prática no
curso de matemática?
b) Quais as percepções dos professores que estão atuando em sala de aula e que já foram
bolsistas do PIBID, acerca do papel desse programa na construção da articulação entre teoria
e prática na formação inicial de professores no curso de matemática do IFRN Campus
Mossoró?
Sem a pretensão de esgotar essa discussão, mas procurando oferecer uma contribuição
para o debate acerca da questão da articulação entre teoria e prática na formação inicial de
professores, esta pesquisa tem como objetivos:
a) Analisar as percepções dos professores de Matemática que atuaram como bolsistas do
PIBID na licenciatura em Matemática do IFRN/Campus de Mossoró acerca das atividades
desenvolvidas com foco na consolidação da articulação entre teoria e prática nessa
licenciatura;
b) Analisar as percepções de professores de Matemática que atuaram como bolsistas do
PIBID na licenciatura em Matemática do IFRN/Campus de Mossoró acerca das contribuições
desse programa para a consolidação da articulação entre teoria e prática na sua formação
inicial.

1 Metodologia

Para alcançarmos os objetivos propostos, optamos pelo enfoque da pesquisa


qualitativa, pois “A abordagem qualitativa parte do fundamento de que há uma relação
533

dinâmica entre o mundo real e o sujeito, uma interdependência viva entre o sujeito e o objeto,
um vínculo indissociável entre o mundo objetivo e a subjetividade do sujeito” (CHIZZOTTI,
Página

2005, p. 79).

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O instrumento de coleta de dados utilizado foi a entrevista semiestruturada, pois
acreditamos que:

A entrevista é um encontro entre duas pessoas, a fim de que uma delas


obtenha informações a respeito de determinado assunto, mediante uma
conversação de natureza profissional. É um procedimento utilizado na
investigação social, para a coleta de dados ou para ajudar no diagnóstico ou
no tratamento de um problema social (LAKATOS; MARCONI. 2003 p.
195).

A opção pela entrevista semiestruturada se deve ao fato de que esse tipo de entrevista
“[...] ao mesmo tempo em que valoriza a presença do investigador, oferecerá todas as
perspectivas possíveis para que o informante alcance a liberdade e a espontaneidade
necessárias, enriquecendo a investigação” (TRIVIÑOS, 1987, p. 146).
É importante ressaltar que, antes de iniciarmos a etapa de coleta de dados, tivemos que
procurar por professores de matemática que:
a) Durante o seu processo de formação inicial no curso de licenciatura plena em Matemática,
tivessem sido bolsistas do PIBID;
b) Estão desenvolvendo atividades em sala de aula na disciplina de Matemática.
Assim para que fosse possível a realização das entrevistas, contamos com a
colaboração quatro professores de Matemática que atendiam aos critérios citados acima. Essa
amostra de professores é oriunda do curso de licenciatura plena em Matemática do Campus
Mossoró do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte
(IFRN).
Para a análise dos dados obtidos nas entrevistas, optamos pela técnica de análise de
conteúdo, pois é muito utilizada em pesquisa qualitativa. Essa técnica, desenvolvida em três
etapas, permite a descrição sistemática do conteúdo de uma comunicação na busca resultados,
contribuindo para a construção de conhecimento sobre o problema de pesquisa.
Em um primeiro momento, realizamos a pré-análise, onde foi feita a escolha e
organização das respostas que serão analisadas, e realizada a primeira leitura dos dados. Em
seguida, ocorreu a exploração do material. Nesse momento, foi feito um aprofundamento na
leitura dos dados, que possibilitou a revelação de categorias que dialogavam com o referencial
teórico. Na terceira e última etapa, o tratamento dos resultados, aconteceu a interpretação dos
534

dados das etapas anteriores, onde foram feitas as associações e deduções em confronto com o
referencial teórico.
Página

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2 Articulação entre teoria e prática na formação de professores

Quando analisamos a questão da articulação entre teoria e prática na formação inicial


do professor, é possível constatar que o distanciamento entre teoria e prática não é algo novo,
evidenciando-se como um problema crônico para a maioria das licenciaturas. Bianchi,
Alvarenga e Bianchi (2005), ao analisar a questão da prática na formação de professores,
afirma que, no final da década de 1960, a prática tornou-se obrigatória nas instituições de
ensino, na forma de estágios supervisionados.
Porém, nem mesmo a criação dos estágios supervisionados se mostrou uma solução
adequada para essa questão. Se considerarmos que os cursos de licenciatura tem duração de
quatro anos, divididos em oito períodos semestrais, o primeiro momento de contato com a
prática acontece, na maioria dos casos, no quinto período, através do primeiro estágio
supervisionado. Desse modo, apenas depois de dois anos de teoria o aluno realiza seu
primeiro contato com a prática em um modelo onde a teoria prepara para a prática ao invés de
caminhar junto com ela desde o início do processo formativo.
Nesse sentido, “A dissociação entre teoria e prática aí presente resulta em um
empobrecimento das práticas nas escolas, o que evidencia a necessidade de explicitar por que
o estágio é teria e prática (e não teoria ou prática) [...]” (PIMENTA; LIMA, 2011, p. 41).
Neste contexto, entendemos que a teoria é indissociável da prática, pois apesar das
divisões comumente impostas pela matriz curricular das licenciaturas, compreende-se que a
prática é o momento de afirmação da profissão e que essa prática será mais bem conduzida se
for iluminada pela teoria.

O papel das teorias é iluminar e oferecer instrumentos e esquemas para


análise e investigação que permitam questionar as práticas
institucionalizadas e as ações dos sujeitos e, ao mesmo tempo, colocar elas
próprias em questionamento, uma vez que as teorias são explicações sempre
provisórias da realidade (PIMENTA; LIMA, 2011, p.43).

Em vista disso, entendemos que para que tenhamos uma profissional docente
habilitado para o exercício, precisamos dessa aproximação entre a teoria e a prática durante
toda a formação inicial. Nesse sentido, estamos em consonância com Lima (2012, p. 32) para
535

afirmar que, “este profissional precisa da teoria para iluminar sua prática, e que esta precisa
Página

ser continuamente refletida para que sua teoria seja ressignificada.”.

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Evidenciada a importância da articulação entre teoria e prática na formação inicial de
professores, vejamos agora como os professores de Matemática que atuaram como bolsistas
do PIBID durante sua formação inicial avaliam as ações desenvolvidas pela licenciatura em
Matemática do IFRN/Campus Mossoró com o objetivo de promover a articulação entre teoria
e prática ao longo desse processo formativo, bem como as percepções desses professores
acerca do papel desempenhado pelo PIBID na construção dessa articulação.

2 Resultados e discussão

Apresentaremos agora a análise dos principais aspectos encontrados nas entrevistas


respondidas pelos ex-bolsistas do PIBID que hoje são professores da disciplina de Matemática
e que estão atuando em sala de aula. As entrevistas com os quatro professores mostram as
suas concepções sobre as iniciativas voltadas para a articulação entre teoria e prática na
licenciatura plena em Matemática do IFRN/Campus Mossoró, bem como as experiências
vivenciadas durante o tempo que fizeram parte do PIBID.
Ao perguntar aos entrevistados de que forma eles avaliam as iniciativas voltadas para
a articulação entre teoria e prática durante o curso de licenciatura plena em Matemática, nos
deparamos com os seguintes relatos:

Sem dúvida A falta de prática nos cursos de licenciatura é um problema


comum e muito grande, pois é perceptível a necessidade da teoria e da
pratica galgarem êxito juntas. A teoria por si só, não garante que o recém-
licenciado ingresse com tanta facilidade no mercado de trabalho, cada vez
mais exigente. É necessário, portanto, que se trabalhem mais atividades
práticas nos cursos de licenciatura, considerando-se que é através dela que o
futuro professor pode aperfeiçoar sua didática, segurança e até mesmo sua
postura no decorrer de suas aulas. (Professor 03).

O professor 03 evidencia a necessidade da articulação entre teoria e prática, bem como


a necessidade de mais atividades práticas ao longo do curso, para que o futuro professor
aperfeiçoe sua prática pedagógica e se sinta mais seguro no momento em que desenvolve suas
atividades profissionais.
As afirmações do professor 03 estão em sintonia com o que afirma Libâneo (2012, p.
536

10).
Página

Compreende-se, pois, que no trabalho do professor estão associados dois


requisitos profissionais, o domínio do conhecimento que ensinam e domínio

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do conhecimento pedagógico de ensinar. Isto nos leva ao conhecimento
pedagógico do conteúdo.

O professor 02 faz um relato que mostra bem a dicotomia entre teoria e prática. Diante
do seu relato, é notável que esse professor vivenciou este distanciamento ao longo da sua
formação.

No curso de licenciatura este exercício de aproximação entre a teoria e a


prática, infelizmente, não se efetiva. Ela não é posta em prática dentro dos
cursos de formação. O que nós assistimos são os professores repassando as
teorias e pouca prática. O que acontece, o que acarreta é que muitas vezes,
nós, ao concluirmos um curso de graduação em licenciatura plena em
Matemática com uma grande quantidade de teoria e com dificuldade em
mostrar como aquilo se aplica no dia-a-dia, em repassar aquilo para os
nossos alunos que tem uma grande dificuldade, em entender aproximando da
realidade. Então, é uma tarefa árdua para os professores ensinar aos nossos
alunos a aprender a aprender, aprender a saber, aprender a fazer, aprender a
conviver. (Professor 02).

Em vista dos argumentos apresentados por este professor, notamos que, durante o
curso, o mesmo sentiu a necessidade de mais prática. Essa necessidade de mais prática está
em sintonia com as ideias de Pimenta (2012, p. 35).

O exercício de qualquer profissão é prático nesse sentido, na medida em que


se trata de fazer “algo” ou “ação”. A profissão de professor é também
prática. E se o curso tem por função preparar o futuro profissional para a
prática, é adequado que tenha a preocupação com a prática.

O professor 01 deixa evidente os momentos em que o curso oportunizou alguma


articulação entre teoria e prática, destacando o papel desempenhado pelos estágios
supervisionados e trazendo para o debate o papel desempenhado pelo PIBID nesse processo.

No curso de matemática eu tive a oportunidade de aliar a teoria com a


prática em dois momentos, o primeiro momento foram os estágios que foram
divididos em quatro, sendo eles: dois de observação, onde a gente ia
observar a prática de um colega nosso de profissão, e outros dois de
regência. Nestes dois de regência foi onde eu tive a oportunidade de ter o
meu primeiro contato em sala de aula e o segundo momento foi através do
projeto PIBID onde eu passei quatro anos atuando como bolsista na escola
(A) e na escola (B). A partir deste projeto realmente eu tive a oportunidade
537

maior de colocar tudo que eu apreendi no IF. Colocar isso em prática. Então,
foram estes dois momentos. Apesar disso, eu ainda julgo essa conexão de
teoria e prática ainda mínima, porque durante o curso a gente apreende, mas
Página

paga mais cadeiras técnicas de Matemática mesmo do que aquelas cadeiras


em que nós somos ensinados a sermos professores. (Professor 01).

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Na resposta deste professor fica evidente a sensação de distanciamento entre a teoria e
a prática ao longo da sua formação inicial, de modo que nem mesmo os quatro estágios
supervisionados conseguem superar esse distanciamento. Esse professor deixa claro que “a
prática ainda é mínima.”, em sintonia com o que Candau (2011) destaca, ao enfatizar que os
cursos de licenciatura distanciam os saberes pedagógicos dos saberes específicos, o que causa
certo desconforto ao licenciando quando este se torna professor.
Apesar de, neste primeiro questionamento, estarmos interessados em avaliar o papel
desempenhado pelas iniciativas presentes na estrutura curricular da licenciatura para a
consolidação da articulação entre teoria e prática, esse aluno já chama a atenção para a
importância do PIBID nesse processo, evidenciando que foi no PIBID que ele teve a
oportunidade de colocar em prática o que aprendeu na licenciatura.
Com base nos relatos fica evidente a dicotomia entre teoria é prática durante a
formação inicial dos professores que participaram da pesquisa, no entanto eles mesmos
reconhecem que a teoria e a prática são necessárias para a prática docente.
Ao indagar os professores sobre as possíveis contribuições que o PIBID ofereceu no sentido
de minimizar esse distanciamento entre a teoria e a prática, obtivemos os seguintes relatos:

O PIBID foi essencial na minha formação. Foi através do projeto que tive os
primeiros contatos com a sala de aula, seja através de seminários orientados
e entre os próprios bolsistas, seja no contato com alunos da rede pública,
como aulas de monitoria. Com o PIBID, aprendi realmente a me expressar, a
preparar um conteúdo para expor e um fator que considero extremamente
importante, conhecer a sala de aula antes, fez com que eu pudesse começar a
trabalhar sem aquele nervosismo inicial, ou seja, comecei a trabalhar com
mais segurança e isso foi muito benéfico para minha formação. (Professor
01).

Sim, além da formação mais consolidada teoria e prática, tinha também o


fator financeiro, pois alunos do curso de licenciatura, na sua grande maioria,
são carentes financeiramente e com esse estimulo da bolsa do PIBID faz
com que o discente tenha mais compromisso com o curso de Matemática em
si, ou seja, ele terá que ter mais responsabilidade com relação ao curso, não
fica em nenhuma disciplina. Até porque, na minha época, o aluno era
suspenso ou até mesmo excluído do programa. . (Professor 02).

Sim, o PIBID foi um dos projetos que me deu a oportunidade de me preparar


para o cotidiano escolar. Foi a partir dele que pude compreender, de perto, os
538

desafios que me esperavam como profissional e, dessa forma, me capacitar


para buscar novas estratégias de ensino aprendizagem. (Professor 03).
Página

Realmente o PIBID contribuiu muito. Por quê? Porque foi uma experiência
assim, bem diferente. A gente passa por uma seleção para participar do

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PIBID e o professor auxiliou a gente para entrar em uma sala de aula. Antes
de a gente entrar na sala de aula a gente fez sempre uma simulação no IF,
apresentando para os colegas. Preparava aula e apresentava trabalho. Quando
o PIBID oferece para tirar duvidas dos alunos, através do PIBID e a gente
não só tirava de um ou dois alunos. Não era uma quantidade grande de
alunos, principalmente lá na escola (A). Em (B), que ia muitos alunos
mesmo, eles eram interessados. Era muito bom. Então, a gente dividia a
nossa tarde, por exemplo: uma hora para o sexto ano, uma hora para o
sétimo ano, para o oitavo ano e para o nono ano e até para o ensino médio.
Lá a gente dava uma aula, então foi uma experiência que contribuiu muito
mesmo para que eu me desenvolvesse na sala de aula. As dúvidas dos
alunos, sempre procurando saber as dificuldades até que nessa escola, na
época em que a gente foi bolsista, lá houve muita aprovação no ENEM com
o pessoal do ensino médio. A gente ia pela manhã e só vinha a noite. Pela
tarde, trabalhávamos com o ensino fundamental e pela manhã trabalhávamos
com o ensino médio, mas, assim, não tenho o que reclamar do PIBID, pois o
PIBID contribuiu bastante na minha formação acadêmica. Tudo tem
dificuldade, mas eu digo a você, foi uma experiência única e eu gostei. Hoje
eu estou em sala de aula e agradeço também ao PIBID, que foi um projeto
que abriu as portas. (Professor 04).

As afirmações dos professores torna evidente a importância das atividades


desenvolvidas no PIBID para a consolidação da articulação entre teoria e prática na formação
inicial desses professores. De acordo com esses professores, o PIBID promove a inserção dos
discentes nas escolas durante um período de tempo que pode ser superior aos estágios
supervisionados, desenvolvendo atividades em contato direto com alunos e professores. Além
disso, essas atividades são preparadas e discutidas previamente, a luz da teoria, fortalecendo
assim essa aproximação entre teoria e prática.

A prática nessa situação, baseada na teoria, conduz a caminhos muito


especiais, e é muito importante que o aluno tenha, efetivamente, essa
oportunidade, para evitar que a aprendizagem resulte em profissionais
inseguros. A prática, ainda, auxilia o estudante na busca do autodidatismo
que o impulsionará a dar continuidade ao seu aprender (BIANCHI;
ALVARENGA; BIANCHI, 2005, p.1).

A importância das atividades relatadas pelos professores também se evidencia pelo fato de
que

É necessário saber como converter a ciência em matéria de ensino, e isso


supõe não apenas conhecer a lógica dos conteúdos a ensinar, mas, também, a
539

lógica dos modos de aprender dos alunos com base em seus processos
cognitivos, afetivos, linguísticos, etc., as características dos alunos e seu
contexto sociocultural e as formas de organização das situações pedagógico-
Página

ISBN: 978-85-7621-221-8
didáticas Esta é precisamente uma questão pedagógico-didática (LIBÂNEO,
2012, p. 09).

É importante ressaltar que o subprojeto institucional vinculado ao PIBID deve


contemplar variadas dimensões da iniciação à docência, tais como:

I – estudo do contexto educacional envolvendo ações nos diferentes espaços


escolares, como salas de aula, laboratórios, [...] II – desenvolvimento de
ações que valorizem o trabalho coletivo, interdisciplinar e com
intencionalidade pedagógica clara para o processo de ensino-aprendizagem;
III – planejamento e execução de atividades nos espaços formativos;
desenvolvidas em níveis crescentes de complexidade em direção à
autonomia do aluno em formação; IV – participação nas atividades de
planejamento do projeto pedagógico da escola, bem como participação nas
reuniões pedagógicas [...] (BRASIL, 2013, p.03-04).

Nesse sentido, as ações desenvolvidas nas escolas da educação básica onde os


professores entrevistados atuaram estão em sintonia com as recomendações da Portaria 96, de
18 de julho de 2013, que destaca que o PIBID tem como objetivo “contribuir para a
articulação entre teoria e prática necessárias à formação dos docentes, elevando a qualidade
das ações acadêmicas nos cursos de licenciatura” (BRASIL, 2013, p. 3).
Essas ações também estão em sintonia com as ideias de Lima (2012, p. 32), quando
entende que “A teoria é indispensável á transformação do mundo. Na verdade, não há prática
que não tenha nela embutida uma certa teoria [...] sem teoria, na verdade, nós nos perdemos
no meio do caminho.”
Outro elemento que merece destaque nas falas dos professores diz respeito ao papel
desempenhado pelo PIBID como um fator de redução da evasão e de fortalecimento do
envolvimento dos alunos com as atividades do curso.
Com base nas afirmações dos professores, compreendemos que o PIBID vem se
consolidando como uma política essencial para a consolidação da articulação entre a teoria
vista na licenciatura e a realidade prática das escolas da rede pública.

Considerações finais

Ao longo desta pesquisa, procuramos analisar as percepções dos professores de


540

Matemática que atuaram como bolsistas do PIBID na licenciatura em Matemática do


IFRN/Campus de Mossoró acerca das atividades desenvolvidas com foco na consolidação da
Página

articulação entre teoria e prática nessa licenciatura. Além disso, buscamos analisar as

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percepções desses professores acerca das contribuições do PIBID para a consolidação da
articulação entre teoria e prática na sua formação inicial.
Neste estudo, pudemos constatar que, no campo da formação de professores, a
problemática da articulação entre teoria e prática não é algo novo. Além disso, com base nas
percepções dos professores que participaram dessa pesquisa, constatamos que as atividades
proporcionadas pela licenciatura em Matemática ofertada pelo Campus de Mossoró do IFRN,
a partir da sua matriz curricular, ainda são insuficientes para promover essa articulação.
Apesar dessa lacuna, os professores partícipes dessa pesquisa foram unânimes em
afirmar que o PIBID vem se constituindo como uma experiência que oferece elementos
concretos para a superação da dicotomia entre teoria e prática na formação inicial de
professores.
Nesse sentido, consideramos o PIBID uma excelente política de valorização do
magistério contribuído para motivar os alunos a permanecer na licenciatura e atuar na
profissão docente, bem como para a redução dos índices de evasão e na preparação do futuro
professor para o momento de entrada na sua atividade profissional.

Referências

BRASIL. Presidência da República. Decreto n. 7.219, de 24 de junho de 2010. Dispõe sobre


o Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência PIBID e dá outras providências.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-
2010/2010/decreto/d7219.htm.> Acesso em: 23 de ago. 2017.

________. portaria n. 096, de 18 de julho de 2013. Dispõe o presidente da coordenação de


aperfeiçoamento de pessoal de nível superior - CAPES, no uso das atribuições conferidas pelo
art. 26 do Decreto nº 7.692, de 02 de março de 2012, e considerando a necessidade de
aperfeiçoar e atualizar as normas do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência.
Disponível em:
<https://www.capes.gov.br/images/stories/download/legislacao/Portaria_096_18jul13_Aprov
aRegulamentoPIBID.pdf>. Acesso em: 15 de jul. 2017.

BIANCHI, Anna C. M.; ALVARENGA, Marina; BIANCHI, Roberto. Estágio curricular


supervisionado. In: Orientação para Estágio em Licenciatura. São Paulo: Pioneira
Thomson Learning, 2005. Cap. 01, p. 01-10.
541

CANDAU, Maria Vera. Universidade e formação de professores: que rumos tomar?


Magistério: construção cotidiana / Vera Maria Candau (org.). – 7. ed. Petrópolis, RJ:
Vozes. 2011.
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CHIZZOTTI, A. Pesquisa em ciências humanas e sociais. 7 ed. São Paulo: Cortez, 2005.

ISBN: 978-85-7621-221-8
LAKATOS, Eva Maria; MARCONI, Marina de Andrade. Fundamentos de metodologia
cientifica. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2003.

LIBÂNEO, José Carlos. A persistente dissociação entre o conhecimento pedagógico e o


conhecimento disciplinar na formação de professores: problemas e perspectivas. 2012,
Pontifícia Universidade Católica de Goiás, ANPED.

LIMA, Maria Socorro Lucena. Estágio e aprendizagem: da profissão docente. Brasilia: Liber
livros, 2012.

PIMENTA, Selma Garrido; LIMA, Maria Socorro Lucena. O estágio como campo de
conhecimento. In: Estágio e docência. 6. ed. São Paulo: Cortez, 2011. 1ª Parte, p.1-79.

PIMENTA, Selma Garrido. O estágio na formação de professores: unidade teoria e


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TRIVIÑOS, A. N. S. Introdução à pesquisa em ciências sociais: a pesquisa qualitativa em


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542
Página

ISBN: 978-85-7621-221-8
GT4 – DISCURSOS E PRÁTICAS NO CAMPO DA EDUCAÇÃO

REFLEXÕES SOBRE O ENSINO DE MATEMÁTICA FINANCEIRA NAS ESCOLAS


PÚBLICAS DE MOSSORÓ

Aleksandre Saraiva Dantas (IFRN)


Idalecio Gomes Dantas (IFRN)

Introdução

Diante das constantes modificações por que passa a sociedade brasileira, é importante
contemplar a formação escolar onde o ensino da Matemática possa ser uma ferramenta que
contribua para uma formação capaz de estimular a compreensão, a comunicação, a
investigação e a contextualização sociocultural, impactando e influenciando positivamente a
vida dos alunos.
Em uma sociedade fortemente marcada pelas relações de consumo, acreditamos que a
Matemática Financeira pode ser uma via interessante para auxiliar o aluno a entender a
sociedade em que vive, tornando-o mais crítico ao assistir a um noticiário, ao consumir, ao
cobrar seus direitos e analisar seus deveres.
À abordagem de conteúdos de Matemática Financeira, em suas diretrizes relacionadas
a competências e habilidades possibilita uma proposta pedagógica diferenciada com os alunos
do Ensino Médio, de modo que as aulas transcendam as atividades expositivas ou a resolução
de uma lista de exercícios envolvendo a aplicação de fórmulas matemáticas, favorecendo a
discussão de ideias entre professores e alunos.
Diante de todas essas possibilidades, surgem os seguintes questionamentos:
a) Como se dá o ensino da Matemática Financeira nas escolas públicas?
b) Quais as dificuldades enfrentadas pelos professores na abordagem deste conteúdo?
c) Quais as percepções dos professores acerca da importância do ensino de Matemática
Financeira?
Sem a pretensão de esgotar essa discussão, esta pesquisa procura analisar o processo
de ensino/aprendizagem da Matemática Financeira nas escolas públicas de Mossoró,
identificando as dificuldades enfrentadas pelos professores e suas percepções acerca do ensino
543

dessa temática.
Tomando como referência a realidade de três escolas públicas da cidade de Mossoró,
Página

buscaremos:

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a) Identificar os aspectos inerentes ao conteúdo de Matemática Financeira que estão
sendo trabalhados pelos professores;
b) Conhecer as estratégias utilizadas pelos professores no ensino da Matemática
Financeira;
c) Identificar as dificuldades encontradas pelos educadores no ensino da Matemática
Financeira;
d) Conhecer as percepções dos professores acerca da importância do ensino de
Matemática Financeira.

2 Metodologia

Para que pudéssemos atingir os objetivos propostos, tomamos como referência a


realidade de três escolas públicas do município de Mossoró, onde realizamos uma pesquisa
qualitativa, pois “A abordagem qualitativa parte do fundamento de que há uma relação
dinâmica entre o mundo real e o sujeito, uma interdependência viva entre o sujeito e o objeto,
um vínculo indissociável entre o mundo objetivo e a subjetividade do sujeito” (CHIZZOTTI,
2005, p. 79).
Para a obtenção dos dados necessários a análise da realidade em foco, fizemos uso das
seguintes estratégias de coleta de dados:
a) Análise documental;
Com objetivo de elucidar a importância da análise documental como instrumento
eficaz em uma pesquisa, Severino (2007) comenta:

É uma metodologia de tratamento e análise de informações constantes de um


documento, sob forma de discursos pronunciados em diferentes linguagens:
escritos, orais, imagens, gestos. Um conjunto de técnicas de análise das
comunicações. Trata-se de se compreender criticamente o sentido manifesto
ou oculto das comunicações.
Envolve, portanto, a análise do conteúdo das mensagens, os enunciados dos
discursos, a busca do significado das mensagens. As linguagens, a expressão
verbal, os enunciados, são vistos como indicadores significativos,
indispensáveis para a compreensão dos problemas ligados ás práticas
humanas e a seus componentes psicossociais (SEVERINO, 2007, p. 121).
544

Através da análise documental procuraremos conhecer como os planos anuais dos


professores contemplam o ensino de Matemática Financeira, relacionando esse planejamento
Página

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com o conteúdo proposto no livro didático e com o que está documentado nos cadernos dos
alunos.
b) Entrevistas semiestruturadas com os professores responsáveis pelo ensino de
Matemática Financeira.
Através das entrevistas procuramos conhecer as dificuldades que os professores
enfrentam no ensino da Matemática Financeira, bem como suas percepções acerca da
importância do ensino desse tema.
Segundo Gressler (2004),

A entrevista consiste em uma conversação envolvendo duas ou mais pessoas


com o proposito de se obter informações para uma investigação. Contudo,
não é somente uma simples conversa, mas, sim, uma conversa orientada para
um objetivo definido. [...] Entre os principais propósitos da entrevista,
encontram-se auxiliar na identificação de variáveis e suas relações; sugerir
hipóteses e guiar outras fases da pesquisa; coletar dados a fim de se
comprovar hipóteses e suplementar outras técnicas de coleta de dados.
(GRESSLER, 2004, p. 164).

Marconi e Lakatos (2010) comentam a importância desta ferramenta como


instrumento de investigação afirmando que

A entrevista é importante instrumento de trabalho nos vários campos das


ciências sociais ou de outros setores de atividades, como da Sociologia, da
Antropologia, da Psicologia Social, da Política, do Serviço Social, do
Jornalismo, das Relações Públicas, da Pesquisa de Mercado e outros.
(MARCONI; LAKATOS, 2010, p. 179).

Vejamos a seguir como a literatura aborda a questão do ensino de Matemática


Financeira, para que possamos adquirir a fundamentação necessária para a posterior análise
dos dados obtidos nas escolas públicas que serão analisadas na pesquisa.

3 O ensino de Matemática Financeira: alguns elementos necessários para a sua


compreensão

Em um mundo onde as necessidades sociais, culturais e profissionais ganham novas


dimensões, todas as áreas demandam alguma competência em Matemática, de modo que a
compreensão de conceitos e procedimentos matemáticos é necessária para que o indivíduo
545

possa atuar como consumidor prudente ou tomar decisões em sua vida pessoal e profissional.
Além disso, em uma sociedade cada vez mais consumista, com numerosos e variados
Página

segmentos de bens e serviços e ainda atraídos por produtos financeiros tentadores, as pessoas

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devem estar preparadas para lidar com situações inerentes a essa conjuntura ao desejarem
alguns desses bens, produtos e serviços.
Segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio (BRASIL, 2000),
o entendimento da Matemática e dos seus temas é de grande importância para o cidadão na
tomada de decisões em sua vida profissional e pessoal e para agir com prudência frente ao
incentivo ao consumo exacerbado. Nesta direção, o documento ressalta a importância da
Matemática para o jovem do ensino médio afirmando que:

[...] aprender Matemática no Ensino Médio deve ser mais do que memorizar
resultados dessa ciência e que a aquisição do conhecimento matemático deve
estar vinculada ao domínio de um saber fazer Matemática e de um saber
pensar matemático (BRASIL, 2000, p. 41).

A Matemática deve contribuir para a construção de um novo olhar sobre o mundo,


ampliando a capacidade do aluno de ler e interpretar a realidade em que está inserido. A
norma necessária na obtenção desses atributos é a da contextualização e da
interdisciplinaridade dos temas matemáticos.
Nesse sentido, várias situações do dia-a-dia envolvem Matemática Financeira, tais
como: reajustes de preços e salários, empréstimos, compras, rendimentos, investimentos,
entre outras. Assim, fazer uma análise sobre o que é propagado e o que é cobrado nestas
situações é de suma importância na formação do cidadão consciente. Por conseguinte, para o
exercício da cidadania se torna necessário saber comparar, calcular, resolver problemas,
raciocinar logicamente, argumentar e interpretar matematicamente certas situações.
No intuito de gerar mais conhecimento e argumentos acerca do Ensino Médio,
consideramos importante destacar propostas contidas em um artigo em que Lellis e Imenes
(2001) debatem alguns aspectos sobre o Novo Ensino Médio. Um desses aspectos é a
importância da seleção e organização dos conteúdos.
De acordo com estes autores:

Uma seleção de conteúdos é necessária porque, tendo em vista os objetivos,


alguns conteúdos são mais adequados que outros. (Não é claro, por exemplo,
que a teoria dos determinantes não pode ter a mesma prioridade que as
noções de estatística?) O que talvez não seja tão evidente para nós,
professores, porque estamos acostumados há muito tempo com os mesmos
546

programas, é a diversidade de escolhas existentes e a possibilidade de alterar


a atual seleção. Sem essa percepção fica difícil aceitar mudanças [...].
Admitindo que há um amplo leque de conteúdos e que temos a possibilidade
Página

de escolha, podemos pensar na seleção. Segundo o PCNEM o critério central


para isso "é o da contextualização e da interdisciplinaridade, ou seja, é o

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potencial de um tema permitir conexões entre diversos conceitos
matemáticos e entre diferentes formas de pensamento matemático, ou, ainda,
a relevância cultural do tema, tanto no que diz respeito a suas aplicações
dentro ou fora da Matemática, como a sua importância histórica dentro do
desenvolvimento da própria ciência" (LELLIS E IMENES, 2001, p. 05).

A formação financeira influencia nas decisões acerca do consumo e investimento, de


modo que o ensino inapropriado da Matemática Financeira pode trazer dificuldades em
situações do cotidiano, tais como: a opção pela aquisição de um empréstimo; na realização de
uma compra a vista ou a prazo; a escolha da alternativa de investimento mais rentável
(caderneta de poupança, fundos de renda fixa, tesouro direto etc.); ou ainda, na aquisição de
um bem durável como um carro, em que o individuo pode ter dificuldades para julgar a forma
mais rentável adquiri-lo.
Azevedo (2005) defende a relevância da abordagem da Matemática Financeira na
escola, afirmando que

Os Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio preceituam que se


interprete informações e seus significados (tabelas, gráficos e expressões).
Eles devem ser relacionados a contextos socioeconômicos ou ao cotidiano
que se adaptam certamente a Matemática Financeira. Devem formular
questões a partir de situações da própria realidade e compreender aquelas já
enunciadas (AZEVEDO, 2005, p. 02).

O brasileiro, em linhas gerais, sofre muito com a incapacidade de gerir suas finanças,
tem pouca habilidade de avaliar promoções, empréstimos, formas de pagamentos, etc.,
agravando cada vez mais a situação econômica da família.
A Matemática Financeira, quando aplicada nas escolas, deveria ser uma ótima
ferramenta para dar um melhor suporte para os alunos se tornarem mais capazes de gerenciar
suas finanças, avaliar as promoções, ofertas do comercio e identificar juros abusivos em
compras e financiamentos.
Ao refletir sobre o ensino desta temática Schneider (2008, p. 21) afirma que: “O
conhecimento dos conteúdos da Matemática Financeira auxiliariam os alunos a assumirem
uma posição critica diante de situações a serem enfrentadas nas suas relações de consumo e
no exercício da cidadania”.
547

Depois de conhecermos como a literatura aborda a questão do ensino de Matemática


Financeira, vejamos a seguir a análise de como vem se dando o ensino dessa temática nas
Página

escolas selecionadas para a nossa pesquisa.

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4 O ensino de Matemática Financeira nas escolas públicas de Mossoró

Como já foi dito anteriormente, iniciamos a coleta dos dados a partir da análise dos
cadernos dos alunos com maior frequência, do planejamento anual dos professores e dos
livros didáticos adotados nas escolas.
A análise dos cadernos dos alunos das três escolas, dos planejamentos anuais dos
professores e dos livros didáticos adotados deixa claro que o conteúdo discutido em sala de
aula não contempla, na totalidade, o planejamento anual dos professores e o conteúdo
proposto pelo livro didático.
Na escola 01, podemos afirmar que o conteúdo programado64 foi apresentado de forma
superficial, enfatizando-se apenas os conteúdos introdutórios, através da utilização de
algumas fórmulas e resoluções de exercícios.
As atividades registradas nos cadernos dos alunos iniciam com juros simples e juros
compostos, onde observamos a aplicação das fórmulas usuais de juros. Nas resoluções dos
exercícios do assunto juros simples, procura-se estabelecer os juros obtidos, taxas de juros,
capital e tempo. Já no tema, juros compostos, as atividades propostas aos alunos buscam
definir montante e capital em operações financeiras muito fictícias, totalmente fora da
realidade das instituições bancárias e operadoras de créditos.
Com base nessas informações, pode-se notar que parte do conteúdo proposto no livro
didático deixou de ser discutida em sala de aula, como, por exemplo: aumentos e descontos
sucessivos, lucro e prejuízo. Além disso, Não há uma introdução do conteúdo, nem a inserção
de conceitos para iniciar e expor de forma mais atrativa o assunto trabalhado.
Na escola 03, o planejamento anual contempla os mesmos conteúdos do planejamento
elaborado na escola 01. A coincidência entre o planejamento anual da escola 01 e da escola 03
se deve ao fato de que as duas escolas adotam o mesmo livro didático65.
Assim como na escola 01, na escola 03 o tema Matemática Financeira está
contemplado na terceira série do ensino médio. De acordo com os professores dessas escolas,
isso ocorre, pois
548

64
O planejamento anual contempla os seguintes conteúdos referentes à Matemática Financeira: Definição de
taxa percentual, Aumentos e descontos sucessivos, Lucro e prejuízo, Regime de juros simples, Regime de juros
compostos.
Página

65
O conteúdo de Matemática Financeira é contemplado no terceiro volume da coleção “Conexões com a
Matemática”, da Editora Moderna, tendo como organizadora, Juliane Matsubara Barroso.

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A equipe de professores da escola se reuniu e definiu que esse estudo fosse
realizado no terceiro ano do ensino médio. Isto ocorre não só pelo fato de
que o livro do terceiro ano aborda o conteúdo, mas também porque o aluno
está bem mais próximo de ingressar no mercado de trabalho e esse estudo
pode auxiliá-lo bastante. (Professor 03)

É Justamente no ponto em que o assunto fala em dinheiro é um assunto que


eles vão se interessar. Então eu já começo o terceiro ano ganhando a turma
com a Matemática Financeira e o outro ponto que é o mais plausível é por
que o nosso livro que é Conexões, ele começa o livro com a Matemática
Financeira. (Professor 01)

Quando questionamos acerca do cumprimento da totalidade do conteúdo de


Matemática Financeira, o professor 03 afirma:

Sim, os conteúdos são abordados em sua totalidade seguindo o livro didático


adotado pela escola. (Professor 03)

Na análise feita nos cadernos dos alunos da escola 03, fica evidente que a maioria das
atividades descritas nos cadernos dos alunos foi retirada do livro didático adotado pela
instituição. Comparando o que está exposto no planejamento e nos cadernos dos alunos,
constatamos que o professor conseguiu cumprir com quase todo o conteúdo planejado,
deixando de ser abordado apenas o assunto: Lucro e Prejuízo. Observamos ainda, que as aulas
decorrem por meio de aplicação de fórmulas e atividades como: aplicação e resolução de
exercícios.
Já na escola 01, constatamos que não há uma introdução acerca do conteúdo de forma
preliminar e que não foram abordados assuntos que estavam presentes no livro didático, tais
como; taxa percentual, aumento e descontos sucessivos e lucros e prejuízos.
Apesar de todas as dificuldades, os professores da escola 01 e da escola 03, ressaltam
que o trabalho realizado pelos alunos do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à
Docência (PIBID) do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do
Norte (IFRN) e da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN) tem ajudado os
professores a obter melhores resultados.
Diferente do que ocorre na escola 01 e na escola 03, na escola 02 o conteúdo de
Matemática Financeira é discutido no segundo do Ensino Médio. Isso se deve ao fato de que
O livro didático adotado nesta escola e que trata da Matemática Financeira é o segundo
549

volume da coleção: “Novo Olhar Matemática”, de autoria de Joamir Souza.


O planejamento anual do professor 02 segue o livro didático adotado, apresentando os
Página

seguintes conteúdos: Estudando a Matemática Financeira, Porcentagem, Acréscimos e

ISBN: 978-85-7621-221-8
descontos sucessivos, Juros Simples, Juros Compostos, Juros e funções, Sistemas de
amortização.
A introdução de uma discussão sobre sistemas de amortização é algo a se destacar
positivamente, pois esse conteúdo possui inúmeras aplicabilidades na vida cotidiana,
especialmente no financiamento de bens (casa, carro, eletrodomésticos etc.).
Quando perguntamos se os conteúdos relacionados ao tema estavam sendo abordados
na sua totalidade, o professor 02 afirmou:

Comigo Sim, dentro do currículo pra ser trabalhado em Matemática. Eu


trabalho primeiro a Matemática de acordo com as necessidades dos alunos,
do conhecimento a nível nacional, Eu vejo que os alunos precisam de
Matemática Financeira insiro logo no primeiro bimestre. (Professor 02)

Esse professor destacou ainda a importância desse conhecimento ao afirmar:

Comecei a Matemática Financeira para atender as necessidades tanto se eles


forem para o comércio dando pra eles uma habilidade, para eles trabalharem
no comércio, como na atividade bancária né. Eu trabalhei juros compostos
verdadeiramente, por que juros simples é uma coisa que não existe na minha
visão. Depois eu trabalho o conhecimento com significado. (Professor 02)

As iniciativas apontadas pelo professor 02 estão em sintonia com as ideias de Reis


(2013), que defende a utilização de um planejamento prévio das atividades e ações a serem
desenvolvidas em sala de aula e propõe questões e situações retiradas do dia a dia do aluno.

A Matemática Financeira possui diversas aplicações no atual sistema


econômico. Algumas situações estão presentes no cotidiano das pessoas,
como financiamentos de casa e carros, realizações de empréstimos, compras
a crediário ou com cartão de crédito, aplicações financeiras, investimentos
em bolsas de valores, entre outras situações (REIS, 2013, p. 43).

Porém, quando analisamos os cadernos dos alunos, foi possível constatar que, assim
como ocorreu nas outras escolas, na escola 02, alguns assuntos presentes no livro didático
deixaram de serem abordados, tais como: juros e funções e sistemas de amortização.
Nas três escolas, foi possível constatar que nem todos os exercícios propostos no livro
didático são discutidos com os alunos. A análise desses exercícios evidencia que há uma
opção por exercícios de fácil compreensão e resolução. As questões trabalhadas em sala eram
retiradas do livro adotado pela escola, só que de forma selecionada, fato que pode prejudicar o
550

desenvolvimento da capacidade interpretativa e do raciocínio lógico, limitando a


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aprendizagem dos alunos.

ISBN: 978-85-7621-221-8
Procuramos saber desses professores, quais as maiores dificuldades que os alunos
enfrentam com ralação ao ensino de Matemática Financeira.
Para o professor 02, os alunos apresentam uma grande dificuldade por não saber a
aplicabilidade do conhecimento. Além disso, esse professor considera que a forma como a
disciplina de Matemática é apresentada aos alunos se baseia no elevado grau de dificuldade e
no medo da reprovação e reitera que estas dificuldades ocorrem devido a práticas tradicionais
de alguns professores que não contextualizam o conhecimento.
Ele expõe também a falta do conhecimento prévio dos alunos, ocasionando situações
em que o professor tem que fazer revisões em algumas aulas e dar a oportunidade aos alunos
de não sentirem tantas dificuldades com o assunto a ser estudado.
Nesse sentido, o professor 01 ressalta que:

É justamente a dificuldade da base, da Matemática Financeira a gente


precisa de muita porcentagem, então quando eu vou iniciar Matemática
Financeira, eu de certa forma perco cerca de uma a três aulas revisando
porcentagem. Quando eu falar de taxa, então eu vou ter de falar de taxa
percentual. Eu faço aquela revisão de fração após a porcentagem, pois a
mesma pode ser representada por fração ou até na forma decimal, então eu
perco três aulas só nessa revisão. (Professor 01)

Para o professor 03, os alunos sentem muita dificuldade, não somente em Matemática
Financeira, como em outras disciplinas, devido à ausência da base que eles não viram no
Ensino Fundamental.

Com relação à maior dificuldade no estudo de Matemática Financeira por


parte dos alunos, destaco a vivência prática dos alunos. Mesmo eles sabendo,
por exemplo, que tem um boleto bancário em atraso para pagar, eles não tem
noção do que realmente é o conceito de juros. Que muitas vezes é devido à
base que não tiveram no Ensino Fundamental sobre Matemática Financeira.
(Professor 03)

Esse professor destaca ainda a falta de condições adequadas de trabalho e a não


utilização de metodologias práticas para que os alunos possam realmente visualizar, aprender
na prática como tudo ocorre, expondo que essa precariedade não está apenas no Ensino Médio
e que é ocorre desde o Ensino Fundamental.

As metodologias práticas de ensino aplicadas precisam ser aperfeiçoadas e


551

inovadas. Para mudar esse quadro é preciso se investir em mais recursos e


condições de trabalho. (Professor 03)
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A falta de conhecimentos prévios acerca do tema a ser discutido se revela como a
grande reclamação por parte dos professores que participaram da pesquisa. Diante da crise
que a educação brasileira vive é inevitável que o professor inicie a exposição de um
determinado tema abordando os conhecimentos que o aluno já deveria ter adquirido
anteriormente para que possa compreender adequadamente o que será tratado.
Além disso, é imprescindível que o professor, com a colaboração dos alunos e da
comunidade escolar, busque novas formas de ensinar e aprender, tornando as aulas mais
atrativas e empolgantes, facilitando a compreensão do conhecimento.

Considerações finais

Ao longo desta pesquisa, procuramos analisar o processo de ensino/aprendizagem da


Matemática Financeira nas escolas públicas de Mossoró e, assim, propondo-nos a analisar as
dificuldades enfrentadas pelos professores, suas estratégias, percepções e a importância do
ensino dessa temática.
Para isso, tomamos como referência a realidade de três escolas públicas da cidade de
Mossoró, fazendo uso da análise documental associada a entrevistas com os professores
responsáveis pela abordagem desse conteúdo nas respectivas escolas.
Encontramos alguns fatores e dificuldades habituais às três escolas pesquisadas, dos
quais verificamos o não cumprimento total do conteúdo proposto pelo livro didático e o baixo
nível de dificuldade das atividades discutidas com os alunos.
Diante das conjunturas analisadas, um dos principais argumentos relatados pelos
professores diz respeito à ausência de conhecimentos prévios por parte do aluno, sobre
conteúdos e habilidades que deveriam ser abordados no Ensino Fundamental, dificultando a
aprendizagem da Matemática Financeira.
Outros fatores que merecem considerações, e que foram destacados nas entrevistas,
dizem respeito à falta de recursos e condições de trabalho nas escolas.
Apesar dos esforços dos professores, o ensino de Matemática Financeira está aquém
do necessário nessas escolas. A apresentação dos conteúdos contidos nos livros didáticos
expõem falhas no sentido do conhecimento com significado. Os livros devem caracterizar
552

enunciados e situações que expressam a realidade do aluno, tornando-os capazes de analisar


com propriedade situações cotidianas de compra, venda, investimentos etc.
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É importante ressaltar que, na escola 01 e na escola 03, o trabalho realizado pelos
alunos do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID) do Instituto
Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte (IFRN) e da
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), que criam aulas extras, oficinas e
seminários nos quais os alunos bolsistas tiram dúvidas e aplicam revisões de conteúdos
anteriores, tem ajudado os professores a obter melhores resultados.
Sem a pretensão de apresentar soluções prontas e acabadas para as dificuldades
apresentadas pelos professores, desejamos ressaltar que existem diversas formas de trabalhar
Matemática Financeira no ensino em sala de aula, para que se torne atrativa para os alunos,
tais como: a utilização de jornais, revistas, panfletos, planilhas financeiras, extrato bancário,
faturas de água, luz e telefone entre outras. Esses materiais são formas bastante eficientes para
abordagem dos temas relacionados à Matemática Financeira.
Além disso, é fundamental aproximar a discussão desse tema da vida cotidiana dos
alunos e, nesse sentido, o estudo aprofundado dos sistemas de amortização, com base em
situações concretas vividas pelas famílias dos próprios alunos e dos professores poderia
favorecer significativamente o aprendizado desse conteúdo.

Referências

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Médio. 2005. Disponível em:
<http://www.ucb.br/sites/100/103/TCC/22005/RenatoKleberAzevedo.pdf>. Acesso em: 12 out.
2016.

BRASIL. Ministério da Educação. Parâmetros Curriculares Nacionais Ensino Médio.


Brasília, 2000.

CHIZZOTTI, A. Pesquisa em ciências humanas e sociais. 7. ed. São Paulo: Cortez, 2005.

GRESSLER, Lori Alice. Introdução à Pesquisa: Projetos e relatórios. 2. ed. São Paulo:
Loyola, 2004. 295 p.

LELLIS, Marcelo; IMENES, Luiz Márcio. A Matemática e o novo ensino médio.


Somatemática. São Paulo, p. 1-10. 2001.

MARCONI, Marina de Andrade; LAKATOS, Eva Maria. Fundamentos de metodologia


553

científica. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2010.


Página

REIS, Simone Regina dos. Matemática Financeira na perspectiva da educação


Matemática crítica. 2013. 113 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Mestrado Profissional

ISBN: 978-85-7621-221-8
em Matemática em Rede Nacional - Profmat, Universidade Federal de Santa Maria, Santa
Maria, 2013.

SCHNEIDER, Ido José. Matemática Financeira: um conhecimento importante e necessário


para vida das pessoas. 2008. Dissertação de Mestrado. (Programa de Pós-graduação em
Educação). Departamento de Educação. Universidade de Passo Fundo, Passo Fundo, 2008.
112 p. Disponível em: <https://secure.upf.br/pdf/2008IdoJoseSchneider.pdf >. Acesso em: 15 set.
2016.

SEVERINO, Antônio Joaquim. Metodologia do trabalho científico. 23. ed. São Paulo,
Editora Cortez, 2007.

THEODORO, Flavio Roberto Faciolla. O Uso da Matemática para a Educação Financeira


a Partir do Ensino Fundamental. 2008. Trabalho de Conclusão de Curso (TCC de
Graduação) - Graduação em Matemática, UNESP, Anhanguera Educacional, Taubaté, 2008.
21 p. Disponível em: < http://www.educacaofinanceira.com.br/tcc/tccflaviotaubate.PDF> . Acesso
em: 23 ago. 2016.

554
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GT4 – DISCURSOS E PRÁTICAS NO CAMPO DA EDUCAÇÃO

PRODUÇÕES ACADÊMICAS SOBRE AVALIAÇÃO EXTERNA NA EDUCAÇÃO: O


DEBATE EM REVISTAS QUALIFICADAS (2000 A 2016)

Clarice Nunes Peixoto (UERN)


Allan Solano Souza (UERN)

Introdução

Os momentos discursivos, que seguimos agora, elucidam os resultados de nossos


levantamentos dos artigos, dispostos online, e as análises por subcategorias que se apresentam
marcantes em cada discussão nos trabalhos em análise. Para tanto, destacamos como ponta pé inicial
desse capítulo, as palavras de Dickel (2016) em termos de avaliações na Educação Básica, internas e
externas:

O Sistema de Avaliação da Educação Brasileira (SAEB) existe desde 1990 e


tem repercutido, de diferentes formas e intensidades, tanto sobre a produção
acadêmica quanto sobre o funcionamento das escolas e as práticas
pedagógicas. O mais novo elemento desse sistema é a Avaliação Nacional da
Alfabetização (ANA), também vinculada ao Pacto Nacional pela
Alfabetização na Idade Certa (PNAIC), instituído em 2012 pelo Governo
Federal. O fato de constituir o SAEB e integrar o pacto produz no cenário
das políticas curriculares e de avaliação uma configuração singular
(DICKEL, 2016, p. 194).

De modo geral, por outro lado,

Apesar da consolidação dos sistemas de avaliação e de sua expansão, nota-se


que, mesmo após quase vinte e cinco anos da realização da primeira
experiência que veio originar os sistemas de avaliação, tal como os
conhecemos atualmente, ainda há muita controvérsia em torno dessas
avaliações. Inclusive, tais controvérsias ganharam maior relevo quando, a
partir de 2005, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais
(INEP) criou o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica, IDEB,
pretenso indicador de qualidade do ensino (BAUER, 2012, p. 9).

Nesse sentido, nosso capítulo será composto por três momentos, uma vez que, visamos
apresentar alguns conceitos de avaliação externa na educação e as produções científicas realizadas
555

sobre a temática, enfatizando a sua importância e contribuições para a educação nacional.


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1 Avaliação Educacional: diferentes concepções

Tendo em vista a realização de levantamentos dos artigos publicados em revistas brasileiras,


com foco na avaliação externa da educação, elencamos alguns descritores básicos para o afunilar e o
agrupamento dessas pesquisas. Desse modo, foram observados os seguintes descritores: avaliação
(externa, da educação e/ou escolar, e em larga escala), indicadores, resultados, IDEB e testes
padronizados.
De acordo com Horta Neto (2010),

A avaliação externa da educação básica que vem acontecendo no Brasil nos


últimos 15 anos, envolvendo as escolas e os sistemas de ensino, tem sido
objeto de muito debate entre dirigentes educacionais, professores e
pesquisadores. No bojo dessas discussões, estão presentes questões ligadas à
qualidade, às medidas em educação, à responsabilização por resultados e à
prestação de contas. Essas questões adquirem centralidade quando se discute
a própria relevância da avaliação externa para alcançar melhorias no sistema
educacional (HORTA NETO, 2010, p. 85).

Uma leitura mais atenta à afirmação deste autor, permite que compreendamos que a
avaliação tem ocorrido como forma de seleção dos mais ou menos capacitados, ou seja, como
àqueles que possuem melhor ou baixo desempenho nas provas que são submetidos, dentro do
sistema educacional.
Com base em Afonso (2012), a principal finalidade das avaliações externas têm sido a
utilização em processos de accountability (avaliação, prestação de contas e
responsabilização). Esses processos possibilitam que a gestão educacional realize a avaliação
institucional procurando analisar as condições de oferta, estrutura do sistema e das escolas,
assim como os resultados de aprendizagem.
No entanto, é necessário delinear uma definição de avaliação externa, mas não a única,
considerando que há vários tipos e concepções, ao que Machado (2012) ressalva a existência
de

[...] vários arranjos possíveis na organização dos processos das avaliações


externas e, em algumas experiências e/ou etapas, a participação de
556

profissionais das escolas avaliadas pode ser contemplada, mas a decisão de


implementar uma avaliação do desempenho das escolas é sempre externa a
elas (MACHADO, 2012, p. 71-72).
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É com foco nessa definição que apresentamos a exposição da análise dessas produções
em dimensões educacionais que os assemelham ou diferem.

2 Os tipos de avaliações presentes nos artigos

Para apresentação desse momento, trazemos as principais informações que nossos


autores apresentam sobre os 4 (quatro) modelos de avaliação que elencamos:

2.1 Avaliação do ensino-aprendizagem

Tendo em vista realizarmos destaques quanto a discussão da avaliação do ensino-


aprendizagem, trazemos entre nossos principais autores e títulos de análise, a pesquisa de
Bonamino, Coscarelli, Franco (2002), intitulada “Avaliação e letramento: concepções de
aluno letrado subjacentes ao SAEB e ao PISA”, que nos apresenta uma discussão das
concepções de letramento como base de construção das provas de Língua Portuguesa desses
dois modos/métodos de avaliação, com destaque aos anos 1999 e 2000, respectivamente.
Assim, vemos uma diferença primordial entre essas duas formas de avaliação, com
ênfase principal, ao PISA, no exercício de interpretação e reflexão do leitor com seu
conhecimento, de relacionar o que se está lendo com a realidade de seu cotidiano. Quanto a
avaliação do letramento presente no SAEB, é notório o destaque apenas para o desempenho
individual de leitura, sem realizar a valorização dos usos sociais da linguagem, somente
utilizando como parâmetro de o que o aluno pode fazer com o texto.
Ainda nessa discussão de letramento e as diversas formas que é avaliado, nos torna
oportuno mencionar o trabalho de Vital, Floriani (2006), “O letramento na educação básica no
brasil: uma análise a partir dos resultados do SAEB 2001 e 2003”, que, como o próprio título
especifica, analisa o letramento na educação básica do Brasil, utilizando os resultados do
SAEB nos anos de 2001 e 2003. Para tanto, elas baseiam suas considerações e discussões nos
resultados do documento oficial do SAEB dos períodos em estudo, disponibilizado pelo
Ministério de Educação e Cultura (MEC), tendo sido realizado pelo INEP.
Com base nesses posicionamentos quanto ao letramento e as formas que é avaliado,
557

partimos agora para um entendimento da educação por ciclos, ao que traz pontos negativos e
positivos da avaliação do ensino-aprendizagem, utilizando das pesquisas de Fernandes (2015),
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em sua publicação “Uma breve análise das políticas de avaliação e sua relação com a
organização escolar por ciclos: resultados de pesquisa”.
A educação tendo ganho um destaque especial na/para criação de políticas públicas
que promovam um maior acesso e permanência dos alunos em rede regular de ensino, com
foco de Fernandes (2015) direcionado ao estado do Rio de Janeiro, buscamos nas palavras de
Machado (2012) algumas reflexões sobre os usos dos resultados das avaliações externas para
a efetivação de um ensino-aprendizagem exitoso no estado de São Paulo.
Em seu estudo, “Avaliação externa e gestão escolar: reflexões sobre usos dos
resultados”, a autora explora que:

As informações coletadas e divulgadas pelo INEP são ferramentas


imprescindíveis para a gestão da educação nacional, porém só fazem sentido
quando desencadeiam as outras etapas necessárias para a efetivação da
avaliação externa: a interpretação dos dados e o uso dos resultados no
trabalho das escolas. […]. (MACHADO, 2012, p. 73).

Vemos assim, que Machado (2012), realiza discussões acerca das relações da
avaliação externa e da gestão escolar, a partir dos usos dos resultados dessa primeira, na
perspectiva das possibilidades de sua utilização no trabalho pedagógico, uma vez que, os
dados devem ser analisados e, com base em suas interpretações, usados como ferramentas de
maior acesso e promoção de educação e, consequentemente, do ensino-aprendizagem dentro e
além da sala de aula.

2.2 Avaliação institucional

Diante do que já discutimos sobre os inúmeros conceitos e aplicações das avaliações,


Oliveira (2014) elucida que:

As avalições externas, juntamente com internas, (autoavaliação) servem de


base para a realização da avaliação institucional. O cruzamento dos dados da
realidade permite às instituições um olhar mais sistêmico e qualificado sobre
suas ações, facilitando, assim, a tomada de decisões estratégicas que venham
melhorar a qualidade dos serviços educacionais prestados à sociedade
(OLIVEIRA, 2014, p. 6).
558

Nesse sentido, a avaliação institucional é uma forma de conhecer se as ações dentro da


Página

escola estão beneficiando ou não a aprendizagem dos alunos, como também, o

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desenvolvimento dos diversos serviços educacionais que são prestados, por esses, a
comunidade que a frequenta.
Diante disso, expondo uma discussão sobre os sistemas de avaliações, Castro (2002),
em seu artigo “Sistemas nacionais de avaliação e de informações educacionais”, discorre que
“a utilização dos indicadores e informações resultantes dos censos educacionais e das
avaliações realizadas pelo Inep tem possibilitado a identificação de prioridades, além de
fornecer parâmetros mais precisos para a formulação e o monitoramento das políticas.” (p.
121).
Quanto aos sistemas de informação educacionais, a autora destaca que:

Os levantamentos abrangem todos os níveis e modalidades de ensino,


subdividindo-se em três pesquisas distintas representadas pelo Censo
Escolar, Censo do Ensino Superior e Levantamento sobre o Financiamento e
Gasto da Educação, além dos censos especiais, realizados de forma não
periódica, abrangendo temáticas específicas, como o caso do Censo do
Professor (CASTRO, 2002, p. 122).

Aliado a isso, no artigo “A avaliação educacional em contextos municipais”, por


autoria de Freitas, Ovando (2015), trazemos algumas dessas questões, com dados e
constatações de estudos exploratórios realizados nos anos de 2009 e 2010, no estado de Mato
Grosso do Sul (MS), tendo direcionamento para 10 municípios (de pequeno porte e
recentemente emancipados, se comparado ao período de pesquisa), em razão das
peculiaridades de suas condições políticas, administrativas, técnicas, dentre outras.
Com as investigações durante o estudo, foi possível observar que, segundo as autoras:
“Os principais desafios das redes escolares, segundo seus gestores, eram os de formação
inicial e continuada dos professores, regularização do fluxo escolar, melhoria do desempenho
cognitivo dos alunos e atendimento às diversidades existentes em suas redes” (FREITAS;
OVANDO, 2015, p. 974).
Quanto aos resultados, nos municípios em estudo, vemos uma grande relevância da
atitude de divulgação dos resultados, no tocante ao incentivo de melhorar os índices nas
avaliações externas que as instituições participam; no entanto, se olharmos pela ótica de
559

rebaixamento ou permanência baixa na classificação daquelas que não conseguiram resultados


exitosos, acaba por haver uma regressão nos investimentos destinadas à elas.
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Ao lado disso, trazemos as palavras de Gouveia (2009) que expõe a realidade de que
“o grau de descentralização do sistema educacional brasileiro exige que a avaliação de
efetividade da política educacional incorpore a sua dinâmica municipal. […]” (GOUVEIA,
2009, p. 450). A autora expõe essas ideias em seu artigo “Avaliação da política educacional
municipal: em busca de indicadores de efetividade nos âmbitos do acesso, gestão e
financiamento”, publicado em 2009 na revista Ensaio. Fruto de um levantamento entre os
anos de 2001-2004, formulando bases teóricas para a pesquisa de campo, realizada somente
entre os anos 2005 e 2007, traz também uma pesquisa documental de fontes indiretas
nacionais e de fontes diretas de duas administrações municipais.
Quanto a isso, esse estudo se justifica diante de que, “[…] Se este é um diálogo direto
com o que pode ser considerado hegemônico no cenário educacional nacional, também é um
diálogo indireto com as disputas entre perspectivas divergentes de política educacional”
(GOUVEIA, 2009, p. 450).
Ainda no direcionamento de ações de partidos políticos e avaliação das ações dos
gestores, trazemos um estudo sobre os oitos anos de Governo de Fernando Henrique
Cardosos, no período de 1995 a 2002, a luz das discussões de Freitas (2004) que, em seu
artigo “Avaliação da educação básica e ação normativa federal”, elucida sobre as avaliações
da educação básica brasileira, entendida aqui também como um procedimento político e
expressão de projetos educacionais e sociais.
De modo geral, Freitas (2004) conclui que, nesse período:

[…] foram ampliados extraordinariamente os meios e o instrumental de


regulação federal da “qualidade” do ensino, conjugando-se as vias de medida
e avaliação. A intervenção normativa do Executivo federal foi intensa,
indicando sempre as alterações constitucionais e a edição de leis, ampliando
a regulamentação da área e amplificando a regulação normativa federal (p.
682).

Após esses destaques, quanto a avaliação institucional, trazemos também as


considerações de Bernado, Christovão (2016), apresentadas em seu artigo “Tempo de Escola e
Gestão Democrática: o Programa Mais Educação e o IDEB em busca da qualidade da
educação”. No mesmo trabalho de pesquisa, as autoras apresentam dados de uma pesquisa que
560

“[…] investiga como o Programa Mais Educação vem sendo desenvolvido junto à rede
municipal de ensino do Rio de Janeiro, no que tange aos seus aspectos relacionados à
Página

educação (em tempo) integral e à gestão escolar democrática” (p. 1115).

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Relacionando o objetivo geral de pesquisa e a organização das discussões, as autoras
realizaram um estudo exploratório sobre esse programa, com a utilização de uma metodologia
de revisão de literatura para aprofundamento teórico, articulando suas investigações a uma
análise documental. Com isso, grande parte da pesquisa acaba por apresentar um resgate
histórico da implantação do Programa Mais Educação e da proposta de uma Educação
Integral, que, muitas vezes, é oferecida em um espaço que não passou pelas transformações
físicas, metodológicas e pedagógicas necessárias.
Finalizando os diálogos, as autoras deixam nítido que, muitas são as adaptações que
devem e são realizadas, uma vez que os planos, propostas e políticas públicas, quando
enviadas pelo governo federal, consideram o âmbito nacional e não as especificidades de cada
localidade.
Ao que tange essas as adaptações, anteriormente mencionadas, vemos a relevância de
enfatizar os estudos de Torres (2013), em sua pesquisa sobre “Liderança singular na escola
plural: as culturas da escola perante o processo de avaliação externa”, diante do destaque de
que:

A implementação progressiva do modelo de avaliação externa a todas as


escolas e agrupamentos escolares do país, tem gerado fenómenos relevantes
de apropriação do processo por parte dos atores escolares. […] A
disseminação de padrões ideal-típicos de liderança, de organização
pedagógica, de organização e gestão escolar, tem contribuído para mascarar
as diferenciações culturais coexistentes nas escolas, tornando-as o mais
semelhantes possível à cultura escolar que se pretende instituir à escala
nacional (TORRES, 2013, p. 54).

Vemos aí o exemplo clássico de dependência das escolas à implantação de um modelo


único de cultura escolar, acabando por abandonar as diferenciações culturais escolares, mais
especificamente, na formulação das avaliações a serem promovidas na instituição.
Ainda nessa linha de discussão sobre a cultura escolar, realizamos um percurso de
leitura e estudo da pesquisa de Rosistolato, Viana (2013), intitulada “Os gestores educacionais
e a recepção dos sistemas externos de avaliação no cotidiano escolar”. A mesma tem como
objetivo: “[…] privilegiar o olhar dos profissionais que estão diretamente envolvidos com o
561

gerenciamento cotidiano de políticas educacionais: os gestores da educação básica que atuam


em unidades escolares” (ROSISTOLATO; VIANA, 2013, p. 3).
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Com base nisso, a pesquisa tem um direcionamento específico para essa região oeste,
devido as desigualdades de desempenho entre as escolas, o que proporciona uma comparação
entre os alunos de ambos os espaços educacionais, diante do que é descrito pelos gestores e o
que a mídia divulga.
Aliado as entrevistas, destaca-se que eles também criticam essas avaliações, devido ao
fato da realização de testes que buscam universalizar o ensino, ao apresentar questões de
alcance nacional, que não destacam as especificidades da instituição de ensino em que são
aplicadas. Ainda assim, ressaltam ser de grande relevância que as avaliações ocorram, para
que seja possível uma maior reflexão do que se está sendo ensinado e apreendido dentro da
sala de aula e para além dela.
Diante das discussões de Rosistolato, Viana (2013) sobre as desigualdades das
instituições de ensino, é indispensável o estudo também de Esteban (2009), com foco em seu
artigo “Avaliação e fracasso escolar: questões para debate sobre a democratização da escola”.
O mesmo discute as relações entre a consolidação do sistema nacional de avaliação e da
produção de qualidade em escolas públicas, diante das tensões, conflitos e problemáticas
diárias da promoção de um ensino de eficiência, que promova o acesso e a permanência do
alunado (ESTEBAN, 2009).
Com tantas histórias e pesquisas direcionadas ao fracasso, que demonstram com
agilidade e destaque para aqueles que não conseguem ter sucesso em sua fase estudantil e
após ela, somos instigados a não acreditar que bons resultados possam surgir desses mesmos
indivíduos. Entretanto, devemos engrandecer nossas pesquisas envolvendo outros meios de
(re) conhecer métodos que possam mudar essa realidade.

2.3 Avaliação do desempenho do aluno

Muitos são os indicadores e mecanismos que avaliam a educação básica, integrando o


Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB), visando diagnosticar e monitorar a
qualidade educacional em todo território brasileiro, como também, o desempenho dos alunos
e dos demais profissionais que compõem a instituição escolar. Esse sistema é composto por
testes cognitivos que
562

[…] são elaborados com base em matrizes de referência, desenhadas a partir


Página

de uma síntese do que é comum a diferentes propostas curriculares estaduais,

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municipais e nacionais, além da consulta a professores e especialistas nas
áreas de língua portuguesa e matemática e do exame dos livros didáticos
mais utilizados nas redes e séries avaliadas (BONAMINO; SOUZA, 2012, p.
5).

Nesse estudo, intitulado por “Três gerações de avaliação da educação básica no Brasil:
interfaces com o currículo da/na escola”, Bonamino, Souza (2012) procuram caracterizar
experiências de avaliação da educação básica em curso no país, explorando as possíveis
relações com o currículo escolar que é apresentado em cada geração, durante esse estudo.
Diante das suas pesquisas, as autoras expõem algumas considerações finais, mesmo
que considerem seus resultados muito prévios e relativamente em flor, que há a necessidade
de adequação dos objetivos entre as três gerações de avaliações em larga escala (SAEB, Prova
Brasil e as avaliações estaduais de São Paulo e Pernambuco), como também de pesquisas que
contribuam no entendimento das gerações avaliativas subsequentes a essas, ao que tange o
currículo escolar, “a fim de propiciar uma discussão informada sobre os aspectos específicos
[…] que precisariam ser aprendidos por todos os alunos, bem como uma definição mais clara
do que esses alunos deveriam ter aprendido ao final de cada ciclo […]” (BONAMINO;
SOUZA, 2012, p. 15).
Com base nesse enfoque de adequação e uso dos resultados, quanto as avaliações do
desempenho dos alunos, trazemos também as discussões do artigo “Avaliação e qualidade:
diferentes percursos na educação básica”, das autoras Vieira, Côco (2015, p. 129), que
definem educação de qualidade como aquela “[…] que atenda às necessidades dos sujeitos
envolvidos nesse processo. […]”.
Ao longo desse estudo, vemos a defesa e manifestação de uma qualidade elaborada por
cada pessoa, com base em inúmeros fatores, momentos de convivência e sua construção
histórica e social. Por conseguinte, há a exposição da temática avaliação no percurso da
Educação Básica (EB), entre a Educação Infantil, Fundamental e Ensino Médio, elucidando os
desafios de sua trajetória.
Nessa mesma linha de discussão, emergindo das avaliações do desempenho dos
alunos, é imprescindível mencionarmos os estudos de Dickel (2016) sobre a Avaliação
Nacional na Avaliação (ANA), vinculada ao Pacto de Alfabetização na Idade Certa (PNAIC),
563

instituído em 2002, pelo Governo Federal.


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ISBN: 978-85-7621-221-8
A autora denomina seu trabalho por “A avaliação nacional da alfabetização no
contexto do sistema de avaliação da educação básica e do pacto nacional pela alfabetização na
idade certa: responsabilização e controle”, que

[…] reúne elementos que exploram essa dupla face da ANA, situando-a,
primeiramente, no contexto do SAEB e, em seguida, no âmbito do PNAIC, e
problematizando-a com base em estudos que analisam o efeito que as
políticas de avaliação em larga escala têm produzido sobre a educação
brasileira. […] (DICKEL, 2016, p. 195).

Assim, a autora ao defender a ANA como integrante do SAEB, elucida a


disponibilização ao professor alfabetizador de um controle do nível de desempenho e
conhecimentos dos alunos, relacionado ao seu trabalho pedagógico. Essa avaliação também
integra dados para relatórios do PNAIC e suas efetivações no ensino-aprendizagem do aluno,
como também, nos cursos de formação ofertados aos professores.
Com base nisso, outro exemplo de avaliações do desempenho do aluno são as Provas
Brasil, que também se aliam a ANA e a composição do SAEB e PNAIC. Quanto a essas
primeiras, destacamos o estudo do artigo “Proposta de práticas administrativo-pedagógicas
que possam contribuir para o desempenho dos alunos de escolas municipais do ensino
fundamental na Prova Brasil”, pesquisa realizada por Salgado Junior, Novi (2015).

3 Avaliação do desempenho do professor

Nesse momento, realizamos alguns estudos das avaliações que tem como destaque
avaliar o desempenho do professor e suas implicações no cotidiano brasileiro, uma vez que,

[…], a avaliação está efetivamente presente em todos os domínios


acadêmicos e em todas as áreas da atividade humana, podendo garantir a
todos e a cada um dos cidadãos que os bens e serviços de que necessitam são
de qualidade e não põem em causa os seus legítimos interesses ou mesmo a
sua saúde e segurança. […] (FERNANDES, 2013, p. 2).

Assim, iniciamos esse momento, com o estudo de Fernandes (2015), “Avaliação em


Educação: uma discussão de algumas questões críticas e desafios a enfrentar nos próximos
564

anos”, que discute as questões da avaliação em educação, associando as necessidades tanto


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das aprendizagens dos alunos, desempenho de professores, eficácias de escolas, como
também, dos programas educacionais e políticas educativas. (FERNANDES, 2015)
Diante disso, vemos que existem dois tipos de avaliações, as informais e as formais:

A avaliação, tal como hoje é entendida, é uma exigente prática social e, por
isso, é desejável distinguir entre as avaliações do dia a dia que todos vamos
fazendo acerca do que nos rodeia, e as avaliações que nos exigem
abordagens propositadas, rigorosas, sistemáticas e tão independentes e
imparciais quanto possível (FERNANDES, 2015, p. 4).

Dessa forma, o autor destaca que as avaliações desenvolvidas necessitam de um


processo maior de integração teórica e articulação das práticas metodológicas que envolvem
os profissionais e educandos a serem avaliados, como também, uma maior produção de
conhecimento além das disciplinas que, por essas avaliações, são destaque de aplicação e
obtenção de resultados.
Com base nessas discussões sobre avaliação, trazidas por Fernandes (2015),
apresentamos o trabalho intitulado “A avaliação externa das escolas e a formação continuada
de professores: o caso paulista”, foi realizado por Santana, Rothen (2015) e tem “como
objetivo discutir o impacto do Sistema de Avaliação do Rendimento Escolar do Estado de São
Paulo (SARESP) e do Índice de Desenvolvimento da Educação no Estado de São Paulo
(IDESP) na formação continuada de professores” (SANTANA; ROTHEN, 2015, p. 89).
Nesse estudo, as autoras constataram que, em relação à dedicação dos professores às
instituições que lecionam:

As duas escolas apresentam cerca de 80% dos professores com mais de 26


horas semanais em sala de aula. Na escola A, cujo desempenho no IDESP é
melhor, 83% dos professores trabalham exclusivamente nela. Na escola B,
cujo desempenho é menor, 75% lecionam apenas lá. Embora seja uma
diferença pequena, ela existe (SANTANA; ROTHEN, 2015, p. 95-96).

Essa é uma realidade crescente em nosso país e que contribui para a queda de
desempenho dos professores, principalmente, pelo cansaço físico, mental e o transporte até as
escolas, que, contudo, faz parte da sua corrida diária por melhores condições de vida, levando
a ter mais de um emprego, como é o cotidiano de muitos docentes e demais áreas de atuação
565

profissional. Com isso, vemos que as autoras são favoráveis ao incentivo de uma formação
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continuada para os professores, principalmente, que se embase nos resultados das avaliações
do seu desempenho, por meio das avaliações externas.

Referências

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em: < http://www.scielo.br/pdf/edreal/v41n4/2175-6236-edreal-41-04-01113.pdf>. Acesso em
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em: <http://www.scielo.br/pdf/read/v22n1/1413-2311-read-22-01-0193.pdf>. Acesso em: 02
de fev. de 2017.

567
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GT4 – DISCURSOS E PRÁTICAS NO CAMPO DA EDUCAÇÃO

LEITURA, IDENTIDADE RACIAL PERSPECTIVAS DISCURSIVAS

Dayvison Bandeira de Moura66 (SEDUC/PE; UA-PY)


Maria Aparecida Monteiro67 (UA; Universidad Colúmbia –PY)

Introdução:

Esse texto é uma adaptação de itens componentes da revisão de literatura de uma tese
de doutorado em Ciências da educação, na linha de currículo. Onde os programas de curso
dos cursos técnicos do PROEJA do IFPE, campus Recife, que também, figurou como lócus, o
estudo de caso, além de análise documental, seguindo a ótica de Ceelard e Poupart (2008).
Este recorte é uma interface norteada pelo objetivo: definir68 os significados e/ou sentidos do
item lexical cultura recebidos em currículos de língua portuguesa, com vistas à lei 10.639/03,
Tal estudo refuta a abordagem de estereótipos ligados à escravidão e ao escravo, em
lugar disso, a legitimidade cultural, histórica, organizacional comum às suas civilizações.
Nesse sentido, a diferença se torna uma característica de subjetivação e não para pejorar, pré-
conceituar, marginalizar, em atenção às DCN’s étnico raciais (2004). Vale destacar: etnologia
assinala a existência de cento e oitenta (180), significados para o verbete cultura.
O presente artigo é um estudo com base em (CHIZZOTTI, 1991), se faz relação a leitura, com
concepções apresentadas por Berenblum (2009), Guimarães (2009) dentre outros autores. A
“leitura” é avaliada acerca de suas implicações enquanto cultura num “mundo” grafo
centrado, sob uma perspectiva discursiva (DIJK, 2008), em diálogo com Pechêux (1975),
Orlandi (2010). Frente a isso, se alia a este estudo implicações advindas da categoria
semântico-discursiva: pobreza, evocando Arroyo (2001), em diálogo com (GOMES, 2008).

1. A problemática da leitura no mundo grafo centrado

Como esta atitude é diferente para cada indivíduo. Assim como, essas diferentes
percepções também, mudam de acordo com as mudanças que se dão no ser humano numa
relação interna onde significa sua experiência e, também, numa relação externa em que
568

66
Email: analistadodiscurso.bandeira.pe@gmail.com Professor de Língua Portuguesa da Escola Estadual
Ministro Jarbas Passarinho – EMJP, localizada no município de Camaragibe – PE.
Página

67
Orientadora da Tese de Doutorado em Ciências da Educação. Email: mariahmoposil_@hotmail.com
68
Pertenceao campo do conhecimento na Taxonomia de Bloom revisada Ferraz &Belhot (2010, p. 426).

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podem os seres humanos expressar, tornar explicitada a significação realizada do mundo. Este
por sua vez, acaba então recebendo significações que tornam o mundo 69 e as pessoas serem
singulares. Logo, suas percepções podem singulariza-lo. Do contrário, transformá-lo em um
estranho que não se reconhece. Por isso, cabe à leitura um papel político, politizador.
Mas, pode também alienar, subalternizar pessoas a concepções pré-concebidas de
alguns, em detrimentos de outros, pela interdição do acesso à adoção de competências e
habilidades de leitura, já que podem atuar como meio para emancipação, assumindo uma
tônica libertadora. O que pode destituir engodos, preconceitos, estigmas que provocam a
intolerância, o estranhamento a diversidades comuns, a concepções projetadas do mundo,
também comuns a pessoas e, em extensão a isso: a suas culturas:

O desenvolvimento científico e aplicado das questões relacionadas à leitura


resulta em pesquisas direcionadas a alunos de vários níveis e segmentos, e
com diferentes necessidades (OLIVEIRA, 2005; LUKASOFA, 2008;
GONÇALVES 2010). Com estes trabalhos, alguns segmentos podem ser
mais dinamizados em suas leituras e outros, antes excluídos, podem passar
por um processo de inserção à leitura compreensiva, inclusive com
estratégias específicas (GUIMARÃES, 2015, p. 470, grifos para essa
pesquisa).

Pensar sobre a importância da leitura exige estender essa atitude aos meios para
desenvolvê-la ou impedi-la. O que envolve ainda questionar o papel que instituições passaram
a exercer em definir o que havia e tem sido de fato essa proeza da racionalidade humana: o
ato de ler e sua realização: a leitura.
Dentre estas instituições está o Estado, uma forma de abstração, uma entidade que
depende da conjunção de pessoas para estabelecer, ver nele seus anseios atendidos, pelo
menos em tese. Cabe incluir a instituição Ministério da Educação, Secretarias estaduais,
Secretarias municipais, escolas70 bem como o papel que os seus profissionais devem
desempenhar para pensar a superação de obstruções através da adoção de práticas para o
planejamento da leitura em âmbito curricular. E também, estabelecerem um estudo contínuo
dos processos de leitura necessários para o fomento do despertar dos assistidos pelas

69
[...] a leitura de outros mundos, de outros modelos, de outras vozes, pode possibilitar a descoberta da própria
569

voz do sujeito, outorgando‐lhe uma autonomia possível. Portanto, o leitor de livros aprende a ser leitor do Outro
– desenvolve a imagem do outro nele mesmo, o que contribui para sua identificação. Tal imagem, apesar de
cindida pela sociedade atual, não poderia estar assujeitada, mas liberada do Outro Opressor, pelo viés da
literatura (Cademartori, 2009; Parini, 2007 apud Guimarães, 2015, p. 472).
Página

70
(...) que tem por princípio proporcionar melhores condições de inserção dos alunos das escolas públicas na
cultura letrada, no momento de sua escolarização (BERENBLUN, 2009, p. 10).

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instituições do Estado a fim de que se tornem seres humanos que possam assumir uma atitude
responsiva com uma construção de um mundo onde as diversidades71sejam entendidas como
algo natural. Assim, refutando que as diferenças comuns a todos sejam usadas como
estratégia de segregação, racismo, negação de direitos, empobrecimento, negação do direito à
memória histórico cultural diversas que são em meio a atuação de diversas pessoas na
construção das diferentes sociedades.

A instituição de uma política de formação de leitores é condição básica para


que o poder público possa atuar sobre a democratização das fontes de
informação, sobre o fomento à leitura e à formação de alunos e professores
leitores. Além disso, ela se constitui, no contexto da sociedade brasileira,
uma forma de reverter a tendência histórica de restrição do acesso aos
livros e à leitura, como um bem cultural privilegiado, a limitadas parcelas
da população (BERENBLUM, 2009, p. 9).

Diante do exposto se pode entender que o planejamento, o desenvolvimento de


políticas públicas de governo ou de Estado assim como, a sensibilização, conversão de
pessoas para que possam integrar-se e serem integradas aos discursos72 e práticas necessárias
à democratização da leitura num mundo, cada vez mais mediado por múltiplas formas de
leitura, é uma tarefa desafiadora. O “mundo” grafo centrado têm há séculos73, tornado o uso
da palavra um instrumento, uma estratégia de poder e mediado diferentes concepções aos
diferentes mundos percebidos por cada ser que concebe uma leitura para o mundo natural.
Todavia, as leituras veiculadas por meio da linguagem verbal escrita, sem dúvida merece
atenção especial em razão das caraterísticas que lhe significam como resultado de um jogo
complexo, onde poucos elaboraram diferentes formas de jogar com a palavra escrita,
impressa. O que exclui muitos do jogo. O fato de muitos não terem tido acesso à
escolarização, o processo ter se dado de modo precário, tardio torna a compreensão do ato de
ler algo que torna o indivíduo desprovido, refém das implicações sociais dessa ignorância.

71
Assim como a diversidade, nenhuma identidade é construída no isolamento. Ao contrário ela é negociada
durante a vida toda dos sujeitos por meio do diálogo, parcialmente exterior, parcialmente interior com os outros.
[...] A diversidade cultural varia de contexto para contexto. Nem sempre aquilo que julgamos como diferença
social, histórica e culturalmente construída recebe a mesma interpretação nas diferentes sociedades. (GOMES,
2008, p.22).
72
“Discurso é aqui entendido para significar somente um evento comunicativo específico, em geral, e uma forma
570

oral ou escrita de interação verbal ou uso da língua. (DIJK, 2008, p. 135).


73
Ao longo da história, a leitura como propiciação do saber e da compreensão ficava a cargo apenas de alguns
literatos, intelectuais e elites. Para a maioria da população, principalmente no contexto ocidental dos séculos
Página

XVI e XVII, a leitura estava vinculada à religião; aprendida, portanto, mecanicamente, de forma apenas a
reproduzir os textos litúrgicos – que estavam em latim. (GUIMARÃES, 2015, p. 471).

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Os intelectuais da palavra com seus jogos linguísticos acabaram por desempenhar um
papel preponderante, decisivo na construção de significados para o mundo. O que acaba por
dar lugar à produção de leituras, perspectivas, fazendo eclodir um número incomensurável de
atribuição de sentidos e leituras. Complexas formas de ler, interpretar, atribuir sentidos às
leituras construídas, por alguns, desmistifica-las cabe àqueles e àquelas que dominam
competências e habilidades para isso. Fato que também, forjou e têm forjado privilégios,
erigindo ideologias, resultando no poder de alguns por meio do uso de suas palavras, forjando
mundos. Ao mesmo tempo que segregam74 tantos.
A marginalização em que se encontram tantos foi destacada na pesquisa denominada
Retrato do Brasil, de 2000, que trouxe à tona um quadro que reflete o problema:

[...] Com idade acima de 14 anos, com pelo menos três anos de escolaridade
– o que equivalia a 86 milhões de pessoas – a pesquisa incluiu o grupo de
analfabetos funcionais que alcança 65% da população. Dos muitos
resultados da pesquisa, entre eles a constatação de que 49% dos leitores e
53% dos compradores de livros estão concentrados na região Sudeste [...].
(BERENBLUM, 2009, p. 15).

É importante salientar que essa pesquisa foi produzida por uma solicitação de
instituições de livros assim como fabricantes na perspectiva de identificar o consumo de
livros no país. Deve para tanto levar em consideração o custo de livros, a finalidade desses
livros, os temas que desenvolvem, os públicos para os quais se destinam. Se generalizar o
papel da leitura de livros, mesmo assim é consenso que este é algo em regra demasiado caro.
Refletir sobre esse dado permite constatar isto:que tal qual fato obstrui a aquisição dele, tendo
em vista as baixas remunerações da crassa maioria dos brasileiros. Entre a compra de livros e
a compra de itens da cesta básica, de indumentária, calçados, remédios ou bens de consumo
dada à sua prioridade, não fica difícil entender o seu não acesso. Amplie-se a isso a
incapacidade de conhecimento e quiçá domínio de uma cultura letrada o que envolveria
competências e habilidades de leitura e a manifestação de níveis de intelecção.
Outro aspecto merecedor de atenção corresponde ao fato de haver áreas do Brasil onde
a complexidade do acesso à cultura letrada, à escola produzem exclusões mais graves,
destaque-se que a pesquisa apontou a região Sudeste com a concentração maior do que em
571

todo o país, já que ela representa uma de cinco regiões do país que é formado por 27 estados e
74
(...). Trabalhar o nível de compreensão de leitura de estudantes socialmente excluídos pode enriquecer ainda
Página

mais a questão, já que ficam à margem não só da sociedade privilegiada, mas também das possibilidades de
inserção ao letramento pleno (Guimarães, 2015, p. 470 grifos para essa pesquisa).

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01 Distrito Federal, destes apenas 04 formam a região que figurou na pesquisa. Já o Nordeste
representa a região com a maior concentração de estados – 09, seguida pela região vizinha, a
Norte. Nestas regiões a existência de escolas é insuficiente e muitas funcionam com estruturas
precárias, incluindo a atuação de profissionais capacitados para enfrentar os desafios para a
superar o estigma provocado pelo analfabetismo total ou sua face funcional.
Como se não bastasse o empobrecimento75 fruto do desemprego decorrente da falta de
qualificação, acaba por fazer com que crianças, jovens e adultos que potencialmente poderiam
cursar a educação básica tenham que optar entre estudar ou ingressar numa forma de trabalho
informal. Isto quando não precisam aliar ao trabalho formal ou informal do qual recebem
baixas remunerações, mas diante da necessidade se submetem a isso. Diante disso, a
frequência à escola é atingida, o que implica em baixo aproveitamento.
A necessidade de refletir sobre essa realidade ainda comum no Brasil, chama atenção
para a diferença entre as oportunidades vivenciadas entre as classes sociais e econômicas:
umas tendo oportunidade de vivenciar contextos onde o tempo de estudo dentro e fora da sala
de aula é um complemento do outro, marcado pela assistência de profissionais e familiares
que reúnem esforços para assistir aqueles e aquelas que estudam; já outros além de não dispor
de tempo para dedicar-se aos estudos quiçá ao seu aproveitamento, estão desprovidos de
apoio técnico e muitas vezes se quer apoio afetivo. E por fim, quando estão na escola, não
conseguem dispor de condições semelhantes aos de classes com maior condição social e
econômica, o que acaba evidentemente, influenciando para um desfecho diferente na
aquisição, desempenho e uso das competências e habilidades que os anos de escolarização
podem ofertar. Em suma: a história para a formação de leitores está intimamente ligada às
condições sociais, econômicas, as oportunidades que estão à disposição dos membros das
classes sociais que formam o Brasil, o que permite o desenvolvimento e ascensão de leitores
ao passo que outros caem numa realidade onde a leitura e o livro se tornam um objeto muitas
vezes “inacessível”.

75
Se por um lado o currículo é uma ponte entre a cultura e a sociedade exteriores às instituições de educação, por
outro ele também, é uma ponte entre a cultura dos sujeitos, entre a sociedade de hoje e a do amanhã, entre as
possibilidades de conhecer, saber se comunicar e se expressar em contraposição ao isolamento da ignorância
(GIMENO SACRISTAN, 2013, p. 10).
* “ Por que eu, minha família, minha raça, etnia e minha classe social somos tão agredidos pela pobreza? ”
572

(ARROYO, 2014, p. 33).


* Quando domesticamos um membro de nossa espécie, diminuímos o seu rendimento e, por pouco que lhe
damos, um homem reduzido à condição animal doméstico acaba por custar mais do que produz. [...] nem homem
nem animal, é o indígena. Derrotado, subalimentado, doente, amedrontado, mas só até certo ponto, tem ele, seja
Página

amarelo, negro ou branco, sempre os mesmos traços de caráter: é um preguiçoso, sonso e ladrão, que vive de
nada e só reconhece a força” (SARTRE, 1968, p. 10).

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O que explica a seguinte constatação da pesquisa já citada:

[...] 62% dos entrevistados afirmaram gostar de ler livros, e a informação de


que a escolaridade se vincula fortemente às práticas de leitura (ler e comprar
livros, entre outras). Duas conclusões surgiram da pesquisa: a de que os
brasileiros com mais instrução, capazes de compreender o texto escrito, leem
bastante – cerca de 35% são leitores frequentes (...) a outra conclusão de que
o baixo índice de escolaridade com qualidade e as condições de acesso ao
livro estão na raiz do problema (BERENBLUM, 2009, p. 15-16).

Ou, é possível tornar a leitura numa perspectiva de libertação, de inclusão, de ascensão


dos antes excluídos, a fim de que “se” construam pela “leitura” que fazem do mundo em que
estão e, vislumbrem o mundo em que desejem estar. Sendo este, um alvo a ser alcançado
também, por outros intelectuais da palavra, por profissionais da educação que fazem dela, via
de resgate do valor das subjetividades humanas, no ambiente da escola, apesar das
dificuldades apresentadas aos mesmos. Estes desafios forjam heróis, heroínas que tornam a
palavra, a sua leitura em forma de redenção, tornando figurantes em protagonistas; estudantes
em cidadãos.

1.2 Leitura, identidade racial perspectivas discursivas76

Nessa etapa da revisão de Literatura será dimensionado o papel desempenhada pelas


relações impulsionadas, despertadas pelo discurso e as práticas do discurso, objetivando tecer
reflexões dirimidas pela Análise Crítica do Discurso – ACD, seguindo a ótica de Dijk (2008),
sobre a afirmação do racismo, bem como a sua negação. Mas antes disso, serão dirimidas
alusões ao Discurso de Althusser, os Aparelhos Ideológicos de Estado – AIE, e também,
Pêcheux quando funda a concepção de “sujeito assujeitado”. Esse esforço visa reconhecer as
implicações desses conceitos para a constituição de identidades de estudantes assistidos em
turmas de Educação de Jovens e Adultos, no que diz respeito à identidade negra e para tanto,
estabelecer-se-á um diálogo com posições assumidas Moura (2014).
Inicialmente, é importante assinalar que o discurso constitui a identidades dos seus
interlocutores e também, é constituído pelos mesmos. O que chama atenção ao fato: é
necessário identificar como se dá essa constituição? Quem elabora e com quais intenções?
573
Página

76
2.4.4 Identificação no sumário da tese, título após referências*.

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Que papel assume as concepções de Estado nesse processo de construção de discursos e,
consequentemente, interfere para a construção de identidades dos sujeitos? Qual a consciência
do caráter explícito ou implícito de elementos que estão imanentes no discurso que tem sido
veiculado aos interlocutores. Para esses questionamentos o discurso assume lugar relevante e
por isso fez-se essa opção.
Muito embora, não haja discurso neutro, não é possível conceber a existência de
discursos que reiterem estereótipos capazes de discriminar indivíduos em razão de seu
pertencimento étnico.

O discurso também, desempenha um papel fundamental para essa dimensão


cognitiva do racismo. As ideologias e os preconceitos étnicos não são inatos
e não se desenvolvem espontaneamente na interação étnica. Eles são
adquiridos e aprendidos, e isso normalmente ocorre através da
comunicação, ou seja, através da escrita e da fala (DIJK, 2008, p. 135,
grifos para esse estudo).

Ou seja, não é admissível que mediante à concepção de uma sociedade contemporânea


haver a reiteração de concepções que visem inferiorizar grupos de pessoas historicamente
excluídas como é o caso de afrodescendentes. Ocorrida as práticas escravagistas e, paralelo a
isso, eclodiu de modo intermitente os discursos disseminadores de uma pretensa inferioridade
biológica, política, cultural, dando ênfase ao estranhamento e a demonização de diversos
legados, afetando, sobremaneira, civilizações vítimas de discursos que alimentaram práticas
para segregar, para negar o direito de serem reconhecidos por sua diferença, seu
pertencimento cultural77:

Por bem ou por mal, a cultura é agora um dos elementos mais dinâmicos – e
mais imprevisíveis – da mudança histórica no novo milênio. Não deve nos
surpreender, então, que as lutas pelo poder sejam, crescentemente,
simbólicas e discursivas, ao invés de tomar, simplesmente, uma forma física
e compulsiva, e que os próprios políticos assumam progressivamente a
feição de uma política cultural (HALL, 1997, p. 97 apud: MOREIRA, 2008,
p. 20).

É comum ser entendido que uma pessoa nascida, educada, situada ao longo de sua
vida e, portanto, com práticas culturais comuns à Coimbra, não pode ser equiparada em
574

77
Uma das frases de Pechêux (1975, p. 162) é que “toda formação discursiva dissimula, pela transparência de
Página

sentido que nela se constitui, sua dependência com relação ‘ao todo complexo com dominante’ das formações
discursivas, intrincado no complexo das formações ideológicas...” (MUSSALIM, 2009, p. 381).

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gênero, número e grau a outra pessoa nascida na nascida na cidade do Porto. Mesmo estas
cidades sendo localizadas em Portugal, isso não determina igualdade de culturas, de histórias,
de comportamentos socialmente aceitos ou rejeitados. Essa dinâmica de pertencimento étnico
cultural pode ser percebida em outras cidades, países e regiões. Logo, a territorialidade a
localização, as atitudes assumidas por pessoas, suas falas, suas percepções de mundo, sobre o
mundo, as maneiras de representá-lo, os processos como se dão as interações entre os atores
sociais estão atrelados à memória cultural que antecede à existência dos mesmos.
Evidentemente, isso pode ser percebido como algo que desempenhe um papel positivo ou
negativo, próximo do ideal ou distante dele, próximo do real ou longe dele.
Como esse estudo não visa ao debate genérico, mas sim, permitir reflexões sobre o
lugar do discurso escolar no tange ao currículo. Isso porque o currículo enquanto documento
para materializar as concepções, conceitos e os hábitos, os costumes a serem reforçados como
ideais e outros como ruins. E, também, há muitos que se encontram ausentes, ou se presentes
marcados por “folclorização” que fragmenta histórias de civilizações. Assim, algumas estarão
apresentadas como dependentes de outras. Esses aspectos têm cerceado o estudo de um olhar
acurado sobre a legitimidade de histórias ligadas ao continente africano, não podendo,
portanto, ficar restrito ao olhar do escravagismo.
Essa preocupação remete à teoria dos Aparelhos Ideológicos de Estado – AIE,
formulado por Althusser (1970), pois a medida em que se avalia o caráter assumido pela
reprodução de concepções, de verdades, de conceitos, de costumes, de histórias visando o
desenvolvimento de agenciamento de ações sociais. Com isso a ideia de a escola atuar como
reprodutora passiva de ideologias afeitas a uma concepção conservadora do Estado, à medida
que elege grupos de pessoas melhores que outras; que a cultura de alguns grupos é melhor do
que o de outros; que a cultura de uns pode estar sendo apresentada como bom para o
entretenimento, para a diversão. Já a cultura de outros grupos é melhor para ascender
socialmente; ela pode estar comumente relacionada à intelectualidade, à beleza, ao heroísmo,
também, à construção da concepção de civilizado, culto, inteligente, superior; já o outro
inferior, carente de civilização, sem cultura, ou com uma cultura inferior, não inteligente, feio,
vilão, inferior. Estabelecer essa polarização implica em reduzir as possibilidades de uns e
maximizar as possibilidades de outros. Isso é reflexo de hegemonia. Estas reflexões atendem
575

à categorização concebida por Althusser como de caráter discursivo.


Outra linha de estudo de caráter também, discursivo que incide sobre o discurso
Página

escolar e por sua vez, sobre o currículo é a concepção de “assujeitamento”. Esta concepção

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discursiva debruça sobre os fenômenos ligados aos usos da linguagem imanentes em uma
língua, ou mesmo entre idiomas. Sendo a linguagem as várias formas pelas quais um idioma
se manifesta. Evidentemente, tais manifestações estão imbricadas de tal maneira em outras
construções historicamente e socialmente situadas que acabam por ser perpetuadas ao longo
das interações com os quais expressões são reiteradas. Fato que elabora não exatamente um
novo dizer, mas sim, uma relação quase intermitente com expressões, dizeres, concepções que
pelo valor que adquirem em dados contextos sociais:

[...] O sentido e a significação, ao contexto e ao sujeito não foram


respondidas unicamente pela teoria da enunciação ou pela semiótica, nem de
uma única maneira. A análise do discurso também produziu respostas [...] às
noções de sujeito, autor, leitor, condições de produção, ideologia, sentido e
historicidade, entre outras. [...] a reflexão a categoria texto, [...] A primeira
propõe que a linguística trabalhe para além dos limites da frase (ORLANDI,
2010, p. 67).

De maneira a reforçar certos pensamentos, pela maneira como determinados discursos


são reditos. Mesmo quando sofrem novas construções de caráter sintático. No entanto, com os
antigos arquétipos ou por meio de os arquétipos se pode em verdade estabelecer uma relação
intertextual a ponto de manter a primazia com o qual tal pensamento foi expresso e
naturalizado pelos falantes a ponto de reforçar uma determinada forma de pensar. Ou até,
fazer com que a constância e permanência de uma expressão linguística adquire em sua
modalidade falada ou escrita; verbal ou não-verbal farão daqueles que enuncia assumir uma
função subordinada a expressão ratificada.
Isso pode ser perfeitamente, percebido quando se resolve refletir a abrangência
alcançada pelas ideias sobre a inferioridade das etnias negras africanas, dentro da África ou
fora daquele continente. Logo, isso se coaduna com o papel discursivo ideológico que
adquiriu a disseminação de discursos acerca da ideia de despsicologização dos povos
africanos. E, com essa percepção do outro, atribuindo-lhe a ideia de inferioridade natural. A
ideia começa a ser dita, escrita, pensada, aceita e em extensão a um conjunto de
posicionamentos mais ou menos conscientes, a ideia assume o patamar de conceito, passando
a emanar, a elaborar a elaboração mais refinada a nível de ideologia. E, com isso eclode a
ideia de supremacia, de superioridade de um grupo de seres humanos, sobre outros que em
576

razão da crença em sua superioridade, subalterniza os inferiores como se isso fosse um


Página

“direito” natural. Erigindo, portanto, uma hegemonia, um saber hegemônico, concepções

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hegemônicas, ideologia78 e hegemonia servem-se mutuamente, em uma complexa teia,
enredada por manifestações por meio da linguagem falada e escrita, como já fora aqui
referido, das manifestações verbais e/ou não-verbais nas quais um idioma, uma língua, é
manifesto pelos nativos, e, também, pelos “naturalizados”.
Ora, se é possível perceber essa função desempenhada por um sujeito (indivíduo,
falante; ou grupo de indivíduos, falantes) clivado, ou seja, dividido entre o consciente e o
inconsciente, temos assim um “assujeitamento”. Condição pela qual formas de pensamento,
concepções, opiniões, pontos de vista, ideologias podem ser realçados explicita ou
implicitamente. Como também, podem ser combatidos, reunindo esforços para destituir sua
“pseudo-verdade”, ou sua inveracidade.
Logo, essa articulação complexa e sofisticada se insere na teoria dos Aparelhos
Ideológicos de/do Estado (Althusser), assim como é matéria que recebe a classificação de
cunho psicanalítico sobre a interferência da concepção lacaniana.
Essa outra perspectiva de estudo sobre a linguagem e por meio dela carece de um
olhar cuidadoso por sua presença no discurso didático, que tanto apregoou a concepção de
que os negros e os seus descendentes seriam incapazes de desenvolver com a menor maestria,
uma tarefa que lhes exigisse reflexão e desta feita lograr sucesso nos processos de ensino e
aprendizagem comuns à escolarização. Não requer grande esforço compreender que a
ideologia racista, que dentre várias estratégias, lançou mão de expedientes como a
discriminação racial, sob argumentos como a teoria camita. Dentre tantas outras estratégias
onde a linguagem sempre deteve papel primordial para enraizar formas de pensar até alcançar
o patamar de costume ou tradição79.
Logo, o discurso não é concebido como texto apenas, mas como as relações
contextuais e ideológicas80 a que se ligam determinadas construções em que a linguagem e
mecanismos presentes na língua e representados pela linguagem adquirem função de ou para
perenizar, manter vivas concepções quanto à inferioridade negra ou dos afrodescendentes.

78
A ideologia é bem um sistema de representações: mas estas representações não têm, na maior parte do tempo,
nada a ver com a “consciência”: elas são a maior parte das vezes imagens, às vezes conceitos, mas é antes de
tudo como estruturas que elas se impõem à maioria dos homens, sem passar por sua consciência. (ALTHUSSER,
577

1970 apud MAIGUENEAU, 1990, p. 69).


79
[...] A segunda [...] levando em consideração as, “relações entre a cultura e a língua (isto é, entre o
comportamento não-verbal e o verbal”) Orlandi (2003, p. 9).
80
[...] refere-se a determinadas circunstâncias, a saber, o contexto histórico-ideológico e as representações que o
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sujeito, a partir posição que ocupa ao enunciar, faz de seu interlocutor, de si mesmo, do próprio discurso etc.
(MUSSALIM, 2004, p. 116).

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Conclusão

Entender a relevância que a linguagem representa no jogo para refutar ou manter um


dado ponto de vista, ou uma ideologia, é deveras um papel da escola à medida que entende o
lugar da didática para criar as situações os estudos para o reconhecimento de ideias ou
ideologias que promulgam a desigualdade humana com base em concepções racistas ou
discriminatórias. Algo que fere, violenta e perpetua um quadro de injustiça humana a números
incontáveis de pessoas que acabam tendo a sua identidade negada, desconstruída, sendo
pejorativamente, tratada, aceita pela escola. E, desta feita, como despertar os estudantes
interessados que seja fortalecido o respeitos às diferenças de identidade ligada à cultura e
história individuais se discursos educacionais na escola, discursos de profissionais na escola,
discursos presentes nos currículos escolares, e, consequentemente, nos componentes
curriculares não assumem uma posição crítica frente a sutileza dos discursos que podem
eleger a identidade Norte Americana, inglesa, francesa, alemã, russa, israelense como
superiores. Ao passo que, discursos para reafirmar a inferioridade como um fato continuam a
ser proferidos contra sul americanos, paraguaios, chilenos, venezuelanos, brasileiros,
nordestinos, mexicanos, africanos, negros, nordestinos, imigrantes. Mesmo quando o que
deveria estar em questão deveria ser a diferença como fator que estrutura a humanidade, de
modo a singularizá-la.
Feitos esses esclarecimentos para relacionar o discurso a concepções de cultura e sua
relação com a identidade étnica, para a busca de uma postura consciente quanto ao papel do
professor à medida que precisa ponderar que cultura de leitura fundada no reconhecimento
que advém de estratégias discursivas assim com isso pode não apenas emancipar, mas pode
também, reiterar discurso para segregar, e ainda disseminar, reiterar ideologias subjacentes à
superfície do texto, como também os sentidos produzidos pelos elementos que o compõem, e
por ele mesmo discursivamente.
Sendo assim, cabe por fim, relacionar a leitura à construção de uma identidade na
Educação de Jovens e Adultos, uma vez que esta desempenha lugar essencial neste estudo é o
motivo maior dos esforços que entrelaçaram os estudos nesta revisão de literatura.
578
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30 cm. Orientador:Maria Aparecida Monteiro da Silva. Tese (Doutorado em Ciências da
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579

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GT4 – DISCURSOS E PRÁTICAS NO CAMPO DA EDUCAÇÃO

DA EJA AO CEJA: DAS POLÍTICAS PARA EJA AO ENSINO SEMIPRESENCIAL


DOS CEJA NO CEARÁ

Edillene Rodrigues da Silva (UERN/PROFLETRAS/CAWSL)


Lilian de Oliveira Rodrigues – Orientadora (UERN/PROFLETRAS/CAWSL)

Introdução – EJA uma história meio ao contrário

Muitas foram as experiências praticadas por governantes no sentido de promover a


alfabetização para uma parcela significativa da população brasileira que não teve acesso à
escola. Se buscarmos por uma análise cronológica da Educação de Jovens e Adultos no
Brasil, nos reportaremos, inicialmente, a célebre imagem dos Jesuítas praticando a primeira
versão desta modalidade. E, por muito tempo, os ideais dos primeiros professores religiosos e
de quem os trouxeram se repetiram nas grades curriculares das propostas de EJA implantadas
no país.
Neste trabalho procuramos destacar que as políticas públicas voltadas para a Educação
de Jovens e Adultos estiveram sempre vinculadas aos objetivos emergentes da situação
econômica e política do país, desde a chegada dos primeiros promotores do que se
convencionou chamar educação formal, dos jesuítas. A ação educativa proposta pelos padres,
segundo Gadotti e Romão (2007, p.63) era voltada, fundamentalmente, para a aculturação da
população ameríndia, por intermédio do Ratio Studiorium que se baseava nos estudos
clássicos. Os religiosos procuravam catequizar e instruir os índios e os filhos dos
colonizadores, distinguindo-se apenas os objetivos com os quais se ensinavam os nativos e os
brancos, mazela essa que perdurará em toda historicidade da educação brasileira. A influência
dos sacerdotes tornara-se evidente, estes possuíam certa independência em relação ao Estado
e à própria igreja. Por isso e por outros fatores ligados a questões políticas advindas do
continente europeu, os jesuítas foram expulsos do Brasil em 1759, ano em que se estabelece
uma estagnação da educação voltada para os adultos.
Após a expulsão dos jesuítas e a implantação das reformas educacionais propostas por
Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal, a identidade da educação brasileira
580

afirmou-se pelo caráter elitista, oferecendo educação aos filhos dos colonizadores,
representantes das classes mais abastadas. Para estes, foram criadas as aulas régias, excluindo-
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se totalmente os índios e negros, visto que estes não necessitavam de escolarização para o
trabalho que desempenhavam.
À medida que imergimos na história da EJA, entendemos as marcas negativas ao
longo de sua trajetória. Dominação, silenciamento, humilhação, esquecimento são alguns dos
termos que bem caracterizam o percurso vivenciado pela modalidade até os dias de hoje. O
olhar de favor atribuído a EJA perdura até os dias atuais, ignorando-se a dívida social e a
garantia de um direito negado a uma significativa parcela da população brasileira. Corrobora
com nosso pensamento Carlos Roberto Jamil Cury (2000, p. 5) quando diz que:

a Educação de Jovens e Adultos (EJA) representa uma dívida social não


reparada para com os que não tiveram acesso a e nem domínio da escrita e
leitura como bens sociais, na escola ou fora dela, e tenham sido a força de
trabalho empregada na constituição de riquezas e na elevação de obras
públicas.

Por ser destinada a pessoas percebidas como inferiores- negros, índios, mestiços,
pobres – a oferta da EJA era também tratada como inferior visto que, na visão dos que a
promoviam, aqueles que colaboravam com a força do trabalho e a vocação não necessitavam
de formação escolar para desempenhar suas funções. Tal pensamento perdurará por toda a
trajetória da Educação de Jovens e Adultos.
Em 1824, a proposta de educação para todos, lema presente até hoje em discursos de
nossos governantes, surgiu a primeira vez na Constituição Imperial. Todavia, o discurso legal
ficou no campo das ideias, não se encontrando o caminho para inserção dos mais pobres na
educação formal. Vale ressaltar que, nessa época, a EJA era praticada de forma caridosa e
voluntariada por pessoas letradas para pessoas que viviam no obscurecimento. Raros foram os
momentos em que ao jovem e adulto segredado foi concedido o direito à educação, para estes,
a EJA chegava, por diversas vezes, como uma ação solidária, configurando-se esta como uma
das características da modalidade no Brasil.
Outra característica reafirmada na EJA a partir da década de 1940, advinda da
industrialização do país, foi a formação profissional para atender as demandas da sociedade.
Para isso, surgiu em 1942 o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI) como um
mecanismo de formação de mão de obra qualificada. Com a criação do SENAI, segundo
581

estudiosos, evidenciou-se o caráter elitista da educação. O preparo intelectual para os


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abastados, e a profissionalização para o proletariado.

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Num contexto de adversidades, de um lado um contingente de pessoas excluídas da
escola, do outro uma sociedade necessitada de mão de obra qualificada, a EJA é, então,
oficializada no país através do Decreto nº 19.513, de 25 de agosto de 1945. Gadotti e Romão
(2006, p. 35-36) dividem a história da EJA após a publicação do decreto em três períodos:

1º De 1946 a 1958, onde foram realizadas grandes campanhas nacionais de


iniciativa oficial, chamadas de “cruzadas”, sobretudo para “erradicar o
analfabetismo”, entendido como “chaga”, uma doença como a malária. Por
isso se falava em “zonas negras de analfabetismo”.
2º De 1958 a 1964. Em 1958 foi realizado o 2º Congresso Nacional de
Educação de Adultos, que contou com a participação de Paulo Freire. Partiu
daí a ideia de um programa permanente de enfrentamento do problema da
alfabetização que desembocou no Plano Nacional de Alfabetização de
Adultos, dirigido por Paulo Freire e extinto pelo Golpe de Estado de 1964,
depois de um ano de funcionamento. A educação de adultos era entendida a
partir de uma visão das causas do analfabetismo, como educação de base,
articulada com as “reformas de base”, defendidas pelo governo
popular/populista de João Goulart. Os CPCs (Centros Populares de Cultura),
extintos logo depois do golpe militar de 1964, e o MEB (Movimento de
Educação de Base), apoiado pela igreja e cuja duração foi até 1969, foram
profundamente influenciados por essas ideias.
3º O governo militar insistia em campanhas como a “Cruzada do ABC”
(Ação Básica Cristã”) e posteriormente, com o MOBRAL.

O segundo período apontado pelos autores é composto por movimentos com objetivos
distintos. O MEB, apoiado pelo governo e pela igreja, atuava no meio rural, utilizando
métodos e conteúdos diferenciados para alfabetização de adultos, principalmente por usando o
rádio como canal de alfabetização, foi também um movimento marcado fortemente pelo
clientelismo, com o intuito de formação dos famosos “currais” eleitorais, tão característicos
daquele período. Já os CPCs e outros movimentos de cunho popular visavam o atendimento à
população urbana periférica, situada em regiões desprovidas de assistência pelo poder
público, e a promoção da conscientização através da alfabetização, utilizando-se do sistema
Paulo Freire. Carvalho (2010, p. 36) considera a participação popular como um marco deste
período.
A proposta de Paulo Freire para educação de adultos inspirou significativos programas
de alfabetização no Brasil. O Presidente João Goulart reconheceu a importância da proposta
freiriana e sua atuação no campo da educação, principalmente da EJA. O então governante
582

convida o educador para organizar o Plano Nacional de Alfabetização de Adultos (PNAA). O


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PNAA foi aprovado pelo decreto 53.465, de 21 de janeiro de 1964 e previa a instalação de 20
mil círculos de cultura81, cujo objetivo era alfabetizar cerca de 2 (dois) milhões de pessoas.
Entretanto, formar sujeitos curiosos, críticos, capazes de analisar a realidade e
transformá-la em novos conhecimentos, ia de encontro à nova ordem nacional imposta pelo
Golpe Militar instaurado no país. A Freire e seus seguidores, restaram a perseguição e o
exílio. Reinam, então, na república amordaçada, os programas promotores do assistencialismo
e de métodos conservadores de alfabetizar adultos, como o Movimento Brasileiro de
Alfabetização – MOBRAL. Segundo Carvalho (2010, p. 36) o objetivo do MOBRAL era que
“o indivíduo adquirisse técnicas (ler, escrever, contar) para se integrar (grifo do autor) na
comunidade e alcançar melhores condições de vida (grifo do autor). ” O programa implantado
pelo governo ditatorial respira até os anos 1985, quando é extinto, mas suas ideias ainda
emergem nas propostas advindas para a EJA.
Ainda durante o período da ditadura, a EJA é regulamentada pela primeira vez, através
da Lei nº 5.692/71, recebendo o nome de Ensino Supletivo. De acordo com Haddad e Di
Pierro (2000), a suplência proposta pela legislação visava a recuperação do atraso educacional
e, mais uma vez, a formação de mão de obra que contribuísse para o desenvolvimento do país.
Segundo a legislação, os professores que atuariam no Ensino Supletivo deveriam ter formação
específica, entretanto não se ofertou o aperfeiçoamento aos mestres, ficando, então, a cargo de
profissionais das escolas regulares de ensino desempenhar o papel para o qual não tiveram
formação necessária. Fato este não extinto em todas as práticas de EJA implantadas pelas
políticas públicas e por seus pensantes até os dias atuais.
Com o advento da democracia ao país, os programas de EJA continuaram a surgir,
muitos não passam de um “vale à pena ver de novo” de outras tentativas frustradas de
alfabetizar o jovem e o adulto, uma vez que não se buscam metodologias que considerem o
interesse do público atendido, não se articulam ao trabalho, não investem na formação dos
profissionais que nela atuam como também não renovam o currículo, de forma que a EJA se

81
Os Círculos de Cultura substituiam a ideia da sala de aula no processo de alfabetização de adultos.
Iniciado na década de 1960, sob a idealização de Paulo Freire, era chamado de círculo porque, assim
583

como a figura geométrica, os participantes ficavam dispostos em círculos para que todos pudessem
se ver. Círculo de Cultura por ser um processo de letramento pautado no debate das relações do
homem e da realidade, analisando-a e buscando soluções para problemas do cotidiano.
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configure como um direito, descaracterizando a história de favor atribuído ao longo de sua
trajetória.
Longo vem sendo o caminho percorrido para que se combata efetivamente o
analfabetismo no país. As campanhas, os movimentos, planos, programas, projetos destinados
à erradicação do analfabetismo mudam de nomenclatura, mas os objetivos permanecem
irmanados, entre eles destacamos a pressa em oferecer uma formação rápida que dê conta de
anos do distanciamento escolar e a utilização de alfabetizadores improvisadores
(CARVALHO, 2010, p. 52).
Buscamos traçar nesse trabalho uma trajetória aligeirada da EJA no Brasil,
percebemos, até aqui, o quanto as políticas, quando houve, voltadas para Educação de Jovens
e Adultos estão atreladas às mudanças de governo e aos interesses econômicos, distanciando-
se da dívida social do país para com esta crescente população

2 Os CEJAS no Ceará: desafios de uma proposta diferenciada

A histórica da EJA no Ceará não foi diferente do restante do país. Os Centros de


Educação de Jovens e Adultos – CEJA –, que aqui serão apresentados, encontram suas raízes
na Lei 5.692/71 que regulamentava o Ensino Supletivo.
E foi num clima de imposições e silenciamentos que surgiu o Ensino Supletivo (ES)
no país. Os programas em prol da educação de adultos ligados ao movimento popular
proposto por Paulo Freire foram extintos visto que fugia ao interesse do poder público
instrumentalizar o povo para que o exercício da reflexão e análise da realidade. Entra em
vigor, então, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação nº 5.692/71 que instituiu o ES no país.
Em seu artigo 24, a referida Lei definia as finalidades da EJA, legalizando o sentido de
suplência já incorporado ao longo da história da modalidade.

O ensino supletivo terá por finalidade: a) suprir, a escolarização regular para


os adolescentes e adultos que não tenham seguido ou concluído na idade
própria; b) proporcionar, mediante repetida volta à escola, estudos de
aperfeiçoamento ou atualização para os que tenham seguido o ensino regular
no todo ou em parte (BRASIL, 1971, p. 6).
584

O emprego do verbo “suprir” na Lei remete-nos à ideia de tempo perdido e


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substituição do ensino básico regular, já conhecido nas políticas públicas para a modalidade

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ao longo da história. Haddad e Di Pierro (2000, p. 117) apontam, embora reconheçam os
avanços da EJA com a Lei, que

o Ensino Supletivo se propunha priorizar soluções técnicas, deslocando-se


do enfrentamento do problema político da exclusão do sistema escolar de
grande parte da sociedade. Propunha-se realizar uma oferta de escolarização
neutra, que a todos serviria.

O ES apresentava-se como mais uma proposta desvirtuada da real questão da educação


de adultos no país, comprovadamente pela forma como se desdobrarão as modalidades do
ensino supletivo em virtude do seu comprometimento pela falta de investimento e
acompanhamento.
A regularização do ES coube aos Conselhos Estaduais de Educação (CEE), o que
originou uma série de nomenclaturas, normatizações e características de implantação
diferentes (HADDAD, DI PIERRO E FREITAS, 1989). Estruturado nos vários estados do
país, cada um baseado nos modos de entendimento e autorização dos CEE, concebeu-se como
um serviço público responsável por políticas de organização e gestão da modalidade EJA.
Uma inovação a ser considerada no ES é o fato de não se ater apenas à alfabetização, mas a
pós alfabetização, levando-se em conta a divisão do ensino em fundamental de oito anos, e
médio, três anos. Ainda em virtude das interpretações diferenciadas, os autores Haddad, Di
Pierro e Freitas (1989) apontam também que a falta de pesquisas em relação ao Ensino
Supletivo tem gerado escassez de dados estatísticos, comprometendo a oferta; tem deixado
professores desprovidos de formação específica e ainda, deixado de produzir conhecimento
sobre a própria modalidade. Os autores afirmam que as poucas pesquisas sobre ES se
restringem à função de suplência, ignorando-se as funções da aprendizagem, da qualificação e
das especificidades dos estudantes da modalidade.
O ES propunha uma metodologia personalizada para atender ao público jovem e
adulto, respeitando o ritmo de aprendizagem deste, bem como apresentando flexibilidade na
sua forma de organização. Joia (1999, p. 15) explica que “o conceito de flexibilidade para ES
concretizou-se na possibilidade de organização da educação para adultos em várias
modalidades (grifo do autor), respondendo a diversas funções (grifo do autor)”. Afirma ainda
585

o autor que modalidades correspondiam, na letra da lei, as formas de organização do ensino


em interação com o aluno. O ES previa as seguintes modalidades: Centros de Estudos
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Supletivos (CES), Cursos Supletivos (CS) e Ensino à Distância (ES).

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Para o presente trabalho, nos reportaremos aos CES visto que estes fundamentam a
existência dos CEJA no estado do Ceará.
A priori os CES ofereciam apenas o ensino fundamental, mas, a partir das demandas
reprimidas e a prerrogativa legal, passaram a oferecer o ensino médio em meados dos anos
1980. De acordo com Haddad, Di Pierro e Freitas (1989), os CES teriam a seguinte
organização e funcionamento:

Os CES possuem um “setor de tráfego”, que efetua a inscrição do “cliente” e


o encaminha para um “setor de atendimento”, no qual o estudante é
orientado por um professor. O aluno se inscreve por disciplina, recebe os
módulos de ensino correspondentes ao seu nível de conhecimentos e estuda
sozinho. Quando possui dúvidas, procura orientação dos professores do
Centro. Ao apresentar 80% de aproveitamento em um módulo, o aluno
recebe o módulo seguinte. Os CES devem possuir ainda biblioteca e um
setor de multimeios, em que os “clientes” podem utilizar recursos
audiovisuais como meios auxiliares de estudo [...]. Assim, os CES
caracterizam-se pela metodologia de instrução personalizada, frequência não
obrigatória e avaliação no processo de aprendizagem, podendo o aluno
utilizá-lo também como meio de preparo para os Exames Supletivos.

A estrutura apontada pelos autores nem sempre era adotada pelos estados da
federação. Em muitos casos, instalaram-se Núcleos de Ensino Supletivo (NES), Núcleos
Avançados dos CES (NACES) e Postos de Atendimento Supletivos. A característica em
comum dos três é a redução de gastos, pois estes demandavam uma infraestrutura mais
modesta e reduzido número de pessoal. A maioria funcionava em salas disponibilizadas nas
escolas regulares, em horário noturno, realidade essa vivenciada no Ceará. E aqui se inicia a
história dos Centros de Educação de Jovens e Adultos no estado.
Os CEJA surgiram no final da década de 1970, funcionavam em escola regulares sob a
nomenclatura de NES, mas no Ceará eram chamados de salas satélites. A associação ao nome
satélite foi devido ao funcionamento, nas mesmas escolas onde os NES foram implantados,
de salas de ensino fundamental (na época 1º grau) que utilizavam o sistema de tele-ensino.
Na década de 1990, os Centros começaram a consolidar-se como escolas dedicadas
exclusivamente à EJA; ganharam sedes próprias, algumas alugadas e ainda meio
improvisadas, outras já com estrutura física pensada para o público que atende. Os NES
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deram origem aos CEJA de Fortaleza e do interior do estado, somando hoje um total de 32
centros, 9, na capital e 32, distribuídos nas cidades de maior densidade demográfica do
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interior.

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A expansão dos CEJAS no estado coincide com a promulgação da nova LDB nº
9.394/96. Legalmente foi ampliado o conceito de Educação, estabelecendo-se uma relação
desta com o trabalho e com a diversidade das práticas sociais. A Lei, na seção V (Art. 37),
referenda a Educação de Jovens e Adultos, prescrevendo a responsabilidade dos sistemas de
ensino em garantir a gratuidade a todos que não puderam realizar os estudos em idade regular
e em oportunizar educação apropriada, respeitando, inclusive, as especificidades
socioeducativas dos educandos. À luz da 9.394/96, os CEJA se constituem como um espaço
identitário para o jovem e adulto. Os Centros atendem especificamente o público da EJA,
apresentando uma proposta de organização e funcionamento adaptada ao alunado e à
realidade deste, trazendo para as práticas diárias temas como a cultura, a diversidade, as
relações da sociedade, o meio ambiente, o trabalho, a cidadania e o exercício desta.
Os NES e mais tarde os CEJA carecem, segundo Haddad, Di Pierro e Freitas (1989),
de estudos o que implica diretamente na falta de investimentos e melhorias na modalidade
neles praticada. As políticas públicas para educação implantadas no Ceará caminham em
consonância com as políticas nacionais, por isso investir em uma instituição cujos números
não correspondem às expectativas de superação do analfabetismo do estado, acarretam no
descrédito desta e na falta de recursos a esta destinados. Vale dizer que para o poder público,
os programas e projetos voltados para a EJA precisam dar conta, em curto espaço de tempo,
da redução dos números de analfabetismo e baixa certificação. A escassez de pesquisas sobre
os Centros e os sujeitos nestes atendidos tem levado os gestores públicos do estado a
equipararem os números dos CEJA aos das escolas regulares, ocasionando prejuízos ao
atendimento prestado por estes.

3 Os alunos do ceja: um novo retrato

Constatamos ao longo da trajetória da EJA traçada no início deste trabalho, que as


políticas implementadas na modalidade estão longe de ofertar oportunidades educacionais
democráticas. O discurso do respeito à pluralidade passou a fazer parte de documentos legais,
mais recentemente na LDB 9.394/96, mas as práticas destinadas a EJA têm apontado para o
desprezo às peculiaridades sociais e culturais dos seus educandos. Ao reconhecer as
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especificidades da modalidade, reconhece-se as peculiaridades socioeconômicas de seu


público. Em sua maioria, os estudantes da EJA pertencem às classes populares, interpretando-
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se tal condição na qualidade da educação que lhes é ofertada. Corrobora como nossa

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afirmação Arroyo (2005, p. 10), quando diz que “a condição social, política e cultural dos
estudantes da modalidade estipulam, na visão dos promotores da instrução pública, a
concepção de educação que será promovida”. O reconhecimento da condição humana dos
educandos da modalidade implica em propostas pedagógicas voltadas para a superação das
dificuldades enfrentadas por estes e que estas os fizeram abandonar ou não frequentar a
escola.
Para atender as reais demandas de formação dos educandos da EJA, a escola deve
considerar os sujeitos da modalidade, e suas características díspares. Os que trabalham e os
que não trabalham; os idosos, os adultos, os jovens e os adolescentes; os educandos urbanos e
os rurais; os apenados; os afrodescendentes; os portadores de deficiências, um contingente de
pessoas ignoradas ou desprezadas pelo sistema regular. Essa população, estratificada em
pesquisas governamentais, compõe dados que alimentam as propostas imediatistas dos
governos cujos objetivos continuam arraigados aos princípios da catequização dos padres,
advindos durante o início da colonização do país, e da formação para o mercado profissional,
atendendo aos anseios do capitalismo.
Para acolher essa diversidade de público, a EJA deve reconhecer que seus sujeitos são
históricos, têm conhecimentos apreendidos a partir das vivências, e estas influenciam suas
atitudes, linguagens, seus códigos e valores. E toda essa bagagem do educando deve ser
valorizada pela escola, pelos currículos tão presos a princípios tradicionalistas (ANDRADE,
2004).
Embora engessados pelas políticas de investimento, os CEJA, através do atendimento
individualizado, buscam atender o aluno, respeitando suas peculiaridades. Esse estudante já
trilhou um caminho de fracasso na escola regular, seja este mais jovem ou mais velho;
participou de um espaço de educação antipatizado, idealizado não para eles, mas para o
enquadramento em padrões sociais nos quais nem todos estão dispostos a fazer parte.
Encontramos em Bordieu (1999, p. 483) a afirmação que resume nosso pensamento. Para o
autor, “a instituição escolar é uma fonte de decepção coletiva: uma espécie de terra prometida,
sempre igual no horizonte, que recua à medida que nos aproximamos dela”. O aluno teve o
acesso à escola, no entanto não se enquadrou no esquema previamente preparado para a massa
de pobres, em virtude disso é responsabilizado por não enxergar os horizontes que o ensino
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lhe proporcionaria.
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O CEJA tornou-se um espaço aberto às demandas de escolarização e qualificação do
jovem e do adulto, possibilitando a integração no mercado de trabalho, se este for o horizonte
do educando, e nas mais diferentes dimensões da vida social.

4 O material didático: o que temos pra hoje – o real

A passos lentos a legislação promoveu significativas mudanças para EJA como um


todo, embora muito esteja mais no discurso que nas práticas. A inclusão da EJA como uma
modalidade da Educação Básica, as formas de oferta, não estamos falando da qualidade, o
reconhecimento das identidades dos sujeitos, não estamos falando de reconhecimento na
prática, e o Programa Nacional do Livro Didático para a EJA (PNLD EJA) representam
mudanças nas políticas públicas para a modalidade.
A Resolução nº 18, de 24 de abril de 2007 criou o Programa Nacional do Livro
Didático para a Alfabetização de Jovens e Adultos (PNLA). O programa, no entanto, visava
atender aos alunos do Programa Brasil Alfabetizado (PBA). Deixando de atender aos
educandos de outros segmentos da modalidade. Em 2009, A Resolução nº 51, de 16 de
setembro de 2009 inclui o PNLA no Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação
(FNDE), criando o PNLD EJA. O objetivo da resolução era prover as escolas de Ensino
Fundamental e Ensino Médio com obras e coleções de qualidade, na modalidade EJA
(BRASIL, 2009). Em 2013, a 51/09 foi revogada, entrando em vigor a nº 22/2013.
Para os CEJA, isso trouxe a possibilidade de escolha de um material que contemplasse
as reais especificidades dos alunos, desveladamente ignorada nas propostas anteriores.
Com base ainda no PNLD EJA 2011, a SEDUC, então, convoca no ano de 2012, um
grupo de representantes dos CEJA para apresentar o Livro Didático (LD). O que parecia um
momento de novos horizontes em relação ao material didático a ser usado junto ao público e à
modalidade praticada nos Centros, tornou-se um momento de embate entre secretaria e
professores. Dois motivos levantaram o descontentamento dos docentes. O primeiro é que na
verdade a secretaria colocava a obra como a única possibilidade. O segundo diz respeito ao
material em si, cuja primeira inadequação apontada é ignorar o caráter semipresencial de
atendimento dos CEJA, além da escassez de conteúdos em algumas disciplinas. Prontamente
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a proposta foi recusada pelos professores.


Diante da recusa dos professores, a SEDUC deu prazo para que os Centros
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renovassem seus bancos de provas e atividades a partir dos livros didáticos adquiridos e para

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que retirassem todos os antigos módulos. Ante a imposição, os professores tiveram que
utilizar as coleções Tempo de Aprender, para o Ensino Fundamental II, e Viver, Aprender,
para o Ensino Médio; mas complementaram com a elaboração de outros materiais
suplementares para dar suporte ao aluno.
A imposição de um material didático é uma sequela das políticas públicas voltadas
para a EJA no país. Ao longo de sua trajetória, embora garantida por lei há décadas, a
modalidade foi praticada ignorando as reais necessidades dos seus sujeitos e a dívida social
para com estes.

Considerações finais

Reconhecemos as progressivas conquistas para a EJA no Brasil, como a inserção na


modalidade da educação básica, o reconhecimento da pluralidade dos sujeitos, a criação do
PNLD EJA, e que tais conquistas advêm de políticas públicas cujas premissas apresentam-se
positivas para a Educação de Jovens e Adultos, entretanto, na prática, consolidam-se ainda de
forma precária. O trajeto histórico das políticas apresentadas neste trabalho aponta para a
identificação de uma parcela da população que teve negado o direito à educação, e que esta,
quando lhe foi ofertada, atendia aos interesses da sociedade e da economia do país, negando
ao cidadão o direito à participação social.
Portanto, espera-se as que a Educação para todos saia do campo das falácias dos
governantes, configurando-se como práticas que garantam a emancipação do cidadão. Espera-
se ainda que os reflexos negativos das políticas públicas para a EJA sejam extintos,
possibilitando novos olhares para os sujeitos desta modalidade e para as instituições que a
praticam.
No Ceará, os CEJA construíram uma identidade própria, buscando conviver, de um
lado com alunos carentes não só de educação sistematizada, mas de reconhecimento de sua
pluralidade, de seu lugar no mundo, de suas reais necessidades; de outro, com o constante
descrédito do governo estadual, que por falta de conhecimento e estudos sobre as
especificidades dos Centros e dos sujeitos que destes se utilizam, insiste em cobrar resultados
numéricos de certificação iguais aos das escolas regulares, e com as falhas históricas na
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aplicação das políticas públicas para a Educação de Jovens e Adultos no país e no estado.
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Referências

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HADDAD, Sérgio; DI PIERRO, Maria Clara. Escolarização de jovens e adultos. Revista


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http://www.scielo.br/pdf/ rbedu/n14/n14a07. Acesso em: 17 jan. 2017.

HADDAD, Sérgio; DI PIERRO, Maria Clara; FREITAS, Maria Virgínia de. Perfil do
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JOIA, Orlando et al. Proposta curriculares de Suplência II (2º segmento do ensino


fundamental supletivo): Relatório de pesquisa. São Paulo: Ação Educativa, 1999. 591
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GT4 – DISCURSOS E PRÁTICAS NO CAMPO DA EDUCAÇÃO

FORMAÇÃO COM UM RIGOR OUTRO EXPERIÊNCIAS DA DISCIPLINA DO


MESTRADO EM EDUCAÇÃO

Érica Renata Clemente Rodrigues (UERN)


Francisca Elza Torres Fernandes (UERN)
Joaquim Gonçalves Barbosa (UERN)

Introdução

O Programa de Pós-Graduação em Educação – POSEDUC é um programa que


possibilita aos alunos egressos da licenciatura em Pedagogia, dos cursos normais superiores e
de formação de professores, bem como de áreas afins, a preparação para ingresso no
mestrado.
O curso de Mestrado em Educação torna possível também, o processo seletivo
simplificado de algumas disciplinas para candidatos a alunos em caráter especial, através de
lançamentos de editais. Muitos alunos veem no processo para candidatos a alunos em caráter
especial, uma abertura de aproximar-se das discussões referentes à disciplina escolhida, e,
nessa ocasião, a oportunidade de alimentar o interesse nas reflexões com os autores discutidos
nas aulas, e, logo mais, seguirem à linha que almejam, e assim, adentrarem no programa de
pós-graduação como aluno regular. Além dessa forma de acesso em determinadas disciplinas
como aluno especial, há também a participação de alunos ouvintes que são convidados pelos
ministradores das disciplinas, como também, o comparecimento de alunos já ingressos no
mestrado, que se matriculam por indicação do professor/orientador.
A disciplina, na qual relatamos neste trabalho, Tópicos Especiais em Práticas
Educativas I: Pesquisa-Formação, Ciberautorcidadão e Abordagem Multirreferencial, do
Programa de Pós-Graduação em Educação – POSEDUC, da Faculdade de Educação - FE da
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN, mediada pelo Professor Dr.
Joaquim Gonçalves Barbosa e pela Professora Dra. Mayra Rodrigues Fernandes Ribeiro,
apresentava como apontamento refletir sobre a pesquisa como ambiente de produção de
conhecimento e de produção de si, no sentido de apropriar-se tanto do externo, quanto do que
era mais interno ao sujeito enquanto observador do objeto e de si.
592

A disciplina citada tinha como base a epistemologia multirreferencial, onde a


bricolagem conceitual e metodológica e o diário de pesquisa se apresentavam como
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ampliadores importantes e fundamentais de formação do autorcidadão, considerando em seu

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objetivo, a percepção das contribuições da multirreferencialidade para refletir a educação na
cibercultura e realizar pesquisa com metodologias e procedimentos múltiplos com outro rigor.
Assim sendo, as reflexões apresentadas pelas alunas desvelaram-se diante das leituras dos
textos, dos diálogos interativos no decorrer das aulas entre os colegas e ministradores da
disciplina, na construção dos diários individuais, como também, da produção coletiva de
narrativas pelo grupo referente à disciplina via Facebook, conforme proposto na ementa da
disciplina em questão. Nesse entrosamento, as discussões de modo contínuo colaboraram para
ampliação de sentidos, do olhar plural, do olhar para si, de autorizar-se e dizer de si, o que
sugere a ideia de sair do enquadramento e caminhar com outro rigor de fazer pesquisa, ou
seja, da abordagem multirreferencial e seus processos múltiplos.
Este artigo tem como finalidade principal expressar os sentidos das aulas acerca da
formação acadêmica e humana/pessoal, uma vez, não dá para separar a formação das nossas
vidas. A epistemologia da multirreferencialidade atua nessa consonância: de estarmos em
constante diálogo com nós mesmos à medida que nos formamos. E em todo o percurso vivido
na disciplina, ainda que em diminuto tempo, compreendemos que os exercícios formativos no
âmbito da academia não se desvincularam das nossas vidas.
Trata-se de uma reflexão de cunho qualitativo, que tem como subsídios o relato das
experiências vivenciadas no decurso das aulas, nos diários individuais e coletivos.
Amparamo-nos também, da pesquisa bibliográfica de alguns autores discutidos no andamento
da tessitura da disciplina, e que tem relação com a sua temática, como: Ardoino in Barbosa
(1998), Barbosa (2010), Kincheloe (2007).
O trabalho está estruturado na seguinte sequência: No primeiro momento, abordamos a
relevância de perceber a necessidade de outro fazer nas pesquisas, que permite outro rigor e
procura rever para além da pesquisa cartesiana, que em geral é seguida pelo instituído já
consolidado. Em seguida, expressamos a relevância vivida em compreender as contribuições
da abordagem multirreferencial para refletir nas aulas e no humano/pessoal, considerando os
olhares plurais, permitindo perceber-se através do outro, como também, com as
ressignificações de ações, estas advindas de inquietações e indagações. E como fechamento,
expomos as últimas considerações acerca da temática abordada.
Consideramos este estudo pertinente, pois as discussões acerca da
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multirreferencialidade possibilitaram-nos um jeito/outro de fazer pesquisa, numa


configuração autorizante de si, de nos ver no outro, e mais, respeitando as diferenças e nos
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direcionando uma leitura plural e não fechada e/ou acabada, e sim, de ressignificações

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contínuas. Toda essa compreensão nos faz perceber a relevância de atuarmos como sujeitos
conscientes e críticos sobre quem está a nossa volta, sobre quem somos, e, sobretudo, a
complexidade de se autorizar a ser/fazer, o que consequentemente reflete na nossa formação
profissional e humano/pessoal.

1 Um jeito outro de fazer pesquisa referenciada na experiência: narrativas que


evidenciam os sentidos da abordagem multirreferencial

Aos iniciarmos essa conversa nos questionamos: o que é esse outro jeito de fazer
pesquisa? Por que utilizá-lo? O que é uma abordagem multirreferencial? O que é bricolagem?
Não temos a intenção de responder de modo aprofundado tais questões nesse artigo. No
entanto, estas são perguntas que nos acompanham em nosso processo formativo; e nesse
espaço, traremos brevemente noções, a partir dessas inquietações, que nos ajudaram a
embasar esse texto.
Nesse sentido, em busca de uma redefinição de rigor e complexidade em pesquisa, Joe
L. Kincheloe (2007, p. 16) discute o poder que a bricolagem tem de ampliar métodos de
pesquisa e construir uma nova modalidade mais rigorosa de conhecimento sobre educação.
Quanto ao tratamento das narrativas de pesquisa,

[...] a bricolagem destaca o relacionamento entre as formas de ver de um


pesquisador e o lugar social de sua história pessoal. Considerando a pesquisa
como um ato movido a poder, o pesquisador, enquanto bricoleur, abandona a
busca de algum conceito ingênuo de realismo, concentrando-se, em lugar
disso, na elucidação de sua posição na teia de realidade e nos lugares sociais
de outros pesquisadores e nas formas como moldam a produção e a
interpretação do conhecimento.

Segundo o autor, nesse contexto, os bricoleurs avançam para o domínio da


complexidade. A bricolagem existe a partir do respeito pela complexidade do mundo real.
Opõe-se ao conhecimento reducionista dos métodos impostos de fora para dentro, evitando
formas monológicas de conhecimento, buscando a complexidade. Luta para encontrar e
desenvolver diversas estratégias visando superar a dimensionalidade única. De acordo com
Kincheloe (2007) no contexto monológico as descrições densas da pesquisa são perdidas para
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as forças da ordem e da certeza. Desta feita, o conhecimento monológico é presunçoso, pois


tem a pretensão de se perpetuar como verdade absoluta e completa.
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Na busca da complexidade e evitando o conhecimento monológico na bricolagem, discutimos
outras desvantagens de pesquisas que caminham em uma perspectiva unilateral. Segundo
Kincheloe (2007) a perspectiva unilateral apresenta uma falha básica: não é capaz de explicar
a relação complexa entre realidade material e perspectiva humana. Ela reduz nossa capacidade
de entender o mundo a nossa volta. Prejudica aos que têm menos poder para pronunciar o que
é “verdade”.
Como já destacamos a bricolagem se preocupa com o relacionamento dialético entre
conhecimento e realidade. Os Pressupostos epistemológico e ontológico são centrais na
bricolagem. E os bricoleurs propõem visões consistentes (em seus tratamentos da realidade) e
das contradições não resolvidas que caracterizam essas interações. Ou seja, problematizam as
contradições que são partes da pesquisa, não as descartam como se não tivessem sentido.
A complexidade demanda um outro rigor, o rigor da bricolagem. A complexidade vislumbra
formas de pesquisa que transcendam o reducionismo. Nesse sentido, o mundo é complexo
demais para ser revelado como uma realidade objetiva. O conceito de bricolagem, segundo
Levi Strauss (apud Kincheloe, 2007), originou-se em uma visão da complexidade e da
imprevisisibilidade do domínio cultural. A complexidade está contida em ideias de:
a) Ordens de realidade explícitas e implícitas b) O questionamento do universalismo c)
Polissemia d) O processo vivo no qual se situam as entidades culturais – Pode ser
fundamental entender o mundo sociocultural do que entidades isoladas; o conhecimento tem
passado e futuro. e) A ontologia das relações e conexões – O relacionamento entre eu e
cultura. “A cultura não é simplesmente o contexto no qual o eu opera, mas está “no eu” ” f)
Contextos cruzados – O conhecimento nunca pode se manter só ou bastar-se em si e a si g) A
existência e a utilidade dos circuitos de realimentação h) Epistemologias múltiplas – Os
bricoleurs buscam epistemologias múltiplas (distintas) para suas ideias singulares e modos
sofisticados de produzir sentido. i) Intertextualidade – Noção de que todas as narrativas obtêm
sentido; Necessidade de situar a descrição da pesquisa em relação a outras pesquisas.
É importante destacar que a bricolagem não entra nessa situação paradigmática como um
cavalheiro montado em um cavalo branco, pronto para “salvar” o campo, é interessante não
romantizar a bricolagem. A bricolagem, nesse contexto, serve para promover entendimento e
comunicação, e criar estruturas que possibilitem um todo mais bem informado e rigoroso de
595

produção de conhecimento. Segundo Kincheloe (2007), sobre a bricolagem também é


importante entender sua construção e suas limitações. Os bricoleurs entendem que a certeza e
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a interpretação acabada simplesmente não são possíveis devido a tais complicações. Nenhum

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ato de pesquisa ou tarefa interpretativa começa em território virgem. Nesse contexto
complexo, fica ainda mais óbvio que aprender a bricolagem é um processo para a vida toda.
Nesse processo de aprendizagem itinerante, para escrever essa parte do texto apoiamo-
nos ainda nas anotações dos diários de pesquisa das aulas, em alguns diálogos tecidos,
realizados nas aulas que tomamos nota, e em postagens na rede social facebook.
Assim que a discussão sobre multirreferencialidade começou nas aulas tivemos a
impressão de entrar em uma conversa que já estava caminhando. Depois entendemos que
interagiam naquele espaço plural pesquisadores com diferentes tipos de experiência com a
abordagem multirreferencial. Havia aqueles que, como nós, ainda não sabiam bem do que se
tratava a multirreferencialidade; alguns já estavam construindo pesquisa com esse aporte e
havia os mais experientes que mediaram às conversas durante toda a disciplina, e nos
ajudaram a entender, aos poucos, a intenção e os aspectos positivos de trabalhar com a
abordagem multirreferencial.
Desta feita, uma parte da turma já estava habituada com “os termos” da abordagem
multirreferencial. Inicialmente, tivemos muita dificuldade em perceber noções e
características dessa abordagem. Principalmente, porque nos acostumamos em conceituar,
definir e caracterizar os objetos para poder mensurá-los e entendê-los, tencionando enquadrar
e explicar os fenômenos a partir de um conceito único e fechado. Essa tendência é uma
herança de nossa formação marcada pela abordagem cartesiana que divide o conhecimento
em disciplinas isoladas e separa a escola da própria vida, muitas vezes entendendo que a
escola é uma preparação para a vida (posteriori) e não a própria vida.
As dificuldades iniciais para entender a multirreferencialidade foram sendo vencidas a
partir da dinâmica adotada pelos professores da disciplina. A contextualização, aula a aula,
realizada por eles nos ajudou a pensar sobre o olhar e o ouvir (escuta sensível) na sala de aula
e na vida como um todo, por exemplo. Além disso, a proposta de fazer o diário da disciplina
registrando o que ficou em nós de cada aula nos ajudou a compreender melhor o “conteúdo”,
bem como produzir esse texto.
Um registro na página da disciplina na rede social facebook aponta uma outra forma
de fazer a “chamada” da aula, e por meio dessa publicação traz a reflexão de uma aluna sobre
seu sentimento em relação a aula,
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Figura 1: Print do grupo fechado Pesquisa-Formação, Multirreferencialidade e a formação do ciberautorcidadão
Fonte: Página de grupo fechado na rede social facebook

O comentário da aluna na imagem acima aponta que a “aula” nos faz olhar para nossa
formação enquanto pesquisadores, mas nos leva principalmente a olhar para nós mesmos
como humanos que estão em busca de autoria da própria vida.
Outro registro, de um dos nossos diários (diário da Érica), exemplifica os momentos
de aprendizagem que vivenciamos, apontando uma insegurança pessoal em se autorizar a
escrever sobre uma abordagem que ainda é nova para nós. Esse registro apresenta também o
momento em que uma das autoras do texto começou a se identificar com a teoria.

Nesse encontro fiz muitas anotações; o que facilitou o registro das


discussões empreendidas na aula. Ainda tenho dificuldade de me autorizar a
falar sobre a abordagem multirreferencial, e essas anotações me ajudam a
escrever com menos angústia e um pouco mais de segurança. Entendi a
multirreferencialidade como uma proposta singular que “vai sendo
significativa no que nos faz sentido”. (Diário de pesquisa da Érica
Rodrigues, 20/03/2017).
597

Nesse encontro discutimos que a interação com o outro é a alma da


multirreferencialidade. É através do outro, da diferença que construímos aprendizagem. Nesse
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processo de aprendizagem nós sofremos com a heterogeneidade porque há certa obrigação

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social de sermos iguais. Há um ideal vigente de sociedade homogênea, ou seja, que
precisamos ser todos iguais e pensar do mesmo modo. No entanto, é com o diferente que
aprendemos; olhando o outro que nos vemos melhor.
Discutimos também que a abordagem multirreferencial se baseia em uma espécie de
tripé: sujeito observador/ sujeito observado/ contexto. A multirreferencialidade assume a
complexidade, conforme abordam Ardoino in Barbosa (1998, p. 25):

Assumindo plenamente a hipótese da complexidade, até mesmo da


hipercomplexidade, da realidade a respeito da qual questionamos, a
abordagem multirreferencial propõe-se a uma leitura plural de seus objetos
(práticos ou teóricos), sob diferentes pontos de vista, que implicam tanto
visões específicas quanto linguagens apropriadas às descrições exigidas, em
função de sistemas de referências distintas, considerados, reconhecidos
explicitamente como não-redutíveis uns aos outros, ou seja, heterogêneos.

Nesse contexto, discutimos que a multirreferencialidade é uma postura, uma


aprendizagem para a vida toda, em devir. Um dos professores da disciplina contou uma
experiência pessoal, com a multirreferencialidade e o porquê da psicanálise estar tão presente
em seus textos e itinerância. O professor nos contou que sentiu a necessidade de se
reinterpretar; mudar seu modo de ser e agir; seus preconceitos; deixar de ter a cabeça da
“roça”, no sentido de superar a visão machista na qual fora criado para se autorizar a ser autor
de si, sentir-se e formar-se no nível de doutor. Assim, entendemos que não nos tornamos
multirreferenciais se não nos autorizamos a nos ver. Nesse processo, precisamos do outro para
nos ver.
Discutimos também a angústia como método, ou seja, não é interessante jogar fora as
angústias que vivenciamos no processo formativo. É dessa angústia que nasce a interpretação,
a construção e as “ausências” no texto. A aprendizagem é um processo angustiante e
inquietante. Nesse sentido, autorizar-se também é angustiante e um processo contínuo.
Barbosa (2010, p. 47) apresenta em seu livro “O diário de pesquisa o estudante universitário e
seu que processo formativo” que:

[...] O autor cidadão não é proposto como alguém pronto e acabado e, muito
menos, como um lugar de chegada, como se, ao concluir um curso
598

universitário, estivéssemos prontos e formados. Trata-se, sim, de um


processo contínuo, de um movimento sem fim, ao mesmo tempo individual e
social, que estabelecemos para nos exercitarmos na árdua tarefa de busca de
Página

sentido para nossos atos e tarefas, sejam elas escolares ou não.

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Para ser um autor cidadão é preciso, portanto, estar atento à tríade agente-ator-autor,
evitando a alienação em um desses pontos, mas entendendo que somos seres complexos e
exercemos papeis diferentes em diferentes espaços/tempos.
Em suma, de acordo com Ardoino in Barbosa (1998, p. 37), a abordagem
multirreferencial vai, portanto, se preocupar em tornar mais legíveis, a partir de uma certa
qualidade de leitura (plurais), “tais fenômenos complexos (processos, situações, práticas
sociais etc.) ”. Essas óticas (psicológica, etnológica, histórica, psicossocial, sociológica,
econômica etc.) “tentarão olhar esse objeto sob ângulos não diferentes (o que é “diferente”
pode permanecer encerrado em sua própria natureza, como a multidimensionalidade, a
multicriterialidade etc.), mas sobretudo outros (que implicam, portanto, alteridade e
heterogeneidade)”. Dito de outra forma assumindo, a cada vez, rupturas epistemológicas.

2 Tessituras Formativas: contribuições da abordagem multirreferencial para formação


humana do sujeito

As leituras dos textos, os relatos dos colegas e dos ministradores da disciplina a que
fazemos menção nesse trabalho, contribuíram de maneira reflexiva despertando-nos para um
entendimento plural acerca do que fazemos e como fazemos, percebendo, sobretudo, as
contribuições da abordagem multirreferencial para a nossa formação humana.
As contribuições da abordagem multirreferencial para a formação humana do sujeito,
despertaram-nos para o exercício de reflexão, de nos perceber como sujeitos em formação e
em transformação em nossas vivências formativas, através das interações, dos
questionamentos, do que atribuirmos sentido e de compreendemos também a necessidade de
ressignificar as nossas ações, seja na academia, como alunos ou professores, seja como seres
atuantes na sociedade.
Esse entendimento nos faz entender que certamente antes mesmo das discussões
acerca da multirreferencialidade, ao meditarmos acerca das nossas vivências acadêmicas, em
uma situação e outra estávamos aproximando-se da referida abordagem. Conforme discutido
em nossas aulas, “as memórias/narrativas são dispositivos da multirreferencialidade”, e estas,
por sua vez, cheias de sentidos. Isso nos faz lembrar das muitas situações ocorridas dentro da
599

academia e que refletiram em nós, para além do que o instituído atribuía, e assim, nos
tocavam como atuantes na sociedade. Como exemplos podemos citar os estágios,
Página

componentes curriculares do curso Licenciatura em Pedagogia, que nos dá a oportunidade dos

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primeiros passos na docência.
Citamos o exemplo dos estágios, primeiro por ser algo já vivido pelas escritoras desse
trabalho e que foi tocado tanto profissionalmente, por ser um dos primeiros passos
relacionados à docência e por ter sido um espaço marcado por pessoas, sobretudo, pelos
alunos em função do contexto social deles, que nos tocavam, nos faziam pensar neles como
seres atuantes na sociedade.
Muitas dessas vivências eram transcritas em diários de bordo ou portfólios, como
também, apresentados em rodas de conversas, ocasião em que eram reveladas as inquietações,
as angústias ao olharmos nossa atuação, e ao olharmos os outros indivíduos envolvidos, e que
na oportunidade levantávamos questões problemas para logo depois escrevermos acerca do
vivido/sentido, e numa reflexão, igualmente, ressignificando em nossas ações e nos
percebendo próximas da abordagem multirreferencial.
As discussões relacionadas à disciplina continuamente despertaram vigor em nossa
autoria. As compreensões de alteridade e de negatridade, respectivamente ligadas à ideia do
outro e a atuação diferente do que outro espera de nós, colaboraram para ampliação de
sentidos para autorizarmos, do dizer de si, ante os âmbitos das nossas vidas, uma vez que as
aulas tocaram, sobretudo, na condição pessoal/humana. Percebemos assim, o quanto as aulas
mexeram e suscitaram reflexões.
Dessa forma, os registros de narrativas nos diários, nesse trabalho, são decorrências do
exercício da nossa autoria, do dizer das nossas compreensões, das inquietações de momentos
vividos, e, sobretudo, dos sentidos que atribuímos a determinadas passagens. Outro registro,
de um dos nossos diários (diário da Elza), apresenta meditações a respeito do que
vivenciamos.

“A aula tem que mexer com você.” Essa foi uma frase citada pelo professor
e que me tocou muito. Quem lê parece simples, mas para mim é possuidora
de muitos sentidos. Fez-me rememorar das muitas aulas assistidas na
academia e que saí completamente vazia... Que com o mesmo mecanismo do
professor que viera dar a aula como requisito de cumprir horas, igualmente
estava eu do outro lado, tão somente no intuito de evitar uma falta no diário.
A frase em destaque dita em momento adequado e imbuído de entusiasmo
das palavras dos meus colegas fez-me perceber que a educação é a
desalienação de si, não importa as redes que se usam. Para uma aula ser
600

educativa tem que se fazer pensar na vida, porque não é o lugar que faz uma
educação melhor, e sim, as relações. Devemos refletir sobre nós enquanto
realizamos a tarefa de professor ou aluno. (DP da Elza Fernandes,
Página

20/03/2017).

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A aluna apresenta uma reflexão em seu diário que a tocou e que lhe trouxe
rememorações passadas em aulas assistidas na academia. Uma reflexão que a permitiu um
reolhar para si, de perceber-se diante de um momento vivido e percebendo-se no outro
também, com o propósito de ressignificar suas ponderações acerca do sentido da aula.
Barbosa (2010, p. 20) diz que:

[...] o diário de pesquisa permite nos apropriarmos do conhecimento já


produzido pela humanidade para nos tornarmos mais sábios e autores de nós
mesmos numa relação educativa que nos impõe, o tempo todo, interpretação
e solução desenvolvidas pelo outro.

Relatar essas vivências resulta escrever sobre a prática e faz pensar, refletir sobre cada
avanço que foi ou será tomado, permitindo aprimorar os exercícios diários e adequá-los com
frequência as nossas próprias necessidades ao aprendizado e aprofundamento gradual, como o
reconhecimento das características de quem somos, como somos e como podemos mudar
certas atitudes nesse repensar e reolhar sobre nós.
Passamos a compreender que o indivíduo não se torna multirreferencial não se
autorizando a se ver. E no andamento das nossas vidas, no nosso caminhar, as reflexões
fizeram-nos perceber o quanto necessitamos do outro para nos conhecer, o quanto carecemos
do outro para nos vermos, uma vez, que a necessidade de transformação, de ressignificação
nas muitas passagens das nossas vidas, pode estar refletida naquilo que não há ou que tem no
outro.

Considerações finais

Nossa itinerância formativa, como alunas na disciplina Tópicos Especiais em Práticas


Educativas I: Pesquisa-Formação, Ciberautorcidadão e Abordagem Multirreferencial,
contribuiu de maneira reflexiva acerca da necessidade de outro fazer nas pesquisas, que
permite outro rigor e procura rever para além da pesquisa cartesiana, consolidada no contexto
cultura/social do século XX.
Acreditamos que as reflexões na elaboração do diário referente às aulas ministradas
601

representaram bem mais que um roteiro de aula ou enumeração de aulas desenvolvidas com a
turma, uma vez, que as discussões registradas colaboraram para ampliação de sentidos, do
Página

olhar plural, do olhar para si, de autorizar-se a falar das nossas impressões, o que sugere a

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ideia de sair do enquadramento e caminhar com outro rigor de fazer pesquisa, ou seja, da
abordagem multirreferencial e seus processos múltiplos.
As contribuições direcionadas a temática nos fizeram rememorar itinerâncias, tanto
acerca da nossa formação acadêmica, como também, como sujeitos, atuantes na sociedade.
Sabemos que cada um foi tocado de forma diferente, no entanto, com a compreensão de que
os significados e as ressignificações acerca dos nossos saberes e dos nossos fazeres
cooperaram para o entendimento contínuo da nossa formação em muitos âmbitos das nossas
vidas.

Referências

ARDOINO, Jaques. Abordagem multirreferencial (plural) das situações educativas e


formativas. In: BARBOSA, J (org.). Multirreferencialidade nas ciências e na educação.
São Carlos: EDUFScar, 1998.

BARBOSA, Joaquim Gonçalves; HESS, Remi. O diário de pesquisa: o estudante


universitário e seu processo formativo. Brasília: Liberlivro, 2010.

KINCHELOE, Joe L; BERRY, Kathleen S. Pesquisa em educação: conceituando a


bricolagem. Porto Alegre: Artemed, 2001.

602
Página

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GT4 – DISCURSOS E PRÁTICAS NO CAMPO DA EDUCAÇÃO

LETRAMENTO, CINEMA, REALIDADE

Georgiana Maria Ferreira da Costa (UERN)82


Marlúcia Barros Lopes Cabral (UERN)83

Considerações Iniciais

As discussões acerca da qualidade do ensino no Brasil não são recentes e muito


menos raras, principalmente quando nos referimos aos atos de ler e escrever. Há inúmeras
críticas a essa qualidade e a defesa de que ela precisa ser melhorada em todos os níveis de
ensino, sobretudo os iniciais. Questões relacionadas à evasão escolar e à repetência estão
fortemente vinculadas à dificuldade que a escola tem de ensinar a ler e a escrever
corretamente.
A respeito desses avanços no ensino brasileiro, parece ser consenso que há uma
necessidade premente de se reavaliar a qualidade da educação, fato este que passa
necessariamente pela qualificação do ensino da alfabetização de nossas crianças (DIAS,
2007).
Para Soares (2004), ao lançarmos um olhar sobre a história da alfabetização escolar
no Brasil, identificaremos que a nossa trajetória é permeada por sucessivas mudanças teóricas
e, por conseguinte, metodológicas. Essas mudanças, por sua vez, precisam ser colocadas em
prática pelas diversas unidades de ensino espalhadas nos cantos e recantos do país.
Considerando o exposto, destacamos que o termo letramento recentemente foi
introduzido nos discursos educacionais, tendo relação direta com a necessidade de expressar a
insuficiência de se ler e escrever, haja vista no contexto atual ser imprescindível que os alunos
saibam fazer uso dessas competências.
Há, portanto, um ambiente propício para que possam ser desenvolvidas pesquisas
que explicitem, por exemplo, contextos locais específicos, a partir da utilização de
referenciais teórico e metodológico introduzidos com o novo conceito, qual seja: letramento84.

82
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Letras - PROFLETRAS/UERN. E-mail:
603

georgianna.maria@gmail.com.
83
Doutora em Educação, professora da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte - UERN, Campus
Avançado Prefeito Walter de Sá Leitão- CAWSL/Assú, e membro do Grupo de Pesquisa PRADILE.
84
Atualmente, a definição mais difundida de letramento é a apresentada por Magda Soares (2004). Letramento é
Página

o resultado da ação de ensinar ou de aprender a ler e a escrever; o estado ou a condição que um grupo social ou
um indivíduo adquire como consequência de ter-se apropriado da escrita (SOARES, 2004).

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Diante dessas considerações, este artigo apresenta uma experiência vivenciada com
alunos de uma escola localizada no município de Assú, estado do Rio Grande do Norte (RN).
Nela, trabalhamos com as Oficinas de Letramento (CABRAL, 2016) voltadas para o ensino-
aprendizagem da leitura e da escrita, concebidas como práticas sociais.
E quanto à estrutura do trabalho ele está estruturado em três seções: na primeira
realizamos uma breve revisão sobre alfabetização e letramento, no qual buscamos refletir
acerca das possíveis implicações pedagógicas relacionadas à introdução desses conceitos no
contexto educacional; na segunda seção procuramos descrever os procedimentos utilizados
para a realização da pesquisa com os alunos de uma escola da zona urbana da cidade de Assú
(RN) e em seguida apresentamos um conjunto de análises e resultados, e, finalmente; na
terceira seção, reservada para as considerações finais, procuramos refletir acerca de alguns
desafios e oportunidades que emergem da introdução do conceito de Letramento nas escolas,
entendendo que ele possibilita aproximar teoria e prática, favorecendo o processo de ensino-
aprendizagem quanto às atividades de leitura e de escrita em Língua Portuguesa. Outrossim,
discorremos sobre os principais resultados da experiência com as Oficinas de Letramento.

1 Alfabetização e Letramento: considerações sobre a leitura e a escrita

O conceito de letramento no Brasil é recente. Autores como Soares (2004) apontam


que foi na década de 1980 que ele surgiu, tornando-se foco de atenção e discussão. Ao
ponderar sobre a realidade de outros países, em particular os desenvolvidos, a autora destaca
que as práticas sociais de leitura e de escrita assumem o caráter de problema de relevo, pois se
constata que a população “embora alfabetizada, não dominava as habilidades de leitura e de
escrita necessárias para uma participação efetiva e competente nas práticas sociais e
profissionais que envolvem a língua escrita” (SOARES, 2004, p. 06).
O problema destacado por Soares (2004), ao fazer referência a países desenvolvidos,
também é observado e vivenciado em países com menores graus de desenvolvimento, como o
Brasil. Mais do que constatar a existência de um problema é fundamental traçar estratégias e
diretrizes para enfrentá-lo.
Do ponto de vista teórico e metodológico, um primeiro caminho traçado foi a
604

introdução do conceito de letramento no ensino escolar, o que permitiu observar o referido


problema a partir do novo enfoque. Todavia, destacamos que a introdução desse conceito não
Página

significou, necessariamente, a supressão ou a exclusão de outro, qual seja: alfabetização. Isto

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porque apesar de haver distinção conceitual entre letramento e alfabetização estes não podem
ser dissociados durante o processo de ensino.

Dissociar alfabetização e letramento é um equívoco porque, no quadro das


atuais concepções psicológicas, linguísticas e psicolingüísticas de leitura e
escrita, a entrada da criança (e também do adulto analfabeto) no mundo da
escrita ocorre simultaneamente por esses dois processos: pela aquisição do
sistema convencional de escrita – a alfabetização – e pelo desenvolvimento
de habilidades de uso desse sistema em atividades de leitura e escrita, nas
práticas sociais que envolvem a língua escrita – o letramento. Não são
processos independentes, mas interdependentes, e indissociáveis: a
alfabetização desenvolve-se no contexto de e por meio de práticas sociais de
leitura e de escrita, isto é, através de atividades de letramento, e este, por sua
vez, só se pode desenvolver no contexto da e por meio da aprendizagem das
relações fonema–grafema, isto é, em dependência da alfabetização. A
concepção “tradicional” de alfabetização, traduzida nos métodos analíticos
ou sintéticos, tornava os dois processos independentes, a alfabetização – a
aquisição do sistema convencional de escrita, o aprender a ler como
decodificação e a escrever como codificação – precedendo o letramento – o
desenvolvimento de habilidades textuais de leitura e de escrita, o convívio
com tipos e gêneros variados de textos e de portadores de textos, a
compreensão das funções da escrita. Na concepção atual, a alfabetização não
precede o letramento, os dois processos são simultâneos [...] (SOARES,
2004, p. 14-15).

Na realidade, podemos entender a alfabetização como a aquisição do sistema


convencional da escrita, e o letramento o desenvolvimento das habilidades e comportamentos
que possibilitam a criação de uma atmosfera favorável ao uso competente da escrita e da
leitura em práticas sociais. A primeira somente adquire sentido quando desenvolvida no
contexto das práticas citadas e por meio delas, ou seja, em um contexto concreto de
letramento e mediante suas atividades. E a segunda só pode se desenvolver adequadamente na
dependência e por meio da aprendizagem do sistema de escrita, conferida pela alfabetização
(SOARES, 2004a).
Na visão de Kleiman (2007, p. 01), os estudos sobre letramento “têm como objeto de
conhecimento os aspectos e os impactos sociais do uso da língua escrita”. Segundo a autora, a
introdução do conceito de letramento no discurso escolar ocorreu aos poucos:

[...] contrariamente ao que a criação do novo termo pretendia: desvincular os


estudos da língua escrita dos usos escolares, a fim de marcar o caráter
605

ideológico de todo uso da língua escrita (STREET, 1984) e distinguir as


múltiplas práticas de letramento da prática de alfabetização tida como única
Página

e geral (KLEIMAN, 2007, p. 01).

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Na realidade, se queria marcar, do ponto de vista ideológico, a alfabetização como
apenas uma das práticas de Letramento existentes, possivelmente a mais relevante, haja vista
ela ser realizada de forma sistemática por instituições escolares, principais espaços de
Letramento que temos na nossa sociedade.

2 Projetos e Oficinas de Letramento

Antes de nos reportarmos aos Projetos e Oficinas de Letramento é relevante


rememorarmos que as limitações do ensino de Língua Portuguesa - uso técnico da língua -
tem se afastado da essência cotidiana de situações de interação, contrariando o
desenvolvimento de práticas pedagógicas que levam o aluno a aprimorar sua competência
comunicativa.
O ensino de Língua Portuguesa valoriza e gira em torno do mundo da escrita, mundo
que parece familiar e de fácil uso, mas por não ser compreendido por parte de quem ensina,
acerca de sua natureza, funcionamento e uso em contextos diversos, tem sido transformado
em um mundo caótico e complexo.
Na compreensão de Travaglia (2001, p. 23), ao definir os objetivos do ensino da
Língua portuguesa, ele esclarece que “[...] a competência comunicativa refere-se à capacidade
de o sujeito utilizar adequadamente a língua em diversos contextos de interação”. Ao sujeito,
fica claro que a língua tem uso acadêmico, mas o uso social é a prioridade, e
consequentemente a comunicação o sustentáculo da língua. Logo, é preciso que o ensino-
aprendizagem ultrapasse o contexto escolar e estabeleça vínculos com as situações sociais, e
ao mesmo tempo promovam uma (re) significação da aprendizagem no espaço escolar.
Kleiman (2005) incute os educadores com a questão: Não basta ensinar a ler e a
escrever? Essa indagação é respondida por Soares (2012), ao ressaltar que apenas aprender a
ler e a escrever não é o bastante. Isso nos faz refletir sobre a urgência por novas práticas que
favoreçam as atividades de leitura e escrita em contextos sociais.
Por causa disso é relevante aliar as práticas pedagógicas à formação teórica do
professor na busca por mudanças, já que a concepção de linguagem usada pelos professores
em suas aulas influencia no processo de ensino-aprendizagem e em seu resultado.
606

Diante disso é essencial repensarmos a prática para extinguirmos os paradigmas


ineficazes e descontextualizados de nossas metodologias de ensino. É relevante nos
Página

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apropriarmos de atividades e metodologias práticas de linguagem, proporcionando um ensino
produtivo e instigante às necessidades de nossos alunos.
Rojo (2009, p.98) defende que “Um dos objetivos principais da escola é possibilitar
que os alunos participem das várias práticas sociais que se utilizam da leitura e da escrita na
vida, de maneira ética, crítica e democrática”.
De acordo com Cabral (2011), o ensino e a aprendizagem da linguagem vão além de
práticas descontextualizadas baseadas na gramática, nas tipologias textuais, na coesão e na
coerência, práticas comuns no ensino tradicional. Precisamos rever o ensino de Língua
Portuguesa e eliminar a prática e a perspectiva tradicionais de ensino em que a importância da
gramática normativa e suas nomenclaturas são mais pertinentes que a construção da
autonomia na produção dos alunos.
Como professora de Língua Portuguesa, a inquietude com as adversidades e
dificuldades encontradas no desenvolvimento das aulas produtivas para atingir aos objetivos
profissionais e da área de linguagem foi uma constante. Dúvidas, questionamentos,
construções e desconstruções surgem no decorrer do planejamento. No entanto, na maioria
das vezes não conseguimos encontrar respostas coerentes, convincentes e motivadoras para
superarmos os obstáculos encontrados.
Diante dessas inquietudes, os Projetos de Letramentos (KLEIMAN 2000, 2005)
surgem como ferramentas que favorecem práticas contextualizadas, uma vez que relacionam a
leitura e a escrita aos interesses e necessidades dos alunos, ou seja, vincula as aulas de Língua
Portuguesa às práticas sociais, permitindo a (re)construção e a (re)contextualização do que
está sendo ensinado/aprendido.
A implementação de Projetos de Letramento surgiu com as Oficinas de Letramento,
conceituadas por Cabral (2016, p.514) como:

Proposta de sistematização de atividades de ensino-aprendizagem da


leitura e da escrita, concebidas como práticas sociais, centradas nos usos
reais e contextualizados da linguagem, materializadas em quatro passos, a
saber: diagnóstico dos conhecimentos prévios, interesses e necessidades
formativas do aprendiz; sistematização das atividades motivadoras;
sistematização da (re) construção dos novos conhecimentos e avaliação do
processo.
607

Nas Oficinas de Letramento vimos a possibilidade de encontrar respostas coerentes,


Página

convincentes e motivadoras para superarmos os percalços encontrados nas aulas. A partir das

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necessidades formativas e de interesse dos alunos percebemos que as atividades diversificadas
os levaram à (re) construção do conhecimento de forma autônoma e interferiram,
principalmente, nas práticas sociais de cada um.

3. Análises e Resultados

Objetivando realizar a atividade de Oficina de Letramento como aporte para intervir


eficazmente nas atividades de leitura e de escrita nas aulas de Língua Portuguesa proposta
pela disciplina Alfabetização e Letramento, ministrada pela professora Dra. Marlúcia Barros
Lopes Cabral, tivemos uma conversa inicial com uma turma do Ensino Fundamental (anos
finais) de uma escola localizada na zona urbana da cidade de Assú (RN).
Explicamos a nova proposta de trabalho e solicitamos a participação da turma para
que assumíssemos mutuamente os desafios a partir daquele momento. Que seria necessária a
colaboração de cada um para que tornássemos possível a compreensão da importância de
desenvolvermos tamanha tarefa, a qual prontificou-se com entusiasmo.
O primeiro passo para sistematizar as Oficinas de Letramento foi diagnosticar os
conhecimentos prévios, interesses e necessidades formativas. Sugerimos que os alunos
escolhessem temas para a discussão em sala de aula e que logo após faríamos uma votação
para definirmos a temática escolhida pela maioria. Nesse momento, foram sugeridos diversos
temas, entre eles esporte, cinema, música, gravidez na adolescência, corrupção, bullying,
redes sociais, política, ou seja, temas atuais e presentes na vida de cada um.
As hipóteses colocadas no quadro facilitaram o processo de votação. E a temática
escolhida foi cinema, justificada pelo fato de que gostariam de amenizar o clima denso em
que estamos vivendo (crises política, econômica e social do país). Adiante, perceberemos que
a escolha do tema levou o grupo a refletir intensamente sobre a falta de políticas adequadas
para que o povo tenha melhores condições dignas de vida.
No que diz respeito ao andamento das atividades e o checklist das ações, a turma
escolheu, também, um redator para acompanhar detalhadamente as atividades ocorrentes em
sala de aula.
Dado os primeiros passos surge uma questão: O que queríamos realmente
608

saber/conhecer sobre cinema? As respostas emergem como norteadoras para darmos


continuidade ao formato das Oficinas de Letramento. O que é cinema? Quando surgiu?
Página

Cinema: realidade ou ficção?

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Os grupos se organizaram e iniciaram a pesquisa em busca da (re) significação que o
cinema possibilita, uma vez que ele pode sensibilizar, (re) organizar formas de ver e de
pensar determinadas questões (re) significando outras relações e práticas sociais.
Ao final da pesquisa cada grupo apresentou um resultado, através de resumos ou
fragmentos dos sites que visitaram para buscar as primeiras informações e outros aspectos
relevantes como, por exemplo, os gêneros dos filmes. Todavia, nova pesquisa se fez
necessária.
Para que todos os alunos participassem ativamente das oficinas fizemos uma
retomada do que foi apresentado e através de slides apresentamos a história do cinema e dos
projetores. Curiosos e sequiosos para conhecer a sétima arte com mais detalhes, a ideia vem à
tona: vamos ao cinema.
As Oficinas de Letramento possibilitaram ir muros-escola, não o físico, mas o social.
Com isso, iniciamos o segundo passo da sistematização das Oficinas: Organização das
atividades motivadoras.
Para a continuidade do desenvolvimento das Oficinas acordamos que a visita, a
priori, seria ao cine teatro local, e oportunamente iríamos ao cinema da cidade vizinha,
Mossoró (RN). Para tanto, seria necessário escrevermos um ofício à Secretária de Educação
do Município solicitando a liberação do cine teatro para que pudéssemos assistir a um filme e,
também, o pedido de autorização aos pais.
Dois grupos de imediato foram montados e, em seguida, apresentamos a estrutura
dos dois gêneros: ofício e autorização. Cada grupo responsabilizou-se pela redação de um dos
documentos. Textos produzidos, lidos e relidos é chegado o momento da correção. Os grupos
resolvem trocar os textos para sugerir melhorias na produção e fazem as autocorreções
necessárias. E, finalmente, são levados à digitação e encaminhados aos responsáveis para
liberação. Primeiramente, o ofício à Secretária de Educação do Município de Assú. Logo, foi
preciso aguardar a liberação para, então, enviar a autorização aos pais/responsáveis.
Com essas atividades, o trabalho com a leitura e a escrita ganhou uma dimensão real,
social, saiu dos muros da escola. As produções tiveram um destinatário e intenção sociais. E
as produções dos poemas deram início. Uns apresentavam maior dificuldades e formaram
duplas e/ou trios. Outros preferiram produzir individualmente.
609

Ainda aguardando a liberação, o terceiro passo das Oficinas de Letramento foi


sistematizar novos conhecimentos emergidos através dos vários poemas apresentados à turma,
Página

inclusive sobre o tema escolhido. No ensejo, falamos sobre estrofes, versos e rimas. Nesse

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momento, fez-se necessária a correção, e cada um quis apresentar um poema com composição
textual e estética, o que levou alguns grupos a se desfazerem para que cada um pudesse ter o
seu próprio poema. Nesse ato, surgiram as comunicativas reais, nos quais foram produzidos
gêneros textuais específicos para o atingimento dos propósitos.
Dando seguimento ao segundo passo da sistematização das Oficinas, uma grande
roda de conversa foi formada para a apresentação dos gêneros dos filmes. A riqueza dos
detalhes em cada informação contribuiu grandemente para que a empolgação da turma
aumentasse, inclusive com inúmeras ideias do que fazer. Foram desde a assistir filmes,
preparação de musical à releituras dos filmes que iríamos assistir e filmagens para depois
apresentarem aos colegas das outras turmas.
Durante as discussões um dos alunos sugeriu a escrita de um livro, o que provocou
agitação. Questionamos qual gênero seria o livro. Citaram vários, de resumos a tirinhas. O
grupo que pesquisou sobre o gênero romance, ainda em êxtase com Romeu e Julieta, sugeriu
poemas, obtendo total aprovação da turma.
Nesse percurso, precisávamos aguardar a liberação com vistas à necessidade da
intervenção em relação a algumas dificuldades de estrutura e de ortografia. Apresentamos,
portanto, textos com a mesma estrutura do produzido pelos alunos que tivessem as palavras
grafadas na norma padrão, realizando o quarto passo das Oficinas de Letramento, qual seja,
avaliação do processo, a fim de que eles percebessem as diferenças em relação ao que haviam
escrito. Dessa forma, as diferenças foram identificadas e com o auxílio do dicionário deu-se
início a reescrita dos poemas.
As autocorreções ocorreram na divisão dos versos, em palavras em que o c foi
compreendido como fonema s, por exemplo, sinema/cinema, sosial/social, no uso da cedilha
em palavras como fáçil, você, e, ainda, no uso de minúscula em substantivos próprios,
brasil/Brasil, entre outras.
A preocupação deles foi tamanha que não perceberam o quanto os textos ficaram
contextualizados. Relacionaram o cinema ao cotidiano, exemplificando em detalhes situações
que fizeram parte ou tomaram conhecimento por ter acontecido com parentes ou
vizinho/conhecidos.
Com isso, percebemos que se torna impossível dissociar a sistematização das
610

Oficinas de Letramento, pois a cada passo dado diagnosticou os interesses e as necessidades


formativas dos alunos, a sistematização das atividades motivadoras, a (re) construção de
Página

novos conhecimentos e a avaliação do processo.

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As discussões não cessavam. Várias sugestões de filmes foram sugeridas para
assistirmos, sendo o escolhido pela maioria Truque de Mestre. No entanto, a burocracia não
havia ainda liberado o Cine Teatro.
A ansiedade era tamanha que resolvemos levar para sala de aula o filme Escritores da
Liberdade, que os deixou ainda mais comprometidos com o trabalho, tranquilos e
entusiasmados, haja vista o filme se tratar de uma instigante história envolvendo adolescentes
criados em zona conflituosa e violenta e a professora que oferece o que eles mais precisam:
voz própria. Além de ser um filme extremamente envolvente trata sobre questões de
desigualdades sociais, racismo, desestrutura familiar, intolerância, funcionalidade de políticas
públicas, exclusão social, prevenção à violência, entre outros. O filme faz pensar sobre a
escola como fator de proteção e como meio de implementar políticas de prevenção à
violência, seja para pessoas que sofrem a ação ou que fazem uso dela.
Finalmente vencemos a burocracia quanto a liberação do Cine Teatro Pedro Amorim
e marcamos a data da ida, necessitando somente da autorização dos pais. O texto estava
pronto, restava-nos imprimir e enviar. E a alegria refletia em seus olhos e sorrisos.
Retornamos ao filme assistido em sala de aula. As discussões foram valiosas. Os
alunos identificaram os temas e subtemas abordados no filme, destacando, também, além da
violência, o(s) preconceito(s) existente no espaço que deveria ser o de maior inclusão: a
escola. Encontram uma resposta a um dos questionamentos anteriores: Qual a relação do
cinema com nossas vidas? Todos se viram como vítimas e, em algumas situações, como
responsáveis por praticarem bullying como consequência do preconceito. A consciência dos
problemas é o primeiro passo para a mudança, inclusive as inadequadas. Esse estágio é algo
que transcende os muros da escola, incorpora-se à vida e tem consequências direta nas
práticas sociais.
Após explorarmos as discussões acerca do filme é chegado o dia de assistir ao filme
Truque de Mestre. Saímos dos muros-escola para adentrarmos no cinema propriamente dito.
Para nossa surpresa, ficamos impossibilitados de assisti-lo devido a problemas técnicos, e
retornamos para a escola planejando voltarmos oportunamente.
Seguimos com nossas Oficinas, ainda sentindo a necessidade de construir algo mais
concreto quanto ao filme Escritores da Liberdade, novas leituras e pesquisas foram feitas, e a
611

construção de painéis sobre os mais diversos temas abordados no filme produzido. Usamos
como base painéis de cartolina pretos e papeis coloridos como espaço para a escrita, desenhos
Página

ou imagens acerca do tema escolhido pelo grupo. E percebemos no final que pouca produção

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do aluno ocorrera naquela etapa, com a preocupação de deixar o material físico bonito. Logo,
sugerimos melhorias e eles fizeram mais recortes do material pesquisado.
Concluso essa atividade, refletimos em outra roda de conversas sobre o filme acima e
os alunos decidiram manifestar textualmente seus sentimentos em relação aos temas e
subtemas, expressando tristezas, medos, angústias, decepções, mas também desejos por
mudanças em busca de uma liberdade real.
No passo seguinte ficou bem mais fácil, uma vez que a turma partilhou dos mesmos
sentimentos. Em grupos, ou individualmente, corrigiram textos, deram e aceitaram sugestões
para que os demais seguissem a norma padrão. Sugestões ortográficas, vocabular, de
pontuação e de estrutura foram dadas e analisadas para que a reescrita pudesse acontecer.
Após inúmeras discussões, os textos foram produzidos, corrigidos e reescritos. E os
alunos inquietaram-se com mais um questionamento: “O que faremos com nossas poesias
sobre cinema? Um livro? Um varal de poemas? Ou apenas recitá-los? Que tal um livro de
uma folha? Como? Professora aquele que você nos mostrou, como faz?”
Um fanzine85. Faremos então um fanzine. Conceito, origem, como fazer, custos,
modelos e quem pode fazê-los foram apresentados através de slides. Captamos revistas,
jornais, tesouras, colas e papel ofício. Tudo em mãos, grupos reestruturados e mãos à obra.
Recortes, colagens, escritas e os poemas foram se concretizando e fazendo a poesia da turma
de alunos do Ensino Fundamental (Anos Finais) de uma escola estadual da cidade de Assú
(RN).
Os alunos começam a ganhar voz ao assistir filmes, ler e escrever sobre cinema, em
média 60%, começam a diferenciar a língua formal da coloquial, a usar com mais atenção
letra maiúscula em nomes próprios, a pontuar para fazer pausas, a questionar para tirar suas
próprias dúvidas, a escrever suas ideias para que elas sejam concretizadas e não se diluam ao
nada, a repensar e reescrever as ideias escritas anteriormente, a ouvir a opinião do outro
respeitando e confrontando com as suas, e que sugerem um mundo melhor através da leitura,
da escrita e da descoberta.
E finalmente, a turma sugere expandir a ideia da necessidade do respeito e do não
preconceito através de atividades lúdicas (jogos), organizadas por eles, na hora do intervalo
612

85
Aglutinação de fã e magazine ou zine. É uma publicação não profissional e não oficial produzida por
Página

entusiastas de uma cultural particular; fenômeno (como um gênero literário ou musical) para o prazer de outros
que compartilham seu interesse.

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escolar. Dentre elas estão baralho, dominó, pintura, leitura, dramatizações, música e produção
em um mural intitulado Aqui nós podemos... Conhecer, aprender, conviver, ser e ter voz.
Portanto, os resultados apresentaram que as aulas/oficinas promovem autoria e
aprendizagens, entre outros aspectos, como reflexões sobre histórias de vida, trabalho
coletivo, ou seja, aprendizagens diversas com o processo.

Considerações finais

A alfabetização é o processo de aquisição e apropriação do sistema de escrita. No


entanto, seu desenvolvimento deve se dar em um contexto de letramento, o que tende a
favorecer o consequente alargamento das habilidades relacionadas ao uso da escrita e da
leitura no conjunto das práticas sociais que envolvem a língua escrita. Esse alargamento
também possibilita que os atores sociais adotem posturas em relação a essas práticas.
Da experiência vivenciada com os alunos através das Oficinas de Letramento
percebemos a importância de dar voz e vez a eles. Trabalhar conjuntamente a partir de seus
interesses, conhecimentos prévios e necessidades formativas fez toda a diferença. Além de
sentirem-se motivados a aprender e fazer uso adequado das atividades de leitura e de escrita
também utilizaram para propósitos sociocomunicativos reais.
O trabalho com aspectos gramaticais e ortográficos tiveram uma dimensão mais
produtiva. Os alunos estavam interessados a escrever coerentemente porque sabiam que seus
textos seriam lidos por interlocutores reais. Suas ideias e intencionalidades deveriam estar
claras, necessitando da reescrita textual, produzidos em gêneros específicos.
Portanto, trabalhar com Oficinas de Letramento deu às aulas de Língua Portuguesa
uma nova significação. Comprovaram que professora e alunos podem construir mutuamente
conhecimentos relevantes dentro e fora do contexto escolar.

Referências

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para além do contexto escolar. In: Simpósio Nacional de Literatura, Linguística e Ensino -
SINALLE. Anais eletrônicos do II Simpósio Nacional de Literatura, Linguística e Ensino.
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TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Gramática e interação: uma proposta para o ensino de


gramática no 1º e 2º graus. 7. ed. São Paulo: Cortez, 2001.
614
Página

ISBN: 978-85-7621-221-8
GT4 – DISCURSOS E PRÁTICAS NO CAMPO DA EDUCAÇÃO

A DEMOCRACIA E A REGULAMENTAÇÃO DA INCLUSÃO DOS FILHOS/AS DE


CASAIS HOMOPARENTAIS NO ESPAÇO ESCOLAR EM NATAL/RN

Gualber Pereira Silva de Oliveira (UERN)


Arilene Maria Soares de Medeiros (UERN)

Introdução

O presente artigo trata dos aspectos relativos à democracia e a regulamentação para a


inclusão dos filhos de casais homoparentais no espaço escolar. No entanto, para notar as
condições que se encontra a regulamentação a esse respeito, foram analisados os conteúdos
das normativas da educação nacional e local, observando aproximações e distanciamentos no
que diz respeito à inclusão dos filhos de casais homoparentais, qual seja, a Lei de Diretrizes e
Bases da Educação – LDB, nº 9.394 de 20 de dezembro de 1996, o Plano Nacional da
Educação – PNE, Lei nº 13.005, de 25 de junho de 2014, os Parâmetros Curriculares
Nacionais – PCN (1997) e as Diretrizes Curriculares Nacionais – DCN (2013), do Plano
Estadual de Educação do Rio Grande do Norte – PEE/RN, Lei Nº 10.049, de 27 de Janeiro de
2016, e do Plano Municipal de Educação do município de Natal/RN – PME/RN, Lei N.º
6.603 de 01 de Abril de 2016, local de referência para este artigo.
Com a proposta de analisar as normativas que orientam as escolas que alvos desta
pesquisa e observar a inclusão das famílias nesta ocasião discutida, esta valer-se-á das
considerações de Barroso (2005) sobre a diferença ente regulação e regulamentação, além do
que recomenda Hora (2007) para o exercício da democracia pela escola; Charlot (2006),
acerca da influência de terceiros fatores sobre os profissionais da educação e Bordignon e
Gracindo (2001), relativamente ao respeito ao fato de que a cidadania é um status e inerente à
democracia.
Como procedimento metodológico será adotada a análise documental das normativas
de referência da educação nacionais e locais. Essa análise tem suas vantagens atreladas à
segurança dos dados fornecidos, tornando-se uma “fonte rica e estável de dados” (GIL, 2002,
p.62). Além do aferimento nestas regulamentações, o artigo fará uma análise destas leituras
615

com base nos autores supracitados.


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1 Democracia e regulamentação

Importa citar que este tema é amplo e conforme afirma Charlot (2006, p. 9) as
temáticas relativas à educação no geral são capazes “de afrontar a complexidade e as
contradições características da contemporaneidade. Quem deseja estudar um fenômeno
complexo não pode ter um discurso simples, unidimensional". Destarte, a inclusão da família
homoparental no espaço escolar deve ser considerada no que tange às diversas formas de
respaldar minorias e nos modos em que tratam questões afins a esses grupos que sejam uma
alternativa à promoção da igualdade, e neste espectro está a importância da democracia, que
pressupõe a inclusão da diversidade de seus cidadãos, nas políticas e contextos locais e, neste
caso, nas normativas educacionais nacionais e locais.
Inicialmente vale destacar o que esclarecem Oliveira e Morgado (2006) a respeito das
duas expressões mais utilizadas para a instrução da sexualidade no espaço escolar, a
“Educação Sexual” e a “Orientação Sexual” sendo o segundo o “mais utilizado entre os
profissionais de saúde e educação”. Essa preferência se dá pelos significados diferentes desses
dois termos, sendo a Educação Sexual desenvolvida de forma assistemática, não intencional, e
que “envolve toda a ação exercida sobre o indivíduo no seu cotidiano. Surge no seio familiar
e em outros grupos de convivência, e tende a reproduzir nos jovens os padrões de moralidade
de uma dada sociedade” (OLIVEIRA e MORGADO, 2006, p. 3). Já a Orientação Sexual,
segundo os autores, se refere a um processo “sistematizado, planejado e intencional,
promovendo o espaço de acolhimento e reflexão das dúvidas, valores, atitudes, informações,
posturas, contribuindo para a vivência da sexualidade de forma responsável e prazerosa”.
Como este artigo visa investigar a regulamentação sobre o tema e a consideração da
democracia para as possíveis políticas públicas configura-se, desta maneira uma iniciativa
sistemática, planejada e intencional, tornando a perspectiva da Orientação Sexual a ideal a ser
implementada.
Se a orientação sexual é sistematizada, sua raiz vem da regulamentação nos
documentos de referência da educação nacional onde deve ser notado aspectos democráticos
para a inclusão das famílias tematizadas neste artigo. Sobretudo quando para a inclusão destas
famílias e a necessidade do seu reconhecimento na sociedade e na escola, é consequente o
616

pensamento nas questões de gênero e de orientação sexual, pois são percebidas distinções em
dados que reforçam a importância da educação difundir uma consciência plural. Na pesquisa
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"Juventudes e Sexualidade", realizada pela UNESCO, com apoio do Ministério da Educação e

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organizada por Abramovay et al (2004), dentre outras informações, solicitaram à jovens dos
dois sexos que indicassem as cinco mais graves formas de violência e, ao separar as respostas
por sexos, estes selecionaram os mesmos itens entre as cinco principais formas, com exceção
da agressão a homossexuais, que as mulheres classificaram como a terceira violência mais
grave, enquanto para os homens esta violência não se incluía entre as cinco principais
violências. Outra revelação desta pesquisa, diz respeito a posição de cerca de um quarto dos
estudantes que não gostariam de ter um colega de classe homossexual. Estes dados sugerem
um padrão de masculinidade para a violência e que é notável que a discriminação contra
homossexuais é também uma questão de identidade de gênero por estereótipos.
Conquanto, aí está a importância de observar a regulamentação para examinar o que
tem oferecido para a regulação da inclusão das famílias homoparentais no espaço escolar.
Cabe, então, a diferenciação de Barroso (2005) para “regulação” (mais flexível na definição
dos processos e rígida na avaliação da eficiência e eficácia dos resultados) e
"regulamentação” (centrada na definição e controle a priori dos procedimentos e
relativamente indiferente às questões da qualidade e eficácia dos resultados) que torna
evidente que a regulamentação deve encontrar respaldo em diversas circunstâncias aferidas
por dados oficiais e discussões atuais para proporcionar regulações pertinentes. Ademais,
compete evitar, por exemplo e na medida do possível, polissemias na composição da
regulamentação para uma adequada regulação. Mas de início convém registrar que nas
próprias normativas examinadas foram observados fragmentos que tratam a orientação sexual
como educação sexual. Esta confusão de significados na regulamentação deixa lacunas na
regulação. São estas omissões ou iniciativas, que se tornam orientações sobre o tema, que
serão observadas.
Esta regulação, segundo o mesmo Barroso (2005), pode ser exercida de três formas,
primeiramente, para orientar ações e interações de quem se tem algum grau de autoridade;
como a definição de regras e o seu reajustamento perante a diversidade de ações dos atores a
serem atingidos e, por último, uma regulação que interaja o controle com a autonomia a partir
de regras comuns. A finalidade e escolha destes modos de regular devem, a priori, ser
escolhidos para dá ocasião à uma escola que interaja com a sociedade, observando suas
necessidades para objetivar o seu fim nas necessidades encontradas e não meramente nos
617

meios disponíveis.
Bordignon e Gracindo (2001) atentam para aspectos muito importantes relativos à
Página

cidadania: que ela é um status e requer condições determinadas pelo paradigma social no qual

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se vive para o seu pleno exercício, além da cidadania ser essencial para a democracia ao qual,
sem a cidadania, não tem lugar para cidadãos, mas apenas para governados. A escola,
portanto, é primordial neste processo de formação e atribuição das condições cidadãs
necessárias. Para tanto, anteriormente, às políticas formalizadas através de normativas devem
ser desenvolvidas com participação e inclusão para não serem produto de uma posição
idiossincrática, conforme alerta Bordignon e Gracindo (2001) e que, com o resultado vertical
dessa produção idiossincrática, que se assenta no princípio da autoridade, se fomente um
ambiente favorável à formar indivíduos passivos e não sujeitos ativos na elaboração de
normativas e no seu exercício.
Este conteúdo que proporciona à escola oferecer condições cidadã necessárias, pode
ser respaldado na articulação da escola com as qualidades e diferentes dimensões da
sociedade e dos seus alunos/famílias que é, conforme Hora (2007), uma escola que segue as
naturais transformações do trabalho e sociais que redimensionam o sentido da escola, e é uma
particular necessidade atual, após as lutas homossexuais que resultaram em decisões judiciais
favoráveis a estes, a escola tematizar a democracia, que pressupõe o combate à discriminação
para a participação de todos, sobretudo, pois, o aluno aprende “na escola como um todo, pela
maneira como é organizada e como funciona, pelas ações globais que promove, pelo modo
como as pessoas nela se relacionam e como a escola se relaciona com o seu contexto social
imediato" (HORA, 2007, p.45), retratando a inerência da democracia ao combate da
discriminação e do preconceito.
Temos assim a escola como instituição fundamental para atuar no encontro da
pluralidade e democracia em nossa sociedade, por exemplo, ao praticar e promover o debate
deste tema conforme o seu diferencial supracitado. Este diferencial é influenciado pelos
nossos documentos de referência a partir de como regulamentam e oferecem suporte à
educação. É apontado por Morin (2003), e adotado neste artigo como critério para seleção de
iniciativas que regulem em favor da inclusão dos filhos de casais homoparentais no espaço
escolar, que a sociedade, a depender do tipo de educação adotada e colaborada, pode utilizar
um modelo educacional que gere indiferença/insensibilidade ou afetividade/inclusão entre as
pessoas.
Para provocar identidade entre os cidadãos e, consequentemente, uma maior
618

aproximação e compreensão, estes documentos devem propiciar à elaboração da gestão de


uma educação capaz de possibilitar a comunidade escolar uma reflexão e uma subjetividade
Página

que, para Morin (2003), são considerados formas para a nascente do aprendizado, da

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afetividade e consciência cidadã e o alcance da identidade citada e da inclusão tematizada
neste artigo. Morin (2003) exemplifica essa subjetividade, que provoca o que ele chama de
nascente da afetividade, com os filmes, que fazem através do contexto de vilões e pessoas;
que antes de uma adequada apresentação são interpretados e julgados com indiferença; gerar
uma identidade com os personagens e até a torcida por eles nos espectadores das obras, sendo,
portanto, através das identidades existentes na nossa pluralidade uma alternativa para a
educação propiciar o reconhecimento e a cidadania diante dos cânones ideológicos atuais da
sociedade que provocam os distanciamentos revelados nos dados mencionados.
O ambiente escolar é propício para, não só em sua gestão interna, mas também com o
incentivo democrático da participação dos seus alunos e familiares, formar uma divisão de
atividades que não crie autoridades, mas diferentes responsabilizações consoante Bordignon e
Gracindo (2001), para não atuar na particularidade de gestores mas através da aproximação
com o seu contexto, que torna familiar e estreita o respeito ao outro com suas particularidades
e a convivência local ao reunir e conhecer qualidades do seu coletivo. A atribuição do status
cidadão e seu pleno exercício ocorre com a inclusão, destarte, é importante a escola notar
aspectos democráticos para a sua finalidade se sobrepor às suas rotinas.
Neste processo interessa notar o que ressalta Charlot (2006, p. 15-16) que diz que o
educando e o educador:

[...] articulam-se com um terceiro: uma instituição (a escola, mas poderia


também ser a família ou outra instituição). Trata-se de uma instituição social,
submetida a políticas...Essa instituição não pode produzir o conhecimento no
aluno, contrariamente às visões de transparência e de controle total daqueles
que dão tanta importância à avaliação que ela termina por prevalecer sobre a
própria aprendizagem. A instituição pode apenas fazer algo que talvez
modifique aquilo que o professor e o aluno fazem.

Este fato não pode ser desconsiderado, além de que é da mesma forma, ao lidar com
instituições e outros participantes, que a regulamentação da educação brasileira regula a
instituição escolar e oferece alternativas que modifiquem ou não aquilo que a instituição
pratique, especialmente o âmbito democrático da sua elaboração e prática.
Hora (2007), em consonância, indica que uma alternativa para aproximação do
contexto local é com o PPP, através do conhecimento do conteúdo elaborado no documento, o
619

que tem o potencial de atrair e mudar o comportamento da comunidade de acordo com a


Página

forma da sua elaboração, pois:

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"É pela proposta pedagógica que a escola define a intencionalidade da sua
ação educativa, de onde emergirão os objetivos, na compreensão de que será
capaz de possibilitar ao aluno a leitura crítica da realidade, na sua condição
de agente de seu próprio conhecimento na relação com o contexto físico e
social, concreto ou simbólico. A explicitação de intenções é, portanto,
fundamental para que a comunidade conheça a opção política que a escola
adota e o papel de sua prática educativa no desenvolvimento do processo
social"

Compete frisar sobre esta elaboração do PPP, que, de modo transversal, como
comentado a respeito da possibilidade de aproximar a comunidade conforme Hora (2007),
pode se configurar como uma produção coletiva, com a participação da comunidade da escola
e os pais dos alunos, para a definição de necessidades e encontro de soluções, visto dados
oficiais e estudos para sustentar o que deve constar, além de as famílias homoparentais, nestes
casos, poderem contribuir com propriedade ao contar com sua voz e experiências, mas
nenhum documento comenta ou orienta formalmente deste modo.
Destarte, toda a discussão sobre uma relação democrática e inclusiva da escola com as
famílias homoparentais contempla também e à princípio às normativas de referência para a
educação, seja nacional ou local, que influenciam a educação a partir de como proporciona
uma regulamentação que, como no exemplo do parágrafo anterior, não deve dá margem ao
gestor não criar iniciativas para a inclusão, bem como é o papel da regulamentação – atingir
seu objetivo de regular ao dar margem ou não aos gestores atuarem em um tema, a depender
dos fins da sua elaboração.

2 A inclusão dos filhos de famílias homoparentais nas normativas nacionais e locais

No enfoque das legislações nacionais às legislações locais, foi notado que quatro
documentos (LDB, PNE, PEE e PME) fazem referências à minoria tematizada neste artigo e
lidam com estes, em regra, através de políticas para alcance de estatísticas objetivas, seja na
diminuição da evasão ou violência originada pela discriminação ou preconceito ou em
referências que generalizam diversas questões peculiares com uma alusão à formação cidadã,
a discriminação e ao preconceito de forma geral, com a representação mais explícita disto na
620

retirada da menção à orientação sexual e identidade de gênero do PNE (2014) pelo Senado
Federal após a redação enviada pela Câmara Federal conter este texto, o que influiu na
Página

elaboração de numerosos Planos Estaduais e Municipais.

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São encontradas exceções, por exemplo, situadas no PEE, como ao tratar de forma
literal a respeito da superação do machismo e sexismo sem articulações com demais
implicações que robusteçam estes avanços, e proporcionando uma regulamentação que dá
margem ao gestor não criar iniciativas para inclusão, ou seja, democráticas. Outro ponto
chama atenção, acerca da desconsideração de aspectos subjetivos e para o instinto
investigativo, pensamento crítico, solidário e integrador dos alunos que até em momentos
propícios, como para a superação do machismo e sexismo, ficou oculto em sua composição.
Os documentos com uma maior ênfase em delimitação de temáticas e abordagens
educacionais das escolas são os PCN’s e as DCN’s que preenchem algumas requisições do
movimento LGBTT e anseios das famílias homoparentais ao formalizar direcionamentos mais
específicos e atender decorrências subjetivas, embora transpareçam, em alguns intervalos,
uma polissemia com a manifestação do significado da “educação sexual” ao invés da
“orientação sexual” proposta, ao utilizar este segundo termo.
Essas delimitações são representadas em orientações como integrar questões sociais às
teorias das áreas de estudos e currículo da escola; estímulo aos jovens identificarem situações
que são abusos das que devem ser mantidas como vivência pessoal; que a satisfação da
curiosidade sobre essa temática reforça o desejo de saber e a capacidade investigativa; que o
âmbito escolar deve usar a adoção e novos arranjos familiares para ensinar o exercício da
compreensão e respeito à diversidade e o desenvolvimento de uma visão crítica de combate ao
preconceito (precisamente um viés deste artigo); o respeito à dignidade humana na forma de
acolher a diversidade de comportamentos sexuais e sua expressão que exige repensar tabus e
críticas à estereótipos, quer seja, homossexuais ou diante de discriminações conferidas ao que
supostamente deve ser o masculino e o feminino.
Além destas questões, há a atenção à relação indissociável entre educação e direitos
humanos que enseja idéias como tornar presente em sala de aula situações de discriminação
com idealização de soluções; que as datas comemorativas sejam articuladas com
características sociais; além do ensino dos DH através de diferentes linguagens (musical,
corporal, teatral) e materiais didáticos e paradidáticos, sintetizam, na tentativa de tornar
objetiva a formalização de questões que os documentos alargaram ainda mais em seus
enfoques subjetivos, um empreendimento e sugestões dos documentos de referência da
621

educação nacional que geram alternativas para a inclusão dos filhos das famílias
homoparentais na escola, embora sejam frágeis também na falta de alusões explícitas à essas
Página

famílias.

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Este fato, no gerúndio da elaboração das políticas referentes à essas famílias, não
abona perspectivas positivas. Especialmente, pois, como exemplo, no dia 06 de Abril de 2017
o governo do presidente Michel Temer, durante a elaboração da nova versão da Base
Nacional Comum Curricular (BNCC), retirou as expressões "identidade de gênero" e
"orientação sexual" da base curricular (TOKARNIA, 2017). Este documento é norteador do
que as escolas nacionais, sejam públicas ou privadas, deverão incluir em seus currículos e
ensinar em sala de aula.
Uma regulamentação que aprecie o que atenda à democracia traz a perspectiva de
instituições escolares que não se desviem de sua função como, concordando com o parecer do
PCN, ao encontrarmos a discussão sobre o dano a capacidade investigativa, de ansiedade e
curiosidade (que é fundamental para o papel da escola) ao não ser possível a escola debater
temas como a orientação sexual e identidade de gênero, dando condições de cidadania e
democracia a uma maior quantidade de sujeitos ao incluir indivíduos que sofrem com o
preconceito. É central para este artigo o tratamento deste assunto pela escola, que felizmente
se encontra explícito no parecer de um dos documentos analisados, mas ao mesmo tempo, não
há nenhuma menção com esta natureza nos artigos de nenhum documento. A escola é um
ambiente vital para a construção dessa capacidade investigativa e subjetiva (MORIN, 2003)
que tanto esclarece sobre a diversidade, a compreensão e seu consequente acolhimento.
O parecer do PCN trata o assunto com a sugestão do tratamento de problemas locais
pela escola e exemplifica com questões de trânsito, podendo-se deduzir que a inclusão da
família homoparental deve ser tratada também localmente. É orientada a integração das
diferentes experiências dos alunos com a promoção da saúde destes, incluindo sua saúde
emocional (ao tratar suas ansiedades e curiosidades) e saúde mental (ao propor um trato
relativo à subjetividade e capacidade investigativa), configurando uma compreensão que
envolve aspectos de inclusão dos filhos de famílias homoparentais na escola ao empregar a
elaboração de uma consciência que normaliza nos alunos as diferenças de suas histórias e
características ao naturalizar, no mesmo processo, a investigação nos alunos contribuindo,
também, pedagogicamente.
Atua assim, numa descrição de Abramovay Et al. (2004, p. 310), ao ressaltar além dos
termos estatísticos, que, principalmente, o poder dessas vulnerabilidades comprometem “o
622

que pode ser um dos construtos mais ricos e importantes da vida dos seres humanos, do
processo de construção identitária dos jovens, a sexualidade - principalmente se entendida
Página

como elã de vida, afetividade e sentimentos”. Ora, esta afirmação encontra respaldo se a

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escola não abordar o tema da orientação sexual democraticamente e se tornar uma instituição
que cerceia a investigação e a curiosidade ao evitar este tema além de se omitir no que se
refere a inclusão dessas famílias na dinâmica escolar.

Considerações finais

É necessário destacar que a prática das bases da educação traçada em nossos


documentos de referência da educação é de muita importância para a efetivação destas
normativas diante da nossa pluralidade social e, neste caso, em especial para os filhos das
famílias homoparentais no espaço escolar. Deve-se destacar que algumas possíveis condutas
dos profissionais da educação; por falta da capacitação neste assunto, que pouco tem espaço
em nossa regulamentação; ao tematizar a diversidade tornam os grupos dominantes uma
referência de normalidade, como ao abordar o tema apenas com referências aos grupos
excluídos, dando a impressão que esses necessitam serem debatidos enquanto os grupos
dominantes possuem supostas diferenças que os tornam normais e estejam além de qualquer
discussão, implicitamente contribuindo para a escola ter uma finalidade oposta à que se
propõe. Esta necessidade ganha importância pelo fato de podermos, com isso, fazer uma
correspondência dessa atitude com diversos comportamentos e grupos sociais que sejam
minorias e, assim, também lidem com semelhantes dificuldades, sobretudo pelo fato de não
haver maiores orientações e formalização de políticas a grupos específicos, como o
tematizado neste artigo, em nossos documentos.
Essa retroalimentação, entre a forma de regulação do Estado e as pessoas, pede uma
cada vez maior participação de cidadãos conscientes da nossa pluralidade na prática do
reconhecimento e na elaboração dos documentos oficiais pelo estado que norteiam a
educação, fortalecendo a democracia e somando o conteúdo que a voz desses núcleos
familiares podem oferecer, em especial, na nossa sociedade atual que convive com uma
exposição maior do debate sobre a identidade de gênero e orientação sexual.
Para Hora (2007) a escola tem um papel de inclusão dos alunos ao se dispor contra o
racismo, a injustiça ou quaisquer formas de exclusão e desigualdade presente na escola ou na
sociedade além de atender as distintas preocupações, expectativas e interesses coletivos dos
623

alunos para haver uma perspectiva democrática na escola e isto é uma iniciativa para o social
que vai além de índices de frequência em aulas. Ele prossegue com a indicação da
Página

participação geral destes alunos/família nas questões administrativas/políticas e no

ISBN: 978-85-7621-221-8
planejamento cooperativo da escola (que concede a oportunidade desta incorporar
conveniências para os seus alunos e familiares) mas isto é um hiato nos documentos
examinados.
Deste modo, nota-se que, em outras palavras, algo que está na essência da importância
de políticas de educação voltadas à pluralidade é pertinente à questão da necessidade de
reconhecimento da cidadania dos sujeitos e as implicações da sua falta e, posto isso, devem
ser democraticamente incluídos socialmente. Os indivíduos são produtos e produtores de
construções sociais incorporadas por meio da nossa cultura, em constante troca com outros
sujeitos, e a importância de criarmos políticas e uma regulamentação sólida para afrontar
essas consequências históricas, que alimentam e se alimentam da sociedade, se dá no tocante
à, na fragilidade de nossos documentos e à revelia da pouca regulação que há, ainda haver
discussões em escolas se este assunto deve ser pautado enquanto a identidade dos alunos são
moldadas nesses espaços e pelo reconhecimento do outro que nesta ocasião são, dentre outros,
o reconhecimento de seus colegas de escola.
A falta desse reconhecimento ou o falso reconhecimento dos sujeitos origina e, antes,
é fruto das injustiças sociais, desigualdades e outros tipos de violências suscitadas pelo estado
(quando não produz as devidas políticas) que não traduz um significado democrático em seus
documentos norteadores e devem ser levadas em consideração na elaboração de nossas
políticas públicas na busca do reconhecimento para inclusão da nossa pluralidade.
Essas conclusões trazem uma perspectiva de orientação que sejam condizentes com à
desconstrução da desigualdade e do preconceito através de uma perspectiva democrática.
Diante do exposto desponta que algumas discussões exploraram a democracia de uma forma a
incentivar a subjetividade para incluir através da identidade com pessoas com características
diversas, como propõe Morin (2003), mas ao mesmo tempo falta alusões à políticas
específicas às famílias homoparentais, carece a implementação de regulamentações que não
atendam apenas respostas à estatísticas de presença na escola e que há um teor de educação
sexual ao invés da necessária e real (sem polissemia) orientação sexual para nossos futuros
cidadãos em fragmentos destes documentos.
Para um contraste, é importante a escola participar da prática das políticas suscitadas
pelas normativas da nossa educação com o desenvolvimento de espaços democráticos e que
624

seus profissionais se disponham para a conscientização da prática do reconhecimento, para,


com isso, oferecer condições propícias para a formação da cidadania em seus alunos e buscar
Página

uma cada vez maior participação e inclusão na elaboração de consistentes documentos que

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regulamentem e referenciem a diversidade e o alcance de uma plural e atuante mudança social
com vistas à identidade necessária à essas famílias para uma maior harmonia que inclua e dê
voz a esses núcleos.

Referências

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e sexualidade. Brasília: UNESCO Brasil, 2004, 310 p.

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ISBN: 978-85-7621-221-8
GT4 – DISCURSOS E PRÁTICAS NO CAMPO DA EDUCAÇÃO

CONSELHO DE CLASSE: REFLETINDO A PRÁTICA AVALIATIVA SOB UM


OLHAR CONSTRUTIVISTA

Kelvilane Queiroz dos Santos86


Universidade Estadual do Rio Grande do Norte – UERN
Maria das Graças de Oliveira Pereira87
Universidade Estadual do Rio Grande do Norte – UERN

Introdução

A avaliação não é tarefa fácil porque nos faz pensar em conhecimentos, leituras,
autoavaliação, motivação, amor, reflexão, crenças, valores, dentre outros aspectos.
Precisamos saber exatamente porque estamos avaliando. Avaliar requer discutir sobre alguns
instrumentos, como também refletir sobre os mesmos.
A partir desta reflexão discutiremos neste artigo o instrumento Conselho de Classe
(doravante CC). O mesmo é considerado um órgão colegiado que reúne o corpo docente e a
coordenação pedagógica para uma avaliação coletiva sob uma perspectiva democrática.
Podendo ser desenvolvida através de reuniões durante o ano letivo ficando a depender da
necessidade ou interesse da escola, além das disponibilidades previstas no calendário escolar.
Para isso, procuramos nos respaldar em autores que deram suporte às reflexões realizadas, tais
como, Hoffmann (1991), Luckesi (1996) e Sant´Anna (1995).
Considerando essas informações supracitadas, estabelecemos como objetivo geral
deste estudo, analisar os posicionamentos dos professores de múltiplas disciplinas quanto à
instância do Conselho de Classe. Este estudo parte da necessidade de refletir e compreender
sobre este espaço democrático, procurando oportunizar discussões, reflexões e autoavaliações
sobre as práticas pedagógicas e avaliativas do processo de ensino e aprendizagem de maneira
concisa e unificada. Como também, avaliar o processo de aprendizagem do aluno
redirecionando-o para novas possibilidades e renovações do conhecimento.
Partindo desta inquietude que norteia aqueles professores que visam uma melhor
prática avaliativa, estabelecemos algumas indagações: a) Quais os pressupostos avaliativos
627

que os professores utilizam para avaliar o aluno no Conselho de Classe? De que maneira as
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86
Mestranda do Programa de pós Graduação em Ensino –PPGE/ UERN/CAMEAM
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Mestranda do Programa de pós Graduação em Ensino –PPGE/ UERN/CAMEAM

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dificuldades ou os erros do aluno são avaliados? e Quais os possíveis encaminhamentos desta
prática avaliativa no que concerne ao aluno?
Para ir de acordo aos elementos propósitos foi elaborado um questionário, sendo
posteriormente aplicado com 07 (sete) professores das disciplinas de: Inglês, História,
Geografia, Matemática, Ética e Empreendedorismo, Física, Educação Física e Biologia. Tais
questionamentos se respaldavam nas seguintes perguntas: De acordo com suas concepções, o
que é avaliação para você? De que maneira você avalia seus alunos no Conselho de Classe? O
que é decidido durante o conselho e qual o encaminhamento posterior? Em seguida
realizaremos uma análise das devidas respostas para chegarmos a uma conclusão sobre a
utilização desta instância avaliativa por parte dos professores e da coordenação pedagógica.

1 A subjetividade no processo avaliativo

Hoje, no mundo em que vivemos é perceptível que o processo avaliativo está


infundido nos conceitos sociais, consequentemente podemos perceber através do cotidiano
que estamos rotineiramente avaliando ou sendo avaliados, procurando sempre atribuir
resultados a algo ou alguém. Logo, no contexto escolar não é diferente, uma vez que existem
conceitos e valores difundidos no processo avaliativo.
Partindo deste pressuposto, discorremos sobre o que seria “avaliação”. Segundo
Hoffmann (1991), avaliar não é tarefa fácil, pois o avaliador precisa ser um questionador,
sobretudo, dos seus preceitos, já que um professor não avalia seus preceitos e conceitos,
subtende-se que ele é mero julgador de conhecimentos. É perceptível que nas discussões
sobre os estudos, no que concerne a avaliação, a tentativa dos pesquisadores em definir o seu
significado dentro da prática educacional, devida a esta diversidade sobre o que seria
avaliação nos deparamos com diferentes manifestações pedagógicas, como por exemplo, a
metodologia de avaliação.
Sendo assim, essas práticas pedagógicas por sua vez podem influenciar na
consciência das decisões. Assim, percebemos que existem transferências de valores
inconscientemente por parte do avaliador. “Suas perguntas e respostas, seus exemplos de
situações, [...] expressam princípios e metodologias de uma avaliação estática e frenadora, de
628

caráter classificatório e fundamentalmente sentencivo” (HOFFMANN, 1991, p. 13).


Certamente, isso se dá devido ao processo seletivo por parte do professor em comparar notas
Página

e conceitos decorrentes da dificuldade do desenvolvimento da aprendizagem do aluno.

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A prática avaliativa concebida como julgamento de resultados pré-
determinados baseia-se na autoridade e respeito unilaterais – do professor.
Impõem-se ao aluno imperativos categóricos que limitam o desenvolvimento
de sua autonomia moral e intelectual. Essa prática desconsidera a
importância da reciprocidade na ação educativa (HOFFAMANN, 1991,
p.34).

A partir de tais premissas, no que tange à avaliação percebemos um grande perigo


que advém da inconsciência do educando quanto às ações corriqueiras, coercivas e
dominadoras em seu processo avaliativo, como também sua sentença formal ou informal no
que condiz ao comportamento dos jovens e das crianças em sala de aula.
Hoffmann (1991, p.15) deixa evidente que o “[...] “fenômeno avaliação” é, hoje, um
fenômeno indefinido.” Podemos enfatizar este termo, como se encontra expressa em suas
palavras:

Professores e alunos que usam o termo atribuem-lhe diferentes significados,


relacionados, principalmente, aos elementos constituintes da prática
avaliativa tradicional: prova, nota, conceito, boletim, recuperação,
reprovação. [...] Dar nota é avaliar, fazer prova é avaliar, o registro das notas
denomina-se avaliação (HOFFMANN, 1991, p. 14).

Portanto, nesse sentido, a concepção avaliativa ainda permanece enraizada ao


conceito tradicionalista, o qual destoa da realidade do aluno atualmente, subentendendo-se
que podemos definir a compreensão do conhecimento deste, através de julgamentos, de
valores dos resultados alcançados pelo mesmo, a fim de que não perca a oportunidade de
elevar-se, consolidando-o.

2 O “erro” no processo construtivo na ação avaliativa

O “erro”, para alguns avaliadores, em sua visão catalogadora ou investigadora, é


visto como um defeito ou fracasso no processo cognitivo do aluno, ou seja, é uma deficiência
em seu processo de aprendizagem e não de ensino aprendizagem. É possível perceber que
quem comete falhas é somente o aluno e não o professor porque ele se considera dono do
629

saber e da verdade. Porém, no decorrer dos anos essa visão vem alcançando transformações já
que existem estudos definidos nesse sentido, pelos pesquisadores; pois através das mesmas, o
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processo avaliativo vem almejando grandes resultados no que condiz a prática avaliativa.

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Segundo Hoffmann (1991) o “erro” é um processo construtivo visto numa
perspectiva renovadora. Por outras palavras, este novo processo avaliativo busca seres críticos
que procurem se autoavaliar.

Nessa dimensão educativa, os erros, as dúvidas dos alunos, são consideradas


como episódios altamente significativos e impulsionadores da ação
educativa. Serão eles que permitirão ao professor observar e investigar como
o aluno se posiciona diante do mundo ao construir suas verdades. Nessa
dimensão, avaliar é dinamizar oportunidades de ação-reflexão, num
acompanhamento permanente do professor, que incitará o aluno a novas
questões a partir de respostas formuladas (HOFFMANN, 1991, p. 20).

O professor deve cumprir um papel de mediador, procurando extrair o conhecimento


empírico do aluno, reformulando-o através de suas experiências para assim, transferir uma
nova interpretação ao conhecimento já adquirido por ele. Logo, educador deve procurar “[...]
uma visão de acompanhamento, não como um caminho de certezas do professor, mas uma
trajetória de entendimento, troca de idéias por ambos os elementos da ação educativa”.
(HOFFMANN, 1991, p. 38-39). Indo de acordo ao pensamento de Hoffmann (1991), temos a
concepção de Luckesi (1996) em que a autora afirma:

O erro, especialmente no caso da aprendizagem, não deve ser fonte de


castigo, pois é um suporte para a autocompreensão, seja pela busca
individual (na medida em que me pergunto como e por quê errei), seja pela
busca participativa (na medida em que um outro – no caso da escola, o
professor – discute com o aluno, apontando-lhe os desvios cometidos em
relação ao padrão estabelecido). Assim sendo, o erro não é fonte para
castigo, mas suporte para o crescimento. Nesta reflexão, o erro é visto e
compreendido de forma dinâmica, na medida em que contradiz o padrão,
para, subseqüentemente, possibilitar uma conduta nova em conformidade
com o padrão ou mais perfeita que este. O erro, aqui, é visto como algo
dinâmico, como caminho para o avanço (LUCKESI, 1996, p. 58).

Desse modo, o jovem aprimorará sua perspectiva de visão de mundo, reformulando


suas hipóteses e buscando novos desafios à medida que se depara com situações inovadoras.
Estas ações são caminhos ou fendas que norteiam a reciprocidade do professor e aluno, pois
estes elementos buscam visionar uma confiança mútua entre os mesmos, buscando
possibilidades reorganizacionais do saber, ou melhor, a troca de conhecimentos que é um
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fator primordial numa dinâmica avaliativa no que concerne o contexto educacional.


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3 Conselho de Classe: reflexão e emcaminhamentos

No Conselho de Classe temos um momento reflexivo, o qual reúne todo o corpo


pedagógico para uma instância avaliativa. É uma atividade avaliativa a partir das vivências
em sala de aula e que tem como objetivo a troca de experiências, como também propor ações
educativas ou encaminhamentos no processo de aprendizagem aos alunos.
Para Libâneo (apud GURA, SCHNECKENBERG, 2011, p. 5107), o Conselho de
Classe é visto como:

[…] Um órgão colegiado composto pelos professores da classe, por


representantes dos alunos e em alguns casos, dos pais. É a instância que
permite acompanhamento dos alunos, visando um conhecimento mais
minucioso da turma e de cada um e análise do desempenho do professor com
base nos resultados alcançados. Tem a responsabilidade de formular
propostas referentes à ação educativa, facilitar e ampliar as ações mutuas
entre professores, pais e alunos, e incentivar projetos de investigação.

Dentro desta perspectiva organizacional, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação


Nacional – LDB 9394/96 estabelece:

Art. 14º. Os sistemas de ensino definirão as normas de gestão democrática


do ensino público na educação básica, de acordo com as suas peculiaridades
e conforme os seguintes princípios:

I - participação dos profissionais da educação na elaboração do projeto


pedagógico da escola;
II - participação das comunidades escolar e local em conselhos escolares ou
equivalentes.

Nesse sentido, a escola precisa de planejamento. “O ato de planejar é a atividade


intencional pela qual se projetam fins e se estabelecem meios para atingi-los.” (LUCKESI,
1996, p. 105). Logo, percebemos a importância deste órgão colegiado no processo
educacional, além disso, é preciso compreendermos sua transparência em seus objetivos
devido as particularidades existentes no projeto pedagógico de cada instituição de ensino.
O corpo que constitui o CC precisa “[...] pensar avaliação como um procedimento
referente não apenas ao aluno como indivíduo; é preciso levar em conta todo o processo
631

escolar [...]”. (SANT`ANNA, 1995, p. 89). Logo, é necessário um acompanhamento do aluno


através de ações contínuas. Como bem sabemos avaliar não é tarefa fácil assim, Sant`Anna
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(1995) faz alguns apontamentos nesse processo avaliativo:

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1) Não rotular o aluno (o diamante bruto também tem seu valor), eliminar
padrões preestabelecidos e promover condições para seu
desenvolvimento.
2) Fazer observações concretas (cada professor confronta suas observações
com as dos colegas).
3) Debater o aproveitamento de cada aluno e da classe como um todo,
analisando as causas dos baixos ou altos rendimentos da turma.
4) Estabelecer o tipo de assistência especial para o aluno que não
apresentou rendimento favorável.
5) Aperfeiçoar o trabalho diário do professor com o aluno, com subsídios
emitidos pelo supervisor, pelo orientador educacional, pela direção, por
trabalhos realizados, e por colegas.
6) Orientar o aluno de como e para que estudar.
7) Orientar o aluno para auto-avaliar-se.
8) Analisar o currículo da escola em função de sua filosofia, desempenho
do professor, rendimento da capacidade dos alunos, validade dos
conteúdos trabalhados, equipamento e materiais disponíveis, grau em
que estão sendo concretizados os objetivos (aspectos positivos, aspectos
negativos).
9) Aferir a eficácia dos instrumentos utilizados pelos professores e em que
aspectos precisam ser melhorados (material, estratégias de ensino,
integração com a turma, integração dos alunos etc.).
10) Conscientizar o professor de que a auto-avaliação contínua de seu
trabalho, com vistas ao planejamento, promove a aprendizagem mais
eficiente do aluno.
11) Através de parecer descritivo, permitir à família e ao aluno uma visão
clara de seu rendimento (SANT`ANNA, 1995, p. 89-90).

De acordo com essas recomendações é possível perceber uma avaliação mais


alinhada e proveitosa inerente ao processo educativo, como também um olhar mais detalhado
sobre a avaliação e para possíveis encaminhamentos no que concerne o Conselho de Classe.
Porém, ainda é admissível perceber a existência de alguns docentes que não conhecem ou não
sabem o porquê da existência e da importância do CC adotado pelas escolas.
Para esclarecer está inquietação que aflora em alguns professores, Sant´Anna (1995)
nos proporciona algumas explicações e esclarecimentos:

1) favorece a integração entre professores, aluno e família.


2) torna a avaliação mais dinâmica e compreensiva.
3) possibilita um desenvolvimento progressivo da tarefa educacional.
4) conscientiza o aluno de sua atuação.
5) considera as áreas afetiva, cognitiva e psicomotora.
632

6) a comunicação dos resultados é sigilosa e realizada pelo professor


conselheiro, eleito pela turma.
7) os professores mais radicais, que tentam apresentar seus conceitos
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predeterminados, são ajudados pelos colegas a visualizarem o aluno


como um todo e a terem uma concepção clara dos propósitos de uma

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avaliação formativa. São esclarecidos de que, se nos objetivos se propôs
apenas identificar, comparar ou associar, eles não têm o direito de querer
avaliar aplicação de conhecimentos. Que é preciso buscar instrumentos e
critérios que permitam abranger os diferentes domínios do
comportamento humano, em função do conhecimento. Em última
análise, são informados de que os objetivos do ensino devem estar em
consonância com os da avaliação. Concluindo, são conscientizados de
que uma avaliação ampla, voltada mais para o desenvolvimento do que
para o conhecimento, oferece melhores e maiores condições de
motivação para uma aprendizagem eficiente, eficaz e duradoura
(SANT´ANNA, 1995, p. 93).

Nesse sentido, o Conselho de Classe é um espaço democrático e avaliativo, o qual


oferece subsídios para os educadores e consequentemente melhores condições de avaliações
porque o conhecimento é construído através da interação do outro, como também um olhar
mais detalhado numa perspectiva avaliativa. “É preciso admitir, também, que [...] a verdadeira
construção do saber se dá coletivamente” (SANT´ANNA, 1995, p. 129).
Este órgão colegiado de prática avaliativa deseja que os alunos estejam sendo
observados pelos profissionais da educação individualmente, procurando avaliar, diagnosticar
e compreender suas dificuldades para assim, saber encaminhar o que for necessário para que o
mesmo adquira uma melhor aprendizagem.

4 Análises sobre os olhares dos professores

Neste momento analisaremos e discutiremos os posicionamentos dos professores


coletados através do questionário. De acordo com as perguntas elaboradas foram elencadas 03
(três) para o corpus deste trabalho. Para preservação e ética dos nomes dos professores foi
resolvido chama-los de sujeito e enumerá-los.
No primeiro momento, partimos dos pressupostos avaliativos dos professores. Para
chegarmos a um posicionamento, analisaremos a primeira pergunta: De acordo com suas
concepções, o que é avaliação para você? Vejamos, os depoimentos dos professores:

Sujeito 1: “Uma maneira global de obter um feedback do aluno, ou seja, se


ele assimilou ou não o que foi ministrado no trimestre.”
Sujeito 2: “Avaliação é o processo de tomadas de decisões que implica no
633

julgamento de algo.”
Sujeito 3: “Instrumentos necessários para avaliar onde precisamos crescer,
melhorar, focar etc.”
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Conforme podemos observar, o Sujeito 1 entende por avaliação uma resposta, ou
seja, o entendimento do aluno no decorrer de cada trimestre do ano letivo. Assim, o professor
utiliza a avaliação de maneira concisa, porém não deixa claro se faz algum encaminhamento
ao estudante possa trabalhar as suas dificuldades. Já para o Sujeito 2, acredita que avaliar é
tomar decisões e posteriormente julgar algo, porém ele não especifica este “algo”, mas fica
compreendido que seja o entendimento do aluno devido a nomenclatura “julgamento”, o qual
utiliza.
A meu ver, avaliar vai muito além de julgar. Nós, professores, não podemos julgar
nada, porém podemos fazer encaminhamentos para uma melhor aprendizagem. Julgar fica
para os profissionais do Direito, ou seja, os juízes, estes possuem a plenitude de julgar as
atitudes das pessoas, logo para fazer determinado juízo de valor eles partem de suposições
como também, provas concretas para tal entendimento.
Em relação ao Sujeito 3, aponta a importância da avaliação como forma de promover
o desenvolvimento do próprio professor a partir da busca de melhorias em seu processo
avaliativo. Ou seja, o mesmo compreende a avaliação como procedimento que complementa o
ensino através da autoavaliação do seu trabalho. Porém, não especifica a avaliação voltada
para o aluno, o qual necessita de acompanhamento em seu processo de aprendizagem.
Ao tentar compreender o processo avaliativo nos deparamos com diferentes
concepções. Avaliar é algo muito complexo o qual exige leituras como também, compreensão
das diferentes habilidades dos alunos em sua construção de conhecimento. Além disso,
convidar os discentes para se autoavaliarem e avaliar seus professores de forma construtiva é
uma maneira de tonar a avaliação num procedimento menos burocrático e exaustivo para
ambos.
Nesta perspectiva avaliativa, discorremos sobre esse processo, todavia relacionado ao
Conselho de Classe. Assim, podemos observar os depoimentos em relação à segunda
pergunta: De que maneira você avalia seus alunos no Conselho de Classe?

Sujeito 1: “Interesse, compromisso e o nível de aprendizado em outras


disciplinas.”
Sujeito 2: “Avalio de forma mais justa possível.”
Sujeito 3: “De maneira geral, suas competências, avanços ou falta de
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compromisso, possíveis problemas pessoais que tenha enfrentado, levo em


consideração tudo, vida pessoal, psicológica etc.”
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Como percebemos, o Sujeito 1 leva em consideração em sua prática avaliativa os
depoimentos dos outros professores. Este processo de escuta é muito importante dentro da
perspectiva do conselho de classe porque orienta o professor a concluir ou até mesmo inter-
relacionar sua avaliação em relação ao aluno. Além disso, avalia o desenvolvimento do aluno
em suas aulas, ou seja, o comprometimento e participação do discente em sala e seu processo
cognitivo.
Em relação ao Sujeito 2, especifica que avalia seu alunado de maneira mais justa
possível, porém o que seria avaliar justamente. Não acredito que exista uma avaliação
imparcial pelo fato de haver muitos obstáculos no método avaliativo. Podemos citar alguns:
problemas familiares, dificuldade de assimilação de conteúdos, dificuldade de interpretação
etc. Todavia, o docente utiliza o termo “possível” o qual ameniza o peso da nomenclatura
“justo” que o mesmo utiliza.
É perceptível está prática avaliativa pelo Sujeito 2, devido ao método utilizado em
seu processo de avaliação no decorrer do ano letivo, o qual emprega o termo “julgamento” em
sua resposta da pergunta 1, anteriormente analisada. Isso nos faz perceber e compreender
melhor sua assimilação no que condiz seu posicionamento no conselho de classe.
O Sujeito 3, por outro lado, faz um diagnóstico mais detalhado porque leva em
consideração todos os problemas possíveis enfrentados pelo aluno. Esse tipo de ponderação é
o mais aconselhável devido ao próprio sistema de ensino. Pois, como bem sabemos o CC leva
em consideração o processo individual do aluno, porém com uma variação nos depoimentos
dos professores.
Dentro desta perspectiva avaliativa, nos detemos agora as possíveis decisões e seus
encaminhamentos no que concerne ao entendimento dos professores a este órgão colegiado.
Assim, a terceira pergunta: O que é decidido durante o conselho e qual o encaminhamento
posterior?

Sujeito 1: “Aprovação ou permanência do resultado ou ainda se o aluno vai


“pagar” ou não dependência, claro, com a comunicação aos pais.”
Sujeito 2: “É decidido se o aluno tem condição ou não de prosseguir para
série ou ano seguinte, bem como se ele ficará retido ou ainda em
dependência. Já o encaminhamento é dado de acordo com o que foi decidido
no conselho.”
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Sujeito 3: “Se o aluno que permaneceu em reprovação tem condições de


avançar ou se realmente deve permanecer reprovado; avaliam-se os possíveis
motivos e competências.”
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De acordo com o entendimento do Sujeito 1 é decidido no CC a aprovação, a
permanência do aluno ou sua dependência em alguma disciplina escolar. Porém, o mesmo não
especifica de que maneira são tomadas as decisões. Mas, deixa claro que o encaminhamento
será a comunicação aos pais sobre o posicionamento da coletividade do CC.
Já o Sujeito 2 deixa bastante claro seu entendimento no que concerne a importância
das decisões e os possíveis encaminhamentos ao aluno. Elencando as possibilidades de
progressão do discente para o ano seguinte com vista à comunicação aos pais. Este órgão
colegiado visa trabalhar de maneira democrática e coletiva. Contudo, é preciso a conversação
com os familiares para deixar claro como foi o desempenho do alunado durante o ano letivo,
como também é importante o posicionamento e depoimentos dos demais professores para a
tomada de decisões.
Seguindo está mesma linha de raciocínio, o Sujeito 3 acrescenta a importância da
avaliação dos professores procurando compreender os motivos ou as competências que
levaram o aluno a reprovação. E deixa claro que existe na avaliação, sob os olhares dos
docentes, uma consideração em seu processo avaliativo para com a perspectiva afetiva e
cognitiva do discente.

Conclusão

Este estudo teve como principal objetivo analisar os posicionamentos dos professores
de múltiplas disciplinas quanto à instância avaliativa do Conselho de Classe, partindo da
necessidade de refletirmos e compreendermos sobre esse órgão colegiado. Sendo assim, os
docentes que compõem essa instância avaliativa têm por objetivo trabalhar de maneira clara e
concisa seus apontamentos de forma democrática, oportunizando redirecionamentos no
processo de ensino e aprendizagem dos discentes.
Concluímos que avaliar não é nada fácil devido exigir muito do professor, pois o
mesmo precisa fazer um acompanhamento minucioso do aluno. Dentro desta perspectiva
avaliativa, o CC não pode ser visto como uma oportunidade de julgar o aluno pelo contrário é
o momento de realizar apontamentos em relação às suas dificuldades e quais os possíveis
encaminhamentos para a melhoria de sua aprendizagem.
636

Os resultados obtidos através dos depoimentos dos professores oferecem evidências


de que as características dos seus posicionamentos são bastante semelhantes, ou seja,
Página

demonstram a avaliação como meio de fazer apenas apontamentos e ser disciplinador. Mas,

ISBN: 978-85-7621-221-8
também comprova algumas mudanças em relação ao processo avaliativo, progredindo numa
perspectiva construtiva.
Em relação ao processo avaliativo no CC, o aluno é analisado como um todo, ou
seja, em seus vários aspectos, como: comportamental, cognitivo, dentre outros. Desta forma,
este órgão é entendido como um momento de reflexão das práticas avaliativas.
Acredito, portanto, que a reflexão e a tomada de consciência das concepções e
atitudes avaliativas podem acarretar mudanças na prática do professor. Porém, essas
mudanças não ocorrem de maneira rápida elas vêm sendo desenvolvidas gradativamente e de
forma contínua. Além disso, para que a avaliação almeje sua tão sonhada dimensão educativa
se faz necessário que o docente procure sempre que possível se autoavaliar, respeitando sua
complexidade e reconhecendo os objetivos reais do processo avaliativo.

Referências

BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.


Lei nº. 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Brasília: MEC/FAE. Disponível em:
<http://portal.mec.gov.br/arquivos/pdf/ldb.pdf>. Acesso em: 15/02/14.

GURA, Vanderléia.; SCHNECKENBERG, Marisa. O Conselho de classe como processo


avaliativo. In: CONGRESSO NACIONAL DE EDUCAÇÃO, 10., 2011, Curitiba. Anais
eletrônicos. Curitiba: EDUCERE. 2011.p.5106, ref. 2-5107. Disponível em:
<http://educere.bruc.com.br/CD2011/pdf/5464_2979.pdf >. Acesso em: 27 fev. 2014.

HOFFMANN, J. Avaliação: mito e desafio. 23. ed. Porto Alegre: Mediação, 1991.

LUCKESI, C.C. A avaliação da aprendizagem escolar: estudos e preposições. 3. ed. São


Paulo: Cortez, 1996.

SANT`ANNA,Ilza Martins. Por que avaliar?: como avaliar?: critérios e instrumentos.


Petrópolis, RJ: Vozes, 1995.
637
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ISBN: 978-85-7621-221-8
GT4 – DISCURSOS E PRÁTICAS NO CAMPO DA EDUCAÇÃO

GESTÃO DEMOCRÁTICA NOS NÚCLEOS DE EDUCAÇÃO RURAL NO


MUNICÍPIO DE MOSSORÓ-RN

Maria Nilza Batista Luz (UERN)


Francisca de Fátima Araújo Oliveira (UERN)

1 Marços regulatórios da gestão democrática no Brasil.

Algumas considerações nos pautarão sobre a educação enquanto um direito constitucional e a


gestão democrática como um princípio de gestão assegurado pela legislação brasileira que
busca desenvolver a participação e a democratização. No artigo 206, da Constituição Federal
estabelece os “princípios do ensino”, inclui, entre eles, no Inciso VI a “gestão democrática do
ensino público”, princípio que é reafirmado na Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (LDB) de 1996 e pelo Plano Nacional de Educação (PNE) de 2014-2024. As duas
legislações primeiramente mencionadas contribuíram significativamente com o processo de
implantação da gestão democrática que vem sendo construído no Brasil ao longo dos anos, e o
PNE, apresenta metas e estratégias para política educacional no Brasil, e a gestão democrática
da escola esta presente nessas metas com o objetivo da efetiva participação dos vários
segmentos da comunidade escolar, pais, professores, estudantes e funcionários nos processos
decisórios da escola, sendo a participação de todos os sujeitos envolvidos imprescindível no
processo democrático.
A Lei de Diretrizes e Bases (LDB) de 1996 aponta a gestão democrática do ensino
público como um dos princípios em que deve se assentar a Educação Nacional. Neste
contexto, evidencia-se dentre as responsabilidades dos sistemas públicos de ensino, que estes
devem definir as normas da gestão democrática do ensino básico, com a garantia da
participação dos profissionais da educação na elaboração do projeto político pedagógico da
escola, e da participação das comunidades escolar e local em conselhos escolares ou
equivalentes. “a gestão democrática do sistema, em todas as esferas de organização, é um
princípio basilar a partir do qual se fortalecem espaços de participação e de pactuação já
instituídos e por instituir” (MARQUES, 2013). Garantindo, também, que “os referidos
638

sistemas devem assegurar às suas unidades escolares progressivos graus de autonomia


pedagógica, administrativa e financeira, deliberações que expressaram modos concebidos para
Página

que se viabilizasse o princípio da gestão democrática da educação básica” (BRASIL, 1996).

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2 Um breve recorte da pesquisa

Os Núcleos de Educação Rural, assim denominado pela administração Municipal, são


escolas localizadas na zona rural do município de Mossoró-RN, que oferecem da educação
infantil ao ensino fundamental menor, e a escola que tiver o maior número de alunos
matriculados é a que é denominado como pólo, ou seja, dá o nome ao núcleo rural (são as
escolas localizadas em comunidades rurais maiores e que conta com o maior número de
alunos matriculados), então desde que essas escolas foram transformadas em núcleo por meio
de portaria/decreto nos anos 1990, elas foram agrupadas, de acordo com a localização
geográfica e partilhando de algumas particularidades comuns, onde as mesmas estão
presentes, observando as especificidades, mas ao mesmo tempo será necessário uma
observação quanto ao contexto local em que as escolas estão inseridas.
Justamente nesse panorama onde pretendemos apresentar meus objetivos para
pesquisa sendo o geral: Identificar os desafios e possibilidades da gestão democrática na
esfera administrativa dos núcleos de educação rural da rede municipal de ensino de Mossoró-
RN. Temos como objetivos específicos: Analisar os processos democráticos que norteiam a
gestão escolar no contexto rural; Verificar, as dificuldades encontradas para implementar os
processos decisórios nos núcleos de educação rural; Compreender como a gestão democrática
é constituída no espaço escolar diante das demandas existentes, nos núcleos de educação
rural, referentes à atuação dos conselhos escolares. Com esses objetivos procuraremos
compreender e explicar o problema pesquisado, a partir da utilização dos métodos e
procedimentos que pretendemos utilizar na pesquisa tais como entrevistas semi-estruturadas e
analise documental, que serão desenvolvidos como forma de abordagem do tema pesquisado.
A concepção de gestão escolar pressupõe um entendimento mais ativo e profundo da
participação efetiva da comunidade escolar nas tomadas de decisões, pois visa que os
processos democráticos existentes na escola como o conselho escolar, a construção ou
reorganização do PPP, nesse ambiente sejam participativos e deve percebe a escola como um
espaço de relações, conflitos, de negociação e interesses. O gestor deve propiciar que o
processo seja participativo, compartilhando compromissos e responsabilidades como forma de
envolvimento da comunidade escolar e principalmente como meio de assegurar que os
639

embates existentes possam fortalecer as ações desenvolvidas no ambiente escolar no processo


de consolidação de uma escola democrática, pois a mesma como uma instituição publica,
Página

exige uma gestão baseada nos princípios da gestão participativa, que demanda conhecimentos

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administrativos e pedagógicos entre outras atividades, pois esses mecanismos irão fortalecer
as práticas democráticas no âmbito educacional.
É interessante ressaltar como se dá efetivamente a organização dos núcleos de
educação rural na esfera administrativa no contexto escolar como desenvolvimento e o
gerenciamento dos recursos humanos e financeiros, visto que o gestor é um para cada núcleo,
o mesmo é composto por várias escolas, tendo que dá conta das demandas que emergem no
contexto escolar em todas as esferas da gestão.
Os debates envolvendo a gestão democrática, são abordados em eventos/encontros
sobre a educação como tema central das discussões abrindo escalas de possibilidades que
ganham cada vez mais força sobre alguns mecanismos voltados para ações em defesa da
participação da comunidade escolar nas decisões sobre a vida da escola. Nesse sentido,
(LUCK, 2002, p. 66), afirma:

A participação significa, portanto, a intervenção dos profissionais da educação


e dos usuários (alunos e pais) na gestão da escola. Há dois sentidos de
participação articulados entre si: a) a de caráter mais interno, como meio de
conquista da autonomia da escola, dos professores, dos alunos, constituindo
prática formativa, isto é, elemento pedagógico, curricular, organizacional; b) a
de caráter mais externo, em que os profissionais da escola, alunos e pais
compartilham, institucionalmente, certos processos de tomada de decisão.

Cada vez mais a gestão da escola deve ocorrer de forma descentralizada, com a
participação efetiva dos conselhos escolares, sugerindo, propondo, fiscalizando a aplicação de
recursos financeiros, construindo junto com a gestão o projeto político-pedagógico da escola,
discutindo a avaliação escolar e a estrutura curricular, buscando estreitar os vínculos sociais
com a comunidade local, trazendo os pais e a comunidade para discussões não apenas
administrativas mais também sobre aprendizagem e principalmente para participarem como
cidadãos ativos das deliberações da escola. Um suporte na busca dessa gestão democrática é
o projeto político pedagógico - PPP que pode ser utilizado na operacionalização da
participação como elemento norteador das ações que serão desenvolvidas pela comunidade
escolar na busca dessa construção.
Como iremos trabalhar com a realidade de dois núcleos rurais, onde o recorte que
fizemos compreende um universo de sete unidades educacionais as quais estão localizadas em
640

área rurais, mais com particularidades distintas, essa analise possibilitará fazer reflexões sobre
Página

vários aspectos procurando sempre compreender como o conselho escolar pode contribuir

ISBN: 978-85-7621-221-8
com a gestão escolar como forma de efetivar e consolidar tornando-o mais ativo nas práticas
democráticas desenvolvidas no contexto da realidade presente desses núcleos é possível que
durante o desenvolvimento da pesquisa, algumas constatações sejam levantadas e que
inicialmente não tínhamos essa pretensão, portanto as ações para reflexões sobre de
participação e engajamento do conselho escolar, nas tomadas de decisão observando o
desenvolvimento das ações sejam ela continuas, integradas ou não, mais procurando sempre
alcançar essas reflexões por parte dos sujeitos envolvidos.
A caracterização da gestão dos núcleos deve levar em consideração a importância da
escola para aquela comunidade que a mesma esta inserida, ressaltando ainda que por
apresentarem contextos semelhantes, quanto a algumas especificidades, pois todas as escolas
são localizadas em comunidades rurais, no entanto apresenta também distintos aspectos, pois
não se aplica a mesma forma de homogeneidade dos cotidianos, as peculiaridades de cada
escola que compõem os núcleos devem ser totalmente consideradas para implementação dessa
gestão democrática. Como a pesquisa será desenvolvida em dois núcleos de educação rural,
dos oito que existe no município de Mossoró-RN, representando um universo em torno de
vinte e cinco por cento do total existente.
O lócus da pesquisa será escolas que compõem os Núcleos Municipais de Educação
Rural, onde serão observados os processos de participação da comunidade escolar nos órgãos
colegiados, e se os referidos núcleos contemplam em suas funcionalidades a promoção da
gestão democrática? Para esta pesquisa optamos por realizar uma abordagem metodológica
qualitativa na perspectiva da possibilidade de conseguir compreender o objeto de estudo.
Poderemos utilizar como método de pesquisa, ou seja, o caminho que devem ser percorrido
para a produção deve ter no rigor da pesquisa sua cientificidade, para alcançar nossos
objetivos na pesquisa utilizaremos a analise documental, e a entrevista semi-estruturada, além
do levantamento realizado no banco de teses da CAPES, como estratégia que possa dar
suporte e favorecer a compreensão de todos os pormenores que formam cada parte de um todo
do nosso objeto de estudo.
Essas entrevistas semi-estruturada serão utilizadas para o levantamento de dados junto
ao gestor escolar, o conselho escolar, professores e moradores mais idosos e lideranças locais,
e pós a coleta de dados alguns autores “sugerem a classificação dos mesmos de forma
641

sistemática através de seleção (exame minucioso dos dados), codificação (técnica operacional
de categorização) e tabulação (disposição dos dados de forma a verificar as inter-relações)
Página

(LAKATOS E MARCONI, 2007), levando em consideração a realidade de cada contexto

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onde as escolas do núcleo estão inseridas. Ressaltamos ainda, que os gestores envolvidos
serão questionados sobre quais práticas democráticas são realizadas no espaço escolar e quais
os agentes envolvidos nesse processo, se já tiveram outras experiências profissionais e há
quanto tempo trabalham no núcleo? O processo de interpretação dos dados será desenvolvido
a partir do referencial teórico abordado anteriormente para embasamento da pesquisa que terá
a contribuição dos sujeitos da pesquisa, essa articulação com a teoria, se faz necessário para
os analise dos resultados obtidos.
A nossa analise consistirá no levantamento de informações a respeito da gestão
escolar, entendendo que é importante destacar que a gestão democrática é algo mais
abrangente que envolve todos os componentes da comunidade escolar. Serão observados
aspectos referentes à operacionalidade do PPP funcionamento e atuação do conselho escolar,
às práticas democráticas desenvolvidas através do gestor como atuação dos mesmos no
contexto escolar, os discursos e os saberes, tomando como base a importância das ações da
gestão participativa e pedagógica nas escolas que compõem os núcleos de educação rural.

3 Participação da comunidade escolar

Para a consolidação da pesquisa será necessária à elaboração de planejamento das


ações que serão desenvolvidas com a finalidade de compreender como se dá o funcionamento
dos núcleos na esfera administrativa, procurando entender como foi o processo de
transformação das escolas isoladas em agrupamento nos núcleos educacionais. Numa
perspectiva de colaboração durante a pesquisa, iremos entrevistar o gestor do núcleo, o
supervisor escolar, o presidente do conselho escolar, moradores mais experientes da
comunidade entre outros que se fizerem necessários durante o desenvolvimento da pesquisa
sendo essa participação da comunidade escolar primordial para o desenvolvimento da
pesquisa visto que entendemos a participação como processo em construção nada fechado
apenas em processo, pois serão alterados ou incluídos outros sujeitos desde que a própria
pesquisa necessita desse ajustamento para que se compreenda e alcance a resposta da nossa
pergunta de partida: Como vem acontecendo a gestão administrativa com enfoque nos
conselhos escolares em núcleos de educação rural, na cidade de Mossoró-RN?
642

Sempre procurando estabelecer uma relação entre a equipe gestora e a comunidade


escolar observando como podem contribuir e auxiliar na execução da gestão escolar, pois as
Página

lideranças locais e moradores mais idosos da comunidade, pessoas experientes poderão

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contribuir com informações/relatos agindo como colaboradores de todo esses percurso de
transformação pelo qual os núcleos passaram ao longo dos anos então poderemos verificar se
houve verdadeiramente implantação de práticas democrática que será abordado no decorrer da
pesquisa.
Esses procedimentos metodológicos ocorrerão através de visita às escolas e as
comunidades, que estão inseridas as escolas com conversas e analise de documentos,
entrevista para analise dos dados, que serão levantados principalmente os relatos históricos
sobre a escola: funcionamento, corpo docente, estrutura física, atuação dos gestores,
participação do conselho escolar e discussões sobre o PPP. Será consultada a regulamentação
legal: decretos/portaria emitida pela prefeitura Municipal de Mossoró que agrupou as escolas
rurais em núcleo, pois as mudanças ocorreram para além da denominação. Na continuidade
deste momento da pesquisa observaremos o levantamento de informações documentais sobre
a função do gestor as evoluções que a função passou ao longo desses anos, nas unidades de
ensino rurais.
Poderíamos dizer que a gestão democrática participativa é aquela que constrói o seu
Projeto Político Pedagógico- PPP de forma coletiva, com a participação do conselho escolar
procurando estratégias e implementação de mecanismos de transformação social. Alguns
outros elementos presentes tornam-se evidentes como partes constitutivas da gestão
democrática, e a transparência é indispensável para práticas democráticas no contexto escolar
na busca da democratização da gestão da escola como espaço público.

Quase como um amálgama dos elementos constitutivos da gestão


democrática, a transparência afirma a dimensão política da escola. Sua
existência pressupõe a construção de um espaço público vigoroso e
aberto às diversidades de opiniões e concepções de mundo,
contemplando a participação de todos que estão envolvidos com a
escola (ARAÚJO, 2000, p. 155).

O trabalho deverá priorizar e descrever as ações efetivas da gestão administrativa nos


núcleos, quais os projetos anteriores e atuais já foram realizados em participação/parceria com
a comunidade procurando divulgar as ações da gestão participativa que a escola já
desenvolveu no decorrer de outros anos letivos. Essa analise da gestão administrativa nos
643

núcleos pretendem priorizar, como se deu a construção do projeto político pedagógico, a


atuação dos conselhos escolares, reuniões administrativas e pedagógicas, reuniões de pais e
Página

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mestres, entre outros mecanismos que se fizerem necessários para o desenvolvimento da
pesquisa. Quanto à construção do Projeto Político Pedagógico

O projeto busca um rumo, uma direção. É uma ação intencional, com um


sentido explícito, com um compromisso definido coletivamente. Por isso, todo
projeto pedagógico da escola é, também, um projeto político por estar
intimamente articulado ao compromisso sociopolítico com os interesses reais
e coletivos da população majoritária. É político no sentido de compromisso
com a formação do cidadão para um tipo de sociedade. Na dimensão
pedagógica reside à possibilidade da efetivação da intencionalidade da escola,
que é a formação do cidadão participativo, responsável, compromissado,
crítico e criativo. Pedagógico, no sentido de definir as ações educativas e as
características necessárias às escolas de cumprirem seus propósitos e sua
intencionalidade (VEIGA, 2004, p. 13).

Para isso, devem ser analisadas as informações documentais para efetivação dessa
construção onde serão necessárias à realização desse minucioso procedimento com vistas às
peculiaridades das escolas rurais, talvez seja necessário ainda levantamentos preliminares para
suporte das modificações que ocorreram na parte da gestão nos núcleos seja na parte
administrativa, pedagógica ou financeira quais as práticas foram implementadas para
promover uma gestão participativa dando margem para uma análise mais apropriada da
situação real de como os núcleos se percebem no contexto da educação do município.

4 Gestão Democrática e os Núcleos de Educação Rural

Gestão escolar do ponto de vista tradicional onde o diretor é visto como


administrador/autoridade de referência na escola para todos os assuntos e determinações
administrativas, essa imagem e principalmente esse conceito vem sofrendo uma mudança que
de acordo com a legislação a gestão escolar deve ser pautada em ações de colaboração entre a
equipe e comunidade escolar, onde a gestão democrática deve ser participativa, e centra-se em
fundamentos de abordagens que remete a qualidade do ensino. Alguns apontamentos sobre a
administração escolar e gestão escolar, levam à formação de algumas discussões com pontos
antagônicos entre os dois anteriormente mencionados, pois cada ponto de vista é defendido e
debatido provocando embates e discussões sobre a temática.
644

Administrar uma escola, como aponta alguns estudiosos devera ser exercida por
administradores, como afirma Werner Kugelmeier “É por meio dessa formação que o
Página

profissional saberá como montar um modelo de gestão composto por elementos básicos:

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objetivos, estratégias, prioridades, recursos, pessoas, organização e, por último,
monitoramento” este autor defende que, apesar de suas particularidades, a gestão da escola
insere-se no contexto da administração. Mais existem contrapontos onde há autores que
defendem que a gestão escolar deva ser exercida realmente por quem entenda de educação,
como ressalta Vitor Paro “O mais importante para dirigir uma escola é que a pessoa entenda
de Educação. A parte administrativa qualquer um consegue fazer” tendo em vista que a escola
está inserida numa realidade, não podendo, desta forma, existir uma administração escolar
dissociada do seu cotidiano ao qual faz parte.
Tendo em vista uma concepção de gestão escolar, é importante verificar como o
diretor do núcleo rural assume a gestão, considerando alguns apontamentos sobre a rotina
diária do mesmo, pois tem que mediar conflitos tendo que ter equilíbrio emocional como
forma de resolver as adversidades presentes no chão da escola, os conflitos de interesse de
pensamentos, opiniões e posições divergentes entre pais, alunos, funcionários, professores e
comunidade em geral é necessários mediar os conflitos preservando as particularidades ou as
diferenças entre os mesmos, pois o conhecimento por parte do gestor da sua comunidade
escolar pode facilitar na hora de mediar os conflitos, no entanto a escolha do diretor do núcleo
de educação rural, no município de Mossoró-RN, é feita através de processo de indicação
política, onde os mesmos são nomeados através de portaria em cargo comissionado, os
denominados cargos de confiança para exercer a função de diretor de ensino não passando por
nenhum processo democrático de escolha do seu nome por parte da comunidade escolar
quando na maioria dos casos esses gestores são nomeados, prevalecendo à indicação e não se
leva em consideração a formação do gestor, esses diretores que na maioria dos casos não
conhecem a realidade rural no qual os núcleos estão inseridos, pois alem de serem composto
de varias escolas e estas estarem localizadas em comunidades rurais distintas, onde as
especificidades e demandas de cada das escolas requerem uma atenção individualizada diante
das particularidades existentes, sem falar de todas as demais demandas presentes e problemas
de ordem global que também está presente na realidade do campo tais como: desagregação
familiar, presença das drogas, violência entre outros.
Observar-se, também que o Município de Mossoró-RN apesar de propor uma política
de gestão escolar participativa, a forma de escolha dos gestores escolares municipais da zona
645

urbana e rural não é realizada a partir da eleição democrática de seus gestores entre a
comunidade escolar a partir do voto como prevê a legislação estadual do estado do Rio
Página

Grande do Norte. Diante desse quadro salientamos que as práticas democráticas nessas

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instituições de ensino podem vir a ficar comprometida sendo um tanto, por desconhecerem a
gestão democrática e todos os processos que estão envolvidos; outro tanto, por terem
incorporado práticas administrativas tradicionais, durante seu processo de formação e de
profissionalização. Um questionamento que pode ser feito seria em relação às práticas efetivas
de gestão participativa nos núcleos de educação rural no município de Mossoró-RN? E como
essas práticas contribuem para a gestão administrativa dos núcleos.

5 O conselho escolar e os espaços de participação

Uma das questões desafiadora a serem enfrentadas pela efetivação da gestão


democrática é a abertura de espaço para a participação e a colaboração dos agentes envolvidos
nesse processo de democratização da gestão. O “reconhecimento da existência de diferenças
de identidade e de interesses que convivem no interior da escola e que sustentam, através do
debate e do conflito de idéias, o próprio processo democrático” (ARAÚJO, 2000 p. 134).
Precisamos compreender se os elementos indispensáveis a gestão democrática estão
presentes na estrutura de organização da nucleação das escolas da zona rural do município de
Mossoró-RN, que compreende as escolas do ensino fundamental menor onde o processo
agrupamento tem por objetivo a organização do ensino no meio rural. As escolas-núcleo estão
organizadas na sua maioria em escolas com turmas multisseriadas – onde existe um único
professor para lecionar, na maioria dos casos em turmas do 1° ao 5° ano, em uma única turma,
mesmo que na grande maioria contam com um pequeno número de alunos, essas escolas pólo
são localizadas em comunidades centrais onde os alunos são provenientes de outras
comunidades rurais menores que se localizam nas adjacências dessas comunidades centrais.
Autores como Bof (2006, p. 23) reafirmam essa realidade vivenciada pela população rural:

As Escolas Rurais de educação básica apresentam características


próprias em função da dispersão da população residente. Os
estabelecimentos são, em sua grande maioria, de pequeno porte. Cerca
de 70% dos estabelecimentos que oferecem ensino fundamental de 1ª.
a 4ª. série atendem até 50 alunos e neles estão matriculados 37% dos
alunos da área rural desse ensino.
646

O que o autor chama de serie (1ª a 4ª), hoje compreende do 1º ao 5º ano, conforme lei
11.274/2006 que amplia o ensino fundamental em 9 anos. O processo de nucleação, no Brasil,
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foi particularmente forte na década de 1990, quando as reformas educacionais na educação

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básica, induzidas pela LDB 9.394/96, priorizaram o Ensino Fundamental com a criação do
Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental, de Valorização do
Magistério (FUNDEF) e o fortalecimento do Fundo Nacional de Desenvolvimento da
Educação (FNDE). A prefeitura municipal de Mossoró começou o processo de nucleação das
escolas da zona rural também nos anos 1990, onde a mesma estabeleceu um sistema de
organização/divisão para que as escolas rurais do ensino fundamental dos anos iniciais fossem
integrantes desse novo sistema de organização do ensino no meio rural, com essa nova
conjuntura foi adotado a implantação do programa Escola Ativa, que era uma parceria do
Ministério da Educação com a secretaria de Educação Municipal, onde era aplicada uma
metodologia de ensino para trabalhar com classes multisseriadas nas séries iniciais do ensino
fundamental das escolas do campo.
Essa compreensão de que o conselho escolar é parte do processo de democratização da
gestão entendido aqui como a participação da comunidade na gestão escolar
É importante destacar que as práticas educativas devem esta centrada na participação de
representação de todos os segmentos das comunidades escolar no desenvolvimento de um
ambiente de confiança, na busca da construção de uma gestão democrática mais efetiva. È
necessário respeitar a cultura e as especificidades das escolas, procurando ampliar a
participação direta dos sujeitos na gestão da escola.

Referências

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Dissertação (Mestrado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade de Brasília
(PPGE/Unb). Brasília, 2000.

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Educação, 2006.

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contexto municipal. Campinas, São Paulo: Alínea, 2011. Cap 4, p. 105-155.

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GT4 – DISCURSOS E PRÁTICAS NO CAMPO DA EDUCAÇÃO

SUBJETIVIDADE E GESTÃO NA VOZ DOS GESTORES ESCOLARES

Thayse Mychelle de Aquino Freitas (UERN)


Arilene Maria Soares de Medeiros (UERN)

Introdução

Este trabalho busca compreender a dimensão subjetiva da gestão escolar com base nas
narrativas (auto) biográficas de gestores escolares que são Mestres em Educação pela
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). As narrativas dos sujeitos trazem
seus contextos cotidianos, os percursos formativos, as trajetórias profissionais, os conflitos, as
barreiras enfrentadas no exercício da função, os sentimentos que emergem nesse fazer
cotidiano. Diante disso, iremos, aos poucos, mostrando a subjetividade intrínseca ao sujeito
em suas práticas, ações e experiências. As práticas profissionais dos gestores escolares, como
as de quaisquer outros profissionais, não são neutras. Elas vêm sobrecarregadas de
subjetividade. Ou seja, de receio, expectativas, desejos, significados. Enfim, não há como
desvincular gestão escolar da subjetividade de quem a pratica cotidianamente.
As narrativas são, portanto, um eixo norteador, ou seja, uma direção para a reflexão
sobre o assunto no qual estamos nos propondo investigar. Para isso, dialoga-se com as
narrativas e com o referencial teórico, e a partir disso os achados e conclusões irão se tecendo.
Além disso, destacam-se excertos das narrativas que foram consideradas mais pertinentes e
que promoveram mais reflexão, elegidas, pois, como fragmentos cruciais, dentro de um
contexto, para a compreensão da subjetividade no cotidiano profissional do gestor escolar.
Esta é uma pesquisa qualitativa cujos dados foram coletados por meio de entrevistas
semiestruturadas online, via e-mail, realizadas com dois sujeitos que construíram suas
dissertações na Linha de Pesquisa Políticas e Gestão da Educação, do Programa de Pós-
Graduação em Educação da UERN, coroando, assim, seu vínculo com área de atuação: gestão
escolar. Escolhemos este tipo de entrevista, pois os dois sujeitos desta pesquisa residem em
cidades distantes da nossa. Um reside na capital cearense e outro na cidade de Frutuoso
Gomes-RN. Ademais foi realizada uma revisão bibliográfica, por meio da qual selecionamos
649

o aporte teórico/metodológico para fundamentar esta pesquisa. Dentre os autores selecionados


Página

estão: Costa (2011), Libâneo (2004), Lück (2009), Wiebuch e Corte (2014) etc. O presente

ISBN: 978-85-7621-221-8
estudo está organizado em três itens, os quais partem inicialmente da identificação dos
sujeitos até a análise e compreensão de suas narrativas profissionais (auto) biográficas,
buscando desvelar as subjetividades inerentes ao campo da gestão escolar.

1 Perfil do/a Gestor/a

Os gestores escolares, sujeitos desta pesquisa, são Mestres em Educação pela UERN,
com pesquisas desenvolvidas na Linha de Pesquisa Políticas e Gestão da Educação,
evidenciando o percurso formativo e tempo de experiência profissional. Escolhemos realizar a
pesquisa com esses sujeitos por considerar que os mesmos teriam mais abertura para desvelar
subjetividade inerente às práticas cotidianas. Consequentemente, percebemos, em seus
depoimentos, a importância do período formativo para sua prática profissional. Os gestores
são identificados por nomes fictícios88.

Quadro 1 - Formação e Experiência Profissional dos Sujeitos


TEMPO DE
FORMAÇÃO FORMAÇÃO
EXPERIÊNCIA
GESTOR/A INICIAL/IES/ANO CONTINUADA/IES/ANO
NA EDUCAÇÃO
Roger Matemática/UERN/1995; Stricto Sensu – Mestrado em 27 anos no âmbito da
Pedagogia/UFPB/2011 Educação – UERN, 2016. docência e da gestão

Lato Sensu: Metodologia do


Ensino superior e da
Pesquisa Científica – UERN,
1997;

Lato Sensu: Psicopedagogia


Institucional – FIP – 2006;

Lato Sensu: Gestão Escolar –


UFRN, 2011;

Outras formações:
FORMAGESTE – Curso de
formação de gestores –
SEEC/RN – 2002;
PROGESTÃO – Curso de
capacitação de gestores
escolares – IFESP, 2003.
650

88
Facultamos aos sujeitos o direito de escolher os nomes fictícios pelos quais desejariam ser chamados neste
trabalho. Um deles escolheu ser chamado de Roger, a outra gestora não optou, deixando assim em aberto para
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que pudéssemos escolher. Diante disso, escolhemos o nome Maria para homenagear todas as mulheres,
gestoras e educadoras, que revolucionaram a educação ao longo da história.

ISBN: 978-85-7621-221-8
Maria Pedagogia pela UFC/1985; Stricto Sensu – Mestrado em 15 anos no âmbito da
Pedagogia com Habilitação Educação – UERN, 2014 gestão
em Administração Escolar
– UECE, 1994
Lato Sensu: Planejamento
Educacional - Universidade
Salgado Filho, 1996;

Outras formações:
PROGESTÃO – Curso a
distância de capacitação de
gestores escolares;
Fonte: Dados da Entrevista, abril/2017.

Observando o quadro acima, constatamos que a formação inicial dos participantes


desta pesquisa é a Pedagogia, embora Roger apresente duas licenciaturas. Maria foi graduada
na década de 1980 e retorna à universidade na década de 1990 para cursar a Habilitação em
Administração Escolar. Isso decorreu pelo fato de o curso de Pedagogia ter nascido dividido
em habilitações (Supervisão e Orientação educacional, Administração Escolar e Inspeção
Educacional), tendo Maria escolhido Administração Escolar. O curso de Pedagogia passou
por muitas reformulações desde sua criação, com isso a abrangência das áreas de atuação foi
se alargando.
Além dos conhecimentos construídos na formação inicial e continuada, os saberes da
vida cotidiana também entram em cena nas práticas profissionais dos gestores. Como afirma a
gestora Maria (entrevista, abril de 2017): “muita coisa é subjetiva na administração de uma
escola, os problemas dos alunos e seus pais exigem muita sensibilidade e empatia, o que não
aprendi na faculdade”. Assim, notamos a dimensão subjetiva que perpassa os fazeres no
âmbito da gestão, mostrando o quão é indissociável a subjetividade e a prática dos
profissionais, no caso, os gestores escolares. Percebemos, ainda, que ambos os gestores
possuem uma formação continuada, inclusive na área, passeando pelo Planejamento
Educacional e pela Gestão Escolar. São profissionais atentos à sua formação profissional.
Segundo nossa compreensão, esse movimento é uma forte indicação de que estão sempre
procurando se aprimorar e, ao mesmo tempo, inteirar-se do debate. Este é um ponto bastante
positivo, pois o trabalho da gestão escolar é complexo e requer uma multiplicidade de
competências, visto que o cotidiano escolar é composto de diversas situações e desafios que
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exigem dos gestores os mais variados desdobramentos.


Há uma mobilização de saberes que são provenientes da formação e da vida pessoal do
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gestor, sobretudo, dos conhecimentos construídos nos momentos de reflexão sobre si mesmo

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e sua prática. “O momento fundamental é o da reflexão crítica sobre a prática. É pensando
criticamente a prática de hoje ou de ontem que se pode melhorar a próxima prática” (FREIRE,
1996, p.18). Isso nos remete ao movimento ação-reflexão-ação, esta reflexão coloca o gestor
em uma posição “ativa e não queixosa com os problemas e dificuldades” (LIBÂNEO, 2004,
p. 228). Isto é, ela promove um pensar mais consciente sobre a função que exercem, e os
ajudam a enfrentar as barreiras que surgem cotidianamente na escola.
A gestora Maria carrega um itinerário profissional na gestão escolar de 15 anos.
Segundo ela, sua vontade de ser gestora partiu de cursos de formação de gestores quando a
mesma atuava no conselho escolar da escola. Depois disso, resolveu “fazer a Administração
Escolar para me capacitar para exercer essa função dentro do meu local de trabalho da melhor
forma possível, só que esses cursos não me preparam totalmente” (MARIA, entrevista abril
de 2017). Este escrito da gestora evidencia a necessidade de uma formação na área da gestão
para potencialização do exercício da função, bem como “para compreender a gestão, a
dimensão de organização e o funcionamento de uma instituição de ensino, no âmbito macro
da gestão educacional e no âmbito micro da gestão escolar” (WIEBUSCH; CORTE, 2014, p.
216). Para tanto, a formação inicial apresenta, mas não aprofunda suficientemente as questões
da organização e funcionamento da escola. É notório que apenas os gestores que são
realmente engajados e envolvidos com sua profissão continuam a buscar uma formação –
quer seja no plano da horizontalidade (nível graduação), quer seja no plano da verticalidade
(pós-graduação lato e stricto sensu), a fim de aprimorar seus saberes e fazeres.
A experiência do gestor Roger na educação pública já perfaz um período de 27 anos,
atuando sempre na Rede Estadual de Ensino do Rio Grande do Norte. É um profissional que
já acumulou uma longa experiência, atuou da docência à gestão escolar. Foi coordenador
escolar por aproximadamente 8 anos e nos revela em sua narrativa que esse período
“proporcionou conhecimentos sobre elaboração e execução dos planos administrativos,
pedagógicos e financeiros da escola” (ROGER, entrevista abril de 2017). Posteriormente a
essa experiência riquíssima, para que conhecesse mais de perto como funciona a estrutura
organizacional da escola, na primeira eleição para gestor escolar, foi eleito com 98% dos
votos. Nesse sentido, Roger teve o apoio da comunidade para ser gestor escolar.
O gestor Roger traz, em suas narrativas, a importância da formação continuada,
652

atentando-se à democratização das práticas e das relações no espaço escolar. Ele reconhece a
relevância dos cursos de formação, capacitação e/ou atualização para a realização de um
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trabalho voltado para a gestão democrática, admitindo que a Pedagogia, a especialização na

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área da Gestão Escolar e os cursos de formação de gestores foram fundamentais para os
fazeres cotidianos no período de 2008-2011. “Todos os cursos de formação, capacitação e/ou
atualização foram fundamentais para o desenvolvimento de uma proposta de trabalho com
foco na vivência da democracia no âmbito da escola” (ROGER, entrevista abril de 2017). É
notório o engajamento do gestor com seu trabalho e com os princípios democráticos que
descentralizam o poder dentro do âmbito escolar. A construção de uma prática coletiva com
participação de todos os segmentos da escola é algo difícil de ser realizado, pois a escola é
composta por sujeitos heterogêneos e singulares entre si, ao mesmo tempo, que carregam
modos próprios de pensar, de agir, de conduzir sua prática. A homogeneidade na escola não
existe, pois, os sujeitos pensam e agem de modo particular. Por isso que a gestão democrática
é desafiadora. Ela sempre demanda conflitos, posições divergentes, etc. Dessa forma, cada um
pode contribuir de acordo com suas capacidades. Sendo assim, chegar a um consenso implica
em ponderar todas as sugestões, sintetizá-las e colocar em prática.

2 Gestão Escolar: Desafios e Possibilidades

A gestão escolar e a escola em si guardam suas especificidades. Somente o gestor e outros


profissionais que estão comprometidos com o seu trabalho e que lançam um olhar apurado e
crítico/reflexivo não apenas sobre suas práticas, mas para o cotidiano e suas diversas
situações, podem refletir sobre a forma de construir uma escola pública de qualidade e
democrática.
A seguir, apresentamos um quadro mostrando as principais dificuldades e conquistas
descritas pelos gestores escolares enfrentadas no decorrer de seus itinerários profissionais.

Quadro 2 - Conquistas e dificuldades enfrentadas no cotidiano da gestão escolar


GESTOR/A CONQUISTAS DIFICULDADES
Roger  Mudança nas relações interpessoais;  Poucos recursos
 Descentralização dos processos escolares financeiros e pouca
com partilha e participação da comunidade autonomia
escolar; financeira;
 Inovações nos serviços administrativos e  Escassez de recursos
pedagógicos; humanos (e de
 Aquisição de materiais e equipamentos servidores –
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pedagógicos de ponta como: Datashow, tela funcionários);


de projeção, Câmera fotográfica, instalação  Descompromisso de
dos laboratórios e etc. alguns servidores;
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 Climatização das 8 salas de aula;  Decidir no coletivo.

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 Aquisição de acervo bibliográfico para o
aluno e para o professor;
 Aquisição de mesas para estudo coletivo na
biblioteca e birôs para salas de aulas;
 Mudanças no projeto arquitetônico da
escola com aumento de três salas de aulas
em 1º andar;
 Maior envolvimento do conselho escolar e
dos representantes de turmas nos processos
escolares.
Maria  Transparência na condução dos recursos  Trabalhar a inclusão
financeiros; de alunos com
 Participação de todos nos processos necessidades
decisórios; especiais com os
 Boas relações interpessoais; alunos e com os pais;
 Proposição de uma avaliação institucional;  Discussões entre pais
 Mudança no Regimento Escolar; e alunos;
 Ampliação da estrutura da escola, foram
construídos os seguintes espaços: nova
direção, sala dos professores, secretaria,
auditório, escovódromo, biblioteca e seis
salas de aulas para a Educação Infantil, um
pátio coberto e jardins.
Fonte: Dados das entrevistas realizadas em abril de 2017.

No geral, os gestores apresentam enormes conquistas, sobrepondo-as às dificuldades.


O gestor não deve esperar um cotidiano isento de barreiras e desafios, pois elas existem e
precisam ser superadas. Percebe-se dois profissionais, além de preocupados com a formação,
motivados e comprometidos com o que fazem pela educação, pela escola. Freitas e Medeiros
(2016) enfatizam que a motivação pode levar ao êxito na profissão. Ela é essencial para que o
gestor busque aprimorar cada vez mais suas práticas para desenvolver uma gestão
comprometida com os sujeitos da escola. Atentamos para o fato de que o sucesso,
desenvolvimento e conquistas da escola não dependem unicamente do gestor, ele é o sujeito
que lidera, no sentido de apontar o rumo e direcionar os demais sujeitos que são igualmente
responsáveis pelos êxitos.
O sucesso é coletivo, principalmente no contexto da gestão democrática. Porém, sem
um gestor atuante, ele se esvai. Para que uma gestão democrática aconteça é necessário um
engajamento coletivo e potencializado, pois cada profissional contribui com suas capacidades
e habilidades que, por sinal, são distintas entre si. Pensamos que as conquistas promovidas
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por Roger e Maria somente foram possíveis porque contaram com o apoio coletivo. Além
disso, foram profissionais ousados e dinâmicos em suas gestões Libâneo (2004, p. 207) afirma
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que “a estrutura organizacional e o cumprimento das atribuições de cada membro da equipe é
um elemento indispensável para o funcionamento da escola”.
O gestor Roger (entrevista abril de 2017) deixa claro, em seu depoimento, que haverá
sempre sujeitos que “se colocam na contramão, na oposição e desacordo de opiniões, ideias e
fazeres”, isso mostra a força da subjetividade de cada um dentro da escola, a pluralidade de
pensamentos, mostrando que cada sujeito pensa de forma distinta e essa é uma questão
complexa de lidar, principalmente pelos gestores que trabalham com os princípios
democráticos em que todos têm voz e oportunidade para expressar seus dilemas e sugestões.

Não estamos afirmando que na escola não devam existir conflitos,


diferenças, interesses pessoais, interesses de poder. Eles existem e, por isso
mesmo, é que convém instalar uma prática de participação, de negociação
dos significados e valores, de debate da discussão pública dos compromissos
e dificuldades (LIBÂNEO, 2004, p. 233).

Um espaço escolar democrático se constitui como revelador de subjetividades, pois ao


participar, expor suas ideias, opiniões e sentimentos perante a escola, o sujeito estará expondo
sua dimensão subjetiva – seus modos de pensar, fazer, sentir e ser. No que concerne ao
trabalho em equipe, o diálogo é fundamental para que os processos de tomada de decisão
sejam, de fato, democráticos. Dessa maneira, o gestor “identifica e analisa a fundo limitações
e dificuldades das práticas pedagógicas no seu dia-a-dia, formulando e introduzindo
perspectivas de superação, mediante estratégias de liderança, supervisão e orientação
pedagógica” (LÜCK, 2009, p. 93).
Tanto Roger quanto Maria expõem suas conquistas enquanto gestores escolares, as
quais podemos perceber em termos de conquistas materiais, como: ampliação do espaço
físico, aquisição de recursos tecnológicos, climatização de salas, dentre outras. Em termos de
conquistas políticas, há várias que carecem de ser destacadas: mudanças nas relações
interpessoais, descentralização dos processos administrativos e pedagógicos na escola,
participação nas decisões, transparência na utilização dos recursos públicos, mudanças no
Regimento Escolar, dentre outras. Observa-se que houve um grande envolvimento dos
gestores em propiciar e fortalecer a gestão democrática na escola. Claro que a gestão não
apenas sobrevive de conquistas, pois, também as dificuldades estão presentes: poucos
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recursos e pouca autonomia para sua utilização, ausência de profissionais, descompromisso de


alguns, inclusão na escola, decisão coletiva, dentre outras. Diante disso destacamos os
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escritos:

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Um dos problemas enfrentados nesse ano [2006] foi um número elevado de
confusões envolvendo pais e alunos, alguns pais não aceitavam que nenhuma
criança batesse em seu filho, isso gerava muitos desentendimentos, pois os
mesmos muitas vezes queriam resolver eles mesmos as agressões, mas isso
agravava a situação (MARIA, entrevista abril de 2017).

Assim, podemos perceber que o exercício da gestão escolar é árduo, são muitas as
barreiras que, por vezes, acabam desestimulando o gestor escolar de seguir na profissão.
Encarar a superação deles como uma vitória e mérito pelo trabalho desenvolvido resgata a
motivação de continuar na luta cotidiana por uma escola cada vez melhor. É notório que a
cobrança por resultados ainda recai com mais veemência e rigidez em cima do gestor, todavia,
em uma gestão democrática o conjunto deve ser analisado, pois todos os membros da escola
são responsáveis pelos resultados, sejam eles positivos ou negativos.

3 Democracia no cotidiano escolar: vivências, práticas e subjetividades

Democracia e subjetividade serão nossos pontos de referência para discutir o cotidiano


escolar à luz das narrativas dos gestores escolares sujeitos desta pesquisa. A democracia é
uma conquista e, ao mesmo tempo, uma construção diária que depende, não apenas do gestor
escolar, mas de todos os membros que integram a escola. É a participação de todos (pais,
alunos, funcionários, professores e gestão) nos processos decisórios, na construção do PPP, do
Regimento Escolar, e, além disso, a efetuação de uma prática desenvolvida na coletividade
que visa o desenvolvimento das metas e objetivos da escola, fatores necessários para
fortalecer a gestão democrática.
Ao ser questionado acerca da concepção norteadora de sua prática, o gestor Roger
(entrevista abril de 2017) afirma que “sem dúvida foi uma concepção democrática, partilhada,
descentralizada, autônoma com participação dos diferentes sujeitos da comunidade escolar e
local, afinal sempre estive aberto ao diálogo e a quaisquer sugestões”. Desse modo, mostra
que está disposto a fazer o que for preciso para atender aos princípios democráticos e colocar
em prática a verdadeira democracia.
O cotidiano escolar é permeado de diversos elementos que se entrelaçam e o
656

compõem, dentre eles, destacamos: o contexto histórico/cultural no qual a escola se encontra;


as práticas que regem a escola e movimentam as relações de ensino-aprendizagem; os sujeitos
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singulares e heterogêneos que dão vida às práticas anteriormente mencionadas; os desafios e

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dificuldades que emergem e que devem ser enfrentados e resolvidos; a objetividade
burocrática que normatiza as ações; a subjetividades dos sujeitos em suas distintas formas de
ser/fazer/pensar na escola, correspondendo a uma pluralidade de ideias e sujeitos.

Isso, quer dizer, nas escolas, há uma estrutura administrativa e pedagógica


que é visível e outra estrutura não formalizada, não visível, que é o conjunto
das relações sociais, maneiras de pensar e agir, interesses, experiências
subjetivas etc. obviamente articuladas com a cultura da comunidade e da
sociedade como um todo (LIBÂNEO, 2004, p. 233).

Aspectos burocráticos e subjetivos coexistem no cotidiano escolar, embora a ênfase


recaia sobre a parte burocrática, nenhum dos dois é mais ou menos importante, pois eles
compõem um mesmo processo, embora haja uma visão dicotômica acerca disso. A
subjetividade, no geral, fica implícita nas entrelinhas das práticas dos sujeitos, a burocrática
tende a ser mais expressiva e discutida em âmbito educacional. “As escolas têm traços
culturais próprios a partir dos significados pessoais, valores, práticas, e comportamentos das
pessoas que nela trabalham e convivem” (LIBÂNEO, 2004, p. 232). Assim, compreende-se
que cada escola e seu cotidiano são singulares, pois cada uma delas é composta por sujeitos
diferentes com subjetividades diferentes, o que torna cada âmbito escolar único em suas
construções, fazeres e práticas. Goulart (2009, p. 108) afirma que o importante “é resgatar a
crença na diversidade, na pluralidade, no fato de não existirem duas escolas iguais, mesmo
que algumas – ou muitas – assumam práticas pedagógicas bem próximas”.
Sendo assim, é a dimensão subjetiva que vai singularizar os saberes e fazeres do
gestor no exercício da sua função, como afirma o gestor Roger (entrevista abril de 2017) “as
diferenças são necessárias para atentarmos para outras formas e modos de pensar e agir”.
Sobre isso, Freitas e Medeiros (2016, p. 9) complementam que “o gestor escolar, como ser
humano, desenvolve sua prática profissional a partir do que pensa, reflete e sente. Não há
práticas desvinculadas da dimensão subjetiva, porque a neutralidade também não existe”. Isso
nos remete a relação dialética entre subjetividade e objetividade no cotidiano escolar, na
qual uma não exclui a outra e sim se complementam no tecer dos fazeres e práticas do gestor
enquanto sujeito e protagonista da gestão escolar.
Diante de suas experiências profissionais o gestor Roger faz uma ressalva sobre suas
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considerações acerca da sua função:


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As impressões que ficaram é que é uma atividade que requer ousadia,
coragem, força, motivação, desejo de fazer, de aceitar a multiplicidade de
ideias, de encarar as situações problemas e buscar soluções no coletivo. É
preciso resgatar nos sujeitos o sentimento de pertença e engajamento, para a
gestão se constituir como democrática. (ROGER, entrevista abril de 2017).

É a motivação que impulsiona o gestor a lutar pela escola e por suas melhorias. A
ousadia, por ele mencionada, recorre ao ato de agir sem medo perante as dificuldades
cotidianas, enfrentando-as de frente com pulso firme e liderança. Ser gestor é ter que lidar
com seus próprios conflitos, com os da escola e com os sujeitos que a compõe, é uma tarefa
complexa que só é bem desempenhada por quem vive o que faz, que faz porque sabe fazer e,
quando não sabe, busca uma solução.

Enquanto gestor escolar, confesso que fui ousado, a começar com a ruptura
dos processos centralizadores, marcados pela hierarquia e verticalidade das
relações interpessoais. Foram muitos os desafios, para alcançarmos mesmo
que minimamente: descentralização, participação e autonomia nos processos
vivenciados no cotidiano da escola. Para desenvolver uma gestão escolar
com foco nesses três pilares da democracia, tive que degustar muitos sabores
e suportar muitos odores, que alguns prefiro não lembrá-los (ROGER,
entrevista, abril de 2017).

Diante dessas palavras, podemos afirmar que os gestores procuram romper a


centralização, a hierarquização, a verticalização, características marcantes de uma gestão
escolar técnico-científica89. Fazer tal ruptura é desafiador, pois participação e autonomia são
processos complexos a serem vivenciados no cotidiano das escolas, principalmente, porque o
processo envolve sujeitos outros. Por esta razão, cabe reafirmar nosso argumento principal: a
subjetividade somente é valorizada em uma gestão escolar democrática e, ao mesmo tempo, a
valorização da subjetividade é também um grande desafio para o exercício dessa gestão, uma
vez que passa a lidar com a diversidade humana. Para tanto, fazemos uma ressalva, a gestão
escolar direcionada por princípios burocráticos também possui subjetividade em suas
tessituras cotidianas, o que não ocorre é a sua valorização.
Os recortes das narrativas dos gestores enfatizam muito bem sentimentos que
emergem no gestor ao falar de sua atuação – uma mistura de satisfação, motivação, emoção,
superação com insatisfação e frustração. Aí é quando vemos claramente a subjetividade
emergindo de práticas cotidianas, das vivências profissionais do gestor, pois “a dimensão da
658

89
Essa concepção de gestão “baseia-se na hierarquia de cargos e funções, nas regras e procedimentos
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administrativos visando à racionalização do trabalho e a eficiência dos serviços escolares” (LIBÂNEO, 2004,
p. 121).

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subjetividade faz pensar como cada pessoa é um jeito singular, que tem história de vida,
memória afetiva, traumas, qualidades, dificuldades, alegrias e tristezas cotidianas” (COSTA,
2011, p. 7).

A minha principal motivação para ser gestora dessa escola, foi o fato de
pertencer aos quadros de funcionários desde a inauguração e participar das
diversas gestões onde alunos, professores e funcionários não serem ouvidos
pelos gestores. (MARIA, entrevista abril de 2017).

É no cotidiano que as práticas tomam forma e que o prazer pelo êxito nas práticas
ocorre. Ressaltamos que, além de profissionais, os gestores são também sujeitos aprendizes e
construtores de si mesmo, de sua história, de suas identidades e subjetividades.

O gestor escolar nos dias atuais é uma máquina humana, cotidianamente


precisa dar conta das questões burocráticas administrativas, estar imerso nas
questões pedagógicas e financeiras da escola, assumir uma postura dialógica
com os diferentes segmentos da escola; mediar conflitos e embates, liderar
processos (administrativos e pedagógicos); engendrar decisões que requer
soluções imediatas e articular os processos de participação coletiva com os
colegiados e demais sujeitos da comunidade escolar e local. Por isso precisa
ser um verdadeiro líder (ROGER, entrevista abril de 2017).

A complexidade da gestão ocorre pela multiplicidade de fatores que a influenciam e


pela abrangência de funções que o cargo exige, isso fica bem elucidado na fala acima. Ocorre
uma cobrança maior do gestor no que concerne aos resultados esperados pela escola. Os
sujeitos “em seus movimentos singulares e, ao mesmo tempo, partes de um processo, tecem,
no cotidiano escolar os vários saberes da vida, independentemente, das leis oficiais e dos
regulamentos impostos pelas instituições ‘cumpridoras’ da vontade oficial” (GOULART,
2009, p. 109). Evidenciamos a relevância das relações interpessoais entre os sujeitos que
atuam a escola, compondo um ambiente de trabalho agradável pautado em princípios
democráticos, em que todos participam dos processos decisórios e cumprem sua função.
Seguem as narrativas dos gestores no que concerne às relações estabelecidas no ambiente
escolar:
As relações interpessoais foram tomando outros vieses, quebrando a
verticalidade, a hierarquia e se tornando mais horizontais, dialógicas,
cooperativas, menos competitiva e mais colaborativa, com todos os
segmentos da escola (pais, alunos, funcionários, professores e Conselho
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Escolar – que ainda foi pouco atuante). (ROGER, entrevista abril de 2017).
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É conhecida a aproximação dos gestores com a gestão democrática participativa, isso
é evidenciado no momento em que descrevem suas ações cotidianas, mostrando que rompem
com a visão de poder hierárquico, concretizando a coletividade e efetivando, de fato, os
princípios democráticos em suas práticas. A gestão democrática é um longo percurso a ser
trilhado, como nos relata o gestor Roger:

Tenho percebido que mesmo o gestor sendo escolhido pela comunidade


escolar, isso não garante espaços mais democráticos, visto que a democracia
se constrói por várias vias como (re) construção do PPP, do Regimento
Escolar, dos Planos de Ações da Gestão, da coordenação pedagógica e dos
professores, bem como da atuação dos colegiados (Conselho Escolar e
Grêmio Estudantil e outros assemelhados). No entanto, sabemos que tudo
isso, na maioria das vezes não existe e quando existe não são as principais
trilhas do fazer escolar. (ROGER, entrevista abril de 2017).

Portanto, as falas dos gestores nos revelam a complexidade de exercer a gestão


escolar democrática no cotidiano da escola. A gestão escolar e a subjetividade encontram-se
relacionadas de forma intrínseca, constituindo-se como indissociáveis entre si. Isso foi
percebido nos relatos dos gestores ao descrever suas experiências no exercício da função.

Considerações Finais

É viável e possível compreender o tecer da subjetividade no cotidiano do gestor


escolar por meio de suas narrativas (auto) biográficas profissionais. As narrativas revelam não
apenas as memórias, conhecimentos e saberes construídos ao longo do itinerário profissional
do gestor, mas também sua subjetividade, identidades, marcas pessoais deixadas no âmbito
escolar no qual atua, potencialidades, singularidades, valores, princípios, conquistas,
sentimentos e desafios. Enfim, uma riqueza de aspectos que constituem o seu cotidiano, suas
práticas e sua subjetividade. O narrar permite o revisitar do gestor às suas práticas e nelas
pudemos perceber as emoções que surgem diante de cada situação descrita, seja boa ou não.
No mais, as principais alusões são de satisfação e de orgulho da função profissional exercida.
Diante disso, podemos afirmar que as práticas profissionais dos gestores escolares estão
imersas nas suas próprias subjetividades, não há prática neutra de si em uma gestão
660

democrática.
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Referências

BOCK, Ana Mercês Bahia; FURTADO, Odair; TEIXEIRA, Maria de Lourdes


Trassi. Psicologias: uma Introdução ao Estudo de Psicologia. São Paulo: Ed.Saraiva, 2001.
368 p. Disponível em: <http://resgatebrasiliavirtual.com.br/moodle/file.php/1/E-
book/Ebooks_para_download/Psicologia_do_Trabalho/Psicologia_-
_Uma_Introducao_ao_Estudo_de_Psicologia.pdf >. Acesso em: 29 jul. 2016.

COSTA, Sonia Glaucia. Subjetividade e Complexidade na Gestão Escolar: um estudo de


caso com participantes da Escola de Gestores 2010. 2011. 145 f. Dissertação (Mestrado) –
Universidade de Brasília, Brasília, 2011.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. 25. ed.
São Paulo: Paz e Terra, 1996. 54 p.

FREITAS, Thayse Mychelle de Aquino; MEDEIROS, Arilene Maria Soares de. Dimensão
Subjetiva na Gestão Escolar. In: Semana de Estudos, Teorias e Práticas Educativa, 6. 2016,
Pau dos Ferros, Anais... UERN, 2016, 1-12.

GOULART, Paulo Sergio Sgarbi. Avaliar é praticar democracia? In: OLIVEIRA, I. B. de


(Org.). Democracia no Cotidiano da Escola. Petrópolis: Dp Et Alii, 2009. p. 93-112.

LIBÂNEO, José Carlos. Organização e Gestão da Escola: Teoria e Prática. 5. ed. Goiânia:
Ed. Alternativa, 2004. 319 p.

LÜCK, Heloísa. Dimensões da Gestão Escolar e suas Competências. Curitiba: Positivo,


2009. 143 p.

WIEBUSCH, Andressa; CORTE, Marilene Gabriel dalla. O Estado do Conhecimento sobre o


curso de Pedagogia e a Gestão Educacional/Escolar neste curso de pedagogia. Educação Por
Escrito, Porto Alegre, v. 5, n. 2, p. 212-227, jul.-dez 2014. Disponível em:
<revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/porescrito/article/download/17760/12403>.
Acesso em: 24 maio 2017.
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ISBN: 978-85-7621-221-8
GT5 – ENSINO DE MÚSICA NOS MÚLTIPLOS CONTEXTOS: PERSPECTIVAS,
EXPERIÊNCIAS, PRÁTICAS E FORMAÇÃO CONTINUADA

ENSINO DE MÚSICA NAS ESCOLAS DA REDE MUNICIPAL DE PAU DOS


FERROS – RN: UM RELATO DE EXPERIÊNCIA

Anne Valeska Lopes da Costa (SEDUC/Pau dos Ferros)

1 Introdução
Desde que comecei a atuar como professora de artes nas escolas de educação básica no
município de Pau dos Ferros – RN, há um ano, tenho percebido que algumas das orientações
dadas por documentos oficiais para a operacionalização do ensino de música nas escolas não
estão sendo seguidas por falta de algumas condições básicas contidas nessa legislação. Diante
disso surgiu o interesse de escrever sobre o que aponta os documentos oficiais e a realidade
vivenciada nas escolas públicas que trabalho no município de Pau dos Ferros – RN. Os
documentos aqui utilizados como referencias foram: a lei 11.769/2008 e a Lei 13.278/2016, o
parecer CNE/CEB N° 12/2013 junto com a resolução N°2, de 10 de maio de 2016 e os
Parâmetros Curriculares Nacional de arte/música.
Antes de começar a falar sobre o tema desse relato em si, falarei um pouco sobre a
minha trajetória no meu local de trabalho. Há um ano, fui convocada através de concurso
público para atuar como professora de Artes em escolas de fundamental II no município de
Pau dos Ferros – RN, de início atuei em duas escolas, que são elas a Escola Municipal Prof.
Severino Bezerra situada na zona urbana e a Escola Municipal Dr. José Torquato de
Figueiredo situada na zona rural, porém para completar minha carga horária não atuei apenas
como professora de artes, tive também que ensinar mais dois componentes curriculares,
História e Ensino Religioso, foi um tremendo desafio, sendo que eu tinha acabado de sair da
faculdade direto para esse trabalho, e depois de passar anos me dedicando a minha área,
pesquisando e estudando muito em como fazer o melhor trabalho com o ensino de música, ter
que ensinar outras disciplinas foi um choque. Com pouco tempo, vendo a situação também de
outros colegas, me dei conta que infelizmente essa é a realidade da educação pública
brasileira. Esse ano para que eu não tivesse que ministrar novamente aula de outros
componentes curriculares, além de atuar nas duas escolas de fundamental II, trabalhei também
662

em uma creche com uma turma com faixa etária de 2 anos sem contar com a ajuda de
nenhuma auxiliar. No segundo semestre desse ano 2017, sai da creche e estou atuando
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atualmente nas duas escolas de fundamental II já citadas e no programa AABB comunidade,

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com o ensino de música. Esse artigo falará apenas sobre o ensino de música nas duas escolas
de ensino regular onde ministro aulas de Artes para alunos dos anos finais do ensino
fundamental (6° ao 9° ano).
Em 2008 foi aprovada a lei n° 11.769 que altera a lei n° 9.394/1996, lei de diretrizes e
bases da educação básica, tornando obrigatório o ensino de música na educação básica. Porém
a lei não determina que a música deve ser um componente curricular, e sim apenas um dos
conteúdos que deverão ser trabalhados dentro do componente curricular Arte, tendo que
dividir espaço com a dança, o teatro e as artes visuais, também asseguradas no currículo
escolar pela lei 13.278/2016 juntamente com a música. A lei 11.769 teve o art. 2° vetado,
artigo esse que dizia ser obrigatório possuir formação na área para trabalhar com a música na
escola.
Ambas as leis são curtas e não deixam claro como esse ensino deve acontecer, para
tentar explicar isso são lançados outros documentos que orientam como deve acontecer o
ensino de música na educação básica, como por exemplo o Parecer CNE/CEB Nº 12/2013, a
resolução N°2, de 10 de maio de 2016 e os Parâmetros Curriculares Nacionais - PCN em Arte
que apesar de trazerem diversas orientações sobre o que deve ser trabalhado, ou seja, os
conteúdos, não deixam claro como o ensino das quatro linguagens artísticas deve acontecer
dentro de um único componente curricular, se será de forma interligada, que já foi colocado
em prática entre os anos 1970 e 1980 e não funcionou, quando os então professores de
educação artística se viram responsáveis por educar os alunos em todas as linguagens
artísticas e assim inúmeros professores tentaram assimilar e integrar as várias modalidades
artísticas, na ilusão de que as dominaria em conjunto, o que implicou na diminuição
qualitativa dos saberes referentes as especificidades de cada uma das formas de arte (PCN
Arte, 3º e 4º ciclo, p. 27). Se será trabalhando cada linguagem em um bimestre, o que torna
difícil que o aluno se torne sensível as diversas linguagens da arte, tanto para produzir como
para apreciar, desfrutar, valorizar e emitir juízo sobre os bens artísticos de distintos povos e
culturas produzidos ao longo da história e na contemporaneidade como objetiva o PCN de
Arte do fundamental II, pois se trabalhada uma linguagem por bimestre cada conteúdo terá
que ser trabalhado a cada ano em 20 aulas de 50 min, o que equivale a 16 horas e 40 minutos
bimestrais de aulas sobre cada modalidade artística (Música, Teatro, Dança e Artes visuais) o
663

que é equivalente a um minicurso de 2 dias, pensando dessa forma, se trabalhado uma


linguagem por bimestre a cada ano do ensino fundamental II nós professores de Artes temos
Página

menos de 20 horas por ano para trabalhar cada linguagem artística. Como trabalhar então cada

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linguagem da arte de uma forma que o aluno obtenha conhecimentos específicos de cada área
em tão pouco tempo destinado ao seu ensino? Sem falar que a prática polivalente de um
professor de artes, por ter que trabalhar com conteúdo alheio ao do seu campo de formação
compromete a prática pedagógica do professor e o aprendizado dos estudantes fica
fragilizado. (Parecer CNE/CEB n° 12/2013, p. 2).
O professor de música durante a sua graduação não recebe ensinamentos para
ministrar aula de modalidades como a dança, o teatro e as artes visuais, o professor de música
é formado para trabalhar com música, então é notório que a polivalência continua a existir no
campo educacional artístico na educação básica e como nunca vem dificultado o trabalho do
professor. Maura Penna (2012, p. 122) define muito bem a nossa atual realidade quando ela
diz que “a presença da arte no currículo escolar tem sido marcada por indefinição,
ambiguidade e multiplicidade”.
Pretendo com esse trabalho, mostrar como está sendo a minha experiência como
professora licenciada em música atuando na educação básica, expor como está sendo tratado o
ensino de música na rede municipal de Pau dos Ferros em relação ao que dizem os
documentos, podendo assim levar a uma reflexão acerca do cenário que será encontrado pelos
licenciados em música ao se inserirem no mercado de trabalho, especificamente na rede
pública de ensino.

2 Leis, orientações e a prática em escolas municipais de Pau dos Ferros-RN.

O Parecer CNE/CEB Nº 12/2013 não traz orientações de como o ensino de música


deve acontecer na educação básica, ele traz além de um breve histórico do ensino de música
nas escolas brasileira, justificativas da importância que o ensino de música tem na vida de um
estudante, o máximo de orientação que esse documento traz é quando ele diz que “ o ensino
de música deve constituir-se em conteúdo curricular interdisciplinar que dialogue com outras
áreas de conhecimento” e em relação aos conteúdos que podem ser trabalhados quando diz
que “ as atividades para o ensino de música podem ser realizadas por meio de formação de
grupos vocais e instrumentais, do ensino de diferentes cantos, ritmos, das noções básicas de
música, dos cantos cívicos nacionais e folclóricos, visando valorizar e promover a diversidade
664

cultural brasileira”. Já a Resolução n°2 de 10 de maio de 2016 orienta quais são as


competências que cada órgão educacional (escolas, secretarias e instituições formadoras)
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devem seguir para inserirem o ensino da música nas escolas de educação básica. Utilizaremos

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como base para esse trabalho apenas as competências destinadas as escolas e as secretarias de
educação.
Das competências destinadas a Escola, nas instituições que trabalho, algumas delas
vem sendo seguidas, como por exemplo a realização de atividades musicais com todos os
estudantes, a organização do quadro profissional da educação com professores licenciados em
música, o estabelecimento de parcerias com instituições e organizações formadoras e
associativas ligadas a música visando a ampliação dos processos educativos nesta área e o
desenvolvimento de projetos e ações que alarguem o ambiente educativo para além da sala de
aula, isso vem sendo seguido mesmo com tantas dificuldades por falta do seguimento de
outros pontos essenciais para o cumprimento desses apresentados, como por exemplo: criar e
adequar tempos e espaços para o ensino de música, pela experiência que venho tendo,
considero esse ponto muito importante pois o trabalho com a música gera som, e um trabalho
em uma turma de fundamental II da educação básica envolve no mínimo 25 alunos
produzindo som, em salas divididas apenas por uma parede da outra, isso gera muita
reclamação vinda de outros professores e até da direção que ao ver o “barulho” da turma
interpreta que a aula está uma bagunça e que os alunos devem estar concentrados e em
silêncio para aprender. Esse ponto traz ainda uma outra questão, que dificulta ainda mais o
trabalho do professor, é que esse espaço e esse tempo, segundo a resolução devem ser
destinados ao ensino de música, porém, “sem prejuízos para as outras linguagens artísticas”
ou seja, é preciso organizar o ambiente e o tempo para se trabalhar cada linguagem, isso
dentro da disciplina de artes que tem apenas duas aulas de 50 min por semana em cada turma,
é muito difícil que se consiga atingir o objetivo de se trabalhar sistematicamente com
qualidade cada linguagem artística, dentro de um quadro composto por 20 aulas bimestrais de
artes e 80 aulas por ano, esse pouco tempo dificulta muito o trabalho com a música na
educação básica.
Outro ponto que ainda não foi seguido é a implementação do ensino de Música no
projeto político pedagógico das escolas. Não foi identificado no Projeto Político Pedagógico
das duas escolas em que atuo nenhuma referência ao ensino de música, fortalecendo a minha
hipótese de que antes da minha chegada a disciplina de artes era destinada ao ensino das artes
visuais, mais especificamente a pintura e o desenho. Criei essa hipótese a partir do
665

questionamento dos próprios alunos quando iniciei o meu trabalho com a música, quando
ouvia deles frases do tipo “ Professora nós não vamos desenhar não? ” “ Professora arte é para
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pintar, brincar, não faça nada não” Eu atribuo esse fato a uma outra hipótese que criei a partir

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de comentários que ouvia de colegas professores que falaram terem ministrados a disciplina
de artes para completar a carga horária, professores de disciplinas como Português, Geografia,
Inglês ou seja, eles realmente não tinham muito o que fazer, pois não tinham formação para
trabalhar com a arte, então o que restava para eles era resumir a arte ao desenho e a pintura
que é a concepção de arte deixada pelo período em que a educação artística foi implantada nas
escolas com a lei 5.692/71.
No que diz respeito as competências destinadas a secretaria de educação consegui
identificar o seguimento de quatro das nove citadas na resolução, que são elas: identificar em
seus quadros de magistério e de servidores, profissionais vocacionados que possam colaborar
com o ensino de música nas escolas, incluindo-os nas atividades de desenvolvimento
profissional na área de música, apoiar a formação dos professores e dos demais profissionais
da educação em cursos de segunda licenciatura em música, sendo que tenho conhecimento de
duas professoras do município que ingressaram em uma segunda faculdade de música, onde
apenas uma concluiu o curso, criar bancos de dados sobre práticas de ensino de Música e
divulgá-las por meio de diferentes mídias e a distribuição de materiais didáticos adequados ao
ensino de música nas escolas, considerando seus projetos políticos pedagógicos, desse último
ponto o que eu notei que foi seguido foi a distribuição de livros sobre o ensino de música, que
consegui encontrar em ambas as escolas livros de educação musical disponíveis para a
consulta do professor.
Porém, senti falta do cumprimento da maior parte das competências destinadas a essa
instancia, que foram: a promoção de cursos de formação continuada sobre o ensino de música
para professores das redes de escolas da educação básica, a organização de redes de
instituições ligadas a música com vistas ao intercâmbio de experiências docentes, de gestão e
de projetos musicais educativos, bem como a mobilidade de profissionais e ao
compartilhamento de espaços adequados ao ensino de música; a realização de concursos
específicos para a contratação de licenciados em música; cuidar do planejamento
arquitetônico das escolas de modo que disponham de instalações adequadas ao ensino de
música, inclusive condições acústicas, bem como do investimento necessário para a aquisição
e manutenção de equipamentos e instrumentos musicais e a viabilização a criação de escolas
de música ou instituições similares, que promovam a formação profissional em música.
666

O PCN arte/música destinado aos anos finais da educação básica tem como pontos do
objetivo geral do ensino de música o seguinte:
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 “Alcançar progressivo desenvolvimento musical, rítmico, melódico, harmônico,
tímbrico, nos processos de improvisar, compor, interpretar e apreciar”
 “Desenvolver a percepção auditiva e a memória musical, criando, interpretando e
apreciando músicas em um ou mais sistemas musicais, como: modal, tonal e outros”
Esses são apenas dois dos vários objetivos que o ensino de música na educação básica
deve alcançar segundo o PCN de artes/música, na minha opinião para que um aluno chegue a
esses conhecimentos ele tem que ter um estudo sistemático e continuo de música, e levando
em conta a realidade vivenciada nas escolas que trabalho, onde tenho que trabalhar com
turmas de 38 alunos, muitos deles com total falta de interesse e ainda por cima ter que
interromper o ensino da música para trabalhar outros conteúdos, eu me pergunto, como fazer
para um aluno entender a diferença entre sistema modal e tonal sem antes ele ter passado por
aulas de teoria musical, sem esse aluno ter acesso a nenhum instrumento musical?
A música vem sim ganhando espaço na educação básica, isso é notório, porém da
forma que está sendo colocada, como um conteúdo junto as outras linguagens artísticas
continuam sendo vistas pelos alunos superficialmente devido ao pouco tempo destinado ao
seu ensino nas escolas. Acredito que sejam necessárias muitas discussões acerca de como
deve acontecer o ensino de Arte com suas modalidades dentro da escola de educação básica e
respectivamente como deve acontecer o ensino de música.
Nas minhas aulas de Arte procurei seguir a lei 13.278/2016 e não trabalhar somente a
música, mas reconheço que os conteúdos que não foram de música foram trabalhados de
forma superficial, na maior parte das aulas trabalhei com a música, onde procurei desenvolver
atividades que possibilitassem a vivência musical aos alunos, com atividades práticas e
lúdicas, mas sem deixar de levar também para eles aulas expositivas de temas relacionados a
música. A falta de um local destinado somente a aula de música dificultou muito as atividades
propostas, até o momento trabalhei muito com atividades de ritmo, que precisam em si de
uma movimentação em sala de aula, e o simples fato de terem que levantar e reposicionar as
carteiras em forma de círculo já era motivo de reclamação para os alunos, os próprios alunos
estão tão acostumados com a maneira tradicional de assistir aula, cadeiras enfileiradas,
caderno e lápis na mão e conteúdo no quadro para escrever, que principalmente no início eu
senti muita dificuldade em colocar em prática algumas atividades diferenciadas.
667

No segundo semestre desse ano ao ser feita uma nova distribuição de carga horária ao
professores devido a implantação da “hora relógio” no município de Pau dos Ferros – RN, nas
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duas escolas de fundamental II do município foram destinadas 2 horas para o
desenvolvimento de projetos musicais com os alunos, sendo que eu fiquei apenas com uma
escola, a outra escola ficou com o professor de Matemática, por ele ser músico destinaram
essas 2 horas para ele desenvolver um projeto de música com os alunos, com a finalidade de
completar a carga horária dele. Essas horas destinadas a projetos de música amenizam um
pouco a falta de tempo destinada ao ensino da música em si, porém não possibilitará que
todos os alunos das escolas tenham acesso a atividades de música como orienta a resolução, o
que reafirma a falta de clareza tanto para a escola em si quanto para a secretaria de educação
de como o ensino de música deve ser implementando seguindo as orientações dos
documentos oficiais.
Mesmo com tantas dificuldades consegui desenvolver atividades cumprindo
parcialmente com o que é proposto pelos Parâmetros Curriculares Nacionais para o ensino de
artes/música, tanto no quesito aprendizado como no quesito satisfação e aceitação por parte
dos alunos. Procurando seguir uma sequência didática de conteúdos levando em consideração
a hipótese de que os alunos de ambas as escolas nunca teriam tido aula de música, iniciei meu
trabalho com atividades de musicalização, atividades destinadas a trabalhar a percepção, a
sensibilidade o senso rítmico e a coordenação motora das crianças e dos adolescentes,
desenvolvendo atividades sobre o som: Descobrindo os sons de materiais variados (copos,
papel, materiais recicláveis) trabalhamos o som e o silêncio, os sons do cotidiano, o som da
natureza, os sons do nosso corpo, partindo em seguida para atividades de percepção auditiva
onde fizemos atividades lúdicas como por exemplo: o telefone sem fio sonoro, onde com um
instrumento musical (pandeiro) um aluno executava uma sequência rítmica e os outros tinham
que repetir essa sequência, a cabra-cega sonora, um aluno ficava de olhos vendados e em
meio ao restante da turma espalhada pela sala ele tinha que encontrar a pessoa que estava
produzindo um som com um instrumento, as atividades de Ritmo: andando no ritmo, ritmo
com claves, ritmo com copos (Cup Songs), que foi a atividade que fez muito sucesso entre os
alunos, tanto que nos dias das aulas com os copos, os alunos me esperavam na porta da sala
dos professores. Essas atividades eram realizadas de forma contextualizada e sempre em
conjunto teoria e prática, por exemplo quando trabalhamos o som tivemos aula também sobre
as características do som, como ele é produzido, então não ficou só na prática, nem só na
668

teoria.
Uma coisa importante de ser ressaltada é que as duas escolas de fundamental II em
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que trabalho são escolas onde as realidades são bem distintas principalmente no que diz

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respeito ao perfil dos alunos, na escola da zona rural os alunos são mais pacatos, mais calmos
e respeitadores, são alunos que contam com uma vida familiar em sua grande maioria bem
estruturada e lá as atividades terminam em melhores resultados, sendo que até no quesito da
estrutura da escola apesar de não ser uma estrutura moderna mas se torna um ambiente bem
mais agradável.
A escola da zona urbana, é uma escola maior e que atende a um público mais carente,
que na sua maioria residem nos bairros considerados periféricos da cidade, muitos alunos
contam com famílias desestruturadas, um público mais exposto a problemas sociais como
drogas, violência e são de uma forma geral alunos muito difíceis de se trabalhar. A estrutura
da escola é muito antiga e está mal preservada, o que não a torna um lugar muito atraente.
Nessa escola os resultados foram mais fracos, mas com o interesse e o empenho de uma
minoria de alunos conseguimos resultados satisfatórios.
Além dessas atividades tivemos também aulas destinadas a composição musical,
quando em parceria com o IFRN Campus/ Pau dos Ferros- RN foi desenvolvido um projeto
em todas as escolas do município intitulado Jovem Compositor, onde foi lançado um tema,
“música de protesto” e os alunos tiveram que compor a letra de uma música de protesto e
essas letras passaram por uma seleção onde as melhores letras receberiam um arranjo com
melodia, harmonia e ritmo e seriam interpretadas ou pelos próprios alunos ou pela banda do
IFRN no II Festival de MPB do IFRN/ Campus Pau dos Ferros. Durante o desenvolvimento
desse projeto os alunos participaram de oficinas de composição ministradas por alunos do
IFRN e também participaram de uma palestra com um músico e compositor local da nossa
cidade Eliano Silva que na oportunidade mostrou o seu trabalho aos nossos alunos cantando
algumas das suas músicas.
Também foi desenvolvido o Projeto The Voice Estudantil onde os alunos participaram
de uma competição de canto, e durante o desenvolvimento do projeto, antes de acontecer a
competição todos tiveram aulas sobre a voz, os cuidados com a voz, a diferença entre voz
falada e voz cantada e um pouco de técnica vocal. Além disso desenvolvemos um pequeno
projeto intitulado “Musicalizando na Escola” onde um bimestre inteiro foi destinado ao
trabalho com a música e durante esse trabalho as turmas participavam de práticas musicais
com matérias alternativos e percussão corporal e no final do bimestre aconteceu a culminância
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onde cada turma apresentou uma música utilizando essas ferramentas, desse projeto uma
atividade que se destacou bastante foi a construção de instrumentos de percussão com
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materiais recicláveis, onde montei um grupo com uma turma inteira e com esse grupo
ensaiamos algumas músicas que foram apresentadas no final do bimestre.
Com esses trabalhos tentamos alcançar alguns dos objetivos do ensino de música na
escola básica propostos pelo Parâmetros Curriculares Nacionais – PCN.

3 Considerações

Atuar como professora de Arte na educação básica tem sido uma experiência muito
importante para a minha formação como educadora musical, considero ter iniciado a minha
jornada profissional pelo caminho mais difícil, mas acredito que por esse motivo estarei mais
preparada para os próximos desafios e com isso passarei por eles com mais facilidade.
Portanto, com esse relato sobre a minha experiência percebo que o ensino de música
nas escolas de Pau dos Ferros-RN está aos poucos se adequando as leis e as orientações dadas
pelos documentos, porém ainda com algumas necessidades, como por exemplo, um apoio
maior da secretaria de educação, no que diz respeito principalmente a uma adequação de um
espaço destinado ao trabalho com a música e a compra de materiais do tipo instrumentos
musicais. Sinto a necessidade de formações continuadas destinadas a toda a equipe das
escolas acerca da importância e dos benefícios do ensino da música de forma sistemática e
não apenas como uma ferramenta utilizada em eventos e datas comemorativas, no geral de um
apoio maior de toda a esquipe da escola e da secretaria de educação no empenho de conseguir
seguir as orientações afim de que esse trabalho com a música realmente aconteça e gere
resultados.
Noto também que é necessário que haja um movimento por parte das instâncias
superiores para se discutir acerca da forma como essas quatro linguagens artísticas
asseguradas pela Lei 13.278/2016 serão trabalhadas dentro de um único componente
curricular, com professores com formação para trabalhar apenas uma área, de forma que atinja
aos objetivos propostos para cada linguagem e sem acarretar prejuízos devido a
superficialidade dos conteúdos ao aprendizado dos alunos. Pois nesse quesito ainda não se
tem um entendimento concreto de como isso deve acontecer. Percebo que a acoplagem das
quatro modalidades dentro de um único componente curricular se torna sufocante ao ponto de
670

que nenhuma das modalidades serão verdadeiramente trabalhadas de forma eficiente, pois
sempre uma modalidade será priorizada de acordo com a formação do professor e dessa forma
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nunca teremos uma conformidade no que diz respeito aos conteúdos vistos pelos alunos e

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mesmo que não seja priorizada o tempo se tornará pouco para tanto conhecimento que
abrange o componente curricular Arte.
Apesar das dificuldades venho tentando seguir e repassar aos meus alunos os
conhecimentos que adquiri acerca da música durante esses anos principalmente durante a
graduação, e apesar do pouco tempo de atuação sinto que venho seguindo com o que me foi
passado e acredito está fazendo um trabalho satisfatório. Tenho muito a aprender ainda, estou
em início de carreira, dentro da relação feita por Huberman (2007 apud Almeida e Silva 2013,
p.42) quando ele relaciona a vida profissional com o ciclo da vida humana, dividindo-a em
fases, me vejo dentro da fase 1, que é o período de estabilização, que são os seis primeiros
anos de vida profissional onde o professor começa a sentir uma autonomia em sala de aula e
passa a se sentir parte de um corpo profissional.

Referências

BRASIL, Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: arte/


terceiro e quarto ciclos. Secretaria de Educação Fundamental – Brasília: MEC/SEF,1998,

______. Lei 11.769/2008. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-


2010/2008/lei/l11769.htm> Data de acesso: 17 ago. 2017.

______. Lei 13.278/2016. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-


2018/2016/lei/l13278.htm>. Data de acesso: 17 ago. 2017.

PENNA, Maura. A dupla dimensão da política educacional e a música na escola: I -


analisando a legislação e termos normativos. In: PENNA, Maura. Música(s) e seu ensino. 2.
ed. Porto Alegre: Sulina, 2012. Cap. 7. p. 121-142.

Parecer CNE/CEB Nº 12/2013. Disponível em:


<http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=14875-
pceb012-13&category_slug=dezembro-2013-pdf&Itemid=30192>. Data de acesso: 08 agos.
2017.

Resolução n° 2 de 10 de maio de 2016. Disponível em:


<http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=40721-
rceb002-16-pdf&category_slug=maio-2016-pdf&Itemid=30192>. Data de acesso: 07 ago.
2017.
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GT5 – ENSINO DE MÚSICA NOS MÚLTIPLOS CONTEXTOS: PERSPECTIVAS,
EXPERIÊNCIAS, PRÁTICAS E FORMAÇÃO CONTINUADA

PARA ENTENDER MELHOR AS QUIÁLTERAS

Antônio Carlos Batista de Souza (UERN)

No início dos estudos musicais é comum surgirem dificuldades de compreensão frente


a leitura de partituras. Em se tratando de divisões rítmicas complexas como o caso das
quiálteras estas dificuldades podem ser acentuadas, podendo se tornar fatores desestimulantes,
o que talvez, justifique a afirmação “Há muito percebe-se nos estudantes de música uma certa
resistência quanto ao estudo do solfejo” (CARDOSO; MASCARENHAS, 1973, Prefácio).
O presente trabalho trata-se de um relato de experiência que discorre sobre estratégias
empregadas em sala de aula, nas turmas de Teoria e Percepção Musical, do Curso de
Licenciatura em Música, da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte-UERN, como
mecanismos facilitadores para a compreensão sobre as situações de quiálteras apresentadas no
livro Teoria da Música, (MED, 1996, p. 206-212), nas quais são utilizados recursos didáticos
no sentido de uma melhor programação visual e busca de referenciais de espaço e tempo que
encampam desde a utilização de solfejos sem ritmo com ênfase nas vogais, solfejos rítmicos
com ênfase em números até a utilização de gráficos espaço-temporais (SOUZA, 2013), sendo
estes últimos, pela sua utilização cotidiana, mais conhecidos entre os discentes como “a
pirâmide”.
Sobre a necessidade de se fazer organizações facilitadoras para a leitura musical, Med
preconiza que “[...] é muito importante não somente grafar a duração exata dos valores, mas
também visualizar os tempos e parte dos tempos” (MED, 1996, p. 129). Ainda, que “A escrita
deve ser a mais clara possível e as notas de vem ser agrupadas de maneira que representem
sempre uma unidade reconhecível” (MED, 1996, p. 27). Para Guest, “Toda vez que um grupo
de notas e/ou pausas, ocupando um tempo, um compasso ou metade de um compasso, possa
ser organizado em clichê, a oportunidade deve ser aproveitada para facilitar a leitura”
(GUEST, 1996, p. 44). Caregnato afirma que “Sem uma estrutura mental, regida por suas
regras e princípios próprios, e sem as representações rítmicas geradas por tal estrutura, não é
possível aos sujeitos executar um ritmo, por mais simples que ele seja” (CAREGNATO,
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2011). Corroborando com a afirmação, Jourdain assegura que “O metro dá ordem ao tempo.
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Organiza grupos de notas pequenos e, algumas vezes maiores, fornecendo uma espécie de
grade sobre a qual a música é esboçada” (JOURDAIN, 1998, p. 16).
Neste sentido, para a adoção das estratégias citadas, adotamos aqui figurações para a
representação dos movimentos rítmicos dentro de cada compasso, onde que cada trajetória em
forma de pirâmide representa uma unidade de tempo, fundamentadas na concepção de
Levitin, de que

O agrupamento é um processo hierárquico, e a maneira como nosso cérebro


forma grupos perceptivos depende de um grande número de fatores – forma,
cor, simetria, contrastes e princípios relativos à continuidade das linhas e
bordas do objeto (LEVITIN, 2010, p. 89).

Assim, temos as seguintes convenções para a pirâmide:

Figuras de som ___________________


Pausas _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _
Início (ataque) das figuras de som ●
Término das figuras de som ○
Início e término das figuras de pausa

Algumas representações:

Figura 1 - Marcação da semibreve, com a mão.

Fonte: do autor

Figura 2 – Semínimas em compasso binário.


673
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Fonte: do autor

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Figura 3 – Figuras de som e figuras de pausa em compasso
composto.

Fonte: do autor

Note-se que é possível visualizar o alinhamento entre as divisões rítmicas e sua


relação (localização) entre tempo e espaço.

Figura 4 - Síncope e quiálteras.

Fonte: do autor

Figura 5 - Figuras de som e de pausa

Fontes: do autor.

As estratégias apresentadas sobre as quiálteras apresentadas por Bohamil Med se dão


em função de estas em sua maioria, terem sido motivo de questionamentos e dificuldade de
compreensão entre alunos(as) e até professores(as) de música, devido serem feitas de modo a
674

não disponibilizar referenciais como fórmula de compasso ou outro recurso facilitador para o
entendimento. Para Caregnato, “Sem uma estrutura mental, regida por suas regras e
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princípios próprios, e sem as representações rítmicas geradas por tal estrutura, não é possível

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aos sujeitos executar um ritmo, por mais simples que ele seja” (CAREGNATO, 2011).
Segundo a autora, para Piaget

O tempo e espaço são as duas dimensões que atuam associadas na


organização de tudo aquilo que nos cerca. Segundo esse autor, o tempo é a
coordenação dos movimentos: quer se trate dos deslocamentos físicos ou
movimentos no espaço, quer se trate destes movimentos internos que são as
ações simplesmente esboçadas, antecipadas ou reconstruídas pela memória,
mas cujo desfecho e objetivo final é também espacial (PIAGET, 2002, p.
12).

Para Levitin, “o tempo é um fator no agrupamento auditivo, assim como a localização


espacial. Não somos sensíveis à localização no plano vertical (para cima e para baixo), mas
efetivamente o somos no plano lateral (direita-esquerda)” (LEVITIN, 2010, p. 91). Assim,
vejamos algumas estratégias, fazendo comparação com cada situação de quiáltera apresentada
por Bohumil Med.
No exemplo da Figura 6, vemos o primeiro exemplo, no qual para se entender o
exposto, precisa-se de no mínimo da fórmula de compasso, no caso 6/4, para que se
estabeleça um referencial de unidade de tempo (U. T.), evidenciado na Figura 7, para a
realização destas quiálteras aumentativas:

Figura 6 - Compasso 6/4.

Fonte: MED, 1996, p. 207

Figura 7 - Compasso 6/4.

Fonte: do autor
675
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As Figuras 8 e 9 são intencionalmente apresentadas na forma como apresentadas por
B. Med, para que seja evidenciada a difícil dedução para a leitura principalmente para
iniciantes. Seria interessante o autor informar que os grupamentos estão dispostos – é o que se
deduz – em uma pulsação realizada em compasso 2/4.

Figura 8 -

Fonte: MED, 1996, p. 207.

Figura 9 -

Fonte: MED, 1996, p. 207

De igual forma, na Figura 10, poderia o autor informar que os grupamentos têm a
duração de um tempo, realizados em compasso 2/4. No terceiro grupamento, a exemplo, as
subpulsações podem ser melhor compreendidas atribuindo-se números às cabeças de notas
e/ou sílabas que as evoquem, dentro da U. T. (1,2,3,4,5,6 = tum, tô, têa, tin, tê):

Figura 10 – Compasso 2/4.

1 2 345 6
676

Fonte: MED, 1996, p. 207. t t têa t t


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Na figura 11 é importante a informação de que o acontecimento se dá em compasso
6/8, com as figurações dispostas em uma unidade de tempo. Para esta realização, conta-se a
quantidade de quiálteras estabelecendo-se assim a velocidade de pulsação e não o contrário.

Figura 11 – Compasso 6/8

Fonte: MED, 1996, p. 208

Na Figura 12 apenas a informação de que os grupamentos têm duração de um tempo e


acontecem em compasso 4/4, seriam suficientes para maior compreensão.

Figura 12 – Quiálteras aumentativas em compasso 4/4.

Fonte: MED. 1996, p. 208

Na Figura 13 o primeiro exemplo se dá em compasso 2/4, e o segundo, em 4/4, em


uma pulsação (1 tempo) subdividindo-se em semínimas como na Figura 12.

Figura 13 -

Fonte: MED. 1996, p. 208

No exemplo a seguir, para maior compreensão, podemos fazer sua representação


através da pirâmide (Figura 15):
677
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ISBN: 978-85-7621-221-8
Figura 14 -

Fonte: MED, 1996, p. 209

Figura 15 – Representação na pirâmide.

Fonte: do autor

Outra situação de difícil compreensão apresentada por Bohumil Med (Figura 16) sobre
a qual aplicando a representação no gráfico (Figura 17) teremos um passo a passo para a
compreensão do desenho rítmico.:

Figura 16 – Quiáltera dentro de quiáltera.

Fonte: MED, 1996, p. 209


678
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Figura 17 – Passo a passo utilizando a pirâmide.

Fonte: Do autor.

No caso de quiálteras que ultrapassam o limite do compasso (Figura 18) subdividimos – ou


decompomos – todas as figuras de tempo em representação idêntica às de menor valor, e
fazemos a visualização na pirâmide (Figura 19).

Figura 18 - Quiáltera que ultrapassa o limite do compasso.

Fonte: MED, 1996, p. 209

Figura 19 – Subdivisão dos valores pelas figuras de menor valor apresentadas no desenho.
679

Fonte: Do autor.
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Outra situação de compasso que ultrapassa os limites do compasso:

Figura 20 -

Fonte: MED, 1996, p. 209

Figura 21 – Representação na pirâmide.

Fonte: Do autor.

No exemplo a seguir, para facilitar a compreensão do desenho rítmico, sugerindo-se a fórmula


de compasso 2/4 e associando-se palavras/sílabas às subpulsações, teremos:

Figura 21 -

Fonte: MED, 1996, p. 209

Figura 22 – Associação de palavras/sílabas.


680

Fonte: Do autor
Página

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Para compreensão do exemplo a seguir, adotemos números às subpulsações, 90 em
compasso 2/4.

Figura 23 -

Fonte: MED, A1996, p. 209

Subdividindo as figuras de valor pelas subpulsações nelas embutidas e fazendo


associações numéricas e silábicas, teremos:

Figura 24 -

Fonte: Do autor.

Para verificação da viabilidade da utilização da pirâmide, foi aplicado o questionário com


alunos do Curso de Licenciatura em Música, da UERN, no semestre 2013.2, nas turmas de
Teoria e Percepção Musical I (TPM I) e Teoria e Percepção Musical III (TPM III) no qual os
resultados apontaram as seguintes informações, respectivamente:

Tabela 1:

TPM I TPM III RESPOSTAS

100% 100% Não conheciam.


681

90
As estratégias propostas (pirâmide, palavras, números e etc.) podem ser aplicadas individualmente ou em
Página

conjunto, para a compreensão tanto das quiálteras quanto para as subdivisões normais estabelecidas pelas
fórmulas de compasso.

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92,85% 93,75% É viável para a compreensão de desenhos rítmicos

68,75% 78,57% Tem auxiliado para dirimir dúvidas em desenhos rítmicos

87,5% 92,85% Tem proporcionado maior na percepção nos finais de frase

28,57% 37,5% Já a utilizaram de forma espontânea como recurso para a


compreensão de desenhos rítmicos

92,85% 93,75% Favoráveis quanto a viabilidade do gráfico

Fonte: Do autor

Considerações finais

A utilização das estratégias apresentadas tendo como base a realização da pirâmide


correspondendo a uma unidade de tempo como referencial de localização no tempo e no
espaço tem se mostrado como recurso facilitador para a compreensão dos desenhos rítmicos
desde os mais simples aos mais complexos, sendo adotada espontaneamente por vários(as)
alunos(as) do Curso de Licenciatura em Música da Universidade do Estado do Rio Grande do
Norte. Associada com a aplicação do solfejo rítmico/numérico e/ou palavras/sílabas a
pirâmide tem se evidenciado como ferramenta viável para uma realização rítmica consciente.
A exemplo, foi somente através destas estratégias que a mim foi possível a compreensão e
realização da situação apresentada na Figura 6, após o passo a passo apresentado na Figura
17, estratégias estas em que até o momento, venho recorrendo nas aulas de Teoria e Percepção
Musical. É importante enfatizar que as estratégias têm sido adotadas para uma maior
conscientização nos solfejos rítmicos vêm sendo adotadas desde as primeiras turmas de
Teoria e Percepção Musical, mesmo nas situações de divisões rítmicas mais simples.

Referências

CARDOSO, Belmira; MASCARENHAS, Mário. Curso completo de Teoria Musical e


Solfejo, 1º vol., 8. ed., São Paulo: Irmãos Vitali Editores, 1973.
682

CAREGNATO, Caroline. Estratégia métrica versus estratégia mnemônica: posições


constrastantes ou complementares no ensino de ritmo.
Página

ISBN: 978-85-7621-221-8
Disponível em: http://www.abemeducacaomusical.com.br/congressos_realizados.asp
Acesso em: 18 ago. 2017.

GUEST, Ian. Arranjo: método prático. V. 1, Rio de Janeiro-RJ, 1996.

JOURDAIN, Robert. Música, cérebro e êxtase: como a música captura a nossa imaginação.
Rio de Janeiro: Objetiva, 1998.

KRUMHNSL, Karol L. Ritmo e altura na cognição musical. In ILARI, Beatriz Senoi. (Org.)
Em busca da mente musical: Ensaios sobre os processos cognitivos em música – da
percepção à produção. Editora UFPR, 2006.

LEVITIN, Daniel J. A música no seu cérebro: a ciência de uma obsessão humana. Trad.
Clovis Marques. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

MED, Bohumil. Teoria da Música. 4. ed. rev. e ampl. Brasília: Musimed, 1996.

SOUZA, Antônio Carlos Batista de. Divisões rítmicas em gráficos espaço-temporais.


Disponível em: <https://drive.google.com/file/d/0B8-bNnHtKxsTY01lcnh0aEk4TVU/edit>.
Acesso em: 09 set. 20117.

683
Página

ISBN: 978-85-7621-221-8
GT5 – ENSINO DE MÚSICA NOS MÚLTIPLOS CONTEXTOS: PERSPECTIVAS,
EXPERIÊNCIAS, PRÁTICAS E FORMAÇÃO CONTINUADA

BATENDO O PEZINHO - CONSIDERAÇÕES SOBRE AS RELAÇÕES DE SOM,


TEMPO E ESPAÇO NA MARCAÇÃO DE COMPASSOS COM OS PÉS

Antônio Carlos Batista de Souza (UERN)


Íris Emanuella de Castro Nascimento (UERN)

Bater compasso acompanhando uma melodia é um ato quase que natural do ser
humano, que induzido por uma contemplação ou apreciação auditiva voluntaria ou não, tende
a entrega-se à pulsação, ao ritmo. A marcação de compasso é um dos aspectos inerentes ao
ensino e aprendizagem musical em vários contextos em que sua importância apresenta-se por
alguns como indispensável nos solfejos e execução de partitura musical. “Ao bater com os
pés, estamos prevendo o que vai acontecer em seguida” (LEVITIN, 2010, p. 82). “Quando o
cérebro começa a sentir um encadeamento de pulsações, continua a esperar por elas”
(JOURDAIN, 1998, p. 171).
Para Caregnato,

O ensino de ritmo que se vale da contagem de tempos e da seriação de


pulsos dentro do compasso, ou aquele definido a princípio como baseado na
estratégia do “1 e 2 e 3…”, é um tipo de ensino que valoriza mais os
aspectos métricos do ritmo, enquanto o ensino focado nas estratégias
mnemônicas valoriza, sobretudo, os agrupamentos (CAREGNATO, 2011, p.
3).

Estabelecendo-se um paralelo, como o proposto por Sloboda (2008, p. 19), entre o


desenvolvimento da linguagem segundo Chomsky e o desenvolvimento da cognição em
música, pode-se dizer que o processo mental também ocorre com relação ao ritmo. Sem uma
estrutura mental, regida por suas regras e princípios próprios, e sem as representações rítmicas
geradas por tal estrutura, não é possível aos sujeitos executar um ritmo, por mais simples que
ele seja (CAREGNATO, 2011).
Segundo a autora, para Piaget

o tempo e espaço são as duas dimensões que atuam associadas na


684

organização de tudo aquilo que nos cerca. Segundo esse autor, o tempo é a
coordenação dos movimentos: quer se trate dos deslocamentos físicos ou
movimentos no espaço, quer se trate destes movimentos internos que são as
Página

ações simplesmente esboçadas, antecipadas ou reconstruídas pela memória,

ISBN: 978-85-7621-221-8
mas cujo desfecho e objetivo final é também espacial (PIAGET, 2002, p.
12).

Para Levitin, “o tempo é um fator no agrupamento auditivo, assim como a localização


espacial. Não somos sensíveis à localização no plano vertical (para cima e para baixo), mas
efetivamente o somos no plano lateral (direita-esquerda)” (LEVITIN, 2010, p. 91). Ainda,

O agrupamento é um processo hierárquico, e a maneira como nosso cérebro


forma grupos perceptivos depende de um grande número de fatores – forma,
cor, simetria, contrastes e princípios relativos à continuidade das linhas e
bordas do objeto (LEVITIN, 2010, p. 89).

Muito comum, principalmente no aprendizado em bandas de música é a marcação de


compassos apresentada em bibliografias tradicionais91.

Figura 1 - Marcação de compassos com as mãos.

Fonte: (PRIOLLI, 1989, p. 27)

Para Samuel Arcanjo,

Marcar compasso é bater com a mão ou o pé, indicando com esse bater e
com movimentos no ar, os tempos de que se compõem os compassos de um
trecho em execução, assim mantendo uniformidade de andamento da música
em conjunto (ARCANJO, s/d, p. 27).

“Os COMPASSOS BINÁRIOS são determinados com uma batida para baixo e um
movimento no ar” (ARCANJO, s/d, p. 27):
685
Página

91
Estas referências são apresentadas aqui intencionalmente, mesmo por referências desatualizadas, por
apresentarem padrões de marcações ainda utilizadas nas bandas de música.

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Figura 2 - Marcação de compasso binário.

Fonte: (ARCANJO, s/d, p. 27).

“OS COMPASSOS TERNÁRIOS, com duas para baixo e uma para o lado”
(ARCANJO, s/d, p. 28).

Figura 3 – Marcação de compasso ternário com a mão.

Fonte: (ARCANJO, s/d, p. 28).

“OS COMPASSOS QUATERNÁRIOS, com duas para baixo e uma para cada lado”
(ARCANJO, s/d, p. 28):

Figura 4 – Marcação de compasso quaternário, com a mão.

Fonte: (ARCANJO, s/d, p. 28).

Figura 4 – Marcação de compasso quaternário, com a mão.


686
Página

Fonte: (ARCANJO, s/d, p. 28).

ISBN: 978-85-7621-221-8
Para Cardoso e Mascarenhas (1973) os compassos geralmente são marcados com a
mão utilizando-se os gráficos a seguir:

COMPASSO BINÁRIO:

Figura 5 – Marcação de compasso binário.

Fonte: (CARDOSO; MASCARENHAS, 1973, p. 20).

COMPASSO TERNÁRIO:

Figura 6 – Marcação de compasso ternário.

Fonte: CARDOSO; MASCARENHAS, (1973, p. 26).

COMPASSO QUATERNÁRIO:

Figura 7 – Marcação de compasso quaternário.

Fonte: (CARDOSO; MASCARENHAS, 1973, p. 36).


687

Outras configurações para marcação dos compassos também são encontradas no


Método Bonna:
Página

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Figura 8 - Marcação de compasso (modelo francês).

Fonte: (BONA, 2002, p. 4)

Figura 9 - Marcação de compasso (modelo italiano).

Fonte: (BONA, 2002, p. 4).

POZZOLI (1983, p. 6) preconiza que

Para assinalar esses limites, e para obter a unidade de tempo, o aluno se


servirá da ação de bater as mãos uma sobre a outra, tendo o cuidado de
efetuar movimentos lentos, mas isócronos, de modo que o lapso de tempo
entre um e outro bater seja bem igual.

Figura 10 – Marcação de pulsação com a mão.

Fonte: (POZZOLI, 1983, p. 7)

Caregnato afirma que

Estabelecendo-se um paralelo, como o proposto por Sloboda (2008, p. 19),


688

entre o desenvolvimento da linguagem segundo Chomsky e o


desenvolvimento da cognição em música, pode-se dizer que o processo
Página

mental há pouco descrito também ocorre com relação ao ritmo. Sem uma
estrutura mental, regida por suas regras e princípios próprios, e sem as

ISBN: 978-85-7621-221-8
representações rítmicas geradas por tal estrutura, não é possível aos sujeitos
executar um ritmo, por mais simples que ele seja (CAREGNATO, 2011, p.
7).

É comum observar que nas bandas de música, nos momentos de aprendizagem da


divisão dos valores e nos solfejos ministrados pelos regentes e/ou monitores, estas marcações
serem realizadas com uma das mãos. Porém, quando da leitura de lições ou partituras com a
utilização dos instrumentos musicais, seja estudos, ensaios ou apresentações estas marcações
passam a ser executadas pelos músicos, com um ou ambos os pés, utilizando-se estes, dos
mesmos esquemas gráficos. Tal procedimento pode predispor e até mesmo acarretar em
elementos complicadores para a execução individual e/ou em grupo, em que o executante
pode dividir o foco na leitura da partitura, desviando parte da sua atenção para os movimentos
dos pés, tendendo manter um andamento próprio, não deixando-se levar pela condução da
regência. Outro risco possível em tal prática é gerar um cansaço da musculatura superficial
anterior da perna, principalmente quando se executam marcações em que o calcanhar
permanece no solo enquanto o parte distal do pé faz movimentos de supinação e de pronação
proximal podendo causar tensão nos músculos tibial anterior, extensor longo dos dedos,
extensor curto dos dedos e extensor longo do hálux (dedão do pé).

Figura 11 - Músculos superficiais anteriores da perna.

689
Página

Fonte: (SOBOTTA, 2006, p. 273).

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Agregado a isto é comum se perceber que muitos músicos de banda não são orientados
a desenvolver uma visão panorâmica, para visualização do gestual do regente, ficando o
mesmo em seu “mundinho” com olhos na partitura, e realizando a marcação dos compassos
com um ou com os dois pés, intencionalmente ou não, o que leva a um comprometimento
estético da performance, em que cada músico ao marcar os compassos ou unidades de
tempo à sua maneira, causa uma heterogeneidade visual de forma a deixar transparecer e/ou
sugerir ao público, uma situação de ainda aprendizado, insegurança, falta de ensaio ou mesmo
de pouco caso do regente para com este aspecto. A este respeito, é também comum, alguns
descuidos para com a postura tanto quanto ao aspecto de se encostar ou não no espaldar
da cadeira quanto à maneira de posicionar as pernas, quer em ensaios ou apresentações, onde
mesmo assim muitos músicos se dão à permissão de marcar os compassos com os pés.
Entretanto, há regentes e professores de música que recomendam a não marcação dos
compassos com os pés e até a proíbem, afirmando que tal procedimento pode levar o futuro
músico a um condicionamento, e que a pulsação deve ser sentida pelo corpo como um todo,
ficando assim mais sujeito à condução do regente. No sentido de amenizar estas
problemáticas, orienta-se marcar os compassos com o hálux (dedão do pé), dentro do sapato,
o que além de minimizar os riscos acima citados, proporciona a utilização de menores grupos
musculares, além de não deixar transparecer esta ação aos espectadores. Mesmo assim, podem
acontecer para alguns músicos outras dificuldades, como por exemplo, se perder na leitura da
partitura e não se ter um referencial de espaço e de tempo para retomá-la. Neste sentido,
tomando-se como referência por exemplo a batida (marcação) básica do bombo, para a
orientação dos tempos dos compassos, podem ser adotadas basicamente as seguintes
estratégias:
Compassos binários – O pé direito (PD) marca o primeiro tempo e o esquerdo (PE), o
segundo tempo. Utilizando-se como referência a marcação (batida) do bombo, que se dá mais
fortemente no segundo tempo92, ao se marcar esta pulsação, tem-se um elemento norteador
durante toda a execução da partitura. “Este é o ‘ritmo predominantemente na música popular,
no mundo inteiro. Sua marca registrada é o incessante bater dos tambores” (JOURDAIN,
1998, p. 167).
690
Página

92
Não obrigatoriamente na tésis do segundo tempo, esta marcação pode variar, como por exemplo, no baião, em
que a mesma acontece mais fortemente na quarta parte do primeiro tempo.

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Assim, por exemplo, ao se executar a trajetória de uma pulsação, temos o seu início no
chão (tésis) e metade deste movimento no ar (ársis), sendo possível a localização espaço-
temporal das figuras de valor.
Tomando-se a execução de um compasso binário, por exemplo, em que cada pé marca
a trajetória de um tempo, executaremos então a marcação de dois tempos (um compasso).
Seguindo esse raciocínio, para marcar/visualizar a localização espaço-temporal a divisão de
meio tempo, teremos no ápice da marcação a localização das colcheias. Em caso de
subdivisão de semicolcheias, contaremos 1, 2, 3, 4, para cada trajetória de um tempo, e assim
por diante.
Trazendo esta execução à visualização, teremos o esquema93:

Figura 12 - Marcação binária.

Fonte: dos autores.

Assim, quando por exemplo, na execução de um dobrado, samba, baião ou qualquer


outro ritmo binário, em caso de o músico se perder na leitura, mas ao continuar a marcação
tendo em mente o bombo no segundo tempo, continua tendo uma orientação espaço-temporal,
que o orienta na execução do compasso seguinte. Tal procedimento pode ser adotado
semelhantemente, nos compassos ternário e quaternário, observadas as respectivas marcações
do bombo, podendo também ser aplicado para os compassos compostos. Esta prática além de
nortear a leitura de partitura com uma referência sonora (o bombo) faz com que o músico
“abra o ouvido” para a execução em conjunto, além de auxiliar na compreensão de ditados
rítmicos e melódicos.
691
Página

93
Entenda-se por PE e PD, hálux (dedão) do pé direito e esquerdo respectivamente.

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Figura 13 - marcação do bombo em compasso binário 94 – A Banda (C. Buarque). Arr.: Manoel
Ferreira. (fragmento da grade).

Fonte: Governo do Estado do Ceará – Secretaria da Cultura e Desposto – Coord. de Música.

Compasso ternário – O pé direito marca o primeiro tempo e o pé esquerdo o segundo e


terceiro tempos. Aqui o bombo tem a marcação básica no primeiro tempo, ficando os demais
executados por um tambor mais agudo, geralmente, a caixa clara.

Figura 14 - marcação ternária.

Fonte: dos autores.

Figura 15 - Valsinhas Para Mamãe (fragmento da grade). Arr. Manoel Ferreira.

Fonte: Governo do Estado do Ceará – Secretaria da Cultura e Desposto – Coord. de Música.


692

94
Note-se que o bombo é percutido no primeiro tempo ficando sua segunda metade preenchida por pausa,
Página

enquanto que no segundo tempo a batida é deixada vibrar em todo o tempo, fazendo com que esta marcação soe
forte.

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Compasso quaternário – Neste compasso o bombo pode se apresentar em uma
configuração mais variada, marcando hora os primeiro e terceiro tempos, hora os quatro
tempos ou outras marcações conforme o estilo e arranjo.

Figura 16 - Marcação quaternária.

Fonte: dos autores.

Figura 18 – Hino Nacional Brasileiro (fragmento da grade).

Fonte: Governo do Estado do Ceará, Secretaria da Cultura e Desposto, Coord. de Música.

Lembramos aqui que estamos enfatizando as marcações básicas do bombo, sendo estas
encontrada em melodias simples e/ou de caráter popular. É obvio que em
qualquer fórmula de compasso a partitura do bombo apresentar variações rítmicas conforme o
arranjo. Outro elemento que vem auxiliar na marcação consciente das unidades de tempo e
consequentemente na leitura de partituras é obviamente o fraseado do discurso musical.

Considerações finais

As informações sugeridas neste trabalho apresentam-se como sugestões para atenuar


alguns condicionamentos provocados pelas marcações de compassos com os pés, e suas
693

consequências. Necessário se faz informar que os autores as vêm adotando em contextos


diversos como bandas de música, rodas de choro, orquestras de igrejas e também em salas de
Página

aula, com indivíduos que se encontram desde o aprendizado musical até músicos

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profissionais, como estratégia auxiliadora à leitura de partitura musical, no sentido de se
buscar referenciais de tempo, espaço e som. Assim, investigações com este público têm sido
realizadas no sentido de se verificar a concepção dos mesmos frente a eficácia da proposta em
foco. Como resultado, tem-se percebido que alguns reconhecem que executam
conscientemente as marcações, tentando reproduzir com os pés, os movimentos executados
com a mão, quando do início do aprendizado da leitura de partitura musical e que outros, não
se dão conta que as realizam, de maneira automática, sem se preocuparem com a
possibilidade de que esta prática possa comprometer a leitura da partitura, a entrega ao gestual
do regente e/ou possíveis críticas do público que os assiste. Em alguns relatos, tem-se
constatado em estudantes e músicos profissionais que as estratégias em tela têm
proporcionado a adoção de uma nova postura, conscientizadora e minimizadora de alguns
vícios, o que vem instigando nos autores, a realização de uma pesquisa mais acurada, para que
sejam aferidos as suas opiniões e os resultados alcançados.

Referências

ARCANJO, Samuel. Lições elementares de teoria Musical. São Paulo: Ricordi Brasileira,
[197-?] década provável.

CARDOSO, Belmira; MASCARENHAS, Mário. Curso completo de Teoria Musical e


Solfejo, 1º vol., 8. ed., São Paulo: Irmãos Vitali Editores, 1973.

CAREGNATO, Caroline. Estratégia métrica versus estratégia mnemônica: posições


constrastantes ou complementares no ensino de ritmo.
Disponível em: <http://www.abemeducacaomusical.com.br/congressos_realizados.asp>.
Acesso em: 18 ago. 2017.

JOURDAIN, Robert. Música, cérebro e êxtase: como a música captura nossa imaginação.
Rio de Janeiro: Objetiva, 1998.

KRUMHNSL, Carol L. Ritmo e altura na cognição musical. In: ILARI, Beatriz Senol (Org).
Em busca da mente musical: ensaios sobre os processos cognitivos em música - da
percepção à produção. Editora UFPR, 2006.

LEVITIN, Daniel J. A música no seu cérebro: a ciência de uma obsessão humana. Trad.
Clóvis Marques. Rio de Janeir: Civilização Brasileira, 2010.
694

POZZOLI. Guia Teórico-Prático para o Ensino do Ditado Musical. I e II partes. São


Paulo: Ricordi Brasileira, 1983.
Página

ISBN: 978-85-7621-221-8
PRIOLLI, Maria Luisa de Mattos. Princípios Básicos da Música Para a Juventude. 33. ed.,
revista e atualizada, 1º vol., Rio de Janeiro: Casa Oliveira de Músicas Ltda, 1989.

SOBOTTA, Johannes. Atlas de anatomia Humana. Tronco, vísceras e extremidade inferior.


22. ed., vol. 2, Rio de Janeiro: Editora Guanabara Koogan, 2006.

695
Página

ISBN: 978-85-7621-221-8
GT5 – ENSINO DE MÚSICA NOS MÚLTIPLOS CONTEXTOS: PERSPECTIVAS,
EXPERIÊNCIAS, PRÁTICAS E FORMAÇÃO CONTINUADA

POSSIBILIDADES DE JOGOS ONLINE PARA O ENSINO MÚSICA NO ENSINO


MÉDIO

Gibson Alves Marinho da Silva (UERN/UFERSA/IFRN)


Giann Mendes Ribeiro (UERN/IFRN)

Introdução

Há alguns anos, quando alguém queria fazer uma receita, recorria aos livros de
receitas ou a revistas. Esse tipo de livro continha várias receitas de A à Z, que eram
selecionadas pelos editores e por um profissional de gastronomia ou nutrição. Hoje em dia as
coisas mudaram, como dizia Luiz Gonzaga: “as coisas estão mudificadas”. Atualmente, se
alguém quiser fazer alguma receita, recorre aos sites de busca, como o Google ou a sites
especializados em gastronomia, em alguns deles pode-se fazer a busca da receita usando
como filtro os alimentos que os usuários têm nas suas residências. Ou pode-se ir ao Youtube e
fazer a mesma busca e encontrar uma infinidade de receitas, transmitidas por vídeos, onde o
apresentador ou o cozinheiro faz a receita com se estivesse num programa de televisão. Essa
pequena ilustração foi feita para demonstrar as mudanças que estão ocorrendo no modo como
as pessoas buscam por informações, na atualidade.
Então, levando em consideração que a internet está no cotidiano dos estudantes e que
esta facilita a comunicação e a velocidade da informação, é notória a necessidade do uso
dessas novas tecnologias no ambiente escolar, para tanto, os professores precisam apropriar-
se dessa ferramenta de ensino(SAVI; ULBRICHT, 2008), principalmente, os que lecionam
arte/música. Para ajudar a esses professores a encararem esse novo desafio foi que o projeto
de extensão “Educação, música e tecnologia: diálogo multidisciplinar na formação
continuada”, realizou uma formação continuada para os professores do ensino básico da rede
de ensino na cidade de Mossoró. Dessa formação foi criada uma apostila com uma série de
atividades utilizando os jogos online e software. Nessa perspectiva, este artigo tem como
objetivo analisar os jogos online presentes no material didático elaborado pelos membros do
projeto de extensão supracitado, que fora entregue aos professores durante o curso ministrado.
696

Essa apostila não foi publicada. Foi distribuída somente para os participantes do projeto.
Página

Nesse material foi proposta uma série de atividade para o ensino fundamental e médio, nos

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ateremos neste estudo aos jogos online destinados ao ensino médio. Para obtermos resposta ao
nosso objetivo nesta pesquisa, levantamos os seguintes questionamentos: Quais jogos online
que estão no material didático? O que esses jogos ensinam? Que conteúdos esses jogos
trazem, no tocante à música?
Dentre das atividades presentes no projeto de extensão, 10 atividades foram
destinados ao ensino médio, dessas atividades, 8 são com jogos online, todos de livre acesso e
gratuito. Os jogos online são aqueles que não precisam ser instalados no computador, ou seja,
pode-se jogar na web, em qualquer sistema operacional, basta ter acesso à internet. Portanto,
esses jogos podem ser de grande auxílio para os professores de música. Nesses jogos são
ensinados vários conteúdos da música, como: parâmetros do som, história da música,
apreciação musical, leitura e percepção musical. Os jogos online são uma alternativa para os
alunos terem maior contato com a música, tendo em vista a falta de estrutura nas escolas para
estas aulas.
Os jogos online são uma ótima ferramenta para o ensino de música. Os mesmos
podem possibilitar experiências musicais mesmo sem que o indivíduo saiba executar algum
instrumento. E também pode instigar a competitividade, fazendo com que os alunos fiquem
motivados para as aulas. Nessa perspectiva, o professor desempenha o papel de interlocutor
entre os ambientes e os alunos. Esses jogos não substituem o professor, que neste caso, é o
orientador da ação, fazendo um planejamento sistemático para conseguir o seu objeto, que é o
aprendizado do aluno.

1 Internet e Jogos online

Tendo em vista que a maneira para se buscar informações na sociedade foi


modificada pelos avanços das tecnologias da informação e comunicação (TICs), a escola
também acompanhou ou busca acompanhar essa mudança, até mesmo em sua estrutur
(LITTO; FORMIGA, 2014). Hoje as escolas possuem um laboratório de informática com
vários computadores conectados à internet ou uma rede Wifi, na qual os alunos podem acessar
a internet pelos seus aparelhos smartphones. Por causa dessas mudanças na escola, se faz
necessário o estudo sobre como utilizar essa nova ferramenta no ensino. Para atender às novas
697

necessidades sociais, a escola teve que se adequar, não só em termos de infraestrutura, mas
também, os professores também tiveram de adequar-se a essas transformações, posto que os
Página

alunos e a escola são influenciados pelas transformações.

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Analisar esta complexidade do contexto social é um importante pressuposto
para a compreensão dos diferentes dilemas enfrentados pela educação visto
que o que se passa na sociedade tem reflexo na escola e, consequentemente,
o que se passa na escola refletirá na sociedade. Por isso, aprender no
contexto atual pressupõe o desenvolvimento da capacidade de discernir,
questionar e refletir sobre as informações recebidas para se chegar ao
conhecimento que é a capacidade de contextualizar essas informações
criando relações entre elas (LOPES; CAPARRÓZ, 2005, p. 50).

Então, essas transformações trouxeram uma nova maneira de buscar conhecimento,


devido ao fato das informações poderem ser encontradas em qualquer ambiente virtual, basta
ter acesso à internet. E a escola, como um ambiente que produz conhecimento, pode usar essa
ferramenta para melhorar a formação do indivíduo. Notadamente, as mudanças influenciaram
a maneira como os alunos estudam: os discentes usam a internet para buscarem informações
sobre determinados conteúdos escolares. Por exemplo, quando o aluno está estudando sobre a
segunda guerra mundial ou outro conteúdo, às vezes ele não fica limitado ao simples livro
didático, o discente vai buscar informação onde é mais atrativo: na internet. Por esse meio, o
aluno aprofunda o conhecimento sobre o assunto, pois possibilita maior contato do discente
com o conteúdo, dando a possibilidade de fazer ligações entre os conteúdos escolares e as
informações encontradas na internet.
Lopes e Caparróz (2005, p. 51) afirmam que “ao contrário dos meios de
comunicação de massa, a internet possibilita uma interatividade entre professor, aluno e
tecnologia”. Esta pequena reflexão foi para ilustrar uma possibilidade de uso da internet para
uma aprendizagem significativa aos alunos. A internet possibilita uma nova maneira de
interação entre alunos, professores e o mundo digital, proporcionando diferentes maneiras de
se aprender algo.

Acreditamos que muito mais do que o próprio ambiente, com suas interfaces
e possibilidades de uso de diferentes mídias, o diferencial pode estar na
postura assumida pelos seus participantes, considerando suas experiências
vividas, conceitos e significações, concepções sobre o que é ensinar e
aprender online, posicionamento crítico e reflexivo, enfim, a atitude diante
do uso de tal tecnologia que influencia significantemente no processo de
aprendizagem (LOPES; CAPARRÓZ, 2005, p. 52).
698

A internet pode promover novas experiências na aprendizagem, e a subjetividade dos


Página

alunos está envolvida nesse processo de apropriação de conhecimento. Segundo Libânio, as

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experiências de vida são fundamentais para o processo de uma educação significativa
(LIBÂNIO, 2013), aproximando os conteúdos do cotidiano dos educandos.
Trazendo a discursão dessa aprendizagem virtual para o contexto da educação
musical, vislumbramos várias oportunidades de trabalhar com internet, pois, há diversos
métodos para se trabalhar com o ensino da música, através de sites que possibilitam a
manipulação sonora, por exemplo. Segundo Gonh (2010, p. 118), essa facilidade para
“trabalhos com materiais sonoros cria condições para exercícios que ensinam, entre outros
assuntos, arranjo e forma”. O uso da internet nos processos educacionais é justificado pela
comodidade e agilidade propiciada, posto que quaisquer “computadores conectados à rede
servem como meio de acesso a um grande universo, abrindo caminhos para que, mesmo em
situação de restrição financeira, qualquer indivíduo possa desenvolver diversas atividades
relacionadas à música” (GOHN, 2011, p. 346). Isso mostra que qualquer aluno ou professor
pode trabalhar com o ciberespaço, já que a maioria das escolas, tanto públicas quanto
privadas, tem um laboratório de informática com acesso à internet.
A internet é um mundo inexplorado, hoje em dia só usamos cerca de dois por cento
de todo conteúdo que a internet possui, o que demonstra o tamanho da internet, e,
consequentemente, o leque de opções disponíveis acerca do uso em sala de aula é enorme. É
comum encontrarmos na internet, softwares online com a mesma função de softwares que
precisam ser instalados no computador. Podemos citar outras vantagens:

Além disso, softwares on-line apresentam uma grande vantagem: há uma


garantia de que serão utilizadas as versões mais recentes dos programas,
aperfeiçoadas e compatíveis com os padrões encontrados nos similares do
mercado. Não é preciso fazer atualizações, contar com suporte técnico ou
possuir conhecimento específico para lidar com situações de pane
tecnológica, pois as programações rodam nos servidores. Basta um
navegador funcional para que as ferramentas sejam acessadas(GOHN, 2010,
p. 117).

Depois de falar das vantagens dos softwares online, vamos falar sobre jogos online
para ensinar, mais especificamente, ensinar música. Esses jogos online usam a mesma
tecnologia dos softwares online, suas construções seguem o mesmo princípio, a maioria
desses recursos tecnológicos digitais são construídos na plataforma java, por ser simples a
699

programação e ser compatível com os navegadores de internet.


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Os jogos digitais podem ser definidos como ambientes atraentes e interativos que
capturam a atenção do jogador ao oferecer desafios que exigem níveis crescentes de destreza
e habilidades” e um ambiente virtual, nesse caso a internet
A maior diferença entre os dois, enquanto o software tem o objetivo de executar uma
tarefa, o jogo online tem o objetivo de entretenimento e de competição, pois, jogos têm
implícita a ideia de competição, de objetivos a serem alcançados, que são propostos para se
passar de uma fase a outra. Os jogos online podem ser definido “como ambientes atraentes e
interativos que capturam a atenção do jogador ao oferecer desafios que exigem níveis
crescentes de destreza e habilidades”(SAVI; ULBRICHT, 2008, p. 2) em ambiente virtual,
nesse caso a internet. Nesses termos, podemos dizer que esse desafio gera a competição, que
pode ser usada a favor do ensino, por motivar os alunos a se dedicarem a alcançar o objetivo
do jogo, ao mesmo tempo em que o indivíduo adquire conhecimento.
Outro ponto positivo para os jogos online, fazer partes do processo de aprendizagem
dos jovens estudantes é propor uma prática inovadora e atraente(SAVI; ULBRICHT, 2008).
Proporcionar uma forma dinâmica e ativa no processo da aprendizagem, os alunos têm a
oportunidade desenvolver experiências em um ambiente que onde está livre para ser
explorado. Onde o aluno pode colocar em prática suas experiencia que adquiriu fora do
ambiente escolar e os professores estão dando a oportunidade de aprimorar e desenvolver
novas experiências.
Além do fator competição, que motiva os alunos, os jogos podem também contribuir
para a formação linguística e lógico-matemática dos jogadores, como também, para a
capacidade de interagir com a tecnologia, no desenvolvimento de habilidades sensoriais,
emocionais e sociais (ASSUNÇÃO, 2012), facilitar a aprendizagem, proporcionar experiência
de uma nova identidade no ambiente virtual e comportamento expert (SAVI; ULBRICHT,
2008).
Por tanto esses jogos podem serem usados no ambiente escolar(SAVI; ULBRICHT,
2008), o desafio do professor é saber utiliza-lo como um objetivo pedagógico na
aprendizagem dos alunos. Proporcionando uma nova metodologia, que valorize tanto a
motivação dos alunos como descobrir outras maneiras de proporcionar aprendizagem fora das
tradicionais pedagogias, e o professor passar a ser um orientado da ação e mediador entre a
700

aluno e os jogos.
Página

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2 PROEX 2011 – Educação, música e tecnologia: diálogo multidisciplinar na formação
continuada.

No ano de 2011 o Departamento de Artes (DART) da Faculdade de Letras e Artes


(FALA), onde se encontra o curso de Licenciatura em música, que está vinculado à
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), executou o projeto intitulado
“Educação, música e tecnologia: diálogo multidisciplinar na formação continuada”. O projeto
foi financiado com recursos do convênio entre MEC/SESu com a UERN/PROEXT-2011.
Esse programa teve como objetivo: desenvolver atividades de ensino de música mediado
pelas tecnologias digitais, com o intuito de estimular o ensino de música como prática no
componente curricular da disciplina Artes/Música.
Dentro desse projeto principal foram desenvolvidas três atividades: 1) Uma formação
continuada para os professores da Educação Básica e para os alunos do curso de licenciatura
em música, que teve como alvo, o desenvolvimento de atividades que pudessem ser usadas na
sala de aula; 2) A realização da I Conferência Internacional Diálogos Brasil-Finlândia-EUA:
música e educação em pauta, na qual participaram os envolvidos no projeto; 3) e por último
foi realizada uma atividade chamada de Workshop: tecnologias inovativas em Educação
Musical, como o propósito de ampliar as reflexões sobre a utilização das tecnologias digitais
(RIBEIRO; RIBEIRO, 2016).
O projeto foi executado por um coordenador geral, que administrava as tarefas
realizadas, e por 15 bolsistas. Com a equipe formada, foram realizados o planejamento e as
discussões do projeto. Os envolvidos realizavam leituras de textos abordando a temática, em
seguida, se estabeleceram as tarefas, que foram: “seleção de propostas, adequação das
propostas e preparação de material didático” (RIBEIRO; RIBEIRO, 2016 p.18 Apud
RIBEIRO et al., 2013).
A primeira atividade desenvolvida pelo projeto foi a construção do material de apoio
didático, que pudesse ser usado no Ensino Fundamental I e II e no Ensino Médio, e que
abordasse o conteúdo de música, através das tecnologias digitais. Esse material didático foi
construído considerando conteúdos específicos da música, tais como: teoria e percepção
musical, história da música, composição, apreciação musical e conteúdos interdisciplinares
701

(RIBEIRO; RIBEIRO, 2016). Os materiais foram criados seguindo as referências dos


Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), os quais dispõem de documentos, para o
Página

Fundamental I e II e do Ensino Médio (PCNs+), e textos da área da Educação Musical que

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tratam do assunto tecnologias digitais. Em seguida, buscou-se por Freewares na internet que
contemplassem os conteúdos de música. Utilizou-se como filtro para selecionar os
Freewares95 as seguinte categorias: interfaces atraentes; facilidade no manuseio, tanto dos
alunos como dos professores da rede básica; possíveis problemas que os alunos encontrariam
no uso, que abordaria os conteúdos sobre música; probabilidade de adaptação para níveis
diferentes, seguindo as orientações dos PCNs e PCNs+(RIBEIRO; RIBEIRO, 2016).
Depois de realizada a pesquisa na internet, os Freewares selecionados foram testados
pelos discentes e docentes envolvidos no projeto. Os mesmos produziram tutoriais com
procedimentos didáticos, baseados nos teóricos da Educação Musical. Nesses tutoriais são
explicados os procedimentos e funcionalidades dos jogos selecionados. No final foi obtido o
material: uma apostila com 33 atividades baseadas nas tecnologias digitais. Nessa apostila são
encontradas: 10 atividades para Ensino Fundamental I, 13 atividades para Ensino
Fundamental II e 10 para o Ensino Médio. Para aprofundamos nossas discussões, vamos
limitar nossa análise aos jogos online encontrados pelos pesquisadores, que foram
selecionados para o ensino de música no Ensino Médio.
Foram encontrados 10 Freewares , são eles: El Mundo Suena, Audacity, Button Bass,
Music Blox, The Cyclosonic, Clasix, Dictado Rítmico, Musical Race, Pre – Lekto, Gnu
Solfege. Desses Freewares encontrados, 8 são jogos online que podem ser encontrados na
internet. Alguns desses jogos não requerem uma instalação no computador, também não
precisam de equipamentos de som e podem ser acessados, tanto de computadores como de
tablets ou smartphones. São jogos que trabalham vários conteúdos da música de maneira
intuitiva e subjetiva, não sendo necessário um conhecimento muito aprofundado para o seu
manuseio. Alguns deles, na sua própria página, dispõem de tutorias para ensinar a jogar.
Outros Freewares como: Audacity e Gnu Solfege requerem uma instalação no computador, e
somente estão disponíveis numa única plataforma, o computador.
No próximo tópico vamos analisar os jogos online encontrados na apostila que foi
desenvolvida pelo grupo do projeto de extensão e foi disponibilizada para os professores que
fizeram parte da formação continuada. Atentar-nos-emos aos jogos onlin que sejam possíveis
suas utilizações em diferentes plataformas ou diferentes aparelhos eletrônicos com
conectividade à internet.
702
Página

95
São softwares livres e gratuitos encontrados na internet.

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3 Jogos online para aulas de música no ensino médio

O jogo online El mundo suena96. Esse jogo tem a proposta de ensinar música de
diferentes culturas. Ao entra no jogo, pode ser visto um mapa mundi. Quando se começa a
jogar é tocada uma melodia de um determinado país e o aluno tem que clicar no país
correspondente à música executada no jogo. É necessário que o aluno conheça a geografia do
globo terrestre para identificar de onde é a música executada, são 18 músicas de 18 países
diferentes. Esse jogo também pode ser interdisciplinar, podendo a aula de música fazer um
diálogo com a geografia, podendo ser usado em qualquer uma das disciplinas, posto que
ensina diferentes culturas a partir da música.
O próximo jogo online tem como proposta a composição de músicas baseada em
loops97, esse jogo é o Button Bass98. Nesse Ambiente, o jogador é apresentado a um cubo,
como os famosos cubos mágicos. Cada quadrado do cubo representa um loop, esse jogo
possui vários cubos com diferentes loops e estilos. O aluno pode misturar os loops e fazer sua
composição. Os discentes podem criar uma escrita própria para registrar suas composições ou
passar para os colegas e assim fazer um laboratório de composição. Esse tipo de jogo estimula
a criatividade do aluno, através da brincadeira com os loops. Nesse mesmo jogo podem ser
apresentados aos alunos os parâmetros do som, os instrumentos musicais, o ritmo, a melodia e
a harmonia.
O Music blox99, também é um jogo online de composição. Diferente do jogo anterior,
esse utiliza as notas musicais. São apresentados vários quadrados, organizados um em baixo
do outro, são ao todo 256 quadrados divididos em 16 linhas e 16 colunas. Esse jogo dá ao
aluno, a possibilidade de trabalhar com a escala musical, podendo criar sua própria música.
Não é necessário ter um conhecimento especifico sobre composição musical, basta o aluno
combinar os sons do seu agrado. Faz-se necessário o professor orientar a composição do
aluno e deixar que o discente desenvolva suas próprias experiências musicais. Esse tipo de
exercício trabalha a criatividade do aluno e o gosto musical, e o professor passa a ser um
observador e orientador do fazer musical. O interessante de se trabalhar com algo desse tipo é
a ludicidade, não precisa ser um compositor experiente ou ter um conhecimento musical
vasto, basta ter um computador e usar a criatividade para fazer sua própria composição. As
703

96
Disponível em http://gerardodiegoaulademusica.blogspot.com.br/2013/01/el-mundo-suena.html
97
São trechos musicais feitos para repeti várias vezes, loops são muito usados em músicas eletrônicas.
Página

98
Disponível em http://www.buttonbass.com/
99
Disponível em http://jogosmusicais.blogspot.com.br/2011/05/music-blox.html

ISBN: 978-85-7621-221-8
composições podem ser salvas e compartilhadas nas redes sociais. Outra possibilidade é a
criação de uma escrita musical para esse jogo, isso serve para registrar a composição e
também o compartilhamento com outros alunos.
No jogo The cyclosonic100, pode-se trabalhar a criatividade dos alunos de várias
formas, o objetivo principal desse jogo também é a composição musical. Tanto os PCNs
quanto autores da educação musical defendem que a ideia do fazer musical é a melhor
maneira de apropriar-se dos elementos da música. Nesse jogo, os jogadores têm a
oportunidade de compor suas melodias usando as sete notas musicais, além de poderem
também pode compor uma melodia a três vozes. Além de compor, o jogador tem acesso a
nove exemplos de melodias, e estas podem ser usadas como base para compor as melodias
dos jogadores. Não é necessário ter um conhecimento aprofundado sobre música, basta ter um
professor para ajudar nas escolhas.
Jogos desse tipo ajudam os estudantes a trabalharem, tanto a criatividade quanto a
percepção musical, porque os discentes precisam combinar os sons para construir suas
melodias. Nesse jogo, cada melodia é criada com sete notas, e o ritmo não pode ser alterado,
mesmo assim a experiência da criação é válida, pois, esse jogo possibilita a experiência
musical, mesmo para pessoas que não executam um instrumento musical. Nesse ambiente, o
aluno pode criar melodias polifônicas, combinando até três notas simultaneamente.
No jogo Clasix101, a proposta é ensinar a história da música ocidental Europeia. Nele,
são apresentados 20 compositores de diferentes períodos da música. Ao iniciar o jogo, o aluno
escuta uma música e ao término da música precisa indicar o compositor correto. São
apresentados vários tipos de composições como: sinfonias, suítes, fugas, sonatas e óperas.
Esse tipo de Ambiente possibilita um novo tipo de apreciação, na qual os alunos têm contato
com música que não é do seu cotidiano, isso proporcionar uma expansão cultural dos
educandos.
O jogo Dictado Rítmico102 tem a proposta de exercitar a percepção musical, baseado
em exercícios rítmicos. Nesse jogo, é necessário conhecimento sobre notação musical,
principalmente, sobre as figuras de som e de pausa. Nele, o aluno pode escolher o nível de
dificuldade, as figuras, andamentos, fórmulas de compasso e quantidade de compasso, então o
704

100
Disponível em: http://gerardodiegoaulademusica.blogspot.com.br/2013/04/cyclosonic.html
Página

101
Disponível em: http://gerardodiegoaulademusica.blogspot.com.br/2013/04/clasix.html
102
Disponível em: http://www.teoria.com/ejercicios/ritmo.php

ISBN: 978-85-7621-221-8
aluno tem a autonomia de colocar o jogo de acordo com seu nível de conhecimento musical.
Jogos desse tipo são uma grande ferramenta para o ensino da leitura musical.
No jogo Musical Race103, como o nome já diz é uma corrida musical. Nesse jogo o
aluno precisa responder a uma série de questões e de acordo com seus acertos vai avançando
na corrida. O questionário é formado por 18 perguntas aleatórias, e nesse ambiente é
necessário um conhecimento sobre leitura musical, percepção musical, história da música e
vários estilos musicais. Esse ambiente virtual é muito interessante por trabalhar vários
elementos musicais e possibilitar a conexão de vários conteúdos musicais. Esse jogo requer
um trabalho prévio do professor e dos alunos, um acúmulo de conhecimento sobre diversos
assuntos da música, desde instrumentos à identificação de trechos de músicas eruditas.
No jogo Pre–lekto104, o aluno pratica a leitura musical, e também pratica um
instrumento, nesse caso o piano. Ao começar a jogar, o discente é apresentado a um
pentagrama com várias notas escritas aleatoriamente e a um piano virtual com uma oitava. No
decorrer do jogo, as notas vão ficando vermelhas e o aluno tem que executar a nota correta no
teclado virtual. Esse tipo de ambiente é perfeito para o aluno que está aprendendo sobre
notação musical e também pode praticar um instrumento, ou conhecer a estrutura do
instrumento em questão.

Considerações finais

A internet é uma ferramenta bastante útil para as aulas de música. Devido à falta de
estrutura das escolas básicas em relação ao ensino de música, posto que a maioria não tem
uma sala adequada para aulas dessa disciplina, com isolamento acústico, instrumentos
musicais, quadro com pauta e equipamento de som, o ensino por meio da internet é mais
eficaz, haja visto que a maioria das escolas tem laboratório de informática com todos os
computadores conectados à internet.
Nos jogos online, os alunos têm a oportunidade de explorar a imensidão da internet
com o auxílio do professor. A maioria desses discentes já utiliza a internet para aprender algo
ou buscar informações para usar no seu cotidiano. Contudo, essa utilização é efetivada sem o
auxílio do professor, os mesmos fazem busca utilizando como filtro seus próprios gostos e a
705

sua curiosidade. Entendemos que os educadores podem utilizar a curiosidade dos alunos nas
Página

103
Disponível em: http://gerardodiegoaulademusica.blogspot.com.br/2011/11/musical-race.html
104
Disponível em: http://gerardodiegoaulademusica.blogspot.com.br/2012/10/pre-lekto-y-e-lekto.html

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suas próprias aulas para estimulá-los a estudar conteúdos que, geralmente, são densos e
desmotivadores.
Há, nos dias de hoje, uma necessidade de os professores se apropriarem desses
ambientes para utilizarem nas suas aulas de música. Esses jogos trabalham vários conteúdos e
podem ser usados sistematicamente, um após o outro, como se fosse um grande jogo e a cada
fase vencida alcança-se um novo nível, ou sistematizado de acordo com os conteúdos , para
auxiliar na aprendizagem. Esses jogos podem ser trabalhados com os alunos de acordo com a
criatividade do professor.
Vistos desta forma, os jogos online exercem uma importante função na educação
musical, por possibilitar um convívio musical com diferentes formas de se apropriar do fazer
musical. Portanto, se faz necessário que os professores possam conhecer essa ferramenta para
aprimorar a educação dos seus alunos. Esses jogos mostraram que não é preciso um
conhecimento muito aprofundado sobre música para a sua utilização. Todos os jogos são
baseados no lúdico, e também valorizam a prática, antes mesmo do conhecimento teórico.
Para o uso desses ambientes, basta haver criatividade, tanto dos professores quanto dos
alunos.
A internet é uma grande ferramenta, pela sua comodidade e sua interação, e podem ser
de grande valia para a educação, não somente da música, mas também para outras disciplinas.
Nesse trabalho, falamos de ambientes online para ensino da música, mas podemos encontrar
vários jogos que podem ser usadas em outras disciplinas. São vários jogos online que podem
sem usados no cotidiano da escola, basta o professor procurar na internet, que encontrará
jogos com várias finalidades. Alguns são para ensinar inglês ou português, ensinar a fazer
cálculos matemáticos ou até mesmo sobre economia doméstica. Os jogos estão prontos para
seres jogados, basta que o professor queira usá-los.

Referências

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aprendizagem: inter-relações formação tecnológica e prática docente. In. Educação,
Formação 6 Tecnologias, v. 1, n. 2, p. 50–58, 2005.
706

LIBÂNEO, J. C. O processo de ensino na escola. In. Didática. 2. ed. São Paulo/SP: Cortez,
2013, p. 82-111.
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SILVA, J. I. P. DA. Música e tecnologia: discussões das revistas da ABEM e da ANPPOM
no período de 2004-2014. Mossoró: Monografia (Graduação em Música). Universidade do
Estado do Rio Grande do Norte. Faculdade de Letras e Artes, 2014.

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videogames Guitar Hero III e Rocksmith. Contemporânea, 20. ed., v. 20, p. 119-136, 2012.

RIBEIRO, CARLOS; RIBEIRO, G. M. Educação Musical mediada por Tecnologias


Digitais: uma investigação nas aulas de Artes/Música na rede da Educação Básica no
Município de Mossoró/RN. Saarbrücken: Novas Edições Acadêmicas, 2016.

LITTO, FREDRIC MICHAEL; FORMIGA, Manuel Marcos Maciel. EDUCAÇÃO À


DISTÂCIA: o estado da arte. 8. ed. São Paulo: Brasil, Pearson Education do, 2014.

SAVI, Rafael; ULBRICHT, Vania Ribas. Jogos digitais educacionais: benefícios e desafios.
RENOTE, v. 6, n. 2, 2008.

707
Página

ISBN: 978-85-7621-221-8
GT5 – ENSINO DE MÚSICA NOS MÚLTIPLOS CONTEXTOS: PERSPECTIVAS,
EXPERIÊNCIAS, PRÁTICAS E FORMAÇÃO CONTINUADA

AS PRÁTICAS MUSICAIS DESENVOLVIDAS NAS ESCOLAS EM MOSSORÓ: UM


ESTUDO DE CASO EM TRÊS ESCOLAS CONTEMPLADAS COM O PROJETO
PIBID MÚSICA/UERN

Elizabeth Freire Maciel da Silva


Eja.educa@outlook.com
José Ozenildo Freire dos Santos
ozenildoosax@hotmail.com
Juliana de Souza Revoredo
Juliana_revoredo@msn.com

Introdução

Atualmente, muito se comenta sobre a prática musical em sala de aula e sua efetivação
nas aulas de arte por meio da lei 11.769 que obriga o ensino musical nas escolas. Contudo,
são poucas as escolas que tem em seu âmago a prática musical em suas salas e em seus
átrios. Esse trabalho é fruto de um estudo de caso em quatro escolas envolvidas com o
PIBID/Música da UERN, onde nós supervisores e bolsistas, sob a orientação e coordenação
do Professor Carlos Batista, buscamos conhecer e analisar as atividades musicais
desenvolvidas nas E.E. Padre Sátiro C. Dantas1, E.E. Diran Ramos do Amaral2 e E. E. 30 de
Setembro4, comtempladas pelo PIBID música em Mossoró-RN, sua realidade e, analisar as
grades curriculares de artes/música destas unidades escolares e inserir as atividades musicais
propostas no projeto PIBID. Esse trabalho se justifica em razão da lei 11.769, que obriga o
ensino de música nas escolas regulares de ensino, e que após oito (08) anos de sua
publicação ainda não teve uma efetivação sólida, e talvez não tenha. Daí a busca de respostas
para os questionamentos: A música já está sendo lecionada nas escolas? Na escola, quem
decide o quê ensinar em artes? Quem são esses professores? O que os norteiam? Como está
sendo desenvolvidas as aulas de artes/música? As respostas para essas e outras perguntas
foram encontradas na análise feita pelos bolsistas e supervisores que foram nas escolas,
pesquisaram desde a parte estrutural das escolas até à pedagógica, utilizando-se de
questionário semiestruturado e de análise de documentos. Os levantamentos dessas
708

informações apontam para aulas de música parciais, ou seja, elas acontecem, mas a contento
do professor. Não que o professor não quisesse ou não soubesse, mas porque a própria
Página

instituição não tinha um plano unitário para uma ação coletiva que dirimisse a práxis escolar.

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Desta forma, cada professor usava suas habilidades para criar e recriar algo atual e pertinente
às quatros linguagens do ensino de artes (Teatro, Dança, Música e Artes visuais). De
acordo a LDB, Lei 11.769/2008 “torna-se conteúdo obrigatório, mas não exclusivo, o ensino
de música no componente curricular do ensino de artes”. Contudo, em face às aulas de
música presenciadas e as grades curriculares encontradas nos PPP’S, é evidente a dificuldade
que os professores de Artes/Música enfrentam para encaixar seus conteúdos às
programações sócio culturais da escola. Portanto, se as escolas estivessem com seus PPP’S
prontos, atualizados e efetivados, constando em sua grade curricular como e quais atividades
musicais deveriam ser abordadas, seria um guia perfeito e igualitário para todas as atividades
musicais ou não nesta instituição. Outro sim, a necessidade da polivalência nas aulas de arte
leva o professor de música a estudar outras linguagens artísticas nem sempre vistas em seu
curso de formação.

Importância do PPP na escola.

Como é comum no âmbito educacional toda escola deseja alcançar suas metas e
realizar seus sonhos. O conjunto dessas aspirações, bem como os meios para concretizá-las é
o que dá forma e vida ao chamado projeto político pedagógico – o documento PPP. As
próprias palavras que compõem o nome do documento dizem muito sobre ele:
É projeto porque reúne propostas de ações concretas a executar durante determinado
período de tempo;
É político porque considera a escola como um espaço de formação de cidadãos
conscientes, responsáveis e críticos, que atuarão individual e coletivamente na sociedade,
modificando os rumos que ela vai seguir;
É pedagógico porque define e organiza as atividades e os projetos educativos
necessários ao processo de ensino e aprendizagem;
Sendo assim, cada escola precisa buscar construir um documento que espelhe seus
desejos, anseios e sonhos sem fugir da realidade a que está inserida. A autora diz:
VEIGA(1998):
709

O projeto político Pedagógico é um documento que visa nortear as ações da


escola, trazendo uma reflexão crítica dos problemas existentes na sociedade
Página

onde ela está inserida, bem como da comunidade atendida”. Apresenta a


escola de um modo geral, permitindo assim que a comunidade escolar

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possa conhecer o ambiente escolar. “É a organização do trabalho
pedagógico escolar ressaltando suas especificidades e níveis, e para sua
elaboração foi imprescindível à participação de toda a comunidade escolar.
(VEIGA, 1998, p. 12).

Na (LDBEN nº 9.393/96, no art. 3 e 10) o objetivo maior do processo educacional


brasileiro deve ser:

A formação básica para a cidadania, a partir da criação na escola de


condições de aprendizagens para: o desenvolvimento da capacidade de
aprender, tendo como meios básicos o pleno domínio da leitura, da escrita e
do cálculo; a compreensão do ambiente natural e social, do sistema
político, da tecnologia, das artes e dos valores em que se fundamenta a
sociedade; o desenvolvimento da capacidade de aprendizagem, tendo em
vista a aquisição de conhecimentos e habilidades e a formação de atitudes e
valores; e o fortalecimento dos vínculos de família, dos laços de
solidariedade humana e de tolerância recíproca em que se assenta a vida
social.

Esses objetivos não podem estar de fora do projeto pedagógico, nem deixado de ser
observados no cotidiano da escola. A questão é que após a construção desse documento a
escola arquiva ou encaminha para as autoridades educacionais o projeto pedagógico como
prova do cumprimento de tarefas burocráticas. Vê-se aqui um grave erro, visto que “este
plano não é trabalhado nem desenvolvido nas instâncias, por todos os envolvidos no
processo educativo da escola”.
Somado a tudo isso, é importante descrever que o Projeto Político Pedagógico deve
apresentar um novo jeito de pensar do fazer pedagógico e a equipe deve está empenhada na
tentativa de buscar novos conhecimentos e reflexões, tendo em vista a formação de um
cidadão crítico e participativo capaz de transformar a sociedade na luta por uma qualidade de
vida melhor. Acreditamos que desta forma a escola exerce um papel social e significativo no
contexto do âmbito escolar. No entanto, para que isso aconteça é preciso o envolvimento e
participação ativa de toda comunidade escolar, em que, a sua representação nos segmentos
seja exercidas como nos conselhos como também nas assembleias ordinárias ou
extraordinárias, como elementos consultivos e decisivos para que todos os objetivos sejam
apreciados e atingidos. Levando em conta o roteiro emitido pela 12ª DIREC que direciona a
710

construção do PPP em três etapas: Marco situacional (elementos textuais, histórico,


objetivos, diagnósticos etc), Marco Doutrinal (fundamentos filosóficos e políticos), e Marco
Página

Operacional (desde os procedimentos metodológicos até avaliações). Como as duas

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primeiras partes já foram citadas anteriormente nos deteremos em falar do marco
operacional, onde a proposta metodológica será embasada nos PCNs. Na proposta geral dos
parâmetros curriculares nacionais busca limitar as artes no ensino fundamental e médio
destacando as quatro linguagens artísticas: artes visuais, dança, música e teatro. Nela o
professor deve propiciar as questões relativas ao ensino e a aprendizagem em artes, tais
como: objetivos, conteúdos, critérios em avaliação, orientações didáticas e bibliografia,
organizando de modo a oferecer material sistematizado para as ações dos educadores com a
mesma competência exigida para todas as disciplinas do projeto curricular. Com base nos
parâmetros curriculares nacionais PCNs (pag. 19) explica que “o aluno desenvolve sua
cultura de arte fazendo, conhecendo e apreciando produções artísticas, que integram o
perceber, o pensar, o aprender, o recordar, o imaginar, o sentir, o expressar, e o comunicar”.
Diante dessa proposta direcionada pelos PCNs, devemos ressaltar que, o ensino de
artes na escola deve apresentar tais seguimentos: vivenciar, apreciar, refletir e construir.
Nesse sentido o ensino da arte deve possibilitar a todos os alunos a construção de
conhecimentos que interajam com sua emoção, através do pensar do apreciar e do fazer arte.
Como a lei 11.769 obriga o ensino de música nas aulas de artes os professores vivem uma
dicotomia porque não há um documento redigido pela escola que regularmente o que
ensinar. Tendo em vista que os PCNs exigem a abordagem das quatro linguagens (artes
visuais, teatro, música e dança), onde o professor hora ensina artes visuais, hora ensina
música, hora ensina outras linguagens. Esse problema seria resolvido se a escola tivesse um
projeto pedagógico que definisse o que ensinar nas aulas de artes. Para muitos, aula de artes
é uma brincadeira, segundo Gonçalves, (2008, p.174). “Apesar de não estar presente aos
olhos da instituição, a música existia, em um aparente silêncio em espaço e tempos
“marginais” na escola, como, por exemplo, a música dos recreios”.
Seguindo neste mesmo sentido ela continua fazendo a reflexão do ensino de música.
Diz a autora:

Está explícito, por tanto que a direção e a administração escolar ignoram


aspectos relacionados com a música, principalmente no que se refere a sua
presença no currículo, bem como a existência de uma professora convidada
para ir ministrar aulas de música nas escolas.( GONÇALVES, 2008, p.
711

173).
Página

Acreditamos que o ensino de música na escola se apresenta repleto de possibilidades


existentes na disciplina do currículo, como concepções de explorar, construir e aumentar seu
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conhecimento desenvolvendo suas habilidades na construção de conhecimentos que
interajam com sua emoção, através do pensar, do apreciar e do fazer arte. Essas experiências
podem ser melhores vistas dentro das escolas, no desenvolvimento das aulas de artes
atreladas ou não ao um projeto pedagógico que dê efetividade do quê, como fazer, de quem é
a tarefa de fazer e com que objetivos as aulas serão realizadas.

Experiências nas escolas comtempladas pelo PIBID/MÚSICA-UERN

E. E. Padre Sátiro Cavalcanti Dantas

De acordo com a pesquisa feita pelos bolsistas do Programa Institucional de Bolsas de


Iniciação à Docência–PIBID, no fim de 2016 como fase diagnóstica, consta que a Escola
Padre Sátiro está localizada na periferia da cidade de Mossoró-RN, Bairro Dom Jaime
Câmara, rodeada por algumas favelas, sendo por isso considerada uma comunidade de risco
social. Mesmo assim, nela estão matriculados cerca de 340 alunos, divididas entre os turnos
matutino (1º ao 5º ano) e vespertino (6º ao 9º ano). A estrutura física da escola é precária, e
não oferece a menor comodidade para os alunos e professores. Falta luz, ventiladores e
mesmo um lugar para servirem a merenda escolar. Os professores são comprometidos, mas
devido à falta de professores em algumas disciplinas esses professores se sobrecarregam
adiantando aulas ou mesmo lecionando outras matérias diferentes à sua área de ensino. O
professor de arte tem formação básica na área musical e, por isso, há aulas de música na
escola. Concernente à parte pedagógica, a supervisora e a coordenadora se apresentam como
ajudadoras e coparticipantes do processo ensino aprendizagem, pesquisando e auxiliando no
desenvolvimento dos projetos como das próprias aulas. A propósito, o Projeto Político
Pedagógico, o PPP, e sua grade curricular, também foram estudados e analisados.
Como o PIBID/Música tem suas diretrizes voltadas para as aulas de artes, com
implementação do ensino musical no ensino básico Lei 11.769, toda análise estava voltada
para compreender as aulas de artes. Assim, essas aulas se preocupavam em ensinar teoria e
percepção musical. Elas estavam fincadas basicamente em passar para o aluno o
conhecimento das notas e figuras musicais, praticar a entoação das notas musicais em
712

canções folclóricas brasileiras, bem como praticar a leitura musical como parte dos objetivos
traçados pelo professor. Essas e outras atividades eram desenvolvidas à base de exercícios
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escritos no quadro ou ainda com atividades lúdicas pesquisadas em sites ou inventadas por
ele mesmo.
Com a chegada dos bolsistas do PIBID/Música, foram analisados os PCN’S, LDB, e
o próprio PPP e outras atividades como: Construção de Instrumentos alternativos, Expressão
Corporal, Cup Song, o Passo e tecnologias voltadas à música, foram incorporados às aulas
de artes. Ao examinarmos o PPP e a grade curricular anexada a ele percebemos que o marco
situacional, o marco doutrinal e o marco operacional, “termos tirados do roteiro para
construção do PPP emitido pela 12ª DIRED”, estava em conformidade com a realidade da
escola, mas a grade curricular, o fazer pedagógico, os conteúdos direcionados na disciplina
de artes não condiziam com a realidade da escola muito menos com os objetivos de ensino
musical em uma escola básica de ensino. Nele constava sobre tudo o estudo de música tonal
e atonal; Harmonia; Improvisação instrumental. Sabemos que esses conteúdos trabalhados
historicamente são possíveis e reforça o conhecimento histórico/artístico, mas que na prática
são mesmo estudados e praticados em conservatórios de música e em universidades. Os
PCN’s artes aborda a trilogia de ensino: apreciar, praticar e improvisar. Contudo, essa guia
de aprendizagem não está voltada para a formação de instrumentistas, mas sim de pessoas
sensíveis à música que ouve, identifica e socializa com os demais a sua maneira.
Assim, entendemos que as atividades musicais da escola estava bem direcionadas,
com sua construção sócio-política bem estruturada, contendo aulas de música como prevê a
lei e com a utilização do livro pedagógico com as quatros linguagens artísticas, contudo sua
grade curricular, concernente a artes, precisava de ajustes nos conteúdos a serem
trabalhados. Essas mudanças estão sendo executadas pelos supervisores e bolsistas do
PIBID/Música conjuntamente com a direção da escola que propuseram a substituição de
parte dos conteúdos antigos por práticas educacionais corrente na atualidade como:
Construção de Instrumentos alternativos, Expressão Corporal, Cup Song, O Passo, História
da arte no mundo e pelo o Brasil.

E. E. Diran Ramos do Amaral

A E. E. Diran Ramos do Amaral está situada no bairro Redenção, em uma área de


713

risco social, onde a mesma está inclusa a “Ronda Escolar” que serve para manter a segurança
na escola. Nela acontecem aulas de 1ª e 2ª Graus, nos turnos matutino e vespertino com
Página

quase 500 alunos matriculados. Sua estrutura é boa, mas em algumas salas o número de

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alunos ultrapassa a capacidade da sala. A falta de professores é mínima e a supervisão da
escola está constantemente em sincronia com os professores.
Quanto ao direcionamento das aulas de Artes, a disciplina é trabalhada como
polivalência, utilizando as quatros linguagens artísticas, sem isola-las por bimestre, como
algumas instituições fazem, mas usando a interdisciplinaridade das outras matérias e
associando ao calendário de eventos da escola. Outro sim, ela tem em seu calendários a
participação em eventos como: FEST UERN e FEIRA DE CIÊNCIAS e AMOSTRA
CULTURAL. A utilização do livro didático, já em uso nesta escola, é uma ferramenta
importantíssima para pesquisa e aprendizagem dos alunos. È também uma fonte inspiradora
para o professor mergulhar nos conhecimentos universais da pintura, dança, música e teatro,
espalhados pelo Brasil e no mundo. Como na escola o PPP ainda não está atualizado, as
aulas são dirimidas pelos PCN’S arte que enfatizam a pluralidade cultural, o folclore e os
temas universais. Com a participação do PIBID na escola, a linguagem musical teve ênfase
para a produção de atividades musicais fixada no plano diretor PIBID. Entre elas estão:
Canto coral, Confecção de Instrumentos alternativos, Expressão Corporal, O passo e
atividades perceptivas.
Em síntese, as aulas de artes estavam obedecendo aos parâmetros curriculares
nacionais na ausência do PPP, não que este fosse obsoleto, mas porque nele a objetividade
dos conteúdos à serem trabalhados aparecem com mais clareza. A polivalência dentro dos
conhecimentos artísticos estão presentes e bem fixados nas aulas de arte tanto pela
necessidade dos alunos quanto pela a estrutura que o próprio livro didático aborda. Assim,
pode-se dizer que o ensino musical tinha o mesmo peso que as demais linguagens artísticas.
As poucas abordagens do livro didático em relação a música foram complementados por
atividades do PIBID, inserindo Construção de Instrumentos alternativos, Expressão
Corporal, Cup Song, O Passo e a História da Arte no mundo e no Brasil.

E. E. 30 de Setembro

A E. E. 30 de Setembro, situada a Rua Coronel Milton Freire, s/n, Abolição III,


Mossoró RN. Essa escola integra o projeto Pibid/música desde março de 2014, na disciplina
714

de arte/Música ministrada pela professora de arte Elizabeth Freire, no momento a escola tem
cinco bolsistas do respectivo projeto. Nos planejamentos iniciais juntamente com o professor
Página

coordenador Carlos Batista da Universidade Estadual do Rio Grande do Norte, nos foi

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entregue uma apostila que tinha como objetivo de nos orientar no planejamento e na
organização de conteúdo arte/música, apostila essa programada pela PROEX e que abordava
diversas atividades e conteúdos musicais, no próprio projeto do Pibid/música trazia bastante
informações sobre os conteúdos que seriam executados em sala de aula. Uma das propostas
que estava prevista no projeto Pibid/música era a construção de instrumentos alternativos
feitos de materiais recicláveis, fizemos o plano de ação para tornar possível essa atividade em
sala de aula onde o resultado foi uma oficina de construção de instrumentos musicais a partir
de materiais recicláveis e alternativos que visa promover a Educação Musical concomitante à
Educação Ambiental. A metodologia desenvolveu-se a partir dos materiais em que os alunos
trouxeram para a sala de aula, materiais tais como: copo de iogurte, pedaços de madeiras,
grãos, tampas de garrafa pet, tampas de metal, garrafa pet e demais materiais de apoio para a
confecção dos instrumentos musicais. Durante as aulas os alunos tiveram a orientação do
bolsista Lucas Gabriel e da professora Elizabeth Freire no final de quatro aulas o resultado da
confecção dos instrumentos musicais foram satisfatórias, próxima etapas do planejamento era
que cada aluno deveria executar seu instrumento acompanhando primeiramente a pulsação e
depois o ritmo da música Asa Branca de Luiz Gonzaga como também executar exercícios
para experimentar o som de cada instrumento musical produzido pelo aluno. A metodologia:
os instrumentos musicais ficaram com o aluno que tinha confeccionado e estimulamos os
alunos a explorarem os sons que podiam ser criado com cada instrumento. Dividimos a sala
em três grupos, um grupo com os instrumentos que continham grãos e outro que tinha tampas
de garrafa pet e de metal. Organizamos os alunos em um círculo e em seguida conversamos
sobre som e o silêncio. Na oportunidade comprovamos que o silêncio absoluto não existia
segundo o compositor norte-americano John Cage (1912-1992) realizou uma experiência
muito interessante: ele queria vivenciar a sensação de plenitude silenciosa e, em busca do
"silêncio total", entrou numa câmara anecóica, ou seja, uma cabine totalmente à prova de
sons. Após alguns segundos, Cage concluiu que o silêncio absoluto não existe, pois mesmo no
interior da câmara anecóica ele ouvia dois sons: um agudo, produzido por seu sistema
nervoso, e outro grave, gerado pela circulação do sangue nas veias. Após os conceitos e
questionamentos, colocamos para os alunos ouvirem a música Asa branca e em seguida todos
os alunos começaram a acompanhar a música executando apenas a pulsação, no segundo
715

todos executaram o ritmo e um dos grupos deveria acompanhar executar a melodia da música
(fotos em anexo). Como apenas um alunos havia construído uma oitava de sons retiramos de
Página

garrafas de vidro com água indicamos que esse aluno deveria executar a melodia, no terceiro

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momento cada grupo executou uma parte diferente da música. Percebemos que os grupos
tinham uma insegurança para executar a música com cada grupo na sua parte definida grupo
um com instrumentos que continha grãos executando a pulsação, grupo dois com os
instrumentos que foram confeccionados com tampas de garrafa pet e grupo três executando a
melodia nas garrafas de vidro com água; dividimos as músicas em partes pequenas para que
os alunos pudessem assimilar bem cada parte musical de que deveria executar ao no final de
várias tentativas realizamos a junção de todos os instrumentos tocando em perfeita harmonia,
como afirma Fonterrada: “o que a princípio parecia inatingível, gradualmente se torna
possível”.

Considerações finais

Considerando as muitas facetas relacionadas ao ensino musical, bem como sua


inserção na educação básica de ensino, muitas ações e projetos foram desenvolvidos
nacionalmente e mesmo regionalmente buscando firmar o fazer musical.
O Projeto institucional de bolsas de iniciação à docência PIBID, é um desses
projetos. Graças a ele foi possível entender, analisar e repensar as aulas de artes/Música no
cotidiano escolar. As experiências acima reladas sobre as escolas envolvidas no PIBID
deixam claros que o ensino musical está acontecendo nas aulas de artes, porém, não
exclusivamente. Primeiro, porque nem todas as escolas tem um professor licenciado em
música. Segundo, muitos pertencem a áreas afins e, portanto, ensinam música com outras
perspectivas. Por outro lado, não há nenhum documento na escola que lhes oriente o que
ensinar especificamente em música. Assim, o ensino musical é ausente em algumas destas
escolas por falta de estrutura física e de pessoas que pensem no fazer musical. Entre às
escolas pesquisadas três trabalham com todas as linguagens artísticas. Dentre as três, duas
tem direcionamentos musicais inclusos em suas práticas pedagógicas. Dessas três, uma
começou a ter um direcionamento musical só após a inserção dos bolsistas do PIBID. Uma
das quatro escolas faz rodízio bimestral para o conteúdo musical, sendo um bimestre teatro,
outro arte visual, e assim sucessivamente. Incluindo ás quatros escolas, apenas uma já
ensinava teoria e percepção musical em nível de musicalização, porém, suas metodologias e
716

conteúdos estavam muito voltadas às vistas em conservatórios de música. Como nas escolas
pesquisadas nem todas tinham um PPP pronto e atualizado as grades curriculares tinham os
Página

mais variados conteúdos e as aulas aconteciam a contento do professor. Uma das escolas

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encontrava-se com sua grade curricular recheados de conteúdos próprios dos conservatórios
de música, enquanto as outras buscavam subsídios nas mais variadas fontes educacionais
correntes. Tudo isso nos leva a crer que a presença do PPP na escola é imprescindível e é
nele que os profissionais encontram auxílio na formulação de aulas com conteúdos
apropriados, e objetivos pensado na clientela que se tem. Nas quatro escolas há livros
didáticos. A presença dos livros didáticos, recém-chegados nas escolas, tem ajudado a
nortear as aulas de artes, tanto para os professores licenciados em música como aos que não
são. Neles, a presença das quatro linguagens: Arte Visual, Teatro, Dança e música reafirmam
a polivalência na disciplina outrora questionada. Certamente os resultados encontrados aqui
neste trabalho reviverá debates tais como: Qual linguagem ensinar?, Como ensinar
conjuntamente às quatros linguagens? A polivalência de conteúdos é possível? Esses
questionamentos serão debatidos em outras oportunidades, mas tudo isso caracteriza a perca
de força da obrigatoriedade do ensino musical nas escolas que pouco a pouco se esvai pelas
mudanças sócio-políticas vividas na atualidade. Contudo, a presença do PIBID/Música nas
escolas também ajudou na inserção de atividades pedagógicas como: O Passo, Construção de
instrumentos alternativos, Música com os copos, Expressão corporal e tecnologias voltadas à
música.
Desta forma, os questionamentos que nortearam esse trabalho apontam sobre tudo para
escolas sem estrutura física para elaboração de atividades artísticas eficazes para o
desenvolvimento do aluno. Escolas sem um projeto pedagógico atualizado e voltado para
música. Salas superlotadas de alunos, algumas delas muito quentes e com pouca ventilação.
Alunos envolvidos com drogas e com o crime organizado. Muitos sendo pais e mães aos 13
anos de idade, seguidos ainda por muitos problemas familiares não resolvidos. Mas, não
temos a pretensão de realçar este aspecto de nossa educação, mais sim o alto brio que
professores e companhia desempenham diariamente nas escolas desenvolvendo: amostras
culturais, feira de ciências, peças teatrais em grandes eventos como o Feste Arte da UERN,
Viagens à centros arqueológicos de nossa região, visitas a museus, e sobre tudo aulas
inovadoras, motivadoras, lúdicas, calcadas em aplicativos tecnológicos, resgate do folclore e
de nossa história, aulas onde se expressa o movimento do corpo e os sons que ele pode
produzir, aulas que consegue motivar alunos cauterizados pela dura realidade da vida e
717

mostrar novos caminhos à serem seguidos.


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Referências

ADORNO, T. W. Educação e Emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2010.

ESTEBAN, M. T; ZACCUR E. (Orgs). Professora Pesquisdora: uma práxis em


construção. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora DP&A, 2002.

NÓVOA, A. Vidas de professores. Porto: Editora: Porto, 1992.

FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. 25. ed. São
Paulo: Paz e Terra, 1996. (Versão on-line sem paginação. Disponível em: acessado em 8 de
março, 2017).

VEIGA, Ilma Passos Alencastro. (Org.) Projeto Político Pedagógico da escola: uma
construção possível. 14. ed. Editora Papirus, 2002.

DEL-BEM, Luciana M. Sobre os sentidos do ensino de música na educação básica: uma


discursão a partir da lei 11.769/2008. Música em perspectiva, v. 2, p. 110-134, 2009.

DEMO, P. Pesquisa: princípio científico e educativo. São Paulo: Cortez, 2001.

CAPES. Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Docência. Disponível em:.


acessado em 23 de fevereiro, 2017.

MEC/CAPES/FNDE. Ministério da Educação/ Coordenação de Aperfeiçoamento Pessoal de


Ensino Superior/ Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação. Programa
Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência-PIBID. Disponível em:.Acesso em 8 de
Março, 2017.

ANEXOS 1
Universidade do estado Do Rio Grande do Norte – UERN
Faculdade de Educação - Fe
Departamento de Educação – De
Disciplina: Estrutura e Funcionamento da Educação Básica
Professora: Francisca de Fátima Araújo Oliveira

Roteiro de Estudo sobre o Projeto Político Pedagógico

Objetivo: Estabelecer relações entre o que está estabelecido na legislação brasileira e o que
efetivamente se realiza, e como tais determinações legais se concretizam na escola.
Compreender o Projeto Político Pedagógico como um instrumento de gestão pedagógico-
administrativa. Questionário semiestruturado para anexar a artigo.

Metodologia: Leitura e Discussão de textos sobre o Projeto político Pedagógico e sobre a


718

política de democratização da educação brasileira. Aplicação de questionário nas escolas.


Elaboração de um relatório contendo os resultados da pesquisa realizada.
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Roteiro para aplicação do questionário nas escolas
1. A Escola tem Projeto Político Pedagógico?
2. Quem participou da elaboração do Projeto Político Pedagógico?
3. Como foi o processo de discussão para a elaboração do projeto Político Pedagógico?
4. Quem encaminhou as discussões sobre o PPP na escola?
5. Como são as relações entre a equipe dirigente, os professores, os alunos e os pais dos alunos?
6. Quais são as principais ações da escola no sentido de promover a qualidade e a democratização
do ensino?
7. O PPP da escola tem sido avaliado?
8. Quem participa do acompanhamento e avaliação do PPP?
9. Como se dar o processo de acompanhento e avaliação do PPP
10. O PPP aborda conteúdos musicais?
11. Quais práticas musicais são desenvolvidas na escola?
12. Quem são os profissionais que ensinam?
13. Quais as práticas pedagógicas utilizadas para o ensino desta escola?

719
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GT5 – ENSINO DE MÚSICA NOS MÚLTIPLOS CONTEXTOS: PERSPECTIVAS,
EXPERIÊNCIAS, PRÁTICAS E FORMAÇÃO CONTINUADA

POLUIÇÃO SONORA, MEIO AMBIENTE E MÚSICA: REFLEXÕES E RELATO DE


UMA PRÁTICA INTERDISCIPLINAR EM SALA DE AULA

Luís Fernandes de Moura105(UERN)


Giann Mendes Ribeiro106 (UERN)

Introdução

Discutiremos nesta produção textual teorizações sobre um assunto amplamente


discutido por estudiosos de diversas partes do mundo; a interdisciplinaridade. Thiesen (2008),
Japiassu (1979), Goldman (1979), Freire (1987), Frigotto (1995), Michael Gibbons (1997),
Pedro Demo (2001), Luck (2001), Maria Cândida Moraes (2002), Olga Pombo (2003), Edgar
Morin (2005), são alguns dos nomes expressivos desse campo de conhecimento. Para dá
suporte teórico ao nosso discurso sobre interdisciplinaridade, currículo e disciplina
abordaremos, especialmente, Lopes (2011), Paro (2007; 2012) e Thiesen (2008; 2013).
O objetivo principal com a construção desse trabalho é ressaltar o papel da
interdisciplinaridade para o desenvolvimento e a formação integral dos alunos da escola
básica. Conectada com os pressupostos teóricos abordados, relataremos uma experiência
interdisciplinar que desenvolvemos em sala aula. Acreditamos que o relato poderá servir de
proposta a ser desenvolvida por outros professores da área de Música. Para melhor
fundamentar as discussões também abordaremos autores do campo da Educação musical,
apresentaremos textos referentes ao ensino da Música nas escolas brasileiras de acordo com a
Lei nº 11.769/2008. Salientamos que a referida Lei não vigora mais, pois recentemente, no dia
02 de maio de 2016, a então presidente do Brasil, Dilma Rousseff sancionou a Lei nº
13.278/16107. Esta substitui aquela Lei e torna obrigatório, além do ensino de Música na
educação básica, o ensino das outras três linguagens do componente Arte, a saber: Dança,
Artes visuais e Teatro; com o prazo de cinco anos, a partir da referida data, para que os

105
Aluno de mestrado do Programa de Pós-graduação em Ensino-POENSINO (UERN/IFRN/UFERSA).
720

Licenciado em Música e Letras.


106
Professor Dr. da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte e do Programa de Pós-graduação em
Ensino- POSENSINO.
107
Disponível em: <http: // www.e-diariooficial.com/Diario-Oficial/da-Uniao>. – seção 1- 3/5/2016, Página
Página

1(Página Original). Acesso em: 20 mai. 2017.

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sistemas de ensino implantem as mudanças cabíveis em decorrência dessa novo dispositivo
legal.
A respeito da Lei nº 13/278 de 2016, Figueiredo e Meurer (2016) declaram que:

Ainda que Lei 11.769/08 não esteja mais em vigor, a música continua
presente a partir da nova lei que estabelece as linguagens artísticas que
devem compor o currículo escolar. Além disso, as Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Operacionalização do Ensino de Música na Educação
Básica (BRASIL 2016) continuam em vigor, oferecendo orientações
específicas para implantação da música nos currículos (FIGUEIREDO;
MEURER, 2016, p. 516).

Entendemos que a Lei 11.769 teve um papel importantíssimo para a inserção da


Música no currículo da educação básica brasileira, pois foi a partir dessa lei que as Diretrizes
Curriculares Nacionais – DCN (Parecer CNE/CEB nº 12/2013108) foram elaboradas e que,
conforme, Figueiredo (2016), estas diretrizes ainda estão em vigor com a nova Lei.
Trataremos também nesta comunicação sobre o conteúdo poluição sonora no meio
ambiente; estes fazem parte dos temas transversais abordados na escola. Nessa perspectiva,
objetivamos inter-relacionar a aula de Música com a disciplina Ciências na escola básica,
especificamente no Ensino Fundamental – Anos Finais.

1. Fundamentação teórica

De maneira geral, os conteúdos da escola formal são estruturados ou organizados em


disciplinas que também recebem o nome de conhecimento ou comumente matéria escolar.
Lopes e Macedo (2011, p. 107) consideram que em uma escola os saberes, sujeitos, espaços e
tempos são controlados por uma tecnologia organizacional que sistematiza o trabalho
pedagógico. Nessa sistematização, as autoras explicam que há uma escala de horário que
designa cada professor para ministrar conteúdos previamente programados para sua respectiva
turma de alunos. Nessa perspectiva, evidencia-se que a operacionalização escolar é regida por
normas administrativas e didáticas.
Para avançar nossa comunicação entendemos que é necessário focalizarmos um
pouco no significante disciplina. Lopes e Macedo (2011, p. 121) concordando com Goodson e
721

108
Neste Parecer consta um Projeto de Resolução o qual transformou-se na Resolução N º 2, de 10 de maio de
Página

2016. Esta resolução Define Diretrizes Nacionais para a operacionalização do Ensino de música na Educação
Básica.

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Popkewitz defendem que “as disciplinas são construções sociais que atendem a determinadas
finalidades da educação e, por isso, reúnem sujeitos em determinados territórios, sustentam e
são sustentados por relações de poder que produzem saberes” (LOPES; MACEDO, 2011, p.
121). A partir dessa afirmação e fundamentados em outras leituras, podemos assegurar que as
disciplinas não são produtos da natureza humana; elas são erguidas a partir interesses
educacionais e conduzidas por luta entre grupos pelo domínio de poderes e, que
consequentemente articulam saberes.
Quando falamos em currículo escolar estabelecemos uma relação direta com o termo
composição curricular de uma escola. Essa pode ser uma das maneiras mais resumidas de nos
referirmos às disciplinas que compõem uma coletânea de saberes ensinada na escola e
apropriada pelo seu alunado; não importando se tais saberes são compartimentados ou inter-
relacionados. Isto é, se as diversas disciplinas são trabalhadas isoladamente ou se há relações
internas dessas disciplinas rumo à perspectiva da unidade do conhecimento.
A nossa proposta de trabalhar os conteúdos em sala de aula dentro da perspectiva
interdisciplinar assume uma ideia defendida por diversos teóricos do Brasil e do mundo,
dentre eles, MORIN (2011) e THIESEN (2008). Segundo Thiesen (p. 545), a
interdisciplinaridade luta para dar respostas sobre a necessidade de superação da concepção
fragmentada que persiste nos processos produtivos e socializados do conhecimento. Nesse
rumo, a importância da interdisciplinaridade em qualquer espaço de aprendizagem é
argumentada por esse autor no trecho a seguir:

Na sala de aula ou em qualquer outro ambiente de aprendizagem, são


inúmeras as relações que intervêm no processo de construção e organização
do conhecimento. As múltiplas relações entre professores, alunos e objetos
de estudo constroem o contexto de trabalho dentro do qual as relações de
sentido são construídas. Nesse complexo trabalho, o enfoque interdisciplinar
aproxima o sujeito de sua realidade mais ampla, auxilia os aprendizes na
compreensão das complexas redes conceituais, possibilita maior significado
e sentido aos conteúdos da aprendizagem, permitindo uma formação mais
consistente e responsável (THIESEN, 2008, p. 551).

A partir da afirmação de Thiesen entendemos que para a construção e apropriação do


conhecimento é fundamental que professor, conteúdo e aluno exerçam múltiplas e mútuas
722

relações em direção à compreensão significativa dos saberes. Para darmos continuidade à


discussão sobre o significante disciplina, passamos agora a relacioná-lo com o significante
Página

currículo.

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Há uma íntima relação do significante currículo com o significante disciplina. Por
isso, entendemos que há a necessidade da utilização de um termo para explicar o outro. A
partir dessa concepção, ao discutirmos sobre disciplina, articulamos com o currículo. Nessa
perspectiva, compartilhamos o posicionamento de Lopes e Macedo (2011) a respeito da
importância da organização disciplinar, ou composição curricular na escola formal:
“Defendemos que a organização disciplinar escolar se mantém dominante nos currículos de
diferentes países, ao longo da história, porque é concebida como uma instituição social
necessária” (LOPES; MACEDO, 2011, p. 108).
Para reforçar a nossa discussão sobre currículo abordamos a ideia de Thiesen (2013).
Em uma de suas perspectivas, Thiessen (2013, p. 592) pronuncia que o entendimento sobre
currículo não se dá apenas dentro de um espaço no qual determinados grupos sociais
dominantes selecionam e distribuem os saberes a serem disciplinarizados como
conhecimento. O currículo, para, esse autor, é o próprio movimento que é produzido pela
existência da humanidade e que é gerado através de relações de apropriação, poder e controle.
Sobre isso, Thiesen defende que:

O currículo não pode existir fora da realidade concreta onde homens e


mulheres tecem e engendram os elementos de sua constituição histórica, seja
na ação mesma da atividade educativa, seja nas formulações teóricas
produzidas sobre essa ação. A produção do currículo, como campo de lutas,
engendra-se na produção sempre tensionada das relações sociais
mediatizadas pelos interesses de classe e materializados na atividade
educativa como um jogo de forças em torno de seu objeto mais precioso - o
conhecimento (THIESEN, 2013, p. 593).

A partir da leitura que realizamos nos autores supracitados compreendemos que a


construção de uma estrutura curricular se dá através de lutas de grupos interessados no
exercício do domínio sobre as disciplinas que deverão nortear ou controlar o conhecimento,
de acordo com os interesses da hegemonia. Nesse sentido, retirar uma disciplina do currículo
substituir uma por outra ou acrescentar uma nova disciplina é sempre uma questão de jogo de
forças ideológicas entre grupos dominantes ou grupos que almejam espaço hegemônico.

2 Percurso metodológico
723

Para a construção deste artigo adotamos a pesquisa bibliográfica com a qual


Página

realizamos leitura e interpretações textuais objetivando a compreensão das ideias

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desenvolvidas por pesquisadores e escritores dos campos do ensino e da interdisciplinaridade.
Nesses campos, buscamos subsídios em escritores como Lopes (2011), Paro (2007; 2012) e
Thiesen (2008). Na área da educação musical, recorremos a França (2011), Hentschke e
Oliveira (2009), Penna (2001; 2010), Schafer (1997), dentre outros. Já no que diz respeito à
Educação, consultamos textos da BNCC (Base Nacional Comum Curricular), dos PCN
(Parâmetros Curriculares Nacionais) da LDB (Leis Diretrizes e Bases) e documentos da
Legislação Brasileira sobre Educação.
Para subsidiar a nossa discussão tratamos de apresentar o relato de experiência que
tivemos como professor em uma sala de aula do Ensino Fundamental - Anos Finais da rede
pública de ensino do município de Mossoró-RN. Nessa perspectiva, para contextualizarmos o
locus do nosso trabalho, experiencial, descrevemos em detalhes os dados da estrutura física da
escola e a quantidade de professores e demais funcionários da instituição. Quanto ao relato da
nossa experiência, apresentamos alguns resultados alcançados dentro da nossa proposta do
ensino interdisciplinar; Educação musical e Ciência.

3 Legislação sobre a inserção do ensino de Música nas escolas

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), Lei no 9.394/96 fez


transformações em todos os níveis de ensino e integrou o ensino das artes como componente
obrigatório à grade curricular da educação básica. De acordo Oliveira (2000) e Hentschke
(2000), uma das grandes decisões implantadas pela nova LDB, para a área artística, foi a de
substituir a terminologia Educação Artística por Ensino das Artes. As autoras ainda comentam
que a inserção do ensino das artes nesse ciclo da educação surgiu para o campo da música
como uma oportunidade de valorizar e de legitimar a inclusão dessa linguagem artística nos
currículos escolares. A esse respeito, a Lei Nº 9. 394, 20 de dezembro de 1996, em seu Artigo
26 – 6º, diz o seguinte: “A música deverá ser conteúdo obrigatório, mas não excludente, do
componente curricular de que trata o parágrafo 2º deste artigo”.
Nos anos 2000, com a aprovação da Lei nº 11. 769, de 18 de agosto de 2008, os
sistemas brasileiros de ensino tiveram três anos letivos para se adaptarem às exigências
estabelecidas pela LDB. Em conformidade com essa lei, a redação apresentada pela Lei 12.
724

287/2010 dispõe que “o ensino da Arte, especialmente em suas expressões regionais,


constituirá componente curricular obrigatório nos diversos níveis da Educação Básica, de
Página

forma a promover o desenvolvimento cultural dos alunos.” Em 2011, a Secretaria de

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Educação Básica do MEC, objetivando a discussão sobre o ensino de Arte e de Música na
escola, viabilizou uma reunião com especialistas da área musical para debater sobre o assunto.
A partir do que foi discutido na reunião produziu-se um documento com subsídio ao Conselho
Nacional de Educação – CNE definindo as Diretrizes para o ensino da música na educação
básica e em 04 de dezembro de 2013 foi aprovado o Parecer CNE/CEB Nº: 12/2013. Como já
comentei, dentro do referido Parecer consta um Projeto de Resolução o qual transformou-se
na Resolução Nº 2 de 10 de maio de 2016 que determina normas para a operacionalização do
ensino de Música na Educação Básica. Já no dia 02 de maio de 2016 a Lei nº 13.278/16 109
substituiu a Lei nº 11.769, tornando obrigatório, além do ensino de Música na educação
básica, o ensino das outras três linguagens do componente Arte: Dança, Artes visuais e
Teatro.

4 Breve descrição da escola EMMO

Localizada no centro da cidade, o edifício da escola EMMO110 (fundada em 1981 e


inaugurada em no dia 07/04/1982) na qual desenvolvemos o conteúdo com os alunos, tem
uma arquitetura construída em dois pavimentos (térreo e superior) nos quais funcionam para
01 direção, 01 bibliotecas, 01pelotão de saúde, 01 arquivo 01 secretaria, 01 sala de
supervisão, 01 sala de professores, 01 bebedouro, 01 depósito, 01 cantina, 01 sala para
Educação Física, 01 sala de merenda escolar, 01 cozinha, 01 sala de computação, 12 salas de
aulas, 01 área para banho de cascata, 01 passarela, 01 varanda térrea e outra superior, 01
corredor, 18 sanitários e 09 banheiros. O pátio e a quadra de esportes também localizam-se na
parte inferior do prédio. Já os banheiros ficam nos dois níveis do prédio. Por uma questão de
anonimato nos reportaremos à escola com o nome fictício EMMO (Escola Municipal de
Mossoró). Esta instituição oferece à população da cidade ensino infantil (vespertino) e nas
duas fases do Ensino Fundamental; Anos Iniciais: 1º ao 5º ano (vespertino) e Anos finais: 6º
ao 9º ano (matutino). A equipe diretiva é composta pela Diretora, pela Vice-Diretora e por
duas Supervisoras. O quadro docente é constituído por aproximadamente 24 profissionais. Na
725

109
Disponível em <http: // www.e-diariooficial.com/Diario-Oficial/da-Uniao >. – seção 1- 3/5/2016, Página
1(Página Original). Acesso em: 20 mai. 2017.
110
Os dados referentes à esta escola foram coletados no Projeto Político Pedagógico de 2015 da instituição. Para
Página

mantermos a total discrição, não informaremos dado mais precisos sobre o endereço e nem as fontes referenciais
das quais obtivemos as informações.

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secretaria trabalham 06 funcionários, na biblioteca 02 e mais 08 funcionários distribuídos
entre cozinha, auxiliar de serviços gerais (ASG) e vigias.

5 Origem da nossa proposta de conteúdo

O Dia Mundial do Meio Ambiente e da Ecologia é comemorado em 05 de junho.


Essa data comemorativa foi criada em 1972 através de um encontro promovido pela
Organização das Nações Unidas (ONU), objetivando discutir assuntos ambientais e
ecológicos envolvendo o planeta terra (Brasil Escola, junho de 2012111). Nesse contexto, na
semana do meio ambiente, os vários atores do processo educativo escolar, especialmente os
professores e alunos, dedicam uma parte de seu tempo escolar em produções de gêneros
textuais orais e escritos, em campanhas de conscientização ecológica, em eventos artísticos e
em confecção de materiais variados para divulgação sobre os cuidados que devemos ter com o
meio ambiente e a saúde.
Como a nossa área de atuação é em Educação musical, decidimos trabalhar com a
questão da Poluição Sonora, e seus efeitos na saúde humana. Então, planejamos o conteúdo e
o discutimos com a turma. A maioria dos alunos mostrou-se interessada no assunto e outros
não se manifestaram. Entendemos que em um ambiente no qual desejamos construir a
democracia faz-se necessário o respeito às vontades individuais dos outros que, muitas vezes,
podem não coincidir com as nossas. Nesse sentido, citamos Paro (2007): “Assim, nunca
iremos longe em nossas metodologias se esquecermos que o aluno só aprende se quiser.
Predispô-lo a aprender, portanto é, buscar formas de leva-lo a querer aprender” (PARO, 2007,
p. 59).
No Projeto Político Pedagógico (PPP) de 2015 da Escola EMMO, dentre outras
propostas de ensino, verificamos questões como a poluição ambiental e a poluição sonora.
Esta última que também pode interferir de maneira maléfica na qualidade de vida do homem e
dos animais irracionais. Esses conteúdos são abordados pelos temas transversais para o ensino
nas escolas do Brasil. De acordo com França (2011, p. 29), esse é um dos temas mais
prementes da educação e também obrigatório na educação musical. Neste tipo de educação,
abordaremos o conteúdo Poluição sonora que, segundo França, faz parte de um dos eixos
726

articuladores da interdisciplinaridade; a Paisagem sonora. Esse termo foi criado por Murray
Página

111
Disponível em <http://www.brasilescola.uol.com.br >. Acesso em 21 mai. 2017.

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Schafer na década de 1960 a partir do termo landscape (paisagem cenário). O educador, em
seu livro, definiu em síntese o que seria paisagem sonora: “qualquer campo de estudo
acústico” (SCHAFER, 1997, p. 23). Em outras palavras, concordando com França (2011,
p.38), paisagem sonora refere-se a gama de sons existentes em um determinado ambiente. O
ambiente pode ser natural ou artificial, do passado, do presente ou do futuro. Ele ainda pode
ser urbano, do campo ou de outro local.
Pertinente ao que abordamos no parágrafo anterior, Penna (2001, p. 130) comenta
que o tema Meio Ambiente está conectado com o tema Saúde. Constatamos a afirmação da
autora quando visitamos as propostas dos PCN relacionadas à música para o ensino
fundamental II: “Reflexões sobre os efeitos causados na audição, no temperamento, na saúde
das pessoas, na qualidade de vida, pelos hábitos de utilização de volume alto nos aparelhos de
som e pela poluição sonora do mundo contemporâneo, discutindo sobre prevenção, cuidados e
modificações necessárias nas atividades cotidianas.” (PCN-Arte, 5ª a 8ª Séries, 1998, p. 85).
Ainda sobre o assunto poluição sonora, folheamos a Base Nacional Comum Curricular
(BNCC112) coletamos na área de Ciências da Natureza, sobre sentido, percepções e
interações, o seguinte:

Identificar fontes sonoras, naturais e tecnológicas, classificando os níveis de


poluição sonora e o prejuízo causado para a capacidade auditiva e buscar
informações sobre as recomendações para limites máximos de exposição ao
som e relacionar diferentes intensidades de som com possíveis efeitos no
organismo humano (BNCC. Abril de 2016, p. 287).

As Diretrizes Curriculares Nacionais - DCN definem quatro objetivos gerais para o


ensino fundamental; apresentamos o segundo objetivo: “compreensão do ambiente natural e
social, do sistema político, da economia, da tecnologia, das artes, da cultura e dos valores que
se fundamenta a sociedade” (BNCC, 2016, p. 176).

6 Relato da experiência

A carga horária e a frequência das aulas de Música na escola regular geralmente são
bastante reduzidas. No nosso caso, a carga horária total de trabalho como professores de
727

112
. Base Nacional Comum Curricular teve sua 3ª versão (final) para o Ensino Fundamental divulgada,
recentemente, em 2017. Disponível em
Página

<http://www.basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_publicacao.pdf >. Acesso em 21 mai. 2017.

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música da Secretaria Municipal de Educação de Mossoró/RN foi distribuída para três escolas
de ensino fundamental, com uma aula semanal de 50 minutos para cada turma dentro da
disciplina Arte. As aulas foram concentradas nos 6º, 7º e 8º anos. Porém, o presente relato
descreverá apenas as atividades desenvolvidas em uma turma de 6º ano da escola EMMO;
apesar de termos trabalhado o mesmo tema em outras turmas e escolas.
No dia 08 de maio de 2015 (manhã da sexta-feira, dia da nossa aula de música),
discutimos com a turma sobre a proposta de trabalho dentro do tema Meio Ambiente. Nesse
contexto, exibimos slide, filme e distribuímos textos escritos; lemos e discutimos com a turma
sobre o assunto Poluição sonora; seus níveis de poluição e seus efeitos na saúde.
Como já mencionamos, esse assunto é um dos eixos articuladores da
interdisciplinaridade e os PCN (PCN- Arte, 1998, p. 85) sugerem reflexões sobre os danos
que esse tipo de poluição pode causar na saúde auditiva, na saúde temperamental, na saúde
biológica e na qualidade de vida das pessoas. Ao abordarmos esse conteúdo, muitos alunos e
alunas ficaram apreensivos e diziam não saber que o som também poderia poluir o meio
ambiente. Diante dessa e de outras constatações no cotidiano escolar compreendemos a
relevância do assunto para a formação da consciência do alunado, pois temos percebido que
um dos grandes problemas da comunicação e da falta de concentração dos alunos em sala de
aula é justamente o índice excessivo de volume sonoro. Nessa perspectiva, dialogamos com
Paro (2012, p. 34) quando ele afirma que a formação da personalidade do educando deve ser
fundamentada na formação integral desse educando. Entendemos também que a
conscientização sobre as questões ambientais e de convívio social também têm seu papel na
formação holística do cidadão, pois o aluno não vai à escola somente para aprender a ler, a
escrever e a calcular.
A partir do primeiro contato dos alunos com o conteúdo abordado, pedimos para que
eles trouxessem gravuras de elementos promovedores da poluição e organizassem o material
por tipo de poluente (eletrodomésticos, veículos automotores, máquinas industriais,
equipamentos de som, shows, trânsito, dentre outros). Após tudo selecionado em categorias,
colamos em cartolinas e nomeamos as imagens de acordo com o estudado. Como atividade
para casa, pedimos que os alunos pesquisassem na internet e/ou em outros portadores de texto
(revistas, jornais, livros) sobre os efeitos da poluição sonora na saúde e em seguida anotassem
728

o que eles observassem como causadores de poluição sonora em suas residências. Na aula
seguinte, algumas alunas, além de cumprirem com o combinado, ainda realizaram
Página

deliberadamente entrevistas com os seus vizinhos a respeito do conteúdo. Essa ação nos

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remete a ideia de Paro (2012, p. 113), quando o mesmo afirma que a o conhecimento
trabalhado democraticamente tem que favorecer a “condição de sujeito do educando” (p.113).
Na quarta semana de aula a nossa tarefa com a turma foi a de produzir uma paródia
baseada no que estudamos sobre a Poluição sonora. Isso exigiu um envolvimento de todos,
pois foi imprescindível refletir sobre alguns conhecimentos que os alunos se apropriaram ao
longo das aulas. Escolhemos o grande sucesso musical “O sol” da banda mineira Jota Quest
por consideramos que essa canção tem uma melodia simples de ser percebida e memorizada,
além de fácil entonação no canto (de ser cantada). Executamos a música no micro system e
depois a cantamos acompanhada ao violão. No término desse processo construtivo com a
turma a paródia ficou assim:

Poluição Sonora não é bom!


Alô, eu tenho que falar / Que o som pode te prejudicar.
Alô, procure se proteger / Se não, sua saúde vai perder.
Poluição sonora não é bom / Por isso eu aviso é bom baixar o som.
Se você não buscar se proteger / Doente vai ficar e pode até morrer.

A culminância do nosso trabalho junto à turma, além das exposições em sala de aula
e das afixações de cartazes nos murais da escola, deu-se com a realização de uma
performance artística no pátio da escola no dia 05 de junho de 2015. A ação chamou à atenção
da comunidade escolar, conscientizando-a sobre os malefícios que a poluição sonora pode
causar nos seres humanos e nos animais. Naquele espaço escolar, os alunos envolvidos na
campanha expuseram os cartazes por eles construídos e cantaram a paródia, acompanhados
por nós ao violão e à percussão corporal (ritmo explorado e executado com batidas no corpo)
que também foi desenvolvida com a turma durante nossas aulas de música.

Considerações finais

O que discutimos nesta comunicação é ínfimo diante do há produzido pelos


intelectuais engajados no ensino e na interdisciplinaridade na escola, mas acreditamos que
729

qualquer pessoa compromissada e entusiasmada com o que faz busca constantemente


melhorar sua performance para também tornar melhor a formação do seu semelhante. Nestas
Página

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palavras finais ainda pensamos ser pertinente trazer as palavras de Lopes sobre qualidade,
pois a nossa proposta de ensino também está conectada com esse significante.
A autora relaciona a questão da qualidade da escola pública com o significante
currículo. Lopes (2012, p. 26) afirma que se considerarmos que a qualidade é um significante
vazio e que o currículo é um produto cultural, na luta pela significação da qualidade está
também a luta interessada pela significação do currículo. Nessa perspectiva, Lopes (2012, p.
27), em seu discurso, argumenta:

Assim a qualidade da educação é uma questão de currículo, caso


consideremos essa qualidade e esse currículo como projetos a serem
construídos, sem certezas, sem uma resposta única possível, pois são
múltiplos os contextos que produzem sentidos para essa qualidade (LOPES,
2012, p. 27).

Na motivação para produzir este artigo começamos a imaginar como seria um ensino
interdisciplinar. Diante dessa imaginação, que também é uma indagação, fomos construindo
nossas ideias e percebemos a complexidade do assunto. A nossa tentativa compromissada
com esse significante foi a de apresentar uma proposta de conteúdo a ser desenvolvido na sala
de aula objetivando tornar a aula de música mais atrativa e capaz de colaborar
significativamente com a formação integral dos alunos.
As diversas leituras, releituras, interpretações, compreensões e produções textuais
que realizamos nos conduziram a reflexões bastante marcantes sobre a nossa atuação como
professores e pesquisadores. Esperamos que as ideias discutidas e o nosso relato de
experiência de caráter interdisciplinar, através de um assunto que faz parte da temática
transversal, possam contribuir com a qualidade do ensino da música e, quem sabe, de outros
campos do conhecimento trabalhados na escola.

Referências

BRASIL. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação


Básica. Parecer e Projeto de Resolução CNE/CEB n.12/2013. Define Diretrizes Nacionais
para a Operacionalização do Ensino de Música nas Escolas. Brasília, 2013.
730

______. Secretaria de Educação Básica. Diretrizes Curriculares Nacionais para a


Educação Fundamental de (9) anos. Brasília: MEC; SEB, DICEI, 2013.
Página

BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais. 2.


Arte. 1998.

ISBN: 978-85-7621-221-8
______. Base Nacional Comum Curricular. Brasília: abril de 2016.

FRANÇA, Cecília Cavalcante. Ecos: educação musical e meio ambiente. Música na


Educação Básica. Vol. 3, n. 3. Porto Alegre: Associação Brasileira de Educação Musical,
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HENTSCHKE, Liane; OLIVEIRA, Alda. A educação musical no Brasil. In: HENTSCHKE,


Liane. (Org.). Educação musical em países de língua neolatinas. Porto Alegre: Ed.
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LOPES, Alice C., MACEDO, Elizabeth. Teorias de currículo. São Paulo: Cortez, 2011.

PARO, Vitor Henrique. Gestão escolar, Democracia e Qualidade do Ensino. São Paulo:
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VIANA, Fabiana da Silva et al (Orgs). A qualidade da escola pública no Brasil. Belo
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PENNA, Maura. Música na Escola: analisando a proposta dos PCN para o ensino
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parâmetros curriculares nacionais. João Pessoa: Editora Universitária/CCHLA/PPGE, 2001.

PENNA, Maura (Coord.), PEREGRINO, Yara Rosas. CARVALHO, Lívia Marques. As


propostas dos parâmetros Curriculares Nacionais. Editora Universitária/CC HLA/PPGE.
2001.

PENNA, Maura, Música (s) e seus ensino, 2. ed. rev e ampl. – Porto Alegre; Sulina, 2010.

SCHAFER, M. A afinação do mundo. Tradução de Marisa Fonterrada. São Paulo: UNESP,


1997.

THIESEN, Juarez da Silva. Currículo interdisciplinar: contradições, limites e possibilidades.


Perspectiva, Florianópolis, v. 31, n. 2, p. 591-614, maio/agosto. 2013.

THIESEN, Juarez da Silva. A interdisciplinaridade como um movimento articulador no


processo ensino-aprendizagem. Revista Brasileira de Educação, v.13, n.39. set. /dez.2008.
731
Página

ISBN: 978-85-7621-221-8
GT5 – ENSINO DE MÚSICA NOS MÚLTIPLOS CONTEXTOS: PERSPECTIVAS,
EXPERIÊNCIAS, PRÁTICAS E FORMAÇÃO CONTINUADA

PIBID MÚSICA/UERN: CONCEPÇÕES DOS PROFESSORES SUPERVISORES EM


RELAÇÃO À PRÁTICA PEDAGÓGICO-MUSICAL

Romário Pereira da Silva (UERN)


romaguitarock@hotmail.com
Alexandre Milne-Jones Náder (UERN)
amjnader@gmail.com

Introdução

A prática pedagógico-musical escolar se faz presente cotidiano de qualquer educador


musical, nos vários aspectos ao qual ela está envolvida, do planejamento à prática em si. Tudo
que é desenvolvido em sala de aula depende de um planejamento bem pensado e elaborado,
pois, para que uma prática seja eficaz é necessário ter objetivos e critérios pré-estabelecidos,
sendo estes fomentados a partir das vivências do próprio professor no seu dia a dia. Tendo
isso em mente, a proposta desse trabalho é relatar as concepções sobre práticas pedagógico-
musicais, nos aspectos referentes a atividades e conteúdos, dos professores supervisores
PIBID Música/UERN.
O Subprojeto PIBID/Música na UERN teve início em 2013 e a seleção dos bolsistas
foi através do Edital do PIBID, no mesmo ano.
A proposta do subprojeto de Música é de proporcionar uma reflexão teórico/prática
acerca do que deve ser trabalhado nas aulas de Artes/Música, tanto para os bolsistas quanto
para os professores supervisores, nas escolas contempladas com o programa. Esses momentos
de planejamentos ocorrem em reuniões semanais, juntamente como o coordenador de área, e
tem o foco centrado nas análises dos documentos oficiais (PCNs, DCNs e BNC etc.) 113 e na
literatura relacionada à educação musical. Vejamos algumas ações previstas no subprojeto:
 Realizar um diagnóstico dentro do espaço escolar;
 Compreender as características dos contextos escolares;
 Discutir e refletir sobre as propostas didáticas a serem implementadas em cada Escola;
 Elaborar recursos pedagógicos musicais a partir do diálogo entre professores atuantes
732

do contexto escolar e alunos da Licenciatura em Música da UERN, contribuindo para o


ensino de música na escola básica;
Página

113
Parâmetros Curriculares Nacionais; Diretrizes Curriculares Nacionais; Base Nacional Comum Curricular.

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 Compreendendo a importância do movimento corporal como ferramenta do processo de
musicalização, desenvolveremos nas aulas de música, a expressão de características
musicais através do corpo, tendo como meta a expressão corporal de conceitos e
dinâmicas presentes nas músicas;
 Aplicação das Tecnologias de Informação e Comunicação à Educação Musical;
 Construção de instrumentos para o ensino de música;
 Relatório de atuação dos bolsistas e seminário;
 Incentivo aos bolsistas para que produzam artigos com os resultados de suas
experiências no âmbito do projeto e apresentando-os nos eventos de divulgação de
pesquisas e debates em Educação Musical anuais como os realizados pela Associação
Brasileira de Educação Musical (ABEM) e pela Associação de Pesquisa e Pós-
Graduação em Música (ANPPOM), (SUBPROJETO DE MÚSICA UERN, 2013).

As ações previstas no subprojeto visam orientar e articular todo o desenvolvimento


na prática, nas escolas onde o mesmo está inserido.
O universo da pesquisa é formado pelos quatro professores supervisores que
participam do PIBID Música/UERN, os quais atuam em escolas da rede estadual de ensino,
na cidade de Mossoró-RN, sendo estas vinculadas à IES no qual o Programa é desenvolvido.
Esses professores, responsáveis pela disciplina Artes, fazem parte do Programa desde o ano
de 2013 e participam das reuniões semanais que acontecem no campus central, que norteiam e
articulam as ações previstas pelo Programa.
Através das entrevistas foi possível conhecer um pouco da formação acadêmica dos
professores supervisores. Os professores114 A e D tem uma formação específica em música
enquanto o professor C é formado em letras e artes e possui vivência musical através do
conservatório e a atuação em bandas de música. Já o Professor B tem uma formação voltada
para a educação artística com um trabalho voltado para o teatro e a cultura. Vejamos a tabela
a seguir.
733

114
Para preservar o anonimato dos entrevistados e proporcionar uma maior liberdade na pesquisa, decidimos
Página

designar uma letra identificando cada professor supervisor: Professora A, Professora B, Professor C e Professora
D.

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Tabela 1: Formação dos professores

Supervisores Formação Acadêmica

Professora A Licenciatura em Música

Professora B Graduação em Pedagogia; Graduação em Artes Cênicas; Especialização em


Psicopedagogia e Mestrado em Ciências Sociais.

Professor C Licenciatura em Letras e Artes com Habilitação em Língua Inglesa;


Conservatório de música e atuação em bandas de música.

Professora D Licenciatura em Música.

Fonte: Entrevistas

Verificamos a partir da tabela 4 que três dos quatro professores tem formação
especifica em música e um com formação em artes cênicas. Tal fato auxiliou o
desenvolvimento de atividades musicais em consonância com os planos de aula evitando
assim, uma quebra na progressão do plano da disciplina.

Aspectos Metodológicos

Na pesquisa foi utilizada uma abordagem qualitativa, visando compreender as


concepções dos professores supervisores do PIBID Música/UERN em relação à prática
pedagógico-musical. Nessa proposta, a pesquisa qualitativa nos proporciona uma visão mais
ampla sobre o nosso objeto de estudo, que no caso em questão, eram as concepções dos
supervisores. Nesse sentido, “os investigadores que fazem uso deste tipo de abordagem estão
interessados no modo como diferentes pessoas dão sentido às suas vidas” (BOGDAN;
BIKLEN, 1994, p. 50).
Foi elaborada uma entrevista semiestruturada e criado um roteiro, visando um
melhor desenvolvimento da mesma. O roteiro trás perguntas dentro de uma categorização de
assuntos pertinentes com o objetivo geral da pesquisa. No presente artigo, enfatizamos a
734

categoria referente a atividades e conteúdos, tendo como proposta saber como os professores
Página

desenvolvem-nas, em sala de aula.

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A pesquisa documental foi outro instrumento usado para a coleta dos dados, pois,
buscamos conhecer os documentos produzidos pelos próprios professores supervisores e pelo
PIBID Música/UERN, sendo esses: planos de aula dos Professores e os Relatórios do
subprojeto. Esses documentos complementaram as informações obtidas através das
entrevistas. Após todos os dados, entrevistas e documentos serem coletados, foram feitas as
análises dos conteúdos com as informações referentes às concepções dos professores e a
organização de seus planejamentos, sendo que a partir das transcrições das entrevistas, temos
o ponto central da pesquisa.
Para compreendermos as concepções dos professores supervisores em relação à
própria prática pedagógico-musical, fez-se necessário as leituras de pesquisas já realizadas
com o foco voltado para “o pensamento do professor de música”. Nessa perspectiva,
apresentamos nossa fundamentação teórica tendo por base as pesquisas feitas por: Beineke
(2000); Del-Ben (2001); e Abreu (2015). Essas pesquisas tem um olhar voltado para o
discurso do professor em relação a sua prática pedagógico-musical. Os autores citados e suas
respectivas pesquisas se tornam relevantes para a presente pesquisa, pois, os mesmos nos
trazem uma explanação de conceitos sobre os estudos em relação ao pensamento do professor
de música. As investigações sobre concepções apontam para um indivíduo que pensa e reflete
sobre sua própria prática: o professor!
O termo “concepção” diz respeito ao conceito ou entendimento sobre determinado
assunto. Em sua dissertação, Abreu (2015) comenta sobre o sentido de “concepção”.

O termo concepção tem um sentido amplo e uma capacidade, ação ou efeito


de compreender ou perceber algo, dar uma opinião, uma ideia, pode ser uma
concepção adquirida ao longo da vida. Trazendo para nossa discussão em
Educação Musical, a concepção sobre o ensino de música deve ser entendida
e compreendida de forma a identificar o relacionamento do educador com a
área que ele leciona e sua concepção de mundo (ABREU, 2015, p. 24).

Nessa mesma ideia, temos:

[...] o termo “concepção”, significa um conjunto de ideias, crenças,


entendimentos e interpretações de práticas pedagógicas relativas à natureza e
ao conteúdo, aos alunos e à forma como aprendem, aos professores e ao
735

papel que esses possuem em sala de aula, e ao contexto em que a prática


ocorre (OLIVEIRA, 2007 apud ABREU, 2015, p. 25).
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Nesse sentido, vemos que o pensamento do professor está ligado as suas vivências
pessoais ou adquiridas no cotidiano e em sua visão de mundo, e, a partir dessa junção de
saberes, sua concepção sobre determinado assunto é moldada.

Sobre atividades e conteúdos

Nesse capítulo iremos apresentar o discurso dos professores supervisores em relação


ao discurso, dos mesmos, sobre a categoria envolvendo as atividades e conteúdo. As falas
transcritas promovem um diálogo entre o pensamento dos professores, no que diz respeito à
prática pedagógico-musical. Buscamos aqui compreender os aspectos que julgamos mais
relevantes para o ensino da música na escola, a partir da visão deles, pois, já atuam em sala de
aula e possuem suas próprias concepções sobre assunto.
As atividades desenvolvidas em sala de aula e os seus respectivos conteúdos devem
estar organizados de uma forma que possibilite ao aluno conhecer, assimilar e reproduzir. Em
sua pesquisa, Abreu (2015) constatou que os professores organizavam os conteúdos de acordo
com o conhecimento que os alunos já possuíam. Isso é importante, pois, não adianta apenas
despejar conteúdos e propor atividades que os alunos não conseguirão desenvolver. Ele ainda
argumenta: “além dos conhecimentos oriundos do cotidiano dos alunos, precisam ser
apresentados outros conhecimentos que tragam uma vivência atrelada à teoria” (ABREU,
2015, p. 83). Sempre proporcionar um conhecimento, não apenas prático, mas que gere uma
reflexão em relação ao que está sendo desenvolvido.
O Professor C procura trabalhar aspectos com o foco no ritmo, através de novas
metodologias de ensino. Ele aponta que deve ser trabalhada mais a parte prática, pois, na
visão dele, o ensino musical ainda está preso à teoria.

Eu acho que as práticas: expressão corporal, cup song são ferramentas


muito boas para se trabalhar, para aproximar o aluno e ele gostar de
música.... Precisa ser trabalhado mais prática do que teoria! Eu acho que a
música, o ensino musical está muito na teoria (PROFESSOR C, 2016).

A Professora D faz uma mescla entre as histórias da arte e da música, “por mais que
736

eu venha retratar sobre alguns conteúdos como: música medieval e renascentista, eu sempre
tento abordar o passado fazendo referencia ao presente”, e busca trabalhar a parte rítmica
Página

com o uso de novas metodologias que foram desenvolvidas a partir do PIBID Música/UERN.

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“Quando eu comecei O Passo, no início do PIBID foi uma festa para eles (os alunos), pois,
levamos de uma forma dinâmica. Eles participam, eles brincam. Eu gosto de botar eles para
trabalhar e usar a criatividade” (PROFESSORA D, 2016).
Já a Professora B, que não tem uma formação especifica em música, trabalha as
várias linguagens artísticas dentro dos seus projetos com o foco em manifestações culturais, e
a música atua diretamente, principalmente, dentro dos aspectos rítmicos. Ela comenta:

Eu não uso os termos técnicos da música, até porque eu não sou competente
para me aprofundar nessa questão, e nem dou aula de música
especificamente na minha escola. Como eu trabalho com projetos, a música
entra como uma das linguagens artísticas que dialoga com as outras... Com
a inserção do PIBID/Música eu comecei a trabalhar com os alunos a
questão dos conteúdos dentro projeto (arte e cultura)... (PROFESSORA B,
2016).

Ela ainda comenta que através do PIBID Música/UERN, passou a desenvolver novas
atividades: “com o PIBID/Música, nós fizemos no ano passado a confecção de instrumentos
musicais” (PROFESSORA B, 2016).
A Professora A, embora argumente que não fica presa a um determinado conteúdo,
aponta desenvolver atividades que envolvam um trabalho rítmico e corporal.

Eu não tenho esse olhar de dar importância a um determinado estilo ou


conteúdo musical. Se os meus alunos aceitarem bem o que eu levo eu
aproveito bem essa ferramenta para explicar determinado conteúdo... Eu
trabalhei um ano inteiro com O Passo (PROFESSORA A, 2016).

Os professores, no geral, procuram dar ênfase ao desenvolvimento de atividades de


caráter rítmico, buscando auxílio em novas propostas metodológicas, sendo essas abordadas a
partir do PIBID Música/UERN. O subprojeto atuado como formação continuada para os
professores supervisores.

Considerações finais

A partir das análises das concepções dos professores supervisores foi possível
737

constatar que tudo aquilo que rege as suas práticas pedagógico-musicais está ligado as suas
vivências pessoais e a sua visão de mundo. Essas vivências auxiliam no desenvolvimento de
Página

novas metodologias de ensino e geram atividades a serem desenvolvidas. A construção da

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concepção envolve a junção de vários saberes, adquiridos na academia, no cotidiano ou em
suas particularidades, haja vista que o professor de música da educação básica é um ser que
pensa e reflete sobre a sua prática educativa musical.
Observando as perspectivas dos professores acerca de como ele concebe suas
práticas de ensino, vemos que o tema é muito abrangente, e que possibilita uma melhor
compreensão sobre como eles articulam e desenvolvem suas atividades e os conteúdos em
sala de aula.
Essa pesquisa se mostrou relevante no sentido de dar “voz” ao pensamento dos
professores supervisores do PIBID Música/UERN, professores esses que, refletem sobre tudo
aquilo que dá alicerce ao seu planejamento e visão em relação a educação musical escolar.

Referências

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música na educação básica da rede pública municipal da cidade do
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739
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GT5 – ENSINO DE MÚSICA NOS MÚLTIPLOS CONTEXTOS: PERSPECTIVAS,
EXPERIÊNCIAS, PRÁTICAS E FORMAÇÃO CONTINUADA

EDUCAÇÃO PROFISSIONAL E TÉCNICA EM MÚSICA: UM LEVANTAMENTO


BIBLIOGRÁFICO NOS ANAIS DA ANPPOM E ABEM (2001-2013)

Ruãnn Cézar Cezário Silva


ruann.cezar@gmail.com
(POSENSINO – UERN/UFERSA/IFRN)
Giann Mendes Ribeiro
giannribeiro@gmail.com
(UERN/IFRN)

Introdução

A área de conhecimento musical vem tomando proporção cada vez mais em


publicações de periódicos, revistas indexadas, dissertações e teses. Percebemos várias
vertentes abordadas nessa área, temáticas essas: educacionais, musicológicas, cognitivas,
composicionais, performáticas e até mesmo música em correlação com a área da saúde. A
Educação Musical, como uma dessas vertentes, bastante disseminada por associações
nacionais (ANPPOM e ABEM) pioneiras na abordagem da música na educação básica, tem
construindo seu campo fundamentada nas práticas de ensino e aprendizagem neste âmbito
educacional (além também de abordar também as áreas supracitadas).
Desse modo, faz-se necessário pesquisas abordando o âmbito educacional, a fim de
obter subsídios e compreensão dos desafios para a atuação do ensino de música nos múltiplos
contextos de ensino, objetivando formar docentes principalmente para os espaços formais de
ensino (educação básica, educação profissional e técnica). Partindo desse pressuposto, é
importante conhecer pesquisas sobre esses espaços, investigando trabalhos que já abordaram
esse viés de pesquisa, trazendo resultados e principalmente perspectivas para pesquisas
futuras de determinadas áreas do conhecimento dessas temáticas.
Para se fazer conhecer como está o campo de pesquisa de determinada temática/área
de conhecimento, trazemos um exemplo formal de um mapeamento sobre um campo
específico na Educação Musical: A Educação Profissional nesta área. A Educação
Profissional foi instituída no final do século XIX com as Liceus de Artes, objetivando
740

fornecer uma formação técnica para trabalhos como: carpintaria, alfaiataria, sapataria,
tipografia e entre outras áreas (MANFREDI, 2002). Com a institucionalização do ensino
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ISBN: 978-85-7621-221-8
profissional e técnico tomando abrangência para todas as outras áreas, inclusive a de música,
faz-se necessário a compreensão desta temática sobre a área de Educação Musical.
Partindo dessa necessidade, esta comunicação tem como finalidade realizar um
levantamento bibliográfico, a fim de verificar a Educação Profissional em música nos
repositórios dos anais da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música -
ANPPOM e da Associação Brasileira de Educação Musical - ABEM, onde foram coletados
38 artigos. Objetivamos realizar esse mapeamento a fim de compreender como essa temática
vem sendo tratada, propondo neste trabalho, realizar um estado do conhecimento sobre
Educação Profissional e Técnica em Educação Musical. O interesse por essa área tem
conexão com o projeto de mestrado o qual estamos desenvolvendo.115
Através de uma delimitação mais compacta, optamos por realizar pelo Estado do
Conhecimento, pois este é “O estudo que aborda apenas um setor das publicações sobre o
tema estudado sendo denominando de ‘estado da arte’” (ROMANOWSKI; ENS, 2006, p. 40).
Para uma melhor visualização de como tem ocorrido a produção do conhecimento sobre a
Educação Profissional em música, baseamo-nos por pesquisas que versavam sobre a
importância do Estado da Arte. Vale salientar que este trabalho está limitado a um campo
menor, envolvendo os anais de eventos da ANPPOM e da ABEM, cujo artigos versam sobre
educação musical.
Através da grande quantidade de trabalho divulgados em repositórios de anais de
eventos, é importante levantar constantes mapeamentos para a compreensão da produção de
determinadas áreas do conhecimento. A investigação dessas produções deixa caminhos para
novas pesquisas serem realizadas, onde podemos observar as lacunas que não foram
preenchidas, as abordagens que não foram realizadas e perguntas que não foram respondidas.
Como norteamento de indagação, formulamos questionamentos a fim de substanciar nossas
perguntas, onde obtivemos algumas como: De que maneira tem ocorrido a produção do
conhecimento sobre educação profissional em música nos anais desses repositórios? Que
abordagens este tema vem permeando nessas produções? Que considerações a Educação
Musical tem discutido para uma melhor potencialização do ensino de música nos espaços de
formação profissional e técnica?
741

115
Trabalho realizado em prol de um levantamento bibliográfico para a área pesquisada na elaboração da
dissertação de mestrado. Atualmente estou aluno do Programa de Pós-graduação em Ensino Stricto Sensu –
Página

Nível Mestrado, que tem como um dos objetivos, estudar a temática o ensino de música nos campi do IFRN do
Oeste Potiguar.

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Metodologia

De certa forma, a realização de uma pesquisa bibliográfica, a fim de delimitar aspectos


importantes para a estruturação do tema estudado, é de extrema importância partir de uma
fundamentação em estudos sobre revisões de literaturas. Pizzani et al. (2012) relata que:

A revisão de literatura tem vários objetivos, entre quais citamos: a)


proporcionar um aprendizado sobre uma determinada área de conhecimento;
b) facilitar a identificação e seleção dos métodos e técnicas a serem
utilizadas pelo pesquisador; c) oferecer subsídios para a redação da
introdução e revisão da literatura e redação da discussão do trabalho
científico (p. 54).

Esses autores versam que essa revisão é um dos pontos de partida, afirmando que “A
revisão de literatura é apenas um pré-requisito para a realização de toda e qualquer pesquisa,
ao passo que a pesquisa bibliográfica é uma etapa fundamental antes da elaboração ou
desenvolvimento de um estudo, artigo, tese ou dissertação” (p. 64).
Lima e Mioto trazem a discussão de que:

Não é raro que a pesquisa bibliográfica apareça caracterizada como revisão


de literatura ou revisão bibliográfica. Isto acontece porque falta compreensão
de que a revisão de literatura é apenas um pré-requisito para a realização de
toda e qualquer pesquisa, ao passo que a pesquisa bibliográfica implica em
um conjunto ordenado de procedimentos de busca por soluções, atento ao
objeto de estudo, e que, por isso, não pode ser aleatório (LIMA; MIOTO,
2007, p. 38).

Trazendo essa ideia para este presente artigo, a organização é algo fundamental para a
criação do estado do conhecimento, pois é exatamente essa estruturação ordenada de trabalhos
bibliográficos que irão nortear como está ocorrendo a produção de determinado assunto.
Conforto et al. (2011) versa que:

[...] a pesquisa bibliográfica possui caráter exploratório, pois permite maior


familiaridade com o problema, aprimoramento de ideias ou descobertas de
intuições [...]. Por isso, conduzi-la de forma sistemática e rigorosa, contribui
para o desenvolvimento de uma base sólida de conhecimento, facilitando o
742

desenvolvimento da teoria em áreas onde já existem pesquisas, e também,


identificando áreas onde há oportunidades para novas pesquisas (p. 1).
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A ênfase por afirmar a importância deste estudo é algo bastante perceptível nas
literaturas supracitadas neste trabalho. Conforto et al. (2011) traz também em seu trabalho,
que uma pesquisa bibliográfica recebendo a “devida atenção”, sendo “conduzida com rigor de
forma sistemática, esta permitirá que outros pesquisadores possam fazer uso desses resultados
com maior confiabilidade, possibilitando reutilizar estudos já finalizados, focando apenas no
tópico em que se deseja pesquisar. ”
Para a busca desses trabalhos foi necessário utilizar de filtro de palavras-chaves, onde
buscamos palavras ou derivações de sinônimos para coletar os trabalhos, e estas foram:
formação técnica, formação profissional ou algum termo semelhante no corpo do artigo
pesquisado. Vale salientar que alguns artigos que não continham essas palavras no título ou
no resumo, buscávamos no corpo do texto (quando encontrada algumas dessas palavras
chaves), vindo a integrar esse trabalho em nossos resultados de busca.
É importante destacar também, que os termos similares também foram considerados
(profissionalizantes), para que pudéssemos abarcar melhor essa temática que poderia estar
disseminada com outros sinônimos. Percebemos que o contexto dos conservatórios são
âmbitos considerados profissionalizante/técnico, sendo esta, uma instituição que promova o
ensino técnico profissional de música, muitas vezes citado por autores como um âmbito de
formação técnico e profissional.

Discussão dos dados

Através dos resumos de cada artigo, haja vista a quantidade de trabalhos a serem
expostos nessa comunicação, tomamos como ponto de partida uma perspectiva analítica sobre
o que cada trabalho versava a partir destes resumos. Posteriormente, elencamos palavras-
chaves para categorização desses trabalhos, objetivando compreender o que os autores
estavam abordando. As palavras-chaves que nortearam nossa discussão foram: Currículo,
Educação Profissional e Formação Técnica.
Sobre artigos relacionados a currículo, trazemos o trabalho de Queiroz (2010), que faz
questionamentos sobre a configuração curricular de um curso técnico em instrumento,
tomando norteamento para embasamento de suas discussões a Resolução CNE/CEB Nº. 04/99
743

e os Referenciais Curriculares Nacionais da Educação Profissional de Nível Técnico. Em suas


considerações conclusivas, Queiroz evidencia a necessidade do diálogo regular entre escolas e
Página

seus documentos normativos (internos e externos) com vista à atualização, melhoria e criação

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de cursos baseados nas possibilidades legais. O âmbito da pesquisa foi o currículo do curso
técnico em instrumento da EMUFPA (Escola de Música da UFPA).
Assim como Oliveira (2010), que apresenta um recorte de sua pesquisa de mestrado,
relacionou o Grupo de Trabalho de Ensino e Aprendizagem em Educação Musical no âmbito
das Práticas de Educação Musical em escolas especializadas. Pontuou reflexões acerca das
mudanças da composição do currículo do Curso Técnico em Música do Conservatório
Estadual de Música Cora Pavan Capparelli de Uberlândia-MG. A primeira parte deste
trabalho tratou de destacar considerações a respeito do Conservatório e a Educação
Profissional. A segunda parte abordou acerca das disciplinas introduzidas na grade com o
propósito de adequar o currículo às diretrizes da Educação Profissional.
Já Esperidião (2001) buscou compreender o currículo de música a partir de uma reflexão
fundamentada nas teorias curriculares e na contextualização histórica, social, educacional e
política do Brasil. Relatou sobre a Educação Musical praticada nos Conservatórios, âmbito
esse que se encontrava em descompasso com as transformações sociais, culturais e
tecnológicas. Assim como as práticas pedagógicas refletiam o paradigma da pedagogia
tradicional do ensino de música, sendo o currículo baseado na concepção de disciplinas
fragmentadas e conteúdos privilegiando a música tradicional culta/erudita.
Sobre Educação Profissional propriamente dita, encontramos este termo usado por
Alexandria e Tinoco (2009), os quais abordaram uma pesquisa sobre os processos de
desenvolvimento da prática docente e divulgação da música. O campo pesquisado foram as
escolas públicas de Educação Básica do Distrito Federal, além também de outros locais
públicos que abordam também o contexto musical. Os resultados obtidos nessa pesquisa
demonstraram que os processos supracitados, analisados por leis regulamentadas, são
referentes a Projetos Artísticos e Pedagógicos desenvolvidos pelo Centro de Educação
Profissional/Escola de Música de Brasília. Trouxeram discussões também sobre propostas e
hipóteses para a ampliação e o acesso da cultura musical, além de proposições de projetos
pedagógicos para o ensino de música nos espaços formais (Educação Básica e Profissional).
Já Lima (2010), abordou a chegada da Música Popular às instituições de Ensino de
Música no Brasil (final da década de 80). Suas discussões fazem parte de uma pesquisa que
estava em andamento, a qual objetivava investigar as perspectivas de cantores populares,
744

alunos do Centro de Educação Profissional Escola de Música de Brasília, sobre os processos


de aprendizagem em contextos formais e informais.
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Silva (2012), apresentou dados de uma pesquisa realizada em torno do conceito de
musicalidade a partir da concepção de professoras de instrumento de palhetas de um centro de
educação profissional de música. Teve como objetivo compreender como esse conceito se
expressava nas concepções das professoras, como elas percebem esse conceito no alunado e
refletindo como suas práticas pedagógicas podem ser redimensionadas para uma
potencialização do aprendizado. A proposta metodológica deste trabalho teve o uso do
questionário, o qual o autor revelou que foi possível apreender que a concepção se mostra
multifacetada e envolve, de forma combinada, os diferentes tipos de inteligência apontados
por Gardner (1999).
Carmona, Viana e D’Amore (2009) aborda à experiência da Escola de Música da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte – (EMUFRN) na implantação e
desenvolvimento do Programa Nacional de Integração da Educação Profissional à Educação
Básica na modalidade de Jovem e Adultos (PROEJA) no período de março de 2008 a julho de
2009. A partir de um estudo de caso, traz uma leitura diagnóstica à aprendizagem musical dos
concluintes, certificação profissional e implantação das políticas educacionais.
Oliveira (2011) relatou sobre os músicos egressos dos cursos técnicos dos
Conservatórios de Música, que se encontravam em uma sociedade totalmente modificada e
globalizada devido aos avanços tecnológicos. Trouxe indagações sobre como isso acarreta
modificações no mercado de trabalho e consequentemente na atuação profissional dos
músicos. Este trabalho foi um recorte de uma pesquisa em andamento, a qual objetivava
estudar a relação entre a formação e atuação profissional dos músicos de nível técnico na
sociedade contemporânea.
Sobre a formação técnica, Costa (2013) traz respostas de 134 candidatos aos cursos
técnicos de nível médio das áreas instrumentais, nos segmentos erudito popular. A questão foi
inserida como aprofundamento qualitativo em um survey realizado durante o processo
seletivo do Centro de Educação Profissional do Distrito Federal em 2012. Tratou-se de um
estudo de caso que tinha como eixo relações entre formação técnica em nível médio,
qualificações para o trabalho em música e possibilidades de inserção laborativa sob a ótica
das Política Públicas para a Educação Profissional.
Pimentel (2014) mapeou resultados e proposições de estudos sobre a formação técnica
745

de nível médio em música e a atuação profissional de egressos oriundos dessa formação. A


autora realizou um trabalho de revisão de literatura, sinalizando a necessidade de estudos
Página

sobre egressos do contexto educacional profissional e técnico de nível médio, tratando de sua

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inserção no mercado de trabalho, elencando dificuldades e oportunidades de sua atuação
profissional.
Carmona e Ribas (2013) investigou a relação entre a formação e mercado de trabalho.
Tiveram como norteamento metodológico a pesquisa qualitativa (estudo de caso), abordando
a trajetória musical de estudantes e egressos, anterior, concomitante e posterior ao Curso
Técnico de Instrumento da EMUFRN (Escola de Música da UFRN). Elencando também os
sentidos atribuídos à formação técnica e a articulação entre as experiências vivenciadas no
curso técnico e no mercado de trabalho.

Considerações

Percebemos que os trabalhos coletados e elencados nessa comunicação seguem


diferentes caminhos e discussões acerca da educação profissional em educação musical.
Percebemos que alguns deles prezaram pela descrição da formação técnica no instrumento,
abordando cursos oriundos de conservatórios ou centros técnicos de formação profissional.
O conservatório, visto por alguns como uma escola tradicional obsoleta, é um âmbito
ainda discutido em algumas dessas comunicações, além também, da importância da formação
performática do estudante de música e seu ingresso no mercado de trabalho, visando subsidiá-
lo de forma musical teórica/prática.
É interessante observar que essa temática é refletida em trabalhos que focam no
aprendizado do instrumento, os quais nos fazem refletir - uso os termos: Educação
Profissional, Formação Profissional/Técnica -, levantando questionamentos a fim de
compreender essas nomenclaturas de forma mais aprofundada.
É importante destacar também, a presença de pesquisas realizadas nos Instituto
Federais, trabalhos esses abordados na perspectiva de música como componente curricular no
ensino médio integrado116, os componentes curriculares desse âmbito educacional, cursos
técnicos em instrumento e licenciaturas em música nesses Institutos.
A partir deste mapeamento, podemos afirmar que essa temática teve maior proporção
nos anais de eventos da ABEM Nacional, seguido pelos anais dos eventos da ABEM
746

116
Nesses cursos, os estudantes terão oportunidade de estudar disciplinas comuns do Ensino Médio juntamente
com as matérias de um curso técnico. Após a conclusão, o aluno é certificado com o diploma de Ensino Médio e
Página

já sai com uma certificação técnica. Disponível em: <http://www.ifb.edu.br/index.php/estude-no-ifb/escolha-o-


seu-curso/tecnico-integrado> . Acesso em: 22 de ago. 2017.

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Regional (Tendo destaque em proporção de abordagem nos eventos ocorridos no Nordeste) e
por último e em menor proporção os anais da ANPPOM.
Os autores que mais se destacaram em quantidades de publicações a respeito dessa
área, por ordem de quantidade, foram: Cristina Costa (2 artigos ABEM Nacional 2010;
ABEM Regional Centro-Oeste 2012; ABEM Nacional 2013), Beatriz de Oliveira (ANPPOM
2010; ABEM Nacional 2010; ABEM Regional Nordeste 2011), Raquel Carmona (ABEM
Nacional 2009; ANPPOM 2010; ANPPOM 2012).
Nosso enfoque partiu apenas do mapeamento e conhecimento dos títulos e resumos de
trabalhos com temáticas da educação profissional, outros trabalhos podem aprofundar-se
levantando discussões acerca das considerações e aspectos elencados por esses autores
catalogados nesta comunicação. Pesquisas futuras podem abranger essa área do
conhecimento, partindo de periódicos, dissertações e teses sobre essa temática, a fim de ser
levantado um estado da arte sobre Educação Profissional em Educação Musical.

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Página

ISBN: 978-85-7621-221-8
GT5 – ENSINO DE MÚSICA NOS MÚLTIPLOS CONTEXTOS: PERSPECTIVAS,
EXPERIÊNCIAS, PRÁTICAS E FORMAÇÃO CONTINUADA

A VALORIZAÇÃO DO REPERTÓRIO DO ALUNO (A) EM ESCOLA


ESPECIALIZADA DE MÚSICA

Fábio Roberto Monteiro de Lima (UERN)

Introdução

O Conservatório de música foi criado no dia 28 de setembro de 1988, através da


Portaria nº 454/88- GR-FURRN, com objetivo de promover a prática da música no âmbito
da Universidade, já em 28 de setembro de 1989, através da Resolução nº 12/89-
CONSUNI, passou a ser denominada de Conservatório de Música D’Alva Stella
Nogueira Freire, em reconhecimento a maestrina que fizera pela música na cidade de
Mossoró. Atualmente o conservatório está vinculado à Faculdade de Letras e artes - FALA
e ao Departamento de Artes- DART. O conservatório vem contribuindo com a formação de
músicos da cidade de Mossoró e região, pois atende as cidades circunvizinhas e até do
estado do Ceará, fazendo com que seus alunos desenvolvessem suas potencialidades
musicais para se tornarem músicos amadores e/ou profissionais da música, maestros,
professores e concertistas.
Atualmente o Conservatório de Música D’Alva Stella Nogueira Freire funcionada
em três horários; matutino, vespertino e noturno e oferta três cursos para a população, são
eles: Musicalização, com alunos de oito a onze anos de idade, cujo ingresso acontece pelo
sorteio público. Curso básico, com alunos de doze anos de idade em diante, onde eles
necessitam fazer uma avaliação teórica para ingressarem nas disciplinas e o curso médio,
também com alunos de doze anos em diante, onde os discentes precisam fazer além de uma
avaliação teoria uma prova prática no seu instrumento para ingressarem na instituição,
todos os cursos tem duração de dois anos.
Os conservatórios e escolas especializadas de música tem em sua grande parte o
ensino formal baseado em repertórios pré definidos pelos professores, onde são valorizadas
as questões técnicas e abordagens que não privilegiam o repertório cultural trazido pelos
752

alunos. Para Jardim (2002,p.109 apud PENNA). Vale ressaltar que, quando falamos do
conservatório como representante das escolas de música de caráter profissionalizante,
Página

referimo-nos a um padrão cultural tradicional de ensino de música. Para Vieira, (2001 p.47)

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Apud Penna, a tradição desse tipo de ensino se mantem como referência e, sendo bastante
resistente a transformações.
A problemática abordada no trabalho esta voltada a quais as preferências musicais
dos alunos em relação a estilos e músicas específicas, nesse sentido o trabalho realizado tem
como principal finalidade investigar as experiências prévias e preferências musicais dos
alunos ingressantes no período 2017.1 no conservatório de música D’alva Stella Nogueira
Freire-UERN Mossoró-RN, como objetivos específicos espera-se observar os dados
relacionados aos alunos tais como: idade, etnia, sexo e renda familiar bem como verificar
quais anseios de estudos dos alunos dentro do conservatório. Como Justificativa pode-se
citar que o interesse pelo objeto de estudo da pesquisa surgiu pelo fato de trabalhar na
instituição há quinze anos e não haver esse tipo de investigação com alunos da mesma,
através do estudo pode-se detectar os preferencias musicais dos alunos e traçar metas para
motiva-los e melhorar os índices de evasão em sala de aula. Para Tourinho (1995) é mais
viável os professores partirem do repertório dos alunos para em seguida apresentarem um
repertório que não seja conhecido pelos mesmos, dessa forma o ensino será continuo e
prazeroso.

Metodologia

Descreveremos a metodologia deste estudo, apresentando o tipo e abordagem, o


universo de estudo, os sujeitos da pesquisa, como também os procedimentos e instrumentos
que serão utilizados no decorrer da coleta e análise dos dados. A pesquisa descritiva
descrever as características de determinadas populações ou fenômenos. Uma de suas
peculiaridades está na utilização de técnicas padronizadas de coleta de dados, tais como o
questionário e a observação sistemática. (GIL,2008)
Instrumento de coleta de dados
O instrumento de coleta de dados no trabalho foi um questionário semi aberto
elaborado com perguntas objetivas como qual o sexo, idade, renda familiar e etnia dos
alunos, e se já tem experiência com música, como também perguntas de cunho livre tais
como: qual a banda ou cantor (a) e música que mais gostam e o que pretendem estudar ao
753

ingressar na instituição.
Sujeitos da pesquisa
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A amostra é uma parcela selecionada do universo, os sujeitos escolhidos Marconi e
Lakatos (2010), para a pesquisa foram alunos do Conservatório de Música D’Alva Stella
Nogueira Freire que ingressaram no período 2017.1 e se dispuseram a participar, a amostra
deu-se com trinta e três alunos do curso básico e dezessete discente do curso médio entre
adolescentes e adultos com idades que variam entre doze e quarenta e quatro anos. Para
efeito desse trabalho, os nomes dos indivíduos não foram expostos em virtude de não serem
necessários para a pesquisa, para facilitar o entendimento e leitura os sujeitos foram
divididos por números e estruturados em gráficos e tabelas explicativas.

Curso Básico
• Número de pessoas do curso básico que fizeram parte da pesquisa

• Renda familiar

• Etnias

• Já tem experiência com música ?

No tocante ao questionamento sobre se os alunos tinham experiência com música,


seis alunos responderam que já tiveram experiências com música quando criança ou já
cantaram na igreja, porém não responderam que tocam algum instrumento musical
754

atualmente.
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Idade dos participantes

Curso Médio
• Número de pessoas do curso básico que fizeram parte da pesquisa

• Renda familiar

• Etnias

• Já tem experiência com música?

• Idade dos participantes


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Resultados e discurssão

Os gráficos e tabelas mostram uma grande gama de diversidade musical recheada de


estilos e músicas oriundas das experiências trazidas por cada aluno. De acordo com as
respostas a música popular está em destaque na opinião dos alunos do curso básico, levando
a reflexão sobre o ensino de musica nos conservatórios e escolas especializadas em música.
Neste sentido os professores podem utilizar os estilos e músicas citadas pelos alunos no
ensino aprendizagem em sala de aula. O gráfico e quadro abaixo mostram dados
importantes para responder a problemática do trabalho.

• Qual estilo musical você mais gosta?


FUNK MÚSICA
RAP
AMERICANO ELETRÔNICA CURSO BÁSICO 1%BLUES
1% 2% ERUDITO
GOSPEL HEAVY METAL 1%
1% 9%
1% REGGAE
4% CHORO
MÚSICA CORAL 8%
7% SAMBA
7%
MPB/CANTO
17%
ROCK
21%
JAZZ
9%
MÚSICA
NORDESTINA
8%
SERTANEJO
4%

Alguns alunos responderam mais de uma opção, seguem abaixo as respostas:

Uma pessoa respondeu: Todos estilos do questionário ,um pessoa respondeu : rock,
música nordestina ,um respondeu : todos estilos do questionário, menos sertanejo,um
respondeu : rock ,jazz, música nordestina ,cinco responderam : rock, um respondeu : rock,
música coral, reggae, música nordestina, um respondeu :erudito, samba, rock, Mpb/canto
,dois responderam: erudito, Mpb ,um respondeu :rock, jazz, Mpb ,um respondeu : choro,
rock, música nordestina, Mpb, música coral, reggae, heavy metal, dois responderam: rock,
756

Mpb ,um respondeu : choro, samba, rock, Mpb ,um respondeu : erudito, música eletrônica
,um respondeu :rock, sertanejo, reggae, rap ,dois responderam: erudito, choro, samba, rock,
Página

jazz, música nordestina, Mpb, um respondeu : rock, música nordestina ,um respondeu :

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Mpb, um respondeu : gospel, Mpb, rock, música coral, um respondeu :choro ,um respondeu
:erudito, choro, Mpb ,um respondeu :
todos do questionário mais o blues, um respondeu :rock, reggae ,um respondeu : jazz.
A tabela abaixo mostra quais as preferências musicais específicas relacionadas a
bandas, grupos, cantor (a) e músicas: por exemplo: o aluno 1 respondeu Elis Regina e
Todos estilos e assim por diante seguindo os números de 1 ao 33. As resposta estão
dispostas de acordo com resposta dos alunos.

757
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A pergunta especifica busca saber qual a visão dos trinta e três alunos do curso
básico sobre quais são os estilos musicais que eles pretendem estudar no conservatório,
neste sentido podemos perceber que eles não veem o conservatório como uma escola que
não ensina apenas música erudita, percebeu-se que a pretensão dos alunos é muito eclética,
diversificando com gêneros brasileiros como também estilos oriundos de diversas culturas
estrangeiras, dessa forma o quadro abaixo mostra a resposta individual dos trinta e três
alunos do curso básico em relação a:
• quais estilos você pretende estudar no conservatório de música D’alva Stella
Nogueira Freire ?

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NÃO
ESPANHOLA RAP CURSO MÉDIO RESPONDEU
2% METAL 2% 2%
ERUDITO
2% 15%
REGGAE ROCK
2% 15% GOSPEL
4%
SERTANEJO
2% MPB/CANTO
MÚSICA 20%
NORDESTINA
9% JAZZ CHORO
7% 7%
MÚSICA
CORAL SAMBA
2% 9%

Uma pessoa respondeu : erudito, samba, choro, sertanejo jazz, música nordestina,
mpb, rap, uma respondeu: samba, rock, música nordestina, mpb,1 respondeu: erudito,
música nordestina, uma respondeu: rock, música nordestina, mpb, metal ,uma respondeu :
rock, jazz, mpb, uma respondeu: erudito, mpb, música nordestina, uma respondeu : erudito,
samba, gospel e choro, uma respondeu: erudito, choro, uma respondeu : rock, reggae,
espanhola, duas responderam: rock, mpb, três marcaram apenas uma opção: mpb/canto,
gospel, erudito.
A tabela abaixo mostra quais as preferências musicais específicas relacionadas a
bandas, grupos, cantor (a) e músicas: por exemplo: o aluno 1 respondeu Mago de Oz e
carinhoso e assim por diante seguindo os números de 1 ao 17.
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Percebemos através da resposta dos dezessete alunos do quadro abaixo, que quando
uma pessoa se dispõe a estudar música, ela está aberta a descobertas de novas
possibilidades não fazendo muita distinção entre popular e erudito, dessa forma é
recomendável ao professor de música que também tenha esse olhar em buscar novas
experiências e possibilidades no repertório apresentado pelo aluno e voltado para o ensino
aprendizagem.
• quais estilos você pretende estudar no conservatório de música D’alva Stella Nogueira
Freire ?
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Considerações finais

O ensino de música a partir da valorização do repertório dos alunos em


conservatórios e escolas especializadas no Brasil deve ser visto como um ponto de partida
para o aperfeiçoamento e valorização de músicas do folclore brasileiro e cotidiano dos
alunos, visto que o principal foco nesse processo é o próprio aluno. A música erudita em
conservatórios e escolas especializadas devem ser respeitadas e consideradas importantes
para o estudo, porém não devem ser excludentes ou consideradas como única forma de
ensino em música. Cabe reconhecer, finalmente, que a predominância do modelo
conservatorial como um padrão sério de ensino de música, porém a falta de
questionamentos de modelo dificulta e atrasa a renovação de práticas pedagógicas e
metodológicas. Penna (2010, p. 65)
Penna (2010, p. 65) nos mostra que é preciso ultrapassar a oposição entre música
popular e erudita nas formas de ensino aprendizagem, em prol de uma concepção mais
ampla que considere toda multiplicidade musical é condição indispensável para um projeto
que democratize a arte e cultura. No processo de ensino de música, o professor se depara
com as várias facetas da música vivenciada pela sociedade. Se o educador não tiver o
devido cuidado de evitar os preconceitos e desenvolver a capacidade para suspensão de
julgamento, corre o risco de isolar-se numa atmosfera de irrealidade para com os alunos.
(Swanwick, apud, Penna pag. 33.2010) Tourinho ainda confirma que “estimulando os
alunos a estudar o que lhes interessa e aprazer é possível obter-se um melhor resultado”
(Tourinho, 1995, p. 236).
Conforme Penna (2010, p. 65) Deixemos para traz as práticas fixas da tradição,
buscando construir conceitos em que a educação musical pode atuar, comprometendo-se
sempre com projeto de democratização da arte e cultura. Para Tourinho ( 1995) na
metodologia em que é utilizado o repertório do aluno propicia um melhor desempenho
motivacional comparados com outras metodologias limitadas ao repertório escolar.
Naturalmente é importante que o professor possa sair da sua zona de conforto e
procurar saber quais as experiências e gostos musicais dos alunos, a fim de melhorar o
processo de ensino aprendizagem fazendo com que os discentes se motivem e desenvolvam
761

suas potencialidades musicais.


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762
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GT6 – LINGUAGEM LITERÁRIA CONTEMPORÂNEA: O NARRADOR E O EU
LÍRICO

TEATRALIDADE E IDENTIDADE EM NARRATIVAS DE CLARICE LISPECTOR

Maria da Luz Duarte Leite Silva (UFRN)


Albert Ítalo Leite Ferreira (UFERSA)
Francisco Helton Duarte Leite (UFRN)

Tecendo algumas considerações

É importante ressaltar a dupla natureza do teatro quando se fala em “teatralidade”,


pois o texto funda-se justamente na materialidade da encenação, o que sugere a ideia de
teatralidade como elemento que está interligado na composição do drama, da música, da
poesia e do gesto. Brecht (1967, p. 164) diz que: “Devo mencionar aqui que todo sentimento
deve se refletir no exterior, isto é, ser transformado em gestos”.
Em Clarice, os gestos cotidianos são bastante presentes: “Que preguiçosa que me
saíste. [...]. Mas depois de amanhã aquela sua casa havia de ver: dar-lhe-ia um esfregaço com
água e sabão que lhe arrancariam as sujidas todas! A casa havia de ver. Ameaçou ela com
cólera” (LISPECTOR, 1998, p. 18). Esse fragmento do conto “Devaneio e Embriaguez duma
Rapariga” do livro Laços de Família (1998) é exemplar para demonstrar a presença da
teatralidade das personagens, principalmente no que se refere à utilização de gestos para
efetivação da cena. Os gestos presentes são comuns ao teatro/palco convencional e ao teatro
da vida.
Caminhando por esse raciocínio, é que consideramos as narrativas de Clarice
Lispector como basilar para entendermos como se dá a construção da identidade a partir da
teatralidade de suas figuras dramáticas. Por isso, recorremos a teóricos como, Brecht, (1967)
que teoriza sobre o drama Moderno, Luna (2008) e Sarrazac (2012), além de Szondi (2011), e
Nunes (1989-2009) que retrata o drama da linguagem em Clarice Lispector, destacamos
também o que discute Auberbach sobre a Mimesis, Pavis (2003), Fernandes (2013), dentre
outros.
Buscar entender a teatralidade nas obras da autora se justifica pelo fato de que suas
narrativas se encontram quase como incompletas, possibilitando ao leitor conhecer as suas
763

personagens através de seu teatro.


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A Teatralidade em Lispector

A escrita de Clarice parece ser concretizada para um espectador do teatro, é como se


ela pormenorizasse a cena. Mesmo porque o teatro em Lispector não é apenas o teatro do
drama, mas o teatro da linguagem. Podemos tomar como exemplo o trecho de A Hora da
Estrela em que Macabéa encontra-se com o rapaz/Olímpico de Jesus: “Ele... Ele se
aproximou e, com voz cantante de nordestino que a emocionou, perguntou-lhe: - E se me
desculpe senhorinha, posso convidar a passear? - Sim, respondeu atabalhoadamente com
pressa antes que ele mudasse de ideia.” (LISPECTOR, 1998, p. 43). Vemos, nesse fragmento,
um recorte peculiar, que remete a um espetáculo ausente e inalcançável, mas que pode,
todavia, idealmente, vir a participar dele pelas marcas textuais presentes, como as reticências,
que indicam suspense, o travessão que indica o diálogo/a polifonia como defendida por
Bakhtin, a vírgula, que apresenta-se como o pausar da fala dos personagens. Esses são alguns
exemplos da didáscalia nas narrativas lispectorianas. A demarcação do espaço da escrita, aqui,
se apresenta como a preparação para a cena. Assim, vê-se que Clarice cria uma ruptura com a
ilusão de realidade.
Para Fernandes, a teatralidade deve ser entendida como “uma representação
emancipada”, em que se veem os encenadores como os responsáveis pela criação de uma
narração cênica que considera relevante o dramático, tornando os encenadores como
responsáveis verdadeiros do teatro das últimas décadas (FERNANDES, 2010, p. 120). E, em
Clarice, presenciamos essa emancipação, especificamente demonstrada no conto “Feliz
Aniversário”: – Oitenta e nove anos! [...] E os seus familiares continuavam falando de
negócios, menos dando importância a aniversariante. (LISPECTOR, 1998, p. 51-58).
Clarice parece convidar o espectador a visualizar vários pontos de vista da cena, como
se só o leitor-espectador dispusesse do todo da ação. Dona Anita, apesar de seus familiares
censurarem sua atitude, age como acredita ser conveniente para aquela encenação. A filha
Zilda, ainda impregnada de censura, demonstrou descontentamento com a ação da sua mãe.
“– Mamãe! Gritou mortificada a dona da casa. Que é isso, mamãe! Gritou passada de
vergonha, e não queria se quer olhar para os outros, sabia que os desgraçados se entreolhavam
vitoriosos como se coubesse a ela dá educação à velha...” (LISPECTOR, 1998, p. 61).
764

Seguindo essa linha de raciocínio e, considerando a semelhança entre os conceitos de


encenação e teatralidade, é possível compreender que a defesa do pensamento a princípio
Página

sobre os encenadores das primeiras décadas do século passado, seja entendida como sendo

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responsável por uma verdadeira transformação de paradigmas do teatro, que deslocava do seu
núcleo, o ator e dramaturgo. Podemos também dizer que Clarice inaugura na literatura
brasileira um tipo de narrativa teatral, pautada, consolidada através de sua estilística. Pode-se
dizer, também, que Lispector é precursora na fusão diégese e mimese. Essa fusão possibilita a
ação dos espectadores na narrativa/drama/teatro.
Sarrazac (2012) afirma que o isolamento entre palco e plateia foi extinto a partir do
momento em que os espectadores foram seduzidos a se envolver no evento do próprio teatro
no seio da representação. E, em Clarice, ao invés do isolamento do espectador/leitor,
presencia-se o seu chamamento, pois ela convoca, olha, convida, chama o leitor para sua obra.
Esses recursos utilizados pela autora estão presentes, especialmente, na sua literatura infantil,
pois a autora procura desenvolver com o leitor certa intimidade, é como se a história fosse
narrada por uma pessoa bem próxima do leitor/criança, ou muito querida como a mãe/a tia/o
pai/a avó/o avô/o irmão/a irmã.
Na obra A Mulher que Matou os peixes, a autora afirma: “Antes de começar, quero
que vocês saibam que meu nome é Clarice. E vocês, como se chamam? Digam baixinho o
nome de vocês e o meu coração vai ouvir. Peço que leiam esta história até o fim [...]. Outro
bicho natural de minha casa é... adivinhem! Adivinharam”. A narradora/Clarice, no final da
narrativa, reforça ainda mais o diálogo com o leitor: “Eu peço muito que vocês me
desculpem, Dagora em diante nunca mais ficarei distraída. Vocês me perdoam?”
(LISPECTOR, 1999, s/p). A intimidade aqui parece ser uma forma que Clarice encontra para
ganhar a confiança do leitor, ou mesmo levá-lo a ouvir sua história, deixando-se levar pela
narradora, Nessa narrativa, Clarice se expõe totalmente, talvez como meio de se justificar pelo
crime que cometeu, procurando com essa aproximação do leitor a sua absolvição.
Em O Coelho Pensante de Clarice Lispector, esses recursos estilísticos-digressão-
diálogo com o leitor aparecem também com frequência, “Coelho é como passarinho: se
assusta com carinho forte demais, fica sem saber se é por amor ou por raiva. A gente tem que
ir devagar para ele ir se acostumando, até que ele ganhe confiança”. Aqui a narradora procura
convencer o leitor a ver o Coelho/Joãozinho como um ser sensível, que pensa. Daí procura
utilizar uma linguagem simples/infantil, talvez de modo que a criança/leitor se identifique e
seja tomado pela história.
765

Em Quase de Verdade, Lispector utiliza o próprio protagonista/Ulisses/O Cachorro,


para contar a história, livrando/poupando a autora do trabalho de convencer
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convidar/chamar/convocar o leitor para imersão na sua narrativa: “A verdade é que Laura tem

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um pescoço mais feio que já vi no mundo. Mas você não se importa, não é? Porque o que vale
é ser bonito por dentro”. Lispector, nessa narrativa, mistura fantasia e realidade como pretexto
para aproximar do leitor, especificamente o infantil. Usando o íntimo das suas personagens,
consegue utilizar-se de uma linguagem bem próxima da linguagem do público a que se
destina a obra. A partir dos exemplos citados, pode-se dizer que, mesmo sabendo que Clarice,
não produziu peças teatrais, suas narrativas apresentam um teatro da linguagem, e não apenas
um teatro do drama. Daí, a presença nas suas obras de uma teatralidade que podemos dizer
moderna.
A teatralidade é entendida aqui, como sendo mais que uma simples execução de uma
ação. Como exemplo, temos o trecho do conto “Devaneio e Embriaguez duma Rapariga” em
que a Portuguesa, ao ver uma loira entrando na tasca/restaurante, ficou enfurecida, reiniciou o
seu refletir sobre o si mesma, pois toda cena é percebida pelo que a protagonista reflete por
meio de sua psique: “– Vai ver que nem casada era, e ostentar aquele ar de santa. E com seu
rico chapéu bem posto [...] que nem roliça era, era chata de peito [...] A patifas sem brio como
tu, a se fazerem de rogadas, eu lhas encho de sopapos” (LISPECTOR, 1998, p. 15). Vemos
que a portuguesa estava se sentindo mais uma vez inferior à moça, pois ficou no seu
agir/pensar desfazendo da beleza particular da loira. Aqui se percebe a teatralidade, pois
podemos compreender a cena teatralizada.
Seguindo essa lógica, percebe-se que o teatro contemporâneo parece revelar o gosto
por apresentar e oferecer à plateia a “sobriedade lúdica e operatória” do jogo, e não o efeito
ilusório da representação. É aí que surge a teatralidade, que por meio das figuras dramáticas
viabilizadas pelos gestos, revela a coisa em si, em sua fenomenalidade. Ou seja, “o aparecer aí
da coisa é a própria teatralidade”.117 Percebemos que o teatro do esposo da portuguesa inicia a
partir dos seus gestos, servindo de adereços para seu teatro, isso é evidente quando procura
acariciar sua esposa: “Foi um instante que ficou surda: faltou-lhe um sentido [...]. Das duas
uma: estava surda ou a ouvir demais – reagiu a essa solicitação com uma sensação maliciosa e
incômoda, com um suspiro de saciedade conformada. Pros raios que os partam, disse suave,
aniquilada” (LISPECTOR, 1998, p. 17). E ainda mostramos: “E o que tens? Pergunta-lhe o
homem atônito, a ensaiar imediatamente carinho mais eficaz. (LISPECTOR, 1998, p. 10-12).
O ensaiar leva-nos a pensar em teatro. Veja que o teatro continua: “O marido apareceu - já
766

trajado e ela nem sabia o que o homem fizera para o seu pequeno almoço, e nem olhou-lhe o
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117
GUÉNOUN, Denis, Actions et acteurs. Raisons du drame sur scène, especialmente “La face et le profil” e
“Entre poésie et pratique”. Paris: Belin, 2005.

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fato, se estava ou não a escovar... Mas quando ele se inclinou para beija-la sua leveza crepitou
como folha seca: - Largate daí.” (LISPECTOR, 1998, p. 10-11). -se o drama dos personagens,
quando vemos que o esposo parece está mais antenado nesse teatro, pois percebe o
desinteresse da espessa. Mas, ela entre em ação: “Ai que não me maces! Não vem rondar
como um galho velho! Ele pareceu pensar melhor e declarou. – Ó rapariga, estás doente. Ela
aceitou surpreendida, lisonjeada.” (LISPECTOR, 1998, p. 10-11).
Percebemos que no seu teatro, a protagonista apresenta uma cena de, uma mulher
cansada do lar, ou melhor, da vida monótona. É tanto que, apresentava-se empanturrada,
desiludida, ora casada, contente, provavelmente o contentamento seja visto quando está a
conversar com o amigo do seu esposo, toda “rogada”, mas apresenta-se também com náusea.
Características das personagens clariceanas. “[...] e ela cerimoniosa diante do outro homem
tão mais fino e rico, procurando dar-lhe palestras, pois não era nenhuma parola d’ aldeia e já
vivera em capital” (LISPECTOR, 1998, p. 12).
Clarice Lispector nunca deixou claro seu processo de criação artística. Dizia ser um
mistério, sem pretensão. “Quando penso numa história, eu só tenho uma vaga visão do
conjunto, mas, isso é uma coisa de momento, que depois se perde. Se houvesse premeditação,
eu me desinteressaria pelo trabalho” (LISPECTOR, 1981, p. 102). Na fala da autora,
percebemos que até no escrever a teatralidade é presente, pois está aberta às experiências
externas, uma vez que procura, mesmo que inconscientemente, maneiras de atenuar o real
para torná-lo estético e erótico, encená-lo à sua maneira (FERNANDES, 2010). É o que se
observa, por exemplo, no conto “O primeiro Beijo”, quando de um simples ato de saciar a
sede em um chafariz, um menino se transforma em homem, pois ejacula:

Que logo o encheu de susto e logo também de um orgulho antes jamais


sentido. Ele nesse ato ultrapassa o plano físico para o metafísico, pois no
momento do gozo o concreto se transforma no ato que se dá no entremeio da
ação/teatralidade que antecede a palavra/texto (LISPECTOR, 1998, p. 159).

Assim, como Fernandes apresenta que o real pode se tornar erótico, nesse fragmento,
Lispector, consegue erotizar a ação de sua figura dramática. Com base no discutido, podemos
dizer que a literatura de Lispector é um ambíguo espelho da mente, pois percebemos marcas
767

da teatralidade, esta entendida como dependendo da leitura de determinados espetáculos para


se constituir. Apesar de Clarice não produzir peças teatrais, suas narrativas podem ser
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teatralizadas, a exemplo do conto “O Primeiro Beijo”, da obra Felicidade Clandestina (1998),

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em que a ação do personagem como é apresentada pode ser considerada um espetáculo, visto
que há um paralelo entre o texto e a cena/teatro. Isso posto, por se perceber que se pode
estabelecer, por meio das marcas textuais, uma certa relação com a palavra-ação. Além disso,
seu conceito apresenta aproximação com a encenação, bem como com o universo ficcional
moderno. De fato, o que se observa nas narrativas lispectorianas é que as histórias raramente
apresentam um enredo, com começo, meio e fim, conforme os cânones das narrativas
tradicionais.
A obra lispectoriana trouxe inovações à estética narrativa no Brasil, e, mesmo não
deixando de retratar a realidade, apresenta consciência técnica, adequando forma e conteúdo
nas suas composições, estreitando as fronteiras entre os planos da história e o plano do
discurso. Pode-se dizer que o problema da mimese marca uma primeira discussão no campo
teatral da escrita clariceana.
Na técnica narrativa da autora, o tempo confere o caráter de fluxo e refluxo, que
permeia as sensações, sintomas e impressões de suas personagens; por ser difuso e confuso, o
tempo confere um caráter fragmentado e descentrado no discurso de suas figuras dramáticas,
ocasionado o que se denomina de teatralidade, entendendo conforme salienta Pavis118.
Segundo esse autor, há uma interação entre os elementos Espaço, Tempo e Ação numa
encenação, assim, o espaço/tempo dramático, envolve o trinômio espaço/tempo/ação,
constituindo o corpo da encenação, e, ao redor dele, transitam os demais elementos da
representação. Esse trinômio citado por Pavis expõe que o espaço destinado à cenografia
integra-se no desenrolar do tempo da representação, sofrendo a ação dos atores.119
Partindo da ideia de que Lispector insere suas personagens no diálogo do mundo
contemporâneo, podemos dizer que a autora inova na sua composição. Conforme postula
Lima (1983, p. 184), a “Situação predileta aos contos de Lispector será a tensão entre o
esforço de manter-se no equilíbrio de uma neutra e opaca existência e o surgir de um evento
transformador”. Esse evento é visto por meio da teatralidade das figuras dramáticas, como em
“Amor”, em que, ao ver um cego mascando chicle com um ar de riso, Ana reflete sobre o seu
eu e o eu de um sujeito cego/literal e ela cega de si mesma. Por isso, a leitura, ou melhor, as

118
Em seu dicionário de teatro, Pavis define teatralidade como “aquilo que, na representação ou no texto
dramático, é especificamente teatral (ou cênico)”. O autor ainda afirma ainda que “o conceito tem algo de mítico,
768

de excessivamente genérico, até mesmo de idealista e etnocentrista.” (PAVIS, 2003, p. 372).


119
Tal espaço-tempo é tanto concreto (espaço teatral e tempo da representação) como abstrato (lugar funcional e
temporalidade imaginária). A ação que resulta desse par é ora física, ora imaginária. O espaço-tempo-ação é,
Página

pois, percebido hic et nunc como um mundo concreto e em uma “outra cena” como um mundo possível
imaginário (PAVIS, 2003, p. 139).

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cenas em obras de Clarice requerem do sujeito leitor, um refletir sobre a existência. Esse
exercício é praxe nas suas figuras dramáticas.
Percebe-se que a escrita lispectoriana é um mistério, isso é evidente na sua fala: “O
bom de escrever é não sei o que vou escrever na próxima linha. Eu queria saber sobre o que
pretendem de mim, dos meus livros. Eu não escrevo para posteridade” (LISPECTOR, 1981,
p. 75). É justamente através das suas escrituras que a autora procura refletir sobre o sentido da
vida, e questioná-lo, não se limitando, como em alguns escritores, a apresentar fatos da
realidade exterior de seus personagens; suas figuras dramáticas são vivas, pois encenam,
teatralizam.
Em Perto do coração Selvagem (1944), o motivo que despertou a atenção da crítica,
tomando como base a psicologia das personagens no entendimento dos seus dramas, é porque
a escritora vai além da maneira despojada de narrar, ela consegue até dialogar com o leitor.
Essa obra apresenta uma grande força poética, permitindo perceber que a narrativa
lispectoriana não seguia o modelo das temáticas das obras escritas na década de 1930, que
eram marcadas em sua maioria por um caráter ligado ao documentário da época.
Diante disso, parafraseando Candido (1970), Perto do Coração Selvagem é vista como
uma obra defeituosa, mas que esse defeito é perdoável por ser uma narrativa estreante, e
mesmo assim, serviu de base para abertura de novos caminhos a expressão verbal. 120Suas
obras geralmente apresentam um ser humano comum, como uma dona de casa, por exemplo,
envolta com seus afazeres domésticos e o cuidar dos filhos, a qual, por um instante epifânico,
descentra-se e busca o seu verdadeiro eu, apresentando características de um teatro moderno.
Em certas narrativas da autora, podemos perceber que a tensão conflitiva aparece de
súbito, ocasionando a ruptura das personagens com o social. E esse momento conflitivo
“raramente se resolve através de um ato” (NUNES, 1989, p. 84). Assim, a crise ocorre do
início ao fim, apresentando-se tanto como um devaneio, um mal-entendido, quanto como
diferenças entre pessoas, cuja crise acarreta o estranhamento diante das pessoas do mundo.
Em suas obras, um simples fato do dia a dia faz com que as suas personagens reflitam e
despertem para sua demência, de maneira a procurar localizar-se no mundo.
769

120
No dizer de Antonio Candido (1970), Lispector aceita a provocação das coisas a sua sensibilidade, e procura
criar um mundo partindo de seus próprios sentimentos e emoções, da sua própria capacidade de interpretação, da
sua nova forma de compor, além de marcar o espírito sobre a resistência das coisas; a escritora explora, pois,
Página

temáticas do cotidiano, representando facetas da vida humana de uma maneira estética, que acaba por provocar
inquietações aos críticos que seguem padrões canônicos.

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Assim sendo, as personagens de Lispector geralmente se veem duplicadas, assim
como o sujeito moderno que indaga sobre a sua identidade, trazendo com isso um drama
existencial sobre o quem sou eu, uma vez que se vê diante de vários eus.
As personagens lispectorianas são construídas a partir de traços que representam
atitudes filosófico-existenciais. Além disso, possuem consistência em relação a esses valores
e, por isso, são personagens muito parecidas, criando situações típicas que enfrentam ou
teatralizam em cada narrativa. A título de exemplo, cita-se: Ana (do conto “Amor” – Laços de
Família) é muito semelhante a G.H. (A Paixão Segundo G.H.) e Catarina (Laços de Família).
Todas vivem situações conflitivas, teatralizam a todo tempo, sempre em busca de uma
revelação, procurando conhecer-se, através do outro. A referida ainda diz que pode citar
alguns bichos como: cavalo, galinha, barata, aranha, búfalo, gato, cachorro, dentre outros, que
Lispector denomina de o “coração selvagem”, quando coexistem um bem que pode ser
representado como a liberdade natural, isso numa dialética com o mal, ou melhor, com o
antissocial.
Na visão de Gotlib (1994, p. 409), “Clarice também compõe alguns de seus contos
pela sucessão de várias histórias. Cada uma, embora autônoma, é de fato, uma nova
reestruturação, se considerada na sua relação com outras”. Dito de outro modo, o conto da
escritora apresenta, de um lado, a ruptura do conhecido através do inquietante, e, de outro, as
personagens suspendem temporariamente a sua existência aparentemente banal, sendo
obrigadas a retornar à vida cotidiana, mas de uma forma sutilmente diferente, conhecem uma
outra realidade, para, em seguida, decidirem qual escolher.
Assim, se observa que as obras lispectorianas funcionam como abertura para um novo
pensar crítico, propondo ao leitor ir além do narrado, ao teatralizado, pois a essência de suas
escrituras está também nas entrelinhas. Ou seja, na sua linguagem exterior, a teatralidade se
apresenta, visto que “não é apenas a espessura de signos e sensações de que fala Barthes, essa
espécie de percepção ecumênica de artifícios sensuais, gestos, tons, distâncias, substâncias,
luzes que submergem o texto sob a plenitude de sua linguagem exterior” (FERNANDES,
2010, p. 120), é representativo da teatralidade.
O espaço literário e teatral que a ficção de Lispector procura construir implica numa
aventura, que em relação ao conhecimento desencadeia uma contínua (des) aprendizagem. E
770

essa (des) aprendizagem só poderá ocorrer destereotipando o conhecimento, por meio do


corpo a corpo com a realidade, ou melhor, por meio do seu texto. Esse corpo a corpo é
Página

representado pela teatralidade em que vive suas figuras dramáticas.

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O crítico Lins (1963) declara que o estilo lispectoriano é repleto de estranheza,
comparando-a a Joyce e a Woolf, por sua virtualidade estilística e inacabamento da obra. Diz
ainda que, no texto de Lispector, “surge a surpresa das coisas que são realmente novas e
originais” (LINS, 1963, p. 138). Em suas narrativas, as personagens quase sempre se
encontram numa situação cotidiana; há a preparação de um evento, o qual é notado
discretamente, daí a sua originalidade; é esse incidente que vai direcionar as personagens para
uma nova realidade; e o desfecho apresenta a situação das personagens após tal incidente.
A noção de teatralidade surgiu ao mesmo tempo em que, a noção de literalidade.
Entretanto, a sua propagação na literatura aconteceu aproximadamente há dez anos. Isso
significa que para conceituar teatralidade temos que recorrer à teoria do teatro. Para Barthes
(2007), a teatralidade é aquilo que permite refletir o teatro não sem o texto, mas recorrendo a
esse, a partir de sua realização ou sua realização cênica.
Vale destacar que, o conceito de teatralidade apresentado por Pavis não é algo novo,
por se verificar em seu dicionário de teatro que a teatralidade é entendida como sendo o que,
na representação ou no texto dramático, é particularmente classificado como teatral (ou
cênico). Segundo ele, “o significado tem algo de mítico, de excessivamente genérico, até
mesmo de idealista e etnocentrista” (PAVIS, 2008, p. 22-23). Percebe-se que, a teatralidade
para esse autor, é vista como um termo polissêmico, refutando definições unívocas, daí a
pluralização de teatralidade, compreendendo ainda que a performatividade depende da leitura
do espectador para se constituir.
E nas narrativas de Lispector podemos citar como exemplar na representação da
teatralidade: o conto Viagem a Petrópolis, que faz parte do livro A Legião Estrangeira, é
representativo da teatralidade por demonstrar a ação da personagem que ultrapassa o texto. O
conto Viagem a Petrópolis revela, nos dois primeiros parágrafos, uma série de informações
que caracterizam Mocinha, a protagonista da história, embora para muitos a narrativa
apresente um certo esvaziamento no enredo, como se a narradora não tivesse muito o que
dizer; ou ainda, é como se a história afastasse do desenvolvimento de uma ação, procedimento
comum a um texto narrativo. Um pouco sobre Mocinha: Era uma velha sequinha que, doce e
obstinada, não parecia compreender que estava só no mundo. Os olhos lacrimejavam sempre,
as mãos repousavam sobre o vestido preto e opaco, velho documento de sua vida.
771

(LISPECTOR, 1999, p. 57).


Com base no exposto, observa-se que há algo de extraordinário na escrita de
Página

Lispector. Está implícita nas ações costumeiras de suas figuras dramáticas a teatralidade, pois

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parte de uma experiência apreendida pelo olhar de si mesmo e recriada pela linguagem. Ações
banais transformam-se em uma revelação – epifania – capaz de incitar no leitor o desejo de
saber sobre a própria existência, sendo esta concebida enquanto experiência paradoxal, em
meio a uma temporalidade múltipla de ações, distante da lógica da razão se aproximando dos
sentidos, e das sensações.

Considerações Finais

Verifica-se, nas narrativas lispectorianas, a concentração de significações que muitas


vezes parecem diluir-se na vida simples e cotidiana na qual se inserem os seus personagens,
como, por exemplo, uma dona de casa envolvida em seus afazeres domésticos, no conto
“Amor”, da coletânea Laços de Família (1998), uma criança sentada na escada à espera de
alguém que compartilhe a sua infância, no caso exemplar “Tentação”, de A Legião
Estrangeira (1998). A história de uma velhinha que vive de favores em uma casa de classe
média alta, “O Grande Passeio,” de Felicidade Clandestina (1998), em que vive uma
teatralidade para conseguir encontrar a sua identidade. Todos esses textos são repletos de
teatralidade, pois esta consiste, ao mesmo tempo, em criar um signo e denunciá-lo,
contribuindo, dessa forma, como meio de desalienar a representação. Fernandes (2010, p.
120) evidencia que “[...] a teatralidade não é apenas a espessura de signos e sensações de que
falava Barthes”. Isso porque, este apresenta a teatralidade como “percepção ecumênica de
artifícios sensuais, gestos, tons, distâncias, substâncias, luzes, que submergem o texto sob a
plenitude de sua linguagem exterior”.
Assim sendo, o que se vê é que a teatralidade vem se revelando através da cena que,
por sua vez, possibilita a presença na literatura nos mais diversos modos de o teatro fazer-se e
apresentar-se teatral. Assim, vê-se em Ferál que a teatralidade nasce do olhar do observador,
desse emolduramento por um olhar encantado. Daí, a teatralidade estar presente em narrativas
literárias, especificamente nas de Lispector, pois a sua literatura possibilita ser compreendida
de modo a refletir sobre aspectos reais a partir do ficcional. Por tudo isso, considera-se
importante discutir-se sobre a performatividade, por estar bem próxima da teatralidade, bem
como por se verificar que as personagens lispectorianas apresentam uma performance ativa no
772

seu teatro.
Logo, podemos enfatizar que, neste trabalho, nosso olhar voltou-se para as questões
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teóricas mais gerais ligadas a teatralidade, e sua confluência com a literatura, e traços

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determinantes da obra de Clarice Lispector, sobretudo, os aspectos característicos de sua
contística relacionada ao problema da identidade de suas personagens. Ao se examinar a
composição de algumas narrativas de Lispector, percebe-se a variedade de temas, a condição
feminina, as falsas aparências dos laços familiares, os limites entre o “eu” e o “outro”, a
dificuldade do relacionamento humano, bem como do relacionamento amoroso, a busca do si
mesma, fato que acontece na maior parte das vezes em um ambiente familiar. Desta feita, suas
figuras dramáticas buscam num permanente processo reflexivo, compreender suas identidades
e seu estar no mundo teatralizando, e esse teatro caracteriza-se como sendo contemporâneo.

Referências

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Fontes, 2007.

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Lisboa: Portugália Editora

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BRECHT, Bertolt. Estudos sobre teatro [textos coletados por Siegfried Unseld]. Tradução
de Fiama Pais Brandão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.

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Cidades, 1970.

FERNANDES, Sílvia . Teatralidades contemporâneas. São Paulo: Perspectiva, 2010.

GOTLIB, N. B. Os difíceis Laços de Família. In: Cadernos de Pesquisa, São Paulo n. 91,
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LISPECTOR, Clarice. A mulher que matou os peixes. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

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_____. Quase de verdade. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.


773

_____. A hora da estrela. Rio de janeiro: Rocco, 1998.

_____.A legião estrangeira. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.


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ISBN: 978-85-7621-221-8
_____. Felicidade Clandestina: contos . – Rio de Janeiro: Rocco,1998.

_____. Felicidade clandestina: contos. – rio de Janeiro, 1ª ed, 1998.

_____. A Paixão segundo G.H. Rio de Janeiro: ROCCO, 1998.

LIMA, B. G. O percurso das personagens de Clarice Lispector. Rio de Janeiro: Garamond,


1983/2009.

LINS, Álvaro. A experiência incompleta: Clarice Lispector. In: Os mortos de sobrecasaca:


ensaios e estudos (1940-1960). Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 1963.

NUNES, Benedito . O Drama da linguagem: uma leitura de Clarice Lispector. São Paulo:
Ática, 1989.

PAVIS, Patrice. A Análise dos Espetáculos. Trad. Sérgio Sálvia Coellho. São Paulo:
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SARRAZAC, Jean-Pierre. O futuro do drama: escritas dramáticas contemporâneas.


Tradução de Alexandre Moreira da Silva. Porto: Campo das Letras, 2002.

_____. Léxico do Drama moderno e contemporâneo. (org) Catherine Naugrette...[et al ].


São Paulo: Cosac Naify, 2012.

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ISBN: 978-85-7621-221-8
GT6 – LINGUAGEM LITERÁRIA CONTEMPORÂNEA: O NARRADOR E O EU
LÍRICO

DOIS LADOS DO ATLÂNTICO: A CIDADE EM POEMAS DE


FERREIRA GULLAR E MANUEL DE FREITAS

Alexandre Alves (UERN)

Introdução: breves apontamentos da relação entre poesia e cidade

Sob a herança da crítica literária, a presença da cidade no nascimento da poesia


moderna contada por teóricos como Hugo Friedrich (1978), a partir do francês Charles
Baudelaire (1821-1867) e a Paris bem presente em As flores do mal, obra de 1857, emerge
bem mais do que uma simples fisionomia do habitar no Ocidente, aqui especificamente
tratando dos dois lados do Atlântico, cada qual com suas especificidades no Brasil e em
Portugal.
O espaço da cidade se torna um item a se acentuar na Literatura – tanto na poesia
quanto na prosa ocidental – e com o tempo dilatado entre o século passado e o novo milênio,
a urbe compõe um lugar de tensões e distensões percebidas pelos poetas do século XX
adiante, chegando ao novo milênio. Para historiadores como Eric Hobsbawn (1995), o cenário
do século anterior ao XX acabaria por modificar radicalmente a vida do indivíduo, tanto
ocidental quanto oriental. O autor lembrava a previsão de Karl Marx no Manifesto Comunista:
“[...] Quando o campo se esvazia, as cidades se enchem. O mundo da segunda metade do
século XX tornou-se urbanizado como jamais fora” (HOBSBAWN, 1995, p. 284-288).
Se, para Hobsbawn, a situação de oposição entre campo e cidade iria apontar um foco
civilizatório mais intenso acerca do ambiente citadino, outros teóricos contemporâneos com
obras abrangentes acerca das consequências da bipolaridade entre campo e cidade também
problematizam a situação, como assim faz Marshall Berman (1989), que enxerga as múltiplas
visões sobre a cidade a partir da análise da obra do já citado Baudelaire, do russo Dostoievski
(que envolve São Petersburgo) e do próprio Berman, vivendo em Nova York em uma época
(meados do século XX adiante) de grandes transformações urbanas. Já situando a produção da
literatura britânica, Raymond Williams empreendeu uma obra ícone intitulada O campo e a
775

cidade, de 1973, cuja trajetória foca desde a Idade Média até o século XX, período no qual o
autor expõe a importância demasiada da cidade para os escritores da Grã-Bretanha:
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Esse caráter social da cidade – no que tem de transitório, inesperado, na
procissão de homens e eventos, e no isolamento essencial e inebriante – era
visto como a realidade de toda existência humana. [...] A experiência urbana
se generalizava tanto [...] que qualquer outra forma de vida parecia irreal;
todas as fontes de percepção pareciam começar e terminar na cidade [...]
(WILLIAMS, 1989, p. 316).

Embora Williams conceda tal percepção histórico-temporal, ao final de sua obra ele
verifica que, por trás das múltiplas possibilidades de entendimentos sobre os ambientes
campesinos e urbanos, a sociedade e a Literatura teriam sido as primeiras a experimentar “[...]
mais a fundo, uma mudança que depois se tornaria universal. [...] mas, acima de tudo, para
enfatizar uma experiência e as maneiras de transformá-las, nos muitos campos e cidades que
vivemos” (WILLIAMS, 1989, p. 409). Ou seja, seria a mudança do modo de vida humano do
campo para a cidade que estaria sendo cada vez mais discutida, visto e, consequentemente, a
arte não deixaria tal percepção de fora.
No que tange respeito à poesia, os ares urbanos fazem parte do seu ideário como se
fossem uma representação na qual o eu lírico do poeta se entrelaça a ela, mas não sem expor
as tensões existentes no espaço que acaba por cercar o ser humano de maneira tanto individual
quanto social. Em Portugal, o nome de Cesário Verde (1855-1886) se instala como um dos
mais claros sinais de que o poeta cada vez mais ousaria tratar do ambiente urbano de modo
como nunca percebido anteriormente. Poemas claramente citadinos como “Num bairro
moderno” e “O sentimento dum ocidental” acabam ecoando também em um dos heterônimos
de Fernando Pessoa (1888-1935), o futurista Álvaro de Campos. Em composições como “A
praça da Figueira de manhã” e “Ode triunfal”, exemplos da “euforia da modernidade” e de
uma “comunhão perfeita com a sociedade industrial” (TUTIKIAN, 2009, p. 53), existe o
apreço do eu lírico pessoano pelos ares citadinos, fontes de concentração lírica – mesmo que
tensa, como também convém à lírica moderna – em Portugal na passagem dos séculos XIX e
XX e não arrefecendo nos nomes poéticos do século XXI, como notado mais adiante.
Já na lírica brasileira, fica difícil marcar uma obra que tenha lançado um olhar com
mais afinco sobre a cidade de maneira conceitual antes do Modernismo. Entretanto, não custa
lembrar que um dos pioneiros tenha sido o poeta barroco Gregório de Matos (1633-1669?),
talvez o primeiro brasileiro a tratar a cidade como centro das atenções – ou, pelo menos,
776

chamar a atenção de forma acintosa – em alguns de seus textos poéticos, a exemplo de


“Descreve o que era realmente naquele tempo a Cidade da Bahia de mais enredada por menos
Página

confusa”: “Estupendas usuras nos mercados, / Todos, os que não furtam, muito pobres, / E eis

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aqui a cidade da Bahia” (MATOS, 1992, p. 33). Era o olhar do transeunte eu lírico do poeta,
já consagrando um dos males brasileiros de efeito agora já secular, a corrupção (não por acaso
ligada à cidade e às ações produzidas pelos humanos que habitam nela).
Todavia, é no século XX que o Modernismo brasileiro irá tomar a órbita urbana como
temário de seus autores, incluindo aí seus poetas, influenciados pelo “Manifesto futurista”, do
italiano Marinetti (1876-1944), que tratava das “marés multicoloridas e polifônicas das
revoluções nas capitais modernas” (MARINETTI apud TELLES, 1987, p. 92). Em obras
renomadas como Pauliceia desvairada (1922), de Mário de Andrade, ou O cão sem plumas
(1950), de João Cabral de Melo Neto, a cidade se ergue como personagem poético, fato
também lembrado por aqueles que escreveram a Poesia Marginal entre as décadas de 1970 e
1980 (não por acaso influenciada pelo Modernismo de 1922), como Nicolas Behr, jovem
poeta instalado na capital federal, tendo nela sua obsessão maior em dezenas de obras, entre
as mimeografadas e os livros. Para Behr, a urbe artificial – como todas, aliás – de Brasília
seria tratada como símbolo do concreto e do binômio multidão-isolamento (fato previsto
ainda no século XIX por Baudelaire em textos como “O pintor da vida moderna”) em um
espaço simultaneamente aberto e fechado: “dentro de um bloco / entre outros blocos / numa
cidade” (BEHR, 1980, p. 30).
Eis a cidade, enfim, trazendo seus desígnios – positivos e negativos – para a poesia em
língua portuguesa do século XX até se estender à centúria seguinte de forma tão evidente que
os versos transmitem um semblante que não pode ser deixado em segundo plano em nenhum
dos dois lados do Atlântico.

1 Ferreira Gullar: dentro da cidade algoz

Autor de uma estreia renegada pelo próprio poeta – o livro Um pouco acima do chão
(1949) nunca entrou nas frequentes edições da sua poesia completa, ou seja, o título de uma
compilação neste grau não diz jus a si mesmo –, os versos do maranhense Ferreira Gullar
(1930-2016) passaram da influência da Geração de 45 para a Poesia Concreta, do
Neoconcretismo para a visão social presente na série Violão de Rua publicada no começo da
década de 1960, e só depois se concentrou em formas líricas cujo exemplo mais renomado é
777

Poema sujo, de 1976, obra tida como uma espécie de “épico modernizado em plena ditadura
brasileira” (ALVES, 2017, p. 04), constando nos seus quase dois mil versos um eu lírico que
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reinstala a infância e adolescência passadas na cidade de São Luís, na “bem lograda tentativa

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de tecer os fios que unem o retrato do indivíduo ao retrato social [...] inseparáveis da cidade
em que se inscrevem” (VILLAÇA, 1998, p. 101-102).
Observando tanto a obra anterior ao Poema sujo – os trinta e um poemas de Dentro da
noite veloz, de 1975 – quanto a posterior, Na vertigem do dia (1980), o ideário urbano
igualmente se faz presente, mas pouco percebido e estudado na fortuna crítica do autor, mais
voltada aos temas de teor abrangente na obra de Gullar, como a morte e a passagem do tempo,
motes milenares de intenção poética. Entretanto, no desígnio poético, a vida na urbe emerge
como tema incessante na lírica do maranhense, pois no cenário citadino se vive tanto o
esplendor – aparente ou não – e toda a sorte de infortúnios, quase todos inerentes à ação do
homem sobre sua própria criação de ruas, habitações e personagens.
Entre vários exemplares poéticos da urbe como tema no decorrer da obra Dentro da
noite veloz – entre eles, “Uma fotografia aérea”, “Ao nível do fogo”, “Pela rua” e “Homem
comum” – existe um que exibe uma jornada pela urbe que captura realidades distintas no
olhar do eu lírico diante da paisagem e pessoas à sua frente. Eis o poema “Voltas para casa”
(GULLAR, 1975, p. 36-37):

Depois de um dia inteiro de trabalho


voltas para casa, cansado.
Já é noite em teu bairro e as mocinhas
de calças compridas desceram para a porta
após o jantar.
Os namorados vão ao cinema.
As empregadas surgem das entradas de serviço.
Caminhas na calçada escura.
Consumiste o dia numa sala fechada,
lidando com papéis e números.
Telefonaste, escreveste,
irritações e simpatias surgiram e desapareceram
no fluir dessas horas. E caminhas,
agora, vazio,
como se nada acontecera.

De fato, nada te acontece, exceto


talvez o estranho que te pisa o pé no elevador
e se desculpa.
Desde quando
tua vida parou? Falas dos desastres,
dos crimes, dos adultérios,
778

mas são leitura de jornal. Fremes


ao pensar em certo filme que vista: a vida,
a vida é bela!
Página

A vida bela
mas não a tua. Não a de Pedro,

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de Antônio, de Jorge, de Júlio,
de Lúcia, de Miriam, de Luísa…

Às vezes pensas com nostalgia


nos anos de guerra,
o horizonte de pólvora,
o cabrito. Mas a guerra
agora é outra. Caminhas.

Tua casa está ali. A janela


acesa no terceiro andar. As crianças
ainda não dormiram.
Terá o mundo de ser para eles
este logro? Não será
teu dever mudá-lo?

Apertas o botão da cigarra.


Amanhã ainda não será outro dia.

Fica perceptível no decorrer do poema o olhar transeunte do eu lírico de Gullar, tendo


como intróito a saída do horário de trabalho do cidadão comum (Depois de um dia inteiro de
trabalho / voltas para casa, cansado.), observando cenas e personagens humanos igualmente
pertencentes ao movimento urbano, havendo assim “[...] uma espécie de integração natural,
como se o “eu” fosse alguém entre coisas, uma pessoa entre tantas – ainda o homem comum,
que exerce o seu direito de estar no mundo” (LAFETÁ, 2004, p. 205). Se a figuração humana
é constante – as mocinhas, os namorados, as empregadas –, não é surpresa perceber que todas
fazem parte da anônimas cenas da vida citadina, mas vista sob o aspecto sombrio individual
do último verso da estrofe de abertura (Caminhas na calçada escura).
Envolvendo a situação do caminhar, o eu lírico retoma uma centralização sobre suas
próprias ações em uma rápida rememoração do dia em ações tão rotineiras quanto efêmeras
(Consumiste o dia numa sala fechada, / lidando com papéis e números. / Telefonaste,
escreveste, / irritações e simpatias surgiram e desapareceram no fluir dessas horas. E
caminhas,), fatos que logo elevam o discurso à sensação de inutilidade, de constatação de que
as atividades no trabalho aparentemente não possuem qualquer função após relembradas
(agora, vazio, / como se nada acontecera.).
Essa mesma sensação persegue o eu lírico na estrofe seguinte, cuja rotina nauseante só
é quebrada a partir de uma autorreflexão, por sinal, ligada a mais fatores oriundos do
779

cotidiano, como as conversas e as manchetes dos meios de comunicação (Desde quando / tua
vida parou? Falas dos desastres, / dos crimes, dos adultérios, / mas são leitura de jornal.). Os
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versos funcionam como um ato de consciência do eu lírico sobre a vida ao redor, mantido na

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distinção entre ficção – no caso, o cinema – e realidade, cuja beleza reside na frase comum
atribuída à existência humana (ao pensar em certo filme que viste: a vida, / a vida é bela!).
Porém, comparando com as vidas de outras pessoas de nomes igualmente comuns, a
existência do eu lírico se expõe tão inerte quanto os demais citados, como se todos eles
representassem a real vida na urbe (A vida bela / mas não a tua. / Não a de Pedro, / de
Antônio, de Jorge, de Júlio, / de Lúcia, de Míriam, de Luísa...). As pessoas configuram
também um cruzamento dos habitantes da cidade, todos cercando a visão do eu lírico, fazendo
com que ele, após a fadiga gerada pelo trabalho diário, permanece um ser anônimo perante
qualquer um dos habitantes do lugar:

Quanto maior a cidade, maior o número de cruzamentos que nelas se dão:


uma metrópole testemunha cruzamentos de pessoas que moram perto dela,
que moram longe dela e que moram nela, conhecidas e estranhas, residentes
e passageiras [...] (CICERO, 2000, p. 16).

Justamente nessa paisagem urbana, tão conturbada pelos fatos sociais quanto pelos
destinos de cada um, o eu lírico volta a recompor um passado recente – uma provável alusão à
Segunda Guerra Mundial (às vezes pensas / com nostalgia / os anos de guerra, o horizonte de
pólvora,) –, mas sinalizando uma outra introspecção com novos nuances metafóricos: “[...]
Mas a guerra / agora é outra. Caminhas.”. Tomada como uma improvável síntese desde o
início do poema, o vocábulo “guerra” pode ser também uma referência à pesada rotina de
trabalho incessante, dia após dia, sem qualquer resultado prático para a vida descrita e narrada
pelo eu lírico de Gullar.
As duas últimas estrofes guardam um misto de serenidade – no sentido de percepção –
e desolamento, pois o habitar na cidade gerado pelas ações de trabalhar, caminhar e retornar
ao lar deixa no eu lírico uma impressão de estagnação e inércia que entram em contraste com
a visão exposta sobre a cidade: “Tua casa está ali. A janela / acesa no terceiro andar. As
crianças / ainda não dormiram”. Os habitantes citadinos – agora incluindo a figuração da
família – são criaturas com um destino tão comum e imperceptível para elas, mas não para o
eu lírico, espantado diante da própria sina que as pessoas da urbe estão imersas, como se fosse
um entorpecimento, mas no qual “[...] ritmos e imagens dão voz a compulsões
780

entranhadamente líricas, detonadas pela memória, [...] pela comoção de um instante”


(VILLAÇA, 1998, p. 99).
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É justamente no momento de desnudamento da vida urbana que os versos declaram
uma outra visão sobre a realidade, tomada agora sobre dupla indagação: “Terá o mundo de ser
para eles / este logro? Não será teu dever mudá-lo?”. Na hora em que o cansaço dos dias faria
mais efeito, o eu lírico segue no sentido inverso, percebendo a herança que, provavelmente,
deixará para os filhos, a manutenção de todo um cenário no qual o humano se torna apenas
figurante de seu já traçado destino. A dúvida seria a única força possível em uma volta para
casa como qualquer outra noite – tão veloz quanto o título da obra –, mas cujo algoz é
indefinido.
Talvez seja o modo de vida citadino, o monótono trabalho diário, a vida retraída nas
breves ações que a ocupação não deixa sequer escapar – aqui reside uma subjetiva leitura de
crítica – às poucas saídas (se é que elas existiriam) ao entrave causado pela vida na urbe. No
caminhar pelas vias, o eu lírico posta sua última cartada (Apertas o botão da cigarra. /
Amanhã ainda não será outro dia.) na qual a percepção anterior acerca da prisão aos atos
rotineiros se torna fugidia, um derradeiro ato de consciência de que a mudança pode ser
possível, mas sob uma gradação sem fim previsto, uma espécie de desencontro da vida com
ela mesmo, tendo como cenário a cidade.
O poema relata a ocupação com o trabalho como ponto de partida poético e segue para
o retrato da inércia humana, o caminhar pela urbe como instante de percepção e a chegada em
casa como momento de estupefação, da impossibilidade instantânea de uma outra vida,
viável, mas corrompida por um modus vivendi cuja única ação é sobreviver para o próximo
dia. Contrariando a opinião de Lafetá (2004, p. 122), com ele afirmando que os textos de
Dentro da noite veloz “[...] tematizam momentos de esperança ou desencanto, [...] mas
sempre guardando a perspectiva do futuro”, a leitura possível do poema “Voltas para casa” é a
de que o grau de alienação humano na cidade é tão acentuado que, ao manifestar as tensões
entre o dia vivido e o tempo presente, a impressão do eu lírico é a de um destino algoz,
inconcluso e opressor na vida da urbe.

2 Manuel de Freitas: a urbe em cotas do cotidiano

Considerar pontos de vista acerca da poesia portuguesa do século XXI é adentrar em


781

movediça área em plena ebulição após a entrada do novo milênio. Mesmo não sendo em
número vigoroso e cujas obras ainda se encontram em andamento, já se pode perceber uma
Página

nova linhagem de poetas e obras no cenário contemporâneo lusitano. Segundo a percepção de

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estudiosos como Ida Alves (2009) e Luis Maffei (2014), encontra-se um epicentro na
coletânea Poetas sem qualidades, organizada por Manuel de Freitas (que assina apenas o
provocativo prefácio da obra, “O tempo dos puetas”) em 2002. A obra logo se esgotou e não
mais foi reeditada, mas ainda assim instaurou, no mínimo, uma discussão sobre os rumos –
novos e tradicionais – da poesia portuguesa para o século XXI devido ao tom provocativo
instalado a partir da sua publicação.
Ao lado de outros poetas desconhecidos ao leitor brasileiro – Joaquim Manuel
Magalhães, Carlos Alberto Machado, Rui Pires Cabral e outros seis nomes, todos presentes
em Poetas sem qualidades –, o nome de Manuel de Freitas, nascido em 1974, revela uma
constância de publicações que o fazem emergir como um dos mais atuantes (mais de vinte
obras de poesia, atuando ainda na Editora Averno e na redação da revista Telhados de vidro),
além de exercer seu exercício crítico-ensaístico em publicações sobre autores como Herberto
Helder e Al Berto. Voltando-se ao âmbito da produção poética de Freitas, de acordo com a
assertiva de Ida Alves (2009, p. 216), seus versos compõem uma “Poética que se afirma longe
de qualquer retórica elevada ou de qualquer espécie de sagração da arte poética, [...]
fortemente crítica de si própria e da vida, meditação em tom menor da condição humana
ordinária”. Um de seus temários mais presentes perpassa o cenário e personagens urbanos,
apontando sintomas diante das tensões da “relação desconcertante entre homem e espaço-
tempo citadino [...] com o signo da negatividade, da falta, de ‘ocupações provisórias’, que a
cidade tem se materializado na poesia contemporânea, especialmente no Brasil e em Portugal”
(ALVES; ANCHIETA, 2015, p. 07).
Ao lado de diversos exemplares em que a urbe integra o centro do poema – como
assim ocorre em vários textos da poesia de Freitas –, na obra [Sic], publicada em 2002, surge
uma composição aberta à leitura sobre os atos transitórios existentes na cidade. Em
consonância com tais aspectos citadinos presentes na lírica de Manuel de Freitas está o
perambulante “Ode à noite (inteira)” (FREITAS, 2014, p. 89-90):

Gosto do momento, exacto ou nem por isso,


em que se torna possível colar cartazes
nas paredes ao lado dos meus ombros (espero
o autocarro, vejo devagar, sorrio). Mas
782

gosto, sobretudo, dos cães quase sem dono


que roçam as esquinas, pisando restos de garrafas
– ou das pessoas que desconheço
Página

e das bebidas todas que ignoro


(porque me matam menos e se chamam

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– como eu – insónia, pesadelo, golpe baixo).

Existem, claro, raparigas louras um tanto


heterodoxas que não te apetece beijar
(a força do baton, perfeita – o cigarro aceso
pedindo outro lume). Essas mesmas que hão de
um dia procriar com zelo, evitando rugas,
tumores e o mundo como representação misógina.
Mais lírica, sem dúvida, é a lavagem das ruas,
com a cerveja a premiar a farda
demasiado verde e os bigodes de serviço.

Outros, alguns, tornam concreto o torpor


de um charro e pedem-te em crioulo básico
um cigarro português que tu vais dar,
sem esforço nem palavras. Entre shots, piercings,
t-shirts de Guevara e gel, podes não acreditar
por algumas horas no axioma frágil do teu corpo.
Esfumas-te, como eles, no espelho de um bar
qualquer, país de enganos e baratas. E
quase gostas disso, quase: a música de punhais,
servil, um certo e procurado desencontro.
Um táxi te ensinará depois o caminho de casa
– ou o seu contrário, pois só ali (anónimo
e desfocado) eras finalmente tu, ou podias ser.

O resto, a vida, fica para outra vez.

Sob título disfarçadamente clássico – ode é um tipo de poema destinado ao canto e


que, com o passar do tempo, “[...] resguardou sempre a sua atmosfera grave, solene, próxima
do drama e da poesia épica” (MOISÉS, 2004, p. 329) –, o texto se torna mesmo uma série de
fotografias urbanas na perspectiva de um eu lírico que transita pelas ruas em meio à noite e
seus personagens, todos anônimos na movimentada urbe. De um claro prazer na
perambulação noturna (Gosto do momento, exacto ou nem por isso), a carga de atenção se
volta para atos tão efêmeros quanto insignificantes ao olhar comum para a cidade: a ação de
colagem de cartazes nas paredes, a espera pelo ônibus – o autocarro –, a presença dos cães
vadios, tudo configura o transitório para o eu lírico.
Em seguida, ele passa sua visão sobre o prazer do desconhecido (as bebidas, as
pessoas anônimas), certamente menos amargurado que o pensamento interno acerca da
insônia ou do pesadelo. A estrofe seguinte serve como uma quebra das primeiras imagens –
783

mas não a contínua procura pelo detalhe fragmentário – e o delineamento da figura feminina
fica entre o desejo presente nos símbolos do consumo (o baton, o cigarro) e a imaginação
Página

futura em flashes ultrarrápidos. São instantes nos quais o eu lírico interpõe uma ligação entre

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a personagem feminina rendida a um mundo de aversão a elas – patriarcal por tradição – caso
não mantenham sua imagem a todo custo (Essas mesmas que hão de / um dia procriar com
zelo, evitando rugas, / tumores e o mundo como representação misógina.). Aqui está claro o
uso de um dos referenciais da poesia de Freitas, perpassando a ideia da finitude humana “[...]
e a certeza de perda e desvalia de tudo frente ao mundo que nos rodeia, tão marcado no
presente pelo excesso [...] de informações, de imagens, de artificial vitalidade” (ALVES,
2009, p. 216-217).
A estrofe termina em nova imagem fragmentária, alternando a urbe e o homem
enquanto representações fugidias do efeito dele sobre ela e vice-versa (Mais lírica, sem
dúvida, é a lavagem das ruas, / com a cerveja a premiar a farda / demasiado verde e os
bigodes de serviço.), resultado de uma noite transformada no poema em uma inquieta
perambulação urbana. Esta ainda permanece nas imagens da penúltima estrofe, na qual a
gíria, objetos e ações relacionados à juventude – incluindo o consumo de entorpecentes
ilícitos, talvez uma ironia frente à lícita bebida – adquirem um espaço antes não percebido
(Outros, alguns, tornam concreto o torpor / de um charro e pedem-te em crioulo básico / um
cigarro português que tu vais dar / sem esforço nem palavras. Entre shots, piercings, / t-shirts
de Guevara e gel, podes não acreditar / por algumas horas no axioma frágil de teu corpo.).
Nos indícios desta poesia fragmentária, proposta num cruzamento entre descrição e narração
sob um intermitente lirismo talvez nascido com os versos de Baudelaire, o ângulo do eu lírico
de Freitas é bastante lúcido:

[...] de alternar picos imagéticos e retóricos nos poemas com pequenas


descrições e narrativas prosaicas [...], um trabalho de linguagem que dá
forma a uma concepção de poesia que procura [...] a emersão do poético,
mesmo enquanto resto – o qual [...] recusa-se a ser completamente absorvido
por uma lógica reificadora (PENNA, 2013, p. 61).

O espaço em que tudo ocorre agora se torna explícito sob ambiência enfumaçada
(Esfumas-te, como eles, no espelho de um bar / qualquer, país de enganos e baratas.). E
novamente o eu lírico retoma a situação de prazer exposto no começo do texto, só que desta
vez sob o signo da desarmonia, da divergência dentro de si mesmo após as cenas sensitivas na
noite (quase gostas disso, quase: a música de punhais, / servil, um certo e procurado
784

desencontro.). A condução ao destino final – tão familiar quanto carregado de contrariedades


– se inclina dúvida sobre o mundo citadino seria seu verdadeiro lar: “O táxi te ensinará depois
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o caminho de casa / – ou o seu contrário, pois só ali (anónimo / e desfocado) eras finalmente
tu, ou podias ser”.
O verso de fechamento se transpõe como a única realidade percebida depois da
perambulação noctâmbula, como se houvesse uma experiência e a descoberta de que havia
uma duplicidade no mundo à frente, indo da probabilidade da expressão “podias ser” – que
integra o penúltimo verso – para a certeza fincada no tempo presente (O resto, a vida, fica
para outra vez.). Emerge-se uma tensão na experiência urbana, trafegando entre as sensações
visuais, auditivas, olfativas e tácteis, seguindo do espaço macroscópico – a cidade e seus
tentáculos – para a nauseante sentença lírica de que a vida citadina, configurada no ambiente
noturno e banalizada por aqueles que a vivenciam (incluindo-se o anônimo eu lírico em seu
disfarce urbano), passa pelo entorpecimento, pela alienação e pela percepção da dualidade da
vida na urbe.
Seria o ser humano e uma estranha consciência de si mesmo, da vida enquanto fato
transitório que passa do desejo à constatação da noite como centro nervoso de ação, repulsa e
bifurcação simbólica: a fuga para a cidade como saída, como dado ilusório de que a vida
diurna não basta e de que a noite também não. A ode de Freitas nada menos é do que a
constatação de que a sequência de ações do eu lírico pela urbe denotam o tom grave deixado
no desfecho do poema, cujo vocábulo “vida” se encontra lado a lado com a palavra “resto”,
não se sabendo solenemente onde começa uma e onde se termina a outra, ou se ambas são um
único obscuro corpo lírico, como a noite inteira.

Considerações finais

Agrupar semelhanças entre dois poetas de países e épocas diferentes – ainda que
próximas – talvez ajude o leitor a entender o temário citadino funcionando já como uma
tradição na poesia do século XX até chegar ao XXI. A estupefação do eu lírico em
compreender a fragmentária vida noturna no decorrer de “Ode à noite inteira”, de Manuel de
Freitas, ou de se indagar sobre a efemeridade dos fatos no poema “Voltas para casa”, de
Ferreira Gullar, expõe tensões percebidas na escrita poética de ambos. Tudo isto
aparentemente funciona em uma ideia mais ampla sobre o mundo moderno, e aqui transposto
785

para o aspecto da cidade, como aquele no qual a realidade praticamente “[...] dilacerada pela
experiência da fantasia jaz na poesia como um campo em ruínas. [...] se aparecem em material
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obscuro, passíveis de múltiplas interpretações, podem ser eficazes; se o são, então a poesia
tem valor” (FRIEDRICH, 1978, p. 211-212).
Em suma: as visões de Ferreira Gullar e Manuel de Freitas marcam a poesia recente
através de uma tensão simultânea na qual o eu lírico percebe a fragilidade de se perceber
como parte da urbe e sincronicamente afastado dela, um tipo de consciência tardia, mas ainda
assim válida como percepção do cotidiano tão fragmentário presente na efêmera vida citadina.
Como se a realidade fosse outra, não por acaso justamente aquilo que a lírica é acusada, vez
por outra, de ser. Eis a urbe, eis a poesia extraída dela.

Referências

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ALVES, Ida; ANCHIETA, Marleide (orgs.). Grafias da cidade na poesia contemporânea


(Brasil-Portugal). Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2015.

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2009. p. 205-221.

BEHR, Nicholas. Restos mortais. Brasília: Senado Federal, 1980.

BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido se desmancha no ar. Tradução de Ana Maria
Ioratti/Carlos Felipe Moisés. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

CICERO, Antonio. Poesia e paisagens urbanas. In: PEDROSA, Célia (org.). Mais poesia
hoje. Rio de Janeiro: 7Letras, 2000.

FREITAS, Manuel de. Ciranda da poesia: Manuel de Freitas por Luis Maffei. Rio de
Janeiro: EDUERJ, 2014.

FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna. Tradução de Marise M. Curioni/Dora F.


da Silva. São Paulo: Duas Cidades, 1978.

GULLAR, Ferreira. Dentro da noite veloz. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975.

HOBSBAWN, Eric. Era dos extremos: o breve século XX, 1914-1991. Tradução de Marcos
Santarrita. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

LAFETÁ, João Luiz. A dimensão da noite. São Paulo: Duas Cidades/Ed. 34, 2004.
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MATOS, Gregório de. Obra poética volume I. 3. ed. Rio de Janeiro: Record, 1992.
Página

MARINETTI, Filipo Tomaso. Manifesto Futurista. In: TELES, Gilberto Mendonça (org.).
Vanguarda europeia e Modernismo Brasileiro. São Paulo: Cultrix, 1987.

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MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. 12. ed. São Paulo: Cultrix, 2004.

PENNA, Ana Beatriz Affonso. As não-qualidades de Manuel de Freitas: uma leitura de


“Carpe diem”. Em Tese, n. 2, v. 19, ago.-out. 2013, Belo Horizonte. p. 56-70.

TUTIKIAN, Jane. Álvaro de Campos, o homem da modernidade. In: PESSOA, Fernando.


Poemas de Álvaro de Campos. Porto Alegre: L&PM, 2009.

VILLAÇA, Alcides. Gullar: a luz e seus avessos. Cadernos de Literatura Brasileira, n. 06,
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WILLIAMS, Raymond. O campo e a cidade. Tradução de Paulo Henriques Britto. São


Paulo: Companhia das Letras, 1989.

787
Página

ISBN: 978-85-7621-221-8
GT6 – LINGUAGEM LITERÁRIA CONTEMPORÂNEA: O NARRADOR E O EU
LÍRICO

ESPERAS TRÁGICAS, SILÊNCIOS OPACOS: DUAS CRÔNICAS DE MILTON


HATOUM

Joana Tamires Silveira Bezerra (UERN)

1 Crônica e contemporaneidade, ficção e realidade

Life is very short and there’s no time


For fussing and fighting, my friend

“We can work it out”, The Beatles

Tratar da crônica enquanto parte do gênero narrativo é adentrar em um âmbito em


plena evolução dentro da Literatura. Se ela nasceu ligada à ideia de seu significado
relacionado ao vocábulo grego khronos – por sua vez, simbolizando o próprio tempo –, com o
transcurso natural da história humana (em especial, dos séculos XIX e XX), percebe-se que a
atual crônica já tem elementos bem distintos dos apontados em suas origens ocidentais. Para
Massaud Moisés (2004, p. 110), o termo crônica foi utilizado “[...] no início da era cristã, [e]
designava uma lista ou relação de acontecimentos, arrumados conforme a sequência linear do
tempo. [...] Em tal acepção, a crônica atingiu o auge na Idade Média, após o século XII”. De
todo modo, após tal período, a crônica vem passando por transformações ao longo de séculos
de sua representação no Brasil.
Para críticos como Jorge de Sá (2005), durante as primeiras manifestações literárias
brasileiras – exemplo disto seria “A carta de Pero Vaz de Caminha a El-Rei D. Manuel”, de
1501 –, seu aporte estaria destinado ao relato cuja “[...] observação direta é o ponto de partida
para que o narrador possa registrar os fatos de tal maneira que os mais efêmeros ganhem uma
certa concretude” (SÁ, 2005, p. 06). Se antes a crônica passava por este olhar
“circunstancial”, de acordo com outra expressão usada por Sá, esta visão vem se mantendo
como um de seus referenciais até chegar ao século XXI, dividindo seu espaço entre o
Jornalismo e a Literatura, esta cada vez mais associada com ele desde o século XIX, ainda
segundo Moisés (2004).
788

Se no Brasil surgiram cronistas de renome em diferentes épocas e movimentos – como


Machado de Assis no Realismo, João do Rio e Lima Barreto no Pré-Modernismo, e no
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Modernismo com Carlos Drummond de Andrade, Clarice Lispector e Rubem Braga – cuja

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publicação era mantida em colunas diárias ou semanais em periódicos, a crônica foi se
tornando popular entre autores e leitores brasileiros, havendo o que alguns clamam como
sendo “o mais brasileiro dos gêneros” (CASTELLO, 2013). Pode existir um grau de exagero
em opiniões como esta, pois a crônica possui correspondentes em outras línguas, como o
inglês, que possui formatos muitos similares aos da crônica, caso do light essay ou town
gossip ou outros cognatos (MOISÉS, 2004).
Em sua curteza, cada vez mais assomada aos ares da atualidade, a crônica se tornou
parente próxima do conto, tipologia já bastante diversificada por si só (conto de fadas, conto
fantástico, conto policial, entre outros), cada uma com perspectivas próprias. Como expressão
dentro da narrativa curta, invoca-se o conto como centrado em uma base diferencial, que é a
condensação – ou contração, como relata Nádia B. Gotlib (2006) – e uma focalização no
personagem. Já os cronistas se debatem sobre uma brevidade que adquire, em significativa
parcela dos casos observados na crônica brasileira, um modo mais aberto de expressão,
segundo Jorge de Sá (2005, p. 09):

[...] o cronista age de maneira mais solta, dando a impressão de que pretende
ficar na superfície de seus próprios comentários, sem ter sequer a
preocupação de colocar-se na pele de um narrador, que é, principalmente,
personagem ficcional [...]. [e] tudo que ele [o cronista] diz parece ter
acontecido de fato, como se nós, leitores, estivéssemos diante de uma
reportagem.

Naquilo que expôs Jorge de Sá sobre a crônica, aqueles que as escrevem são autores
cuja visão de mundo agrupa ficção com realidade, deixando a leitura de seu texto se tornar,
então, mais subjetivo, mais aberto, mais literário. Afinal de contas, o exercício da leitura
literária, de um modo geral, como assinala Compagnon (2009, p. 72), “[...] continua o lugar
por excelência do aprendizado de si e do outro”. Isto é, a crônica ainda guarda sua relação
com o tempo advinda de sua etimologia, e neste trabalho, escolhemos um cronista da
contemporaneidade. Com isso, pretendemos elaborar uma visão focada na obra Um solitário à
espreita (2013), do amazonense Milton Hatoum, nome representativo no quadro da literatura
contemporânea, já renomado por seus romances. Escolhemos duas crônicas para constituir o
corpus de análise, que são “Dança da espera” e “História de dois encontros”. Atualiza-se,
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assim, o quadro da Literatura contemporânea com base na análise através da pesquisa


empírica e, por outro lado, dar-se-á margem a um autor consagrado, inclusive ganhador do
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renomado “Prêmio Jabuti” na categoria de melhor romance (Cinzas do norte) em 2005,
embora pouco visado em suas produções no âmbito da narrativa curta.

2 Milton Hatoum: entre narrativa e lirismo

Após o advento do Modernismo no Brasil a partir de 1922, autores brasileiros vêm


marcando a crônica como um texto essencial ao cotidiano da Literatura nacional. Entre os
nomes mais destacados no cenário da segunda metade do século XX estão, entre vários
outros, Fernando Sabino, Carlos Heitor Cony, Luís Fernando Veríssimo e Moacy Scliar. Entre
um dos nomes da prosa brasileira contemporânea – mais lembrado pela sua produção em
prosa de narrativa longa – está o amazonense Milton Hatoum, autor de vários romances entre
os anos de 1989 e começo dos anos 2000 (Relato de um certo oriente, Dois irmãos, Cinzas do
norte, Órfãos do Eldorado) e de uma coletânea de contos, A cidade ilhada (2009). Dono de
uma narrativa considerada como “território constituído por uma malha cultural variada”
(SCRAMIN, 2000, p. 10), sua narrativa de ficção curta se encontra pouco analisada – ao
contrário dos romances, já com vários artigos, ensaios e teses – e também está presente a
compilação de crônicas Um solitário à espreita (2013)121.
Deste modo, procuramos aqui evidenciar a crônica dentro das perspectivas literárias
contemporâneas, destacando as habilidades do cronista em retratar o cotidiano, captar o
imaginário coletivo através da memória, da confissão e dos personagens imaginados ou reais.
Sendo assim, nossa escolha se focou nas crônicas “Dança da espera” e “História de dois
encontros”. Nelas, a linguagem da narrativa de Hatoum se concentra, em boa parte, na
memória e possui um caráter duplo: o vazio que deixa lacunas irreparáveis e o silêncio que se
erige e preenche essas lacunas. Leyla Perrone-Moisés (1990, p.105), tratando da criação do
texto literário, diz que a “linguagem não pode substituir o mundo, nem ao menos representá-
lo fielmente. Pode apenas evocá-lo, aludir a ele através de um pacto que implica a perda do
real concreto”. Ou seja, para a autora, a literatura ordena e valoriza o real, recriando o mundo
assim como o sujeito falante que o habita. A recriação do mundo em Milton Hatoum e nas
crônicas de Um solitário à espreita (2013) é literária e simbolicamente representada pela
790

121
Este livro de quase cem crônicas é dividido em quatro partes que tratam de temas como memória e afetos de
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forma melancólica e, por vezes, pessimista. Tais textos foram publicados ao longo das décadas de 1990 e nos
decênios iniciais dos anos 2000 em jornais e revistas.

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memória, melancolia e lirismo. Suas crônicas parece nos fazer indagar sobre como a
linguagem poderá dar conta de todas as memórias e (des)memórias da vida cotidiana.
Comprovando isto, segue um depoimento do próprio Milton Hatoum ao site da
revista Cult, questionado sobre a relação entre memória, realidade e ficção na obra dele: “Essa
ambiguidade entre o real e o ficcional está sempre presente na literatura. Como diz um amigo
meu, o Lourival Holanda, ‘você sempre paga um dízimo ao real’. Não o real moeda, mas o
real de realidade. O que importa é essa ambiguidade” (HATOUM, 2013) 122. Milton Hatoum
se enquadra naquilo que José Castello (2013, p.305) chamou de “agente duplo [da linguagem]
que trabalha, ao mesmo tempo, para os dois lados [ficção e realidade] e nunca se pode dizer,
com segurança, de que lado ele está”. Para Castello, o cronista está, na verdade, em uma
posição “limítrofe”, ocupando, não raras as vezes, a posição de nômade, pois sempre transita
entre dois mundos, sem pertencer a nenhum deles.
Quando questionado sobre o motivo de o cronista não ter surgido antes, de ter se
autointitulado “cronista tardio”, responde nessa mesma ocasião o autor de Um solitário à
espreita:

Porque eu privilegiei aquilo que eu queria fazer, que era escrever romances.
[...] Até que recebi um convite da revista EntreLivros. Antes eu não havia
sido convidado para escrever crônica na imprensa. Crônicas esparsas sim,
mas não periódicas. Nesses dois anos [2005-7, período de duração da
revista] fui um cronista regular. Eu privilegiei [no livro em questão] as mais
literárias, que têm relação com a memória, com a ficção. Crônicas
inventadas (HATOUM, 2013).

A citação acima nos mostra que autor adota uma postura cuidadosa ao escrever suas
narrativas, destacando que algumas de suas obras foram revisadas e reescritas diversas vezes
ao longo de vários anos o que mostra um rigor analítico do autor e sua obra, como o mesmo
respondeu ainda nesta mesma oportunidade ao site da revista Cult, “[...] passei meses
reescrevendo as crônicas... deu um trabalho do cão... Essa compulsão flaubertiana me dá
prazer. Escrever é, de algum modo, reescrever (HATOUM, 2013)”.Ou seja, para o autor, a
escrita é uma atividade árdua que exige empenho e dedicação por parte do escritor e ele
mesmo se compara ao renomado escritor francês, Gustave Flaubert, que escrevia e reescrevia
791
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Assim como as duas citações posteriores, esta citação de Milton Hatoum foi retirada de uma entrevista
exclusiva realizada por Mariana Marinho e publicada no site da revista Cult na data de 01/07/2013.

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suas obras de maneira perfeccionista. Isso mostra o nível de perfeição que Hatoum cobra de si
mesmo o que transparece nos longos espaços de tempo entre suas publicações.

3 “Dança da espera”: melancolia e silêncio

Publicada originalmente em 14 de agosto de 2008 no periódico O Estado de São


Paulo, a crônica “Dança da espera” relata a história de uma vizinha misteriosa por nome de
Sálvia Belamar, vítima de uma tragédia amorosa. Na época do acontecido, o cronista afirma
ser apenas um garoto que brincava com os amigos na Avenida Joaquim Nabuco, em Manaus,
e que vivia a espreitar a vida dos que passavam e moravam ao redor. Um fato que lhe
chamava a atenção e a de seus amigos era a tal vizinha misteriosa, sempre solitária, reclusa e
melancólica. Era como se a mesma guardasse um segredo antigo, uma imagem silenciada.
Ninguém sabia nada sobre ela, a não ser o fato de que se chamava Sálvia Belamar. Sua vida
“era um livro misterioso sobre o palco escancarado da província” (HATOUM, 2013. p. 21). O
narrador dessa crônica se mostra como testemunha do ocorrido e assim Norman Friedman
(2002, p. 174-175) descreve tal tipologia de narrador literário:

O narrador-testemunha é um próprio personagem em seu próprio direito


dentro da estória, mais ou menos envolvido na ação, mais ou menos
familiarizado com os personagens [...] A consequência desse espectro
narrativo é que a testemunha não tem acesso senão ordinário aos estados
mentais dos outros; logo, sua característica distintiva é que
o autor renuncia inteiramente à sua onisciência em relação a todos os outros
personagens envolvidos, e escolhe deixar sua testemunha contar ao leitor
somente aquilo que ele, como observador, poderia descobrir de maneira
legítima. À sua disposição o leitor possui apenas os pensamentos,
sentimentos e percepções do narrador-testemunha; e, portanto, vê a história
daquele ponto que poderíamos chamar de periferia nômade.

O próprio título do livro em análise nos dá uma pista sobre qual o tipo de narrador das
crônicas publicadas: é alguém que a tudo espreita, uma espécie de voyeur literário. Esse tipo
de narrador não chega a transmitir os pensamentos e as memórias dos outros personagens,
mas através de suas captações do cotidiano é que o leitor consegue desvendar e desmistificar
aquilo que, aparentemente, está oculto nas entrelinhas. Graças às impressões do narrador de
792

“Dança da espera”, conseguimos saber que a tal vizinha misteriosa recebia um amante aos
sábados. O espreitador decide nos contar tudo, inclusive o arquetípico desse amante e o
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horário de suas visitas à personagem da narrativa: “Um homem com uniforme de aviador

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comandante ou copiloto ou engenheiro de bordo entrava às oito da noite no bangalô”
(HATOUM, 2013, p. 21).
Os acontecimentos que se seguem são transmitidos ao leitor através das espionagens
do narrador e de seus dois amigos. Os três aproveitavam os encontros do casal de amantes
para observarem a vida amorosa da vizinha e, assim, guardar memórias pueris. A cena mais
memorialística do casal era a da dança: ambos costumeiramente dançavam ao som de uma
música que o nosso relator não conseguia ouvir; para ele, era como uma cena de filme que
sempre terminava com um blecaute, pois as luzes se apagavam após a dança e os garotos não
conseguiam mais acompanhar os passos dos amantes.
Por se tratar de uma crônica que trata das temáticas do amor, o narrador usa o recorte
da cena da dança para destacar o tom lírico da narrativa, apesar de já se mostrar uma história
trágica: “com seu toque de lirismo reflexivo, o cronista capta esse instante brevíssimo que
também faz parte da condição humana [...] Somente nesse sentido crítico é que nos interessa o
lado circunstancial da vida. E da literatura também” (SÁ, 2005, p.11). O cronista é
responsável por trazer leveza e lirismo aos acontecimentos mais trágicos, isso fica claro
quando o próprio narrador de “Dança da espera”, anunciando os acontecimentos que se
seguiam, insinuando que poderia haver na história narrada algo que não a transformasse num
acontecimento totalmente triste: “vamos aos capítulos, que são breves, e não totalmente
tristes” (HATOUM, 2013, p. 21, grifo nosso). A dança seria o brilho da história, o que a
tornava não inteiramente trágica.
À bordo do avião Constellation, numa viagem do Rio para Manaus, Sálvia perdeu o
seu parceiro de dança triunfal. De acordo com Rosenfeld (2009), na ficção, o mais importante
é que o leitor não contempla os destinos e conflitos dos personagens à distância, pois, graças à
seleção de esquemas do narrador, da construção do texto, o leitor contempla e vive as mesmas
possibilidades dos personagens da ficção, o mundo imaginário das camadas literárias torna o
relato verossímil. E como espreitadores da cena fictícia, mas que se aproxima literariamente
da realidade, observamos Sálvia arrumar a mesa para o jantar e esperar um aviador que já não
existia. O choro pela ausência deste é como a música inaudível que ambos usavam para
dançar.
A cena melancólica foi repetida por mais um sábado: “Enquanto comia, olhava para
793

o fantasma do aviador, conversava com ele, servia-lhe comida. Depois ela dançou sozinha,
abraçada ao quepe” (HATOUM, 2013, p. 23), cena esta que comprova o apego a um fato já
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consumado, a morte do aviador, mas ainda assim não assimilado a partir das atitudes da

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personagem. De acordo com a assertiva de Jaime Ginzburg (2012, p. 12), de uma maneira
geral, o ser melancólico tende a se comportar da seguinte maneira: “O comportamento
melancólico é caracterizado por um mal-estar com relação à realidade [...] o sujeito não se
conforma com a perda. Embora objetivamente possa ter sido informado do que ocorreu, não
aceita a situação”. O ser melancólico associa sua perda à incerteza quanto às possibilidades da
vida que lhe possam fazer sentido, por vezes se torna um ser autodestrutivo ou masoquista
que fica rememorando lembranças dolorosas. Assim, agia Sálvia ao esperar inutilmente um
ser que não mais existia, o silêncio da espera era o mais doloroso. Não se sabe quanto tempo
durou.
Entretanto, como essa história não é “totalmente triste”, após anos, Sálvia se casa com
o tio do narrador: “viveram juntos trinta e um anos e sete meses. Morreram na mesma
semana, primeiro ela, dois dias depois, meu tio” (HATOUM, 2013, p. 23). Qual a causa da
morte do tio? É uma coincidência que nos leva a acreditar que a tragédia não se encerra com a
morte do aviador, ela perdura até o fim dos acontecimentos da crônica narrada. O ser
melancólico que não se conforma com a perda, que não suporta viver sem o objeto de seu
amor entrega-se ao mais doloroso silêncio da espera: a dança da morte, como assim parece
encarnar a personagem Sálvia Belamar, que mesmo sendo uma criação literária figura como
retrato do ser humano e sua representação enquanto ser limitado pela vida, esta seguindo
pelas encruzilhadas do tempo.

4 “História de dois encontros”: racismo, resignação e tempo duplo

Já a crônica “História de dois encontros”, publicada originalmente no periódico O


Estado de S. Paulo em 29 de maio de 2005, retrata o silêncio dos marginalizados, destacando
uma época, não tão distante de nós, que ainda expunha o preconceito racial. A história é
dividida em dois encontros: o primeiro é o do silêncio, da resignação perante a
marginalização da sociedade, o segundo encontro é o da realização, a vitória pela educação,
pela conscientização dos direitos sociais. Samira Nahid de Mesquita (2006) afirma que o
conflito do texto narrativo tanto pode recair sobre o indivíduo em si, como pode ser posto no
contexto social dentro do qual os personagens se situam. O cronista pode fazer relações entre
794

o trabalho e o capital, entre a classe dominante e a dominada constituindo-se, assim, uma


narrativa de figurativa reflexão social.
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Para o narrador, na década de 1960, em Manaus, os jovens da elite costumavam
frequentar um clube grã-fino da cidade intitulado por “mingau dançante”, o narrador sem
nome afirma frequentar o local porque era músico e era integrante de uma banda que se
apresentava no clube. Ele possuía um antigo colega de escola, do famoso Ginásio Pedro II e o
convidou para assistir à apresentação no clube elitista. Não esperava o que estava por
acontecer. Um homem, possivelmente o diretor do clube, barra seu amigo que era negro com
a aviltante afirmação: “preto não entra aqui” (HATOUM, 2013, p. 39). O prosseguir dos fatos
nos mostra uma atitude resignada por parte do insultado, o mesmo aceitou a humilhação,
conformado, se afastou do clube e “desceu a avenida, calado” (HATOUM, 2013, p. 39, grifo
nosso).
O silêncio é destacado não como uma atitude deliberada do personagem, mas como
uma impossibilidade. Em seu Tratado Lógico-Filosófico, Ludwig Wittgenstein, discorre sobre
a relação entre linguagem e silêncio, afirmando que “sobre aquilo de que não se pode falar,
deve-se calar” (WITTGENSTEIN, 2001, p. 281) e, assim, essa tônica do silêncio transforma-
se em uma intransitividade opaca na qual se mostra a narrativa como uma interrupção da
linguagem do indivíduo em detrimento de sua posição inferiorizada perante o ser que o
insulta. Vale ressaltar que George Steiner (1988) também aponta que a “crise da palavra” ou
do silêncio se dá em decorrência das pressões exercidas sobre a linguagem pelas mentiras
totalitárias e pela inversão dos valores sociais. Para o autor, a característica dominante
daquele que impõe ou determina o silêncio do outro é a superioridade, que é vista, na crônica
em análise, na posição do dono do clube grã-fino.
Na segunda parte temporal-memorialística dessa crônica, percebemos que a memória
do passado irá se integrar à confecção do próximo encontro: após anos sem ver o amigo, o
narrador nos conta que o encontrou por acaso na Praça da Saudade, quando estava se
dirigindo ao tribunal. Era um advogado: “Quase não o reconheci: parecia um atleta, nem de
perto aparentava um cinquentão. Usava paletó e gravata; reparei também nas abotoaduras
pretas, nos sapatos de cromo, no guarda-chuva cinza” (HATOUM, 2013, p. 40). Entretanto,
ainda guardava a velha memória triste: “depois paramos num bar da praça da Saúde, onde ele
se lembrou daquele episódio, ‘na época em que tu tinhas pretensões musicais e eu era um
negrinho, filho de uma lavadeira com um estivador” (HATOUM, 2013, p. 40).
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A determinação rememorativa que impulsiona a trama não significa que a narrativa


será plena em sua reconstituição do passado; antes, será vazada pelas fendas que
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invariavelmente participam da memória, o passado vivido e perdido se confundirá com o

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presente. De acordo com Ginzburg (2012, p.74) “na medida em que o sujeito não tem
percepção de sua própria situação de dominado, em razão do controle ideológico, ele não
corresponde ao perfil de sujeito pleno”. Ou seja, mesmo que o sujeito se torne um ser
realizado profissionalmente, mas continue escravo das ideologias que lhe são impostas a
respeito de sua posição social, jamais poderá dominar plenamente a si mesmo ou a natureza.
Ainda segundo Ginzburg (2012), os tempos recentes são caracterizados por uma
presença forte de vários tipos de violência, seja social, física, psicológica. O personagem da
crônica narrada, indubitavelmente, se enquadra no âmbito da violência social, foi vítima de
uma sociedade ainda amalgamada pela ideia colonialista dos brancos dominando os negros. A
realização pessoal e a persistência do personagem foi o fator determinante da história dessa
crônica: “Devo minha carreira à escola pública” (HATOUM, 2013, p. 40). Há na leitura dessa
afirmação um sutil desmerecimento à meritocracia e uma referência às oportunidades
concedidas através das políticas públicas do país, espécie de exaltação aos que, mesmo
perante as dificuldades sociais, conseguiram alcançar uma melhor posição social diante dos
obstáculos.
Em meio a esses acontecimentos, um novo encontro: em frente ao clube grã-fino, um
velho sentado na calçada, um cumprimento silencioso: “meu amigo parou e estendeu o cabo
do guarda-chuva para o velho, que o apertou como se fosse a mão de um homem [...]. “Toda
quinta-feira ele cumprimenta o meu guarda-chuva. A primeira vez que joguei uma nota de dez
reais no chão, ele se ofendeu e disse que não era mendigo [...]. É o cara que me barrou, não se
lembra de mim” (HATOUM, 2013, p. 40). Percebemos que a memória do passado vivido é
entrelaçado à memória do presente e essas memórias se amalgamam num atravessamento de
silêncios que se alternam, ora ocorre o silêncio do oprimido, ora ocorre o silêncio do opressor
que já não se encontra na posição de opressor, mas, considerando o seu estado atual, tornou-se
vítima de seus próprios infortúnios.
Sendo assim, os dois encontros narrados não se constituem nos encontros entre o
narrador e o amigo, mas entre este e o dono do clube e nas transformações acarretadas entre
um encontro e outro, na constituição do sujeito e no reconhecimento de sua posição social
independentemente de cor ou raça. Os dois encontros nos mostram que o mesmo sujeito pode
ser vítima da sociedade, mas também pode ser um agente transformador da mesma, que pode
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calar-se quando lhe for impossibilitada a voz, mas pode falar através da sua realização
enquanto sujeito pleno de suas possibilidades.
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Considerações finais

Levando em consideração o exposto, concluímos que a narrativa curta de Milton


Hatoum, mais especificamente as crônicas “Dança da espera” e “História de dois encontros”,
formam a tríade da crônica de Hatoum melancolia-silêncio-lirismo ao destacar aspectos
narrativos a respeito da condição do personagem na obra literária. Seja nas silenciosas danças
de espera, seja nos silenciosos encontros sociais, o que importa não é o que está dito, há
alegria nos mistérios bem mais do que nos desvendamentos, nos interditos, na memória e no
silêncio.
Percebemos, a partir das análises das crônicas citadas, que a ambiguidade entre a
ficção e a realidade não precisa ser resolvida, pois a própria ambiguidade constitui-se fator
determinante na trama narrativa, pois como afirmou Castello (2013, p. 305) “a novidade não
está nem no apego à verdade nem na escolha da imaginação: mas no fato de que o cronista
manipula as duas coisas ao mesmo tempo”, e, dessa forma, não precisa explicar ao leitor em
qual posição se encontra, visto que a própria característica da crônica contemporânea é esta:
sua radical liberdade.
Essa mesma liberdade foi vista nas crônicas analisadas neste trabalho, tendo em vista o
fato de o escritor captar artisticamente fatos ou memórias do cotidiano que podem ser
confundidos ora com a realidade, ora com a ficção. Assim, a conclusão dessa pesquisa amplia
as visões acadêmicas sobre a crônica de Milton Hatoum, que é pouco explorada em pesquisas
acadêmicas na atualidade, talvez devido a distância temporal da obra diante da crítica literária,
mas que se enquadra no âmbito das produções literárias contemporâneas da melhor estirpe.
Um solitário à espreita é o título do livro de crônicas de Milton Hatoum. Mas é
também o narrador, os narradores das histórias contadas. Esse solitário pode ser o próprio
autor ou o leitor diante da obra literária. Então, não há apenas um solitário à espreita, mas
muitos, múltiplos. E eles seguem pelos caminhos enviesados do dia-a-dia, captando as
imagens de nosso cotidiano turbulento.

Referências
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CASTELLO, José. Crônica, um gênero brasileiro. In: VIOLA, Alan Flávio (org). Crítica
literária contemporânea. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2013.
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Beatles Lyrics: the stories behind the music. Boston: Little, Brown and Company, 2014.

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PERRONE-MOISÉS, Leyla. Flores da escrivaninha. São Paulo: Companhia das Letras,


1990.

ROSENFELD, Anatol. Literatura e personagem. In: CANDIDO, Antonio et al. A


personagem de ficção. 11. ed. São Paulo: Perspectiva, 2009.

SÁ, Jorge de. A crônica. 6.ed. São Paulo: Ática, 2005.

SAMPAIO, Aíla. Milton Hatoum: personagens em trânsito. Diário do Nordeste, 04 abril


2009, p. 04. (Suplemento Caderno 3)

SCRAMIN, Susana. O território da identidade. Revista Cult, n. 33, São Paulo, julho 2000. p.
11.

STEINER, George. Linguagem e silêncio: ensaios sobre a crise da palavra. Trad. Gilda
Stuart e Felipe Rajabally. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

WITTGENSTEIN, Ludwig. Tratado Lógico-Filosófico. Trad. Luiz Henrique Lopes dos


Santos. São Paulo: Edusp, 2001.

“Milton Hatoum, um cronista à espreita”. Entrevista concedida à Revista Cult, 2013, nº 07.
Disponível em: <http://revistacult.uol.com.br/home/2013/07/milton-hatoum-um-cronista-a-
espreita/>. Acesso em 20/06/16.
798
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ISBN: 978-85-7621-221-8
GT6 – LINGUAGEM LITERÁRIA CONTEMPORÂNEA: O NARRADOR E O EU
LÍRICO

OPRESSÃO E AGRESSÃO NO CONTO “TERÇA-FEIRA GORDA” DE CAIO


FERNANDO ABREU

Ana Keila Tavares de Souza123(UERN)

Alguns aspectos do contexto social e literário de Caio Fernando Abreu e a presença da


homoafetidade na sua produção artístico-literária

Caio Fernando Abreu (1948-1996), contemporâneo já reconhecido pela crítica, cuja


produção de estreia data de 1966, contudo seu reconhecimento literária só veio a consolidar-
se nas décadas de 70 e 80, períodos marcados pela efervescência, no contexto brasileiro, da
ditadura militar; momento histórico tenso, no qual escritores e intelectuais da época sofreram
severas repressões, censuras e violências. É então, nesse clima conturbado, que Caio
Fernando Abreu retira o conteúdo da sua produção artística, como representação estética que
discorre sobre os problemas das experiências frustrados e as inquietações humanas.
Assim, toda produção de Caio Fernando Abreu, incorpora os movimentos culturais
originários daquele contexto sócio-histórico, cujo senso crítico-literário resultou na criação
de personagens que sugerem as angustias e as tensões humanas vividas pelo homem naquele
período. Dessa forma, suas narrativas materializam indivíduos sociais carregados de
subjetividade e conflitos sombrios, obstinados pela autoafirmação, seja através do sexo, da
droga ou até mesmo da morte. Nessa perspectiva, a criação artística de Abreu se caracteriza
por "narrativas elípticas que essencialmente sugerem, ao invés de dizerem" (CHAPLIN,
citado por PORTO, 2004, p. 63).
Os enredos de Abreu são compostos por um ingrediente de tom "pessimista" (Cf.
PORTO, 2005) que dão origem a personagens de trajetória conturbada, cujo desfecho é
sombrio, aspecto contrário às narrativas com culminância feliz. Os indivíduos criados pelo
literário são seres solitários, aparentemente, sem famílias e sem endereço fixo. As relações
interpessoais vividas por estes surgem em interações inusitadas e/ou encontros ocasionais por
meio de uma conversa ou uma simples troca de olhar, elementos esses aferidos na leitura dos
contos "Aqueles dois", "Terça-feira gorda" e "Sapatinho Vermelho". Nas palavras de Ana
799

Paula Teixeira Porto:


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123
Aluna regular do curso de Mestrado Acadêmico em Ciências da Linguagem do PPGL/UERN, turma 2017.1
anakeilatavares@hotmail.com

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À frustação, podemos associar outro traço recorrente das narrativas: a
solidão. Em todos os contos, os personagens são indivíduos solitários, não
têm famílias estruturadas, amigos, colegas ou vizinhos com os quais possam
estabelecer relações de carinho, amizade, afeto (2004, p. 64).

Nesse sentido, as narrativas de Abreu se caracterizam por relações não estáveis, em


que os indivíduos vivem na periferia de si mesmo, sem, todavia, perderem de vista a
autoafirmação, ao romper com os grilhões de uma sociedade preconceituosa e intolerante,
como se pôde apreender da leitura dos contos do autor, a exemplo podemos citar “Aqueles
Dois”, cujos personagens, mesmo num contexto repressor e "heteronormativo", lançam-se,
corajosamente, em uma relação que transgrede os códigos definidos pelos critérios da
"heteronormalidade". Assim, aqueles dois homens maduros, autoafirmam-se sexualmente em
meio a uma multidão que os renega.
As narrativas de Abreu, além da temática homoerótica, trazem outros arranjos
estruturais e apresentam uma linguagem inovadora, como muito bem argumenta a estudiosa
da composição abreuana, Luana Teixeira Porto:

Os contos do escritor caracteriza-se por uma densidade tanto na discussão de


temas complexos quanto na forma de elaboração estrutural e linguística, já
que as narrativas privilegiam uma organização que se desvia aos padrões
tradicionais de ficção (2005, p. 9).

A densidade e a complexidade da literatura de Abreu, a princípio, contrasta-se com a


fluidez da linguagem simples e bem próxima da informalidade, haja vista o contista se inserir
no cânone literária pós-moderno e/ou contemporâneo, cuja estética capta os ingredientes dos
acontecimentos da era, propriamente, pós-moderna.
A densidade e a complexidade da literatura de Abreu, a princípio, contrasta-se com a
fluidez da linguagem simples e bem próxima da informalidade, haja vista o contista se inserir
no cânone literária pós-moderno e/ou contemporâneo, cuja estética capta os ingredientes dos
acontecimentos da era, propriamente, pós-moderna.
Nessa perspectiva, dentre os inúmeros temas marginais discorridos na literatura de
Abreu, nesse trabalho, busca-se apreender a violência e a opressão contundentemente
expressa no conto “Terça-Feira Gorda”, a narrativa integra a obra Morangos Morgados
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(1982), porém os excertos apresentados nos recortes da análise pertencem a coletânea Os
melhores contos de Caio Fernando Abreu (2006)124.
No conto, o tema da homoafetividada é explicitamente discorrido no seu enredo. É
sabido que a chamada literatura clássica, também, já abordou esse aspecto, contudo não com
tanta liberdade como Abreu aborda, nessa narrativa. Nesse sentido, como abordagem
contemporânea, o tema possui relevância social para as questões de gêneros. Como matriz
metodológica utilizamos o aporte metodológico que fundamenta às pesquisas nesse campo de
estudo, cujo intuito é orientar atitudes que combatam a segregação e a violência contra o
relacionamento homoafetivo, sob esse raciocínio, aponta-se:

[...] cabe levantar a questão acerca da especificidade da situação gay.


Poderíamos resumi-la, provisoriamente, em três tópicos: a necessidade
absoluta de um combate sem trégua à homofobia, onde quer que esta se
manifeste; a importância de se manter um olhar crítico para a relação entre a
liberalização dos costumes e a lógica do capital125**; o imperativo de
vigilância acerca das implicações práticas das posturas teóricas assumidas
(BARCELLOS, 2002, p.16).

Dessa forma, toda a literatura de Abreu, conforme frisa Cardoso (2007), constitui-se
de um relevante papel que se enquadra aos movimentos libertários da época, dentre estes está
a busca por uma identidade de gênero; além do mais, os textos do literário inovam na forma e
no conteúdo, ao assumir uma postura de enfrentamento que reúne o artista e o sujeito social,
numa posição simbiótica que:

[...] no efervescente período, afirma-se que as escolhas da vida privada estão


diretamente relacionadas à postura política e vice-versa para que, em
conjunto, deem impulso às necessárias transformações no contexto
sociocultural. Daí a simpatia do escritor pelos movimentos contraculturais
como o Tropicalismo e o rock in roll, na música, por exemplo, ou ainda,
pelo contato afetivo com Hilda Hilst e Ana Cristina César, escritores que
também assumem as suas vivências cotidianas em acordo com as suas
expressões literárias (CARDOSO, 2007, p. 11).

No conjunto, a composição literária de Abreu reúne matrizes textuais com temas,


assumidamente, "marginais", voltados para produção literária de natureza transgressora, a
801

124
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125
**Conforme nota de roda pé do texto de Barcellos, "A lógica do dinheiro e do lucro que determina a
liberalização das chamadas ’perversões’ não é apenas um fato econômico: ela favorece a submissão da vida
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humana inteira ao capital". (MIELI, 1978:100s, grifo do original).

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qual rompe com os códigos estabelecidos cultural e socialmente. Daí, a criação de
personagens que se opõem à ordem social vigente e ousam desafiar os paradigmas da
"normatividade" ao incorporar vozes, antes ausentes na literatura. Essas vozes se apoderam do
domínio que possuem sobre suas emoções e aventura-se transgressoramente em situações que
a princípio "ferem" os padrões ditados pelos atores sociais da convencionalidade. Esse
aspecto é materializado na expressão dessa cena, no conto “Aqueles dois”:

Num deserto de almas também desertas, uma alma especial reconhece de


imediato a outra ― talvez por isso, quem sabe? Mas nenhum deles se
perguntou. Não chegaram a usar palavras como especial, diferente ou qualquer
outra assim. Apesar de, sem efusões, terem se reconhecido no primeiro
segundo do primeiro minuto (ABREU, 2006, p. 119).

No conto exemplificado Abreu discute literalmente a expressão de uma experiência


humana singular, mediante um desafio artístico que rompe com as convenções estéticas e
sociais. De fato, o trecho citado faz referência ao encontro dos dois rapazes, que se sentem
atraídos e demonstram essa atração naturalmente, embora no desenrolar da trama sofrem
assédio moral da instituição em que trabalhavam (foram coagidos e despedidos da mesma)
além de terem vivenciado uma violência simbólica apresentada no desfecho da narrativa.
Assim como nessa narrativa, “Terça-feira Gorda” apresenta esse mesmo arranjo narrativo,
contudo a violência no conto “Aqueles dois” é mais velada, já em Terça-feira Gorda” ela é,
assumidamente, desvelada.

“Terça-feira gorda”: uma análise

Como já se frisou, anteriormente, o propósito deste estudo é analisar a configuração da


opressão/agressão materializada no conto “Terça-feira gorda”. A leitura pretendida busca
identificar a representação dos sujeitos ficcionais, bem como a relação homoafetiva
protagonizada pelo seu enredo, cuja expressão de afeto/atração encontra terreno fértil na
identificação destemida dos dois rapazes que foram surpreendidos por atos de intolerância e
agressão.
No conto "Terça-feira gorda", o narrador através do feedback, narra em primeira
802

pessoa um acontecimento vivenciado no passado, mas recuperado no presente por lembranças


Página

muito vivas.

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Logo de início, o título nos remete para a compreensão de uma terça-feira não
comum, pelo fato da narrativa ter ocorrido no período marcado pela euforia carnavalesca,
assim, o adjetivo "gorda" faz alusão aos excessos e abundâncias vividas pelos atores sociais
nesse contexto, assumidamente, brasileiro.
O carnaval é uma festa pagã, de acordo com o calendário cristão, e se caracteriza
pela descentralização e o descortinamento dos segmentos, classes e categorias sociais. Nele o
sentimento reinante é a celebração da coletividade que se faz presente entre os povos, haja
vista, as atividades de rotinas são paradas e as pessoas vão às ruas para festeja o "momo" (Cf.
DaMatta, 1997). Nesse sentido, "gorda", no conto, assume a conotação de ultrapassar as
fronteiras estabelecidas e proporciona aos indivíduos a realização de fantasias, numa
aglutinação de excessos permeada pelo ritmo que se opõe a um dia normal. Por esse turno, o
que predomina nesta terça-feira incomum é um evento festivo marcado pela
imprevisibilidade, isto é, pelos acontecimentos que fogem ao controle das práxis sociais
pautadas na normatividade.
Outro aspecto que pode ser aferido com a adjetivação é por ser essa terça-feira o
último dia de carnaval que, imediatamente, antecede ao período quaresmal, momento de
renúncia e contenção de excessos, dado a aproximação da Paixão e Ressurreição de Cristo,
celebrado pelo ritual da Semana Santa. Daí a menção ao adjetivo, que caracteriza um
momento de culminância final aos desprendimentos às normas. Assim,

[...] cada momento festivo e extraordinário remete a um grupo ou categoria


social que tem seu lugar garantido, vale dizer, sua hora e vez no quadro da
vida social nacional. Teríamos então um ciclo de festividade que vão do
povo [...] passando pela igreja, numa forma organizatória típica de um
sistema muito preocupado com o "cada qual no seu lugar" e o "cada macaco
no seu galho" (DAMATTA, 1997, p. 53).

Ainda, acerca do título, há no conto uma dedicação ao provável companheiro de


vivência de Abreu, o dramaturgo, Luiz Carlos Góes, a quem, supostamente, tenha vivenciado
uma situação, talvez semelhante à narrada na estória. Ademais, a narrativa é construída
linearmente, com começo meio e fim. O início da trama é marcado pelo encontro dos dois
personagens no baile de carnaval, numa mistura musical de samba que serviu como trilha
803

sonora para o enlace dos rapazes. O desenvolvimento da trama se dá pela eufórica sensação
provocada pelo uso de bebidas alcóolicas, "[...]. começou a sambar bonito [...] a boca
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gosmenta de tanta cerveja morna, vodca com coca-cola, uísque nacional". (ABREU, 2006, p.
44).
No fluxo da narração, logo que os dois jovens rapazes cruzam olhares,
reciprocamente, ocorre a atração que se desenvolve e vem a consolidar a relação homoafetiva,
"me olhava nos olhos quase sorrindo, [...], pedindo confirmação". "Confirmei", (idem, 44). A
atração e, simultaneamente, a confirmação do desejo tomado pelo gingado dos corpos
sambando, é, metaforicamente, comparado às ondas do movimento do mar, "[...] descia feito
onda dos quadris pelas coxas, até os pés, ondulado" (idem, 44). Nessa atmosfera comparativa
às ondas do mar, infere-se que assim como a agitação marítima, aqueles corpos estavam
transbordando de desejo um pelo outro, o que de fato configura a relação homoafetiva,
explicitamente materializado no texto.
Num desenrolar gradativo de ações, a narrativa destaca com bastante ênfase a atração
dos dois corpos masculinos, cuja descrição dos fatos é, então, acompanhada de imagens
sensuais, na continuidade, há a confirmação da sintonia identificatória dos personagens, a
qual é observada e repudiada pelas vozes presentes. Nessa cena narrativa o cume da
identificação dos sujeitos é bem assinalado:

Todos estavam suados, mas eu não via mais ninguém além dele. Eu já o
tinha visto antes, não ali. [...]. Num desses lugares quem sabe. Aqui, ali. Mas
não lembraríamos antes de falar, talvez nem depois. Só que não havia
palavras. Havia o movimento, a dança, o suor, os corpos meu e dele se
aproximando mornos, sem querer mais nada além daquele chegar cada vez
mais perto. Na minha frente, ficamos nos olhando. Eu também dançava
agora, acompanhando o movimento dele. [...]. Ele encostou o peito suado no
meu. Tínhamos pelos, os dois. [...]. Ele estendeu a mão aberta, passou no
meu rosto, falou qualquer coisa. O quê, perguntei. Você é gostoso, ele disse.
E não parecia bicha nem nada: apenas um corpo que por acaso era de
homem gostando de outro corpo, o meu, que por acaso era de homem
também. Eu queria aquele corpo de homem [...]. Quero você, ele disse. Eu
disse quero você também. Mas quero já neste instante imediato, ele disse e
eu repeti quase ao mesmo tempo também, também eu quero. [...]. Passou a
mão pela minha barriga. Passei a mão pela barriga dele. Apertou, apertamos.
[...]. Ai-ai, alguém falou em falsete, olha as loucas, e foi embora. Em volta,
olhavam (ABREU, 2006, p. 44-45).

A passagem apresentada marca o construto da relação homo, na narrativa; nota-se,


804

uma excitação contundente, não havendo necessidade de diálogo entre os sujeitos, houve
apenas comunicação corporal mostrada pela curva da autoafirmação afetiva-sexual, e
Página

encenada pela linguagem do desejo. Há ainda, no excerto, a oposição ao estereótipo

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"afemininado". Ali existia corpos masculinos que se desejam mutuamente, sem, contudo,
fisicamente, um ou outro parecerem "femininos". Há na voz do narrador um reconhecimento
que se opõe ao discurso que concebe o sujeito homo, segundo uma categoria e/ou identidade
que o identifique, por via de regra, com feições afeminadas, características essa ausente na
caracterização dos personagens da estória.
A ausência de diálogo dá vazão ao manifesto desejo dos personagens, que se
expressam e se autoafirmam através da linguagem dos seus corpos. O marco da relação
começa com a recíproca troca de olhar. A aproximação dos corpos é marcada pelos
movimentos acrobáticos do ritmo carnavalesco, melodia que dá aos rapazes uma sensação de
liberdade que, repentinamente, é ceceada pela repressão, inicialmente verbal. O "ai-ia, olha as
loucas" expressam abertamente uma atitude hostil ao comportamento afetivo-sexual dos dois
homens. Há em tal gesto uma explícita configuração de repúdio e intolerância, uma evidente
aversão à opção sexual dos sujeitos, visto que havia ali uma ameaça, isto é, uma quebra à
ordem, supostamente, estável, da dicotomia homem/mulher. Paradoxalmente, apresentava-se
naquele espaço social outra combinação de afetivo-amoroso, o que de fato deixou os
agressores manifestarem sua aversão verbal, a princípio, representado, apenas, pela agressão
de repúdio expresso pelos olhares, "olhavam". O “olhavam”, distancia os dois personagens e
aproxima a plateia (todos os agressores), simbolicamente, circunscrito pela ala,
predominantemente, heteronormativa. Ademais, as marcas linguísticas veiculam um discurso
de ódio, assim também, como uma manifesta impossibilidade de aceitação do diferente. Essa
foi à primeira manifestação de violência e repressão veiculada pela dimensão verbal,
consolidando o primeiro momento da ação hostil dos agressores.
A narrativa também é marcada pelo excessivo uso de droga que, no contexto
carnavalesco seria uma prática aceitável pelo imaginário coletivo que pousa sob o
extravasamento e a inversão do cotidiano e/ou normativo.

Ele enfiou a mão dentro da sunga, tirou duas bolinhas num envelope
metálico. Tomou uma e me estendeu a outra. Não, eu disse, eu quero minha
lucidez de qualquer jeito. Mas estava completamente louco. E queria como
queria aquela bolinha química quente vinda direto do meio dos pentelhos
dele. Estendi a língua, engoli (ABREU, 2006, p. 45).
805

O excerto traz à tona a inquietante busca por liberdade, desse modo, o uso de
substâncias alucinógenas seria um ato de sentir-se livre e também autodefinir-se
Página

subjetivamente. Assim, a voz do narrador que, a princípio, revela uma hesitação é

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imediatamente conduzindo pela ânsia voraz do desejo libertário, cedendo ao anseio do outro
de usar o entorpecente. O lugar de onde saiu à droga, também, provocara uma excitação
incontrolável, a ponto de fazê-lo engoli a substância mediante fúria que anteciparia a
consumação do enlevo amoroso-sexual.
Também, pode-se deduzir pela voz do narrador que a oscilação de postura,
demonstrada pelo recuo à experimentação levou o personagem a uma reflexão momentânea
de que precisava extrapolar. Nesse jogo de imagens representativas, ocorre o deslocamento do
rito de consciência, "quero minha lucidez, mas estava completamente louco",
paradoxalmente, a lucidez estava perdida, haja vista, fazia-se urgente a autoafirmação e, uma
consequente negação ao processo excludente pelo qual haviam sido apanhados, logo que
começou a demonstração de carícias e afetos. Exclusão essa demonstrada pelas vozes, "olha
as loucas".
É relevante destacar que a exclusão, aqui, é entendida como um processo de
profunda sujeição que gera complexos mecanismos sociais, os quais criam repressões que
tornam os homens representantes de uma minoria assujeitados, embora isso não impeça a
imersão desses indivíduos no tecido social para que possam ser objetos de questionamentos
dos elementos que massacra as instituições de dominação, econômica, cultural, social e
sexual. Assim, a exclusão cria os processos de estigamatização, discriminação e
marginalização na esfera social. (Cf. FOUCAULT, apud BRANDILEONE, 2014).

[...] eram de fato práticas de exclusão, práticas de rejeição, práticas de


"marginalização" [...] a maneira como o poder se exerce sobre os loucos[...],
sobre os desviantes... Descrevem-se em geral os efeitos e os mecanismos de
poder que se exercem sobre eles como mecanismos e efeitos de exclusão, de
desqualificação, de exílio, de rejeição, de privação, de recusa, de
desconhecimento; ou seja, todo o arsenal dos conceitos e mecanismos
negativos da exclusão (FOUCAULT, 2001, p. 54).

Trouxe à baila a discussão da exclusão, porque o conto é marcado por essa dimensão
excludente dos elementos sociais que representam uma minorias marginalizadas, no caso
específico, aqui, discorrido são os sujeitos ficcionais de Abreu.
Ainda sobre a semântica da terça-feira gorda pode ser entendida como premissa para
o experimento de intensas experiências imagináveis e, possíveis de serem vividas, assim:
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No carnaval, em vez das marchas frenéticas e mortais dos ônibus e


automóveis, temos uma marcha invertida, sem rumo ou direção certa. O

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caminho do carnaval é altamente ritualizado porque é abertamente
consciente de si mesmo. Nele, não importa muito aonde se quer chegar e o
modo como se chega, mas simplesmente caminhar sem rumo e sem direção
[...] - pois o que se busca nesses momentos é a "alegria", o "sorriso", a
"música", a "felicidade", o "prazer sexual" - , homens se transformam e
inventam aquilo que chamamos de "povo" ou "massa". Perseguem
fundamentalmente o prazer e a sorte, a felicidade e o bem estar
(DAMATTA, 1997, p. 115).

Ademais, as identidades sociais ali presentes não possuíam, necessariamente, uma


classificação dogmática, a ordem estariam pautada no imprevisível, na desorganização, daí a
sensação de liberdade que fora, contraditoriamente, suprimida:

Nos empurravam em volta, tentei protegê-lo com meu corpo, mas o ai-ai
repetiam empurrando, olha as loucas, vamos embora daqui, ele disse. E
fomos saindo colados pelo meio do salão, [...]. Veados, a gente ainda ouviu,
recebendo na cara o vento frio do mar (ABREU, 2006, p. 45).

Aqui, a violência verbal e a física se manifesta de forma mais incisiva; testemunha e


dá vazão as matrizes controversas que divide o homo e o hetero e, constitui o mecanismo pelo
qual se instaura o discurso homofóbico. Nesse aspecto, a narrativa assinala uma emblemática
luta, ao lidar com a experiência inclinada da relação homoafetiva, contrapondo-se com os
paradigmas de uma sociedade preconceituosa e intolerante.
Pela situação posta no texto, havia ali uma ameaça aos "bons costumes", praticada
pelos dois rapazes. “O ai-ai” e “as loucas” são manifestações verbais de ódio, proferidas em
tom de escárnio com a finalidade de ferir, de humilhar, de tirá-los do recinto. Paradoxalmente,
no salão, vivia-se a festa da "marcha invertida" do fenômeno social que predomina a ânsia
pelo prazer, pelo bem estar, pela liberdade, pelo transbordo do trivial. Notadamente, “o ai-ai”
e “as loucas”, representam a voz da opressão que massacra e marginaliza o diferente, o
"desviante"; sintetiza, nesse sentido, a incapacidade de reconhecer o ser humano, na sua
dimensão subjetiva e pessoal. Assim, a mesma sociedade que celebra no carnaval, a reunião
das "massas" em uma só fusão, a qual fantasia-se para fugir do convencional,
contraditoriamente, também, mostra-se a avessa com espancamento violento, com segregação,
cujo desrespeito é responsável pelo ceifamento de vidas.
807

Foi então que percebi que não usávamos máscara. Lembrei que tinha lido em
algum lugar que a dor é a única emoção que não usa máscara. Não sentíamos
Página

dor, mas aquela emoção daquela hora ali sobre nós, e eu nem sei se era
alegria, também não usava máscara. Então pensei devagar que era proibido

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ou perigoso não usar máscara, ainda mais no Carnaval (ABREU, 2006, p.45-
46).

A máscara oculta e dissimula a aparência, sob esse aspecto, pode-se interpreta que os
personagens estavam despidos de qualquer disfarce, experimentavam apenas, alternativas de
liberdade, que se opunham ao institucionalizado, à normatividade; havia entre os dois,
naturalidade, desinibição, espontaneidade, o que de fato queriam, era viver intensamente a
descoberta do corpo e, por extensão a da sexualidade sem fantasia (cf. CARDOSO, 2007). A
ausência de dor, metaforicamente, seria uma manifestação de prazer e sensação de êxtase que,
paradoxalmente, apresentava-se desassociado de um comportamento retraído que pudessem
inibir a realização da relação homoafetiva que ali se desenvolvia de forma tão intensa e real,
mesmo diante do espancamento, marcadamente, desvelado. Como se pode depreender do
fragmento a seguir:

Plâncton, ele disse, é um bicho que brilha quando faz amor. E brilhamos.
Mas vieram vindo, então, e eram muitos. Foge, gritei, estendendo o braço.
Minha mão agarrou um espaço vazio. O pontapé nas costas fez com que me
levantasse. Ele ficou no chão. Estavam todos em volta. Ai-ai, gritavam, olha
as loucas. Olhando para baixo, vi os olhos dele muito abertos e sem
nenhuma culpa entre as outras caras dos homens. A boca molhada afundada
no meio duma massa escura, o brilho de um dente caído na areia. Quis tomá-
lo pela mão, protegê-lo com meu corpo, mas sem querer estava sozinho e nu
correndo pela areia molhada, os outros todos em volta, muito próximos
(ABREU, 2006, p. 46-47).

O excerto, acentuadamente, demarca a violência brutal que os personagens viveram,


marca de forma profunda a opressão sexual, expressa pelo ódio e pela incapacidade de aceitar
o diferente. Esse ódio e essa indiferença revela o quão absurdo são os atos que segregam e
oprimem, deixando que perdura como padrão uma única forma de amar e ser amado. Em vez
da aceitação, ocorrem atitudes e comportamentos mesquinhos que preferem agredir e
eliminar, a encarar como natural às particularidades humanas que se mostram diferentes do
preconcebido social e culturalmente pelo poder hegemônico ditado pela norma heteronormal.
No geral, o relato da estória em tom rememorado inscreve o narrador como
protagonista ativo que viveu e ao mesmo tempo assistiu atônico o drama, a negação e a
anulação da sua individualidade. Assim também, como o consequente assassinato do seu
808

parceiro, o qual não teve outra saída a não ser o silenciamento e o arquivamento na memória
Página

do episódio, para, posteriormente, servir de porta-voz ao leitor para assim fazer um mergulho

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na experiência de dor e clamor experimentada pelos personagens do conto. Acerca do
silêncio: “O silêncio [...] é o primeiro e mais forte comportamento da situação de exclusão, a
marca mais forte da impossibilidade de se considerar sujeito àqueles a quem a fala é de
antemão desfigurada ou negada” (BRUNI, 1989, p. 201).
Na supressão da vida do companheiro, só restou ao narrador-protagonista, o
silenciamento e a negação da sua natural expressão de amar. Destarte, a violência marcada na
narrativa, é consequência de condutas moralmente falsas de práticas sociais respaldas em uma
cultura conservadora que policia e aniquila a vida de indivíduos que assumem com
naturalidade sua orientação sexual.

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WASILEWSKI, Luís Francisco. Artigo: Para Luiz Carlos Gões. In: Aplauso Brasil, 21 de
out de 2014. Disponível em: <http://www.aplausobrasil.com.br/2014/10/31/artigo-para-luiz-
carlos-goes/>. Acesso em: 28 dez. 2015.
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ISBN: 978-85-7621-221-8
GT6 – LINGUAGEM LITERÁRIA CONTEMPORÂNEA: O NARRADOR E O EU
LÍRICO

DA MEMÓRIA INDIVIDUAL À COLETIVA: A VISÃO DO INFERNO NO


IMAGINÁRIO LITERÁRIO POPULAR

Eduarda Maria Moreira Lopes Lins (UERN)

Introdução

Muitas têm sido as descobertas científicas sobre a memória. Os estudiosos se


debruçam sobre questões como: Que aspectos são mais facilmente registrados? Se há algum
tipo de memória que se destaque em meio a outras? E ainda, os motivos pelos quais ela se
desvanece e deteriora ao longo do tempo e pela ação de algumas doenças. Mas, uma questão
que intriga não só ao campo médico-científico do saber é: como se constrói uma memória?
É do ponto de vista do saber literário que este trabalho se propõe a tentar esclarecer
esta questão tão importante para a constituição dos costumes e tradições culturais, inclusive, a
constituição do próprio indivíduo. E uma das vertentes teóricas escolhidas para tal estudo é a
noção de que a memória é coletiva. Estudo este, feito por Maurice Halbwachs em sua obra A
memória coletiva. Segundo o estudioso,

O primeiro testemunho a que podemos recorrer será sempre o nosso. Quando


diz: “não acredito no que vejo”, a pessoa sente que nela coexistem dois seres
– um, o ser sensível, é uma espécie de testemunha que vem depor sobre o
que viu, e o eu que realmente não viu, mas que talvez tenha visto outrora e
talvez tenha formado uma opinião com base no testemunho de outros
[...]Nossa impressão pode se basear não apenas na nossa lembrança, mas
também na de outros, nossa confiança na exatidão da nossa lembrança será
maior, como se uma mesma experiência fosse recomeçada não apenas pela
mesma pessoa, mas por muitas (HALBWACHS, 2003, p. 29).

O mesmo defende que, por mais intrínseca que seja uma recordação, ela tem a
dependência do olhar do outro, da possível interferência e até mesmo da vivência deste. E se
formos tentar reconstituir um conjunto de lembranças é inevitável que elas não se reconheçam
nas do outro. Que não concordem no que há de comum, de essencial.
A proposta é fazer a análise de duas obras literárias de autores, épocas e gêneros
811

distintos para observar como ambos constroem uma imagem-memória específica. As obras
são: o conto O inferno, de Graciliano Ramos e o poema de cordel A chegada de Lampião no
Página

inferno, de José Pacheco. As duas obras trazem como temática a visão espacial em torno do

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inferno do ponto de vista da cultura popular, mais especificamente do imaginário cristão.
Mas, por que o espaço ganha um enfoque tão conciso nesta análise?
Consideramos que as imagens do espaço desempenham um papel importante para a
memória coletiva. O lugar, o ambiente, o “entre-lugar” é povoado de marcas. Sejam elas
individuais ou de um grupo. É como se o espaço resumisse cada detalhe de uma memória.
Como se guardasse um sentido restrito de uma sociedade formada por aspectos singulares.
Aspectos que transcendem e se tornam parte do ser.
Quando passamos muitas vezes por um determinado lugar – o caminho para a escola -
por exemplo, marcamos para sempre aquele lugar com aquelas ações, com o encantamento da
paisagem ou até mesmo a conservação de um determinado sentimento negativo ou de medo.
Lembraremos das companhias de todos os dias. Não existe uma memória coletiva que não
tenha ocorrido em um determinado espaço. É como se o ambiente que nos cerca conservasse a
chave para as memórias.
No caso da Literatura, a experiência cotidiana é muito importante como fonte de
inspiração, sobretudo com referência a alguns aspectos espaciais: as atividades realizadas, os
objetos impregnados de valor emocional; o que aquele ambiente deixa para sempre marcado
em determinado personagem; como o lugar corrobora para a formação de um caráter. Antonio
Candido em sua obra Literatura e sociedade, já chamava a atenção para os elementos
individuais que adquirem significado social na medida em que as pessoas correspondem a
necessidades coletivas. Para o autor,

Aí está um caso em que determinada atividade se transforma em ocasião e


matéria de poesia, pelo fato de representar para o grupo algo singularmente
prezado, o que garante o seu impacto emocional [...]pois mesmo quando
pensamos ser nós mesmos, somos público, pertencemos a uma massa cujas
reações obedecem a condicionantes do momento e do meio (CANDIDO,
2000, p. 36).

Passemos para a análise das obras mencionadas. Analisaremos a construção deste


espaço levando em conta dois elementos fundamentais: o narrador e o eu-lírico. No conto O
inferno, de Graciliano Ramos contamos com a visão de um narrador que recorda momentos
ímpares no seio familiar(o individual), até que surge uma curiosidade sobre como seria o
812

inferno. No poema A chegada de Lampião no inferno, contamos com a irreverência de um


cordelista que dá vida a um processo de imaginação um tanto quanto grotesca. Que perpetua a
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imagem coletiva que se tem do inferno.

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O narrador construindo a imagem do inferno

Para iniciar a análise de uma obra tão delicadamente polida e rememorada é


importante que se façam algumas explanações. O conto O inferno de Graciliano Ramos data
de 1945 e faz parte de uma de suas obras mais difundidas: O livro Infância. Uma obra
singular na maneira como trata os fatos que flutuam entre o ficcional e o autobiográfico.
Singular no jeito de abordar temas tão íngremes como a dor, a solidão, a morte. E mais
singular ainda, quando seus temas conseguem transcender de uma atmosfera individual para
algo coletivo, quando, por exemplo, suas temáticas se debruçam sobre o corpo social. Outro
ponto peculiar é a maneira como podemos ler a obra. Podemos lê-la como um todo, com uma
determinada unidade ou simplesmente ler como contos soltos. Ambas as leituras, permitem
uma viagem ao mundo surpreendente da memória.
A temática do conto O inferno, como o título anuncia, trata-se de um desses temas
delicados e íngremes. É a história de um menino no início de suas descobertas, que conversa
com sua mãe de forma descontraída, o que não era de costume, pois o narrador anuncia que
são como tréguas. Neste meio tempo, em meio às descrições despretensiosas, tanto do
ambiente como da personagem feminina muito nova para ser mãe, o menino ouve uma
palavra no mínimo desafiadora para a imaginação de menino de seis anos: inferno.
Imediatamente, no seu ímpeto de curiosidade, ele indaga a mãe sobre como seria o
inferno. Claro que ele tinha noção que era algo ruim, que era uma palavra pronunciada sempre
em relação à má educação. Que devia ser feio e que nunca se deveria pronunciar. Isso causa
estranhamento à mãe que responde genericamente no intuito de satisfazê-lo rapidamente e
mudar o rumo da conversa. Mas ela não contava com a exigência feita pelo menino: ele queria
detalhes, descrições minuciosas para poder acreditar com fidelidade na existência concreta do
lugar - espaço.
É aí que entra em cena o imaginário popular, e, mais precisamente, o cristão, para
propagar a ideia que se instaurara há anos sobre o inferno. A mãe o descreve como sendo
“uma terra diferente das outras. Não havia lá plantas, nem currais, nem lojas, e os moradores,
péssimos, torturados por demônios de rabo e chifres, viviam depois de mortos em fogueiras
maiores que as de São João e em tachas de breu derretido.” Em um leve momento de pensar
813

fazendo associações às coisas que a mãe citara e às que ele conhecia, tentando construir uma
imagem exata e coesa daquele espaço. Num processo metalinguístico de memória dentro da
Página

memória ele relembra a vez em que queimou o dedo numa espécie de breu e quase não

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aguentou a dor e parte para tentar entender como as pessoas do inferno resistiriam por muito
tempo. Não satisfeito, ele empreende sua investigação através de um verdadeiro inquérito.
Com perguntas diretas. Quase impossíveis de serem respondidas.
Não sabe o menino, que sua mãe resumira em algumas frases, tudo o que se sabia ou
se imaginava sobre os aspectos espaciais do inferno. Lembrando sempre que tratamos do
imaginário construído por uma coletividade. Através da experiência, das deduções, das
representações. Levando em conta que cada comunidade, cada sociedade tem o seu
imaginário.
Neste momento, o narrador, através da personagem da mulher, vai buscar no âmago
das tradições culturais a iconografia infernal. A forma como a mulher descreve brevemente os
aspectos mais triviais do inferno advém da forma como muitas coisas do saber chegaram às
comunidades mais distintas: da propagação feita pelo Cristianismo, que ao longo da história
do pensamento ocidental, sempre deixou marcas da sua influência e uma dessas influências
era a elaboração de um lugar no pós-morte onde houvesse condenação aos pecadores.
Observamos atualmente o esforço empreendido pela igreja moderna para elucidar de
forma mais branda aspectos do pós-morte, mas muitos desses mitos se propagam até hoje. E
se formos pensar na atmosfera nordestina e/ou sertaneja, aí perceberemos que por formar um
corpo social crente e temente continue com a interpretação cristalizada do passado e que
agreguem a este pensamento novas nuances representativas. E essa aproximação da visão do
inferno com elementos cotidianos, até torna familiar algo que é uma incógnita.
De acordo com estudos do historiador Carlos Roberto Nogueira em seu livro O diabo
no imaginário cristão, podemos perceber a evolução da temática, descrição e representação
do espaço do inferno. Vejamos como essa passagem comunga com a visão propagada pelo
cristianismo e corrente graças aos padres, que aliás, são as figuras as quais a mãe do menino
do conto recorre para dar credibilidade a sua descrição. O padre seria, pois, uma autoridade no
assunto. De acordo com o historiador,

Nas igrejas, pregava-se as penas infernais. A fantasia dos eclesiásticos


deveria chocar, provocar terror: lagos de enxofre, diabos armados de chicote,
dragões, água e piche ferventes, fogo e gelo, infinitas torturas. Eis o inferno:
livre campo à fantasia, livre curso a todas as crenças tradicionais. O diabo
814

causa terror e através de sua figura e de sua ação no mundo, impõe-se um


rígido código moral. As narrações se intensificam , crescem, ganham corpo,
na formadas visões apocalípticas (NOGUEIRA, 2000, p. 76).
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Voltando para a análise da continuidade do conto, é importante observar como o
narrador conduz o embate ferrenho de falas da mãe e do menino. Ele torna clara a posição de
cada um: o menino em sua ânsia por comprovar para acreditar e a mãe no papel de mediar as
poucas informações que tinha. Todo o esforço da mãe se perde através das contrapartidas que
o menino dava em busca de afirmações que tivessem o mínimo de verossimilhança. E,
termina por não ser convencido.
Neste momento, o narrador nos faz penetrar na alma desiludida e descrente de um
menino de seis anos e tudo o que ele conseguiu estruturar como imagem começa a se
desvanecer. Dissiparam-se as tachas de breu, os demônios e até o prestígio do padre. Até que
como uma erupção, ou como o borbulhar de caldeiras quentes, surge o atrevimento: a
sinceridade. O menino afirma que não existe nada disso. Mas, como discordar de uma ideia
tão conclamada pela cultura? A ponto de ser tão importante que degladia com o sagrado? O
debate sobre o inferno ou o diabo torna-se mais presente do que as indagações sobre Cristo e
se Pai. Vejamos:

É um mundo de desequilíbrio , no qual, entre Deus e Satanás – nesse trágico


dualismo que, embora não admitido dogmaticamente, é vivenciado na
prática, não podendo pensar no Bem, sem antes pensar no Mal. A luta entre
matéria e espírito não é encontrada apenas na imaginação popular, pois os
ministros de Deus esgotam-se com debates sobre o Diabo, que ocupa as suas
consciências de modo muito mais presente do que o próprio Deus
(NOGUEIRA, 2000. p. 44).

Acusado de leviano, o menino teve a punição merecida. Não chegaram a ser torturas,
mas boas chineladas. Como os cristãos que pagavam no inferno pelos pecados cometidos, o
menino pagou por seu ato de rebeldia, como o narrador intitula a oposição à autoridade. Na
falta de argumentos, a mãe usa do pior deles: a violência física. Algo que viria a se tornar tão
familiar como a palavra inferno.

O eu-lírico perpetuando a imagem do inferno

O cangaço marcou época no Nordeste. Os violentos combates com a polícia, as


invasões de vilas, cidades, fazendas, além de histórias de cruéis assassinatos, criaram ondas
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de medo e insegurança. O destaque que a sociedade dava a esses grupos contribuiu para a
imaginação popular aumentar mais ainda os fatos ocorridos na época. É evidente que como a
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oralidade era o que permeava, também foram disseminadores dessas histórias os poetas e
cantadores.
Temas como o poder, a arrogância, o jeito brutalizado dos bandoleiros; a coragem, o
espírito justiceiro dos cangaceiros e, principalmente, dos líderes dos bandos foram cantados
em versos. Lampião foi uma figura marcante naquele cenário. Para uns, um verdadeiro Robin
Hood. Para outros, o mais sanguinário dos bandidos. O certo é que ele rendeu motes para os
mais diversos tipos de poetas.
Enfocaremos o cordel porque se trata de um representante máximo da cultura
nordestina e é um gênero que perpassa o tempo. É vívido, inclusive, nos dias atuais.
Observaremos que no cordel, a perspectiva do imaginário cristão continua forte quanto ao
tema do inferno. O que difere e será importantíssimo para a perpetuação da temática
misteriosa do inferno no imaginário popular, será exatamente o tom de reinvenção deste
espaço com interpretações e acréscimos. Desta feita, por José Pacheco, alagoano,
contemporâneo de Leandro Gomes de Barros. Inclusive, tornando possível o ponto de vista
cômico e o satírico diante de tanta violência e derramamento de sangue. O teórico Luis
Alberto Brandão discorre sobre a reinvenção espacial,

é de natureza espacial o recurso que, no texto literário, é responsável pelo


ponto de vista, focalização ou perspectiva, noções derivadas da ideia-chave
de que há, na literatura, um tipo de visão. Em sentido mais amplo, trata-se do
efeito gerado pelo desdobramento, de todo discurso verbal [...]Mas observar
também pode equivaler, bem mais genericamente, a configurar um campo de
referências do qual o agente configurador se destaca (o que justifica que se
enfatize, por exemplo, a auto-reflexividade da voz poética). A visão,
entendida mais ou menos literalmente, mais ou menos próxima de um
modelo perceptivo, é tida como uma faculdade espacial, baseada na relação
entre dois planos: espaço visto, percebido, concebido, configurado; e espaço
vidente, perceptório, conceptor, configurador. A relação pode, naturalmente,
adquirir distintas qualificações: mais ou menos isenta, mais ou menos
projetiva, mais ou menos autônoma, etc.

Analisando o poema de cordel A chegada de Lampião no inferno, é possível constatar


que trata do momento da chegada de Lampião, no pós-morte imaginário, no lugar reservado
para os condenados. Os pecadores que pagarão pelos seus erros: o inferno. Passa-se a se
contar sobre essa chegada. Quem conta a história é um dos cabras do bando, também morto,
816

em forma de assombração. Nome: Pilão-deitado.


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Um cabra de Lampião /por nome Pilão Deitado /que morreu numa trincheira
um certo tempo passado /agora pelo sertão /anda correndo visão /fazendo
mal assombra /Foi ele que trouxe a noticia /que viu Lampião chegar /o
inferno nesse dia /faltou pouco pra virar /incendiou-se o mercado /morreu
tanto cão queimado /que faz pena até conta (PACHECO, p.1).

Vê-se perpetuada a forma de conceber o espaço físico do inferno, conforme fora


implantado no imaginário cristão. Por meio da “contação” do cabra, percebemos que é de
fato, aquele lugar do fogo eterno. E elabora o cômico trazendo o fato de alguém no pós-morte
morrer de novo e ainda mais queimado.
Então, segue a narrativa. É contado o momento exato da recepção feita a Lampião.
Uma espécie de vigia consulta Satanás para saber se Lampião poderia entrar ali. Vale ressaltar
que na cultura local vigente, outros cordéis contaram a não-entrada de Lampião no céu,
restando o oposto. Em resposta negativa de Satanás, começa toda a confusão. Como não seria
confuso tal ocorrido? Notamos de novo a menção ao fogo como matéria – prima do fazer
infernal.

O vigia disse assim /fique fora que eu entro /vou falar com o chefe /no
gabinete do centro /por certo ele não lhe quer /mais conforme o que
disser /eu levo o senhor prá dentro /Lampião disse vá logo /quem conversa
perde hora /vá depressa e volte já /que eu quero pouca demora /se não me
derem ingresso /eu viro tudo asavesso /tóco fogo e vou embora (PACHECO,
p. 2).

A condução cômica com que esse nosso eu-lírico-narrador faz a trama, é realçada com
um ingrediente muito comum a provável época em que se passa: o preconceito racial. É
interessante lembrar que o negro nesta época sofria um preconceito “rasgado”. Não se tinha
pudor em praticá-lo. Era banal. Não acontecia de forma velada como ocorre ainda hoje, cerca
de dois séculos depois. Pois bem, até isso corrobora como elemento atrelado a imagem do
inferno. E a forma debochada da linguagem de Satanás, torna a bagunça instaurada ainda mais
engraçada. Sendo as pessoas do inferno todas negras, inclusive, demônios e diabos. Vejamos
outra passagem

Disse e vigia patrão /a coisa vai esquentar /eu que ele vai se danar /quando
não puder entrar /Satanás disse é nada /convida aí a negrada /e leve o que
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precisar /Leve cem dúzias de negros /entre homem e mulher /vá na loja de
ferragens /tire as armas que quiser /é bom avisar também /pra vir os negros
que tem /mais compadre Lucifer /E reuniu-se a negrada /primeiro chegou
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Fuchico /com um bacamarte veio /gritando por Cão de Bico /que trouxesse o

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pau da prensa /e fosse chamar Tangença /na casa de maçarico (PACHECO,
p. 4).

Leitores vou terminar /o tratado de Lampião /muito embora que não possa
vos dá maiores explicação /no inferno não ficou /no céu também não chegou
por certo está no sertão /Quem duvidar desta historia /pensar que não foi
assim /querer zombar do meu eu /não acreditando em mim /vá comprar
papel moderno /e escreva paro o inferno /mande saber de Caim (PACHECO,
p. 8).

Para finalizar, destacamos duas ocorrências que enfatizam o tom satírico com que o
inferno é tratado pelo cordelista: a menção direta que se faz de aspectos materiais (padaria,
loja de ferragem, pá de mexer doce, cerca, terraço) em um espaço considerado espiritual; o
outro aspecto é a desarquetipação do personagem Lampião, já que mesmo sendo tão valente,
apanha da “negrada” e vai embora. Ainda para fazer um pacto com a verossimilhança, o eu-
lírico evoca o leitor para escrever para o inferno e faz menção à figura bíblica de Caim, outro
desordeiro do universo.

Conclusão

Ao término do nosso trabalho é importante mencionar o entrelaçamento da temática


abordada no meio cultural popular. A visão do inferno, assim como todas as outras instâncias
que envolvem mistério, foi e, pelo visto, será perpetuada ao longo dos tempos. É algo que
instiga interesse e ao mesmo tempo temor. Curiosidade e ao mesmo tempo repulsa. É algo
contraditório em si mesmo.
Já que nesta análise evocamos o leitor e suas visões do inferno tomadas não apenas
como uma categoria passiva e passando a encará-lo como algo cultural e formal de horizontes
e expectativas diferentes, é imprescindível que evoquemos naturalmente o processo de
recepção. Principalmente porque este é justamente um processo de experimentação do
imaginário projetado no texto.
É um processo que tem como foco o texto. Onde convertido em objeto estético requer
dos receptores a capacidade de produzir o objeto imaginário. A recepção, portanto, está muito
próxima da experiência do imaginário.
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O narrador proposto por Graciliano Ramos em sua obra adentra a atmosfera intimista
do ponto de vista da criança, que mesmo com reconhecida inocência, não se convence com a
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descrição do inferno feito pela mãe. Já a forma como o eu-lírico-narrador do poema de José
Pacheco, torna incontestável que os fatos aconteceram daquela forma determinada.
E a forma como a obra é apresentada ao leitor faz toda a diferença. O fazer literário e
suas imprecações corroboram para uma identificação do público que vai perpetuar tais
temáticas e torna-las sempre interessantes.

Referências

BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de


François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2013.

BRANDÃO, Luis Alberto. Espaços literários e suas expansões. Aletria: Revista de Estudos
de Literatura. Belo Horizonte, n. 15, jan. 2007, p. 207- 220.

BRANDÃO, Luis Alberto. Breve história do espaço na teoria da literatura. Cerrados.


Brasília, n.19, 2005,p. 115-134.

BOSI, Alfredo. Cultura Brasileira: temas e situações. São Paulo: Ática, 1999.

CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. 8.ed. São
Paulo: T.A.Queiroz, 2000.

FRANÇA, Marcos Antônio Pessoa de. Para rir até chorar... com a cultura popular. João
Pessoa: Sant’ana, 2008.

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RAMOS, Graciliano. O inferno. In: _____. Infância. Rio de Janeiro: Record, 1984.
819
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LÍRICO

ESPERAS TRÁGICAS, SILÊNCIOS OPACOS: DUAS CRÔNICAS DE MILTON


HATOUM

Joana Tamires Silveira Bezerra (UERN)

1 Crônica e contemporaneidade, ficção e realidade

Life is very short and there’s no time


For fussing and fighting, my friend

“We can work it out”, The Beatles

Tratar da crônica enquanto parte do gênero narrativo é adentrar em um âmbito em


plena evolução dentro da Literatura. Se ela nasceu ligada à ideia de seu significado
relacionado ao vocábulo grego khronos – por sua vez, simbolizando o próprio tempo –, com o
transcurso natural da história humana (em especial, dos séculos XIX e XX), percebe-se que a
atual crônica já tem elementos bem distintos dos apontados em suas origens ocidentais. Para
Massaud Moisés (2004, p. 110), o termo crônica foi utilizado “[...] no início da era cristã, [e]
designava uma lista ou relação de acontecimentos, arrumados conforme a sequência linear do
tempo. [...] Em tal acepção, a crônica atingiu o auge na Idade Média, após o século XII”. De
todo modo, após tal período, a crônica vem passando por transformações ao longo de séculos
de sua representação no Brasil.
Para críticos como Jorge de Sá (2005), durante as primeiras manifestações literárias
brasileiras – exemplo disto seria “A carta de Pero Vaz de Caminha a El-Rei D. Manuel”, de
1501 –, seu aporte estaria destinado ao relato cuja “[...] observação direta é o ponto de partida
para que o narrador possa registrar os fatos de tal maneira que os mais efêmeros ganhem uma
certa concretude” (SÁ, 2005, p. 06). Se antes a crônica passava por este olhar
“circunstancial”, de acordo com outra expressão usada por Sá, esta visão vem se mantendo
como um de seus referenciais até chegar ao século XXI, dividindo seu espaço entre o
Jornalismo e a Literatura, esta cada vez mais associada com ele desde o século XIX, ainda
segundo Moisés (2004).
820

Se no Brasil surgiram cronistas de renome em diferentes épocas e movimentos –


como Machado de Assis no Realismo, João do Rio e Lima Barreto no Pré-Modernismo, e no
Página

Modernismo com Carlos Drummond de Andrade, Clarice Lispector e Rubem Braga – cuja

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publicação era mantida em colunas diárias ou semanais em periódicos, a crônica foi se
tornando popular entre autores e leitores brasileiros, havendo o que alguns clamam como
sendo “o mais brasileiro dos gêneros” (CASTELLO, 2013). Pode existir um grau de exagero
em opiniões como esta, pois a crônica possui correspondentes em outras línguas, como o
inglês, que possui formatos muitos similares aos da crônica, caso do light essay ou town
gossip ou outros cognatos (MOISÉS, 2004).
Em sua curteza, cada vez mais assomada aos ares da atualidade, a crônica se tornou
parente próxima do conto, tipologia já bastante diversificada por si só (conto de fadas, conto
fantástico, conto policial, entre outros), cada uma com perspectivas próprias. Como expressão
dentro da narrativa curta, invoca-se o conto como centrado em uma base diferencial, que é a
condensação – ou contração, como relata Nádia B. Gotlib (2006) – e uma focalização no
personagem. Já os cronistas se debatem sobre uma brevidade que adquire, em significativa
parcela dos casos observados na crônica brasileira, um modo mais aberto de expressão,
segundo Jorge de Sá (2005, p. 09):

[...] o cronista age de maneira mais solta, dando a impressão de que pretende
ficar na superfície de seus próprios comentários, sem ter sequer a
preocupação de colocar-se na pele de um narrador, que é, principalmente,
personagem ficcional [...]. [e] tudo que ele [o cronista] diz parece ter
acontecido de fato, como se nós, leitores, estivéssemos diante de uma
reportagem.

Naquilo que expôs Jorge de Sá sobre a crônica, aqueles que as escrevem são autores
cuja visão de mundo agrupa ficção com realidade, deixando a leitura de seu texto se tornar,
então, mais subjetivo, mais aberto, mais literário. Afinal de contas, o exercício da leitura
literária, de um modo geral, como assinala Compagnon (2009, p. 72), “[...] continua o lugar
por excelência do aprendizado de si e do outro”. Isto é, a crônica ainda guarda sua relação
com o tempo advinda de sua etimologia, e neste trabalho, escolhemos um cronista da
contemporaneidade. Com isso, pretendemos elaborar uma visão focada na obra Um solitário à
espreita (2013), do amazonense Milton Hatoum, nome representativo no quadro da literatura
contemporânea, já renomado por seus romances. Escolhemos duas crônicas para constituir o
corpus de análise, que são “Dança da espera” e “História de dois encontros”. Atualiza-se,
821

assim, o quadro da Literatura contemporânea com base na análise através da pesquisa


empírica e, por outro lado, dar-se-á margem a um autor consagrado, inclusive ganhador do
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renomado “Prêmio Jabuti” na categoria de melhor romance (Cinzas do norte) em 2005,
embora pouco visado em suas produções no âmbito da narrativa curta.

2 Milton Hatoum: entre narrativa e lirismo

Após o advento do Modernismo no Brasil a partir de 1922, autores brasileiros vêm


marcando a crônica como um texto essencial ao cotidiano da Literatura nacional. Entre os
nomes mais destacados no cenário da segunda metade do século XX estão, entre vários
outros, Fernando Sabino, Carlos Heitor Cony, Luís Fernando Veríssimo e Moacy Scliar. Entre
um dos nomes da prosa brasileira contemporânea – mais lembrado pela sua produção em
prosa de narrativa longa – está o amazonense Milton Hatoum, autor de vários romances entre
os anos de 1989 e começo dos anos 2000 (Relato de um certo oriente, Dois irmãos, Cinzas do
norte, Órfãos do Eldorado) e de uma coletânea de contos, A cidade ilhada (2009). Dono de
uma narrativa considerada como “território constituído por uma malha cultural variada”
(SCRAMIN, 2000, p. 10), sua narrativa de ficção curta se encontra pouco analisada – ao
contrário dos romances, já com vários artigos, ensaios e teses – e também está presente a
compilação de crônicas Um solitário à espreita (2013)126.
Deste modo, procuramos aqui evidenciar a crônica dentro das perspectivas literárias
contemporâneas, destacando as habilidades do cronista em retratar o cotidiano, captar o
imaginário coletivo através da memória, da confissão e dos personagens imaginados ou reais.
Sendo assim, nossa escolha se focou nas crônicas “Dança da espera” e “História de dois
encontros”. Nelas, a linguagem da narrativa de Hatoum se concentra, em boa parte, na
memória e possui um caráter duplo: o vazio que deixa lacunas irreparáveis e o silêncio que se
erige e preenche essas lacunas. Leyla Perrone-Moisés (1990, p.105), tratando da criação do
texto literário, diz que a “linguagem não pode substituir o mundo, nem ao menos representá-
lo fielmente. Pode apenas evocá-lo, aludir a ele através de um pacto que implica a perda do
real concreto”. Ou seja, para a autora, a literatura ordena e valoriza o real, recriando o mundo
assim como o sujeito falante que o habita. A recriação do mundo em Milton Hatoum e nas
crônicas de Um solitário à espreita (2013) é literária e simbolicamente representada pela
822

126
Este livro de quase cem crônicas é dividido em quatro partes que tratam de temas como memória e afetos de
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forma melancólica e, por vezes, pessimista. Tais textos foram publicados ao longo das décadas de 1990 e nos
decênios iniciais dos anos 2000 em jornais e revistas.

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memória, melancolia e lirismo. Suas crônicas parece nos fazer indagar sobre como a
linguagem poderá dar conta de todas as memórias e (des)memórias da vida cotidiana.
Comprovando isto, segue um depoimento do próprio Milton Hatoum ao site da
revista Cult, questionado sobre a relação entre memória, realidade e ficção na obra dele: “Essa
ambiguidade entre o real e o ficcional está sempre presente na literatura. Como diz um amigo
meu, o Lourival Holanda, ‘você sempre paga um dízimo ao real’. Não o real moeda, mas o
real de realidade. O que importa é essa ambiguidade” (HATOUM, 2013)127. Milton Hatoum
se enquadra naquilo que José Castello (2013, p.305) chamou de “agente duplo [da linguagem]
que trabalha, ao mesmo tempo, para os dois lados [ficção e realidade] e nunca se pode dizer,
com segurança, de que lado ele está”. Para Castello, o cronista está, na verdade, em uma
posição “limítrofe”, ocupando, não raras as vezes, a posição de nômade, pois sempre transita
entre dois mundos, sem pertencer a nenhum deles.
Quando questionado sobre o motivo de o cronista não ter surgido antes, de ter se
autointitulado “cronista tardio”, responde nessa mesma ocasião o autor de Um solitário à
espreita:

Porque eu privilegiei aquilo que eu queria fazer, que era escrever romances.
[...] Até que recebi um convite da revista EntreLivros. Antes eu não havia
sido convidado para escrever crônica na imprensa. Crônicas esparsas sim,
mas não periódicas. Nesses dois anos [2005-7, período de duração da
revista] fui um cronista regular. Eu privilegiei [no livro em questão] as mais
literárias, que têm relação com a memória, com a ficção. Crônicas
inventadas (HATOUM, 2013).

A citação acima nos mostra que autor adota uma postura cuidadosa ao escrever suas
narrativas, destacando que algumas de suas obras foram revisadas e reescritas diversas vezes
ao longo de vários anos o que mostra um rigor analítico do autor e sua obra, como o mesmo
respondeu ainda nesta mesma oportunidade ao site da revista Cult, “[...] passei meses
reescrevendo as crônicas... deu um trabalho do cão... Essa compulsão flaubertiana me dá
prazer. Escrever é, de algum modo, reescrever (HATOUM, 2013)”.Ou seja, para o autor, a
escrita é uma atividade árdua que exige empenho e dedicação por parte do escritor e ele
mesmo se compara ao renomado escritor francês, Gustave Flaubert, que escrevia e reescrevia
823
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Assim como as duas citações posteriores, esta citação de Milton Hatoum foi retirada de uma entrevista
exclusiva realizada por Mariana Marinho e publicada no site da revista Cult na data de 01/07/2013.

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suas obras de maneira perfeccionista. Isso mostra o nível de perfeição que Hatoum cobra de si
mesmo o que transparece nos longos espaços de tempo entre suas publicações.

3 “Dança da espera”: melancolia e silêncio

Publicada originalmente em 14 de agosto de 2008 no periódico O Estado de São


Paulo, a crônica “Dança da espera” relata a história de uma vizinha misteriosa por nome de
Sálvia Belamar, vítima de uma tragédia amorosa. Na época do acontecido, o cronista afirma
ser apenas um garoto que brincava com os amigos na Avenida Joaquim Nabuco, em Manaus,
e que vivia a espreitar a vida dos que passavam e moravam ao redor. Um fato que lhe
chamava a atenção e a de seus amigos era a tal vizinha misteriosa, sempre solitária, reclusa e
melancólica. Era como se a mesma guardasse um segredo antigo, uma imagem silenciada.
Ninguém sabia nada sobre ela, a não ser o fato de que se chamava Sálvia Belamar. Sua vida
“era um livro misterioso sobre o palco escancarado da província” (HATOUM, 2013. p. 21). O
narrador dessa crônica se mostra como testemunha do ocorrido e assim Norman Friedman
(2002, p. 174-175) descreve tal tipologia de narrador literário:

O narrador-testemunha é um próprio personagem em seu próprio direito


dentro da estória, mais ou menos envolvido na ação, mais ou menos
familiarizado com os personagens [...] A consequência desse espectro
narrativo é que a testemunha não tem acesso senão ordinário aos estados
mentais dos outros; logo, sua característica distintiva é que
o autor renuncia inteiramente à sua onisciência em relação a todos os outros
personagens envolvidos, e escolhe deixar sua testemunha contar ao leitor
somente aquilo que ele, como observador, poderia descobrir de maneira
legítima. À sua disposição o leitor possui apenas os pensamentos,
sentimentos e percepções do narrador-testemunha; e, portanto, vê a história
daquele ponto que poderíamos chamar de periferia nômade.

O próprio título do livro em análise nos dá uma pista sobre qual o tipo de narrador
das crônicas publicadas: é alguém que a tudo espreita, uma espécie de voyeur literário. Esse
tipo de narrador não chega a transmitir os pensamentos e as memórias dos outros
personagens, mas através de suas captações do cotidiano é que o leitor consegue desvendar e
824

desmistificar aquilo que, aparentemente, está oculto nas entrelinhas. Graças às impressões do
narrador de “Dança da espera”, conseguimos saber que a tal vizinha misteriosa recebia um
Página

amante aos sábados. O espreitador decide nos contar tudo, inclusive o arquetípico desse

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amante e o horário de suas visitas à personagem da narrativa: “Um homem com uniforme de
aviador comandante ou copiloto ou engenheiro de bordo entrava às oito da noite no
bangalô” (HATOUM, 2013, p. 21).
Os acontecimentos que se seguem são transmitidos ao leitor através das espionagens
do narrador e de seus dois amigos. Os três aproveitavam os encontros do casal de amantes
para observarem a vida amorosa da vizinha e, assim, guardar memórias pueris. A cena mais
memorialística do casal era a da dança: ambos costumeiramente dançavam ao som de uma
música que o nosso relator não conseguia ouvir; para ele, era como uma cena de filme que
sempre terminava com um blecaute, pois as luzes se apagavam após a dança e os garotos não
conseguiam mais acompanhar os passos dos amantes.
Por se tratar de uma crônica que trata das temáticas do amor, o narrador usa o recorte
da cena da dança para destacar o tom lírico da narrativa, apesar de já se mostrar uma história
trágica: “com seu toque de lirismo reflexivo, o cronista capta esse instante brevíssimo que
também faz parte da condição humana [...] Somente nesse sentido crítico é que nos interessa o
lado circunstancial da vida. E da literatura também” (SÁ, 2005, p.11). O cronista é
responsável por trazer leveza e lirismo aos acontecimentos mais trágicos, isso fica claro
quando o próprio narrador de “Dança da espera”, anunciando os acontecimentos que se
seguiam, insinuando que poderia haver na história narrada algo que não a transformasse num
acontecimento totalmente triste: “vamos aos capítulos, que são breves, e não totalmente
tristes” (HATOUM, 2013, p. 21, grifo nosso). A dança seria o brilho da história, o que a
tornava não inteiramente trágica.
À bordo do avião Constellation, numa viagem do Rio para Manaus, Sálvia perdeu o
seu parceiro de dança triunfal. De acordo com Rosenfeld (2009), na ficção, o mais importante
é que o leitor não contempla os destinos e conflitos dos personagens à distância, pois, graças à
seleção de esquemas do narrador, da construção do texto, o leitor contempla e vive as mesmas
possibilidades dos personagens da ficção, o mundo imaginário das camadas literárias torna o
relato verossímil. E como espreitadores da cena fictícia, mas que se aproxima literariamente
da realidade, observamos Sálvia arrumar a mesa para o jantar e esperar um aviador que já não
existia. O choro pela ausência deste é como a música inaudível que ambos usavam para
dançar.
825

A cena melancólica foi repetida por mais um sábado: “Enquanto comia, olhava para
o fantasma do aviador, conversava com ele, servia-lhe comida. Depois ela dançou sozinha,
Página

abraçada ao quepe” (HATOUM, 2013, p. 23), cena esta que comprova o apego a um fato já

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consumado, a morte do aviador, mas ainda assim não assimilado a partir das atitudes da
personagem. De acordo com a assertiva de Jaime Ginzburg (2012, p. 12), de uma maneira
geral, o ser melancólico tende a se comportar da seguinte maneira: “O comportamento
melancólico é caracterizado por um mal-estar com relação à realidade [...] o sujeito não se
conforma com a perda. Embora objetivamente possa ter sido informado do que ocorreu, não
aceita a situação”. O ser melancólico associa sua perda à incerteza quanto às possibilidades da
vida que lhe possam fazer sentido, por vezes se torna um ser autodestrutivo ou masoquista
que fica rememorando lembranças dolorosas. Assim, agia Sálvia ao esperar inutilmente um
ser que não mais existia, o silêncio da espera era o mais doloroso. Não se sabe quanto tempo
durou.
Entretanto, como essa história não é “totalmente triste”, após anos, Sálvia se casa com
o tio do narrador: “viveram juntos trinta e um anos e sete meses. Morreram na mesma
semana, primeiro ela, dois dias depois, meu tio” (HATOUM, 2013, p. 23). Qual a causa da
morte do tio? É uma coincidência que nos leva a acreditar que a tragédia não se encerra com a
morte do aviador, ela perdura até o fim dos acontecimentos da crônica narrada. O ser
melancólico que não se conforma com a perda, que não suporta viver sem o objeto de seu
amor entrega-se ao mais doloroso silêncio da espera: a dança da morte, como assim parece
encarnar a personagem Sálvia Belamar, que mesmo sendo uma criação literária figura como
retrato do ser humano e sua representação enquanto ser limitado pela vida, esta seguindo
pelas encruzilhadas do tempo.

4 “História de dois encontros”: racismo, resignação e tempo duplo

Já a crônica “História de dois encontros”, publicada originalmente no periódico O


Estado de S. Paulo em 29 de maio de 2005, retrata o silêncio dos marginalizados, destacando
uma época, não tão distante de nós, que ainda expunha o preconceito racial. A história é
dividida em dois encontros: o primeiro é o do silêncio, da resignação perante a
marginalização da sociedade, o segundo encontro é o da realização, a vitória pela educação,
pela conscientização dos direitos sociais. Samira Nahid de Mesquita (2006) afirma que o
conflito do texto narrativo tanto pode recair sobre o indivíduo em si, como pode ser posto no
826

contexto social dentro do qual os personagens se situam. O cronista pode fazer relações entre
o trabalho e o capital, entre a classe dominante e a dominada constituindo-se, assim, uma
Página

narrativa de figurativa reflexão social.

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Para o narrador, na década de 1960, em Manaus, os jovens da elite costumavam
frequentar um clube grã-fino da cidade intitulado por “mingau dançante”, o narrador sem
nome afirma frequentar o local porque era músico e era integrante de uma banda que se
apresentava no clube. Ele possuía um antigo colega de escola, do famoso Ginásio Pedro II e o
convidou para assistir à apresentação no clube elitista. Não esperava o que estava por
acontecer. Um homem, possivelmente o diretor do clube, barra seu amigo que era negro com
a aviltante afirmação: “preto não entra aqui” (HATOUM, 2013, p. 39). O prosseguir dos fatos
nos mostra uma atitude resignada por parte do insultado, o mesmo aceitou a humilhação,
conformado, se afastou do clube e “desceu a avenida, calado” (HATOUM, 2013, p. 39, grifo
nosso).
O silêncio é destacado não como uma atitude deliberada do personagem, mas como
uma impossibilidade. Em seu Tratado Lógico-Filosófico, Ludwig Wittgenstein, discorre sobre
a relação entre linguagem e silêncio, afirmando que “sobre aquilo de que não se pode falar,
deve-se calar” (WITTGENSTEIN, 2001, p. 281) e, assim, essa tônica do silêncio transforma-
se em uma intransitividade opaca na qual se mostra a narrativa como uma interrupção da
linguagem do indivíduo em detrimento de sua posição inferiorizada perante o ser que o
insulta. Vale ressaltar que George Steiner (1988) também aponta que a “crise da palavra” ou
do silêncio se dá em decorrência das pressões exercidas sobre a linguagem pelas mentiras
totalitárias e pela inversão dos valores sociais. Para o autor, a característica dominante
daquele que impõe ou determina o silêncio do outro é a superioridade, que é vista, na crônica
em análise, na posição do dono do clube grã-fino.
Na segunda parte temporal-memorialística dessa crônica, percebemos que a memória
do passado irá se integrar à confecção do próximo encontro: após anos sem ver o amigo, o
narrador nos conta que o encontrou por acaso na Praça da Saudade, quando estava se
dirigindo ao tribunal. Era um advogado: “Quase não o reconheci: parecia um atleta, nem de
perto aparentava um cinquentão. Usava paletó e gravata; reparei também nas abotoaduras
pretas, nos sapatos de cromo, no guarda-chuva cinza” (HATOUM, 2013, p. 40). Entretanto,
ainda guardava a velha memória triste: “depois paramos num bar da praça da Saúde, onde ele
se lembrou daquele episódio, ‘na época em que tu tinhas pretensões musicais e eu era um
negrinho, filho de uma lavadeira com um estivador” (HATOUM, 2013, p. 40).
827

A determinação rememorativa que impulsiona a trama não significa que a narrativa


será plena em sua reconstituição do passado; antes, será vazada pelas fendas que
Página

invariavelmente participam da memória, o passado vivido e perdido se confundirá com o

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presente. De acordo com Ginzburg (2012, p.74) “na medida em que o sujeito não tem
percepção de sua própria situação de dominado, em razão do controle ideológico, ele não
corresponde ao perfil de sujeito pleno”. Ou seja, mesmo que o sujeito se torne um ser
realizado profissionalmente, mas continue escravo das ideologias que lhe são impostas a
respeito de sua posição social, jamais poderá dominar plenamente a si mesmo ou a natureza.
Ainda segundo Ginzburg (2012), os tempos recentes são caracterizados por uma
presença forte de vários tipos de violência, seja social, física, psicológica. O personagem da
crônica narrada, indubitavelmente, se enquadra no âmbito da violência social, foi vítima de
uma sociedade ainda amalgamada pela ideia colonialista dos brancos dominando os negros. A
realização pessoal e a persistência do personagem foi o fator determinante da história dessa
crônica: “Devo minha carreira à escola pública” (HATOUM, 2013, p. 40). Há na leitura dessa
afirmação um sutil desmerecimento à meritocracia e uma referência às oportunidades
concedidas através das políticas públicas do país, espécie de exaltação aos que, mesmo
perante as dificuldades sociais, conseguiram alcançar uma melhor posição social diante dos
obstáculos.
Em meio a esses acontecimentos, um novo encontro: em frente ao clube grã-fino, um
velho sentado na calçada, um cumprimento silencioso: “meu amigo parou e estendeu o cabo
do guarda-chuva para o velho, que o apertou como se fosse a mão de um homem [...]. “Toda
quinta-feira ele cumprimenta o meu guarda-chuva. A primeira vez que joguei uma nota de dez
reais no chão, ele se ofendeu e disse que não era mendigo [...]. É o cara que me barrou, não se
lembra de mim” (HATOUM, 2013, p. 40). Percebemos que a memória do passado vivido é
entrelaçado à memória do presente e essas memórias se amalgamam num atravessamento de
silêncios que se alternam, ora ocorre o silêncio do oprimido, ora ocorre o silêncio do opressor
que já não se encontra na posição de opressor, mas, considerando o seu estado atual, tornou-se
vítima de seus próprios infortúnios.
Sendo assim, os dois encontros narrados não se constituem nos encontros entre o
narrador e o amigo, mas entre este e o dono do clube e nas transformações acarretadas entre
um encontro e outro, na constituição do sujeito e no reconhecimento de sua posição social
independentemente de cor ou raça. Os dois encontros nos mostram que o mesmo sujeito pode
ser vítima da sociedade, mas também pode ser um agente transformador da mesma, que pode
828

calar-se quando lhe for impossibilitada a voz, mas pode falar através da sua realização
enquanto sujeito pleno de suas possibilidades.
Página

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Considerações finais

Levando em consideração o exposto, concluímos que a narrativa curta de Milton


Hatoum, mais especificamente as crônicas “Dança da espera” e “História de dois encontros”,
formam a tríade da crônica de Hatoum melancolia-silêncio-lirismo ao destacar aspectos
narrativos a respeito da condição do personagem na obra literária. Seja nas silenciosas danças
de espera, seja nos silenciosos encontros sociais, o que importa não é o que está dito, há
alegria nos mistérios bem mais do que nos desvendamentos, nos interditos, na memória e no
silêncio.
Percebemos, a partir das análises das crônicas citadas, que a ambiguidade entre a
ficção e a realidade não precisa ser resolvida, pois a própria ambiguidade constitui-se fator
determinante na trama narrativa, pois como afirmou Castello (2013, p. 305) “a novidade não
está nem no apego à verdade nem na escolha da imaginação: mas no fato de que o cronista
manipula as duas coisas ao mesmo tempo”, e, dessa forma, não precisa explicar ao leitor em
qual posição se encontra, visto que a própria característica da crônica contemporânea é esta:
sua radical liberdade.
Essa mesma liberdade foi vista nas crônicas analisadas neste trabalho, tendo em vista o
fato de o escritor captar artisticamente fatos ou memórias do cotidiano que podem ser
confundidos ora com a realidade, ora com a ficção. Assim, a conclusão dessa pesquisa amplia
as visões acadêmicas sobre a crônica de Milton Hatoum, que é pouco explorada em pesquisas
acadêmicas na atualidade, talvez devido a distância temporal da obra diante da crítica literária,
mas que se enquadra no âmbito das produções literárias contemporâneas da melhor estirpe.
Um solitário à espreita é o título do livro de crônicas de Milton Hatoum. Mas é
também o narrador, os narradores das histórias contadas. Esse solitário pode ser o próprio
autor ou o leitor diante da obra literária. Então, não há apenas um solitário à espreita, mas
muitos, múltiplos. E eles seguem pelos caminhos enviesados do dia-a-dia, captando as
imagens de nosso cotidiano turbulento.

Referências
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CASTELLO, José. Crônica, um gênero brasileiro. In: VIOLA, Alan Flávio (org). Crítica
literária contemporânea. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2013.
Página

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COMPAGNON, Antoine. Literatura para quê? Trad. Laura Taddei Brandinni. Belo
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GINZBURG. Jaime. Literatura, violência e melancolia. Campinas: Autores Associados,


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ROSENFELD, Anatol. Literatura e personagem. In: CANDIDO, Antonio et al. A


personagem de ficção. 11. ed. São Paulo: Perspectiva, 2009.

SÁ, Jorge de. A crônica. 6.ed. São Paulo: Ática, 2005.

SAMPAIO, Aíla. Milton Hatoum: personagens em trânsito. Diário do Nordeste, 04 abril


2009, p. 04. (Suplemento Caderno 3)

SCRAMIN, Susana. O território da identidade. Revista Cult, n. 33, São Paulo, julho 2000. p.
11.

STEINER, George. Linguagem e silêncio: ensaios sobre a crise da palavra. Trad. Gilda
Stuart e Felipe Rajabally. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

WITTGENSTEIN, Ludwig. Tratado Lógico-Filosófico. Trad. Luiz Henrique Lopes dos


Santos. São Paulo: Edusp, 2001.

“Milton Hatoum, um cronista à espreita”. Entrevista concedida à Revista Cult, 2013, nº 07.
Disponível em: <http://revistacult.uol.com.br/home/2013/07/milton-hatoum-um-cronista-a-
espreita/>. Acesso em: 20/06/16.
830
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ISBN: 978-85-7621-221-8
GT6 – LINGUAGEM LITERÁRIA CONTEMPORÂNEA: O NARRADOR E O EU
LÍRICO

A IMAGEM DISTORCIDA NO ESPELHO: O JOGO DO DUPLO EM DOIS


IRMÃOS, DE MILTON HATOUM

Kalyn Kegia Cardoso Bezerra Costa (UERN)128

Introdução

A temática do duplo é bastante recorrente e se faz presente em vários campos de


estudo como na história, filosofia, psicologia, arte, folclore, literatura e na vida do homem de
forma geral. Da maneira mais abrangente, o duplo seria visto como toda e qualquer forma de
cisão/desdobramento, o que implica a ideia de existência de dois elementos, dois seres, da
bipartição de Um em Dois, original/cópia.
O mesmo se manifesta de diversas formas, a saber, os sósias, os gêmeos, o reflexo
especular ou não, o eco, o retrato, a metamorfose física ou comportamental dentre outras
formas que ao longo da história vêm ganhado espaço privilegiado principalmente nas mídias e
nas manifestações literárias. Esta é uma temática considerada bastante cíclica em nosso meio,
já que esta trata-se de uma questão humana que ganha mais expressão na literatura, haja vista
o ser humano viver e ser um duplo de si.
A gemelaridade e a projeção especular são alguns dos primeiros aspectos tratados a
partir do tema da cisão do Eu. A obra Dois irmãos (2000) é objeto significativo para a
identificação da questão do duplo gemelar e especular na literatura contemporânea brasileira.
A referida narrativa, além de expressar a problemática da cisão gemelar, ainda deixa
claramente explícita outras formas de ocorrência do duplo como a duplicação especular, o que
aponta ainda mais seu caráter dual além de trazer ainda a questão do conflito fraternal e da
identidade como forma de afirmação da unicidade do indivíduo.

1 O duplo: considerações teóricas

O termo “duplo” provém do latim duplus e remete a ideia de bipartição, de


831

desdobramento, que, no imaginário também se relaciona à cisão, à antítese. Segundo Nicole


Página

128
Discente especial Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem (PPCL) da Universidade do
Estado do Rio Grande do Norte (UERN) – E-mail: kalynkegia@hotmail.com

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Fernandez Bravo (1998), Döppelgänger seria uma das acepções para o alter ego ou seja, o
duplo; o termo provém do alemão e traduzindo para o nosso idioma significaria “segundo eu”,
“duplo”, “aquele que caminha do lado”, “companheiro de estrada” (BRAVO, 1998, p. 263).
Para Bravo (1998, p. 263) o duplo pode ser “Ao mesmo tempo idêntico ao original e
diferente – até mesmo o oposto – dele [...] (ele é ao mesmo tempo interior e exterior, está aqui
e lá, é oposto e complementar), e provoca no original reações extremas (atração/repulsa)”.
Nesse sentido, pode-se perceber o caráter paradoxal do alter ego, que implica na relação dual
percebida pela contradição existente entre as palavras, o que estabelece ainda dicotomias
interior/exterior, oposto/complementar, eu/outro. O duplo é dependente do Eu e o encontro
com esse indivíduo provoca diversas sensações que consequentemente originam uma tenção
no sujeito duplicado.
Gonçalves Neto defende a existência do duplo endógeno e exógeno. O primeiro
“representa uma extensão do sujeito e seu perfeito desdobramento” (GONÇALVES NETO,
2011, p. 25), ou seja, é um duplo que surge a partir do sujeito ao qual lhe seria atribuído um
caráter de sombra, podendo se dá ainda entre o Eu e o Outro uma relação harmônica ou
desarmônica e de contraste; enquanto no segundo caso, a figura do duplo forma-se fora do Eu
não estando necessariamente ligado ao seu interior. Dessa forma “é possível alguém vir a
reconhecer em outrem o seu Duplo. Esse reconhecimento em que dois “eu(s)” se entendem análogos e
partilhando uma identificação anímica, estabelece igualmente o aparecimento do Duplo (duplo
exógeno), desta vez aplicado a cada um deles”. (CUNHA, 2009 apud GONÇALVES NETO, 2011, p.
26).
Assim, o duplo pode originar-se tanto interiormente quanto exteriormente ao indivíduo
o que possibilita um reconhecimento do Eu no Outro e vice-versa como se torna explícito no
caso do sósia e dos gêmeos, em que a cisão do eu permite enxergar no Outro a si mesmo.
Nesse sentido, o duplo seria um segundo Eu, o Um e o Outro sem deixar de ser o mesmo, o
que também insinua uma contradição de: “ser ao mesmo tempo ela própria e outra”
(ROSSET, 2008, p.19). Logo, podemos observar que o duplo traz em si uma espécie de
dependência com relação ao seu outro.
Na literatura, o duplo alcança seu auge durante o século XIX, período do Romantismo
“momento em que se consolida e exploração do tenebroso e do irracional na ficção”
832

(MELLO, 2000, p.117). Otto Rank em O duplo (2014) afirma que Hoffmann é o “criador
clássico do duplo, que é um dos motivos mais populares da literatura romântica” (RANK,
Página

2014, p. 19).

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Apesar da representação do duplicado estar, na literatura, diretamente ligada ao
fantástico é importante salientar que a questão da dualidade se faz presente em diversos
gêneros literários como contos, crônicas, ficção, romances dentre outros e que existe desde o
tempo dos nossos ancestrais mais antigos como afirma Ana Maria Lisboa de Mello (2000, p.
111),

A ideia de duplicidade do Eu é uma noção antiga e se desdobra em várias


acepções, consoante o contexto de que e de onde se fala. Na literatura, o
tema do duplo é recorrente porque diz respeito a questões muito inquietantes
para o ser humano. “Quem sou eu?” e “o que serei depois da morte?”

Tais questionamentos fazem parte da vida do homem moderno, cuja principal


preocupação é descobrir a si mesmo, de onde vem e para onde vai. Segundo Nicole Fernandez
Bravo (1998), essas indagações estariam diretamente ligadas à ideia de subjetividade. No
entanto, a questão da dualidade não esteve sempre ligada às questões interiores sendo que,
desde tempos antigos até o fim do século XVI, ele era representado pelo homogêneo em que
eram enfatizadas as semelhanças físicas, bem como o caso da usurpação de identidade ou
substituição.
A questão dos irmãos se faz presente na literatura desde tempos antigos. Os irmãos
gêmeos são indivíduos semelhantes e opostos; duplos, que muitas vezes podem ser
confundidos. São dois e um. O Outro existe com o Um, já que são pares que se completam ao
passo que representam o sinal das ambivalências. Nesse sentido a cisão funciona como uma
espécie de mimese do “eu”.
De acordo com Rank (2014) o tema dos gêmeos é um dos primeiros que tratam da
temática do duplo na literatura. O mesmo autor afirma que os irmãos gêmeos representariam a
realização de um sujeito que trouxe seu duplo visível consigo, o que acarretaria uma espécie
de medo que o indivíduo cindido teria de se deparar com seu Outro a lhe cercar como uma
espécie de sombra, um presságio de morte. Os gêmeos são duplos homogêneos e muitas vezes
esse tipo de bipartição, revela algo grotesco129 sobre o indivíduo duplicado. Daí depreende-se
a ideia de medo, repulsa e aversão causada pelo encontro com o duplo; ver no irmão a “cópia”
de si é sentida como uma espécie de agressão.
833

129
Segundo Victor Hugo (2002) “no pensamento dos Modernos, o grotesco tem um papel imenso. Aí está por
Página

toda a parte; de um lado cria o disforme e o horrível; do outro, o cômico e o bufo” (HUGO, Victor. Do Grotesco
e do Sublime. p.p. 30-31)

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1.1 O espelho

Outro ele mento que está relacionado ao mito do duplo é o espelho; “o espelho é uma
superfície plana, que fornece uma imagem virtual correta, mas invertida e especular de
tamanho igual ao objeto refletido” (SOUZA, 2005, p. 36). E têm sido “associados às
divindades desde os primórdios da civilização. Refletindo, eles geram o Outro à sua imagem e
semelhança.” (SOUZA, 2005, p. 40). Ele é um aspecto do duplo físico e representa uma
forma onde metaforicamente se dá um diálogo entre o eu e seu duplo. As projeções
concebidas pelo espelho individualizam-se, elas são o duplo do “eu”.
Os espelhos refletem imagens não reais, representações da realidade, assim como o
retrato. O espelho não reflete sentimentos, pensamentos, nosso interior, e sim, o exterior, as
ações e reações que nosso corpo produz; o sorriso, as lágrimas, as expressões corporais e
faciais que executamos. As superstições a respeito do espelho são muitas. Esses objetos
sempre estiveram presentes nas culturas populares e em rituais de magia. Para alguns a
projeção especular seria como que uma projeção da alma, uma imagem dela, uma duplicação
especular de si.
O espelho não projeta o sujeito em si, mas sim seu duplo, um reflexo do sujeito,
através do qual é possível reconhecer a própria identidade “ao mirar-se no espelho, o sujeito
gera psicologicamente uma outra pessoa por meio da sua imagem refletida, por dar a ela
consistência e forma e, nesse processo, ‘outrar-se’”, (GONÇALVES NETO, 2011, p. 37).
Assim, “o rosto que o espelho reflete é igualmente aquele que o contempla” (FOUCAULT,
2003, p. 199). Desse modo, o espelho surge como “um canal pelo qual o ser humano transpõe
os limites da presença-ausência, chegando ao centro das motivações humanas – seu
verdadeiro ser”. (COSTA & CRUZ, 2007, p. 11). Portanto, este objeto suscita uma espécie de
reflexão sobre a existência humana.
Nas palavras de Clément Rosset (2008), o espelho simboliza a verdade, mas também
uma fantasia, sendo o mesmo “uma utopia, pois é um lugar sem lugar. No espelho, eu me vejo
lá onde não estou” (FOUCAULT, 2003, p. 415). Se ver onde não se estar é se enxergar fora
de um espaço real e concreto, é avistar um outro de si, com características semelhantes mas ao
mesmo tempo opostas. Mirar-se no espelho é, na procura de um Eu, encontrar um Outro, é
834

duplicar-se.
O reflexo sugere ainda uma espécie de metáfora ilusória, como pode ser observado no
Página

famoso mito grego de Narciso. Neste mito temos um belo rapaz que, ao ver sua imagem

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refletida na água, apaixona-se por ela sem saber que se trata de seu próprio reflexo. Ele se
sente atraído por sua outra face, e, por não compreender tratar-se de seu duplo, definha
contemplando seu reflexo até a morte.
Portanto, ao perceber seu reflexo no espelho é como se o homem achasse o que
realmente procura (ou não), um preenchimento para a lacuna que existe em si, ele não é o
reflexo, porém o reflexo é ele, é o duo do uno, como pode ser percebido na obra Dois irmãos
(2000).

1.2 O outro corporificado: a duplicação do Eu

A obra Dois irmãos (2000), do autor amazonense Milton Hatoum, está dividida em
doze capítulos e narra a história de uma família de origem libanesa composta por Halim o
patriarca da família, vindo do Líbano, Zana, sua esposa filha do viúvo Galib também
libaneses, seus filhos, os gêmeos, Yaqub e Omar, e Rânia a filha mais nova do casal. A
narrativa se passa na cidade de Manaus, no estado do Amazonas, a partir da década de 20,
época posterior a Primeira Guerra Mundial (1914-1918). A história é contada em primeira
pessoa por Nael, um narrador personagem, filho de Domingas, empregada da família, e um
dos gêmeos filhos dos patrões. O narrador, que tem o nome do pai de Halim, seu avô, busca
ao longo da narrativa, conhecer suas origens ao passo que relembra e relata a vida da família
da qual faz parte.
Dentre as temáticas que permeiam a obra Dois irmãos, de Milton Hatoum, a temática
do duplo é um elemento que também surge nessa obra. Neste romance, nos deparamos com o
que Nicole Feraz Bravo (1998) considera como duplo homogêneo, ou seja, duplos que
aparecem representados nas figuras dos sósias e dos gêmeos idênticos, e que segundo ela, se
fizeram presentes em inúmeras narrativas desde épocas remotas até o século XVI, embora
que, ainda hoje seja constante a questão do idêntico em narrativas modernas. A princípio,
tem-se na referida obra um duplo que se manifesta através do igual, do “idêntico”
representado pelos irmãos gêmeos idênticos Yaqub e Omar.
Em Dois irmãos (2000) o duplo corporifica-se como um indivíduo “independente e
visível do Eu” (HATOUM, 2000, p. 25) o que deixa explícita a cisão exterior que segundo
835

Bravo (1998) na representação gemelar surge como a primeira forma de duplo. Omar e Yaqub
são duplos externos em que a semelhança física, o sangue e a mulher amada tornam-se
Página

elementos responsáveis pela “ligação” entre eles.

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Os irmãos são duplos complementares e apesar das semelhanças físicas: “Alguém,
disse que era [Yaqub] mais altivo que o irmão. Zana discordou: ‘Nada disso, são iguais, são
gêmeos, têm o mesmo corpo e o mesmo coração’” (HATOUM, 2000, p. 23), os aspectos
contrastantes são preponderantes à temática do duplo na obra, já que é pelos contrastes que
ela aparece de forma mais intensificada. O duplo seria “como uma parte não apreendida pela
imagem de si que tem o eu, ou por ela excluída: daí seu caráter de proximidade e de
antagonismo” (BRAVO, 1998, p. 263), o que realça a existência de polos opostos. Assim,
“[...] se o duplo gerado a partir de um sujeito permanece enquanto seu contraste,
confirmando-se uma relação bilateral de adversidade e oposição” (CUNHA apud
GONÇALVES NETO, 2011, p. 25), faz surgir inúmeros conflitos entre esses sujeitos e que,
na maioria das vezes estão ligados à questão da identidade alteridade, já que,

Para aquele que se sente dividido, a duplicação da imagem tende a impedir a


identificação [...] Em um outro enfoque – porém complementar – pode-se
dizer que o conflito inicia no momento em que uma das partes percebe que o
“Eu” está separado dicotomicamente do “Outro” – instantaneamente, o
“Outro” pode ser traduzido em uma entidade incorpórea que causa ameaça
ao “Eu” (ARRUDA FILHO, 2008, p. 177-178).

A existência de um Outro de si aparece como responsável pelo surgimento de


embaraços e angústias para o Eu original que se sente fracionado, copiado ou ainda
incompleto ao passo que “o encontro com o duplo apresenta-se sempre como inquietante e
desestabilizador para o sujeito, visto que o desdobramento introduz questionamentos sobre
sua identidade e unidade, resultado do confronto entre o eu e o outro”. (LEITE, 2013, p. 45),
gerando uma confusão de sentimentos no “Eu original”.
Os gêmeos eram dois e um ao mesmo tempo, “uma réplica perfeita do outro, sem ser o
outro” (HATOUM, 2000, p. 21). Eles se odiavam, não suportavam a presença um do outro.
Sobre este aspecto, Raul José Matos Arruda Filho (2008, p.174) afirma que “para o indivíduo
que se mostra incapaz de conviver pacificamente com o Outro, o traço identificador que o
distingue no universo contextual se apresenta como sendo usurpado pelo duplo”, ou seja, é
como se a identidade – marca distintiva do homem - dos irmãos fosse retirada de um pelo
outro e vice versa, o que provoca nos gêmeos sentimentos de angústia, além de intensificar a
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discórdia entre ambos ao passo que um se vê refletido no outro e não o reconhecê-lo como
seu “reflexo” físico é admitir sua própria inexistência.
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Os ciúmes, a inveja e a rivalidade acentuam de forma significativa a “insolidez” da
vida dos gêmeos ao passo que o sentimento de que algo sempre está sobrando gera nos irmãos
uma espécie de aversão, em relação ao outro.

Essa duplicação que se torna desdobramento, se encara sob outro ângulo é


um desafio ao humanismo fundado na unidade do indivíduo, e, como tal
comporta um elemento de transgressão no inconsciente moderno: suscita o
jubilo particular que provoca o espetáculo de uma falha instalada na
representação do sujeito (PERROT, 2005, p. 391).

Assim, entende-se que a bipartição do Eu traz consequências tanto físicas quanto


psicológicas aos indivíduos duplicados, haja vista que o ego e o alter ego buscam uma
afirmação identitária que pode ser baseada de várias formas, sendo que a principal está no
extermínio do outro pois tal duplicidade implica a existência de uma rivalidade cada vez mais
definida entre esses indivíduos que buscam ser o “Único” de si.
A formação identitária de Yaqub e Omar está diretamente ligada à questão do duplo,
pois tal bipartição faz com que ambos busquem uma afirmação indenitária já que nenhum
quer ser o “Outro”, e sim o “Eu”, o “Um”, o titular, tendo em vista a perspectiva de que
cessaria a existência do duplo. Logo a busca pela identidade é, na história do mito do duplo, o
estatuto do ser cindido.

1.3 A imagem distorcida no espelho

A vida de Yaqub estava ligada à de Omar e vice-versa, e apesar de serem “reflexos”


fieis um do outro, os irmãos eram a contrapartida de seu modelo, o avesso do outro. Sobre o
tema dos reflexos e dos espelhos, Ivete Vidigoide Souza (2005, p. 40), “Os espelhos têm sido
associados às divindades desde os primórdios da civilização. Refletindo, eles geram o Outro à
sua imagem e semelhança”. Os dois irmãos se enxergavam como que em um espelho, este por
sua vez também seria um elemento associado à presença do duplo como afirma Franz (apud
LAMAS, 2002, p. 149),

No espelho refletimos; o espelho reflete nossa imagem. A palavra refletir


837

tem duplo sentido e também significa refletir sobre si mesmo. Pensar,


refletir, significa voltar-se sobre si mesmo, encontrar a própria identidade. E
o espelho mostra objetivamente sua própria face
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O espelho não reflete quem somos, e sim, projeta um reflexo. A imagem especular configura-
se como o duplo do Eu refletido, o Outro refletido em nós. O reflexo e a sombra são duplos e,
segundo Otto Rank, tanto o reflexo quanto a sombra, “as duas como imagens iguais opõem-se
ao Eu” (2014, p. 22). Na referida obra, o corpo físico do gêmeo corresponde metaforicamente
a um reflexo, à projeção do ego. O corpo físico duplicado se distancia da unidade identitária
pois, dá origem a dois indivíduos.
Desse modo, ressaltamos que o fenômeno do duplo perpassa o romance de Hatoum. A
imagem especular pode distorcer a realidade; ao passo que, perceber a existência desse
reflexo, desse Outro, muitas vezes resume-se a identificar em si uma espécie de incompletude
ou mesmo vazio existente em cada sujeito. Portanto, o reflexo “ao mesmo tempo que parece
ser ele não é” (GONÇALVES NETO, 2011, p. 36), os irmãos, apesar de serem gêmeos, eram
diferentes. No entanto, a “imagem de Yaqub era desenhada pelo corpo e pela voz de Omar”
(HATOUM, 2000, p. 62) e vice-versa.
Em O duplo (2014), Rank afirma que para algumas culturas o reflexo seria como a
alma do indivíduo. Para Yaqub, Omar era o reflexo que deveria ser quebrado e vice-versa.
Acerca do reflexo entre irmãos, Otto Rank, observando a perspectiva de Schneider, afirma
que “o irmão mais novo, mesmo na vida cotidiana, muitas vezes se assemelha ao irmão mais
velho. Ele é como uma imagem refletida do “ego” fraternal tornada viva e, portanto, também
um rival em tudo que aquele vê, sente e pensa”. (SCHNEIDER, 1913 apud RANK, 2014, p.
127).
Nesse sentido, os irmãos eram rivais e essa rivalidade enseja cada vez mais a presença
do duplo na narrativa. A imagem especular pode distorcer a realidade, já que, pelo espelho o
sujeito se divide, torna-se duplo.
Dessa forma, Yaqub fazia de tudo para se distinguir de Omar e provar para todos que
não era como ele, não era ele “Não perdera o ar soberbo: o orgulho de alguém que quis provar
a si mesmo e aos outros que um ser rude, um pastor, um ra’í, como o chamava a mãe, poderia
vir a ser um engenheiro famoso, reverenciado no círculo que frequentava em São Paulo”
(HATOUM, 2000, p. 195). Os dois eram como um desenho, um retrato um do outro. Sobre o
retrato Gonçalves Neto (2011, p. 39), declara que,
838

Diferentemente do espelho, a imagem fotográfica não desvela, tal qual a


imagem especular, a presença de nossa consciência pelo alheio. Ela tão
Página

somente reproduz fielmente a forma do sujeito fotografado, sem nenhuma


preparação ou força-motriz de revelação da identidade humana.

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Sob essa perspectiva, o retrato trata-se da imagem do Eu num determinado momento.
Ao se verem “refletidos” ou “retratados” os irmãos enxergam uma distorção de si, algo que
não queriam ser, indivíduos em constante inaceitação. E para Rosset (2008, p. 17),

Na ilusão, quer dizer, na forma mais corrente de afastamento do real, não se


observa uma recusa de percepção propriamente dita. Nela a coisa não é
negada: mas apenas deslocada, colocada em outro lugar. Mas no que
concerne à aptidão de ver, o iludido vê a sua maneira.

Assim, os gêmeos veem o que são e o que não são ao mesmo tempo, e “tanto o duplo
quanto a imagem especular favorecem uma espécie de reconhecimento da própria identidade
do sujeito” (GONÇALVES NETO, 2011, p. 36), pois muitas vezes o acontecimento do
encontro com o duplo faz com que o ego se identifique ou se encontre no outro.
Em Dois irmãos (2000) o duplo aparece ainda como uma espécie de perseguidor que
se origina da existência dos contrastes entre os irmãos. A esse respeito João Emeri
Damasceno (2010, p. 31) salienta que, “O duplo perseguidor pode ser definido como um
animal, um monstro, uma imagem no espelho, um retrato, uma fotografia ou como gêmeo que
trai o irmão, usando da ameaça e da força física para aniquilar o outro”. A perseguição pelo
duplo é incontestável. Assim, em alguns momentos do romance tanto Omar quanto Yaqub
assumem um caráter de “sombra” seguindo um ao outro. Segundo Jung “a figura da sombra
personifica tudo o que o sujeito não reconhece em si e sempre o importuna, direta ou
indiretamente, como, por exemplo, traços inferiores de caráter e outras tendências
incompatíveis”. (JUNG, 2000, p. 277). Essa sombra metaforizada nos gêmeos se revela como
o avesso de cada um, um duplo que assim como quase todas as outras formas de
representação do alter ego incomodam; logo, o “encontro consigo mesmo significa, antes de
mais nada, o encontro com a própria sombra” (JUNG, 2000, p. 31).
Sobre a temática do duplo como perseguidor Otto Rank salienta que “a pessoa do
perseguidor representa muitas vezes o pai ou o seu substituto (o irmão, professor, etc.) e,
também, [...] o duplo é frequentemente identificado com o irmão” (RANK, 2014, p. 126). Os
irmãos eram perseguidores um do outro, apesar de o mais velho, nesse aspecto, se sobressair
839

com relação ao mais moço. A polícia aparece metaforicamente como uma forma de
materialização ou de realização do desejo de Yaqub com relação à Omar: “só não o agarraram
Página

por que Rânia agiu. Subornou policiais e delegados, ofereceu-lhes cédulas em envelopes

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lacrados, dizendo: que deixassem Omar, livre. Que o deixassem escapar” (HATOUM, 2000,
257).
O imaginário do duplo possibilita, de certa forma, a libertação dos desassossegos
presos, contidos no indivíduo. Yaqub durante sua vingança liberta suas angústias; o
engenheiro arranjara um modo de se vingar do irmão e, de certa forma, fazer com que este
pague por todo o mal sofrido pelo matemático e que, por sua vez, era atribuído à existência de
Omar. Tratando Mello (2000, p. 123) assinala que, “é na alteridade, revelada nas diferentes
situações, que o Eu descobre faces inusitadas de si mesmo”.
A gemelaridade é no mundo real muitas vezes composta por relações de desassossego.
A identidade habitualmente relaciona-se a uma questão de instabilidade já que a bipartição
implica uma espécie de dúvida com relação ao reconhecimento dos indivíduos cindidos, no
caso, os gêmeos, haja vista ainda que, o gemelar busca uma unicidade e/ou identificação com
relação ao outro.
Os irmãos desejavam auto afirmarem-se buscando uma unidade, buscando formar-se
como um Eu individual que não admite a existência de um Outro de si já que, como é sabido,
a identidade do homem relaciona-se à sua personalidade, sendo vista dessa forma como
inalienável, o que caracteriza cada indivíduo como ser único. No entanto, faz-se necessário
enfatizar que todo “Outro” necessita de um “Eu” para existir, assim, todo o ser bipartido
possui um Outro de si que pode ser compreendido como uma cópia do principal reconhecida
no Outro. Nesse sentido, o contraste no comportamento dos irmãos é preponderante na busca
da afirmação de uma identidade, de uma unidade.
Desse modo, torna-se importante ainda observar que o duplo na obra estaria também
relacionado à questão da identidade como forma de afirmação da unicidade e reconhecimento
do indivíduo. Sob tal perspectiva Gonçalves Neto (2011, p. 29) enseja que “O homem procura
afirmar a sua integridade, assumindo ilusoriamente, uma unidade, uma identidade homogênea
que precisa a cada instante ser (re) pensada e (re) construída”, ou seja, os sujeitos buscam uma
afirmação identitária que é literalmente impossível já que nesse processo o sujeito está em
constante transformação e no caso do duplo a identidade de um só poderá ser reconhecida
através da existência do outro.
É incontestável o desejo de tornar-se único, diferente dos demais indivíduos. Yaqub
840

queria se distinguir de Omar e para isso vai embora para São Paulo ao passo que Omar
apresenta-se como um sujeito extremamente hedonista, “sempre esteve por ali, expandindo
Página

sua presença na casa para apagar a existência de Yaqub” (HATOUM, 2000, p. 62). Nesse

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fragmento torna-se evidente uma diferença que origina os pares ficar/partir, coragem/medo, o
que reafirma a ideia de que “o duplo se faz presente pela união de dois contrários”
(GONÇALVES NETO, 2011, p. 21), um só existe em função do outro; sozinho o duplo não é
nada nem ninguém.
Desejar ser um outro ou alguém diferente do que se é, abandonando suas
características tanto físicas quanto psicológicas, apesar de impossível, implica em acabar com
deficiências; a não constância da identidade torna os indivíduos infelizes. Os irmãos não eram
completamente felizes, ambos viviam a angústia de um confronto de um combate que resulta
na destruição fraternal. Yaqub e Omar viveram numa situação de destruição mutua
característica do duplo pois o Eu acha que destruindo o duplo será o Único enquanto o duplo
deseja ser o Eu.
Apesar de poder inferir a vitória da disputa entre os irmãos a um dos dois, ao final,
ambos terão um fim de infelicidade. Yaqub se sente o outro, o gêmeo rejeitado, o reflexo de
Omar e não a figura principal. Assim a perseguição ao irmão surge como tentativa de
afirmação de identidade, como sendo o principal, o Eu do qual Omar é Outro, o original
enquanto o caçula a cópia. Omar sozinho, maltrapilho, deteriorado pelo sofrimento da prisão
“só osso e pelanca... Meu irmão não parece humano” (HATOUM, 2000, p. 261) dizia Rânia.
Em Dois irmãos (2000) os gêmeos são tão parecidos que se torna difícil identifica-los,
já que a presença e/ou existência do outro torna difícil o estabelecimento de uma identidade.
O conflito em torno dessa identidade é o que faz com que não se estabeleça as identidades dos
irmãos como únicas, já que as semelhanças físicas impedem que isso aconteça e gera entre os
gêmeos o conflito deixando evidente que ““Os dois nasceram perdidos”” (HATOUM. 2000,
p. 237) e “o abismo mais temível estava em casa” (HATOUM, 2000, p. 41). Nessa óptica
percebe-se que a semelhança física entre os irmãos aparece como principal fator de
identificação do duplo e que a única forma de afirmação da identidade de Yaqub e/ou de
Omar só existiria com a inexistência de um dos irmãos.

Considerações

Constatamos que o duplo na narrativa, corporifica-se como um indivíduo idêntico e


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exterior ao Eu, contudo, torna-se impossível identificar quem seria o Eu e o Outro e vice-
versa, já que, cada um é diferente e igual ao mesmo tempo.
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Percebe-se, ainda, que a busca pela unicidade e afirmação da identidade surge no
romance como um dos elementos instauradores do conflito entre os irmãos, e é acompanhado
pelas desavenças geradas pelo fato de serem “reflexos” um do outro. Vale salientar ainda, que
nenhum queria ter uma “cópia” de si, pois isso lhes causava um mal-estar, um desassossego
característico do encontro com o duplo; visto que, se enxergar refletido no outro surgiria
como uma espécie de desaparecimento da identidade, pois, as características físicas
dificultavam o reconhecimento dos irmãos por parte das pessoas que os circundavam, e, por
parte deles mesmos que viam na presença/existência do outro uma forma de não
identificação, de não afirmação de um indivíduo único, original, sem cópia. O duplo estaria
relacionado à identidade como forma de autoafirmação e reconhecimento do sujeito, e a crise
identitária surge como atormentadora do ser humano mostrando a existência de homens
infelizes.
Cada um dos gêmeos busca afirmar-se como o único, não admitindo dessa forma, a
existência do Outro, da sombra. Essa busca da identidade é, na história do duplo, o objeto do
ser cindido. A não constância dessa identidade acentua a rivalidade entre os irmãos e
tornando-os frustrados, infelizes, e, para ambos, “destruir” o outro seria a melhor maneira de
se assegurar uma (re)afirmação.

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Literatura e Crítica Literária) – Pontifícia Universidade Católica, São Paulo – SP.

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Página

ISBN: 978-85-7621-221-8
GT6 – LINGUAGEM LITERÁRIA CONTEMPORÂNEA: O NARRADOR E O EU
LÍRICO

MEMÓRIA E ESPAÇO NOS CONTOS UM CINTURÃO, DE GRACILIANO RAMOS


E RESTOS DO CARNAVAL, DE CLARICE LISPECTOR

Leandro Lopes Soares (UERN)130


Maria Edileuza da Costa (UERN)131

Introdução

Encontramos no cenário literário brasileiro diferentes estilos de escrita nos grandes


autores que elencam o time de estrelas da literatura nacional. Como exemplo, num breve
percurso histórico, lembramos que alguns optaram por tratar de temáticas voltadas para o
indianismo (José de Alencar), outros preferiram criticar de forma irônica a sociedade e sua
burguesia (Machado de Assis), além daqueles que decidiram, também de forma crítica,
retratar os problemas enfrentados pelo homem nordestino e os conflitos sociais e existenciais
como problemática do ser; é o caso de Graciliano Ramos e Clarice Lispector,
respectivamente.
A obra graciliânica volta-se para o povo residente no nordeste brasileiro, os problemas
enfrentados por eles, tanto pessoais como referentes a fenômenos da natureza, situações do
cotidiano envolvendo a família, os reflexos dos momentos vividos na infância e que refletem
no personagem já adulto, entre outros. Tudo isso de uma maneira que, através da leitura, seus
admiradores se vejam no lugar dos seres fictícios e rememorem algum fato que já
vivenciaram. Por isso,

Para ler Graciliano Ramos, talvez convenha ao leitor aparelhar-se do espírito


de jornada, dispondo-se a uma experiência que se desdobra em etapas e,
principiada na narração de costumes, termina pela confissão das mais vívidas
emoções pessoais. Com isto, percorre o sertão, a mata, a fazenda, a vila, a
cidade, a casa, a prisão, vendo fazendeiros e vaqueiros, empregados e
funcionários, políticos e vagabundos, pelos quais passa o romancista,
progredindo no sentido de integrar o que observa ao seu modo peculiar de
julgar e de sentir. De tal forma que, embora pouco afeito ao pitoresco e ao

130
844

Aluno regular do Mestrado Acadêmico em Letras do Programa de Pós-Graduação em Letras - PPGL, da


Universidade Estadual do Rio Grade do Norte, UERN/CAMEAM – Campus Pau dos Ferros/RN. Email:
leandrolopes83@yahoo.com
131
Professora do Departamento de Letras da Universidade Estadual do Rio Grande do Norte, UERN/CAMEAM
Página

– Campus Pau dos Ferros. Doutora em Literatura pela Universidade Federal da Paraíba, UFPB. Email:
edileuzacostauern@gmail.com

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descritivo, e antes de mais nada preocupado em ser, por intermédio da sua
obra, como artista e como homem, termina por nos conduzir discretamente a
esferas bastante várias de humanidade, sem se afastar demasiado de certos
temas e modos de escrever (CANDIDO, 2006, p. 17).

Nesse sentido, é possível verificar essas características marcantes nos escritos deste
autor, integrante da segunda fase do modernismo brasileiro, em obras como Caetés (1933),
Infância (1945), livro onde se encontra o conto a ser analisado neste artigo, e em Vidas Secas
(1938), um clássico de sua literatura. Ao lado de Rachel de Queiroz e outros escritores,
representa a fase caracterizada pelo regionalismo desse movimento literário.
Companheira de escola literária de Graciliano Ramos, mas já da terceira fase
modernista, Clarice Lispector é uma das principais representantes da literatura de autoria
feminina no Brasil. Sua obra é uma mescla de temas voltados para a existência humana em
suas mais variadas instâncias. Podemos destacar uma abordagem sobre a condição da mulher
perante o homem na sociedade, a voz dada às minorias políticas (crianças, mulheres, idosos,
homossexuais...) e uma constante rememoração da infância, principalmente em seus contos.
Achamos necessário direcionar uma atenção especial aos elementos que propiciam o
acontecimento dos fatos em uma narrativa. No nosso caso, como a proposta é analisar os
espaços onde ocorrem as ações através do recurso da memória nos contos Um Cinturão, de
Graciliano Ramos e Restos do Carnaval, de Clarice Lispector, tanto o espaço como a
memória compõem a base da realização deste estudo.
Intentados em investigar através da análise dos contos supracitados, a influência do
ambiente como palco da ação na narrativa, como aportes teóricos embasamo-nos nos estudos
de Bachelard (2008) e Brandão (2007) sobre a questão do espaço; no que tange a memória
Halbwachs (2003) é nossa referência. Além destes, os estudiosos da obra dos autores, corpus
deste artigo, são de grande valia para a compreensão de suas literaturas.
Sendo assim, num primeiro momento nos deteremos em um breve apanhado teórico a
cerca dos autores que fundamentam esta pesquisa. Em seguida, na análise dos contos
destacando a ocorrência dos elementos já citados anteriormente, bem como algumas
características das obras graciliânica e clariciana. Por fim, apresentaremos nossos resultados.
845
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1 Considerações teóricas sobre memória e espaço na literatura

Encontramos na literatura diferentes formas de escrita variando de um autor para


outro, entre movimentos literários, entre épocas, enfim, divergindo por características
estilísticas que fazem da obra única e com a personalidade do escritor. Recursos são utilizados
para diversificar e até mesmo intensificar o enredo, propiciando análises cada vez mais
abrangentes em temáticas e perspectivas.
É possível destacar, a utilização do recurso da memória nas narrativas literárias, como
meio de redescobrir o passado e também de ressignificá-lo fazendo uma ponte entre o já
acontecido e o acontecimento presente. Nesse sentido, através dessas lembranças podemos
compreender os efeitos de fatos vividos anteriormente e como estes refletem na vivência do
ser na atualidade. Essa memória, portanto, é classificada em dois tipos: memória individual e
memória coletiva. Ambos os tipos relacionam-se por pontos em comum, mesmo com suas
divergências. A primeira diz respeito a uma lembrança particular em que o indivíduo
rememora um fato do seu passado sob seu ponto de vista. A segunda é uma memória
compartilhada por um grupo que vivenciou um mesmo acontecimento só que de diferentes
pontos de vista. Halbwachs (2003) aponta as semelhanças e diferenças entre os dois tipos:

Admitamos, contudo, que as lembranças pudessem se organizar de duas


maneiras: tanto se agrupando em torno de uma determinada pessoa, que as
vê de seu ponto de vista, como se distribuindo dentro de uma sociedade
grande ou pequena, da qual são imagens parciais; portanto. Existiriam
memórias individuais e, por assim dizer, memórias coletivas
(HALBWACHS, 2003, p. 71).

O exceto abre caminho para relacionar a questão da memória à fase da vida


denominada infância; nesse período, determinadas vivências podem acompanhar o homem até
a vida adulta. A infância torna-se assim um meio de entendimento de circunstâncias atuais
justificadas por experiências marcantes em uma época onde ser criança não é tão relevante.
Crianças, na maioria das vezes, são excluídas de muitos momentos familiares, não são
ouvidas, levadas em consideração pelos adultos, que não entendem que essa fase da vida,
alguns acontecimentos refletirão em sua personalidade futura.
846

Por muito tempo os elementos que compõem um texto literário foram analisados de
forma mecânica, ou seja, apenas destacando as características básicas de cada um deles, sem
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levar em consideração sua diversidade. Assim, o narrador, o personagem, o enredo, o tempo e

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o espaço eram trabalhados apenas superficialmente. Há atualmente uma mudança nos estudos
concernentes às categorias narrativas onde suas diferentes formas de ocorrência passaram a
ser consideradas.
Desta maneira, o espaço, categoria priorizada neste estudo, ganhou destaque nas
pesquisas de análise literária, sendo possível identificar seus tipos e como aparecem nas
narrativas. Com isso, a influência e a importância deste, tanto para a compreensão do texto
quanto para um melhor entendimento dos outros elementos citados anteriormente é bastante
pertinente.
Cabe ressaltar, com base no que foi mencionado, o costume de tratar o espaço e o
tempo, como se um só pudesse ser trabalhado se o outro também fosse. Existe uma relação de
complemento entre estes e os outros elementos do texto literário narrativo e isso não pode ser
esquecido. Porém, devemos lembrar que cada um, na sua individualidade, apresenta outros
tipos divergentes no contexto em que o enredo está inserido.
Interessados em abordar o espaço nas narrativas vários teóricos se ocuparam em
estudar o espaço considerando sua relação direta com o tempo na literatura. A título de
exemplo, podemos citar o filósofo russo Mikhail Bakhtin que denominou a relação espaço-
temporal de cronotopia. O termo, por sua vez, subdivide-se em cronotopo, definido como “um
conceito para a observação do comportamento do tempo como dimensão do espaço na
narrativa” (MACHADO, 2010, p. 214). Complementando o que vem sendo dito, outra
estudiosa de Bakhtin, sobre o termo em discussão afirma:

Quanto ao conceito de cronotopo, este traz no nome um maior equilíbrio


entre as dimensões de espaço e de tempo. Bakhtin toma-o emprestado à
matemática e à teoria da relatividade de Einstein para exprimir a
indissolubilidade da relação entre o espaço e o tempo, sendo este último
definido como a quarta dimensão do primeiro. O cronotopo em literatura é
uma categoria da forma e do conteúdo que realiza a fusão dos índices
espaciais e temporais em um todo inteligível e concreto (AMORIM, 2008, p.
102).

Outro grande contribuinte para o entendimento do espaço e sua influência na vida de


um ser foi o filósofo e crítico literário Gaston Bachelard. Em sua obra A Poética do Espaço,
este autor evidencia a importante influência que a espacialidade onde se passa a vivência do
847

homem, neste caso do personagem, exerce sobre suas ações. Ele direciona sua atenção para o
espaço da casa, ressaltando que nela, sentimentos, pensamentos, lembranças e desejos são
Página

despertados.

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Para um estudo fenomenológico dos valores de intimidade do espaço
interior, a casa é, evidentemente, um ser privilegiado; isso é claro, desde que
a consideremos ao mesmo tempo em sua unidade e em sua complexidade,
tentando integrar todos os seus valores particulares num valor fundamental.
A casa nos fornecerá simultaneamente imagens dispersas e um corpo de
imagens. Em ambos os casos, provaremos que a imaginação aumenta os
valores da realidade (BACHELARD, 2008, p. 23).

Neste espaço tão íntimo vivenciamos experiências boas e ruins, temos a sensação de
estar protegidos, sonhamos com uma casa melhor e com o que poderíamos fazer se
tivéssemos uma nova. Este ambiente pode também deixar marcas que carregaremos a vida
inteira e, ao rememorarmos o passado, veremos imagens de um lugar importante, seja por
lembranças agradáveis ou o contrário. No conto Um Cinturão, a ser analisado em um capítulo
adiante, perceberemos como a casa é cenário de uma experiência traumatizante, mas não
esquecida pelo personagem, levando-o a narrar o fato anos depois com minúcia de detalhes.
Estudos recentes, mesclando os modos de ocorrência da categoria espaço voltada para
a análise de textos literários, permitem uma melhor compreensão sobre a forma como esta
vem sendo utilizada. Brandão (2007) apresenta quatro modos de representação do espaço:

Em uma sistematização preliminar, é possível definir quatro modos de


abordagem do espaço na literatura, tendo-se como escopo os Estudos
Literários do século XX. São eles: representação do espaço; espaço como
forma de estruturação textual; espaço como focalização; espaço da
linguagem (BRANDÃO, 2007, p. 208).

Desse modo podemos inferir que nas obras literárias essa categoria se enquadra numa
dessas modalidades. No conto Restos do Carnaval a ser comentado em páginas vindouras,
alguns desses modos poderão ser percebidos pelas ações vivenciadas pela personagem em sua
primeira aventura carnavalesca.

2 Um retorno à infância: memória e espaço em análise

2.1 Memória e espaço no conto Um Cinturão, de Graciliano Ramos


848

O conto Um Cinturão está no livro Infância publicado em 1949. Esse livro traz contos
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cuja temática principal é a infância. Estudiosos afirmam que alguns contos deste livro são

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autobiográficos e retratam algumas experiências vividas por Graciliano Ramos nesse período.
Os leitores também se encontram nessas narrativas breves, pois compartilham de muitas
situações. Percebe-se o cunho denunciativo nesses textos, pois, alguns retratam de maneira
verdadeira, a violência sofrida pelas crianças na época da infância de Graciliano, recorrente na
época do lançamento da obra, e que persiste no tempo atual em diferentes esferas da
sociedade.
Em linhas gerais o conto Um Cinturão narra o primeiro contato com a justiça na
infância, de um homem que rememora este fato apresentando-nos, de forma enfática, uma
agressão que sofreu do pai por conta de um mal entendido, o pai do garoto surra-o, acusando-
o de ter pegado um cinturão. No fim da narrativa é revelado que o pai deixou o objeto cair na
rede sem perceber. Inicialmente:

As minhas primeiras relações com a justiça foram dolorosas e deixaram-me


funda impressão. Eu devia ter quatro ou cinco anos por aí, e figurei na
qualidade de réu. Certamente já me haviam feito representar esse papel, mas
ninguém me dera a entender que se trata de julgamento. Batiam-me porque
podiam bater-me e isto era natural (RAMOS, 1984, p. 31).

O narrador revela, no inicio do conto, que apanhava com frequência dos seus
familiares. Na mente dele, quando criança, isso era natural porque seus pais podiam fazer
isso. Já nesse trecho é perceptível a marca deixada dessa época, na vida adulta deste narrador.
É um conto de memória e tem o espaço casa como ambiente onde decorrem as ações.
Antes do caso do cinturão é narrado outro momento em que o menino é surrado pela
mãe de maneira tão violenta, a ponto de deixar suas costas pintadas de “manchas sangrentas”
e de precisar enrolá-lo em panos molhados de água e sal. Dessa vez a avó interveio a favor do
menino, inocente, que culpava o nó pelos hematomas que tinha no corpo. A partir desses
episódios temos uma prévia do tom denunciativo do conto.
A casa é o cenário onde é rememorado o episódio do cinturão na vida desse homem.
Sendo esta um espaço de tantas vivências diferentes, idealizada com lugar de proteção, onde
recordações felizes deveriam ser construídas, quando lembranças tristes permeiam o
imaginário, a narrativa muda sua tonalidade.
849

Quando passamos dessas imagens iluminadas para imagens que insistem,


que nos obriga a lembrar-nos mais longe em nosso passado, os poetas são
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nossos mestres. Com que força eles provam que as casas para sempre
perdidas vivem em nós! Em nós elas existem para reviver, como se

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esperassem de nós um suplemento de ser. Como moraríamos melhor na
casa! Como nossas velhas lembranças têm subitamente uma viva
possibilidade de ser! Julgamos o passado. Uma espécie de remorso de não
ter vivido assaz profundamente na velha casa acomete a alma, sobe do
passado, submerge-nos (BACHELARD, 2008, p. 70).

Partindo desse pensamento bachelardiano, na casa onde vivia o personagem do conto,


não era oferecido modos de criação adequados para uma criança. O espaço era hostil,
nebuloso, onde pairava o medo, representado pela figura paterna, um homem do campo,
bruto, que descontava no filho sua raiva pelos motivos mais simples.
No trecho em que o narrador volta-se para a descrição de sua casa, é possível ter uma
ideia desse espaço. Ele retoma características do ambiente e modos de se comportar do pai,
para rememorar e relatar o episódio a partir de sua lembrança. É como se a casa adquirisse o
temperamento do pai, como uma manifestação do seu comportamento.

Meu pai dormia na rede armada na sala enorme. Tudo é nebuloso. Paredes
extraordinariamente afastadas, rede infinita, os armadores longe, e meu pai
acordando levantando-se de mal humor, batendo com os chinelos no chão, a
casa enferrujada. Naturalmente não me lembro da ferrugem, das rugas, da
voz áspera do tempo em que ele consumiu rosnando uma exigência. Sei que
esta bastante zangado, e isto me trouxe a covardia habitual. Desejei vê-lo
dirigir-se a minha mãe e a José Baía, pessoas grandes que levavam pancada.
Tentei ansiosamente fixar-me nessa esperança frágil. A força de meu pai
encontraria resistência e gastar-se-ia em palavras (RAMOS, 1984, p. 32).

Além disso, fica explicito o medo do menino, já ciente do que aguardava. Ele sabia
que ia levar uma surra e ninguém interviria. A realidade sofrida de uma infância maltratada é
evidenciada no momento do desejo em ver o pai se dirigir a outra pessoa, um adulto, alguém a
sua altura que provavelmente reagiria a uma agressão, pois ele enquanto criança, não tinha
força para defender-se. Como alternativa, em uma passagem sequente da história, procura
refúgio em um espaço menor da casa, na tentativa de se proteger ou de alguém aparecer para
ajudá-lo. Ninguém apareceu.
Num momento posterior o personagem pensa em fugir para outros espaços na busca
de escapar da surra, lugares onde, na mente dele, estaria protegido mesmo que para isso o pai
resolvesse culpar outro inocente.
850

A fúria louca ia aumentar, causar-me sério desgosto. Conservar-me-ia ali


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desmaiado, encolhido, movendo os dedos frios, os beiços trêmulos e


silenciosos. Se o moleque José ou um cachorro entrasse na sala, talvez as

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pancadas se transferissem. O moleque e os cachorros eram inocentes, mas
não se tratava disto. Responsabilizando qualquer deles, meu pai me
esqueceria, deixar-me ia fugir, esconder-me na beira do açude ou no quintal
(RAMOS, 1984, p. 32).

Mas isso não acontece e ele foi arrastado até a sala por um homem furioso e surrado
violentamente por conta de um cinturão perdido pelo próprio agressor. Ao término do
martírio, voltou para perto dos caixões, de onde foi possível ver a revoltante cena em que o
seu pai encontra o cinto dentro da rede. Finalizando o conto o narrador enfatiza: "foi esse o
primeiro contato que tive com a justiça” (RAMOS, 1984, p. 35). Justamente com uma
situação tão injustiça quanto essa.
Sendo assim, este conto é um relato doloroso e irônico, pois é justamente diante da
injustiça que Graciliano reforça a ideia de justiça, sempre nas mãos dos poderosos (do espaço
familiar para o espaço social).

2.2 Restos de uma lembrança carnavalesca em Recife

A obra de Clarice Lispector é marcada por uma escrita peculiar que encanta e intriga,
emociona e entristece, com momentos de beleza sublime e de cenas que beiram o grotesco.
Mulheres, homens, idosos, animais e crianças, participam de enredos que oscilam
constantemente em acontecimentos cotidianos, mas com representações significativas da
realidade e da existência humana.
Não é de se estranhar que os estudiosos da obra clariciana, procurando conceitos para
definir sua literatura, atentem com frequência para a ruptura estética instaurada pela autora na
literatura nacional. Sua nova forma de criar artisticamente o mundo e apresenta-lo através do
olhar de personagens aparentemente comuns, fez com que pesquisadores afirmassem que seu
estilo de escrita,

É uma desconstrução do fazer literário convencional e simbólico, um


interferir nos ritmos internalizados, substituindo-os por uma materialização
das percepções externas nos planos estético e imagético. É a inovação que
momentaneamente obliteram a visão e se diluem após no campo da
apreensão do cosmo. É o choque no espaço do novo interrompendo a
851

cedência simétrica do habitual (KADOTA, 1997, p. 42).


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Como pode ser percebido, Clarice inovou e essa inovação propiciou olhares para tipos
de personagens, até então, sem muita visibilidade. Indo além sob uma nova ótica, fez emergir
na crítica literária vigente um, também novo, modo de tratar sobre literatura. Concomitante, o
público leitor acolheu os romances, contos e outros textos da autora, despertando em si uma
forma crítica de leitura, atenta as questões reflexivas e as entrelinhas da narrativa.
Direcionando nossa atenção agora para a presença da infância em Clarice Lispector,
fez-se necessário considerar a diversidade de formas que esta vivência é retratada em sua
obra. Engana-se quem pensa apenas em histórias sem conflitos, sem grandes ações, ou com
uma linguagem infantilizada. Clarice vai além, trazendo a público um universo infantil
carregado de experiências concretas, reflexo de uma realidade não enxergada pela maioria dos
adultos.

A infância manifestada em seus textos é caracterizada por um lastre realista,


que expõe o desequilíbrio da criança em aprendizagem diante do mundo.
Não predomina nessa exposição uma vivência infantil harmônica. As
experiências desse período e a sua representação na ficção de Clarice
Lispector se propagam de modo singular, pois o lastro realista das vivências
infantis e o discurso ficcional clariciano são acionados não para se
harmonizarem, mas para demonstrar tensão que são comuns a ambos
(TEIXEIRA, 2010, p. 9).

Cientes desses pressupostos trazemos para essa discussão o conto Restos do Carnaval.
Nele uma mulher adulta narra, através de um processo rememorativo, sua primeira
participação oficial numa festa de carnaval quando criança. Não se trata de um evento
comum, pois é também a primeira vez que ela é fantasiada, graças a restos de papel crepom,
sobras da fantasia de uma amiga. Ambas entusiasmadas, vestidas num figurino rosa com a
forma de uma flor. No decorrer dos fatos a trama encaminha-se para um acontecimento
inesperado e a jovem personagem vê-se abalada pela piora no estado de saúde de sua mãe, já
doente.
É interessante evidenciar a maneira como a narradora inicia o conto, situando o leitor
no tempo e no espaço. Nas linhas iniciais fica claro que estamos diante de um relato de
memória, uma rememoração de algo do passado, importante para o personagem. “Não, não
deste último carnaval. Mas não sei porque este me transportou para minha infância e para as
852

quartas-feiras de cinzas nas ruas mortas onde esvoaçavam despojos de serpentina e confete”
(LISPECTOR, 1998, p. 25). Na sequência deste mesmo parágrafo é revelado o local.
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Acompanhamos um conto que se passa no Recife.

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Uma ou outra beata com um véu cobrindo a cabeça ia à igreja, atravessando
a rua tão extremamente vazia que se segue ao carnaval. Até que viesse o
outro ano. E quando a festa ia se reaproximando, como explicar a agitação
interna que me tomava? Como se enfim o mundo se abrisse de botão que era
uma grande rosa escarlate. Como se as ruas e praças do Recife enfim,
explicassem para que tinham sido feitas (LISPECTOR, 1998, p. 25)

Trazendo Brandão (2007) para análise, identificamos a ocorrência do primeiro modo


de utilização do espaço. No conto clariciano, as expressões “ruas mortas” e “as ruas e praças
do Recife” designam o cenário onde acontece os festejos do carnaval. A primeira é a rua
vazia, de quarta-feira de cinzas, com pouquíssimas pessoas trafegando, mas que no dia
anterior estava cheia de foliões em completa agitação. A segunda expressão são os locais a
espera de pessoas para ocupá-los e assim acontecerem as ações. Os dois espaços são apenas
suporte para a alegria dos foliões e para a aventura vivida pela personagem.
Um pouco adiante lemos outro trecho exemplo de representação do espaço: “a porta
do meu pé de escada, se um mascarado falava comigo, eu de súbito entrava no contato
indispensável com meu mundo interior, que não era feito de duendes e príncipes encantados,
mas de pessoas com seus mistérios (LISPECTOR, 1998, p. 27).
O conto segue com o relato da narradora sobre sua primeira fantasia de carnaval.
Mesmo feita com sobras de material da fantasia de sua amiga, foi uma alegria tão grande que
ela mal conseguia acreditar. Aconteceu, porém, algo inesperado e aquela jovem garotinha
com apenas oito anos de idade, tem sua primeira experiência com os imprevistos do destino: a
piora no estado de saúde da sua mãe se agravar.

Muitas coisas que me aconteceram tão piores que estas, eu já perdoei. No


entanto essa não posso sequer entender agora: o jogo de dados de um destino
é irracional? É impiedoso. Quando eu estava vestida de papel crepom todo
armado, ainda sem batom e ruge - minha mãe de súbito piorou muito de
saúde, um alvoroço repentino se criou em casa e mandaram-me comprar
depressa um remédio na farmácia. Fui correndo vestida de rosa - mas o
rosto ainda nu não tinha a máscara de moça que cobriria minha tão exposta
vida infantil - fui correndo, correndo, perplexa, atônita, entre serpentinas,
confetes e gritos de carnaval. A alegria dos outros me espantava
(LISPECTOR, 1998, p. 27-28. Grifos nossos).
853

Com o olhar voltado para o trecho destacado nessa citação, no momento em que a
Página

menina sai em busca da farmácia para comprar o remédio de sua mãe, percebemos as

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primeiras descobertas da criança acerca da relação entre o eu e o outro. Ela estava
desesperada, preocupada com a saúde de sua mãe, enquanto as outras pessoas brincavam,
divertiam-se sem dar a mínima importância à sua agonia. Neste momento cabe retomarmos
Halbwachs quando este se refere à memória individual e a memória coletiva.
A narradora relembra um fato ocorrido em sua infância sob suas impressões. No
entanto, para isso, toma como referência outras pessoas presentes naquele espaço, mas que
não participam diretamente da ação. Sendo assim, podemos considerar que trata-se de uma
memória individual que é também coletiva.
Ainda sobre esse trecho a partir da teoria bakhtiniana exposta anteriormente, percebe-
se uma ação configuradora do cronotopo da estrada, pois este "indica o lugar onde se
desenrolam as ações principais, onde se dão os encontros que mudam a vida das personagens"
(AMORIM, 2008, p. 102).
No conto clariciano, no percurso que faz da sua casa até a farmácia a menina passa por
foliões festejando o carnaval. A partir dessa passagem ela começa a ficar espantada com a
alegria dessas pessoas. Há aí um encontro da personagem com o outro e consigo mesma; uma
mudança no rumo da história. Há uma quebra de expectativa tanto dela como dos leitores. O
que seria uma noite divertida na verdade foi cheia de remorso, até que, no último parágrafo,
um fio de esperança nasce em ambos.

Só horas depois é que veio a salvação. E se depressa agarrei-me a ela é


porque tanto precisava me salvar. Um menino de uns 12 anos, o que para
min significava um rapaz, esse menino muito bonito parou diante de mim e
numa mistura de carinho, grossura, brincadeira e sensualidade, cobriu meus
cabelos já lisos de confete: por um instante ficamos nos defrontando,
sorrindo, sem falar. E eu então, mulherzinha de 8 anos, considerei pelo resto
da noite que enfim alguém me havia reconhecido: eu era, sim, uma rosa
(LISPECTOR, 1998, p. 28).

Se assim entendermos o desfecho do conto, como a concretização de uma busca que


teve início nos primeiros parágrafos, concluímos esta análise com a afirmação de que, na
verdade, a personagem ansiava por ser vista, notada por alguém. Quando o menino a
percebeu, seu ânimo se transformou assim como o espaço a sua volta. E, como uma rosa,
desabrochou cheia de vida.
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Considerações Finais

Chegando ao fim desse breve estudo, concluímos que o recurso da memória é uma
forma bastante relevante para a construção literária. Por meio dele, aspectos do passado são
relembrados numa relação de completude com o presente. Ter acesso às memórias dos
personagens é uma forma de vivenciar um momento de suas vidas importante para sua
condição atual. A partir da memória é também revelado características do espaço em que
decorreu dada ação. Este, por sua vez, tem um papel significativo, uma espécie de auxílio para
que o personagem materialize suas lembranças.
No conto de Graciliano Ramos, o retorno à infância para narrar um acontecimento se
dá através de um relato a partir de pontos específicos do espaço literário. O narrador recorre a
elementos como a casa para ativar suas lembranças e recontar algo violento que marcou sua
vida. Já no de Clarice Lispector é-nos apresentado uma narrativa em que, na infância, uma
garotinha vive o drama de seu primeiro carnaval fantasiada. Os dois textos trazem a infância
como tema principal.
Por fim, através de seus contos, tanto Graciliano Ramos quanto Clarice Lispector
contribuíram para a visibilidade da criança e dos temas concernentes à infância na literatura
brasileira proporcionando a realização de estudos sobre memória e espaço. Resta-nos, por
tanto, enaltecer a obra desses dois autores, ressaltando a importância de seus textos na
literatura nacional.

Referências

BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

BRANDÃO, Alberto Luis. Espaços Literários e suas expansões. Aletria: Revista de estudos
de literatura. Belo Horizonte, n.15, jan. 2007, p. 207-220.

CANDIDO, Antonio. Ficção e confissão: ensaios sobre Graciliano Ramos. Rio de Janeiro:
Ouro sobre Azul, 2006.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2003.


855

KADOTA, Neiva Maria Pitta. A tessitura dissimulada: o social em Clarice Lispector. São
Paulo: Estação Liberdade, 1997.
Página

LISPECTOR, Clarice. Felicidade Clandestina. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

ISBN: 978-85-7621-221-8
MACHADO, Irene. A questão espaço-temporal em Bakhtin: cronotopia e exotopia. In:
BRAIT, Beth. Bakhtin: outros conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2008.

RAMOS, Graciliano. Infância. Rio de Janeiro: Record, 1984.

TEIXEIRA, Mona Lisa Bezerra. Imagens da infância na obra de Clarice Lispector. Tese
(Doutorado ) – USP, São Paulo, 2010..

856
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ISBN: 978-85-7621-221-8
GT6 – LINGUAGEM LITERÁRIA CONTEMPORÂNEA: O NARRADOR E O EU
LÍRICO

O SILÊNCIO EMBRUTECIDO EM VIDAS SECAS: UMA NARRATIVA PERPLEXA

Lidiane Morais Fernandes132


Universidade do Estado do Rio Grande do Norte

1 Introdução

No romance Vidas Secas publicado originalmente em 1938 de Graciliano Ramos


(1892-1953) trataremos a caracterização e a materialização do silêncio que se manifesta nas
personagens Fabiano e Baleia. Durante a narrativa vemos muitos problemas enfrentados por
uma família de sertanejos retirantes que fogem da fome e da morte. No romance em questão a
família passa por uma drástica caminhada perante as mazelas sociais e climáticas do sertão
árido do Brasil, tais como: a exclusão e desigualdade social, a exploração do trabalho que são
apresentadas nas diversas personagens do romance, bem como a própria migração dos
chamados retirantes da seca para outras regiões menos castigadas pela estiagem.
Abordaremos a representação do silêncio através da ótica do narrador nas personagens
Fabiano e Baleia, e sob o aspecto de que Lourival Holanda nos mostra que [...] há textos que
trazem, sob a forma sucinta, um silêncio essencial” (HOLANDA, 1992, p. 20). A partir da
reflexão crítica empreendida nesta pesquisa privilegia também os aspectos de humanização de
Baleia e a animalização de Fabiano, da troca de identidades, bem como, os elementos sociais
que contribuem para o silêncio das personagens citados do romance de Graciliano Ramos.
Diante desses fatores, a temática do silenciamento e individual social (política do silêncio e
discurso da resistência) dessas personagens, percebemos como um importante questionamento
a ser explorado nessa pesquisa.

2 O romance de 30 e Graciliano Ramos

Na constituição desse tipo de foco narrativo as personagens não refletem sozinhas


sobre sua vida e os acontecimentos, pois o narrador se encarrega disso também. Em Vidas
857

Secas, o narrador reflete multiplicadamente, isto é, ele reflete e sabe mais das vivências das
Página

132
Aluna do Curso de Especialização em Estudos Literários – CEEL da Universidade do Estado do Rio Grande do
Norte – UERN.

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personagens do que elas mesmas. Vemos isto, em Fabiano, Baleia, sinha Vitória, o menino
mais novo e o menino mais velho, justificando assim, a onisciência seletiva múltipla. Para
enfatizarmos melhor, Candido (2012, p. 48) aponta que:

Graciliano Ramos usou um discurso especial, que não é monólogo interior e


não é também intromissão narrativa por meio de um discurso indireto
simples. Ele trabalhou como uma espécie de procurador do personagem, que
está legalmente presente, mas ao mesmo tempo ausente. O narrador não quer
identificar-se ao personagem, e por isso há na sua voz uma certa objetividade
de relator. Mas quer fazer às vezes do personagem, de modo que, sem perder
a própria identidade, sugere a dele. Resulta uma realidade honesta, sem
subterfúgios nem ilusionismo, mas que funciona como realidade possível.

Nesta concepção de Candido (2012) a classificação do discurso de Vidas Secas é


predominante o discurso indireto, isto é, a fala e os pensamentos das personagens se
confundem com a fala do narrador, ou seja, o narrador entrelaça seu discurso aos discursos
das personagens, no entanto, sem confundir a identidade de cada um. Neste sentido, vale
ressaltar que o discurso é caracterizado com a predominância ao indireto livre, no qual, é
através do narrador que as personagens se expressam na maioria das vezes, acerca dos seus
conflitos, no entanto, podemos caracterizar hipoteticamente através do discurso um caráter de
silenciamento causado pelo narrador e os diversos fatores como: o silêncio social e o silêncio
individual - falta da linguagem – e o narrador traz esse aspecto de silenciar as personagens
através da sua narração.
Destacamos um depoimento do próprio Graciliano ao amigo João Condé sobre seu
romance (RAMOS, 1988, p. 167):

Fiz o livrinho, sem paisagens, sem diálogo. E sem amor. Nisso, pelo menos
ele deve ter alguma originalidade. Ausência de tabaréus bem falantes,
queimadas, cheias, poentes vermelhos, namoros de caboclos. A minha gente,
quase muda, vive numa casa velha de fazenda; as personagens adultas,
preocupadas com o estômago, não têm tempo de abraçar-se. Até a cachorra é
uma criatura decente, porque na vizinhança não existem galãs caninos.

Graciliano atribui a Vidas Secas uma composição desprendida dos moldes do romance
tradicional, no qual há um personagem principal e os demais secundários, e toda a trama gira
858

em torno de um personagem. Contudo, o que vemos em Vidas Secas é que a família toda
exerce essa função de protagonismo no enredo. Neste sentido, ressaltamos as considerações
Página

de Lafetá (2000) acerca do Modernismo brasileiro (1922-1945), em sua primeira fase (1922-

ISBN: 978-85-7621-221-8
1930), enquanto nova proposta estética e de transformação da linguagem literária, adquire
dois aspectos relevantes: o Modernismo enquanto projeto estético; o Modernismo enquanto
projeto ideológico. Sobretudo, devemos ressaltar que esses movimentos se articulam e se
complementam.
O momento primeiro está diretamente ligado ao abandono à velha linguagem e a uma
renovação da linguagem, a uma estética de ruptura. O segundo momento está diretamente
ligado ao pensamento, ou seja, às mudanças, às visões de mundo da época, à busca de uma
identidade artística nacional, ao um projeto ideológico. Como consequência dessa nova fase
artística e revolucionária na Literatura brasileira, o movimento modernista da primeira fase
conseguiu estabelecer uma situação histórico-cultural de ruptura nos seguintes aspectos:

[...] rompeu a linguagem bacharelesca artificial e idealizante que espelhava,


na literatura passadista de 1890-1920, a consciência ideológica da oligarquia
rural instalada no poder [...]. o Modernismo destruiu as barreiras dessa
linguagem “oficializada” acrescentando-lhe a força ampliadora e libertadora
do folclore e da literatura popular (LAFETÁ, 2000, p. 21-22).

Contudo, os traços de ruptura com uma vanguarda contemporânea de uma força


revolucionária e renovadora do Modernismo brasileiro, foram características da chamada
primeira fase do modernismo (1922-1930), que vai da Semana de Arte Moderna à fase da
revolução da prosa dos anos 30. Vale salientar que, Alfredo Bosi abordava que a prosa de
ficção da década de 30 estava predominantemente encaminhada para um "realismo bruto",
pois:
Nesta perspectiva, o referido autor alerta para a classificação dos romances da década
de 30, ele nomeia e classifica em três categorias: o romance de tensão mínima; o romance de
tensão crítica; e o romance de tensão interiorizada. No entanto, citaremos apenas a categoria
em que a obra Vidas Secas está inserida que é o romance de tensão critica, no qual há
predominância de na narrativa “[...] o herói opõe-se e resiste agonicamente às pressões da
natureza e do meio social, formule ou não em ideologias explícitas, o seu mal-estar
permanente” (BOSI, 1975, p. 439).

3 O silêncio embrutecido: uma narrativa perplexa


859
Página

Destacamos, sobretudo, que existe a possibilidade do narrador mostrar que Fabiano é


um ser embrutecido, enquanto Baleia é humanizada. Percebemos isto não somente com
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palavras, mas também com as inferências que estão externas ao texto, bem como na própria
caracterização do silêncio das personagens. Não basta dizer, por exemplo, que Fabiano é
desumanizado. O que vale, sobretudo, é definir o processo pelo qual o narrador nos convence
acerca dessa desumanização de Fabiano e que em determinados pontos da narrativa – no
encontro com o soldado amarelo e a morte de Baleia – há um breve retorno de sua
humanização. Contudo, evidenciar a maneira no qual a voz do narrador nos fornece essa
convicção de “[...] inutilizar-se por causa de uma fraqueza fardada que vadiava na feira e
insultava os pobres! Não se inutilizava, não valia a pena inutilizar-se. Guardava as sua força”
(RAMOS, 2009, p. 107). Nas palavras de Lourival Holanda (1992, p. 25) Fabiano “não quer
ser reificado pela falta alheia”, neste momento da narrativa, Fabiano torna-se um homem que
pensa no outro, toma o lugar do Soldado Amarelo que naquele momento se encontra indefeso,
como ele na maioria das vezes se encontra.
O fator da autoridade do Estado está presente em Vidas Secas e se apresenta
alegoricamente na representação das personagens Patrão, Soldado Amarelo e o fiscal da
prefeitura. Neste sentido, a alegoria dada à personagem do patrão, pelo narrador, é de grande
proprietário de terra (latifundiários, coronelistas, oligarquias), detentores do poder social e de
prestígio:

O patrão atual, por exemplo, berrava sem precisão. Quase nunca vinha à
fazenda, só botava os pés nela para achar tudo ruim. O gado aumentava, o
serviço ia bem, mas o proprietário descompunha o vaqueiro. Natural.
Descompunha porque podia descompor, o Fabiano ouvia as descomposturas
com o chapéu de couro debaixo do braço, desculpava-se e prometia
emendar-se. Mentalmente jurava não entender nada, porque estava tudo em
ordem, e o amo só queria mostrar autoridade. Gritar que era dono. Quem
tinha dúvida? (RAMOS, 2009, p. 10).

No trecho acima vemos a representação do poder do patrão em detrimento da


submissão e do silêncio inquestionável de Fabiano. O narrador utiliza da “descomposição” do
patrão para enfatizar a crítica ao comportamento humano, o qual não pode ser tratado como
natural. Através da demonstração de força pela evocação em tom alto das palavras: o grito.
Essa insatisfação do patrão é inerente à representação do poder. No medo de ser expulso e de
perder o pouco que lhe resta, Fabiano atribui a figura do patrão a sequidão dessa condição:
860

“Tudo era seco em seu redor. E o patrão era seco também, arreliado, exigente e ladrão,
espinhoso como um pé de mandacaru” (RAMOS, 2009, p. 11).Na concepção de Bastos
Página

(2009) ao romance de Graciliano é atribuída uma:

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[...] condição humana em Vidas Secas é degradada. Mas a proximidade dos
personagens da vida natural lhes confere uma espécie de reserva ética que
não existe nos demais romances de Graciliano. [...]. Como se pudéssemos
recomeçar, estabelecendo outros vínculos com a natureza e entre os homens .
a natureza não é, então, paisagem. É o outro do homem, lhe impõe limites a
partir dos quais ele trabalha e submete-se aos imperativos da escassez e da
necessidade. O homem a domina e domina-se. Urge então criar novos
caminhos (BASTOS, 2009, p. 131).

A opressão que a linguagem exerce em Fabiano é relevante para a constituição do


silêncio. A falta das palavras é para Fabiano a falta de um prumo na vida, “[...] admirava as
palavras compridas e difíceis da gente da cidade, tentava reproduzir algumas, em vão, mas
sabia que elas eram inúteis e talvez perigosas” (RAMOS, 2009, p. 8). Segundo Holanda
(1992, p. 20) “[...] Fabiano é todo carência de palavras, e é sempre sua querência o que o texto
atesta. De pouca fala, mas de muito desejo – o que o leva longe, além de si”.
Otto Maria Carpeux (2011), em História da Literatura Ocidental, vê o estilo de
Graciliano como único e demasiadamente distinto dos demais autores brasileiros. Graciliano
em alguns de seus romances, como por exemplo, São Bernardo (1934) e Vidas Secas (1938),
trata basicamente de um estudo psicológico do homem habitante do sertão brasileiro, bem
como uma espécie de panorama épico das pessoas que habitavam essa região com clima seco
e sem recursos:

Graciliano Ramos, provavelmente o mais importante, pertence ao ciclo


nordestino pelo menos com dois romances: São Bernardo é intenso estudo
psicológico do homem nordestino, e Vidas Secas é, apesar da técnica
ficcional, que parece episódica, espécie de panorama épico da vida do povo
nordestino, só do próprio povo, o que nenhum outro ousou ou conseguiu
realizar (CARPEUX, 2011, p. 1892).

No livro História Concisa da Literatura Brasileira, de Alfredo Bosi relata um pouco


da biografia de Graciliano Ramos e um pouco de sua escrita. Bosi (1975, 366-367), “[...]
Graciliano via em cada personagem a face angulosa da opressão e da dor. Naquele há
naturalidade entre o homem e meio; neste a matriz de cada obra é uma ruptura”. Assim,
acerca do estilo Graciliano de escrever, Bosi ainda aborda as seguintes características:
861

O roteiro do autor de Vidas Secas norteou-se por um coerente sentimento de


Página

rejeição que adviria do contato do homem com a natureza ou com o


próximo. Escrevendo sob o signo dialético por excelência do conflito,

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Graciliano não compôs um ciclo, um todo fechado sobre um ou outro pólo
da existência (eu/mundo), mas uma série de romances cuja descontinuidade
é sintoma de um espírito pronto à indagação, à fratura, ao problema (BOSI,
1975, p. 368).

Essa transposição dos problemas sociais para a Literatura foi bem elaborada em Vidas
Secas, pois a paisagem toma conta da extensão do romance e nela os acontecimentos
interferem na vida dos personagens, na falta e na presença da chuva, influenciando assim, as
ações dos personagens e às fatalidades do clima, como fome, morte e miséria. Segundo a
obra, organizada por Thiago Mio Salla, Garrachos: textos inéditos de Graciliano Ramos, que
trazem escritos (cartas, crônicas, ensaios, discursos, entre outros) inéditos de Graciliano
Ramos, no qual, o próprio Graciliano diz que “em todos os lugares há romances, disse
comigo, o que falta às vezes é o romancista” (RAMOS, 2013, 133). Assim, Graciliano aborda
a composição literária através do olhar do autor à realidade e ao individuo dessa realidade,
“[...] ninguém se afasta do ambiente, ninguém confia demasiado na imaginação” (RAMOS,
2013, p. 140). Para ele, abordar a verossimilhança através do homem nordestino e seus
dilemas culturais e sociais na literatura mostrava uma face denunciadora e de ruptura da
literatura do sul.

Realizou-se na literatura o que os indivíduos importantes não conseguiram


em política: tornar independentes várias capitanias desta grande colônia.
Quem já viu fora de Porto Alegre a cara do Sr. Erico Veríssimo? Entretanto
ele é hoje um romancista notável [...]. O Sr. Lins do Rego faz a maior parte
dos seus livros em Maceió, lugar terrível, absolutamente impróprio a esse
gênero de trabalho. E a Sra. Raquel de Queiroz produziu excelentes
romances numa rede. Estamos completamente livres da obrigação de ir à rua
do Ouvidor e visitar as livrarias. Trabalharemos em qualquer parte, no Brás
ou no Acre (RAMOS, 2013, p. 146-147).

Álvaro Lins em seu ensaio “Valores e misérias das Vidas Secas”, aborda de maneira
singular o estilo da composição literária que Graciliano dá a seus romances, segundo ele há
uma constante disposição às análises que se convergem, de acordo com o comentário a seguir:

Logo os seus romances nos tentam a confundir [...]. No caso do Sr.


Graciliano Ramos, é a obra que explica o homem [...], o homem interior, o
homem psicológico. [...] Nas aparências, nas exterioridades, nada revela que
862

o possa distinguir de um homem comum (LINS, 2007, p. 128).


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Neste sentido, em alguns romances de Graciliano são abordados em dois víeis: com a
visão ao ambiente (espaço), por um meio externo à personagem; e com por uma visão interna,
pois as personagens não deixam de ser dotadas de complexidade e passíveis de análise
psicológica:

Um homem do seu meio físico e social, ao mesmo tempo em que, um


romancista voltado para a introspecção, a análise, os motivos psicológicos.
[...]. Meio físico – o que seria, no romance, a paisagem – não aparece muito
objetivamente no romance [...]. ele exprime o ambiente com fidelidade, mas
somente em função de seus personagens. A ambiência exterior torna-se uma
projeção do homem (LINS, 2007, p. 129-130).

O homem (Fabiano) é a sublimação do ambiente, cujo ambiente é visto como retrato


estático e ao mesmo tempo mutável, sendo, pois, estático no aspecto de não favorecer um
ambiente propício para se viver; e mutável porque na época das raras chuvas se transforma e
ganha vida. A condição humana e o caráter psicológico das personagens são elementos
presentes na criação literária de Graciliano:
A atribuição de uma frieza do autor em seus romances ganha um caráter de denúncia e
constatação da realidade, na qual ganha vida através da prosa de ficção com intuito
engajamento regional, típico da segunda fase modernista. Ainda segundo Lins (2007) os
personagens de Vidas Secas têm um destino ermo, são aniquiladas pela força do clima do
ambiente e da sociedade, não possuem qualquer tipo de reflexão da ascensão do indivíduo,
“[...] os personagens estão entregues aos seus próprios destinos. E não contam sequer com a
piedade do romancista” (LINS, 2007, p. 152).

4 Humano silêncio no desumano sertão

Para a abordagem da temática do silêncio trataremos de acordo com as idéias


propostas por Eni Puccineli Orlandi em seu livro As formas do silêncio (2002). Nele, segundo
a autora, percebemos a construção de sentidos através do silêncio na linguagem e a
compreensão desses sentidos se dá no mundo como o silêncio acerca do silêncio fundante ou
fundador e a política do silêncio:
863

[...] 1. Há um modo de estar em silêncio que corresponde a um modo de


Página

estar em sentido e, de certa maneira, as próprias palavras transpiram silêncio.


Há silêncio nas palavras; 2. O estudo do silenciamento (que já não é silêncio

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mas “pôr em silêncio”) nos mostra que há um processo de produção de
sentidos silenciados que nos faz entender uma dimensão do não-dito
(ORLANDI, 2002, p. 11-12).

De acordo com o trecho acima percebemos que a significação do silêncio vai além do
dito e não-dito, ou seja, para a linguística a compreensão do silêncio se dá basicamente
através do não-dito, através da palavra ou dos elementos implícitos a ela. Na literatura o
silêncio se afirma através do “vazio” das palavras, em diálogos truncados das personagens ou
até mesmo na tomada do discurso das personagens pelo o narrador. Ela abrange a
incompletude da linguagem “[...] o silêncio é assim a “respiração” (o fôlego) da significação
(ORLANDI, 2002, p. 13), pela a qual, a construção do sentido passar a ter significação com
os elementos fora da linguagem.
Segundo Orlandi (2002) há um poder de silenciar através das palavras, através do
qual, as palavras são dotadas de silêncio e em muitas situações colocamos no silêncio delas
“[...] a palavra imprime-se no contínuo significante do silêncio e ela o marca, o segmenta e o
distingue em sentidos discretos” (ORLANDI, 2002, p. 25). Na narrativa de Ramos o menino
mais velho se questiona sobre o sentido da palavra “inferno”, o narrador nos mostra o
deslumbramento da personagem com uma palavra “[...] não acreditava que um nome tão
bonito servisse para designar coisa ruim (RAMOS, 2012, p. 27). O sentido procurado pela
personagem não condizia com a beleza estética da palavra. Pois, Fabiano “[...] tinha o direito
de saber? Tinha? Não tinha.” (RAMOS, 2012, p. 24), segundo o narrador podemos considerar
a hipótese de que o direito à educação formal não resolveria a vida prática do homem
sertanejo. Neste sentido Lourival Holanda diz que “[...] por mais que queira o menino, a
palavra não é coisa. É sinal da busca: a palavra procura a coisa. Tenta estreitar a relação do
homem com o mundo” (HOLANDA, 1992, p. 28). Vale ressaltar que para Orlandi (2002) a
instituição da linguagem pelo o homem foi necessária para a separação do silêncio
(significação dos sentidos), fazendo essa separação estabeleceu o espaço da linguagem. A
autora estabelece a política do silêncio que se dar através da dominação (opressor) e a retórica
da resistência (oprimido), constituindo assim, o silenciamento:

O homem está condenado a significar. Com ou sem palavras, diante do


mundo, há uma injunção à “interpretação”. Tudo tem de fazer sentido
864

(qualquer que ele seja). O homem está irremediavelmente constituído pela


relação com o simbólico (ORLANDI, 2002, p. 31-32).
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Essa constante construção da linguagem do homem seja em silêncio ou não e diante
dos esclarecimentos de Orlandi (2002) o silêncio não é falta e sim o excesso, o elemento que
está fora da palavra, mas que complementa o sentido dela, “[...] o silêncio não fala. O silêncio
é. [...]. no silêncio o sentido é” (ORLANDI, 2002, p. 33). No romance em análise não só a
palavra proferida pela personagem possui valor estético, como também a mudez, através do
narrador vemos a mudez (silenciamento) e a não compreensão de Fabiano com as constantes
injustiças cometidas com ele. O narrador mostra o silenciamento na relação do opressor
versus o oprimido:

Pois não estavam vendo que ele era de carne e osso?Tinha obrigação de
trabalhar para os outros, naturalmente, conhecia o seu lugar. Bem, nascera
com esse destino, ninguém tinha culpa de ele haver nascido com destino
ruim. [...] Conformava-se, não pretendia mais nada. Se lhe dessem o que era
dele, estava certo. Não davam. Era um desgraçado, era como um cachorro,
só recebia ossos. Por que seria os homens ricos ainda lhe tomavam uma
parte dos ossos? (RAMOS, 2009, p. 97).

O narrador mostra que Fabiano atribui a si o fado da servidão, e essa situação de


silenciamento torna-se hereditário, um fado, não sendo possível uma mudança de situação,
que segundo (ORLANDI, 2002, p. 75) “[...] se obriga a dizer “x” para não deixar dizer “y””,
no qual Fabiano é, muitas vezes, obrigado a silenciar perante a sociedade e submeter-se às
regras sociais. Por isso, o personagem se compara aos bichos que têm parte de seus direitos
tomados e não cumpridos pela sociedade opressora. O processo pelo qual é atribuído como o
causador da política do silenciamento de Fabiano pela sociedade está relacionado a diversos
fatores, como o coronelismo, desigualdade social, falta de instrução (educação formal), falta
de investimento pelo Estado, entre outros fatores que estão nas entrelinhas da narrativa e no
discurso do narrador “[...] Fabiano e sinha Vitória muito reduzidos, menores que as figuras
dos altares” (RAMOS, 2002, p 74). Neste sentido, segundo a perspectiva de Hermenegildo
Bastos, Fabiano é um:

[...] trabalhador rural desqualificado. Fabiano protagoniza outra história:


protege o filho mais velho quando da longa viagem, esforça-se por entender
o mundo e a exploração, pode escolher entre matar o soldado amarelo ou
deixá-lo viver, suporta os conflitos de ter que dar cabo de Baleia e, aos olhos
865

do filho mais novo, é um herói (BASTOS, 2009. p. 131).


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Neste sentido, o narrador mostra Fabiano submetido às opressões sociais e “[...]
comparando-se aos tipos da cidade, Fabiano reconhecia-se inferior. Por isso desconfiava que
os outros mangavam dele. [...] Só lhe falavam bem a fim de tirar-lhe qualquer coisa”
(RAMOS, 2002, p. 76). Fabiano resiste às opressões através do discurso como resistência
presente no silenciamento que segundo (ORLANDI, 2002, p. 104) “[...] o silêncio do
oprimido.

5 Considerações finais

Diante das reflexões apresentadas, verificamos que as personagens do romance estão


entrelaçadas com o ambiente e o clima. A estiagem do sertão castiga-os, porém, é também um
estio de recursos humanos que os retirantes atravessam desde o ciclo da “Mudança” até a
nova “Fuga”. Uma fuga da desagregação humana, uma fuga do silêncio, no qual “[...] a
rejeição assume dimensões naturais, cósmicas, em Vidas Secas, a história de uma família de
retirantes que vivem em pleno agreste os sofrimentos da estiagem (BOSI, 1975, p. 369).
A perspectiva do narrador é de constante mudança, e em cada capítulo vemos um foco
em terceira pessoa de uma personagem distinta. Para cada personagem o o narrador atribui um
discurso intimista e introspectivo. Fabiano é um bruto em busca das palavras e por não
conseguir se expressar, então, silencia. Baleia é um ser de características altruístas, cujo
silêncio fundador é o gerador de sentidos. Em contraposição a Fabiano, a cadela é mais
humana do que ele. O narrador nos mostra a humanização de Baleia, na qual é apresentada de
forma sutil e sublime, em pensamentos e atitudes da cadela que constantemente vai se
descortinando sua humanidade e sua submissão ao homem.
Vidas Secas é uma constante abordagem de vida e de morte, na busca pela
sobrevivência (vida) e na fuga da morte. O próprio título atribui a essa relação de vida versus
morte, pois tudo o que seca, consequentemente, indica morte, no entanto, há no romance essa
contradição na própria seca e na resistência do ambiente em resistir à seca e inclusive, na
resistência de Fabiano e sua família em suportar a seca e as intempéries do ambiente e as
relações sociais opressivas que lhes são impostas.
Diante dos diversos aspectos do silêncio abordados no decorrer desta pesquisa, levam-
866

nos a considerar que o romance Vidas Secas traz uma carga de elementos que contribuem para
figurativização do silêncio significar. O não dito transforma o discurso da narrativa em uma
Página

espécie de realismo bruto e expressionista, no qual se articulam o não dito ao não poder ser

ISBN: 978-85-7621-221-8
dito. Observamos que o silêncio perpassa por toda a narrativa de uma forma figurativizada
pelo discurso do narrador e das personagens em suas relações sociais e introspectivas. Orlandi
(2002) mostra que o silêncio está dentro e fora da palavra, dentro e fora das situações pela
qual o indivíduo busca contínua da construção de sentidos, pois é “[...] no silêncio que o
sentido ecoa no sujeito” (ORLANDI, 2002, p. 162).
A condição de Fabiano é de um homem bruto que não contesta seu fado, sua condição
social, nem almeja grandes sonhos. Fabiano tenta organizar suas ideias e questiona-se por não
ser ouvido, no silêncio de ser um vaqueiro sertanejo não visto pela sociedade. Contudo, não
sabe como ecoar esse silêncio que está sim, nem sabe defender-se das circunstâncias sociais.
Ele se sente natural daquela paisagem seca e áspera, e se compara a ela, em sua aspereza e
sequidão. Fabiano vagueia como um judeu errante pelo caminho hereditário de sua condição,
que também será percorrido pelos filhos, assim como foi percorrido pelos os pais.
Observamos que a personagem Baleia é dotada de sentimentos e ações humanizadas.
Apesar de não possuir falas, o narrador mostra uma personagem animal mais humano que as
demais personagens. Baleia estabelece uma espécie de juízo de valor das coisas e situações,
ela sabe das inquietações, dificuldades, anseios e sonhos de toda a família. Ela consegue
transpor o silêncio que lhe é inerente para um discurso utópico e altruísta, sempre se
colocando no lugar do outro e absorvendo os problemas daquela família que também é sua.
Infelizmente a morte alcança Baleia antes da bonança e da fartura, só restou um sonho de
Baleia.

Referências

BASTOS, Hermenegildo. Inferno, alpercata: o trabalho e liberdade em Vidas Secas


(Posfácio). In: RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. 109. ed. Rio de Janeiro: Record, 2009. p.
129-138.

BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura Brasileira. 2. ed. 5. reimp. Universidade de


S. Paulo: Editora Cultrix. 1975.

BOSI, Alfredo. Dialética da Colonização. 3. reimp. São Paulo. Editora Schwarcz, 1992.

CANDIDO, Antonio. Ficção e confissão. Rio de Janeiro: Editora 34, 2012.


867

CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. São Paulo: Editora Nacional, 1967.


Página

CARPEUX, Otto Maria. História da literatura ocidental. Senado Federal: Brasília. 2010.

ISBN: 978-85-7621-221-8
HOLANDA, Lourival. Sob o signo do silêncio: Vidas Secas e O Estrangeiro. São Paulo:
EDUSP, 1992.

LAFETÁ, João Luiz. 1930: a crítica e o Modernismo. São Paulo: Duas Cidades/Editora 34,
2000.

LINS, Álvaro. Valores e misérias das Vidas Secas. In: BRASIL. Ministério da Educação e
Cultura. Pequena bibliografia crítica da literatura brasileira. Brasília: MEC, 2007.

ORLANDI, Eni Puccinelli. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. 5. ed.


Campinas: Editora da UNICAMP, 2002.

RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. São Paulo: Record. 2009.

RAMOS, Graciliano. “Depoimento”. In: Ramos, Graciliano. Vidas Secas (fac-símile da


primeira edição). São Paulo: Governo do Estado de São Paulo, 1988.

RAMOS, Graciliano. Garranchos: textos inéditos de Graciliano Ramos. 2. ed.


[organização:Tiago Mio Salla], Rio de Janeiro: Record, 2013.

868
Página

ISBN: 978-85-7621-221-8
GT6 – LINGUAGEM LITERÁRIA CONTEMPORÂNEA: O NARRADOR E O EU
LÍRICO

O SILÊNCIO E O INACABADO EM QUATRO-OLHOS, DE RENATO POMPEU

Paulo Guilhermino dos Santos (UFRN)

O jornalista e escritor paulista Renato Pompeu (1941-2014) é autor de um número


consistente de obras, ao todo se somam 22 livros, entre romances, ensaios e biografias. Em
meio a eles, merece especial atenção o romance que marca sua estreia no campo literário. A
narrativa, intitulada Quatro-olhos e publicada em 1976, se destaca pela presença de aspectos
metalinguísticos e autobiográficos, sendo que foi produzida durante os piores anos da ditadura
civil-militar. Renato Pompeu iniciou sua escrita em 1968, mas só veio publicar a obra oito
anos mais tarde, sendo que nesse intervalo de tempo o autor foi alvo de prisões arbitrárias e
precisou internar-se em um hospital psiquiátrico após o agravamento de seu estado de
loucura.
Em termos gerais, o seu romance Quatro-olhos é dividido em três partes: a primeira
parte, “Dentro”, relata a angústia do narrador frente à tentativa frustrada de reescrever um
livro que perdeu. Com a memória fragilizada, ele passa a destacar momentos soltos de sua
vida pretérita, dando especial atenção à relação com sua esposa; a segunda parte, “Fora”,
conta a vida do protagonista já no hospício e as estranhas relações estabelecidas entre os
internos dessa unidade; a terceira e última parte, “De volta”, funciona como um epílogo, pois
em poucas páginas narra-se a entrevista de Quatro-olhos com um psiquiatra e sua consequente
volta ao convívio em sociedade.
Neste breve estudo, temos por objetivo analisar esse romance de Renato Pompeu à luz
da presença do silêncio e do inacabado. Para a nossa análise, nos baseamos em ponderações
teóricas sobre o signo do silêncio (BARTHES, 2003) e sobre a característica inacabada do
gênero romance (BAKHTIN, 1998). Diante disso, buscamos correlacionar os elementos
encontrados na obra com o contexto moderno e ditatorial no qual ele foi escrito. Conforme
veremos mais adiante, a ausência de discurso e a inclusão da narrativa se apresentam de
maneira complementar, uma vez que ambas as características servem para reforçar o ambiente
autoritário no qual a narrativa foi gerada.
869

Inicialmente, é possível constatar que em Quatro-olhos o silêncio surge como


importante mecanismo a colaborar com a fragmentação e o intimismo. Ao buscar a origem
Página

latina da palavra silêncio, Roland Barthes ressalta que ela tem dois vocábulos: silere, que se

ISBN: 978-85-7621-221-8
refere ao silêncio da natureza; e tacere, que se refere ao silêncio da fala. É em relação a este
último que o autor centraliza sua atenção. Barthes destaca que o direito a palavra é um
símbolo de poder, pois seu uso é uma vitória contra toda e qualquer tentativa de se suprimir o
direito de livre expressão. Entretanto, segundo ele, há também de se defender o direito ao
silêncio, isto é, o neutro enquanto possibilidade e escolha por calar-se. Nesse sentido, a
ausência da palavra pode se constituir como uma “operação para baldar opressões,
intimidações, perigos do falar” (BARTHES, 2003, p. 52).
Nesse contexto, o silêncio remete a algo que, mesmo não dito, pode ser interpretado
como uma ausência significativa. Barthes afirma que o silêncio é sempre implícito, ele é um
“pensamento que escapa ao poder” (BARTHES, 2003, p. 54), colocando-se de maneira oposta
as posições dogmáticas da religião, do estado ou de qualquer outra norma institucionalizada.
O silêncio é contra a ordem, por isso desestabiliza as crenças do senso comum. Porém, é
preciso ressaltar que, assim como a fala, o silêncio, quando sistemático, se torna igualmente
dogmático. Burlar os paradigmas da fala, portanto, significa saber o momento de usar o
silêncio como signo de desordem.
No processo de desvelamento do mundo de aparências que se produz no romance
Quatro-olhos, o silêncio é um importante mecanismo de expressão. O principal silêncio
produzido na narrativa é aquele que a impulsiona, isto é, o livro perdido. A partir de sua
ausência é que a narrativa se constitui numa tentativa de escrita já de início malograda. Desde
as primeiras linhas do romance o narrador utiliza-se das lacunas para explicar sua dificuldade
em comunicar. Assim, o silêncio – ausência de palavras – deve ser recuperado na
compreensão da obra como um signo dotado de sentido implícito, haja vista o seguinte
comentário de Barthes:

O que é produzido contra os signos, fora dos signos, o que é produzido


expressamente para não ser signo é bem depressa recuperado como signo. É
o que ocorre com o silêncio: quer-se responder ao dogmatismo (sistema
pesado de signos) com alguma coisa que burle os signos: o silêncio
(BARTHES, 2003, p. 58).

Dessa forma, a inexistência de palavras mais precisas sobre o livro apreendido pode
ser interpretada como uma crítica ao ambiente de censura que se instaurou durante o regime
870

civil-militar. Entretanto, o silêncio é ainda mais importante na passagem da primeira para a


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segunda parte da narrativa. A primeira parte da obra é narrada em primeira pessoa do singular,
enquanto que a segunda parte é narrada em primeira pessoa do plural. O que temos com essa
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mudança de foco narrativo, portanto, é uma quebra com o intimismo. Não por acaso ela
ocorre justamente após a prisão do protagonista pela polícia política. Trata-se, nesse caso, da
repressão como método para cessar a subjetividade.
Com isso, entre a prisão de Quatro-olhos e a sua internação no hospício tem-se um
vácuo temporal pouco ou nada registrado pelo narrador. Assim, a fase mais dura de seu
contato com a ditadura fica ausente da narrativa, restando apenas o silêncio como elemento de
significação. Nesse sentido, o que explicaria esse silêncio por parte do narrador? Seria o medo
de relatar o que ocorreu na prisão? Ou seria a dificuldade para traduzir em palavras um
momento tão constrangedor de sua vida? Talvez os dois? Em todo caso, essa ausência de
narração, ao não explicar o que ocorreu durante o tempo de cárcere, abre espaço para se
cogitar inúmeras possibilidades.
Na terceira parte do romance, quando Quatro-olhos é entrevistado por um psiquiatra,
ele explica que ficou preso apenas por algumas horas. Entretanto, é nítido que seu quadro de
psicose se agravou ainda mais após sua prisão, tanto é assim que ele passou a vaguear pela
cidade em busca do livro perdido. Haveria o protagonista, nesse período em que esteve preso,
sido torturado? Mas uma vez não há nenhum registro explícito na narrativa que possa
responder conclusivamente a essa questão. Porém, o silêncio do narrador sobre as horas em
que esteve preso e a própria incapacidade de relembrar e reescrever o passado torna essa
possibilidade bastante verossímil. Ainda mais quando, em alguns trechos da narrativa, surgem
descrições sugestivas como essa: “mas às vezes me surgem lembranças inadequadas [...].
Agora estou pensando em outras coisas: dedos desprezíveis me tocaram, mais de uma vez”
(POMPEU, 1976, p. 21).
Outro ponto importante ressaltado por Barthes, e que gostaríamos de retomar, refere-
se a sua afirmação de que nenhuma postura humana é neutra, ou seja, destituída de sentido.
Até mesmo a omissão e, mais especificamente, o silêncio tem um significado. Em última
análise, o silêncio também fala, uma vez que por meio dele se constrói um signo. Diante
disso, até mesmo Quatro-olhos reconhece que a ausência de sua narrativa perdida e de sua
memória recente são elementos imprescindíveis para a compreensão da obra. No trecho
abaixo, vemos que o comentário do narrador sobre sua incapacidade de escrever vem reforçar
essa percepção:
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Não que papel e tinta não estivessem ali à mão, mas como alcançá-los, se
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nessa segunda-feira não me vinha o estímulo a obrar? Portanto, me faltavam.

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Complexa rede de interações socias, pois, como se diz, a palavra nunca é
alienada, materialização forçosa que é, havia naquele dia se entrelaçado de
maneira que me tirava da boca o que tinha a dizer. Muito maior contribuição
daria à ciência da estética não quem explicasse a menor vírgula dos que
escreveram, mas o silêncio de quem não cria (POMPEU, 1976, p. 38).

Diante do contexto ditatorial, portanto, o protagonista verifica que mais importante do


que tentar compreender aquilo que escreveram, é estudar o silêncio, a ausência de escrita.
Nesse sentido, é importante destacar que durante a ditadura brasileira, além das obras que
foram censuradas, outras tantas nem sequer chegaram a sair da imaginação de seus autores. O
que se teve foi o fenômeno da autocensura, no qual a liberdade dos escritores foi tolhida pelo
medo prévio de uma punição, seja a eles próprios ou as editoras nas quais publicavam.
A censura e a autocensura serviram, assim, como ferramentas para minimizar a
atuação da literatura enquanto veículo de desordem e de questionamento do poder dominante.
Nesse sentido, como percebe Quatro-olhos, é provável que “a ausência de meu papel, a
inexistência do meu texto, melhor conviesse, naquele momento histórico particular, aos
interesses do progresso” (POMPEU, 1976, p. 39). Entretanto, como se sabe, por trás desse
dito progresso, o que se produziu durante os governos militares foram inúmeros retrocessos
sociais. Diante desse contexto, as diversas formas de repressão eram um mecanismo
importante da engrenagem autoritária, pois visavam impedir a denúncia do desenvolvimento
forçado e excludente, cujo principal objetivo era garantir o apoio daqueles setores da
sociedade que ajudaram no golpe de 1964.
Mas apesar de ter como fonte a ação repressiva, o silêncio na narrativa de Renato
Pompeu se apresenta em momentos específicos. É por isso que ele consegue burlar e, ao
mesmo tempo, criticar o governo dos militares. Com sua estruturação duvidosa e incerta, a
narrativa consegue desestabilizar o discurso autoritário. Assim, mesmo a censura impedindo a
liberdade de criar, ela não o faz completamente. Isso porque Quatro-olhos encontra na ficção
um espaço de resistência. Por meio de uma postura metalinguística, ele resolve aventurar-se
numa escrita que tenta explicar os motivos que o impedem de escrever plenamente. Desse
modo, o seu texto literário se apresenta como veículo de denuncia da violência praticada
contra a própria literatura.
Após essa análise da presença do silêncio na obra, veremos a partir de agora que o
872

inacabado surge também como marca da ação ditatorial. Nesse sentido, ao tratar da formação
e das características do romance, Mikhail Bakhtin aponta a inconclusão como sendo a sua
Página

marca singular: “o romance é o único gênero por se constituir, e ainda inacabado”

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(BAKHTIN, 1998, p. 397). Tal característica do gênero romanesco, muitas vezes objeto de
críticas por torná-lo excessivamente prosaico, é na verdade seu grande trunfo para que
permaneça existindo. O romance aprendeu que para viver é preciso se transformar e ao longo
dos anos é justamente isso que o vemos fazer.
Assim, na visão de Bakhtin o romance é o “único gênero que ainda está evoluindo no
meio de gêneros já há muito formados e parcialmente mortos” (BAKHTIN, 1998, 398). Para
alicerçar sua tese em favor desse gênero literário, o autor explica também que ele nasceu e é
alimentado pela era moderna. Nesse sentido, o romance internaliza as características típicas
de nossa sociedade contemporânea, apresentando-se como um meio eficaz para representar as
suas infindáveis transformações: “o romance introduz uma problemática, um inacabamento
semântico específico e o contato vivo com o inacabado, com a sua época que está se fazendo”
(BAKHTIN, 1998, p. 400). Com isso, ele representa o mundo moderno inacabado e, ao
mesmo tempo, termina se constituindo também inacabado, tanto em termos estruturais – com
uma escrita fragmentada e circular – como em termos existenciais – com a exposição de
personagens cheios de lacunas e incertezas.
Partindo dessa breve reflexão de cunho mais teórico sobre o inacabamento no
romance, é possível analisar com mais consistência a sua presença em Quatro-olhos. Nesse
sentido, observando com atenção a totalidade da narrativa, percebemos que o seu caráter
inacabado e mesmo provisório é ressaltado desde as primeiras linhas, nas quais o narrador
relata ter se dedicado durante vários anos a escrita do livro. Entretanto, como ele mesmo
explica:

Perdi os originais há muitos anos, em circunstâncias que não me convém


deixar esclarecidas. Do trabalho, tão importante, guardo apenas memória
vaga; de que havia, indubitavelmente, um tema, ou vários temas, e mesmo
um ou outro personagem, mas não consigo reproduzir um único gesto,
nenhuma situação ou frase (POMPEU, 1976, p. 15).

Assim, delinear-se a caracterização de uma escrita fugidia e de qualidade duvidosa. A


princípio o narrador afirma que estava escrevendo uma obra admirável, mas conforme avança
na narrativa passa a dizer que “todo o livro não valia um caracol” (POMPEU, 1976, p. 131).
Sem poder solucionar essa contradição, haja vista que não lembra quase nada a respeito do
873

livro perdido, Quatro-olhos então se debruça sobre as condições nas quais ele o produziu e os
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acontecimentos que levaram a sua perda. Portanto, é diante da impossibilidade de relembrar

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sua obra perdida que o narrador decide construir uma nova obra enfatizando a anterior, num
esforço último para não perdê-la completamente.
Há muitas possibilidades de interpretação para essa situação que se constrói na
narrativa de Renato Pompeu. Com isso, o livro perdido pode ser compreendido como um
símbolo da perda da segurança que a escrita epopeica representou, enquanto que a reescrita do
livro pode ser compreendida como uma representação do romance moderno. Essa análise é
corroborada especialmente por algumas características que podemos identificar na obra: ao
ser capaz de parodiar e misturar diversos gêneros – testemunho, crônica, autobiografia –, a
narrativa termina se mostrando radicalmente diferente da pureza vista no estilo epopeico.
Dessa forma, ela se torna bem mais propícia para expressar o sentimento de angústia e de
incerteza que está presente na era moderna e que se intensificou bastante diante do contexto
ditatorial brasileiro.
Baseando-se nessa perspectiva interpretativa, o livro perdido que Quatro-olhos busca
incessantemente reescrever se oferece como uma representação bem elaborada de um escritor
e de uma literatura que almejam compreender o momento presente e expressar esteticamente
o espírito da época no qual estão situados. Nesse sentido, é preciso ressaltar que, por ser um
escritor moderno, o protagonista de Quatro-olhos permanece tentando dar sentido ao mundo
real por meio de sua ficção. Embora ele não consiga fazê-lo plenamente, ao menos explícita
seu esforço, convidando o leitor a aproximar-se de sua escrita e enxergar as dificuldades nas
quais ela está sendo germinada.
Com o intuito de trazer à tona uma compreensão aprofundada de seu tempo, a
narrativa evita uma descrição superficial da realidade e leva o leitor para os bastidores de sua
criação, convidando-o a refletir sobre o quão complexo é o ato de internalizar a matéria vivida
numa obra de arte. Nesse sentido, em diversos momentos, Quatro-olhos comenta aspectos
cruciais em relação à escrita de seu livro perdido:

Nesse livro eu punha coisas que vinham de fora de mim, é verdade, mas
eram pedaços significativos do que estava em volta, que obedeciam à minha
lei interna; todo o resto do mundo externo eu ignorava como irreal, só
assimilando o que estivesse de acordo com minha lógica. (...) Portanto,
algumas horas por dia eu não fazia concessões às falsidades da vida, como
comer e arranjar dinheiro, mas só vivia a verdade (POMPEU, 1976, p. 110).
874

Percebemos nesse trecho que para o narrador o ato de escrever tinha a função de dar
Página

sentido lógico a sua existência. Submetido a um contexto autoritário que aos poucos foi

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tolhendo suas liberdades, ele encontrava apenas na escrita ficcional o ambiente adequado para
construir uma realidade à sua feição. Assim, a busca de Quatro-olhos por entender sua vida
por meio da literatura está, inegavelmente, relacionada à capacidade que a escrita tem de
permanecer inalterada mesmo diante da transformação do espaço e da passagem do tempo.
Em outras palavras, o texto escrito não está sujeito ao mesmo nível de mudança que se
verifica no mundo externo.
No entanto, não ter seu livro em mãos significa para Quatro-olhos não ter a capacidade
de dar conta da realidade, de suportar ou ao menos compreender minimamente o arbítrio no
qual está envolvido. Por isso, podemos afirmar que a realidade imposta pela ditadura torna
Quatro-olhos impotente, retira dele a capacidade de criar até mesmo um mundo alternativo
para dar conta do vácuo gerado pelo “mundo falso em que vivia” (POMPEU, 1976, p. 110).
Diante dessa situação, debruçar-se sobre os motivos que impedem o escritor de realizar seu
ofício torna-se extremamente relevante, pois somente assim podemos identificar os motivos
sociais e psicológicos que causam tal comportamento recessivo.
Ao se fazer isso, percebemos que, apesar de todas as restrições aplicadas à arte, ela
tem capacidade criativa suficiente para burlar as normas autoritárias. Nesse sentido, é
interessante observar como, em pequenos trechos da narrativa, Quatro-olhos explica ao leitor
como ele tenta superar a perda do seu livro e da liberdade que dispunha para escrever:

Disfarço com esperteza essa minha limitação, eu não poder condenar em


nome do que virá, avanço com solércia o insolente subterfúgio de que falo
do que não foi. Incapaz de defender o futuro, defendo o futuro do passado –
com essa argumentação tento encobrir meu ataque ao presente (POMPEU,
1976, p. 28).

A ideia de uma escrita baseada no futuro do passado é central para que possamos
entender como a narrativa de Renato Pompeu se estabelece dentro do cenário moderno e, ao
mesmo tempo, faz uma crítica à ditadura vigente. Trata-se de escrever não como as coisas
foram (passado sedimentado) ou como poderão ser (futuro esperançoso), mas de como as
coisas poderiam ter sido, e não foram. Observa-se assim que Quatro-olhos permanece preso a
uma necessidade de que as coisas tivessem sido diferentes: talvez ainda com sua esposa e seu
livro que, juntamente com seu trabalho, eram os sustentáculos de sua vida. Esse desejo
875

impossível de modificar o passado demonstra que o protagonista não conseguiu superar ou


mesmo esquecer suas experiências traumáticas.
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Diante disso, o caráter circular de seu sofrimento vai tomando conta de todo o
romance. As perdas afetivas e literárias vão se pluralizando no decorrer da narrativa. Dessa
forma, elas colocam o protagonista num espiral do qual ele não consegue sair, o que é
sensivelmente angustiante. No final do romance, vendo distantes os sonhos que tanto
cultivou, o narrador explica que Quatro-olhos “logo descobriu o que tinha de fazer. Escrever
outra vez o livro” (POMPEU, 1976, p. 188). É o recomeço de um desejo que nunca termina.
A obra perdida e a obra que temos mãos se misturam num processo repetitivo, infinito e
interminável. Com isso, resta ao leitor o sentimento de que, num mundo onde as coisas são
acentuadamente provisórias, para o bem e para o mal, a obra de Quatro-olhos permanece
inacabada.
Nesse ínterim, o inacabamento da estrutura narrativa é reforçado por meio da
identidade existencial inconclusa do protagonista. É possível perceber nele, por trás de sua
aparente apatia, uma ininterrupta busca por compreender o mundo e a si mesmo. Nesse
sentido, Quatro-olhos reconhece que a ausência de sua identidade está diretamente
relacionada às condições históricas nas quais ocorreu a formação do Brasil. Ao constatar esse
estado de interdependência, ele afirma: “Seria necessário redescobrir a verdadeira história do
Brasil para que eu recuperasse minha identidade perdida, mas como não era capaz de tanto
pus-me a inventar histórias” (POMPEU, 1976, p. 88). Vemos nesse trecho que a crise de
identidade enfrentada pelo protagonista, apesar de individual, retrata uma situação coletiva.
Afinal, a sociedade brasileira das décadas de 1960 e 1970 ainda buscava se autoconhecer,
superar seu passado colonial e seu presente autoritário para, a partir disso, finalmente
construir uma identidade nacional.
Entretanto, em Quatro-olhos isso não acontece. Ao caráter cíclico da obra, soma-se a
percepção de que a vida do protagonista permanecerá sempre estagnada, aumentando no leitor
a sensação de vazio e impotência. A busca existencial que levou Quatro-olhos a reescrever
seu livro perdido nunca termina, uma vez que, chegado ao fim da narrativa, vemos que ela se
propõe a recomeçar com a mesma intensidade. Nesse mesmo sentido, o protagonista vive um
permanente estado de crise identitária e, diferentemente dos heróis epopeicos que se mostram
claros e grandiosos, ele permanece patinando numa mesma situação confusa e apequenada.
Além disso, na segunda parte da obra, temos um narrador que se afasta da história,
876

tornando-se parcialmente onisciente. Algumas raras marcas linguísticas nos permitem


concluir que esse narrador não é um indivíduo abstrato, mas se trata de um dos internos do
Página

hospital psiquiátrico. Apesar de não ser possível afirmar com precisão de quem se trata, uma

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das possibilidades mais prováveis é que seja o próprio Quatro-olhos falando de si mesmo de
maneira indireta. Como ele próprio chega a dizer num certo momento: “Continuava a escrever
o livro, mas já agora como observador” (POMPEU, 1976, p. 60). Podemos propor então que,
partindo da hipótese de que Quatro-olhos narra também à segunda parte do romance, isso
demonstra uma saída de si mesmo, uma perda da capacidade de expressar sua subjetividade
em primeira pessoa do singular. É por meio desse distanciamento do foco narrativo que o
protagonista se sente fora de seu corpo e da materialidade presente, buscando refúgio no
abstrato de sua criação.
Assim, a escrita de Quatro-olhos, seja narrando como participante ou observador dos
fatos, o ajuda a sobreviver. Mas isso apenas parcialmente, pois como ele mesmo constata: “Eu
notava, com olhos cansados, estar meu mundo a derreter e tentava contê-lo, cristalizá-lo
sólido, tentava congelá-lo, mas ele escorria pelas mãos, inalcançável” (POMPEU, 1976, p.
70). Essa frustração diante da realidade é algo que pode ser observado não apenas no
protagonista do romance de Renato Pompeu, mas também em diversas outras obras modernas.
A escolha por esse tipo de personagem na ficção moderna não é mera invenção
descontextualizada, pelo contrário, personagens incapazes de lidar com suas dores refletem
sob a ótica da arte os inúmeros homens e mulheres que compõe a nossa época.
Nesse contexto, o que visualizamos em Quatro-olhos não é um personagem com
grande profundidade existencial, mas com certa lacuna de difícil apreensão. Como prefere
James Wood, trata-se de um “personagem apenas esboçado, cujas emoções e lacunas nos
intrigam, fazendo-nos entrar em suas superficialidades profundas” (WOOD, 2011, p. 103). No
protagonista do romance de Renato Pompeu, as lacunas de sua memória e os esboços de suas
emoções nos intrigam a tal ponto de nos fazer questionar: quais fatos são verdade a respeito
do livro perdido? Será que esse manuscrito realmente existiu? Foi a sua perda que gerou a
passividade no comportamento do protagonista?
É justamente por meio da ausência de maiores detalhes que Renato Pompeu consegue
criar um personagem enigmático e paradoxal. Ao mesmo tempo em que é prosaico o
suficiente para viver uma vida dedicada ao trabalho e a esposa comunista, também é
excêntrico o bastante para passar a andar nu dentro de casa tão logo descobre a origem
indígena de sua família. Essa falta de informação misturada com ações contraditórias não
877

desfaz nosso interesse, pelo contrário, deixa-nos ainda mais desejosos em compreender a
psicologia de Quatro-olhos. Por isso, à medida que avançamos na narrativa, passamos a
Página

preencher suas lacunas usando nossa própria imaginação.

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Com base nessa caracterização lacunar do protagonista, podemos constatar que sua
identidade existencial ainda está em formação. A ausência de maiores explicações sobre
Quatro-olhos nos faz reconhecer que ainda estamos longe de apreender toda a sua
complexidade. Por um lado, ele se mostra alheio ao mundo e desacredita de que qualquer ação
que busque modificá-lo, mas por outro demonstra via escrita literária ter encontrado uma
forma de resistir aos dissabores da vida. Assim, a existência moderna apresenta-se na
narrativa de Renato Pompeu como algo escorregadio. Diante de uma modernidade que
desacredita da religião e da ciência, restou a Quatro-olhos apenas à certeza de que a procura
por respostas ainda permanece inacabada.
Dessa forma, Renato Pompeu se utiliza da literatura não apenas para refletir sobre o
contexto ditatorial que compôs o momento presente de sua escrita, mas também para
problematizar os grandes anseios da humanidade. Liberdade, sofrimento e desejo percorrem
toda a escrita do romance e são discutidos tanto na sua estrutura formal como na
caracterização do seu protagonista. Com isso, resta sob a responsabilidade do leitor o desafio
de construir os pontos de ligação entre a obra de ficção e a sua existência individual, pois
como se sabe “a literatura nos ensina a notar melhor a vida” (WOOD, 2011, p. 71).
Essa percepção aguda da realidade, manifestada por meio do inacabamento na obra de
Renato Pompeu, aponta pra uma relação dialógica na qual as transformações do gênero
romanesco e da sociedade estão interligadas. O romance Quatro-olhos busca acompanhar a
mudança da sociedade brasileira, dando as ferramentas literárias adequadas para que o homem
se expresse de acordo com as necessidades de seu tempo. Nesse sentido, a mutabilidade e
fragmentação do romance sugerem, em última instância, a incompletude existencial que
permeia o homem moderno.
Portanto, chegando ao final de nosso estudo, constatamos que o silêncio na narrativa
de Renato Pompeu consegue ser representativo dos traumas sociais e psicológicos que
impedem a comunicabilidade plena do narrador. Enquanto a manifestação do inacabado
evidencia a inconclusão circular do romance e a incompletude existencial do protagonista.
Assim, constata-se que o silêncio e o inacabado em Quatro-olhos são indício e consequência
da censura e da repressão promovida durante os anos de ditadura. Esses dois recursos são
empregados intencionalmente pelo autor, visando denunciar e criticar o autoritarismo tão
878

avesso a imprescindível liberdade de viver e de criar.


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Referências

BAKHTIN, Mikhail. Epos e romance (sobre a metodologia de estudo do romance). In:


______. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Trad. Aurora Fornoni
Bernardini et alii. 4. ed. São Paulo: Editora UNESP, 1998.

BARTHES, Roland. O silêncio. In: ______. O neutro. Trad. Inove Castilho Benedetti. São
Paulo: Martins Fontes, 2003.

CANDIDO, Antonio. Crítica e sociologia. In: ______. Literatura e sociedade. 3. ed. Rio de
Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006.

POMPEU, Renato. Memórias da loucura. São Paulo: Alfa-omega, 1983.

______. Quatro-olhos. São Paulo: Alfa-omega, 1976.

WOOD, James. Como funciona a ficção. São Paulo: Cosac Naify, 2011.

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GT6 – LINGUAGEM LITERÁRIA CONTEMPORÂNEA: O NARRADOR E O EU
LÍRICO

JORGE DE LIMA E JORGE FERNANDES: UMA REPRESENTAÇÃO REGIONAL

Paulo Ricardo Fernandes Rocha (UERN)133


Rayane Kely de Lima Fernandes (UERN)134

Introdução

No segundo decênio do século XX, a arte literária toma um rumo contrário às


influências artísticas da Europa- Simbolismo, Parnasianismo. Uma palavra que é intrínseca a
toda discussão com respeito às experimentações artísticas sendo realizadas no Brasil, na
época, é imitação. Uma imitação de tendências artísticas, precisamente no viés literário,
vindas do exterior, tais como: o misticismo, o subjetivismo exacerbado pertencentes ao
Simbolismo; por outro lado, o objetivismo, o beletrismo, a preocupação formal, por parte do
Parnasianismo. Desta forma, no desgarrar dessa imitação, surge o Modernismo que

Deixa de lado a corrente literária estabelecida, que continua a fluir; mas


retoma certos temas que ela e o Espiritualismo simbolista haviam deixado no
ar. Dentre estes, a pesquisa lírica tanto no plano dos temas quanto dos meios
formais; a indagação sobre o destino do homem e, sobretudo, do homem
brasileiro; a busca de uma forte convicção. Dentre os primeiros, o culto do
pitoresco nacional, o estabelecimento de uma expressão inserida na herança
européia e de uma literatura que exprimisse a sociedade [...] (CANDIDO,
2006, p. 125).

Conforme a citação acima, é possível constatar que não há o Modernismo em


detrimento das outras tendências literárias. Inclusive, alguns temas na literatura ainda vinham
da arte literária estrangeira- destino do homem, culto do pitoresco, inusitado. O ponto era
quanto à utilização dos elementos na produção da arte daquele momento em diante- a partir
do segundo decênio do século XX. Se era para falar sobre o destino do homem, que fosse do
homem brasileiro. Se era para cultuar o pitoresco, que fosse o pitoresco brasileiro. De acordo
com Rocha (2016, p. 14):

[...] não se adotava, por parte dos artistas brasileiros, uma atitude radical de
880

uma exclusão da arte literária advinda de várias vanguardas europeias antes


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Mestrando em Ciências da Linguagem, na Universidade do Estado do Rio Grande do Norte.
134
Mestranda em Ciências da Linguagem, na Universidade do Estado do Rio Grande do Norte.

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do Modernismo (Futurismo, Cubismo, Dadaísmo, Surrealismo). No entanto,
era o momento de ocorrer uma vista local, ou seja, um reconhecimento da
arte podendo ser produzida com recursos utilizados³ por outras escolas
literárias exteriores (Parnasianismo, Simbolismo, Romantismo), mas
utilizando no eixo elementos da cultura brasileira. Assim, não excluir, mas
transformar [...].

Desta forma, o artista brasileiro haveria de colocar seus costumes, sua cultura, seus
valores, seres folclóricos, seu povo nas experimentações artísticas, a partir daquele momento
na corrente histórica. Não existiria mais a obrigação de se realizar uma arte literária imitando
aos da elite artística- Raimundo Correia, Olavo Bilac, dentre outros. Como finalidade, nas
letras modernas, deveria haver “o máximo afastamento da arte nova em relação às tradições e
convenções do passado” (ANDRADE, 1978, p. 18). Manuel Bandeira, um dos precursores do
Modernismo no Brasil, menciona esse sentimento de exaustão, no tocante às convenções
passadas, quando diz em seu poema “Poética135”:

Estou farto do lirismo comedido


Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto
expediente protocolo e
[manifestações de apreço ao Sr. Diretor]

Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no


dicionário o cunho verná
[culo de um vocábulo
Abaixo os puristas

Esta experimentação de Bandeira mostra, com base em fragmentos como “Estou farto/
Do lirismo bem comportado”, a exaustão por parte dos artistas em relação a como a arte
literária estava sendo produzida. Nota-se uma crítica contra os parnasianos, estes “com uma
linguagem ainda ‘metrificada’ e ‘nacionalista’” (BOSI, 2003, p. 212). Esta elite literária, os
parnasianos, até então adotava uma atitude “purista”, justamente por não olhar com bons
olhos para qualquer expressão artística que não correspondesse aos moldes formalistas nas
criações líricas. Ainda viviam averiguando o “cunho vernáculo” para que houvesse precisão
no arranjo poético. Não se dava valor à subjetividade encontrada no conteúdo dos poemas,
mas sim à objetividade, quanto à forma, metrificação dos versos.
881

Ainda de acordo com o pesquisador Humberto Hermenegildo de Araújo (1995, p. 10),


“os elementos do contexto local [o brasileiro] se integravam, de certo modo, um processo que
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Poema extraído da obra Estrela da vida inteira (1993).

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era mundial e que se revelava numa realidade específica e, pode-se dizer, periférica: o
processo de universalização da literatura”. Portanto, o indivíduo não ficaria mais detido,
imaginando que só uma dada classe, a elite literária, era o monopólio das letras, e sim, que
agora a literatura passava a ser patrimônio de todos. Assim, era hora de “Acertar o relógio
império da literatura nacional” (ANDRADE apud TELES, 1987, p. 330). Ao mesmo tempo
em que o Modernismo se estabeleceu, dele saiu o viés regionalista.

1 Estilos jorgeanos

Embora o artista brasileiro pudesse falar de uma maneira macroscópica sobre o Brasil
e seus elementos, de maneira microscópica ele também podia ser mais preciso em descrever,
tracejar os elementos de sua própria região. Neste sentido, tomando como base o poeta Jorge
de Lima, “[...] com segurança quase de sonâmbulo começou, certo dia, a escrever a língua
falada de sua terra, com uma naturalidade que o transformou logo em mestre do estilo poético
coloquial [...]” (CARPEAUX, 1949, p. 11). Para ilustrar o estilo poético coloquial de Jorge de
Lima, encontram-se léxicos como “embolada”, “quentura”, “botija”, “marimba”, “catolé”,
“cabaço”, “cabocla” em seus poemas. Um trecho que exemplifica a poética coloquial está no
experimento “Ave!” (LIMA, 1829, p. 113):

Ave! jequitibás, sapopembas imensas,


gameleiras, jucás, canafístulas paus-
brasis - absalóes de cabelos suspensos,
iguais aqueles que aos outros vencem com a força [...]

Remetendo-se ao regionalismo encontrado nas letras modernas de outros artistas, nota-


se Jorge Fernandes, poeta natalense que autenticamente trouxe o Modernismo às letras
potiguares.
Jorge Fernandes compôs apenas uma obra de poemas, Livro de Poemas de Jorge
Fernandes. Apresenta-se, a seguir, a estrutura do livro do poeta potiguar, publicado
originalmente em 1927:
882

O livro de estreia poética dele é composto por quarenta poemas de temáticas


variadas, uns de curta extensão, outros mais longos. “Remanescente” é o
poema de abertura antes de serem iniciadas as séries de textos que abordam
Página

“objetos” em comum. A primeira divisão é “Poemas das Serras”, engloba


quatro poemas, dos quais somente os dois últimos são nomeados, estes “A

ISBN: 978-85-7621-221-8
Carreira do Forde” e “Viagem pra Flores”. A segunda é “Meu Poema
Parnasiano”, em que cada texto é numerado até o “N.5”, mas há ainda o
“Poema Parnasiano Sem Número”, encerrando a sessão. Seguem dezesseis
textos líricos com nomes individuais sem pertencer a blocos. Após esses,
outra série “Aviões” compõe-se de poemas numerados, três no total. E os
últimos dez também nomeados, mas não ligados diretamente aos grupos aqui
explicitados [...] (LIRA, 2016, p. 14-15).

Na transcrição dos poemas, é notável o modernismo sendo imprimido, por exemplo,


no que diz respeito aos arranjos poéticos. Na seção de poemas parnasianos, do livro Livro de
Poemas de Jorge Fernandes, há justamente uma tendência moderna, até em tom irônico em
relação aos parnasianos, que primavam pela perfeição no arranjo metrificado dos versos: “[...]
um livro de poemas sem rima nem métrica e contendo experimentações visuais nada usuais
para o período” (ALVES, 2014, p. 76). Não apenas no tocante à metrificação, mas também no
que tange aos elementos, se ratifica o moderno.
É ocorrente o tracejo dos elementos modernos “[...] como o avião, o bonde, os
automóveis, se encontra, por exemplo, nos seguintes poemas: ‘Jahú’, a série ‘Aviões’, a série
‘Poema das Serras’ [...]” (ROCHA, 2016, p. 22). Por sua vez, as imagens regionais também
são ocorrentes na poética de Jorge Fernandes, encontrando-se facilmente seres de, muito
provavelmente, sua região. Um experimento que comprova a presença de impressões
regionais no repertório do artista potiguar é no poema “Rede” (FERNANDES, 2007, p. 52):

Emboladora do sono...
Balanço do alpendre e dos ranchos...
Vai e vem nas modinhas langorosas...
Vai e vem de embalos e canções...
Professora de violões...
Tipóia dos amores nordestinos...
Grande... larga e forte... para casais...
Berço de grande raça...

Conforme o fragmento em destaque, encontra-se léxicos que ratificam os elementos


regionais: emboladora, alpendre, ranchos, e a própria rede, que tem suas ações elogiadas,
sendo ela responsável por auxiliar no embalo do sono do indivíduo, lugar que recebe os atos
amorosos de casais, também utilizada como berço de muitos recém nascidos, por isso no
poema “Berço de grande raça”. No tocante ao estilo do poeta potiguar, Cascudo (2007, p.62)
883

diz que “Há no seu espírito [no de Jorge Fernandes] originalidade natural e lógica, brilho,
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ISBN: 978-85-7621-221-8
coragem honesta [...]”. Jorge Fernandes foi fiel, portanto, como espectador, ao cenário diante
dele, descrevendo-o honestamente, de uma forma original e honesta em seus escritos.
Não resta dúvida que Jorge de Lima e Jorge Fernandes possuem um acervo
significativo, que satisfaz a via regionalista. Sendo assim, a partir do Eu Lírico no poema
“Manhecença”, de Jorge Fernandes, e “Inverno”, de Jorge de Lima, haverá condições de se
identificar o cenário regional e seus elementos na lírica desses artistas nordestinos.

2 Jorge de Lima e Jorge Fernandes: uma representação regional

No intuito de posteriormente ser realizada uma análise sucinta da experimentação, em


um viés regional, buscando-se identificar os elementos, seres, fenômenos, o poema “Inverno”
(LIMA, 1829, p. 157) é apresentado a seguir:

Zefa, chegou o inverno!


Formigas de asas e tanajuras!
Chegou o inverno!
Lama e mais lama
chuva e mais chuva, Zefa!
Vai nascer tudo, Zefa,
Vai haver verde,
verde do bom,
verde nos galhos,
verde na terra,
verde em ti, Zefa,
que eu quero bem!
Formigas de asas e tanajuras!
O rio cheio,
barrigas cheias,
mulheres cheias, Zefa!
Águas nas locas,
pitus gostosos,
carás, cabojés,
e chuva e mais chuva!
Vai nascer tudo
milho, feijão,
até de novo
teu coração, Zefa!
Formigas de asas e tanajuras!
Chegou o inverno!
Chuva e mais chuva!
884

Vai casar, tudo,


moça e viúva!
Chegou o inverno
Página

Covas bem fundas


pra enterrar cana:

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cana caiana e flor de Cuba!
Terra tão mole
que as enxadas
nelas se afundam
com olho e tudo!
Leite e mais leite
pra requeijões!
Cargas de imbu!
Em junho o milho,
milho e canjica
pra São João!
E tudo isto, Zefa...
E mais gostoso
que tudo isso:
noites de frio,
lá fora o escuro,
lá fora a chuva,
trovão, corisco,
terras caídas,
córgos gemendo,
os caborés gemendo,
os caborés piando, Zefa!
Os cururus cantando, Zefa!
Dentro da nossa
casa de palha:
carne de sol
chia nas brasas,
farinha d'água,
café, cigarro,
cachaça, Zefa...
...rede gemendo...
Tempo gostoso!
Vai nascer tudo!
Lá fora a chuva,
chuva e mais chuva,
trovão, corisco,
terras caídas
e vento e chuva,
chuva e mais chuva!
Mas tudo isso, Zefa,
vamos dizer,
só com os poderes
de Jesus Cristo!

No experimento de Lima encontra-se um Eu Lírico que está contente pelos benefícios


que o inverno traz a sua região. Este entra em um diálogo, isso evidente pelas evocações
constantes, com Zefa, provavelmente alguém próximo ao Eu Lírico que também está em
885

condições de contemplar a região recebendo os efeitos promissores do inverno, pela “chuva e


mais chuva”.
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ISBN: 978-85-7621-221-8
Por conseguinte, o Eu Lírico traz imagens de elementos e evento típicos de sua região:
cachaça, café, cigarro, rede, farinha d’água, cururu, chia, carne de sol, milho, canjica,
enxadas, leite, requeijão, corgos, caborés, formigas de asas, tanajuras, pitus, cabojés, carás,
São João, feijão, cana caiana.
Ocorre a ratificação das cenas da região muitas vezes pela figura de linguagem
anáfora, que acontece em vários fragmentos do poema: “verde do bom, / verde nos galhos, /
verde na terra, / verde em ti, Zefa, / [...]”. Assim, é notável como a imagem do verde é
imprimida, haja vista o fato deste verde vir com um acontecimento esperado por todos que
sofrem com a seca: a chuva. Por isso em diversos momentos o Eu Lírico menciona em tom de
festejo, pelas exclamações, “Lá fora a chuva / chuva e mais chuva!/ [...]”. Justamente pela
alegria frente ao inverno é que em diversos momentos há o chamamento, provavelmente para
testemunhar e se alegrar juntos, por Zefa, por parte do Eu Lírico: “Zefa, chegou o inverno!/
[...] e tudo isto, Zefa... / [...] os caborés piando, Zefa! / os cururus cantando, Zefa! / [...]”.
Tratando-se do poeta potiguar, Jorge Fernandes, o poema em destaque neste artigo é
“Manhecença”. Nesta composição, o Eu Lírico menciona diversas atividades e seres típicos a
sua região.

O dia nasce grunhindo pelos bicos


Dos urumarais...
Dos azulões... da asa branca...
Mama o leite quente que chia nas cuias espumando...
Os chocalhos repicam na alegria do chouto das vacas...
As janelas das serras estão todas enfeitadas
De cipó florado...
E o coên! coên! do dia novo —
Vai subindo nas asas peneirantes dos caracarás...
Correndo os campos no mugido do gado...
No — mên! — fanhoso dos bezerros...
Nas carreiras das cotias... no zunzum de asas dos besouros,
das abelhas... nos pinotes dos cabritos...
Nos trotes fortes e luzidos dos poltros...
E todo ensangüentado do vermelhão das barras
Leva o primeiro banho nos açudes
E é embrulhado na toalha quente do sol
E vai mudando a primeira passada pelos
Campos todo forrado de capim panasco...
886

Sobre o conjunto de seres e atividades comuns a região do Eu Lírico, encontra-se uma


rica fauna e flora: urumarais, azulões, vacas, cipó florado, campos, serras, cabritos, açudes,
Página

bezerros, capim panasco.

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Por conseguinte, o uso de figuras de linguagem é comum na lírica de Jorge Fernandes,
o que vem a contribuir para uma maior precisão na representação da região trazida no poema:
“[...] temos o efeito de uma personificação, quando se associa o dia, ser inanimado, a ações
concretas, como em ‘[o dia] Leva o primeiro banho’, nos versos do autor potiguar. Assim, se
detecta figura de estilo na poética de Jorge Fernandes, com base na personificação tracejada”
(ROCHA, 2016, p. 24). Tratando-se dos versos, também

No primeiro deles, “O dia nasce grunhindo pelos bicos”, tem-se o dia como
sujeito da oração. Então, esse dia aparece novamente em sugestivas ações de
elipse nos versos seguintes: “[o dia] Mama o leite quente que chia nas cuias
espumando”, “[o dia] Vai subindo nas asas peneirantes dos caracarás”, “[o
dia] correndo os campos no mugido do gado” e “[o dia] Leva o primeiro
banho nos açudes/ E é [o dia] embrulhado na toalha quente do sol/ E vai [o
dia] mudando a primeira passada pelos” [...] (ROCHA, 2016, p. 24).

Conforme as observações de Rocha (2016), na citação e parágrafo anterior à citação,


detectam-se a elipse e a personificação como ratificadores das cenas regionais. É comum
também na experimentação artística de Jorge Fernandes um Eu Lírico veículo que intensifica
as cenas regionais por meio do uso de sons onomatopaicos: “coên, coên” (verso 8), “mên”
(verso 11), “zunzum”, (verso 12). As onomatopeias fazem o leitor ter uma melhor fluidez dos
sons típicos dos animais da região, havendo, assim, mais vivacidade das cenas impressas no
poema.

3 Considerações finais

A representação regional, por parte de Jorge de Lima e Jorge Fernandes, foi o


almejado na presente investigação científica a caráter bibliográfico. Vimos que estes
expuseram sua região em uma riqueza de estilos: uso de figuras de linguagem: metáforas,
anáforas, personificação, elipse; seleção vocabular: palavras escritas fielmente à pronúncia do
ser pertencente à região descrita; a escrita de elementos em conformidade a como aquele
objeto é evocado na região em destaque; sons onomatopaicos.
Os poetas, ao realizem uma caracterização de sua região, carregam o espírito do ser
local, que observa os elementos, seu espaço, e evoca-os de uma forma descritiva simples,
887

sendo fidedignos ao que observam em seu território, nisto, o Eu Lírico sendo o veículo das
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ISBN: 978-85-7621-221-8
imagens captadas. É interessante notar a forma como cada artista se comporta, tendo em vista
a amplitude de suas produções artísticas. Logo:

Ninguém pode ser regionalista e universal ao mesmo tempo. A poesia negra


e folclórica de Jorge de Lima, de 1927, devia ser regionalista porque há
regionalismo nordestino, regionalismo gaucho) regionalismo mineiro etc.,
mas nao há nem pode haver regionalismo brasileiro. O Brasil não é uma
região e sim um país [...] (CARPEAUX, 1829, p. 11-12).

Sendo assim, Jorge de Lima expôs o regional alagoano; Jorge Fernandes, o regional
potiguar. Estes, realizando essa exposição com maestria, conforme tracejado e apresentado
neste artigo.

Referências

ALVES, Alexandre. Poesia submersa: poetas e poemas no Rio Grande do Norte 1900-1950,
volume I. Mossoró: Queima-Bucha, 2014.

ANDRADE, Oswald de. Obras completas. Do Pau-Brasil à Antropofagia e às Utopias. 2. ed.


–Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1978.

ARAÚJO, H. H. de. Modernismo: anos 20 no Rio Grande do Norte- Natal: UFRN. Ed.
Universitária, 1995.

BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.

BOSI, Alfredo. Céu, inferno: ensaios de crítica literária e ideológica. 2. ed. São Paulo: Ed.
34, 2003.

CANDIDO, Antônio. Literatura e sociedade. 5. ed. Rio de Janeiro. Ed. Nacional, 1976.

CARPEAUX, Otto M. In: LIMA, Jorge de. Obras completas de Jorge de Lima. Rio de
Janeiro: Getulio Costa, 1829.

CASCUDO, Luís da Câmara. Depoimento de Luís da Câmara Cascudo sobre o Livro de


poemas de Jorge Fernandes. In: FERNANDES, Jorge. Livro de poemas de Jorge
Fernandes. 4. ed. Natal: EDUFERN, 2007.

FERNANDES, Jorge. Livro de poemas de Jorge Fernandes. 4. ed. Natal: EDUFRN, 2007.
888

LIMA, Jorge de. Obras completas de Jorge de Lima. Rio de Janeiro: Getulio Costa, 1829.

LIRA, Ana Luíza Dantas de; Jorge Fernandes: a poesia de olhos fórdicos no sertão
Página

potiguar. Monografia de Graduação. Departamento de Letras Vernáculas, Universidade do


Estado do Rio Grande do Norte. Mossoró, 2016, 30 p.

ISBN: 978-85-7621-221-8
ROCHA, Paulo Ricardo F. Sertão e cidade na poesia de Jorge Fernandes. Monografia de
Graduação. Departamento de Letras Vernáculas, Universidade do Estado do Rio Grande do
Norte. Mossoró, 2016. 35 p.

TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda Europeia e Modernismo Brasileiro. 10. ed. Rio de
Janeiro: Record, 1987.

889
Página

ISBN: 978-85-7621-221-8
GT6 – LINGUAGEM LITERÁRIA CONTEMPORÂNEA: O NARRADOR E O EU
LÍRICO

O NARRADOR NOS CONTOS FANTÁSTICOS: “TELECO, O COELHINHO” E “O


PIROTÉCNICO ZACARIAS”, DE MURILO RUBIÃO136

Rayane Kely de Lima Fernandes (UERN)137


Paulo Ricardo Fernandes Rocha (UERN)138

Introdução

Murilo Rubião foi um dos primeiros contistas modernos brasileiros a explorar a


literatura fantástica. Sua obra permaneceu desconhecida por mais de três décadas, o público
só veio ter conhecimento de seus trabalhos quando, em 1974 o livro de contos O Pirotécnico
Zacarias foi publicado em uma reedição, tirando o escritor do anonimato, transformando-o
em um dos maiores contistas nacional. Atualmente, com a divulgação do gênero fantástico
através de outros escritores renomados como Borges, Cortázar, Garcia Márquez dentre outros.
No cenário brasileiro, alguns escritores também se destacaram cultivando o modo
fantástico, como Moacir Scliar, José J. Veiga, Inácio de Loyola, além de outros, então
“Murilo Rubião não é mais uma ovelha negra no panorama de nossas letras” (RUBIÃO,
2017). Em suas narrativas, ele provoca um desconforto no leitor, suscita uma reflexão sobre a
condição humana e a sociedade opressora que preza por padrões estabelecidos.
A obra muriliana já foi bastante estudada, porém sempre há e merece a possibilidade
de uma nova leitura. Nesse trabalho, objetivamos analisar o narrador e sua confiabilidade nos
contos fantásticos, levando em consideração a modernidade composicional do gênero e a
singularidade do narrador do conto fantástico rubiano. Para tanto, nosso corpus será
composto pelos contos ‘Teleco, o coelhinho” e “O Pirotécnico Zacarias”. O primeiro foi
publicado em 1965 no livro Os Dragões e Outros Contos. Já o segundo foi publicado em livro
homônimo em 1974.
Esse trabalho tem caráter bibliográfico e para tanto traremos como embasamento
teórico, Gotlib (1985), Córtazar (2006) e Magalhães Júnior (1972) para tratarmos acerca do

136
Artigo apresentado para publicação nos anais do IV Colóquio Nacional de Linguagem e Discurso realizado
890

pelo (GEDUERN - PPCL - FALA - UERN).


137
Mestranda em Ciências da Linguagem – PPCL pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte –
UERN. E-mail: kely.rayane@gmail.com
138
Mestrando em Ciências da Linguagem – PPCL pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte –
Página

UERN. E-mail: prferocha@gmail.com

ISBN: 978-85-7621-221-8
conto. Quanto ao fantástico, a análise pretendida fundamenta-se em Todorov (2008), mas
também em outros autores que se preocuparam com a evolução do fantástico, como Camarini
(2014), que também trata do foco narrativo no conto fantástico. Dialogaremos ainda com
Furtado (1980), Gennete (1995), Logde (2010) e outros para embasar a análise do narrador e
suas peculiaridades na narrativa fantástica.

1 Considerações sobre o fantástico: conto

A maioria dos estudos sobre o fantástico toma como ponto de partida as considerações
de Tzvetan Todorov, mesmo que seja para contestá-lo ou contrapô-lo as novas teorias acerca
desse gênero. Para Todorov o fantástico deve ser entendido como um gênero literário e a sua
essência consiste na irrupção, em nosso mundo, de um acontecimento que não pode ser
explicado pelas leis racionais. Para ele (2008) o fantástico dura apenas o tempo de uma
hesitação.
Da antiguidade à contemporaneidade, o fantástico assumiu diferentes formas em
conformidade com o seu contexto histórico. Desde as teorias de Todorov, aconteceram muitas
transformações no que concerne ao que se considera fantástico. Algumas afirmações feitas
pelo teórico são contestadas em relação às narrativas fantásticas modernas e contemporâneas,
como por exemplo: a teoria de que ao final da narrativa o leitor ou a personagem
encontrariam uma explicação para os fatos sobrenaturais. Em muitas narrativas atuais, ao
contrário, a hesitação diante do sobrenatural é mantida até o final, a inquietude permanece
mesmo ao final da obra.
Segundo Camarani (2014, p. 176) “A diferença que percebe entre o fantástico
tradicional e o fantástico pós-moderno reside em que o primeiro problematiza os limites entre
realidade e irrealidade, enquanto o segundo os apaga”. Já Calvino (2004) aponta a confluência
de realidades na expressão do real quando se deparam duas realidades distintas, para ele tem-
se de um lado a possível e do outro a impossível, portanto, resultando em um efeito de
oscilação entre ambos.
Para Roas (2001), toda narrativa fantástica tem sempre um mesmo objetivo, abolir a
concepção que o leitor tem acerca do real com a finalidade de inquietá-lo. O estudioso destaca
891

a dimensão transgressora do fantástico além do textual, cujo objetivo é questionar aquilo que
concebemos como real e desvelar a estranheza de nosso mundo.
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No Brasil alguns escritores se consagraram cultivando esse gênero, como é o caso de
Murilo Rubião, conforme explicitamos anteriormente nesse estudo. No fantástico,
encontramos diversos tipos de narrativa, sendo o conto fantástico bastante estudado no
cenário contemporâneo de realidades insólitas. São diversos os temas abordados pelos
contistas fantásticos, em sua maioria metaforizam a realidade multifacetada e repleta de
conflitos na qual estamos inseridos.
De acordo com Magalhães Junior (1972, p. 12), “numerosas são as definições de
conto”, é um gênero de difícil definição e esquivo nos seus múltiplos e antagônicos aspectos
como nos lembra Cortázar (2006). Esse tipo de narrativa possui a peculiaridade de provocar
reflexões acerca da realidade cotidiana do homem e dessa forma vem alcançando destaque no
cenário literário.

Se não tivermos uma ideia viva do que é um conto, teremos perdido tempo,
porque um conto, em última análise, se move nesse plano do homem onde a
vida e a expressão escrita dessa vida travam uma batalha fraternal, se me for
permitido o termo; e o resultado dessa própria batalha é o conto, uma síntese
viva e ao mesmo tempo uma vida sintetizada. (CORTÁZAR, 2006, p. 147).

O conto é uma narrativa breve que em sua maioria acontece em único espaço, com
número de personagens menor e com um tempo curto, em relação a outros gêneros como o
romance, por exemplo. A linguagem usada, geralmente, é objetiva, direcionada a tratar do
assunto em questão. O conto contempla o instante. Para Nadia Gotlib (1985, p. 55) “é
justamente por esta capacidade de corte no fluxo da vida, que o conto ganha eficácia” e ainda
“na medida em que, breve, flagra o momento presente, captando em sua momentaneidade,
sem antes nem depois”.
Ainda de acordo com Gotlib (1985) o conto, não se refere apenas ao acontecido, não
tem compromisso com o evento real, a realidade e ficção não tem limites precisos, o que
indicia a natureza complexa de se estudar esse gênero. Por sua vez, o conto fantástico
possibilita uma vasta imaginação. Não se resume somente em uma criação de diferentes tipos
de seres, mas também inclui drama, aventura, conflitos, evento sobrenaturais, inclui duas
realidades inconciliáveis que por vezes se justapõem e distinguem em muitos aspectos o conto
fantástico do conto tradicional.
892

O conto fantástico é a narrativa de uma aventura que apresenta o real e o


Página

irreal. O mistério esparso inquieta o sujeito, estimula sua curiosidade e o

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incita a buscar a fonte do malefício. Essa busca do objeto do pavor que o
atrai e que evita, essa iniciação ao terror, confunde-se com a própria
narrativa. O instante agudo da crise é tão somente o final da busca, que pode
confundir-se com a descoberta do monstro (CAMARINI, 2014, p. 52).

Por sua vez, Magalhães Júnior classifica como conto fantástico aquele que relata
pavores ou malefícios a que ficam sujeitos os que conservam, em seu poder como
curiosidades, destroços humanos ou mesmo de um ser irracional, objeto estranho ou
sortilégio, ou feitiçaria. (1972, p. 78). Nos contos fantásticos de Murilo Rubião percebemos
personagens irreais inseridas no cotidiano vivido pelo leitor e vice-versa. Suas personagens
são vistas como escravas da sociedade. O autor metaforiza a realidade do homem
contemporâneo. Os elementos fantásticos usados por Rubião são portadores de um sentido
metafórico que extrapolam os sentidos referenciais.

2 Narrador no conto fantástico: confiabilidade

O narrador faz a mediação entre o gênero narrativo e o leitor. Esse elemento é


importante na análise de qualquer narrativa e é fundamental na criação da atmosfera dos
contos de Murilo Rubião. Identificar não apenas sua posição, (primeira/terceira pessoa) ou seu
tipo, mas seus posicionamentos e visão (ou ausência) diante dos fatos narrados é
indispensável para a compreensão dos contos do referido autor.
Na poesia, erroneamente se confunde o poeta e o eu-lírico, na narrativa também
acontece esse tipo de confusão, entre o narrador e o autor. No entanto, na ficção moderna e
contemporânea, a tendência é que ao invés da voz do autor, a narrativa seja apresentada por
meio da consciência dos personagens ou é incumbida a eles a tarefa de narrar. De acordo com
a categorização de Gérard Gennete (1995), temos: o narrador intradiegético e extradiegético.
Sendo o primeiro, um dos personagens que na participa da diégese, e o segundo aquele que
não participa da história, narra de uma perspectiva externa.
Contanto, o narrador, intradiegético se subdivide em: homodiegético, autodiegético e
heterodiegético. O narrador homodiegético é personagem da trama que está sendo contada.
Por sua vez, o narrador autodiegético narra suas próprias experiências, como protagonista. E,
893

por fim, o narrador heterodiegético, ele não integra o universo diegético, não é personagem da
narrativa, ele apresenta sua visão sob uma focalização externa. Ele se diferencia dos outros
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dois anteriores, pois não viveu as experiências relatadas, não é testemunha intrínseca dos
acontecimentos.
Quanto à focalização narrativa, de acordo com Reis e Lopes (2002), existem três
abordagens distintas e importantes que devem ser levadas em consideração na análise dessa
categoria da narrativa. São elas: Focalização externa, interna e onisciente. Cada qual com as
suas particularidades, no entanto, todas devem ser relacionadas com as categorias de tempo e
espaço presentes na obra que envolvem a narração. As focalizações agregam as visões de
mundo, do narrador e/ou dos personagens.
De acordo com Furtado (1980, p. 109), o narrador mais usado nas narrativas
fantásticas é o narrador-personagem, em sua maioria, em primeira pessoa.

[...] convém ao fantástico que o sujeito da enunciação coincida com uma


figura de relevo na ação. Por isso, este tipo de narrador deve ser considerado
um fator importante quando se pretende estabelecer com clareza a
delimitação do gênero, embora não se possa dizer que constitui um traço
distintivo dele, pois não está presente na totalidade das narrativas que o
integram (FURTADO, 1980, p .109).

Ainda de acordo com ele, além da sua dupla incumbência, narrador e personagem ao
mesmo tempo, ele ainda tem outras funções importantes dentro da obra fantástica. Para ele, “o
narrador pode constituir um elemento relevante no que concerne ao reforço da ambiguidade e
à sua comunicação ao receptor do enunciado” (FURTADO, 1980, p. 115). O leitor da
narrativa fantástica pós-moderna é guiado por uma lógica interna, dessa forma é importante
que os todos os aspectos da narrativa se coadunem para tal, inclusive o narrador.
Nas narrativas fantásticas, o narrador deve ser observado levando em consideração a
credibilidade, confiabilidade desta categoria da narrativa. Quanto ao gênero conto fantástico,
que é o recorte que nos interessa neste trabalho, Machado (2005, p. 64) nos diz que “avaliar a
confiabilidade do narrador é uma das questões mais importantes no que se refere aos contos
fantásticos. Da autoridade estabelecida ou não pelo narrador depende a credibilidade da
história narrada”. A tarefa de distinguir entre um narrador confiável ou um narrador não
confiável é em algumas obras muito difícil de ser realizada.
O narrador em primeira pessoa é o mais conhecido entre os narradores não confiáveis,
894

devido à carga subjetiva do “eu”. Este tipo de narrador permite investir semanticamente em
elementos a seu favor. Não se pode acreditar em tudo que nenhum narrador diz, mesmo em
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terceira pessoa. Existe uma série de fatores que coadunam para que não sejamos ingênuos em
confiar no narrador.
David Lodge, em A arte da ficção (2010, p. 163-164) traz o conceito de narrador não
confiável para definir as narrações feitas por personagens que participam da trama. Segundo o
teórico, os narradores não confiáveis servem para revelar as lacunas entre a realidade e as
aparências e mostrar como esta última pode ser distorcida pelos seres humanos. Muitas vezes
o narrador pode pintar um retrato falho ou enganador de si mesmo.
Ainda de acordo com Lodge (2010, p. 162), narradores não confiáveis são
invariavelmente personagens inventados que participam da história que contam. Um narrador
onisciente não confiável seria uma contradição de termos e ocorreria apenas em um texto
muito subversivo e experimental. Nem mesmo um personagem-narrador pode ser cem por
cento não confiável.
Neves e Zolin (2014) ressaltam que a construção de um narrador não confiável
caracteriza um dos mecanismos cuja assimilação promove uma aproximação dos desafiantes
impasses da pós-modernidade. Importante na análise de qualquer narrativa, o narrador é outra
peça fundamental na criação da atmosfera dos contos de Murilo Rubião.

3 O narrador no conto “Teleco, o coelhinho”

O referido conto é narrado em 1ª pessoa, o narrador não é um mero observador, ele faz
parte da ação, apesar de não ser o protagonista. Temos o ponto de vista do homem, amigo do
coelhinho Teleco que tem o dom de metamorfosear-se. No entanto, vale ressaltar que o
conflito principal da narrativa muriliana é desenvolvido e evolui em consonância com os
diálogos construídos no desenrolar da história, indo de encontro ao que Camarini destaca no
que concerne as vozes que permeiam o texto fantástico.
Para ela, no fantástico, “já que há um narrador, a narrativa é de algum modo
mediatizada, estabelecendo mesmo um diálogo se levarmos em conta a cisão do sujeito, que
justapõe ou mistura os dois discursos” e ainda continua alertando-nos para que possamos
perceber que “há, assim, uma espécie de técnica polifônica na narração fantástica,
considerando que constitui uma mensagem a duas vozes” (CAMARINI, 2014, p. 76).
895

Contudo, a voz do narrador, predominantemente homodiegético, em 1ª pessoa, é


dominante no texto. E, o caráter fantástico desse conto advém, em parte, da forma como o
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narrador testemunha relata os acontecimentos insólitos. Ele trata o sobrenatural com
naturalidade, causando a falta de estranheza dentro da narrativa.
Outro aspecto relevante que precisamos observar é a parcialidade do narrador. Este,
durante o conto não consegue ser imparcial, por isso deixa transparecer seus pensamentos e
opiniões em alguns momentos da narrativa, no primeiro momento, no começo da história ao
encontrar teleco na praia e ser convencido a levá-lo para casa, “o seu jeito polido de fazer as
coisas comoveu-me” (RUBIÃO, 2006, p. 684) e posteriormente quando Teleco se transforma
no canguru Barbosa “também a sua figura tosta me repugnava”.
O narrador tem sua visão limitada, sendo incapaz de conhecer interiormente os
personagens dos quais fala e também de explicar os pontos obscuros da história, como por
exemplo, o que teria acontecido a Teleco nos dias em que esteve desaparecido, após romper
com ele e partir com Tereza, “foi a última vez que os vi. Tive, mais tarde, vagas notícias de
um mágico chamado Barbosa a fazer sucesso na cidade. A falta de maiores esclarecimentos,
acreditei ser mera coincidência de nomes” (RUBIÃO, 2006, p. 686).
Quanto à confiabilidade e credibilidade do narrador do referido conto, precisamos
retomar ao que dissemos anteriormente. Por ser um narrador testemunha, logo não é
totalmente confiável, pois como mostramos acima, em alguns momentos da narrativa, deixa
seus sentimentos transparecerem e até influenciar em suas atitudes.

4 O narrador no conto “O Pirotécnico Zacarias”

Assim como em “Teleco, o coelhinho”, no conto “O pirotécnico Zacarias”, temos um


narrador em primeira pessoa, no entanto, é um narrador-protagonista. A voz que narra é a de
um defunto, após ter sido atropelado e morto, não perde suas faculdades humanas. No início,
ele começa relatando a respeito da grande dúvida: “Teria morrido o pirotécnico Zacarias?”
(RUBIÃO, 2010, p. 13). Em seguida, nos deparamos com a revelação de muitos acharem que
Zacarias está vivo, outros, consideram ser uma “alma penada, envolvida por um pobre
invólucro humano” (2010, p. 13), e até mesmo, a não aceitação de Zacarias como cidadão,
alegando apenas uma semelhança com o falecido.
Porém, o narrador-defunto trata de esclarecer e confessa: “Em verdade morri, o que
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vem de encontro à versão dos que creem na minha morte. Por outro lado, também não estou
morto, pois faço tudo o que antes fazia e, devo dizer, com mais agrado do que anteriormente”.
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(2010, p.14). Assim como, Brás Cubas, também narrador defunto de Memórias Póstumas de
Brás Cubas (1881), de Machado De Assis, Zacarias narra sua saga depois de morto.
Quanto à parcialidade desse narrador autodiegético, em primeira pessoa, percebemos
uma postura de imparcialidade. O narrador foi construído de acordo com o que Todorov
(2008) e Furtado (1980) consideram o ideal para o fantástico: narrador-personagem e
protagonista. O narrador-personagem controla a narrativa e adverte “Uma coisa ninguém
discute: se Zacarias morreu, o seu corpo não foi enterrado. A única pessoa que poderia dar
informações certas sobre o assunto sou eu” (RUBIÃO, 2010, p. 14).
De acordo com a perspectiva tradicional, conforme aponta Todorov (2004), o
narrador-personagem é mais confiável do que uma simples personagem, uma vez que ele não
deve se submeter à prova da verdade, apesar de que como personagem pode mentir. “O
narrador representado convém [...] perfeitamente ao fantástico. Ele é preferível à simples
personagem, que pode facilmente mentir [...]. Mas ele é igualmente preferível ao narrador não
representado [...]” (TODOROV, 2008, p.91). Nesse caso, é o tipo de narrador ideal para o
fantástico por possibilitar com maior facilidade a identificação com o leitor.

Considerações finais

A narrativa rubiana consegue transgredir o conceito de Todorov sobre o fantástico


tradicional. Conforme, constatamos anteriormente, a ausência de estranhamento perante o
absurdo no interior da narrativa (o narrador trata os acontecimentos fantásticos como naturais)
levando o leitor a sentir um estranhamento ainda maior do que o próprio acontecimento
extraordinário que rompe e desloca a ordem cotidiana do mundo, do meio social em que
vivemos.
Portanto, nos levando a considerá-lo um escritor fantástico que transgrediu ao gênero
do século XIX e que foi amplamente estudado pelo teórico Todorov. Ressaltamos que na
contemporaneidade o termo fantástico assume uma concepção muito ampla, referindo-se aos
relatos que rompem com a lógica natural/real das coisas, com o caos causado na ordem
natural.
Zacarias é o narrador-personagem e protagonista, além de defunto, ele seria confiável
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em algum momento da história, mesmo sabendo que o fantástico instaura a ambiguidade? A


confiança do leitor no narrador oscila. Existe um jogo entre narrador e leitor que se torna uma
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marca pulsante do fantástico. Ou seria, um jogo triplo, tendo em vista a tríplice formada pelo

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texto, permeado de fatos sobrenaturais, que a luz da teoria tradicional causa a hesitação no
leitor ou a ambiguidade como requer as novas teorias que abordam o fantástico moderno, pelo
narrador-personagem (considerado ideal tanto por Todorov quanto por Furtado), e como
terceiro elemento do triângulo, temos o leitor, que se torna cúmplice na narrativa, sem buscar
explicações para o inexplicável, contribuindo, dessa forma, para a existência do fantástico.
Em “Teleco, o coelhinho”, o leitor se depara com o entrecruzamento e confluência de
duas realidades: a insólita e a natural. Em outra ordem, seria difícil aceitar que um coelho se
metamorfoseia em vários animais, que fala e tem sentimentos, bem como também no “O
Pirotécnico Zacarias” aceitar o defunto no nosso plano. Então, entra em cena o narrador,
buscando relatar a narrativa com credibilidade.
Enfim, temos nos contos analisados respectivamente, um narrador homodiegético que
narra uma história vivida sem, no entanto, ser o personagem central da história, o homem que
acolhe Teleco, mas que não sabemos o nome e um narrador autodiegético que relata suas
próprias experiências como personagem principal, o defunto Zacarias.
No entanto, ao deixar transparecer seus sentimentos atrelada a carga subjetiva do “eu”
não podemos confiar totalmente no narrador de ‘Teleco, o coelhinho” e nem no narrador
defunto do “O Pirotécnico Zacarias” tendo em vista que este já morreu e não tem mais
obrigação de compromisso com a verdade. O leitor como parte do triângulo na construção do
fantástico ao mesmo tempo em que precisa acreditar e mergulhar na realidade insólita, não
tem como confiar totalmente no narrador, haja vista a sua natureza subjetiva e individual.

Referências

DO AUTOR

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SOBRE O AUTOR
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GT6 – LINGUAGEM LITERÁRIA CONTEMPORÂNEA: O NARRADOR E O EU
LÍRICO

O CONFRONTO ENTRE O ESPAÇO DO POSSÍVEL E DO IMPOSSÍVEL NO


CONTO “NATAL NA BARCA” DE LYGIA FAGUNDES TELLES.

Rosaly Ferreira da Costa Santos (UERN)


Antonia Marly Moura da Silva (UERN)

Introdução

Este artigo constitui-se um recorte da dissertação intitulada “Limites e fronteiras: a


configuração do espaço ficcional no conto fantástico de Lygia Fagundes Telles”. Trata-se de
uma análise crítica do conto “Natal na barca” da coletânea História do desencontro (1958) da
referida autora, com o propósito de analisar o espaço enquanto categoria instigadora do
fantástico no interior da trama. O tema central do conto é o drama de duas mulheres que se
conhecem em uma estranha barca, em uma noite de Natal. Nesse micro-espaço, uma mãe
carrega no colo um bebê moribundo. No entanto, quando se pensa que ele já morrera, o
menino acorda, sugerindo uma espécie de ressurreição. Assim, eventos estranhos se espraiam
no interior da trama. Fé e ceticismo, natural e sobrenatural, morte e vida, dentre outras
polaridades impossibilitam uma leitura fechada do conto. Como fundamentação teórica, sobre
o espaço, elegemos as noções de Lins (1976), Foucault (1984). Acerca do fantástico, guiamo-
nos pelas teorias de Ceserani (2006), Roas (2014) e Calvino (2011) e Bessierè (2009).
Nos contos lygianos, os espaços são construídos de forma semelhante ao real. No
entanto, o cotidiano se depara com eventos insólitos que põem em xeque nossa concepção de
real. O confronto entre o possível e o impossível são elementos que se entrelaçam no texto,
ratificando, assim, a natureza do fantástico contemporâneo. Diante de tal premissa, a partir da
sobreposição de instâncias aparentemente antagônicas, condição instigante da passagem de
limites e fronteiras, é que ocorre a confluência espaço-temporal, ultrapassando as barreiras
que separam dimensões distantes e distintas, tanto no tempo quanto no espaço. Nas discussões
a seguir, privilegiaremos os macro e micro espaços instigadores da atmosfera fantástica, bem
como a relação entre eles e as personagens.
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2 Noções gerais sobre a literatura fantástica.

A literatura fantástica surge em meio a um cenário social e histórico de privilégio à


razão que surge como a forma soberana de explicar o universo. Nos séculos XVIII e XIX,
com o Iluminismo, há uma busca em explicar os fenômenos do mundo sem o auxílio das
religiões, crenças e superstições. De tal modo, segundo José Paulo Paes (1985), o nascimento
do fantástico se relaciona a uma época em que tudo era mensurado através da razão. Por isso,
foi

um período de fermentação intelectual em que, aos preceitos irracionais ou


supersticiosos da opinião comum, tanto quanto os dogmas indiscutidos e
indiscutíveis da Fé, os filósofos contrapunham o seu direito de livre exame
de tudo à luz da Razão soberana (PAES, 1985, p. 190).

No entanto, a razão se depara com o limite da própria ciência e da razão que não
consegue abarcar a complexidade inerente ao homem. Assim, é nesse contexto adverso a seu
florescimento que nasce a literatura fantástica, privilegiando temáticas ligadas ao
sobrenatural, o inconsciente, o mundo onírico, questões transcendentais muito mais próximas
do homem.
Nessa efervescência histórica e literária, brota uma série de estudos sobre a natureza
do fantástico. Assim é que Tzvetan Todorov aparece no cenário das letras como o primeiro
estudioso a sistematizar uma teoria sobre esta literatura. O teórico elege como eixo de sua
teoria a hesitação que pode partir do leitor e/ou da personagem. Em sua perspectiva, para que
um texto seja considerado fantástico, é preciso que o leitor e/ou a personagem hesitem do
início ao fim do texto, pois do contrário, isto é, se há uma atitude de escolha entre acreditar no
fenômeno sobrenatural, adentra-se no campo do maravilhoso ou, por outro lado, se há a
crença de que tudo é fruto da imaginação, fantasia ou do sonho, entra-se no âmbito do
estranho. Conforme a concepção todoroviana, o fantástico sobrevive da vacilação. Nas
palavras do teórico, “O fantástico é a vacilação experimentada por um ser que não conhece
mais que as leis naturais, frente a um acontecimento aparentemente sobrenatural”
(TODOROV, 1975, p. 16). No entanto, a noção do teórico búlgaro foi criticada por alguns
901

estudiosos devido ao caráter limitador, restringindo o fantástico a uma atitude hesitante do


leitor.
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Depois de Todorov muitos outros teóricos continuaram na busca de uma definição
para o fantástico. Na contemporaneidade, os estudos do crítico David Roas trazem
apontamentos significativos para a ampliação do referido conceito. Para Roas (2014, p. 21),
“um dos objetivos do fantástico atual é oferecer ao leitor histórias que o façam experimentar
uma indescritível inquietação ante a falta de sentido revelada e percebida no seu contexto real
e cotidiano”. Essa inquietação, segundo o estudioso, é o que nos leva a refletir e a questionar a
validade do real. Além disso, Roas afirma que o mundo representado no texto fantástico deve
ser semelhante ao mundo do leitor, pois a partir de sua concepção sobre o natural e ordinário é
que ele irá contrapor com os pares opostos: o sobrenatural e o extraordinário.
Com pensamento semelhante, Remo Ceserani (2006), aponta a relevância do leitor
quando o insere dentro dos procedimentos formais e temáticos comuns ao modo fantástico.
Para o autor, o sentimento de surpresa, terror e medo, envolvem e são sentidos pelo leitor. O
fantástico leva-o para “dentro de um mundo familiar, aceitável, pacífico, para depois fazer
disparar os mecanismos da surpresa, da desorientação, do medo [...]” (CESERANI, 2006, p.
71).
Ítalo Calvino (2011) segue com a ideia de que a relação entre o real e o imaginário, o
encontro entre duas realidades distintas – a do possível e a do impossível – é marca que define
o fantástico na contemporaneidade. De acordo com o teórico, a natureza inquietante,
misteriosa, aterradora se entrechoca com o real, cuja consequência resulta na oscilação de
níveis de realidades inconciliáveis.
A estudioso francesa Irene Bessière ressalta como uma das marcas do relato fantástico,
a impossibilidade de solução dos acontecimentos expostos no interior da diegese, e que essa
impossibilidade é fruto da presença de todas as soluções plausíveis (BESSIÈRE, 2009). De
acordo, pois, com Bessière e outros teóricos aqui expostos, é característica das narrativas
fantásticas, especialmente as contemporâneas, é a sobreposição de dimensões contrárias –
como o natural e o sobrenatural – e, em consequência, o que resulta desse conflito: a
inquietação, o medo, a perplexidade e, portanto, a desestabilização do real frente ao
sobrenatural.
De tal forma, através do pensamento dos teóricos expostos, percebe-se que o fantástico
vem sofrendo algumas alterações. Se reinventa e se molda acompanhando as transformações
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pelas quais passam o homem e o mundo, mas sempre privilegiando o sobrenatural, alicerce
para sua expressão desde os primórdios. A literatura fantástica na atualidade visa levar o leitor
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a questionar sobre a imutabilidade do mundo em que vive e, sobretudo, para refletir sobre a
possibilidade da existência de uma dimensão paralela àquela que se reconhece como real.

3 A configuração do espaço em “Natal na barca”.

‘Natal na barca é um título é significativamente sugestivo para denotar a importância


do espaço como provocador da atmosfera fantástica. Isto considerando que o desenrolar de
toda a trama se passa em uma estranha barca onde os passageiros passam a noite de Nata, uma
data culturalmente compreendida como mágica, em que o Cristianismo comemora o
nascimento de Cristo.
Alguns aspectos que circundam a narrativa corroboram para o mistério que a envolve.
A começar pelo turno privilegiado no conto, o noturno, turno comumente utilizado na
literatura fantástica e eleito como um dos procedimentos temáticos por Ceserani (2006, p. 78)
“A ambientação preferida pelo fantástico é aquela que remete ao mundo noturno [...] A
contraposição entre o claro e o escuro, sol e escuridão noturna é bastante utilizada no
fantástico”, condição viabiliza no interior do texto, o clima de magia e encanto. Depois as
personagens, ao todo quatro, um velho, duas mulheres e uma criança, a nenhuma são
atribuídos nomes, o que sugere, além da destituição de identidade e do anonimato, uma
condição de abandono, típico de quem está à deriva, sem um rumo ou destino certo. Em
seguida, as personagens femininas possuem atributos que ressaltam a natureza misteriosa que
as acompanham do início ao fim da narrativa. A primeira, pega a condução em busca de um
médico que cure a doença do filho de aproximadamente um ano. Imbuída pela fé e esperança,
a mulher crer plenamente na cura do bebê. É muito pobre e com um passado atormentado pelo
sofrimento, pois é abandonada pelo marido ao mesmo tempo em que perde o filho mais velho,
que morre em uma situação também mágica. A outra mulher, pega, coincidentemente a
mesma barca. Cética e pessimista, se depara com a mulher – que é professora – e o filho
moribundo e à beira da morte. Fica também intrigada com as feições da outra personagem:
“Era uma mulher jovem e pálida. O longo manto escuro que lhe cobria a cabeça dava-lhe o
aspecto de uma figura antiga” (TELLES, 1958, p. 103). E mais adiante: “Tinha belos olhos
claros, extraordinariamente brilhantes. Reparei que suas roupas (pobres roupas puídas) tinham
903

muito caráter, revestidas de uma certa dignidade” (TELLES, 1958, p. 104). Quanto ao
menino, também é revestido de um caráter sublime, mágico, pois apesar de estar quase morto,
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acorda, como se nada tivesse acontecido, sugerindo uma espécie de ressureição, um milagre.

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A cena introdutória da narrativa começa da seguinte forma:

Não quero nem devo lembrar aqui por que me encontrava naquela barca. Só
sei que em redor tudo era silêncio e treva. E que me sentia bem naquela
solidão. Na embarcação desconfortável, tosca, apenas quatro passageiros.
Uma lanterna nos iluminava com sua luz vacilante: um velho, uma mulher
com uma criança e eu (TELLES, 1958, p. 103).

Vê-se, portanto, que todo o enredo se centra em torno de polaridades que se justapõem
em um espaço atípico, uma barca, em que sucede um fenômeno da ordem do sobrenatural: o
menino no colo da mãe, aparentemente morto, acorda, com tamanha naturalidade que assusta
a narradora, afirmando que não quer se lembrar do porquê de estar naquela barca, onde era
coberta pela treva, silêncio e solidão. Tudo era somente escuridão, iluminada apenas por uma
luz que vacilava, ou seja, às vezes iluminava, às vezes não, impossibilitando, assim, perceber
a clareza do cenário, este, envolvido pelo presságio de morte iminente do menino moribundo
(SANTOS, 2017).
A barca, um micro espaço, é descrita pela narradora como “desconfortável”, “tosca”,
de “madeira carcomida”, com uma “luz vacilante” que ora ilumina, ora não, configurando,
pois, um espaço arruinado, uma topografia instigante de fenômenos que se esquivam da
lógica e da razão. Um espaço atípico, destoante das barcas comuns. Da mesma forma, o
estranho rio, que é quente durante o dia e gelado à noite: “–Tão gelada – estranhei, enxugando
a mão” (TELLES, 1958, p. 104), mas, foi advertida pela outra mulher, que durante o dia, ele é
quente: “– Mas de manhã é quente” (TELLES, 1958, p. 104), denota a ambiguidade, também,
do rio, o macro espaço.
Em torno, especialmente, da barca, da mulher e do seu filho, há uma íntima ligação
entre eles e alguns espaços concebidos como “entre lugar”, termo alcunhado por Silviano
Santiago 1970, em seu ensaio O entre-lugar do discurso latino-americano, constitui-se algo
que está em nenhum lugar e, ao mesmo tempo, em dois lugares. O conceito pode ser
transmutado para a literatura na composição de algumas personagens que trafegam por esses
espaços “vagos”, “intermediários”, “sem definição”, “deslocados”, ou “à margem”. Situação
semelhante à condição que perpassa a barca, pois está sempre à deriva, não está na terra, nem
no mar. Sobre o barco, conforme Foucault (1984), este espaço é heterotópico por excelência,
904

devido a sua condição flutuante, um lugar que não está em nenhum lugar. Além disso, é um
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lugar fechado e ao mesmo tempo aberto ao infinito, por isso funciona como uma grande
reserva de imaginação. A barca pode, também, ser concebido como um “não lugar”, por não
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manter relações nem identitárias, nem históricas com seus passageiros. Em relação à mulher
e ao filho, ambos podem ser considerados um “entre lugar”, pois a mulher, de acordo com os
apontamentos feitos pela narradora, tem” olhos claros, extraordinariamente brilhantes”
(TELLES, 1958, p. 104, grifo nosso), adjetivos que qualificam e a situam em uma dimensão
para além da realidade sensível. No entanto, está, igualmente, inscrita na realidade, condição
ressaltada, inclusive, pela profissão que exerce – professora. Já o menino, que participa
ativamente de um milagre – pois, de acordo com a ótica da narradora, já estava morto –
representa uma ponte que interliga o mundo dos vivos e dos mortos.
Vê-se, pois, que as personagens e os espaços que compõem possibilitam a justaposição
de instâncias contrárias, como o possível e o impossível, fato que instiga a passagem de
limites e fronteiras, marca que define o fantástico contemporâneo. Uma das causas dessa
ultrapassagem de limites dar-se através do sonho da mãe, que através da experiência onírica,
revê, pela última vez, o filho mais velho morto em um acidente doméstico. Vejamos então, na
cena a seguir, como ocorre os devaneios maternos:

— Foi logo depois da morte do meu menino. Acordei uma noite tão
desesperada que saí pela rua afora, enfiei um casaco e saí descalça e
chorando feito louca, chamando por ele! Sentei num banco do jardim onde
toda tarde ele ia brincar. E fiquei pedindo, pedindo com tamanha força, que
ele, que gostava tanto de mágica, fizesse essa mágica de me aparecer só mais
uma vez, não precisava ficar, se mostrasse só um instante, ao menos mais
uma vez, só mais uma! Quando fiquei sem lágrimas, encostei a cabeça no
banco e não sei como dormi. Então sonhei e no sonho Deus me apareceu,
quer dizer, senti que ele pegava na minha mão com sua mão de luz. E vi o
meu menino brincando com o Menino Jesus no jardim do Paraíso. Assim
que ele me viu, parou de brincar e veio rindo ao meu encontro e me beijou
tanto, tanto... Era tamanha sua alegria que acordei rindo também, com o sol
batendo em mim (TELLES, 1958, p. 173, grifo nosso).

Do jardim terreno a mãe saudosa viaja até o jardim do Paraíso, e realiza seu desejo do
último contato com o primogênito. O sonho está no rol dos procedimentos retóricos eleitos
por Ceserani (2006) quando assevera que a passagem de limites e fronteiras pode dar-se
através “da dimensão da realidade para a do sonho, do pesadelo ou da loucura” (CESERANI,
2006, p. 73). É possível perceber que em “Natal na barca”, toda a organização espacial e
temporal contribuem para que ocorra a passagem de limites e de fronteiras, fator instigador da
905

confluência espácio-temporal. Observa-se, da mesma forma, a relação íntima entre as


personagens e os espaços, ressaltando, assim, a influência mútua que as categorias podem
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sofrer. Tal apontamento lembra uma das funções do espaço, segundo a noção de Lins (1976),

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quando afirma que, dentro das funções do espaço ficcional, a categoria pode provocar as
ações das personagens nos casos de narrativas

onde a personagem, não empenhada em conduzir a própria vida – ou uma


parte de sua vida – vê-se a mercê de fatores que lhe são estranhos. O espaço
em tal caso, interfere como um liberador de energias secretas e que
surpreendem, inclusive, a própria personagem” (LINS, 1976, p. 100).

A afirmação do autor descreve o que ocorre no desenho da narrativa em questão, pois


a personagem-narradora é surpreendida por acontecimentos que lhes são estranhos, apesar de
se familiarizar cada vez mais com a situação da mãe e do menino.
Observa-se, de igual modo, outros procedimentos retóricos e temáticos espraiados na
narrativa, segundo a noção de Ceserani (2006). São eles, a narração em primeira pessoa; as
metáforas, instigadoras da passagem de limites e fronteiras, as elipses, que são os espaços
vazios deixados pela escrita da autora, que não entrega, ao leitor, os sentidos prontos e
acabados, conforme elucida o trecho a seguir: “A mulher estava sentada entre nós, apertando
nos braços a criança enrolada em panos. Era uma mulher jovem e pálida. O longo manto
escuro que lhe cobria a cabeça dava-lhe o aspecto de uma figura antiga” (TELLES, 1958, p.
103). O que sugere a aparência ambígua da mulher rodeada pela incerteza de ser velha ou
antiga, bem como o menino, que pode estar morto ou vivo. E, por fim, a escuridão e a sombra,
temática perenes na literatura fantástica.
Neste trabalho, procuramos demonstrar através da análise do referido conto, que a
arquitetura espacial, no caso, sintetizado em uma pequena embarcação, pode influenciar toda
a estrutura narrativa, impregnando os seres de papel e interferindo em suas ações.
Ressaltamos as peculiaridades que compõem os espaços entendidos como “entre lugar” e
“não lugar”, e como eles podem ser deflagradores de sentidos metafóricos, bem como
estimuladores da confluência entre o possível e o impossível.

Considerações finais

A topografia insólita da constística lygiana é construída através de enredos cujos


906

espaços aparentemente banais são surpreendidos por acontecimentos estranhos que alcançam
outras categorias como as personagens e suas ações e o tempo que as envolve. No discurso
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mimético lygiano, comumente o irreal se mistura ao real, de modo que as fronteiras que

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divide essas duas instâncias se confundem, impossibilitando deduções unívocas e categóricas.
De tal modo, a preferência de Telles pelos espaços fechados e isolados como florestas,
veredas, alamedas e penhascos escuros, assim como a preferência por turnos noturnos,
colaboram para formar uma espacialidade insólita, marcada pelo mistério e instigadora das
incertezas e das ambiguidades, características peculiares à literatura fantástica.

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SANTOS, Rosaly Ferreira da Costa. Limites e fronteiras: a configuração do espaço ficcional


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– Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, Pau dos Ferros, 2017.

TELLES, Lygia Fagundes. Histórias do desencontro. Rio de Janeiro: José Olympio, 1958.

TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva, 1975.


907
Página

ISBN: 978-85-7621-221-8
GT6 – LINGUAGEM LITERÁRIA CONTEMPORÂNEA: O NARRADOR E O EU
LÍRICO

A CASA E A RUA: A REPRESENTAÇÃO DO “LUGAR” E DO “NÃO LUGAR” NO


CONTO “A CHAVE NA PORTA” DE LYGIA FAGUNDES TELLES

Monica Valéria Moraes Marinho (UERN)


Rosaly Ferreira da Costa Santos (UERN)

Introdução

Este trabalho objetiva analisar o conto “A chave na porta” da coletânea Invenção e


Memória (2009) de Lygia Fagundes Telles, com foco no espaço ficcional como elemento
instigador do fantástico. Nesta topografia intrigante, a tônica recai sobre os espaços concebidos
como “lugares” e “não-lugares”. Sob tal perspectiva, será ressaltada a relação entre o espaço
ficcional e as personagens, sobretudo, como a arquitetura espacial interfere no comportamento
e nas ações dos seres ficcionais. No conto, como ocorre comumente na contística lygiana, há
um fenômeno inexplicável sob a ótica das leis que regem o mundo lógico e racional. Trata-se
do extraordinário reencontro entre a narradora-personagem e um antigo amigo, que, tal como
revelado no desenlace da trama, havia falecido há muitos anos. A personagem feminina
peregrina assim, entre o espaço da rua que é, por origem, um espaço desorganizado, um “não-
lugar”, e, finalmente, o espaço da casa, lugar que representa o ninho, o aconchego, o berço,
conforme noção bachelardiana. O fato insólito surge em meio a um ambiente aparentemente
banal e urbano, em uma noite de Natal, originando polaridades como estranho/familiar,
vida/morte, passado/presente, dentre outras, as quais são instigadoras da ambiguidade que se
espraia em todo o texto. Com tal propósito, tomamos por base o que Calvino (2011), Ceserani
(2006) e Roas (2014) postulam sobre o insólito, bem como o conceito freudiano (1919) de
estranho. No que se refere ao espaço, nos guiamos pelas concepções de Foucault (1984) e
Bachelard (1998) e pelas noções de “lugar” e “não lugar” de Augé (2009).

2 O fantástico: aspectos gerais.


908

Muitos estudiosos comungam com a ideia de que o fantástico nasceu entre os séculos
XVIII e XIX, com o Iluminismo. Assim, conforme Rodrigues (1988), há uma reação pelos
Página

iluministas contra o pensamento teológico medieval e da metafísica, no sentido de buscar

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explicações para os fenômenos do mundo sem o auxílio das religiões, crenças e superstições.
De tal modo, segundo José Paulo Paes (1985), o nascimento do fantástico se relaciona a uma
época em que tudo era mensurado através da razão. Por isso, foi

um período de fermentação intelectual em que, aos preceitos irracionais ou


supersticiosos da opinião comum, tanto quanto os dogmas indiscutidos e
indiscutíveis da Fé, os filósofos contrapunham o seu direito de livre exame
de tudo à luz da Razão soberana (PAES, 1985, p. 190).

Paradoxalmente, é nesse contexto em que nasce a literatura fantástica, privilegiando a


inserção do elemento sobrenatural – aquilo que não tem explicação pela ótica racional – na
cotidianidade. O fantástico, surge, pois, para mostrar a impossibilidade de explicação do
universo a partir da racionalidade, já que a ciência não consegue abarcar a complexidade
própria do homem e fracassa na tentativa de compreendê-lo apenas pelo viés da razão. Assim
é que, paralelamente a esse ambiente orientado pelo racionalismo, surge uma literatura com
um campo frutuoso para questões transcendentais, muito mais próximas da natureza humana
(SANTOS, 2017).
Nessa conjuntura, percebe-se a necessidade de se explicar de maneira mais objetiva a
literatura fantástica. Nesse sentido, Tzvetan Todorov aparece no cenário das letras como o
primeiro estudioso a sistematizar uma teoria sobre tal literatura. A perspectiva do teórico
consiste em eleger a hesitação como o eixo central das narrativas fantásticas. Para tanto, para
que um texto seja enquadrado no fantástico, é preciso que o leitor e/ou a personagem hesitem
do início ao fim do texto, pois do contrário, isto é, se há uma atitude de escolha entre acreditar
no fenômeno sobrenatural, adentra-se no campo do maravilhoso ou, por outro lado, se há a
crença de que tudo é fruto da imaginação, fantasia ou do sonho, entra-se no âmbito do
estranho. Dessa forma, conforme a concepção todoroviana, é da vacilação que “sobrevive” o
fantástico. Assim, ressalva o teórico: “O fantástico é a vacilação experimentada por um ser
que não conhece mais que as leis naturais, frente a um acontecimento aparentemente
sobrenatural” (TODOROV, 1975, p. 16). No entanto, a noção do teórico búlgaro foi criticada
por alguns estudiosos devido ao caráter limitador, restringindo o fantástico a uma atitude
hesitante do leitor.
909

Por isso, muitos outros teóricos continuaram na busca de uma definição mais coerente
do fantástico. Nos estudos mais contemporâneos, aparece o crítico David Roas que traz
Página

apontamentos expressivos para a ampliação do referido conceito. Para Roas (2014, p. 21),

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“um dos objetivos do fantástico atual é oferecer ao leitor histórias que o façam experimentar
uma indescritível inquietação ante a falta de sentido revelada e percebida no seu contexto real
e cotidiano”. Essa inquietação, segundo o estudioso, é o que nos leva a refletir e a questionar a
validade do real.
Ítalo Calvino (2011) faz ressalva semelhante ao estabelecer a relação entre o real e o
imaginário como marca do fantástico, cujo efeito ocorre quando se encontram duas realidades
distintas: a do possível e a do impossível. Ainda de acordo com o teórico, a natureza
inquietante, misteriosa, aterradora se entrechoca com o real, cuja consequência resulta na
oscilação de níveis de realidades inconciliáveis.
Irene Bessière traz no bojo de suas discussões sobre o fantástico, uma das marcas
dessa modalidade, que é, segundo a estudiosa, a impossibilidade de solução dos
acontecimentos expostos no interior da diegese, e que essa impossibilidade é fruto da
presença de todas as soluções plausíveis (BESSIÈRE, 2009), fruto do confronto entre o
possível e o impossível, entre o real e o irreal. De acordo, pois, com Bessière e outros teóricos
aqui expostos, é característica das narrativas fantásticas, especialmente as contemporâneas, é
a sobreposição de dimensões contrárias – como o natural e o sobrenatural – e, em
consequência, o que resulta desse conflito: a inquietação, o medo, a perplexidade e, portanto,
a desestabilização do real frente ao sobrenatural.
Diante de tais considerações, percebe-se que o fantástico, longe de ser uma literatura
estanque, vem se reinventando e se moldando às transformações pelas quais passam o homem
e o mundo, mas sempre privilegiando o sobrenatural, alicerce para sua expressão desde os
primórdios. Além disso, a modalidade fantástica tem como objetivo levar o leitor a questionar
sobre a imutabilidade do mundo que vivemos e, sobretudo, para refletir sobre a possibilidade
da existência de um mundo para além do real, tal qual conhecemos.

3 O lugar do espaço nas narrativas fantásticas.

O espaço apresenta-se como categoria indispensável para a composição de uma obra


literária. Em consonância e atrelado à outras categorias, como personagem, suas ações e o
tempo, pode configurar-se um leque de possibilidades e funções que vão além da pura
910

descrição, cenário ou apenas a representação, no texto ficcional, da geografia literária. No


conto fantástico contemporâneo, especialmente, a organização e disposição do espaço é
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atributo fundamental para o desencadear de sentidos outros, para além do tradicional conceito

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que envolve a categoria., concebida apenas como cenário onde transitam as personagens ou,
ainda, as perspectivas que ressaltam a geografia literária.
Perspectiva semelhante expressa Gama-Khalil (2010), para quem a narrativa fantástica
se revela na importância da espacialidade, cuja natureza consiste em viabilizar os sentidos
poéticos, metafóricos e simbólicos, artifícios que dão vida a espaços vazios e estáticos. Isto
posto,

Essa importância do espaço não se encerra apenas no plano da caracterização


das personagens ou da paisagem geográfica, como um mero pano de fundo,
porém pode ser entendida como uma forma de revelar metaforicamente as
práticas ideológicas do mundo posto em ficção e ser um potente canal para a
deflagração de sentidos, contribuindo para o desdobramento múltiplo da
polissemia literária (GAMA-KHALIL, 2010, p. 30).

De tal modo, segundo a pesquisadora, a geografia apresentada na narrativa fantástica


pode ir muito além de uma mera descrição, lugar onde situam as personagens, mas possibilita
a compreensão do homem ambientado em sua realidade social, bem como os conflitos tanto
com esse mesmo ambiente quanto consigo próprio, especialmente no conto fantástico em que
o embate entre a realidade exterior e a realidade fantástica e, a sobreposição dessas instâncias
antagônicas, é característica marcante do fantástico contemporâneo. Nessa perspectiva, o
modo como o espaço ficcional é disposto e representado no texto, apresenta-se como um
agente da a irrupção do insólito no interior da diegese, permitindo o jogo entre os espaços
externos e os internos, os quais se confundem sem marcar contornos precisos (GAMA-
KHALIL, 2010).
Outra contribuição que pode ser valiosa para os estudos literários é a concepção
foucaultiana sobre o espaço na atualidade. Foucault divide os espaços entre a heterotopias –
lugares reais que existem em todas as sociedades – e as utopias – que se classificam por
serem “posicionamentos sem lugar real” (FOUCAULT, 1984, p. 414. São espaços, portanto,
que não existem em lugar nenhum, situados no campo do imaginário, da fantasia.
Transmutado para a literatura, podemos pensar, nessa perspectiva, que os textos fantásticos se
situam nos espaços ditos utópicos, segundo a noção foucaultiana, pela impossibilidade de
serem localizáveis no mundo real, tal qual as heterotopias. As próximas discussões serão em
911

torno dos espaços considerados lugares e não-lugares, de acordo com os estudos


antropológicos de Marc Augé (2009), especialmente, como a autora” Lygia Fagundes Telles
Página

os representa no conto “A chave na porta”.

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4 O lugar e o não lugar em “A Chave na porta”: a casa e a rua

Lygia Fagundes Telles é autora reconhecida pela crítica literária por ser uma autora
que privilegia o fantástico em seus contos. Em seus enredos a relação entre polaridades
instigadoras da confluência espaço e tempo – como o passado e o presente, a vida e a morte, o
aqui e o alhures, realidade e fantasia – constitui-se recurso privilegiado e diluído na teia
ficcional de da contista, que não oferece sentidos acabados e prontos, deixando sempre ao
leitor uma gama de possibilidade, resultando, assim, em um texto ambíguo, sem definições
categóricas. Partindo desse pressuposto, a análise do conto “A chave na porta”, volta-se para
um estudo sobre alguns espaços considerados vagos, destituídos de identidade, bem como o
seu oposto, os lugares tidos como identitários, que guardam estreita relação com os sujeitos.
Para tanto, oportunos são as noções de “lugar” e “não lugar”, termos introduzidos por Marc
Augé (2009). O lugar, segundo o estudioso, remete à identidade individual ou, mais
especificamente, “ao espaço antropológico”, criador de identidade e de relações interpessoais.
Já o “não lugar”, são aqueles lugares sem definição, transitórios, os quais não há nenhuma
relação histórica ou indenitária entre tais espaços e os que entre trafegam. São, portanto,
produtores de uma relação espaço-temporal diferente da concebida por um lugar,
representativos da nossa condição de supermodernidade. Onde reina a solidão e a rapidez.
No conto em questão, a rua indica o mundo, com seus imprevistos, acidentes e
paixões. É o espaço da desorganização, do imprevisto, da efemeridade. É onde também a
personagem-protagonista reencontra o amigo o qual ela só depois descobre, havia falecido há
muito tempo. Em um espaço caótico por natureza, em plena noite de Natal, um fenômeno de
natureza inexplicável sob a ótica racional, irrompe a realidade, causando uma fresta jamais
desfeita e resolvida. Desse modo, inicia esta intrigante trama:

A chuva fina. E os carros na furiosa descida pela ladeira, nenhum táxi? A


noite tão escura. E aquela árvore solitária lá no fim da rua podia me abrigar
debaixo da folhagem, mas onde a folhagem? Assim na distância era visível
apenas o tronco com os fios das pequeninas luzes acesas, subindo em espiral
na decoração natalina. Uma decoração meio sinistra, pensei”
— Quer condução, menina?
912

Recuei depressa quando o carro arrefeceu a marcha e parou na minha frente,


ele disse menina? O tom me pareceu familiar. Inclinei-me para ver o
motorista, um homem grisalho, de terno e gravata, o cachimbo aceso no
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canto da boca. Mas espera, esse não era o Sininho? Ah! É claro, o próprio
Sininho, um antigo colega da Faculdade, o simpático Sininho! Tinha o

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apelido de Sino porque estava sempre anunciando alguma novidade [...]
(TELLES, 2009, p. 87).

Vê-se, portanto, logo na introdução da narrativa, um espaço povoado pelo mistério, por
incertezas sobre a verdadeira natureza dos fatos que se tornam cada vez mais ambíguos. E,
para corroborar ainda mais com este clima, todas as ações das personagens acontecem na
penumbra da noite, turno privilegiado nos relatos fantásticos como bem afirma Ceserani
(2006). Acrescente-se a esse ambiente misterioso e enigmático, a própria decoração natalina,
que, segundo a personagem feminina era “sinistra”, termo que carrega semanticamente um
significado que remete a algo que não se enquadra nos parâmetros ditados pela normalidade,
assim como o termo “milagre” – evento que extrapola as normas das razão e da ciência – é
proferido pela jovem no momento em que adentra no carro do amigo: “— Um milagre, eu
disse enquanto afundava no banco com a bolsa e os pequenos pacotes. Como conseguiu me
reconhecer nesta treva? ” (TELLES, 2009, p. 87).
É, pois, na rua, que a protagonista adentra no mundo do impossível, onde os
fenômenos e eventos não conseguem ser explicados sob a égide dos postulados científicos,
filosóficos e racionais. A amiga de Sininho encontra-se em um lugar passageiro, em uma
espécie de travessia que ultrapassa as barreiras que separam o mundo real e o sublime. E é
dentro de um carro desconhecido, advindo de outra realidade distante e distinta espaço-
temporalmente, que passa por essa extraordinária experiência.
Ao chegar ao seu destino, isto é, sua casa, a moça se despede em meio a um tom
mágico o qual a “deixou desanuviada mas ele devia estar sabendo, eu não precisava mais
falar. Entregou-me os pacotes. Beijei sua face em meio da fumaça azul. Ou azul era a névoa?
” (TELLES, 2009, p. 93). Ao chegar em casa, percebe que esqueceu a bolsa no carro do
amigo e é, por isso, que vai à procura da antiga residência de Sininho. A casa remete a um
universo controlado, onde as coisas estão nos seus devidos lugares” (DAMATTA, 1977). É o
espaço da organização, das relações afetivas, históricas e identitárias, considerado, assim, um
“lugar”, conforme Augé (2009). Da mesma forma, é considerado por Bachelard um lugar
privilegiado, pois denota o abrigo, “além de constituir acervo de lembranças, de devaneios,
lugar onde o ser humano retorna à sua primitividade” (SANTOS, 2017, p. 47). Em última
instância, tal como concebe o autor, a casa como espaço funciona como um forte elemento de
913

integração dos sonhos, dos pensamentos e lembranças do indivíduo (BACHELARD, 1998).


Página

As duas casas, a da personagem e a de Sininho – no âmago da intimidade e do refúgio que

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representam esse lugar – são instigadoras da irrupção do insólito: a descoberta que seu antigo
colega de faculdade já havia falecido, há muito tempo. É na residência daquela jovem que se
desperta o desejo de ir em busca do desconhecido. Enquanto na casa de Sininho, há o
enfrentamento com o sobrenatural e a sua própria revelação, conforme mostra o trecho a
seguir.

[...]— Decerto a senhora errou a casa, dona, ela disse e escondeu a boca
irônica na gola do uniforme. Em noite de tanta festa a gente faz mesmo
confusão…
Tentei aplacar com as mãos os cabelos que o vento desgrenhou.
— Espera, como é o nome do seu patrão?
— Doutor Glicério, ora. Doutor Glicério Júnior.
— Então é o pai dele que estou procurando, estudamos juntos. Mora nesta
rua, um senhor grisalho, guiava um Jaguar prateado…
A mulher recuou fazendo o sinal-da-cruz:
— Mas esse daí morreu faz tempo, meu Deus! É o pai do meu patrão, mas
ele já morreu, fui até no enterro… Ele já morreu! (TELLES, 2009, p. 94).

Ao retornar para sua vida normal – o mundo real – a protagonista se depara com aquilo que
Ceserani (2006) elege como um dos procedimentos retóricos e temáticos comuns no
fantástico: “o objeto mediador”, um objeto trazido do mundo imaterial para o material, um
testemunho inequívoco de que o personagem efetivamente realizou uma viagem, entrou em
uma outra dimensão de realidade (CESERANI, 2006). Tal procedimento é fortemente ligado
ao da “passagem de limites e fronteiras” tal qual passa a protagonista. Passagem, por
exemplo, “da dimensão da realidade para a do sonho, do pesadelo ou da loucura”
(CESERANI, 2006, p. 73). O objeto mediador, é representado, no texto, através de uma rosa
inserida dentro da bolsa da mulher, que só percebe no momento em que tenta pegar a chave
para abrir a porta de sua casa. Chave, porta e casa, aliás, em que ela percebe uma certa
estranheza, como se estes três elementos tivessem passado por uma transformação ou seria ela
que teria ficado diferente após a misteriosa experiência?

Quando abri a porta do apartamento tive o vago sentimento de que estava


abrindo uma outra porta, qual? Uma porta que eu não sabia onde ia dar, mas
isso agora não tinha importância. Nenhuma importância, pensei e fiquei
olhando o perfil da chave na palma da minha mão (TELLES, 2009, p. 95).
914

A ambiguidade deixada pelas inúmeras possibilidades se relaciona intimamente com


Página

outro procedimento retórico eleito por Ceserani: “As elipses, a escritura povoada pelo não

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dito (CESERANI, 2006). São as definições vagas, sem respostas esclarecedoras, que
confundem o leitor e ao mesmo tempo o deixa ávido de curiosidade e ansiedade em preencher
esse vazio.
O que se observa, então, nessa narrativa, é que o modo como Fagundes Telles constrói
a espacialidade contribui significativamente para instaurar a atmosfera fantástica no conto.
Através dos lugares e não-lugares, percebe a irrupção e a materialização do insólito nos
espaços da rua, essencialmente desorganizado, e da casa, o lugar da intimidade e que
representa o ninho.

Considerações finais

O intuito desse estudo foi analisar a materialização do fantástico nos espaços tidos
como lugares e não-lugares. A partir da análise, concluímos que a personagem feminina
peregrina entre o espaço da rua que é, por origem, um espaço desorganizado, um “não lugar”,
e, finalmente, o espaço da casa, lugar que representa o ninho, o aconchego, o berço, conforme
noção bachelardiana. É no espaço do não lugar, portanto, que ocorre um fenômeno estranho,
que se esquiva das leis que regem os postulados científicos e filosóficos. Desse modo, as
configurações do espaço foram decisivas na criação de uma atmosfera instigadora à abertura
para o imaginário.
Uma topografia inquietante, em que as fronteiras entre o real e o irreal são diluídas, e
dessa forma suscita sentimentos caros ao efeito fantástico, como a hesitação e o medo, em
personagens e leitores. O fato insólito surge em meio a um ambiente aparentemente banal e
urbano, em uma noite de Natal, originando polaridades como estranho/familiar, vida/morte,
passado/presente, dentre outras, as quais são instigadoras da ambiguidade que se espraia em
todo o texto.
Com aguda tessitura simbólica e poética, a prosa lygiana provoca questionamentos
acerca dos parâmetros que regem a ideia que se tem da realidade e convida o leitor a
experimentar outras formas de ver o mundo.

Referências
915

AUGÉ, Marc. Não-lugares: introdução a uma antropologia da sobremodernidade. Tradução


Página

Miguel Serras Pereira. Graus Editora. Lisboa, 2009.

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BACHELARD, Gaston. A Poética do Espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

BESSIERE, Irène. O relato fantástico: forma mista do caso e da advinha. Revista Fronteiras.
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CALVINO, Ítalo. Contos fantásticos do século XIX: o fantástico visionário e o fantástico


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CESERANI, Remo. O fantástico. Tradução de Nilton Cezar Tridapalli. Curitiba: UFPR,


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FOUCAULT, Michel. Outros Espaços. In. _____. Ditos e Escritos. Conferência no Círculo
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GAMA-KHALIL, Marisa Martins. O lugar teórico do espaço ficcional nos estudos literários.
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Paulo: Unesp, 2014.

RODRIGUES, Selma Calasans. O fantástico. São Paulo: Ática, 1988.

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ISBN: 978-85-7621-221-8
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LÍRICO

INFÂNCIA, ESPAÇO E MEMÓRIA EM “ROUPA NO CORADOURO”, DE JOSÉ J.


VEIGA

Samea Rafaela Lopes da Silva Diógenes (UERN)139


Maria Aparecida da Costa (UERN)140

Introdução

O presente trabalho propõe analisar o conto “Roupa no Coradouro”, do escritor José J.


Veiga, o conto faz parte do livro Os Cavalinhos de Platiplanto, publicado inicialmente em
1959. Com o objetivo de analisar como o espaço é fortemente marcado na narrativa, através
das memórias de uma criança que narra a história, vislumbraremos na narrativa de Veiga “o
mundo cotidiano feito de surpresa, de dor, de engano, visto pela ótica infantil que lhe imprime
reações e sensações próprias” (TURCHI, 2003, p. 95). No cenário contemporâneo, o escritor
José J. Veiga, vem se destacando por apresentar nos seus temas a recorrência do mundo
infantil, na maioria das vezes retrata esse mundo através da violência ou da morte de um ente
próximo. Além disso, outra discussão que ocorre é sobre o fato de suas obras fazerem parte do
realismo fantástico, uma vez que suas narrativas circundem pelo universo fantástico e
maravilhoso, percorrendo caminhos entre o cotidiano e o insólito, entre o limiar do real e do
imaginário.
José J. Veiga, nascido em 1915, é goiano, possui raízes rurais, estreou na literatura um
pouco tarde, já aos 45 anos, tendo sua primeira obra publicado em 1959, intitulado Os
cavalinhos de Platiplanto, um livro que possui 12 contos, entre eles, o conto que nos detemos
a analisar “Roupa no coradouro”. Vale ressaltar que a maioria dos contos desta coletânea são
narrados pela óptica infantil, o narrador é geralmente uma criança que narra os fatos através
de suas memórias, acredita-se até que as obras de Veiga possuem traços relembráveis da sua
infância, a respeito deste fato, Turchi (2003, p. 93) afirma que “seja na adjetivação que se
pode depreender da cartografia dos contos, seja nos espaços e costumes cotidianos, são todos
elementos emblemáticos com os quais o imaginário goiano se identifica”.
917

139
Mestranda do Programa de Pós-graduação em Letras, pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte –
UERN.
Página

140
Professora Adjunto IV na Universidade do Estado do Rio Grande do Norte e Docente Permanente do
Programa de Pós-Graduação em Letras - PPGL – UERN.

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Em “Roupa no Coradouro” vemos o espaço sendo moldado através das memórias de
uma criança, que tem sede de aproveitar sua “liberdade” momentânea, decorrente da ausência
do pai que viaja para buscar o sustento da casa, a liberdade tão almejada chega ao fim com a
morte de sua mãe, momento em que a criança sofre um processo de rememoração por não ter
sido presente e obediente o suficiente quando sua mãe mais necessitou.
É nos contos que vemos Veiga brotar o seu melhor, de acordo com a escritora Silva
(2010), em seu trabalho intitulado Um olhar sobre a obra Os Cavalinhos de Platiplanto,
argumenta que “os contos de Veiga prendem a atenção de nós leitores, nos envolve e nos
obriga a continuarmos a lermos até o final, consegue dar uma significância ao tema e poderá
provocar reflexões e transformações em seu modo de ver e agir na vida (p. 32 – 33)”, e de fato
é assim que nos sentimos quando lemos os contos de Veiga, pois, ele consegue transformar
fatos corriqueiros do dia a dia em histórias que prendem a atenção do leitor, nos apresentando
finais surpreendentes, como pode ser notado no conto em análise, quando um objeto que
aparentemente mostra-se insignificante, “roupas estendidas na grama” (VEIGA, 2015, p.
133), é capaz de fazer com que a criança rememore a presença de sua mãe.
Para tanto, para subsidiar a análise do conto, nos deteremos a chamar atenção para a
representação da memória e do espaço, elementos que marcam fortemente a narrativa, sendo
assim, faremos confluências da leitura do conto com os estudos de Halbwachs (2006),
Bachelard (2008), Brandão (2007), entre outros.

1 O espaço à luz da infância em “Roupa no coradouro”

O conto “Roupa no coradouro”, apresenta um embate entre a vida e a morte, temas


que são muito difíceis de se explicar no mundo infantil, é narrado em primeira pessoa, por
uma criança que é o narrador-personagem da história, a narrativa do conto é tecida em torno
da vida de uma criança que almeja liberdade, enquanto o pai está ausente de casa, a ausência
paterna se deu devido à necessidade de ir em busca do sustento da família. Sem a presença
opressora do pai por perto, o menino poderia enfim gozar da sua liberdade e fazer o que bem
entender, entretanto, essa liberdade acaba a partir do momento em que a mãe adoece e dias
depois morre. O conto apresenta um final trágico e triste, fazendo com que o leitor se comova
918

com a criança, que então fica órfã.


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O conto inicia-se com a descrição do menino ajudando o pai a tocar os animais com a
mercadoria no lombo, enquanto o menino ia ansioso pela partida do pai, o pai lhe atribuía a
responsabilidade de cuidar da casa e da sua mãe.

Fui com meu pai até depois da ponte e ajudei-o a tocar os dois cargueiros
ladeira acima. Todo o tempo ele ficou falando no que eu devia fazer
enquanto ele estivesse fora obedecer minha mãe em tudo, não deixá-la
carregar vasilhas pesadas de água, rachar a lenha que fosse necessária, mas
ter muito cuidado para não bater o machado no pé; não demorar na rua
quando ela mandasse dar algum recado ou fazer compra, e principalmente
não andar de farrancho na beira do rio com outros meninos maiores, porque
isso assustava muito minha mãe e ela não podia passar sustos. Eu não dizia
nada, só ouvia e batia com a cabeça, no fundo eu não estava triste com a
viagem de meu pai, era a primeira vez que ele ia ficar longe de nós por
algum tempo e eu estava ansioso por ver como seria a vida em casa sem ele
para fiscalizar tudo. Quando passamos a ladeira depois da ponte e os
cargueiros tomaram a estrada carreira eu pedi a bênção a meu pai, ele pôs a
mão na minha cabeça e disse que Deus me abençoasse e eu voltei quase
correndo (VEIGA, 2015, p. 123).

Talvez todas essas recomendações, para que o menino obedecesse a mãe e a ajudasse
nas atividades domésticas, já fosse um indício de que a mãe necessitava de atenções e
cuidados especiais.
Um fato que merece chamar atenção na narrativa, que nos faz lembrar traços da vida
de Veiga, é o fato que ele também perdeu sua mãe muito cedo, ainda quando criança, além
disso, a história ocorre no cenário de cidade de interior, com pessoas que tem uma vida
simples, sem regalias.
As personagens da narrativa giram em torno do menino, do pai, da mãe (estes não
apresentam nomes), D. Ana Bessa (a vizinha que os ajudava), o médico, o padre e alguns
outros vizinhos que circulam na casa com seus filhos, no momento em que a mãe se encontra
adoentada.
Durante toda a narrativa notamos a imagem da mãe, sendo uma pessoa passiva, que se
não se impõe diante da desobediência do menino, pelo contrário, era doce, não reclamava,
quando pedia ao filho para realizar alguma tarefa não exigia, perguntava-lhe se ele era capaz
de fazer, “ o máximo que dizia é que eu não devia abusar da ausência do meu pai, porque se
eu se acostumasse quando ele voltasse ficaria difícil desacostumar quando ele voltasse”
919

(VEIGA, 2015, p. 125).


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O menino não consegue auxiliar a mãe nas atividades domésticas, as brincadeiras o
ludibriam e o atraem, vive integralmente sua tão sonhada “liberdade”, longe do olhar de
punição do pai. Porém, ao chegar em casa e ver sua mãe fazendo tudo sozinha, sente uma
espécie de remorso e surge o sentimento e a necessidade de mudar e ser mais presente em
casa, entretanto, com a chegada do circo na cidade isso tornou-se praticamente impossível,
pois o menino ficou ainda mais ausente, essa nova atividade o absorveu e nada o faria deixar
de se divertir com os outros meninos na rua.

[...] eu achava que não estava ajudando muito, como meu pai recomendara, e
prometia a mim mesmo mudar de vida. Mas resolver uma coisa deitado é
fácil, não dá trabalho nenhum, praticar depois é que é difícil, a gente vai
deixando para depois e nunca resolve começar. Quando o circo chegou, aí é
que não tinha mesmo tempo para nada, nem para conversar direito com
minha mãe. [...] A gente trabalhava para ganhar entrada todas as noites, mas
mesmo que não ganhasse eu acho que a gente trabalhava assim mesmo, só
para poder ver o circo por dentro. Com isso não tinha tempo nem para
encher as vasilhas de água lá de casa [...] (VEIGA, 2015, p. 125-126).

No momento seguinte, como forma de se redimir com a mãe por estar ausente, ele a
convida para ir ao circo, promete até se desfazer da sua galinha para que ela não fosse preciso
mexer no dinheiro das despesas. Observamos no seu ato a singeleza da criança e o desejo que
a mãe também se divertisse como ele.
O narrador é surpreendido quando a mãe adoece e fica de cama, logo o sentimento de
culpa hospeda-se no seu íntimo, mas não demora muito e o menino começa a justificar suas
atividades pelo fato de se deparar com situações que lhe desviava do seu caminho.

Ela perguntou se eu podia ir na farmácia comprar umas cápsulas e voltar já


[...], eu fui mas no caminho encontrei uns meninos brincando de pião, por
sorte eu estava com o meu no bolso, entrei no meio deles e me esqueci da
hora. Cheguei em casa arrependido de ter demorado, mas felizmente d. Ana
Bessa estava lá, tinha acabado de fazer o almoço para mim e estava dando
um chá para mamãe no quarto. [...]sem mais nem menos disse que eu tinha
feito um papel muito feio, que minha mãe estava muito doente e ela ia me
vigiar, se eu não deixasse de vadiação ela ia contar tudo a meu pai quando
ele chegasse. Fiquei passado, era a primeira vez que ela falava assim
comigo, e se a fome não fosse muita eu teria até perdido a vontade de comer
(VEIGA, 2015, p. 127).
920

A bronca de alguém de fora da família o surpreendeu, só depois disso é que ele pode
notar a gravidade da doença de sua mãe, “eu queria dizer muitas coisas para ela, coisas
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bonitas e carinhosas, mas não achei o que dizer e acabei chorando também” (VEIGA, 2015, p.
128), notamos assim a fragilidade da criança diante da presença da morte.
O seu desejo pelo ambiente externo, pelas brincadeiras fora de casa, começa a minguar
a partir do momento em que o medo de perder sua mãe fica ainda mais evidente, apesar de
que para ele a mãe estava apenas doente e logo iria melhorar, é comum na criança não ter uma
amplitude do que possa acontecer, ou seja, jamais pensaria que a mãe pudesse morrer.
Só o ambiente familiar é capaz de lhe oferecer o aconchego necessário para seus
medos. Em relação a isso, o escritor Gaston Bachelard vem enfatizar que desde o nascimento
estamos ligados a um espaço, é imprescindível essa ligação, tanto na nossa memória
individual como na memória coletiva, “porque a casa é o nosso canto do mundo. Ela é, como
se diz amiúde, o nosso primeiro universo. É um verdadeiro cosmos” (2008, p. 24). Sendo
assim, notamos que a casa para o menino nesse momento de aflição passa a ser o seu refúgio,
“ a casa abriga o devaneio, a casa protege o sonhador, a casa permite sonhar em paz”,
conforme nos afirma Barchelard (2008, p. 26).
A saúde da mãe piorava ainda mais, e mesmo com o medo o encurralando, diante da
presença assustadora da morte, as brincadeiras nas ruas e as gozações continuavam tirando
sua atenção, dessa vez foi quando D. Bessa pediu para que ele chamasse o médico, porém não
o alcançou por ter parado para ver o mico comer amendoim, “se eu não tivesse parado na
porta da venda para ver o mico comer amendoim, teria alcançado o dr. Vergílio ainda em
casa” (VEIGA, 2015, p. 129).
Ao chegar em casa chora arrependido por ter desviado a atenção do caminho, pois
sabendo da urgência da presença do médico, poderia ter sido mais ágil, logo o menino se
enche de ansiedade e descrédito por, mais uma vez, não ter obedecido as ordens que lhe foram
dadas.

Parei de chorar e sentei na canastra onde minha mãe guardava a nossa roupa,
mas de cada vez que eu lembrava da minha parada na venda eu chorava
mais. D. Ana pensou que era por eu não ter encontrado o doutor mas era
porque eu sabia que o imprestável era eu, como meu pai às vezes dizia
(VEIGA, 2015, p. 129).

Em seguida, a narrativa descreve minuciosamente o leito e estado de saúde da mulher,


921

nesse momento o espaço é invadido repentinamente por vizinhos que se espalham por todos
os cômodos da casa. O menino perde sua individualidade a partir do momento em que a casa
Página

se enche de pessoas desconhecidas, ele sente que seu espaço foi modificado e invadido. Nessa

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perspectiva, é que Brandão afirma que “o narrador é um espaço, ou que se narra sempre de
algum lugar” (2007, p. 211), ou seja, levando em consideração o que afirma Brandão, o
narrador perde a sua identificação do espaço, logo que acaba não se reconhecendo naquele
ambiente invadido, é relevante atestamos que na narração o que sempre predomina é o olhar
do narrador para aquele espaço, “ Eu queria ficar sozinho num canto mas havia gente por toda
parte, só na rede da varanda tinha três meninas se balançando e rindo espremido” (VEIGA,
2015, p. 131).
No momento seguinte ocorre a descrição da morte da mãe, a morte na narrativa
conforme Benjamin (1994, p. 208) “é a sanção de tudo o que o narrador pode contar”, desse
modo, diante desse acontecimento o espaço sofre mais uma forte modificação, uma
modificação que mudaria por completo a vida da criança, de acordo com Halbwachs (2006, p.
160) “ um acontecimento grave sempre traz consigo mudança nas relações do grupo com o
lugar, [...]este não será mais exatamente o mesmo grupo, nem a mesma memória coletiva”.
Nesse momento, logo após a notícia da morte da mãe, o pai já se encontrava ao seu lado,
porém, mesmo com o pai presente naquele momento de dor, o menino isola-se com seus
sentimentos e o que mais lhe dói é o sentimento de culpa, que dilacera sua alma, “[...] não
queria acreditar que nunca mais eu ia vê-la. Nunca mais. Nunca mais. Nunca mais. Repeti as
palavras em pensamento, elas doíam dentro de mim, mas eu queria mesmo sofrer, era só o
que poderia fazer por minha mãe agora” (VEIGA, 2015, p. 133).
É importante notar que esse narrador, essa criança, ela não se coloca no lugar de
vítima, pelo contrário, ele de certa forma se responsabiliza pela morte da mãe, ele se desnuda
completamente nas suas atividades. Coloca-se em uma posição que para o leitor é difícil até
de julgá-lo pelas suas ações, justamente, talvez, pela sua própria sinceridade.
O final da narrativa apresenta ao leitor o motivo do título do conto, um momento
crucial na narrativa que toca o leitor pelo simples fato de um objeto aparentemente sem
importância, atingir o íntimo da criança, proporcionando que através da memória recordasse
sua mãe.
Bachelard, ao discutir sobre os espaços da casa e sobre os objetos, argumenta que
muitas vezes “ o insignificante torna-se então o signo de uma sensibilidade extrema para a
significações íntimas que estabelecem uma comunhão entre a alma do escritor e a do leitor”
922

(2007, p. 84), assim como podemos perceber na leitura do conto.


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Foi aí que vi as roupas estendidas na grama, vestidos, blusas e saias da
minha mãe, que ela mesma deixara ali para corar. O luar batia nas roupas e
as clareava com nitidez. [...] Não pude me demorar mais porque meu pai me
chamava da janela e eu não quis contrariá-lo logo nesse dia tão triste. Mas,
quando cheguei no alto da escada, olhei mais uma vez a roupa estendida e
fechei a porta bem devagar para demorar mais tempo olhando (VEIGA,
2015, p. 133).

Algo que para qualquer outro personagem não tivesse a mínima significância para a
criança é um momento de lembrar a presença viva de sua mãe, conforme Turchi (2003, p. 97)
“a memória é um instrumento doído, que reflete a impossibilidade do passado no presente,
mas também uma operação construtiva porque redimensiona a vida e transforma o ser. No
alto da escada, o menino já é outro”. A respeito da importância que os objetos carregam de
significância Halbwachs (2006, p. 158) afirma que “os objetos que nos rodeiam têm este
significado. [...] eles não falam, mas nós compreendemos, porque têm um sentido que
familiarmente deciframos”, ou seja, a roupa estendida no coradouro trouxe para aquele
menino um significado familiar inquestionável, não só neste conto, mas em outros do escritor
Veiga como em “As ilhas dos gatos pingados” e “A invernada do sossego”, notamos o quanto
é enfático a questão da dependência familiar e como as personagens sofrem com essa
ausência.
Analisando a relevância da memória e o espaço fortemente marcado na narrativa,
Gaston Bacherlad afirma que, “temos em nós, todo um estoque de imagens e lembranças”
(BACHELARD, 2008, p. 21). Através da invasão de suas lembranças, essa imagem da mãe
foi uma forma de se fortalecer, ao chegar no alto da escada tem-se a ideia de progresso,
iniciação de uma nova fase, a fase adulta, e com ele as lembranças jamais esquecidas.
Destacamos ainda o pensamento de Halbwachs, em seu livro A memória coletiva,
quando discute a importância da memória individual, da memória coletiva, dos espaços e o
que os objetos guardam de lembranças.

No entanto, às vezes, se a lembrança subsiste apesar do afastamento, apesar


da morte, é porque além da ligação pessoal havia um pensamento comum, o
sentimento de fuga do tempo, a visão dos objetos em torno, a natureza,
qualquer tema de meditação: é o elemento estável que transformava a união
de dois seres na base simplesmente afetiva em uma sociedade, e é o
923

pensamento subsistente do grupo que evoca a aproximação passada, e


resgata do esquecimento a imagem da pessoa (HALBWACHS, 2006, p.
148).
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Mediante afirmação notamos que apesar da morte, a lembrança sempre existirá, seja
através de um espaço, de pessoas, ou de objetos, como no caso da roupa, objeto que
involuntariamente trouxe o resgate da presença da mãe.
Sobre os espaços, Halbwachs (2006) afirma que nosso pensamento se encontra nos
objetos e o espaço é representado através de vários elementos, até mesmo através de vozes e
gestos.

O espaço é uma realidade que dura: nossas impressões se sucedem umas às


outras, nada permanece em nosso espírito e não compreenderíamos que seja
possível retomar o passado se ele não estivesse conservado no ambiente que
nos circunda. É ao espaço, ao nosso espaço, [...] a que sempre temos acesso
e que, de qualquer maneira, nossa imaginação ou nosso pensamento a cada
instante é capaz de reconstruir (HALBWACHS 2006, p. 170).

Ou seja, conforme o que nos apresenta Halbwachs nossa vivência está intimamente
ligado ao Outro, e que o passado sempre que necessário estará presente no nosso cotidiano
através das lembranças, seja elas através de uma memória individual ou de um grupo. O
escritor defende que sempre haverá um elemento motivador para ativar a nossa memória.
Ao analisamos esse conto, notamos o quanto o espaço da casa traz ecos de lembrança
da singela mãe, visto através até mesmo da descrição da comida que ela prepara “a mandioca
frita, carne assada e arroz sobrado do almoço” (VEIGA, 2015, p. 124), com isso notamos a
grandiosidade da narrativa de Veiga, enriquecendo de forma distinta o enredo através de
objetos memoráveis, objetos estes que possuem possibilidades infindas de significações e
rememorações.

Conclusão

Consideramos que Veiga resgata a infância de cada leitor ao lermos o conto “Roupa
no coradouro”, não há como não lembrar de algum fato ou objeto que foi e é significante na
nossa vida até hoje, principalmente ao vermos a descrição de uma criança sendo criança,
desvinculado das tarefas e do espaço da casa, uma criança empolgada e em êxtase pela
liberdade de estar na rua brincando com outros meninos.
924

Assim, notamos como bem aponta Turchi (2003, p. 103) que, “A arte de José J. Veiga
resgata o ser humano e o insere no dialogo da relativa grandeza que é viver num mundo,
Página

muitas vezes, cruel e sem sentido, mas, ao mesmo tempo, mágico”. Apesar da presença da

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morte, que é algo sempre que causa dor e incompreensão, principalmente para uma criança
que ainda não tem dimensão do que seja a morte, Veiga consegue trazer esse tempo mágico
para a narração, através não só da sua escrita, mas também pelo caráter peculiar como o
ambiente é descrito através da memória de um narrador que relembra sua infância. Veiga
permite ao leitor enxergar de modo bastante singular a infância, além disso consegue através
da morte de um ente querido, contemplar o amadurecimento e crescimento do menino para
fase adulta.

Referências

BACHELARD, Gaston. A casa. Do porão ao sótão. O sentido da cabana. In: ______. A


poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

BACHELARD, Gaston. Casa e Universo. In: ______. A poética do espaço. São Paulo:
Martins Fontes, 2008.

BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Magia e
técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo:
Brasiliense,1994, p. 197-221.

BRANDÃO, Luis Alberto. Espaços literários e suas expansões. Aletria: Revista de Estudos
de Literatura. Belo Horizonte, n. 15, jan. 2007, p. 207- 220.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2006.

SILVA, Geralda Rosa. Um olhar sobre a obra Os Cavalinhos de Platiplanto. Monografia de


especialização. (Programa de Pós-graduação – lato senso – especialização em letras).
Universidade Federal de Goiás. 2010, 56 p.

TURCHI, Maria Zaira. As fronteiras do conto de José J. Veiga. Ciênc.let., Porto Alegre,
n.34, p. 93-104, jul/dez. 2003.

VEIGA, José J. Roupa no coradouro. In: ______. Os cavalinhos de Platiplanto. São Paulo:
Companhia das Letras, 2015.
925
Página

ISBN: 978-85-7621-221-8
GT6 – LINGUAGEM LITERÁRIA CONTEMPORÂNEA: O NARRADOR E O EU
LÍRICO

A TOPOÁNALISE NO CONTO CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO “O CAVALO


QUE BEBIA CERVEJA” DE JOÃO GUIMARÃES ROSA

Will Wanderkelly de Freitas Ribeiro – PPGL/UERN141


Sebastião Marques Cardoso142

Introdução

[...] A época atual seria talvez de preferência a época do


espaço. Estamos na época do simultâneo, da justaposição,
do próximo e do longínquo, do lado a lado, do disperso.
Estamos em um momento em que o mundo se experimenta...
(FOUCAULT, 2006, p. 411).

Neste trabalho examinaremos como Guimarães Rosa, autor modernista, apresenta a


construção do espaço literário no conto O cavalo que bebia cerveja publicado na coletânea
Primeiras Estórias (1962), bem como a relação que se estabelece deste espaço com as
personagens presentes no conto e os possíveis efeitos de sentido criados pelo narrador ao
construir a espacialidade nesta narrativa.
O surgimento de Guimarães Rosa no contexto literário brasileiro se deu com a
publicação da coletânea de contos Sagarana (1946), no momento em que o Brasil apontava
para um movimento denominado Regionalismo, no qual buscava a valorização do espaço nas
narrativas, bem como suas peculiaridades locais, seus costumes e crenças de uma
determinada, região ou povo.
O regionalismo presente na obra de Guimarães Rosa não tem como ênfase apenas a
relevância da paisagem, mas também apresenta como foco a relação entre o homem e o
espaço em que vive, seus conflitos, suas lutas, impressões e dificuldades. Dessa maneira, as
personagens revelam tanto suas especificidades regionais, quanto a conflitos existenciais a
nível universal.
Em Grande sertão: Veredas (sua obra mais conhecida e difundida tanto no seu meio
literário quanto internacional) há uma (re)valorização da linguagem, pois Guimarães Rosa
busca levar a nossa língua portuguesa a domínios até então pouco explorados. Conhecido
926

141
Aluno regular do curso de Mestrado Acadêmico em Letras do Programa de Pós-Graduação em Letras do
Página

CAMEAM/UERN - Campus de Pau dos Ferros/ RN. E-mail: willribeiro_02@hotmail.com


142
Professor Dr. do PPGL do CAMEAM/ UERN campus Pau do Ferros/RN

ISBN: 978-85-7621-221-8
como o autor dos neologismos e aglutinações, recria e traz à tona expressões e ditos populares
da sua região, expressões essas cujos objetivos sejam resgatar a vivência sertaneja e suas
especificidades, ganham forma, força e novos significados, e atrelado a tudo isso a construção
do espaço na narrativa, que na maioria dos casos é o definidor das ações, capaz de levar seus
personagens a agir e até mesmo representar seus sentimentos vividos.
No conto O cavalo que bebia cerveja, (1962) o enredo evidencia a vivência de uma
imigrante italiano que compra uma chácara “meio ocultada” para, nela, viver isolado de tudo
e de todos. Durante a narração, o estrangeiro aparenta esconder algo dentro da sua própria
casa, não permitindo, a princípio, que ninguém adentre tal espaço, causando estranhamento e
curiosidade nas pessoas a sua volta, além de ser mal visto pelo próprio narrador Reivalino
Belarmino, que repudia seu comportamento e costumes. O conto apresenta pouca variação de
espaço, mas com relevante significação para o desenvolvimento da narrativa e desenrolar dos
fatos que giram em seu entorno, sendo o definidor das ações, levando seus personagens a agir.
Para melhor direcionar o nosso estudo sobre a categoria espacial na narrativa,
adotaremos a contribuição teórica do filósofo Gaston Bachelard (2000), que aponta o estudo
do espaço como topoanálise; Borges Filho (2007), que faz um levantamento da ocorrência do
espaço nas narrativas, expondo os modos pelos quais o espaço é utilizado na análise literária e
suas respectivas funções dentro do texto e Michel Foucault (2006), nos lembra que vivemos a
época do espaço, do simultâneo e das relações de vizinhança, por isso se justifica a
composição do trabalho.
Metodologicamente adotaremos uma abordagem interpretativa dos espaços presente
no conto em estudo mediante os pressupostos teóricos selecionados para compor tal análise.

A topoanálise no conto

Em A poética do espaço (2000) o filósofo francês Gaston Bachelard aponta uma


terminologia para o estudo do elemento espacial na obra literária e discute a respeito da sua
função:

A topoanálise seria então o estudo do psicológico sistemático dos locais de


927

nossa vida íntima. [...] na memória, o cenário mantém os personagens em


seu papel dominante. [...] o que se conhece é uma série de fixações nos
espaços da estabilidade do ser, de um ser que não passa no tempo; que no
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próprio passado, quando sai em busca do tempo perdido, quer suspender o


voo do tempo (p. 28).

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Em outras palavras, a topoanálise é uma análise auxiliar da psicanálise da localização
das nossas lembranças e que está intimamente associada a espaços físicos interno (a(s) casa(s)
que habitamos e todos os seus cômodos tais como o quarto, a cozinha, a sala, sótão, porão
etc.) e externo (a escola, a praça, o lago, o bosque, a praia, a nossa rua etc.) e que é graças a
memória que mantemos tais lembranças vivas e as pessoas em seus papéis predominante.
Quanto a função do espaço (por mais que o tempo siga seu curso), é capaz de ir em busca do
tempo, quer retê-lo, comprimindo.
Para Borges (2007) a topoanálise é mais que “estudo psicológico”, pois abarca
também outras abordagens sobre o espaço a saber, as interferências sociológicas, filosóficas e
estruturais, contribuindo para uma interpretação do espaço na obra literária. E ainda para o
autor, ela é a investigação do espaço em toda a sua riqueza, em toda a sua dinamicidade no
texto literário.
No segundo tópico do 1º capítulo da Poética do espaço Bachelard inicia-o louvando o
espaço da casa, pois este é responsável por guardar um grande número de nossas lembrança, e
que dependendo da casa, (os diferentes cômodos que ela possua) as lembranças podem ter
refúgio bem mais característicos, e é ao regresso a esses espaços (no passado) que levaremos
para toda a vida.
No conto que analisaremos é mencionado um único espaço onde se passa todas as
ações, a saber, a chácara como um todo, restringindo-se a casa do italiano e os encobrimentos
desses lugares pelo seu proprietário que aparenta esconder algo dentro dela. Tal conto, por ser
uma narrativa curta e apresentar espaços restritos nos possibilita um maior aprofundamento
destes lugares, a fim de verificar a sua real importância para o desenvolvimento das ações
contidas na história, e embora não se exponha diretamente a cidade, em oposição a chácara,
(rural-urbano) sabemos que ela se faz presente por intermédio do subdelegado e pelo “os de
fora” – os homens do consulado.
Assim, podemos afirmar que temos um único espaço enfatizado, no qual todas as
ações da narrativa acontecem e a resolução do conflito que gira em seu entorno, reunindo
todas as personagens envolvidas na trama. Esse espaço, segundo Moisés (2006) pode ser
classificado como um espaço com-drama, uma vez que o conflito principal se desenvolve e
928

resolve nele. Já os demais são classificados como sem-drama, que no caso seria a cidade,
representada pela presença dos homens de fora, do consulado.
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De acordo com Borges (2007) a construção do espaço na literatura geralmente se
compõe de microespaços que pode ser dividido em cenário e natureza. Entendemos o
primeiro como sendo os espaços no qual o ser humano vive, modificando e construindo a sua
imagem e semelhança. Quanto ao segundo (a natureza) são os espaços que independem do ser
humano, do fazer do homem, ou seja sem interferência de ninguém.
Narrado em primeira pessoa, o conto traz como temas o mistério, a não aceitação das
diferenças do outro e a invasão da privacidade sob a força da lei. Aponta também os horrores
e a desagregação trazidos pela guerra, revelando que o meio rural pode se tornar lugar de
acolhida e proteção para homens refugiados, perseguidos e solitários. Reivalino Belarmino é
quem conta a história do excêntrico italiano Giovânio, ex-combatente de guerra, que vivia
isolado numa chácara, tendo apenas como companhia seus cães, entre os quais se destaca
Mussolino.
No conto O cabalo que bebia cerveja, o narrador começa situando o leitor que a trama
se passará em um espaço rural – a chácara, e logo em seguida direciona as características
desse lugar ao personagem central que é estrangeiro e aparenta esconder algo

Essa chácara do homem ficava meio ocultada, escurecida pelas árvores, que
nunca se viu plantar tamanhas tantas em roda de uma casa. Era homem
estrangeiro. De minha mãe ouvi como, no ano da espanhola, ele chegou,
acautelado e espantado, para adquirir aquele lugar de todo defendimento, e a
morada, donde de qualquer janela alcançasse de vigiar a distância, mãos na
espingarda [...] (ROSA, 2001, p. 141, grifo nosso).

Nesse primeiro momento o narrador menciona a chácara, mas direciona seu olhar para
a casa, lançando ao leitor suas desconfianças quanto aos interesses do homem em possuir
aquele lugar – oculto pelas árvores plantadas propositalmente ao redor daquela morada,
servindo como espécie de esconderijo e refúgio, e sempre de arma na mão, em busca de
defender-se de algo que estivesse por vir.
Além do mais a casa tinha uma posição estratégica, pois nota-se que, de qualquer uma
das janelas se poderia ter aceso a quem de longe ousasse se aproximar, ou seja, as janelas
funcionava não como uma abertura para o ar ou a luz, apontando receptividade como sugere o
Dicionário de símbolos (2007), mas ali eram usadas como ponto de vigia, dando acesso ao
929

espaço externo sem ser visto por completo pelos de fora.


Ainda de acordo o narrador, o italiano Seo Giovânio (como é identificado no decorrer
Página

da narrativa) chega aquele lugar no ano da espanhola (gripe espanhola, 1918) e que segundo

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sua mãe seu comportamento era de cautela e espanto, não permitindo que ninguém tivesse
contato com o espaço de dentro da sua casa, pois até mesmo suas refeições eram realizadas
“da parte de fora, sentado na soleira da porta” (ROSA, 2001, p. 141).
Bachelard (2000) nos leva a pensar à casa a partir de vários exemplos analisados na
literatura como lugar de aconchego, proteção para o inverno e de intensa intimidade e quando
tal espaço não se revela disponível ao narrador Reivalino Belarmino, este passa a assumir
uma postura de investigador, uma vez que o comportamento de Seo Giovânio aparenta
esconder algo dentro da residência, lhe causando estranhamento e sendo motivo de intensa
desconfiança não só dele, mas do subdelegado, Seo Priscílio e dos funcionários do consulado.
Para o narrador as atitudes do italiano são sempre suspeitas, conforme ele destaca na
sua fala:

Do que mais estranhei, foram esses encobrimentos. Na casa, grande, antiga,


trancada de noite e de dia, não se entrava; nem para comer, nem para
cozinhar. Tudo se passava da banda de cá das portas, ele mesmo, figuro que
raras vezes por lá se introduzia, a não ser para dormir, ou para guardar
cerveja (ROSA, 2001, p. 143, grifo nosso).

Após ser convidado a trabalhar para Seo Giovânio, Reivalino fica cada vez mais
intrigado do que acontece na parte de dentro da casa do seu patrão, e essa desconfiança o faz
desejar saber do que se trata “esses encobrimentos”, estando evidente quando fala consigo
mesmo: “Tu espera, porco, para se, mais dia menos dia, eu não estou bem aí, no haja o que
há!” (ROSA, 2001, p. 143) Além do mais o narrador “queria era um jeito de entender, nem
que por uma fresta, aquela casa, debaixo de chaves, espreitada.” (ROSA, 2001, p. 144) e com
o passar do tempo, parecia que o italiano desconfiava do interesse de seu empregado

[...] Pois, por minha hora de surpresa, me chamou, abriu a porta. Lá dentro,
até fedia a coisa sempre em tampa, não dava bom ar. A sala, grande, vazia de
qualquer amobiliado, só para espaços. Ele, nem que de propósito, me deixou
olhar à minha conta, andou comigo, por diversos cômodos, me satisfiz. Ah,
mas depois, cá comigo, ganhei conselho, ao fim da ideia; e os quartos?
Havia muitos desses, eu não tinha entrado em todos, resguardados. Por
detrás de alguma daquelas portas, pressenti bafo de presença (ROSA, 2001,
p. 144).
930

O italiano Giovânio ao perceber que seu funcionário estava curioso quanto ao que se
passava na parte de dentro da sua casa e a fim de evitar especulação lhe abre a intimidade,
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mas não por completa, pois o que Reivalino conhece são apenas os “espaços sociais” da casa -

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a sala, que segundo ele “até fedia” por viver fechada e sem ventilação e alguns quartos sob
sua vigilância. Também podemos notar que pouco sabemos a respeito do italiano, pois sua
identidade não se faz presente nos móveis porque a sala estava vazia.
De acordo com Bachelard (2000) os móveis e objetos postos (espalhados) em um
determinado cômodo da casa (quarto, sala, cozinha) constituem parte da identidade do sujeito
que o habita, pois aponta suas preferências e gostos, estando intimamente relacionado ao
morador daquele espaço e no conto em evidência o personagem estrangeiro não se revela, a
princípio ao narrador Reivalino.
Apesar de seu patrão mostrar mesmo que brevemente alguns cômodos internos a fim
de evitar maiores questionamentos, Reivalino não se satisfaz por completo, pois além de não
olhar por sua conta própria e a sua vontade, (mas sob vigilância de Giovânio) havia os quartos
trancados a chave, muito resguardados, o que segundo ele, presente a presença de outra
pessoa naquele local.
As desconfianças que o narrador tem do que acontece dentro da casa do italiano são
transferidas dele para o subdelegado, que passa a investigar, como homem da lei, o que tanto
Seo Giovânio esconde na sua morada, mas que a princípio, em visita a chácara alega as
inúmeras histórias espalhadas pelas redondezas de um cavalo que bebia cerveja, e que para
surpresa dos dois, o italiano a confirma:

“Lei, quer ver? Saiu, para surgir com um cesto com as garrafas cheias, e uma
gamela, nela despejou tudo, às espumas. Me mandou buscar o cavalo: o
alazão canela-clara, bela-face. O qual --- era de se dar fé? --- já avançou,
avispado, de atreitas orelhas, arredondando as ventas, se lambendo: e grosso
bebeu o rumor daquilo, gostado, até o fundo; a gente vendo que ele já era
manhudo, cevado naquilo! [...] pois, o cavalo ainda queria mais e mais
cerveja (ROSA, 2001, p. 145).

O boato do cavalo que bebia cerveja é comprovado tanto pelo narrador, que fica
perplexo com o fato quanto pelo subdelegado Seo Priscílio que se vexa, agradece e sai da
chácara.
Reivalino ainda não satisfeito questiona a si mesmo quando era que tinha sido
ensinado aquele cavalo a beber cerveja e descontente do não acesso a todos os cômodos, vai
ao encontro dos homens de fora e especula “que alguma outra razão devia de haver, nos
931

quartos da casa” (ROSA, 2001, p. 145) Tal posição de Reivalino Belarmino faz com que o
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seo Priscílio retorne a chácara com um soldado, para que pudesse intimidar o italiano a

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revelar o segredo que ele escondia dentro da casa, pronunciando “que queria revistar os
cômodos pela justiça”. (ROSA, 2001, p.146) e o italiano assim o fez: “Abriu a casa, para seo
Priscílio entrar, o soldado; eu também. Os quartos? Foi direto a um, que estava duro de
trancado. O do pasmoso; que alí dentro, enorme, só tinha o singular – isto é, a coisa a não
existir! – um cavalo branco, empalhado” (ROSA, 2001, p. 146).
Em respeito a lei e com o intuito de superar a curiosidade de todos, seo Giovânio abre
sua casa, sua intimidade e revela que dentro de um dos quartos há apenas um cavalo
empalhando, apontando não existir segredo ou mistério nesse e nos demais cômodos, o que
ainda não satisfaz seu funcionário Reivalino que sabe da existência de outros quartos e que
segundo ele todos deverias ser supervisionados a fim de revelar o que tanto seu patrão
encobria.
Bachelard (2000) aponta o quarto como lugar de intensa intimidade, nos levando a
pensar que é o nosso lugar no mundo, lugar de proteção, de cuidado e amparo. Abrir o quarto
é se expor, se lançar ao estranho, permitindo que este se aproxime e adentre.
Após as tentativas de acesso a todos os quartos, o narrador Reivalino, desiludido busca
encerrar a vistoria na casa quando vai ao encontro do seo Priscílio e diz “que não queria saber
de nada, nem daqueles, os de fora, de coscuvilho, nem jogar com pau de dois bicos!” (ROSA,
2001, p. 146). É a partir daí que a resolução do conflito vem à tona

[...] Seo Giovânio abriu de em par a casa. Me chamou: na sala, no meio do


chão, jazia um corpo de homem, debaixo do lençol – “Josepe, meu irmão”...
[...] Ninguém tinha sabido nunca o qual irmão, o que se fechava escondido,
em fuga da comunicação das pessoas. [...] Mas aí, se viu só o horror, de nós
todos, com caridade de olhos: O morto não tinha cara, a bem dizer – só um
buraco, enorme, cicatrizado antigo, medonho, sem nariz, sem faces – a gente
devassava alvos ossos, o começo da goela, gargomilhos, gola (ROSA, 2001,
p. 147).

A descoberta da existência de mais uma pessoa na casa deixa todos perplexos, pois
nunca se ouvia do irmão de seo Giovânio barulho ou queixa alguma e Reivalino fica
sensibilizado com a condição do morto que tem seu rosto desfigurado por conta da guerra,
vivendo recluso do contato com as pessoas. Diante desse fato Reivalino nos revela “ali não
me servia mais, na chácara estúrdia e desditosa, com o escuro das árvores, tão em volta”
932

(ROSA, 2001, p. 147, grifo nosso). Na expressão do narrador, o uso do adverbio ali, fazendo
referência a chácara como um todo atesta que ele se encontra distante, aquele espaço já não
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lhe serve mais, causando desconforto e sensações desagradáveis. A guerra era muito cruel e
quem não perdesse a vida nela lutando, trazia no seu corpo sua marca.
Abandonando o posto de ajudante de seo Giovânio, Reivalino Belarmino, bebe junto
com o patrão as últimas cervejas que restam toma seu rumo. Tempos depois sabe do
falecimento do italiano quando recebe a chácara em testamento: “mandei vender o lugar, mas
primeiro, cortarem abaixo as árvores, e enterrarem no campo o trem, que se achava, naquele
referido quarto. Lá nunca voltei” (ROSA, 2001, p.148 grifo nosso). O contato que se
estabelece entre Reivalino e a chácara nos leva a concluir que se faz desde a infância, e como
ali não traz boas recordações ele manda derrubar todas as árvores e vende a casa, no intuito de
se livras das lembranças.
O uso do advérbio de lugar “lá”, se referindo a chácara, nos confirma que o retorno
aquele lugar não era mais viável e se desfaz de tudo.

Considerações finais

A produção literária de Guimarães Rosa apresenta um verdadeiro desafio aos leitores


que buscar estudar e interpretar seus textos, principalmente pelo fato de como o autor lida
com a língua portuguesa, trazendo à tona e resgatando expressões e ditos populares pouco
usual, além da criação de neologismos e aglutinações de um povo sertanejo além dos temas
postos em discussão.
Como vimos, Guimarães Rosa traz em seu conto pouca variação do espaço, mas com
significativa relevância para a narrativa, pois a construção desse espaço nos remete a uma
relação muito forte com a personagem italiana, que optar por viver em uma chácara “meio
ocultada” e a distanciar-se de tudo e de todos e mas que somente ao final tomamos
conhecimento das escolhas do estrangeiro.
A coordenada espacial mais explorada no conto foi a posição (dentro x fora), no que se
refere aos espaços que as personagens habitam, como a chácara (fora) e a casa, seu interior
(dentro).
Também podemos observar o quanto o espaço influenciou na construção das
personagens e suas relações. A própria chácara, espaço que abriga a maioria das personagens
933

é, sem dúvida, um espaço extremamente importante na construção da obra como um todo,


ainda mais se levarmos em conta o fato de que lá é o lugar mais propício para começar uma
Página

nova vida, sem a interferência e o contato direto de outras pessoas.

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Dada sua relevância, a fazenda pode ser classificada como espaço com drama, já que
toda a trama se inicia, desenrola e conclui lá. O grande eixo temático do conto é o do respeito
ao espaço interno do outro e a não invasão deste, mesmo que amparado por lei.

Referências

BACHELARD, Gaston. Casa e universo. In: A poética do espaço. SP: Martins Fontes, 2000.

BORGES Filho, Ozíres. Espaço e literatura: introdução à topoanálise – Franca, SP: Ribeirão
Gráfica e Editora, 2007.

BRANDÃO, Luis Alberto. Teorias do espaço literário. São Paulo: Perspectiva, 2013;

CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: José


Olympio, 2007.

FOUCAULT, Michel. Outros Espaços. In:______. Estética: literatura, música e cinema.


Trad. Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro Forense Universitária, 2006. (Coleção Ditos e
Escritos, v. III), p.411-421) Conferência no Círculo de Estudos Arquitetônicos. 1984.

GALVÃO, Walnice Nogueira. Guimarães Rosa. São Paulo: Publifolha, 2000.

LORENZ, G. Diálogo com Guimarães Rosa. In: ______. Obras completas de João
Guimarães Rosa Vol. I. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p.12-27.

MOISÉS, Massaud. A criação literária: prosa I. São Paulo: Cultrix, 2006.

ROSA, Guimarães. O cavalo que bebia cerveja. In: ______. Primeiras estórias. Rio de
Janeiro, Nova Fronteira, 2001.

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GT7 – INFORMAÇÃO, CULTURA E PRÁTICAS SOCIAIS

DISCUTINDO A MIDIATIZAÇÃO: REFLEXÕES ACERCA DO CONCEITO E SUAS


IMPLICAÇÕES NA VIDA COTIDIANA

Elenilda Dias de Souza Carlos (UERN)

Introdução

A midiatização é um conceito presente em diversas áreas do conhecimento, como


comunicação social, sociologia, antropologia, educação, psicologia, administração, direito,
economia, dentre outros. Muitos autores se referem ao conceito como em fase inicial ou de
desenvolvimento, havendo também opiniões divergentes que impedem a existência de uma
unidade teórica no que se refere a essa temática.
Não se objetiva aqui elucidar o conceito de midiatização de forma definitiva,
afirmando o que é e o que não é a midiatização. O que se propõe é a reflexão sobre o assunto
através visão de alguns pesquisadores. Para isso, serão utilizadas discussões elaboradas por
autores como como Gomes (2006, 2016), Braga (2006, 2012), Fausto Neto (2007, 2012),
Sodré (2002), Sgorla (2009), Cardoso Filho (2012), Paiva (2012), Santi (2016), entre outros.
Este trabalho é estruturado em três tópicos. O primeiro considera a midiatização sob
diferentes olhares, procurando apreender essas visões e entender melhor esse conceito. O
segundo tópico trata da transição da sociedade dos meios à sociedade midiatizada, enfatizando
que já não é possível pensar as tecnologias midiáticas apenas como suportes tecnológicos,
mas como imprescindíveis à alguns tipos de relações sociais. Por fim, o terceiro tópico traz
uma discussão acerca de como a midiatização interfere nas relações da vida cotidiana, como
ela vem redesenhando os vínculos sociais e a própria lógica midiática.

1 Olhares sobre a midiatização

A midiatização parece ter se tornado um conceito fundamental para pensarmos a


realidade dos meios de comunicação e suas relações com a sociedade no cenário atual, no
qual mídia e sociedade encontram-se cada vez mais interligados.
935

Com base no que diz Sgorla (2009), pode-se dizer que existem múltiplos
entrecruzamentos entre a mídia e a sociedade e que isso tem resultado em importantes
Página

transformações na vida dos atores sociais individuais e coletivos, incidindo em suas relações,

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cultura, práticas e identidades. Essa mutação não tem efeitos somente na vida social, mas
também recai sobre os meios de comunicação tradicionais, como o rádio, a televisão e os
impressos, que passam por inúmeras mudanças e readaptações, desde a elaboração até a
recepção de seus conteúdos. Desse modo, Sgorla explica que “a midiatização pode ser
entendida como múltiplos entrecruzamentos entre tecnologias midiáticas, campos e atores
sociais, meios de comunicação social tradicionais e sociedade” (SGORLA, 2009, p. 62).
É difícil categorizar efetivamente o que se entende por midiatização porque não existe
entre os pesquisadores um consenso acerca do assunto. Muitos autores inclusive consideram
que o debate se encontra em fase inicial ou em desenvolvimento, como é o saco de Sgorla
(2009), Fausto Neto (2007), Braga (2012) e Cardoso Filho (2012). Igualmente, não parece
possível enquadrar a midiatização neste ou naquele campo do conhecimento. Braga (2012)
afirma que em sua perspectiva de estudos o processo de midiatização não é atribuído a
nenhum setor prioritário da sociedade: “Todas as áreas e setores da sociedade passaram a
desenvolver práticas e reflexões sobre sua interação com as demais áreas e setores, testando
possibilidades e inventando processos interacionais para participar segundo suas próprias
perspectivas e interesses” (BRAGA, 2012, p. 37). Para este autor, a diversidade de hipóteses
para um mesmo conceito pode ser algo positivo e que venha ajudar no desenvolvimento de
ajustes e percepções conceituais necessários. “Na linha de pesquisa de Midiatizações, temos
assim trabalhado, com diversidade interna de reflexões e elaboração, os conceitos de
circulação, circuitos, dispositivos e ambiência midiatizada” (BRAGA, 2012, p. 38).
É importante ressaltar que dentre essas hipóteses teóricas o contexto é um fator
essencial que precisa ser considerado. O processo de midiatização presente na sociedade norte
americana não é igual ao que se desenvolve no Brasil, assim como este diferencia-se do
processo de midiatização nos países europeus. Fausto Neto (2007) destaca que:

A intensificação dos processos de midiatização, enquanto novas formas


tecnológicas de vida, afeta o funcionamento de práticas dos diferentes
campos sociais e seus processos de interação, que levam em conta a
existência da cultura e de operações midiáticas. No contexto latino-
americano, ou mesmo brasileiro, temos refletido sobre tais ocorrências junto
às práticas discursivas de vários campos (política, educação, religioso,
saúde) e que se manifestam através de complexas apropriações de operações
midiáticas, redesenhando suas gramáticas e suas estratégias de
936

reconhecimento (FAUSTO NETO, 2007, p. 78).


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Os meios passam a permear não mais apenas sua própria esfera, mas expandem-se
para campos diversos. Essa expansão afeta e modifica a vida em sociedade, criando um novo
modo de se relacionar, uma nova gramática, como afirma Fausto Neto (2007). Essa nova
gramática afeta também a lógica institucional: “as operações de midiatização afetam
largamente práticas institucionais que se valem de suas lógicas e de suas operações para
produzir as possibilidades de suas novas formas de reconhecimento nos mercados
discursivos” (FAUSTO NETO, 2006, p. 11).
Entretanto é relevante considerar que apesar de sua importância, a midiatização não é
uma forma de dominação sobre a sociedade nem explica a totalidade de seu funcionamento.
Dizer que a midiatização está presente nos mais variados campos não significa supor que
estes só podem ser pensados a partir daquela. O que se pode pensar a partir disso, é que, no
processo de midiatização os meios deixam de ser vistos apenas como meios e passam a fazer
parte do próprio processo. Essa mudança de perspectiva em relação aos meios é o tema do
próximo tópico.

2 Da sociedade dos Meios à Sociedade Midiatizada

Durante muito tempo a ideia central no debate sobre os meios foi a de que estes atuam
como transmissores de conteúdo. O conteúdo era produzido por um emissor e transmitido,
através dos meios, a um público receptor. Nesse caso, os papéis eram muito bem definidos.
Essa lógica caracteriza a sociedade dos meios. Entretanto, com o surgimento de novas
tecnologias e novas formas de relacionamento entre os meios, a sociedade e os conteúdos,
essa sociedade dos meios já não é capaz de abranger todo o processo, o que faz surgir o
processo de transição dessa “sociedade dos meios” para a “sociedade midiatizada” ou “
sociedade da midiatização”, como dizem alguns autores.
Deve-se ressaltar que divergências entre os pesquisadores, sendo que enquanto para
alguns a sociedade atual já é uma sociedade midiatizada, para outros, esse processo ainda está
se construindo. De acordo com os autores utilizados nesse trabalho, a perspectiva adotada é a
primeira.
Para explicar essa transição dos meios à midiatização é preciso entender as tecnologias
937

midiáticas não mais como meros suportes técnicos para a realização da comunicação e passar
a enxergá-las como mídias propriamente, como imprescindíveis para a efetivação de
Página

determinadas relações sociais. “Com isso, parece ser cada vez mais tênue a diferença entre as

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relações que acontecem face a face e as relações mediadas por tecnologias midiáticas”
(SGORLA, 2009, p. 65).
Um exemplo do uso das tecnologias midiáticas como imprescindíveis à realização de
alguma atividade pode ser o uso de e-mails no ambiente de trabalho. Com a ampliação do
acesso à internet, as pessoas passam a se utilizar mais de seus benefícios e, no ambiente de
trabalho, o e-mail é um forte aliado para resolver questões, trocar informações e enviar
documentos de forma rápida. Sendo assim, para desempenhar algumas funções (advogado,
jornalista, professor, empresário, etc.) na sociedade atual é imprescindível que o indivíduo
utilize algum endereço de e-mail.
A principal diferença talvez seja o foco da abordagem, que deixa de ser o meio e passa
a importar-se com o processo:

Ainda que os processos interacionais mais longamente estabelecidos – da


ordem da oralidade presencial e da escrita em suas múltiplas formas –
continuem a definir padrões de comunicação, e lógicas inferenciais, que
organizam a sociedade e suas tentativas, tais processos, em sua generalidade,
se deslocam para modos mais complexos, envolvendo a diversidade
crescente da midiatização – o que é bem mais amplo e diferenciado do que
referir simplesmente o uso dos meios. Assim, hoje, o que atrai fortemente
nossa atenção são esses processos – cujas ações não se restringem ao objeto
“meios” nem ao objeto “receptores e suas mediações”, mas os incluem, a
ambos, em formações muitíssimo diversificadas e ainda articulados a outras
formações (BRAGA, 2012, p. 35).

Fausto Neto (2007) pensa de forma parecida quando discorre sobre essa passagem da
“sociedade dos meios” para a “sociedade da midiatização” explicando que na “sociedade da
midiatização” é o desenvolvimento de processos e protocolos de ordem sócio-técnica-
discursiva que vai reformulando a questão dos vínculos sociais. Sodré (2002) também pensa
nesse sentido, conceituando a midiatização como:

uma ordem de mediações socialmente realizadas no sentido da comunicação


entendida como processo informacional, a reboque de organizações
empresariais e com ênfase num tipo particular de interação – a que
poderíamos chamar de ‘tecno-interação’ –, caracterizada por uma espécie de
prótese tecnológica e mercadológica da realidade sensível, denominada
medium.
938

Autores como Sgola (2009), Santi (2016), Sodré (2002), Gomes (2006) e Braga (2006)
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concordam com a afirmativa de que a midiatização é um fenômeno que transcende aos meios.

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O processo de Midiatização nesse contexto se envolve na constituição de
uma nova realidade que vai muito além dos meios e que se configura como
um dispositivo tecnocultural que emerge historicamente no momento em que
o processo de comunicação é técnica e industrialmente redefinido pela
chamada explosão da informação (SANTI, 2016, p. 109).

Pensando em explorar mais essa questão da construção dessa nova realidade descrita
por Santi (2016), o próximo tópico irá abordar as implicações da midiatização sobre os
vínculos sociais, a vida cotidiana e a própria lógica midiática.

3 Midiatização da vida cotidiana

As atividades contemporâneas cotidianas estão cada vez mais, direta ou indiretamente,


submetidas à interferência de mídia (HJARVARD143, 2014). Tarefas simples como fazer
compras, ouvir músicas e viajar já não são realizadas da mesma maneira e, frequentemente
submetem-se a alguma lógica midiática. Para fazer compras móveis, sapatos ou de aparelhos
eletrônicos, por exemplo, não é mais necessário sair de casa, tudo isso e mais uma extensa
lista de produtos os mais variados são comercializados através da internet; o indivíduo pode
efetuar a compra, pagar com cartão de crédito ou internet banking, e receber a mercadoria sem
precisar sair de casa. Os antigos discos de vinil, CDs e fitas K7 já não são tão utilizados pelos
fãs de música como em outras épocas e, quando querem ouvir suas músicas preferidas, as
pessoas simplesmente têm a opção de acessar uma extensa lista de conteúdos na internet
através de aplicativos específicos instalados em seus celulares. Para consultar o roteiro de
uma viagem de carro, por exemplo, era preciso que o sujeito portasse de um mapa impresso e
que tivesse alguma noção de como se orientar por ele para não se perder; atualmente os
próprios veículos já possuem GPS que indicam trajetos, tráfego, melhores rotas e previsão de
chegada ao destino final. Poderiam se somar a essa lista uma série de outras atividades nas
quais podem-se perceber a presença de mídias e de lógicas midiáticas atuando como parte do
processo de realização das mesmas, evidenciando uma transformação no modo de realização
dessas tarefas. Para Hjavard (2014), a midiatização atua na sociedade a partir da própria
lógica midiática, onde os meios são um fenômeno atrelado ao funcionamento da sociedade.
939

143
Apesar de não tratar da midiatização no contexto do Brasil e/ou da América Latina este autor é utilizado neste
Página

trabalhar por haver o entendimento de que suas ideias aqui utilizadas não vão de encontro ao que defendem os
outros autores, sendo inclusive observado que alguns até se utilizam de suas teorias em suas pesquisas.

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Para Gomes (2006) tem um pensamento semelhante a este: “a midiatização é a
reconfiguração de uma ecologia comunicacional” (GOMES, 2006, p. 121). Para o autor, a
midiatização deve ser pensada no âmbito de um processo social complexo através do qual
pode-se compreender o funcionamento da mídia e da sociedade. “Está surgindo um novo
modo de ser no mundo representado pela midiatização da sociedade” (GOMES, 2006, p.
113). Esse novo modo de ser caracteriza-se pela presença de tecnologias e lógicas midiáticas
que atuam e modificam as relações interpessoais.
Paiva (2012) concorda com essa visão, porém alerta para o fato de que esse fenômeno
não é universal e que uma parcela da sociedade ainda faz parte dele inteiramente:

O fenômeno da internet, hipermídias e redes sociais configuraram uma nova


realidade sociocultural, em que os cidadãos interconectados interagem de
maneira colaborativa, formando laços afetivos, comerciais e políticos. As
obras de arte, a música universal, as relíquias literárias, os grandes clássicos
do cinema, as novidades no mundo da ciência e tecnologia, disponíveis em
rede, configuram uma dimensão luminosa da midiatização cultural. Porém, a
modernização tecnológica, parte integrante dessa nova midiatização da
cultura, não trouxe benefícios para todos; do lado de fora da sociedade
midiatizada estão os desplugados, os “sem banda larga”, os outsiders do
século XXI (PAIVA, 2012, p. 149).

Segundo Braga (2012), O surgimento crescente de novas tecnologias favorece a


presença da midiatização em setores não midiáticos, mas o autor alerta que o termo não pode
ser restringido apenas a essa evolução tecnológica. “Um mote frequente na sociedade em
midiatização se refere à presença e à relevância de ‘novas tecnologias’ como geradoras ou
viabilizadoras de processos e de dispositivos interacionais igualmente inovadores” (BRAGA,
2012, p. 48). É preciso um componente diretamente social no processo. Sobre a tecnologia
disponibilizada é preciso ainda que se desenvolvam invenções sociais de direcionamento
interacional. Essas invenções são, talvez, a parte mais importante da questão. É porque a
sociedade decide acionar tecnologias em um sentido interacional que estas se desenvolvem.
“São os processos da midiatização que hoje delineiam e caracterizam, crescentemente, as
mediações comunicativas da sociedade” (BRAGA, 2012, p. 51).
Para exemplificar essa questão, o autor cita o YouTube, criado para a veiculação de
vídeos domésticos, mas que acabou tendo os mais variados usos, por empresas, celebridades,
940

partidos políticos. Mais recentemente, com a ascensão dos youtubers, o YouTube se


transformou num meio de vida para muitas pessoas. O Twitter e o WhatsApp também podem
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ser citados como exemplo de invenções que favorecem essa presença da midiatização em

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setores da vida cotidiana, ambos foram criados com fins mais recreativos e passaram a ser
utilizados das mais variadas formas. O Twitter se tornou um importante meio de circulação de
informações de forma rápida e descentralizada e o WhatsApp passou a fazer parte da vida de
inúmeras pessoas que o utilizam para trabalho, estudo, negócios, troca e disseminação de
informações, vídeos, músicas, notícias.
Paiva (2012) comenta que em pouco mais de uma década a forma que os indivíduos se
relacionam com o mundo social e natural mudou radicalmente. Pessoas que não se veem há
meses comentam fatos recentes da vida uma da outra como se tivessem participado deles,
porque acompanhou aqueles acontecimentos através do Facebook; nas relações de trabalho o
e-mail e WhatsApp tornaram-se essenciais para o desenvolvimento de atividades, tanto que ao
entrar em um novo emprego o indivíduo é logo adicionado ao grupo da equipe no WhatsApp,
inserido na lista de e-mails da empresa, etc. “Tanto na esfera pública quanto na esfera privada,
nas empresas, instituições e organizações, novos atores, códigos, valores e processos ganham
vigência” (PAIVA, 2012, p. 151). A esse fenômeno, Paiva (2012) referindo-se às ideias de
Sodré (2002) classifica como um novo ethos que se instala nos fluxos da midiatização social.
“Neste novo nicho comunicacional, os espectadores se tornam e-leitores, editores,
cibercidadãos. Ou seja, ocorre uma transformação profunda no contexto da experiência
midiática” (PAIVA, 2012, p. 151).
Nesse contexto de mudanças, o próprio modo de atuação da mídia também se altera.

A “midiatização” estimula uma espécie de “processo de afetação” em que as


tecnologias midiáticas, os meios de comunicação social tradicionais e os
atores sociais individuais e coletivos acabam por implicar-se mutuamente e
de modo não-linear, diluindo as fronteiras de quem é quem. Assim, as
alterações surgidas pelos “processos de midiatização”, tanto podem afetar e
reconfigurar as práticas e relações sociais dos atores individuais e coletivos,
como repercutir nos fenômenos recorrentes no próprio campo protagonista
da midiatização – o campo das mídias – pelos meios de comunicação social
mais tradicionais (SGORLA, 2009, p. 64).

Os meios de comunicação tradicionais, em tempos de midiatização tem suas lógicas


afetadas, a interação com o público se intensifica, os telejornais comentam fatos veiculados na
internet, as mídias impressas tentam sobreviver à era da informação em tempo real, o público
941

passa a poder pautar e interagir com os grandes meios, não havendo mais, deste modo, uma
grande distinção sobre quem é o produtor e quem é o receptor de conteúdos, tudo está
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interligado. Fausto Neto (2012, p. 298), explica que “os acontecimentos são tecidos hoje no

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contexto da midiatização no qual as mediações, enquanto práticas sociais, são afetadas por
uma nova arquitetura comunicacional”. A midiatização reconfigura as relações sociais,
comunicacionais, midiáticas e cotidianas.

Considerações finais

Este trabalho discutiu a midiatização observando que alguns autores a consideram


enquanto conceito fundamental para descrever a relação entre os meios e a sociedade
contemporânea, um conceito em fase inicial ou em desenvolvimento, tendo diferentes
nuances de acordo com cada contexto no qual se desenvolve, necessitando, deste modo, que a
reflexão se dirija à realidade social na qual o debate será inserido. De acordo com o que foi
visto, enfatiza-se que os meios não podem mais ser vistos apenas como instrumentos ou como
meros transmissores de informações, mas como parte do processo. A midiatização vincula-se
a expansão das inovações das tecnologias da informação, mas não é a invenção dessa
tecnologia em si que mais importa, e sim o seu uso. Nesse sentido, a forma como a sociedade
se relaciona com os meios e estes com ela, as interações e vínculos sociais, e a vida cotidiana
como um todo passam por transformações em todos os âmbitos, estando a lógica midiática
cada vez mais presente em outros âmbitos sociais. O sujeito contemporâneo está submetido à
interferência de mídias. Sendo assim, é preciso enxergar a midiatização enquanto processo
recíproco. Vale salientar, entretanto, que esse processo não se desenvolve de maneira igual e
integral para todos os indivíduos, e que existem muitas pessoas sem acesso a essas
tecnologias de informação modernas.

Referências

BRAGA, José Luiz. A sociedade enfrenta a mídia: dispositivos sociais de crítica midiática.
São Paulo: Paulus, 2006.

________. Circuitos versus campos sociais. In: MATTOS, M. A.; JANOTTI JUNIOR, J.;
JACKS, N. (Orgs.). Mediação & midiatização [online]. Salvador: EDUFBA, 2012, p. 31-52.

CARDOSO FILHO, JOSÉ. Inflexões metodológicas para a teoria do uso social dos meios e
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processos de midiatização.In: MATTOS, M. A.; JANOTTI JUNIOR, J.; JACKS, N. (Orgs.).


Mediação & midiatização [online]. Salvador: EDUFBA, 2012, p. 171-191.
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FAUSTO NETO, Antônio. Midiatização, prática social: prática de sentido. In: Encontro
Anual Da Associação Nacional Dos Programas De Pós-Graduação Em Comunicação
(Compós), 15, 2006, Bauru/SP. Anais eletrônicos.

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GT7 – INFORMAÇÃO, CULTURA E PRÁTICAS SOCIAIS

SER FELIZ HOJE: O CORPO COMO SUPERFÍCIE DE DISCIPLINAMENTO PARA


CONQUISTA DA FELICIDADE

Karla Jane Eyre da Cunha Bezerra Souza (PPCL/UERN)


João Paulo Pereira (PPCL/UERN)

Introdução

Na sociedade contemporânea, observamos a utilização da temática felicidade como


argumento para se obter alguma conduta dos indivíduos. Representada com distintas formas e
diversos sentidos, seus discursos são mobilizados no campo da publicidade, da medicina ou
da estética, procurando incitar determinado comportamento dos sujeitos através da promessa
de uma vida mais feliz.
É possível perceber uma verdadeira corrida para alcançar esse bem-estar prometido e a
mídia vem incentivar essa busca através da produção e circulação de discursos prescritivos
que orientam os comportamentos dos indivíduos em suas atividades cotidianas e interações
sociais. Instaura-se um estado de felicidade obrigatória: há uma proliferação de discursos que
impõem as diversas representações desse contentamento para serem perseguidas pelo
individuo nas esferas pessoal, profissional, espiritual e emocional com o auxílio dos manuais
de autoajuda, consumidas através das ofertas do mercado de consumo, restauradas por meio
da medicalização das emoções e prometidas pelos discursos pedagógicos que regulam os
cuidados corporais para atender a um padrão estético e obter saúde.
Muitos são os caminhos que levam à felicidade e diferentes são as práticas propostas
pela mídia, cientes dessa diversidade de significações trilharemos aqui o percurso dos
enunciados que associam a conquista da felicidade ao corpo que está em conformidade ao
padrão estético. Neste trabalho, pretendemos analisar os efeitos de sentidos e relações de
poder-saber presentes nos discursos que elegem o corpo como superfície de disciplinamento
para a fabricação de sujeitos felizes e de corpos obedientes. Para tal fim, trabalharemos com o
suporte teórico e metodológico da Análise do Discurso (AD) de tradição francesa,
mobilizando categorias analíticas propostas por Michel Foucault, e com os Estudos da Mídia,
articulando um diálogo com a AD através de seu representante Roger Silverstone e a
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pesquisadora Ana Lúcia de Castro. Elegemos como corpus de nossa pesquisa algumas capas
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de diferentes épocas da revista Boa Forma, que traz para seus leitores a noção de felicidade
ligada à corporeidade.
É possível afirmar que tais discursos têm como função a padronização de
comportamentos mediante o disciplinamento do sujeito, ou melhor, os sujeitos são
convocados a construir sua felicidade através da construção de uma boa forma corporal, por
meio de técnicas que aumentam a docilidade e utilidade do corpo, fabricando um sujeito mais
produtivo e feliz. São práticas que determinam padrões de felicidade na sociedade
contemporânea e estabelecem as regras que nos orientam para conquistá-la através de um
esforço individual.

1 Poder e Sujeito – Os corpos dóceis

Preocupado em criar uma história dos diferentes modos pelos quais os seres humanos
tornaram-se sujeitos, Foucault enveredou pela temática do poder em sua fase genealógica,
declarando que não se chega ao sujeito em si a não ser pelas relações e práticas que o constitui
(FOUCAULT, 1995). Apresentou-nos uma nova forma de poder coercitivo, o poder
disciplinar, que surgiu nas sociedades ocidentais em substituição do poder soberano,
predominante nos regimes absolutistas da Europa.
É uma forma de poder que existe enquanto prática, não é algo material que se possui
ou um lugar que se ocupa, é ação sobre ação, uma estratégia. É um poder [...] “que intervém
materialmente, atingindo a realidade mais concreta dos indivíduos – o seu corpo – e que se
situa ao nível do próprio corpo social, e não acima dele, penetrando na vida cotidiana e por
isso podendo ser caracterizado como micro-poder ou sub-poder” (MACHADO, 1996, p. XII).
São micropoderes que penetram o corpo social fabricando para os indivíduos novas formas
possíveis de ser sujeito, determinando os papéis que eles devem desempenhar na sociedade
em que atuam.
Esses poderes não se confundem com o Estado, não estão unicamente localizados nos
aparelhos estatais e não são por eles absorvidos ou necessariamente criados. Os micropoderes
funcionam como uma rede de mecanismos que exercem seus efeitos e se reproduzem por todo
o corpo social, nada ou ninguém está fora de seu alcance, e esse exercício pode estar
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integrado ou não ao Estado.


Entendemos que nas relações de poder há também lutas contra o seu funcionamento,
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“lá onde há poder há resistência e, no entanto (ou melhor, por isso mesmo) esta nunca se

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encontra em posição de exterioridade em relação ao poder” (FOUCAULT, 2017, p. 104),
essas lutas ocorrem no interior da própria rede de poderes visto que não existem lugares
destituídos de poder na estrutura social. A discussão sobre as resistências cabe em outro
momento, pois não constituem o objeto de análise deste trabalho.
Durante a época clássica houve uma descoberta do corpo como objeto e alvo das
relações de poder, elegendo-o como superfície de disciplinamento, cujo efeito tem alcance
imediato sobre ele para ampliar sua habilidade e utilidade. Essas relações de poder “realizam
um controle detalhado, minucioso do corpo – gestos, atitudes, comportamentos, hábitos,
discursos” (MACHADO, 1996, p. XII). O individuo está inserido numa “economia política”
do corpo, ainda que não seja para castigá-lo, reprimi-lo, ainda que não se utilize da violência.
Nesse jogo de relações é o corpo que interessa, o poder utiliza métodos para corrigi-lo ou
adestrá-lo, a fim de usufruir suas forças e assegurar suas vantagens. Aproveita-se da utilidade
e docilidades de suas forças, através da submissão do corpo. Não significa dizer que a teoria
do poder se fundamenta numa relação de apropriação do corpo, como o que acontece na
escravidão, mas sim a uma rede de relações sempre em atividade, a um jogo de técnicas, de
funcionamentos que agem sobre o corpo a fim de transformá-lo e aperfeiçoá-lo.

A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos ‘dóceis’.


A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de
utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de
obediência). Em uma palavra: ela dissocia o poder do corpo; faz dele por um
lado uma ‘aptidão’, uma ‘capacidade’ que ela procura aumentar; e inverte
por outro lado a energia, a potência que poderia resultar disso, e faz dela
uma relação de sujeição estrita. Se a exploração econômica separa a força e
o produto do trabalho, digamos que a coerção disciplinar estabelece no corpo
o elo coercitivo entre uma aptidão aumentada e uma dominação acentuada
(FOUCAULT, 2005, p. 119).

O poder possui uma positividade, o seu funcionamento não consiste no suplício ou


castigo do corpo humano, mas no aprimoramento contínuo de suas habilidades. Para que se
obtenha a eficácia de seu exercício, o poder necessita de um estado de liberdade, ou seja, ele
não se constitui numa relação de posse do corpo do indivíduo, visto que os seus efeitos se
exercem somente sobre sujeitos livres, com a finalidade de governar suas vidas e conduzir
suas ações. Esse mecanismo “[...] define como se pode ter o domínio sobre o corpo dos
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outros, não simplesmente para que faça o que se quer, mas para que operem como se quer, as
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técnicas, segundo a rapidez e a eficácia que se determina” (FOUCAULT, 2005, p. 119). A
essa forma específica de poder, Foucault (2005) chamou de disciplina ou poder disciplinar.
Os mecanismos de poder disciplinar estão estreitamente articulados com a produção
do saber científico. Toda relação de poder reclama um campo de conhecimento e o
conhecimento produzido assegura o exercício do poder, assim “o poder é produtor de
individualidades. O indivíduo é uma produção do poder e do saber” (MACHADO, 1996, p.
XIX). Com o nascimento das ciências humanas, a partir do século XIX, o homem torna-se
objeto de investigação e é capturado por relações de poder que o transformam em sujeito. É, a
partir daí, anunciada a “morte do homem” na modernidade (FOUCAULT, 2000, p. 534) e
testemunhado o nascimento do sujeito, resultado de uma relação entre um poder específico e
o saber correlacionado ao seu exercício, construído sócio-historicamente por meio de práticas
discursivas e portador dos sentidos e representações dos discursos que articula.
O sujeito do discurso não é uma entidade acabada ou definida, anterior ao discurso, é,
entretanto, o resultado de um processo contínuo de constituição que se dá através da
experiência com os discursos investidos de poder e saber. É um sujeito heterogêneo, limitado
pelos jogos de verdade de sua época e de sua cultura e determinado pelas práticas e
tecnologias desenvolvidas na sociedade, que fabricam identidades obrigatórias e estabelecem
as funções que devem desempenhar. E para o exercício da sua função-sujeito é necessário um
corpo que funcione como suporte para esse sujeito, nas suas interações com o outro e com o
ambiente que o cerca, constituindo também uma superfície para o exercício das relações de
poder.

2 A Felicidade midiatizada – Sorria, você está sendo obrigado!

De grande importância cultural, social, política e econômica, a mídia é uma presença


permanente e insistente em nosso cotidiano. Ela aparece em todos os aspectos e ambientes de
nossa vida privada e social, através de suas variadas formas de manifestação, seja ela
impressa ou eletrônica, para nos (in)formar, persuadir, aconselhar, educar, entreter,
emocionar, causar espanto ou para induzir ao consumo de mercadorias e/ou estilos de vida.
Participa, desse modo, ativamente de nossa experiência contemporânea.
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Ninguém escapa à mídia, somos capturados a todo instante por suas representações da
realidade e convocados a interpretar o real a partir dos sentidos que ela nos fornece. A prática
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midiática fabrica o sujeito e a sua capacidade de compreender o mundo, opera a massificação
de seus telespectadores, ouvintes ou leitores mediante os enunciados que veicula.

É no mundo mundano que a mídia opera de maneira mais significativa. Ela


filtra e molda realidades cotidianas, por meio de suas representações
singulares e múltiplas, fornecendo critérios, referência para a condução da
vida diária, para a produção e a manutenção do senso comum
(SILVERSTONE, 2002, p. 20).

A mídia tornou-se um competente instrumento do saber e do poder nas sociedades


contemporâneas, alcançando e conduzindo multidões atraídas pela busca de um discurso
verdadeiro (a vontade de verdade). Navarro (2010) afirma que o ambiente midiático “[...] é
um campo institucional em que o sujeito que nela fala é, ao mesmo tempo, aquele que pode
dizer a verdade dos fatos – pelo saber que detém sobre eles – e aquele que pode produzir os
fatos na sua verdade e submetê-los à realidade – pelo poder que exerce na sociedade” (p. 84).
Funciona como um suporte institucional de circulação dos discursos recebidos como
“verdadeiros” e socialmente aceitáveis, produzidos e redistribuídos por sujeitos autorizados e
legitimados pelos mecanismos de poder presentes na sociedade, constituindo-se assim, a
prática midiática, numa ordem discursiva (FOUCAULT, 2012) com a imposição de regras aos
sujeitos que nela falam e à organização dos seus enunciados.
A produção de discursos de todas as sociedades é marcada por relações de poder, que
desenvolvem procedimentos que controlam o que é dito, por quem é dito e de como esses
dizeres se distribuem na ordem discursiva. Limitam a produção dos discursos utilizando-se,
para isso, das interdições e rejeições; e selecionam os sujeitos falantes, pois ninguém entrará
na ordem do discurso se não atender a certas exigências (FOUCAULT, 2012). São
procedimentos de rarefação do discurso, a fim de se efetivar as relações de poder, desviar os
perigos e dominar seu acontecimento aleatório, ou seja, manter a ordem dos discursos
controlada.

O discurso é ao mesmo tempo soberano e prisioneiro. Aquilo ao qual o


homem cede, que o conduz em sua superfície translúcida, que age e pensa
por ele, que dita os enunciados necessários e autoriza os enunciados
possíveis. Mas também a exterioridade selvagem que precisa ser dominada
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por sistema de interditos e domesticada por fórmulas de legitimação; a fim


de conjurar sua imprevisibilidade e fixá-la numa ordem (ROUANET, 1996,
p. 13-14).
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Felicidade compõe a rede de enunciados autorizados nesta ordem discursiva midiática.
A mídia produz e faz circular discursos que convocam os indivíduos a buscarem
insistentemente esse contentamento e que prescrevem os modelos de pensar e agir para obtê-
lo. Pela grande repetição dos discursos sobre a felicidade em revistas, jornais, televisão, rádio,
livros ou internet, é possível perceber que o tema é bastante relevante para a comunicação de
massa, consistindo numa urgência contemporânea. Neste contexto, a mídia apresenta-se como
uma instituição de aconselhamentos, oferecendo os manuais que conduzem os
comportamentos humanos nas mais variadas situações cotidianas, a fim de se construir
continuamente um estado de satisfação.
Associados à ideia de que a felicidade é constitutiva de uma suposta natureza humana,
os seus múltiplos sentidos são sustentados por mecanismos de poder e reproduzidos na
atualidade através de diferentes práticas discursivas, tais como os exemplos:

[...] Projetos de lei, cuja proposta é a busca da felicidade como


responsabilidade do Estado; em propagandas que agenciam a ideia de
felicidade atrelada ao consumo; em livros de autoajuda que colocam a
felicidade como responsabilidade do indivíduo (autogestão do ‘eu’); em
discursos do campo da saúde que oferecem soluções imediatas, por meio da
medicalização das emoções; em gráficos que buscam mensurar o grau de
felicidade de um país ou cidade, que estabelecem a classificação dos países
mais felizes ou infelizes no mundo (FERNANDES JÚNIOR, 2016, p. 47).

A proliferação de discursos investidos de poder e saber, produzidos historicamente por


distintos estratos da sociedade e distribuídos por variados instrumentos da comunicação de
massa, fabricam subjetividades e consensos (os saberes compartilhados socialmente). Os
sujeitos são capturados para este ambiente de felicidade obrigatória e a todo tempo são
convocados a comprovar a sua satisfação, seja diante de uma máquina fotográfica ou celular
(sorria!) ou flagrados por algum aparelho de vigilância (Sorria: você está sendo filmado). A
reprodução de suas imagens deve demonstrar obrigatoriamente o seu contentamento, pois em
nossa contemporaneidade não há espaço para o mal estar, afinal, esse estado de melancolia
consiste atualmente numa patologia que deve ser dissimulada em nossas interações sociais e
medicalizada, conforme orientação dos discursos do campo da saúde.
Essa preocupação compartilhada socialmente não é exclusividade de nosso contexto
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atual, a história nos revela a repetição dos discursos sobre a felicidade humana e a atualização
de seus sentidos conforme à certa demanda de uma determinada época, ou seja, seus sentidos
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modificam-se a depender do cenário social, cultural, econômico e religioso de um momento
histórico.
Na antiguidade, a felicidade estava relacionada à sorte do indivíduo, ao acaso, ligada a
uma ideia de imprevisibilidade. Na era dominada pelo cristianismo [...] “todas as tentativas de
aproximação da felicidade em vida terrena são vistas como um sinal de nossas fraquezas e
imperfeições. Emerge assim o sentido da impossibilidade de ser feliz nesta vida”
(OLIVEIRA, 2015, p. 30), pois se acreditava que esse estado de completude somente seria
alcançado em outra vida, no encontro com Deus. Chegando à era moderna essa acepção se
transforma, passando a ser entendida pela sociedade da época como “algo que deveria estar ao
alcance de todos e ser efetivada/vivida no plano terreno” (FERNANDES JÚNIOR, 2016, p.
50). A partir do movimento iluminista a felicidade se torna um direito de todos, “o homem
nasce para ser feliz [..] e é exatamente por meio desta percepção que insurgem as concepções
da felicidade como um direito, fato resultante de inúmeras mudanças empreendidas com
relação ao pensamento e a compreensão do mundo” (OLIVEIRA, 2015, p. 31).
Fazendo esse breve percurso histórico, voltamos à nossa contemporaneidade, cujas
sociedades são conduzidas pelas leis do capitalismo industrial que privilegia a produtividade
do indivíduo e instaura a ordem da busca continua pelos modelos de felicidade que produz.
Entendida como um direito numa época recente, hoje a conquista da felicidade transforma-se
em um dever, ou melhor, converte-se em uma obrigação de “ser”, adequando-se a um padrão
de comportamento ou estético, e em uma obrigação de “ter”, participando ativamente do
mercado de consumo por meio da aquisição dos produtos ofertados.

3 A Felicidade corporizada – O Guia da Boa Forma

A revista Boa Forma surgiu no ano de 1986 como um encarte da revista Saúde! e em
1988, devido à boa aceitação dos leitores, passou a circular como uma publicação autônoma e
mensal da editora Abril. Inicialmente técnica e voltada para os profissionais de educação
física, a revista foi reformulada para um público alvo não especialista e feminino (CASTRO,
2007). Desde então se definiu como um veículo dedicado a promover os cuidados com o
corpo, saúde e beleza, trazendo em suas capas imagens de mulheres reconhecidas na mídia
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que auxiliam na divulgação dos padrões estéticos vigentes na sociedade.


Analisaremos a seguir algumas capas publicadas em diferentes épocas, buscando
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captar, em suas trajetórias, o encontro da felicidade prometida com a boa forma corporal.

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Partiremos dos discursos e imagens que refletem a nova tendência de comportamento de
nossa sociedade narcisista, a supervalorização do corpo que o transforma “numa entidade tão
radiosa quanto outrora fora a alma” (SANT'ANNA, 2000, p. 237), capaz de propiciar um
estado de satisfação plena mediante sua submissão a técnicas disciplinares.
No momento histórico em que se intensifica o culto ao corpo combinado com a
expansão das academias de ginástica, ambiente antes restrito aos esportistas profissionais, a
revista Boa Forma nasce para atender a uma nova demanda social, popularizando o saber
cientifico sobre esporte/saúde e promovendo novos estilos de vida para a fabricação de novos
sujeitos, como observaremos mais a diante.

Figura 1 – Revista Boa Forma – Edições dos anos 1986, 1987 e 1988

Na primeira capa de nossa figura, Boa Forma ainda como segmentação da revista
Saúde!, temos a atriz nacionalmente conhecida Ioná Magalhães, com 51 anos na época da
publicação, autorizada a falar nesta ordem discursiva midiática sobre o seu programa de
exercícios “para manter o vigor e a juventude”. Ela não detém o saber técnico para falar sobre
o tema, visto que não é uma especialista no campo da medicina e do esporte, mas o seu corpo
trabalhado pelos exercícios físicos autoriza a sua fala. A sua imagem é seguida por outros
enunciados que orientam os sujeitos em sua busca por uma vida saudável, sempre associada
ao modelamento de seus corpos. Na capa seguinte se repete a mesma preocupação em
prolongar a juventude do corpo - “exercícios completos garantia de vitalidade para você” - e
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traz também discursos que objetivam reunir num mesmo grupo uma diversidade de sujeitos -
“ginástica especial para donas-de-casa, executivos, idosos, cardíacos e gente que guia muito”
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- para promover a padronização de seus corpos por meio de técnicas disciplinares.

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Ilustrando a nossa terceira capa temos Luma de Oliveira, símbolo de beleza e
sensualidade propagado reiteradamente pela mídia. A atriz e modelo representa o padrão de
corpo que deve ser perseguido, e para conduzir as mulheres nesse caminho ela contribui com
o relato de sua experiência no ciclismo, indicando essa prática como uma atividade que pode
ser adotada em nossa rotina. Percebemos também o enunciado “três histórias com final feliz:
enfim magros”, revelando que a conquista de um corpo magro, obedecendo assim ao padrão
socialmente estabelecido, está relacionada à conquista da felicidade. É possível observar nessa
capa, anúncio de depoimentos de atletas profissionais de variadas modalidades esportivas,
construindo discursos de autoridade com a intenção de difundir a prática da atividade física.
Analisando essas capas da Boa Forma, dos anos de 1986 a 1988, verificamos uma
descontinuidade de seus discursos na tentativa de se adequar às transformações do cenário
social e ampliar o seu público leitor. Inicialmente a revista tematizava a estética ligada ao
universo fitness, com discursos técnicos voltados principalmente para os profissionais da
educação física. A capa de 1988 já anuncia discretamente uma transformação do enfoque da
revista, que virá nos próximos anos. Mudam a paisagem da capa e a vestimenta do corpo (os
colantes saem de cena), a atividade física ultrapassa os muros dos ambientes restritos aos
atletas e se expande para as ruas, as praias ou para as próprias casas dos indivíduos,
convocando toda a população a fazer parte desta ordem. Castro (2007) nos adianta que
“parece que o culto ao corpo chegou, no início dos anos 80, para ficar e a mídia, como
eficiente catalisador de tendências comportamentais, o assimilou rapidamente” (p. 63-64).
Os enunciados se atualizam constituindo novas práticas discursivas sustentadas por
relações de poder e saber. Neste novo cenário intensifica-se a preocupação com a saúde e a
aparência corporal, aliada à obrigatoriedade da busca pela felicidade. Na sociedade
contemporânea, caracterizada pelo enfraquecimento da autonomia do individuo para a
condução de sua própria vida, a revista Boa Forma se transforma em mais um recurso de
autoajuda acessível na mídia conselheira, como veremos a seguir.
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Figura 2 – Revista Boa Forma – Edição nº 343 – Maio de 2015

Instaura-se um novo padrão de felicidade, cuja conquista é resultado da dedicação


ininterrupta do sujeito ao seu corpo. Examinando essa capa mais atual, que ilustra a atriz
nacionalmente conhecida Sheron Menezzes, percebemos enunciados que prescrevem diversas
práticas para o embelezamento do corpo (treinos, aparelhos estéticos e dietas com reduzidas
calorias) e promovem a importância do sorriso - “saiba por que o sorriso vale por um
tratamento de beleza”. A revista pretende convencer os seus leitores de que quanto mais feliz
o sujeito estiver mais belo ele será, e para isto ela apresenta o caminho com apenas 12 passos
para tonificar o corpo e dessa forma tornar-se feliz.
A Boa Forma prescreve um método de construção da satisfação do indivíduo aliada à
construção de um corpo conforme à forma física valorizada socialmente. Para isso promove
práticas discursivas que fabricam subjetividades e padronizam os sujeitos, capturados por
relações de poder que estabelecem padrões de comportamentos e estilos de vida. Devido ao
desejo pelo bem-estar e pela visibilidade de seus corpos “sarados e saudáveis”, o sujeito é
atraído para esse campo discursivo, onde é obrigado a obedecer a suas regras históricas e
reconhecer suas verdades.
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Figura 3 – Revista Boa Forma – Edição nº 359 – Setembro de 2016

Giovanna Ewbank estampa a nossa última capa apresentando o seu corpo aprimorado
pela prática do crossfit, nova modalidade de esporte inspirada em treinamentos de militares
norte-americanos com exercícios realizados em alta intensidade. Em decorrência da sociedade
capitalista que confere uma exagerada importância à produtividade do indivíduo, as práticas
sociais fabricam sujeitos de altas performances para aumentar, dessa forma, a utilidade de seu
corpo. É o investimento político do corpo para a sua utilização econômica (FOUCAULT,
2005), ou seja, a disciplina o marca multiplicando suas forças e aprofundando a sua
obediência, assim como explica Machado (1996) “É o diagrama de um poder que não atua do
exterior, mas trabalha o corpo dos homens, [...] produz seu comportamento, enfim, fabrica o
tipo de homem necessário ao funcionamento e manutenção da sociedade industrial [...]” (p.
XVII).
E o tipo de homem necessário para a manutenção da sociedade capitalista é aquele
mais produtivo e feliz, que serve duplamente a esse sistema de consumo nas suas horas de
trabalho e de lazer, consumindo seus produtos e suas tendencias comportamentais. A revista
funciona como um veículo de transmissão de saberes para intensificar as relações de poder,
que fabricam subjetividades e verdades.
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Considerações Finais

Neste campo de forças, o corpo é percebido como um lugar de controle social. As


relações de poder e saber o alcançam para controlá-lo, discipliná-lo e incitá-lo a certas
condutas, cujo efeito desse investimento é uma nova subjetividade. O poder fabrica o sujeito,
com o amparo de um determinado campo de saber, e o interessante nesta relação não é o
resultado de uma ação desse sujeito mas o seu desenvolvimento, como ele opera em
sociedade adotando os modelos de comportamentos que a disciplina institui. O sujeito é
encorajado a agir mas, ao mesmo tempo, é cobrada a eficácia de suas ações.
Para o aproveitamento das potencialidades do sujeito nascem nas sociedades
contemporâneas os manuais de autoajuda, tendo como objetivo a promoção de um sistema de
aperfeiçoamento das capacidades dos indivíduos em suas atividades cotidianas. Os manuais
consistem num receituário de condutas que deverão ser adotadas pelo sujeito para a
construção de seu bem-estar a partir de um esforço individual. Abordam a temática da
felicidade como uma obrigação e a mídia vem participar ativamente desse processo de
disciplinarização dos sujeitos, publicizando os discursos que conduzem vidas na atualidade e
prometem a felicidade conquistada a partir dos cuidados para se construir uma determinada
forma corporal, aquela que está de acordo com o padrão estético vigente e associada a um
ideal de saúde.
Dessa forma, grande parte das preocupações contemporâneas passa a ser centralizadas
no corpo: quanto ele pesa, como ele se apresenta, o que ele veste, a idade que ele aparenta,
etc. Por trás disso, há uma indústria da beleza e do bem-estar enriquecendo com essas
preocupações cotidianas e promovendo novas técnicas para manter esse corpo submisso e
consumista, preso na constante busca pela felicidade.

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GT7 – INFORMAÇÃO, CULTURA E PRÁTICAS SOCIAIS

UM CEMITÉRIO QUE FAZ SEU SEGUIDOR MORRER DE RIR: ESTUDO DE


CASO DA GESTÃO DE MARCA DO JARDIM DA RESSURREIÇÃO NO
FACEBOOK

Maria Naftally Dantas Barbosa (UFERSA)


Washington Sales do Monte (UFS)

Introdução

Umas das ferramentas que vem se destacando cada vez mais quando se fala em
promover uma marca são as mídias sociais. A internet modificou a forma como as pessoas se
comunicam e interagem entre si, e, através dela, as redes sociais expandiram e passaram a
participar efetivamente do cotidiano das empresas, buscando atingir e atrair o maior público
possível em menos tempo.
A comunicação encontra-se mais rápida e a quantidade de mensagens enviadas e
recebidas alcança um maior número de pessoas. Em decorrência dessa era da informação, é
fundamental a utilização de novas formas de interação e comunicação. A cibercultura e o
crescimento das novas tecnologias têm reinventado novos comportamentos, ações, valores e
formas de relacionamento na sociedade (LEVÝ, 1999).
Entre essa nova relação, encontra-se a interação social por meio das redes sociais.
Nesse momento, as novas mídias favorecem a reorganização de grupos, o compartilhamento
de emoções, convivência e também a formação comunitária. Dessa forma, é possível ter em
mente que, para o meio organizacional, as redes sociais hoje são acessíveis a qualquer
empresa, que venda e disponibilize os mais variados tipos de produtos ou serviços, até mesmo
àqueles serviços que causam temor e desconforto, como é o caso dos cemitérios.
A página do Cemitério Jardim Ressurreição, localizado em Teresina (PI), vem
conquistando fãs e likes na internet por causa de suas piadas e “sacadas” bem humoradas
postadas no Facebook. Citando os pequenos sofrimentos do dia a dia, postagens satirizando
velórios e esculturas de túmulos, a página já conta com muitos seguidores e avaliações
positivas de seus visitantes. A fanpage aborda o assunto morte de um jeito irreverente e leve,
conquistando o público e aumentando o relacionamento com seus seguidores.
957

Kotler e Keller (2006, p.369) classificam os serviços e produtos funerários como bens
não procurados, visto que “são bens que o consumidor não conhece ou normalmente não
Página

pensa em comprar”. Diante desse fato, lançamos seguinte problemática: como o cemitério

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Jardim da Ressurreição tem atraído seguidores para sua página no facebook e agregando valor
à sua marca visto ser um serviço considerado indesejável?
Buscando esclarecer a problemática, o artigo tem como objetivo principal identificar
quais as estratégias utilizadas no facebook do Cemitério Jardim da Ressurreição para atrair o
público e agregar valor à marca. Além de apresentar elementos da gestão de marca e de
relacionamento nas redes sociais; destacar os principais apelos utilizados pela marca em seus
posts e, por último, averiguar como é realizada a interação entre Cemitério/usuários e o
engajamento com seus seguidores.
Esse estudo preencherá algumas lacunas existentes na pesquisa local sobre o uso das
redes sociais nas empresas, considerando que essas ferramentas são bastante eficazes para
promoção da imagem da marca e também para gerar engajamento com o público em geral,
uma vez que o uso da internet vem se expandindo cada vez mais entre jovens no Brasil no
mundo. A pesquisa também abordará um tema que ainda causa desconforto na sociedade –
morte e cemitérios – o que contribuirá para desconstruir esse tabu e tornar o assunto mais
discutido e comum.

1 Breve discussão teórica

As discurssãos desse artigo iniciam-se entorno dos conceitos que envolvem a Gestão
de Marcas nas redes sociais, dando uma ênfase maior na rede social Facebook. Após as
fundamentações teóricas será realizada a análise de conteúdo e apresentação dos seus
resultados.
Pinho (1996, p. 21) define marca como “um elemento preponderante na conformação
do produto ou serviço ao consumidor”. A marca pode ser considerada a parte valiosa da
empresa, em decorrência do público repetir seu nome diversas vezes, memorizando
instantaneamente, desse modo, ela se torna a sua representante oficial perante os clientes.
Dessa forma, devido a essa tamanha importância que a marca agrega, as empresas devem
investir em estratégias que a elevem, colocando-a como foco da gestão empresarial.
Considerando que a marca é o principal patrimônio de uma organização e seu
elemento mais competitivo, cada vez mais, ela está permeando a filosofia de gestão das
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empresas. O que antes era uma preocupação secundária, hoje, tornou-se imprescindível para
uma organização empresarial que almeja ser bem-sucedida. Com isso, uma marca passa a
Página

significar não apenas um produto ou serviço, mas incorpora um conjunto de valores e

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atributos tangíveis e intangíveis relevantes para o consumidor e que contribuem para
diferenciá-la daquelas que são similares. Assim, ao adquirir um produto, o consumidor não
compra apenas um bem, mas todo o conjunto de valores e atributos da marca. (PINHO, 1996).
Assim, entende-se que, a partir da criação dos valores atribuídos à marca, a relação
entre empresa/consumidor se torna ainda mais estreita, tratando-se de confiança depositada,
aliada a outras características como a qualidade do produto ou serviço e o bem-estar que ele
vai causar. É um conjunto de valores e benefícios percebidos e apreciados.
Uma das ferramentas mais utilizadas atualmente para divulgar uma marca são as redes
sociais, já que segundo pesquisa divulgada pela eMarketer144, até o mês de junho de 2016, o
Brasil tinha 93,2 milhões de usuários mensais ativos (acessam uma rede social ao menos uma
vez por mês). Sendo assim, as empresas têm despertadoo interesse no uso das sociais para
gerenciar suas marcas e promover produtos e serviços e, ainda, se relacionar com o público.
Segundo Recuero (2009, p. 24), “uma rede social é definida como um conjunto de dois
elementos: atores (pessoas, instituições ou grupos; os nós da rede) e suas conexões (interações
ou laços sociais)”, ou seja, são pessoas que se agrupam “virtualmente” pelos mesmos
interesses e gostos, permitindo que os usuários compartilhem opiniões, ideias, experiências,
hábitos e amigos em um perfil de sites de relacionamento. Para Holloman (2014), as redes
sociais estão alterando a forma como a comunicação e o marketing funcionam na atualidade,
ao mesmo tempo em que modificam, também, a maneira como as pessoas querem se conectar
com as marcas de seu interesse. Por isso, um gerenciamento eficaz nas redes sociais é
essencial para que as empresas, de qualquer nicho de mercado, tornem-se conhecidas,
lembradas e se relacionem com seus clientes.
Segundo Costa (2016), a rede social Facebook, criada em 2004 por Mark Zuckerberg,
vem sendo uma ferramenta de comunicação e interação mercadológica bem eficaz, reunindo
em sua estrutura diversas formas de utilização e experiências do usuário. Nesse momento,
tanto a presença das empresas nas redes sociais aumentou, como também houve um crescente
engajamento das organizações com seus clientes, reforçando e facilitando o relacionamento
entre eles.
Pode-se concluir sobre esse tópico que um gerenciamento de marcas no Facebook é de
grande importância, para que as empresas possam passar para os clientes a essência do seu
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144
Empresa especializada em pesquisas envolvendo o mercado digital.

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negócio e o valor da sua marca, tornando-as uma atividade fundamental no cotidiano
organizacional.

Metodologia

A pesquisa possui caráter predominantemente qualitativo e constitui-se em um estudo


exploratório, de natureza aplicada. Esse tipo de pesquisa que proporciona maior familiaridade
com o problema, de forma a esclarecê-lo ou construir hipóteses e envolve etapas como
levantamento bibliográfico, (GIL, 2007).
A técnica de pesquisa utilizada foi análise de conteúdo. “O objetivo da análise de
conteúdo é compreender criticamente o sentido das comunicações, seu conteúdo manifesto ou
latente, as significações explícitas ou ocultas” (CHIZZOTTI, 2006, p. 98). Como dados de
escolhidos para análise, foram esclhidos as postagens das datas comerativas, especiais e
temáticas de grande repercussão no país no período de janeiro a novembro de 2016. A
justificativa para essa escolha foram conteúdos mais elaborados (posts) e a interação com os
seguidores que reagem às publicações.
Para compressão melhor desse processo de análise de conteúdo, ele foi dividido em
cinco etapas.

Quadro 1 – Etapas para do processo para análise de conteúdo


ETAPA MARCADOR OBJETIVO
1 Seleção dos conteúdos Selecionar conteúdos relacionados a datas
(Posts) comemorativas.
2 Categorização Agrupar dados considerando a parte comum
existente entre eles
3 Descrição Produzir texto contendo a análise dos dados
categorizados.
4 Interpretação Apresentar uma compreensão dos conteúdos
analisados.
Fonte: Adaptado de Maraes (1999); Silva e Fossá (2013)

Através técnica de análise de contepudo, objetivou-se compreender os aspectos


contidos nas postagens da fanpage, para identificar quais as estratégias utilizadas nos
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centeúdos postados pelo Cemitério Jardim da Ressurreição para atrair o público e agregar
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valor à marca.

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3 Discussões e Resultados

A página Cemitério Jardim da Ressurreição foi criada no ano de 2014, e após 2 anos
no ar já conta com mais de 136 mil likes. A fanpage chamou a atenção, principalmente do
público jovem, devido às suas publicações divertidas e uma linguagem leve. Seu conteúdo
possui um teor bem humorado que “quebra” as superstições que envolvem o tema morte,
tornando o assunto mais natural. Esses pontos são percebidos assim que o internauta começa a
navegar na página do cemitério.
Segundo Eudes Jr. (2016), diretor da agência de publicidade responsável pela
comunicação do cemitério, a ideia inicial era fazer um experimento em busca de conquistar
mais curtidas na página e torna-la mais conhecida. Como os posts institucionais não atraíam
likes, por se tratar de um serviço indesejável e também por carregar um tom melancólico, a
ideia foi mudar de estratégia e criar um conteúdo bem mais descontraído para chamar a
atenção das pessoas para a fanpage.145 Com essa nova estratégia em prática, a página deixou
as publicações motivacionais e deu lugar a posts divertidos, satirizando assuntos do cotidiano,
acontecimentos de grande repercussão na atualidade, além de datas comemorativas. Dessa
forma, a fanpage se espalhou, ganhou notoriedade e passou a ganhar mais curtidas e
admiradores a cada dia.
No Cemitério Jardim da Ressurreição, a aposta inicial foi a criação de posts que
faziam menção a datas comemorativas, com isso, essa nova estratégia de conteúdo teve seu
marco inicial no ano de 2015, cuja postagem de maior engajamento abordou o “Dia do
Amigo”:

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145
Disponível em <https://www.buzzfeed.com/carlosadea/precisamos-falar-sobre-o-cemitario-jardim-da-ress-
x1p3>. Acesso em 12 de Novembro.

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Imagem 01 – Mensagem do “Dia do Amigo”

Fonte: Fanpage Cemitério Jardim da Ressurreição, 2015.

A publicação faz referência aos vários tipos de amigos: aquele que “pergunta o que
acabei de falar”, “passa mal na balada”, “é meiga”, “faz a tímida”, “cega pelo boy” e “só sabe
dormir”. Com uma linguagem jovem e utilizando esculturas de túmulos, a postagem recebeu
mais de 4 mil curtidas e mais de 3 mil comentários, além de mais de 2 mil
compartilhamentos. Além do teor divertido da postagem, foi possível perceber que os
seguidores da página entraram na brincadeira e mencionaram seus amigos nos comentários, o
que aumentou significativamente o alcance da publicação, e assim tornando a página mais
conhecida.
Durante o ano de 2016, a fanpage também abordou com frequência alguns assuntos de
grande repercussão da atualidade de forma engraçada e criativa. É o caso da liberação do app
Pokémon Go no Brasil e a expressão Bela, Recatada e do Lar, como veremos nas imagens a
seguir:
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Imagem 02 – Mensagem do “Pokémon Go”

Fonte: Fanpage Cemitério Jardim da Ressurreição, 2016.

A imagem 02 faz referência a liberação do aplicativo Pokémon Go no Brasil, em


agosto de 2016. Na época, a notícia foi muito comentada e o jogo baixado por grande parte da
população brasileira, entre crianças, jovens e adultos. O jogo consiste em capturar pokémons
em pontos estratégicos de várias cidades do Brasil e muitas empresas utilizaram a ferramenta
para atrair as pessoas para seus estabelecimentos, inclusive o Cemitério Jardim da
Ressurreição. Na publicação continha a chamada “venha caçar pokémon aqui!” e recebeu
cerca de 2 mil curtidas.

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Imagem 03 – Mensagem do “Bela, Recatada e do Lar”

Fonte: Fanpage Cemitério Jardim da Ressurreição, 2016.

Por sua vez, a imagem 03 trata de uma ironia à Revista Veja que descreveu a atual
primeira-dama do Brasil como “bela, recatada e do lar”. A frase gerou muitas críticas,
principalmente por parte do público feminino por ter sido interpretada com uma expressão de
cunho maxista. Devido a grande repercussão da polêmica, o Jardim da Ressurreição
aproveitou a oportunidade e abordou o tema, satirizando-o com a imagem de uma estátua
seminua junto à frase “bela, recatada e do nosso lar”.
Outro ponto discutido foi em relação aos apelos publicitários utilizados no conteúdo
da fanpage. Os apelos publicitários correspondem às estratégias criativas utilizadas nas
mensagens de anúncios ou campanhas para persuadir o público e influenciá-los a realizar uma
escolha e optar por um determinado produto ou serviço. George e Michael Belch (2008)
caracterizaram os apelos em três tipos: racionais, emocionais e morais. Nisso, por meio do
levantamento dos dados dessa pesquisa, foi percebido que o Cemitério Jardim da
Ressurreição apresenta em suas publicações um conjunto de apelos envolvendo os três tipos
citados pelos autores.
Os apelos racionais são mensagens que passam uma informação de interesse dos
consumidores referente à organização ou a um serviço em específico. Está relacionado às
características, razões e benefícios que a marca pode oferecer. Segundo George e Michel
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Belch (2008, p. 267):


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Apelos baseados na razão tendem a ser informativos e os anunciantes que os
usam geralmente tentam convencer os consumidores de que seu produto ou
serviço possui atributos(s) específico(s) ou providenciam um benefício
específico que satisfaz suas necessidades.

Nessa perspectiva, o Jardim da Ressurreição utiliza em suas postagens apelos


informativos que buscam persuadir o público, destacando suas vantagens competitivas e seus
atributos principais, como é possível ver na imagem a seguir:

Imagem 04 – Mensagem do “Habemus Crematorium”

Fonte: Fanpage Cemitério Jardim da Ressurreição, 2016.

A postagem acima apresenta um teor informativo em que faz referência à inauguração


do primeiro crematório da cidade do Piauí, localizado no Jardim da Ressurreição. Nesse caso,
o serviço torna-se o seu grande diferencial, tratando-se, assim, de uma vantagem competitiva
entre os demais cemitérios da cidade.
O apelo moral é um tipo de apelo que está relacionado a uma ação generalizada para o
bem comum da sociedade. De acordo com George e Michael Belch (2008), a forma de
persuasão através das mensagens de orientação social, encontra-se sentimentos como
aprovação, respeito, reconhecimento e status. É possível encontrar constantemente nas
postagens do Cemitério Jardim da Ressurreição postagens voltadas à conscientização,
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estimulando o respeito e a boa convivência, como se pode ver nas imagens 06 e 07.
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Imagens 05 e 06 – Mensagem do “Dia do Orgulho LGBT” e “Dia de Prevenção do Suicídio”

Fonte: Fanpage Cemitério Jardim da Ressurreição, 2016.

A imagem 05 trata-se de uma postagem em comemoração ao Dia do Orgulho LGBT


(Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros). A imagem traz duas
estátuas femininas representando o amor entre pessoas do mesmo sexo e celebra o respeito à
diversidade sexual, tema de extrema importância na sociedade atual. A imagem 06 levanta a
bandeira em favor do Dia Mundial de Prevenção ao Suicídio. Na imagem foi usada a
fotografia de uma mulher triste seguida da frase “’Ás vezes, o Grito! Berro! Urro!’ É da alma,
pedindo socorro”. As expressões “grito”, “berro” e “urro” são gírias constantemente utilizadas
pelos jovens na internet para representar emoções intensas, como rir alto. Pode-se entender,
então, que a postagem tinha o objetivo de alertar as pessoas sobre o fato, que também ainda é
pouco abordado atualmente, e estimular a procura por ajuda profissional.
Por sua vez, os apelos do tipo emocional têm o propósito de despertar algum
sentimento no consumidor. George e Michael Belch (2008) definem como necessidades
psicológicas que um indivíduo apresenta sobre um produto ou serviço ou mesmo a relação
com uma marca específica. Ainda para os autores sentimentos ou estados pessoais como o
amor, alegria, confiança e segurança são os apelos normalmente utilizados para persuadir o
público em um nível emocional. O apelo emocional está presente em quase todas as
966

publicações do Cemitério Jardim da Ressurreição através de um conteúdo com teor


humorístico e divertido, aliás, essa foi a principal estratégia utilizada pelos gerenciadores da
Página

fanpage para torná-la mais conhecida e alcançar mais pessoas.

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Para Washington Olivetto (2003 apud FEDRIZZI, 2003), o humor acaba se tornando
um escape para os sofrimentos cotidianos, como uma forma de fugir da realidade e manter o
aspecto lúdico e fantasioso. De acordo com o publicitário, o humor na propaganda está em
evidencia e atualmente é quase um serviço de utilidade pública, principalmente em momentos
de crise. Nesse caso, o humor é um sinalizador de emoções, demonstrando que há alguém que
passa por momentos difíceis, com preocupações e medos, mas que como uma forma de
levantar e seguir em frente, acaba rindo de suas próprias desgraças (FEDRIZZI, 2003).
Durante a análise da página do Cemitério foram encontradas postagens que
satirizavam as angústias do dia a dia das pessoas, justamente como forma de confortá-las e
causar uma espécie de ânimo.

Imagem 07 – Mensagem sobre pequenos sofrimentos do dia

Fonte: Fanpage Cemitério Jardim da Ressurreição, 2016.

A imagem acima aborda bem a ideia de utilizar o humor para retratar os pequenos
sofrimentos do cotidiano como uma forma de fuga da realidade. A figura 07 mostra a imagem
de uma estátua aparentemente triste e com algumas manchas brancas por cima, simbolizando
dejetos de pássaro, com a seguinte frase “um dia você é pombo. No outro estátua”. É possível
ver que a postagem tinha o objetivo de passar a mensagem de que a vida é cheias de altos
(pombo) e baixos (estátua) e que nela tudo pode mudar. A postagem atingiu 1,4 mil curtidas e
967

teve sua mensagem bem interpretada pelos seguidores, recebendo comentários como “Ontem
eu fui estátua, mas hj eu sou pomba“.
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Considerações finais

A pesquisa foi realizada a partir de um estudo de caso na fanpage do Facebook do


Cemitério Jardim da Ressurreição. Percebe-se que a empresa utiliza no conteúdo de suas
postagens apelos racionais e morais ao mesmo tempo em que prioriza e dar maior destaque ao
humor, utilizando uma linguagem jovem, inclusive com memes e imagens divertidas. Foi
possível ver que o fator humorístico foi essencial para que o Jardim da Ressurreição
conquistassem mais seguidores e atraíssem mais likes em suas publicações, por se tratar de
uma quebra de tabu e abordar o tema morte de uma forma leve e descontraída.
Outro ponto analisado e que também contribuiu para o sucesso do Jardim da
Ressurreição no Facebook foi a relação entre cemitério/usuário. A forma como a página
interage com seus seguidores, com respostas rápidas e engraçadas, às vezes até promovendo
um diálogo, contribui para um bom feedback do cliente, criando um laço afetivo com fanpage
e fortalecendo a marca.
A pesquisa conseguiu atingir os objetivos previamente estabelecidose e os resultados
obtidos na análise servirão para futuros trabalhos acadêmicos sobre a gestão de marcas, redes
sociais e até o uso do humor na publicidade, inclusive para divulgação de produtos e serviços
pouco conhecidos e aceitos.

Referências

BELCH, George E.; BELCH, Michael A. Propaganda e Promoção: Uma Perspectiva da


Comunicação Integrada de Marketing. São Paulo: McGraw-Hill, 2008.

CASTELLS, Manuel. A Sociedade em Rede. 4. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2000.

CHIZZOTTI, A. Pesquisa em ciências humanas e sociais. 8. ed. São Paulo: Cortez, 2006.

COSTA, Nayara. O Facebook como ferramenta de Comunicação da Marca Origens.


Disponível em:
<http://www.uvv.br/edital_doc/O%20FACEBOOK%20COMO%20FERRAMENTA%20DE%20CO
MUNICA%C3%87%C3%83O%20DA%20MARCA%20ORIGENS.pdf>. Acesso em: 19. nov.
2016.
968

FEDRIZZI, Alfredo. O Humor Abre Corações. E Bolsos. Rio de Janeiro: Negócio, 2003.

GIL, A. C. Como elaborar projetos de pesquisa. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2007.
Página

HOLLOMAN, Christer. MBA das Mídias Sociais. São Paulo: Nobel, 2014.

ISBN: 978-85-7621-221-8
KOTLER, P; KELLER, K. Administração de marketing. São Paulo: Pearson Prentice Hall,
2006.

LEVÝ, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Editora 34 LTDA (edição brasileira), 1999.

PINHO, José Benedito. O Poder das Marcas. 3. ed. São Paulo: Summus Editora, 1996.

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GT7 – INFORMAÇÃO, CULTURA E PRÁTICAS SOCIAIS

DISCURSOS E EMOÇÕES EM DISPUTA: ANÁLISE DOS COMENTÁRIOS SOBRE


O IMPEACHMENT DE DILMA ROUSSEFF NA PÁGINA DA VEJA NO FACEBOOK

Geilson Fernandes de Oliveira146


Maria das Graças Pinto Coelho147

1 introdução

Após quase 24 anos, o Brasil, país com um regime democrático ainda jovem, passou
no ano de 2016 pelo seu segundo processo de impeachment de seus presidentes. O primeiro
ocorreu nos últimos meses do ano de 1992, sendo o primeiro processo de impeachment não só
do Brasil, mas também da América Latina pós-regimes ditatoriais, quando o então presidente
Fernando Collor de Melo, mesmo tendo renunciado diante das acusações de corrupção, foi
julgado pelos parlamentares em plenário para votação do impeachment, os quais decidiram
que o presidente não poderia ficar isento das denúncias e evitar o processo de cassação devido
a apresentação de carta de renúncia. Uma vez julgado, Collor ficou inelegível por 8 anos.
Pouco mais de duas décadas depois, Dilma Rousseff, presidente democraticamente eleita para
o seu segundo mandando após as eleições majoritárias de 2014, também enfrentou um
processo de impeachment, aceito pela Câmara dos Deputados em 17 de abril de 2016, com
votação favorável finalizada no Senado em 31 de agosto do mesmo ano.
Com um clima político que já vinha se anunciando desde as jornadas de junho de 2013
e, no ano seguinte, a disputa das eleições em 2014, onde a rivalidade e o conflito já eram
evidentes tanto entre as agremiações partidárias, quanto entre os seus militantes e a população
de uma forma mais geral, o processo de impeachment deu vazão a uma gama de emoções e
sentimentos que passaram a ser efetivamente expressos pelos atores sociais nos mais diversos
dispositivos midiáticos de comunicação, tais como as redes sociais148 - verdadeiros
fenômenos na sociedade brasileira. Nelas, além das vozes jornalísticas que enunciavam sobre
o impeachment, como ocorria nos perfis oficiais de jornais e revistas em redes como o

146
Doutorando em Estudos da Mídia pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos da Mídia (PPGEM), da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Email: geilson_fernandes@hotmail.com.
147
970

Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Docente e pesquisadora
do Departamento de Comunicação Social e dos Programas de Pós-Graduação em Estudos da Mídia e em
Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Email: gpcoelho8@gmail.com.
148
Recuero (2009) define rede social como um conjunto composto de dois elementos: os atores (instituições,
Página

pessoas, ou os grupos, os quais comporiam os nós da rede) e as suas conexões (realizada por meio das interações
ou dos laços sociais estabelecidos).

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facebook149 e twitter150, também havia um intenso processo de conversação e debate por parte
dos sujeitos comuns, isto é, os atores das/nas redes. Assim, logo que eram produzidos posts151
nos perfis dos veículos jornalísticos, um grande volume de comentários também era
produzido, os quais evidenciavam estados de ânimo nem sempre semelhantes.
Tomando como base essa produção expressiva de comentários produzidos pelos atores
nas redes sociais, a partir do acontecimento impeachment de Dilma Rousseff, propõe-se neste
artigo o exercício de análise destes comentários. Com efeito, elegem-se como objeto empírico
as discussões realizadas a partir de um post da Revista Veja em seu perfil oficial152 no
facebook. Tratam-se dos comentários da postagem intitulada “URGENTE: Dilma sofre
impeachment e PT sai do governo após 13 anos”, a qual conforme levantamento e coleta de
dados153 está entre as mais comentadas do dia da cassação de Dilma (um total de 4.249
comentários). Estes são eleitos como objeto empírico de análise pela sua expressividade e
pelo seu potencial mobilizador de sentidos e subjetividades, os quais revelam em um primeiro
olhar a irrupção de emoções e sentimento que parecem estar em um campo de lutas.
Metodologicamente, parte-se das premissas da arquegenealogia foucaultiana
(FOUCAULT, 2013, 2013a, 2011), considerando as conversações estabelecidas nos
comentários como práticas discursivas que compõem o arquivo de um dado momento,
constituído por enunciados que se estabelecem a partir das relações de saber e poder e se dão
a partir de condições de possibilidades históricas. Seguindo esta perspectiva, uma vez
coletados os dados, passa-se a um esquadriamento dos comentários, que são catalogados a
partir de um viés das emoções, considerando o interesse em investigar sobre os estados de
ânimos que emergem a partir das conversações, seguindo os rastros de Aristóteles, para quem
não há discurso sem pathos. Destaca-se ainda, neste sentido, o pressuposto aventado por
Courtine (2016), respondendo sobre como abordar o problema das emoções na perspectiva do
discurso, quando afirma que aquilo “o que produz os laços entre as emoções e o discurso é o
caráter coletivo de muitas dessas emoções, o caráter histórico de todas elas, as modalidades

149
Site de rede social lançado em 2004, o qual demonstra até hoje crescimento e faturamento expressivos. No
primeiro trimestre de 2017, atingiu a marca de 1,94 bilhões de usuários ativos em todo o mundo, sendo a rede
social mais utilizada no Brasil.
150
Rede social e microblogging que permite aos atores sociais enviar e receber informações por meio do seu web
971

site ou softwares específicos.


151
Mensagem ou conteúdo publicado em uma página da internet.
152
https://www.facebook.com/Veja/.
153
A coleta dos dados analisados neste artigo foi realizada pelo Laboratório de Estudos sobre Imagem e
Página

Cibercultura (LABIC), do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Espírito Santo


(UFES), sob coordenação do professor Dr. Fábio Malini, a quem reforçamos o nosso agradecimento.

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discursivas e a dimensão inconsciente que são, enfim, absolutamente constitutivas de sua
existência” (COURTINE, 2016, p. 20). Outrossim, como bem coloca o autor, as emoções não
podem ter outra existência material que não seja a linguagem, ou seja, o próprio discurso.
Partindo deste pressuposto, na análise dos comentários, não serão considerados
aqueles que sejam exclusivamente com marcação de outros atores, composto somente por
imagem, que direcionem para outras páginas, através de links, spams e comentários
ininteligíveis. Da leitura e interpretação destes dados, constatou-se de forma categórica a
presença da raiva como componente emocional mais expressivo, e é sobre a reverberação
desta emoção que são empreendidas as reflexões dispostas mais adiante. Todavia, antes das
análises propriamente ditas, são apresentadas no tópico seguinte discussões concernentes à
cultura das emoções, as quais pululam no corpus analisado e são aqui vistas como elementos
de ordem social, histórica e cultural.

2 A cultura das emoções ou as emoções na cultura

Em uma obra clássica do campo da cultura, Clifford Geertz (1978) afirma que a
cultura pode ser definida como uma teia de significados que é tecida pelo próprio homem,
como que em uma relação recíproca. Tal passagem reforça a perspectiva postulada por
Thompson (2011), quando propõe que o estudo da cultura diz respeito à reflexão sobre os
fenômenos culturais, os quais devem ser pensados a partir de seu constructo sócio-historico,
lugar da produção de seus significados e das experiências e vivências dos sujeitos. Assim, o
estudo da cultura “pode ser pensado como o estudo das maneiras como expressões
significativas de vários tipos são produzidas, construídas e recebidas por indivíduos situados
em um mundo sócio-histórico” (p. 165). Partindo destas premissas, o sujeito tem, então, a sua
formação pautada por gramáticas culturais específicas, as quais vão sendo apreendidas desde
o seu nascimento, pois como bem coloca Eagleton (2011), “nós não nascemos como seres
culturais, nem como seres naturais autossuficientes, mas como criaturas cuja natureza física
indefesa é tal que a cultura é uma necessidade se for para que sobrevivamos” (p. 143).
Como parte da constituição e expressão dos sujeitos, pode-se a partir da breve
discussão acima se questionar acerca das emoções, muitas vezes apreendidas através de vieses
972

naturalistas ou universalizantes. Por meio de uma perspectiva histórica e social, verifica-se


que a problemática que envolve as emoções deve ser compreendida através de olhares
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cuidadosos, pois os modos de sentir e expressar emoções e sentimentos estão atrelados a

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fatores históricos e sociais que lhes possibilitam, isto é, são partes constitutivas da cultura de
cada povo. Rezende e Coelho (2010, p. 11) afirmam que “os sentimentos são tributários das
relações sociais e do contexto cultural em que emergem”. Segundo as autoras, os sentimentos
e emoções não tem uma natureza universal, tal qual indica o senso comum ocidental,
reforçando ainda que as emoções não são de ordem natural e menos ainda, individual, sendo,
por sua vez, social. Dado esse caráter, não há como desconsiderar as condições de
possibilidades históricas e sociais para a construção das emoções, vistas como “[...] parte de
esquemas ou padrões de ação aprendidos em interação com o ambiente social e cultural, que
são internalizados no início da infância e acionados de acordo com cada contexto”
(REZENDE, COELHO, 2010, p. 30).
Neste sentido, levando em consideração que na contemporaneidade, já em seus
primeiros dias de vida, os sujeitos estão imersos nos processos de midiatização, sobretudo nas
sociedades capitalistas, as suas emoções também se desenvolverão e tenderão a ser tributárias
desse novo contexto, como se identifica através da intensa participação dos atores nos
comentários analisados e pelos estados de ânimo evocados. Nesta esteira, a expressão das
emoções ganha novas possibilidades e territórios. Apesar da importância da promoção destas
discussões, os estudos sobre as emoções ainda aparecem como secundários nos trabalhos de
muitos antropólogos e cientistas sociais, atestam Rezende e Coelho (2010). No campo da
comunicação não é muito diferente.
Em trabalho recente, Freire Filho (2016) questiona se a emoção é uma palavra-chave
para a comunicação social. Na busca de respostas, o autor pesquisou a presença dos termos
emoção, afeto e sentimento nos principais dicionários e enciclopédias que condensam e
legitimam o conhecimento da área de comunicação e do estudo das mídias. Como resultado,
chegou à conclusão de que a resposta para a sua indagação é não, o que demonstra a
incipiência das análises sobre as relações entre mídia e emoções, assim como a necessidade de
atentar para este fator, pois como diz Sodré (2006), os dispositivos midiáticos de enunciação
têm como uma de suas principais características a presença das emoções e da estética.
Em O processo civilizador, Elias (2011) mostra as várias formas de controle das
emoções ao longo do processo civilizador nas sociedades ocidentais, promovendo reflexões
sobre os modos de controle dos sentimentos e emoções, defendendo que as formas hoje
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existentes são resultantes de um processo civilizatório, e não algo natural do homem. A partir
da ótica de Elias (2011), identifica- se que as formas civilizatórias das emoções não cessaram,
Página

tendo em vista a partir das descontinuidades e rupturas históricas o surgimento de novos

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modos de controle, condução e expressão de comportamentos e subjetividades, entre os quais
se destacam os atuais dispositivos midiáticos de enunciação.
A pedagogia das emoções é efetuada social e culturalmente por instituições como a
escola, a igreja, a família e, mais recentemente, a mídia e seus dispositivos. Através da relação
com estas instituições, os sujeitos vão vivenciando e apreendendo as gramáticas afetivas e
emocionais existentes desde a infância. É assim que determinadas experiências, ambientes e
atores vão se tornando amados ou detestáveis, objeto de alegria ou tristeza, de segurança,
risco, medo etc., compreendendo ainda as diversas variações e matizes relativos a estas
emoções.
Nesta perspectiva, a mídia e seus dispositivos expressam o que Rosenwein (2011, p.
41) identifica como regimes emocionais, isto é, modelos regimentares que vão sendo
padronizados, induzindo sociabilidades, afetos e emoções modelares, os quais coincidem com
outros regimes políticos e sociais e por meio desta relação sincrônica passam a prescrever
normas dominantes para a vida emocional. A partir desta ótica, como em um regime, algumas
emoções são colocadas de forma mais positivas ou até imperativas, tal como a felicidade, ao
mesmo tempo em que os dissensos, a partir das resistências também se efetuam, momento em
que surgem emoções como a raiva, o ressentimento e o rancor, vistos em sua maioria como
estritamente negativas.
Há, neste sentido, modelos emocionais que são apreendidos pelos sujeitos no decorrer
de suas trajetórias e histórias de vida. Em uma sociedade midiatizada, estes modelos estão
intrinsecamente relacionados às práticas sociais e à produção de sentidos dos dispositivos de
enunciação, os quais além de fornecerem formas e normas, também se demonstram como um
mecanismo de vazão dessas emoções.
Em tempos de crise, o campo das emoções e dos afetos passa por um reordenamento,
pois, como enfatizado por Safatle (2016, p. 16): “[...] quando sociedades se transformam,
abrindo-se à produção de formas singulares de vida, os afetos começam a circular de outra
forma, a agenciar-se de maneira a produzir outros objetos e efeitos”. Ressalta-se, contudo, que
ao referir-se especificamente aos afetos, o autor trata das formas de afetar e de se sentir
afetado em determinados contextos, o que pode ser estendido ao campo das emoções, que de
modo semelhante tem os seus regimes abalados e reordenados quando da ocorrência de
974

determinados acontecimentos, como o impeachment, o que pode ser evidenciado quando das
análises aqui empreendidas.
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Analisando os 4.246 comentários da postagem supracitada, acerca do processo de
impeachment de Dilma Rousseff e procedendo a um esquadrinhamento que visou mapear
quais emoções ali eram expressas, tem-se o seguinte resultado: 43% dos comentários
demonstravam a presença da raiva, 36% a alegria ou a felicidade, 5,4% esperança, 4%
tristeza, 0,6% vergonha e 0,7 de comentários ambivalentes (que não demonstravam uma
posição definida). Além disso, 10,3% do corpus não foi considerado para análise, com base na
premissa de exclusão de comentários que continham links, spams, marcação de outros
sujeitos, repetidos, compostos somente por imagem ou ininteligíveis.
Da reverberação destas múltiplas emoções, nas análises subsequentes, será dado
destaque especificamente à expressão da raiva, devido a sua incidência significativa, bem
como por considerá-la como uma emoção que se mostra como controversa em relação às
imagens amplamente divulgadas sobre a sociedade brasileira – uma nação alegre e cordial –, o
que já demonstra pela perspectiva metodológica adotada – a arquegenalogia – uma quebra da
ordem (FOUCAULT, 2011). Destarte, quais fatores teriam possibilitado a irrupção da raiva
como um aspecto tão marcante? Como componente incisivo do arquivo de um momento
histórico – o impeachment – o que a raiva desvela acerca deste momento? Quais saberes e
poderes estão ali presentes?

3 Discursos e emoções em conflito: a raiva como expoente

“URGENTE: Dilma sofre impeachment e PT sai do governo após 13 anos”. É esse o


enunciado que intitula uma das postagens mais comentadas do perfil da Revista Veja no
facebook, em 31 de agosto de 2016. Como já apontado anteriormente, na análise dos
comentários foram identificadas emoções múltiplas, mas foi a raiva a mais expressiva.
Fazendo uso da arquegenealogia como método, a raiva é vista como uma emoção que revela
aspectos de um momento histórico, desvelando posições sujeito e subjetividades que se
mostram baseadas em um desacordo sobre os rumos da política brasileira. Perseguindo a
compreensão das emoções nas práticas discursivas postas através dos comentários, tem-se que
é através dos discursos que as emoções apresentam a sua materialidade. O exercício de
mapeamento das emoções evidenciou a construções de sentidos e subjetividades que estão
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inscritos nas discursividades analisadas. A raiva, por sua vez, pode ser identificada através de
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alguns marcadores como o uso de caracteres exclusivamente em maiúsculo, xingamentos,
acusações ferrenhas e até de baixo calão, uso de emoticons154 que denotam a raiva etc..
Etimologicamente, a palavra raiva vem do latim rabies, o qual remete a acesso de
fúria, um arrebatamento violento, cólera, o que a identifica como uma emoção que desponta a
irritação, agressividade, rancor, aversão, ojeriza, ódio, elementos que podem ser motivados
devido à ocorrência de aborrecimentos ou frustrações. Por ser uma emoção que geralmente é
vista como associada ao descontrole, a raiva é também um dos estados de ânimos mais
depreciados em meio a um regime emocional da positividade (FREIRE FILHO, 2014).
De acordo com Rezende e Coelho (2010), há um forte componente moral na raiva,
indo além de um sentimento que o indivíduo sente de forma privada. Conforme as autoras,
“está em questão assim não apenas a pessoa que sente a raiva mas também o conjunto de
relações sociais ao seu redor [...]” (p. 39). Com base nesta proposição, podem ser extraídos
dois aspectos para a leitura do objeto proposto: 1) ao ser enunciada através de comentários,
reforça-se a circulação da raiva publicamente, como pode ser visto nos seguintes excertos:
“cala a boca verme agora vamos limpar o PT do mapa’ depois os Outros155”, “Vai reforçar
sua porção de alfafa com mortadela jumento”, “Chora mais, vagabundo!”, “Chora
arrombado kkkkk”, “AAACABOUUUUU A MAMATA, VAO ROUBAR NO INFERNO
AGORA.KD A RATAZANA?DEVE TA EM ALGUM BURACO CHEIO DE GRANA.”, “CALA
BOCA SEU POBRE” e, 2) as relações sociais inerentes a irrupção desta emoção.
Em relação ao viés público da expressão da raiva, Walton (2007) afirma que “em
alguns contextos culturais, exprimir a raiva é vergonhoso, um reconhecimento público de
rendição à perda de controle e às paixões animais que campeiam intimamente” (p. 72). O
autor reforça que em alguns países do Oriente, como no caso do Japão, a raiva não tem lugar
no cenário público. Lá, há uma cultura de séculos marcada por uma etiqueta de autocontrole
das emoções, de modo que os acessos de raiva ou a irrupção de determinadas emoções podem
ser vistas como ausência de educação (WALTON, 2007). Todavia, com a circulação
fulgurante desta emoção nos comentários, a sua demonstração nos fóruns do ciberespaço não
parece ser motivo de vergonha. Inversamente, tais espaços passam a acolher e dar vazão as
mais distintas especulações, posturas e ânimos de forma pública, delineando, como coloca
154
976

Ícones que demonstram uma forma de comunicação paralinguística. Um emoticon - palavra derivada da
junção dos verbetes emotion (emoção) + icon (ícone) - pode ser entendido como uma sequência de caracteres
tipográficos, os quais são utilizados para expressar alegria, raiva, tristeza, surpresa, etc.
155
Os comentários trazidos para análise são colocados neste texto em sua forma literal. Com o objetivo de
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destacá-los do restante do texto, sempre serão formatados em itálico. Em relação aos responsáveis pelos
comentários, estes não serão identificados.

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Freire Filho (2014), um panorama dos sensos de justiça e horizontes morais do Brasil
contemporâneo.
De forma semelhante, porém em níveis diferentes, no Ocidente a raiva também é vista
como um atestado de descontrole emocional que pode ser desencadeado por variados
motivos: o medo, o descontentamento com dada situação, a humilhação ou eventos que
frustram desejos individuais (REZENDE, COELHO, 2010), etc.. No caso em questão, tem-se
como condições de possibilidades para a irrupção desta emoção a intensa crise política e
econômica enfrentada pelo Brasil nos últimos anos, atrelada a efetiva polarização política e o
conservadorismo latente da sociedade. Além disso, observa-se a presença ou o impulso do
que Ribeiro (1995) denominou como ranço classista, ao referir-se às visões preconceituosas
das classes mais abastadas em relação ao restante da população, o que pode ser empiricamente
evidenciado nos comentários já expostos.
Enquanto fator social e cultural para a emergência da raiva, verifica-se a ojeriza de
alguns atores no que diz respeito à política, sobretudo ao modelo proposto pelo Partido dos
Trabalhadores – “Chora petista maldito, acabou de perder as tetas podres do PT,
#Bolsonaro2018”, “Porra vai te fuder seu comunista imundo e fudido”, “Chora seus
mortadela, peguem seu burros e vão p cuba”, “Eu nao votei nessa corja então cala a boca
para de mimi comunista”, “Chorem mais petralhada imunda”, “Qualquer um na presidência
é bom menos esses petralha ladrões, baderneiros, tem que entrar no pau mesmo fora corja
malandra nunca mais PT”. Em sua maioria, os comentários onde a raiva é expoente são
direcionados ao Partido dos Trabalhadores. Por consequência, as figuras de Luís Inácio Lula
da Silva e Dilma Rousseff também são canalizadas como foco para a raiva: “Espero que essa
corja do PT não volte nunca mais quebraram nosso país que o diabo o carregue a sem
esquecer agora tem que colocar aquele bode velho do Lula na cadeia”, “O próximo passo é
prender o safado do lula”, “So falta agora botar o pinguço na cadeia. A anta já foi pastar”,
“Dilma vai pro meio do inferno la e o teu lugar bicha feia se lascou trocha babaca agora tem
que prende safado do Lula cretino”, “Ei não votei nessa vaca gracas a deus”, “Já vai tarde
maldita ”, “Só de ver essa vaca indo pra forca já me sinto bem!”, “Dilma vaca”, “Adeus
maldita dos infernos, Te adiamos!”, “Vai pra cuba sua cancerígena do Brasil. !!!!!!”,
“VIVA, essa vadia ainda deveria está na cadeia no pau de arara de onde nem devia ter
977

saído”.
Como visto, os comentários demonstram uma cólera acentuada, expondo também o
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ódio. Também fica nítido o baixo nível do debate – fator ausente nas conversações

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estabelecidas. Ainda, revela-se um viés misógino nos comentários direcionador à figura de
Dilma, colocada em termos sempre mais pejorativos do que aqueles direcionados à Lula.
Destarte, fica claro que a raiva não possui nenhuma etiqueta de comportamento óbvia, de tal
modo que pode dar lugar a componentes diversos de uma gramática, como acusações,
preconceitos, insultos, sarcasmos, vocabulário formado por termos depreciativos e não
utilizados em outras situações etc.. Sobre isso, Walton (2007, p. 91) assevera que “podemos
saber como expressar nossos medos, e olhar para os outros em busca de conforto ou abrigo ao
fazê-lo, e podemos saber o que os outros esperam de nós quando a infelicidade da privação
nos atinge. [...]. A raiva, porém, não conhece este protocolo”. Distintamente, segundo o
teórico, a pessoa com raiva quer destruir ou afetar negativamente aquilo que é o seu objeto de
ódio – emoção que segundo o autor está na base da expressão da raiva, que uma vez
desembocada publicamente, pode provocar no sujeito que a expressa, uma sensação palpável
de liberação, que é observada na empiria analisada - “Tchau bruxa velha!. Pega a tua
vassourinha turbinada e suma!... Desapareça, VEIA LOCA!... JA VAI TARDE!!! Ficamos
livres desse PT ORDINARIO. Ficamos LIVRES esses MENTIROSOS. Ficamos LIVRES
desses CANALHAS. Brasiiiiil. Obrigada Senhor por pelo teu amor por está nação
Brasileira”.
Se a raiva é colocada em sua maioria contra o PT e as figuras de Dilma e Lula, há de
se salientar que ela também é enfaticamente perceptível em outras direções, como em relação
às classes menos abastadas da sociedade, colocada semanticamente nos comentários como
mortadelas, vagabundos, pobres, preguiçosos, dentre outros termos, reforçando o ranço
classista como componente da sociedade brasileira, como apontado por Ribeiro (1995). Nas
conversações, essa raiva se tornou veemente quando alguns atores denominavam, através dos
comentários, o impeachment como sendo um golpe. Como uma avalanche, a posição posta
culminou com o recebimento de inúmeros comentários agressivos: “Acabou a mamata, quero
ver e acabar a bolsa favela, quiser dinheiro vai trabalhar, como todo cidadão de bemfaz”,
“Vai ter que trabalhar agora né safado”, “Vai trabalhar vagabundo”, “Cala a boca seu
trouxa e vai trabalhar vagabundo, pobre, ta reclamando pq cortaram seu bolsa família né”,
“O choro é livre..... acabou a Mortandela, agora vôces vão ter que trabalhar..... bando de
acéfalos parasitas......”, “Chira vagabundo... agora vai ter que trabalhar.. O POVO NÃO
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VAI MAIS SUSTENTAR VAGABUNDOS”, “Acabou a sua bolsa família vagabundo!!!! Vai
ter que trabalhar petralha!!!!!!!”, “Chega de mamar na teta do governo!!! Vao trabalhar
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bando e vagabundo”, “Enfiaram uma mortadela no boga de vcs kkkkkkkk”.

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Frente a este cenário, vislumbra-se que a raiva “sugere ação, baseia-se na posse de
direito e implica poder” (BLAUVET, 2007, p. 119 apud FREIRE FILHO, 2013, p. 10).
Enquanto uma forma de ação, percebe-se que os atores que dão vazão à raiva se colocam nos
lugares daqueles que tem conhecimento sobre o assunto abordado – no caso, o Bolsa Família
– visto não como um programa social de distribuição de renda, mas como uma “mamata” que
produz e sustenta “vagabundos”. Esta visão e posicionamento parecem lhes dar um poder de
ação que se traduz em ofensas e agressões, como se lhes fossem um direito poder dizer da
forma que se diz, ou mais do que isso, como se possuíssem determinado poder para enunciar
seus dizeres daquela forma, os quais pela perspectiva da arquegenealogia são vistos como
uma vontade de verdade, manifestando uma produção de subjetividades pautada pela raiva, o
rancor e o ressentimento. Os discursos em que tais posicionamentos são explícitos são
identificada como dominantes nos comentários, o que não é visto com surpresa, considerando
a linha editorial da Revista Veja, marcada pelo seu viés à direita e crítica ferrenha dos
governos populares dos últimos 13 anos.
Entretanto, sabendo-se com base em Foucault (2013a) sobre os embates e disputas das
formações discursivas - conjunção de enunciados, possuidores de semelhante sistema de
dispersão, bem como de regularidades que os formam –, assim como sobre as relações de
poder e resistência (2013) que as compõem, ainda que de forma menos numerosa, a raiva
também se expressou em relação à insatisfação de alguns atores sobre o resultado do processo
que resultou no impeachment de Dilma. Tratam-se dos comentários onde o impeachment é
visto como um golpe, distintos daqueles já apresentados, em que o resultado do processo foi
tido como justiça. Apesar destas diferenças, a raiva é um fator semelhante: “Acho que são um
bando de otarios quem está feliz com a saída de Dilma agora vão sofrer o golpe dos
verdadeiros bandidos do Brasil quero que todos os coxinhas vão tomar no cu pois quem vai
sofrer sao os pobres pois só pensão em aumentar os salários deles é mexer no direito dos
pobres”, “Onde clico pra demonstrar minha indignação bilhões de vezes? ”, “O
Brasil tem que tirar essa quadrilha do pmdb com o psdb por esses sanguessugas vao vender o
Brasil até não sobrar mais nada e os brasileiros virarem escravos como na época de 90 mais
brasileiro e tão burro que em somente 13 anos que o Brasil existiu se esqueceram o que eles
fizeram com o nosso país e agora entregam de volta pra eles que vergonha desse povo burro
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do kralio ipocritas”, “pessoas tao desinformadas e tao manipuladas por outros ou pela mídia
que falam coisas sem saber, apoiam os fatos sem ao menos perceber que este pilantra do
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TEMER, esta prestes a fuder com toda a classe trabalhadora deste país, quer dizer ele ja
começou a botar no rabo do povo #FORATEMER”.
Ademais, a raiva também se mostra na direção da Revista Veja, porém em um número
bem pequeno – o que é visto como comum, pois para receber as notícias postadas pelo perfil
da revista, há a necessidade de ter curtido a página, o que raramente é feito pelos atores que
não estão de acordo com a sua linha editorial. Mesmo assim, alguns poucos comentários
acusaram a revista de golpista, fascista, comprada, etc. – “revistinha golpista lixo escória da
sociedade brasileira”, “Graças essa mídia golpista como essa revista Veja.. Voces e as elites
estao felizes”, “Com a imprescindível ajuda desse lixo de revista que apoiou o golpe”, “A
VEJA é podre”, “vai tomar no cú VEJA! Oportunista do caralho!”, “Mídia suja e coxinhas
acéfalos... cambada de vermes imundos”.
Em todos os comentários onde a raiva se mostrava de forma categórica, são
perceptíveis, mesmo que a partir de diferentes posições sujeito, a enunciação de sentenças que
taxativamente expõem juízos de valor sobre o acontecimento – impeachment –, sobre os
sujeitos envolvidos, entre aqueles que comentavam e sobre a própria revista. Isso sugere o que
é postulado por Ahmed (2014, p. 05) quando afirma que alguns teóricos descreveram as
emoções como formas de julgamentos, perspectiva que reforça a vontade de verdade por parte
dos diversos atores que fizeram uso daquele espaço para a produção de comentários, de modo
a assumir a posição de juízes que passaram a estabelecer sentenças, ao invés de promover
discussões ou debates, deixando claro que o diálogo não é, desta forma, fator inerente à
expressão da raiva, evidenciada como cerne de conflitos e disputas de poder e saber.

4 Considerações finais

O presente trabalho teve como objetivo a análise dos comentários em postagem da


Revista Veja em sua página do facebook em 31 de agosto de 2016, data em que o
impeachment da presidente Dilma Rousseff se tornou uma realidade para a história política
nacional. A postagem escolhida, por sua vez, tratava justamente desse tema e foi uma das
mais comentadas do dia. Tomados pelo viés das emoções, os comentários produzidos foram
mapeados de acordo os estados de ânimos ali presentes – vergonha, raiva, alegria, etc. –
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evocando a presença de emoções conflitante e uma produção de dissensos que se instauraram


e demonstram um sentido de disputa acerca do processo de impeachment.
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A raiva, conforme já indicado, foi o componente emocional mais recorrente quando
das análises iniciais, evidenciando que apesar desta não ser uma emoção comumente atribuída
à sociedade brasileira, vem se mostrando atualmente como marca categórica das relações
políticas e sociais, a partir de condições de possibilidades históricas e sociais que permitiram
a sua emergência – o crescente conservadorismo, o ranço classista, polarização política pós-
jornadas de junho de 2013 e eleições de 2014, etc.. Enquanto expressão de um momento
histórico, a raiva se desvela como parte do arquivo do tempo presente.
Com vazão através das práticas discursivas, tal emoção – assim como as outras – se
mostram como constitutivas da circulação discursiva contemporânea, que é impulsionada e
construída por meio das sensações, percepções, estímulos e estados de ânimos. Nos
comentários analisados, a manifestação da raiva indicam três fatores. O primeiro diz respeito
a presença e participação cada vez mais ativa dos sujeitos nas redes sociais, manifestando
opiniões e, mais do que isso, fazendo uso daquele espaço para dar vazão as suas emoções,
mesmo aquelas vistas como negativas, como é o caso da raiva. Assim, esse ator não ocupa
mais somente o espaço daquele que lê ou recebe determinado conteúdo, mas produz sentidos
e os (res)significa conforme as mais variadas mediações e posições-sujeito. Um segundo fator
é a exteriorização de que as redes sociais nem sempre são um lugar onde todo mundo é feliz –
como comumente associado –, sendo também um espaço onde o dissenso e as disputas se
fazem presentes, como ocorre no caso analisado, quando de forma torrencial e quase
imperativa, a raiva se mostra. Por último, aponta-se sobre o quanto o diálogo é inexistente nas
conversações analisadas, mesmo em um espaço que tem esta finalidade. Ali, o sentido de
discussão como troca de ideias tem uma denotação prioritariamente de embates atravessados
pela agressividade, pelo rancor e ressentimento.
Nesta perspectiva, a emergência da raiva no cenário contemporâneo assinala
mudanças contundentes acerca das culturas emocionais e assevera o sentido de um tempo
histórico efetivamente polarizado e sem diálogo, o que é preocupante pelo fato de que no
status moral da raiva, tem-se que estar raivoso é também estar doente ou em processo de
adoecimento (WALTON, 2007, p. 66).

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GT7 – INFORMAÇÃO, CULTURA E PRÁTICAS SOCIAIS

AS MANIFESTAÇÕES PELO FORA TEMER NAS OLIMPÍADAS: UMA ANÁLISE


CRÍTICA DO DISCURSO JURÍDICO-MIDIÁTICO

Renatha Rebouças de Oliveira (UERN)

Introdução

Durante as Olimpíadas de 2016, o Brasil se destacou não só no cenário esportivo, mas


também no cenário político e social. Os manifestos de Fora Temer nos estádios foram
combatidos pela polícia de forma agressiva e violenta. Com suposto respaldo na lei nº13. 284
a polícia usou da repressão para combater as manifestações contra o presidente em exercício.
Uma boa forma de refletir sobre isso é com base em Althusser (1975), com a noção
dos aparelhos de Estado, e com as teorias da Análise do Discurso Crítica, de Fairclough que
utiliza as operações ideológicas de Thompson para analisar a ação das estratégias ideológicas
do discurso. Essas teorias serviram como fundamento para analisar o discurso jurídico-
midiático em uma entrevista vinculada no jornal O Estadão com o ministro aposentado do
Supremo Tribunal Federal Carlos Velloso, que teve como pauta a repressão ao Fora Temer
nos estádios.
Na entrevista serão identificados os elementos discursivos que visam endossar a ideia
de que a censura ao Fora Temer nos estádios estavam amparadas pela lei das olimpíadas.
Buscamos identificar por meio das operações ideológicas de Thompson a legitimação, no
discurso jurídico do entrevistado, da aplicação da censura aos manifestos nas olimpíadas.
A seguir analisaremos: as relações existentes entre as ideias sobre Aparelho
Repressivo do Estado de Althusser e as operações ideológicas de Thompson para legitimar a
ação coercitiva da polícia no combate ao Fora Temer nas olimpíadas.

1 Aparelhos Repressivos do Estado e ADC: alguns conceitos fundamentais

1.1 Althusser e os aparelhos repressivos do Estado


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Althusser foi um filósofo francês que trouxe contribuições significativas para as


Ciências Sociais e até mesmo para a linguística. Foi responsável por promover uma releitura
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de Marx e ressurgir com os pensamentos Marxistas como uma nova maneira de entender a

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formação dos sentidos da ação social (SILVA, 2013). A sua maior contribuição para a análise
aqui proposta se refere aos estudos com base nos Aparelhos de Estado.
Para compreender como o Estado atua como repressor, precisamos entender como os
Aparelhos de Estado foram designados por Althusser para tratar da reprodução de produção.
Para isso necessitamos explicar o que ele entendia por Estado.

Althusser avalia que a definição marxista de Estado deixa uma lacuna na


medida em que não distingue o Estado dos aparelhos de Estado. O Estado é,
a um só tempo, a instituição que detém o poder político e, portanto, a
autorização para o uso de seus aparelhos de repressão. Se as classes sociais
se encontram em luta é porque elas têm em vista a conquista do poder
político e a manutenção desse poder e dos aparelhos de Estado em suas
mãos. Com essa distinção, Althusser (1980: 37) quer destacar, por um lado,
“o objetivo da luta de classes”, a conquista do poder político e, por outro
lado, “os aparelhos de Estado, instrumentos de poder” (SILVA 2013, p. 85).

Para Althusser (1975) as teorias de Marx permaneciam apenas descritivas e por isso ele faz a
distinção entre Estados e Aparelhos de Estado. É para avançar nessa abordagem que ele faz a divisão
entre os mecanismos de Estado em: Aparelhos Ideológicos do Estado (AIE) e Aparelhos Repressivos
do Estado (ARE).
Althusser alerta para a distinção entre AIE e ARE. Diferentemente do AIE, que age por meio
da interpelação ideológica, os AREs age por meio de repressão. Repressão, sugerida por Althusser no
seu sentido literal, com o uso da violência e da força. Os AREs “compreendem o governo, a
administração, o exército, a polícia, os tribunais e as prisões, por exemplo.” (SILVA, 2013, p.85)
Além da atuação, os aparelhos de estado se distinguem também pelo grau de concentração e
centralização. Enquanto os AREs são mais concentrados e centralizados, possui uma unidade de
comando, os AIEs são mais “dispersos e desfrutam de relativa autonomia entre si em relação ao
estado” (SILVA, 2013, p. 85).
As teorias dos Aparelhos de Estado afirmam que a ideologia tem existência material nas
instituições (mídia, direito, etc.) e que ela age interpelando os sujeitos e que, por fim, são os Aparelhos
Ideológicos de Estado que delimitam a análise ideológica do discurso. Entretanto o termo ideologia
tratado por Althusser não é o mesmo para Fairclough. Para aquele não dá para aceitar a noção de
ideologia tratada por este, que é como um cimento social, que mantêm a sociedade unida. Para
Fairclough as ideologias surgem nas sociedades, e se superam na medida em que há uma superação
social.
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Nem todo discurso e irremediavelmente ideológico. As ideologias surgem


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nas sociedades caracterizadas por relações de dominação com base na classe,


no gênero social, no grupo cultural, e assim por diante, e, à medida que os

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seres humanos são capazes de transcender tais sociedades, são capazes de
transcender a ideologia. Portanto, não aceito a concepção de Althusser
(1971) de ‘ideologia em geral’ como forma de cimento social que e
inseparável da própria sociedade (FAIRCLOUGH, 2001, p. 52).

O conceito de ideologia de Althusser não é fundamental para a análise aqui proposta,


nos bastando o conceito althusseriano de aparelhos repressivos de estado que servirá como
teoria para compreender a ação coercitiva da polícia no combate ao Fora Temer nas
olimpíadas de 2016. É a partir do entendimento do que são ARE e de como eles atuam na
aplicação da violência que o analisaremos a seguir o corpus desta pesquisa.

1.2 Análise do Discurso Crítica e as operações ideológicas de Thompson

O termo Análise de Discurso Crítica (ADC) teve origem em 1985 com o linguista
britânico Fairclough. A ACD é apresentada por Fairclough (1989) como um modelo de
teórico-metodologico da análise do discurso no qual relaciona dialeticamente a língua e as
relações de poder, tendo o discurso como uma prática social. Resende (2004) complementa:

A Análise de Discurso Crítica (ADC), disciplina com amplo escopo de


aplicação, constitui modelo teórico-metodológico aberto ao tratamento de
diversas práticas na vida social. Situada na interface entre a Lingüística e a
Ciência Social Crítica, a ADC procura estabelecer um quadro analítico capaz
de mapear a conexão entre relações de poder e recursos linguísticos
selecionados por pessoas ou grupos sociais (RESENDE, 2004).

Algumas noções são fundamentais para os estudos introdutórios da Análise de


Discurso Crítica, que são os de discurso, hegemonia e ideologia. O conceito de discurso
trazido pela ADC diferentemente de outras teorias linguísticas, se apresenta com dois
sentidos:

Em um nível abstrato ele concebe discurso como uma categoria que designa
os elementos semióticos na sua totalidade multimodal, abrangendo, assim,
não apenas os signos linguísticos, mas também os signos não linguísticos,
como imagens, cores, sons e gestos. Em um sentido mais restrito, ele usa o
termo discurso para designar modos particulares de representações
específicas da vida social. (OLIVEIRA, 2013, p. 284)
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Isso significa que para a ADC o discurso tanto é formado pelos elementos
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extralinguísticos quanto pelos elementos de configuração das práticas sociais. Isso por que as

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imagens, sons, gestos, cores fazem parte das práticas sociais e são elementos fundamentais na
construção dos sentidos.
A ADC propõe, então, estabelecer e esclarecer como os textos na sua composição são
construídos dando suporte às relações de poder. Isto é, qual a intenção de quem o produziu?
Tal construção beneficia quem e por quê? Que ideologia vem detrás daquele texto? O analista
crítico do discurso tem esse papel de descobrir as complexidades e problemas de um texto,
com o objetivo de auxiliar nas mudanças sociais (OLIVEIRA, 2013).
O que interessa para a ADC são as pesquisas na perspectiva crítica, pois esse campo
de estudo tem por objetivo identificar a legitimação de discursos em contextos de poder. A
ADC analisa, portanto como o poder e a dominação são promovidos e reproduzidos no
discurso. Como afirma Resende (2011, p. 21) “O propósito das análises em ADC é, portanto,
mapear conexões entre escolhas de atores sociais ou grupos, em textos e eventos discursivos
específicos, e questões mais amplas, de cunho social, envolvendo poder”.
O termo “poder” para a ADC difere das demais teorias, que veem o poder como
sentido unilateral de coação da estrutura sobre os indivíduos. Para a ADC o poder é resumido
em termo de controle, temporário e instável. Isto é, as relações de poder não são instáveis e
imutáveis. E é partindo desse entendimento que a ADC retoma o conceito gramsciano de
poder como hegemonia (RESENDE, 2011).
Para Gramsci (1988; 1995 apud RESENDE, 2011) que utiliza o contexto político de
democracias ocidentais, o poder é hegemônico e possui certa instabilidade, ou um “equilíbrio
instável”. E é justamente essa instabilidade que caracteriza o conceito de “luta hegemônica”.
Isso porque na concepção de Gramsci no contexto político supracitado, o poder de uma classe
em aliança com outras forças sociais sobre a sociedade como um todo nunca é permanente e
fixo, mas parcial e temporário. E para que grupos particulares consigam se instaurar no poder,
é necessário uma liderança social no seu âmbito político, moral e intelectual (RESENDE,
2011).
Quando a luta hegemônica é travada no/pelo discurso, isto é, quando o discurso é
utilizado como ferramenta de poder e dominação associados a domínios sociais específicos,
entra em jogo as representações ideologicas (RESENDE, 2011). É, portanto, por isso que o
poder para a ADC é hegemônico, pois age por meio do discurso ideologias dominantes, isto é,
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para a ADC a linguagem é utilizada como instrumento de poder e ideologia na ação das
muitas mudanças sociais e culturais.
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O conceito de ideologia que trata a ADC é com base na perspectiva crítica de
Thompson (2002a) que tem um caráter “inerentemente negativo”(RESENDE, 2011, p.25).
Isso significa que a ideologia para a ADC é um instrumento de poder e de dominação, que
assegura temporariamente o discurso minoritário de um grupo dominante, assegurando-lhes
hegemonia na configuração de realidades particulares como se fossem verdades absolutas. É
então, nesse sentido que o analista crítico do discurso age: na tentativa de intervir na
sociedade por meio de seu trabalho de análise, que trata de desvelar as ideologias dos
discursos de poder. Pois como afirma Resende (2011, p. 26) se “desvelamos,
desnaturalizamos o senso comum, de maneira consciente, existe a possibilidade de coibirmos,
anularmos seu funcionamento ideológico.”
Resende e Ramalho (2006, apud RESENDE, 2011) fazem uma adaptação do quadro
das operações ideológicas do discurso, de Thompson (2002a, p. 81 apud RESENDE, 2011).
Com base nas ideias de ideologia marxistas, Thompson (2002a) sugere cinco modos gerais de
operações da ideologia ligados a estratégias típicas de construção simbólica, que são a
legitimação, dissimulação, unificação, fragmentação e reificação.
A Legitimação pode ter como estratégias a racionalização, universalização e/ou a
narrativização (RESENDE, 2011). Nessa operação existe a legitimação do discurso de poder
como sendo justo e digno de apoio, com vistas a garantir a dominação. Na legitimação das
relações de dominação, podemos identificar a estratégia de: racionalização, que utiliza
fundamentos racionais, com apelos a bases legais, jurídicas, que legitimem a dominação do
poder por grupos minoritários; a universalização, que tem como estratégia a tentativa de
utilizar discursos particulares como se fossem universais; e a narrativização, que utiliza como
estratégia a difusão e reprodução de histórias de grupos minoritários prestigiados como sendo
a representação da maioria, legitimando as relações de dominação;
A Dissimulação pode ter como estratégia o deslocamento, o eufemismo e/ou o tropo.
Na dissimulação existe a ocultação, negação ou obscuração das relações de dominação.
(RESENDE, 2011) Como estratégias de deslocamento está a tentativa de transferir aspectos
positivos ou negativos de uma pessoa ou objeto para outro, de forma que garanta a
dominação. Na eufemização as ações, instituições ou relações sociais favorecem uma
conotação positiva diante de aspectos sociais. No tropo utiliza-se figuras de linguagem como
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a sinédoque, metonímia e metáforas com vistas a garantir ou dissimular as relações de


dominação.
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Unificação tem como estratégias principais a padronização e a simbolização.
(RESENDE, 2011) Na unificação há uma construção simbólica que liga pessoas a uma
identidade coletiva, sem levar em consideração a diferenciação entre elas que possam separá-
las. Na estratégia de padronização existe o estabelecimento de uma forma simbólica única
para servir como padrão compartilhado. Já na simbolização são construídos símbolos de
identificação coletiva que servem para a unidade e a criação de uma identidade coletiva
(PÉREZ, 2012).
Fragmentação separa grupos ou indivíduos capazes de desafiar forças e interesses
dominantes. Como estratégia, Thompson divide em: diferenciação, que se da por meio da
enfatização de características que desunem grupos coesos ou impedem sua constituição; e
expurgo do outro, que é a criação de imagens simbólicas negativas de uma pessoa ou de um
grupo, que passa a ser visto de forma negativa ou como “inimigo”, necessitando ser
expurgado (PÉREZ, 2012).
Reificação é, segundo Thompson, a operação ideológica que estabelece as relações de
dominação por meio da retratação de uma situação histórica, social e transitória como se fosse
permanente, natural e atemporais (PÉREZ, 2012). A reificação utiliza quatro estratégias de
operação: a naturalização que faz uso das situações históricas como se fosse algo natural e
portanto inevitável; a eternalização, que é estratégia pela qual fenômenos sócio-históricos são
representados como permanentes; e a nominalização/passivação em que há a centralização em
determinados elementos e o apagamento de atores e ações com o intuito de apagar sujeitos do
discurso (RESENDE, 2011).
A partir do entendimento de como o poder é exercido sobre os indivíduos por meio da
força através dos Aparelhos Repressivos do Estado (ALTHUSSER, 1975 apud SILVA, 2013)
e por meio da ideologia, através das operações ideológicas de Thompson (2002a apud
RESENDE, 2011), iremos a seguir verificar como essa repressão foi aplicada para conter os
manifestos contra o presidente em exercício durante as olimpíadas, bem como analisar
materialidades linguísticas no discurso jurídico-midiático com base nas operações ideológicas
e estratégias discursivas de Thompson como forma de buscar indícios que reforcem e apoiem
as práticas de coerção, identificando como o discurso jurídico se materializou e se legitimou
na aplicação da censura ao “Fora Temer” nas olimpíadas.
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Para tanto a seguir realizaremos a análise de um corpus composto de uma entrevista


veiculada no blog do Fausto Macedo, do jornal O Estadão, com o ex-ministro do Supremo
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Tribunal Federal Carlos Velloso, que legitima a censura aos protestos políticos nas
olimpíadas, com a intenção de corroborar com as práticas repressivas do Estado.

2 Os aparelhos repressivos do Estado nas olimpiadas

2.1 Contextualização da análise

O ano de 2016 foi um ano marcado por alguns acontecimentos importantes para o
Brasil, dos quais dois ganharam destaque respectivamente no cenário político e esportivo do
país: o impeachment da presidente Dilma Rousseff e o pioneirismo do Brasil como sede dos
jogos olímpicos, na cidade do Rio de Janeiro. O processo de impeachment da presidente
Dilma Rousseff que teve início em 2 de dezembro de 2015, culminou com a retirada da
presidente reeleita e com a posse do vice-presidente Michel Temer ao cargo. Esse fato gerou
descontentamento de parte da população, que acusava, dentre outras coisas, que Dilma era
inocente e que o impeachment era um golpe de estado.
A posse de Michel Temer ao cargo de presidente interino do Brasil levou a diversas
manifestações populares. Nas olimpíadas os protestos continuaram acontecendo. Cartazes,
camisetas, bandeiras e símbolos com os dizeres Fora Temer eram exibidos dentro e fora dos
estádios como forma de manifestação contra o presidente interino.
Contudo os manifestantes foram reprimidos e tratados com truculência pela polícia
militar, que, como foi vinculado em alguns jornais, expulsaram das arquibancadas os
torcedores que realizaram protestos de cunho político. A repressão ao Fora Temer foi
aplicada nos estádios com suposto amparo na lei de nº13. 284, que dispõe sobre as medidas
relativas aos jogos olímpicos e paraolímpicos de 2016. No artigo 28 da lei citada são expostas
as condições de acesso e permanência nos locais oficiais, como os estádios onde ocorreram as
olimpíadas.
O uso da violência pela polícia militar sobre os manifestantes com respaldo na lei das
olimpíadas gerou diversos questionamentos quanto a legalidade dos atos. Alguns jornais,
revistas, sites dentre outros meios de comunicação se posicionaram contra a repressão aos
manifestos, com a justificativa de que a lei estava sendo interpretada erroneamente e que a
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censura às manifestações feriam a constituição brasileira, que assegura o direito a livre


manifestação dos cidadãos. Entretanto em uma entrevista veiculada no jornal O Estadão, a
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mídia fez uso de algumas estratégias para convencer o público de que os manifestos eram

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legais e respaldados na lei das olimpíadas. Tendo como o entrevistado o ex-ministro e ex-
presidente do STF Carlos Velloso, a entrevista carrega diversas estratégias discursivas para
convencer o público da legalidade das ações repressivas do Estado. Segundo Fairclough
(2001) essas versões da verdade exposta pela mídia é uma tendência geral do discurso das
mídias.

Os jornais tendem a oferecer versões da verdade as vezes opostas (embora


frequentemente harmonizadoras), cada uma das quais se baseia na
reivindicação implícita e indefensável de que os eventos podem ser
representados transparente e categoricamente e que perspectiva pode ser
universalizada. Esse mito sustenta o trabalho ideológico da mídia, que
oferece imagens e categorias para a realidade; posiciona e molda os sujeitos
sociais e contribui principalmente para o controle e a reprodução social
(FAIRCLOUGH, 2001, p. 202).

É, contudo, pela teoria de Aparelhos Repressivos de Estado e das operações


ideológicas de Thompson que analisamos o uso da repressão no combate ao Fora Temer nos
jogos olímpicos de 2016. Com base nos AREs jurídicos e midiáticos, explicamos como foi
implantada a repressão por meio do Estado e como essas instituições endossam essas atitudes
por meio do discurso repressivo.

2.2 Uma análise do discurso jurídico-midiático na aplicação da repressão ao Fora Temer nas
olimpíadas de 2016

No contexto das olimíadas do Rio, o jornal O ESTADÃO entrevistou o ex-ministro e


ex-presidente do STF e do STJ Carlos Veloso para que fosse dada sua opinião acerca da
censura aos manifestos “Fora Temer” nos estádios. Nessa pesquisa documental, destacamos a
ação dos Aparelhos Repressivos do Estado segundo a teoria de Althusser (1975) e as
operações ideológicas e estratégias discursivas (Thompson, 2002) com base na ADC para
analisarmos o discurso jurídico do entrevistado.
A entrevista concedida tem por título, “Olimpíada não é local para protesto político,
diz ex-presidente do Supremo” e traz como tema “Ministro aposentado Carlos Velloso avalia
que não há inconstitucionalidade na lei que prevê limitação de manifestações em Jogos”. A
partir do título e do tema, já podemos observar que a escolha dos atores sociais é feita de
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maneira que destaca a função ocupada pelo intrevistado. Isto é, ele não traz para a entrevista
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um mero opinante, e sim um ex-ministro e presidente do STF, que apenas pelo cargo que

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ocupou já aciona nos indivíduos uma posição-sujeito diferenciada, que representa no processo
discursivo um lugar de ocupação superior aos jornalistas ou meros comentaristas dos fatos.
Fairclough (2001) explica que a mídia recruta leitores, ouvintes e telespectadores com o uso
de estratégias linguísticas que facilitem a comercialização de seu produto. E esse processo se
origina de limitado grupo de pessoas que tem acesso à mídia, cujas vozes são representadas
no discurso midiático.

Os grupos poderosos são representados como se falassem na linguagem, que


os próprios leitores poderiam ter usado, o que torna muito mais fácil de
adotar os seus sentidos. Pode-se considerar que a mídia de noticias efetiva o
trabalho ideológico de transmitir as vozes do poder em uma forma disfarçada
e oculta (FAIRCLOUGH, 2001, p. 144).

Fica clara, portanto a seleção do entrevistado em questão, que além da posição que
outrora ocupou como ministro e presidente de um renomado órgão, ele carrega também
estratégias do discurso jurídico que serve de respaldo para a sua opinião, abertamente exibida
no título e tema da entrevista. Fairclough ao afirmar que os textos na sua composição são
construídos dando suporte às relações de poder, evidencia que existem estratégias discursivas
que são utilizadas para que uma ideologia garanta sua hegemonia. Dessa forma, a escolha dos
sujeitos do discurso é elemento importante para a garantia da formação dos sentidos.
Em seguida O Estadão questiona o ministro sobre sua opinião a respeito da
inconstitucional da lei das olimpíadas, e pede também sua avaliação quanto às restrições que a
lei impõe nas olimpíadas e que destoam do que ocorre em outros eventos, esportivos ou não,
que não possuem o mesmo aparato de segurança. Observamos que o Ministro além de
concordar com a abolição das manifestações feitas pela população referente ao Fora Temer,
ele também afirma que não existe inconstitucionalidade na lei alusiva a proibição das
manifestações.

Não vejo inconstitucionalidade no fato de a lei prever algumas limitações


para manifestações em locais de jogos, como, por exemplo, proibir faixas ou
bandeiras que contêm apelos políticos partidários. É que ali não é local
próprio para fazer política partidária ou protestos com caráter político-
partidário; ademais, se um grupo levanta faixas ou bandeiras em favor de um
personagem do governo, outro grupo, favorável ao governo, pode retrucar,
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levando faixas ou bandeiras ofensivas ou insultuosas (VELLOSO, 2006).


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Considerando a fala do Ministro, podemos supor que ele se apoia no que está descrito
na lei nº13. 284, que no Art. 28 aponta nos incisos IV e V:

São condições para acesso e permanência nos locais oficiais


[...] IV - não portar ou ostentar cartazes, bandeiras, símbolos ou outros sinais
com mensagens ofensivas, de caráter racista ou xenófobo ou que estimulem
outras formas de discriminação;
V - não entoar xingamentos ou cânticos discriminatórios, racistas ou
xenófobos (BRASIL. Lei n. 13.284 de 10 de maio de 2016).

Ao afirmar que os estádios não é lugar para protesto político, o ex ministro utiliza a
legitimação como operação ideológica, utilizando como estratégia a racionalização. Isso pode
ser identificado quando ele tenta sustentar a aplicação da violência com base na lei nº 13.284,
fazendo uso de fundamentos racionais, jurídicos e com apelo a base legais para legitimar a
censura. Entretanto ao analisar os incisos presentes no artigo 28 da lei de nº 13. 284 é possível
destacar a inconstitucionalidade presente na ação comandada pelo Estado, que retirou dos
estádios as pessoas que estavam protestando contra o governo com o uso de cartazes e
camisetas com os dizeres Fora Temer. Observa-se que o que consta nos incisos não sustenta a
aplicação da violência contra as pessoas que estavam realizando manifestações políticas, visto
que tais manifestações não carregam conteúdos ofensivos, racistas, xenófobos, homofóbicos e
nem estimulam nenhuma forma de discriminação.
Pode-se também destacar o termo limitações utilizado pelo entrevistado para se referir
às agressões realizadas pela polícia como um caso de nominalização, no qual há uma tentativa
de apagar a ação de violência e censura exercida sobre os manifestantes, tratando apenas
como uma limitação.
Logo abaixo será apresentada outra parte da entrevista na qual Carlos Velloso se
utiliza do discurso jurídico e da posição que ocupa para reforçar a repressão ao Fora Temer.
Quando questionado sobre a possibilidade da atuação das forças de segurança ser considerada
inconstitucional ou até mesmo abuso de autoridade ao retirar torcedores que portam cartazes e
camisas com a mensagem Fora Temer, que não contem ofensas ou xingamentos, ele
responde:
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Penso que não, isto é, pode a polícia retirar torcedores que portam cartazes
ou faixas com apelos político-partidários. Tais torcedores ingressaram no
estádio sabendo que a lei proíbe tais manifestações. Se, no interior do
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estádio, desafiam a proibição – proibição que me parece razoável, como


explicado na resposta anterior – se não obedecem à disposição legal, outra

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solução não caberia senão aquela de serem retirados do estádio. Não ocorre
abuso de autoridade, no caso (VELLOSO, 2016).

Mais uma vez estamos diante de um caso de racionalização, no qual o entrevistado


tenta persuadir os leitores construindo argumentos interessados na defesa e justificativa dos
atos de censura. Para isso faz referência à lei, com o objetivo de que seu discurso tenha
credibilidade e, assim, seja legitimado. Fica claro, contudo a opinião de que o Estado pode e
deve atuar com violência para garantir sua hegemonia. Apesar de adotar estratégias do
discurso jurídico, o ex-ministro profere uma interpretação particular da lei e endossa os atos
de repressão do Estado. Entretanto vale ressaltar que, como verificado anteriormente, a lei não
deixa claro que existe proibição a esse tipo de manifestação, o que demonstra a fragilidade
nos posicionamentos discursivos adotados pelo ex-ministro. Assim sendo, o Estado, como
apontado por Althusser, mais uma vez utilizou-se do poder centralizador e abusivo para
garantir que o discurso Fora Temer fosse combatido, utilizando-se de um frágil e duvidoso
respaldo jurídico.
Observa-se também a utilização da passivação como tentativa de apagar ações e
sujeitos do discurso quando cita que não caberia outra solução senão aquela de serem
retirados do estádio. Na utilização da voz passiva, há a ocultação de quem executou a ação,
bem como há uma tentativa de apagar o ato de censura.
O Estadão pede que o ex ministro explique os motivos que o levam a ajuizar que
durante as olimpíadas deve-se interferir na liberdade de manifestação, se em outros eventos
esportivos (como, por exemplo, nos jogos do campeonato brasileiro) tais manifestações não
sofrem esse tipo de interferência. E ele responde:

O evento esportivo não estaria interferindo na liberdade de manifestação. O


pretenso torcedor é que estaria tumultuando o evento esportivo. É preciso
compreender que não há direitos absolutos. Os atletas que participam dos
jogos olímpicos precisam concentrar-se. Um tumulto, que pode ocorrer entre
grupos em confronto, prejudica essa concentração, prejudica o
desenvolvimento dos jogos que tem como participantes inúmeros países.
(VELLOSO, 2016)

Mais uma vez aparece a palavra tumulto para se referir aos manifestos. A escolha do
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léxico tumulto pode ser observado como um exemplo de interdiscursividade. Isso por que as
manifestações foram representadas pelo ex ministro como tumulto a partir do interesse
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particular que ele tem. Nesse caso há uma tentativa de desqualificar os movimentos,
transformando-os em atos condenáveis.
O fato de retirar das arquibancadas um torcedor que estivesse vestindo uma camiseta
com o dizer “Fora Temer”, ou apenas exibindo cartazes manifestando sua indignação ao
governo, fere o direito constitucional de liberdade de expressão e reforça que o estado age de
forma repressiva quando seu poder é ameaçado.

Considerações finais

A análise da lei permite demonstrar que as atitudes adotadas pela polícia militar ao
retirar dos estádios os manifestantes que portassem cartazes, camisas ou qualquer instrumento
de manifestação com os dizeres Fora Temer não possuíram amparo na lei 13.284. Isso por
que o manifesto não se encaixa nos incisos IV e V do artigo 28 da lei.
O combate ao discurso Fora Temer nas olimpíadas pôde, portanto, ser entendido como
uma estratégia política do governo, que usou os aparelhos de repressão do estado (a polícia)
para combater um discurso que não agradava o atual governo. Entretanto para que a ação
coercitiva fosse legitimada, a imprensa utilizou também estratégias discursivas, por meio da
entrevista com o ex ministro. O que se pode observar é que o discurso jurídico-midiático
presente na entrevista tinha por objetivo convencer os leitores da legalidade dos atos
repressivos do Estado, interpelando-os ideologicamente. Tais estratégias vão desde a escolha
do sujeito do discurso, quanto às seleções lexicais do entrevistador e do entrevistado.
Assim sendo, podemos constatar que as atitudes repressivas do Estado, conforme
teorizado por Althusser, são aplicadas de forma clara e objetiva nos sujeitos que possuíam
ideologia política diferente da do governo vigente. É possível observar por meio das
operações ideológicas propostas por Thompson que o processo de construção simbólica se dá
mediante a legitimação das relações de poder. Essa entrevista é, portanto, um exemplo de
como as operações ideológicas agem como estratégia para legitimar os a favor do Estado, com
a colaboração dos discursos midiático e jurídico.

Referências
995

ALTHUSSER, Louis. Ideologia e aparelhos ideológicos do Estado. Lisboa: Editorial


Página

presença. Martins Fontes. 1975.

ISBN: 978-85-7621-221-8
FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e mudança social. Brasília: Editora Universidade de
Brasília. 2001.

BRASIL. Lei n. 13.284 de 10 de maio de 2016. Dispõe sobre as medidas relativas aos Jogos
Olímpicos e Paraolímpicos de 2016 e aos eventos relacionados, que serão realizados no
Brasil; e altera a Lei nº12.035, de 1ºde outubro de 2009, que “institui o Ato Olímpico, no
âmbito da administração pública federal”, e a Lei nº12.780, de 9 de janeiro de 2013, que
“dispõe sobre medidas tributárias referentes à realização, no Brasil, dos Jogos Olímpicos de
2016 e dos Jogos Paraolímpicos de 2016”. Brasília, DF, 11 maio 2016. Seção V. Cap. IV.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/_Ato2015-
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ISBN: 978-85-7621-221-8
GT7 – INFORMAÇÃO, CULTURA E PRÁTICAS SOCIAIS

O FENÔMENO DO CONSUMO ENQUANTO ELEMENTO IDENTITÁRIO E DE


SOCIABILIDADE NA CONTEMPORANEIDADE

Shemilla Rossana de Oliveira Paiva156

As discussões em torno da identidade afloram na medida em que seus norteadores de


outrora perdem força. Essa é uma afirmativa que corre o risco de soar equivocada para alguns,
notadamente para aqueles que veem as estruturas ainda muito presentes, porém, essa
afirmativa não nega a força da tradição, mas deflagra um processo, ainda em trânsito, de uma
identidade menos debruçada na tradição local, familiar e religiosa e mais guiada por escolhas
e questionamentos que se dão num contexto sem espaço e tempo definidos e alinhados.
Dizer que hoje a identidade passa por um trabalho de afirmação e de luta contra
posições de privilégio e hegemonia de determinados grupos identitários, é não apenas e
ingenuamente dizer que os indivíduos são mais libertos das amarras da tradição e por isso
mais decididos, mas, é também reconhecer que os mesmos se encontram confusos diante da
necessidade de serem autores de seus projetos de vida e de sua reflexividade, principalmente
porque na atualidade isso se dá em meio a uma dinamicidade de informações e
acontecimentos nunca vista antes.

O consumo na contemporaneidade

É nesse panorama de múltiplas escolhas, como uma espécie de prateleira de


personalidades, que o indivíduo se vê não com o direito, mas com o dever de escolher uma
identidade, já que almeja ser notado, ser credenciado a determinados grupos de interesse e ser
marcado em suas peculiaridades. Muitos são os discursos que se propõem a ajudar o sujeito
nessa tarefa de se descobrir e de encontrar sua personalidade, por exemplo, o terapêutico, o
pedagógico, o dos manuais de auto-ajuda, etc. Múltiplos também são os símbolos que, na
contemporaneidade, representam identidades, como o carro que traria ao homem uma imagem
viril, esse mesmo homem que numa moto seria aventureiro, tal qual o cigarro que
anteriormente poderia significar virilidade, e que hoje, com o discurso da saúde e boa forma
997

em voga, o colocaria como alguém descuidado e até doente.


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Bacharela em Publicidade e Propaganda pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN.
Mestra no Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais e Humanas – PPGCISH pela mesma Instituição.

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Esses tantos discursos disponíveis para guiar o indivíduo em sua “descoberta” revelam
um fato, a identidade envolve relações de poder. Como se sabe, todo exercício de poder traz
consigo um discurso de sustentação, e esse discurso, por sua vez, é embasado em um saber,
bem como todo saber e ideologias se materializam e se constroem num discurso, este que tem
uma ordem, e que não é meramente repressivo, danoso e imposto, mas muitas vezes desejado
por uma vontade de verdade, essa necessidade que temos de conceitualizações, que norteia e
seduz. Em “A ordem do discurso”, Foucault traz a seguinte hipótese:

Eis a hipótese que gostaria de apresentar esta noite, para fixar o lugar — ou
talvez o teatro muito provisório — do trabalho que faço: suponho que em
toda a sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada,
selecionada, organizada e redistribuída por um certo número de
procedimentos que têm por função esconjurar os seus poderes e perigos,
dominar o seu acontecimento aleatório, esquivar a sua pesada e temível
materialidade (Foucault, 2008, p. 08-09).

E essa ordem, controle, seleção, organização e distribuição do discurso só se dá pela


utilização de procedimentos de exclusão, como a interdição, do tabu em torno dos objetos,
dos rituais da circunstância, e dos privilégios do emissor. Isso tudo porque “o discurso não é
simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que,
pelo que se luta, o poder do qual queremos nos apoderar” (FOUCAULT, 2008). Desta feita,
percebem-se duas características centrais sobre a identidade “a identidade é relacional” e a
“identidade é marcada pela diferença” (WOODWARD, 2008).
A identidade de alguém existe em relação à identidade de outra pessoa, ser uma
brasileira é não ser uma americana, ou uma japonesa, e por aí vai, por isso a diferença
também é determinante para a marcação de uma identidade. Mas não só aumentou a
amplitude de símbolos demarcando identidades, como a utilização e busca por uma identidade
que vai além das pessoas físicas, diz-se que as marcas de maior sucesso são aquelas que
conseguiram uma identidade, como a personificação da Bombril em irreverente, da Mercedes
em bem sucedida, da Chanel em elegante, etc. Logicamente essas marcas souberam utilizar o
simbólico a seu favor, como a Chanel que tem sua cartela de cores centrada no preto, cor que
representa sofisticação e discrição, e que gera uma ilusão de ótica de emagrecimento,
característica que está atrelada a um padrão de beleza vigente.
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É possível afirmar que o poder não existe em si, mas em seu exercício, as relações de
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poder em Foucault constituem uma rede, onde não há dominação absoluta ou controle das

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relações por um órgão. O exercício de poder é “um modo de ação de uns sobre outros”, o
poder não é, ele está, ele ocorre, ele não é puramente consentido, mas só ocorre onde há
liberdade, a escravidão é coação. Poder é governar, é convencer aquele que poderia escapar a
optar por ficar. Liberdade é diferente de ausência de poder, liberdade é resistência.
Entende-se que esses tantos discursos que embasam a ideologia do “escolha sua
identidade” se baseiam no poder pastoral, outrora utilizado pela igreja e agora sabiamente
usado pelo mercado e tantas outras instâncias. Um poder travestido de cuidador, protetor e
salvador, mas na verdade disciplinador, que age como um “princípio de controle da produção
do discurso, que lhe fixa os limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma
reatualização permanente das regras” (FOUCAULT, 1995). O poder pastoral convida o
indivíduo a conhecer melhor a si próprio, enquanto aproveita para prescrever-lhe um modo
próprio de ser.

Consumo e identtidade

Sempre que o tema do consumo vem à baila, inicia-se uma série de problemáticas,
pois mesmo quem tenta fugir dessa visão maniqueísta acaba por indagar-se se ele é bom ou
ruim no que tange o desenvolvimento das potencialidades dos sujeitos, tanto individualmente
quanto em sociedade. E é exatamente ai que se encontra o cerne da questão, o consumo e seus
múltiplos processos não podem ser vistos unicamente como uma relação manipuladora dos
meios sobre as audiências indefesas, ao contrário, o que ocorre são trocas simbólicas. Em seu
texto “O Consumo serve para pensar”, Canclini adentra na temática do consumo afirmando:

Uma zona propícia para comprovar que o senso comum não coincide com o
bom senso é o consumo. Na linguagem corriqueira, consumir costuma ser
associado a gastos inúteis e compulsões irracionais. Esta desqualificação
moral e intelectual se apóia em lugares-comuns sobre a onipotência dos
meios de massa, que incitariam as massas a se lançarem irrefletidamente
sobre os bens (CANCLINI, 2008, p. 59).

Indo de encontro aos posicionamentos de Canclini com relação ao consumo, mas


ainda mais otimista, Colin Campbell, no texto “Eu compro, logo sei que existo: as bases
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metafísicas do consumo”, traça uma relação entre a metafísica e o consumo, mostrando que
não são termos isolados ou opostos, mas intrinsecamente ligados. Essa afirmação do autor
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gera estranhamento num primeiro momento, pois o consumo ainda é visto como uma prática

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irrefletida, impulsionada exclusivamente pelos estímulos do mercado e da publicidade, ou
seja, ainda existe aquela ideia de um indivíduo que, perdendo sua consciência por alguns
minutos ou horas, consome cegamente para só depois cair em si e no arrependimento.
Discordando dessa propalada visão mecanizada do consumo, que coisifica não só os
produtos, mas também quem os compra, Campbell insiste na conexão entre a metafísica -
princípios básicos do ser e saber- e o consumo. Para chegar a essa conclusão o autor propõe
abandonar o questionamento em torno do “Por que consumimos?” que serviria apenas para
reconstatar o que já se tornou óbvio, como para a satisfação de necessidades, a emulação dos
outros, o prazer, defesa e o status, e convida o leitor a adotar o consumo enquanto dimensão
que se imbrica com as mais profundas e definitivas questões que os seres humanos possam se
fazer, com o verdadeiro propósito da existência.
Porque tratar como um tema menor o fenômeno do consumo, mais especificamente o
moderno, se ele ocupa espaços tão centrais na vida das pessoas e na formação de suas
identidades? Entre as incontáveis ofertas e diferentes modelos de um mesmo tipo de produto
que o mercado coloca nas gôndolas, o indivíduo-consumidor se vê diante de um trabalho de
escolha que envolve suas memórias afetivas, cheiros, custo-benefício, relação de confiança
com a marca, anseio em experimentar uma nova, identificação ou não com as campanhas dos
produtos, entre tantos outros elementos, não só de ordem prática, mas como advertiu
Campbell, metafísica.
Não é a toa que a publicidade vai além do anúncio com a apresentação do produto e
seu respectivo preço, e investe fortemente em narrativas que vão desde as lúdicas até as
humorísticas, se utilizando de arquétipos universais como os heróis desbravadores, a mãe
carinhosa, o bobo-da-corte, etc. É também por isso que os anunciantes contratam celebridades
para seus comerciais, é a tentativa de personificar a marca, de dar-lhe vida, de oferecer um
ponto onde o receptor-consumidor possa se projetar e se identificar. Ou seja, a compra é
muito mais orientada pelo desejo do que pela necessidade, são as razões de ordem íntima e
não práticas que definem as escolhas, logo o fenômeno do consumo se dá subjetivamente e
não como algo objetivamente estabelecido.
1000

Hoje em dia, concordo plenamente com o fato de que o senso de identidade


de um indivíduo não é mais claramente determinado, como já foi, por sua
filiação a determinada classe ou status de certos grupos, apesar de aceitar
que o consumismo é fundamental para o processo pelo qual os indivíduos
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confirmam ou até criam suas identidades. Mas o que contesto aqui é a ideia
de que os indivíduos na sociedade contemporânea não tem um conceito fixo

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ou único do self, embora sustente a tese de que o consumo, longe de
exacerbar a “crise de identidade”, é, na verdade, a principal atividade pela
qual os indivíduos geralmente resolver esse dilema (CAMPBELL, 2006,
p.50-51).

Se a teoria crítica da escola de Frankfurt com seu conceito de Indústria Cultural


retoma alguns pontos da já superada teoria hipodérmica ou da bala mágica, onde o sujeito-
receptor-consumidor receberia bocados prontos dos meios de comunicação de massa sem
oferecer qualquer tipo de resistência ou resignificação, se transformando em alguém reificado,
alienado e sem autonomia sequer para gerir seu tempo, Campbell enxergaria uma dose
apocalíptica nessa análise.
Já em Giddens, as mudanças trazidas pela Modernidade foram impactantes para o
terreno das experiências individuais, de modo que, entre a subjetividade e o todo social
haveria um entrelaçamento inconteste, inexistindo primazia de um ou outro. Em sua “Teoria
da Estruturação”, o autor vai tratar da interdependência entre os sujeitos e a estrutura em que
vivem, sujeitos esses que são agentes e que realizam ações através das estruturas sociais que
ocupam. Sobre a Teoria da Estruturação, Giddens nos explana:

A questão é como os conceitos de ação, significado e subjetividade devem ser


especificados e como poderiam ser relacionados com as noções de estrutura e coerção.
[...] O domínio básico de estudo das ciências sociais, de acordo com a teoria da
estruturação, não é a experiência do ator individual nem a existência de qualquer
forma de totalidade social, mas as práticas sociais ordenadas no espaço e no tempo. As
atividades sociais humanas, à semelhança de alguns itens auto-reprodutores na
natureza, são recursivas. Quer dizer, elas não são criadas por atores sociais, mas,
continuamente recriadas por eles através dos próprios meios pelos quais eles se
expressam como atores. Em suas atividades, e através destas, os agentes reproduzem
as condições que tornam possíveis essas atividades (GIDDENS, 2003. p. 3).

Da citação exposta acima é possível aferir que as estruturas não impediriam a ação
humana, ou a repreenderia; do contrário, apresentariam os modos pelos quais esses indivíduos
agiriam, e essas ações, por sua feita, resultariam na repaginação dessas estruturas. Faz-se
mister sublinhar que na perspectiva de Giddens isso só se dá porquanto o sujeito é capaz de
uma reflexividade, a sua identidade é um projeto de sua própria autoria, ou uma “narrativa
1001

reflexiva do eu”. A estrutura constrange, mas também proporciona a capacidade de agência do


sujeito.
Ora, se as práticas sociais são eminentemente recursivas, é elementar que haja um
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trabalho de reflexividade sobre elas, principalmente apoiado em sua continuidade e repetição.

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Existiria, então, um monitoramente exaustivo da vida social, onde o fluxo de acontecimentos
não é rudimentar como se poderia pensar. Esses sujeitos, por exemplo, não naturalizam a
rotina como algo simples e objetivamente dado, sendo capazes até mesmo de traduzirem num
discurso, se arguidos acerca, o porquê de segui-la, de suas tarefas e obrigações. A
reflexividade seria, desse modo, um dispositivo de observação e tentativa de controle da ação
por parte de quem a pratica.
Essa reflexividade não seria meramente prática, e se utilizaria de conhecimentos
peritos, ou da confiança depositada nestes, que se dá num ambiente de desencaixe entre tempo
e espaço, de globalização, e entre o poder de agência (parcial e desigual) e a angústia de uma
sociedade pós-tradicional, onde a tradição se encontra em meio a um processo de ostracismo,
enquanto a razão oferece um leque de escolhas e, ironicamente, de incertezas e riscos. Assim
sendo, os indivíduos se veem claramente na posição de responsáveis por sua trajetória, seja
ela vitoriosa ou fracassada.
Ao passo em que a modernidade oferece uma maior possibilidade de agência, de
resistência e do direito de escolher, ela também propicia a problemática da segurança versus o
perigo, da confiança versus o risco, e da dúvida. Cotidianamente nos deparamos com o
multiplicar das incertezas, o que se estende das coisas mais complexas até as mais banais,
como o ovo, que passa de mocinho a vilão em questão de dias, em meio ao fervilhar de
novidades e descobertas que o conhecimento e a tecnologia proporcionam ao discurso
médico. Não resta dúvida, a mídia, tomando por base essa pequena ilustração em forma de
exemplo, também exerce peso, cuja atuação se dá numa desconexão entre espaço e tempo, o
que torna semelhante qualquer acontecimento em todas as partes.
Nesse cenário de desencaixe entre tempo-espaço, ou seja, nesse “deslocamento das
relações sociais de contextos locais de interação e sua reestruturação através de extensões
indefinidas de tempo-espaço” (Giddens, 2002), vê-se a mudança nos costumes e hábitos, bem
como o gradual abandono das restrições colocadas pelos fatores locais. Deste modo, as
relações se dão das mais diferentes formas, face-a-face, mediada, à distância, dentre outros. É
percetível, com isso, que a categoria de lugar torna-se quase uma abstração.
Ainda segundo Giddens, esse desencaixe é composto de dois mecanismos, ambos
1002

dependentes da noção de confiança, sendo eles as fichas simbólicas e os sistemas peritos. As


fichas simbólicas correspondem aos “meios de intercâmbio que podem ser “circulados” sem
ter em vista as características específicas dos indivíduos ou grupos que lidam com eles em
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qualquer conjuntura particular” (GIDDENS, 2002), ou seja, as fichas simbólicas independem

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diretamente das particularidades locais ou mesmo de quem as utiliza, elas vinculam
acontecimentos dispersos no tempo e no espaço, assim como o dinheiro, por exemplo, que é
um elo entre um acordo, um espaço de tempo, e seu desdobrar. Daí a confiança.
Essa confiança pode se dar entre duas pessoas, a saber, vendedor e comprador, mas ela
se dá mais enfaticamente no dinheiro em si. “A confiança, em suma, é uma forma de “fé” na
qual a segurança adquirida em resultados prováveis expressa mais um compromisso com algo
do que apenas uma compreensão cognitiva” (GIDDENS, 2002). Por isso o esvaziamento do
tempo é visto sem desconfiança quando se faz uso do crédito, a título de ilustração, porque o
dinheiro é mais confiável do que quem o utiliza, ele está acima, é autônomo.
Os sistemas peritos, o segundo mecanismo de desencaixe, referem-se a “sistemas de
excelência técnica ou competência profissional que organizam grandes áreas dos ambientes
material e social em que vivemos hoje” (GIDDENS, 2002). Diferentemente de uma consulta
eventual a um médico, ou outro especialista, fazemos uso dos sistemas peritos de forma
contínua. Por exemplo, se habito com tranquilidade em minha casa é porque confio no
conhecimento perito que embasou toda a estrutura que me cerca, do alicerce ao retoque final.
Podemos não compartilhar do mesmo código de quem construiu parte por parte da minha
casa, mas confiamos no sistema perito do qual o construtor fez uso.
Tanto as fichas simbólicas como os sistemas peritos tiram as relações de um contexto
espacial ou temporal definido e sincrônico, ou seja, desencaixam, garantindo as expectativas
mesmo nesse intervalo anacrônico, pois há confiança, e esta é sustentada “por meio da
natureza impessoal de testes aplicados para avaliar o conhecimento técnico e pela crítica
pública, usado para controlar sua forma” (idem), somado a isto existem ainda “forças
reguladoras além e acima das associações profissionais, com o intuito de proteger os
consumidores dos sistemas peritos” (ibidem).
Na modernidade, as práticas não são legitimadas pela tradição pura e simplesmente,
mas pelo conhecimento (embora este beba de fontes tradicionais algumas vezes), que se
materializa em várias teorias, que podem ser aceitas, mas também reformuladas ou mesmo
contestadas, o que modifica seu caráter e pode desmoronar o que outrora foi tomado como
indubitável. Os riscos, nas culturas pré-modernas consubstanciavam-se nos perigos próprios
1003

da natureza e das intempéries do tempo, das disputas por espaço e das entidades divinas.
Atualmente, os riscos se originam da reflexividade humana, das guerras, e da desorientação
pessoal podendo até desembocar na depressão e no suicídio.
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Voltando ao consumo, especificamente o moderno, é possível dizer que ele é
enraizado no self, o que impera é a emoção, o desejo, imaginação, querer, experimentar, e não
apenas necessitar, nota-se então que o mercado tem suas estratégias de convencimento
inegavelmente fortes, mas é a demanda do consumidor que se encontra na liderança. A
ideologia individualista tão em voga na modernidade reivindica exclusividade e conquista no
momento da procura, compra e utilização de bens e/ou serviços.
Muitos são os instrumentos oferecidos e utilizados pelos sujeitos em meio a essa
procura por uma segurança ontológica, tais quais os livros de auto-ajuda, as terapias e as
viagens, todos eles baseados num conhecimento perito que é operado por um profissional
(autor, médico, guia), mas também no indivíduo, que precisa dar sua contrapartida,
permitindo-se uma nova chance, seja após o casamento fracassado, quer seja após a chegada
da idade, ou qualquer outra fase propícia aos dilemas existenciais. Essas novas chances
devem vir acompanhadas de experiências inéditas, já que para Giddens, na modernidade, a
realidade se converteu na intensidade da experiência.
Na modernidade os indivíduos se definem em termos de seus gostos porque sentem
que é isso o que mais claramente sintetiza quem são, a real identidade está nas preferências,
mas acredita-se que o verdadeiro local onde reside a identidade é nas reações aos produtos, e
não nos produtos em si, porque a identidade é descoberta e não comprada, assim sendo, o
consumo não gera a tão propalada crise das identidades, mas ao contrário, geralmente ajuda a
resolver esse dilema.
Para Colin Campbell, o consumo oferece a segurança ontológica tão procurada na
modernidade, o selfie moderno não seria aberto e flexível por escolha, mas justamente por
padecer de uma insegurança que pode ser sanada através do consumo, e que na modernidade,
onde a realidade se converte na intensidade das experiências, o consumo é quem mais pode
proporcionar essa buscada segurança.
Vê-se então que as ofertas de bens e a indução publicitária não são atos totalmente
arbitrários e, que mais do que simples exercícios de gostos, caprichos e compras impulsivas, o
consumo é o conjunto de processos socioculturais em que se realizam a apropriação e os usos
dos produtos. Portanto, como afirma Canclini (2008, p. 63), “devemos admitir que no
1004

consumo se constrói parte da racionalidade integrativa e comunicativa de uma sociedade.”


As mercadorias funcionam como objetos ritualísticos e a ocorrência de um ritual exige
um acordo coletivo, assim sendo, as pessoas seguem diariamente uma ritualística, que por ter
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se tornado corriqueira parece já ter nascido junta com elas, muito embora, o que há na

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verdade é um acordo dentro de uma dada cultura, onde um consenso julga como procedente
aquela teia de significações. “Dando sentido ao fluxo rudimentar dos acontecimentos”
(CANCLINI, 2008) os bens assumem, então, o papel de amuletos, que juntos, proporcionam
um modelo organizacional.
Entende-se o consumo como uma atividade inerente ao ser humano em todos os
estágios de sua existência, como um ato político, socialmente regulado, e como um fenômeno
de comunicação de significados. Todavia, o consumo constitui um corpus um tanto quanto
complexo e imbricado em pontos positivos e negativos. Tendo mostrado que o ato de
consumir não é algo irrefletido e realizado por uma sociedade inerte, faz-se necessário
entender melhor um segundo termo, esse não saudável, o consumismo. Em que consiste o
consumismo? Quem são essas pessoas que realizam tal prática e por quê? Que tempo é esse
que abriga o consumismo?
Superado o modo de vida em uma economia meramente de subsistência, as pessoas
passaram a conviver em um ambiente de estocagem, o que foi decisivo, segundo Bauman,
para o advento da revolução consumista. É a partir desse ponto que uma série de inéditas
questões passa a ocorrer na forma de vida e de consumo desses indivíduos. Agora, não mais
as necessidades nortearão as escolhas, mas os desejos, não mais o uso, mas o descarte. Pela
primeira vez a felicidade passará a ser mercantilizada, felicidade essa que está inserida em um
tempo pontilhista, sempre “ainda por vir”.
A passagem do consumo para o consumismo teria ocasionando mudanças
significativas no perfil das sociedades e na identidade dos indivíduos. Na era produtora, os
bens materiais tinham a função de representar o papel que as pessoas ocupavam, para isso era
necessário que os bens fossem duráveis, seguros, grandes e vistosos, para assim, serem
inabaláveis mesmo com as intempéries do tempo. O aspecto sólido do bem estaria atrelado à
solidez do posto ou cargo social que o dono ocupava em seu entorno. Logo, o desfrute de tais
bens deveria ser feito em um processo lento, cauteloso, jamais imediato.
Inversamente, na era do consumismo, a estabilidade não é um produto vendável, mas
sim uma característica indesejada, que pode enferrujar a engrenagem- mor de um sistema que
se baseia em desejos sempre crescentes, mutáveis e fluídos. O uso deve se fixar no agora, no
1005

imediato, em um tempo alinear. O planejamento deve ser evitado porque sugere o desperdício
de oportunidades que teoricamente aparecerão em meio ao caminho, o tempo passa a ser cada
vez mais pontilhista.
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No modelo de tempo pontilhista, não há espaço para a ideia de “progresso”
como o leito vazio de um rio sendo lenta, mas continuamente preenchido
pelos esforços humanos. […] A ideia do “tempo da necessidade” foi
substituída pelo conceito de “tempo de possibilidade’’, tempo aleatório,
aberto em qualquer momento ao irromper imprevisível do novo. Uma
concepção da história como processo aberto, não determinado previamente,
no qual surpresas, golpes inesperados de boa sorte e oportunidades
imprevistas podem surgir a qualquer instante (BAUMAN, 2008. p. 47).

Antes a demora, e agora a pressa em usufruir os bens, demarca substancialmente as


diferenças entre a sociedade da era produtora e da consumidora. Bauman retrata inclusive que
se passou a enxergar a “demora como o serial killer das oportunidades”. A partir desse ponto
surge uma nova discussão, o prazer no descarte e na substituição. Se a pressa em usufruir os
bens é o fator ocasionador de satisfação, o descarte e substituição é o indicador de poder.
A publicidade, por exemplo, já se deu conta dessa avidez pela substituição, tanto que
seus comerciais passam sempre a mensagem de que “não se deve chorar pelo leite
derramado”, ou seja, se esse bem não te trouxe o sonhado happy end, parta para outro, se o
casamento acabou compre uma viagem e respire novos ares, ou quem sabe adquira o livro
“Como ser feliz após a separação” na livraria mais próxima.

Considerações finais

Este trabalho buscou discutir a questão da identidade e dos vários fenômenos que a
cerca, entre eles o poder, os discursos, a linguagem e as representações. Durante as leituras
que resultaram na escrita desse texto, foi possível perceber que a identidade é, de fato,
construída, e que essa afirmativa, que num primeiro momento pode parecer elementar, é, na
verdade, rica em explicações e descobertas. A identidade é relacional e se sustenta na
diferença, mas não só. Ela é avidamente buscada, bem como as conceitualizações que lhe
caracteriza, porque a identidade é um investimento, é uma posição temporária de apego.
Mas não basta ter uma identidade, é preciso externá-la, por isso a ênfase na
representação e na diferenciação entre identidade e subjetividade. Enquanto esta última me
faz pensar que só eu conheço realmente o meu eu, e que consigo demonstrar em público o eu
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que mais me convém, na verdade, esse conhecimento íntimo que se julgava ter, não era tão
puramente subjetivo assim, mas envolto em uma série de conceitos, termos e imagens
previamente existentes.
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Por fim, diante do cenário contemporâneo, onde os sujeitos constroem suas
identidades cada vez menos orientados pela tradição, pelo âmbito local e por instituições
nucleares como a família e a igreja, discutiu-se o processo identitário que se dá através do
consumo e seus símbolos de identificação e diferenciação, bem como um fator que
proporcionaria uma segurança ontológica a esses indivíduos que se veem na posição de
responsáveis diretos por seus projetos de vida.

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ISBN: 978-85-7621-221-8
GT8 – FORMAÇÃO E PRÁTICAS DE PROFESSORES DE LÍNGUA INGLESA

ENSINO DE INGLÊS EM TURMAS NUMEROSAS: CARACTERIZAÇÃO DO


CURSO TÉCNICO DE NÍVEL MÉDIO INTEGRADO EM INFORMÁTICA

Geraldo Máximo da Silva (IFRN)


Samuel de Carvalho Lima (IFRN)

Introdução

Os primeiros contatos com a língua inglesa no Brasil datam dos primórdios da nossa
colonização. O aventureiro e comerciante William Hawkins teria sido o primeiro britânico a
desembarcar na costa brasileira, por volta de 1530, e estabelecer relações comerciais com
lusitanos aqui instalados e nativos (Lima, 2008).
A vinda da família real portuguesa para o Brasil, já por volta de 1808, trouxe consigo
também grandes transformações culturais, políticas e sociais. E de fato, o ensino formal de
línguas estrangeiras modernas começa oficialmente com o decreto de 22 de junho de 1809,
por meio do qual o Príncipe Regente de Portugal, cria uma escola de língua francesa e outra
de língua inglesa. Até então, o grego e o latim gozavam da exclusividade no ensino de línguas
estrangeiras.
Segundo LEFFA (1999) dois graves problemas atingiam o ensino de línguas
estrangeiras modernas durante o período do império: a carência de uma metodologia
adequada e a as falhas na administração:

A metodologia para o ensino das chamadas línguas vivas era a mesma das
línguas mortas: tradução de textos e análise gramatical. A administração,
incluindo decisões curriculares, por outro lado, estava centralizada nas
congregações dos colégios, aparentemente com muito poder e pouca
competência para gerenciar a crescente complexidade do ensino de línguas
(LEFFA, 1999. p. 4).

Tais problemas se prolongariam por mais anos no ensino de línguas estrangeiras no


contexto brasileiro. Porém, a fundação do Colégio Pedro II, no ano de 1837, o primeiro de
nível secundário no Brasil, deu grande valorização às línguas vivas. Sendo a sua grade
1009

curricular inspirada nos moldes franceses, no programa constava, além das línguas clássicas,
francês, alemão e cinco anos de ensino de língua inglesa. Este sistema permaneceu na
Página

instituição até o ano de 1929.

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No entanto, várias mudanças e reformas ocorreram no cenário da educação brasileira,
em sua maioria com impactos negativos para o ensino de línguas estrangeiras, até chegarmos
à última grande reforma no ensino nacional, a LDB de 1996. Essa última grande mudança no
sistema de ensino nacional substituiu o 1º e 2º graus, instituídos na reforma da LDB anterior,
por Ensino Fundamental e Ensino Médio, deixando clara a necessidade de uma língua
estrangeira no ensino fundamental, cuja escolha ficaria a cargo da comunidade escolar. Para o
Ensino Médio, a nova lei determina a obrigatoriedade de uma língua estrangeira moderna,
sendo possível haver uma segunda língua optativa, de acordo com as disponibilidades da
instituição.
Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) complementam a nova LDB, e mesmo
não tendo um caráter normativo, servem como referência para o trabalho de professores em
todo o país. No que se refere ao ensino de língua inglesa, os PCN de Língua Estrangeiras têm
sido bastante discutidos no sentido de tornar o ensino da língua mais eficiente e próximo da
realidade no contexto social atual para os alunos. Nesse aspecto, o documento apresenta
visões bastante diferentes em relação às reformas anteriores:

[...] deixa de ter sentido o ensino de línguas que objetiva apenas o


conhecimento metalinguístico e o domínio consciente de regras gramaticais
que permitem, quando muito, alcançar resultados puramente medianos em
exames escritos. Esse tipo de ensino [...] cede lugar, na perspectiva atual, a
uma modalidade de curso que tem como princípio geral levar o aluno a
comunicar-se de maneira adequada em diferentes situações da vida cotidiana
(BRASIL, 2000. p. 26).

Esse posicionamento é compartilhado pelo professor que defende o ensino da língua


inglesa voltado para a comunicação verdadeira, traduzindo o desejo do profissional e de seus
alunos de um novo enfoque na sala de aula, que permita levar o aluno às situações de ensino,
refletindo a comunicação da vida real. No entanto, os próprios Parâmetros Curriculares
Nacionais apresentam visões diferentes em relação ao ensino de língua inglesa, conforme os
níveis de educação. Segundo Paiva (2003), este problema tem origem já na concepção dos
documentos oficiais norteadores do ensino da língua estrangeira, que devido às bases
1010

ideológicas diferentes de seus idealizadores, acabam constituindo-se em fontes de orientações


divergentes para o ensino da língua, o que resulta em uma política de ensino de LE
contraditória:
Página

ISBN: 978-85-7621-221-8
Além dos PCNs para o ensino fundamental, temos os PCNs para o ensino
médio e para a educação de jovens e adultos. O MEC, ao encomendar os
textos dos PCNs para profissionais com crenças e filiações ideológicas
diferentes, acaba por oferecer à comunidade uma política de ensino de LE
contraditória (Paiva, 2003, p. 59).

Independentemente dos conflitos existentes nos documentos, é essencial se ter em


mente a realidade das demandas para a língua estrangeira, de forma efetiva, na escola regular
atual.

1 Fundamentação teórica

A busca da comunicação verdadeira ressaltada anteriormente, dialoga com a Proposta


de Trabalho da Disciplina de Língua Inglesa do IFRN, elaborada também com base nos
Parâmetros Curriculares Nacionais e com vistas ao ensino comunicativo. O documento que
defende um trabalho voltado para a Abordagem Comunicativa, visando habilitar o aluno a
desenvolver a sua capacidade de se expressar de forma autônoma, nos diversos contextos do
seu cotidiano.
No entanto, adotar uma abordagem comunicativa no ensino de língua inglesa em uma
sala de aula da escola pública regular, implica sem dúvidas, em superar as dificuldades
colocadas pelo próprio ambiente, para poder promover as situações de comunicação, e em
especial, a comunicação oral.
E uma das situações, que se constitui em uma das maiores dificuldades para se
promover o ensino comunicativo, por sinal bastante comum nas escolas regulares brasileiras,
e a quantidade elevada de alunos por turma, que juntamente com outros fatores, geram as
chamadas turmas numerosas.
Mas turma numerosa não seria apenas uma turma com elevado número de alunos?
Sem dúvidas, em um primeiro momento, normalmente vem à mente que a ideia expressa pelo
termo não seria nada além de uma turma com um número elevado de alunos. Mas na verdade,
para se chegar a uma definição de turma numerosa, do inglês large class, não é tarefa tão
simples. Sem dúvidas essa é uma discussão que tem gerado interpretações equivocadas até
1011

por profissionais já experientes no ensino de línguas estrangeiras. Para se entender esse


fenômeno faz-se necessário avaliar vários pontos e detalhes que fazem a sala de aula. Mas a
Página

dificuldade maior reside principalmente no fato de ainda se ter poucos estudos específicos
sobre o tema. E no contexto brasileiro, parece haver uma lacuna ainda maior sobre a questão.
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De acordo com o Conselho Britânico (2014), o tamanho da turma é frequentemente
definido em números. No entanto, a percepção de professores e aprendizes de uma turma
numerosa não é determinada apenas pelo número de alunos, mas por vários fatores adicionais.
Em relação a isso, Loo (2007) afirma:

Uma definição numérica não será, por conseguinte, suficiente, pois deve ser
correlacionada com a disciplina específica, a natureza da turma e os seus
objectivos de aprendizagem, bem como as características dos alunos, a
formação e experiência dos professores, bem como os métodos de ensino
que utilizam (LOO 2007, p. 15).157

A própria organização didática do IFRN prevê turmas com até 45 alunos. Porém, para
se chegar à definição da quantidade de alunos por turma, ignora-se ou não são percebidas as
particularidades de algumas áreas, como no caso da língua inglesa. E entre essas
particularidades, estão fatores que deveriam ser levados em consideração na definição de
turmas numerosas. Pensar em estratégias para dar conta do que está prescrito nos documentos
oficiais e ao mesmo tempo garantir o rendimento satisfatório em sala de aula, torna-se um
grande desafio para o ensino de inglês.
Chamamos a atenção para esta situação devido ao desafio que encontramos, já
inicialmente, na relação que estabelecemos entre os dois documentos institucionais citados.
Por um lado, a sugestão de qual abordagem para o ensino de língua inglesa os professores da
instituição devem utilizar: comunicativa. Por outro lado, a realidade concreta da sala de aula,
que prevê um número de até 45 alunos por turma.
Para além desse desafio, acrescentamos que entre os alunos que compõem as turmas é
comum encontramos uma certa heterogeneidade: há os que têm conhecimentos da língua
estrangeira - às vezes até falam a língua fluentemente - como é o caso dos alunos que
frequentam cursos particulares de idiomas com foco na conversação e os que carecem das
noções elementares da língua, que tiveram acesso restrito e limitado ao idioma. Esses últimos
são maioria e contam apenas com o que foi ensinado, na maior parte dos casos, em uma
perspectiva estrutural, nas aulas de inglês do Ensino Fundamental. A esse respeito, Loo
(2010, p. 31) afirma que “As turma numerosas duplicam o desafio”. E para se obter êxito em
1012

turmas numerosa, professores, alunos e demais pessoas envolvidas no processo precisam

157
Nossa tradução livre de: “A numerical definition will therefore not suffice, but needs to be correlated with
the specific discipline, the nature of the class and its learning objectives, as well as student characteristics, and
Página

teachers’ training and experience as well as the teaching methods they use.”

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buscar caminhos metodológicos, didáticos e tecnologias que permitam compensar as
dificuldades surgidas em consequência da quantidade de alunos e demais fatores constituintes
do ambiente de sala de aula.
Acreditamos que ambos os fatores, tanto a quantidade de alunos em sala de aula
quanto a heterogeneidade em relação à fluência da língua estrangeira, refletem de forma direta
no desenvolvimento e resultados das atividades comunicativas propostas em sala de aula. E
justamente pontos como esses exigem análise e reflexão, para que se possa alcançar o
desenvolvimento e êxito da proposta metodológica que se pretende implementar.

2 Metodologia

O ensino de língua inglesa nos cursos regulares do IFRN, no qual se encaixa a turma
envolvida neste trabalho, segue as orientações dos documentos institucionais oficiais, sendo o
Projeto Politico Pedagógico (PPP), o documento que traz, em um dos seus volumes, a
orientação institucional que trata do trabalho desta disciplina, assim como seus objetivos,
proposta metodológica e conteúdos.
Esse documento consolidou-se com as importantes contribuições decorrentes das
discussões de grupos de trabalho dos diversos campi do IFRN, organizadas sob a forma de
documentos e compilado em volumes. Entre esses volumes, que totalizam sete, o quinto diz
respeito ao item de importância maior para o ensino de língua inglesa na Instituição, quando
trata das propostas de trabalho para as disciplinas do Ensino Médio, e entre essas propostas,
está a Proposta de Trabalho para a Disciplina de Língua Inglesa. A PTDEM de língua inglesa.
A PTDEM de Língua Inglesa constitui-se como um referencial organizador da
disciplina nos cursos ofertados no IFRN, configurando-se, como um planejamento
macroinstitucional para a implementação e o desenvolvimento curricular da disciplina de
língua inglesa nos cursos técnicos.
Ela também possibilita a (re)elaboração de projetos educativos, a sistematização de
novas propostas pedagógicas e a pesquisa reflexiva sobre a prática. E ainda, apresenta-se
como base teórico-metodológica para elaboração de planos individuais e coletivos de estudo,
1013

para reflexões sobre o fazer docente e para a elaboração de programas de formação


continuada na Instituição.
O objetivo da Proposta nos cursos técnicos do ensino médio do IFRN é proporcionar
Página

orientação e sistematização das ações no trabalho com a disciplina, e resulta dos debates e

ISBN: 978-85-7621-221-8
discussão organizados pela pedagogia e professores de língua inglesa do IFRN ao longo de
vários momentos. A PTDEM de Língua Inglesa não representa uma imposição, mas sim,
apresenta orientações para o desenvolvimento do trabalho com a disciplina. Conforme o
documento:

Tendo em vista a necessidade de revisão dos aspectos metodológicos e


curriculares para maior eficácia do ensino de LI nos cursos técnicos de nível
médio do IFRN, vale ressaltar que este documento se configura como uma
“bússola”, indicando o caminho a ser trilhado. Consolida-se, portanto, em
uma sistematização que funciona como um instrumento de apoio às
discussões pedagógicas, à elaboração de direcionamentos metodológicos, ao
planejamento das aulas, à reflexão sobre a prática educativa e à análise e
produção de material didático (IFRN, 2012, p. 58).

Embora livre do aspecto impositivo, a proposta para o ensino de língua inglesa se


constitui em um ponto de apoio de relevância significativa para o trabalho docente na
Instituição, uma vez que sugere uma postura, observando as determinações legais, indicando
uma forma de trabalho condizente com a realidade atual, em consonância com as demandas
sociais e de mercado e o perfil do aluno da Instituição.
A concepção de ensino de língua inglesa, segundo o documento, elaborado com base
nos trabalhos de Brown, Paiva e Vygotsky, entre outros, e também orientações dos
Parâmetros Curriculares Nacionais de Línguas Estrangeiras, é que aprender uma segunda
língua não é uma tarefa fácil, portanto, exige uma postura ativa e atuante das partes
envolvidas no processo. Em especial, dos professores e alunos. Ainda, neste meio é
fundamental o entendimento de que necessita-se também de foco em conteúdos e materiais
relevantes para o desenvolvimento de práticas de linguagem atualizadas para os que
participam deste momento, que visualiza cada aluno como um ser único.
A aprendizagem deve acontecer através da interação entre os indivíduos que ocupam o
espaço de sala de aula, isto é, entre o professor e alunos, e alunos entre si. O professor assume
o papel de facilitador, de negociador no processo de ensino- aprendizagem, sendo ele também
um ser em contínua formação, e não um detentor de conhecimentos. Como ressaltado por
Richards e Rodgers (1999):
1014

O professor tem dois papéis principais: o primeiro papel é facilitar o


processo de comunicação entre todos os participantes na sala de aula e entre
esses participantes e as diversas atividades e textos. O segundo papel é atuar
Página

como um participante independente no grupo de ensino-aprendizagem [...]

ISBN: 978-85-7621-221-8
um terceiro papel do professor é o pesquisador e aprendiz [...] (RICHARDS
AND RODGERS 1999, p. 77).

Pautando-se em Brown (2000, p.14), a Proposta de Ensino para Língua Inglesa no


IFRN, afirma que “cada aluno é único. Cada professor é único. Cada relação professor-aluno
é única, e cada contexto é único.” E o aluno não pode ser visto como um mero expectador do
processo.
Do ponto de vista metodológico, nitidamente, a Proposta distancia-se de visões do
ensino estruturalista tradicional. O documento defende que para o professor de inglês dar
conta do processo de ensino-aprendizagem de um fenômeno tão complexo que é a língua, faz-
se pertinente que haja, primeiramente, o entendimento de que ensinar é guiar e capacitar o
aluno a aprender, estabelecendo as condições para essa aprendizagem aconteça.
Como afirmado, a PTDEM de Língua inglesa do IFRN distancia-se de visões
tradicionais. A sugestão é para o emprego uma abordagem comunicativa, com perspectivas
em ambiente de sala de aula regular. O que além de ser uma postura inovadora para o
contexto, pode representar avanços significativos no tocante ao ensino aprendizagem no
espaço da escola pública de nível médio.
Apoiando-se na defesa de uma aprendizagem através da interação e na compreensão
das dinâmicas presentes no processo de aprendizagem, o documento apresenta-se como um
guia que abre novos horizontes no ensino de línguas inglesa na Instituição. Há de se ver,
porém, como a estrutura desta escola regular, com um número alunos normalmente acima da
média das realidades do ensino comunicativo, entre outros fatores, se adequa ao embasamento
teórico comunicativo e às condições de prática em sala de aula. Todavia, a proposta da
PTDEM é feliz quando sugere o uso de uma metodologia comunicativa. Embora estejamos
vivenciando momentos de discussões metodológicas, e novos conceitos estão sendo
propostos, não há como negar a eficiência e amplitude dessa abordagem. E apesar de termos
ciência, como dito, de que o ambiente no qual o ensino se desenvolve, e que as próprias
condições de trabalho podem não ser as mais condizentes com o ambiente onde normalmente
se faz uso da abordagem em questão, consideramos a experiência extremamente válida.
1015

3 Resultados
Página

Loo (2007) apresenta uma categorização tipificada, correlacionando os contextos


institucionais, as características dos alunos e as experiências de aprendizagem da língua, os
ISBN: 978-85-7621-221-8
objetivos do curso e os recursos, incluindo o fator temporal, de quatro tipos predominantes de
turmas numerosas:
a) As chamadas "pequenas" turmas numerosas, isto é, turmas de faculdade ou
educação de adultos com números variando entre 25 a 35 alunos. Em geral, cursos de
curta duração em níveis intermediário ou avançado, frequentemente com considerável
diversidade de alunos.
b) As chamadas turmas numerosas de “tamanho médio”: turmas de ensino de línguas
modernas com número de alunos acima de 35, podendo chegar a 60. São turmas
características de áreas densamente povoadas em países em desenvolvimento. O
período mínimo de duração é normalmente de um ano. Dessa forma, espera-se que as
chances para se alcançar a coesão do grupo e para o desenvolvimento das estratégias
dos estudantes de aprendizagem de línguas sejam maiores.
c) As chamadas turmas numerosas “grandes”, são as turmas (obrigatória) de segunda
língua para estudantes de várias disciplinas em faculdades e universidades, com
quantidade de alunos variando entre 60 e 80. A duração é de apenas um ou dois
semestres.
d) As chamadas turmas numerosas “extra grandes”, excedendo o número de 80
alunos, com considerável diversidade de estudantes, elevados níveis diferentes de
motivação e pouca coesão de grupo. A duração é de apenas um ou dois semestres.
A categorização apresentada pela autora reflete os contextos conhecidos na realidade
brasileira. E embora a impressão que se tenha, devido à falta de discussões na nossa realidade
sobre este assunto seja de que não se enfrenta tal problema no país, não há como
simplesmente negar a sua existência.
Ainda em relação à situação em âmbito geral, vale salientar que em alguns momentos,
devido a uma determinada situação didática ou pedagógica, percebe-se a necessidade de
interferência na quantidade de alunos por turma, mas tal interferência se dá como algo sem
muita importância, sem necessidade de expor ou discutir essa necessidade, ou quais os efeitos
negativos ou positivos da quantidade de alunos por turma.
No tocante à quantidade de alunos e aos diversos fatores que envolvem a turma do
1016

IFRN, inserimos no quadro de Loo (2007, p. 26), a turma do 1º ano de informática, para que
possamos compreendermos melhor a nossa realidade quando contrastada com as descrições
acerca dos diferentes tipos de turmas apresentadas pela autora.
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Inserida no quadro, a referida turma destaca-se entre a turma numerosa pequena e a
turma numerosa média. O que permite confirmar de fato o enquadramento da turma do IFRN
na realidade no contexto das turmas numerosas.
A classificação não se dá especificamente em função do ensino de língua inglesa
nessas turmas, mas levando-se em consideração os vários aspectos que as envolvem.

Quadro geral de turmas numerosas de Loo (2007), com inserção em destaque da turma
regular do 1º Ano de Informática do IFRN Mossoró.
FATORES SALAS DE TURMAS NUMEROSAS
TAMANHOS
REGULARES Peque Curso Técnico Extra
nas de Informáti Médias Grandes grandes
ca - IFRN
TAMANHO 28 25-35 44 50+ 60-80 80-150+
Escolas Faculdades e
parcialmente universidades,
secundárias em cursos de Mesmo caso que
Semi-pública ou Instituto áreas altamente (segunda) língua em “Grandes”
INSTITUI Escolas secundárias privada; Federal povoadas, países estrangeira para
ÇÕES educação para (Escola pública) em desenvolvi alunos de todos
adultos mento os departamentos

RECUR Regular Regular Bom a muito Ruim a regular, Ruim a bom Ruim a bom
SOS bom até excelente
De um a vários 1-2 semestres/ 1-2 semestres/
TEMPO Um ano letivo 1-3 meses 1 ano letivo anos letivos períodos letivos períodos letivos

OBJETIVOS Longo prazo, 1: rápida Longo prazo, Longo prazo, Diverso; Mesmo caso que
EDUCACIO frequentemente não aplicabilida aplicabilidade, frequentemente oficial/não em “Grandes”
NAIS E DE claro e muitas de; funcional funcionalidade não claro oficial: muitas
APRENDIZA vezes em primeiro e: muitas vezes vezes em
GEM plano em primeiro primeiro plano
plano
13 anos de idade, Grande Idade 14-18 Pouca Grande Grande
CARACTE estudantes mais diversidade anos, diversidade diversidade, diversidade,
RÍSTICAS maduros, novas (idade, 50% vindo da - maior motivação baixa a alta
DOS admissões de várias educação, rede pública, diversidade diversa motivação
ALUNOS escolas primárias motivação, diversidade (idade, etnia,
estratégias) regular níveis)

Grupos e Subgrupos; Subgrupos; Subgrupos;


GRUPO Coesão muito baixa Coesão baixa Sub-grupos, boa Coesão baixa a Coesão baixa a Coesão baixa;
coesão boa razoável “organismo”

PRINCÍ- Colaboração, Motivação, Ativação, Motivação, Motivação, Ativação,


PIOS diferenciação, ativação, motivação ativação, ativação, diferenciação e
METODO motivação, diferenciação e desenvolvimen diferenciação e diferenciação e personaliza
1017

LÓGICOS desenvolvimento personaliza to do aluno personaliza personaliza ção (difícil),


PRIMÁ do aluno ção ção ção motivação,
RIOS colaboração,
NECESSÁ- desenvolvimento
RIOS do aluno (difícil)
Página

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Observamos que na maioria dos itens de referência, a turma do IFRN aparece em
situação mais favorável do que as demais turmas representadas. Mas embora a turma do IFRN
apresente fatores bastante positivos quando comparados com as realidades de outras turmas
numerosas, o panorama que se reflete através do quadro não é tão tranquilo quanto possa
parecer. Obviamente esses pontos positivos percebidos indicam que temos uma turma
bastante equilibrada. E de fato, em comparação com as demais, como já afirmado, a turma se
sobressai positivamente em quase todos os aspectos analisados.
Todavia, em número de alunos, a turma já se apresenta bem próxima da turma
numerosa média, além de outros pontos que apesar de não se encaixarem como preocupantes,
exigem que o professor tenha a percepção necessária para identificar as fragilidades e atuar
nessas questões a fim de evitar prejuízos ou descontroles.

Referências

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Revista Brasileira de Lingüística Aplicada, Belo Horizonte, v. 1, n.1, p. 15-30, 2001.

BRASIL: Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais:


Línguas Estrangeiras/Secretaria de Educação Fundamental. Brasilia: MEC/SEF, 1998.

BRASIL: Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais:


terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: língua estrangeira. Secretaria de Educação
Fundamental Brasilia: MEC/SEF, 1998.

Conselho Britânico. Demandas de Aprendizagem de Inglês no Brasil. Disponível em:


https://www.britishcouncil.org.br/sites/default/files/demandas_de_aprendizagempesquisaco
mpleta.pdf. Acesso em: 01 jun. 2017.

Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte - Organização


Didática do IFRN – Natal: IFRN, 2012.

Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte - Proposta de


trabalho da disciplina de Língua Inglesa nos Cursos de Nível Médio do IFRN – Natal:
IFRN, 2011.

LEFFA, Vilson J. Metodologia do ensino de línguas. In BOHN, H. I.; VANDRESEN, P.


Tópicos em linguística aplicada: o ensino de línguas estrangeira. Florianópolis: Ed. da
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UFSC, 1988, p. 211-236.

LEFFA, Vilson J. O ensino de línguas estrangeiras no contexto nacional. Contexturas,


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LOO, Angelika. Teaching and Learning Modern Language in Large Classes. Shaker
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RICHARDS, Jack C. and RODGERS, Theodore S. Approaches and Methods in Language


Teaching. Cambridge: Cambridge University Press. 1999.

1019
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GT8 – FORMAÇÃO E PRÁTICAS DE PROFESSORES DE LÍNGUA INGLESA

A EMERGÊNCIA DE EPÊNTESE VOCÁLICA POR APRENDIZES POTIGUARES


DE LÍNGUA INGLESA

Anderson Romário Souza Silva (UERN)


Clerton Luiz Félix Barboza (UERN)
Miriam Gurgel da Silva (UERN)

Introdução

O objetivo geral desta pesquisa foi analisar a emergência de epêntese vocálica em oclusivas e
fricativas desvozeadas em posição de coda final no falar de aprendizes potiguares de inglês
língua estrangeira (ILE). Para este fim, serão expostos outros estudos com temas semelhantes
a fim de definir as variáveis necessárias para o experimento que será elaborado, a fim de
analisar a ocorrência de vogal epentética.
Este estudo partiu do seguinte questionamento: quais os principais contextos que favorecem a
emergência de epêntese em oclusivas desvozeadas p, t e k e nas fricativas desvozeadas s e f
em posição final no falar de aprendizes potiguares de língua inglesa? A hipótese deste
trabalho é de que a epêntese vocálica é mais recorrente no falar de informantes de nível
iniciante, as oclusivas apresentam mais ocorrências de epêntese do que as fricativas e também
que as palavras terminadas com a vogal e influenciam a utilização do fenômeno.
Esta pesquisa foi baseada nos princípios metodológicos das pesquisas bibliográfica e
experimental. Para guiar esta análise, os objetivos específicos que este estudo busca alcançar
são:
 Observar quais consoantes em posição de coda silábica final (fricativas ou oclusivas)
apresentam maior taxa de emergência de epêntese;
 Analisar qual tipo de coda final (terminadas em consoantes ou com a vogal e)
apresenta mais casos de ocorrência de epêntese;
 Analisar a influência do nível de proficiência em língua inglesa sobre a emergência de
epêntese vocálica;
 Estudar a ocorrência de epêntese nos contextos fonotáticos CVC, CVVC e CVCC.
1020

Para justificar este estudo, as informações que aqui foram levantadas proporcionarão
mais uma fonte de conhecimento sobre o estudo de um aspecto fonético do ILE. Os dados
Página

obtidos nesta análise podem ser utilizados com propósito acadêmico para o mapeamento da

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ocorrência de uma emergência fonética comum em aprendizes potiguares de ILE, a epêntese
vocálica final. Além disso, as informações adquiridas nas análises apresentarão alguns
contextos que influenciam o surgimento da epêntese vocálica final, bem como quais fricativas
e oclusivas desvozeadas apresentam a maior taxa de ocorrência para esta emergência,
tornando esta pesquisa mais uma fonte de estudo para aprendizes de língua inglesa.
Esta pesquisa está dividida em 3 seções. A primeira trata da ocorrência de epêntese
vocálica no ILE. A segunda apresenta os princípios metodológicos e as etapas deste estudo.
Por último, a última seção aborda a análise realizada por esta pesquisa e os resultados obtidos
neste estudo.

1 Epêntese vocálica

A epêntese vocálica caracteriza-se como o fenômeno pelo qual o falante realiza a


inserção de um segmento vocálico a fim de desfazer um agrupamento de consoantes incomum
em sua língua. Tal segmento sonoro não carrega nenhuma informação e, no português
brasileiro, pode ter características similares às vogais i, e e ə como relatado por Silveira e
Seara (2009).
O principal contexto para a emergência de epêntese em língua portuguesa é relatado
por Câmara Jr. (2000, p. 56). De acordo com o autor, falantes brasileiros do PB possuem
dificuldade em pronunciar determinados encontros consonantais em posição de coda, já que
elas não são comuns em nossa língua. Tais vocábulos podem ser encontrados em
determinadas palavras inseridas em nosso idioma, como compac[i]to, rit[i]mo e af[i]ta.
A emergência da epêntese no PB é uma influência considerável na ocorrência desse
fenômeno na língua inglesa, como será descrito em alguns estudos abordados neste trabalho
(LUCENA; ALVES, 2010); (GUTIERREZ; GUZZO, 2012); (LIMA; LUCENA, 2013).
Falantes do PB tendem a transferir os padrões de sua língua materna para a segunda língua,
realizando, assim, a epêntese como estratégia de realização de sílabas terminadas em
encontros consonantais a fim de facilitar sua produção, como em emp[i]ty, like[i] ou
ob[i]jection.
1021
Página

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2 A emergência de epêntese vocálica por aprendizes brasileiros de ILE

Nesta seção, serão expostos pesquisas que abordam a emergência de epêntese em


consoantes em posição de coda no falar de aprendizes brasileiros de língua inglesa.
Primeiramente, a pesquisa de Gutierres e Guzzo (2012) analisou a emergência de
epêntese vocálica em encontros consonantais no falar de aprendizes de ILE da região sul do
país. Como resultado, as pesquisadoras relataram que as palavras terminadas em obstruintes
dorsais ( like[i], fish[i]) apresentaram maior influência da ocorrência de epêntese (0,67) do
que os obstruintes coronais (0,42) e o fator nasal (0,37).
Já em relação a tonicidade da sílaba, o acento silábico mostrou-se um influenciador
para a emergência de epêntese, já que nos fatores obstruinte labial, obstruinte coronal e nasal
as porcentagens da ocorrência da epêntese foram maiores em contextos tônicos (21%, 15% e
18%) comparados aos átonos (5%, 11% e 1%)
Por último, o nível de proficiência também foi um fator influenciador na pesquisa de
Gutierres e Guzzo (2012), pois os informantes de nível intermediário obtiveram 15,1% de
ocorrência de epêntese, enquanto que os de nível básico apresentaram 23,2%.
Um estudo que tratou da epêntese vocálica em consoantes em coda por falantes
paraibanos de ILE foi realizado por Lucena (2012). Em sua pesquisa, o autor constatou que,
diferente dos resultados de Gutierres e Guzzo (2012), os informantes deste estudo realizaram
mais epêntese vocálica nas palavras com a oclusiva p em posição final (20,3%), enquanto que
as codas encerradas em f apresentaram menos ocorrências (8,3%).
O nível de proficiência também mostrou influência na pesquisa de Lucena (2012).
Seus informantes de nível iniciante (0,71) apresentaram mais ocorrências de epêntese do que
aqueles de nível avançado (0,28). Seus resultados corroboram com os de Gutierres e Guzzo
(2012).
Em outro estudo, Lucena e Alves (2010) analisaram a emergência de epêntese em
obstruintes em coda medial no falar de aprendizes paraibanos e gaúchos de ILE. Inicialmente,
os pesquisadores perceberam que os informantes paraibanos (0,55) apresentaram mais
ocorrências de epêntese do que os informantes gaúchos (0,44).
1022

Após essa análise, Lucena e Alves (2010) relataram que os segmentos finalizados
com a fricativa f apresentaram mais emergências de epêntese (0,64) em relação aos segmentos
terminados em k (0,50) e p (0,34). Tal resultado é semelhante ao encontrado pro Gutierres e
Página

Guzzo (2012), o qual mostrou que as obstruintes dorsais f e k tiveram mais influência.

ISBN: 978-85-7621-221-8
Entretanto, o resultado dos autores contradiz aquele encontrado por Lucena (2012), o qual
mostrou que a oclusiva p apresentou maior influência na ocorrência de epêntese.
Em relação à tonicidade da sílaba, o resultado encontrado por Lucena e Alves (2010)
mostra que as obstruintes em posição postônica (0,46) apresentaram peso relativo menor do
que aquelas em posição pretônica (0,53). Desta vez, tal resultado não colabora com o
encontrado por Gutierres e Guzzo (2012), já que, em sua pesquisa, as autoras constataram que
o contexto tônico é o mais favorável para a emergência de epêntese.

3 Metodologia

Este estudo foi baseado nos procedimentos metodológicos das pesquisas bibliográfica,
quantitativa e experimental. Além disso, este estudo possui características indutiva-dedutivas,
de cunho transversal, a fim de analisar a emergência de epêntese em oclusivas e fricativas
desvozeadas através da análise dos dados obtidos no experimento realizado.
Para o levantamento dos dados desta pesquisa, foi elaborado um experimento a fim de
obter os dados necessários para a análise da emergência de epêntese vocálica em oclusivas e
fricativas desvozeadas em posição final.
O experimento consistiu na gravação da leitura das 15 palavras selecionas com base
nos critérios descritos na seção a seguir. As palavras foram entregues aos 18 informantes de
forma impressa, gerando 15 tokens por aluno, totalizando 270 tokens para a análise. Após a
gravação, os arquivos foram divididos em tokens individuais através do editor de áudio
Audacity. A próxima etapa foi a análise dos dados no programa de análise acústica
PRAAT158.
As variáveis aqui listadas foram selecionadas com base no levantamento teórico
presente na seção anterior.
A primeira variável, nível de proficiência, busca analisar se o nível de proficiência dos
estudantes é um fator influenciador para a emergência de epêntese. Para estudar esta variável,
os informantes foram divididos em dois grupos de acordo com o quadro comum europeu, A2
e B1, e os dados foram analisados a fim de descobrir qual dos dois apresentou mais
1023

ocorrências.
Página

158
O PRAAT é um programa de análise acústica fonética gratuito disponível em http://fon.hum.uva.nl/praat/.

ISBN: 978-85-7621-221-8
A segunda, tipo de coda silábica, procura descobrir qual consoante em posição de
coda final apresenta mais emergência de epêntese. Esta variável passou por duas análises. Na
primeira, foram analisadas palavras terminadas em p, t, k, f e s em posição de coda final. Na
segunda, foram analisadas as palavras terminadas em consoante em posição de coda final em
relação a palavras terminadas com a vogal e.
A última, contexto fonotático, trata sobre a relação da estrutura da palavra com a
emergência de epêntese. Foram analisadas três contextos, CVC (consoante, vogal e
consoante), CVCC (consoante, vogal, consoante e consoante) e CVVC (consoante, vogal,
vogal e consoante).
As três variáveis selecionadas para este experimento foram analisadas através do teste
estatístico de chi-quadrado a fim de descobrir se há ou não uma relação entre elas e a
emergência de epêntese, a qual é a variável dependente deste estudo. Mais informações sobre
o teste estatístico serão descritas ainda nesta seção.
O Quadro 1 apresenta as palavras selecionadas para o experimento. Foram escolhidas 3
palavras para cada fonema em posição final analisado (p, t, k, f, s), totalizando 15 palavras.

CVC CVCC CVVC

p CAP BUMP CAPE

t BIT GIFT BITE

k COOK WORK BIKE

f LEAF GOLF SAFE

s LOOSE FALSE NICE

Quadro 1 – Palavras utilizadas no experimento

O corpus desta pesquisa foi composto por 8 informantes do sexo feminino e 10 do


sexo masculino. Todos são naturais de cidades do Rio Grande do Norte e residem em
Mossoró – RN. Os informantes são ou foram alunos dos cursos ofertados pelo NucLi –
1024

UFERSA e estão matriculados em cursos de graduação ou programas de mestrado e


doutorado ofertados pela instituição.
Após a coleta dos dados no experimento realizado, foi utilizado o programa PRAAT
Página

versão 6.0.21 (BOERSMA; WEENINK, 2016) para a análise acústica das gravações obtidas.

ISBN: 978-85-7621-221-8
Primeiramente, foi preciso analisar quais tokens apresentaram ocorrência de pêntese.
Para realizar essa etapa, é preciso analisar se há ou não ocorrência de uma vogal no
espectrograma após a consoante final da palavra.
A próxima etapa após a análise acústica dos dados foram os testes estatísticos. Para
este experimento, foi realizado o teste de chi-quadrado. Este teste foi utilizado para avaliar se
houve ou não relação entre a variável dependente emergência de epêntese e as outras
variáveis selecionadas para o experimento. Para a realização do teste estatístico, foi utilizado a
página Social Science Statistics.
Na próxima seção, está exposta a análise e os resultados desta pesquisa.

4 Análise dos dados

Nesta seção, serão analisadas as variáveis do experimento realizado por este estudo. A análise
será dividida em três subseções, uma para cada variável. A primeira variável analisada será o
nível de proficiência, seguida pelo tipo de coda final e, por último, o contexto fonotático.

4.1 Nível de proficiência

Os resultados da análise da variável nível de proficiência estão expostos na Tabela 1.

Tabela 1 – Nível de proficiência

Níveis de proficiência Ocorrências/Total Frequência

A2 27/135 20%

B1 08/135 5,9%

TOTAL 35/270 12,9%

X² (2 = 270) = 11,85; p = 0,01

Conforme previsto, os informantes de nível A2 apresentaram mais casos de ocorrência


1025

de epêntese. O grupo de informantes A2 apresentou 27 ocorrências (20%), enquanto que o


grupo B1 apresentou apenas 08 (5,9%). Tal resultado era esperado, já que o primeiro grupo é
Página

composto por alunos iniciantes que tem pouca ou nenhuma experiência com língua inglesa.

ISBN: 978-85-7621-221-8
Do mesmo modo, o segundo grupo é formado por informantes de nível pré-intermediário.
Entretanto, o valor ainda é relativamente baixo para alunos iniciantes. A Figura 1 apresenta os
dados desta variável

Figura 1 – Nível de proficiência

Tal resultado também suporta as pesquisas citadas no capítulo anterior, as quais demonstram
que alunos de nível iniciante em língua inglesa tendem a produzir mais epêntese. Os
informantes de nível básico do estudo de Gutierres e Guzzo (2012) apresentaram ocorrência
de epêntese em 23,2% dos casos, assim como no estudo de Lucena (2012), onde os estudantes
iniciantes apresentaram resultados semelhantes. Além desses estudos, a pesquisa de Lima e
Lucena (2013) apresentou os valores mais discrepantes, 20% de ocorrência de epêntese para
os estudantes iniciantes contra 6,1% dos avançados.
Além disso, a Tabela 1 também apresenta o resultado total de ocorrências de epêntese
no experimento. Os informantes desta pesquisa produziram 35 ocorrências, totalizando
12,9%. Entretanto, ao comparar este resultado aos números obtidos nas pesquisas aqui
mencionadas, nota-se um número menor de emergência de epêntese vocálica no falar de
aprendizes potiguares de ILE. Os informantes paraibanos de Lucena (2012) apresentaram
emergência de epêntese em 21% dos casos, enquanto que os de Lima e Lucena (2013)
apresentaram 14,7% e os informantes gaúchos de Gutierres e Guzzo (2012) realizaram
1026

epêntese em 19% dos casos.


Página

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4.2 Tipo de coda final

A Tabela 2 apresenta os resultados referentes à variável Tipo de coda final.

Tabela 2 – Tipo de coda final

Coda final Ocorrências/Total Frequência

P 03/36 8,3%

T 09/36 25%

K 06/36 16,6%

F 04/36 11,1%

S 06/36 16,6%

TOTAL 28/180 15,5%

X² (2 = 180) = 4,48, p = 0,35

O objetivo desta análise foi observar qual oclusiva ou fricativa desvozeada em posição de
coda final apresentaria o maior número de ocorrências de epêntese. Este estudo não pode
afirmar se há influência do tipo de coda final na produção de epêntese em língua inglesa.
Entretanto, é possível perceber que as palavras com coda terminadas em t apresentaram
ocorrência de epêntese em 09 ocasiões (25%), enquanto que as palavras com coda terminadas
em p apresentaram epêntese em apenas 03 casos (8,3%).

Figura 2 – Tipo de coda final


1027
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ISBN: 978-85-7621-221-8
Como visto na Figura 2 acima, o teste estatístico não considerou o resultado
significativo, devido à proximidade dos valores para cada tipo de coda.
De forma similar, os resultados para a variável Tipo de segmento perdido em coda na
pesquisa de Lucena e Alves (2010) também foram considerados não significativos.
Entretanto, os números expostos na Tabela 2 vão de encontro ao da pesquisa de Lucena
(2012), a qual mostrou que palavras terminadas em p em posição de coda final apresentaram
mais ocorrência de epêntese em relação a palavras terminadas com t nessa posição. Nesta
pesquisa, ocorreram apenas 3 casos de epêntese em palavras com a oclusiva p em posição
final, enquanto que 9 ocorrências foram registradas para a oclusiva t.
Para finalizar a análise desta variável, a Tabela 3 apresenta os resultados da análise das
palavras terminadas em consoantes em posição de coda final em relação a palavras terminadas
com a vogal e.

Tabela 3 – Tipo de coda final (consoantes x vogal e)

Coda final Ocorrências/Total Frequência

Consoantes 28/180 15,5%

E 15/90 16,6%

TOTAL 43/270 15,9%

X² (2 = 270) = 0,08, p = 0,77.

Para esta análise, esperava-se que as palavras terminadas em e apresentassem maior


ocorrência de epêntese em relação às palavras terminadas com consoante em posição de coda
final. Tal expectativa se deu devido ao fato da vogal e no PB ser pronunciada como i em
posição final, como na palavra ele[i], enquanto que, no ILE, este grafema não apresenta som,
como na palavra nice.
1028
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Figura 3 – Consoantes X vogal e

Embora a Figura 3 mostre que as palavras terminadas em e apresentaram mais casos


de epêntese (16,6%) do que as consoantes em posição de coda (15,5%), não é possível afirmar
que este é um fator influenciador para a ocorrência de epêntese em língua inglesa, já que os
valores foram próximos, tornando o resultado não significativo.
4.3 Contexto fonotático

Os resultados da variável contexto fonotático estão expostos na Tabela 4 e na Figura 6.

Tabela 4 – Contexto fonotático

Contexto
Ocorrência/Total Frequência
Fonotático

CVC 09/90 10%

CVVC 14/90 15,5%

CVCC 13/90 14,4%

Total 36/270 13,3%

X² (2= 270) = 1,34, p = 0,51.

Embora o contexto CVVC tenha apresentado uma porcentagem maior de casos de


1029

epêntese (15,5%), os dados expostos na Tabela 4 mostram que não houve diferença
significativa entre a ocorrência de epêntese nos contextos CVC, CVVC e CVCC.
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Figura 4 – Contexto fonotático

Devido à proximidade nos valores apresentados no Figura 4, a variável foi considerada


não significativa, já que o resultado indica não há relação entre o contexto fonotático e a
emergência de epêntese. Os estudos apresentados no capítulo introdutório não abordaram o
contexto fonotático entre suas variáveis, dificultando uma análise entre os resultados.
Na próxima seção, as considerações finais desta pesquisa serão descritas.

Considerações finiais

O objetivo geral desta pesquisa foi analisar a emergência de epêntese vocálica em


oclusivas e fricativas desvozeadas em posição de coda final no falar de aprendizes potiguares
de inglês língua estrangeira (ILE). Para atingir este objetivo, um experimento foi elaborado e
três variáveis foram delimitadas: nível de proficiência, tipo de coda final e contexto
fonotático.
Considerando os resultados obtidos neste estudo, é pertinente dizer que a epêntese
vocálica é uma estratégia utilizada por falantes brasileiros de inglês como forma de facilitar a
produção oral de determinados encontros consonantais em posição final. Os resultados deste
experimento foram semelhantes aos achados das pesquisas citadas no capítulo teórico.
Com relação ao nível de proficiência, os estudantes de nível A2 apresentaram mais casos de
emergência de epêntese do que os alunos de nível B1. Tal resultado era esperado, já que nos
1030

estudos de Gutierres e Guzzo (2012) e Lucena (2012) os estudantes de nível iniciante do ILE
produziram mais casos de epêntese. De maneira semelhante, o nível de escolaridade também é
Página

ISBN: 978-85-7621-221-8
um fator influenciador para a ocorrência de epêntese no PB, como visto nos resultados de
Collischonn (2003) e (2004).
Embora os resultados para a variável tipo de coda final mostrem mais casos de
epêntese em palavras com t em coda final, o teste estatístico não a considerou significativa
devido à proximidade dos valores para as outras fricativas e oclusivas. Da mesma forma, foi
constatado mais casos de epêntese em palavras terminadas com a vogal e do que em oclusivas
ou fricativas desvozeadas, porém o teste também classificou este resultado não significativo
devido à proximidade dos valores. Em relação ao contexto fonotático, esta variável também
não se mostrou um fator influenciador para a emergência de epêntese no ILE.
Por último, os resultados desta pesquisa mostram que os aprendizes potiguares de língua
inglesa apresentaram menos ocorrências de epêntese em relação a informantes paraibanos e
gaúchos.
De maneira geral, esta pesquisa se mostrou importante para o levantamento teórico
sobre a emergência de epêntese vocálica em oclusivas e fricativas em posição de coda final
por falantes potiguares do ILE, tornando os dados deste estudo uma base para um
mapeamento fonético do Rio Grande do Norte. Entretanto, há pontos que não foram
abordados neste experimento, como a qualidade e a duração da vogal epentética produzida
por falantes potiguares do ILE, os quais podem ser uma oportunidade de continuação do
estudo deste tema em projetos e experiências futuras.

Referências

BOERSMA, Paul, WEENIK, David. Praat: doing phonetics by computer. Version 6.0.21.
Disponível em: http://www.praat.org. 2016.

CAMARA JR, Joaquim Mattoso. Estrutura da língua portuguesa. Petrópolis: Vozes, 2000.

COLLISCHONN, Gisela. Epêntese vocálica no português do sul do Brasil: variáveis


extralinguísticas. Revista Letras, Curitiba, n. 61, especial, p. 285-297, 2003. Editora UFPR

––––––. Epêntese vocálica e restrições de acento no português do sul do Brasil.


SIGNUM: Estud. Ling., Londrina, n. 7/1, p. 61-78, jun. 2004.
1031

GUTIERRES, A.; GUZZO, Natália. B. A produção variável de epêntese em coda final por
aprendizes de inglês como L2. 2012.

LIMA, L. A. S.; LUCENA, Rubens M. Análise variacionista da epêntese vocálica medial na


Página

aquisição de inglês como L2. Cadernos de Letras da UFF, v. 47, p. 145-161, 2013.

ISBN: 978-85-7621-221-8
LUCENA, Rubens M.; ALVES, U. K.. Implicações dialetais na aquisição de obstruintes em
coda por aprendizes de inglês (L2): Uma Análise Variacionista. Letras de Hoje, v. 45, p. 35-
42, 2010.

LUCENA, Rubens M.. Aquisição fonológica da coda silábica por falantes brasileiros de
inglês: análise a partir de padrões variáveis do português brasileiro. In: XXIV Jornada
Nacional do Grupo de Estudos Linguísticos do Nordeste, 2012, Natal. Anais da XXIV
Jornada Nacional do Grupo de Estudos Linguísticos do Nordeste. Natal: EDUFRN, 2012.
v. 1. p. 1-9

SILVEIRA, Francine; SEARA, Izabel. A vogal epentética em encontros consonantais


heterossilábicos no português brasileiro: um estudo experimental. Revista do GEL, São
Paulo, v.6, n. 2, p. 9-35, 2009

Social Science Statistics. Disponível em:


<http://www.socscistatistics.com/tests/chisquare2/Default2.asp>. Acesso em: 22 fev. 2017.

1032
Página

ISBN: 978-85-7621-221-8
GT8 – FORMAÇÃO E PRÁTICAS DE PROFESSORES DE LÍNGUA INGLESA

METODOLOGIA PARA O ENSINO DE INGLÊS: UMA ANÁLISE COMPARATIVA


DOS PROCEDIMENTOS EM DOIS CONTEXTOS ESCOLARES

Janeide Ferreira Dantas (UERN)


José Roberto Alves Barbosa (UERN)

Considerações Iniciais

A Língua Inglesa tornou-se uma língua internacional, que por sua vez, assumiu uma
posição de Língua Franca, na qual passou a ser falada e usada por pessoas e países do mundo
inteiro. De acordo com a Revista online PROFFORMA, a Língua Inglesa é fundamental em
vários aspectos, pessoal, profissional e no cultural, passando a se tornar a língua da
comunicação mundial. Diante disso, fica claro a necessidade do ensino/aprendizagem da
língua inglesa no contexto global.
A metodologia para o ensino/aprendizagem em língua inglesa é fundamental nos
contextos escolares, para isso, autores e/ou pesquisadores levam em conta os procedimentos
adotados pelos professores nas salas de aulas, seja em um contexto de escola regular e/ou de
escola de idiomas, na busca de respostas para a melhoria do ensino/aprendizagem de uma
língua estrangeira.
Desse modo, o presente trabalho propõe a comparação da metodologia do ensino de
inglês e os procedimentos adotados em dois contextos escolares, na escola regular de Ensino
Fundamental (escola privada) e na escola de idiomas (curso de inglês). Na qual a análise é
dada através dessa comparação das metodologias para o ensino-aprendizagem de inglês, a fim
de propor melhorias para o ensino, e ao mesmo tempo, apontar possibilidades e limitações
existentes em que norteará modificações com vistas à melhoria do ensino de língua inglesa.

Abordagens, métodos e procedimentos para o ensino de inglês

Conforme Anthony (1963), há uma hierarquia conceitual nos termos: abordagem,


método e técnica. Segundo ele, uma abordagem seria o nível das pressuposições, mais
1033

precisamente das crenças a respeito do que é uma língua e de como ela é aprendida. O método
estaria no nível em que a teoria é posta em prática, em que escolhas são feitas a respeito de
Página

determinadas habilidades, bem como do conteúdo a ser ensinado. A técnica estaria no nível

ISBN: 978-85-7621-221-8
dos procedimentos em sala de aula, geralmente na forma de atividades. De fato, é importante
que professor da língua inglesa tenha o conhecimento dos vários métodos/abordagens, para
que esses possam fazer suas escolhas das atividades dentro de suas salas de aulas e, podendo
assim, o professor adotar ou recusar a utilização desse método escolhido.

Método Gramática e Tradução

Segundo Leffa (1998), o Método Gramática e Tradução consiste no ensino da segunda


língua pela primeira, no qual existem três passos essenciais para a aprendizagem da língua:
memorização prévia de palavras; conhecimentos das regras gramaticais; e exercícios de
tradução. Desse modo, percebe-se que esse método utiliza-se de modo dedutivo, ou seja,
partindo da regra para o exemplo.
Considerando os aspectos de grande relevância do Método Gramática e Tradução,
Leffa (1998) afirma que a ênfase está na forma escrita da língua, dando pouco ou nenhuma
atenção aos aspectos de pronúncia e de entonação. Percebe-se então, a falta de espaço para a
prática da oralidade na sala de aula, de modo que a língua materna é utilizada pelo professor e
pelos alunos.
De acordo com Oliveira (2014), o principal objetivo do Método Gramática e Tradução
é a tradução como base, aliada ao estudo das estruturas sintáticas e do vocabulário, sendo
assim de um certo modo, os estudantes acabam também por desenvolver a escrita, embora não
seja o intuito ainda. No entanto, deixa claro que a habilidade da comunicação não é um dos
objetivos desse método.

Método Direto e Movimento de Reforma

O Método Direto e o Movimento Reforma possuem características semelhantes,


porém existem aspectos que se diferenciam. De um certo modo, os métodos pretendiam
completar as limitações que existiam no Método Gramática e Tradução. Com essa finalidade,
a proposta desses métodos era diminuir a ênfase nos aspectos gramaticais da língua e na
1034

tradução que era imposta pelo método, em troca de um posicionamento que prevalecesse o
desenvolvimento da oralidade pelos aprendizes de línguas.
O Método Direto estava alicerçado na experiência, cuja proposta era defender que o
Página

aprendiz de língua seguisse os passos de uma criança durante o processo de aquisição de sua

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língua materna, ou seja, o aprendizado aconteceria de forma natural. Sustentando ainda mais
essa idéia, segundo Brown (2010), o aprendizado da segunda língua segue os princípios da
aprendizagem da primeira língua, com bastante interação oral, uso espontâneo da língua, não
tradução da primeira para a segunda língua, e pouca ou nenhuma análise das regras
gramaticais.
De acordo os princípios do Método Direto, conforme Richard e Rodgers (2001)
destacaram, alguns pontos que são os seguintes: 1) as instruções da sala de aula teriam que ser
somente na língua-alvo; 2) apenas o vocabulário e as sentenças diárias (do dia) eram
ensinadas; 3) as habilidades orais eram graduais com progressões criteriosas; 4) a gramática
era ensinada indutivamente, ou seja, do exemplo para a regra; 6) novos tópicos eram
ensinados através da modelação e da prática; 6) o vocabulário era concreto e ensinado através
de demonstração de objetos e figuras; 7) a fala e a compreensão auditiva eram ensinadas; 8)
ênfase tanto na pronúncia quanto na gramática correta.

Método de Leitura

Segundo Richard e Rodgers (2001), o objetivo de tentar a habilidade de conversação


foi considerada inapropriada devido ao pouco tempo disponível nas escolas, as habilidades
limitadas dos professores e a falta da necessidade da habilidade de conversação em língua
estrangeira para o aluno americano.
O Método de Leitura tinha como principal característica desenvolver a habilidade de
leitura, na qual predominava os exercícios escritos baseados em textos. Embora houvesse a
preocupação de ensinar a produzir e reconhecer os sons da língua, a ênfase da pronúncia era
mínima.

Método Audiolingual

O Método Audiolingual surgiu da necessidade que os americanos tinham de


comunicação durante a Segunda Guerra Mundial e se depararam com a barreira linguística
1035

que era limitada. Por esse motivo, esse método ficou sendo conhecido como Método do
Exército, e logo depois, na década de 1950, o método foi se refinando e se desenvolveu no
que é conhecido hoje de Método audiolingual.
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No que concerne ao Método Audiolingual, consolidou-se em dois pressupostos
teóricos: o estruturalismo linguístico e a psicologia comportamentalista. Sustentado por
premissas que foram reformuladas e dominou o ensino de línguas por muitos anos, segundo
Leffa (1998), as premissas eram: 1) Língua é fala, não escrita – que estabelecia a ênfase na
língua oral, e sua implicação pedagógica era de que o aluno deveria primeiro ouvir, falar,
depois ler e escrever, e que ele só poderia ser exposto à língua escrita quando a habilidade
oral já estivesse bem automatizada; 2) Língua é um conjunto de hábitos – premissa da
psicologia behaviorista, na qual o aluno é condicionado ao “hábito” de falar, e suas respostas
eram sempre reforçadas pelo professor quando certa, porém quando errada havia a correção, a
fim de evitar que os alunos cometessem erros; 3) Ensine a língua não sobre a língua –
premissa que aprendia a língua pela prática, não por meio de explicações de regras; 4) As
línguas são diferentes - o principal objetivo era detectar as diferenças existentes entre a
primeira e a segunda língua e, assim, evitando erros causados pela interferência da língua
materna.

Abordagem Comunicativa

A Abordagem Comunicativa surgiu como um novo modelo de abordagem que


defendia uma Competência Comunicativa. Conforme Hymes (1972), a competência
Linguística é apenas um aspecto da competência comunicativa, visto que as pessoas não
apenas são capazes de produzir frases, mas de considerar o contexto para adequar os
enunciados.
No que se diz respeito ao Ensino Comunicativo de Línguas, existem várias
concepções, nas quais cada teórico defende suas ideias. Sendo assim, Brown (2007, p. 43),
apresenta algumas características do Ensino Comunicativo de Línguas:
1. Os objetivos em sala de aula enfocam todos os componentes (gramaticais, discursivos,
funcionais, sociolinguísticos e estratégicos) da competência comunicativa. As metas,
no entanto, devem inter-relacionar os aspectos organizacionais da língua com a
pragmática;
1036

2. As técnicas linguísticas são projetadas para envolver os aprendizes no uso funcional,


autêntico e pragmático da língua com fins significativos. As formas linguísticas
organizacionais não são o foco central, mas os aspectos das línguas que façam com
Página

que os aprendizes possam cumprir determinados propósitos;

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3. A fluência e a exatidão são vistas como princípios complementares subjacentes às
técnicas comunicativas. Algumas vezes a fluência pode ter uma importância maior que
a exatidão a fim de manter os aprendizes envolvidos no uso significativo da língua;
4. Os alunos em uma aula comunicativa precisam prioritariamente usar a língua
produtivamente e receptivamente, em contextos que possibilitem seu uso fora da sala
de aula. As tarefas de sala de aula devem fornecer ais alunos as habilidades
necessárias para a comunicação em contextos diversos;
5. Os alunos devem ter oportunidade de enfocar seus próprios processos de
aprendizagem através da compreensão de seus próprios estilos de aprendizagem e
desenvolvendo de estratégias apropriadas para a aprendizagem autônoma;
6. O papel do professor é o facilitador e guia, o de “doutor-sabe-tudo”. Os alunos devem
ser encorajados a construir significados através da interação linguística autêntica uns
com os outros.
Na Abordagem Comunicativa, inicia-se esse processo metodológico sem fechar, sem
acabar. É um ciclo que ainda não está encerrado, e uma avaliação da abordagem fica
extremamente difícil, afirma Leffa (1998). Existem outras abordagens e métodos para o
ensino-aprendizagem de línguas, mas em geral, são feitas pelas propostas anteriormente
mencionadas.

O ensino de inglês: aspectos contextuais

Percebe-se, atualmente, que o uso da Língua Inglesa vem crescendo rapidamente, ao


passo que sua utilização vem sendo cada vez mais intensa no mundo todo. Dessa forma, a
Língua Inglesa já pode ser considerada como uma língua de consolidação global, pois a
inclusão global das culturas é um dos fenômenos que favorecem ao uso da língua para a
obtenção da comunicação entre os indivíduos linguisticamente diferentes.

O inglês no mundo
1037

Nos dias de hoje, é relevante aprender a Língua Inglesa, pois haverá sempre alguém
querendo chegar a algum lugar no mundo, e sempre haverá alguém com quem possamos nos
comunicar nessa língua. Com a necessidade de uma linguagem de comunicação eficaz e
Página

eficiente, a Língua Inglesa tornou-se uma língua internacional, passando a assumir a posição

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de Língua Franca, que passou a ser falada e usada por pessoas e países do mundo inteiro, seja
por razões comerciais, diplomáticas e/ou de comunicação.
A Língua Inglesa tem uma forte influência em países do mundo inteiro, no qual esse
domínio que ela exerce desenvolve o crescimento nas áreas pessoais, profissionais e culturais,
oportunizando melhores condições aos indivíduos desses países. Portanto, a Língua Inglesa é
imprescindível nos dias atuais, pois nesse fenômeno da crescente globalização, faz-se
necessário uma linguagem de comunicação comum entre todos os povos.

A aula de língua inglesa na escola

Muito se discute a importância da aula de língua estrangeira no processo de


ensino/aprendizagem. Mas também, vale salientar que por trás dela há muito o que se fazer
para que ela aconteça, em que o professor precisa cumprir uma série de tarefas, como:
planejar, corrigir, avaliar, discutir com colegas e coordenadores, selecionar e produzir
materiais e aperfeiçoar-se profissionalmente.
Considerando que a aula de língua estrangeira (LE) possui vários fatores, Almeida
Filho (2008, p. 29) descreve quatro macro-fases de uma aula e suas características: “São fases
necessárias (não necessariamente suficientes) para uma incursão breve num mundo lingüístico
distinto e o retorno dele para as outras experiências educacionais da escola”. Nesse aspecto, o
autor quer ressaltar que o cenário da sala de aula é um ambiente importante para as trocas
linguísticas da língua alvo. As fases citadas pelo autor são:
 Fase 1. Clima e confiança;
 Fase 2. Apresentação (de insumo novo);
 Fase 3. Ensaio e Uso;
 Fase 4. Pano
A Fase 1. Clima e confiança corresponde ao momento inicial, o primeiro contato entre
professor e aluno. O clima refere-se à construção de um ambiente, onde será aprendida uma
língua estrangeira, gerando expectativas quanto às oportunidades de aprendizagem dessa
língua alvo. A confiança é dada através do professor aos seus alunos, a fim de buscar
1038

motivação, segurança, na perspectiva de diminuir os entraves que possam afastar ou dificultar


no processo de ensino/aprendizagem.
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ISBN: 978-85-7621-221-8
A Fase 2. Apresentação é relacionada ao processo de familiarização do aluno com a
linguagem de uso no cotidiano, atrelada ao conteúdo linguístico. É nessa fase que o aluno
pratica, utilizando as habilidades comunicativas, dando ao professor a oportunidade de
realizar procedimentos de prática oral de diálogos com os alunos.
A Fase 3. Ensaio e uso, é nessa fase que o professor deve-se utilizar de seus esforços,
pois é ela o desobstruidor para as fases seguintes. É nessa fase também que a evolução do
aprendiz acontece buscando sua proficiência e sua fluência, através de atividades propostas
pelo professor, por meio de diálogos em grupos ou em duplas, de situações ocorridas fora do
contexto escolar.
Fase 4. Pano, é nessa fase que se conclui os trabalhos, enfocando os conteúdos que
foram os objetivos específicos da aula. Além disso, o professor pode repassar estratégias de
estudo individuais e tarefas de casa para um bom aperfeiçoamento da língua alvo.
Em virtude do que foi mencionado, sabemos que o ensino/aprendizagem de uma
língua estrangeira (LE) dar-se num contexto sócio-cultural, no qual a língua materna
influencia nesse processo, ocasionando conflitos ideológicos, desencadeando rejeições em
alguns casos, e o papel do professor é um elemento essencial dentro das salas de aula.

Contextualização da pesquisa

O trabalho exposto trata-se de uma pesquisa qualitativa de cunho etnográfico. Esta


pesquisa consiste em ter um direcionamento interpretativo, e parte de conhecimentos
empíricos. Segundo Barbosa (2014), o pesquisador costuma inserir-se em determinado
contexto a fim de compreender como os significados são socialmente construídos. Desse
modo, o pesquisador se utiliza de fatos reais na coleta de seus dados, a fim de obter os
resultados desejados.
Na pesquisa, utilizaremos como meio de uma melhor compreensão dos dados, termos
próprios desse trabalho através de códigos (siglas) que são destacados em: ER (Escola
Regular), EI (Escola de Idioma), AER (Aula da Escola Regular), AEI (Aula da Escola de
Idiomas), PER (Professor da Escola Regular), PEI (Professor da Escola de Idioma), AAR
1039

(Atividade na Aula Regular) e AAI (Atividade na Aula de Idioma).


Na escola regular (privada), os alunos estudados estão na faixa etária dos 11 anos e a
sala contém 35 alunos, e ainda dentro desse contexto, a formação de ensino do professor é de
Página

12 anos de sala de aula. Na escola de idiomas (curso de inglês), os alunos estudados estão na

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faixa etária dos 10 anos e a sala de aula contém 13 alunos, além da formação de ensino do
professor nesse contexto que é de 06 anos. Vale lembrar também que foram observadas duas
aulas em cada escola; na ER a aula tem duração de 50 minutos cada, e que uma aula é seguida
da outra e o total de 1 hora e 40 minutos. Já na EI a aula tem duração de 1 hora e 15 minutos
cada e que cada aula é um dia, ou seja, dois dias de aula tem uma duração de 2 horas e 30
minutos.
Com o propósito de uma boa avaliação dos resultados, os dados coletados, os
materiais considerados na pesquisa foram: a explicação do professor (de que forma ele fez uso
disso), atividades realizadas em sala de aula (quais procedimentos utilizados) e exercícios
(material didático utilizado). A partir dessa avaliação dos dados, será considerada como meio
de pesquisa para a identificação e comparação dos métodos nos dois contextos escolares.

Comparação dos procedimentos

Para efeito de distribuição da aula de língua estrangeira, levaremos em consideração


os fatores que Almeida Filho (2008) descreve, os quais estão inseridas dentro da sala de aula,
distribuindo-as em quatro macro-fases: Clima e Confiança; Apresentação (insumo novo);
Ensaio e Uso; e o Pano. Dentro dessas fases analisaremos as aulas observadas na escola
regular (privada) e na escola de idiomas (curso de inglês).
Na primeira fase Clima e Confiança refere-se ao momento inicial da aula segundo
Almeida Filho (2008). Nesse momento, o PER iniciou a aula saudando os alunos em língua
portuguesa e, em seguida, pede aos alunos para que deixem todos os celulares no depósito
(caixa) destinado a guardá-los; é nessa hora que o professor passa a confiança para seus
alunos. Desse modo, eles obedecem e assim o clima fica propício para do início das
atividades realizadas em sala de aula, pois eles ficaram atentos aguardando a recomendação
do professor.
Na EI, nessa mesma fase, na primeira a professora iniciou com saudações em língua
inglesa e falou que iria apresentar um vídeo sobre Clothes, sempre falando primeiro em língua
inglesa e depois traduzindo para o português. Na segunda aula, iniciou também com
1040

saudações e pediu para abrir o livro na página 14 para continuação do conteúdo, sempre
falando em língua inglesa e posteriormente traduzindo o que foi dito. Esses momentos iniciais
foram meios do professor chamar atenção do aluno, dando confiança e segurança do que será
Página

passado na sala de aula. O clima foi de atenção dos alunos, atendendo as recomendações da

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professora, visualizando e ouvindo o vídeo na primeira aula e abrindo o livro na página
pedida pela professora. Contudo, vimos que esta fase de Clima e Confiança faz parte da
realidade da AER e da AEI.
A segunda fase corresponde à Apresentação, que na ER o professor apresenta como
conteúdo uma atividade pedida na aula anterior. A AAR é respondida pelo professor
juntamente com os alunos, que na oportunidade o PER lê a primeira questão em inglês
utilizando-se da oralidade e, posteriormente, traduzindo o que foi dito. Antes de responder a
questão o professor vai ao quadro explicar o simple present, pois a atividade requer desse
conhecimento para ser respondida. Dentro disso, percebe-se que a gramática foi ensinada de
forma dedutiva, pois o PER foi ao quadro explicar a forma gramatical utilizada no simple
present, de modo que partiu da regra gramatical para o contexto, no qual é a atividade.
Destacamos abaixo, um trecho da atividade na AAR.

Fig.1 – Atividade do livro Positivo (SILVA, Edna Marta Oliveira da. 2012)

Na AEI, a fase da Apresentação acontece de forma mais detalhada. A aula inicia-se


com a apresentação de um vídeo que correspondia ao conteúdo da aula que era Clothes. Segue
abaixo o print do vídeo.
1041

Fig. 2 – Vídeo do YouTube - https://www.youtube.com/watch?v=taoCF1cKZSY

O vídeo foi apresentado na sala de AEI, através de um datashow que faz parte do
Página

espaço físico do ambiente. Este vídeo foi repetido duas vezes pelo professor e todos os alunos

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assistem atentamente. Em seguida, a PEI faz perguntas referente ao conteúdo exposto
(Clothes). Esses questionamentos foram feitos em inglês e as respostas dadas pelos alunos
também em inglês. Visto que a finalidade da professora era de trabalhar a habilidade de
compreensão e oralidade de seus alunos.
A terceira fase é compreendida pelo Ensaio e uso. Na AER, ela acontece de maneira
mais irregular. Na hora das atividades na qual o professor perguntava as respostas aos alunos,
poucos respondiam usando o inglês. Nessa atividade respondida no quadro junto com o
professor, era para escrever algo que os alunos fazem em sua rotina todos os dias, in the
morning, in the afternoon, in the evening. Nenhum respondeu em inglês; os que respondiam
davam as respostas em português e o professor transcrevia o que eles falavam para o inglês,
respondendo a atividade no quadro. A atividade descrita segue abaixo:

Fig. 3 – Atividade do livro Positivo (SILVA, Edna Marta Oliveira da. 2012)

Na AEI, o Ensaio e o uso aconteceu de forma mais integrada, já que para Almeida
Filho (2008), o ensaio e o uso é a fase que absorve as fases anteriores, para a evolução do
aprendizado, através das atividades de diálogos na busca da fluência da língua inglesa. Sendo
assim, a PEI utilizou a partir da ilustração abaixo, a habilidade de compreensão oral para
trabalhar com seus alunos. Vejamos: 1042
Página

Fig.4 – Livro Let’s Go (2016)

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Nesse momento da aula, é hora do Listening, quando primeiramente todos os alunos
ouvem atentamente o diálogo exposto na figura acima. O áudio do livro, foi repetido por duas
vezes e após a repetição do áudio, a professora ler cada frase e os alunos repetem, a fim de
trabalhar a habilidade de compreensão ao ouvir, e a habilidade da oralidade ao falar.
A quarta e última fase refere-se ao Pano, que significa a conclusão dos trabalhos feitos
em sala de aula. Na ERA, a fase denominada Pano foi realizada no final da aula. Logo, o PER
fez uma atividade no quadro referente ao conteúdo usado na aula, como forma de reforçar o
conteúdo dado na sala e praticar através da atividade o assunto ministrado. A AAR proposta
pelo professor foi:

Fig 5. Atividade feita por uma aluna


Na fase Pano foi usado na AEI também no final da aula, através da atividade do
Workbook, fazendo uma retomada do que foi visto em sala de aula. Segue a atividade
trabalhada pela PEI:
1043
Página

Fig. 6. Workbook Let’s Go 9 (2016)

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Considerando as quatro macro-fases, segundo Almeida Filho (2008), que são
necessárias para o ensino/aprendizagem dentro da sala de aula da língua inglesa, diferentes
procedimentos foram adotados pelo PER e pela PEI.
Sabendo que a partir do uso das habilidades é possível que os aprendizes tenham uma
condição de aprendizado mais eficiente da língua inglesa, a partir da quatro habilidades a
compreensão oral, a leitura, a fala e a escrita apontadas por Oliveira (2015), destacaremos as
habilidades linguísticas usadas na Escola Regular e na Escola de Idiomas.

Considerações finais

Para alcançar o objetivo, observamos duas aulas, atentado para as abordagens,


metodologias e procedimentos utilizados em sala de aula, bem como para as habilidades
lingüístico-comunicativas usadas pelos professores da disciplina de língua inglesa.
Quanto à análise dos dados, a partir das observações das aulas, percebemos na Escola
Regular a predominância do Método Gramática e Tradução, evidenciado pelos procedimentos
e atividades adotadas pelo PER. De modo que as habilidades produtivas, de fala e
compreensão, bem como de escrita e leitura foram desconsideradas. Em alguns momentos o
PER enfocou o aspecto textual, mas quando ensinou a gramática, a explicitou de forma
dedutiva, explicando as categorias gramaticais a serem aprendidas pelos alunos.
Na Escola de Idiomas, podemos identificar vários procedimentos e atividades
utilizadas pela PEI, através de vídeo, áudio, além das atividades propostas pelo livro didático.
Percebemos ainda a utilização das quatro habilidades, compreensão oral, fala, escrita e leitura
nas atividades das aulas de inglês, na qual a Abordagem Comunicativa foi
predominantemente utilizada ao longo das aulas; percebemos um enfoque mais na interação e
menos na gramática, e essa, quando ensinada, ocorreu de forma indutiva.
Como a aprendizagem do inglês é uma condição necessária para a comunicação na
sociedade atual, talvez uma alternativa viável seja enfocar mais a habilidade de leitura e
menos a gramática descontextualizada, e ensinada de forma dedutiva. Outra alternativa seria
1044

criar núcleos nas escolas regulares (públicas e privadas) que favoreçam o uso extensivo das
quatro habilidades linguísticas. O ensino de inglês na escola regular, nesse contexto,
funcionaria com um enfoque instrumental, com fins de desenvolver a leitura.
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Referências

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BARBOSA, J. R. A. Uma análise crítica das abordagens/métodos para o ensino-


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BROWN, H. G. Teaching by principles: an interactive approach to language pedagogy. 3. td


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LEFFA, V. J. Metodologia do ensino de línguas. In: BOHN, H. I., VANDRESEN, P. Tópicos


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OLIVEIRA, L. A. Métodos de ensino de inglês: teorias, práticas, ideologias. São Paulo:


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_____. Aula de inglês: do Planejamento à avaliação. São Paulo: Parábola, 2015.

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GT8 – FORMAÇÃO E PRÁTICAS DE PROFESSORES DE LÍNGUA INGLESA

CONHECIMENTO PRÉVIO E LEITURA: O GÊNERO CHARGE E SUAS


IMPLICAÇÕES PARA A PROMOÇÃO DE LETRAMENTOS NA AULA DE INGLÊS

Karliane Gomes da Silva (UERN)


Jorge Luis Queiroz Carvalho (UERN)

1 Introdução

Tendo em vista a importância das práticas de letramento no ensino de línguas


estrangeiras, o presente trabalho se propõe a contribuir com as ações que podem identificar e
refletir sobre práticas de leitura mais produtivas no ensino-aprendizagem da Língua Inglesa.
Dessa forma, almejamos, a partir do gênero charge, discutir possíveis formas de aprimorar
práticas de letramentos no intuito de aperfeiçoar, principalmente, as aulas de leitura e, assim,
despertar o interesse dos alunos pela aprendizagem da referida língua.
De acordo com Lessa (2007), as charges contribuem para uma formação crítica do
leitor, pois elas apontam críticas sobre acontecimentos atuais trazendo a sátira inclusa e a
junção entre o texto imagético e o texto verbal permitem aos discentes desenvolverem a
habilidade de construir sentidos. Além disso, este artigo visa contribuir com a discussão sobre
os letramentos em aulas de língua inglesa, uma vez que vários estudiosos afirmam que as
práticas de letramento auxiliam no desempenho dos alunos em sala de aula e na vida social.
Por essa razão, este trabalho adota a visão apresentada por Tfouni (2006, p. 21) de que
o letramento “não se restringe somente àquelas pessoas que adquiram a escrita, isto é, aos
alfabetizados”. Soares (2010) enfatiza a ideia de que o letramento vai além da alfabetização
escolar e, segundo a autora, a leitura e escrita, quando trabalhadas a partir desses
pressupostos, podem ser vistas como processos mais amplos do que o processo de
decodificação, ou seja, são ações que envolvem o uso da linguagem para realização de
práticas sociais. Mediante a esses aspectos, vale ressaltar que, para as práticas de letramento,
o elemento multimodal se torna um indispensável, já que, auxilia na construção de sentidos.
Desse modo, o foco de nosso trabalho é diagnosticar o conhecimento prévio que os
alunos recém-chegados ao ensino médio detêm acerca do gênero charge e discutir práticas e
1046

eventos de letramento com a charge na aula de língua inglesa. A partir desse objetivo,
buscamos, neste artigo, responder a seguinte pergunta: De que forma o conhecimento prévio
Página

desses alunos se manifesta em relação ao gênero charge? Para tanto, organizamos este texto

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com as seguintes seções: além desta introdução, apresentamos no próximo tópico as bases
teóricas que fundamentam nossa investigação e, na sequência, expomos os resultados da
análise e os discutimos a partir de uma visão interpretativa. Ao fim, na conclusão, retomamos
os principais fatos aqui discutidos e faremos comentários baseados no que foi apresentado.

2 Explorando o gênero charge

Segundo Romualdo (2000), a charge tem origens francesas e remete ao vocábulo


charger que significa exagerado. Se tratando do gênero charge, o autor nos explica que elas
eram produzidas por pessoas que manifestavam posicionamentos opostos ao governo. Esse
tipo de movimento era reprimido pelos governantes, porém, se espalhou rapidamente e atraiu
a população. Atualmente, as charges ainda permanecem com a mesma função, assim como
mantêm o mesmo estilo padrão, no entanto, não são mais reprimidas pelas autoridades. A
partir desse gênero, o chargista se expressa com textos predominantemente imagéticos sobre
determinadas situações sociais como política, religião e outras questões sociais e, ao criticar,
os chargistas se apoiam na sátira despertando o humor e a crítica. A charge é definida como
“um tipo de texto que atrai o leitor, pois a imagem é de rápida leitura, transmitindo múltiplas
informações de forma condensada” (ROMUALDO, 2000, p. 5).
Outra característica do gênero charge é a flexibilidade quanto à presença, ou não, da
linguagem verbal. Isto é, a charge pode ser empregada com a linguagem verbal ou não verbal
sendo que os próprios elementos visuais repassam o projeto de dizer do chargista que, às
vezes, chega a ser desnecessária a utilização da materialidade linguística para que haja
entendimento da mensagem. Sendo assim, “as imagens sem palavras, [...], na verdade exigem
certo refinamento por parte do leitor. A experiência comum e um histórico de observação são
necessários para interpretar os sentimentos mais profundos do leitor” (EISNER, 2001 p. 24).
As imagens agem como meio de interação entre a língua e o sujeito leitor atuando na
produção dos sentidos, sendo que a leitura por meio da linguagem não-verbal acontece de
forma natural já que a imagem em si, embora não apresente palavras, gera sentidos.
De acordo com Cavalcante e Santos (2012), ao lermos acionamos conhecimentos
1047

prévios que colaboram para a construção de sentidos, as autoras nos apresentam uma série de
conhecimentos que são ativadas quando lemos. O primeiro mencionado é a textual, que se
volta para a estrutura composicional. Já o conhecimento linguístico, se caracteriza por meio
Página

dos recursos linguísticos como afixos e lexemas. O enciclopédico, conhecido como

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conhecimento de mundo, é ativado a partir dos acontecimentos vividos, das experiências de
vida. Em seguida, o conhecimento intertextual nos guia a identificar a implantação de outros
elementos como: modelo, títulos, expressões etc. Por fim, o contextual, é por meio dele que o
leitor interage com as informações presente no texto absorvendo dele o sentido.
Conforme Nery (1998, p. 87) nos diz, é inviável analisar uma charge sem o seu
contexto, uma vez que “a charge é um tipo de registro da história que necessita, para uma
interpretação aberta estar relacionada aos eventos político e culturais de seu tempo”. Deste
modo, é preciso ter um olhar atento ao escolher as charges a serem trabalhadas, pois, esse
gênero remete a fatores histórico-sociais e caso o aluno não esteja familiarizado com a
informação apresentada, a construção de sentidos será dificultosa e pode desmotivar o
aprendiz, o que acarretará na ausência da participação dos estudantes enquanto leitores ativos.
Assim, a leitura da charge no ambiente escolar pode ser aplicada como uma prática de
letramento que possibilita exercitar o senso crítico diante de questões sociais da atualidade.
Essa pesquisa se volta para a análise do conhecimento prévio de alunos integrantes de turma
do 1º ano do Ensino Médio. Apesar do recorte, reconhecemos que também é importante
desenvolver aulas voltadas para o letramento a partir de séries iniciais para que, enquanto
crianças, elas possam aprimorar tanto o hábito da leitura, como elevar o conhecimento sobre
vários gêneros acerca de suas funções e características e motivar o senso crítico.

3 Análise do conhecimento prévio do aluno sobre o gênero charge

Para a coleta de dados desse estudo, foi elaborado um questionário apresentando nove
questões, objetivando conhecer determinados conhecimentos dos alunos em relação a charges
produzidas em língua inglesa. Antes de entregarmos os questionários, consideramos
necessário mostrá-los alguns exemplos de charges para que os mesmos ativassem o seu
conhecimento prévio. Os alunos, ao lerem as charges, puseram suas interpretações acerca
delas. Isso se observou principalmente em uma que abordava como tema o uso excessivo da
internet, afirmando que atualmente as pessoas preferem manter contato através de aparelhos
digitais do que pessoalmente. Quando perguntamos se eles consideravam “dependentes do
1048

uso da internet” todos concordaram que hoje em dia não é possível viver sem ela. A partir
disso, reiteramos como a charge pode ser relevante para promover práticas de letramento que
podem culminar em debates sobre questões sociais no espaço da sala de aula.
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Além dessa, outras três charges foram apresentadas e se tratavam de assuntos como
violência, política e o uso de aparelhos digitais. Os textos apresentavam bastantes diálogos
questionando-os com perguntas do tipo: você concorda? O que você destacaria nessa charge?
O que ela critica? Com essa metodologia, geramos um ambiente de discussão onde a maioria
dos alunos interagiram. O desenvolvimento desse processo levou duas horas-aula que,
somadas, tiveram a duração de uma hora e quarenta minutos.
Após os debates, percebemos que os alunos já estavam familiarizados e participativos,
assim foi aplicado um questionário que apresentava nove questões, tendo como finalidade
investigar o conhecimento prévio dos alunos em relação à charge. Os próximos parágrafos
mostram como foram analisadas as questões do questionário e, após cada parágrafo referente
à pergunta, um gráfico ilustrará o quantitativo de respostas para apresentar um melhor
entendimento do que foi revelado pelos alunos. Vale ressaltar que algumas perguntas eram
abertas, o que possibilitou os alunos expor em única sentença várias alternativas.
Assim, a primeira alternativa os questionava com a seguinte indagação “Você conhece
o gênero charge?” Sendo uma pergunta direta, todos responderam afirmando sim.

Gráfico 1

(Fonte: elaboração própria)


1049

Os resultados concernentes a essa primeira pergunta nos possibilitam avaliar


positivamente o fato de os alunos declararem que conhecem esse gênero, uma vez que, o
letramento se desenvolve a partir de diferentes práticas. Sabemos, ainda, que o letramento diz
Página

respeito ao uso da linguagem no meio social, então, isso significa que os alunos conhecem a

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charge. Pode se entender, a partir desses dados, que a charge faz parte do repertório de
gêneros a partir dos quais eles interagem socialmente e tem algum tipo de familiaridade. Isso
significa que eles têm um conhecimento, nem que seja mínimo, acerca do que é a charge.
Para a segunda pergunta foi questionado “Para que serve o gênero charge?”, no qual
objetivamos identificar quais propósitos comunicativos os alunos atribuem ao referido gênero.
A maioria respondeu que a charge tem como função criticar alguma situação cotidiana ou
geralmente alguém que seja famoso. Outras respostas mostraram que os alunos apontam que
um dos propósitos do gênero é expor a opinião; alertar; fazer piadas e ser irônico.

Gráfico 2

(Fonte: elaboração própria)

Quanto à segunda pergunta, sabemos que todos os gêneros estão vinculados a


propósitos comunicativos. Ao serem questionados sobre a função do gênero, a maior parte
afirmou que a função dele é a de criticar. Essa informação aponta que os alunos reconhecem
algumas das funções da charge e que, consequentemente, esse conhecimento deve ter
influencias sobre as práticas sociais que transmitem essa percepção. Como o letramento está
vinculado a ações sociais, percebe-se que os alunos associam o objeto a diferentes práticas.
Isso aponta que o conhecimento do aluno não reside em apenas conhecer o gênero, mas
também em identificar algumas das funções sociais que ele cumpre em sua circulação.
A terceira pergunta buscou saber “Onde esse gênero pode ser encontrado?”.
1050

Diversos suportes foram indicados pelos estudantes. O mais mencionado foi a internet, tendo
o maior indicativo pelos os alunos; o segundo lugar teve um empate de indicações que foram
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a revista e o jornal; por fim, embora menos citados, a televisão e os livros também foram
lembrados por dois alunos que os citaram como lócus que veicula a charge. Vejamos a seguir:

Gráfico 3

(Fonte: elaboração própria)

Sobre a terceira questão, os alunos apontaram vários suportes em uma única resposta
já que as questões eram abertas, o que possibilitou mencionar diversos suportes em única
resposta. Nota-se que a internet foi a que mais teve indicações, enquanto a televisão e livro
foram menos citados. Isso, provavelmente, deve ter relação pelo fato dos jovens hoje em dia
utilizarem maior tempo possível navegando pela internet enquanto a televisão e os livros
impressos estão sendo substituídos por outros recursos e suportes pelos adolescentes.
Dando continuidade ao questionário, a próxima questão procurou saber “Quais os
principais assuntos encontrados no gênero charge?”. A resposta mais mencionada foi
“política”, ficando em segundo lugar “problemas sociais”. Os demais como desigualdade
social, aborto, aquecimento global, violência e o uso das redes sociais, também foram
apresentados. Aqui, novamente os alunos apresentam um conhecimento social sobre o gênero.
É bastante comum nos deparamos com charges na televisão, jornais e outros meios de
comunicação. Portanto, os dados revelam que os alunos já estiverem envolvidos em práticas
1051

sociais em que a utilização da charge contribuiu para que chegássemos a essa resposta.
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Gráfico 4

(Fonte: elaboração própria)

A quinta pergunta requer um conhecimento mais detalhado sobre o gênero e se voltava


em saber “Quais as características do gênero charge?”. Novamente os alunos apontaram
para diversas repostas indicando que a charge se trata de gênero de extensão pequena, que tem
desenhos, apresenta críticas, ironias, sátiras e humor. Isso determina que os alunos
demonstram novamente conhecimentos específicos a respeito da composição textual.

Gráfico 5

(Fonte: elaboração própria)


1052

Por fim, as três últimas perguntas são de respostas diretas, ou seja, podendo ser
respondidas com apenas sim, não ou talvez. Continuando com os questionários, a seguinte
Página

pergunta foi “Há uma faixa etária para ler uma charge?” obteve apenas uma resposta para

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“sim” enquanto os demais optaram pela resposta “não”. Ao questioná-los com essa pergunta,
a nossa intenção foi saber se eles a concebiam como um gênero consumido principalmente
por pessoas mais velhas ou mais bem informado.

Gráfico 6

(Fonte: elaboração própria)

Caso a resposta fosse sim, eles poderiam não se identificar com um gênero que, na
visão deles, poderia não ser compatível com a faixa etária em que se encontram. Desse modo,
os alunos entendem que a charge faz parte das relações sociais de pessoas de diferentes
idades, incluindo a deles. Isso reforça a potencialidade desse gênero em promover práticas
sociais em adolescentes, utilizando esse gênero para promover a criticidade, visto que os
próprios afirmaram, em itens anteriores do questionário, que essa é uma de suas funções. O
professor, ao saber que o aluno reconhece a criticidade e que ele é explorável por pessoas de
todas as idades, pode utilizar esse artefato em suas aulas de maneira mais produtiva.
Dando continuidade, na penúltima questão “Você costuma ler charges?”, a maioria
dos alunos disse que sim, outro afirmou que não costuma ler esse tipo de gênero e apenas um
afirmou ler às vezes. O que respondeu que não ler esse gênero nos chamou a atenção pelo fato
do gênero ser de grande popularidade e, mesmo assim, estudante quem afirme não ter contato.
O que nos impressiona é o fato de que o próprio livro e até mesmo em provas aplicadas em
1053

sala é possível encontrar exemplares desse gênero. Mas o fato de outros alunos afirmarem que
leem com frequência e que a encontram na internet mostra que os alunos utilizam práticas de
letramento com a charge também fora da escola, dado significativo para nosso trabalho.
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Gráfico 7

(Fonte: elaboração própria)

Por fim, a última pergunta foi “Você já se deparou com alguma charge em inglês?”
Novamente a maioria dos alunos afirmaram que sim, enquanto um aluno informou dizendo
não e outro disse que já leram algumas. Como foi mostrado anteriormente no Gráfico 1, a
qual os alunos afirmaram conhecer esse gênero, porém, quando se tratamos de charges em
inglês apenas um argumentou com a resposta não. Isso nos chamou atenção pelo fato de haver
uma grande acessibilidade ao uso da internet por meios de aparelhos tecnológicos, já que é
bastante comum a exposição de charges em inglês através de sites. Entretanto, analisando
outras respostas, percebemos que os alunos demonstram contato mais presente. Tal fator nos
mostra que o letramento desses alunos aparece mais ativo diante das suas ações sociais.

Gráfico 8
1054
Página

(Fonte: elaboração própria)

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Tendo em vista que vivemos em um mundo globalizado, onde um dos principais
recursos de acesso é a internet (informação ratificada, inclusive, pelos alunos no
questionário), acreditamos esse contexto acarreta na facilidade que o aluno geralmente tem
em interagir a partir do gênero. Sabemos, ainda, que a língua inglesa se torna cada vez mais
necessária e que as pessoas estão buscando meios que ajudem a utilizar essa língua já que a
globalização influencia nesse quesito. Portanto, assim como as outras, a língua inglesa
permite acesso a informações e conforme os próprios alunos informaram, o gênero charge
estimula a capacidade crítica, humor, sátira e possibilita entender problemas sociais.
De tal modo, entende-se que os alunos, por meio do conhecimento referente ao gênero
charge, apresentaram informações relevantes a respeito do gênero. É importante deixar claro a
importância e a influência que esse gênero engloba, pois, muitas vezes as charges se tornam
mediadoras da formação de ideias sobre assuntos abordados nela e, consequentemente,
estimula um pensamento crítico a respeito de algum tema que esteja sendo apresentado.
Para isso, é de extrema importância, antes de tudo, conhecer o que ele já sabe sobre a
charge, como também as charges que serão utilizadas, pois, se ela for trabalhada de forma
descontextualizada, isso implicará no modo como o aluno irá recebe-la e, em consequência,
resultará em uma reflexão pouco efetiva. Após a análise dos dados referentes ao
conhecimento prévio dos alunos, percebemos, ainda, que eles já eram bem familiarizados com
o gênero charge e o fato de trabalharmos com o texto em língua inglesa não os intimidava.

Conclusão

Por meio da finalização desse trabalho, pudemos rever novamente a pergunta a qual
desencadeou a pesquisa. Assim, buscamos saber: De que forma o conhecimento prévio dos
alunos se manifestam em relação ao gênero charge? Diante de todo o estudo, percebemos que
os alunos identificaram facilmente o gênero, e consequentemente, apresentaram
conhecimentos relevantes a respeito da charge, pois expuseram argumentos convenientes
sobre as características, função social, temáticas, locais de acesso e etc.
Assim, reitera-se que trabalhar práticas de letramento não se resume em apenas saber
1055

ler. Um ensino voltado para o letramento vai além do que se é de costume trabalhado em sala,
é expor o aluno em situações reais que por meio dos gêneros e assim eles possam agir
socialmente interpretando os textos, criticando, emitindo opiniões e etc. É importante deixar
Página

claro que precisamos continuar sempre visando atividades que buscam essas ações nos

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alunos, investindo em mais atividades que adotam a visão de leitura como uma prática social
que é eficaz e importante para o aluno que vive em um mundo globalizado.
Nesse mundo global em que estamos inseridos, a língua inglesa e a capacidade de se
portar com criticidade oportunizam e os possibilitam a agirem e interagirem socialmente. O
que nos interessa é que o aluno possa adotar visões mais reflexivas acerca dos textos que lê
não apenas na sala de aula, mas principalmente em sua vida social, nas formas de interação
com os membros de sua comunidade se portando como um sujeito crítico.

Referencias

EISNER, Will. Quadrinhos e Arte Seqüencial. São Paulo: Editora Martins Fontes, 3ª
Edição, 2001

CAVALCANTE, Mônica Magalhães; SANTOS, Leonor Werneck dos. Referenciação e


marcas de conhecimento partilhado. Linguagem em (Dis)curso, Tubarão, v. 12, p. 657-681,
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LESSA, D. P. O. Gênero textual charge e sua aplicabilidade em sala de aula. Revista


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NERY, João Elias. Charge e caricatura na construção de imagens públicas. 1998. Tese
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TFOUNI, Leda Verdiani. Letramento e Alfabetização. 8. ed.- São Paulo, Cortez, 2006. –
(Coleção Questões da Nossa Época, v.47)
1056
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ISBN: 978-85-7621-221-8
GT8 – FORMAÇÃO E PRÁTICAS DE PROFESSORES DE LÍNGUA INGLESA

O LÚDICO NO ENSINO DE LÍNGUA INGLESA

Valério Silveira de Góis (UERN)

Introdução

Para o ensino de línguas estrangeiras é óbvio que as atividades lúdicas não constituem
a aprendizagem de forma geral, mas são analisadas como estratégias de motivação da
aprendizagem, capazes de desenvolver a autoestima e o desenvolvimento de aprendizado de
uma disciplina.
Nessa visão, percebe-se o quanto a ludicidade é importante na rotina escolar, visto que
dinamiza a interação entre os estudantes e o aprender, os quais ficam mais interessados em
assistir aula. Os jogos têm como função, nas aulas de línguas, ampliar os conhecimentos
linguísticos dos alunos, além de melhorar a capacidade de trabalhar em grupo.
Podemos aplicar os jogos tanto no ensino da língua materna, quanto no ensino de uma
língua estrangeira. A escola e o professor são os principais mediadores e responsáveis em
resgatar o desejo do educando em descobrir uma nova língua e pelo aprimoramento da
qualidade do processo de ensino-aprendizagem, cabendo a ele desenvolver métodos didáticos
lúdicos que permitam ao aluno um maior aprendizado.
Portanto, objetivamos, neste trabalho científico, verificar em que medida as atividades
lúdicas são eficientes no processo de aprendizagem de Língua Inglesa. Abordaremos um
estudo bibliográfico envolvendo vários autores, tais como, Vygotsky (1988, 1994), Kishimoto
(1998, 2001), entre outros. A relevância deste estudo deve-se ao fato de que as atividades
lúdicas são amplamente acentuadas nas aulas de inglês nos dias atuais. A fundamentação
teórica baseou-se no estudo de procedimentos de ensino de inglês como língua estrangeira, da
ludicidade, da motivação, da análise de autores na distinção de alguns termos como os jogos e
as brincadeiras, do papel da escola e do professor. As atividades lúdicas possuem um papel
importante na motivação dos alunos, mas não garantem o sucesso da aprendizagem
consciente da língua.
1057
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1 A ludicidade no ensino de língua inglesa

Jogos e os brinquedos têm participação essencial na vida do ser humano,


independentemente de época, cultura e classe social, pois estamos inseridos num mundo de
fantasia, de encantamento, de alegria, de sonhos, nos quais a realidade e faz-de-conta se
confundem. Portanto, a palavra “lúdico” vem do latim ludus e significa brincar. Dentro desse
contexto, no brincar estão incluídos os jogos, brinquedos e divertimentos e é relativa também
à conduta daquele que joga que brinca e que se diverte. Isso quer dizer que a função educativa
do jogo tem contribuição para aprendizagem do indivíduo, seus saberes, níveis de
conhecimento e a compreensão de mundo.
Entender o papel do jogo nessa relação afetivo-emocional e também de aprendizagem
requer que percebamos estudos de caráter psicológico, como mecanismos mais complexos,
típicos do ser humano, como a memória, a linguagem, a atenção, a percepção e a
aprendizagem.
O termo lúdico, que compreende o brincar e o jogar, tem como sinônimo a liberdade,
pois dela que se origina o prazer da participação de qualquer atividade. A perspectiva que tal
abordagem assume em relação ao brincar enfatiza a importância dessa atividade para o
desenvolvimento psíquico da criança, reconhecendo, assim, que a pesquisa sobre a atividade
lúdica tem um papel central nos esforços para a compreensão dos sujeitos em seu percurso de
desenvolvimento e humanização.
O ser humano tem por necessidade a aquisição do lúdico em qualquer etapa de sua
fase e não pode ser vista apenas como diversão. O desenvolvimento dos aspectos
motivacionais facilita a aprendizagem, o social e cultural, também, colaborando para uma boa
saúde mental. Para (LUCKESI, 2000, p.52) a atividade lúdica é um fazer humano mais
amplo, que se relaciona não apenas à presença das brincadeiras ou jogos, mas também a um
sentimento, atitude do sujeito envolvido na ação, que se refere a um prazer de celebração em
função do envolvimento genuíno com a atividade, a sensação de plenitude que acompanha as
coisas significativas e verdadeiras.
Kishimoto (1998) faz uma analogia bastante notável quando se diz respeito ao
1058

emprego da palavra jogo. Segundo ele, a palavra jogo acaba se tornando imprecisa, de difícil
definição, por ser empregada com diferentes significados e em diferentes circunstâncias. Por
exemplo, em casos como “um gato que empurra uma bola de lã”, “um tabuleiro com peões”
Página

ou mesmo “uma partida de xadrez” (ainda que disputada numa competição entre

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profissionais) são todas denominadas jogo. Desse modo, o autor indaga se um tabuleiro com
peões teria o mesmo significado quando vira recurso do ensino, destinado à aprendizagem ou
material pedagógico.
Kishimoto (1998) diz também que há muitas dúvidas entre educadores que procuram
associar o jogo à educação sendo que o jogo educativo empregado em sala de aula ser uma
delas. Um mesmo objeto pode desempenhar funções diversas, tendo como pontos de
dependência o contexto em que é utilizado, ou seja, brinquedo ou material pedagógico.

Se brinquedos são sempre suportes de brincadeiras, sua utilização deveria


criar momentos lúdicos de livre exploração, nos quais prevalece a incerteza
do ato e não se buscam resultados. Porém, se os mesmos objetos servem
como auxiliar da ação docente busca-se resultados em relação à
aprendizagem de conceitos e noções, ao desenvolvimento de algumas
habilidades. Nesse caso, o objeto conhecido como brinquedo não realiza sua
função lúdica, deixa de ser brinquedo para tornar-se material pedagógico.
Um mesmo objeto pode adquirir dois sentidos conforme o contexto em que
se utiliza: brinquedo ou material pedagógico (KISHIMOTO, 1998, p. 15).

É tarefa importante de um professor consciente repensar continuamente sobre


estratégias de ensino-aprendizagem que possam ser pertinentes e, também, interessado numa
prática pedagógica cada vez mais reflexiva. Dessa maneira, os jogos didáticos apresentam-se
como ferramenta útil tendo em vista que possibilitam uma abordagem do conteúdo que
permite a utilização da língua estrangeira mesmo desvinculada de sua representação escrita (o
que é positivo se a criança ainda não é alfabetizada) e, ainda, favorecem o desenvolvimento
de atividades na língua-alvo que aliam motivação, socialização, desenvolvimento sensorial,
motor e linguístico, de maneira apropriada à faixa etária das crianças envolvidas.
Complementando, o jogo, enquanto atividade lúdica voltada ao ensino de línguas,
adquiri uma importância particular, o lúdico ajuda na diminuição da ansiedade em da sala de
aula, contribuindo para baixar o filtro afetivo e, consequentemente, para amenizar as
frustrações às quais está sujeito o aprendiz de língua estrangeira.
Na evolução do brincar, observou-se um avanço no que se refere aos estudos e
pesquisas referentes da importância e compreensão dessa atividade, para a preservação
histórico-cultural, para a educação, para o desenvolvimento integral infantil, para a
1059

aprendizagem, para a reeducação, para a segurança na fabricação de brinquedos, para a


adequação dos brinquedos às diferentes faixas etárias. No que se refere aos fatores externo do
Página

brincar (tempo, temática, espaço, parceiros, objetos), no entanto, as condições de

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modernidade comprometeram de certa forma, as oportunidades lúdicas. Frente a tais
constatações, faz-se urgente a atuação de todos aqueles indivíduos preocupados com a
infância, no sentido de resgatar o espaço que o brincar vem perdendo na nossa sociedade.
O brincar é considerado por Vygotsky (1988) como Zona de Desenvolvimento
Proximal. Portanto, a atividade lúdica é identificada como lugar privilegiado de emergência
de novas formas de interpretação da realidade e se instaura em espaços para o
desenvolvimento em vários sentidos. Na atividade lúdica, a criança "se torna" aquilo que
ainda não é, "age" com objetos que substituem aqueles que ainda lhe são vetados, "interage"
segundo padrões que se mantém distantes do que lhe é determinado pelo lugar que na
realidade ocupa em seu espaço social. Brincando, a criança ultrapassa os limites dados
concretamente para a sua atividade. As ações simbólicas possibilitam uma liberdade para a
criança, permitindo-lhe transgredir os limites dados pelo seu desenvolvimento real e
configurando instâncias de constituição de seu desenvolvimento proximal.
Para Vygotsky (1988 apud ROCHA, 1994), há três processos entrelaçados na questão
originária do brincar: primeiramente, a criança irá experimentar necessidades que não podem
ser satisfeitas; a criança buscará satisfações imediatas das necessidades e as transformações
operadas na memória; o esquecimento a partir de certo momento, já não ocorre com a mesma
facilidade, devido aos avanços na capacidade de registrar e conservar experiências, que
gradualmente vão se operando.
A concepção elaborada por Vygotsky põe, como elemento essencial para desenvoltura
do indivíduo, a aprendizagem, atribuindo-a significativamente como importante para o
relacionamento entre o homem e o ambiente social, que por sua vez, marca decisivamente seu
desenvolvimento.
Para Vygotsky (1988) o brincar é uma atividade dependente, um tipo de impulso
específico, denominado de criativo. O conceito de impulso criativo seria aquele que permite
ao sujeito reordenar os elementos extraídos da realidade em novas combinações.
Estabelecimento entre o real e o criativo (que pode se expressar em diversas atividades do
indivíduo, entre as quais se encontra a lúdica) relações e interpenetrações constantes.
Portanto, para ele, há uma proporção de três níveis de relação entre o real e a fantasia.
1060

Primeiramente, é a fantasia que se vincula à realidade na medida em que toma elementos da


última, pertencentes à experiência anterior do sujeito reelaboradas em sua imaginação. Em
segundo nível, está à experiência apoiada na imaginação, na medida em que a capacidade de
Página

imaginação possibilita a ampliação das experiências – por exemplo, de se construir

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imaginariamente algo que não se viveu. No último nível, vem a fantasia que pode representar
a novidade, não existente na experiência do homem e nem semelhante a nenhum objeto real.
Ao receber forma material, a imagem cristalizada começa a existir realmente no mundo e a
influir sobre ele.
Dessa maneira, o círculo das relações comparativas entre a fantasia e a realidade são
concluídos, em que os elementos do real, apropriados e reorganizados, constituem a fantasia,
cujas imagens constantemente materializam-se e passam a interferir e a modificar a realidade,
ao se transformarem em elementos constituintes dela.
É importante salientar outro ponto de vista quando Vygotsky (1988) enfatiza o fator
social no brinquedo, demonstrando que, no jogo de papéis, a criança cria uma situação
imaginária, incorporando elementos do contexto cultural adquiridos por meio da interação e
comunicação.
O lúdico como objeto motivador vai promover a sensação de desejo e prazer. As
atividades se tornarão prazerosas e promoverão interesse e capacidade de raciocínio entre os
alunos, professores e a aprendizagem. Vygostky (1994) vai além, quando ressalta que:

Assim, o atributo essencial do brinquedo é que uma regra torna-se um


desejo. As noções de Spinoza de que “uma ideia que se tornou um desejo,
um conceito que se transformou numa paixão”, encontram seu protótipo no
brinquedo, que é o reino da espontaneidade e liberdade. Satisfazer as regras
é uma fonte de prazer. A regra vence porque o impulso é mais forte”
(VYGOTSKY, 1994, p. 131).

Segundo Vygostky (1994), a motivação é um dos fatores principais não só para o


sucesso da aprendizagem, como também na aquisição de uma língua estrangeira. Porque não
dizer uma forma interior propulsora para a construção de novas descobertas, uma necessidade
de se explorar o desconhecido.
Por meio da ludicidade, o ser humano desenvolve e exercita sua memória, seu
raciocínio, sua capacidade de percepção. O processo de jogar é capaz de reduzir a baixa
autoestima, fator esse primordial para o sucesso na aprendizagem de línguas estrangeiras. O
aluno, mesmo após o jogo, sente-se parte do grupo e nele se fortalece.
1061

A aplicação das atividades lúdicas nas salas de aula de língua estrangeira serve como
elemento de apoio, de incentivo, de interação, de uso efetivo de língua oral ou escrita e de
desenvolvimento de habilidades. É, sem dúvida, o momento ideal para que os alunos sintam
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confiança em si mesmos, sintam que são parte do grupo e que percam o medo de se expor,
aumentando seus conhecimentos linguísticos e comunicativos.
A escola é uma instituição responsável pela construção e divulgação do conhecimento,
promovendo o processo de ensino-aprendizagem, onde para Libâneo (1994), a escola é a
forma predominante de ensinar e aprender. Durante as aulas o professor deve criar
oportunidades para que o aluno assimile o conhecimento, de forma prazerosa, desenvolvendo
habilidades e atitudes que estimulem a criticidade e suas capacidades cognoscitivas.
A escola tradicional, centrada na transmissão dos conteúdos, não comporta um modelo
lúdico. Por essa razão, é tão frequente presenciarmos nas falas que apoiam e enaltecem a
ênfase do lúdico estar presente na sala de aula, e queixas dos futuros educadores, como
também daqueles que já se encontram exercendo o magistério, de que se fala da importância
da ludicidade, se discutem conceitos de ludicidade, mas não se vivenciam atividades lúdicas.
Fala-se, mas não se faz. De fato, não é tão simples uma transformação mais radical pelas
próprias experiências que o professor tem ao longo de sua formação acadêmica.
Numa sala de aula inspirada pela ludicidade, convive-se com a aleatoriedade, com o
imponderável; o docente renuncia à autoridade, à onisciência, reconhece da importância de
que o aluno possui uma postura ativa nas situações de ensino, sendo seu próprio interlocutor
de sua aprendizagem; espontaneidade e criatividade são constantemente estimuladas.
Analisamos que atitudes como essas, de um modo geral, não são, de fato,
concretizadas na escola. Os exercícios de ludicidade permitem que os seres vivenciem sua
inteireza e sua autonomia em um tempo-espaço próprio, particular. Portanto, faz com que os
alunos tenham vontade de estar na escola, fazendo com que queiram aprender mais, ficam
felizes, querendo voltar no dia seguinte porque a escola é um lugar bom de incluir na sua
rotina diária: essa é uma realidade desejada por muitos educadores. No entanto, o que será que
os professores estariam fazendo para garantir esse prazer de aprender nos alunos? A escola
proporciona espaços que possa concretizar essa ideia?

Não queremos uma escola cuja aprendizagem esteja centrada nos homens de
talentos, nem nos gênios, já rotulados. [...] Precisamos de uma escola que
forme homens, que possam usar seu conhecimento para o enriquecimento
1062

pessoal, atendendo os anseios de uma sociedade em busca de igualdade de


oportunidade para todos (RESENDE, 1999, p. 42- 43).
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A utilização de atividades que proporcionam prazer e estímulo são eficazes para o


ensino de língua estrangeira, pois promovem alegria e transformações do indivíduo em
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relação ao seu objeto de aprendizagem. Através do lúdico o aluno vai sentir a necessidade de
aprender a interagir com conteúdo de culturas diferentes da sua e, também, vai despertar nele
interesse de estudar. De acordo com Kishimoto (2001, p. 80):

[...] O jogo como promotor da aprendizagem e do desenvolvimento passa a


ser considerado nas práticas escolares como importante aliado para o ensino,
já que colocar o aluno diante de situações de jogo pode ser uma boa
estratégia para aproximá-lo dos conteúdos culturais a serem vinculados na
escola, além de poder estar promovendo o desenvolvimento de novas
estruturas cognitivas.

Geralmente encontramos as atividades lúdicas no ensino de disciplinas como


matemática, porém vale ressaltar sua utilização em outras matérias, como a língua inglesa,
pois o uso do lúdico é essencial para aprendizagem tanto das crianças como também dos
jovens e adultos. É importante que se utilize o estimulo do conhecimento e da busca entre os
alunos, e é preciso inserir no contexto da escola o uso de jogos educativos para tornar os
conteúdos mais fáceis e, também, para haver uma interação entre o estudante e o aprendizado.
É notório que se conceda uma atenção especial na hora de escolher uma dinâmica na
sala de aula. É preciso saber a realidade do aluno e não jogar qualquer atividade sem antes ter
um sentido. O brinquedo vai surtir um efeito positivo quando é direcionado um propósito para
determinada ação. Cabe ao professor conhecer essa realidade e saber utilizar as diversas
práticas didáticas envolvendo o lúdico para impulsionar, e não reprimir, os alunos. É
importante ressaltar que:

À medida que o brinquedo se desenvolve, observamos um movimento em


direção à realização consciente de seu propósito. É incorreto conceber o
brinquedo como uma atividade sem propósito. Nos jogos atléticos, pode-se
ganhar e perder; numa corrida, pode-se chegar em primeiro, segundo ou
último lugar. Em resumo, o propósito decide o jogo e justifica a atividade
(VYGOTSKY, 1994, p. 135).

O caráter de integração e interação contido nas atividades lúdicas permite a integração


do conhecimento com ações práticas, Chaguri (2004), pois a motivação é um dos fatores
principais não só para o sucesso da aprendizagem, como também na aquisição de uma LE.
1063

Claramente que uma atividade lúdica não deve ser aplicada sem que algum benefício
educativo, ou seja, nem todo jogo pode ser visto como material pedagógico, até porque
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Kishimoto (1998) aponta que a atividade lúdica no processo de aquisição é um dos fatores

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que integra a aquisição de uma Língua Estrangeira que o aprendiz esteja em contato, o qual
ocorre gradativamente e inconscientemente de forma a resultar uma comunicação natural.
Numa perspectiva em que o inglês é apresentado de forma lúdica, as pessoas passam a
ser estimuladas e há desenvolvimento de concentração. Através de trabalhos lúdicos,
passamos a ter uma finalidade em seu aprendizado. “Consequentemente, caberá ao professor
dar uma melhoria da qualidade do processo de ensino-aprendizagem, cabendo a ele
desenvolver novas práticas didáticas que permitam aos discentes um maior aprendizado. ”
(NUNES, 2004).
Exercícios lúdicos nunca devem ser aplicados sem algum benefício educativo, ou seja,
nem todo jogo pode ser visto como material pedagógico, até porque Kishimoto (1998) aponta
que a atividade lúdica no processo de aquisição é um dos fatores que integra aquisição de uma
Língua Estrangeira que o aprendiz esteja em contato, o qual ocorre gradativamente e
inconscientemente de forma a resultar uma comunicação natural.

Considerações finais

As atividades lúdicas podem ser aplicadas ao ensino de línguas, como também em


qualquer outra disciplina, uma vez que esse pressupõe a troca de informações e,
consequentemente, a convivência.
A aprendizagem das línguas estrangeiras, no caso a inglesa, está vinculada aos fatos
do cotidiano, fazendo associação ao universo do aprendiz, resignificando a construção do
conhecimento, com enfoque no lúdico. É função da escola fazer com que as diferentes
experiências de mundo compartilhados em sala de aula sejam respeitadas e valorizadas,
enquanto formas distintas de sentir, perceber e aceitar ou não as relações sociais e políticas
que medeiam nosso conhecimento de mundo. Nesse contexto, o jogo passa a ser
indispensável para a realização dessa função, ao enriquecer o senso de responsabilidade e
fortalecer as normas de cooperação, acima de preconceitos e pontos de vista divergentes.
Em síntese, os objetivos do lúdico em sala de aula são promover a estimulação das
relações cognitivas, afetivas, verbais, psicomotoras, bem como desenvolver a capacidade
1064

criativa e crítica dos alunos.


Página

ISBN: 978-85-7621-221-8
Referências

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KISHIMOTO, T. M. O Jogo e a Educação Infantil. São Paulo: Pioneira, 1998b.

LIBÂNEO, José Carlos. Didática. São Paulo: Cortez, 1994.

LUCKESI, Cipriano Carlos. Avaliação da Aprendizagem Escolar. 11. ed. São Paulo: Cortez
2001.

NUNES, A. R. S. C. A. O Lúdico na Aquisição da Segunda Língua. (2004). Disponível


em: <http://www.linguaestrangeira.pro.br/artigospapers/ludico_linguas.htm>. Acesso em: 20
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RESENDE, M e outros. Pedologia – Base para distinção de ambientes. 3. ed. Viçosa:


NEPUT, 1999.

VYGOTSKY, L. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1994.

VYGOTSKY, L.S. et al. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. São Paulo, Ícone


Editora, 1988.

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ISBN: 978-85-7621-221-8
GT8 – FORMAÇÃO E PRÁTICAS DE PROFESSORES DE LÍNGUA INGLESA

INGLÊS INSTRUMENTAL: HISTÓRICO E PRESSUPOSTOS TEÓRICOS

Wanderley da Silva (UERN )159

Introdução

Este artigo discorre sobre a abordagem de ensino de leitura denominada English for
Specific Purposes, conhecido no Brasil como Inglês Instrumental. Trata-se de uma vertente
da abordagem comunicativa de leitura, uma abordagem na qual a leitura é vista como uma
prática social discursiva. Instituiu-se como área de ensino de língua estrangeira na década de
1960, mas só ganhou força e realmente se firmou na década de 1970. No Brasil, surgiu na
década de 1970, com a introdução do inglês instrumental pela professora Celani, através de
um projeto de ensino na PUC-SP.
Trata-se de uma abordagem de ensino que foca uma das habilidades linguísticas,
geralmente a leitura, no entanto, pode direcionar-se a qualquer uma das habilidades
linguísticas. Passou por cinco fases: a análise do registro; a fase discursiva; fase da análise
das necessidades; fase de estratégias e habilidades; e a fase da abordagem centralizada na
aprendizagem.
Seu desenvolvimento se deu devido à expansão do uso de língua inglesa nas
comunicações, comércio e produção científica internacional, que exigiu cada vez mais a
utilização da leitura em língua inglesa, tanto nos círculos acadêmicos quanto como língua
franca internacional. Com o advento da globalização e a utilização cada vez mais social da
internet, a leitura em língua estrangeira se transformou de uma simples vaidade em uma
necessidade do mundo moderno.
A partir da década de 1980, houve um aumento nas práticas pedagógicas voltadas à
leitura, tanto no ensino fundamental e médio, quanto no ensino universitário e nas pós-
graduações e O ESP se firmou enquanto abordagem de ensino de leitura em língua inglesa e
vem sendo usado nas salas de aula e em cursos de proficiência de leitura.
1066
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Professor adjunto IV da UERN – Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. Mestre em Ciências da
Educação e Doutor em Ciências da Educação pela UA-Universidade Americana/Instituto IDEIA.

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1 O surgimento do Inglês Instrumental – English for Specific Purposes (ESP)

Os estudos linguísticos em leitura em língua estrangeira quase não tinham destaque


até a década de 1970 (BROWN, 2007), e só vieram a gerar interesse nos estudiosos quando
em 1970 Goodman publicou o artigo Reading: a Psycholinguistic Guessing Game160. Essa
publicação foi o marco inicial para que a pesquisa em ensino de leitura em língua estrangeira
conquistasse o seu espaço. Com a publicação desse artigo, começou a se ligar o ensino de
leitura à utilização de estratégias de leitura, propostas por Goodman (1970).
Existem registros históricos de estudos que já poderiam ser considerados ESP
(English for Specific Purposes – Inglês para Propósitos Específicos) ou, como é conhecido
no Brasil, Inglês Instrumental. Bloor (1997) faz menção de um manual para os mercadores
de lã e produtos agrícolas em 1415, com palavras técnicas da área, o que já seriam indícios
de um inglês direcionado a propósitos específicos.
No mundo moderno, o ESP se instituiu como área de ensino de inglês na década de
1960. Swales (1995) afirma que o ano de 1962 é o marco inicial do ensino de ESP no mundo
moderno, com a publicação do artigo Some measurable characteristics of modern scientif
prose161 por Tony Barber. Os primeiros livros de inglês instrumental foram publicados na
época e vários órgãos ligados a países de língua inglesa lançaram projetos para consolidar o
inglês instrumental no mundo. No entanto, nessa primeira fase do ESP o ensino ainda era
fundamentado na crença que aprender uma língua era dominar a estrutura da língua alvo.
Essa primeira fase foi denominada de análise do registro.
Numa segunda fase do ESP, a fase discursiva, esperava-se que além de conhecer as
estruturas linguísticas, os alunos deveriam identifica-las em um determinado contexto
discursivo, o que foi descrito por Hutchinson e Waters (1996) como a identificação dos
padrões organizacionais dos textos e a especificação dos meios linguísticos através dos quais
esses padrões são sinalizados. Essa fase foi denominada fase discursiva.
Em uma terceira fase, o ESP focalizou as necessidades do aluno em relação ao uso
que terá da língua alvo, sendo denominada fase de análise das necessidades. Na quarta fase,
1067

voltou-se para os aspectos textuais e comunicativos, sendo denominada essa fase de fase de
estratégias e habilidades e, finalmente, em uma quinta e última fase, volta-se para a
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160
Leitura: um jogo psicolinguístico de suposições.
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Algumas Características da prosa moderna.

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preocupação com os processos de aprendizagem, e é denominada de fase da abordagem
centrada na aprendizagem.

1.1 O surgimento do Inglês Instrumental no Brasil

No Brasil, o ESP surgiu na década de 1970, quando a professora Antonieta Alba


Celani, coordenou a introdução do inglês instrumental, em um processo que abrangeu
universidades e escolas técnicas. Foi um projeto de ESP desenvolvido na PUC-SP. Esse
projeto, mais recentemente, em 2005, culminou com o Seminário de Comemoração dos 25
anos do Projeto de Ensino de Inglês Instrumental em Universidades no Brasil, na PUC-SP.
O ESP Surgiu no Brasil com a grande expansão do uso de língua inglesa nas
comunicações, comércio e produção científica internacional. A leitura em língua inglesa se
tornou indispensável nos círculos acadêmicos e também como língua franca internacional,
devido à grande expansão comercial, tecnológica e científica dos Estados Unidos e do
mundo. Isso provocou à necessidade crescente de leitura em língua estrangeira, com a
publicação cada vez maior de materiais escritos em vários idiomas, principalmente em língua
inglesa, e, com o avanço dos meios de comunicação modernos, o alcance cada vez maior dos
indivíduos a essas publicações.
Houve crescente demanda feita aos departamentos de línguas modernas das
universidades, por departamentos das ciências exatas e biológicas, como também da ciência
da computação, devido à presença cada vez mais intensa do inglês nos meios acadêmicos e
na pesquisa em geral, por causa de o inglês ter se tornado língua universal tanto na área
comercial quanto científica e tecnológica.
Almeida (2012), afirma que partir da década de 1980, com o aumento de práticas
pedagógicas direcionadas à abordagem comunicativa de ensino e ao ESP, os pesquisadores e
professores interessados na conjuntura da escola obrigatória de ensino fundamental e médio
começaram a rever qual o propósito e fundamento do ensino de língua inglesa, que até então
estava imerso em um perfil extremamente estruturalista. A princípio, ficou conhecido como
ESP, mas, no Brasil, passou a ser chamado de inglês instrumental.
1068
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2 Foco do Inglês Instrumental

Surgiu com o objetivo de levar o aluno a desenvolver competência em leitura em


língua inglesa, interpretação e compreensão de textos, não focando a conversação ou tradução
dos textos estudados. Com o enfoque direcionado para a habilidade de leitura, o aluno não
necessitava ter o domínio das outras habilidades da língua, e isso colaborava para o
desenvolvimento dessa proficiência em um curto espaço de tempo.
Guandalini (2002, p. 12) afirma que:

O ensino do inglês instrumental surgiu a partir da necessidade dos alunos,


tanto de primeiro e segundo graus, que precisam do inglês instrumental para
o vestibular, quanto dos de nível superior, que precisam ler e compreender
os textos específicos voltados às suas diferentes áreas de estudo, pois o
inglês instrumental é centrado exclusivamente nas necessidades dos alunos.

Cursos de ESP de seis meses a um ano eram desenvolvidos, com carga horária de
sessenta a cento e vinte horas/aula. Esses cursos baseavam-se no uso de estratégias e técnicas
de leitura específicas com um esquema de atividades de características autônomas, nas quais o
aluno era o protagonista em uma concepção social de leitura e o professor um facilitador no
processo de construção conjunta do significado.
Alunos, pesquisadores, professores e homens de negócio que não tinham necessidade
de desenvolver a habilidade oral por não terem contato com essa habilidade no seu cotidiano,
precisavam ler notícias internacionais, pesquisas, e sua correspondência pessoal em língua
inglesa. Em algumas universidades era ofertado como Inglês Técnico, e também começou a
ser ofertado em escolas técnicas, cursos preparatórios para leitura e interpretação textual para
o vestibular, cursos preparatórios para o teste de proficiência de mestrado e doutorado e até
mesmo em algumas escolas de ensino fundamental e médio. Infelizmente, a falta de
conhecimento dessa abordagem pela maioria dos professores fez com que ela não fosse
utilizada massivamente nas escolas de ensino fundamental e médio, que continuaram a adotar
uma abordagem estruturalista, voltada para o estudo e ensino das estruturas gramaticais da
língua.
1069

Segundo Guandalini (2002, p. 12) “No ensino de inglês instrumental as habilidades


de língua inglesa (ouvir, falar, ler e escrever) se reduzem a uma só: a leitura, pois esta é a
habilidade mais imediata de que estes alunos precisam.”. Afirma ainda que, embora se
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focalize a habilidade de leitura, o professor de inglês instrumental não deve desprezar as
demais habilidades, praticando-as sempre que possível.
Na verdade, a metodologia do ESP pode se remeter a qualquer uma das habilidades
linguísticas, dependendo da necessidade do aluno. Um profissional na área de turismo, por
exemplo, terá um ESP direcionado para a oralidade, devendo desenvolver um conhecimento
básico do idioma alvo para o atendimento de um turista em um hotel, ou mesmo para assumir
a tarefa de guia turístico. O professor João Sedycias, Ph.D., da Universidade Federal de
Pernambuco, afirma que

A metodologia do inglês instrumental tem como premissa básica levar o


aluno a descobrir suas necessidades acadêmicas e profissionais dentro de um
contexto autêntico, oriundo do mundo real. Portanto, o curso típico de inglês
instrumental é elaborado a partir do levantamento de situações em que o
conhecimento específico da língua inglesa permite ao aluno desempenhar
melhor uma função lingüística específica.
No caso do funcionário que lida com clientes estrangeiros, para poder
orientá-los devidamente, esse funcionário necessitará conhecer
suficientemente ou o idioma nativo do cliente ou um terceiro idioma
(geralmente uma lingua franca de projeção mundial como o inglês ou o
espanhol) que o cliente também fale. Com o conhecimento básico dessa
língua e a prática do vocabulário específico, o funcionário poderá se
comunicar e fazer um atendimento significantemente melhor do que se o
mesmo não tivesse esse conhecimento lingüístico.
(http://descomplicandoingles.blogspot.com.br/2009/02/breve-historia-do-
ensino-do-ingles.html)

O ESP ou Inglês Instrumental é uma vertente da Abordagem Comunicativa de ensino,


só que com o foco em apenas uma habilidade, na maioria das vezes a habilidade de leitura.
Embora focalize o ensino da leitura não se trata do Método de Gramática e Tradução,
método mais antigo do ensino de línguas, que utilizava a leitura como pretexto para o ensino
de gramática, com o ensino de regras gramaticais isoladas e frases desconexas e isoladas,
para posteriormente usar esse conhecimento na tradução de textos. Também não se trata do
Método de Leitura, método utilizado nos Estados Unidos e Canadá na década de 1930 para o
ensino de leitura, que se valia de textos facilitados para o ensino da leitura (BROWN, 2007;
RICHARDS & RODGERS 2014).
1070

Guandalini (2002) afirma que o objetivo do ESP é desenvolver no aluno a capacidade


de ler e compreender textos e não apenas dominar as regras estruturais e o léxico presente
nele. Ainda Guandalini, (2002, p. 12) afirma que:
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Tendo em vista que o ensino básico de inglês em escolas de primeiro e
segundo graus, escolas técnicas e Universidades do Brasil ordinariamente
sempre enfatizou a aprendizagem da gramática como principal objetivo,
tornava-se necessária a introdução de uma abordagem específica de língua
inglesa, que atendesse às necessidades profissionais do estudante dessas
instituições, quais sejam leitura e compreensão de livros, revistas,
catálogos, manuais, instruções operacionais, etc., relativos à sua área de
estudos.

Embora o ESP focalize o ensino de apenas uma das habilidades linguísticas, isso não
significa prejuízo para as demais habilidades (escuta, fala e escrita), pois o ESP surgiu
apenas pela necessidade de capacitar o aluno em determinada área ou habilidade que ele
necessite no seu meio social, e, com a concentração pedagógica em uma só habilidade, essa
habilidade pode ser desenvolvida mais rapidamente. Além disso, a habilidade escolhida para
ser desenvolvida pode ser qualquer uma e não especificamente a leitura, embora essa seja a
que geralmente é visada, devido à necessidade social e discursiva da leitura no mundo atual.
A abordagem Comunicativa (AC) de ensino de línguas foi a primeira abordagem a
defender a possibilidade do estudo da de uma língua estrangeira (L2) direcionado para um
objetivo ou área específica, ou mesmo para uma das habilidades linguísticas, e, seguindo
essa propensão, nasceu o ESP ou inglês instrumental. Sánchez, (2000, p. 200, tradução
nossa) afirma que na AC:

A definição dos conteúdos pode ser do tipo geral ou específico. Em


qualquer caso se faz necessário realizar um estudo prévio das
necessidades comunicativas. Quando alguém almeja aprender uma
segunda língua, é frequente faze-lo tendo em mente metas e fins
concretos: para ler artigos de medicina, para estudar na universidade,
para ler literatura, para falar com as pessoas, para poder se comunicar
em suas viagens como turista, etc.162

Cruz (2001, p. 12) afirma que “[...] a finalidade da leitura era direcionada para as
diferentes áreas de atuação do aluno, e era geralmente voltada para ciência e tecnologia. [...]”
ainda afirma que o ESP tinha como objetivo a leitura, interpretação e compreensão de textos,
não se voltando para a oralidade, a conversação ou tradução de textos estudados.
1071

La definición de los contenidos puede ser de tipo general o específico. En cualquier caso se hace necesario
llevar a cabo un estudio previo de necesidades comunicativas. Cuando alguien desea aprender un segundo
idioma, suele hacerlo teniendo en mente objetivos y fines concretos: para leer artículos de medicina, para
estudiar en la universidad, para leer literatura, para hablar con la gente, para poder comunicarse en sus viajes
Página

como turista, etcétera.

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Com a premissa de se desenvolver somente uma das habilidades linguísticas, no caso
a proficiência em leitura, tornou-se possível realizar um estudo em tempo mais curto. Com o
desenvolvimento do ESP, passou-se a trabalhar áreas específicas, textos selecionados por
áreas de conhecimento, e também a aplicar-se essa abordagem de ensino com propósitos
sociais e pedagógicos específicos como: cursos preparatórios para exames de proficiência de
ingresso em pós-graduação stricto senso (mestrados e doutorados), seleção de concursos para
vestibulares, seleção de concursos de trabalho, além de leitura em áreas específicas de
pesquisa.
Segundo Ramos (2005), o ESP não apenas focaliza a leitura, mas também a leitura
especifica para determinadas comunidades linguísticas tais como: Inglês Instrumental para
turismo, Inglês Instrumental para Informática, Inglês Instrumental para Medicina, etc. John e
Dudley-Evans (1991), afirmam que o ESP demanda pesquisas cautelosas e um projeto de
materiais e atividades pedagógicas para determinado grupo de alunos em um determinado
contexto de aprendizagem, pois o ESP inclui variadas áreas tais como: inglês para Ciência e
Tecnologia; inglês acadêmico e; inglês para fins ocupacionais como turismo e negócios.

3 Pressupostos teóricos do Inglês Instrumental

O ESP foca a leitura em uma visão inovadora, superando a visão anterior que visava o
estudo metódico de regras gramaticais e do léxico. Segue uma vertente na qual o aluno faz
parte de uma interação social e, portanto, ajusta o processo de ensino à realidade discursiva do
aluno. O texto segue, no ESP o mesmo paradigma proposto por Koch e Elias (2001, p. 7),
segundo os quais o texto é:

[...] lugar de interação de sujeitos sociais, os quais, dialogicamente, nele se


constituem e são constituídos; e que, por meio de ações lingüísticas e
sociocognitivas, constroem objetos-de-discurso e propostas de sentido, ao
operarem escolhas significativas entre as múltiplas formas de organização
textual e as diversas possibilidades de seleção lexical que a língua lhes põe à
disposição. A essa concepção subjaz, necessariamente, a idéia de que há, em
todo e qualquer texto, uma gama de implícitos, dos mais variados tipos,
somente detectáveis pela mobilização do contexto sociocognitivo no interior
1072

do qual se movem os atores sociais.

Portanto, não aceita a utilização de textos facilitados, passando ao estudo da leitura


Página

através de textos autênticos (BROWN, 2007), que expressem o ambiente discursivo real da

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língua do nativo, seguindo as mesmas premissas da abordagem comunicativa, funcional, pois
o texto facilitado foge às possibilidades de seleção discursiva lexical natural que o nativo
utiliza. Capacita o leitor para a leitura de textos autênticos em língua estrangeira através da
utilização de estratégias de leitura.
Long et al. (1982, apud HOLMES, 1983, p. 2-3, tradução nossa), afirma que uma aula
de ESP deve-se seguir os seguintes pressupostos:

1. Quando ler material não familiar, começar fazendo skimming das


sentenças dos tópicos.
2. Quando possível usar o contexto para inferir o vocabulário.
3. Quando procurar por informação específica – ignorar tudo mais – fazer
scanning.
4. Usar relações semânticas para inferir o vocabulário desconhecido.
5. Procurar o relevante comum em cadeias de palavras.
6. Usar afixos para inferir o vocabulário.
7. Usar palavras base e afixos para inferir vocabulário.
8. Usar sinais de linguagem para prever durante a leitura.163

O inglês instrumental focaliza o ato da leitura através de estratégias de leitura, vendo


a língua enquanto uso, em uma abordagem comunicativa funcional, procurando desenvolver
nos alunos a habilidade de ler textos em sua área em língua inglesa, mesmo sem dominar as
demais habilidades linguísticas. Segundo Holmes (1983, p. 2, tradução nossa),

Um programa de leitura de inglês instrumental – ESP – com uma


metodologia originalmente centrada no ensino de estratégias de leitura em
um contexto comunicativo/funcional. O tipo de curso em discussão objetiva
capacitar os alunos a ler literatura de sua área em inglês; isso supõe um
determinado nível de conhecimento do assunto, mas pouca experiência
prévia em inglês.164

163
No original:
1. When Reading unfamiliar material, start by skimming the topic sentences.
2. Where possible use context to guess vocabulary.
3. When looking for specific information, - ignore everything else – scan.
4. Use semantic relations to guess unknown vocabulary.
5. Look for the common relevant in word chains.
6. Use affixes to guess vocabulary.
1073

7. Use stems and affixes to guess vocabulary.


8. Use language signals to predict while reading.
164
No original: An ESP reading program with a methodology originally centered around the teaching of
reading strategies in a “communicative/functional” context. The type of course under discussion aims
Página

to enable students to read the literature of their specialism in English; it assumes a certain level of
background knowledge of the subject but little previous experience in English.

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É uma abordagem fundamentada nos princípios psicolinguísticos de leitura, levando o
leitor a uma interpretação discursiva do texto. Segundo Koch e Elias (2001, p. 8), no processo
de leitura, o leitor:

[...] é, necessariamente, levado a mobilizar uma série de estratégias tanto de


ordem lingüística como de ordem cognitivo discursiva, com o fim de
levantar hipóteses, validar ou não as hipóteses formuladas, preencher as
lacunas que o texto apresenta, enfim, participar, de forma ativa, da
construção do sentido.

Silveira (1999), afirma que no ESP a leitura é considerada um processo de aquisição


ativo que acontece por meio do acionamento de esquemas mentais e habilidades pragmáticas
e discursivas do leitor. Essa visão baseia-se nas ideologias da psicologia cognitiva das teorias
de esquemas propostas por Rumelhart (RUMELHART, 1981), na linguística textual e nos
modelos cognitivos de processamento estratégico do discurso propostos por Van Dijk &
Kintsch (VAN DIJK & KINTSCH, 1983), e também na análise do discurso.
Segundo Holmes (1983), o ESP apresenta três características principais: centralizar-se
nas necessidades dos alunos, uso de habilidades e estratégias que se direcionam para os
objetivos pré-estabelecidos, e o reconhecimento pelo professor do conhecimento de mundo e
linguístico do aluno na L2 ou na sua língua materna. O leitor, portanto, assume papel ativo no
processo de leitura e compreensão textual, estabelecendo as relações entre o conteúdo do
texto e o conhecimentos de mundo que possui.
O ESP vê a língua como um instrumento para exercer uma função comunicativa,
direcionando seus objetivos para a aprendizagem do idioma como meio de se alcançar tarefas
específicas em contextos específicos, geralmente relacionados à leitura ou a uma habilidade
específica. Deyes (1981) aponta como características do ESP:
(a) Levantamento da análise das necessidades do público alvo.
(b) Objetivos que impulsionam a leitura.
(c) Utilização de estratégias de leitura para a compreensão de textos.
(d) Ativação do conhecimento prévio, tanto de mundo quanto linguístico.
(e) Uso de textos autênticos.
1074

(f) Estudo apenas da gramática mínima do texto, para a apreensão das afinidades entre os
sentidos e as conjeturas do texto.
Página

Já Grellet (1981, p. 12-13, tradução nossa), divide as atividades de compreensão de


leitura no ESP em:
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1. Estratégias de leitura:
2. Sensibilização, melhorando a velocidade de leitura do skimming ao
scanning.
3. Como o objetivo é transmitido:
4. Objetivo e função do texto, organização do texto, tema.
5. Compreensão do significado:
6. Resposta não linguística e linguística ao texto.
7. Avaliação do texto:
8. Fato versus opinião, a intenção do escritor.165

Segundo Holmes (1983), vários autores produziram materiais para o ESP focalizando
o desenvolvimento de habilidades de leitura, organização e coesão textual. Dudley-Evans
(1998) conceituou o ESP como o ensino de inglês voltado para atender as necessidades do
aprendiz, utilizando uma metodologia e atividades implícitas à disciplina. Aponta ainda que o
ESP pode ser direcionado para disciplinas específicas, com metodologias diferenciadas do
inglês geral.
Portanto, o inglês instrumental trata-se de uma abordagem comunicativa de ensino de
leitura que vê o processo de leitura como uma prática social discursiva, que foca seus
objetivos no ensino de apenas uma habilidade linguística, geralmente a leitura, através de
estratégias de leitura, utilizando como material de ensino textos autênticos, capacitando o
leitor a desenvolver a leitura para propósitos específicos, sejam eles acadêmicos, de pesquisa,
conhecimento da cultura estrangeira, trabalho, ou pelo simples prazer da leitura em língua
estrangeira.

Referências

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America. F.MEYER, A.BOLIVAR, J.FEBRES, M.B.SERRA (eds.) Universidad de Los
Andes. CODEPRE, 1997.

165
No original:
1. Reading techniques:
2. Sensitizing, improving reading speed, from skimming to scanning.
1075

3. How the aim is conveyed:


4. Aim and function of the text, organization of the text, thematization.
5. Understanding meaning:
6. Non-linguistic response to the text, linguistic response.
7. Assessing the text:
Página

8. Fact versus opinion, writer’s intention.

ISBN: 978-85-7621-221-8
BROWN, H. Douglas, Teaching by principles: and interactive approach to language
pedagogy. 3rd ed. San Francisco: State University, 2007.

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GRELLET, Françoise. Developing Reading skills. Cambridge: Cambridge University Press,


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GUANDALINI, Eiter Otávio. Técnicas de leitura em inglês: ESP – English For Specific
Purposes volume 1: São Paulo: Ed. Textonovo, 2002.

HOLMES, John. The teaching of language items in ESP. Projeto Nacional de Ensino de
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KOCH, Ingedore; ELIAS, Vanda Maria. Ler e compreender: os sentidos do texto. São
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Futuro. In: Freire, M. M.; Abrahão, M. H. V.; Barcelos, A. M. F.(Orgs.) Lingüística aplicada
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RICHARDS, J.C.; ROGERS, T.S. Approaches and Methods in Language Teaching. 3rd ed.
Cambridge: Cambridge University Press, 2014.

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SÁNCHEZ, Aquino. Los Métodos en la Enseñanza de Idiomas. 2. ed. Sociedad General


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SILVEIRA, M. I. M. Línguas estrangeiras: uma visão histórica das abordagens, métodos e


técnicas de ensino. Maceió: Catavento, 1999.
1076

SWALES, J. Episodes in ESP. Oxford: Pergamon Press, 1985.


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VAN DIJK, T. A.; KINTSCH, W. Strategies of discourse comprehension. Nova Iorque:


Academic Press, 1983.

ISBN: 978-85-7621-221-8
GT9 – SUJEITO E COTIDIANO

TESTEMUNHOS NA CNV: A CONSTRUÇÃO DA VERDADE POR SUJEITOS


VÍTIMAS DA VIOLÊNCIA DA DITADURA, NA INFÂNCIA

Camila Praxedes de Brito (UERN/PPCL/GEDUERN)


Francisco Paulo da Silva (UERN/PPCL/GEDUERN)

“Muitas crianças também sofreram e não tiveram suas histórias


inscritas na história política do país, não tiveram o reconhecimento
nem reparação. Gostaríamos que sua dor e sua tenacidade para
resistir se espalhassem na cultura e nas ações do povo de modo a não
mais autorizarem que tais fatos se repitam”. (Comissão Nacional da
Verdade, 2013/2014)166

Introdução

No ano de 2009, reuniram-se em Brasília-DF, aproximadamente 1.200 delegados de


conferencias estaduais para discutir as atualizações pelas quais teria que passar o Programa
Nacional de Direitos Humanos (PNDH). No referido encontro, foi sugerida a criação de uma
comissão que teria por finalidade a promoção do esclarecimento público acerca das violações
aos direitos humanos, por agentes do Estado, no processo de repressão aos opositores do
governo. A conferência indicou a criação da Comissão Nacional da Verdade (CNV),
entendendo que toda sociedade tem direito à memória e à verdade.
Criada por meio da Lei 12.528, sancionada pela presidente Dilma Rousseff em 18 de
novembro de 2011, e posta em vigor em 2012, a CNV tinha como objetivo central o resgate
da história de pessoas e/ou familiares que foram vítimas de violações graves dos direitos
humanos, no período compreendido entre 1946 a 1988, período que engloba o chamado
“Estado Novo” e a “Ditadura Militar Brasileira”, que se estendeu de 1964 a 1985. Esse
período foi definido, considerando-se a marca histórica de duas constituições, após a
experiência brasileira com regimes autoritários.
Na perspectiva de esclarecer fatos tornados invisíveis pela historiografia oficial, a
CNV recolheu diversos testemunhos de vítimas e familiares de vítimas das violações
ocorridas durante o período ditatorial brasileiro. Em meios aos diversos testemunhos
1077

transcritos da oralidade, pertencentes ao acervo da Comissão, optamos por analisar os de

166
Todos os testemunhos aqui analisados foram retirados do site da Comissão Nacional da Verdade. Disponível
Página

em www.cnv.gov.br/. Acesso em julho de 2017.

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pessoas que sofreram alguma(s) violação (ões) durante a infância, para analisarmos como as
experiências vivencias em tenra infância contribuíram para a constituição ético-política desses
sujeitos, considerando a relação memória, verdade e emoções. Esses testemunhos foram
colhidos entre os anos de 2013 e 2014 e foram transcritos a posteriori e estão disponíveis para
consulta e download no acervo do Arquivo Nacional, na aba referente à Comissão Nacional
da Verdade.
Para desenvolvimento da discussão proposta neste artigo, recorrermos a conceitos que
envolvem a relação sujeito, verdade e ética (FOUCAULT, 2008; 2010; 2014); memória e
testemunho (RICOEUR, 2009); dentre outros que com eles dialogam.

1 A justiça de transição e o direito a verdade pela memória.

Em períodos pós-ditadura ou pós-guerra existe a necessidade da revelação da verdade


sobre os fatos ocorridos durante o período, principalmente quando envolve violações graves
aos direitos humanos, como é o caso do período ditatorial brasileiro. Sobre a verdade ou os
efeitos de verdade, Foucault (2010, p. 63) disserta que esta consiste na parresía, e segundo ele
“A parresía é a livre coragem pela qual você se vincula a si mesmo no ato de dizer a verdade.
Ou ainda, a parresía é a ética do dizer-a-verdade, em seu ato arriscado e livre”. É o que ocorre
com as pessoas que concordam em dar seus testemunhos à CNV. Nesse contexto, elas
concordam em dizer a verdade como meio de reparação do passado, negocia-se, no caso, uma
espécie de perdão, que funcionará como um “contrato” entre as partes, para o apaziguamento
entre ambas e para a superação do ressentimento.
Nessa perspectiva, o Estado pede desculpas aos cidadãos que estiveram envolvidos na
luta pela democracia, contra a tirania do Regime ditatorial, e por essas razões padeceram de
prejuízos materiais e morais, assumindo os erros cometidos pelo Estado como forma de fazer
justiça às vítimas e evitar a repetição desses erros no presente/futuro. Para Louis Joinet
(2009, p.21):

É depois disso que a democracia retorna e a Justiça repensa os direitos das


vítimas. Segue-se uma nova geração pós-anistia, que continua lutando com o
1078

objetivo de não deixar o passado cair no esquecimento, de não deixar virar


esta página da história impunemente, para que não se repitam mais os fatos
do passado. [...] É fazer uma justiça da verdade, colocar a justiça junto à
história.
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Para o autor, a melhor maneira de reparação para aqueles que sofreram ou que tiveram
parentes e amigos nessa situação é o conhecimento dos fatos. E de forma oficial,
transformando as memórias em história oficial, haja vista que a verdade se configura no mais
eficaz modo de reparação, principalmente, em países que passaram por situações de privação
de direitos humanos por motivos de guerra ou regime ditatorial. Todas essas pessoas
necessitam que seja feita a justiça, que nesses casos, é denominada de justiça de transição.
A justiça de Transição ocorre nos períodos nos quais estão sendo restaurados os
direitos e a democracia de um país quando se encerra um período ditatorial, por exemplo.
Nessa perspectiva, instaura-se o dever de memória, exercido por meio das lembranças do
vivido trazidas para o presente por meio da memória, nos testemunhos das vítimas, não para
que haja o esquecimento dos sofrimentos, mas para que se possa exercitar um esquecimento
dos ressentimentos advindos dessas experiências traumáticas. Para Silva (2016, p. 4), a justiça
de transição “é condição imprescindível para que haja verdadeiramente o apaziguamento
social, caso contrário, a sociedade repetirá o uso arbitrário da violência, pois ela não será
reconhecida como tal”. Daí a importância do trabalho da CNV, não só para as vítimas e seus
familiares, mas também, para a sociedade como um todo.

2 Considerações sobre memória e emoções.

Há muito tempo tem-se atrelado o conceito de memória ao de história, podendo haver


até mesmo confusão entre os dois conceitos. Isto ocorre devido à proximidade existente entre
ambas. No entanto, o relacionamento da história com a memória é mais voltado à oposição do
que a complementariedade, em suma, apesar de a história ser construído por meio das
memórias coletivas dos sujeitos, que são transformadas pelos historiadores em história oficial,
a memória e a história constituem conceitos distintos: a primeira apresenta-se como a
lembrança que tem um sujeito sobre um fato vivenciado, enquanto que a segunda instaura-se
como representação real dos fatos do passado.
Para Bresciani (2004, p.39), “[...] a relação memória-história é mais uma relação de
conflito e oposição do que de complementaridade, ao mesmo tempo – a que se inscreve a
1079

novidade da crítica, que coloca a história como senhora da memória, produtora de memórias”.
Dessa forma, percebemos que se buscar o avesso da face historicamente datada, seria essa a
história oficial, que é contada nos livros ou registros historiográficos e que é constituída como
Página

“memória construída” que serve a propósitos políticos, como afirma Ansart (2004). O que

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ocorre nesses casos são os chamados “acordos”, ou convenções instituídas socialmente. Ainda
sobre a relação entre memória e história, Seixas (2004, p. 41) afirma que:

A memória é a tradição vivida – A memória é a vida – e sua atualização no


‘eterno presente’ é espontânea e afetiva, múltipla e vulnerável; a história é o
seu contrário, uma operação profana, uma reconstrução intelectual sempre
problematizadora que demanda análise e explicação, uma representação
sistematizada e crítica do passado.

Toda e qualquer memória é dependente da história e está ligada a ela de forma


historicizada, o que faz dela um objeto da história, posto que a história se apropria da
memória, fazendo desta uma parte daquela. Dessa maneira é que as memórias individuais dos
sujeitos são transformadas em memórias coletivas, e, consequentemente, em história. O autor
designa ainda a memória como sendo uma “[...] atividade natural, espontânea, desinteressada
e seletiva, que guarda do passado apenas o que lhes possa ser útil para criar um elo entre o
presente e o passado, ao contrário da história que constitui um processo interessado, político,
portanto, manipulador”. (SEIXAS, 2004, p.40) Assim, concebemos a memória como
lembranças ou recordações do passado que contribuem para o modo como determinados
grupos sociais compreendem o presente, de forma a contribuir para a constituição dos sujeitos
que os compõem e a formulação de suas verdades, ou efeitos de verdade.
Sobre a memória e seus desdobramentos, Ricoeur (2009, p. 85) afirma que a
lembrança, ou seja, a memória deve ser considerada como sendo um trabalho, “o trabalho da
rememoração”. Assim sendo, baseando-nos no conceito de trabalho, podemos dizer que a
memória constitui-se por meio de um esforço do sujeito em não deixar cair no esquecimento
algum fato relevante de sua vida, ao mesmo tempo em que promove o esquecimento de fatos
considerados irrelevantes. Devido ao seu caráter de suspeição a memória é por vezes
confundida com a imaginação, no entanto, Ricoeur nos apresenta a memória como lembrança
do passado, enquanto que a imaginação é vista como ficção, como irrealidade. Para o autor,
“Se essas duas afecções estão ligadas por contiguidade, evocar uma – portanto, imaginar – é
evocar a outra – portanto, lembrar-se dela.” (RICOEUR, 2007, p. 25), no entanto, não
podemos em nenhuma hipótese dizer que elas se equivalem em sentido e efetivação,
1080

constituindo, ambas, recursos diferentes na (re) contação da história.


No que se refere aos estudos sobre a memória, Augé em seu livro Las formas del
Página

olvido (1998, p.5), nos indica que para que haja a lembrança, ou seja, a memória, se faz
necessário o esquecimento, posto que, para o autor: El olvido es necesario para la sociedad y
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para el individuo. Hay que saber olvidar para saborear el gusto del presente, del instante y
de la espera, pero la propia memoria necesita también el olvido: hay que olvidar el pasado
reciente para recobrar el passado remoto.167
Assim sendo, podemos afirmar que o esquecimento é tão importante quanto a
lembrança nos processos de retorno e instauração da memória, pois, para que se possa retomar
um passado distante, temos que esquecer, ou apagar, ainda que momentaneamente, o passado
recente, porque, para o autor a memória é substancialmente constituída por lembranças e
esquecimentos. Ainda afirma Augé (1988) que a relação entre a lembrança e o esquecimento
assemelha-se à relação existente entre a vida e a morte, isso porque, para que uma lembrança
ocorra, há que se esquecer de outras, como uma seleção. Nessa perspectiva, o que seria o
esquecimento? Ainda segundo Augé (1998), o esquecimento é a perda da lembrança, ou da
recordação, e não o apagamento total do fato, para ele, há uma seleção do que se quer/precisa
esquecer para que se selecione também o que se quer lembrar, pois, ninguém pode lembrar e
esquecer tudo de forma simultânea.
A ativação (lembrança ou esquecimento) da memória se dá pela busca pelo controle,
tanto do passado quanto do presente, pois, durante o processo de rememoração, há uma
reformulação do passado com o intuito de se modificar o presente, por meio da manipulação
das memórias em suas materialidades. Isso ocorre porque a memória confere poder a quem a
detém. Não há uma memória desinteressada, destinada à mera recordação do passado, ou seja,
que funcione apenas como fonte de conhecimento de fatos ocorridos anteriormente. A
memória induz os indivíduos a praticarem determinadas ações, ou tenta fazê-lo. No contexto
em estudo, que é o da Comissão Nacional da Verdade, o resgate do passado para o presente é
feito para que este não reincida no futuro. Preocupação constantemente encontrada nos
enunciados dos testemunhos aqui propostos para análise. Observemos os enunciados
extraídos dos testemunhos de Priscila Arantes168 e Ernesto Carlos Dias:169

Aquele que testemunha, de certa forma sobreviveu a uma situação limite,


traumática, no meu caso e de meus familiares: à época da ditadura militar

167
“O esquecimento é necessário à sociedade e o indivíduo. É preciso saber como esquecer para saborear o gosto
1081

do presente, do momento e da espera, mas a própria memória também precisa de esquecimento: esquecer o
passado recente para recuperar o Passado remoto”. Tradução nossa.
168
Priscila Almeida da Cunha Arantes. Filha de militantes políticos: Maria Auxiliadora de Almeida Cunha
Arantes e Aldo Silva Arantes, irmã de André Almeida Cunha Arantes. Sofreu, junto aos seus pais - tinha cerca
de nove anos de idade - privação de direitos durante o regime ditatorial brasileiro, enquanto era criança.
Página

169
Ernesto Carlos Dias do Nascimento. Filho de Manoel Dias do Nascimento, militante durante o período da
Ditadura no Brasil, foi exilado aos dois anos de idade, tido como subversivo, junto a outras crianças em Cuba.

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no Brasil. Como filha de pais que foram presos, torturados, foragidos e
clandestinos – e eu mesma presa com minha mãe e meu irmão quando tinha
3 anos de idade, no sertão de Alagoas [...]deixo aqui meu depoimento na
esperança que possa contribuir não somente para a construção de uma
memória coletiva, mas que, de alguma forma, ele possa servir de dispositivo
para que essa história não se repita nunca mais no nosso país. (CNV,
2013/2014)
[...] eu me dei conta da importância desse depoimento deles para realmente
constituir a história real. Então, este trabalho que vocês estão fazendo é um
trabalho muito importante para reescrever a nossa história e a história do
Brasil e projetar isso aí para o futuro. (ERNESTO CARLOS DIAS)

Notadamente, há uma preocupação com uma retomada de fatos do passado, para que
estes, por se tratarem de acontecimentos traumáticos, que trouxeram ou impuseram a
militantes políticos e seus familiares, momentos de dor e tristeza. No depoimento de Priscila
há uma referência à socialização da memória como necessária para inscrição da história,
Ricoeur (2009), quando disserta sobre os conceitos de memória individual e coletiva, refere-
se ao fato de as memórias individuais, assim como as coletivas, também serem construídas no
meio social, o que faz da memória individual uma memória coletiva.
Chama a atenção o fato de nas experiências desses sujeitos com suas memórias,
inscrever-se a relação sentimental no gesto de depor, de testemunhar, como marca Priscila:
“deixo aqui minha esperança”. Sobre a relação memória e sentimento, Seixas (2004, p. 47),
afirma que:

A memória é, portanto, algo que “atravessa”, que “vence obstáculos”, que


“emerge”, que “irrompe”: os sentimentos associados a este percurso são
ambíguos, mas estão sempre presentes. Não há memória involuntária que
não venha carregada de afetividade e, ainda que a integralidade do passado
esteja irremediavelmente perdida, aquilo que retorna vem inteiro, íntegro,
com suas tonalidades emocionais e charme afetivo.

Daí a importância da memória individual para este estudo, haja vista que estas estão
carregadas de emoções, ou sentimentos. Essas experiências emocionais, por assim dizer,
também são produzidas socialmente, convencionadas como é toda forma de cultura de uma
sociedade, sendo, portanto, um produto do social, criadas e instituídas coletivamente, através
das relações de poder existentes na sociedade. Dessa forma, podemos dizer que as emoções
1082

são instituídas a partir de estímulos externos, que elas são reações propostas pelo meio.
De acordo com Galvão (2004, p. 314), devemos tratar as emoções “[...] como um
Página

idioma ou um código que define e negocia relações do eu com uma ordem social ou moral e

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cujo significado não pode ser separado do papel que desempenham na interação social ou das
implicações do cenário cultural dos quais participam”. O modo como os sentimentos são
“sentidos”, nem sempre é concebido de modo natural, pode ser também um fruto do social, ou
seja, as emoções apresentam-se como sendo “esperadas” ou “necessárias” conforme o meio
social ao qual pertence ou a posição sujeito que o indivíduo ocupa.
No contexto da CNV, percebemos que os sentimentos vivenciados pelas vítimas da
ditadura e seus familiares são resultados de experiências pelas quais passaram em sua
infância, ou seja, o retrato do que são hoje, é consequência dos fatos experienciados no
passado, em outras palavras, o que essas pessoas são hoje, é reflexo dos fatos vivenciados ou
testemunhados em sua infância, ou seja, os sentimentos do presente são resultados das ações
do passado. Isso ocorre por que

Antes de se expressar, a testemunha viu, ouviu, experimentou (ou acreditou


ver, ouvir, experimentar, pouco importa). Em suma, ele foi afetado, talvez
marcado, abalado, ferido, em todo caso, atingido, pelo acontecimento. O que
ele transmite através de suas palavras é algo deste ser afetado por...; neste
sentido, pode-se falar de marca do acontecimento anterior, anterior ao
próprio testemunho. (RICOEUR, 2012, p. 337)

Dessa maneira, o acontecimento deixa suas marcas nos sujeitos e estes a revelam em
seus testemunhos, pois, essas marcas são parte do sujeito enquanto ser social, e, portanto,
assujeitado às instabilidades inerentes às sociedades. Nos testemunhos analisados neste
estudo, verificamos que os fatos traumáticos vivenciados pelas vítimas de violações de
direitos humanos contribuíram para a formulação destas enquanto sujeitos, portanto,
interferiram na construção de suas identidades, como podemos constatar nos depoimentos
abaixo:

O Estado trata as crianças, alguns mais, outros menos, da mesma forma de


um preso político. Eu fiquei com muito trauma por muito tempo. Muito,
muito, muito tempo. Eu não consigo lembrar. E a outra coisa era o pavor
que eu tinha das pessoas: pavor de pessoas de farda, tinha medo de pessoas
fardadas, tinha pavor. E eu tinha fobia social, não conseguia ficar junto com
as pessoas. Eu até hoje sou assim, corto as histórias (ERNESTO CARLOS
DIAS, CNV, 2013/2014).
1083
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Medo. Eu tenho muito medo sempre. Eu não durmo de luz apagada. [...]
Mas são coisas que eu carrego desde a infância (TESSA MOURA
LACERDA170, CNV, 2013/2014).

As identidades dos sujeitos são compostas através do discurso, visto como prática
social, que estabelecem as maneiras como os sujeitos percebem a si próprios e aos outros. Os
modos de subjetivação dos sujeitos estão relacionados à sua formação discursiva, que se dá
nos variados âmbitos do convívio social e que se materializa através do discurso. Este
coexiste nas relações dos sujeitos falantes, cujas formações discursivas possibilitam a
formulação do mesmo. O discurso é concebido por meio de um Sistema de Formação,
compreendido por Foucault (2008, p.82) como “um feixe complexo de relações que
funcionam como regra: ele prescreve o que deve ser correlacionado em uma prática
discursiva, para que esta se refira a tal ou tal objeto, para que empregue tal ou tal enunciação”.
Percebemos que a formulação dos discursos está ligada aos sujeitos sociais e suas
relações históricas. Dito de outro modo, o que se diz é determinado pelos arranjos históricos
que envolvem os sujeitos numa formação discursiva. Essa formação discursiva é construída
através de atravessamentos discursivos diferentes, assim, uma formação recebe influências de
várias outras formações adquiridas pelos sujeitos durante toda a sua vida. Para Foucault
(2008, p. 83),

uma formação discursiva [...] determina uma regularidade própria de


processos temporais; coloca o princípio de articulação entre uma série de
acontecimentos discursivos e outras séries de acontecimentos,
transformações, mutações e processos. Não se trata de uma forma
intemporal, mas de um esquema de correspondência entre diversas séries
temporais.

Significa dizer que as relações sociais dos sujeitos, suas influências e conceitos -
constroem os discursos, pois, estes somente produzem sentidos, ou efeitos de sentido, nas
relações entre as práticas discursivas dos sujeitos sociais, visto que as relações de significação
e sentido são convencionadas socialmente, podendo sofrer modificações no decorrer do tempo
e também no deslocamento do espaço. As formações discursivas também dizem respeito às
experiências dos sujeitos ao longo de suas vidas. Dessa forma, podemos afirmar que as
1084

experiências pelas quais passaram as vítimas de violações de direitos da CNV, influenciam

170
Tessa de Moura Lacerda. Filha de Mariluce Moura e Gildo Macedo Lacerda. Ambos foram presos em
Página

outubro de 73 e três dias depois, o pai já estava assassinado. A mãe permaneceu presa grávida dela por 42 dias,
nasceu prisioneira política.

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nas suas construções enquanto sujeitos. Observemos os enunciados retirados do testemunho
de Adilson Lucena171 à CNV (2013/2014):

Foi terrível para mim, porque eu desconhecia essa sociedade na exclusão


social que em Cuba não existia. Cheguei aqui fui ser operário, aquelas
coisas que tanto o Vinícius dizia “Operário em Construção”, né? Comecei a
ver tudo aquilo, aquele poema passou pela minha cabeça, do “Operário em
Construção”, fui ser operário. E fui estudar também, porque imagine, eu fui
terminar o colegial aqui, fui trabalhar e estudar. Terminei o colegial aqui e
como eu dominava o idioma, lá pela década de 90, tinha o “boom” do
espanhol, atualmente eu sou professor de espanhol, me formei em letras.

Sobre as mesmas influências, Eduardo Guimarães Machado172 (CNV, 2013/2014)


relata:

Tudo isso se impacta na sua formação e na sua história de vida e como você
encara as coisas e sinto, também, para quem me conhece bem, você
conseguia notar, claramente, algumas coisas na minha relação na vida que
têm a ver com uma série de autopreservações que são, óbvio, originadas da
questão do medo da perda, a questão da desconexão total da família, porque
a única família que eu tive, de fato, foi a minha mãe.

Percebemos que, nos testemunhos prestados à CNV, as pessoas vítimas de violência


na infância trazem as experiências vividas durante o período em que sofreram violações de
direitos, usando as lembranças dos fatos negativos como meio de fuga ou preservação, isso é
o que Foucault (2010) denomina de “técnicas de si”, que estão, de acordo com o mesmo
autor, atreladas a Parresía, que consiste no ato de se falar a verdade, independentemente das
consequências que possa acarretar. No caso da CNV, contar essa verdade, por meio dos
testemunhos, funciona como uma forma de reparação do Governo para com as vítimas da
violência por agentes do Estado, pois, os fatos “ocultados” pela historiografia oficial tornam-
se, através dos relatórios da Comissão, conhecidos de toda a sociedade, fazendo justiça aos
muitos mortos, torturados e presos pelos chamados “crimes políticos”.
1085

171
Adilson Oliveira Lucena. Filho de Antônio Raimundo de Lucena, o doutor, e Damaris Oliveira Lucena,
ambos militantes da VPR. Tinha nove anos de idade quando foi exilado em Cuba, junto com a mãe e os irmãos.
Página

172
Eduardo Guimarães Machado Freire. Filho de Marília Carvalho Guimarães e Machado Freire, militantes
políticos. Tinha cerca de três anos quando foi exilado em Cuba, junto com a mãe.

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Considerações finais

Observando os enunciados presentes nos testemunhos da Comissão Nacional da


Verdade (2013/2014), percebemos que estes são usados como meio de fazer justiça e também
contribuir para a construção da verdade sobre os fatos ocorridos durante o período da ditadura
militar no Brasil, assim, a justiça transicional articula o dever de memória com o dever de
justiça, buscando uma reparação para as vítimas e familiares, pois, entendemos que só pode
haver uma reconciliação com os fatos do passado quando se sabe o que e de que forma
ocorreram, assim, a melhor forma de reparação para as vítimas seria que toda a sociedade
pudesse ter acesso à verdade sobre o passado inscrita no presente por meio da memória. Para
Carrillo (2009, p.35) “A memória da violência aparece como um recurso simbólico que se põe
em ação para a elaboração de resultados políticos de longo prazo”. Para ele, os testemunhos
são “um axioma das experiências de busca oficial da verdade: a tecnologia da verdade que se
estabeleceu como prática habitual é sempre performativa, na medida em que a verdade se
constrói sobre a base dos testemunhos das vítimas (Ibidem, p. 40)”.

Referências

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NAXARA, Márcia. (Orgs.). 2. ed. Memória e (res)sentimentos; indagações sobre uma
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AUGÉ, Marc. Las formas del olvido. Trad. Mercedes Tricas Preckler y Gemma Andújar.
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BRESCIANI, Stella; NAXARA, Mônica. Memória e (res) sentimento: indagações sobre


uma questão possível. 2. ed. Campinas – SP: Unicamp, 2004.

CARRILLO, Félix Reátegui. Memória Histórica: O papel da cultura nas transições. In.
Revista Anistia Política e Justiça de Transição / Ministério da Justiça, n.. 2 (jul. / dez.
2009). – Brasília, DF: Ministério da Justiça, 2009.

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______. O governo de si e dos outros: curso no Colege de France (1982-1983) / Michel


Foucault; tradução Eduardo Brandão. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.
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JOINET, Louis. Quando a democracia retorna, a justiça repensa os direitos das vítimas. In.
Revista Anistia Política e Justiça de Transição. Ministério da Justiça, n. 2 (jul. / dez. 2009),
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RICOEUR, Paul. A memória, o esquecimento. Trad. Alain François [et al.]. Campinas, SP:
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reconciliação nacional. In. O corpo é discurso: jornal de popularização científica. Edição n.
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SEIXAS, Jacy Alves. Percursos de memórias em terras de História: problemas atuais. In:
BRESCIANI, Stella; NAXARA, Márcia. (Orgs.). 2. ed. Memória e (res) sentimentos;
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1087
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GT9 – SUJEITO E COTIDIANO

VOZES DO SERTÃO: CULTURA, IDENTIDADE E LITERATURA DE CORDEL

Ênia Ramalho dos Santos


Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. enia.ramalho@hotmail.com
Lilian de Oliveira Rodrigues
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. rodrigueslilian@yahoo.com.br

Introdução

Neste trabalho, abordaremos questões relativas à cultura popular e à identidade


cultural, bem como refletiremos sobre esses elementos e suas relações com a literatura de
cordel. Inicialmente, devemos deixar claro que não procuramos respostas concretas para os
termos “cultura” e “identidade”, haja vista que não há uma definição categórica que abarque
esses conceitos como pré-estabelecidos ou imutáveis. Então, a que nos propomos neste
momento é tentar estabelecer um diálogo a respeito dos conceitos teóricos que abrangem os
assuntos, sob uma perspectiva dinâmica, que procure caminhar pelo viés das manifestações
artísticas, como a literatura.

Cultura e identidade

Os caminhos que cercam o estudo da cultura possuem elementos tangíveis e


intangíveis. Assim, antes de adentrarmos por esses caminhos, consideramos importante
refazer um breve itinerário dos Estudos Culturais, com base nas considerações apontadas por
Stuart Hall (2003), em sua obra Da Diáspora: identidades e mediações culturais.
De acordo com Hall (2003), as discussões que envolvem a cultura tiveram momentos
significativos devido à apresentação de trabalhos caracterizados como rupturas de velhas
perspectivas, que, somadas a uma nova gama de premissas, configuravam um cenário de
apreciação de novos paradigmas em torno dessas reflexões.
Essas discussões, a priori, surgiram por meio do Centre for Contemporary Cultural
Studies (CCCS), fundado por Richard Hoggart em 1964, entidade que, segundo Hall (2003, p.
1088

201) “era mais apropriadamente chamada de ‘ruído teórico’”, que suscitava noções e ideias,
ainda que instáveis, acerca do tema em questão. Algumas considerações do CCCS emergiram
Página

a partir de duas publicações que marcaram um momento incipiente de análise e abordagem

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das questões culturais na Inglaterra, em meados da década de 50, as quais foram: As
utilizações da cultura, de Hoggart, e Cultura e sociedade, de Williams.
Um terceiro livro de grande importância para esses estudos foi o de E.P. Thompson, A
formação da classe operária inglesa, cujo trabalho foi pensado dentro das tradições históricas
específicas, que

[...] ao destacar questões de cultura, consciência e experiência, e enfatizar o


agenciamento, também rompeu decisivamente com uma certa forma de
evolucionismo tecnológico, como o economicismo reducionista e com o
determinismo organizacional (HALL, 2003, p. 133).

Foi através dessas três obras, dentre outras, que os estudos culturalistas ganharam
destaque, como rupturas que constituíam respostas imediatas às pressões do tempo e da
sociedade em que foram escritas. Não obstante suas especificidades, os trabalhos desses
estudiosos convergem em torno de uma mesma problemática, e suas reflexões incorporam a
vertente culturalista dos estudos culturais. Assim, é possível extrair desse plano um conceito
que define a cultura como “algo que se entrelaça a todas as práticas sociais; e essas práticas,
por sua vez, como uma forma comum de atividade humana: como práxis sensual humana,
como a atividade através da qual homens e mulheres fazem história[...]” (HALL, 2003, p.
142).
Em suma, o conceito de cultura estaria ligado à inter-relação de um conjunto de
elementos, ideias e práticas sociais assimilados por um grupo que compartilha experiências
comuns em sociedade. Assim, as considerações apontadas nos debates culturalistas se
configuram a partir da consideração de diversos temas e movimentos sociais, que, numa
determinada sociedade somam-se e vão-se transformando ao longo da história por meio das
experiências humanas.
Esses elementos estão intimamente relacionados à questão da identidade, pois, numa
percepção individual ou coletiva, a cultura exerce influência tanto nos padrões de vida sociais,
como na criação ou formação da identidade. Assim, falar sobre identidade é relacioná-la aos
elementos pertencentes à análise dos aspectos culturais. Por essa razão, na base das discussões
sobre identidade, reside uma grande tensão entre perspectivas e pontos de vista que não dão
1089

conta de explicar sua natureza cambiante.


Hall (2001, p. 13) é pontual em considerar a identidade como uma “‘celebração
Página

móvel’: formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos

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representados pelos sistemas culturais que nos rodeiam”. Essas representações são
constituídas por práticas sociais e culturais historicamente situadas, que permitem ao sujeito
assumir diferentes identidades em momentos distintos de sua trajetória. Para Woodward
(2009, p. 17), “A representação, compreendida como um processo cultural, estabelece
identidades individuais e coletivas e os sistemas simbólicos nos quais ela se baseia fornecem
possíveis respostas às questões: Quem eu sou? O que eu poderia ser? Quem eu quero ser?”.
As respostas para esses questionamentos são produzidas a partir de um largo conjunto
de representações e processos culturais com os quais nos identificamos, fazendo com que nos
posicionemos como sujeito. Entretanto, essa identificação varia conforme as condições
internas e externas dos processos culturais são alteradas ao longo da formação do ser humano.
Assim, a afirmação da identidade é inacabada e sempre está em processo de construção.
Hall (2001) corrobora esse pensamento ao afirmar que “a identidade é realmente algo
formado, ao longo do tempo [...]. Ela permanece sempre incompleta, está sempre “em
processo”, sempre ‘sendo formada’”. (p. 38). E essa formação ocorre a partir da assimilação
de produtos do meio cultural, nacional, regional, no qual estamos inseridos, os quais são
constituídos por nossas formas de pensamento, pela língua que falamos, as comunidades a
que pertencemos, pelas crenças, pelos costumes, pelas condutas de vida, inserção social,
familiar, para a constituição de nossa biografia.
Para exemplificar esse processo de construção, Bauman (2005) assemelha a
composição da identidade pessoal, ou das identidades pessoais, a um quebra-cabeça, no qual
se usam as peças necessárias para sua composição até se chagar a um determinado fim.
Entretanto, a alegoria do quebra-cabeça não abarca totalmente a questão, uma vez que, na
identidade, não dispomos de um fim específico ao qual queremos chegar, tampouco as peças
do nosso quebra-cabeça identitário estão dispostas previamente, mas são experimentadas à
medida que objetivamos determinados direcionamentos.

Podemos dizer que a solução de um quebra-cabeça segue a lógica da


racionalidade instrumental (selecionar os meios adequados para um
determinado fim). A construção da identidade, por outro lado, é guiada pela
lógica da racionalidade do objetivo (descobrir o quão atraentes são os
objetivos que podem ser atingidos com os meios que possui) (BAUMAN,
1090

2005, p. 55. grifos do autor).

As peças desse quebra-cabeça tão complexo são moldadas a partir das escolhas que
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fazemos socialmente, que são influenciadas por variantes culturais e sociais, atreladas ao

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processo de globalização e da modernidade. Assim, seria impossível tentar estabelecer um
conceito fixo de identidade e muito mais difícil ainda tentar estabilizar os processos que a
constituem de indivíduo para indivíduo ou de um grupo para outro.
Mas o que a literatura de cordel tem a ver com tudo isso? É justamente por se tratar de
uma manifestação da cultura popular que a literatura de cordel tem uma grande importância
enquanto representação dessa cultura para a afirmação da identidade cultural do povo
sertanejo. Entendemos aqui, por identidade cultural, um conjunto de valores e relações sociais
ativos, histórico e culturalmente situados, de uma sociedade, que envolvem suas
manifestações de saber, de crer, de fazer.
Com base nesse pensamento, consideramos a inserção da literatura de cordel como um
instrumento de apropriação dos bens culturais cuja finalidade é experimentar o universo
ficcional do qual, segundo Candido (1995), temos direito. Para ele, a literatura nos auxilia a
combater o caos interior e viver dialeticamente os problemas. “Por isso é indispensável tanto
a literatura sancionada quanto a literatura proscrita; a que os poderes sugerem e a que nasce
dos movimentos de negação do estado de coisas predominante” (CANDIDO, 1995, p. 243).

Cultura popular e identidade cultural

Segundo Hall (2003), o ponto de partida para a abordagem da cultura popular, na


sociedade inglesa, provém da longa transição para o capitalismo agrário, seguido da formação
do capitalismo industrial. Nessa transição, ocorrem muitas lutas de afirmação das culturas das
classes populares e suas tradições. O capital visava essas lutas como forma de resistência, por
isso a cultura popular assume, em muitos embates teóricos, uma perspectiva relacionada à
tradição, ou algo conservador e retrógrado.
Nesse plano, a cultura popular revela duas facetas, ou um “duplo movimento de conter
e resistir, que inevitavelmente se situa em seu interior.” (HALL, 2003, p. 249). A contenção e
a resistência são os traços simbólicos da cultura popular em meados dos séculos XVII e XIX.
Contudo, é no período correspondente aos anos de 1880 e 1920 que “se constitui um dos
grandes testes para o interesse atual da cultura popular” (HALL, 2003, p. 252).
1091

Para Canclini (1989), o princípio das opiniões que desenvolveram a existência da ideia
de cultura popular também reside no conflito entre classes dominantes e classes dominadas,
sobretudo no que diz respeito ao confronto entre países colonizadores e colonizados, que, ao
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mesmo tempo, estimulavam a ilusão de uma superioridade europeia e suscitavam debates

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entre estudiosos ingleses, franceses e norte-americanos sobre a vida cotidiana dos povos
submetidos.
Essas classes que estavam sob domínio das culturas tidas como eruditas
desenvolveram um modo de fazer e de se organizar sem empregar, para isso, um certo grau de
complexidade, o que as levou a serem agrupadas em uma categoria denominada de popular.
Assim, na perspectiva de Canclini (1989, p. 17), “veremos las culturas de las clases populares,
como resultado de una apropiación desigual del capital culural, la elaboración propia de sus
condiciones de vida y la interacción conflictiva com los sectores hegemónicos.”
Nesse sentido, as culturas populares resultam de apropriações dos produtos e bens
culturais das sociedades subalternas em inter-relação com os setores hegemônicos. Todavia
não existem culturas populares isoladas ou puras. Elas se transformam e recebem influências
dos demais setores culturais, bem como influenciam esses setores que assimilam seus
produtos, formando uma cadeia de comunicação entre as várias esferas culturais ao longo dos
tempos.
No entanto, García Canclini procura entretecer esses dois aspectos, ligando os
processos culturais a suas condições de produção, pois para ele, a cultura popular não pode
ser estudada isoladamente. Por isso, reelabora um conceito que abarca ambas as perspectivas:

Las culturas populares (más que la cultura popular) se configuran por un


proceso de apropiación desigual de los bienes económicos y culturales de
una nación o etnia por parte de sus sectores subalternos, y por la
comprensión, reproducción y transformación, real, y simbólica, de las
condiciones generales y propias de trabajo y de vida (CANCLINI, 1989, p.
62).

Dessa confluência de perspectivas procede a visão de que a cultura popular deriva não
somente dessa apropriação de bens culturais, mas também de suas formas de vida e de
representação por meio das relações sociais, levando em consideração o tempo e o espaço em
que são produzidos. Devemos considerar, assim, que as culturas populares vão se
reestruturando e se reelaborando a partir dos locais, das influencias e transformações dos
espaços culturais, que vão incorporando novos saberes e novas formas de representação.
No Brasil, de acordo com Ayala e Ayala (1987), os primeiros estudos sobre cultura
1092

popular foram realizados por Celso Magalhães, em 1873. Pouco depois, José de Alencar, 1874
e Sílvio Romero, 1879. É importante ressaltar que alguns pesquisadores recorrem ao termo
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folclore como sinônimo de cultura popular, entretanto faremos uso dos termos indicados
pelos autores aqui discutidos, segundo a perspectiva da obra de Ayala e Ayala (1987).
Uma característica comum aos três autores supracitados era a busca por traços
nacionais em um acervo, que para eles, era menos sujeito a mudanças: a poesia popular, com
características especificamente brasileiras.
Outro aspecto ressaltado nas publicações e debates desses autores revela a ideia de que
a cultura popular está associada ao meio rural (rude, rústico), opondo-se à cultura dita
civilizada. Havia uma preocupação por parte desses pesquisadores em busca de um registro
dessas manifestações culturais populares, pois, dada a oposição entre folclore e civilização,
deu-se o surgimento da ideia de “registrar antes que acabe”.
A partir dessa ideia, ocorre uma busca pelas origens da poesia popular no Brasil em
comparação com a poesia de outros países, a fim de apontar traços resultantes de
características peculiares de determinado povo. Esse zelo evidencia a concepção de que
folclore é um conjunto de objetos, de produtos cristalizados, não levando em consideração o
contexto social e quem os produz.
Seguindo por esse pensamento, os autores apontam contribuições significativas de
outros estudiosos para uma mudança de enfoque da perspectiva de cultura popular. A exemplo
disso citam Amadeu Amaral e Mário de Andrade, os quais acreditavam que os estudos da
cultura popular deveriam partir de dados concretos como as pessoas envolvidas, o local e a
situação de produção, bem como se preocupavam com a fidelidade dos registros da cultura
popular.
Assim, as questões conceituais que envolvem as práticas culturais populares assumem
uma nova configuração, que leva em conta a contextualização dessas manifestações, buscando
ter mente que “a cultura popular e os que a produzem não estão isolados dos demais
segmentos da sociedade” (AYLALA; AYALA, 1987, p. 51). Desse modo, volta-se mais uma
vez a ter de se considerar o aspecto vinculado às relações de ideologia, organização e cultura
dominantes.
Neste sentido, julgamos ser necessário incorporar os saberes de origem popular ao
conhecimento escolar, uma vez que essas manifestações, sobretudo a poesia popular, fazem
1093

parte do cotidiano e do imaginário do povo brasileiro, que sinalizam sua forma de pensar, de
viver e de representar o mundo e sua cultura. Esses e outros aspectos tomados em conjunto
constituem a nossa identidade cultural.
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A literatura de cordel como manifestação da cultura popular

A literatura popular, segundo Luyten (1984, p. 9), se configura por meio dos contos,
anedotas, lendas que se apresentam em forma de prosa. Mas a modalidade que ocupa um
lugar de destaque dentre as expressões de cunho popular é a poesia, haja vista sua
“dinamicidade e força de expressão.”
No Brasil, a literatura popular ganha força através da poesia, não obstante haja outras
manifestações literárias populares orais e escritas, como contos, provérbios, anedotas, lendas.
Essa poesia, porém, segundo Luyten (1984) supera muito a prosa e é conhecida como
Literatura de Cordel.
A Literatura de Cordel brasileira, por sua vez, recebeu esse nome devido ao fato de,
em Portugal, os livretos ou folhas soltas se assemelharem aos folhetos brasileiros e serem
expostos para a venda e publicação pendurados em cordéis, semelhantemente roupas em
varal.
Embora essa terminologia seja relativamente recente e haja distinções claras entre a
literatura de cordel portuguesa e a de folhetos no Brasil, o termo é hoje consagrado pela
maioria dos estudiosos do tema e, para este trabalho, faremos uso tanto da expressão
‘literatura de cordel’ como ‘literatura de folhetos’ para se referir a essa manifestação literária.
No que concerne a alguns aspectos constitutivos e às temáticas abordadas, é possível
afirmar que a origem da literatura de cordel no Brasil recebeu influências da de Portugal, que
por sua vez, tomou o influxo da literatura medieval europeia. Entretanto, a filiação dessa
manifestação popular é altamente confrontada pela pesquisadora Márcia Abreu, segundo a
qual há uma nítida distinção entre a “literatura de cordel” lusitana e a “literatura de folhetos”
brasileira ou nordestina.
Para Abreu (1999), a literatura de cordel lusitana, ao contrário da nossa, vislumbra não
somente o espaço poético, mas também “autos, pequenas novelas, farsas, contos fantásticos,
moralizantes, histórias, peças teatrais, hagiografias, sátiras, notícias... além de poder ser
escrita em prosa, em verso ou sob a forma de peça teatral” (p. 21). Além disso, em sua obra, a
autora considera correto dissociar “cordel” e “popular” porque tanto autores quanto público
1094

[em Portugal] não pertenciam unicamente às camadas populares (p. 23).


Nesse sentido, a autora pontua que a literatura de cordel lusitana pode ser considerada
um padrão editorial que permitia a divulgação de vários gêneros para amplos setores da
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população. Esses gêneros eram publicados em folhas avulsas, confeccionadas em papel

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simples e barato, as quais eram expostas para a venda em locais públicos. Daí provém a
assimilação que ao longo de cinco séculos pôde “estabelecer parâmetros de comparação com
a literatura de folhetos nordestina” (ABREU, 1999, p. 25).
Assim, é possível dizer que o termo “de cordel” da literatura lusitana está associado
senão ao seu caráter de exposição e venda, ou seja, à materialidade dos livretos, pois eles
sustentavam todos os gêneros possíveis e atingiam a públicos diversos, de diversas condições
sociais e econômicas. “O popular não é o texto, os autores ou o público, e sim a sua
materialidade − sua aparência e preço” (ABREU, 1999, p. 48).
Contrariamente, a literatura de folhetos nordestina teve sua origem centrada nas
populações rurais do Nordeste brasileiro em meados do final do século XIX, influenciada pela
tradição oral proveniente das cantorias: poemas e desafios orais cantados ao som da viola por
cantadores e repentistas.
Nesse sentido, o estilo característico da literatura de folhetos do Nordeste surgiu a
partir de uma produção cultural primariamente difundida no espaço oral, antes mesmo que a
impressão viesse à cena.
O cenário que abrange o universo da cantoria percorre o Nordeste desde as fazendas,
campos e povoados urbanos ou rurais, nas festas, feiras livres, sobretudo no sertão. Os
cantadores saíam em busca de pelejas e ao vencedor era dada a oportunidade de recitar suas
próprias composições ou outras histórias decoradas.
O repertório poético dessas narrativas, inspirado nos romances tradicionais da
literatura medieval, assumiu uma configuração sertaneja que variava desde histórias de bois
valentes a proezas e valentias dos cangaceiros. A esse respeito Câmara Cascudo (1952)
associa a origem dos temas referentes à literatura oral ao romance tradicional, trazido pelos
colonizadores, e diz que esses romances serviram como “modelo para a poesia heroica com
que se cantou a valentia inútil dos cangaceiros, afoiteza dos ciclos do gado, derrubadas, ferras,
batalhas anônimas dentro das capoeiras” (p. 237).
A literatura de cordel no Nordeste se firma em um período no qual ocorrem grandes
transformações nas condições de vida das camadas populares. E é justamente em meio a esse
universo popular que ela é difundida, composta, apreciada. Assim, podemos dizer que mais
1095

que uma manifestação da cultura popular, a literatura de cordel é um produto imanente dessa
cultura.
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A literatura de cordel nordestina: jeitos e sotaques do sertão

É provável que, de modo geral, os primórdios da literatura de cordel no Brasil tenham


sido baseados ou influenciados nas histórias trazidas pelos colonizadores portugueses ainda
nos séculos XVI e XVII. Inspirada nos romances tradicionais lusitanos, a literatura de cordel
portuguesa narrava fatos históricos e narrativas tradicionais, como as da Imperatriz Porcina,
Princesa Magalona e o Imperador Carlos Magno. Histórias que se perpetuam até hoje sob a
roupagem dos folhetos nordestinos, passando pela tradição oral dos repentistas.
Não obstante a esses fatos, é concebível a ideia de que a literatura de cordel no Brasil
se difundiu sobremaneira na região Nordeste o que, por conseguinte, a fez assumir traços
representativos do povo sertanejo da Região.
Segundo Terra (1983), a literatura de folhetos do Nordeste se destaca em um momento
em se passam grandes transformações nas condições de vida das camadas populares, como a
queda do nível de vida da população do campo, seu deslocamento por causa da seca, o
enfraquecimento do poder político, além do despontamento do cangaço. Esses fatores aliados
ao aparecimento da literatura de cordel são, de certa forma, influenciadores das temáticas e da
natureza intrínseca a essa literatura.

Num período em que se dá o aviltamento das condições de vida das camadas


populares, e onde, com a introdução do trabalho assalariado ocorre a quebra
de costumes e valores que tinham por base relações tradicionais de
dominação fundadas numa rede de contraprestações de serviços e favores,
tem lugar a literatura de folhetos do Nordeste, escrita por homens pobres,
atentos àquela realidade, que repercutirá na temática dos folhetos então
produzidos (TERRA, 1983, p. 17).

Nesse sentido, podemos dizer que a literatura de cordel brasileira, à qual nos referimos
neste trabalho, tem uma característica peculiar que a distingue das demais manifestações
populares, tanto lusitanas quanto brasileiras: a sua natureza essencialmente nordestina,
popular, rural, produzida e consumida por homens do povo, que nutriam seu universo
imaginário por meio de uma literatura que narrava suas próprias vidas, seus jeitos e seus
enfrentamentos sociais.
1096

Esses aspectos podem ser observados a partir dos primeiros indícios da composição da
literatura de cordel no Brasil, tal como é chamada hoje. De modo geral, essa literatura foi
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influenciada pela literatura oral e pelas cantorias “que corriam o Nordeste desde pelo menos

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meados do século XIX. A temática dos folhetos é, contudo mais ampla” (TERRA, 1983, p.
17).
Segundo Abreu (1999), no final dos anos oitocentos parte do universo da cantoria
começa a ganhar forma impressa, guardando sempre as marcas da tradição oral. O primeiro
poeta responsável por esse feito foi o paraibano Leandro Gomes de Barros. Assim, a
publicação dos folhetos começou a ganhar importância e alguns poetas deixaram suas vidas
no campo para se dedicar exclusivamente ao ofício. A maioria desses autores, conforme essa
mesma autora, provinha da zona rural, tinham pouca ou nenhuma instrução e alguns foram
autodidatas ou aprenderam a ler com parentes.
O universo cultural dos folhetos nordestinos também justifica sua aceitação e grande
apreciação pelo público, uma vez que segundo a pesquisadora Julie Cavignac, “se o cordel é
apresentado como resíduo de uma cultura lusitana que sobreviveu milagrosamente através dos
séculos, é também a expressão escrita da poesia e da alma do sertão” (CAVIGNAC, 2006, p.
37).
Nesse sentido, a literatura de cordel pode ser tomada como uma representação
simbólica dos valores e elementos culturais da região nordestina, sob a percepção do poeta e
da sociedade em que ele viveu, pois “a identidade cultural do autor presente no texto é um
reflexo do contato entre toda a cultura repassada pelos diversos segmentos de sua comunidade
e suas próprias experiências culturais” (SILVA & SOUZA, 2006, p. 215).
Como resultado desse caráter simbólico representativo da cultura nordestina, a
identificação do leitor com o cordel é possível, haja vista que “os romances e folhetos
colocam em ação personagens tirados do cotidiano, camponeses sem terra, vaqueiros, filhos
de fazendeiros” [...] (CAVIGNAC, 2006, p. 22). Para isso, o poeta lança mão de uma
linguagem típica e expressiva, condizente com o espaço e a realidade vivida pelo povo
nordestino.
A exemplo disso, podemos citar a História do Boi Misterioso, de Leandro Gomes de
Barros, que, além de conter elementos típicos da linguagem rural também traz à cena uma
temática que, segundo Abreu (1999) parece ser intrinsecamente nordestina, o “ciclo do boi”,
confrontando a ideia de filiação lusitana. Sobre isso, a autora afirma:
1097

O chamado “ciclo do boi” parece ser uma criação local, pois não há registro
de produções semelhantes entre os portugueses ou nas culturas negras
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presentes no Brasil. A matéria narrativa é calcada na realidade nordestina dos


séculos XVIII e XIX, quando a criação de gado era a atividade econômica

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mais importante, reunindo ao seu redor grande parte da população (ABREU,
1999, p. 82).

Vivido por boa parte da população do interior do Nordeste num período em que a
criação de gado era a principal fonte de renda das famílias, o “ciclo do gado” (CASCUDO,
1952, p. 23), na literatura de cordel, se baseia “em eventos cotidianos, como fugas de animais
que punham em xeque a habilidade dos vaqueiros” e “discutiam um aspecto crucial na vida
das pessoas ligadas à pecuária” (ABREU, 1999, p. 82), elementos que ainda são possíveis de
observar em alguns setores interioranos das comunidades rurais do sertão.
Em face disso, podemos entender a literatura de cordel como uma herança cultural de
grande valor para a cultura nordestina, na qual estão inseridos os nossos valores,
pensamentos, crenças, arte e história, constitutivos da nossa identidade cultural.

Referências

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CANDIDO, Antonio. Vários escritos. 3. ed. São Paulo: Duas Cidades, 1995.

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GT9 – SUJEITO E COTIDIANO

AMOR E O DESAMOR EM BORDADOS

Maria Adriana Nogueira (UERN)


Sebastião Francisco de Mesquita (UERN)
Geilson Fernandes de Oliveira (UERN)

Adentrar na temática do amor, embora implique tatear um dos terrenos mais fecundos
da literatura, haja vista que constitui uma importante cátedra de estudos acadêmicos, ainda
configura um espaço privilegiado no campo simbólico da literatura, particularmente no
horizonte das representações. E, é desse lugar nada cômodo, mas nem por isso desprovido de
encanto, que ora nos enveredamos.
Propor, então um corpus voltado para a temática do amor, é algo além de instigante,
também desafiador, especialmente quando articula com a intimidade feminina de nações
etnicizadas - um feminino subterrâneo, não reconhecido, e que ainda permanece marginal ao
cânone literário. Esta é a missão, a qual o presente ensaio pretende deslindar. Pois, o
reconhecimento de histórias invisíveis é crucial para refletir o discurso amoroso em suas
múltiplas facetas, produzido de acordo com a cultura e saberes de cada sociedade.
Para tanto, elegemos a obra Bordados (2010) da escritora iraniana, Marjane Satrapi,
como corpus de análise. Tendo em vista que, além de contemplar uma pluralidade de
intimidade feminina em contexto subalterno, evoca uma multiplicidade de experiências
amorosas e sexuais, que nos surpreendem ao se considerar os estereótipos da mulher islâmica,
já que a sexualidade feminina é um assunto tabu naquela sociedade, onde a religião intervém
de forma direta no estado, regulando comportamentos e valores e ditando normas, sobretudo
no comportamento feminino - que vão do uso do véu à impossibilidade de circular sozinha em
certos espaços públicos.
Valorizando a configuração da obra, uma narrativa autobiográfica, repleta de marcas
de subjetividade, no qual reúne depoimentos de várias mulheres iranianas, agregadas à família
de Satrapi, que se reúnem na sala de uma delas – espaço doméstico, reservado às rodas de
conversa em que se compartilha o chá – preparado nos moldes da tradição do Irã. Aquele
1100

entorno, delimitado pelas paredes e pela cumplicidade das presentes ali reunidas, passa a ser o
seu espaço para a troca de experiência e resistência diante das limitações impostas por um
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estado que se funde à religião, modos de amar e viver, buscando resistir e encontrar
alternativas ao assujeitamento imposto ao seu gênero.
Marjane Satrapi, portanto, contrariando a imagem da mulher submissa e à sombra do
homem sempre confinada ao lar, mostra, a partir do referente de sua vida privada, mulheres
que de modo algum naturalizam a submissão e a sua condição subalterna, revelando que suas
vidas não se resumem à sujeição, domesticidade e à anulação por meio da burca, como
costumeiramente vê-se nas lentes midiáticas ocidentais, mas elas se recriam e discutem o
amor e sua sexualidade nos espaços íntimos, num processo de resistência (FOUCAULT,
1988).
Nessa perspectiva, as reflexões aqui empreendidas, estão alicerçadas sob a égide da
perspectiva teórica dos estudos culturais em diálogo fecundo com o discurso amoroso, cujo
objetivo remete ao desnudamento e desconstrução de discursos e posturas
imperialistas/colonialistas, arraigados no imaginário de uma ideologia patriarcal.
Nessa esteira teórica, Ania Loomba (1998), nos afirma que o campo simbólico da
literatura confere não apenas a capacidade de representar aspectos de outras culturas, criar
novos gêneros e identidades, mas também uma ferramenta importante de inversão a
representações tolhidas e dominantes. Dentro desse pensamento, conforme ilustra Eloína Prati
dos Santos (2010), a literatura, possibilita não apenas questionar certos paradigmas
tradicionais a mulher, como amplia essa nova escrita feminina plural e multifacetada, que
contraria o modelo convencional fornecido pela literatura canônica.
Em concordância a esse pensamento, a obra eleita, torna-se um objeto profícuo de
análise, não apenas pelo caráter de depoimento, que vai além do ficcional, mas porque abre
uma fissura na tessitura das produções literárias contemporâneas, ao introduzir discussões,
antes silenciadas ou regadas somente às margens.
A obra eleita, torna-se um objeto profícuo de análise, não apenas pelo caráter de
depoimento, que vai além do ficcional, mas porque abre uma fissura na tessitura das
produções literárias contemporâneas, ao introduzir discussões, antes silenciadas ou regadas
somente às margens.
A obra narra à história de mulheres iranianas que vivem sob o rigor religioso, e que
1101

procuram reunir-se para conversar e compartilhar suas experiências amorosas e sexuais, ou


simplesmente expor seus dramas, ousadias e aspirações. A autora nos conduz, portanto, a
intimidade feminina do Islã, expondo uma diversidade de mulheres - e os diferentes homens
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com quem se relacionam. Mulheres que se casaram diversas vezes, mulheres que não se

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casaram virgens e tentaram reconstituir o hímen173, meninas bonitas casadas com generais
idosos, esposas de longos anos de casamento que jamais viram o marido despido, jovem que
deseja “fisgar” um companheiro por intermédio de práticas fundamentadas apenas no
misticismo, enfim, uma gama de histórias que contam a multiplicidade de experiência e
perspectivas que as mulheres islâmicas vivenciam, e que só passamos a perceber quando
retiramos de nossa visão o véu do estereótipo e das histórias únicas.
Compreendemos também que, o termo bordado, tanto se associa a ideia ocidental de
conversa miúda entre mulheres, aqui popularmente traduzida como tricô, ou seja, histórias de
vida contadas à meia voz, em espaços de acolhimento doméstico, nos quais há permissividade
e mesmo incentivo para que a confissão venha à tona, quanto se refere à cirurgia restauradora
do hímen, comumente realizada no país, onde a teocracia condena a vida sexual fora do
matrimônio. Prática esta que, antes da difusão da cirurgia plástica era realizada em ambientes
caseiros, utilizando-se de instrumentos improvisados, entre eles as linhas e agulhas de bordar.
A cirurgia dos bordados pode ser analisada como uma estratégia de sobrevivência às
condições de assujeitamento. O bordado torna-se, portanto, um símbolo político, além de uma
representação material e imaterial da convivência com uma sociedade que a reprime.
Assim, a cirurgia dos bordados não é apenas uma experiência de assujeitamento, mas
uma prática de resistência. Pois, apesar do corpo ser mutilado, ao mesmo tempo, burla-se os
códigos de controle para apossar-se do direito de viver a sexualidade dentro desse regime.
A ideia de uma sexualidade reprimida é substituída por um discurso latente entre as
personagens, reunidas de forma cerimoniosa para saborear o samovar, o chá digestivo que
sucede o almoço. Um momento de liberdade enquanto os homens fazem a sexta, em que o
protagonismo e os assuntos pertencem ao território de interesses das mulheres.
A conversa reservada entre os goles de chá é a deixa para as confissões, o
aconselhamento e as revelações que conduzem uma troca de estratégias e fortalecimento
coletivo. Visualizamos com isso, uma variedade de histórias que contam sobre o amor e o
modo de vivê-lo em contexto de opressão, no qual a vida das mulheres e sua condição de
sujeito é condicionada às hipótess que mais comumente irão se restringir à possibilidade de
casarem-se, manterem no casamento e constituírem família.
1102

Assim, como a cirurgia dos bordados é uma estratégia de sobrevivência as condições


de assujeitamento, as personagens vão uma a uma expondo modos de existir dentro do regime
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173
Daí advém a expressão “bordados”, como é chamada o tipo de cirurgia que reconstitui o hímen, usual naquele
país.

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ditatorial. Nem sempre em conformidade com este, vão realizando sucessivas fugas, pois,
apesar do rigor religioso de seu país, essas mulheres buscam o amor e a vivência plena da sua
sexualidade, ainda que experimentada de forma clandestina.
Essa resistência elaborada na clandestinidade nos remete ao conceito de dispositivo,
elaborado pelo filósofo Michel Foucault (1988), em sua História da Sexualidade. O filósofo
ressalta que a sexualidade é um campo privilegiado em nossa cultura, no entanto, ela se
configura como mecanismo histórico que carrega as marcas da repressão. “Há dezenas de
anos que nós só falamos de sexo fazendo pose: consciência de desafiar a ordem estabelecida,
tom de voz que demonstra saber que se é subversivo, ardor em conjurar o presente e aclamar
um futuro para cujo apressamento se pensa em contribuir” (FOUCAULT, 1988, p. 13). Nesse
sentido, o fato de falar do sexo livremente e aceitá-lo em sua realidade, torna-se para o autor
uma tarefa hostil aos mecanismos intrínsecos do poder, tendo em vista que, até então, os
discursos sobre a sexualidade eram mais presentes nos divãs psiquiátricos e nas confissões.
(FOUCAULT, 1988).
O autor contraria, portanto, a ideia de uma repressão sexual, pois a tentativa de coibir a
circulação desses discursos e a normatização desses corpos e comportamentos sexuados que
fujam aos ideais de heteronomartividade geraria uma leva de comportamentos de resistência a
esses discursos, forjados na clandestinidades, onde então eles proliferam, em vez disso,
analisa que a censura sexual exercida desde o período vitoriano, no qual a sexualidade era
aceita somente para fins de procriação, sendo confinada a lugares fechados – o quarto do casal
– culminou, no entanto, com a proliferação dos discursos clandestinos acerca da sexualidade.
Para Foucault, a repressão atua de forma paradoxal, em vez de proibir, vetar a partir de uma
política do silêncio, sua ação se deu exatamente no sentido inverso: o regime repressivo fez
proliferar os discursos sobre o sexo, em face de este ter passado a ser objeto de controle e
vigilância. Esse controle incisivo suscita, por sua vez, uma resistência elaborada na
clandestinidade.
Em face dessa evidência, Foucault (1988) atesta que quanto mais se tentava esconder
o sexo, ocultar, reprimir, mais aumentavam os anseios dos indivíduos por tal assunto. De
acordo com o autor, a partir do século XIX, todas as práticas de sexualidade dissidentes - não
1103

destinada a procriação - passam a ser perseguidas e excluídas da vida pública.

A sexualidade é, então, cuidadosamente encerrada. Muda-se para dentro de


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casa. A família conjugal a confisca. E absorve-a inteiramente, na seriedade

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da função de reproduzir. Em torno do sexo, se cala. O casal legítimo e
procriador dita a lei. Impõem-se como modelo, faz reinar a norma, detém a
verdade, guarda o direito de falar, reservando-se o princípio do segredo
(FOUCAULT, 1988, p. 9).

Constatamos na obra Bordados que, as discussões sobre sexo sempre são realizadas
dentro da sala, lugar este onde as personagens procuram compartilhar suas experiências e
dúvidas, tornadas invisíveis aos olhos públicos da sociedade Islâmica. Isso ocorre, porque
assunto como esses não deve existir como não deve existir sua menor manifestação
(FOUCAULT, 1988, p. 10).
No entanto essa formulação nos leva ao seguinte questionamento: se o sexo é
reprimido, isto é, fadado à proibição, o simples ato de falar sobre ele é uma forma de
transgressão. Dessa forma, entendemos que essas mulheres diante de contextos opressores,
resistem e lutam pela sua emancipação sexual, mesmo que seja às escondidas. Deste modo,
podemos inferir que o sexo não é apenas questionado, perseguido, mas acima de tudo buscado
e confessado. Nessa perspectiva, é oportuno considerar que “o sexo tornou-se de fato o ponto
principal de um confessionário moderno” (GIDDENS, 1993, p. 29).
A partir do que foi exposto, percebemos que, apesar de grande parte dos casos assinale
que as mulheres iranianas vivem uma vida repleta de cerceamentos de diversas ordens –
moral, social, estético – e limitado por um Estado que exerce o controle que Foucault (1988)
denomina de dispositivo da sexualidade - regulando que corpos devem circular socialmente e
de que modo devem se portar - a narrativa gráfica de Satrapi nos mostra que, mesmo diante de
um estado que se funde a religião – modos de amar e viver buscam um novo propósito de
vida, ou seja, uma existência dissidente.
Assim, entre a proteção da sala e calor do chá, cada personagem vai uma a uma
expondo modos de existir dentro do regime. Nessa dinâmica da confissão, temos a tia pintora
de Satrapi, e a personagem Amineh, personagens eleitas para o recorte de análise, tendo em
vista que, podemos verificar de forma proeminente o discurso amoroso intrínseco na história
de cada uma delas. No qual, podemos atribuir respetivamente a cada uma, a presença dos
ideais do Amor apaixonado e o Amor romântico.
Compreendemos como Amor apaixonado, segundo Giddens (1993), como aquele
1104

marcado pela conexão entre o amor e o sexo. Por isso, é visto como algo perturbador das
relações pessoais e, encarado pela da ordem da moral como perigoso, característica esta, que o
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coloca a margem das instituições existentes.

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Rompendo com normas e tabus pré-estabelecidos, ao assumir os ideais do amor
apaixonado, a tia de Marjane, evoca o discurso da total ruptura com o regime. Pois, forçada a
se casar aos treze anos de idade com um general cinquenta e seis anos mais velho, foge na
noite de núpcias para a casa da sua tia: “a minha tia tinha ideias bem mais modernas do que os
meus pais. Ainda por cima era viúva, o que lhe permitia pensar e agir por conta própria. Então
ela me hospedou” (SATRAPI, 2010, p. 33). Ela conta que, ao sobreviver ao casamento
arranjado com um general idoso, mudou-se para Europa, após tornar-se viúva e herdeira do
falecido marido para realizar seu grande sonho de ser pintora.

Figura 8: A tia pintora (SATRAPI, Bordados, 2010, p.33)


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É interessante ressaltar que a personagem coloca o fato de ser viúva como um signo de
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autonomia, equivalente a certa liberdade, mesmo implicando uma perda. Esta condição,

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configura sinônimo de emancipação sexual e intelectual para a personagem que se liberta da
dominação dos laços matrimoniais.
Como observa Giddens (1993), os ideais do amor na época atual, tendem a
fragmentar-se sob a pressão da emancipação e da autonomia sexual feminina (GIDDENS,
p.72). Ao chegar na Europa, a personagem vive diversos relacionamentos amorosos. Entre
eles, destaca o envolvimento com um ministro, de quem passa a ser amante. Pois, para ela
“ser amante de um homem casado é ficar com o melhor papel” (SATRAPI, 2010, p. 47).
Podemos definir a partir da postura defendida pela personagem, a incorporação do
amor confluente que, de acordo com Giddens tende a entrar em colisão com os ideais do amor
romântico, uma vez que se afasta da busca da pessoa ideal, em detrimento do relacionamento
especial. O amor confluente, presume, consequentemente, igualdade na doação e no
recebimento emocional. Além de que, introduz o sexual no cerne do relacionamento, como
elemento - chave para sua realização. Portanto, esse tipo de amor fragmentado, desenvolve-se
como um ideal de uma sociedade onde todos têm a oportunidade de tornarem-se sexualmente
realizados.
Observamos, a partir da fala da personagem, uma resistência ao abandonar o destino
previsto do casamento – desprezando assim a vida de esposa, para preferir ser amante. Afirma
ainda, uma recusa pela adesão a carreira com maior potencial financeiro, quando ela afirma
que decidiu dedicar-se ao sonho de ser pintora. Ela surge para mostrar que, ademais da
experiência de simulação de concordância, a mulher iraniana pode também ser desertora,
viver fora do regime, deslocar-se dos seus espaços de escolha e escolher a dissidência - o não
casamento, o não regime teocrático.
Na imagem logo abaixo, em que a personagem encontra-se em uma cena descontraída
com o seu amante, ela demarca de forma bastante clara a diferença dela em relação ao papel
da esposa, que é colocado como parte da instituição que determina comportamentos de
subserviência para as mulheres. Diferentemente da posição de mulher casada, que tem que
servir ao seu esposo e estar disponível sempre que necessário, a amante, para a personagem,
está ali somente para passar os bons momentos, aproveitar a vida, sem ter que estar vinculada
a um papel social tão patriarcal.
1106
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ISBN: 978-85-7621-221-8
Figura 9: A tia e o amante ministro (SATRAPI, Bordados, 2010, p.33)

Dessa forma, ao ir para a Europa, a tia de Satrapi, consegue não apenas realizar-se
profissionalmente como pintora, mas também passa a ter a possibilidade de desfrutar de tudo
aquilo que lhe era proibido, no caso, uma vivência de uma sexualidade superlativa. Ao
abandonar o contrato familiar, o estado e mesmo um propósito de vida destinado ao seu
gênero no território do Irã, a tia assume um amor e uma sexualidade descentrada.
Em contraste com o amor confluente avocado pela tia de satrapi, temos a personagem
Amineh que, por sua vez assume os ideais do amor romântico, no qual presume certo grau de
autoquestionamento e equilíbrio, apesar de nutrir-se muitas vezes em meio a transgressão. O
amor romântico, embora se tenha tornado distinto do amor apaixonado, incorpora elementos
do amor apaixonado, pois este, também vincula-se com certa liberdade.
Nessa perspectiva, Amineh nos conta, por meio de sua confissão que ao encontrar-se
apaixonada pelo namorado, decide casar-se e ir morar na Alemanha. Para a personagem, o
casamento, além de representar a busca pelo vínculo durável, compreendido aqui, pela busca
da pessoa especial, também pode ser visto como a possibilidade de certa independência.
1107

Porém, após descobrir inúmeras traições do marido, se desfaz do matrimônio. Pois, ela não
queria apenas ser simplesmente esposa, mas ser amada acima de tudo. A separação além de
ser traumática para ela implicou à perda de seus sentimentos de segurança e realização.
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Dominada pelo desespero e acometida pela solidão, decide dedicar-se boa parte de seu
tempo a estudar a nova língua imposta, além de realizar aulas de danças. Porém, sua aparente
superação, mascarava sua árida solidão deixada pelo casamento. Em meio a uma vida vazia e
solitária conhece outo homem, seu companheiro de dança. E, diante do trato galanteador do
novo namorado, ela passa a despertar sensações quase esquecidas acerca do amor.
Após inúmeros encontros clandestinos, resolve separa-se, tendo em vista que seu novo
amor era casado. “Ele não queria separar de jeito nenhum. Tentou de tudo para me convencer
a ficar em Berlim e virar a sua amante exclusiva dele. Mas esse papel não era pra mim”
(SATRAPI, 2010, p.47).

Figura 10: Amineh e o namorado Herbet (SATRAPI, Bordados, 2010, p. 46)

Diferente da tia de Satrapi, que aceita com naturalidade a posição de amante, Animed
sente-se indignada e decepcionada com os homens, o que a faz voltar para o Irã. Contudo,
encontramos nas duas histórias que, apesar de serem diferentes, compartilham o amor e uma
sexualidade descentrada. Além de uma atitude de resistência ao abandonar o contrato familiar,
1108

por meio do divórcio e, mesmo um propósito de vida destinado a condição de seu gênero no
território do Irã.
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ISBN: 978-85-7621-221-8
Deste modo, dentro ou fora do regime essas duas mulheres, assim como as outras
retratadas na obra Bordados (2010), são em um sentido geral, mulheres que apesar de toda
dificuldade e repressão, alçam fugas, protestos ou mesmo se satisfazem em desabafar
publicamente sobre o sentimento amoroso que marca a vida das mulheres num regime
totalitário.
Essas mulheres passam a disputar no campo simbólico da literatura uma pluralidade na
representação feminina. Ampliando assim representações e autorrepresentações. Ao final
deste trabalho, chegamos à conclusão de que ele não é somente sobre o discurso amoroso em
Bordados, mas, vai além. Ele também contempla as percepções do que é feminino em nossa
cultura, numa leitura sobre a condição da mulher que vive e resiste ao regime islâmico.
Diante disso, observamos que o universo feminino islâmico é plural e complexo à
medida que as mulheres passam a serem vistas como indivíduos “com biografia, corpo e
história” (RICHARD, 2000, p. 48). Compreendendo assim suas diferenças e singularidades ao
reconhecer em seus textos – aqui entendidos como produtos literários e culturais.
Nessa perspectiva, as personagens representam imagens de “mulher para ela-mesma”
(TOURAINE 2007), uma vez que, imbuídas do direito de falar, compõem representações
plurais e multifacetadas.

Referências

FOUCAULT, M. História da sexualidade I: a vontade de saber. 13. ed. Rio de Janeiro:


Edições Graal, 1988.

GUIDDENS, A. A transformação da intimidade: sexualidade, amor e erotismo nas


sociedades modernas. Tradução de Magda Lopes. São Paulo: Editora UNESP, 1993.

RICHARD, N. De la Literatura de mujeres a la textualidad femenina. In: Escribir en los


bordes. Cuarto Próprio: Santiago do Chile, 1990.

TOURAINE, A. O mundo das mulheres. Petrópolis: Vozes, 2007.

SATRAPI. M. Bordados. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.


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GT9 – SUJEITO E COTIDIANO

SUBJETIVIDADE E AMOR NO TINDER: UMA ANÁLISE SOBRE A


CONSTRUÇÃO DOS LAÇOS HUMANOS NA CONTEMPORANEIDADE

Pamella Rochelle Rochanne Dias de Oliveira174


Fábio Rodrigo Fernandes Araújo175
Geilson Fernandes de Oliveira176

Introdução

O tema amor inspirou poetas, trovadores, escritores e os mais sensíveis artistas e


intelectuais, que se dedicaram a contar as alegrias e infortúnios que o mesmo suscita na vida
dos enamorados, os quais apesar de desejarem a beleza e o prazer provenientes do
relacionamento com seu amado, também abraçavam com mórbida alegria a dor e as feridas
que este chegava a provocar, sobretudo no período do romantismo. O que não causa espanto
se lembrarmos do sucesso de obras literárias, ou mesmo, produções cinematográficas sobre
amores platônicos e com finais infelizes, como o clássico Romeu e Julieta, embora se faça
importante admitir aqui que os finais com “felizes para sempre” sejam os mais esperados,
sobretudo agora na contemporaneidade, momento em que os sujeitos parecem rejeitar a dor e
todo tipo de sofrimento, vivendo no eterno reino da felicidade, curtida e compartilhada.
Enquanto objeto de investigação científica, o amor passa a ser pesquisado no ocidente,
de forma mais pontuada, a partir do século XX, encontrando espaço no campo das Ciências
Sociais e Humanas, bem como da Psicologia. Em 1939 é publicada a obra A história do amor
no ocidente, escrita pelo suíço Dennis de Rougement (1939/2003) e considerada por muitos
autores como uma das mais importantes sobre o assunto, a qual afirma vir do século XII a
ideia de amor romântico que possuímos até hoje (OLTRAMARI, 2009). Embora segundo
Borges (2004), a concepção contemporânea a cerca da temática tenha sido herdada do
pensamento grego, que parte da crença na existência de três principais formas de amor: Eros,

174
Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais e Humanas – PPGCISH, pela Universidade do
Estado do Rio Grande do Norte – UERN. Graduada em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pela
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN. E-mail: pamella_rochelle@hotmail.com.
1110

175
Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais e Humanas – PPGCISH, pela Universidade do
Estado do Rio Grande do Norte – UERN. Graduação em Geografia pela Universidade do Estado do Rio Grande
do Norte – UERN. E-mail: fernandes.herodoto@ig.com.br.
176
Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos da Mídia – PPgEM, da Universidade Federal do
Rio Grande do Norte - UFRN. Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais e Humanas –
Página

PPGCISH, da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN. Graduado em Comunicação Social
com habilitação em Jornalismo pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN.

ISBN: 978-85-7621-221-8
philia e ágape/caritas. O primeiro, Eros, seria equivalente ao que conhecemos como amor
platônico estando ligado a questão do sofrimento e do desejo em ser consumado. O philia é
aquele que deseja o bem e quer estar ao lado do amado, sobretudo através da virtude. E o
ágape seria o amor que deseja o bem incondicional do outro, apesar de ser bem parecido com
philia estaria atrelado aos ideais cristãs de amor, sofrimento e doação.
É importante frisar que para a maioria dos teóricos e pensadores da área das Ciências
Sociais e Humanas, o amor, sobretudo no ocidente, é tido enquanto prática social, na medida
em que se compreende que existem condições sócio-histórico-culturais responsáveis por
permitir que os sujeitos estabeleçam relacionamentos amorosos, e mesmo, desejem e sejam
cativados a desejar amar e serem amados. Devendo, portanto, o amor ser pensando a partir da
ideia de prática social, como afirmar Bozon (2005), ao tratar da questão dos roteiros sexuais.
Dessa forma, o amor segundo Abbagnano (2007, p. 50) é um conceito que pressupõe o
conjunto de relações humanos afetivas, construído pela união entre os sujeitos, numa
suscetível seleção de modos de se relacionar, por meio de seus interesses, propósitos,
necessidades e funções emotivas em comum, na medida em que depende da proporção entre
suas ações e reações emotivas, na condição de estas serem intercambiáveis ou não.
Na contemporaneidade, o sujeito vive intensamente suas relações amorosas, no
entanto, os sentimentos e o próprio ato de amar alguém ou alguma coisa ganha novas
configurações e maneiras de ser, diferente de outras épocas, na medida em que estamos
inseridos em contextos sociais e culturais distintos, próprios do nosso tempo. Vivemos num
momento considerado por muitos como efêmero, fragmentado e múltiplo, características estas
que são refletidas diretamente nos relacionamentos afetivos, assim como também, nos atos de
apaixonar-se e desapaixonar-se, no convívio com a família e com cônjuge, e por sua vez, na
própria maneira de se conceber o amor. A partir dessa questão é que o presente trabalho se
estrutura em três principais partes. A primeira, tratar-se de uma breve revisão de literatura
sobre a questão da modernidade em concordância epistemológica com o conceito de amor,
enquanto uma das condições fundantes para a formação da modernidade enquanto projeto
científico sobre o existir do ser humano.
A segunda parte será composta pela perspectiva conceitual do que é o amor na
1111

modernidade tardia em concepções sociais mais relacionais, a ser argumentado pelo sociólogo
Antony Giddens (1993) em seu livro, “A transformação da intimidade: sexualidade, amor e
erotismo nas sociedades modernas”, em comparação com pensamento de Zygmund Bauman
Página

(2004) em sua obra “Amor Líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos”. Para num

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terceiro e último momento, analisarmos como os sujeitos contemporâneos passam a perceber
o amor e se relacionarem afetivamente no dado momento, de maneira específica os que para
tanto escolhem utilizar o ambiente virtual, em nosso caso específico, o aplicativo de
relacionamentos Tinder177.

Sobre o projeto da modernidade e sua suposta crise

A modernidade, época que compreende desde aproximadamente o século XVII e que


para alguns começa a entrar em declínio entre as últimas décadas do século XX e início do
XXI, enquanto para outros ainda está em curso, no entanto numa nova fase na qual passa a
conviver com suas consequências (GIDDENS, 1991), caracteriza-se por ser em grande parte
um projeto de ordem, o qual teria como foco obter o máximo de conhecimento para assim
organizar, classificar e manter controle sobre o mundo. “Nascendo em busca de uma
sociedade racionalmente planejada”, dividiu a mesma “em categorias, as pessoas em grupos e
buscava através da razão fugir da indeterminação” (MOCELLIM, 2008, p. 05), concepção
também partilhada por Bauman (1999), o qual afirma que o termo modernidade poderia ser
considerado quase como um sinônimo de ordem, na medida em que se acreditava que através
de uma sociedade organizada pelo uso sistemático da razão a verdade sobre o mundo seria
alcançada, podendo assim se exercer domínio sobre o mesmo,

A ciência moderna nasceu da esmagadora ambição de conquistar a natureza


e subordiná-la as necessidades humanas. A louvada curiosidade científica
que teria levado os cientistas “onde nenhum homem ousou ir ainda” nunca
foi isenta da estimulante visão de controle e administração, de fazer as coisas
melhores do que são (BAUMAN, 1999, p. 49).

Dessa forma, tanto a ciência moderna quanto o próprio estado moderno trabalhavam
de maneira extremamente racional em busca de alcançar a verdade e dominar a natureza, para
assim mater controle sobre esta e utilizá-la de acordo com as necessidades dos sujeitos. Para
Giddens (1991) a modernidade pode ser compreendida a partir das quatro principais
dimensões que possui: o capitalismo, industrialismo, poder militar e vigilância. As quais
1112

177
“Tinder é uma aplicação multiplataforma de localização de pessoas para encontros românticos online
cruzando informações do Facebook e do Spotify, localizando as pessoas geograficamente próximas. Esta
aplicação está disponível para os sistemas Android e iOS.[1]”. Ver mais em :
Página

https://pt.wikipedia.org/wiki/Tinder,

ISBN: 978-85-7621-221-8
juntas tornaram-se responsáveis pela emersão da economia capitalista mundial e pelo próprio
fortalecimento da sociedade moderna, estando ambos entrelaçados.
A partir do século XX, transformações mais radicais e num rítmo bastante acelerado
começam a se desenvolver, o que vai afetando todas as áreas sociais e a vida dos sujeitos,
entre elas, mudanças no cenário industrial, na forma de produção que passa a fazer uso de
máquinas cada vez mais sofisticadas, que por sua vez são responsáveis por avanços
tecnologicos que afetam diretamente os meios de comunicação e o consumo, gerando
transformações significativas no sistema capitalista, de forma a fortalecé-lo. Essas mudanças
são consideradas por boa parte de sociólogos e filósofos como resultado do processo de
globalização, que consiste em processos atuantes em escalas globais responsáveis por
conectar diferentes povos e culturas colocando em xeque a antiga noção de espaço-tempo. Em
meio a este processo, que segundo Giddens (1991) e Hall (2004) não pode ser pensado como
algo necessariamente recente, embora tenha ganhado força a partir dos anos de 1970, é que a
internet emerge como sendo uma personificação do mesmo, reconfigurando e
problematizando as relações socias que a partir de então passam por um processo crescente de
virtualização o que afeta diretamente a produção das subjetividades, bem como os
relacionamentos afetivos/amorosos.
É nesse contexto, que tanto Giddens (1991; 1993) quanto Bauman (1999; 2001)
afirmam que as antigas certezas do mundo moderno são postas em xeque e que os avanços
nas tecnologias de informação e comunicação acabam por colocar distantes partes do mundo
num mesmo ambiente, assim como permitir que sujeitos distintos das mais variadas culturas e
crenças possam interagir entre si, o que afeta diretamente não só a estrutura social, mas os
próprios sujeitos e como estes se constituem enquanto tal, assim como também suas relações
afetivas, bem como a noção que possuem sobre o amor. Giddens (1991) se referiu a essas
mudanças que a modernidade trouxe para o mundo ocidental como consequencias da
modernidade, sendo talvez uma das primeiras dessas consequências a mudança acerca da
concepção de espaço e tempo, como explica,

Nas sociedades pré-modernas, espaço e tempo coincidem amplamente, na


medida em que as dimensões espaciais da vida social são, para a maioria da
1113

população, e para quase todos os efeitos, dominadas pela "presença" — por


atividades localizadas. O advento da modernidade arranca crescentemente o
espaço do tempo fomentando relações entre outros "ausentes", localmente
distantes de qualquer situação dada ou interação face a face. Em condições
Página

de modernidade, o lugar se torna cada vez mais fantasmagórico: isto é, os

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locais são completamente penetrados e moldados em termos de influências
sociais bem distantes deles. O que estrutura o local não é simplesmente o
que está presente na cena; a "forma visível" do local oculta as relações
distanciadas que determinam sua natureza” (GIDDENS, 1991. p. 28-29).

É importante esclarecer que o autor se refere a esse processo em que as relações socias
não estão mais limitadas a espaço-tempo locais, deslocando-se de maneira indeterminada,
amparadas nas inúmeras possibilidades que agora possuem, de desencaixe, que pode ser
compreendido como um "deslocamento das relações sociais de contextos locais de interação e
sua reestruturação através de extensões indefinidas de tempo-espaço” (GIDDENS, 1991, p.
31).
Uma outra importante caractéristica da modernidade tardia, como Giddens (1999)
prefere nomear o atual momento, seria a intensa reflexividade178, entendendo esta como a
prática de refletir sobre as práticas sociais, em todos os aspectos da vida humana, inclusive
sobre a constituição do eu. O que de acordo com o autor já existia nas sociedades pré-
modernas, no entanto de forma limitada a questões referentes a tradição, assumindo agora um
carater diferente, mais radicalizado. “O que é característico da modernidade não é uma adoção
do novo por si só, mas a suposição da reflexividade indiscriminada — que, é claro, inclui a
reflexão sobre a natureza da própria reflexão” (IBID. p. 49). Dessa forma, dito de maneira
mais simples, pode-se entender a reflexividade como a prática que convoca o sujeito a refletir
sobre as práticas sociais, bem como sobre si próprio, não apenas a nível de corpo social, mas
enquanto sujeito individual, levando-o a um processo de percepção sobre a constituição de
sua subjetvidade, ou como o autor prefere, a um processo de examinação da auto-identidade.
Devido as inúmeras mudanças que ocorreram no decorrer do período moderno foi que
a partir do final do século XX surgiu um debate com vias de esclarecer e delimitar até onde
pode-se entender as mudanças vividas inseridas no contexto da modernidade, ou melhor, em
qual ponto da história avançamos dessa modernidade para um novo momento. O que fez com
que alguns autores de diferentes áreas, entre eles Hall (2004) passasem a defender o
surgimento da pós-modernidade, época que traria consigo uma crise das ideologias e
pensamentos que vigoraram até então, o que o autor explica ao falar do nascimento do sujeito
pós-moderno, o qual possuiria uma identidade fragmentada e instável sendo a mesma, reflexo
1114

das mudanças sociais e históricas. Ideia que Giddens (1991) procura problematizar em sua

178
“A reflexividade da vida social moderna consiste no fato de que as práticas sociais são constantemente
Página

examinadas e reformadas à luz de informação renovada sobre estas próprias práticas, alterando assim
constitutivamente seu caráter” (GIDDENS, 1991, p. 49).

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obra, mas rebate vieementemente, ao afirmar que de fato nós nos deslocamos pra além da
modernidade, no entanto não para um nova fase, e sim para a radicalização da mesma, ou
melhor para a vivência de suas consequências, na medida em que as instituições modernas
ainda não faliram e continuam a existir e manter domínio sobre os sujeitos, ainda que este
controle agora passe a ser alvo constante de críticas e de uma maior reflexividade.
Entendendo este momento como modernidade radicalizada, ou melhor, modernidade tardia.
Bauman (1991; 2001; 2004) que por sua vez também problematiza e debate a questão
da modernidade e pós-modernida, acaba preferindo classificar o dado momento como
modernidade líquida, na medida em que, para compreender esta nova fase parte da ideia de
liquidez, já que segundo o mesmo, vivemos num mundo de incertezas e fluidez no qual os
relacionamentos humanos são altamente frágeis, flexíveis e instáveis, e o medo de perder
aliado ao desejo de liberdade denota a complexidade do dado momento, bem como reestrutura
o terreno no qual as relações afetivas são alicerçadas.
É perceptível que ambos os teóricos, ainda que aderindo a nomenclaturas diferentes e
pensamentos próprios, acabam por concordar num aspecto, que de fato ocorreram e estão
ocorrendo profundas mudanças sociais num ritmo bastante acelerado, mudanças estas
responsáveis por problematizar questões como espaço-tempo e a própria constituição dos
sujeitos, o que por sua vez afeta diretamente as relações sociais estabelecidas por estes, assim
como também concepções que até então era sólidas e firmes, entre elas a do amor, como
veremos a seguir.

O amor e as relações afetivas na modernidade

Para Giddens (1993) a questão do amor, ou ao menos sua conceptualização na


modernidade tardia, está diretamente ligada às questões da auto identidade e da reflexividade,
na medida em que compreende o “eu” enquanto um projeto reflexivo, ou seja, “como uma
interrogação mais ou menos contínua do passado, presente e futuro” (IBID. p. 41), projeto
este, que envolve uma reconstrução emocional, conduzida em meio a uma profusão de
recursos reflexivos, tais como, “terapias e manuais de auto-ajuda de todos os tipos, programas
1115

de televisão e artigos de revista” (IBID.). O que em grande medida é fruto das transformações
sociais pelas quais o mundo ocidental passou e ainda passa, transformações que afetaram
diretamente a intimidade dos sujeitos e a estrutura dos seus relacionamentos afetivos,
Página

amorosos e sexuais, o que o autor chama de experiências sociais do cotidiano. Entre os atuais

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recursos reflexivos podemos considerar e destacar as redes sociais online, nas quais o sujeito
é impulsionado a estetizar sua existência por meio de imagens e descrições quase que
cinematográficas, narrando a si mesmo e seu cotidiano. Passando a manter uma intensa
relação consigo, refletindo sobre si mesmo na medida em que se preocupa em como irá se
expor e evidenciar sua vida nesse ambiente, na maioria das vezes objetivando alcançar um
efeito desejado (SIBILIA, 2008).
Em A transformação da intimidade, Giddens (1993) inicia sua linha de raciocínio
dando ênfase para a questão da sexualidade e as principais mudanças que ocorreram neste
campo, percebendo estas como impulsionadoras das demais mudanças no âmbito da vida
privada e íntima dos sujeitos, que por sua vez afetam diretamente questões públicas e a
própria estrutura das instituições sociais, entre elas o casamento. Sendo a sexualidade
percebida na modernidade tardia, não apenas como uma condição natural e preestabelecida
das coisas, mas como um “aspecto maleável do eu, um ponto de conexão primário entre o
corpo, a auto-identidade e as normas sociais” (1993, p. 25), noção que pôs em discussão
temáticas referentes ao gênero, como a questão da autonomia feminina e o prazer da mulher,
além do florescimento da homossexualidade. Que por sua vez foram responsáveis por
problematizar a identidade dos sujeitos, levando-os a uma maior reflexividade sobre como se
constituem e quem são, sendo esta não só uma questão que precisam resolver para assim se
apresentarem aos outros, mas para entrarem em acordo consigo mesmo, levando-os a
processos de auto-identidade.
Essa problematização em torno da auto-identidade acaba por interferir diretamente nas
práticas sociais dos sujeitos, refletindo nos diversos âmbitos de suas vidas, desde a estrutura
dos seus relacionamentos amorosos até a própria concepção acerca do amor, que assim como
os demais aspectos da vida moderna acaba por ser em grande medida reformulada.
Para explicar como o amor passa a ser compreendido e vivido pelos sujeitos
contemporâneos, Giddens (1993) se detém em quatro perspectivas sobre o mesmo, que são o
do amor romântico e amor passion, e o desenvolvimento dos conceitos de amor confluente e
relacionamento puro, sendo os dois primeiros instituídos desde a época pré-moderna e os dois
últimos tidos como consequências da modernidade tardia. Estando ambas as perspectivas de
1116

alguma forma estejam envolvidas no processo de auto-identidade.


O amor romântico começa a se delinear por volta do século XVIII, nele predominam
elementos do amor sublime e ideais cristãs a cerca do sofrimento e total entrega ao amado,
Página

sendo estritamente separado das compulsões sexuais. O que se dá em meio a mudanças que

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afetaram diretamente as mulheres da época e os papeis que estas deveriam desenvolver, como
por exemplo, a criação do lar; ou pelo menos da ideia moderna de lar, além de modificações
nas relações pais e filhos e a invenção da maternidade, na qual a mãe passa a ser idealizada e
quase divinizada, sendo este papel a partir de então, considerado uma das principais funções
sociais do ser mulher, o que acabou por levar ao deslocamento da autoridade patriarcal para a
afeição maternal. É neste contexto que o amor romântico, que esteve bastante próximo à ideia
de amor divino, bem como do amor incondicional da mãe pelos filhos, surge como sendo
essencialmente feminino, estando sempre associado à subordinação da mulher ao seu amado,
na medida em que a amante deve ser dócil e submissa para com o amado, entregando sua vida
e sua alma para assim tornar-se devota e inteiramente consagrada a este.
Enquanto o amor romântico era associado às mulheres, para os homens era permitido
o amor apaixonado, amour passion, que diz respeito a questões na ordem do desejo e do
fervor sexual ligando o amor ao sexo, o que estava ausente no amor romântico das mulheres.
Dessa forma, “para os homens, as tensões entre o amor romântico e o amour passion eram
tratadas separando-se o conforto do ambiente doméstico da sexualidade da amante ou da
prostituta” (GIDDENS, 1993, p. 55), sendo o homem possuidor de total liberdade sobre o
sexo e sobre a intimidade do corpo.

O amour passion, jamais foi uma força social genérica da maneira que tem
sido o amor romântico, desde o final do século XVIII até períodos
relativamente recentes. Juntamente com outras mudanças sociais, a difusão
de ideias de amor romântico estava profundamente envolvida com transições
importantes que afetaram o casamento e também outros contextos da vida
pessoal. O amor romântico presume algum grau de autoquestionamento. [...]
Desde suas primeiras origens, o amor romântico suscita a questão da
intimidade. Ela é incompatível com a luxúria, não tanto porque o ser amado
é idealizado – embora esta seja parte da história –, mas porque presume uma
comunicação psíquica, um encontro de almas que tem caráter reparador. O
outro seja quem for, preenche um vazio que o indivíduo sequer
necessariamente reconhece – até que a relação de amor seja iniciada (IBID.
p. 56).

Dessa forma, Giddens (1993) explica que o amor apaixonado pode ser considerado
como um fenômeno quase que universal, enquanto o amor romântico seria bem mais
1117

culturalmente específico e que por muito tempo manteve uma forte ligação com a instituição
do casamento, perdurando por toda a primeira fase da modernidade e deixando resquícios de
sua existência até hoje. No entanto, agora na modernidade tardia, o amor romântico teria se
Página

fragmentado, em grande medida devido à emancipação e autonomia sexual feminina, entre

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outras transformações sociais, levando os sujeitos a se relacionarem de forma diferente com a
ideia de amor, convocando-os a repensarem este conceito, o que está diretamente ligado a
ideia de amor confluente,

O amor confluente é um amor ativo, contingente, e por isso entra em choque


com as categorias "para sempre" e "único" da ideia do amor romântico. A
"sociedade separada e divorciada" de hoje aparece aqui mais como um efeito
da emergência do amor confluente do que como sua causa. Quanto mais o
amor confluente consolida-se em uma possibilidade real, mais se afasta da
busca da "pessoa especial" e o que mais conta é o "relacionamento especial"
(GIDDENS, 1993, p. 72).

O amor confluente seria então aquele no qual ninguém é obrigado a doar-se ou


entregar-se de forma absoluta para que o outro seja feliz, nem se apegar a ideia de eternidade,
pelo contrário, neste tipo de amor ambos entram em acordo e consenso quanto aos seus
direitos e deveres, não devendo se sacrificar pela relação, mas a manterem apenas e enquanto
for satisfatória para ambas as partes. Assim sendo, se faz importante perceber o amor
confluente como resultado das transformações sociais, políticas e culturais no âmbito da
sexualidade e dos direitos femininos; bem como do fortalecimento da luta pelos direitos
homossexuais que aos poucos estão sendo conquistados; que em grande medida ocorrem por
meio da própria exigência de homens e mulheres que almejam partilhar relações íntimas e
igualitárias, sendo esta nova concepção sobre o amor, uma tendência a relacionamentos
afetivos e sexuais igualitários entre os sexos, estejam estes inseridos na ordem
heteronormativa ou não.
Nessa medida, é que o amor confluente insere pela primeira vez a satisfação sexual, ou
como Giddens (IBID.) descreve, a ars erótica no centro dos relacionamentos, sejam conjugais
ou não, nos quais a realização sexual de ambos os parceiros se torna um elemento
importantíssimo para que o envolvimento não chegue ao fim. As principais mudanças
evocadas pelo amor confluente são: o fim da separação entre putas e santas; a
problematização do relacionamento monogâmico, na medida em que haja um consenso entre
os que se relacionam; diferente do amor romântico vai além de uma heteronormatividade; e
por fim se estabelece por meio do que o autor classifica como relacionamento puro, estando
1118

ambos intrinsicamente ligados.


O relacionamento puro, por sua vez, pode ser compreendido como sendo uma relação
Página

estável estabelecida entre duas ou mais pessoas que partilham suas vidas e mantém laços

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amorosos e sexuais, o qual não precisa ser necessariamente um casamento, mas uma
reconfiguração deste, possuindo como alicerce apenas a intimidade e a confiança, que acabam
ganhando um peso bem maior do que no próprio casamento, já que neste tipo de
relacionamento não existem apoios externos, como votos de para sempre, muito menos a
“obrigação” de nunca acabar. Sobre este tipo de relacionamento Giddens (IBID.) vai afirma
que,

Uma característica do relacionamento puro é que ele pode ser terminado,


mais ou menos à vontade, por qualquer dos parceiros em qualquer momento
particular. Para que um relacionamento tenha a probabilidade de durar, é
necessário o compromisso; mas qualquer um que se comprometa sem
reservas arrisca-se a sofrer muito no futuro, no caso do relacionamento vir a
se dissolver” (GIDDENS. 1993, p. 152).

Dessa forma é que a confiança se faz tão necessária, e que o relacionamento só


continua enquanto todas as partes estiverem satisfeitas e usufruindo em igual medida, sendo
assim, “O amor confluente presume igualdade na doação e no recebimento emocional, e
quanto mais for assim, qualquer laço amoroso aproxima-se muito mais do protótipo do
relacionamento puro” (IBID. p. 73).
Por fim pode-se afirmar que a emergência da modernidade tardia acabou por ser
responsável pelo surgimento do amor confluente e do relacionamento puro, nos quais as
diferenças de gênero são cada vez menos postas e apenas o real desejo e a vontade de estar
junto, seriam os responsáveis pela união de duas, ou mais, pessoas livres. Além disso, tanto o
amor confluente como o relacionamento puro, na medida em que ambos se complementam
estando um para o outro, se tornaram responsáveis pela dissolução das antigas tradições e
obrigações impostas pelo casamento. No entanto vale ressaltar que as mudanças não são
absolutamente libertárias para o sujeito, na medida em que trazem agora novas problemáticas
e questionamentos, nos quais a instabilidade, insegurança e o medo de perder o parceiro a
qualquer momento são apenas alguns entre outros fatores que podem ser considerados
negativos. Dessa forma, é que para Giddens (1991; 1993), a confiança é o aspecto que mais
ganha importância nos relacionamentos inseridos na modernidade tardia, já que as relações
passariam a serem relações de riscos, nas quais os parceiros não dão e não tem garantias.
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Tinder e a instabilidade dos laços humanos na contemporaneidade

O aplicativo online para smartphones, Tinder, foi criado em 2012 por Justin Mateen,
Sean Rad, Jonathan Badeen e Christoper Gulczynski, ambos estudantes da Universidade do
sul da Califórnia nos Estados Unidos da América. Funciona conectado ao facebook para usar
a geolocalização e os interesses dos seus usuários com o intuito de mostrar pessoas próximas
e com gostos parecidos que também estão à procura de novas pessoas para desenvolverem
relacionamentos afetivos e encontros amorosos (SAKATA, BRAZ, RIOS, 2017). Para
utilizar o aplicativo que é gratuito basta baixa-lo no aparelho celular, conectar-se ao facebook
e criar um perfil, no qual devem constar informações como: idade, interesses e localização.
Além disso, é preciso escolher imagens que serão expostas para os outros usuários, que por
meio delas vão escolher se dão um like, clicando no botão em forma de coração, ou um nop,
clicando no botão em formato de X, e só se ambos os usuários derem like é que poderão
conversar entre si. Em 2015 o tinder já possuía cerca de 100 milhões de usuários espalhados
pelo mundo, sendo destes 10% brasileiros, o que equivaleria a 10 milhões de pessoas
conectadas ao aplicativo só no Brasil (IBID, p. 03).

1120

Imagem 01 – Interface do Tinder. Fonte primária: http://www.manualdousuario.net/super-like-tinder/.


Fonte secundária: SAKATA, BRAZ, RIOS, 2017, p 05.
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O Tinder também possui um botão em forma de estrela que se chama “super like”, o
qual serve para que o sujeito interessado saiba que você se interessou, uma vez que apenas
com like não é possível saber do interesse dos outros, a não ser que a pessoa retribua a curtida
179
nas cegas, e quando isso acontece é que o match se dá, sendo possível a partir de então
conversar com a pessoa através do bate papo do próprio aplicativo. Outra questão
interessante, é que depois de clicar no X não é possível voltar atrás e ver as pessoas
novamente, a não ser que o usuário adquira um pacote especial, o qual não é gratuito e
também permite que se ultrapasse o limite geográfico imposta pela versão não paga do
aplicativo.

Imagem 02 – Match. Fonte primária : https://letstalkaboutsexblog.wordpress.com/. Fonte secundária:


SAKATA, BRAZ, RIOS, 2017, p. 05.

O Tinder não restringe uma quantidade de likes e nem de matchs, de maneira que é
possível interagir com inúmeros parceiros em potencial ao mesmo tempo, ou ainda sair com
um parceiro ao passo em que se conversa e dá match em outros. O que para Bauman (2004)
seria mais uma característica dos tempos líquidos no qual vivemos, em que os sujeitos se
preocupam em ter o máximo de experiências possíveis, considerando a relação amorosa, bem
como a conquista e o ato de apaixonar-se como uma habilidade que deve ser posta em prática.
1121
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179
Termo em inglês utilizado pelo aplicativa para designar quando duas pessoas combinam formando um par
virtual.

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A súbita abundância e a evidente disponibilidade das “experiências
amorosas” podem alimentar (e de fato alimentam) a convicção de que amar
(apaixonar-se, instigar o amor) é uma habilidade que se pode adquirir, e que
o domínio dessa habilidade aumenta com a prática e a assiduidade do
exercício (BAUMAN, 2004, p. 11).

Nesse contexto é possível perceber os pilares da erupção do amor confluente e do


relacionamento puro tão bem explicados e defendidos por Giddens (1993), uma vez que o
compromisso deixa de ser com outro para agora ser apenas, ou, em primeiro lugar, consigo
mesmo e com seu próprio prazer, sendo o outro alguém que pode ou não entrar nessa lógica, e
mesmo quando dela faz parte não possui garantias de duração, ou de ser único. É claro que
cada sujeito é singular, e que mesmo por meio de um aplicativo de paquera que tem como um
dos intuitos a pegação, relacionamentos sérios e até mesmo duradouros podem surgir, no
entanto, estes relacionamentos também estarão inseridos na lógica de Giddens (1993), uma
vez que a própria noção de relacionemento sério e amoroso se transformou ao longo do
tempo, sendo como afirma o autor a confiança uma das questões mais necessárias, e de acordo
com Bauman (2004) a liberdade um das principais caracteristicas.
É nesse contexto, e mesmo dentro da lógica do ambiente virtual, como por exemplo do
aplicativo Tinder, em que as interações e relações sociais podem ser desfeitas com a mesma
facilidade e rapidez em que se estabelecem, que podemos constatar o que Bauman (2004)
classificou como sendo “relações de bolso” ou “descartaveis”, as quais passam a existir
enquanto uma característica da contemporaneide, o que se dá em grande medida devido as
possibilidades agora serem inúmeras.

Uma chamada não foi respondida? Uma mensagem não foi retomada?
Também não há motivo para preocupação. Existem muitos outros números
de telefone na lista [...] Há sempre mais conexões para serem usadas e assim
não tem grande importância quantas delas se tenham mostrado frágeis e
passíveis de ruptura (BAUMAN, 2004, p. 79).

A efemeridade presente nas relações atuais pode ser percebida como mais uma
consequência e característica da contemporaneidade, que trouxe consigo mais independência
às relações, que sobretudo no ambiente virtual se dá devido as ferramentas disponiilizadas
1122

pelas plataformas, como no caso do Tinder em que você pode escolher seu potencial parceiro
como escolhe roupas numa virtine, e o melhor, sem correr o risco de ser rejeitado
pessoalmente e passar por um momento constrangedor. Dessa forma, não só a maneira como
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o amor e as relações amorosas passam a ser concebidas se transforma, mas também, o ato de

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apaixonar-se e o processo de conquita. Vivemos assim um momento único na história
ocidental das relações sociais, o que influencia diretamente na constituição dos sujeitos, sem
sabermos ao certo o que mudou primeiro, as relações ou o sujeito.

Considerações finais

É necessário pensar o amor a partir de suas significações históricas e culturais, na


medida em que sua concepção pode variar de acordo com o espaço, tempo e cultura nos quais
o mesmo está inserido, sendo um conceito socialmente e discursivamente produzido, assim
como os próprios sujeitos. Partindo desse pressuposto é que Giddens (1993) nos apresentou
certas variações nas concepções do amor ao longo da modernidade, sempre as inserindo em
seus contextos sócio-históricos, defendo por fim o surgimento do amor confluente e do
relacionamento puro como não só consequências da modernidade tardia, mas também um
reflexo da mesma, na qual os sujeitos não desejam mais se sacrificar ou se anular em prol de
um suposto amor, assim como também não acham justo o sacrífico do outro, trazendo de certa
forma a lógica da compensação para seus relacionamentos, assim como também o caráter
efêmero e transitório, na medida em que a antiga promessa do “para sempre” agora é
substituída pelo acordo do “enquanto for satisfatório”. Partindo de um pressuposto comum é
que Bauman (2004) considera o amor e seus correlatos conceituais do amar, paixão, desejo e
sexo, como construções sociais que se produzem e reproduzem na modernidade, pela
transitividade que as relações humanas passam ao se estabilizarem em seu caráter imediato,
liquefeito e libertário.
Percebemos assim, por meio dos usuários de aplicativos de relacionamentos virtuais,
com ênfase no tinder, que as relações afetivas e amorosas na contemporaneidade passam a ser
de fato cada vez mais fluídas e libertas de obrigações morais para com o outro, sendo a maior
obrigação consigo mesmo. Na maioria das vezes não se busca mais um amor para a vida toda
e sim uma companhia para momentos agradáveis, nos quais o relacionamento puro prevalece.
O que incide diretamente não apenas na construção social do que passa a ser concebido como
amor e paixão, mas na própria construção de um ethos identitário focado em si e não
completamente no outro, através de um auto-reflexividade continua de suas práxis social.
1123

Logo, o amor na contemporaneidade, seja esta líquida ou tardia, é um projeto


existencial do próprio sujeito, que o conduz a construção de seu “eu” social e afetivo, por
Página

meio da sua respectiva consciência de que as relações amorosas contemporâneas, em suas

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representações visuais, textuais ou corporais, são construtos simbólicos do que deve significar
se relacionar com o outro, como algo a ser arquitetado para ser efêmero através da razão e
durável pela emoção.

Referências

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Benedetti. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2004.

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BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: J. Zahar Ed., 2001.

BORGES. M. L. Amor. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2004.

BOSON, M. A nova normatividade das condutas sexuais ou a dificuldade de dar coerência às


experiências intimas. Em Heilborn, M. L. (Org.), Família e sexualidade.(p. 119-150). Rio de
Janeiro: FGV.

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Paulo: Editora UNESP, 1991.

GIDDENS, Anthony. A transformação da intimidade: sexualidade, amor e erotismo nas


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Estadual Paulista, 1993.

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MOCELLIM, Allan. A questão da identidade em Giddens e Bauman. In. Revista Eletrônica


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Estudo do aplicativo Tinder como suporte na projeção identitária do indivíduo pós-
moderno. Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação.
1124

Fortaleza - CE, 2017.

SIBILIA, Paula. O show do eu: a intimidade como espetáculo. Rio de Janeiro: Nova
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Fronteira, 2008.

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OLTRAMARI, Leandro Castro. Amor e conjugalidade na contemporaneidade: uma revisão
de literatura. In. Psicologia em Estudo, v 14, n. 4. Diciembre, 2009, p. 669-677,
Universidade Estadual de Maringá. ISSN (versão impressa) 1413-7372.

1125
Página

ISBN: 978-85-7621-221-8
GT9 – SUJEITO E COTIDIANO

A IDENTIDADE DO PROFESSOR: AVANÇOS E RETROCESSOS NA ATUAL


CONJUNTURA SOCIAL

Themis Gomes Fernandes (UPC)


Pedro Ramon Pinheiro de Souza (UEP)

I- Os avanços e retrocessos na profissão de professor

O tempo é um fator fundamental para as mudanças em valores que vão se instaurando


e sendo reproduzidos dentro da sociedade. Novas vertentes inspiradas em conceitos
ideológicos que determinam comportamentos individuais são reproduzidos paulatinamente
pelas massas sociais.
Ao que se refere as demais culturas em todo o mundo, percebe-se princípios
comportamentais preciosos e respeitados socialmente. Em nosso país, o Brasil, observa-se
uma carência grande de comportamentos admitidos socialmente. Ou melhor dizendo, o
padrão comportamental é o inverso, o errado. Ser íntegro, direito e de personalidade boa é
visto como desprezível. É necessário ultrapassar essa maneira de ser coletivo priorizando uma
nova ética global. Como bem afirma Thums:

Todas as culturas que se sobressaem no mundo têm seus princípios


comportamentais bem definidos e cultuados socialmente. No Brasil, vivemos
uma pobreza enorme de comportamentos aceitos, aprovados socialmente.
Aliás, o padrão comportamental é exatamente o avesso, o incorreto. Ser
honesto, justo, correto e de índole boa parece algo desprezível. É preciso
suplantar essa forma de ser coletivo em nome de uma ética comum
(THUMS, 2003, p. 21).

A ideologia que embasa os seres sociais em nossa nação repercute nos


comportamentos praticados por cada ser que frequenta a escola. A autonomia e o tratamento
despendido ao professor trilhou caminhos de mudança, que chegam a apresentar
desconformidade em seu papel principal, o de ensinar.
A sociedade produziu uma enorme gama de valores e normas deturpadas que foram
1126

demonstradas ao longo da história. Ser moderno é estar informado, consumir itens de desejo e
de admiração, que são oferecidos com recurso para ter prazer e felicidade, modificando a
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mercadoria, com nova roupagem, não a relação entre os indivíduos. A racionalidade moderna
sofreu a metamorfose para a irracionalidade.
Para Mendonça (2008, p. 32) Freire integra a esfera da utopia. Segundo ele Freire
percebe a,

Utopia como o realizável, aquilo que pode se concretizar. Para ele utopia
implica denúncia da desumanização e anúncio da humanização,
constituindo-se, portanto em práxis. Uma práxis caracterizada por uma
dimensão profética. Essa ideia de utopia não pode ser compreendida sem o
sentido da esperança, como condição da busca humana devido à sua
condição de inacabamento (MENDONÇA, 2008, p. 32).

O ser humano é um ser inacabado. Na atualidade, existe um decréscimo da experiência


humana. Um aumento da incomunicabilidade estre os indivíduos, realizando a comunicação
por meio de objetos. A sabedoria verdadeira é ilimitada, não tem bloqueios, tudo é viável.
Como ser em condição de evolução está numa inconstância que prioriza uma busca
desenfreada, mas o que é real se constitui na necessidade de o homem se humanizar.
Somos personagem de um cenário do mundo e cena do teatro. Comanda um novo
pensamento: do sem-razão. O entendimento é uniforme. Aquele que não se enquadra nas
normas termina sendo traidor. Os meios de comunicação de massa conceberam o pensamento
homogêneo, a semelhança e vulgaridade no pensar.
É necessário entender as mensagens imediatamente, sem utilizar-se da racionalidade,
sem critérios, em dificuldade. A sociedade apresenta-se semiformada, semiculta, que afirma
ter conhecimento, porém desconhece que não tem conhecimento. Oneroso é os estímulos a
que não atendemos, que não deciframos ou interpretamos. Nos privamos da habilidade de
autodeterminação, de praticarmos a vivencia dos relacionamentos. Deteriora-se o fascínio
pelo outro, a individualização apresenta-se de forma significativa, insustentável. Nas palavras
de Thums:

Construímos relacionamentos de troca de mercadorias, de coisas, mas não de


experiências vitais. Perdemos, efetivamente, o horizonte teológico,
transcendental, orientador e humano. Perdemos a condição humana de nos
emocionar, de nos sensibilizar pela condição do outro. Somos bons
1127

conhecedores do preço de todos os produtos, mas não conhecemos o seu


valor (THUMS, 2003, Pág. 39).

Nos predispomos a relacionamentos que barganham objetos, mas não de práticas


Página

humanas essenciais. Arruinamos a condição humana de nos sensibilizarmos pela situação do

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outro. Nos especializamos nos preços de todos os itens disponíveis no comércio, porém
desconhecemos o seu valor.
No que os indivíduos pertencentes a esta época desconhece a reciprocidade humana e
age com individualismo, as relações sociais do professor são afetadas, tarefas familiares de
transmitir os valores sociais e educarem suas crianças, não são mais realizadas, delegando ao
professor mais esta responsabilidade. Em âmbito escolar, o professor é um mero cumpridor de
normas estabelecidas, apresenta-se para a sociedade como profissional desacreditado, seu
trabalho é posto em xeque, todos questionam, e a cada dia são impostas outras ações na busca
de melhorar a qualidade dessa educação, cujos atores são empoderados em direitos, de vozes,
falas, pensamentos, ideias, mas pobres em empatia, em respeito, em dignidade e em
integridade.
O sentimento de empatia está relacionado ato de espelhar sentimentos que os outros
possam vir a ter, sendo influenciada pelo que se pensa do outro, diferentemente da compaixão
que se refere a sentir e agir de forma amável para com o outro. Dessa forma, o sujeito pode ter
compaixão e não sentir empatia pode ter empatia sem compaixão.
Os educandos incorporam concepções do novo homem moderno e refletem isso na
escola, admitindo em suas ações atitudes empáticas ou não, ou ainda quando apresentam
medo de pensar em profundidade, distancia-se do que poderia nos levar a chegar em nossa
condição existencial.

Na verdade, diferentemente dos outros animais, que são apenas inacabados,


mas não são históricos, os homens se sabem inacabados. Têm a consciência
de sua inconclusão. Aí se encontram as raízes da educação mesma, como
manifestação exclusivamente humana. Isto é, na inconclusão dos homens e
na consciência que dela têm (FREIRE, 2005, p. 83-84).

O ser humano é um ser inconcluso, que fomenta e assimila concepções que se


manifestam dentro da sociedade. Cultiva-se um sentimento de inutilidade reflexo da enorme
quantia de informações divulgadas pelos meios de comunicação de massas, cujo conteúdo
fornecido a qualidade é o fator de menor relevância. Aqueles que selecionam, refazem e
elaboram o conteúdo são desprovidos de credibilidade, na verdade, a informação correta é
1128

modificada e a desconhecemos. A rapidez dos meios de comunicação de massa objetiva


produzir uma sequência errônea, fazendo-nos questionar de quase tudo, induzindo a
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população a ter uma única vertente como certa, na verdade, tais meios de comunicação como
os jornais, revistas, rádio, televisão e a internet conduzem suas informações pelo poder,
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controlando a comunicação via ideologias da classe dos poderosos, suas concepções são
tendenciosas e manipuladoras. Como bem expressa Thums:

O sentimento de inutilidade é resultante da quantidade absurda de


informações com que somos bombardeados diariamente, através dos MCM.
Além da quantidade exagerada de informações a que somos submetidos, o
elemento qualidade é de menor preocupação. Quem necessita
constantemente refazer, corrigir a informação prestada carece de
credibilidade, eis que a verdadeira informação nos deve possibilitar
conhecer. A velocidade dos MCM para nos manter informados produz uma
sucessão de erros gritantes que nos leva a duvidar de quase tudo que
ouvimos (THUMS, 2003, p. 41).

Os meios de comunicação de massa efetivam influência a população e questões com


parcialidade e imparcialidade nos conteúdos são mensagens divulgadas por esses meios, a
intenção apresentada a sociedade é divulgar a veracidade dos fatos, entretanto, a prática não
condiz com a mensagem anunciada. Na verdade, existe o fator latente em relação a interesses
que fomentam o capitalismo, individualismo, a presença em valorizar as coisas e deixar de
lado as relações pessoais.
A publicidade utilizada pelos meios de comunicação de massa impele o sentimento de
inutilidade. A noção de bem maior, de bem viver, são ideais de um grupo social que permeia a
ilusão.
O sentimento de inutilidade se configura pelo distanciamento do real para o ilusório. A
disseminação dessa imagem para a população tem uma grande função social, que é ignorada
porque circunda na consciência crítica. Dessa feita, não representa interesse da ideologia dos
detentores do poder dominante estimular, aprimorar ou instigar esta consciência, mas sim
arrolar a sociedade alienada, devido ao melhor encontro dessa com a ideologia do capital.
No exercício da prática docente, o modo de “racionalização”, no pensamento de
Weber, está voltado para as transformações sociais que a sociedade moderna veio a sofrer.
Tais alterações provocaram enormes impactos, como a paulatina construção do capitalismo e
o gigantesco aumento dos meios de urbanização, que passaram a ser a base da estruturação
das organizações antes tradicionais que determinavam até então. Weber visualiza o
pensamento racional, ou a racionalidade, na relação das instituições modernas voltadas para
1129

as ações do Estado, dos governos, com repercussões na cultura, sociedade, nos sujeitos
modernos.
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O âmbito da influência com caráter de dominação sobre as relações sociais e
os fenômenos culturais é muito maior do que parece à primeira vista. Por
exemplo, é a dominação que se exerce na escola que se reflete nas formas de
linguagem oral e escrita consideradas ortodoxas. Os dialetos que funcionam
como linguagem oficial das associações políticas autocéfalas, portanto, de
seus regentes, vieram a ser formas ortodoxas de linguagem oral e escrita e
levaram às separações nacionais (por exemplo, entre a Alemanha e a
Holanda). Mas a dominação exercida pelos pais e pela escola estende-se para
muito além da influência sobre aqueles bens culturais (aparentemente
apenas) formais até a formação do caráter dos jovens e com isso dos homens
(WEBER, 1997, p. 172).

A racionalização não apresenta objetivo valorativo a atuação a prática docente, as


mudanças ocorridas nesse seguimento ao que tange ao ensino não levaram, por enquanto, a
alterações significativas na essência do exercício docente, mas sim na escola, compondo
ações de trabalho fabril. O ambiente escolar têm se configurado em mudanças nos modos e
autonomia do professorado em relação a conceitos, no que são investidos ao corpo docente o
trabalho isolado e solitário, onde sua autonomia se ampara em preceitos de legitimidade
concernente a presumida “superioridade intelectual” com analogia aos educandos.
Diante disso, o professor ocupa-se em escolher metodologias, selecionar conteúdos e
exercícios mais coerentes a turma a qual é responsável. É uma autonomia indiscutível,
intrínseca a profissão, assinalando que os professores, podem confundir atitudes e deturpar o
controle almejado pelos especialistas da educação que estão no poder, seja em um município,
seja no estado ou mesmo em âmbito federal.
O trabalho fabril é desenvolvido com objetividade, no caso da docência, as ações não
são processadas da mesma forma, compondo um quadro com maior autonomia, nas atuações
do planejamento, das abordagens, dos conteúdos ministrados e ainda da metodologia
escolhida em cada realidade imposta.
Até os anos de 1960 ao professores vivenciaram dentro do ambiente escolar uma
relativa segurança material, no que tange a estabilidade empregatícia e de um certo prestígio
social. Ser professor significava ter status social e salário admissível. Com o passar do tempo,
essas vantagens foram diminuindo e, atualmente, a situação do professor demonstra
dificuldades, seus proventos são sempre questionáveis, precisando exercer sua profissão em
uma sala com um número cada vez maior de alunos e horas aula para poder conservar um
1130

padrão de vida coerente, pois, para que um professor seja capaz de ofertar uma boa instrução
para seus educandos, tem a necessidade de estar buscando formações continuadas.
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Tais mudanças vem sendo alteradas após a década de 1970, onde ocorreram a
ampliação da procura populacional por assistência social ocasionou o aumento do
funcionalismo e dos serviços públicos ofertados pelo governo, inclusive a educação. Nos dias
atuais as alterações sociais, as reformas educacionais e os padrões pedagógicos originários
das condições de trabalho dos professores produziram transformações na profissão docente.
Assim conclui-se que: “O sistema escolar transfere ao profissional a responsabilidade
de cobrir as lacunas existentes na instituição, a qual estabelece mecanismos rígidos e
redundantes de avaliação e contrata um efetivo insuficiente, entre outros” (GASPARINI,
2005, p. 191).
As atividades desenvolvidas pelo professor atualmente ultrapassou a apenas a
mediação do desenvolvimento do conhecimento do aluno, o que era normalmente aguardado.
Aumentou a missão do profissional que antes desenvolvia seu trabalho apenas em sala de
aula, garantindo uma articulação entre a escola e a comunidade. Agora, o professor deve
realizar o ensino, participar da gestão e o planejamento das ações que irão permear o trabalho
na escola, no que também se associa a isso o atendimento as famílias e comunidade local, a
qual a escola está inserida.

De acordo com o conceito de ação docente, a profissão de educador é uma


prática social. Como tantas outras, é uma forma de se intervir na realidade
social, no caso por meio da educação que ocorre não só, mas essencialmente,
nas instituições de ensino. Isso porque a atividade docente é ao mesmo
tempo prática e ação (PIMENTA e LIMA, 2008, p. 41).

Embora o êxito da educação advenha do tipo de profissional que estará ensinando, a


gestão escolar não viabiliza os meios pedagógicos essenciais à realização das atividades, que
são cada vez mais complicadas. Os professores são forçados a procurar meios pessoais,
modos de se capacitarem que refletem em aumento da jornada de trabalho, que possivelmente
não lhe trarão aumento algum em seus proventos.
O sistema escolar incumbi ao professor a obrigação de cobrir lacunas provenientes do
próprio sistema educacional, a qual determina instrumentos rígidos e prolixos de avaliação e
emprega poucos profissionais que venham a contribuir na formação adequada a clientela
1131

trabalhada.
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As circunstâncias a que são submetidos os professores provocam superesforço ou
hipersolicitação de suas atuações psifisiológicas, desencadeando sintomas clínicos que
esclarecem os altos índices associados ao afastamento do exercício de suas atividades.

II- Resultados e discussões

Esta pesquisa foi desenvolvida em uma escola pública na cidade de Mossoró, cidade
que pertence ao estado do Rio Grande do Norte, numa escola que atende crianças de periferia,
estudantes do Ensino Fundamental I, onde foi aplicado um questionário estruturado sobre a
temática em questão. Após esse momento produziu-se uns gráficos objetivando demonstrar os
resultados desta pesquisa.
A primeira pergunta foi: Quanto tempo de experiência em exercício da profissão de
professor?

As professoras entrevistadas em sua maioria exercia a profissão de professor a mais de


10 anos.
Segunda pergunta: Você considera que atualmente a autonomia do professor está
limitada?
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A porcentagem de professoras entrevistadas que acham boa a autonomia dada a esse
profissional foi pequena, ao contrário dos resultados voltados para a opinião de que precisa
melhorar, ou mesmo que esta é dada de forma limitada. Ao escutarem esta questão, as
professora que tinham mais tempo de trabalho em sala de aula mencionaram em suas
experiências no início da profissão de professor, que exerciam há anos atrás, onde
anteriormente havia uma maior autonomia de trabalho, e hoje isso vem a apresentar uma
diminuição qualitativa.
Terceira questão: Você se sente pressionada em seu trabalho?

1133

Os professores entrevistados mencionaram em sua maioria que se sentiam muito


pressionados, tanto pela gestão municipal quanto pela sociedade em si, onde vivenciavam
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todos os dias situações onde eram cobrados por fatores que ultrapassavam suas atuações, pois

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viam a necessidade de obterem mais apoio da família, em acompanhamento educacional,
quanto da própria gestão que não disponibilizavam recursos suficientes, mas realizavam suas
cobranças em termos de sucesso em desempenho das crianças assistidas na escola pesquisada,
que é de nível fundamental I.

Conclusão

A situação em nosso país quanto a profissão de professor está a cada dia mais difícil
de exercer. Existe um desinteresse da classe dominante de oportunizar aos menos favorecidos
a qualidade no ensino, os problemas ocasionados pelas transformações sociais vem a
contribuir nessa concepção. Ideologias são passadas abertamente e o desconhecimento e a
abertura para se questionar e realizar uma crítica construtiva é limitado.
O foco social está em pensamentos e ideais que contribuem para a continuidade do
capitalismo, as coisas vem a ser mais significativas do que as relações interpessoais. Os meios
de comunicação de massas vem a estimular e a determinar um pensamento único dentro da
sociedade, que não percebe o jogo de interesses.
A empatia é um exercício fundamental para a sociedade como um todo e este
sentimento deve ser instigado. O homem é um ser inacabado e precisa se ver como tal,
necessita aprender a visualizar esta importante concepção, para que venha a atuar com
dignidade, explorando o lado positivo da personalidade humana, deixando de lado o incentivo
ao individualismo e a hábitos que vem a menosprezar o sentimento do outro.
O professor precisa se ver como um ser motivado para que possa exercer com maestria
sua profissão. As relações na escola vem a desmotiva-lo a desencorajá-lo com tantas
atribuições, tirando sua autonomia, colocando pressão no exercício de sua atividade
profissional. E tais desestruturas são na verdade modos da classe dominante de tirar o foco do
professor no ato de ensinar, pois colocando mais atribuições, lhe dando pressão e compelindo
o professor a ter mais turnos de exercício de trabalho, para ter o mínimo de dignidade em sua
vida, são formas de exercer o ensino com menos qualidade. E esta é realmente a verdadeira
face do interesse dos poderosos.
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Referências
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PIMENTA, Selma Garrido e LIMA, Maria do Socorro Lucena. Estágio e docência. 3. ed.
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THUMS, Jorge. Ética na Educação: Filosofia e valores na Escola. Canoas: Ed. Ulbra, 2003.

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GT9 – SUJEITO E COTIDIANO

O ROMANCE E O FEMININO EM LENDO LOLITA EM TEERÃ, DE AZAR NAFISI

Maria Adriana Nogueira


Sebastião Francisco de Mesquita
Pâmela Rochelle Rochanne Dias de Oliveira
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN

Embora os estudos sobre as mulheres tenham sido retomados já algum tempo e se


constituído numa importante cátedra de estudos acadêmicos desde meados do século XX, o
crescimento da visibilidade destas no setor de produção cultural demanda novos estudos,
sobretudo quando se trata da mulher nas sociedades periféricas. Uma reinvindicação pouco
empreendida, como já notara a pensadora indiana Spivak (1995), no qual defende um
investimento mais vigoroso na multiplicidade e heterogeneidade das demandas femininas,
bem como nas próprias diferenças entre as mulheres de contextos e circunstâncias diversas.
Seguindo essa mesma esteira de pensamento em impulsionar a escrita feminina em
contextos diversos, elegemos para corpus de análise, a obra Lendo Lolita em Teerã (2009), da
escritora iraniana Azar Nafisi, tendo em vista que, além de exprimir um deslocamento
considerável na percepção das mulheres como produtoras culturais, também nos fazem refletir
acerca do feminino e as identidades culturais de gênero, evocadas pela compreensão que
agrega a visão ocidental do que é ser mulher num país totalitário como o Irã.
As reflexões, aqui empreendidas estão alicerçadas sob a égide da perspectiva teórica
literária Bakhtiniana (1990), no qual propõe compreender a literatura como um fenômeno
estético totalmente articulado com o contexto cultural. Dentro desse pensamento teórico
travamos um fecundo diálogo com os Estudos culturais, no qual abrangem tanto o
pensamento feminista quanto a teoria pós– colonial, cujas ideias rementem ao mesmo
princípio, de que toda produção humana se elabora a partir de múltiplas participações,
contribuindo dessa forma ao desnudamento e desconstrução de discursos e posturas
imperialistas e colonialistas, arraigados no imaginário de uma ideologia patriarcal.
Segundo Mikhail Bakhtin (1990), uma obra literária não pode ser vista ou analisada
1136

como algo fechado ou acabado, mas um imenso painel, no qual discursos dialogam em
constante interação. Deste modo, a literatura enquanto espaço de sua materialização nos
permite pensar o discurso literário como campo importante à compreensão de objeto artístico,
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espaço do pensar e espaço discursivo permeado pelos veios sócios ideológicos. (cf.
BAKHTIN, 1995).
Nessa perspectiva, segundo o teórico, o romance ocupa um lugar privilegiado em
termos de representação literária, de uma sociedade, de uma época, e de seus tipos sociais.
Palco das representações da sociedade e do mundo moderno, o romance é o gênero literário
sobre o qual o presente ensaio debruça para extrair e estabelecer uma configuração
representativa. O conceito de representação, portanto é norteador para o desenvolvimento de
toda a discussão, pois como afirma Bakhtin (1995), ao discutir a ideologia do signo, que as
representações não só refletem o contexto em que são construídas, mas também se desviam
dele, refratando-o. Esse duplo movimento de reflexão e refração da realidade é fundamental
para a compreensão das relações da mulher com o todo social em que vive e também com o
outro: a sociedade e o mundo.
Bakhtin também afirma que o romance é o gênero que melhor se presta a esse tipo de
análise, por representar vivamente o tempo e a sociedade em que se insere.

O romance tornou-se o principal personagem do drama da evolução literária


na era moderna precisamente porque, melhor que todos, é ele que expressa
as tendências evolutivas do novo mundo, ele é, por isso, o único gênero
nascido naquele mundo e em tudo semelhante a ele (BAKHTIN, 1990, p.
400).

Ainda, em complementação quanto ao romance como representação máxima em


termos literários, vale mencionar que sua principal característica é a temporalidade e o seu
entrelaçamento com a realidade, com a vida e com a ideologia. Haja vista que, ao se
preocupar com o presente, que é por si mesmo algo contínuo e inacabado, o romance desloca
a noção de tempo e espaço que perdem o caráter de acabados, ou seja, "a ossatura do romance
enquanto gênero ainda está longe de ser consolidada, e não podemos ainda prever todas as
suas possibilidades plásticas” (BAKHTIN, 1990, p. 397).
Gênero nascido e alimentado na era moderna, o romance ainda se encontra em fase de
constituição. O principal objeto romanesco, aquele que o caracteriza, que cria sua
originalidade, é o sujeito que fala e a sua palavra. O discurso desse sujeito não é somente
1137

reproduzido ou transferido, mas representado artisticamente. O discurso é, portanto, objeto de


representação e o sujeito que fala é sempre um ideólogo, porquanto representa sempre um
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ponto de vista particular sobre o mundo, aspirando a uma significação.

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O romance é o único gênero em evolução, por isso ele reflete mais
profundamente, mais substancialmente, mais sensivelmente e mais
rapidamente a evolução da própria realidade. Somente o que evolui pode
compreender a evolução. O romance tornou-se o principal personagem do
drama da evolução literária na era moderna precisamente porque, melhor que
todos, é ele que expressa as tendências evolutivas do novo mundo, ele é, por
isso, o único gênero nascido naquele mundo e em tudo semelhante a ele
(BAKHTIN, 1990, p. 400).

Nesse sentido, o romance não pode existir senão dentro de um quadro social e,
portanto, dentro de um processo ideológico mais amplo em que ele pode definir-se, nascer e
desempenhar funções. Pois, “a experiência, o conhecimento e a prática (o futuro) ” definem o
romance (BAKHTIN, 1990, p. 407).
Compreendendo que o gênero romanesco contempla representações que trazem à tona
questões de seu tempo, tanto estéticas quanto políticas, entendemos que o objeto eleito - o
romance da escritora iraniana Azar Nafisi, no qual, autora e personagens dialogam através das
mesmas medidas axiológicas e temporais, ajuda-nos a discutir não apenas o feminino, mas as
identidades culturais de gênero evocadas pela compreensão que agrega a visão ocidental do
que é ser mulher num país totalitário como o Irã.
Propor então, um corpus voltado para a análise da produção de mulheres é uma
escolha que requer uma justificativa efetivamente mais contundente do que enfatizar o
aspecto biológico – já que esta noção é que tem sustentado os discursos de desigualdade de
gênero. A produção cultural das mulheres precisa ser analisada com o cuidado de evitar
recair na pergunta obsessiva de como identificar a singularidade da identidade feminina na
superfície de seus textos. Concepção que deriva, na maioria das vezes, da compreensão
limitada de diferença fundada na biologia, que fragiliza todo o esforço empreendido em se
romper com a visão determinista das desigualdades de gênero construídas nos campos político
e simbólico da sociedade.
A ideia de “especificidade feminina” foi uma corrente estabelecida pelos estudos
feministas radicais dos anos 70, que, após a solidificação dos estudos de gênero na década de
60, tentavam afirmar-se numa postura de antagonismo cultural (ZOLIN, 2003). Sem dúvida,
um movimento importante de seu tempo, que possibilitou, o resgate e a visibilidade das obras
1138

produzidas por mulheres. Como descreve Joan Scott (1992):

[...] em algum momento entre a metade e o final da década de 70, a história


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das mulheres [...] ampliou seu campo de questionamentos, documentando


todos os aspectos políticos da vida das mulheres no passado, e dessa forma

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adquiriu uma energia própria. O acúmulo de monografias e artigos, o
surgimento de controvérsias internas e o avanço de diálogos interpretativos,
e ainda, a emergência de autoridades intelectuais reconhecidas foram os
indicadores familiares de um novo campo de estudo (SCOTT, 1992, p. 64).

Ao tratar da representação das mulheres, a presente proposta atenta para as questões de


representações de gênero na perspectiva de identidades constituídas num cenário de poder e
desigualdades, mas também de resistências. Visto que, como observa Bakhtin (1987) ao
discutir a poética de Rabelais, que toda e qualquer obra que se recusa a acomodar-se às regras
ou cânone imposto pela literatura oficial manifesta certa espécie de resistência simbólica.
Deste modo, o trabalho não corrobora com a ideia de que, por ser mulher, sua
produção seja divergente da hegemônica masculina, e tampouco defende uma produção
tipicamente feminina, mas, considera que ele agrega contribuições para a reflexão acerca de
como o gênero vem sendo refletido pela lógica da História oficial. E de como estas
representações proporcionam leituras de seu deslocamento, passando a reconhecer um sujeito
mulher na produção cultural. Não podemos, no entanto, prejulgar que os textos das mulheres
na produção cultural desconstruam a ideia de mulher objetivada pelos estereótipos, mas, a
partir do momento que elas saem do círculo privado, ao qual por tanto tempo estiveram
subordinadas, passando a se inserirem na produção cultural, essa relação de dominação deixa
de ser absoluta, pois suas vozes passam a serem ouvidas.
Nesta perspectiva, a escritora indiana Gayatri Spivak (2010) discute a condição da
mulher como sujeito da subalternidade e afirma que “se, no contexto de produção colonial, o
sujeito subalterno não tem história e não pode falar, o sujeito subalterno feminino está ainda
mais profundamente na obscuridade.” (SPIVAK, 2010, p. 67). Dessa forma, a pesquisadora
destaca que tal reflexão sobre a mulher não pode ser reduzida a uma mera questão idealista,
uma vez que ignorar o debate acerca da mulher subalterna seria um gesto apolítico que tem se
perpetuado ao longo da história.
Atuando como produtora no campo da cultura, Nafisi não só amplia a representação da
mulher islâmica, como também rompe com elementos normativos e passa a dialogar com o
território hegemônico. Esse deslocamento não só denuncia como também negocia a sua
alteridade. Ao elaborar seu romance, a autora mergulha suas personagens na realidade do
1139

mundo e de si mesmas, ou seja, sua ficção não é apenas um jogo de linguagem, mas um
exercício de sobrevivência, um deparar-se com o mundo, um aprender com o mundo. (cf.
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BAKHTIN, 1987).

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Teoricamente à luz dos textos Bakhtinianos, o mundo real transborda do texto e da
linguagem em toda a sua complexidade através de personagens que empreendem a
experiência dos encontros e desencontros na busca por sua própria identidade. Diante disso, a
escritora, ao expor sua identidade, tendo em vista que se trata de um romance autobiográfico,
confronta com a imagem estereotipada de mulher submissa, reclusa, associada apenas ao
domínio privado. E, passa a disputar no campo simbólico da literatura uma pluralidade na
representação feminina. Ampliando assim representações e autorrepresentações.
Segundo a crítica pós-colonialista, Ania Loomba (1998), o campo simbólico da
literatura confere não apenas a capacidade de representar aspectos de outras culturas, criar
novos gêneros e identidades, mas também uma ferramenta importante de inversão a
representações tolhidas e dominantes. Dentro desse pensamento, conforme ilustra Eloína Prati
dos Santos (2010), a literatura pós-colonial, possibilita não apenas questionar certos
paradigmas tradicionais a mulher, como amplia essa nova escrita feminina plural e
multifacetada, que contraria o modelo convencional fornecido pela literatura canônica.
Em concordância a esse pensamento, o romance autobiográfico, Lendo Lolita em
Teerã (2009), torna-se um espaço privilegiado para a mediação desta reflexão, não apenas
pelo caráter de depoimento, que vai além do ficcional, mas por dar voz e corporeidade a essas
identidades descentradas, constituídas a partir de uma ideia de sujeito universal que as
inviabilizava.
Nessa perspectiva, encontramos no desafio de escrever aquilo que Friedman (2004),
nomeia de “uma poética do deslocamento”, no qual ressoa refletir a voz de sujeitos e grupos
marginalizados que passaram a ser autores e autoras de suas próprias narrativas, antes objetos
das narrativas hegemônicas, e que atualmente alçam “meios de falarem por si próprios pela
primeira vez” (HALL 1997, p. 187). De maneira semelhante, como observa Nelly Richard são
“cada vez em maior número os textos feministas que procuram novas formas de escritura,
capazes de cruzar diferentes registros discursivos (2002, p. 166).
Em outras palavras, a mulher passa a produzir o discurso ao invés de ser simplesmente
produto do mesmo, evitando assim representações essencialistas e reducionistas. Antes
relegadas somente às margens, suas narrativas desestabilizam os discursos hegemônicos e
1140

descentram o centro, criando novos espaços discursivos.


Contudo, não podemos esquecer que essa nova escrita acontece dentro de um contexto
literário - espaço da subjetividade e não na busca da verdade. Mas, também não se pode negar
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que essas novas narrativas, compreendida aqui, como uma periferia que começa a ser inserida

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e a ser debatida dentro de um universo cultural que antes a isolava, abre uma fissura na
tessitura das produções literárias contemporâneas, ao introduzir discussões, antes silenciadas
ou regadas somente às margens.
Entretanto, apesar de todas as conquistas alçadas, ainda persiste estereótipos que
distorcem e despluralizam o universo feminino. Portanto, o presente estudo se valia da
necessidade de desnudar possíveis estereótipos que envolvem esse universo, especialmente de
nações etnicizadas, como é o caso da cultura islâmica, no qual pertence à escritora eleita para
este estudo.
Imbuído pelo pensamento descolonizado, no qual impõem a rejeição de todo e
qualquer discurso essencialista, o presente ensaio, encontra-se no desafio de discutir não
apenas a questão do essencialismo do gênero, mas, sobretudo o essencialismo cultural, uma
proposta defendida pelo feminismo multicultural/transnacional. Ao reunir multiculturalismo e
feminino, nosso corpus de análise, delineia questões referentes às diferenças culturais entre
mulheres. Não no sentido do altruísmo de que somos todos diferentes, mas, propor uma
discussão de um tipo de feminino subterrâneo, não reconhecido, e que ainda permanece
marginal ao cânone feminista. O reconhecimento de histórias invisíveis é crucial para articular
um feminino multifacetado em detrimento de um feminino unilateral.
Nessa perspectiva, visando analisar a escrita de mulheres que se autorrepresentam,
encontramos na narrativa autobiográfica, Lendo Lolita em Teerã (2009), um objeto profícuo
de análise, pois além de marcar a inscrição pública do nome de uma mulher na produção
cultural, publiciza diversas questões históricas e culturais a respeito do que é ser mulher na
cultura islâmica contemporânea.
Imbuída dos atributos de narradora e protagonista, Nafisi nos conta a partir de sua
obra, a história de sete mulheres que se reúnem secretamente toda quinta-feira em sua casa
para explorar e discutir obras literárias ocidentais, tais como Orgulho e Preconceitos,
Madame Bovary e Lolita – todas proibidas em seu país. Ao narrar sua experiência, enquanto
professora em um país totalitarista, onde a religião intervém de forma direta no estado,
regulando comportamentos e valores, sobretudo no comportamento feminino que vai desde ao
uso do véu à impossibilidade de circular desacompanhada em certos espaços públicos, a
1141

autora nos conduz a uma diversidade de mulheres e modos de viver o feminino em contextos
de opressão.
A narrativa relata histórias de várias mulheres iranianas, que ao se reunir juntamente
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com a professora Nafisi em sua casa, espaço delimitado pelas paredes e pela cumplicidade das

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presentes, onde passa a ser um momento de experiência e resistência diante das limitações
imposta por um estado que se funde à religião modos de amar e viver, buscando resistir e
encontrar alternativas ao assujeitamento imposto ao seu gênero.
Longe do poder institucionalizado, a professora e suas alunas despiam-se de suas
burcas e vestiam calças jeans, camisetas, maquiavam-se e riam à vontade, esquecendo-se das
imposições políticas e sociais de seu país. Algumas eram de famílias conservadoras e
religiosas, outras eram progressistas e seculares. Entretanto, como observa a autora da obra,
independentemente das suas origens, das suas crenças e da sua formação, se originavam do
confisco pelo regime dos seus momentos mais íntimos e das suas aspirações privadas
(NAFISI, 2006).
Numa escrita em primeira pessoa, a escritora nos transporta por meio de sua ficção a
um delimitado tempo da sua vida, entre 1979 a 1997. Período este, no qual vive a tensão do
novo regime dos Aiatolás, o que marcou seus primeiros dias, enquanto professora, com rituais
que regulavam o que devia vestir e falar. Aquilo, que era seu maior prazer, o ato de lecionar,
transforma-se em algo sombrio e ameaçador, pois, “lecionar na república islâmica como
qualquer outra vocação, significava servilismo à política e submissão a regras arbitrárias”.
(NAFISI, 2009, P.21).
Nessa atmosfera de pressão e terror, no qual “as moças eram punidas por subirem as
escadas correndo quando estavam atrasadas para a aula, por rirem nos corredores, por
conversarem com alguém do sexo oposto”. (NAFISI, 2009, p. 20) leva a professora, demitir-
se da universidade. E, é partir desse episódio de sua vida, que decide presentear-se com a
realização de outro sonho, “criar uma turma especial”, um espaço que a possibilitasse exercer
a liberdade que lhe era negada nas salas de aula quando lecionava na república islâmica. (P.
21).
Nafisi, apropriando-se das palavras de Humbert, o poeta criminoso de Lolita, nos
convida enquanto leitores, a tentar visualizar esse momento em que passara em sua vida,
como todas as mulheres de seu país.

[...] preciso que você, leitor, nos imagine, pois que não existimos se você não
existir. Contra a tirania do tempo e da política, nos visualize de um jeito que
1142

nem nós mesmas ousaríamos: nos imagine em nossos momentos privados e


secretos, naquilo que é mais comum em nossas vidas ouvindo música, nos
apaixonando, [...] ou lendo Lolita em Teerã. E então nos imagine com tudo
isso confiscado, arrancado de nós (NAFISI, 2009, p.16).
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Sob o sentimento e sensação de exílio em seu próprio país, e diante de uma realidade
que se tornava tão insuportável, e tão árida, a professora escolhe sete das suas mais talentosas
e dedicadas alunas, e as convida para conversar sobre literatura em sua casa pela manhã.
Todas eram mulheres, pois “formar uma turma mista na privacidade de minha casa era muito
arriscado, mesmo que estivéssemos discutindo uma inocente obra de ficção”. (p.13).
A professora afirma que escolhera Lolita, de Nabokov, como a obra de ficção que
mais refletiu a história de vida na República Islâmica do Irã. De acordo com Nafisi, “Lolita
não era uma crítica a república islâmica, mas ia contra todo resquício de todas as perspectivas
totalitárias” (NAFISI, 2009, p. 61). Assim como o vilão vivencia o poder de destruir
completamente os sonhos e a vida de outra pessoa, de tal modo representava o regime político
e religioso do Irã, que, não apenas sequestrava o passado, mas destruía o presente e toda uma
perspectiva de futuro.
Entre a ficção e a realidade, a escritora nos conta a partir do referente de sua vida
privada, num cenário vedado em véus e pela cortina de um regime totalitarista, uma
pluralidade de intimidade feminina, nos quais cada personagem soma-se um ponto na trama a
ser revelada.
O que queremos dizer com isso é que as personagens ocupam uma dimensão ativa no
curso da narração. Segundo o princípio Bakhtiniano em relação à obra de Dostoiévski, as
personagens não são um objeto mudo do discurso. Evidentemente que essa posição autônoma
não se constitui em sua plenitude, porque além de toda liberdade parecer ser falha, o ponto de
vista do autor participa diretamente no processo de enforme da persona. Logo, se antes
afirmávamos que a constituição de autoconsciência das personagens se dá num ritmo
dialógico, esse ritmo pode ser do ponto de vista das personagens com outra no interior da
narrativa, de uma personagem consigo própria ou de uma personagem com seu criador.
Assim, todos mantém uma relação assemelhada à função de copartícipes no plano de
elaboração da conjuntura da trama.
Nessa composição, além de Nafisi, testemunha ocular que observa e participa da
trama, temos as personagens: Manna, nomeada como poeta, uma vez que “fazia poesia com
aquilo que a maioria das pessoas deixa de lado” (NAFISI, 2009, p.14). Esta destaca-se por sua
1143

timidez e recato. Paralelo a esse testemunho, temos Mahshid, cujos traços fisiológicos
delicados trazem em si as marcas de sua delicadeza e sensibilidade “possuía um ar refinado
que nos fazia chamá-la de my lade” (NAFISI, 2009 p. 14). Aparentemente a personagem
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apresentava fragilidade para aqueles que não a conheciam, porém, “aí daqueles que a
ofendesse” (NAFISI, 2009, p. 14).
Em contraste com as personagens Manna e Mahshid – que mantinham uma postura
mais conservadora - temos Azin, a qual se sobressaia por suas características de mulher
moderna, ousada e que luta acima de tudo pela sua emancipação sexual, apelidada de a
“selvagem”. Casada já três vezes, desafia o estado ao romper por meio do divórcio, o contrato
familiar - propondo um novo propósito de vida, a dissidência - o não casamento e os novos
espaços de escolhas.
Em uma de suas confidencias desinibidas, declara “acho que uma mulher adúltera é
muito melhor que uma mulher hipócrita, [...] como mulheres, temos os mesmos direito que os
homens de gostar de sexo” (NAFISI, 2009, p. 70-71).
Mediante a fala da personagem, identificamos que a ideia de uma sexualidade
reprimida é substituída por um discurso latente, o que nos remete ao filósofo Michel Foucault
(1988), em sua História da Sexualidade, no qual, debatendo questões referentes à sexualidade
em nossa cultura, contraria a ideia de que nós vivemos uma época de repressão sexual, em vez
disso, atesta que quanto mais se tenta esconder o sexo, ocultar, reprimir através de uma
política do silêncio, mais aumenta os anseios dos indivíduos por tal assunto, culminando com
uma proliferação de discursos clandestinos, nos quais este ganharia o tom confessional, nos
divãs, confessionários e na literatura autobiográfica.
Dessa forma, podemos inferir que o sexo não é apenas questionado, perseguido, mas
acima de tudo buscado e confessado. Nessa perspectiva, é oportuno considerar que “o sexo
tornou-se de fato o ponto principal de um confessionário moderno” (GIDDENS, 1993, p. 29).
Nessa dinâmica da confissão, temos a personagem mais nova, Yassi. Mulher corajosa,
liberal e contestadora aos diversos cerceamentos impostos ao seu gênero, personalidade a qual
contrasta com a da sua família que mantem valores mais tradicionais e conservadores.
Possuidora de uma voz questionadora, a personagem rompe com velhos paradigmas
destinados à mulher iraniana, como o destino de esposa, escolhendo o não casamento, ao
declarar que jamais se casaria, contrariando a ideia de mulher submissa e à sombra do homem
sempre confinada ao lar.
1144

Além de uma atitude de resistência, percebemos também a possibilidade de uma nova


identidade, assumida por meio da renúncia de um propósito de vida destinado à mulher no
território do Irã. A personagem, deste modo assume uma subjetividade descentrada e
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deslocada.

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Incorporando essa nova identidade, a personagem dialoga com o que disserta Hall
(2002), que ao apropriar-se da perspectiva epistemológica da genealogia de Foucault,
compreende que a identidade não é universal, nem fixa, mas um processo de transformações
históricas, marcado por continuidades e descontinuidades. Hall argumenta que a identidade
não é algo que já exista e que possa transcender lugar, tempo e história, mas um elemento que
passa por constante transformação, sujeita, portanto a história, a cultura e ao poder.
Além das personagens citadas, também temos Mitra, a mais calma de todas, no qual
pode ser definida pelo seu sentimento de liberdade, a qual exalava toda vez que entrava
naquele mundo que criaram, onde podiam falar dos seus sentimentos, das alegrias, das
dificuldades: “expúnhamos os acontecimentos de nossa vida em nossas próprias palavras, e
nos vemos em nossa própria imagem”, externa ela (NAFISI, 2009, p.77). A cada aula, a
personagem se sentia deixando gradualmente a realidade para trás, para poder finalmente
regressar vigorada e pronta para confrontar novamente aquela realidade repressora, que se
tornava a cada dia mais hostil e árida.
Ao lado de Mitra, temos Sanaz, que pressionada pela família e a sociedade vacilava
entre o “desejo de liberdade e a necessidade de aprovação”. (NAFISI, 2009, p. 15). Apesar de
todo o seu medo e ansiedade diante de uma vida dominada por um estado e família que
tentavam impor modos de viver, buscava por meio da fresta daquela sala “seu casulo
protetor”, uma possibilidade de exercer sua liberdade que lhe era negada, no qual a fazia
sentir tão emudecida. “nossa vivencia ali aquela sala era sagrada e nosso universo
autossuficiente” (NAFISI, 2009, p. 16). Ao entrar naquela sala, Sanaz e todas essas meninas,
assim como chamava Nafisi a suas alunas, tiravam mais do que seus véus e túnicas, mas
gradualmente cada uma delas ia ganhando contorno e forma, tornando-se singular, embora o
governo que as regia tentasse tornar irrelevantes suas identidades e histórias pessoais.
Há também nossa última personagem, chamada Nassrin, intitulada por Nafisi de gato
Chaeshiere, uma vez que vivia surgindo e desaparecendo. Entre todas as meninas, talvez seja
a mais surpreendente, pois, apesar de toda uma experiência de vítima, que vem desde os seus
treze anos, no qual fora molestada pelo tio, a qual não contara a ninguém, com exceção para a
professora em confidência. E, ainda por um regime de natureza arbitrária e totalitarista, que
1145

havia se instalado em seu país, no qual a colocava como vítimas pela segunda vez, não
mostrava submissa, mas uma mulher atuante e desafiadora, tendo em vista que se encontrava
entre as poucas mulheres de sua sociedade que trabalha fora e se sustenta sozinha.
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A cada história revelada por meio do testemunho pessoal percebemos que seu aparente
silêncio esconde, na verdade, uma proliferação de imagens e discursos clandestinos que
operam em processos de resistência e fortalecimento das suas subjetividades. A cada aula
secreta, essas mulheres aproveitam para compartilhar seus medos, seus dramas pessoais e
talentos, e, sobretudo sua sobrevivência e resistência ao regime do islamismo. Assim, o
momento destinado a explorar as obras literárias é a deixa para as confissões, revelações e
aconselhamentos que conduzem a uma troca de estratégias e fortalecimento coletivo entre
essas mulheres.
Diante disso, observamos que o universo feminino islâmico é plural e complexo à
medida que as mulheres passam a serem vistas como indivíduos “com biografia, corpo e
história” (RICHARD, 2000, p. 48). Compreendendo assim suas diferenças e singularidades ao
reconhecer em seus textos – aqui entendidos como produtos literários e culturais.
Ao escrever sua obra, Nafisi elabora, portanto, a combinação de oito vozes
plenivalentes e imiscíveis, mas em constante interação, uma vez que as consciências das
protagonistas travam relações dialógicas a todo instante, interpondo-se e contrapondo-se,
tanto nos diálogos quanto nos monólogos interiores. A narração é assumida ora por uma ora
por outra protagonista.
De acordo com Bakhtin, no romance polivalente, no qual “pressupõe uma
multiplicidade de vozes plenivalentes nos limites de uma obra” cada personagem funciona
como um ser autônomo, exprimindo sua própria mundividência, o que significa que as
personagens e suas respectivas vozes não estão a serviço de uma única ideologia ou visão
dominante (BAKHTIN, 2005, p. 35).
Ao analisar as personagens e, conseguintemente suas vozes a qual interagem na obra,
colocamos diante do dialogismo, ou seja, “[...] da consciência da diversidade das linguagens
do mundo e da sociedade que orquestram [...] o romance”. (BAKHTIN, 1990, p. 134). Trata-
se, pois, de um processo de composição que em muito se assemelha ao observado por Bakhtin
em Dostoievski, quando o teórico russo desenvolve suas teses em torno das personagens
dostoievskianas em seu Problemas da poética de Dostoievski.
Assim, como os sujeitos Dostoievskianos, os sujeitos ficcionais Nafisianos são
1146

construídos enquanto ponto de vista, concepção de mundo e de si próprio. Em termos


bakhtinianos, isso quer dizer que, a imagem de tais sujeitos não é dada como um projeto
acabado, fechado, determinado, resultado definitivo, mas na imagem em projeção de si e da
Página

relação que estes sujeitos constroem com seus mundos, ou seja, o que as define são os traços

ISBN: 978-85-7621-221-8
valorativos do real, sendo que tais traços são traços engendrados na própria autoconsciência
das personagens.
Essa representação do real que constitui a prosa romanesca nos apresenta um mundo
de verdades relativas, de indivíduos inacabados e múltiplos e, portanto, em conflito. Autora e
personagens colocam-se no mesmo plano, de forma que a voz da autora dialoga com as
personagens, enriquecendo, por sua vez o texto literário com dados da realidade.

Um dos principais temas interiores do romance é justamente o tema da


inadequação de um personagem ao seu destino e à sua situação (...). A
mesma zona de contato com o presente inacabado e, por conseguinte, com o
futuro, cria a necessidade de tal não coincidência do homem consigo mesmo.
Nele sempre permanecem as virtualidades irrealizadas e as exigências não
satisfeitas (BAKHTIN, 1990, p. 425).

Nessa perspectiva, essas “meninas” constroem a imagem da “mulher para ela-mesma”,


de “mulher para si”, segundo a definição de Touraine (2007). Imbuídas do direito de falar,
essas personagens-femininas, ao narrarem a si próprias, compõem representações plurais e
multifacetadas, ou seja, além de possuir natureza polifônica é dialógica. Essa diversidade
constitutiva do gênero romanesco é um dado a que convêm estar atento para reconhecer o
romance como gênero que baseia suas representações na diversidade. (BAKHTIN, 1990).
Ao contemplar uma multiplicidade de vozes femininas, uma gama de histórias que
contam a multiplicidade de experiências e perspectivas que as mulheres islâmicas vivenciam,
o presente ensaio abre frestas para que enxerguemos além da história única e passamos a
entender a pluralidade dessas mulheres como sujeitos atuantes de sua história, e que só
passamos a perceber quando deixamos essa visão cristalizada que tem configurado como mito
de mulher muda, silenciosa, quieta, e passiva. No entanto, sabemos que não existe essa
mulher muda e silenciosa, mas uma história que não foi ouvida e contada.

Referências

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GT10 – TRABALHO, QUESTÃO SOCIAL, DIREITOS SOCIAIS E POLÍTICAS
PÚBLICAS

CONCEPÇÃO E REFLEXÃO SOBRE A EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS -


EJA NO IFRN (CAMPUS MOSSORÓ) NA PERSPECTIVA DOS DIREITOS SOCIAIS

Magnólia Maria da Rocha Melo (IFRN, Campus Mossoró)


João Paulo de Oliveira (IFRN, Campus Mossoró)
Ana Cristina Almeida de Oliveira (IFRN, Campus Mossoró)

Introdução

Os direitos de ordem social são postos à sociedade por meio de políticas sociais e se
referem a ações que determinam o padrão de proteção social implementado pelo Estado,
voltadas, em princípio, para a redistribuição dos benefícios sociais, visando à diminuição
limitada das desigualdades estruturais produzidas pelo desenvolvimento socioeconômico
(HOLFING, 2001).
Assim, as políticas sociais e a formatação dos diversos padrões de proteção social
são respostas e formas de enfrentamento às expressões da questão social no capitalismo,
cujo fundamento se encontra nas relações de exploração do capital sobre o trabalho. As
políticas sociais são formatadas dentro de um determinado contexto histórico, trazendo em si
orientações da forma de organização da sociedade.
Assim, a concepção neoliberal de sociedade e de Estado que se inscreve na – e
retoma a – tradição do liberalismo clássico dos séculos XVIII e XIX traz determinantes para
o padrão de proteção social, que se gesta por meio das políticas sociais.
É nesse contexto que situamos a política de educação (que, no trabalho em tela, terá
como recorte aquela voltada para a Educação de Jovens e Adultos –EJA) na perspectiva de
um direito social que vivenciou ao longo da história a marca das desigualdades sociais. Isso
perpassa o pertencimento desse coletivo a uma classe social, como bem destaca Rummert
(2007 apud STOCO 2010, p. 07):

As carências dos jovens e adultos marginalizados dos processos educativos


1149

formais se acumulam e se desvelam num mesmo momento: esse retorno à


escola na condição de estudantes trabalhadores para conquistar o seu direito
à educação, negado pelo sistema escolar e pela conjuntura socioeconômica,
Página

não garante a permanência e a conclusão das etapas formais da educação. É,

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pois, urgente desfraldar essa realidade e refletir sobre as maneiras de sua
superação.

A não visibilidade desse coletivo teve como consequência uma tardia inclusão da EJA
na educação profissional, que se deu somente em 2006, com a criação, por meio do Decreto
nº. 5.478, de 24 de junho de 2005, do Programa de Integração da Educação Profissional ao
Ensino Médio180 na modalidade Educação de Jovens e Adultos – PROEJA. Esse programa
tem como objetivo ofertar uma “educação pública, gratuita, igualitária universal e de
qualidade, aos jovens e adultos que foram excluídos do sistema educacional ou a ele não
tiveram acesso nas faixas etárias denominadas regulares [...] (BRASIL,2007, p.33). É no
contexto acima balizado que situamos o objetivo do presente artigo, que é refletir como se
processa o PROEJA no IFRN Campus Mossoró na perspectiva dos direitos sociais.
Como percurso metodológico, foi adotada as pesquisas bibliográfica, documental e de
campo. Nesse estágio da pesquisa utilizamos uma entrevista semiestruturada (devidamente
gravadas e posteriormente analisadas). Esta foi aplicada com gestores, professores e técnicos
administrativos do IFRN Campus Mossoró181.

A percepção dos docentes, técnico administrativos e gestores sobre o PROEJA no


campus Mossoró

A expansão da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica no


Rio Grande do Norte teve início em 1994, com a inauguração da Unidade de Ensino
Descentralizada de Mossoró (ETFRN), atual IFRN. Hoje, o IFRN Campus Mossoró conta
com cursos na modalidade ensino médio integrado e subsequente, e nos níveis de graduação,
pós-graduação (lato sensu). Na modalidade de ensino médio integrado, situamos o PROEJA,
que teve sua primeira turma em 2006. O Curso Técnico de Nível Médio Integrado em
Edificações na modalidade EJA, ofertado no Campus Mossoró (no turno noturno), tem como
objetivo:

formar técnicos de nível médio para atuarem nos diferentes processos de


trabalho relacionados ao eixo tecnológico e ao campo específico da
1150

180
A finalidade da formação integral é a superação da dualidade histórica presente na educação brasileira entre
teoria e prática e cultura geral versus cultura técnica. Essa dualidade não é fruto do acaso, mas sim da
separação entre a educação proporcionada aos filhos das classes média-alta e alta e aquela permitida aos filhos
Página

dos trabalhadores (BRASIL, 2007, p.26).


181
A pesquisa aqui apresentada é fruto de um trabalho desenvolvido em 2015-2016.

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habilitação técnica profissional reconhecida pelos órgãos oficiais e
profissionais. Constitui-se em um complexo desafio, à medida que busca
integrar formação básica com formação profissional, orientando-se pelos
princípios políticos e pedagógicos da EJA.

É pertinente salientar que o PROEJA busca incluir indivíduos na perspectiva social e


emancipatória, que, na faixa etária regular indicada na legislação brasileira, não puderam por
motivos diversos ingressar ou concluir a educação básica (IFRN-PPP, 2012).
É em meio a esse contexto, que buscamos por meio da aplicação de uma entrevista
semiestruturada composta por cinco questões que tiveram como objetivo conhecer a
percepção que os servidores do IFRN Campus Mossoró têm sobre o PROEJA. Abaixo
elencamos as questões com as respectivas respostas dos entrevistados. A primeira pergunta
foi elaborada para verificar o grau de compreensão dos entrevistados sobre os objetivos do
PROEJA.

Os objetivos do PROEJA, é... O PROEJA, foi criado, inicialmente, em


2005, e as primeiras turmas começaram a funcionar em 2006. O PROEJA é
um programa do governo federal que integra a educação profissional ao
ensino médio, é um curso integrado. O curso é educação profissional
integrada ao ensino médio na modalidade EJA. E qual é o objetivo principal?
O objetivo principal é... O curso é destinado para aquelas pessoas, para
aqueles alunos que não puderam ou não tiveram a oportunidade de
frequentarem a escola na idade certa, vamos dizer assim, na idade correta,
né? Então, é para aqueles alunos que estão fora de faixa, no caso para os
alunos que tem mais de 18 anos. O PROEJA só pode ser frequentado para
alunos que tenham, no mínimo, 18 anos completos. Então, aqueles alunos
que não tiveram oportunidade de frequentarem a escola na relação idade-
série adequada (TECNICO ADMINISTRATIVO).
Talvez não na sua plenitude, mas de uma maneira geral a gente conhece os
objetivos do PROEJA. O principal é a questão da inclusão pra aquelas
pessoas fora de faixa convencional de ensino. De uma maneira geral, esse
programa tem até, dentro dos institutos federais, uma abrangência bastante
significativa, né? Existe um percentual legal onde os institutos são obrigados
a ofertar pelo menos 10% de suas vagas nessa modalidade (GESTOR).
Bem, eu não posso dizer que sou um grande conhecedor, que conheço a
fundo. Eu já trabalhei com o EJA em escolas do município e do estado e
também há algum tempo trabalhei com uma turma aqui no IF e agora tô
voltando a trabalhar novamente com essa turma. Então, assim, eu perdi...
Passei um bom tempo sem contato com os alunos, com o programa em si.
Então, assim, eu não posso dizer que seja um profundo conhecedor do
1151

assunto (PROFESSOR).

As falas dos entrevistados evidenciam um conhecimento restrito sobre os objetivos do


Página

Programa. Mesmo assim, caminham para uma percepção de inclusão e direito, como é

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apregoado no Documento Base, que diz ser um dos objetivos do PROEJA, proporcionar o
acesso de forma

igualitária e universal, aos jovens e adultos que foram excluídos do sistema


educacional ou a ele não tiveram acesso nas faixas etárias denominadas
regulares, sendo esse o objetivo central desse documento base – uma política
educacional para proporcionar o acesso do público de EJA ao ensino médio
integrado à educação profissional técnica de nível médio. (BRASIL, 2007,
p.33).

Vale ratificar que mesmo sob o ponto de vista da inclusão, é salutar destacar que a
conquista de direitos políticos ou sociais foram progressivamente impostos aos regimes
liberais e à classe burguesa pela luta dos trabalhadores. A garantia de um percentual mínimo
(10%) de ofertas de vagas da instituição para o público da EJA estabelecido pelo decreto
5.840/2006 demostra uma dualidade entre a inclusão/exclusão. Foram necessárias lutas árduas
para a conquista desse quantitativo mínimo, contudo, passados dez anos da inserção do
PROEJA nos institutos federais, o número de campi no IFRN que ofertam vagas para a EJA
se resume a Mossoró com o curso de Edificações, Ipanguaçu com o curso de Agroecologia,
Natal Zona-Norte com o curso de Comércio e Santa Cruz com o curso de Manutenção e
suporte em Informática. Esse dado chama atenção principalmente quando observamos que o
IFRN atualmente é composto por 21 campi. Nesse sentido, podemos perceber que houve um
retrocesso na continuidade da implementação desse programa o que destoa drasticamente com
o discurso e a luta pela efetiva inclusão social e educacional.
Ainda nessa perspectiva, apresentamos aos participante da pesquisa182 a segunda
questão: o(a) senhor(a) acredita que o programa PROEJA contribui para a inclusão social dos
alunos?

Com certeza, sem dúvida nenhuma. Nós temos exemplos aqui no campus
Mossoró de alunos e de alunas que estão frequentando cursos superiores, já.
Na área de arquitetura, e outros cursos superiores, matemática e diversos
outros. Muitas das pessoas que nos procuram aqui, muitas delas faziam 15,
20 anos que não estudavam, e que voltaram a estudar, e que conseguiram
concluir o curso. A inclusão, ela é comprovada pelo fato de que a maioria
das turmas, elas são constituídas por pessoas que estiveram fora da escola,
1152

do sistema educacional, por muitos anos, e que retornaram com o intuito de


dar continuidade aos estudos. Os nossos alunos, eles recebem uma bolsa de
100 reais mensais para o transporte, né? E eles tem acesso à merenda escolar
Página

182
Os nomes não foram revelados para preservar a identidade dos participantes da pesquisa. No presente
trabalho são identificados pela função desenvolvida na instituição.

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e à janta. Aqueles que comprovam que não têm como se alimentar, eles têm
direito à janta, e todos tem acesso à merenda escolar (ADMINISTRATIVO).
Sim, acredito que inclua porque dá oportunidades a eles de conhecer uma
realidade por meio da conclusão do ensino médio, que até então não
conhecia. No nosso caso, além disso, ainda conhece uma realidade, que é o
ensino profissional, que também não é fácil encontrar na maioria das
instituições, né? Mas a inclusão social, também, ela tá ligada à estrutura que
a escola ou a instituição, ela pode dar a esses alunos, né? Apesar de haver
inclusão social, se a gente considerar inclusão social considerando todos os
alunos que ingressaram, ela, de alguma forma, não acontece porque a evasão
ainda é um grande desafio nisso aí (GESTOR).
Sim, sem dúvida. Como eu estava dizendo, é um trabalho um pouco difícil
porque normalmente esse público, ele está fora de sala de aula há muito
tempo, então requer uma atenção especial. Não se pode levar o aluno do EJA
da mesma forma que se leva o aluno que já vem no ritmo, o aluno regular.
Ele precisa, de fato, de uma atenção especial. E, assim, até mesmo eles se
acham, vamos dizer assim, uma exceção, eles se acham... Muitas vezes, o
próprio aluno se acha incapaz de estudar, de assimilar conteúdos, por uma
série de razões. Então, sem dúvida, é uma situação diferenciada e requer uma
atenção especial (PROFESSOR).

De acordo com as falas dos entrevistados, o PROEJA se efetiva como um programa


que concretiza direitos sociais, o que está em consonância com a LDB e como o Documento
Base do PROEJA. A educação inclusiva aspira tornar efetivos o direito à educação, à
igualdade de oportunidades e de participação de todos no processo educativo. Contudo, a
educação que se configura no Brasil, no que tange ao acesso e à permanência na escola, ainda
não é uma realidade para todos, cristalizando em seu seio as desigualdades sociais. Esse é o
fundamento dos direitos que só será alcançado com a supressão da desigualdade. Se essa
relação não for considerada, a manutenção de tais direitos nas condições existentes não
passará de um “manto” para encobrir as desigualdades. Santos (2002, p.30) é enfático ao dizer
que

Sob a égide da sociabilidade do capital, os direitos humanos os qualquer


outros (grifo nosso) são proclamados mediante uma concepção abstrata de
universalidade. Liberdade, igualdade e um conjunto de outros direitos que
deveriam ser assegurados não tem condições de se realizar, posto que vigora
uma desigualdade estrutural no processo de produção e reprodução da
sociedade.
1153

A Constituição Federal e a LDB baseiam-se no princípio do direito universal, que


regulamenta a educação para todas as pessoas. Contudo, a educação que se configura no
Página

Brasil, no que tange à EJA, está perfilada por grandes desafios, sendo o principal deles o

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enfrentamento da exclusão social – resultado da desigualdade social e econômica no Brasil,
que, por sua vez, é consequência do modelo de sociedade capitalista.
Diante desse cenário, o Ministério da Educação – MEC criou, em 2008, por meio da
Portaria nº 315/2008, o Programa de Assistência Estudantil de fomento ao estudo para alunos
do PROEJA, mediante o qual o estudante dessa modalidade recebe uma bolsa no valor de R$
100,00 por mês, cabendo a cada instituição vinculada ao programa criar um instrumento de
regulamentação para o recurso em âmbito local. É nessa premissa que se situa a terceira
questão da nossa pesquisa, assim descrita: Na sua ótica, a bolsa de Fomento para alunos da
EJA é uma ferramenta que contribui par a permanência do aluno no programa?

Sim, é uma ferramenta que contribui. Agora, muitos alunos trabalham.


Assim, a realidade da EJA, dos nossos alunos da EJA, é que a maioria
trabalha. Assim, essa bolsa para os alunos que trabalham, ela não tem um
significado muito grande, ela não tem muita importância. Mas para aqueles
que não trabalham, ela possui uma importância grande, porque é essa bolsa
que possibilita o deslocamento do aluno de casa até a escola. Eu diria que o
valor é muito pequeno para aqueles alunos que trabalham, mas é
significativo para aqueles que não trabalham. Então é relativo, né? Esse
valor de 100 reais é relativo. O ideal é que essa bolsa tivesse um valor maior,
essa bolsa fosse mais atrativa, fosse um valor de 250 reais, de 300 reais. Eu
vou dar um exemplo aqui. O PIBID, que é um programa para alunos dos
cursos superiores, é um valor que é 400, 450 reais a bolsa, né? É um valor
extremamente atrativo, né? Eu acho que o valor da bolsa ainda é muito
pequeno, mas mesmo assim, para muitos alunos, esse valor ainda é atrativo
(ADMINISTRATIVO).
Sim, acredito que sim, porque, de fato, alguns alunos são verdadeiramente
carentes, e esse valor, embora pequeno, ele soma e dá uma grande
importância para quem recebe. É muito importante pra quem recebe. Por
outro lado, é preciso a gente trabalhar, conscientizar ao aluno que a bolsa é
um estímulo para a conclusão dos seus estudos, e não a finalidade maior para
estar aqui no Instituto Federal (GESTOR).
Sim, sem dúvida contribui, não é? Agora, a gente tem que analisar um pouco
a situação. Por quê? Porque, assim, a bolsa, ela ajuda na questão do
transporte, com certeza; o aluno pegar um ônibus; a questão da alimentação,
inclusive, o aluno chega pra cá, vem aqui na escola, ele tem com o que
lanchar, por exemplo. Se bem que a bolsa não é esse valor todo, mas ajuda
bastante. Tem um contra aí. Porque, às vezes, a bolsa, ela é tida, vamos dizer
assim, ela passa a ser vista como uma remuneração. E aí tá o efeito
prejudicial. Ele passa a vir, talvez, pensando naquele valor, enquanto o
motivo maior deve ser a educação. Então, assim, deve haver uma
conscientização maior, e isso aí não depende exatamente da gente, mas deve
1154

haver uma conscientização maior em relação ao interesse do aluno em


estudar pra crescer, e não pra estudar pra ganhar cem, cento e poucos reais
por tá em sala de aula (PROFESSOR).
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Embora a política brasileira de educação assegure educação para todos, as péssimas
condições de vida – resultado da desigualdade social e econômica no Brasil, que, por sua vez,
é consequência do modelo de sociedade capitalista – não permitem que o indivíduo chegue à
escola, ficando claro que somente a oferta desta não basta se sua demanda for privada do
desenvolvimento social, econômico e cultural do país.
Por isso, na visão dos entrevistados, a bolsa de fomento é sim um instrumento que
auxilia na permanência do aluno no Programa. Isso pode ser facilmente constatado quando
tomamos por base o valor do salário mínimo atual, que é de R$ 880,00 (a bolsa corresponde a
11% desse valor)183. De acordo com Conti e Rocha (2010, p.61), “essa medida contribui para
estabelecer o fluxo (acesso/permanência/conclusão com qualidade) e também para melhorar
as condições de (re)inserção social, cultural, econômica, política e laboral dos grupos
destinatários dessa política pública”.
Diante do quadro em tela apresentamos a quarta indagação: Quais são, para o (a)
senhor (a), os maiores desafios do PROEJA no IFRN - Campus Mossoró?

O principal desafio é manter o aluno na instituição. É evitar que esse aluno


saia da instituição, ou seja, é evitar a evasão. Que ele se mantenha na
instituição. Que a instituição consiga meios, estímulos pra que ele consiga
permanecer até o final do curso, né? Que o curso seja atrativo para ele. Além
da sala de aula, tenha outros atrativos para esse aluno. Que não seja apenas a
sala de aula, naquele horário, das 19 às 22 horas. Que esse aluno possa ser
inserido em outros. Na pesquisa, na extensão. Porque eles ainda são muito
preteridos na hora da pesquisa e da extensão. Eles ficam fora da EXPOTEC,
da SEMADEC e de outros eventos da instituição. Eles precisam ser inseridos
dentro desses eventos da instituição, como EXPOTEC, SEMADEC, Semana
de Meio Ambiente e diversos outros. É como se eles se sentissem um pouco
esquecidos e preteridos. Assim, eu escuto muitas queixas dos alunos nesse
sentido (ADMINISTRATIVO).
Sem dúvida nenhuma é procurar diminuir a evasão e a repetência. A gente
tem ideia de curso técnico, tem consciência de que um curso técnico para
esse público, muitas vezes com muitos anos de afastamento do banco
escolar, alguns conceitos relativamente complexos, não é fácil a sua
assimilação por parte deles. E que a gente, além de procurar diminuir a
evasão, a retenção também é outro grande desafio. É a gente procurar
estimular e capacitar os professores pra trabalhar com esse público
(GESTOR).
Olha, eu acho assim, que nós já vencemos muitas coisas, né? Porque, assim,
conhecendo a realidade do EJA no município e no estado, nas escolas
1155

públicas municipais e estaduais, que eu trabalhei nessas duas situações,


nessas duas instituições como professor de EJA também, então, se nós
fizermos uma comparação, é claro que a gente tem que sempre procurar
Página

183
Salário mínimo vigente em 2016 – período em que foi realizado a pesquisa.

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melhorar, mas nós estamos muito a frente. É claro que tem muita coisa pra
melhorar aqui, muita coisa mesmo. Até mesmo a questão da autoestima do
aluno, vamos dizer assim, a questão do desenvolvimento, a questão da
inserção desse aluno no mercado de trabalho, então, muita coisa pra fazer.
Mas comparado com as realidades que existem por, aí nós estamos muito
bem. Temos que melhorar, claro (PROFESSOR).

A evasão escolar é um problema latente na educação brasileira e que encontra


contornos mais dramáticos na educação de Jovens e Adultos – EJA. “Essa elevada evasão
parece ter múltiplas razões. Muitas vezes é ocasionada pela [..] inadequação escolar [...],
outras, pela necessidade de o estudante trabalhar, o que em geral, é mais urgente do que
continuar os estudos e, no caso das mulheres, a gravidez e outras questões familiares
contribuem para que elas abandonem, outra vez, a escola (BRASIL, 2007, p. 17).
Nesse cenário, os direitos sociais se constituem e garantem as condições básicas de
sobrevivência, das quais a classe trabalhadora precisa para se manter viva e fortalecer-se
como classe. Como afirma Guerra (2009, p. 44),

Os direitos sociais - como conquista da classe trabalhadora - têm nas


políticas sociais os instrumentos pelos quais se materializam. Na medida em
que os direitos sociais colocam limites ao livre desenvolvimento do capital, à
voracidade do processo de acumulação do capital e se realizam através das
políticas sociais, estas podem ser pensadas como instrumento de regulação
social. Se, de um lado, as políticas são formas de socialização dos custos de
reprodução da força de trabalho com o fim de torná-las aptas às demandas do
capital, por outo, as políticas sociais satisfazem, efetivamente as
necessidades dos trabalhadores.

Contudo, a política educacional brasileira não consegue garantir-se como direito


concreto a todo cidadão. A educação, apesar de estar mais acessível, ainda enfrenta a exclusão
social como um problema não superado pelo Estado. É certo que

o acesso à educação tem significado uma maior diversidade de alunos na


escola, porém, os sistemas educacionais seguem oferecendo respostas
homogêneas, que não satisfazem às diferentes necessidades e situações do
alunado, o que se reflete em altos índices de reprovação e evasão escolar,
1156

que afetam em maior medida as populações que estão em situação de


vulnerabilidade (BRASIL, 2005, p. 05).

Todas essas questões rebatem no perfil social, cultural, educacional e econômico


Página

desses sujeitos. Diante de tudo isso, o PROEJA se configura como uma ferramenta de

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inclusão social, e a bolsa de fomento para os discentes do referido programa se caracteriza
como um instrumento que estimula a permanência do aluno na instituição, colaborando para a
diminuição da evasão escolar, um dos grandes desafios da educação direcionada para jovens e
adultos. Por fim, a última questão instiga o entrevistado a discorrer sobre: Como o (a)
senhor(a) avalia o programa PROEJA do IFRN - Campus Mossoró? Acredita que ele é efetivo
quanto aos objetivos propostos?

Dentre os diversos campus que oferecem o PROEJA, no âmbito do IFRN,


nós temos 21 campus. De todos os campus que oferecem o programa, o
nosso é o que está em melhor situação, apesar de termos uma evasão muito
alta. Esse é um problema que nós ainda não conseguimos solucionar: o
problema da evasão. Porque o aluno trabalha, é mãe de família, ele é pai de
família, ele arruma um emprego fora... Então pra ele, entre o estudo e a
sobrevivência, ele prefere a sobrevivência, mesmo que depois ele retorne
para a instituição. Nós já tivemos inúmeros casos de alunos que saíram por
motivo de trabalho, por motivos familiares, mas depois eles retornam à
instituição. Assim, o que está proposto lá no documento base que criou o
PROEJA e a nossa realidade cotidiana do dia-a-dia, há um hiato muito
grande entre o que está proposto nos documentos e o que está sendo
implementado no cotidiano do dia-a-dia. O PROEJA precisaria de uma
assistência maior, de uma infraestrutura maior, precisaria de servidores
trabalhando exclusivamente pra o curso, e uma assistência de uma
infraestrutura de recursos humanos, material, que desse uma assistência
exclusiva ao curso, né? Que ele não fosse apenas mais um curso na
instituição, mas que ele fosse um curso que tivesse um atendimento
preferencial, né? Porque trata-se de uma clientela que passou muitos anos
sem estudar, que trabalha, que tem muitas necessidades. Assim, a minha
opinião, as condições materiais e os recursos humanos precisariam ser
melhores em qualidade e em quantidade. Mas apesar disso, o nosso curso da
EJA, dentre os inúmeros campus do IFRN, ainda é o que está em melhor
situação (ADMINISTRATIVO).
Dentro da realidade que se trabalha no PROEJA, acho que podemos
considerar como bem-sucedido, né? Nós temos, já, vários casos registrados
de alunos que hoje estão empregados e sustentando as suas famílias com o
emprego que conseguiram graças ao curso que fizeram aqui. Então, de
alguma maneira, a gente tem aí hoje algumas famílias sobrevivendo a partir
de uma formação técnica voltada pra esse público. Analisando esse aspecto
eu considero que atingiu os objetivos, sim. Por outro lado a continuidade nos
esforços para que a gente consiga cada vez mais fazer com que o número de
alunos que entra seja o mesmo que conclui, ela permanece, essa batalha
diária (GESTOR).
Sim. Eu não tenho, assim, em relação a IFRN. Como eu falei anteriormente,
em relação a outras situações, estado e município, nós estamos muito bem,
1157

na minha opinião. A nível de IFRN, eu não conheço a realidade de outros


campus. Mas eu diria que o campus Mossoró tá indo bem. E eu até arrisco a
dizer que Mossoró, Mossoró sempre foi uma referência, e Mossoró com
certeza é referência em EJA também (PROFESSOR).
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ISBN: 978-85-7621-221-8
Mesmo diante das limitações e desafios, como a evasão, os servidores entrevistados
acreditam que a EJA do Campus Mossoró é bem avaliada em relação aos outros Campi e
outras esferas (municipal e federal). Tendo como parâmetro essa abordagem, podemos dizer
que o PROEJA do IFRN Campus Mossoró é efetivo, pois representa uma perspectiva de
transformação na vida dos alunos, como disse um gestor/professor: “Nós temos, já, vários
casos registrados de alunos que hoje estão empregados e sustentando as suas famílias com o
emprego que conseguiram graças ao curso que fizeram aqui”. A afirmação acima destacada,
corrobora como o que diz Holanda (2003, p. 19), para quem

uma política social deve ser sempre avaliada por sua capacidade de reduzir a
pobreza, e não pelo volume de recursos que consome ou mesmo pelo volume
de benefícios que distribui. A efetividade de uma política social é dada pela
sua capacidade de transformar o quadro de pobreza de um país.

As políticas públicas/programas sociais são um instrumento que possibilita uma


transformação, uma vez que são concebidas em prol do bem-estar de segmentos sociais,
sobretudo para os mais pauperizados, devendo ser uma ferramenta de distribuição de renda e
equidade social. A educação como uma política pública se configura como um instrumento
imprescindível para que segmentos subalternos da sociedade, como é o caso dos alunos da
EJA, possam buscar concretamente a inclusão social.

Considerções finais

Ao considerarmos as informações sobre o PROEJA elencadas na pesquisa direcionada


aos servidores do IFRN Campus Mossoró, foi possível identificar algumas questões
relevantes para pensarmos o processo educativo de inclusão desse segmento.
Temos, como resultado da apreensão dos dados e informações prestadas, que a EJA,
embora se configure como um direito, uma ação do Estado na tentativa limitada de minimizar
as desigualdades sociais, bem como a exclusão social vivida pelo segmento de jovens e
adultos que não tiveram acesso à educação na idade adequada, ainda é operacionalizada de
forma bastante limitada pelos equipamentos educacionais.
1158

No IFRN/ Mossoró, temos uma realidade peculiar de avanços e consolidação da


modalidade, se comparada a outras instituições que ofertam a EJA, dada a constatação de ex-
Página

alunos da EJA que retornam à instituição como aluno de graduação ou subsequente. No

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entanto, a pesquisa aponta também para fragilidades, como a não preparação e formação do
corpo docente para o processo ensino-aprendizagem do segmento. Podemos dizer ainda que
temos uma inclusão excludente, uma vez que o segmento acaba não se incluindo em eventos
ou espaços formativos do instituto.
É valido ressaltar que a bolsa fomento para os alunos da EJA no valor de 100,00 (cem
reais), embora seja este um quantitativo considerado baixo, tem contribuído para a
permanência dos (das) estudantes no IFRN, haja vista que muitos deles não possuem
nenhuma renda que possa garantir, por exemplo, sua vinda ao Instituto.
Dessa forma, mediante a pesquisa, é claro que a EJA, mesmo sendo um direito, ainda
precisa avançar na superação das desigualdades sociais, contribuindo assim para a formação
de sujeitos emancipados e críticos. Os avanços e limitações que incidem sobre essa
modalidade de ensino é inerente a educação brasileira uma vez que está se configura como um
espaço contraditório de lutas e conquistas da classe trabalhadora.

Referências

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica -


Documento Base Educação Profissional Técnica de Nível Médio / Ensino Médio Programa
Nacional de Integração da Educação Profissional com a Educação Básica na Modalidade de
Educação de Jovens E Adultos – PROEJA. Brasília, 2007

______. MEC, Departamento de Educação de Jovens e Adultos/Secad e Rede de Apoio à


Ação Alfabetizadora do Brasil – RAAAB, Construção coletiva: contribuições à educação de
jovens e adultos. — Brasília: UNESCO, 2005.

CONTI, Fabieli de, ROCHA, Pedro Chaves da. Alunos do PROEJA e Influência da Bolsa de
Assistência Estudantil. In: Refletindo sobre o PROEJA. Pelotas: Universitária/UFPEL, 2010

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direito.In: FORTI, Valeria e GUERRA, Yolanda. Ética e direitos: ensaios críticos.rio de
janeiro: humen juris, 2009.

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HOLANDA, Antonio Nilson Craveiro. VIII Congreso Internacional del CLAD sobre la
1159

Reforma del Estado y de la Administración Pública, Panamá, 28-31 Oct. 2003. Avaliação de
políticas públicas: conceitos básicos, o caso do ProInfo e a experiência brasileira,
Universidade de Brasília – UNB
Página

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STOCO, Heloisa Pancieri, Revista Eletrônica Multidisciplinar Pindorama do Instituto
Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia – IFBA n. 01, ano I, ago.,2010 –
<www.revistapindorama.ifba.edu.br>. A educação de jovens e adultos trabalhadores no
PROEJA. Acesso e permanência no CEFET-BA.

SANTOS, Silvana Mara de Morais. Há necessidades dos Direitos Humanos Para a Formação
de Uma Cultura Política Emancipatória? In: Temporalis, n. 05. Brasília: ABEPSS, 2002

1160
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GT10 – TRABALHO, QUESTÃO SOCIAL, DIREITOS SOCIAIS E POLÍTICAS
PÚBLICAS

HISTÓRIAS DE VIDAS DO ABANDONO NA TERCEIRA IDADE

Mara Betânia Jales dos Santos184


Sandra Maria Pereira Lima185

1 Revisitando o cenário do abandono familiar...

O abandono na terceira idade tem sido bastante debatido na atual sociedade


contemporânea. Também é vivenciado com grande frequência, principalmente nas famílias
empobrecidas que por sua vez, o idoso encontra-se esquecido e abandonado por todos. O item
a seguir trata desse cenário diante da dificuldade de implementação de políticas públicas para
essa parcela da população.
As visitas aos abrigos na cidade de Natal-RN, aconteceram no decorrer da semana no
período matutino, horário em que os internos estavam mais dispostos a falarem. A nossa
comunicação com os idosos foi construída através de desenhos, pinturas, músicas, conversas
informais e festas relacionadas a datas comemorativas.
Em virtude da pesquisa ter sido qualitativa, aspectos como gestos, silêncios, olhares,
risadas, atitudes, linguagem não verbal, mas provida de sentidos foram importantes para
captar informações não contidas nas entrevistas devido a debilidade e fragilidade de alguns
sujeitos da pesquisa.
É importante registrarmos que parte considerável da pesquisa deu-se através de relatos
orais metodologia relevante para a história oral. Coletar relatos orais implica uma cautela
ética e para isso houve a preocupação de solicitar aos sujeitos permissão para o registro de
suas falas.
Depois de estabelecidos os laços de amizades com os internos foi possível ouvir e
conhecer suas histórias de vida, em sua grande maioria dos casos muito sofridas, com perdas
materiais e afetivas.
Outras histórias estavam recheadas de superação diante de tantos problemas
enfrentados no decorrer da juventude e da vida adulta. Nesta ótica, queremos ressaltar que a
1161

maior angústia enfrentada pelos internos é o fato de não ter uma família.

184
Professsora Adjunta da Universidade Federal Rural do Semi-Árido-UFERSA. Pós-doutoranda na
Página

Universidade Estadual do Rio Grande do Norte-UERN.


185
Graduada em Serviço Social.

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O desejo de concretizar o sonho de ter uma família harmoniosa, feliz e acompanhado
de um lar repleto de amor constitui-se numa esperança para essas internas.
Diante disso, observamos e constatamos que dia após dia, elas esperam pela visita de
sua família no asilo. Visita essa que nunca chega e que culmina no abandono na terceira
idade.
Foram desenvolvidas também atividades com o objetivo de estimular a integração das
idosas institucionalizadas, promovendo momentos de descontração, elevando sua auto-estima
e socialização no grupo.
A falta de estrutura dos abrigos constituiu-se enquanto dificuldade, já que o espaço era
inadequado, sem área de lazer ou cômodo maior para a realização de dinâmicas, oficinas entre
outras atividades.
Nos relatos dos idosos sobre as suas histórias de vida, numa dessas situações a história
de Dona Carminha que foi deixada no abrigo porque todos os finais de semana sua filha a
deixava sozinha em casa para beber. Os vizinhos fizeram a denúncia dizendo que a filha da
idosa era alcoólatra e deixava a mãe sem se alimentar.
O fato de Dona Carminha chorar muito devido à falta de alimentação chamava sempre
a atenção da vizinhança. Outro dado relatado pelos vizinhos foi que a idosa não tinha
condições de fazer sua higiene sozinha. Neste caso, a referida idosa ficava um tempo
significativo sem tomar banho por negligência da filha.
Por todo o histórico acima relatado a vizinhança tomou a decisão de denunciar os
maus-tratos a Promotoria da Justiça do Idoso que por sua vez, notificou a filha para responder
acerca desse quesito.
A conclusão deste caso, foi que a filha da idosa não tinha condições psicológicas e
emocionais para conviver com a mãe. Deste modo, Dona Carminha foi encaminhada a uma
instituição de longa permanência.
Registramos também que alguns idosos mesmo desenvolvendo atividades lúdicas nos
asilos não conseguem esquecer a saudade do lar e da vida que tinham antes de serem
abandonados pela família. A título de ilustração segue o depoimento “quero ir para casa
cuidar das minhas galinhas”!
1162

Outra idosa ao ver a colega comentar sobre o que fazia antes de ser asilada comenta:
“é muito ruim não ter família”! O que se observa com o registro dessas conversas é que o
idoso não aceita ou não suporta a situação de viver longe da família, pois o mesmo sempre
Página

pede para voltar a conviver com a família.

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Em alguns asilos pesquisados verificamos que ocorre a comemoração dos aniversários
dos internos como se eles estivessem no seu próprio lar com todos os adereços utilizados
nesse tipo de vento a exemplo do bolo, bolas de encher, refrigerantes, salgados, músicas,
presentes, cartazes e discursos dirigidos a asiladas.
No entanto, mesmo com todos os itens que uma festa de aniversário tem, vale
mencionar que o idoso demonstra alegria passageira, mas logo a reação muda, pois a
lembrança que vem é a de que na comemoração do aniversário, a família está ausente. Isso
causa silêncio e tristeza. Essa é a situação de Brizola.
Brizola é assim chamada pelas amigas internas do asilo, devido na sua juventude ter
ocupado um cargo de grande relevância no governo de Leonel Brizola, mesmo assim, na sua
fase de maior necessidade de amparo que é a velhice foi deixada no asilo pela sobrinha. Na
fala de Brizola ela comenta que “Eu não tive filhos. Trabalhava muito. Sempre fui muito
namoradeira e gostava de me arrumar, pois estava sempre rodeada de gente cheia de dinheiro.
Nunca pensei que um dia viria parar aqui”.
Sobre isso Bossi(1994) assinala que “as pessoas não são as mesmas, as percepções não
são estáveis, vivem-se outras experiências, outros valores são adquiridos nas diferentes
relações, sejam elas na família, na comunidade ou no trabalho”.
Halbswachs (1990) é um dos principais estudiosos das relações entre memória e
história coletiva. Ao destacar a lembrança como a sobrevivência do passado, mostra que a
memória do indivíduo está intimamente ligada ao seu relacionamento com a família, com a
classe social, a profissão, enfim com os grupos de convívio no decorrer de toda a sua vida.
Neste sentido, a memória coletiva é construída principalmente da convivência do
passado não só de um indivíduo, mas da convivência entre homens e mulheres num
determinado contexto social, político, econômico e cultural, reafirmando sua identidade na
dinâmica da história.
Assim, os acontecimentos lembrados tendem a manter o sentido que tinham no
momento vivido, mas não estagnados. Da mesma forma que não se reproduzem
automaticamente, tendem a ser recheados de alegrias e tristezas.
Alcântara(2010) desenvolveu um livro intitulado Velhos Institucionalizados e Família,
1163

mostrando como historicamente se constituíram essas instituições. No dizer dessa estudiosa,


os asilos constituíam-se em:
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Criação de instituições filantrópicas destinadas a prestar cuidados a velhos,
sob a denominação de asilos, abrigos e lares, em sua origem, no século XX,
no Brasil, visava a atender a velhice desamparada, que se configurava como
uma população pobre e sem vínculos familiares (ALCÂNTARA, 2010, p-
32).

Toda essa mudança vai ocasionar que os idosos que não têm mais lugar na nova
família nuclear, composta na atualidade seja colocado numa situação de pobreza e abandono
em espaços reservados exclusivamente para a exclusão dos papéis, que já não podem mais ser
desempenhados pelos mais velhos.
O problema é que, no Brasil, as famílias menos favorecidas não tem como arcar com
as despesas para cuidar de seus velhos e assegurar-lhes proteção necessária junto com seus
parentes quando chegam nessa fase da vida.
O Estado brasileiro também não oferece atendimento para o idoso pobre mesmo tendo
esse direito assegurado na Constituição Federal de 1988. Por essa razão, nossa pesquisa se
preocupou em conhecer sobre as histórias de vidas dos idosos pobres em situação de
asilamento.
Conforme Magalhães (1987), a velhice constitui-se numa das refrações da questão
social inerente ao modelo econômico vigente. Nestes termos, ele menciona

A velhice excluída e abandonada, o envelhecimento precoce e o pseu-idoso


são aspectos do modelo econômico excludente que foi praticado no país nas
últimas décadas e sua solução corresponde à intensidade das medidas que
foram tomadas para que a produção econômica cresça com o bem-estar
social, e não seja criadora das disparidades regionais e das concentrações
sociais da riqueza que têm caracterizado o processo distributivo do pais (
MAGALHÃES, 1987, p. 48).

Diante do agravamento da pobreza e da falta de trabalho, a cidadania vem sendo


negada para o idoso pobre isento de direitos. Acrescente a essa situação, o fato de que poucos
idosos têm conhecimento sobre os seus direitos.
Outro desafio a ser superado é que a velhice numa sociedade do consumo, dividida em
classes sociais, em que o idoso para ser considerado útil precisa estar produzindo. A esse
respeito Nascimento menciona que
1164

O idoso brasileiro precisa ter qualidade de vida, sendo necessário educar a


sociedade e conscientizá-la, para que ocorram as mudanças de
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comportamento a respeito do que é ser idoso, sendo assim, surgirão


possibilidades de enquadrá-los em atividades, na comunidade e com isso são

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geradas várias conquistas, a troca de experiência e os valores pessoais, que
com certeza o idoso tem guardado ao longo da sua vida de sabedoria e de
riqueza. Manter o idoso em contato com as transformações sociais, atuar em
cima de valores pessoais e sociais é a melhor maneira de impulsioná-lo para
o desafio de novas conquistas (NASCIMENTO et. al. op cit, p. 128).

Os idosos pobres que vivem em situação de longa permanência foco da nossa


pesquisa, trabalhavam desde criança em exaustivas jornadas de trabalho como informais ou
ainda em atividades consideradas perigosas. Alguns deles não tiveram o direito à infância, a
brincar necessitando por estar inseridos em situações de vulnerabilidades sociais
complementar a renda da família precocemente.
No futuro essas gerações acima citadas continuarão muitas vezes a sustentar sua
família quando estiverem na fase da velhice tendo um perfil familiar numeroso de filhos para
sustentar e prover inclusive os netos.
Destacamos também, a necessidade de fazer com que a família sinta-se responsável e
contributiva com as necessidades dos idosos principalmente, no que diz respeito ao amor,
carinho, atenção e respeito.

2Família e terceira idade: uma relação a ser construída

A família constitui a instância básica, na qual o sentimento de pertencimento e identidade


social é desenvolvido e mantido. É nela que também são construídos os valores, as condutas
sociais e os laços afetivos.
Na atualidade a família diminuiu o número de seus membros sob uma diversidade que
contraria a sua composição anterior que era nuclear formada apenas pelo pai, mãe e filhos.
Essa diversidade a que nos referimos acima diz respeito aos novos arranjos familiares
compostos por duas mães, dois pais, por um casal já numa segunda união conjugal ou ainda
por pai solteiro com filhos ou mãe solteira com filhos.
Neste sentido, qualquer que venha a ser o arranjo familiar construído, ele vem sendo
submetido a processos de empobrecimento acelerado e de desterritorialização, gerada por
novos movimentos migratórios.
1165

Nesse processo, cada membro da família constitui-se como pessoa, torna presente sua
subjetividade nas experiências vividas no dia-a-dia. Essas são continuamente interpretadas no
Página

contexto de sentimentos e afetividades construídas e descontruídas no decorrer das relações


estabelecidas na família.
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Para compreender a construção das experiências vivenciadas no seio da família há que
se levar em conta a união construída pelos seus membros familiares em torno do afeto, do
amor, dos interesses, das relações de troca dentro de um projeto de vida em comum, em que
compartilham um cotidiano transmitindo ao mesmo tempo, tradições ou repressões a um
determinado modo de vida. A esse respeito Szymansky menciona que:

As trocas afetivas na família imprimem marcas que as pessoas carregam a


vida toda, definindo direções no modo de ser com os outros afetivamente e
no modo de agir com as pessoas. Esse ser com os outros apreendido com as
pessoas com as pessoas significativas prolonga-se por muitos anos e
frequentemente projeta-se nas famílias que se formam posteriormente (Ibid,
2002, p. 12).

No cotidiano da convivência familiar as relações podem ser construídas ou não


levando em conta o respeito mútuo entre seus membros seguidos da paciência, tolerância ou
do seu contrário, pela desconsideração com o outro, pela intolerância, negligência,
impaciência entre outros.
Neste sentido, o cenário da convivência familiar não é na maioria dos casos preparado
para acolher o idoso nesse mesmo cotidiano. Assim, não é atoa que historicamente a
sociedade ainda não está preparada para conviver com os mais velhos nessa fase de sua vida.
Nesta direção, pode-se observar que a dimensão da pobreza das famílias que
abandonam esses idosos é muito forte. Sendo assim, a família dos idosos abandonados é
composta por um número expressivo de pessoas agregadas que vivem sob os cuidados e a
responsabilidade dos seus familiares.
Nessas configurações familiares a origem desse idoso pobre abandonado constituem as
raízes de efeitos perversos sobre a vida dessa parcela da população, nessa fase de sua vida.
Vale salientar, que essas famílias vivem uma vida de privações em todos os sentidos,
independente de mudanças conjunturais, quando comparadas as famílias de classe mais
favorecidas.
Assim, essas famílias não têm condições de cuidar de seus idosos e, portanto de
assumir uma proteção social aos mesmos. Neste caso, são usuários em potencial da
Assistência social ou de programas sociais a ela voltados.
1166

Diante dessas circunstâncias podemos nos perguntar quem são esses idosos que não
possuem um lar protegido pela sua família?
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Considerações finais

Evidencia-se que com o aumento das expressões da questão social na


contemporaneidade o segmento da população idosa cada vez mais sofre com a discriminação
e o abandono de seus familiares.
Neste cenário excludente, pode-se observar a situação do idoso institucionalizado, que
por sua vez, torna-se esquecido sem acesso aos bens e serviços.
Devido às condições precárias e um quadro bastante elevado de pobreza, as famílias
empobrecidas colocam seus idosos os num asilo, com a esperança de que o mesmo venha a
ter uma assistência que garanta o seu bem-estar.
Na realidade, o que ocorre é que a instituição não corresponde ás necessidades do
idoso, ficando o mesmo desprovido dos seus direitos mínimos.
No entanto, a família não tem condições financeiras de arcar com as
responsabilidades, devido á situação de pobreza do idoso, transferindo a instituição o dever
inerente a mesma. Dessa forma, os idosos pobres continuam sem acesso aos bens e serviços
de uma vida digna.
No abrigo “Bom Samaritano”, o idoso passa por momentos de privações em todos os
aspectos tanto relacionada à higiene, lençol, roupa, atendimento especializado em geriatria
entre outros.
O CIADE (Centro Integrado de Assistência Social da Igreja Evangélica da Assembléia
de Deus) não disponibiliza de carro para levar o idoso ao hospital, quando o mesmo necessita
ser socorrido, ficando a critério de ser atendido por algum dos funcionários da equipe de
trabalho. Diante de um quadro tão precário, o idoso, por sua vez, fica sem assistência
necessária.
O espaço do asilo também é representante pelas múltiplas expressões da questão social
de famílias empobrecidas que são estigmatizadas pela pobreza e que a ausência de políticas
públicas para a população idosa que aumenta em todo o Brasil limita essa situação como se
fosse um problema de ordem individual e não uma questão; de ordem pública.
Nesses termos, diante das desigualdades sociais, torna-se notório a situação do idoso
1167

pobre que sofre com a discriminação e descaso de uma sociedade capitalista permeada por
conflitos sociais.
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Referências

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GONÇALVES, Paiva. O direito e o avesso da velhice. (Prêmio José Veríssimo- Ensaio e


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HADDAD, Eneida G. de Macedo. Políticas setoriais e por segmento. Caderno Programa de


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MAGALHÃES, Renato Maia. O processo de envelhecimento como campo de investigação.


In: Anais... I Seminário Internacional “Envelhecimento populacional: uma agenda para o final
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MARTINS, R. Andrade. A vida vista pelos idosos. 2010, p. 121-130.

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SZYMANSKY, Heloisa. Viver em família como experiência de cuidado mútuo: desafios de


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1169
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GT12 - MÍDIA, IMAGEM E SOCIEDADE

ANÁLISE TEXTUAL DISCURSIVA: REPRESENTAÇÕES DISCURSIVAS DE


DILMA ROUSSEFF EM UM DISCURSO POLÍTICO

Albaniza Brigida de Oliveira Neta186 (UERN)


Maria Eliete de Queiroz187 (UERN)

Considerações iniciais

A presente pesquisa trata das representações discursivas de Dilma Rousseff, em um


discurso proferido em Brasília, na Conferência das mulheres, no dia 10 de Maio de 2016. A
representação discursiva é compreendida como uma imagem que é construída de si (locutor),
do outro (alocutário) e do tema tratado em um texto.
A representação discursiva pertencente ao campo semântico do texto e está situada no
quadro teórico da Análise Textual dos Discursos (ATD). A ATD de acordo com Adam (2011)
objetiva analisar textos concretos, em situações reais de comunicação, revelando, assim, a
construção de seus sentidos.
Para este trabalho, o corpus de análise é o discurso de Dilma Rousseff que foi coletado
no Site do Governo Federal, em uma conferência em Brasília, em comemoração ao dia
internacional da mulher, no qual foi destacado que as mulheres, a cada dia, que passa, estão
ganhando notoriedade no espaço em que estão inseridas.
As representações discursivas são construídas pelos procedimentos semânticos da
predicação e da aspectualização da predicação. A primeira refere-se aos processos verbais que
ocorrem nos enunciados, e a segunda, diz respeito aos aspectualizadores dos processos
verbais.
]Nosso trabalho será composto, das considerações iniciais, pelo aporte teórico, seção
analítica e das considerações finais. A seguir, teceremos algumas considerações teóricas a
respeito das concepções de texto, discurso e os pressupostos da Análise Textual dos
Discursos, enfocando a categoria semântica textual da representação discursiva.
1170

186
Mestranda em Letras pelo Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGL), da Universidade do Estado do Rio
Grande do Norte/Campus de Pau dos Ferros, Pau dos Ferros, RN, e-mail: albaniza.20@hotmail.com
187
Docente do Departamento de Letras Estrangeiras da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte/Campus
Página

de Pau dos Ferros. Doutora em Estudos da Linguagem pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Pau
dos Ferros, RN, e-mail: eliete_queiroz@yahoo.com.br

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1 Aporte teórico

1.1 Texto e Discurso

Os estudos do texto e do discurso estão se tornando cada vez mais presentes no campo
das pesquisas linguísticas e discursivas. Guimarães (2009), afirma que a Linguística Textual
identifica o texto como documento no qual se inscreve as múltiplas possibilidades do
discurso. Assim, o texto em sua materialidade linguística se constitui como responsável por
gerar sentidos que podem ser perceptíveis no discurso, e materializado pelo/no texto. Nesse
trajeto, o texto é compreendido segundo Cavalcante (2012, p. 17):

Como uma unidade de linguagem dotada de sentido e porque cumpre um


propósito comunicativo direcionado a certo público, numa situação
específica de uso, dentro de uma determinada época, em uma dada cultura
em que se situam os participantes desta enunciação.

Podemos verificar que a autora conceitua texto como uma unidade de sentido que tem
um objetivo a ser cumprido para um determinado enunciador, num dado recorte do tempo e
que se insere numa situação singular de uso. Para tanto, a enunciação textual pode ser
utilizada em uma dada época histórica e inserida em uma cultura.
Assim sendo, o texto é todo e qualquer enunciado que pode ser falado ou escrito,
possuído de intenções comunicativas ao ser escrito, revelando, assim, que há sempre um
locutor e um interlocutor, isto é, ao escrever algo, há um público específico.
Há três concepções de texto propostas por Cavalcante (2012), pela primeira, ele é
entendido em sua completude como um pensamento daquele que produz o texto, nesse caso, o
autor. Desse modo, o papel do leitor é compreender a intenção do produtor por detrás
daqueles enunciados inscritos na materialidade linguística.
Pela segunda concepção, o texto é compreendido como uma pista deixada pelo
produtor com o intuito de levar leitor a interpretá-lo mediante os conhecimentos prévios e
enciclopédicos, revelando que, nesse caso, a compreensão estaria ligada ao código da língua.
Em relação à última concepção, que se refere ao processo de interação, o texto é baseado na
1171

interação entre os sujeitos inseridos em um meio social, tendo como referência, para a
construção dos sentidos, o contexto em que foi escrito considerando a história e a cultura.
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Nesse sentido, o discurso é materializado na superfície textual. Contudo, é de igual
importância conceituar discurso em sua completude. Assim, concebe-se o discurso como um
lugar de intermediação entre a língua e a fala, (GUIMARÃES, 2009). Nesse jogo de relações,
o discurso é permeado pelas ideologias presentes no meio histórico-social, demonstrando,
assim, que a história faz parte dessa emaranhada relação textual-discursiva.
O texto é uma produção formal que resulta das escolhas e articulações feitas pelo
produtor do texto, amparada pelos recursos do sistema linguístico, (GUIMARÃES, 2009). Ou
seja, no momento da produção textual o produtor tem um público alvo para a leitura de seu
texto e por meio disso, ampara-se nos recursos que a língua dispõe para concretizar o seu
intuito, que é adequar o texto à situação comunicativa específica.
]Nesse contexto, a autora diz que o discurso não é outra coisa senão esse mesmo texto,
que, no entanto, se discursiviza na medida em que o analista busca intenções não explicitadas.
Isto é, a ideologia que move o autor na elaboração. Em outras palavras, podemos dizer que o
discurso é o próprio texto em si, com visões diferentes no intuito de compreender as
informações implícitas que não estão presentes na superfície textual, cabendo assim, ao leitor
identificar as intenções ocultadas. A ideologia é responsável pela visão do autor diante do seu
texto escrito, nesse caso, revelando que a sua inserção na sociedade e o que ela partilha pode
influenciar tanto para o locutor como o interlocutor, mostrando, assim, que é por meio da
história que se concebe e produz qualquer discurso.
A seguir, discutiremos o conceito de Análise Textual Discursiva, à luz dos
fundamentos de Adam (2011).

1.2 Análise Textual dos Discursos

A Análise Textual dos Discursos, doravante (ATD), é uma abordagem teórica que foi
proposta por Adam (2011), articulando o nível da Linguística de Texto (LT) e da Análise do
Discurso (AD). O seu objeto de estudo são os textos concretos em situações reais de
comunicação, gerando assim, a produção co(n)textual de sentidos, nesse caso, o texto
concreto que vai ser analisado é o discurso de Dilma Rousseff. Em consonância com esse
1172

pensamento Queiroz (2013, p.22 e 23) afirma que:


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[...] podemos interpretar que a ATD tem a sua origem na LT, mas que a sua
perspectiva teórico-metodológica se enquadra na área da Análise do
Discurso.
Nesse sentido, ocorre a interface entre a Linguística do Texto e a Análise do
Discurso, que constituem a ATD como articuladora do campo textual e do
campo discursivo, intermediada pelos gêneros textuais.

Conforme exposto, a ATD tem a sua origem na Linguística Textual, a teoria e a


metodologia respaldadas na Análise do Discurso de linha francesa. Assim, podemos dizer que
a ATD é responsável pela articulação dos discursos que servirão de análises nas pesquisas.
Conforme como nos mostra Passeggi, Rodrigues e Silva Neto (2010, p. 263):

O texto é certamente um objeto empírico tão complexo que sua descrição


poderia justificar o recurso a diferentes teorias, mas é de uma teoria desse
objeto e de suas relações com o domínio mais vasto do discurso em geral
que temos necessidade, para dar aos empréstimos eventuais de conceitos das
diferentes ciências da linguagem, um novo quadro e uma indispensável
coerência.

Dito de outro modo, o texto é o principal objeto analítico da Linguística Textual, mas,
sobretudo, ele é utilizado pelas teorias textuais e discursivas, revelando a relação existente
entre elas. Com relação à AD o discurso é perspectivado nas práticas discursivas seja de qual
esfera for.
]Adam (2011) no esquema 4 apresenta oito níveis de análises que pertencem ao campo
da análise textual dos discursos, incluindo tanto categorias do texto como da área discursiva.
Cinco dessas categorias fazem parte do nível do texto e as outras três pertencem ao nível do
discurso.
1173
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Figura 1: Esquema 4 – Níveis ou planos de discurso
Fonte: Adam (2011, p. 61).

Na figura 1, temos as categorias analíticas da ATD, a saber: as do nível do discurso


(N1, N2, N3) e as do nível do texto (N4, N5, N6, N7, N8). Assim, o (N1) que é ação visada,
corresponde aos objetivos do ato discursivo: justificar, esclarecer, informar, renunciar. Em
segundo lugar, o diálogo do Nível 1 ainda permanece, (N2) com a interação social que há
entre os participantes do discurso. Assim, o terceiro Nível (N3) é responsável pelas formações
interdiscursivas que incluem o interdiscurso e o socioleto que é a variante de fala de qualquer
sujeito, inclusive, os políticos, e que vai se concretizar em um gênero textual.
Os níveis da análise do texto, o Nível (N4) é o da textura que compreende as
proposições que são a unidade mínima de análise, que pode ser uma simples palavra, frase ou
texto. Logo, os períodos correspondem às ligações que há entre as proposições como, por
exemplo, os conectores. O Nível 5 é composto pela estrutura composicional, que é dividida
em sequências e planos de textos.
O Nível 6 (N6) é responsável pela representação discursiva. A representação é
entendida como a imagem que se constrói de si, do outro e de temas tratados. No caso da
nossa pesquisa, vamos analisar as representações discursivas no discurso da Presidenta Dilma
1174

Rousseff.
Assim, no Nível 7 (N7), a responsabilidade enunciativa é corresponde pela polifonia
textual, ou seja, as várias vozes que existem em um texto. Por fim, no Nível (N8), o
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argumentativo se refere aos atos de discursos realizados e a sua contribuição para a orientação
argumentativa do texto (PASSEGGI, 2010).
A seguir, serão discutidos os conceitos das categorias analíticas que pertencem ao
campo semântico do texto, nesse caso, a representação discursiva que será construída por
meio da predicação e da aspectualização da predicação.

1.3 Representações Discursivas

Rodrigues, Passeggi e Silva Neto (2010, p. 173) “com relação ao texto e ao conceito
de representação discursiva, afirmam que todo texto constrói, com maior ou menor
explicitação, uma representação discursiva do seu enunciador, do seu ouvinte ou leitor e dos
temas ou assuntos tratados”.
A representação discursiva tem como principal objeto de análise textual a proposição-
enunciada. Assim, Adam (2011, p. 113-114) nos afirma que:

Toda proposição enunciada possui um valor descritivo. A atividade


discursiva de referência constrói, semanticamente, uma representação, um
objeto de discurso comunicável. Esse microuniverso semântico apresenta-se,
minimamente, como um tema ou objeto do discurso posto e o
desenvolvimento de uma predicação ao seu respeito. A forma mais simples á
estrutura que associa um sintagma nominal a um sintagma verbal, mas, de
ponto de vista semântico, uma proposição pode muito bem se reduzir a um
nome e um adjetivo.

Segundo Adam (2011), a proposição-enunciada tem como principal característica a


descrição, e nessa atividade, ela refere-se a uma representação do texto manifestando
comunicação entre o locutor e o interlocutor. A proposição enunciada pode ser se resumir a
um texto, frase ou uma palavra. Nesse sentido, na análise ela pode se reduzir a um sintagma
verbal ou nominal e, ainda, a um adjetivo.
Segundo Queiroz (2013, p.49), a “representação discursiva se constrói e é construída a
partir de um enunciado mínimo proposicional, composto de sintagma nominal e de um
sintagma verbal, até um grande bloco de microunidades representacionais, formado por
1175

períodos, parágrafos e sequências”. Nesse sentido, compreendemos que uma representação


discursiva pode se manifestar e ser construída na leitura ou escrita de um dado texto, em uma
dada situação comunicativa.
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A representação discursiva pode ser classificada em três, a saber:

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1. A representação discursiva de si, ou seja, do locutor.
2. A representação discursiva do leitor ou ouvinte, isto é, do alocutário.
3. A representação discursiva do tema tratado.
Queiroz (2013) afirma que a representação discursiva do locutor corresponde à
imagem que o autor faz de si no texto. A representação discursiva do alocutário é a imagem
do leitor ou ouvinte no processo de construção do texto. E, por fim, a representação discursiva
do tema tratado, é o conteúdo do texto, as informações elaboradas, veiculadas e interpretadas
por um agente-locutor e reinterpretadas pelos seus interlocutores. Essas informações podem
ser vistas pelos interlocutores como válidas e verdadeiras.

1.4 Categorias de Análise

No processo de construção das representações discursivas, no campo semântico do


texto, há cinco categorias analíticas, a saber: a referenciação, a predicação, a aspectualização,
a relação e a localização. Assim, Rodrigues, Passeggi e Silva Neto (2010), conceitua cada
uma delas, como veremos a seguir.
1. A referência é aquilo que designamos, representamos, e sugerimos em uma situação
discursiva referencial.
2. A predicação (verbal) remete tanto a operação de seleção dos predicados, isto é, a
designação dos processos, no sentido amplo (ações, estados, mudanças de estado).
3. A aspectualização refere-se às características ou propriedades tanto dos referentes como
das predicações, ou seja, qualifica as ações verbais.
4. A relação corresponde a dois processos que é assimilação analógica que é baseada na
comparação, e ela tem como objetivo as ligações entre os enunciados.
5. A localização corresponde aos tempos espaçotemporais em que ocorrem as ações que os
participantes estão inseridos.
Na seção a seguir, apresentaremos as análises das representações discursivas de Dilma
Rousseff por meio da predicação e da aspectualização da predicação em fragmentos do
discurso proferido para o dia Internacional das Mulheres.
1176
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2 Análise dos dados

O corpus deste estudo é constituído pelo discurso da Presidenta Dilma Rousseff,


coletado no site do Governo Federal, proferido na Cerimônia de abertura da 4ª Conferência
nacional de políticas para as mulheres em Brasília. Assim, esse discurso se encontra para
análise organizada em quadros por meio de trechos discursivos em que estão presentes as
representações discursivas de Dilma Rousseff como mulher determinada, resiliente, lutadora,
vítima e injustiçada.
A seguir, serão dispostos três quadros com trechos discursivos, do discurso proferido
por Dilma Rousseff em que as representações discursivas são construídas por meio das
categorias de análises que são a predicação e a aspectualização da predicação. Os quadros
foram nomeados, de acordo, com as representações discursivas encontradas, em suas
respectivas análises. Assim, no quadro 1, as representações discursivas são resistente,
determinada e histórica. No quadro 2, figura incômoda, lutadora e injustiçada e no quadro 3,
injustiçada, vítima e lutadora. Esclarecemos que nos três (03) quadros são encontradas as duas
categorias analíticas que são a predicação, que revela os processos verbais e a aspectualização
que atribui qualidades aos processos verbais.

QUADRO 01- Resistente , Determinada e Histórica


(L 45-52) Olha gente, para mim é um momento muito importante, é um momento
decisivo. É um momento decisivo para a democracia brasileira esse momento que nós
estamos vivendo hoje. Sem dúvida, nós estamos num momento em que a gente sente que
nós estamos fazendo a história desse País. E para mim é muito importante que hoje eu
participe aqui da 4ª Conferência das Mulheres com cada uma de vocês. Eu não poderia
estar em um lugar melhor do que esse. Um lugar em que eu sinto a energia de vocês,
sinto o acolhimento de vocês e sinto essa imensa capacidade de luta, de resistência e
a determinação das mulheres brasileiras.

Neste fragmento, podemos perceber que as predicações constroem as representações


1177

discursivas de Dilma Rousseff, como uma mulher histórica, de energia, acolhedora, resistente
e de determinada. As predicações em destaque são: “nós estamos fazendo a história desse
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País”, “sinto a energia de vocês”, “sinto o acolhimento de vocês”, “sinto essa imensa
capacidade de luta” e “de resistência e a determinação das mulheres brasileiras”.
Assim, a primeira predicação que revela a representação semântica de Dilma Rousseff
é “nós estamos fazendo a história desse País”, demonstrando pelo processo verbal que ela
constrói a sua imagem de uma mulher histórica, pelo papel das mulheres na sociedade, pelas
conquistas de direitos, pela igualdade de oportunidades para todas e a valorização das
mulheres. No trecho em análise, podemos perceber como afirma Adam (2011), que ocorre a
ação visada, isto é, o objetivo desse discurso é mostrar as conquistas que as mulheres tiveram
em seu governo.
Na ocorrência “sinto a energia de vocês”, Dilma Rousseff revela a representação
discursiva dela de uma mulher de energia, por causa do momento histórico que ela e o Brasil
estão passando que é o processo de impeachment, essa energia que ela diz sentir é relacionada
ao apoio solidário que as pessoas têm com ela e que acreditam na sua inocência. No plano
textual-discursivo podemos dizer que Dilma Rousseff se encontra em uma formação
discursiva específica que integra a luta das mulheres brasileiras.
A predicação “sinto o acolhimento de vocês” revela a construção da imagem de uma
mulher acolhida. Nesse cenário, há a presença do verbo “sinto” mostrando o estado de ânimo
que a Presidenta se encontrava no momento do pronunciamento desse discurso, que é de
muita satisfação pelas políticas públicas que promoveu para ajudar as mulheres. E o nome,
“acolhimento” se refere à recepção e o apoio que Dilma Rousseff recebeu das mulheres na
conferência.
Há outra predicação que se revela por meio da proposição-enunciada que é “sinto essa
imensa capacidade de luta”, “de resistência e a determinação das mulheres brasileiras”.
Assim, nesse trecho do discurso a imagem construída é de uma mulher lutadora, determinada
e resistente, porque está lutando contra o processo de impeachment em que a ex-presidenta se
defende afirmando que é inocente. Dilma Rousseff é resistente, em primeiro lugar, porque é
mulher eleita pelo voto popular, enfrenta de cabeça erguida o processo de impeachment, e a
revolta dos opositores. Para tanto, há a aspectualização “essa imensa capacidade de luta”
mostrando a capacidade de lutar contra os problemas que aparecem na sua vida política,
1178

pessoal.
Os aspectos semânticos revelam que Dilma Rousseff é adjetivada como resistente e
determinada em tudo o que faz em sua vida, e essas características não é atribuída somente a
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ela, mas, também as mulheres do país, os atributos em destaque confirmam esse dizer: “de
resistência e a determinação das mulheres brasileiras”.
A seguir, o quadro 02 evidencia a construção de representações discursivas de Dilma
Rousseff.

QUADRO 02 – Figura Incômoda, lutadora e injustiçada


(L 64-70) Então a história vai mostrar, e vai mostrar como o fato de eu ser mulher me tornou
mais resiliente, mais lutadora. E muitas vezes como até hoje, queriam que eu renunciasse. Jamais
passou a renúncia pela minha cabeça. A renúncia passa pela cabeça deles, não pela minha. Por que
eu digo isso? Porque eu sou uma figura incômoda, porque enquanto eu me manter de pé, de
cabeça erguida, honrando as mulheres, ficará claro que cometeram contra mim uma
inominável injustiça, enorme injustiça. A renúncia é algo que satisfaz a eles, não a nós. A nós o
que satisfaz é a luta, é isso que nos satisfaz, é a luta.

Nesse trecho linguístico discursivo podemos notar que há várias predicações que
constroem as representações discursivas de Dilma Rousseff como mulher resiliente, lutadora,
como uma figura incômoda, honrada e injustiçada: “vai mostrar como o fato de eu ser
mulher”, “me tornou mais resiliente, mais lutadora”, “sou uma figura incômoda”, “de
cabeça erguida, honrando as mulheres” “cometeram contra mim uma inominável
injustiça” e “a nós o que satisfaz é a luta, é isso que nos satisfaz, é a luta”.
A primeira predicação “vai mostrar como o fato de eu ser mulher”, constrói
semanticamente a imagem de mulher que resiste firme e forte contra as acusações que recaem
contra ela. Ainda, nesse caso, há uma sequência de dois processos verbais, que são “vai
mostrar”, revelando, assim, que as mulheres possuem uma grande capacidade de luta e
resistência em enfrentar as intempéries da vida, isso, só ocorre pelo fato de ser uma mulher.
A predicação “me tornou mais resiliente, mais lutadora” confirma para todas as
mulheres que estavam presentes no momento do discurso que, por ela ser do sexo feminino, a
torna mais resiliente e lutadora tendo em vista: o processo de impeachment, a tortura durante
o golpe e, em 2009, a doença do câncer linfático. A predicação “sou uma figura incômoda”
1179

remete ao cenário político brasileiro, no que diz respeito ao que o opositor considera como
uma Presidenta que incomoda, por exemplo, por ter propiciado políticas sociais que
favoreceram a classe social menos favorecida.
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A representação de mulher honrada e de cabeça erguida aparece por meio das
expressões “de cabeça erguida, honrando as mulheres”, o que a torna um sujeito discursivo
que integra o espaço discursivo das mulheres em luta.
Ao mencionar o processo de impeachment, a ex-presidenta diz: “cometeram contra
mim uma inominável injustiça”, nesse trecho discursivo ela se representa injustiçada pelos
seus pares complementada pelo conjunto de predicações: “a nós o que satisfaz é a luta, é
isso que nos satisfaz, é a luta” o que revela a construção da representação discursiva de
lutadora.
A seguir, mais um quadro de construções semânticas de Dilma Rousseff como
injustiçada, vítima e lutadora.

QUADRO 03- Injustiçada, vítima e lutadora


(L 205-208) Eu quero finalizar dizendo o seguinte para vocês: eu me sinto injustiçada, sim. Eu sou
vítima de uma injustiça. Mas eu sou um tipo de vítima como nós brasileiros e brasileiras somos,
principalmente nós brasileiras, vítimas, porém lutadoras, vítimas que não desistem, vítimas com
consciência, vítimas com capacidade de luta.

Nos trechos, destacamos representações discursivas de injustiçada, vítima e lutadora


reveladas nos fragmentos: “eu me sinto injustiçada”, “sou vítima de injustiça”, “eu sou
um tipo de vítima como nós brasileiros e brasileiras somos” “vítimas, porém lutadoras,
vítimas que não desistem, “lutadora” e “eu me sinto injustiçada”. Em todos os fragmentos
temos o uso “eu me” cujo objetivo é assumir a sua voz de mulher que sendo lutadora, resiste
à opressão advinda do mundo machista, do mundo da política, da violência sexual e
doméstica, do trabalho, dentre outros setores sociais, mas que como todos as mulheres ali
representadas continuam com capacidade de lutar diante de adversidades.

Considerações finais

No presente estudo, propusemos como objetivo analisar as construções das


1180

representações discursivas de Dilma Rousseff, em um discurso, proferido em Brasília, no dia


10 de Maio de 2016. Para tanto, utilizamos como corpus desse trabalho o discurso de Dilma
Rousseff. Assim, as representações discursivas foram construídas por meio das categorias
Página

semânticas do texto que foram à predicação e a aspectualização da predicação. Nesse sentido,

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compreendemos a predicação verbal como à operação de seleção dos predicados, e a
aspectualização como as propriedades tanto dos referentes como das predicações.
Assim, os resultados das análises revelaram que as representações discursivas de
Dilma Rousseff encontradas no primeiro quadro são: de uma mulher resistente, determinada e
histórica. No segundo quadro, ela se considera uma figura incômoda, lutadora e injustiçada.
Por fim, Dilma Rousseff é representada discursivamente como injustiçada, vítima e lutadora.

Referências

ADAM, J. M. A Linguística Textual: introdução à análise textual dos discursos. Trad.


RODRIGUES, M. G. S; SILVA NETO, J. G; PASSEGGI, L; LEURQUIN. E.V. L. F. São
Paulo: Cortez, 2011 [2008].

CAVALCANTE, M. M. Os sentidos do texto. 1. ed. 2ª reimpressão. São Paulo: Contexto,


2012. p.16-42

GUIMARÃES, E. Texto, discurso e ensino. São Paulo: Contexto, 2009. p. 125-174.

PASSEGGI, Luis et al. A análise textual dos discursos: para uma teoria da produção
co(n)textual de sentido. In: LEITE, M. Q; BENTES, A. C. (Org.). Linguística de texto e
análise de conversação: panorama das pesquisas no Brasil. São Paulo: Cortez, 2010. p. 263-
312.

QUEIROZ, M. E. Representações discursivas no discurso político. “Não me fiz sigla e


legenda por acaso”: o discurso de renúncia do senador Antonio Carlos Magalhães
(30/05/2001). Tese de Doutorado- (Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem),
Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Natal. 2013. 188f.

RODRIGUES, M. G. S; PASSEGGI, Luis; SILVA NETO, J. G. (Org.). “Voltarei. O povo me


absolverá...”: a construção de um discurso político de renúncia. In: ADAM, J. M;
HEIDEMANN, U. MAIGUENEAU, D. Análises textuais e discursivas: metodologias e
aplicações. São Paulo: Cortez, 2010. p. 151-208.

ROUSSEFF, D. V. Discurso da Presidenta da República, Dilma Rousseff, durante


cerimônia de abertura da 4ª Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres -
Brasília/DF. Disponível em: <http://www2.planalto.gov.br/acompanhe-o-
planalto/discursos#b_start=20>. Acesso em: 15 de maio de 2016.
1181
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GT12 - MÍDIA, IMAGEM E SOCIEDADE

PIXOTE: A LEI DO MAIS FRACO E ESCRITORES DA LIBERDADE: AS RELAÇÕES


IDENTITÁRIAS DE SIMILITUDE E DESSEMELHANÇA NAS DUAS PELÍCULAS
NA VISADA DOS ESTUDOS CULTURAIS

Ana Rafaela Oliveira e Silva (UFRN)


Francisco Vieira da Silva (UFERSA)

Palavras iniciais

Pixote: a lei do mais fraco (1980) e Escritores da Liberdade (2007) são filmes
produzidos em épocas diferentes, mas que guardam em si relações de similitude e
dessemelhança no tocante à identidade, assunto este que na atualidade tem provocado
acaloradas discussões no âmbito da Linguística Aplicada do Brasil e do exterior. Assim, os
filmes em questão possibilitam-nos perceber como os sujeitos marginalizados – negros,
pobres, imigrantes, gays, prostitutas - relacionam-se com o meio que o cercam, entender o
porquê de travarem conflitos com os sujeitos que consideram não pertencer ao seu meio
socio-histórico-cultural, assim como, compreender o papel que os grupos de amigos e as
gangues em que se inserem exercem na vida dos indivíduos excluídos dos benefícios da
modernidade.
Nessa perspectiva, percebe-se tanto em Pixote: a lei do mais fraco (1980) como em
Escritores da Liberdade (2007) a presença de algumas leis sociais, como a lei do mais forte,
que estão constantemente representadas e se fazem mais visíveis na medida em que a luta pela
sobrevivência, por abrigo ou proteção começam a falar mais alto. Nesse sentido, no filme
Pixote: a lei do mais fraco (1980), o que é retratado é a rotina dentro e fora de um
reformatório em que crianças e adolescentes convivem lado a lado e desde muito cedo com
drogas, prostituição, modos de cometerem assaltos e esquemas de fugas que lhes garante
sobreviver em meio ao obscurantismo social.
Já em Escritores da Liberdade (2007), filme que é baseado no livro “O Diário dos
Escritores da Liberdade”, vemos uma escola com uma visível política de discriminação em
1182

relação aos menos abastados socialmente que, neste caso são jovens de diversas origens –
brancos, negros, latinos - moradores da periferia dos Estados Unidos e pertencentes a
gangues ou cumpridores de medidas socioeducativas. No entanto, neste filme o aspecto
Página

particular em relação a Pixote: a lei do mais fraco (1980) é a linguagem como prática social,

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capaz de transformar as realidades daqueles que tem sobre si os olhares deterministas da
sociedade.
Diante dessas breves considerações, o trabalho está organizado em quatro seções: na
primeira, vamos fazer algumas considerações acerca da identidade à luz dos estudos culturais.
Na segunda seção, apresentamos os filmes Pixote: a lei do mais fraco (1980) e Escritores da
Liberdade (2007) no que diz respeito ao enredo de ambos. Na terceira seção, discutimos sobre
as relações identitárias comuns a ambos os filmes e na quarta abordamos os aspectos
particulares a cada uma das produções. Por fim, apresentaremos as nossas conclusões a
respeito das relações de identidade existes entre os filmes mencionados anteriormente.

2 A identidade à luz dos estudos culturais

A sociedade é perpassada por transformações de âmbito histórico-social – capitalismo,


Revoluções Industrial e Francesa, 1° e 2° grande Guerra Mundial, impeachment presidencial e
eleições democráticas – culturais – formação de grupos góticos, hippies, homoafetivos, tabus
em torno de determinados assuntos como o sexo, ou quando a criança passa a ser um adulto
dentro de determinadas sociedades.
Na contemporaneidade, vivemos em uma sociedade fluida cujas tradições da
sociedade moderna começam a declinar, ao mesmo tempo em que fazem do sujeito atual um
ser fragmentado que, se constitui a partir dos discursos sociais e a partir destes molda-se,
assumindo “[...] posições identitárias [...] fruto de movimentos de identificação, sempre
instáveis e incompletos – pelo trabalho de interpelação dos discursos sobre nós”.
(GRIGOLETTO, 2005, p. 56). Além disso,

Como sujeitos de linguagem que somos e sujeitos constituídos por discursos,


a assunção de posições identitárias é naturalmente perpassada pela nossa
relação com as discursividades colocadas em jogo no processo sócio-
histórico-ideológico de produção dos sentidos e dos próprios sujeitos.
(GRIGOLETTO, 2005, p. 56).

Diante disso, mudam-se os tempos, modificam-se os discursos sociais que perpassam


1183

os sujeitos socio-discursivos. Nesse processo metamórfico, moldam-se as identidades desses


sujeitos que sendo fluidas “[...] torna-se uma ‘celebração móvel’: formada e transformada
continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos
Página

sistemas culturais que nos rodeiam”. (HALL, 1987 apud HALL, 2005, p. 13). Assim,

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entendemos que os sujeitos sociais não mais aceitam a identidade unificada já que nos tempos
atuais esta constrói-se constantemente, defronta-se com conflitos, os quais são englobados,
segundo Duschatzky e Skliar (2001), dentro de três categorias: “O outro como fonte de todo o
mal; os outros como sujeitos plenos de uma marca cultural, e o outro como alguém a tolerar”.
Em relação ao outro como fonte de todo o mal, este processo engloba os conflitos dos
sujeitos sociais com o seu semelhante, conflitos esses que levam a eliminação física daqueles
considerados inferiores culturalmente ou que carregam em si os discursos negativos que
norteiam a sociedade. No tocante ao outro como sujeito pleno de uma marca cultural, aqui
temos aqueles detentores de uma marca de homogeneidade, ou seja, são sujeitos diferentes em
questões raciais, sexuais e identitárias, mas considera-se sob esse prisma que todo sujeito “[...]
adquire identidades plenas a partir de únicas marcas de identificação, como se por acaso as
culturas se estruturassem independentemente de relações de poder e hierarquia”.
(Duschatzky; Skliar, 2001, p. 127). O outro como alguém a tolerar, por sua vez, diz respeito
aos discursos de tolerância que imperam na sociedade diante daqueles alijados sociais, pois
esses discursos podem reunir em si diferentes objetivos ou pontos de vista.
Diante das discussões empreendidas nesta seção acerca de identidade, percebemos que
esta não pode ser determinada por alguém, ao contrário, ela se estabelece e é moldada de
acordo com os discursos sociais de cada época, “Assim, a identidade, como o sujeito, não é
fixa, está sempre em produção, encontra-se em um processo ininterrupto de construção e é
caracterizada por mutações”. (FERNANDES, 2005, p. 43) e, não é um processo isolado já
que envolve discursos, sujeitos e a sociedade e suas transformações ao longo do tempo. A fim
de aprofundarmos as discussões acerca da identidade, na seção seguinte vamos apresentar
breves considerações acerca dos filmes Pixote: a lei do mais fraco (1980) e Escritores da
Liberdade (2007), nos quais, destacaremos alguns dos aspectos identitários abordados por
Duschatzky; Skliar (2001).

3 Pixote: a lei do mais fraco e escritores da liberdade: algumas considerações

Os filmes Pixote: a lei do mais fraco (1980) e Escritores da Liberdade (2007) foram
1184

selecionados como corpus deste trabalho em virtude das relações de semelhança que ambos
reúnem em si no que diz respeito, sobretudo, às questões de identidade, pois são produções
cinematográficas com nacionalidades diferentes (brasileira e americana) que retratam as
Página

realidades dos que vivem à margem da sociedade em seus países e têm sobre si os olhares

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deterministas desta. Além disso, a seleção dos filmes ocorreu também porque entendemos que
além das semelhanças, há as diferenças, principalmente no que se refere a influência da
linguagem como elemento libertador do sujeito social.
Diante disso, o filme Pixote: a lei do mais fraco é uma produção cinematográfica
brasileira de 1980 dirigida por Hector Babenco. Neste é retratado a realidade de crianças e
adolescentes infratores que foram apreendidos em um reformatório. Neste ambiente, elas
vivem em condições sub-humanas de proteção à sua integridade física, alimentar e
educacional. Sem mais suportar essa realidade, os menores fogem e, na rua, têm contato com
uma nova realidade composta por drogas, tráfico, prostituição, assaltos e assassinatos. Dessa
forma, aos poucos as crianças e adolescentes vão se separando por motivo de morte ou ciúmes
dos relacionamentos que seus parceiros começaram com outras pessoas que conheceram.
Assim,

O longa-metragem, ao longo de toda a narrativa, tenciona revelar a origem


social da delinquência, em tom de denúncia, desenhando para tanto os
contornos de um mundo sem perspectivas no qual as crianças estão
submetidas a adultos sem nenhuma intenção de acolhê-los. (REIS JUNIOR;
LAMAS, 2014, p. 92).

Nessa perspectiva, a lei do mais fraco é sempre fugir em busca de abrigo, pegar em
armas para se proteger ou cometer delitos, usar drogas para ser aceito no novo grupo e, ao
mesmo tempo, fugir da realidade na qual está inserido, assim como, conviver com os mais
diversos estereótipos humanos – gays, traficantes, prostitutas, cafetões, desde que tudo isso,
de algum modo, evite que os adolescentes voltem ao reformatório e sejam repreendidos por
seus atos infratores e de fuga.
Em Escritores da Liberdade (2007), filme dirigido por Richard LaGravenese e
baseado em uma história real, é abordada a realidade de jovens pobres e pertencentes a vários
grupos étnicos - negros, brancos, latinos – que moram no subúrbio americano e frequentam
uma escola modelo, o Colégio Wilson, cujo programa de estudos contempla uma política de
inclusão de jovens que cumprem medidas socioeducativas. Suas realidades dentro e fora da
escola começam a mudar quando a professora Erin Gruwell aborda o holocausto mostrando-
1185

lhes realidades semelhantes as suas. “A partir desse projeto, estudando a história do


holocausto, a turma superou seus problemas, passando de guetos a uma família sem
preconceitos e feliz” (OLIVEIRA, 2010, p. 03).
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Por meio de diários escritos pelos próprios alunos, a educadora da classe 203 conhece
a realidade social e familiar de seus educandos. São, portanto, esses diários que mais tarde
serão publicados em um livro intitulado “O diário dos escritores da liberdade” e que, servirão
como elemento de liberdade daqueles jovens que estavam fadados a repetir as histórias de
seus parentes e amigos marginalizados.
Em face das considerações acima, passemos às análises dos filmes Pixote: a lei do
mais fraco (1980) e Escritores da Liberdade (2007).

4 Pixote: a lei do mais fraco e escritores da liberdade: nacionalidades diferentes,


realidades parecidas - relações identitárias semelhantes aos dois filmes

Nesta seção, vamos tratar das relações de identidade semelhantes aos filmes Pixote: a
lei do mais fraco (1980) e Escritores da Liberdade (2007). Para tanto, vamos abordá-las a
partir de três aspectos: campos institucionais em que os personagens transitam; papéis
assumidos pelos protagonistas de acordo com a esfera social na qual se inserem ou com o
interlocutor com quem conversam e, por fim, a identidade marcada pela diferença.
Em relação ao primeiro aspecto - os diferentes campos institucionais nos quais os
personagens transitam - destacamos que em ambos os filmes os “[...] ‘campos sociais’, tais
como as famílias, os grupos de colegas, as instituições educacionais, os grupos de trabalho ou
partidos políticos”. (WOODWARD, 2000, p. 30) estão presentes, mas aparecem de modo
diferente. Assim, em Pixote: a lei do mais fraco (1980) os campos sociais são cambiantes
porque os personagens constantemente estão em busca de novos lugares nos quais possam
fixar moradia e sobreviver. Além disso, as relações familiares dos personagens são
conflituosas, a ponto de a todo tempo as suas mães serem xingadas com palavras obscenas.
Já em Escritores da Liberdade (2007) as mesmas instituições a que nos referimos
anteriormente aparecem tanto de modo fixo como cambiante, haja vista que, enquanto alguns
personagens não têm a necessidade de constantemente estarem buscando novos locais de
moradia já que convivem com suas famílias, outros residem em habitações alugadas, por este
motivo têm suas casas invadidas, suas famílias agredidas e despejadas. Além disso, é comum
nas duas produções as famílias paralelas que se formam, ou seja, os grupos de amigos nos
1186

quais os protagonistas estão inseridos. Dessa forma, assim como em Pixote os 04 amigos –
Pixote; Lilica; Dito e Chico - que formam o núcleo principal do filme, constituem uma família
Página

diferenciada em que,

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[...] Lilica é esperta, protetora, doce e acolhedora, por isso assume o papel da
mãe. Dito, seu homem, encara a postura de pai e os dois juntos portam-se
como os líderes por serem mais experientes. Pixote, o filho, com 10 anos de
idade, olhos tristes e certa inocência. Chico representa o irmão mais velho, e
junto com Pixote seguem respeitando as instruções dos “pais” (OLIVEIRA,
2009, p. 67).

Em Escritores da Liberdade, essa família paralela é formada em dois momentos,


inicialmente na figura das gangues, grupos rivais a quem os seus membros deveriam proteger,
e posteriormente, com a superação dos problemas dos alunos as gangues, transformaram-se
em uma família capaz de juntos superarem os seus conflitos e lutar pelos seus ideais, ou seja,
a partir disso, temos um binarismo em relação “[...] a força versus fragilidade que a sociedade
tem na construção da subjetividade do indivíduo” (LEMOS; BARBOZA, 2008, p. 02 grifo
das autoras).
Em se tratando do segundo aspecto - os diferentes papéis que os personagens assumem
de acordo com a esfera social na qual se inserem ou com o interlocutor com quem conversam
- é notório em Pixote: a lei do mais fraco (1980) os diversos papéis que as crianças assumem,
pois ora são menores infratores reclusos de sua liberdade em um ambiente prisional
completamente hostil à sua recuperação social, ora são pequenos traficantes que negociam
drogas para e com outros traficantes e prostitutas hierarquicamente superiores a eles. Em
outros momentos, são apenas crianças refletindo sobre a vida enquanto tomam banho de mar
com roupas de banhos roubadas de banhistas. Em face disso, Hall (1997) assevera que,

Embora possamos no ver, seguindo o senso comum, como sendo “a mesma


pessoa” em todos os nossos diferentes encontros e interações, não é difícil
perceber que somos diferentemente posicionados, em diferentes momentos e
em diferentes lugares, de acordo com os diferentes papéis sociais que
estamos exercendo. (HALL, 1997 apud WOODWARD, 2000, p. 31).

Outro personagem que muda de papel de acordo com a situação social e de


interlocução em que se encontra é a prostituta Sueli, interpretada por Marília Pêra, pois ora ela
é apenas uma prostituta, ora comporta-se como uma mãe para Pixote e ora é a namorada de
Dito que, por sua vez, é o namorado de Lilica. Esse papel também muda de acordo com o seu
1187

interlocutor, pois enquanto prostituta, Sueli assume um discurso de paquera e conquista com o
seu cliente, quando conversa com Pixote, Lilica e Dito ela assume um discurso financeiro,
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maternal e também amoroso.

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Em Escritores da Liberdade (2007) a mudança de papéis mencionada por Woodward
(2000) que os personagens assumem, assim como em Pixote, também estão situadas dentro da
esfera social em que estão que pode ser no – tribunal de justiça testemunhando a respeito de
algum crime que presenciaram - ou com o interlocutor com o qual conversam – diretora do
colégio, professora ou amigos.
Por fim, o terceiro ponto que destacamos é o fato de em ambos os filmes
presenciarmos a identidade marcada pela diferença, no caso de Pixote: a lei do mais fraco
(1980) essa diferença é marcada, sobretudo, no espaço do reformatório e acontece não só
entre os menores como também destes com os seus cuidadores, o que os leva a serem
violentados sexualmente, fisicamente, moralmente e mesmo assassinados. A esse respeito,
Duschatzky; Skliar (2001, p. 124, grifo dos autores), assinalam que “o outro diferente
funciona como o depositário de todos os males, como portador das falhas sociais”. Ainda
segundo eles, “[...] os antagonismos situacionais e contingentes não se originam em nenhum
exterior social [...] eles expressam posições discursivas em conflito”. (DUSCHATZKY;
SKLIAR, 2001, p. 125). Essas posições em conflito vão se repetir ao longo do filme quando
os menores se veem ameaçados por aqueles com quem convivem.
Percebemos ainda que em Escritores da Liberdade (2007) a questão da identidade
marcada pela diferença está presente porque embora os personagens frequentem os mesmos
espaços, compartilhem o gosto pelo mesmo estilo de dança e música, e residam nos mesmos
espaços físicos, acabam não percebendo as semelhanças que têm em comum por pertencerem
a gangues diferentes e rivais. O fato de terem tantos elementos em comum caracteriza a
identidade marcada pela simbologia, uma vez que, “existe uma associação entre a identidade
da pessoa e as coisas que uma pessoa usa”. (WOODWARD, 2000, p. 10).
Nesse filme, é possível notarmos que a professora, na primeira parte da película, é
vista pelos alunos como um representante da sociedade que os exclui e que tem uma
perspectiva negativa sobre eles. Assim, os conflitos que com ela se estabelecem funcionam
como uma defesa pessoal destes e porque a professora é vista como alguém exterior a sua
cultura que não compreende os motivos de suas batalhas travadas diariamente. Entendemos, a
partir disso que há em sua figura, a representação do “[...] outro [refletindo e representando]
1188

aquilo que é profundamente familiar ao centro, porém projetado para fora de si mesmo”
(DUSCHATZKY; SKLIAR, 2001, p. 123 grifo nosso).
Diante das abordagens dos graus de semelhanças identitárias que existem entre os
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filmes Pixote: a lei do mais fraco (1980) e Escritores da Liberdade (2007) percebemos,

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sobretudo, a partir dos três aspectos delineados nesta seção, que ambas as produções têm
muito em comum, mesmo sendo de nacionalidades diferentes, haja vista que, nas sociedades
colonizadas e colonizadoras sempre vão existir binarismos sociais de inclusão e exclusão,
centro e periferia, opressor e oprimido. Vão existir também as relações de alteridade sejam
elas para transformar realidades consideradas perdidas como em Escritores da Liberdade ou
para deixar que o outro padeça, como em Pixote: a lei do mais fraco.
Em face das relações de semelhança entre os filmes supracitados, vamos na seção
seguinte abordar as relações identitárias de dessemelhança em Pixote: a lei do mais fraco
(1980) e Escritores da Liberdade (2007).

5 Pixote: a lei do mais fraco (1980): relações identitárias particulares ao filme

Nesta seção vamos discorrer a respeito de aspectos identitários que se apresentam de


modo diferente nos filmes adotados como corpus deste trabalho. Para tanto, em Pixote: a lei
do mais fraco (1980) vamos abordar dois pontos de vista: condições sociais e materiais da
identidade e a identidade sexual, aspectos estes que perpassam toda a produção de Hector
Babenco.
Em relação às condições sociais e materiais da identidade, vemos no filme supracitado
que a exclusão sofrida pelos menores é decorrente de sua condição social marginal. Por isso,
as personagens constantemente estão mudando para lugares que, de uma maneira ou de outra
são ofertadas condições de sobrevivência, mesmo que esse ambiente seja um contexto repleto
de drogas, tráfico e prostituição. Nessa perspectiva, Woodward (2000, p. 14, grifos da autora)
enfatiza que, “a identidade está vinculada também a condições sociais e materiais. Se um
grupo é simbolicamente marcado como o inimigo ou como tabu, isso terá efeitos reais porque
o grupo será socialmente excluído e terá desvantagens materiais”.
No referido filme, é notória a questão da identidade sexual, pois enquanto o
personagem gay é constantemente hostilizado, sobretudo, dentro do reformatório em que o
espaço é predominantemente masculino, o comportamento de outro personagem, o Dito, um
dos meninos do grupo de Pixote, é metamórfico em relação à sua identidade sexual, pois ora
ele mantém um relacionamento homoafetivo com o personagem gay, a Lilica, ora é
1189

heterossexual se relacionando afetivamente com a prostituta Sueli. A esse respeito, “[...] a


forma como vivemos nossas identidades sexuais é mediada pelos significados culturais sobre
Página

a sexualidade que são produzidos por meio de sistemas dominantes de representação”.

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(WOODWARD, 2000, p. 33). Além disso, “as identidades sexuais também estão mudando,
tornando-se mais questionadas e ambíguas, sugerindo mudanças e fragmentações que podem
ser descritas em termos de uma crise de identidade” (WOODWARD, 2000, p. 32).
Desse modo, passamos da imposição à liberdade de escolha sexual. Em Pixote, vemos
essa liberdade de escolha nos relacionamentos que o personagem Dito assume ao longo do
filme, caracterizando que, “a identidade sexual não é mais concebida como um destino ou
como uma carreira sexual prescrita, mas como um projeto que podemos perseguir para
concretizar nossas possibilidades de expressar desejo sexual”. (MOITA LOPES, 2009, p. 45).
Em face das análises acerca das particularidades presentes no filme Pixote: a Lei do
mais fraco (1980) vamos, na seção a seguir, analisar os aspectos particulares ao filme
Escritores da Liberdade (2007).

6 Escritores da Liberdade (2007): relações identitárias inerentes ao filme

Em Escritores da Liberdade, vamos discutir os aspectos identitários reservados à essa


produção partindo dos seguintes pontos: condições materiais; redescoberta do passado como
construção da identidade; o outro como sujeito pleno de uma marca cultural; e a linguagem
enquanto prática social.
No tocante as condições materiais presentes em Escritores da Liberdade, percebemos
que estas definem as relações estabelecidas entre o corpo discente e docente do Colégio
Wilson, pois,

Esta escola era formada por alunos de origem familiar da classe média, onde
todos eram iguais. Entretanto, foi implementada uma política social de
inserção de alunos de classe baixa a esta mesma escola, fazendo com que os
conflitos sociais surgissem (LEMOS; BARBOZA, 2008, p. 01).

É em detrimento dessa política de exclusão que os alunos, ávidos por uma identidade,
vão formar gangues nas quais possam se proteger, demarcar território, demonstrar força e
poder. No entanto, “[...] a relação entre membros de diferentes grupos era vista como uma
perda desta identidade. Desta forma, a xenofobia estava cada vez mais presente e cruelmente
1190

imposta entre os alunos” (LEMOS; BARBOZA, 2008, p. 02).


No que se refere à redescoberta do passado como construção da identidade Woodward
(2000, p. 12 grifo da autora) destaca que, “[...] essa redescoberta do passado é parte do
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processo de construção da identidade que está ocorrendo neste exato momento e que [...] é
caracterizado por conflito, contestação e uma possível crise”. Nessa perspectiva, em
Escritores da Liberdade a identidade a partir da redescoberta do passado vai sendo construída
por meio da abordagem da história do holocausto a qual os personagens do filme não
conheciam, mas tinham semelhanças na forma como combatiam os rivais (formação de
gangues e demarcação de territórios) e xingar os próprios colegas de sala (por meio de
charges e ofensas), funciona como um desencadeador das histórias locais dos personagens,
como: xenofobia, agressões, reclusão da liberdade, brigas de rua, ausência de moradia e
aconchego familiar. Além disso, Woodward (2000) chama a atenção para as novas
configurações no âmbito financeiro familiar, pois até algum tempo atrás era dever do pai
trabalhar e angariar fundos para sustentar a família enquanto a mãe ficava em casa cuidando
dos filhos, da casa e do marido, hoje esse cenário familiar ganha novas configurações
conforme a autora supracitada destaca: “É igualmente notável a emergência de novos padrões
de vida doméstica, o que é indicado pelo crescente número de lares chefiados por pais
solteiros ou por mães solteiras bem como pelas taxas elevadas de divórcio (WOODWARD,
2000, p. 32).
Nesse sentido, em Escritores percebemos muito claramente os novos padrões de vida
a que Woodward (2000) faz referência, uma vez que, são as mães dos adolescentes, as
responsáveis por trabalhar e assegurar, na medida do possível, o bem-estar dos filhos. Dessa
perspectiva, não vemos a presença paterna de modo a prover a família, haja vista que estes ou
estão apenados ou abandonaram os seus lares.
Outra questão a ser discutida é o outro como sujeito pleno de uma marca cultural,
nesse pensamento,

[...] as culturas representam comunidades homogêneas de crenças e estilos


de vida. O estudo das culturas primitivas deu origem ao mito do arquétipo
cultural que sustenta que cada cultura se funda em um padrão que outorga
sentido pleno à vida de todos seus membros, como se se tratasse de redes
perfeitamente tecidas que tudo capturam (DUSCHATZKY; SKLIAR, 2001,
p. 127).

Nesse sentido, no filme Escritores da Liberdade (2007) as várias etnias que


1191

compunham o corpo discente do Colégio Wilson, sobretudo, os marginalizados socialmente,


eram vistos como seres unos, que vivenciavam a sua cultura de uma única forma. Tanto que,
Página

quando algum assunto acerca da literatura negra era abordado em sala de aula das turmas mais

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avançadas, eram os poucos alunos negros os convidados a fornecerem as explicações acerca
da obra trabalhada.
No filme, identificamos também que essa noção de unidade está presente na literatura
negra, fato que se comprova na película pela resposta que uma professora fornece a uma aluna
negra quando é indagada a respeito do porquê de não se estudar a literatura Afro, segundo a
docente, esse tipo de literatura representava aspectos negativos como sexo e violência.
Entendemos, portanto, que essa visão a respeito da unidade cultural em etnias e suas
literaturas compõe o mito da consistência interna em “[...] que cada cultura é harmoniosa,
equilibrada, auto-satisfatória” (DUSCHATZKY; SKLIAR, 2001, p. 127).
Por fim, o outro aspecto que torna as relações identitárias entre os filmes Pixote: a lei
do mais fraco (1980) e Escritores da Liberdade (2007) distintas diz respeito ao uso da
linguagem como elemento libertador do sujeito, pois enquanto no primeiro filme as aulas
dentro do reformatório ocorriam de modo tradicional, apenas para cumprir o currículo da
instituição, no último filme a escrita dos diários que outrora fora denominado de “O diário dos
escritores da liberdade”, assim como, a escrita das cartas trocadas entre os alunos da turma
203 e as vítimas do holocausto, foi fundamental para levar o aluno a se expressar e mostrar à
sociedade que a linguagem não é uma representação do pensamento, mas sim uma prática
social situada dentro de esferas sociocomunicativas.
Constatamos, assim, que diferentemente da professora do filme Pixote: a lei do mais
fraco (1980) que ensinava aos seus alunos que a “Terra é redonda como uma laranja” e não
atribuía nenhum significado a essa frase, a educadora de Escritores da Liberdade (2007) foi
além, pois levou os seus alunos a usarem a linguagem para interagirem com outras pessoas
que no passado foram vítimas de uma sociedade ditadora, para explicarem ao mundo como é
viver à margem da sociedade e para mostrar como a linguagem pode libertar os sujeitos
sociais das correntes que a sociedade de visão determinista impõe sobre os mais “frágeis”.
Dessa forma, vislumbramos que a linguagem enquanto prática social é capaz de levar
os sujeitos socio-discursivos a lugares e pessoas até então desconhecidos, haja vista que nela a
linguagem em sua forma oral e/ou escrita funciona como um processo de refacção, de
aprimoramento, adequação às mais diferentes situações socio-comunicativas e interação
1192

social.
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Palavras finais

Neste trabalho, a título de conclusão, percebemos semelhanças e diferenças em relação


às obras cinematográficas Pixote: a lei do mais fraco (1980) e Escritores da Liberdade
(2007), observamos em nossas análises que seja no Brasil ou, nos Estados Unidos que a
sociedade possui um olhar de exclusão para com os pobres, negros, brancos, latinos ou
aqueles que frequentaram reformatórios. Entendemos também que é esse olhar de exclusão
que aprisiona o ser humano em sua realidade marginal e que os grupos que formam os tornam
mais fortes e os identificam perante essa sociedade de olhar marginal.
Concluímos também que a linguagem, em qualquer sociedade, pode transformar o
sujeito e a realidade na qual ele vive mostrando-o para o mundo pelo que realmente é e não
pelo que demonstra ser em decorrência dos grupos e das batalhas que trava constantemente
para se firmar no meio em que habita.

Referências

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cultura e na educação. In: LAROSSA, Jorge; SKLIAR, Carlos (Orgs.). Habitantes de Babel:
políticas e poéticas da diferença. Belo Horizonte: Autêntica, 2001, p, 119-138.

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color. Dublado. Port.

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In: ______. Análise do discurso: reflexões introdutórias. Goiânia: Trilhas Urbanas, 2005, p.
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FREIRE, Maximina; ABRAHÃO, Maria Helena Vieira; BARCELOS, Ana Maria Ferreira.
(Orgs.). Linguística aplicada e contemporaneidade. São Paulo: ALAB; Campinas: Pontes,
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HALL, Stuart. A identidade em questão. In: ______. A identidade cultural na pós-


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LEMOS, Amanda Sodero; BARBOZA, Leila Maribondo. Escritores da liberdade. Revista


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Ensaios. Rio de Janeiro, v.1, n.1, ano 1, p. 01-02, 2º semestre de 2008.

MOITA LOPES, Luiz. Paulo da. Linguística Aplicada como lugar de construir verdades
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OLIVEIRA, Renata Angélica de. Do fato ao ficto: de pixote a lei do mais forte para pixote a
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concepção de currículo. Pedagogia em Ação, PUC-MG, v. 2, n.1, p. 13-17, 2010.

PIXOTE a lei do mais fraco. Direção: Hector Babenco, 1980. Drama. 2‘07”, son., color.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=TCCK3k0OKtc. Acesso em: 20/12/2015.

REIS JUNIOR, Antônio; LAMAS, Caio. A infância aniquilada sob censura em Pixote: o
cinema brasileiro entre interdições e liberdades. Revista Brasileira de História da Mídia
(RBHM), São Paulo, v. 3, n. 2, p. 91-100, jul. / dez. 2014.

WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In:


SILVA, Tomaz Tadeu da, (Org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos
culturais. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 07-72.

1194
Página

ISBN: 978-85-7621-221-8
GT12 - MÍDIA, IMAGEM E SOCIEDADE

O USO DA PSICANÁLISE NA CRÍTICA CINEMATOGRÁFICA FEMINISTA

Aline Gama de Almeida188


Hionne Mara da Silva Câmara189

Introdução

O cinema é uma forma de arte que existe desde o ano de 1895 e em seus primeiros
anos, sofreu diversas transformações e reorganizações na forma de ser ciado e distribuído
(COSTA, 2006). Fernando Mascarello organiza uma obra com uma compilação de textos
sobre a história do cinema, onde o texto de Flávia Costa retrata os primeiros relatos: “A
história do cinema faz parte de uma história mais ampla, que engloba não apenas a história
das práticas de projeção de imagens, mas também a dos divertimentos populares, dos
instrumentos óticos e das pesquisas com imagens fotográficas” (COSTA, 2006. p. 17).
O cinema, como outras artes, é uma representação da vida do público. Fato este que
não poderia acontecer, por exemplo, em filmes de ficção científica, mesmo muitas vezes estes
representando emoções e situações que podem ser vivenciadas no cotidiano. Dentre os filmes
criados nas primeiras décadas do cinema, muitos reproduziam eventos reais, enquanto outros
eram documentais, ou seja, a arte imitava a vida, e ainda o faz na atualidade do cinema.
Mesmo quando, em meados de 1907, passaram a criar personagens inexistentes na história ou
no conhecimento do público, estes vivenciavam momentos comuns aos da vida real.
De acordo com James Dudley Andrew, antes de o cinema completar 20 anos já
surgiram seus primeiros estudos e críticas (ANDREW, 2002). Em sua obra As principais
teorias do cinema, ele faz um apanhado histórico dos primeiros estudos sobre o cinema, das
diferentes teorias que se concretizaram com o avanço e as diferentes formas de se fazer filme.
Críticos cinematográficos como Hugo Munsterberg, Sergei Eisenstein (da tradição formativa);
Siegfried Kracauer, André Bazin (da teoria realista) e Jean Mitry (da teoria cinematográfica
francesa contemporânea) analisavam o cinema através de suas formas técnicas, recursos
disponíveis, matéria-prima, objetivos e de outros tópicos relacionados às diferentes teorias.
1195

188
Doutora em Ciências Sociais e Professora colaboradora no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais
e Humanas da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (PPGCISH/UERN)
Página

189
Bacharel em Turismo e Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais e Humanas da
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (PPGCISH/UERN)

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Um dos temas do presente artigo, como introdução ao feminismo – já que o tema
central envolve crítica feminista – é sobre gênero, e, consequentemente, sobre o que é ser
mulher para autoras como Teresa de Lauretis, Judith Butler e Simone de Beauvoir.
Considerando que o artigo se propõe a discutir a crítica feminista ao cinema, é preciso
compreender que a crítica do cinema surgiu há quase tanto tempo quanto o cinema.
A metodologia utilizada na construção deste artigo é de caráter qualitativo, por se
tratar de uma pesquisa bibliográfica com base nas teorias do cinema de Laura Mulvey,
Elizabeth Kaplan e do feminismo de Butler e Beauvoir, entre outras autoras que também
tratam do tema. As autoras mencionadas foram importantes na teoria que diz respeito ao
cinema, à mulher e ao feminismo, servindo de exemplo e sendo mencionadas em diversas
outras obras190, Beauvoir deu margem para trabalhos acerca do feminismo que fazem com que
a teoria abordada em O segundo sexo até a atualidade seja ainda comentada, refeita,
construída. Diversos trabalhos foram escritos a partir da teoria destas autoras, dando
continuidade e novos significados em teorias que são ainda atuais.

1 Mulher e gênero

A discussão de mulher e gênero se faz necessária previamente ao debate sobre o papel


da mulher no cinema, e aqui serão usadas autoras que desconstruíram a ideia de que gênero
seria equivalente ou semelhante a sexo.
Teresa de Lauretis, autora italiana e professora na Universidade da Califórnia,
escreveu obras sobre o feminismo e sobre o cinema; mas no debate de gênero, sua obra
utilizada neste artigo será A tecnologia do gênero (1994). Como o título já anuncia, a autora
fala nesta obra que o gênero como um conceito diferente do sexo, é uma forma de tecnologia.
Ela inicia a obra problematizando o fato de haver uma ligação forçada entre os conceitos de
sexo e gênero, que o senso comum pensa ser a mesma coisa.
Como feminista, a autora aborda o gênero marcado enquanto diferença sexual que
reforça o homem como sujeito central, pois ser mulher significa ser diferente do homem. Por
mais que a diferença sexual seja marcante para que se compreenda o gênero, não é a única
1196

premissa desse conceito. Gênero, para Lauretis, seria uma representação e essa mesma

190
Influência de Mulvey: Vazio iluminado (GUIMARÃES); Influência de Butler: Pensadoras de peso: o
pensamento de Judith Butler e Adriana Cavarero (GUARALDO), Performance, gênero, linguagem e alteridade:
Página

J. Butler leitora de J. Derrida (RODRIGUES) e Corpos erotizados: entre a morena brasileira e a loira
americana (cinema nas décadas de 80 e 90) (KLONIVICZ).

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representação é a sua própria construção. A construção de gênero se faz em diversos espaços,
seja no campo familiar, escolar ou na comunidade intelectual. Na conclusão do conceito de
gênero, ela afirma que o gênero é efeito e ao mesmo tempo é excesso da representação, que
sua construção se faz também por meio de desconstrução, onde é visto como falsa
representação ideológica (LAURETIS, 1994).
A autora chama atenção para como o conceito de gênero foi e ainda é ligado a coisas
mais do que a pessoas (gênero musical, literário), pois há dificuldade em entender gênero dos
seres humanos. Por isso, utiliza uma explicação simplista de que gênero e sexo são a mesma
coisa ou conceitos semelhantes.
No decorrer dessa discussão, Lauretis fala sobre o sistema de sexo-gênero, que é
marcado por separações de sexo que ligam cada um a seus respectivos conteúdos culturais a
serem consumidos – produtos de homem e produtos de mulher. É importante frisar que, para
Lauretis, o gênero é visto como construção social e é muito mais marcado pelas relações
interpessoais, pelas classes que cada um escolhe fazer parte e pela maneira como se
comportam e são tratados na sociedade do que pelo sexo.
Um dos questionamentos da autora é sobre onde o gênero se encontra, na esfera
privada apenas, ou se também seria um problema público. Ao dialogar com Althusser e outros
autores, apresenta uma ideologia de gênero que começa a quebrar as barreiras antes
existentes. A discussão de gênero entra na esfera pública e considera os efeitos existentes na
sociedade que são causados pelo pertencimento a determinado gênero. A discussão dentro do
feminismo marca a posição da mulher dentro dos espaços sociais, já que historicamente na
sociedade patriarcal, para ela era designada a tarefa e a condição de dona de casa, fazendo
com que a mulher participasse apenas no domínio de sua casa.
Lauretis finaliza A tecnologia de gênero refletindo sobre a importância da
conscientização do que é feminismo e de como a história das mulheres tem influenciado o
fortalecimento e a união feminina em diferentes grupos sociais. O sujeito do feminismo de
Lauretis, está consciente de sua situação dentro da sociedade. Encontra-se dentro e fora do
discurso, gerando uma condição contraditória e, ainda, imprescindível para ser feminista.
Outra autora que trabalha com gênero e sexo é a norte-americana Judith Butler. Em
1197

sua abordagem foucaultiana, trata do sexo e da formação do sujeito marcada por práticas
discursivas que definem a diferença sexual. Em uma de suas obras mais difundidas,
Problemas de Gênero, Butler fala da mulher como o sujeito do feminismo – assim como
Página

Lauretis – e de como a mulher é marcada por seu sexo, tornando-se um problema

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Se alguém “é” uma mulher, isto certamente não é tudo o que esse alguém é;
[...] porque o gênero nem sempre se constituiu de maneira coerente ou
consistente nos diferentes contextos históricos diferentes, e porque o gênero
estabelece intersecções com modalidades raciais, classistas, étnicas, sexuais
e regionais de identidades discursivamente constituídas. Resulta que se
tornou impossível separar a noção de “gênero” das intersecções políticas e
culturais em que invariavelmente ela é produzida e mantida (BUTLER,
2003, p. 20).

Tanto Butler como Lauretis revisitam Foucault para explicar gênero e sexualidade. As
autoras também se assemelham em opiniões como os fatores que englobam o gênero, como a
questão étnica, regional – o gênero é construção cultural. Ambas acreditam na influência
desses fatores na forma como a mulher é tratada em diferentes sociedades e grupos sociais – o
que leva à necessidade do feminismo como união de diferentes grupos de mulheres em busca
de um espaço comum e livre da opressão histórica do patriarcado.
O sujeito do feminismo de Butler precisa sempre de legitimação. Está em constante
busca por emancipação, mas ao mesmo tempo é criticado e excluído. Ela questiona ainda a
definição de identidade feminina (BUTLER, 2003).
No capítulo Corpos que pensam: sobre os limites discursivos do sexo, inserido em O
corpo educado, de Guacira Lopes, Butler trata da materialização do corpo, do sexo e da
performatividade de gênero. A compreensão de gênero como sinônimo de sexo não é
suficiente também para Butler, que afirma que o gênero não deve ser aceito como
simplesmente um constructo cultural imposto sobre a matéria – seja esta o corpo humano ou o
sexo (BUTLER, 2001). Ainda neste capítulo, Butler fala sobre as críticas feitas a autores que
distinguem gênero de sexo. Essas contrariam o que se entende por natural – outra crítica
também feita por Lauretis sobre a naturalidade de a mulher ser mãe ou esposa. O natural
“precisa da marca do social, quando não da sua ferida, para significar, para ser conhecido,
para adquirir valor” (BUTLER, 2001 p. 157). Para a autora, há uma ambiguidade quanto ao
que é sexo, que foge de seu caráter natural e é também dotado de historicidade.
Assim como Lauretis vê gênero além de sexo, Beauvoir revela em sua obra O segundo
sexo que “Todo ser humano do sexo feminino não é, portanto, necessariamente mulher;
1198

cumpre-lhe participar dessa realidade misteriosa e ameaçada que é a feminilidade”


(BEAUVOIR, 1970, p. 7). É necessário muito mais para ser mulher. Beauvoir entende que a
mulher precisa se identificar como tal, já que ser homem é o normal. Destaca que ao se referir
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à humanidade, usa-se o termo homem e geralmente generalizações são feitas no masculino.

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Beauvoir e Lauretis ao falarem das limitações de ser mulher concordam que o homem
é o conceito central, o que já se sabe e já se conhece, enquanto a mulher “... determina-se e
diferencia-se em relação ao homem e não este em relação a ela” (BEAUVOIR, 1970, p. 10).
O conceito mulher sempre está atrelado ao homem, enquanto o homem é pensado como
independente – não só em conceito, como na sociedade.
Beauvoir encoraja justamente a mulher a questionar o domínio masculino, a fazer
parte da construção do mundo e a se fazer presente em espaços antes masculinos. A mulher
não mais deve aceitar ser considerada como o outro e sim começar a estabelecer sua
identidade, mostrando sua presença e importância. Como consta no título da obra de
Beauvoir, a mulher é sempre o outro ou o segundo sexo e isto ocorre por uma série de
processos históricos e sociais que diminuíram a mulher em sua capacidade, utilidade e
principalmente, subjetividade (BEAUVOIR, 1970).
Entender o gênero não mais como diferença sexual e sim como uma construção que
passa por transformações, sofre influências internas e externas na sociedade, é um caminho
para entender o que é ser mulher. Assim, a representação d a mulher no cinema é um assunto
que merece atenção constante e estudos empíricos que desnaturalizem essa construção social.

2 Crítica feminista no cinema

Os estudos feministas surgiram no início da década de 1970, unindo-se, de forma não


tão completa aos estudos culturais, pois houve resistência nessa inserção. Na obra
Comunicação e gênero, organizada por Ana Carolina Escosteguy, há um capítulo que se
dedica à trajetória dos estudos feministas de mídia, por Márcia Rejane Messa (2008),
incluindo as críticas às soap operas norte-americanas e também a crítica cinematográfica com
algumas das autoras que serão abordadas neste artigo.
Messa (2008) afirma que, mesmo com dificuldade de aceitação, os estudos feministas
têm muito em comum com os estudos culturais, principalmente, pelo fato de ambos terem
surgido a partir de contextos sociais e políticos, além de surgirem das classes excluídas.
Talvez por ser ainda um movimento novo, houve relutância em reconhecer o feminismo como
1199

parte dos estudos culturais. Messa, ao discorrer sobre os estudos feministas da mídia, mostra
opiniões de autoras que perceberam a mulher como o ser sensível, geralmente a dona de casa
e mãe de família (MESSA, 2008). Ela cita autoras como Rosalind Coward, que afirma que
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“[...] as posições ocupadas pelas mulheres são produzidas pelas definições de prazer e desejo
a que estamos expostas, que são terminantemente masculinas” (MESSA, 2008, p. 46).
A forma como a mulher é mostrada na mídia e, especificamente, no cinema, fala
bastante sobre a sociedade em que esta está inserida. O fato de a mulher ter papeis frágeis
e/ou sexualizados em filmes demonstra que os filmes são produzidos para agradar a um
público masculino heterossexual, pois também são idealizados por homens.
A autora Elizabeth Kaplan em A mulher e o cinema inicia o primeiro capítulo O olhar
é masculino? refletindo sobre a crítica feminista às formas de arte como uma crítica que busca
observar como essa arte demonstrava a mulher e o seu papel e como ela recebia influência da
sociedade em diferentes épocas (KAPLAN, 1995). A crítica feminista relacionada ao cinema
é bem mais recente do que a crítica cinematográfica no geral. Em uma entrevista, Kaplan
afirmou que as primeiras feministas a fazerem crítica cinematográfica foram ridicularizadas e
criticadas (KAPLAN, 2002). Na mesma entrevista, ela relata um pouco da história e das
motivações das críticas feministas: “O conflito dentro da comunidade feminista nos anos 70 e
80 fez com que algumas feministas acreditassem que teorizar a mulher dentro do inconsciente
masculino não nos ajudaria a sair da prisão em que nos encontrávamos” (KAPLAN, 2002, p.
212). É possível afirmar que a conscientização gerada pelo feminismo avançou quando
passou a fazer críticas às formas de arte, que há muito vinham sendo dominadas por homens.
O capítulo O olhar é masculino? consiste em mostrar com exemplos de filmes –
mesmo os ditos feministas ou com presença de personagens feministas – que o olhar no
cinema é masculino. Isso porque a maioria dos filmes é produzida por homens, como são
também feitos pensando em um público masculino. Esse olhar masculino não consiste apenas
em olhar. É carregado de significado. O homem acredita possuir o que ele observa. No
cinema, a imagem feminina é o objeto de posse do homem, do personagem ou do espectador.
É fato que mulheres também assistem filmes, porém o olhar feminino de filmes feitos
para homens pode afetá-la de tal modo que, ao ver mulheres sexualizadas na tela, acreditará
ser sua função seduzir e servir ao homem. O prazer masculino na observação de filmes existe
porque o homem acredita ser possível estar na posição do personagem principal; já a mulher
tenta se manter distante da situação observada (KAPLAN, 1995).
1200

Além de Kaplan, Laura Mulvey também é uma crítica cinematográfica feminista. Em


Prazer visual e cinema narrativo (1983), Mulvey baseia-se na psicanálise para criticar o
mundo social vivenciado pelas mulheres e se assemelha à Kaplan ao falar do homem como
Página

possuidor do olhar.

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Mulvey afirma que “Incontestado, o cinema dominante codificou o erótico dentro da
linguagem da ordem patriarcal dominante” (MULVEY, 1983, p. 440), complementa ainda
afirmando que o reforço do ego, alto grau na história do cinema, deve ser atacado. A conexão
entre cinema e práticas vividas em sociedade pode ser considerada tanto aceitável quanto
assustadora, pois o cinema revela traços fortes da cultura patriarcal e assusta por objetificar a
mulher, ser difundido e aceito.
A objetificação feminina no cinema e nas demais formas de arte é um fato analisado
por diversas autoras feministas. Kaplan ao falar de objetificação do corpo feminino no cinema
menciona que a mulher “é depositária do desejo masculino, aparecendo de modo passivo (...)
seu prazer sexual só pode ser construído em torno de sua própria objetificação” (KAPLAN,
1995, p. 47), o que influencia a passividade feminina nas relações sexuais.
A passividade feminina acontece em relacionamentos amorosos, profissionais,
familiares, porque desde a infância a mulher é socialmente educada e destinara a comportar-se
passivamente (BEAUVOIR, 1970). Tal passividade é retratada ainda no cinema. Os
personagens masculinos dominam a mulher e a situação. Kaplan cita como exemplo o cinema
hollywoodiano e os estilos que mais agradam o público masculino: gângster e faroeste.
Mostram o homem como personagens centrais de herói e vilão e às mulheres cabe o papel de
mocinha ou de vítima esperando salvação.
Kaplan cita Mulvey em sua obra, ao falar sobre o melodrama, que é construído para o
público feminino, mostra a mulher em uma realidade parecida com a das telespectadoras.
Mulvey julga positivo o fato da mulher poder se identificar com personagens, mas, ao mesmo
tempo, ao se sentir feliz por ver personagens com a vida semelhante à sua, a mulher não é
beneficiada, porque está aceitando sua posição social. Mantêm-se assim as posições sociais
assimétricas da sociedade patriarcal que a oprime.
Para Kaplan, a objetificação feminina precisa ser bem analisada, pois o fato da mulher
se satisfazer vendo sua representação como um ser submisso e passivo alimenta o
comportamento obediente dela. O cinema e as demais formas de arte podem incentivar a
manutenção da cultura patriarcal (KAPLAN, 1995).
Um dos temas de destaque da obra de Kaplan é a presença constante da relação
1201

domínio e submissão tanto na realidade social, como no cinema. Por se tratar de uma crítica
feminista, percebe as influências das práticas sociais. O homem, na maioria das vezes, ocupa
o papel dominador; enquanto a mulher vítima é submissa aos desejos do homem e dependente
Página

dele para prazer ou salvação (KAPLAN, 1995). Em filmes tradicionais, como gângster e

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faroeste, a presença feminina quase não é notada; o homem tem presença dominante,
personalidade forte e frieza em seu comportamento.
Com o passar dos anos, as mulheres conseguiram papeis dominantes, também no
cinema e na sociedade e o problema não era mais se havia domínio masculino: por que
sempre haverá a relação domínio x submissão? Quando a mulher ocupa papeis dominadores,
ela está incorporando traços masculinos na personagem, “agora ela é quase sempre fria,
energética, ambiciosa, manipuladora, exatamente como os homens cuja posição usurpou”
(KAPLAN, 1995, p. 51). É importante problematizar a necessidade de uma relação domínio
versus submissão. Para se livrar da sociedade patriarcal e de tudo que ela prega, é necessário
também se desprender de relações onde uma das partes deve servidão à outra, seja o homem,
ou a mulher, uma relação heterossexual ou não.
A influência da televisão, do cinema e de outros meios de comunicação e formas de
arte pode acontecer na identificação com as personagens mostradas, ou na vontade de se
assemelhar às personagens; logo, o ciclo da dominação se repete, e geralmente o dominador é
o homem. Como Beauvoir diz, a dominação masculina frustra a mulher a um ponto que ela
não mais atinge o prazer aceitando seu papel de submissão (BEAUVOIR, 1970).
Em outro momento de O olhar é masculino? Kaplan cita os três diferentes olhares
presentes na erotização da mulher baseada em Mulvey: o da câmera (geralmente ocupado por
um homem); do personagem que contracena com a mulher, que já é objeto de seu olhar; e do
espectador masculino, que ocupa a mesma posição que os dois primeiros olhares (KAPLAN,
1995). Sobre o olhar e a imagem, Mulvey afirma que “num mundo governado por um
desequilíbrio sexual, o prazer no olhar foi dividido entre ativo/masculino e passivo/feminino”
(MULVEY, 1983, p. 444). Em grande parte de suas obras, Mulvey se dedica a uma crítica
feminista sobre o cinema tradicional, onde o olhar é puramente masculino.
O argumento de que o olhar no cinema – e em outros meios midiáticos – é masculino e
a representação objetifica e sexualiza a mulher, de Kaplan e Mulvey permitem acreditar na
possibilidade de mudança do quadro cinematográfico de maneira a não mais diminuir a
mulher a papeis objetificados, sexualizados e frágeis, que consiste em um tipo de cinema que
enfrenta o patriarcalismo e dá à mulher um espaço não de submissa ou dominadora, mas que a
1202

mostra como sujeito de sua própria história, com identidade e autonomia.


Depois de tratarmos dos principais pontos das críticas de Kaplan e Mulvey, o próximo
tópico complementa com o uso da psicanálise que está ligado às obras dessas autoras.
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3 A psicanálise e a sexualidade

Em O olhar é masculino? (1995), Kaplan não vê a psicanálise como uma forma de


revelar verdades, pois este desafio seria praticamente impossível de cumprir. Ela reconhece
que a literatura ocidental é carregada de traumas edipianos191, que se refletem também nas
construções cinematográficas que ela se propõe a analisar e criticar. Ela afirma que por mais
que o discurso psicanalítico tenha oprimido a mulher, é necessário justamente por essa
repressão entender seu funcionamento, “dominar os termos de seu discurso fazendo um
grande número de perguntas” (KAPLAN, 1995, p. 45).
A autora não só aceita o desafio de dialogar com a psicanálise, como também lança
questionamentos que vão além do cinema, pois enfrentam a construção do olhar masculino.
Os primeiros termos usados por Mulvey em Prazer visual e cinema narrativo são o
falocentrismo e a castração da mulher e a mulher como complemento. Se o pênis é o centro
do sistema, o homem depende do fato da mulher não ter um para assim, ser superior. A
mulher seria a vítima, pois sua fraqueza é justamente a falta do pênis. A castração feminina
acaba ameaçando o homem em função da ausência do pênis. Para que não haja ameaça, a
mulher deve ser fetichisada e objetificada. Ao tornar-se objeto sexual de satisfação masculina,
ela passa a ser significante do ser masculino (MULVEY, 1983).
A objetificação feminina no cinema é explicada pela ameaça de castração e, ao mesmo
tempo, Kaplan reforça que essas imagens constantemente repassadas tem como consequência
a criação de imagens de prazer. No imaginário masculino, convém ao homem ser o
dominador que ele vê, à mulher cabe ser submissa e aceitar sua condição de castrada, incapaz
(KAPLAN, 1995). A única utilidade da mulher, nessa visão psicanalista, seria a de conceber
um filho; após esse fato, sua presença não seria mais necessária (MULVEY, 1983).
O cinema, tanto para Mulvey como para Kaplan é uma forma de mostrar o que se
passa no inconsciente humano, principalmente masculino. Ambas falam dos melodramas
feitos pensados no público feminino. “Funciona tanto para por à mostra as restrições e as
limitações que a família nuclear capitalista impõe à mulher, quanto para ‘educar’ as mulheres
a aceitar essas restrições como ‘naturais’, inevitáveis” (KAPLAN, 1995, p. 46). Um dos
1203

191
Conjunto de desejos amorosos que a criança sente em relação aos pais; o complexo de Édipo faz com que a
pessoa carregue até a vida adulta e pessoas fora de seu ciclo parental fantasias ainda ligadas a seus pais.
COUTO, L.V.; CHAVES, W. C. O trauma sexual e a angústia de castração: percurso freudiano à luz de
Página

Lacan. Revista Psicologia Clínica, v. 21, n. 1, 2009, p. 59-72. Rio de Janeiro: Pontifícia Universidade Católica
do Rio de Janeiro. Disponível em http://www.redalyc.org/pdf/2910/291022019005.pdf Acesso em 30 jun. 2017.

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desafios da crítica feminista é entender que para sê-lo é preciso quebrar as barreiras e
enfrentar o tradicionalismo como Mulvey e Kaplan fazem ao criticarem o cinema
hollywoodiano, reconhecido internacionalmente.
Para Mulvey, “O cinema oferece um número de prazeres possíveis. Um deles é a
escopofilia. Há circunstâncias nas quais o próprio ato de olhar já é uma fonte de prazer, da
mesma forma que, inversamente, existe prazer em ser olhado” (MULVEY, 1983, p. 440).
Complementar à escopofilia há o exibicionismo, que está ligado ao processo de castração.
Kaplan observa que o prazer visual proporcionado no cinema tanto serve para o homem como
para a mulher, sendo que esta passará a ser objetificada, sexualizada e aceitará a submissão,
pois é assim que ela acredita que sentirá prazer também – como já mencionado, o prazer da
mulher está em sua própria objetificação.
Para Kaplan, o voyeurismo está ligado ao instinto escopofílico. O espectador do
cinema é o voyeur, que em uma sala escura consegue observar o que se passa na vida de
outras pessoas inclusive em seus momentos sexuais (KAPLAN, 1995). O voyeurismo, para
Mulvey, está intimamente associado ao sadismo, pois tem relação com a culpa, associada à
castração. A constante diminuição da mulher que deixa de ser sujeito para ser objeto de prazer
visual do homem é o que diminui a ameaça que ela representa por não ter o falo, que é o
centro das fantasias dos filmes e da sociedade.
A intenção do cinema é provocar uma identificação espectador- personagens. Nela “o
glamuroso personifica o comum [...]. Instintos sexuais e processos de identificação possuem
um significado dentro da ordem simbólica que articula o desejo” (MULVEY, 1983, p. 443). A
partir da identificação, passa a se querer tornar real aquilo que é visto no cinema.
No cinema se pode notar que o homem possui um posicionamento privilegiado, com
dominância, detenção do olhar, desejos satisfeitos e tem ação sobre a mulher. Uma maneira
diferente da objetificação e sexualização do corpo feminino, surgida como solução após
movimentos de liberação feminina é quando acontece o oposto. A mulher passa a desejar,
enquanto o homem se torna o objeto de desejo, apesar de a estrutura da relação de domínio e
submissão se manter intacta (KAPLAN, 1995). O feminismo não pede pela dominação
feminina, pois toda relação de domínio e submissão implica uma desigualdade entre as duas
1204

partes. Vale ainda lembrar que há relações diferentes das heterossexuais.


Construir ou explicar o ser feminino ainda pode ser um grande desafio para autoras,
assim como para leitores e leitoras. Entretanto, as leituras da crítica feminista cinematográfica
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dão a oportunidade de perceber nos filmes situações opressoras, ofensivas e até mesmo

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degradantes para as mulheres, sejam as personagens, atrizes ou espectadoras. Kaplan mantém
uma visão esperançosa que valoriza a teoria psicanalítica na crítica feminista: “Muitas de nós
entendem agora a importância de manter a psicanálise, por ser esta fundamental para
entendermos a nós mesmos e ao funcionamento da sociedade” (KAPLAN, 2002, p. 212).
Beauvoir, em sua obra O segundo sexo fala sobre psicanálise e a formação dos gêneros
através das influências recebidas:

Quando o jovem atinge a fase genital, sua evolução está terminada; será
necessário que passe da atitude auto-erótica, em que aspira ao prazer em sua
subjetividade, a uma atitude hétero-erótica, que relacionará o prazer a um
objeto, normalmente a mulher (BEAUVOIR, 1970, p. 60).

Assim, as autoras feministas mencionam o caráter forte que a heterossexualidade


assume nas relações e nas fantasias sexuais. Beauvoir usa o termo hétero-erótica, pois
realmente é ensinado na sociedade patriarcal que cabe ao homem desejar a mulher, tanto
quanto cabe à mulher desejar o homem – ou apenas aceitar ser desejada por ele. Kaplan
questiona a heterossexualidade sempre presente nas fantasias sexuais e no cinema. Ela afirma
que mesmo em fantasias lésbicas, uma das mulheres assume o papel masculino ou de
domínio. Deve-se observar que o homem também sente prazer ao ver cenas lésbicas, pois o
corpo feminino é automaticamente relacionado ao prazer visual.
Beauvoir faz uma leitura sobre Freud e a descoberta da sexualidade e o critica por
possuir uma visão masculina “Ele supõe que a mulher se sente um homem multilado”
(BEAUVOIR, 1970, p. 62). Assim, é possível rever, a partir das observações de Beauvoir, o
conceito antes citado do falocentrismo. Antes de aparecer no cinema ou na arte em geral, o
falocentrismo está presente na sociedade.

Considerações finais

O uso da psicanálise na crítica cinematográfica realizada por autoras feministas é


explicado em muitas obras e a relevância fez com que novas autoras, tais como Márcia Rejane
Messa, Sônia Weidner Maluf, Anneke Smelik, Maggie Humm e Geneviève Sellier, passassem
1205

a usá-lo na atualidade. A discussão de gênero se fez necessária para que se compreenda o que
é ser mulher na sociedade e como isto pode influenciar nas críticas feministas e em como o
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papel da mulher é retratado no cinema e nas demais representações artísticas.

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A representação feminina no cinema como vítima, objeto sexual ou, nos melodramas,
como a mãe, esposa e submissa, é um fator a ser pensado de dupla maneira: qual a
importância desses papéis como representação da realidade? Serviriam como influenciadores
no comportamento das mulheres? Refletir a causa e as consequências do cinema é relevante
para que se compreenda a crítica feminista e o uso da psicanálise.
A possibilidade da mulher ganhar um novo espaço ou uma nova leitura dentro do
cinema pode ser remota, mas com o avanço do feminismo e das críticas, surge a esperança de
um tipo de cinema que vai além do cinema alternativo, pois este ainda está dentro de uma
estrutura patriarcal difícil de libertar-se. Seria necessário, então, que se criasse um novo tipo
de cinema, o que autoras como Kaplan e Mulvey chamam de contra-cinema. Nele a mulher
não mais seria sexualizada ou objetificada. Com o avanço da conscientização para o
significado dos papéis das mulheres no cinema com a crítica feminista cinematográfica, o
contra-cinema se torna cada vez mais palpável.

Referências

ANDREW, James Dudley. As principais teorias do cinema: uma introdução. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2002.

BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. Difusão europeia do livro: São Paulo, 1970.
Tradução por Sérgio Milliet. Disponível em: http://brasil.indymedia.org/media/
2008/01/409660.pdf Acesso em: 15 out. 2015.

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Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2003.

______. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do sexo. Tradução de Tomaz Tadeu
da Silva. In: LOURO, Guacira Lopes (Org.). O corpo educado. Belo Horizonte: Autêntica
Editora, 2001. p. 151-172.

COSTA, Flávia Cesarino. Primeiro cinema. In: MASCARELLO, Fernando (org.). História
do cinema mundial. Campinas, SP: Papirus, 2006.

KAPLAN, Elizabeth Ann. O Olhar é masculino? In: A mulher e o cinema: os dois lados da
câmera. Rio de Janeiro: Rocco, 1995.
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______. A mulher no cinema segundo Ann Kaplan. Dossiê Tecnologias. Contracampo,


UFF, v. 7, p. 209-216. 2002. Entrevista concedida a Denise Lopes.

LAURETIS, Teresa De. “A Tecnologia do Gênero”. In: HOLLANDA, Heloisa (org.).


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Tendências e Impasses – O feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.

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MESSA, Márcia Rejane. Os estudos feministas de mídia: uma trajetória anglo-americana.
ESCOSTEGUY, Ana Carolina D (Org.). Comunicação e gênero: a aventura da pesquisa.
EDIPUCRS: Porto Alegre, 2008.

MULVEY, Laura. [1974] 1983. Prazer visual e cinema narrativo. In: XAVIER, Ismail (org.).
A experiência do cinema. Rio de Janeiro: Edições Graal/Embrafilme.

1207
Página

ISBN: 978-85-7621-221-8
GT12 - MÍDIA, IMAGEM E SOCIEDADE

IMAGEM E VIOLÊNCIA SIMBÓLICA: NEGAÇÃO DO INDÍGENA EM


REPORTAGEM TELEVISIVA NO JN E O ATIVISMO NA INTERNET

Izaíra Thalita da Silva Lima (UERN)


Higo da Silva Lima (UFERSA)

Introdução: formas do ciberativismo indígena

A percepção do ciberespaço como um lugar para atuação política explica a presença


de muitos povos indígenas na internet. Para perceber isso, mais do que buscar teorizar é
preciso se concentrar na observação e nos processos de apropriação dos meios digitais e da
internet e as relações entre os usuários/ciberativistas indígenas neste processo, em que a
comunicação é ocupada como espaço estratégico (prático e tático) suscitando importantes
reflexões que saem do âmbito “dos meios em si, para as mediações” realizadas (MARTIN-
BARBERO, 2003, p. 270), para a reflexão sobre as articulações entre as práticas de
comunicação e os movimentos sociais nele inseridos, neste caso, da articulação dos povos
indígenas na rede.
Para demonstrar essas práticas seguimos indígenas a partir das postagens que estes
realizaram na rede, em alguns eventos que foram transformados em acontecimentos
midiatizados, tanto pela mídia hegemônica quanto na internet e a partir destes, realizamos
análises sobre a atuação dos ciberativistas indígenas, contribuição do portal ÍndiosOnLine
para o ativismo político nestes eventos e como os índios digitais articularam suas redes de
contatos utilizando a internet para reverberar a visão indígena dos fatos. Um dos casos que
detalharemos neste artigo trata de reportagem veiculada pelo Jornal Nacional e que obteve dos
ciberativistas indígenas um esforço de se contrapor, utilizando a internet como forma de
reverberar a sua versão dos fatos.

1 Jornalismo e a institucionalização da violência simbólica

Para refletirmos sobre o jornalismo enquanto uma instituição, valemo-nos de uma rede
1208

de pesquisadores, sobretudo com contribuições do campo de pensamento da Sociologia e da


Filosofia, a fim de elucidarmos um conceito que perpasse o fazer jornalístico na sua dimensão
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organizacional e ainda pela sua construção social de força simbólica.

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Em ambos os casos, dois aspectos servem como elementos que interligam e sintetizem
uma perspectiva institucional ao jornalismo. O primeiro deles é o caráter de controle exercido
pelas instituições por meio da linguagem. Na obra “Vigiar e Punir”, ao refletir sobre o poder
disciplinar exercido pelas instituições, Michel Foucault (1987) alerta-nos quanto à capacidade
de criação “silenciosa” de mecanismos que nos põe em condições de constante vigilância:

As instituições disciplinares produziram uma maquinaria de controle que


funcionou como um microscópio do comportamento; as divisões tênues e
analíticas por elas realizadas formaram, em torno dos homens, um aparelho
de observação, de registro e de treinamento (FOUCAULT, 1987, p. 198).

No que se refere à linguagem, podemos inferi ser este o meio pelo qual se dá a
existência da instituição, ou seja, a forma pela qual ela se constitui e se reorganiza, como
veremos a seguir, com o Jornal Nacional, a forma usada para violar as culturas indígenas. A
linguagem é o recurso primeiro do exercício do Jornalismo, considerando aqui as suas mais
diferentes modalidades e suportes.
A linguagem pode ser apontada como uma espécie de meta-instituição, pois, na
mesma medida em que se funda na condição de instituição, com todos os rigores de uma
estrutura estruturante, é também por meio de suas possibilidades que construímos, damos
significados, reconstruímos e ressignificamos as demais instituições, entre elas, o próprio
Jornalismo.
A partir do pressuposto supracitado, avançamos nossa análise com mais clareza para
entender outra característica pertinente ao discutir sobre as Instituições: a historicidade. Isso
significa dizer que as estruturas institucionalizadas já existem na dimensão do espaço e do
tempo antes do indivíduo tomar contato com elas e, ao experimentá-las, recebem pela
linguagem toda a sua construção, conforme propõe os pesquisadores Berger e Luckmann em
“A Construção Social da Realidade” (1985).
Ou seja, a historicidade é uma dimensão que imputa às Instituições a característica da
exterioridade, cuja seu poder simbólico paira sobre os sujeitos independentemente deles e
mesmo antes deles. Na narrativa jornalística, por exemplo, ainda que a notícia – ou qualquer
outro gênero do jornalismo – tenha como objetivo a informação, a sua trajetória deontológica
1209

e posição no espaço público o legitima como um aspecto do cotidiano responsável por


suscitar dados que permitam a tomada de discussão na seara social, a partir da geração de
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conteúdo informativo.

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O mesmo vale para a dimensão da historicidade construída nas comunidades e nações
indígenas. Quando o jornalista chega à comunidade com a pauta na mão, não se pode
esquecer que já existe um arcabouço sociocultural construído por aquele povo. Desse modo, a
reportagem é um olhar exterior, exógeno, que deve, de sobremaneira, evitar produzir
discursos, ou qualquer narrativa, que vise deturbar, negligenciar o mundo ali construído.
Conclusão, aliás, que não se dá na prática conforme análise deste artigo à reportagem do
Jornal Nacional.
As estruturas institucionais consolidam na tradição a sua construção social de
simbolismos, em outras palavras, os seus elementos estruturantes e esses independem dos
sujeitos, que embora os reproduzam e também os ressignifiquem, já os experimentam de
forma consolidada. Para além da tentativa de classificarmos ou esgotarmos o conceito para o
problema, que não se limita em si, é importante compreendemos também o pensamento do
sociólogo Max Weber. Na obra “Conceitos Sociológicos Fundamentais” (2010), o autor nos
propõe uma ampla discussão em volta do paradigma da “Ação Social”, cuja construção se dá
por meio de alguns elementos que o constituem, onde a cultura é um desses elementos mais
fortes, na medida em que se manifesta enquanto um conjunto articulado de demonstração de
fatores que qualificam um determinado povo. Weber percebe a cultura como uma teia de
significados que um dado povo - ou grupo - tece. É na cultura e por meio dela que
percebemos, por exemplo, a criação das identidades que, para o autor, entende-se pelo
conjunto de características adquiridas.
Na escolha de fontes expostas enquanto representantes de saber de determinadas áreas
e disciplinas que a narrativa jornalística solidifica os perfis e marcadores sociais aceitos e
socialmente legitimados em uma cultura que preza por autoridades de conhecimento. Na
reportagem, no entanto, vemos esses marcadores explicitamente evidenciados, quando, por
exemplo, as vozes – ou fontes que relatam os problemas: (1) o delegado do caso, (2)
representantes dos fazendeiros e, por fim, (3), os índios são negligenciados. Essa “escolha” é
um reforço aos estigmas.
Em contraponto à ideia “identitária”, Weber (2010) elucida a conceituação para o que
seria o “estigma”, que, em uma definição curta, esta seria as marcas que se imprimem sobre
1210

um povo. Esses elementos se manifestam conforme a força da “ação”.


Para o autor, a ação compreende pelo comportamento humano no qual os agentes o
relacionem com um sentido subjetivo. E é a partir dela que chegamos à instituição tendo
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como princípio norteador a 'ação social': “significa uma ação que, quanto a seu sentido se
refere ao comportamento de outros” (WEBER, 2010, p. 40).
Aqui, a ideia de instituição fica clara enquanto elemento subjetivo que paira sobre toda
a sociedade e que também ajuda a formá-la, visto que, conforme o Weber, a formação da
sociedade se dá: “[...] na medida em que a atitude na ação social se baseia no ajustamento de
interesses por motivos racionais (de carácter axiológico ou teleológico), ou também numa
união de interesses por motivos idênticos” (WEBER, 2010, p.78).
Como mencionamos acima, a construção social das estruturas fundantes e
estruturantes das instituições pairam por essa ação social que também podemos compreender
como “poder simbólico”. Neste caso, a apropriação do termo surge das reflexões do
pesquisador Pierre Bourdieu, cuja inferência entende-se por:

O poder simbólico é, com efeito, esse poder invisível o qual só pode ser
exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão
sujeito ou mesmo que o exercem. [...] Os sistemas simbólicos exercem poder
estruturante com condições de conhecer o mundo ao mesmo tempo em eu
também são estruturados (BOURDIEU, 1989, p.8).

A reflexão apresentada por Bourdieu ganha força a partir de dois elementos


importantes para compreendermos o poderio exercido sobre os sujeitos através da construção
do poder simbólico. Aqui, conceituamos o “Habitus” e a palavra “campo”, vislumbrando a
discussão aplicada ao jornalismo.
No primeiro caso, Bourdieu (1989) diz-nos que o simbolismo estruturante das
instituições se consolida a partir do movimento emergido pela capacidade social criativa e
inventiva que gera os “conhecimentos adquiridos” (p.61). Já com a palavra “campo” conduziu
uma pesquisa, quando a ignoravam como espaço social de relações objetivas, o que dava uma
autonomia relativa em de relação aos demais espaços de produção social (p. 66).
Como dito anteriormente, as comunidades indígenas construíram – e constroem -seus
elementos de comunidade: língua, organização social, manifestações culturais dentre outros.
Em contraponto, no entanto, as instituições disciplinares produziram uma maquinaria de
controle que funcionou como um microscópio do comportamento; as divisões tênues e
1211

analíticas por elas realizadas formaram, em torno dos homens, um aparelho de observação, de
registro e de treinamento (FOUCAULT, 1987, p. n198).
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Compreender esta afirmativa é importante visto que a obra constrói-se acerca da


discussão quanto ao papel preponderante do “poder-saber”, um mecanismo de legitimidade
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para a punição. Ao afirmar que poder e saber estão diretamente imbricados, mostra-nos,
assim, “que não há relação de poder sem constituição correlata de um campo de saber, nem
saber que não suponha e não constitua ao mesmo tempo relações de poder” (FOUCAULT,
1987, p. 31).
Em suma, o jornalismo é esse campo da esfera pública que prolifera vozes de saber e
reifica agentes sociais legitimando estruturas igualmente instituídas. São formas de vigilância
da sociedade na medida em que agenda e delega vozes de representações para narrativas que
constroem um discurso, por vezes, sedimentado em grupos de poder – e por consequente, de
interesses, como veremos na análise a partir da forma como o caso dos Pataxós Hâ-hã-hãe são
reportados em matérias no Jornal Nacional.

2 Os Pataxó Hã-hã-hãe e o Jornal Nacional

Os conflitos envolvendo os Pataxó Hãhãhãe e fazendeiros por questões de terras na


cidade de Pau Brasil, interior da Bahia, vem se estendendo há mais de trinta anos com muitas
mortes de indígenas e uma longa briga judicial. Esta história e luta do povo Pataxó pela terra
está colocada em trabalho realizado por Carvalho e Souza (2005) para o site em formato de
enciclopédia virtual intitulado Povos Indígenas do Brasil que integra o portal do Instituto
Socio Ambiental (ISA).
Conforme as autoras, os índios conhecidos sob o etnônimo englobante Pataxó
Hãhãhãe abarcam, hoje, as etnias Baenã, Pataxó Hãhãhãe, Kamakã, Tupinambá, Kariri-
Sapuyá e Gueren. Habitantes da região sul da Bahia, o histórico do contato desses grupos com
os não-indígenas se caracterizou por expropriações, deslocamentos forçados, transmissão de
doenças e assassinatos. A terra que lhes foi reservada pelo Estado em 1926 foi invadida e em
grande parte convertida em fazendas particulares. Apenas a partir da década de 1980 teve
início um lento e tortuoso processo de retomada dessas terras. Há 32 anos, o direito a terra
vem sendo questionado na Justiça.
Em 2012, no período de março a junho, os conflitos envolvendo os Pataxó Hã-hã-hãe
e fazendeiros voltou a ser destacada e na mídia brasileira quando os índios resolveram ocupar
1212

a área de litígio. Entre as reportagens sobre os conflitos, uma das matérias produzidas e
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exibidas na edição do dia 13 de abril de 2012, pelo Jornal Nacional192, considerado um dos
programas jornalísticos de maior audiência da emissora Rede Globo, em televisão aberta no
país, dedicou um destaque considerável na grade de notícias superior a três minutos193,
utilizando, nas falas ou nos discursos veiculados, palavras como ‘invasão de terras’, apesar de
que, na própria matéria, o repórter reconhece que se tratava de um território habitado pelos
índios antes mesmo da chegada dos fazendeiros.
A reportagem informou que um casal foi alvejado por tiros enquanto trafegava em dos
trechos de conflito, por homens encapuzados, o que resultou na morte da mulher, sem
qualquer motivo. Os homens encapuzados também invadiram e queimaram a residência de
um fazendeiro, surgindo, logo em seguida a fala do delegado com a informação de que os
índios naquela região fazem “o uso de armas de grosso calibre”. A reportagem mostrou, em
seguida, as falas dos fazendeiros e ao ouvir uma única voz indígena, o identifica apenas como
sendo uma “liderança”, sem mencionar seu nome. Na fala do índio - e não fica evidente em
que processo de edição e de cortes foram feitos nesta fala - destaca-se uma ocupação de uma
das fazendas no território em conflito, sem um uso produtivo ou agrícola das terras e índios
sem nenhuma atividade.

Figura 11: Imagens do vídeo/reportagem exibido pelo Jornal Nacional sobre conflitos entre
Pataxós Hã-hã-hãe e fazendeiros em 13/04/2012
1213

192
A íntegra da reportagem pode ser conferida nos anexos e o vídeo em questão pode ser acessado na página do
Jornal Nacional na Internet: <http://globotv.globo.com/rede-globo/jornal-nacional/v/piora-o-clima-de-tensao-
entre-indios-e-fazendeiros-no-sul-da-bahia/1903196/>
Página

193
Nos jornais da rede Globo, o tempo médio das matérias varia de 1 minuto a 1 minuto e 30 segundos. (VIZEU,
2005, p. 100).

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A reportagem não dá espaço para a versão indígena da possível autoria dos crimes e
remete a uma série de informações que alimenta o preconceito contra o povo Pataxó. No dia
seguinte à veiculação da reportagem em rede nacional, o Portal IndiosOnLine destacou na sua
chamada principal um texto escrito em nome dos Pataxó, intitulado ‘Rede Globo manipula
reportagem jogando sociedade contra os Pataxó Hãhãhãe’194, com a versão dos índios,
postagem esta que trazia como imagem principal os Pataxó cavando uma cova para enterrar
um dos índios mortos por causa do conflito. Da postagem destacamos o trecho que segue:

A Comunidade Indígena Pataxó Hãhãhãe, além de sofrer


forte perseguições dos Fazendeiros e de seu comparsas, ainda temos de
enfrentar perseguição e calunias da rede comercial da Globo. Ontem no
Jornal Nacional da Globo, o reporte… fez uma matéria ridicularizando a luta
dos Pataxó Hãhãhãe, eles agem parecendo que tem propriedade da verdade.
Mais nós indígenas temos a nos defeder e dizendo que ela esta a favor dos
pistoleiro que provavelmente está sendo acusado nos sites das região como o
principal acusado da morte […] Quem assistiu a matéria percebe que a
Globo coloca os fazendeiros como coitadinho, provocando penúria na
sociedade, a realidade é que os pistoleiro de armando Pinto (o fazendeiro que
chora na filmagem) não aguentaram com os indigenas, pois muito tempo é
que eles vem ameaçando a comunidade. Segundo os boatos, ele pagavam a
diária de 100,00 para cada pistoleiros, e estava com mais de 30 homens
dentro dessa fazenda. E que não aguentou mais pagar o bandido para dá
seguranças na sua fazenda. [...]
Então nós da Comunidade Pataxó Hãhãhãe, temos a declara que o jornal da
Nacional da rede Globo está equivocado, a passar informação de impacto
negativo para a sociedade Brasileira. Nós indígenas Pataxó Hãhãhãe somos
guerreiros e não covardes a ponto de matar pessoas inocentes. A justiça
devem apurar e colocar na cadeias o fazendeiro que contratou esses
pistoleiros e também punir esse pistoleiro. que fica durante o dia usando
drogas e ameaçando os indígenas de morte. E que o Jornal da Rede Globo
venha para a nossa aldeia fazer uma matéria seria e não jogar a sociedade
contra os índios Pataxó Hãhãhãe. Fazendo falsas acusações em relação a
nós indígenas, sem ter provas195.

O texto foi redigido pelo índio Fábio Titiá com o aval do povo Pataxó Hã-hã-hãe,
como forma de resposta. A postagem realizada no portal de informações ÍndiosOnLine apesar
de se contrapor a uma posição midiática que se dá no presente, remete à uma violência que
segue há anos, com muitas mortes de indígenas na defesa dos seus direitos territoriais do seu
1214

194
A íntegra da reportagem pode ser conferida nos anexos e o vídeo em questão pode ser acessado na página do
Jornal Nacional na Internet: <http://www.indiosonline.net/rede-globo-manipula-reportagem-jogando-a-
sociedade-contra-os-pataxo-hahahae/>.
195
Trecho da postagem original de autoria de Ararawã Baenã Hã-hã-hãe e assinada em nome da Comunidade
Página

Indígena Pataxó Hã-hã-hãe. Disponível em: <http://www.indiosonline.net/rede-globo-manipula-reportagem-


jogando-a-sociedade-contra-os-pataxo-hahahae/>. Acesso em: 14 de abril de 2012.

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povo e inicia colocando a emissora na mesma posição dos atuais inimigos dos índios, ou seja,
os fazendeiros. Mas, quando dizem ‘eles agem parecendo que tem propriedade da verdade’
estão mostrando ao público a possibilidade de haver outras verdades, a versão indígena dos
fatos e que não foi colocada na matéria televisiva.
Desde 2004, data de criação do portal IndiosOnLine são constantes as postagens
colocando a versão dos próprios índios diante de matérias veiculadas na mídia brasileira que
na produção de notícias não apresentam a versão dos fatos pelos povos indígenas. A partir do
mecanismo de busca no portal encontramos mais de vinte matérias com caráter de resposta a
matérias que prejudicam a imagem dos indígenas, em veículos impressos e televisivos e mais
de 100 outras onde a questão do conflito está presente196.
O mais interessante está ao perceber que se as postagens no portal IndiosOnLine são
mais frequentes quando tratam das disputas e conflitos que acontecem pelo território nas
aldeias, é certo afirmar que os índios utilizam a internet como ferramenta de luta política.
Neste sentido, é fácil compreender o porquê da maioria das postagens no portal IndiosOnLine
possuir um caráter denunciativo e se tornarem mais constantes nos momentos em que os
povos entram em confronto direto na luta pelo território, cuja posse definitiva é questionada
na grande mídia, sem espaços para a versão indígena. Como as questões levantadas na
internet dentro do portal IndiosOnLine são as mesmas discutidas fora dela, a temática do
território é muito mais frequente e mobiliza constantemente as discussões no portal.
Em uma das entrevistas que realizamos com Fábio Titiá ele lembra que, antes desta
matéria televisiva, em outras reportagens, os índios sempre são mostrados de forma negativa
pela emissora e principalmente na rede filiada, a TV Santa Cruz, que segundo ele, “colocam
os índios como vilões”, com imagens negativas, gerando desconforto e desconfiança sempre
que a emissora aparece na comunidade. Para reforçar a intenção de prejudicar os índios, Fábio
passou a nos relatar em quais outros momentos a Globo teve posturas semelhantes e recorda
de uma matéria na região de Barra Velha, em meio à mata, onde ficam os índios Pataxó no
extremo sul da Bahia, região da primeira chegada dos colonos em Porto Seguro:

Não sei se você lembra de um avião que a Globo tinha que viajava o Brasil?
Você lembra? Então. O repórter que fazia o programa do avião, esse
1215

camarada veio, nesse avião pra região de Barra Velha e chegando lá ele
criou a primeira imagem dos fazendeiros com cultivo de mamão, mostrando
os carros dos fazendeiros, as fazendeiras falando que os índios não
trabalham, que são de confusão. [...] Não pegaram nenhuma imagem boa,
Página

196
Ver lista nos anexos

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feita nas aldeias, no meio do nosso povo, só pegou imagem negativa né? E
colocaram a imagem boa dos fazendeiros e a imagem ruim pros índios. Para
as pessoas que assistem o Jornal Nacional, acreditam naquela imagem de
que os fazendeiros são os bonzinho mesmo e os índios são ruins. Aqui na
nossa aldeia não foi diferente. Numa comunidade de quase quatro mil
indígenas, no lugar onde a gente faz um ritual com 80 a 150 indígenas eles
vieram, saíram pegando a matéria e pegando os piores momentos da
comunidade e criou imagens ruis. Daí pegou a imagem de um fazendeiro
simulado um choro, esse fazendeiro dizia que o patrimônio dele, que tinha
mais de 50 anos, construído pelo pai dele, tinha sido queimado pelos índios e
chorando... foi pura simulação. Esse mesmo fazendeiro que saiu na
reportagem chorando foi aquele cara que colocou uma “ruma” de pistoleiros
pra matar um funcionário da FUNAI com sua esposa, né? Esse funcionário é
meu irmão. Aí nesse dia, nessa armação que eles fizeram pra matar o pessoal
através de tocaia, uma outra família que veio visitar os parentes em Itaju do
Colônia e que resolveu ir em uma fazenda buscar uma galinha caipira, foi
surpreendida, no meio do caminho pelos pistoleiros desse fazendeiros, que
atirou nesse carro chegando a matar uma mulher. A munição da arma era tão
perigosa que esbagaçou a cabeça da mulher. [...]Era pra ser pego o chefe de
posto da FUNAI que é meu irmão. Era pra ele ser pego, porque ele atuava ali
naquela região do Itaju do Colônia. Quando os pistoleiros viram que não era
o indígena, porque a camionete da família era muito parecida com a do meu
irmão, da mesma cor, uma S-10 cor cinza, eles se confundiram e quando
perceberam o resultado passaram a simular que foram os índios. Tocaram o
fogo na sede pra dizer que foram índios, depois o cara foi filmado chorando
e a Globo colocou ele chorando, colocou o delegado conversando ... o
delegado depois disse pra gente que não disse daquele jeito que apareceu na
reportagem porque ele estava conversando com o repórter informal, e o
câmera tava filmando ele por detrás e pegou uma fala dele dizendo que os
índios estavam armados com armas de grosso calibre, aí criou essa imagem.
Eles vieram pra aldeia, né? pegaram umas pessoas pra falar, mas pegaram a
parte ruim.
Numa conversa pra quem tem intenção de prejudicar a pessoa e que mexe
com vídeo, sabe muito bem disso. [...] Aí o que me fez escrever a matéria é
que assistindo a reportagem na Globo, aquela mentira toda, eu não agüentei,
eu fiz a matéria pra dizer o que acontece. Nesse período esse clima estava
muito tenso na região. A Globo não quis divulgar o nosso lado pra não
favorecer aos indígenas e na verdade a gente queria que nem favorece os
indígenas e nem os fazendeiros, só precisava só contar a verdade e deixasse
que a sociedade tirasse a conclusão. (Entrevista via Skype)

Fábio relata em seguida que após a publicação da postagem divulgou nos seus canais
na internet incluindo grupos no e-mail e nas redes sociais. Na mesma época estava realizando
a divulgação de um documentário feito por ele, postado na internet, com os índios e com os
comerciantes da região mostrando que a comunidade produz e tem papel importante na
1216

economia das cidades vizinhas. Sobre o documentário intitulado ‘Tudo OK, Os índios Pataxó
e o desenvolvimento rural197’ Fábio afirma que a intenção do material era a de ajudar a
Página

197
O documentário está disponível no link:< http://vimeo.com/38804907>

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acelerar o julgamento da demarcação do território Pataxó e que “até nisso o índiosOnLine foi
importante”, pois através do portal um antropólogo alemão que é especialista em edição de
filmes se comprometeu a ir até a aldeia ensinar os Pataxós a filmar e editar filmes. Fábio fez o
contato pela internet e o antropólogo veio:

Daí chegando aqui na nossa aldeia como só tinha um computador ele [ o


antropólogo] disse que o computador era antigo e não servia para edição de
filmes que a gente precisava de uma máquina boa. Então a gente disse que
não tinha como comprar e ele ensinou no computador dele mesmo. A gente
editou o primeiro filme e já colocou na internet. Esse documentário nos
ajudou porque fizemos uma visita ao município pegamos entrevistas com os
comerciantes onde eles falavam a respeito da comunidade depois que os
índios ocuparam as fazendas que os recursos os índios gastavam no
município e isto estava gerando melhorias. Porque a nossa região, é uma
região cacaueira e a vassoura bruxa que veio com a lavoura cacaueira
empobreceu muito o município e os fazendeiros ficaram a serviço da criação
de gado enquanto que os recursos só enviavam para as capitais , geralmente
as fazendas que eles tomavam de nós eles ficavam com dois trabalhando e
quando os índios ocupavam essa área ficavam 20 famílias, na base da
agricultura, tiravam o pouco do cacau que sobrava, investia, e a renda
aumentava e os comerciantes destes municípios em Pau Brasil e em Itaju de
Colônia ficavam muito satisfeitos. (FÁBIO TITIÁ, entrevista via Skype,
2013).

Desde o início de 2013 a comunidade Pataxó Hã-Hã-hãe vive com mais tranquilidade
desde que a Justiça concedeu as autorizações de ocupação das terras. Fábio Titiá afirma que a
comunidade já não tem ameaças de pistoleiros e a comunidade de 3.500 indígenas, tenta se
organizar no território em 54,6 hectares. Para ele, a luta não para e as postagens no
índiosOnLine tem de continuar registrando para a sociedade os avanços obtidos. Ele pretende
fazer visitas, registrar a prosperidade das famílias que são muito carentes, no uso da terra, “e
depois fazer um documentário para mostrar na internet, para que as pessoas vejam que índio
trabalha na terra”.

Considerações

A partir do exposto no desenvolvimento deste trabalho, pode-se se observar que a


1217

reportagem do Jornal Nacional sobre conflitos envolvendo os Pataxó Hãhãhãe e fazendeiros


não dá espaço para a versão indígena da possível autoria dos crimes e remete a uma série de
informações que alimentam o preconceito contra o povo Pataxó, de modo que estes sempre
Página

são mostrados de forma negativa.

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Percebe-se, com isso, a existência de uma invisibilidade midiática para o alto número
de mortes de indígenas praticadas supostamente por fazendeiros e rivais. Atuação de
esclarecimento dos Pataxós no Portal Indios Online é de contraposição à Mídia hegemônica e
de defesa de seu ponto de vista. Os indígenas apreendem do mundo formas de resistência à
mídia hegemônica.
A violência contra as comunidades indígenas, além do físico, transpassa também ao
simbólico na medida em que lhe é negada ou distorcida à sua identidade étnica reforçada por
vozes/fontes no discurso das narrativas jornalísticas.

Referências

BERGER, Peter L.; LUCKMANN, Thomas. A Construção Social da Realidade. 23. ed.
Petrópolis: Vozes, 1985.

BICALHO, Poliene Soares dos Santos. Protagonismo Indígena no Brasil: Movimento,


Cidadania e Direitos (1970-2009). Tese (doutorado) – Universidade de Brasília, Instituto de
Ciências Humanas. Departamento de História, 2010.

BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. São Paulo: Bertrand Brasil, 1989.

CARVALHO, Maria do Rosário; SOUZA, Jurema Machado de Andrade. Pataxó Hã-hã-hãe.


In: Enciclopédia virtual Povos Indígenas no Brasil. Instituto Socioambiental, 2005.
Disponível em: <http://pib.socioambiental.org/en/povo/pataxo-ha-ha-hae>. Acesso em: 15
ago. 2013, às 13h00.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete.


Petrópolis: Vozes, 1987.

MALINI, Fábio; ANTOUN, Henrique. A Internet e a rua: ciberativismo e mobilização nas


redes sociais – Porto Alegre: Sulina, 2013. (Coleção Cibercultura). E-bokk disponível em:
<http://aInternetearua.com.br/>.

MARTIN-BARBERO, Juan. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia.


Trad. Ronald Polito e Sérgio Alcides. 2. ed. Rio de Janeiro: UFRJ, 2003.

Rede Globo manipula reportagem jogando a sociedade contra os Pataxó Hã-hã-hãe. Portal
índios Online. Disponível em: <http://www.indiosonline.net/rede-globo-manipula-
reportagem-jogando-a-sociedade-contra-os-pataxo-hahahae/>. Acesso em: 20 ago. 2017.
1218

WEBER, Max. Conceitos Sociológicos Fundamentais. Tradução de Arthur Mourão.


Covilhão. Lusofia Press, 2010.
Página

ISBN: 978-85-7621-221-8
GT12 - MÍDIA, IMAGEM E SOCIEDADE

A VERBO-VISUALIDADE: UM OLHAR PARA AS RELAÇÕES DIALÓGICAS NA


CAPA DA REVISTA MUNDO ESTRANHO

Maria Fabiana Medeiros de Holanda (UFRN)198


Maria da Penha Casado Alves (UFRN)199

Introdução

Se tivesse que escolher uma palavra para definir a atual dinâmica mundial, sem dúvida
o termo “rapidez” estaria no topo para caracterizar a nossa maneira de viver no mundo. Nesse
sentido, a comunicação humana sempre pressupõe um embate de ideias, no qual um
enunciador dialoga com seu interlocutor. E essa interação constitui a forma, a composição e o
estilo de sua produção. Todos esses elementos estão presentes e é inerente à constituição das
características dos gêneros discursivos que circulam na nossa sociedade, desde o gênero
primário, um simples cumprimento, até as formas mais complexas, como os gêneros
literários, jornalísticos ou publicitários. Aliás,

Como fenômeno social, a comunicação dá-se por intermédio de algum tipo


de linguagem que, como vimos, se altera de acordo com o uso que as
pessoas fazem dela. Verbais ou não verbais, criamos sinais que têm
significado especial para o grupo humano do qual fazemos parte (AGUIAR,
2004, p. 25).

Com a perspectiva bakhtiniana de gêneros discursivos, analisa-se o enunciado de


modo mais dialógico, considerando o campo do verbo-visual, haja vista que os enunciados
presentes na capa de revista tornam-se um importante material para o analista da linguagem.
Nesse sentido, o objeto de estudo desta pesquisa integra numa única unidade todos os
componentes sígnicos, como: fotografia, distribuição das letras, título chamativo, cores; na
tentativa de envolver o leitor de forma indireta e estética.
O jogo com as palavras faz-se de forma contínua por meio da divulgação de título e
de imagens na capa de revista, foco do nosso objeto de estudo. Com o propósito de atingir e
manter seu público-alvo, a revista inclui os recursos verbais e não verbais que se coadunam
1219

198
Mestranda do Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem (PPGEL/CNPQ/UFRN) da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Natal-RN.
199
Professora adjunta do departamento de Letras e do Programa de Pós-graduação em estudos da Linguagem da
Página

Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Natal-RN.

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com os interesses específicos de seus leitores. Nesse sentido, podemos nos referir a um
trabalho gráfico cuja elaboração verbal e visual possui um horizonte de expectativas frente ao
seu leitor presumido.
Dessa forma, um dos elementos de mobilização crucial para a revista é, justamente, a
capa, pois é nela que a equipe editorial terá a oportunidade de chamar a atenção do seu
produto para os leitores. Nesse sentido, esse trabalho tem como objetivo analisar capas da
revista Mundo Estranho, buscando identificar relações dialógicas presentes nessa revista. Suas
publicações têm como matéria-prima as curiosidades que permeiam o mundo da cultura,
como fatos históricos, comentários sobre filmes e séries de TV. Importante destacar, ainda, a
preocupação com o tratamento da informação, pois as articulações feitas na capa, por meio da
linguagem verbal e não verbal, cumpre um papel definido e compatível com o gosto e o estilo
de seus leitores potenciais, os jovens.
Tendo isso em mente, elegemos como dados gerados para a execução deste trabalho
o gênero discursivo capa de revista, pois entendemos que a comunicação verbal, visual e
auditiva acaba atuando de forma decisiva nas mídias, mudando o estilo, o formato e a
linguagem em função da proposta comunicativa, com os quais a instituição/empresa pretende
atingir seu público. E essa mudança não é diferente com a capa de revista, uma vez que, a
cada edição, observamos um trabalho gráfico criativo, persuasivo e interessante para o leitor,
cujo construto verbo-visual é responsável por anunciar os principais assuntos da revista.
Este trabalho tem como aporte teórico os conceitos inter-relacionados, tais como
signo ideológico, enunciado concreto, gêneros discursivos e relações dialógicas advindos da
teoria de Bakhtin e o Círculo, bem como de seus estudiosos como Brait (2014) e Faraco
(2009).

1 Gêneros discursivos: a perspectiva bakhtiniana

Com o passar do tempo, a sociedade evoluiu em todos os âmbitos e assim, podemos


pensar nas várias transformações pelas quais tem passado e como tais mudanças têm
promovido um novo olhar no fazer cultural dessa sociedade contemporânea. Nessa
1220

perspectiva, Bauman (2001), em uma análise da sociedade moderna e postula haver uma
transição da sociedade sólida para a líquida.
Segundo Bauman (2001), essa liquidez preenche os espaços, os meios com a mesma
Página

velocidade que se dissipa, ao contrário da solidez que só aceita a forma já estabelecida.

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Pensando nessa perspectiva, a sociedade moderna líquida não se fixa a um tempo e a um
espaço específico, mas procura transitar em diversos cronotopos, cuja relação tempo-espaço
influencia na construção axiológica de um sujeito imerso em situações complexas,
heterogêneas e transitórias. Sobre isso, Casado Alves (2012) ratifica a influência do cronotopo
no gênero discursivo quando afirma que:

[...] cada gênero do discurso pressupõe um cronotopo legítimo para serem


enunciados e recebidos pelo ouvinte/leitor. Assim, o lugar e o tempo
(cronotopo) onde o ouvinte/leitor tem acesso ao gênero discursivo é, muitas
vezes, fundamental para que ele possa compreender sua estruturação, seu
projeto discursivo e o seu direcionamento. Esses lugares/tempos não são
externos aos gêneros, mas constituintes de sua forma e de seu conteúdo,
como também, de seu modo de produção e de recepção (CASADO ALVES,
2012, p. 308).

Pensando na funcionalidade dessa modernidade líquida, cada gênero discursivo


imerso na sociedade apresentará características próprias que servirá a determinado campo de
atuação, tempo e espaço, já que à medida que cresce e se criam diferentes atividade de
trabalho, os gêneros discursivos vão evoluindo e se tornando primordial nas diferentes esferas
da comunicação humana, uma vez que todas as nossas ações são externadas por meio da
linguagem, seja oral seja escrita, e estão vinculadas a algum gênero discursivo.
Nessa perspectiva, temos a noção de gêneros discursivos como os tipos que modelam
nosso dizer e, assim, o número é incontável, no entanto, sabemos, ainda, que os gêneros
discursivos apresentam certas características próprias, permitindo que sejam relativamente
estáveis, pois são apreendidos por meio do convívio social. Desse modo, são herdados e
transmitidos ao longo da história, podendo, assim, sofrer modificações em sua estrutura
composicional por meio das necessidades comunicativas dos usuários. Segundo Bakhtin:

Os gêneros do discurso organizam o nosso discurso quase da mesma forma


que organizam as formas gramaticais (sintáticas). Nós aprendemos a moldar
o nosso discurso em formas de gênero e, quando ouvimos o discurso alheio,
já adivinhamos o seu gênero pelas primeiras palavras, adivinhamos um
determinado volume (isto é, uma extensão aproximada do conjunto do
discurso), uma determinada construção composicional, prevemos o fim, isto
é, desde o início temos a sensação do conjunto do discurso que em seguida
1221

apenas se diferencia no processo de fala (BAKHTIN, 2011, p. 283).

Assim, a infinidade de gêneros é inesgotável. Ao passo que um determinado campo


Página

da sociedade evolui, a quantidade de gêneros cresce e se diferencia, ou seja, agimos sempre

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por meio da linguagem e em função de um gênero nas diferentes esferas sociais, situacionais e
culturais, construindo sentidos e transformando a nossa realidade social.
Ainda pensando na ideia definidora de gênero discursivo, Bakhtin (2015) propõe a
formação do gênero alicerçada na tríade: o conteúdo temático, o estilo e a construção
composicional. Esses elementos, portanto, não devem ser analisados de forma isolada e
separada da teoria. Ao contrário, devemos considerar o escopo das proposições de Bakhtin e o
Círculo, consequentemente, imbricadas na corrente do dialogismo. Ao intencionarmos
proferir um dizer, não partimos de um tema/assunto e o adequamos à estrutura do gênero
discursivo, pois cada enunciado relativamente estável pressupõe um conteúdo temático, uma
construção composicional e um estilo, ficando, assim, a critério de cada projeto de dizer. Esse
fator possibilita perceber, a partir de uma abstração com fins didáticos, os elementos de forma
separada, mas que são indissociáveis e materializados nos enunciados concretos.

2 Enunciado concreto e a verbo-visualidade

De origem russa, viskázivanie significa ato de enunciar, exprimir, transmitir


pensamentos, sentimentos etc. Esse termo utilizado por Bakhtin (2010a) já aponta para o ato
concreto de uso da linguagem. Para ele, enunciado concreto se opõe à oração, pois esta é uma
unidade abstrata, enquanto o enunciado é considerado a unidade real da comunicação. Por
isso, existem diferenciações para o enunciado concreto e a oração. Para o autor, o enunciado
pressupõe uma autoria, consiste em uma unidade real de comunicação; o enunciado pressupõe
um acabamento mais específico como o gênero discursivo a ser utilizado; a atitude responsiva
do outro; a alternância dos sujeitos; a posição valorativa em relação à realidade; enquanto a
oração, não pressupõe autoria, é uma unidade significativa da língua, que possui acabamento
gramatical. A oração é neutra.
Nesse contexto, percebemos que o enunciado concreto200 só se realiza na interação
verbal, comprometendo-se, assim, com uma visão que concebe o sujeito como historicamente
situado e inacabado passível das influências dos diferentes contextos sociais. Isso se confirma
quando pensamos ser o princípio constitutivo do enunciado concreto a contraposição entre a
1222

dicotomia eu/outro.
Página

200
Utilizaremos também enunciado concreto para fazer referência à capa de revista Mundo Estranho.

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Existem três elementos caracterizadores do enunciado concreto, são eles: i) a
alternância dos sujeitos da comunicação; ii) o acabamento específico do enunciado; e iii) a
relação do enunciado com o enunciador e com os outros parceiros da comunicação. O
primeiro faz menção a essa alternância por meio dos interlocutores, seja numa conversa
informal, seja numa obra literária. Essa alternância é o grande impulsionador da réplica, cuja
responsividade é condição para a concretização da cadeia dialógica, uma vez que a relação
entre os sujeitos ocorre “face a face”, no interior do enunciado, disseminando discursos por
meio do postulado da réplica.
O segundo elemento trata do acabamento específico do enunciado que, segundo
Bakhtin, dá-se de três formas: exauribilidade do objeto e do sentido; um projeto de discurso
ou vontade de discurso do falante; e as formas típicas composicionais e de gênero do
acabamento. É importante pontuar que os três fatores definidores do acabamento específico
serão instituídos em função do gênero discursivo e da esfera de comunicação. Além disso,
esse acabamento diz respeito a não conclusão, a um processo de inacabamento em
consonância com o projeto de dizer e com os gêneros discursivos.
Por último, a relação do enunciado com o enunciador e com os outros parceiros da
comunicação verbal. Para Bakhtin (2011), o enunciado é sempre direcionado a alguém. Sob
essa ótica, ele aponta que a composição e o estilo do enunciado não são os únicos
responsáveis pela relação valorativa entre os aspectos semântico-objetal dos discursos. Nesse
processo, estão em jogo as relações valorativas, não somente com o elemento semântico ou
com os elementos linguísticos mas também temos de levar em consideração a relação do
enunciador com os enunciados dos participantes da comunicação verbal.
O fato é que as relações sociais entre sujeitos ocorrem por meio da linguagem. Tal
afirmação tem um papel fundamental para entender a concepção dialógica de linguagem, pois,
para Bakhtin (2011), enunciado não é mera abstração linguística. Assim, os nossos
enunciados ecoam e disseminam outros enunciados num processo dialógico, no qual não
apenas se faz presente o conteúdo temático mas também a forma composicional, o estilo e o
estético. Dentro desse contexto, o estudo do visual constitui um escopo de informações capaz
de fazer compreender mensagens em diversos níveis, do básico até a mais alta capacidade de
1223

expressão artística. Por isso, para Dondis (2007), a experiência visual humana é fundamental
no aprendizado a fim de que possamos compreender o meio ambiente e reagir a ele; a
informação visual é o mais antigo registro da história humana.
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Nessa direção, Aguiar (2004) afirma que, ao tratarmos de diversas linguagens, vamos
nos defrontar com sistemas mistos que envolvem várias matérias (som e imagem, objeto e
escrita, cor e movimento e assim por diante). Logo, nós nos defrontamos com um reforço
visual necessário para interpretação e utilização dos dados responsáveis pela criação de
sentido numa fração de segundos.
Nesse sentido, podemos atribuir esse conhecimento ao que Dondis (2007) postula
sobre a tendência que o ser humano tem de privilegiar o aspecto visual, uma vez que o ser
humano tem a necessidade de ver e observar o que é mais real. Sobre essa visão, a autora
indaga:

Por que procuramos esse reforço visual? Ver é uma experiência direta, e a
utilização de dados visuais para transmitir informações representa a máxima
aproximação que podemos obter com relação à verdadeira natureza da
realidade (DONDIS, 2007, p. 7).

Pensando nessa perspectiva, o estudo do verbo-visual da capa de revista intitulada


Mundo Estranho permite perceber que as imagens trazidas na capa vão além de uma mera
ilustração, pois os textos verbais e não verbais coadunam-se com um projeto de “dizer” e com
um “público-alvo”, diante dessa perspectiva em considerar a linguagem para além do verbal,
considerando assim os aspectos visuais.
Essa nova realidade de estudo do verbo-visual surge em um momento da sociedade
em que somos bombardeados com imagens que viajam o mundo em fração de segundos.
Além disso, segmentos como a publicidade não se contentam em construir imagens com as
quais podem induzir o consumidor a se identificar, mas têm como objetivo desenvolver no
cliente a necessidade de ter o produto como realização de um desejo que, muitas vezes, era
desconhecido do consumidor.
De maneira geral, além da relação que deve ser estabelecida entre o verbal e o visual,
temos também de tornar perceptíveis os sentidos de elementos como cores, tipos de roupas,
enquadramento da imagem e expressões-chave que são responsáveis pelas manifestações
visuais do enunciado concreto. Todos esses elementos coadunam-se para a produção de
sentido, pois possuem informações relevantes, que sozinhas não fariam sentido. Nesse
1224

sentido, Dondis (2007, p. 186) afirma:


Página

Mas as implicações da natureza universal da informação visual não se


esgotam em seu uso como substitutivo da informação verbal. Não há

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nenhum conflito entre os dois tipos de informação. Cada uma tem suas
especificidades, mas o modo visual ainda não foi utilizado em sua plenitude.
A compreensão visual é um meio natural que não precisa ser aprendido, mas
apenas através do alfabetismo visual.

Toda essa complexidade reflete e refrata a força cultural e universal com a qual a
linguagem verbo-visual se difunde, por meio de diversos instrumentos de propagação da
informação em massa, tais como: o cinema, a televisão, a internet, o jornal, a revista. Tais
aspectos devem ser estabelecidos pensando na configuração da sociedade e, acima de tudo,
nas relações entre as estratégias escolhidas pelo autor para a produção visual.

3 Relações dialógicas e o processo de carnavalização

Conceitos como dialogismo, relações dialógicas, polifonia e carnavalização não são


apenas termos ligados à teoria literária e/ou análise linguística. Esses conceitos vão de
encontro à profusão de qualquer prática política, cultural e econômica que tenta impor um
discurso monológico, excludente e monofônico direcionador da sociedade.
Ademais, ligado ao conceito de relações dialógicas está a noção de carnavalização no
escopo desta pesquisa. Um conceito que nos interessa mobilizar, na medida em que Bakhtin
aponta para a importância de elementos como o riso e o grotesco, pois tais manifestações
emergiam na cultura popular das diversas formas como: manifestações com monstros,
banquetes orgiásticos, palhaços, deformidades físicas, entre outras. A partir disso, Bakhtin
reitera os protocolos inerentes à carnavalização ao afirmar que:

Os festejos do carnaval, com todos os atos e ritos cômicos que a ele se ligam,
ocupavam um lugar muito importante na vida do homem medieval. Além
dos carnavais propriamente ditos, que eram acompanhados de atos e
procissões complicadas que enchiam as praças e as ruas durante dias
inteiros, celebravam-se também a “festa dos tolos” (festa stultorum) e a
“festa do asno”; existia também um “riso pascal” (risus paschalis) muito
especial e livre, consagrado pela tradição. Além disso, quase todas as festas
religiosas possuíam um aspecto cômico popular e público, consagrado
também pela tradição (BAKHTIN, 1993, p. 4).

Em decorrência disso, a carnavalização é bastante discutida nos textos: Problemas da


1225

poética de Dostoiévski (BAKHTIN, 2011) e A Cultura Popular na Idade Média e no


Renascimento (BAKHTIN, 2010), buscando sustentar as suas teorias no âmbito sociológico e
Página

filosófico da linguagem. Vale salientar que, na primeira obra, o autor faz uma explanação

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sobre a carnavalização; já na segunda, ele aprofunda mais as questões ligadas a esse conceito.
Esse estudioso da linguagem imaginava a cultura do povo divergente da cultura oficial
representada pelo Estado e pela Igreja. Pensando nisso, concordamos com Casado Alves
(2014), quando a autora afirma que:

O mundo rabelesiano com sua peculiaridade, com uma arquitetônica que tem
o riso como alicerce e estrutura faz com que a obra desse autor tenha caído
no grande tempo e aí permanecido como um tesouro de sentido a ser lido e
compreendido em diferentes épocas (CASADO ALVES, 2014, p. 587).

O humor, seja ele positivo ou não, estava ligado ao grotesco, ao exagero, ao


vocabulário da praça pública (injúrias, juramentos, jargões de rua), bem como a todo tipo de
aberração. Soma-se a isso o fato de o riso ser considerado como privilégio espiritual supremo
do homem, sendo inacessível a outras criaturas.
A carnavalização não se ampara nas verdades estáticas, nem no passado mítico. Pelo
contrário, ela direciona críticas, optando por uma livre invenção e manifestação de cultura.
Desse modo, a carnavalização é iniciada no meio literário por meio da excentricidade e da
irreverência, em que são tratadas as temáticas em cada obra, provocando a descanonização da
teoria e da história tradicional dos romances. Evidenciamos, assim, que o surgimento da
“carnavalização tornou possível a criação da estrutura aberta do grande diálogo” postulado
por Bakhtin (2011), capaz de transferir a interação social entre os homens para um patamar
superior no campo do intelecto e do espírito, outrora limitado ao campo da consciência
monológica una e única.
Dessa forma, instaura-se a natureza dialógica da linguagem, tema recorrente nos
estudos bakhtinianos, uma vez que a relatividade da linguagem correlaciona-se com a
dialogicidade do mundo. Nessa contemporaneidade, o elemento grotesco popular foi
ressignificado pela indústria cultural, subjugado a uma lógica mercadológica, desqualificando
ou até mesmo exacerbando a quebra da unidade de sentido.
Com isso, esta pesquisa tem como objetivo uma compreensão maior do elemento
grotesco, como elemento fundamental no conceito bakhtiniano de carnavalização, juntamente
com o processo polifônico-dialógico, expandindo do literal ao semântico nas capas da revista
1226

Mundo Estranho.
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4 Análise do enunciado

Na condição de unidade da comunicação humana, o enunciado carrega valores sociais,


transita em esferas diversas de atividade, serve a múltiplos objetivos (BAKHTIN, 2003).
Assim, na perspectiva dos escritos de Bakhtin, podemos dizer que o enunciado tem natureza
mediadora das práticas sociais, envolvendo o mundo dos sujeitos e evidenciando seus
atravessamentos ideológicos, políticos, históricos e mercadológicos.

Figura 1: Capa 1

Fonte: Revista Mundo Estranho, n. 196, jun. 2017

Levando em consideração alguns conceitos bakhtinianos expostos nesse artigo,


inicialmente, para efeito de análise, selecionamos de forma aleatória a capa da edição 196, de
junho de 2017. Nessa edição observamos um tratamento peculiar do ponto de vista artístico,
sem perder a configuração genérica que identifica a revista ao seu público, como por
exemplo: o nome da revista no alto da página, títulos e subtítulos, além da imagem
(modificada com algum programa de edição de fotografia), pois a capa compõe um
1227

enunciado, único, individual e irrepetível, conforme preconiza Bakhtin.


Diante da necessidade de optar por um recorte temático para a escritura desse artigo,
detivemo-nos em reconhecer a materialidade verbal e visual inerente ao simbolismo
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ISBN: 978-85-7621-221-8
subjacente a temática dessa edição intitulada “COMO HARRY POTTER MUDOU O
MUNDO”.
Pensando nos elementos verbais exposta na capa dessa edição, temos um enunciado
que dialoga com a imagem centralizada na capa. O enunciado em questão traz a manchete
centralizada na parte inferior da página em caixa alta, logo abaixo da imagem do personagem
Harry Potter. Assim, direcionando o olhar para o construto verbo-visual dessa capa em
análise, temos assim, uma manchete que busca trazer à tona os vários sentidos por meio do
reconhecimento do campo semiótico. Em seguida observamos a existência de outros
enunciados que dialoga com a manchete como é o caso do resumo da matéria principal que
diz: “Há 20 anos era lançado o livro A Pedra Filosofal. Nada mais foi o mesmo: descubra
como a saga influenciou o cinema, a literatura, a economia mundial e até o caráter dos fãs”, a
qual completa o projeto de dizer da revista.
A saga Harry Potter foi um fenômeno no mercado editorial de livros que criou seu
próprio gênero: o Young Adult (YA), uma literatura jovem com temáticas mais adultas. No
entanto, as sagas acabaram ganhando espaço nas leituras dos adultos. Para entender o grande
salto editorial que sagas/séries como essas trouxeram para as editoras, devemos recuperar uma
regra implícita no mercado editorial de que os livros juvenis precisavam trazer narrativas
curtas e ilustradas para aguçar no leitor o interesse pela leitura. Além disso, livros com vários
volumes muitas vezes eram vetados para publicações, pois as editoras temiam perder dinheiro
caso o primeiro volume não tivesse sucesso de vendas.
Nesse sentido, a manchete da revista chama atenção para essa nova realidade editorial
que há 20 anos por meio da saga Harry Potter revolucionou não só a literatura, mas também a
economia mundial, por meio dos fãs que passaram a consumir todos os produtos estampados
com a marca Harry Potter.
Em relação aos elementos não verbais, considerando os sentidos simbólicos
subjacentes à imagem exposta na capa temos, assim, a imagem do personagem Harry James
Potter, cujo personagem nomeou o filme. A revista mostra Harry com uma imagem
trabalhada no formato de desenho e não a foto original. Nessa capa, a imagem ampliada é de
uma das cenas mais memoráveis do filme Harry Potter e a Pedra Filosofal, escrita por J.K.
1228

Rowling. Nela Harry aparece jogando quadribol, uma vez que na série é o esporte mais
popular dentre os bruxos. Além disso, na capa aparece Harry na sua nimbus 2000. Ela tem
como característica cabo de mogno, uma longa cauda de palhas limpas e retas e apresenta
Página

ouro próximo ao cabo. Além do mais, outra marca visual e característica da cena do jogo do

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quadribol no filme Harry Potter e a Pedra Filosofal é o pomo de ouro que estar na capa de
forma ampliada e em destaque.
Partindo desse pressuposto as relações dialógicas estabelecidas nessa capa diz respeito
a uma construção no qual foi elaborada a manter o dialogismo em vários planos, uma vez que
a imagem busca fazer uma interação entre a linguagem verbal e não verbal a fim de informar
ao seu público leitor sobre a reportagem “chave” da revista. Em sintonia com os elementos
exposto na capa, apresenta o material iconográfico que dialoga, juntamente com o texto
verbal. Pensando a capa de revista como sendo um enunciado concreto e que esse enunciado
está sempre refletindo ou refratando ideologicamente a voz alheia, por meio de
posicionamentos que garantirão particularidades próprias ao desenvolvimento interacional da
comunicação humana. E isso é perceptível nas relações sociais as quais os sujeitos estão
inseridos sócio-ideologicamente na e pela (língua) gem, uma vez que em cada uma delas os
signos se revestem de sentidos próprios, as quais são produzidas a serviço do interesse de
cada grupo. De um modo geral, a imagem híbrida criada na capa da revista representa o
próprio perfil estilístico e ideológico da Revista Mundo Estranho.

Conclusões

Para dar início a este trabalho, compreendemos que os papeis sociais que cada sujeito
assume no tempo e no espaço foi fundamental para perceber as relações dialógicas que se
trançavam na capa analisada. Nessa perspectiva, o estudo de orientação bakhtiniana constata a
dialogicidade dos gêneros, uma vez que é constitutivo da linguagem. Segundo Bakhtin
(2010a), o dialogismo não se limita apenas à relação entre palavras e enunciados, mas
também são imperativas as relações ideológicas e as vozes sociais imbricadas nas falas dos
sujeitos. A esse respeito, como pressuposto teórico-metodológico este estudo está alinhado à
Linguística Aplicada, uma vez que busca criar inteligibilidade a partir das relações dialógicas
presentes nas capas de revista.
Após confrontar os elementos verbais e não verbais na capa analisada, observamos
que esses enunciados ecoam vozes de outros enunciados. Isso foi possível de observar a partir
1229

das análises dos dados gerados, pois mostrou que a utilização dos recursos textuais e dos
recursos imagéticos foram indispensáveis para apresentar a capa com apelo atraente,
despertando a atenção do leitor. Desse modo, as imagens apresentadas acabam por, juntas,
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formar um enunciado concreto que, dependendo do leitor, terá um sucesso maior do que

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outro, haja vista que cada informação, seja ela verbal, seja não verbal, faz menção a outros
enunciados precedentes e subsequentes da comunicação discursiva.
A partir dessa análise, pode-se compreender também que a imagem é um
componente de formação ideológica que deve ser considerado sempre em função de um
contexto sócio-histórico, pois reflete os valores sociais propagados em cada época e ainda
remete ao sujeito discursivo que faz parte dela. Trata-se de entender que, para Bakhtin
(2010a), o discurso e o sujeito são inacabados, pois estão sempre envoltos em outras vozes de
diferentes sujeitos sociais. Compreendemos, portanto, que as combinações de estruturas
imagéticas mobilizam, por parte do leitor, graus de conhecimentos capazes de manifestar
diferentes níveis de compreensão.

Referências

AGUIAR, V. T. O verbal e o não verbal. São Paulo: Unesp, 2004.

BAKHTIN, M. (VOLOCHINOV). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas


fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. 14. ed. São Paulo: Hucitec,
2010a.

BAUMAN, Z. Modernidade Líquida. Tradução de Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar,


2001.

CASADO ALVES, M. P. O cronotopo da sala de aula e os gêneros discursivos. In: Signótica,


Gôiania, v. 24, n. 2, p. 305-322, jul/dez, 2012. Disponível em:
<http://www.revistas.ufg.br/sig/article/view/19172>. Acesso em: 23 ago. 2016.

DONDIS, Donis A. Sintaxe da linguagem visual. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
1230
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GT12 - MÍDIA, IMAGEM E SOCIEDADE

IMAGENS E FANTASIA NA PUBLICIDADE INFANTIL

Maria Soberana de Paiva (UERN) 201


Karlla Christine Araújo Souza (UERN) 202
Jucieude de Lucena Evangelista (UERN) 203

Considerações iniciais

Conforme Philippe Ariès (1981) por meio de uma análise iconográfica, na Idade
Média a ideia de infância praticamente não existia, as crianças eram vistas como adultos em
miniatura, e não recebiam nenhum tipo de diferenciação ou pudor pela sociedade. Desse
modo, a duração da infância perdurava apenas o seu período mais frágil, ou seja, assim que a
criança conseguisse realizar atividades básicas sozinha, como comer e beber sem ajuda de
terceiros, era logo misturada com os adultos, confundindo-se com eles.

A criança era, portanto, diferente do homem, mas apenas no tamanho e na


força, enquanto as outras características permaneciam iguais. Seria então
interessante comparar a criança ao anão [...]. A criança é um anão, mas um
anão seguro de que não permanecerá anão, salvo em caso de feitiçaria
(ARIÈS, 1981, p. 14-15).

Nessa época, a morte prematura das crianças era algo bastante comum, devido as
péssimas condições de higiene e saúde em que vivia essa sociedade. Havia assim uma alta
taxa de mortalidade infantil, o que culminava para que as famílias não tivessem um
sentimento maior de apego e afeição pelas crianças, pois em geral, elas não sobreviviam por
muito tempo após o nascimento. Do mesmo modo, era comum a prática do infanticídio,
mesmo que se tratasse de um crime.
Por volta do século XVI, Ariès (1981) aponta o surgimento de um sentimento de
‘paparicação’ que se direcionava as crianças em seus primeiros anos de vida, em que elas
eram tratadas como ‘coisinhas engraçadinhas’, servindo de fonte de divertimento e
201
Mestra em Ciências Sociais e Humanas pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte -UERN.
Bacharela em Comunicação Social com habilitação em Publicidade e Propaganda pela UERN. E-mail:
1231

soberanapaiva@gmail.com
202
Doutora em Sociologia pela Universidade Federal da Paraíba PPGS/UFPB. Professora do Mestrado
Interdisciplinar em Ciências Sociais e Humanas da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte -
PPGCISH/UERN. E-mail: karlla_chris@yahoo.com.br
203
Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte- UFRN. Professor do
Página

Departamento de Comunicação Social da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte -UERN. E-mail:
jucieudelucena@hotmail.com

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relaxamento para os adultos, da mesma forma que os animais domésticos. Ao sair do período
de ‘paparicação’, a criança era enviada pelos seus pais para a casa de outra família, para que
através da convivência diária pudesse aprender as maneiras de um cavaleiro ou um ofício,
dando início assim a sua própria vida.
A educação das crianças se baseava assim na aprendizagem pela observação e pela
convivência adquirida ajudando os adultos nos trabalhos manuais. Tal fato se modificou a
partir do século XVII, com o estabelecimento da escola como instituição formal de educação
e aprendizagem, o que contribuiu para um novo olhar da família e da sociedade sobre a
criança.
Nesta perspectiva, o estabelecimento da escola em sociedade e o novo sentimento da
família em relação à criança contribuíram para o conceito atual de infância que conhecemos,
que concebe a criança como um ser em formação, diferenciado dos adultos. A família e a
escola se tornaram as duas instituições primordiais para a socialização e formação das
crianças, o que atualmente vem sendo compartilhado com a mídia, que passou a integrar de
modo decisivo a vida contemporânea, tornando-se um importante instrumento de
socialização, informação e referência para os indivíduos em sociedade, que cada vez mais
utilizam os conteúdos midiáticos para confirmar ou mesmo reavaliar seus valores e papéis
sociais.
No universo da cultura midiática, encontramos a publicidade infantil, que mobiliza
imagens e elementos do imaginário para construir suas narrativas mercadológicas e persuadir
o público infantil. Buscaremos nesse trabalho refletir sobre esse processo, entendendo que ao
mesmo tempo que se alimenta desses elementos imaginários, a publicidade consegue (re)
alimentar o imaginário da criança, como em um movimento recursivo, pois se utiliza desses
elementos do universo imaginário para atingir seu objetivo comercial, e ao mesmo tempo, (re)
alimenta os sonhos e desejos infantis.
Nesta perspectiva, acreditamos que a publicidade propõe uma combinação entre o
universo imaginário e os bens de consumo. Por um lado, alimenta-se através do imaginário os
desejos, as esperanças e as utopias infantis e, por outro lado, apresenta-se os produtos e
serviços como meios concretos de realização desses sonhos e desejos.
1232
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2 Mídia, imaginário e publicidade infantil

Segundo Edgar Morin (2011), a Cultura de Massa ou Cultura Midiática pode ser
concebida como uma Terceira Cultura, proveniente dos diversos meios de comunicação. Ela é
produzida em nível industrial e distribuída no mercado de consumo para um número
indefinido de indivíduos. Dentre essa massa social ao qual se destina os conteúdos produzidos
pela Cultura Midiática, encontram-se as crianças, que cada vez mais são responsáveis pelo
consumo de um grande número dos conteúdos midiáticos. A televisão destaca-se entre as
mídias de maior preferência entre as crianças, que juntamente com a internet e outros
dispositivos eletrônicos preenchem cada vez mais o cotidiano infantil, transmitindo e, ao
mesmo tempo, ampliando o universo de informações e saberes desses sujeitos.
Para Sampaio (2000) a televisão desempenhou um papel determinante na chamada
‘síndrome infantil’ que teve início em meados da década de 1980, quando a criança se tornou
alvo do marketing e da publicidade. Houve assim uma verdadeira explosão de programas
infantis, o que acentuou a importância da criança na mídia. Tal fato proporcionou às
emissoras de televisão a possibilidade de ampliar significativamente seu público receptor,
bem como as chances de comunicação com toda a família. Além disso e, o mais importante
para as emissoras televisivas, elas puderam incrementar consideravelmente seu faturamento
com anúncios publicitários:

A explosão dos programas infantis no Brasil esteve de modo tão expressivo


associado à sua presença marcante nas emissoras privadas que o sinônimo de
programação infantil e comércio tornou-se praticamente uma obviedade. Tal
vínculo se impõe como uma espécie de fatalidade em relação à qual postura
predominante, tanto da parte de profissionais de comunicação quanto do
público, tem sido a de resignação. O depoimento de Aristides Molina, diretor
do TV Criança em 86, é elucidativo dessa questão: “Doa a quem doer, um
programa para crianças, bem-feito e colocado em determinados horários, é
uma vitrine de produtos infantis, proporcionando inesgotável fonte de renda”
(SAMPAIO, 2000, p.148, grifo do autor).

Atualmente, diante de diversos fatores sociais, como o aumento da violência nos


centros urbanos, bem como o aumento da jornada de trabalho e demais afazeres domésticos,
1233

os pais se tornam cada vez mais ausentes no cotidiano dos seus filhos, que acabam
preenchendo essa ausência com a programação televisiva, jogos eletrônicos e internet, em que
Página

ambos, na grande maioria dos casos, são mediados pela publicidade. Tal fato provoca

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inúmeros debates em sociedade acerca dos possíveis efeitos nocivos que essa exposição aos
anúncios publicitários poderia causar sobre o comportamento e formação da subjetividade da
criança, que é cada vez mais convidada a ingressar no universo adulto, pela via do consumo
de bens materiais e simbólicos.

Uma das maiores críticas feitas contra a propaganda e, principalmente contra


a propaganda na televisão diz respeito às crianças. Pelo fato de elas não
entenderem os objetivos comerciais dessa forma de comunicação, mostrar-
se-iam incapazes de ter um espírito e de desenvolver uma contra-
argumentação, deixando-se, assim, influenciar livre e indefesamente pela
propaganda. Em suma, as crianças constituiriam presa fácil e ideal para as
empresas (KARSAKLIAN, 2004, p. 242).

Entretanto, apesar de considerarmos essa questão importante para debates e reflexões


sociais, nosso atual objetivo neste trabalho busca entender como a publicidade consegue
encantar diante de seus anúncios através da mobilização de imagens e elementos do
simbolismo imaginário para vender seus produtos.
Nesta perspectiva, a publicidade televisiva ganha destaque. Acreditamos que isso se
deve a junção de áudio e vídeo, bem como de elementos e imagens que integram o universo
lúdico da criança, como fadas encantadas, bonecos que falam, personagens e animais
fantásticos, que provocam um encantamento especial e sentimento de familiaridade na
criança, que embarca na aventura midiática proposta e passa a transferir parte dessa fantasia
imagética para sua realidade, bem como a levar traços de sua vida real para seu universo de
imaginação, como um verdadeiro processo de simbiose, onde não se consegue separar os dois
mundos.
Isso se deve, conforme Morin (2011), ao fato do espectador moderno se devotar à
televisão, participando de seu espetáculo de uma distância impalpável, ao mesmo tempo em
que é separado dele por uma ‘membrana invisível’, que por sua vez, lhe confere o ingresso de
participação na multiplicidade do real e do imaginário. Segundo o autor, é dessa maneira que
o telespectador passa transitar entre o mundo real e o imaginário através de uma dupla
consciência, ou seja, o telespectador ao ingressar no universo imaginário da TV, como nas
novelas, filmes e seriados, tende a se projetar e a se identificar com os seus personagens, que
1234

passam assim a ter vida para ele, porém esse mesmo telespectador tem consciência que tal
fato não passa de uma ficção e logo retorna à sua própria realidade.
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ISBN: 978-85-7621-221-8
Considerando que a criança constitui um ser em desenvolvimento cognitivo e
psicológico, ela enquanto telespectadora, nem sempre conseguirá distinguir a ficção televisiva
e o seu mundo real. Nesse caso, a criança passa a habitar os dois universos paralelamente,
onde num movimento recursivo, o imaginário televisivo passa a alimentar a sua realidade e,
do mesmo modo, o seu mundo real passa a servir de base para as narrativas televisivas.
Entendemos que é nessa perspectiva que a publicidade se arquiteta para despertar a
atenção e o desejo nas crianças. Por um lado, movimenta todo o aparato de imagens e
símbolos pertencentes ao imaginário da criança, fazendo com que ela se identifique e se
projete para o universo proposto pela propaganda, ao mesmo tempo que transmite sua
mensagem mercadológica e apresenta o produto ofertado como um verdadeiro passaporte
entre o mundo real e o mundo imaginário, permitindo as fantasias e devaneios infantis.
Em geral, os personagens das propagandas infantis consistem em crianças comuns,
dotadas de apetrechos mágicos, em sua maioria, os produtos ofertados, que lhe conferem a
fantasia desejada em um universo realista. Esses fatores favorecem a identificação da criança
com os personagens, permitindo que a mesma se projete no onirismo difundido pela
propaganda.
Do mesmo modo, em sua totalidade, as propagandas direcionadas às crianças não
apresentam contradições dramáticas em sua narrativa, mas se por ventura existirem, elas são
solucionadas com o happy end. Segundo Morin (2011) o happy end na cultura de massa limita
o universo da tragédia no interior do imaginário contemporâneo, rompendo assim com a
milenar tradição do herói que fixa sobre si a morte, a infelicidade e o sofrimento:

[...] a cultura de massa se esforça em aclimatar, aclimar e, finalmente,


sufocar o absurdo, dar um sentido à vida por meio da exclusão do
contrassenso da morte. O happy end é postulado pelo otimismo da
felicidade, o otimismo da rentabilidade do esforço (é preciso que todo
empreendimento nobre e heroico tenha sua recompensa aqui na Terra)
(MORIN, 2011, p. 89).

O happy end na publicidade constitui a própria dissolução da infelicidade e do


sofrimento, assim, os produtos surgem como verdadeiras soluções diante dos dilemas
interiores vivenciados pelos indivíduos. Em outras palavras, pode-se dizer que a publicidade
1235

realiza o happy end na concretização da compra que garante a posse da solução mágica
prometida pelos produtos.
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O imaginário se torna assim, o elemento chave da persuasão publicitária. Através da
utilização de imagens e elementos do universo lúdico, os anúncios conseguem criar
familiaridade e empatia nas crianças, o que por um lado diminui a rejeição e, por outro lado,
aumenta a receptividade da mensagem mercadológica.
Segundo Durand (1997) o imaginário consiste no resultado de um acordo entre os
desejos ou pulsões subjetivas e as intimidações objetivas que emanam do ambiente natural e
social do indivíduo, servindo assim como fonte de libertação, em outras palavras, consiste na
faculdade humana de simbolização dos medos, esperanças e demais frutos culturais.
A criança passa assim a utilizar o imaginário para enfrentar seus dilemas e anseios
infantis, conseguindo encontrar nesse universo simbólico as respostas que precisa para
entender os mistérios da vida e amadurecer. Conforme Bruno Bettelheim (2014), os contos de
fada, lendas e os mitos conseguiam facilitar esse processo de crescimento e amadurecimento
das crianças em sociedade, na medida em que apresentavam uma narrativa simples que
podiam servir de referência para a criança entender e vencer os obstáculos que a vida lhe
apresentava.

Quanto mais tentei entender a razão pela qual essas histórias têm tanto êxito
no enriquecimento da vida interior da criança, mais me dei conta de que
esses contos, num sentido bem mais profundo do que qualquer outro
material de leitura, começam no ponto em que a criança efetivamente se
acha em seu ser psicológico e emocional. Falam de suas graves pressões
interiores de um modo que ela inconscientemente compreende e, sem
menosprezar as lutas íntimas mais sérias que o crescimento pressupõe,
oferecem exemplos tanto de soluções temporárias quanto permanentes para
dificuldades prementes (BETTELHEIM, 2014, p. 13).

Essa literatura tradicional conseguia transportar à criança para um mundo de


devaneios, estimulando as fantasias infantis e, ao mesmo tempo, apresentando soluções para
seus problemas. Assim como essa literatura tradicional, a publicidade também se utiliza do
devaneio para sugerir soluções para os problemas profundos das crianças. Mas,
diferentemente dos contos de fadas e das narrativas mitológicas, ela possui como único
objetivo promover o consumo dos produtos ofertados.
A publicidade consegue associar em suas mensagens a narrativa simplista da literatura
1236

tradicional, imagens e elementos do universo imaginário da criança, conseguindo acessar as


raízes profundas dos dilemas existenciais infantis, para promover produtos e serviços. Nesse
Página

processo, os anúncios conseguem (re)alimentar as fantasias infantis, muitas vezes pautando as

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brincadeiras das crianças. Os produtos ofertados por sua vez, acompanham todo o cotidiano
infantil, estando presentes desde a decoração do quarto da criança, nas vestimentas e até no
material escolar.
A publicidade ao utilizar de elementos do imaginário consegue assim atribuir sentido
ao mundo objetivo, entretanto, por mais que as imagens concretas presentes em seus anúncios
adquiram contornos específicos em relação ao meio social, familiar, e de educação e
socialização da criança, uma vez que cada imagem possui uma orientação na experiência
individual e coletiva, a única função dos anúncios consiste em estimular o consumo.

Considerações finais

A partir dos pressupostos teóricos apresentados no decorrer do trabalho, pudemos


enxergar no imaginário uma esfera de imagens e símbolos que possibilitam o acesso as raízes
mais profundas do inconsciente da criança, o que nos ajudou a compreender a importância do
imaginário na formação e desenvolvimento psicológico infantil e sua relação dialógica com as
imagens difundidas pela cultura de massa.
Entendemos assim que as imagens publicitárias com a sua força imaginativa, conduz
às profundezas mais temidas da criança e encontra nos produtos as diretrizes superficiais que
indicam a solução para vencê-los. Ao suscitar os desejos íntimos e os dilemas da criança, a
publicidade promete as soluções necessárias para sua superação por meio dos seus produtos.
Contudo, acreditamos que essas imagens e produtos não são suficientes para ajudar às
crianças a enfrentarem conscientemente ou inconscientemente seus medos e anseios
profundos.

Referências

ARIÈS, Philippe. História Social da Criança e da Família. Trad. Dora Flaksman. 2. ed. Rio
de Janeiro: Guanabara, 1981.

BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. 29. ed. São Paulo: Paz e Terra,
2014.
1237

DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário: introdução à arqueologia


geral. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
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DURAND, Gilbert. O imaginário: ensaio acerca das ciências e da filosofia da imagem.
Tradução: Renée Eve Levié. Rio de Janeiro: DIFEL, 1998.

______. A imaginação simbólica. Tradução: Carlos Aboin de Brito. Lisboa/Portugal:


Edições 70, 1993.

KARSAKLIAN, Eliane. Comportamento do consumidor. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2004.

MORIN, Edgar. Cultura de massas no século XX: o espírito do tempo. Trad. Maura Ribeiro
Sardinha. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense- Universitária, 2011.

SAMPAIO, Inês Silva Vitorino. Televisão, publicidade e infância. São Paulo: Annablume:
Fortaleza: Secretaria de Cultura e Desporto do Estado do Ceará, 2000.

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GT12 - MÍDIA, IMAGEM E SOCIEDADE

O DISCURSO POLÍTICO EM ANÁLISE: O ESTUDO DA REPRESENTAÇÃO


DISCURSIVA

Maria Veridiana Franco Alves (UERN)


Maria Eliete de Queiroz (UERN)

Introdução

O trabalho tem como foco a representação discursiva do tema impeachment no


discurso da Senadora Fátima Bezerra, proferido no dia 11 de maio de 2016, no Senado
Federal por ocasião da decisão do parecer de admissibilidade do impeachment da ex-
presidenta Dilma Rousseff. Para a construção da representação deste tema, trabalhamos com o
procedimento semântico denominado de referência (referenciação) e aspectualização.
Os pressupostos teóricos deste estudo estão ancorados no campo da ATD, baseado em
Adam (2011). Para discutir a noção de representação discursiva e de suas categorias de
análise, trazemos Passeggi (2001); Passeggi (2010); Rodrigues, Passeggi, Silva Neto (2010),
dentre outros.
A atualidade do tema impeachment e a pluralidade de possibilidade de estudar o
discurso sob diferentes vertentes, justifica a nossa escolha em analisar o discurso da Senadora
durante a sessão de admissibilidade do processo de impeachment.
Após o texto da introdução, o nosso artigo apresenta o campo teórico da ATD, a noção
semântica da representação discursiva e de suas categorias de análise para em seguida,
apresentarmos as análises e a conclusão com os devidos resultados.

A análise textual dos discursos

A Análise Textual dos Discursos (ATD) é uma abordagem teórica pertencente ao


campo da Linguística Textual, que volta a atenção dos seus estudos para o texto e o discurso,
a ATD reúne os campos da Linguística Textual e da Análise do Discurso. Segundo Adam
1239

(2011, p.23) a ATD “é uma teoria da produção co(n)textual de sentido, que deve fundar-se na
análise de textos concretos. É esse procedimento que me proponho desenvolver e designar
como análise textual dos discursos”.
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Segundo Lourenço (2015) a ATD se mostra como uma corrente importante por
estabelecer a compreensão do texto enquanto discurso, e este discurso relacionado a uma
formação discursiva, a interação autor/ leitor e aos objetivos a serem alcançados dentro de um
gênero. Assim, entendemos que a ATD considera o texto e o contexto como elementos
importantes para a compreensão dos enunciados. Não se pode pensar de modo isolado do
discurso as questões que dizem respeito ao texto, a sua estrutura e os seus mecanismos
linguísticos utilizados pelo sujeito para a construção de seus discursos.
Para exemplificar de modo mais claro o que é a ATD, vejamos o que nos diz Passeggi
(2010 p. 308):

A ATD assume que é um subdomínio do campo mais amplo da análise de


discurso, tendo como tarefa a teorização e descrição da estruturação
sequencial (linear) do texto, assim como de sua estruturação não linear
(reticular). A noção de gênero poderia ser entendida como a categoria
mediadora do plano do discurso e do plano do texto.

De acordo com o autor, o gênero é visto como elemento proeminente na construção


dos discursos, sendo que os estudos dos aspectos linguísticos, da estrutura linguística
precisam considerar o gênero em que se materializam. Na construção dos enunciados os
sujeitos utilizam mecanismos estritamente textuais, porém, deve obedecer certas regras, não
se pode dizer tudo em todo e qualquer lugar. Os gêneros são exemplos disso, pois possuem
características próprias.
No que se refere ao texto é preciso lembrar que este não é algo acabado, sem espaço
para reformulações. É, portanto, uma obra não finalizada, permeada por vários discursos e
interpretações, é em suma um entrelaçado de outros textos e enunciados. Reportando-se a
noção de enunciado e discurso, é oportuno dizer que o discurso é sempre heterogêneo,
marcado por infindos discursos. Essa dialogicidade no discurso é discutida por Fiorin (2012 p.
1510, quando ele assim nos diz:

Do ponto de vista translinguístico, o discurso ganha sentido e identidade na


relação com outros discursos, que ele cita, parodia, estiliza, com que
concorda, de que discorda, a que se opõe, etc. Essa relação interdiscursiva é
1240

o dialogismo.

De acordo com a citação, vemos que o discurso é sempre atravessado por outros
Página

discursos, é heterogêneo, há uma interdiscursividade na construção destes, cuja relação é

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necessária. Essa dialogicidade confere ao discurso uma historicidade, entretanto, o termo
historicidade não se refere a algum momento específico de uma época, mas sim ao momento
em que acontece a comunicação entre os sujeitos.
Ainda quanto ao discurso dizemos que ele é o que traz sentido, interação,
transcendendo a estrutura da língua, é o elo comunicativo entre o autor do texto e seu leitor. O
sentido do texto não é algo acabado e singular, contrário a essa ideia, ele permite amplas e
diversas interpretações, pois possui variados sentidos, é por meio do discurso que se percebe
essas visões. Entre texto e discurso existe, portanto, certas diferenças que valem a pena serem
aqui mencionadas:

A manifestação é a representação da forma numa dada substância, o que


siginifica que o discurso é o do plano do conteúdo, enquanto o texto é o do
plano da expressão. Em outras palavras, este é da ordem do sensível,
enquanto aquele é do domínio do inteligível. O texto é a manifestação de um
discurso. Assim, o texto pressupõe logicamente o discurso, que é, por
implicação, anterior a ele (FIORIN, 2012, p. 148).

Embora exista essa diferença entre ambos, o texto e o discurso estão atrelados e
correlacionados, uma vez que é por meio dos elementos linguísticos que o texto enquanto
estrutura se materializa, e assim vai dando sentido ao discurso que ao mesmo tempo vai sendo
construído. Ainda é pertinente lembrar se tratando dessa questão que o mesmo discurso
possibilita inúmeros textos, nas mais diversas linguagens, ou seja, em linguagem verbal e não-
verbal.
É possível dizer também que o texto e o discurso se articulam entre si, porém, é
pertinente lembrar que por vezes a ciência da linguagem distingue o texto do discurso,
contudo, não se deve separar um e outro. É importante ressaltar que na tecitura do texto
fazemos uso constante de escolhas linguísticas, ou seja, palavras, frases e uso recorrente de
conectivos linguísticos que unem uma ideia a outra, dando lineariadade e coerência ao que vai
sendo escrito. O discurso seria, portanto, esse mesmo texto, agora visto através da intenção
discursiva de seu autor. Para explicar melhor o que é o discurso, vejamos o que nos diz,
Guimarães (2009, p. 127) “O discurso privilegia a natureza funcional e interativa e não o
aspecto formal e estrutural da língua. Não é um simples somatório de frases, mas um todo,
1241

semanticamente organizável, no plano da ação que o caracteriza e dos efeitos que provoca”.
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Prosseguindo a discussão sobre a teoria da ATD, tomaremos como referência o
esquema que segue abaixo. O esquema diz respeito a relação entre níveis de análise do
discurso e níveis da análise textual.

Figura 4: Esquema 4 – Níveis ou planos de discurso


Fonte: Adam (2011, p. 61).

De acordo com o esquema desenvolvido por Adam, podemos ver na parte superior os
níveis da análise de discurso, e na parte inferior os níveis de análise do texto. No que tange
ao nível da análise do discurso, percebe-se que o sujeito se constrói discursivamente, a partir
do contato com o social.
Em toda ação comunicativa o sujeito tem uma intenção argumentativa e
discursivamente, está assim representada pelo nível 1. Seguindo o esquema, vemos que o
sujeito interage socialmente, sendo, portanto, construído a partir dessa interação com o outro;
essa interação com o social está representada enfaticamente no nível 2. O nível 3 trata da
seleção feita pelo sujeito do que pode ser dito, ou seja, não se pode dizer tudo em todo lugar,
adentrando assim nas formações discursivas.
1242

No nível do texto, vemos mais cinco categorias: o nível 4 trata da textura (proposições,
enunciados / períodos). O nível 5 reporta-se a estrutura composicional (sequências / planos de
Página

textos). A semântica (representação discursiva) retrata o nível 6 do esquema de Adam. O

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nível 7, trata da enunciação (Responsabilidade enunciativa / coesão polifônica). O nível 8
versa os atos dos discursos (valor ilocucionário / Orientação argumentativa.
Nesse sentido, todo e qualquer enunciado possibilita perceber uma representação
discursiva, essas representações são as imagens que se pode fazer de si, do tema tratado ou do
interlocutor. É pois sobre esse conceito que passaremos a discutir na sessão seguinte do
artigo.

A representação discursiva

Nesta sessão discutimos a noção de representação discursiva que todo enunciado


constrói. De acordo com Adam (2011, p. 113), a representação discursiva é explicada como
“a expressão de um ponto de vista [PdV]”. Toda representação é construída a partir de
proposições enunciadas, e cabe ao interlocutor saber interpretar os sentidos desses pontos de
vista, isso implica dizer que o leitor precisa ter conhecimento acerca do enunciado para que a
compreensão seja de fato efetivada.
A representação discursiva é nos dizeres de Passeggi (2010) uma construção que vai
sendo tecida em diversos pontos do texto, não necessariamente de modo sucessivo, podendo
ser um enunciado mínimo. Assim, o enunciado mínimo para Adam (2011, p. 106) é “uma
unidade textual de base, efetivamente realizada e produzida por um ato de enunciação,
portanto como um enunciado mínimo”. Assim, o enunciado ainda que minimamente necessita
ter sentido para que o interlocutar consiga interpretar aquilo que se quis dizer.
De acordo com Rodrigues, Passeggi e Silva Neto, (2010, p. 173), “todo texto constrói,
com maior ou menor explicitação, uma representação discursiva do seu enunciador, do seu
ouvinte ou leitor e dos temas ou assuntos que são tratados”. Para se perceber essas
representações contidas nos discursos é preciso fazermos uso de algumas categorias
semânticas dentro do campo da representação discursiva.
Passeggi (2010, p. 173) assim, explicita a relação da proposição enunciado e o
conceito de representação discursiva:
1243

[...] Toda proposição, na condição de “microuniverso semântico”, constitui


uma representação discursiva mínima. A dimensão referencial da proposição
apresenta uma certa “imagem” do(s) referente(s) discursivo(s), posto que
cada expressão utilizada categoriza ou perspectiva o referente de uma certa
Página

maneira (PASSEGGI, 2010, p. 173).

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Mesmo que o enunciado seja mínimo é possível ver a imagem de quem fala, do que se
fala e para quem o texto é direcionado, ainda é pertinente dizer que em um mesmo texto se faz
presente várias faces, todas elas distintas entre si. Sendo assim, vemos que essas três classes
são importantes para a construção da representação discursiva: i) representação discursiva do
locutor. ii) representação discursiva do alocutário. iii) representação discursiva do tema
tratado.
A representação discursiva do locutor corresponde ao ethos. Segundo Amossy (2008,
p. 107) “o sujeito no mundo e a imagem esquematizada desse sujeito no discurso, a que
chamaremos de, que corresponde ao ethos do orador”. O sujeito no mundo corresponde ao
próprio orador que assume seu lugar social e os objetivos de seu discurso, ou seja, suas
representações de si.
A representação discursiva do alocutário é a imagem que o locutor do discurso faz de
seu interlocutor, de acordo com Passeggi (2001, p. 251) “o alocutário deve inferir as
representações do locutor a partir das imagens que este propõe, utilizando diversos
procedimentos de interpretação”. Assim, percebemos o quão importante é a interação entre
ambas as partes (locutor e alocutário) para a construção dos sentidos dos enunciados.
Em Passeggi (2001, p. 249) as representações do tema tratado “constituem o conteúdo
manifesto da esquematização e remetem diretamente às operações lógico- discursivas de sua
construção”. Dessa maneira, dizemos que a representação do tema tratado é o próprio
conteúdo do texto. As três representações estão assim correlacionadas e requer do locutor uma
aproximação com a formação discursiva para que se compreenda satisfatoriamente os
enunciados.
Para a construção de uma representação discursiva é necessário discutirmos sobre as
categorias semânticas denominadas de: referenciação, predicação, aspectualização, relação e
localização.
Quanto a referência ou referenciação, Koch (2006, p. 59) nos diz que é “aquilo que
designamos, representamos, sugerimos quando usamos um termo ou criamos uma situação
discursiva referencial com essa finalidade: as entidades designadas são vistas como objetos-
de-discurso e não como objetos-do-mundo”.
1244

Quanto a predicação, para Rodrigues, Passeggi e Silva Neto, (2010, p. 175) “[...]
remete tanto à operação de seleção dos predicados, isto é, à designação dos processos, no
sentido amplo (ações, estados, mudanças de estado etc.), como ao estabelecimento da relação
Página

predicativa no enunciado”.

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A aspectualização para Rodrigues, Passeggi e Silva Neto, (2010, p. 175) “refere-se às
características ou propriedades tanto dos referentes como das predicações”.
A relação segundo Rodrigues, Passeggi e Silva Neto,(2010, p. 176) “expressa aqui
dois processos distintos: a assimilação analógica (e a correspondente dissimilação), base da
comparação, da metáfora e de outras figuras de linguagem, e as ligações entre enunciados”.
Por fim, a categoria denominada de localização em Rodrigues, Passeggi e Silva Neto,
(2010, p. 176) “indica as circunstâncias espaço/temporais nas quais se desenvolvem os
processos participantes”. Dentre as cinco categorias semânticas apresentadas acima
destacamos a referência (referenciação) aspectualização para a construção das nossas análises.

A representação de impeachment em discurso político

A categoria semânica denominada de aspectualização, com foco principalmente nos


referentes nos possibilitou ver algumas representações em torno do tema impeachment. As
principais representações construídas foram: golpe, golpe de estado, farsa e tragédia, injustiça
e aberração jurídica. Considerando o excerto que se segue, vejamos:

L (1-4) Exmo Sr. Presidente, Srªs Senadoras, Srs. Senadores, querido povo brasileiro, tragédia
e farsa é o que País enfrenta no momento; é o que presenciamos no Congresso Nacional no
dia de hoje[...].

Na entrada do discurso, a senadora norte-rio-grandense refere-se aos seus pares ao


discursar na sessão de inadmissibilidade do processo de impeachment, que surgiu quando
Dilma Rousseff foi acusada de cometer crimes de responsabilidade administrativa, durante o
seu mandato como presidenta do Brasil.
Na conceitualização do que é o impeachment, a senadora usa os referentes “tragédia e
farsa”, o termo tragédia indica o modo como o impeachment é visto pela senadora, por sua
vez, farsa revela que tais acusações à presidenta do Brasil são enganosas. Dessa maneira, com tal
processo ela considera que o Brasil sofrerá grandes retrocessos, por exemplo, na educação e na
saúde .
1245

Observemos o fragmento a seguir:


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L (9-11) Sabemos, Sr. Presidente, que este processo de impeachment é apenas a fantasia que
oculta um projeto político que foi derrotado nas eleições democráticas, como denunciou
Adolfo Pérez Esquivel, Prêmio Nobel da Paz, em 1980, aqui mesmo neste plenário.

Quanto a aspectualização do referente, destacamos o atributo dado ao referente


impeachment: “apenas a fantasia”, a escolha de tais aspectualizadores foi de grande valia
para enfatizar que o processo de impeachment julgado e aprovado pelo senado não é algo
verdadeiro, nem legítimo, por essa razão é tido como fantasia. O advérbio “apenas”
intensifica a irrealidade do impeachment, excluindo a possibilidade de denominar o processo
de outra forma.
Ao longo do discurso a senadora atribui ao processo de impeachment diferentes nomes
para conceituar o que este representa. Atentemos:

L (25-27) O desmonte crítico dessa aberração jurídica foi efetuado, de forma competente,
não só pelo Advogado-Geral da União, José Eduardo Cardozo, mas também por juristas
notáveis, como Fábio Comparato e Dalmo Dallari.

A referenciação presente no discurso está indicada pela proposição, “aberração


jurídica”, o referente aberração indica que o processo de impeachment é uma anormalidade,
é ilegal. Em razão dessa ilegitimade que a senadora diz ser uma aberração jurídica, isto é, a
ordem do processo não corresponde a um ideal justo.

L (37-40) Mas fazemos questão de deixar claro, Sr. Presidente, que este golpe, este golpe de
Estado teve início quando o PSDB e seu candidato à Presidência, Aécio Neves[...].

Na representação do processo de impeachment como fantasia e farsa, a locutora do


discurso escolhe as proposições, “este golpe”, “este golpe de Estado” para enfatizar a
ilegalidade do processo de impeachment. O uso do referente golpe refere-se a falta de provas
em crimes cometidos pela presidenta Dilma Rousseff, durante a armação do processo. A
representação discursiva do tema impeachment exposta no trecho acima revela para o
interlocutor que o processo é um golpe de estado.
1246

A locutora não mais utiliza a palavra impeachment, mas sim o referente golpe, há
nesse caso uma retematização do que antes era denominado processo de impeachment. O
termo golpe vai sendo utilizado na sequência do discurso. Observemos:
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L (51-53) Este golpe é espúrio, é indecoroso, é antipovo, é um desrespeito à população, pois
Uma Ponte para o Futuro nada mais é do que a plataforma da elite, o programa da Fiesp
[...].

O verbo ser conjugado no presente do indicativo, “é”, funciona como verbo de


ligação, e aspectualiza o referente golpe, agora não mais com uma palavra, mas sim um
conjunto de predicativos. No trecho anterior a locutora se reporta ao impeachment como
golpe, pelo fato de esse não ser um ato legal, os aspectualizadores do referente golpe
complementam a representação do impeachment como farsa e aberração.
Assim os atributos, “espúrio, indecoroso, antipovo, um desrespeito à população” são
utilizados para caracterizar o impeachment, cognominado de golpe. Temos mais uma vez
uma retomada do processo por meio do referente golpe, golpe que corresponde a
impeachment, ocorrendo mais uma vez a retematização.
É relevante dizer que a senadora norte-rio-grandense ocupa uma formação discursiva
especifica, a de parlamentar, por essa razão, a senadora tem propriedade para caracterizar com
tais nomes o processo, pois, ela conhece o contexto em que o processo de impeachment foi
articulado. Além de defender Dilma Rousseff, a senadora defendia também o partido a que é
filiada, por sua vez é o mesmo que a ex-presidenta. Dessa forma, o afastamento da presidenta
prejudicaria não só o Brasil, mas também ao partido a que pertencem. Analisemos o excerto
abaixo:

L (114) Sairemos deste jogo de cartas marcadas de cabeça erguida, com mais disposição
ainda para a luta.

A expressão, “jogo de cartas marcadas de cabeça erguida”, se remete ao golpe,


porém, ao falar em “jogo de cartas marcadas”, o interlocutor consegue perceber que a locutora
do discurso refere-se ao processo de impeachment. A expressão indica que o golpe foi
armado por vias ilegais afim de que os participantes da elaboração do processo pudessem
conseguir o objetivo almejado, isto, a presidência da república.
Em nossas análises vemos o uso de expressões que caracterizam e definem o processo
1247

de impeachment, o mais recorrente é golpe ou golpe de estado. Essa definição pode ser
explicada pela ilegalidade do processo, a senadora norte-rio-grandense não considera o
Página

impeachment um ato legal. A sua posição política da senadora fica evidente com a escolha de

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proposições de cunho negativo, há uma necessidade dela em deixar claro para o povo
brasileiro que o processo é uma tomada de poder, por essa razão ela intitula de golpe.

Conclusão

Tendo em vista o pressuposto teórico da ATD utilizado para a construção da


representação discursiva no discurso político, vimos que a referida teoria articula os estudos
do texto com os estudos do discurso, levando em consideração a formação discursiva do
locutor. A locutora do discurso analisado enfatiza a necessidade dessa correlação entre
situação social e o discurso, a senadora ocupa um lugar social de grande relevância, seus
ideiais justos correpondem aos atos da presidenta, por essa razão ela utiliza a palavra golpe
para nomear o impeachment.
Em nossas análises com o estudo do pronunciamento da senadora do Rio Grande do
Norte, por meio das categorias semânticas da referenciação e da aspectualização, diferentes
representações discursivas foram encontradas dentre elas a de golpe, golpe de estado, farsa,
tragédia, injustiça, e aberração jurídica.
As representações discursivas elencadas aqui realçam a ilegalidade do processo de
impeachment, julgado na sessão de admissibilidade. Nesse sentido, a locutora durante o seu
pronunciamento cita recorrentemente a proposição, golpe ou golpe de estado para esclarecer
que a presidenta Dilma não cometeu nenhum crime dos quais está sendo acusada em seu
processo.

Referências

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Trad. RODRIGUES, Maria das Graças Soares; SILVA NETO, João Gomes; PASSEGGI,
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IN: ADAM, Jean-Michel; HEIDEMANN, Ute. MAIGUENEAU, Dominique. Análises
textuais e discursivas: metodologias e aplicações. São Paulo: Cortez, 2010.

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ISBN: 978-85-7621-221-8
GT12 - MÍDIA, IMAGEM E SOCIEDADE

ALICE NO PAÍS DA ESTÉTICA: A JORNADA DE UMA HEROÍNA NO MUNDO


SOMBRIO.

Natanael da Silva Leão204


Daiany Ferreira Dantas205
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, Mossoró, RN

Introdução

O senhor poderia me dizer, por favor, qual o caminho que devo tomar para sair daqui?
Isso depende muito de para onde você que ir, respondeu o Gato.
Não me importo muito para onde..., retrucou Alice.
Então não importa o caminho que você escolha, disse o Gato.
Lewis Carroll

A estética é um antigo campo de estudos logo associada à ideia de beleza. De acordo


com a pesquisa de Ariano Suassuna (1972), antes vista como filosofia do belo ou da arte, a
estética passou a abranger diversas categorias sob a premissa de que a arte não produz
somente o belo, mas também o feio, o trágico, entre outros. Ao longo dos estudos, tornou-se
clara a definição do que o autor paraibano chama de “fronteiras da beleza”.
Essas são marcadas por categorias, ou classificações, que incluem o belo clássico e
harmonioso, o gracioso, o trágico, o dramático, o sublime, o risível, o feio e o monstruoso.
Tais conceitos permeiam as diversas manifestações artísticas, situando os estudos estéticos
como extremamente relevantes para a compreensão da própria arte.
Se, em concordância com o pensamento de Ricciotto Canudo em seu "Manifesto das
Sete Artes", o cinema é a sétima arte e contempla todas as outras, este não pode estar está
aquém do campo estético (CANUDO, 1912, apud LOPES, 2013). Ao contrário, nas
produções cinematográficas há uma gama de representações das diversas categorias, muitas
vezes entrelaçando-se para constituir fotografias, cenários, figurinos e roteiros consagrados
em premiações.
O filme americano Alice no País das Maravilhas (2010) é exemplo da riqueza estética
1250

no cinema, sendo uma adaptação audiovisual do livro As aventuras de Alice no País das

204
Aluno do Curso de Jornalismo da UERN -RN, email: natanleao23@hotmail.com.br.
205
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Orientadora do trabalho. Professora do Curso de Comunicação Social da FAFIC-UERN, email:


daianyd@gmail.com.

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Maravilhas (1865) de autoria do Charles Lutwidge Dodgson, sob o pseudônimo Lewis
Carroll. O longa, produzido e distribuído pela Walt Disney Studios, foi dirigido pelo
consagrado Tim Burton e contou com grandes estrelas do cinema hollywoodiano no elenco,
como Johnny Deep, Helena Bonham Carter e Anne Hathaway.
Não é a primeira vez que a personagem Alice aparece nas telas de cinema. O filme de
Tim Burton faz parte de uma série de remakes produzidos pela Disney Filmes, e representa,
em versão com atores, a continuação da popular animação Alice no País das Maravilhas
(1951) dirigida por Hamilton Luske, Wilfred Jackson e Clyde Geronomi.
Enquanto a animação apresentou ao público a história de uma menina que descobriu
um país fantástico, no filme de 2016 a narrativa inicia anos mais tarde, com a festa de noivado
de Alice. Insatisfeita com a pressão pelo casamento, a jovem foge do local e segue um coelho
branco até cair em um buraco que a leva para o Mundo Subterrâneo e lá acredita estar vivendo
mais um de seus frequentes sonhos surrealistas.
Entretanto, Alice já visitara o lugar quando era criança e seu retorno não foi em vão. A
jovem de 19 anos recebe a difícil missão de derrotar uma fera conhecida por Jaguadarte e,
consequentemente, libertar o País das Maravilhas da tirania da Rainha Vermelha, (ou Rainha
de Copas), irmã da bondosa Rainha Branca. A tarefa heroica é rejeitada pela personagem, que
possui sua identidade abalada e reconstruída ao longo da narrativa de acordo com as suas
experiências.
O enredo é desenvolvido a partir do combate em o bem e o mal e o fortalecimento da
personalidade de Alice, que assume a condição de heroína. Na jornada contra a opressora
Rainha Vermelha, Alice conta com a ajuda de amigos peculiares, como o Chapeleiro Maluco,
a Lebre de Março, os gêmeos Tweedle-Dee e Tweedle-Dum, Coelho Branco, Gato Risonho, o
cachorro Bayard, e Dormidongo.
Após uma trajetória de reviravoltas, o desfecho do filme é dado com a vitória de Alice
sobre o Jaguadarte e a Rainha de Copas, marcando a retomada da coroa pela Rainha Branca e
a ascensão da paz, fraternidade e felicidade no Mundo Subterrâneo.
Junto ao público o sucesso é notável, a produção arrecadou mais de 1 bilhão de reais,
sendo um dos filmes mais lucrativos da Disney. Apesar de algumas avaliações negativas
1251

quanto ao roteiro pela crítica, o aspecto visual foi aclamado, chegando a conquistar
premiações importantes, como o Oscar, melhor direção de arte e melhor figurino, e o BAFTA,
melhor figurino e melhor maquiagem.
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Tudo isso colaborou para fortalecimento da marca Alice no País das Maravilhas
(2010) e aumentou o impacto que a personagem protagonista exerce sobre os fãs. Sendo uma
narrativa transmídia, conceito adotado por Henry Jenkins (2008) para se referir à “criação de
um universo” sobre um produto, Alice está presente em itens de venda, como materiais
escolares e roupas, gerando um potencial de lucro que ultrapassa a bilheteria.
Em “Alice no País das Maravilhas” tem-se um instigante contraste de cores, formas e
conceitos estéticos que colaboram para a construção da fantasia de Tim Burton. O próprio
diretor é conhecido por sua fotografia sombria, mas rica em cores. Aclamado visualmente
pela crítica e pelo público, o filme foi “esteticamente” premiado.
No entanto, Alice no País das Maravilhas (2010) expõe mais do que efeitos especiais.
Nas salas de cinema a divergência entre feio e belo, drama e humor, força e impotência
contribuiu para a constituição de uma narrativa que traz à tona importantes referências a
estudos da esfera estética. Tim Burton não apenas provocou duelos entre conceitos estéticos,
como desenvolveu relações de atração e combinação entre opostos, enriquecendo a história.
Além do mais, a protagonista é desafiada a assumir uma postura heroica, buscando
trazer paz para o mundo subterrâneo. Para tanto, o País das Maravilhas torna-se cenário para
uma jornada cuja heroína está em construção e necessita primeiramente descobrir a si mesma.
Um reino povoado por monstros, seres cômicos, criaturas deformes, personagens
belos, além de conter cenário sublime e figurinos exagerados torna-se um “país da estética”.
Nesse universo fantástico, é relevante estudar a construção do heroísmo em torno da
personagem “Alice”, influenciado pela estética grotesca. Na saga heroica, o happy end
também marca a narrativa, conservando a felicidade esperada pelo público.
Investigar a presença e interação de conceitos estéticos no objeto em questão,
especialmente a relação entre heroísmo, grotesco e happy end na construção do enredo,
contribuirá para os estudos nesse campo da filosofia e facilitará o entendimento do mesmo.
Sabendo aonde quer chegar é possível traçar os caminhos a serem percorridos. Desse
modo, o presente trabalho constitui uma pesquisa qualitativa em livros, artigos e notícias,
além de nortear-se nos estudos de Ariano Suassuna (1972), Edgar Morin (2002), Muniz Sodré
e Raquel Paiva (2002), Joseph Campbell (1995) entre outros que contribuíram para a análise
1252

do filme a partir dos conceitos estéticos citados.


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Alice, uma adaptação “burtonesca”

Alice no País das Maravilhas (2010) é considerada uma das primeiras adaptações de
animações clássicas da Disney de acordo com Vitória Pratini (2017). Seu sucesso incentivou a
gravação de longas como Malévola (2014), Cinderela (2015), Mogli: O Menino Lobo (2016)
e A Bela e a Fera (2017).
Esse tipo de versão, conhecido como live-action por ser filmado com atores reais,
representa uma tendência na produção de filmes do estúdio, que está preparando novas
adaptações frente às boas bilheterias alcançadas pelos últimos lançamentos. O live-action
contribui para a reinvenção dos contos de fada, histórias que consagraram a Disney no
mercado e junto ao público.
O diretor de Alice no País das Maravilhas (2010), Tim Burton carrega consigo um
estilo peculiar. Nascido em 1958, nos Estados Unidos, tem, desde sua infância, fascínio por
histórias de terror. É influenciado pela literatura de Edgar Allan Poe, marcada pelo mistério e
horror.
Burton dirigiu filmes de grande repercussão, abordando gêneros variados, como Os
Fantasmas se Divertem (1988), Batman: O filme (1989), Edward Mãos de Tesoura (1990),
Planeta dos Macacos (2001), A fantástica fábrica de chocolate (2005) e O Lar das Crianças
Peculiares (2016).
O cineasta, porém, consolidou-se por sua estética sombria e grotesca. Segundo Márcio
Henrique Muraca (2010) esses elementos constituem o estilo denominado, por artistas e
apreciadores, como “burtonesco”.

Tim Burton se aproveita dos elementos góticos em geral, desde os castelos e


cavaleiros das narrativas do séculos XVIII e XIX até a cultura pop de horror
dos filmes de monstros e aliens do cinema. Sua obra tornou-se uma vasta
galeria de seres estranhos, sem cabeça, deformados, zumbis, esqueletos,
gigantes, bruxas, gente pálida e não compreendida, todos mergulhados em
um espaço aparentemente escuro, azulado, sob o nevoeiro e a noite. Por
outro lado, contrastando com esse universo, está o mundo também
pretensamente colorido: bairros norte-americanos cercados de gramados
impecáveis sob o céu ensolarado (Edward Scissorhands, 1990) ou a vida de
aristocratas gananciosos e mal-humorados, os quais parecem menos vivos do
1253

que aqueles que residem na terra dos mortos (Corpse Bride, 2005).
(MURACA, 2010, p. 122).
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Dessa forma, narrativas que, à primeira vistam lembram fábulas ou contos de fadas,
são exploradas por Burton pelo filtro da goticidade e expressionismo alemão, conhecido pela
estética de contraste ente claro e escuro, além das formas distorcidas. O resultado assemelha-
se à contos do Halloween. Porém, em seus filmes, o sombrio convive com a graça. Seres
estranhos e situações bizarras transmitem humor, simpatia.
A fotografia dos filmes “burtonescos” é soturna. O diretor projeta em suas produções a
própria visão de mundo. Cores vivas contrastam com sombras e escuridão. A tonalidade do
céu contribui para o ambiente tenebroso, visto que o cinza e o azul comunicam frieza e
melancolia. De modo geral, os personagens protagonista são diferentes fisicamente ou
psicologicamente, dificultando sua convivência na “sociedade civilizada”.
Os filmes O Estranho Mundo de Jack (1993), A Noiva Cadáver (2005), A Lenda do
Cavaleiro sem Cabeça (1999) e Sombra da Noite (2012) exemplificam a maneira com a qual
o cineasta lida com o sombrio e nele desenvolve romance e humor. Destacando-o de outros
expoentes do cinema gótico, cujo medo e mistério estão presentes no desenvolvimento dos
enredos.

Grotesco, heroísmo e happy end

O campo da estética é formado por diversas categorias, definidas por Muniz Sodré e
Raquel Paiva (2002) como um sistema de exigências para que uma obre alcance determinado
gênero em meio à produção artística. Os autores também defendem que “a categoria responde
tanto pela produção como pela estrutura da obra quanto pela ambiência afetiva do espectador,
na qual se desenvolve o gosto, na acepção da faculdade de julgar ou apreciar objetos,
aparências e comportamentos.” (SODRÉ; PAIVA, 2002).
Diante disso, é possível encarar a noção de categoria como classificação de um objeto
do campo artístico com base na produção, estrutura e público da obra em questão. Uma das
categorias mais relevantes da estética que integra o estilo de Tim Burton é o grotesco.
O termo vem da palavra gruta ou porão (grotta em italiano) e passou a ser usado com
finalidade estética no final do século XV, quando escavações no território romano revelaram
1254

objetos antigos e estranhos que conquistaram a atenção dos artistas. Ao longo dos anos a
palavra “grotesco” sofreu adaptações de sentido, até fazer referência às coisas ridículas que
nos encantam.
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Desta forma, o grotesco, enquanto categoria estética, lida com a extravagância, a
vulgaridade, o nojo e a escatologia. Tudo que o homem possui de estranho está presente no
grotesco, conceito que conflita com a ideia de formas harmoniosas. Logo, esta categoria
frequentemente gera impacto no público, principalmente através do riso.
O grotesco manifesta-se no rebaixamento da identidade humana e dos valores, a
associação entre homens e animais é exemplo disso. É comum que as deformidades ou
desproporcionalidades possuam teor cômico, daí a relação entre grotesco e risível, categoria
estética que explora os fatores que nos levam a rir e como a zombaria relaciona-se com
padrões sociais.
Sendo assim, Muniz Sodré e Raquel Paiva (2002) ressaltam que o grotesco descontrói
o ideal de beleza mantido por convenções sociais. Isto posto, o riso simboliza a reação
negativa do contemplador frente à uma situação que desafia um modelo de belo proposto
pelas instituições sociais.

Grotesco é aí, propriamente, a sensibilidade espontânea de uma forma de


vida. É algo que ameaça continuamente qualquer representação (escrita,
visual) ou comportamento marcado pela excessiva idealização. Pelo ridículo
ou pela estranheza, pode fazer descer ao chão tudo aquilo que a ideia eleva
alto demais (SODRÉ; PAIVA, 2002, p. 39).

Através da sátira, horror, monstruoso, fantasia ou absurdo o grotesco problematiza o


idealismo cultural. Pode manifestar-se na pintura, literatura, televisão, cinema, entre outros
suportes de comunicação.
“O campo objetivo da estética é irredutível ao da arte, assim como o da arte não se
reduz ao estético” (SODRÉ; PAIVA, 2002). Dessa forma, a estética vai além da esfera
artística, às vezes para entender melhor a própria arte. O estudo do heroísmo em si, bem como
o modo que ele se desenvolve na literatura, cinema e televisão confirma essa lógica.
Heróis e heroínas são, respectivamente, homens e mulheres de personalidades
grandiosas que conseguiram superar suas limitações e vencer desafios. De acordo com Joseph
Campbell (1949), herói é o homem da submissão auto conquistada, que conseguiu atingir um
status elevado em virtude se suas potencialidades e capacidade de resolver problemas. De
1255

modo geral, ele contribui para a comunidade social em que habita.


Esses personagens estão presentes na literatura, pintura, cinema, televisão e outras
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áreas do campo artístico. Também na esfera mitológica e religiosa há presença de heróis e

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heroínas. Na mitologia grega é possível encontrar as primeiras referências a heróis, filhos de
deuses com seres humanos, como Hércules. Essa condição lhes oferece poderes especiais, tais
como a força e a velocidade.
Joseph Campbell, através do livro O herói de Mil Faces (1949), estudou diversos
contos para concluir que todas histórias de heroísmo estão unidas por uma narrativa básica
sujeita a adaptações de acordo com o escritor, mas que preserva um único fio condutor. Em
outras palavras, a jornada do herói repete-se a cada novo filme ou livro do gênero, visto que
não há nada de novo.
O pesquisador de mitologia estruturou um roteiro básico para a “Jornada do Herói”,
baseada em doze passos que qualquer personagem heroico percorre: A história inicia no
cotidiano do personagem, ou seja, seu mundo comum. Esta tranquilidade é rompida quando
algo o motiva a viver uma jornada, ele reluta até receber a ajuda de um mentor e aventura-se
em um mundo desconhecido. O herói enfrenta desafios que vão fortalece-lo até que ele entra
na moradia ou esconderijo do antagonista e ambos se enfrentam. O herói vence a provação,
retorna para casa revestido de poderes e toma posse de algo que beneficiará seu mundo
comum.
Em síntese, apesar das alterações que escritores e roteirista de cinema e televisão
realizam para atender suas necessidades, as variações da jornada do herói podem ser
contempladas em uma única jornada, onde “um herói sai de seu seguro mundo comum para se
aventurar num mundo hostil e estranho” (RICÓN, 2006).
Muitos roteiristas de cinema ou televisão não tem medidos esforços na construção de
heróis ou heroínas que conquistem o afeto do público. Em partes, isso se dá pela humanização
crescente do personagem. Edgar Morin (2002) utiliza a expressão “herói amável-amante-
amado” para fazer referência ao modelo de sujeito valente e simpático que cativa os fãs.
No decorrer da história, a ideia de herói simpático relacionou-se com o modelo
narrativo happy end, definido por Morin (2002) como a “felicidade dos heróis simpáticos,
adquirida de modo quase providencial, depois das provas que, normalmente, deveriam
conduzir a um fracasso ou uma saída trágica.” Essa correlação tem agradado às bilheterias,
visto que o público torce para que o herói amado tenha um final feliz.
1256

Vale ressaltar que o happy end vai de encontro à narrativa clássica das tragédias
gregas cujo herói é esmagado pelos desafios de sua jornada e acaba não sobrevivendo. Edgar
Morin resgata o tratamento que o personagem recebe historicamente:
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Na universal e milenar tradição, o herói, redentor ou mártir, ou ainda
redentor e mártir, fica sobre si, às vezes até a morte, a infelicidade e o
sofrimento, Ele expia as faltas do outro, o pecado original de sua família, e
apazigua, com seu sacrifício, a maldição ou a cólera do destino. A grande
tradição precisa não só de castigo dos maus, mas do sacrifício dos inocentes,
dos puros, dos generosos (MORIN, 2002, p. 93.).

Diante do exposto, é possível perceber a revolução que o happy end ocasionou no


imaginário do público e dos escritores, cuja ideia de felicidade assume protagonismo no lugar
da velha concepção de martírio a qual os heróis eram submetidos para a validação de suas
potencialidades.
O happy end firmou-se a partir da simplificação do herói. Este já não é rodeado de
mistérios, mas partilha das mesmas emoções que um ser humano qualquer, como ansiedade,
incompreensão, amor, paciência, entre outros. O herói simpático possui defeitos e qualidades
que o aproxima da vida real.
Portanto, o estilo happy end surge a partir da relação do espectador com o herói, onde
este recebe a felicidade como recompensa por seus valiosos esforços. A popularidade desse
modelo narrativo permite a reflexão sobre o público e como este lida com a jornada heroica e
a tragédia.
O cinema, integrante do campo da comunicação, contribui para a projeção de um
estilo de vida. A cultura do final feliz divulga par as massas a ideia de recompensa, bem como
afasta a possibilidade de tragédia do cotidiano humano. Ou seja, o happy end, através do herói
simpático, dissemina uma vida feliz, onde as boas ações serão retribuídas com a felicidade
sem fim e o mal será banido definitivamente.

Alice no país da estética

Alice no País das Maravilhas (2010) contém em sua estética as características


“burtonescas”, entre elas destaca-se a soturnidade. Apesar de ser uma adaptação de uma
animação voltada para o público infantil, o filme de Tim Burton concentra cenários e
iluminação escuros, aponto de desmerecer a riqueza de cores.
O grotesco marca presença em diferentes elementos. Entre eles o cenário em si, cujas
1257

formas são distorcidas, como as árvores das florestas. O céu é nublado em todo o filme, e
possui coloração ora acinzentada ora azulada ou ainda em tons alaranjados. Esta paleta de
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cores, associada à névoa, contribui para a construção de um tom sombrio à história.

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Figura 1 – Alice entrando no mundo subterrâneo
Fonte: Captura de tela pelo próprio autor

Na figura acima é possível destacar a distorção das formas arquitetônicas do cenário,


bem como a fotografia escura, baseada em uma paleta de cores frias, com predominância para
o azul. O grotesco também está presente na roupa da personagem, desproporcional ao seu
tamanho. A expressão facial da personagem “Alice” revela seu estranhamento ao conhecer o
mundo subterrâneo, permeado por elementos extravagantes.

Figura 2 – Alice conhecendo alguns moradores do mundo subterrâneo


Fonte: Captura de tela pelo próprio autor
1258

A protagonista também se espanta com os personagens que conhece durante a


narrativa. Na figura 2 estão presentes flores falantes, a Senhoria Dormidongo, os gêmeos
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Tweedle-Dee e Tweedle-Dum, um Dodô e o Coelho Branco, responsável por levar Alice ao

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País das Maravilhas. Todos os personagens do filme destoam da realidade e dos padrões de
normalidade, tanto no aspecto físico como na personalidade.
Até mesmo Alice, que não pertence a esse universo fantástico, se tornou estranha. Já
no início da história a personagem necessitou mudar de tamanho para passar pela porta do
mundo subterrâneo. A alteração na altura de Alice é constante em boa parte do filme.
Outra influência do cineasta Tim Burton, que auxilia na esfera grotesca do filme, é a
maquiagem. A partir das figuras 1 e 2, bem como em todas as outras, é viável identificar a
palidez dos personagens. Essa é uma característica própria do diretor, visto que está presente
em outros filmes dirigidos por ele, como A fantástica fábrica de chocolate (2005).
Vale ressaltar que o mundo subterrâneo está sob o domínio da Rainha de Copas.
Tomando como base outros filmes de fantasia, é comum que os cineastas utilizem paletas de
cores frias e cenários desolados para representar a soberania momentânea do mal contra o
bem. Em um momento do filme há cenas que recordam o primeiro contato de Alice com o
País das Maravilhas, antes da Rainha Vermelha tomar o controle, uma destas é o chá com o
Chapeleiro Maluco, Senhoria Dormidongo e a Lebre de Março, como mostra a Figura 3.

Figura 3 – Alice tomando chá com o Chapeleiro Maluco, Lebre de Março e Dormidongo.
Fonte: Captura de tela pelo próprio autor

Apesar da névoa e da palidez dos personagens, a iluminação da cena exposta na Figura


3, bem como a tonalidade do céu tende às cores quentes. As cores das frutas e flores aparecem
1259

com um realce maior, a fotografia está mais colorida. O contraste de cores e iluminação para
representar o período anterior e posterior à tomada do poder da Rainha Vermelha indica a
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preocupação de Tim Burton em potencializar o grotesco num universo que por si só é
fantasioso, mas cuja felicidade plena é inibida pela tirania da antagonista.
O retorno da liberdade ao mundo subterrâneo motiva seus habitantes a trazerem Alice
de volta. De acordo com o oráculo, ela será a campeã que derrotará a fera Jaguadarte no
Glorian Day, o dia da batalha épica, encerrando o reinado de maldades da vilã.
Logo, Alice recebe uma missão heroica. A personagem lida com dificuldades com
essa jornada pois não se reconhece como a campeã escolhida pelo oráculo, consequentemente
alguns personagens deixam de confiar na protagonista. Porém, durante o desenvolvimento do
enredo, percebe-se que Alice está em processo de conhecimento da própria identidade.
Somente quando ela se deu conta de quem é, e de que já visitou o lugar antes, é que se sentiu
motivada a assumir o desafio de enfrentar o Jaguadarte.
Ao comparar a trajetória da protagonista à jornada do herói se observa que Alice segue
o ciclo proposto por Joseph Campbell: O filme começa no “mundo comum” de Alice. Ela está
na festa do próprio noivado, quando foge e segue um coelho branco até cair num buraco e
parar no País das Maravilhas. Lá ela descobre que foi chamada para participar de uma
aventura, mas reluta. A negação é feita sob o pretexto de que a protagonista não é a
“verdadeira Alice”.

Figura 4 – Alice reencontra o Chapeleiro Maluco, mas ele é preso e levado para o castelo da Rainha Vermelha.
Fonte: Captura de tela pelo próprio autor
1260

No entanto, ela tem um encontro com o Chapeleiro Maluco, que, assume o papel de
mentor, dando-lhe conselhos e oferecendo ajuda. Em seguida, o Chapeleiro é preso e levado
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para o castelo da Rainha Vermelha. Isto motiva Alice a resgatá-lo, assumindo daí em diante

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sua condição de heroína, mesmo sem perceber. No caminho ela é submetida a testes ou
desafios. No covil da inimiga Alice toma posse da Espada Vorpal, único elemento que faltava
para completar a armadura e combater o Jaguadarte.
Após isso ela foge e, mais segura de si mesma, prepara-se para o Glorian Day,
provação suprema. Alice derrota o Jaguadarte, ganha a gratidão eterna da Rainha Branca e a
“solução mágica” para retornar para casa. De volta ao mundo real a protagonista está mais
madura e confiante em si mesma, pois sua jornada no mundo subterrâneo é uma metáfora à
sua missão de enfrentar seus medos do “mundo comum”.

Figura 5 – Batalha entre Alice e o Jaguadarte


Fonte: Captura de tela pelo próprio autor

Neste filme, Alice incorpora uma “heroína simpática” de acordo com a pesquisa de
Morin (2002). O perfil live-action, do longa, utilizando atores nas gravações, foi o primeiro
passo para a humanização da personagem, antes limitada à animação de 1951 e ao livro de
Lewis Carroll (1865).
Além do mais, a personagem vivencia medos que são superados durante sua jornada.
Alice representa muitos jovens que precisam lidar com o mundo acadêmico, o mercado de
trabalho ou a constituição de família. Essa reflexão pode ir além. A jovem conhece ela mesma
a partir das experiências vivenciadas no mundo subterrâneo, quando ela sabe quem é há um
empoderamento de si mesma.
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Essas características aproximaram Alice do público, cativando-o. O desfecho da


narrativa é dado com o clássico happy end, ou final feliz, onde ela ganhou a recompensa por
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todos os serviços prestados aos habitantes do País das Maravilhas. Esse modelo de final é
comum em todos os filmes da Disney, voltados para um público infantil ou infanto-juvenil.
Através do happy end a narrativa recompensou a personagem principal pela sua
conquista em salvar o mundo subterrâneo. Desse modo, as crianças, jovens e adultos que
assistiram o filme fortaleceram suas convicções de que o bem sempre vence o mal e que
qualquer um pode ser herói ou heroína, basta enfrentar seus medos. Assim, o happy end
cumpre seu papel no imaginário coletivo.

Considerações finais

Alice no País das Maravilhas (2010) veio aos cinemas como promessa de adaptação
da consagrada animação Alice no País das Maravilhas (1951). Ambas produzidas pelos
estúdios Disney, mas a live-action dirigida por Tim Burton.
O uso de atores e atrizes contribuiu para a aproximação entre os personagens, e,
consequentemente, o filme, e o público. A lógica deu certo levando em consideração o
faturamento do filme, bem como sua continuação Alice Através do Espelho (2016), dirigida
por James Bobin.
Tim Burton, através de seu conhecido estilo gótico, transformou uma das personagens
mais puras e inocentes da Disney em uma heroína que carrega marcas do grotesco em suas
roupas e mudança de tamanho. Além do mais, Alice embarca num mundo sombrio, onde as
cores são sufocas pela névoa e escuridão.
No entanto, o cineasta usou da sua genialidade para construir um universo sombrio,
estranho e atraente. Nessa fórmula Alice cresceu, não fisicamente, mas em sua personalidade.
A personagem evoluiu ao ponto de tornar-se exemplo de coragem e serviço aos estranhos
amigos do submundo.
Nessa saga em busca da liberdade para o submundo, e, ao mesmo tempo, da formação
da identidade da protagonista, o ciclo do herói de Joseph Campbell cumpriu-se nitidamente
como o autor propôs. Para a Alice se tornar um mito, houve a contribuição de elementos
grotescos e a repetição do final feliz.
1262

Quando não se sabe aonde quer chegar, qualquer caminho serve. Em Alice no País das
Maravilhas (2010) Tim Burton demonstrou clareza em seus objetivos, e apresentou ao
público um país fantástico, permeado por diferentes conceitos estéticos, como o monstruoso,
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ISBN: 978-85-7621-221-8
risível, belo, horror, drama, entre outros. Entre os quais, destaca-se a cooperação entre
grotesco e simpatia na formação de uma heroína que cativou os espectadores.

Referências

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<http://megafilmesonline.net/alice-no-pais-das-maravilhas-dublado/> Acesso em 21 mai.
2017.

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<https://aulademitologia.wordpress.com/about/monstros-e-herois/> Acesso em 28 mai 2017.

BASTOS, Felipe. Os vencedores do Bafta 2011. 14 fev. 2011. Disponível em:


<http://cinemaeafins.com/2011/02/os-vencedores-do-bafta-2011/>. Acesso em 16 mai. 2017.

CAMPBELL, Joseph. O Herói de Mil Faces. São Paulo, Editora Cultrix/Pensamento, 1995.

CARAS. Disney transformará mais 21 clássicos em live-action; Veja a lista! Disponível


em: <http://caras.uol.com.br/cinema/21-filmes-disney-remake-live-action-
desenhos#.WS5y8JLyvIU> Acesso em 28 mai 2017.

CARROLL, Lewis. Alice no País das Maravilhas. Disponível em:


<http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/alicep.pdf> Acesso em 28 mai 2017.

FORLANI, Marcelo. Crítica: Alice no País das Maravilhas. 22 abr. 2010. Disponível em:
<https://omelete.uol.com.br/filmes/criticas/alice-no-pais-das-maravilhas/?key=47452>.
Acesso em 16 mai. 2017.

JONAS. Conheça os personagens de ALICE. 17 mar. 2010. Disponível em:


<http://www.ocamundongo.com.br/conheca-os-personagens-de-alice/>. Acesso em 16 mai.
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LOPES, Noêmia. Se o cinema é a sétima arte, quais são as outras? 24 mai. 2013.
Disponível em: <http://mundoestranho.abril.com.br/cinema-e-tv/se-o-cinema-e-a-setima-arte-
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1263

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São Paulo: Uninove, 22 a 24.09.2016
Página

SANTANA, Ana Lucia. Tim Burton. Disponível em: <


http://www.infoescola.com/biografias/tim-burton/> Acesso em 28 mai 2017.

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SUASSUNA, Ariano. Iniciação à estética. 9. ed. Rio de Janeiro: EDITORA JOSÉ


OLYMPIO, 1972.

TOLEDO, Carina. Bilheteria mundial de Alice no País das Maravilhas ultrapassa US$ 1
bilhão. 27 mai. 2010. Disponível em: <https://omelete.uol.com.br/filmes/noticia/bilheteria-
mundial-de-alice-no-pais-das-maravilhas-ultrapassa-us-1-bilhao/>. Acesso em: 16 mai. 2017.

1264
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ISBN: 978-85-7621-221-8
GT12 - MÍDIA, IMAGEM E SOCIEDADE

O EU E A ESCRITA DE SI NO BLOG CEM HOMENS: SUBJETIVIDADE E


GÊNERO NO CIBERESPAÇO206

Pâmella Rochelle R. Dias de oliveira (UERN)207


Maria Adriana Nogueira (UERN)208
Geilson Fernandes de Oliveira (UFRN) 209

Introdução

Confessando suas subjetividades e emoções por meio das redes sociais e dos variados
endereços eletrônicos e websites, os sujeitos contemporâneos vivem na era da incerteza,
agilidade e fluidez (BAUMAN, 2004; 2007). Neste momento os diversos âmbitos da vida
pública e privada passam por recorrentes transformações, o que acaba por acarretar mudanças
nas relações sociais e no modo de subjetivação desses indivíduos. Faz-se importante destacar
aqui que tais mudanças pelas quais o mundo, sobretudo, o ocidente vem passando desde as
últimas décadas do século XX, são consideradas por boa parte de sociólogos e filósofos como
resultados do processo de globalização, que por sua vez consiste em processos atuantes em
escalas globais responsáveis por conectar diferentes povos e culturas colocando em xeque a
antiga noção de espaço-tempo. É em meio a este processo; que segundo Gidens (1991) e Hall
(2004) não pode ser pensado como algo necessariamente recente, embora tenha ganhado força
a partir dos anos 70; que a internet emerge como sendo uma personificação do mesmo, já que
a partir dela surgem inúmeras tecnologias digitais e redes de relacionamentos virtuais, nas
quais sujeitos distintos e em lugares remotos podem ter a sensação de estarem próximos e
partilharem suas experiências íntimas por meio de um simples click. Dessa forma, pode-se
afirmar que a globalização e o advento da internet, juntos são responsáveis por produzir

206
Trabalho submetido ao GT12 “Mídia, Imagem e Sociedade” do IV Colóquio Nacional de Linguagem e
Discurso, da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN.
207
Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais e Humanas – PPGCISH, da Universidade do
Estado do Rio Grande do Norte – UERN. Graduada em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pela
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN.
1265

208
Mestre pelo Programa de Programa De Pós-Graduação Em Letras – PPGL, da Universidade do Estado do Rio
Grande do Norte – UERN. Graduada em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pela Universidade
do Estado do Rio Grande do Norte – UERN.
209
Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos da Mídia – PPgEM, da Universidade Federal do
Rio Grande do Norte - UFRN. Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais e Humanas –
Página

PPGCISH, da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN. Graduado em Comunicação Social
com habilitação em Jornalismo pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN.

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mudanças nas diversas áreas da vida humana, desde a economia e a política, até nos
relacionamentos afetivos e nas próprias noções de gênero, sexo e sujeito.
Dessa forma, nas últimas décadas tem sido perceptível, como Hall (2000) bem coloca
em sua fala, uma crescente discussão e problematização em torno do conceito de
“identidade”, ao mesmo tempo em que este sofre certas críticas, o que se dá em diversos
campos dentro da grande área das Ciências Sociais e Humanas, na qual as discussões muitas
vezes acabam por dar ênfase a termos mais abrangentes, como o de subjetividade e sujeitos.
Diante de tal perspectiva é que optamos por nos deter bem mais em questões referentes à
subjetividade e produção dos sujeitos, o que acreditamos se dá em grande medida atrelada as
noções de gênero e de sexualidade, já que estas são uma das primeiras formas de sujeição e
identificação dos indivíduos, fato que também passa a ser cada dia mais problematizado e
discutido no âmbito das Ciências Sociais e Humanas. No segundo momento, analisamos
como estes sujeitos contemporâneos manifestam suas subjetividades por meio do resgate da
antiga prática das “escritas de si”, mencionadas por Foucault (1988) em sua obra História da
Sexualidade, que agora são reconfiguradas e passam a ter como plataforma o ciberespaço e
suas inúmeras redes de relacionamentos sociais, entre as quais destacamos os blogs de caráter
confessional, também considerados como autobiográficos.

1 Repensando a identidade

De acordo com grande parte dos teóricos que tratam da questão da identidade, entre
eles Hall (2004; 2000) e Woodward (2000), a possível crise pela qual esta concepção passa
estaria diretamente ligada as recorrentes transformações sociais que o mundo vem
enfrentando, tendo em vista que as identidades são formadas dentro e a partir de contextos
sócio-históricos-culturais, emergindo por meio e em meio a práticas discursivas, assim como
o próprio sujeito, o que Foucault afirma em diversas obras. Hall (2004), atenta para o fato de
que essas mudanças desencadeadas em grande parte pelo processo globalização estão
fragmentando concepções relativamente bem definidas até então, como a de gênero, classe,
cultura, e mesmo de sexo e sexualidade, questões que segundo o autor forneciam solidas
1266

posições para os sujeitos e que agora são responsáveis pelo “descentramento” destes,
pensamento que Butler (2003) partilha ao afirmar que diante de tais mudanças à noção de
pessoa/sujeito passaria a ser questionada, na medida em que, “Em sendo a “identidade”
Página

assegurada por conceitos estabilizadores de sexo, gênero e sexualidade, a própria noção de

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“pessoa” se veria questionada pela emergência cultural daqueles seres cujo gênero é
“incoerente” ou descontínuo...”.
Ao discutir o conceito de identidade dentro do atual contexto, Hall (2000) explica que
para tanto prefere partir das ideias de Foucault quanto ao sujeito e como este se constitui,
afirmando, que o que se faz necessário num primeiro momento é pensar qual a posição que
estes sujeitos ocupam e como se dá a relação dos mesmos com as práticas discursivas, sendo
para ele na rearticulação entre os sujeitos e essas práticas que a questão da identidade volta a
surgir, considerando o conceito de identidade bem mais estratégico e posicional, do que
essencialista.

Esta concepção não tem como referência aquele segmento do eu que


permite, sempre e já, “o mesmo”, idêntico a si mesmo ao longo do tempo. ....
Essa concepção aceita que as identidades não são nunca unificadas; que elas
são na modernidade tardia, cada vez mais fragmentadas e fraturadas; que
elas não são, nunca, singulares, mas multiplamente construídas ao longo de
discursos, práticas e posições que podem se cruzar ou ser antagônicos. As
identidades estão sujeitas a uma historicização radical, estando
constantemente em processo de mudança e transformação (HALL, 2000, p.
108).

Dessa forma, as identidades no dado momento, deixam de ser sólidas e permanentes,


sendo compreendidas a partir das posições que o sujeito assume dentro e por meio de
determinadas práticas discursivas, podendo ser consideradas de forma mais direta, como
“posições-sujeitos que as práticas discursivas constroem para nós” (IBID. p. 112), sendo
“produzidas em momentos particulares no tempo” (WOODWARD, 2000, p. 38). A grande
questão talvez seja que essas posições, diferentemente do que acontecia no início da era
moderna, ao invés de serem firmes e bem delimitadas, são agora cada vez mais maleáveis e
indeterminadas, o que se dá pelo fato da própria estrutura social da qual fazemos parte está
passando por um processo de constante mudança, no qual as antigas certezas sobre o homem,
a natureza e o mundo que proporcionavam uma sensação de segurança e domínio sobre os
fatos, agora se diluem em incertezas e questionamentos (BAUMAM, 2004), sendo colocadas
em xeque e cada vez mais discutidas e repensadas. O que teve início com a onda dos “novos
movimentos sociais” que emergiram nos anos 60, sobretudo as lutas feministas, que
1267

questionaram a visão essencialista em torno das identidades, “reivindicando o direito de


construir e assumir responsabilidade por suas próprias identidades” (WOODWARD, 2000, p.
Página

35), enfatizando em grande medida a fluidez das mesmas, fato que parece encontrar seu auge

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na atualidade e ser responsável pelo atual panorama em que se estabelece a crise das
identidades.

2 Subjetividade e gênero: Tornando-se sujeito

Diferente do que muitos possam pensar, os termos “identidade” e “subjetividade” não


estão um para o outro enquanto sinônimos ou coisa do tipo, embora não sejam de fato
totalmente dissonantes, estando ligados entre si. A subjetividade diz respeito as nossas
emoções e pensamentos tanto na esfera consciente quanto inconsciente, responsável pela
formação e compreensão que temos sobre nosso eu, envolvendo dessa forma, nossas emoções
e motivações mais íntimas.

A subjetividade pode ser tanto racional quanto irracional. Podemos ser – ou


gostaríamos de ser – pessoas de cabeça fria, agentes racionais, mas estamos
sujeitos a forças que estão além de nosso controle. O conceito de
subjetividade permite uma exploração dos sentimentos que estão envolvidos
no processo de produção da identidade e do investimento pessoal que
fazemos em posições específicas de identidade (WOODWARD, 2000, p.55).

Woodward (Ibid.) atenta para o fato de que a vivência da subjetividade se dá


necessariamente dentro de determinados contextos sociais, históricos e culturais,
concretizando-se por meio da linguagem, que por sua vez nos insere, ou nos leva a inserirmos
em práticas discursivas, nos fazendo assim adotar uma identidade. Sendo ela, a subjetividade,
o que nos permite explicar as razões pelas quais nos apegamos e adotamos determinada
identidade. Dessa forma, enquanto a identidade seria a posição que nos colocamos diante de
determinadas práticas discursivas, o que se dá em grande medida pela nossa identificação com
estas. A subjetividade diria respeito ao nosso eu consciente e inconsciente, repleto de
contradições, memórias, medos, alegrias, projeções e inúmeros sentimentos e pensamentos
responsáveis por constituírem as concepções acerca de quem somos.
Sobre a questão da subjetivação, Foucault (1995) aponta três principais modos pelos
quais os indivíduos tornaram-se sujeitos em nossa cultura ocidental. O primeiro seria o modo
de investigação, responsável por objetivar o discurso e as ações do sujeito, tentando dessa
1268

forma atingir status de ciência; o segundo diz respeito às “práticas provisórias” que
objetivariam o sujeito a partir do seu lugar social e de suas relações com os outros; e por fim,
Página

o terceiro seria o do domínio da sexualidade, no qual o autor se detém em sua obra tardia, e

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em que “os homens aprenderam a se reconhecer como sujeitos de sua sexualidade” (p.
231/232). Dessa forma se faz importante esclarecer que tanto para Foucault (IBID.) como para
Woodward (2000), o termo sujeito é compreendido de duas principais maneiras, a primeira
como sujeito a alguém pelo controle e dependência, e preso a sua própria identidade, por uma
consciência ou autocontrole, estando ambas as perspectivas sugerindo uma forma de poder
que subjuga e torna sujeito a algo ou alguém.
O que é perceptível na fala de Woodward (2000), quando o mesmo trata da questão do
discurso ao afirmar que, “Quaisquer que sejam os conjuntos de significados construídos pelos
discursos, eles só podem ser eficazes se eles nos recrutam como sujeitos. Os sujeitos são,
assim, sujeitados ao discurso e devem, eles próprios, assumi-lo como indivíduos que, dessa
forma, se posicionam a si próprios” (p. 55). O que Buttler (2003) por sua vez também postula,
ao perceber e defender as noções de gênero e sexo como discursivamente produzidas, sendo
dessa forma a linguagem, bem como as práticas discursivas, responsáveis pelo “domínio
imaginável do gênero”, que por sua vez é responsável em grande medida pela constituição
dos sujeitos, na medida em que estes são sujeitados ao gênero mesmo antes do seu
nascimento,

Os limites da análise discursiva do gênero pressupõem e definem por


antecipação as possibilidades das configurações imagináveis e realizáveis do
gênero na cultura. Isso não quer dizer que toda e qualquer possibilidade de
gênero seja facultada, mas que as fronteiras analíticas sugerem os limites de
uma experiência discursivamente condicionada. Tais limites se estabelecem
sempre em nos termos de um discurso cultural hegemônico, baseado em
estruturas binárias que se apresentam como a linguagem da racionalidade
universal. Assim, a coerção é introduzida naquilo que a linguagem constitui
como o domínio imaginável do gênero (BUTTLER, 2003, p. 28).

Dessa forma é que Buttler (IBID.), partindo em grande parte dos pressupostos de
Foucault (1985), pensa em sua obra em como nos tornamos sujeitos a partir da nossa
sexualidade, ou melhor, em como a questão do gênero influência o nosso processo de
subjetivação, ao passo em que crítica os discursos hegemônicos acerca do assunto, assim
como também a visão binária, problematizando dessa forma não só a noção de gênero, mas
também de sexo e sexualidade, para assim tentar compreender como se dá a constituição da
1269

identidade, e mesmo dos próprios sujeitos.


Página

Se a “identidade” é um efeito de práticas discursivas, em que medida a


identidade de gênero – entendida como uma relação entre sexo, gênero,

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prática sexual e desejo – seria o efeito de uma prática reguladora que se pode
identificar como heterossexualidade compulsória? Tal explicação não nos
faria retornar a mais uma estrutura totalizante em que a heterossexualidade
compulsória tomaria meramente o lugar do falocentrismo como causa
monolítica da opressão de gênero? (BUTTLER, 2003, p. 29).

Ao analisar as formas pelas quais os indivíduos se reconhecem como sujeitos de uma


sexualidade que se articula num sistema de regras e coerções, e que por meio dessa acabam
por se deparar com uma experiência de si, é que Foucault (1985) sintetiza na sua obra “O uso
dos prazeres”, um campo de escolhas morais e modos de subjetivação dados por modos de
sujeição a substâncias éticas e históricas, nos quais podemos perceber a questão da
experiência de si para consigo mesmo, ou dito de outra maneira, a forma como os sujeitos
tornam-se quem são,

Meu propósito não era o de reconstruir uma história das condutas e das
práticas sexuais de acordo com suas formas sucessivas. Também não era
minha intenção analisar as ideias (científicas, religiosas ou filosóficas)
através das quais foram representados esses comportamentos [...]. Tratava-se
de ver de que maneira, nas sociedades ocidentais modernas, constituiu-se
uma "experiência" tal, que os indivíduos são levados a reconhecer-se como
sujeitos de uma "sexualidade" [...]. O projeto era, portanto, o de uma história
da sexualidade enquanto experiência - se entendemos por experiência a
correlação, numa cultura, entre campos de saber, tipos de normatividade e
formas de subjetividade (FOUCAULT, 1985, p. 9-10. apud. LAROSSA,
1994, p. 7).

Ainda sobre essa questão da experiência de si e constituição do sujeito, Larrosa (1994)


com base nos estudos em Foucault afirma que,

A experiência de si, historicamente constituída, é aquilo a respeito do qual o


sujeito se oferece seu próprio ser quando se observa, se decifra, se interpreta,
se descreve, se julga, se narra, se domina, quando faz determinadas coisas
consigo mesmo, etc. E esse ser próprio sempre se produz com relação a
certas problematizações e no interior de certas práticas. Ao analisar a
experiência de si, o objetivo é “... analisar, não os comportamentos, nem as
ideias, não as sociedades, nem suas "ideologias", mas as problematizações
através das quais o ser se dá como podendo e devendo ser pensado, e as
práticas a partir das quais essas problematizações se formam” (IBID. p. 08).
1270

Essa experiência de si pode ser considerada tanto uma constituição histórica como
cultural, dentro das singularidades de terminada sociedade e época, que se desenvolvem
Página

permeadas pelas relações de poder e jogos de verdade. Dessa forma, cada sociedade e época

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possibilitam o surgimento de um determinado repertório que pode ser utilizado para a
constituição dos sujeitos e essa experiência de si, valendo ressaltar que a falta desse repertório
também pode possibilitar, na medida em que não se parte da ideia de causa e efeito,
entendendo toda a trama social que envolve os sujeitos contemporâneos como uma rede de
relações, na qual inclusive, esses sujeitos podem se fazer resistir ao discursos dominantes, já
que segundo Foucault, “onde há poder há resistência”.

3 Escritas de si: Manifestação dos sujeitos contemporâneos no ciberespaço

Em sua obra tardia, a tríade História da Sexualidade, Foucault (1988) utilizou as ideias
de “cuidado de si” e “práticas de si” desenvolvidas pelos antigos gregos, para pensar o
conceito de “estética da existência” e assim explicar como o indivíduo se constrói enquanto
sujeito.

Pode-se caracterizar brevemente essa “cultura de si” pelo fato de que a arte
da existência – a techene tou biou sob as suas diferentes formas –se encontra
dominada pelo princípio do cuidado de si que fundamenta a sua necessidade,
comanda o seu desenvolvimento e organiza a sua prática. Mas é necessário
precisar; a ideia segundo qual deve-se aplicar-se a si próprio, ocupar-se
consigo mesmo (heautou epimeleisthai), é, de fato, um tema bem antigo na
cultura grega. Ele apareceu bem cedo como um imperativo amplamente
difundido (IBID. 1985, p. 49).

Essa “cultura de si” abordada por Foucault traduz basicamente a necessidade de o


indivíduo ocupar-se consigo mesmo, tendo cuidados com seu corpo e sua alma, para assim
construir-se enquanto sujeito, no entanto, não sendo essas “práticas de si” necessariamente um
ato de solidão, mas como o próprio teórico esclarece “uma verdadeira prática social” (p.57),
na medida em que o cuidado consigo mesmo, passa pelo olhar do outro, e muitas vezes são
pensados a partir desse olhar, de forma a nos levar a estetizarmos nossa existência não só para
nós mesmos, mas também para esse outro que nos observa e que também é responsável pela
construção de quem eu sou, já que como foi visto é na diferença que a identidade se constitui.
Partindo dessa ideia de “estética da existência” e de “práticas de cuidado de si” é que
se pensa na “escrita de si”, conhecida também como escrita íntima e autobiográfica, como
1271

sendo um desses mecanismos que podem operar no processo de constituição do sujeito,


trazendo a tona uma possível auto reflexividade. É importante ressaltar que a prática da
Página

“escrita de si” começa a se delinear a partir do surgimento da sociedade moderna e da difusão

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da noção de indivíduo, quando o homem passa a adquirir convicção histórica de sua
existência, começando a florescer as primeiras autobiografias, que mais tarde seriam
responsáveis, pela criação do gênero confessional (OLIVEIRA; NOGUEIRA, 2012).
No decorrer do tempo, com as inúmeras mudanças tecnológicas, essa “escrita de si”,
que para Foucault (1988) seria uma espécie de reconfiguração da antiga prática da confissão,
foi deixando aos poucos de ser algo do âmbito particular que dizia respeito apenas a quem a
escrevia e por isso possuía caráter de segredo, para se tornar cada vez mais visível aos olhos
alheios, passando com o advento da internet a ser muitas vezes produzida tendo em vista o
outro, que por sua vez parece manter uma curiosidade quase de voyeur. Sendo assim, a
“escrita de si” encontrou como terreno fértil a internet, utilizando-a por meio dos seus
210
inúmeros canais de interação, entre eles o blog , como um confessionário moderno e
coletivo, onde a figura do padre e do antigo ouvinte é reconfigurada e multiplicada para
milhares de sujeitos desconhecidos que podem ter acesso por meio de um simples click, sendo
o segredo de determinado indivíduo agora compartilhado com todos, como explica Schittine
(2004) ao afirmar que, “num diário íntimo na internet, a cumplicidade não se estabelece entre
dois indivíduos, mas entre várias pessoas que formam uma confraria, um grupo enorme de
gostos semelhantes com um segredo em comum: o segredo de todos” (IBID. p.72).
Dessa forma a escrita de si e a supervalorização da intimidade passaram a ser
habituais, estando cada vez mais presentes e valorizadas na rotina social dos indivíduos pós-
modernos, sendo o sujeito que se despe diante dos outros, não só digno e motivo de
curiosidade e atenção, mas alguém que ao se narrar se constrói e reconstrói. De acordo com
Sibilia (p. 05, 2003), os sujeitos contemporâneos “passaram a modelar a própria subjetividade
através de um mergulho introspectivo da hermenêutica incessante de si mesmo, onde se faz
necessário narrar uma história e criar um eu”.
Diante desse novo momento que para alguns, como Sibília (IBID.), desembocaria na
espetacularização da intimidade, utilizando como plataforma para tanto a esfera das redes
sociais e dos canais de interação virtual como os blogs, surge a cada dia mais indivíduos
dispostos a exibir sua intimidade em troca de serem vistos e aceitos, partindo do pressuposto
de que precisam afirmar-se como tais, o que já era apregoado por Nietzsche em sua
1272

autobiografia, ao afirmar que “pareceu-me indispensável dizer quem sou [...] quem sabe

210
“O termo é de origem americana e é proveniente da contração das palavras web (página na internet) e log
Página

(diário de navegação). O termo original seria weblog, mas com o passar do tempo acabou sendo abreviado para
blog” (SCHITTINE, 2004, p. 60).

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respirar o ar de meus escritos sabe que é um ar das alturas, um ar forte...” (NIETZSCHE,
Apud. SIBILIA, 2003, p. 02.). Talvez decorra desse mesmo pensamento; de que é preciso
mostra-se para assim não só ser aceito pelos outros, mas aceitar-se enquanto tal; o surgimento
dos inúmeros diários on-line –blogs- de caráter confessional, além das constantes
“confissões” por meio das redes sociais.
Um exemplo é o blog Cem Homens, criado em fevereiro de 2011, pela jornalista Nadia
Lapa, inicialmente sob o pseudônimo de Letícia Fernadez, que segundo a mesma teria como
relatar sua decisão de ir para a cama com 100 homens em um ano, descrevendo suas
experiências sexuais com cada um. Inicialmente o blog tinha 4 mil acessos por dia, que foram
aumentando gradualmente chegando a contar com um pico de até 200 mil acessos diários,
ainda no primeiro ano. O que pode nos levar a pensar que além de mostra-se os sujeitos
contemporâneos também sentem forte desejo por espiar e conhecer os que lhes são outros.

Eu até preferiria começar esse quem sou eu dizendo que é porque sou muitas
mulheres em uma só. Mas não, eu não vou recorrer ao clichê. O motivo é
bem simples: não sou tudo isso. Quisera eu! Sou apenas uma garota normal
de cidade grande, 30 anos, escorpiana e que gosta muito de sexo (os
astrólogos diriam que estas duas últimas informações são redundantes). A
minha diferença para tantas garotas iguaizinhas a mim que existem por aí?
Eu tenho um blog. Só isso. E eu espero que você goste dele” (Texto retirado
do perfil do blog, onde é respondido à pergunta “Quem eu sou”)

No trecho acima, que se encontrava no perfil do blog, Nádia faz uma pequena e
subjetiva apresentação de quem ela é, sem revelar seu verdadeiro nome, no fim de sua fala ao
dizer que sua única diferença para com as demais garotas é que possui um blog ela traz à tona
o pensamento de Sibilia (2003) que afirma que, “a popularização das tecnologias e das mídias
digitais tem ajudado a concretizar os novos sonhos de auto realização, permitindo registrar
todo tipo de cenas da vida privada com facilidade, rapidez e baixo custo”. Nas postagens
feitas no blog é perceptível o modo como à intimidade de sua escritora é exposta sem nenhum
pudor, contendo descrições minuciosas sobre sua vida sexual, como no caso das citações
abaixo,
1273

Número 1: Namorei com o rapaz quando tinha 18/19 anos. Ele não me
beijava na boca depois de eu comer algo; eu tinha de escovar os dentes ou
comer uma balinha. É, se ele tinha nojo de comida, imaginem o que
acontecia depois de um boquete. Eu era bem inexperiente, mas já achava
Página

bem esquisito esse lance de ele não fazer sexo oral em mim (olha o nojo aí

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mais uma vez). Terminei o namoro e segui minha vida” (Postagem publicada
em 28 de setembro 2011).
“A melhor transa até agora: o número 3” (Fragmento de postagem publicada
em 27 de julho de 2011).

Em todas as postagens do blog, a autora procurar supervalorizar a si mesma e suas


experiências, envolvendo sempre a questão sexual, em torno dessa descrição de si volta à
antiga questão colocada por Nietzsche (1995) no início de sua autobiografia, Como alguém se
torna o que é? Foi a partir desse questionamento que o pensador desenvolveu sua obra em
busca de se afirmar, e talvez seja a partir dessa mesma pergunta que os diários eletrônicos
levam os sujeitos a construírem essas narrativas de si, ou por que não, a si próprios, ainda que
seja apenas uma parte desse eu, como no caso de Nádia que chega a criar um pseudônimo, o
que não quer dizer que esta sob o pseudônimo seja necessariamente outra, mas talvez um
fragmento da mesma, na medida em que o sujeito se faz cada vez mais múltiplo e provisório,
como bem argumenta Baumam (2004).

Conclusão

Procuramos partir de uma discussão teórica acerca da questão da identidade, para


assim compreendermos a crise pela qual a mesma vem passando no dado momento, assim
como também atentamos para a questão da subjetividade e do sujeito, na mediada em que
ambas as concepções estariam estritamente ligadas entre si, sendo uma necessária para a
compreensão das outras, além de constatarmos por meio da obra de Judith Buttler (2003)
como a questão do gênero e mesmo da sexualidade, como bem coloca Foucault são em grande
medida responsáveis pela produção e constituição dos sujeitos, sobretudo no dado momento.
A partir de então nos detemos nos sujeitos contemporâneos e em como estes passam a
se produzir e manifestar na era virtual, com o advento da internet, percebendo dessa forma a
reutilização da questão da “escrita de si” no ambiente virtual como uma técnica de
subjetivação desses sujeitos, os quais na medida em que confessam seus segredos por meio
das narrativas de si não só se apresentam aos outros, mas também refletem sobre sua
existência de forma a reconstruir a si próprios. É importante ressaltar que caberia ao tema aqui
1274

abordado uma discussão mais profunda e analítica, que por se tratar de um artigo não foi
possível ser feita, sendo dessa forma um esboço inicial acerca do assunto, atentando de forma
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mais específica para a questão de como se dá a constituição dos sujeitos contemporâneos e
como estes exibem a si mesmos na internet, por meio dos blogs de escrita confessional.

Referências

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subjetividade em Judith Buttler. Cadernos Pagu (28) Janeiro-Junho de 2007: 129-147.

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Jorge Zahar Ed., 2007.

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Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2010.

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Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro, Edições
Graal, 1988.

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Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro, Edições Graal,
1985.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade III: o cuidado de si. Tradução de Maria


Thereza da Costa Albuquerque, revisão técnica de José Augusto Albuquerque. Edições Graal:
Rio de Janeiro, 1985.

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Janeiro: Forense Universitária, 1995.

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Paulo: Editora UNESP, 1991.

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Geilson Fernandes. O eu no contemporâneo: O privado e o público transformados em espaço
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público/privado. Anais do 26º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, Belo
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1276
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ISBN: 978-85-7621-221-8
GT12 - MÍDIA, IMAGEM E SOCIEDADE

ESPAÇO URBANO E COMUNICAÇÃO

Paula Apolinário Zagui (PUC/SP)

Introdução

Espaço Urbano e comunicação. Um espaço que se manifesta. Um espaço que comunica.

A pesquisa é um estudo do espaço urbano de São Paulo que pretende analisar as


manifestações do espaço urbano considerando os processos comunicativos que produzem a
cidade. Assim como, analisar os modos como a cidade se manifesta, quando supera as
características coercitivas do poder que se evidenciam no espaço urbano e comparar a
comunicação que interfere na construção da cidade. Ainda o estudo se dedica a analisar o
confronto comunicativo e político que se estabelece entre espaço urbano construído pelo
poder público e o uso imponderável da cidade.
O recorte do objeto empírico se dá na Avenida Paulista. A Avenida possui diferentes
características comunicativas e de sociabilidades que fazem parte do seu cotidiano, como os
protestos políticos e ideológicos, o trabalho dos artistas de rua com exposições e
performances, a prática de esportes, o uso das ciclovias, o ponto de encontro de skatistas,
ciclistas, como também as representações olfativas dos inúmeros food trucks e dos lixos, além
do intenso fluxo de carros e de pessoas, a composição do comércio e dos vendedores
ambulantes, a verticalidade imponente dos grandes edifícios comerciais e residenciais, a
permanência dos antigos casarões, entre outras manifestações visuais, sonoras e cinéticas que
a diferenciam dos demais locais da cidade.
A Avenida Paulista é considerada um centro financeiro e um dos cartões postais de
São Paulo, mas, muito além disso, tem diferentes significações tanto para cada indivíduo que
transita nesse espaço, como também para os que a conhecem apenas pela sua representação
midiática, havendo diferentes espaços e percepções desses espaços na extensão de uma
mesma avenida, não sendo possível caracterizá-la de forma fechada, com apenas uma
1277

característica.
A contextualização da avenida permite compreender as transformações desse espaço e
apreender suas diferentes representações. No século XIX, os grupos que compunham a
Página

burguesia em São Paulo tinham o pensamento de que o futuro da urbanização do país estava

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na capital e os projetos para a cidade eram com a construção de uma identidade voltada para a
industrialização, urbanização e progresso. A Avenida Paulista também imprimiu esse padrão
com o uso do espaço urbano pela iniciativa privada. (LIMENA, 1996).
Nesse sentido, a criação da Avenida Paulista em 1891, partiu da proposta de se formar
um eixo moderno, voltado para a burguesia da cidade, único grupo que tinha capacidade de
adquirir os terrenos e as construções que começavam a ser valorizadas. Após as melhorias
implantadas no local, como água, esgoto e policiamento, a Avenida recebeu grandes
construções e luxuosas moradias dos barões de café e de imigrantes, tornando-se a entrada
para a alta sociedade, ou seja, morar na Paulista era sinônimo de estar em um padrão superior
na sociedade (LIMENA, 1996).
As regras, nesse espaço, como a proibição de passagem de gado e de reservas de
espaço para parques e áreas verdes, tinham como objetivo transformá-la em local ideal para
moradias, visando a valorização imobiliária. A Paulista, então, nasceu com a proposta de ser
uma nova centralidade, o novo coração de São Paulo, com o intuito de projetar uma nova
imagem da e na cidade, tornando-se símbolo da capital (LIMENA, 1996, p.51-55).
Em um período de 40 anos, de 1930 a 1970, de acordo com Limena, “a avenida
experimentaria um processo de transformação radical”, muitas mudanças importantes
aconteceram na Paulista, como a aprovação de leis que permitiam a construção de
estabelecimentos comerciais, a verticalização dos imóveis. O fluxo de pessoas aumentou no
local por conta da construção de hospitais, teatros, museus, bancos, além disso, a prefeitura
municipal, nessa época, deu início às primeiras intervenções para melhoria da mobilidade
urbana, como o alargamento das vias e outras obras viárias (LIMENA, 1996).
Na altura dos anos 30, a avenida estava pronta, em total funcionamento. Já era um
símbolo de São Paulo que atraía pelo elevado poder aquisitivo, vida intelectual e espaço
frequentado pela alta sociedade.
Na década de 1990, o acesso à Avenida pela estação de metrô, com a inauguração das
estações Brigadeiro, Trianon e Consolação, permitiu mais facilidade de chegada dos pedestres
ao local, popularizando o trajeto até a Paulista (LIMENA, 1996). Em 2003, um projeto de
melhoria das calçadas foi implantado para deixá-las mais amplas, mais arborizadas, planas e
1278

mais acessíveis, com rampas de acesso para deficientes, além disso, mobiliários urbanos
foram instalados, como pontos de ônibus e quiosques de informações turísticas. Em 2007, um
espaço da Avenida foi conquistado pelos ciclistas, o canteiro localizado entre a Avenida
Página

Paulista e a rua da Consolação, chamado por eles de Praça dos Ciclistas, como local para se

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encontrarem e expressarem seus ideais por meio de cartazes, desenhos e protestos (SÃO
PAULO, 2007).
Em 2013, eclodiram os protestos na Avenida, consolidando um local de encontro para
a realização de manifestações, então, a luminosidade, desde a época dos barões do café,
continua permanente nesse espaço, mas, agora, com nova roupagem: hoje, ela é palco para
diversas manifestações, pois o ato de se expressar na Paulista consiste em ter possibilidade de
ser visto por muitas pessoas.
No início pesquisa, em 2015, ainda ocorreram muitos protestos na avenida, com
diferentes causas, entre eles a Marcha das Vadias, pela legalização do aborto; o do
Movimento Passe Livre, contra o aumento da tarifa do transporte público; contra o poder
público; contra a discriminação de gênero; entre outros. O MASP (Museu de Arte Moderna
de São Paulo) foi o ponto de referência para a realização de alguns dos protestos, tanto no
pátio inferior, conhecido como “vão do MASP”, como também em seu entorno,
transformando-o em um lugar de manifestações.
O MASP, criado em 1945, foi para avenida Paulista em 1968, em um prédio projetado
pela arquiteta Lina Bo Bardi. Com vista de frente para o Parque Tenente Siqueira Campos,
mais conhecido como Parque Trianon, o prédio tem uma área de livre circulação na parte
inferior, conhecida popularmente como vão do MASP. Esse espaço permite uma conexão
entre o público e o privado, pois o prédio é de iniciativa privada e seu uso é público.
Suas características arquitetônicas possibilitam que esse espaço embaixo do prédio
tenha diferentes usos e funções pelos usuários da cidade. Seus bancos de concreto são
passíveis de diferentes usos, tanto para reuniões de pessoas, como também pode se tornar
cama para dormir e até ser visto como obstáculos de uma grande pista de skate. Nos finais de
semana, a área do vão do museu recebe uma concentração de barracas em que são vendidos
diferentes produtos em uma feira de antiguidades, mas, nos outros dias da semana, é ocupada
também pelos vendedores ambulantes. Portanto, um lugar que pode evidenciar a maneira
imprevisível do uso do espaço pelos indivíduos.
Essa descrição da Avenida é importante para um olhar mais amplo sobre ela, para
além da sua visualidade. De acordo com Ferrara (2002, p.129) “a visualidade está nas formas
1279

que a constroem, a visibilidade está na possibilidade do sujeito debruçar-se sobre a cidade,


seu objeto de conhecimento para, ao produzir-se como leitor e cidadão”. Assim, desviar-se do
que se vê de forma imediata ao movimentar-se na Avenida Paulista permite ultrapassar a sua
Página

visualidade e atingir visibilidade para gerar conhecimento sobre a cidade.

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Nesse sentido, a Avenida Paulista pode ser vista como um ambiente que permite
diferentes representações e manifestações comunicativas, sejam eles visuais, olfativos,
sinestésicos, cinéticos, considerando essas manifestações comunicativas como possibilidades
de resistência quando é de caráter interativo em contraponto com a comunicação mediativa.
Assim, a comunicação pode ser compreendida em duas perspectivas na pesquisa, a da
mediação, que é de caráter de controle e a interativa, que se mostra como uma tentativa de
superar esse controle.
Ferrara (2015, p. 13) diferencia a mediação da interação. Assim, a mediação
“caracteriza uma comunicação que, em via de mão única, se padroniza como código e
mensagem a se irradiar de um emissor para um receptor unidimensional, inerte e, portanto
frágil na sua capacidade reativa à exuberância daquele código”. A mediação é linear e
unidirecional, focada naquilo que o emissor objetiva transmitir e não precisa estar atrelada aos
meios técnicos de comunicação. Em contraponto, a comunicação das interações, “caracteriza
uma comunicação que se homologa como possibilidade ou tentativa incerta de comunicar ao
processar-se entre um emissor e um receptor”, considerando que, esses processos não anulam
um ao outro, mas ocorre que um entra em confronto com o outro (FERRARA, 2015, p. 14).
Esses processos de mediação e interação, permitem diferenciar cidade e espaço
urbano. A cidade é vista como um lugar que não é apenas físico, mas um espaço vivido, na
tentativa de se comunicar interativamente no ambiente. Já o espaço urbano se constitui como
o espaço planejado e controlado pelo poder público por meio de uma comunicação meramente
transmissiva, imposta e de caráter mediativo.
Nesse sentido, a pesquisa procura compreender as relações comunicativas que se
estabelecem no constante diálogo entre o espaço planejado pelo poder público e o espaço
vivido. Para isso, a pesquisa faz uso da deriva, proposta por Debord (1958), esta estratégia
metodológica constitui-se em andar por um ponto da cidade, especialmente a pé, sem uma
rota pré-determinada, escolhendo a direção a ser tomada a cada momento, passando por
ambientes diversos, em que o usuário da deriva não considera, naquele momento da prática,
suas atividades, relações, sua atividade profissional, dentre outros aspectos.
A pesquisa se encontra em andamento, mas já é possível, por meio da deriva realizada,
1280

apreender que a Avenida Paulista pode constituir-se em um lugar que se evidencia o


confronto comunicativo entre o que o poder público programa e o que os usuários da cidade
almejam. Além dos diferentes usos dos espaços da Avenida, pelos frequentadores, tem se
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transformado em objeto de disputa e apropriações dos espaços, pois as pessoas utilizam os
espaços como forma de obtenção de renda, ou para manifestar-se.
A exemplo disso, foi criado o movimento Paulista Aberta, uma iniciativa da Prefeitura
de São Paulo, que, desde 16 de outubro de 2015, aos domingos, permite que a Avenida fique
aberta para o público e fechada para o trânsito de carros, com o discurso de proporcionar um
espaço de lazer para as pessoas aos domingos. Entretanto, o Ministério Público Estadual, por
meio Termo de Ajustamento de Conduta, TAC, no ano de 2007, firmado com o município de
São Paulo, que “investiga a realização de eventos de grande porte nas vias públicas da cidade
de São Paulo, mais especificamente na avenida Paulista”, proibiu a abertura da avenida aos
domingos para o lazer (SÃO PAULO, 2007). Nesse documento, há um acordo de que a
avenida só poderá ser fechada para eventos duas vezes ao ano, mas a Paulista Aberta consiste
em seu uso para o lazer todos os domingos.
Como consequência da tentativa de proibição, surge o movimento “#paulistaaberta”,
cujo objetivo é defender a Avenida aberta para o lazer aos domingos. O movimento colhe
assinaturas dos frequentadores da avenida para um abaixo-assinado e incentiva o uso da
hashtag “#paulistaaberta” nas redes sociais on line, como mostra a figura abaixo, como forma
de defender que a Paulista Aberta não se caracteriza como um evento, mas prática
permanente, porque o uso desse espaço para o lazer é de interesse da população.

1281
Página

Figura 01– Movimento #Paulista Aberta

ISBN: 978-85-7621-221-8
Fonte: https://www.facebook.com/paulistaaberta/?ref=ts&fref=ts
Acesso em Nov. 2015

Essa nova configuração ressoa no que aponta Ferrara (2015, p.159) afirma que “a
cidade interativa é aquela da resistência que combate os planos que, de modo hegemônico,
estipulam aquilo que a cidade deve ser” e, nessa tentativa de moldar a cidade e representá-la
em forma de imagem, ela é comunicada midiaticamente por meio da escolha da sua melhor
imagem, mostrando perfeitos cenários de forma espetacular que o meio e a mídia projetam
sobre ela.
Assim, cabe na investigação, conforme a autora, “descobrir como ela pode
interativamente se manifestar em cada local e nos convida a pesquisar e a enxergá-la no
constante diálogo entre o espetacular mostrado na mídia e por ela divulgado, e a cidade
interativa que se manifesta nas relações sociais e no espaço vivido” (FERRARA, 2015, p.
158).
É nessa perspectiva que o estudo da comunicação no espaço urbano de São Paulo
mostra a sua complexidade, quando se analisa a comunicação na cidade em suas relações
mediativas e interativas, na medida que se vê a comunicação em sua dimensão política, como
possibilidade de construir e reconstruir o espaço urbano, regido de leis e normas e de
resistência a um controle de seus usos e funções pelo poder público.

Referências

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1958. Disponível em:<https://teoriadoespacourbano.files.wordpress.com/2013/03/guy-
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<https://www.facebook.com/paulistaaberta/?ref=ts&fref=ts >. Acesso em: nov., 2015.

SÃO PAULO. Ministério Público do Estado de São Paulo. Termo de Ajustamento de


Conduta. Dispõe sobre a realização de eventos de grande porte e de duração prolongada na
Avenida Paulista do ano de 2007. Disponível em:
<www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/cao_urbanismo_e.../08aa_06.doc.> Acesso em Nov.
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SÃO PAULO (Estado). Lei Estadual nº 14.530, de 17 de outubro de 2007. Cria a Praça dos
Ciclistas. Disponível em: <www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/lei/.../lei-14530-
02.09.2011.html>. Acesso em: nov., 2015.

1283
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ISBN: 978-85-7621-221-8
GT12 - MÍDIA, IMAGEM E SOCIEDADE

DA EDUCAÇÃO À CIDADANIA: ESTUDO DE CASO CENTRADO NO


PROGRAMA RADIOJORNALÍSTICO MATUTINO BORBOREMA

Priscilla Tatianne Dutra(UERN)211

Introdução

A sociedade contemporânea é caracterizada pela aplicação de conhecimento. Na


atualidade, estamos vivendo um momento histórico em que o horizonte apontado é a
construção de uma organização humana em torno da informação e das tecnologias que geram
conhecimento. Diante dessa premissa, o papel social das mídias não pode perder de vista,
sobretudo na atualidade, o contexto multicultural e interdisciplinar fruto dos sistemas globais
de comunicação, como é o caso do rádio e da televisão.
Dessa maneira, é necessário, para que se possa compreender melhor o mundo contemporâneo,
uma reflexão sobre a capacidade midiática de ultrapassar suas funções historicamente
consideradas como técnicas diante de um “novo” patamar de compreensão cognitiva da
realidade por parte da sociedade. Para isso, tome-se como exemplo a influência do rádio no
processo de construção de educação e cidadania de seus ouvintes.
O Rádio desde os seus primórdios possui como característica peculiar uma intencionalidade
explícita de difundir educação, hoje em dia é comum o seu uso no horizonte educacional se
constituir em uma estratégia para estimular alunos em sala de aula, isto é, como um mero
recurso audiovisual.
Nesse sentido, o nossa objetivo é mostrar como por meio do rádio na perspectiva da
educação e da cidadania; deixando para trás a visão redutora da comunicação enquanto um
somatório de enunciados informativos, voltando-se para o conceito de ato comunicativo,
como sendo capaz de despertar o debate, a análise, com papel ativo na construção da realidade
cognitiva vigente em nossa sociedade, levando sempre em consideração as limitações que
possuem os meios técnicos e as tecnologias em si mesmas.
Nesse contexto, optamos por uma pesquisa de campo a fim de buscarmos
problematizar técnicas mais complexas, específicas deste modelo, a partir de práticas
1284

211 Graduada em Comunicação Social (2005) e em Direito (2007) pela Universidade Estadual da Paraíba.
Especialista em Comunicação e Educação também pela UEPB (2007). Especialista em Educação pela Faculdade
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de Teologia Integrada (Fatin) (2011). Especializanda em Direito Civil pela Anhanguera-Uniderp. Mestranda em
Educação pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN).

ISBN: 978-85-7621-221-8
específicas de experiência cultural, através da observação direta e do uso de questionários. Por
sua vez, quanto aos critérios metodológicos, a pesquisa estruturou-se por dois aspectos, quais
sejam: exploratório e descritivo.
Já a fundamentação teórica da pesquisa amparou-se nos estudos de recepção pois
apresentam uma nova proposta de análise da relação entre os meios de comunicação, os
receptores e a mensagem. Entendemos que é a partir do reconhecimento, cada vez mais
crescente, da atuação da teoria da recepção nas pesquisas de comunicação e a importância
histórica que o rádio exerce no contexto dos campos da educação e da cidadania que
escolhemos o rádio como nosso objeto de estudo, mais precisamente o programa de
radiojornalismo Matutino Borborema. Tal programa foi escolhido para analise por ser um dos
pioneiros em radiojornalismo na Paraíba.
A pesquisa caracteriza-se como qualitativa por se referir ao método e conceitos
utilizados, vez que extrapola estatísticas, buscando interpretar os dados colhidos durante a
pesquisa de campo para daí avaliar a produção de sentido e relacionar os procedimentos
teóricos com a prática. Enfatizamos que o objeto de estudo procura analisar de que maneira o
programa Matutino Borborema atua sobre processos de construção de educação e cidadania
de seus ouvintes.

1 Educação e comunicação: entrelaçando concepções

Os modos de ser e estar no mundo narrados através de sons e imagens pela mídia fazem parte
da vida das pessoas. São modos de vida que de alguma forma interpelam o cotidiano de
cidadãos, atuando sobre a constituição de sua subjetividade. Nesse ínterim, é possível
perceber a existência de uma relação capaz de possibilitar uma constante libertação do homem
que sente, percebe e transforma. Essa reação pode ser chamada de “educomunicação”.
É importante mencionar que o conceito de “educomunicação” não pode ser vinculado a uma
única definição, pois defendemos com clareza que apenas uma conceituação seria insuficiente
para responder com exatidão o que é a educomunicação.
Diante do pressuposto acima mencionado, achamos necessário entendermos de início o que
1285

seja a comunicação e a educação. São questões teóricas que consideramos importantes


registrar, embora não seja nosso propósito aprofunda-las neste estudo, vez que nosso interesse
é compreender o que seja a “educomunicação”
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Em sentido amplo, a educação está presente em todos as formas de socialização de uma
sociedade. Está na família, na igreja, no trabalho, na escola. No mundo contemporâneo e os
meios de comunicação de massa, a exemplo do Jornal, Rádio e Televisão, podem se
apresentar como efetivos meios a serem usados em um processo educacional que possibilite a
existência de pessoas conscientes, livres e responsáveis.
FREIRE (2000) defende que a prática pedagógica é um ato político e o ato de ensinar
deve ser, sobretudo, uma comunicação, um diálogo, por considerar que tal ação é um encontro
de sujeitos interlocutores que buscam a significação dos significados. Dessa maneira, a
educação é vista como a “prática da liberdade” por ser uma educação que permite aos
indivíduos um processo de reflexão/conscientização. Consequentemente, existe uma ação
pedagógica interligada a visão de mundo que define o posicionamento do indivíduo frente à
sociedade.
FREIRE (1979, p. 78) estabelece a educação como uma comunicação, um diálogo, isto é, o
diálogo é comunicação e o comunicar é dialogar por ser um encontro de sujeitos
interlocutores buscando a significação dos significados.
Portanto, a “Pedagogia da Comunicação” que é defendida por FREIRE (2000) como um
processo de “libertação do homem” por instaurar um diálogo capaz de proporcionar uma
mudança social. É o ato de educar para transformar que apenas se concretiza se ocorrer tal
mudança social. No contexto desta reflexão, é preciso pensar a relação entre comunicação e
educação na forma de uma dicotomia indivisível e/ou uma unidade divisível, isto é,
educomunicação. Este é um campo de inter-relações que privilegia setores do saber
“dialogáveis”. Aproxima as áreas da educação e da comunicação a partir de uma perspectiva
cidadã, compreendendo ações voltadas à educação, seja ela formal, informal e não formal.
FREIRE (2000, p. 32) acrescenta que:

Entende-se que educação e comunicação não podem caminhar dissociadas,


uma vez que os dois processos apresentam similitudes e equivalências. Se
educação é provocar mudanças, conseguir atenção, manejar a informação e
interpretar o feedback (resposta do aluno) isto é comunicação. Por sua vez,
a comunicação dispõe-se a exercer estas mesmas funções como imperativo
da sua natureza intrínseca. Já se considera aqui estabelecidas as
equivalências. Quanto às semelhanças, ambas são sistemas dinâmicos,
1286

abertos e modificáveis de persuasão, informação entre dois ou mais


indivíduos. A comunicação, ou mais propriamente os meios de
comunicação, ao propagar o pensamento educacional permite que ele se
Página

democratize.

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Há uma relação “dialógica” que se caracteriza como um processo-libertador, pois uma
educação eficaz e ajustada ao momento presente tem de ser aliada à comunicação. No viés
desse “novo” agir pedagógico, educomunicativo, os meios de comunicação podem apresentar
o próprio conteúdo de ensino e ainda serem eles próprios, objeto de análise, de conhecimento,
como é o caso do Rádio. A educomunicação considera a questão dos meios de comunicação e
da comunicação em si como parte integrante do processo educativo e cidadão dos sujeitos.
Com o processo de inter-relação entre a Comunicação e a Educação chegamos a
“educomunicação”.
O educador Mário Kaplún é considerado o criador do termo “educomunicação”,
extraiu tal conceito a partir da formulação de grupos populares que utilizavam metodologias
que tornassem possível a formação de receptores ativos, isto é, de sujeitos participativos e
críticos. Para KAPLÚN (1999) a comunicação deve ser pensada como um componente
pedagógico, sendo o eixo vertebrador dos processos educativos o “educar pela comunicação”.
A comunicação educativa é considerada como uma relação e não como um objeto. É através
da leitura crítica que acontece o entendimento da linguagem e consequentemente pode-se
fazer críticas sobre notícias veiculadas. O mesmo autor ainda enfatiza que a existência de uma
comunicação educativa, sugerindo que é preciso educar para comunicar e comunicar para
educar. O autor ainda estabelece a educomunicação citando a “recepção” como exercício de
cidadania.

2 O Rádio nos contextos educacional e cidadão

Enfatizamos que desde o seu surgimento, o rádio foi pensado como um meio de
fornecer educação as pessoas, de acordo com o seu idealizador Roquete Pinto. Já em 1923 a
Rádio Sociedade do Rio de Janeiro transmitia uma programação educativa, tomando como
base a educação escolarizada ao transmitir aulas como por exemplo: de língua portuguesa,
história do Brasil, química, física e geografia; bem como lições, palestras e ainda cursos
práticos como são os casos dos cursos sobre rádio e telegrafia.
Compreendemos ser imperiosa a necessidade de uma investigação sobre o rádio no
1287

contexto educativo e cidadão. Neste trabalho, enfocamos particularmente a participação do


sujeito em um programa de radiojornalismo como instrumento de cidadania. Há várias
conceituações de cidadania e não há uma universalidade conceitual, poderosa o suficiente
Página

para agregar todos os aspectos observados pelos teóricos estudiosos do tema. Por essa razão

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achamos necessário esclarecermos que procuramos ressaltar neste trabalho a cidadania que se
faz por intermédio da informação. Seja a partir da simples atitude de recepção puramente no
sentido de refletir sobre a mensagem recebida, seja por meio de uma atitude no sentido de agir
literalmente.
Diante da premissa de determinados princípios defendidos por BORDENAVE (1994)
no que se referem à participação social, quais sejam: a participação como um direito de todos,
a participação como um processo de desenvolvimento da consciência crítica e ainda de
aquisição de poder, a participação como possibilidade de ser aprendida e aperfeiçoada, e ainda
a participação como desenvolvimento, possibilitando ao sujeito ter a noção de cidadania na
prática vez que assegura ao individuo ser sujeito de sua própria realidade.
Também adotaremos o entendimento de BORDENAVE (1994) que compreende uma
cidadania planetária que envolve a valorização do espaço local em plena sociedade de
informação global, como é característica da sociedade atual. As pessoas reconhecem que se
somadas “identidades”, cada membro com sua própria identidade, podem surgir diversificadas
maneiras de se exercer a cidadania local e global, sem necessariamente formar uma identidade
homogênea, única. Nesta pesquisa, abordamos a concepção de cidadania planetária através da
análise do radiojornalismo desempenhado pelo rádio tendo em vista que a cidadania
planetária apenas pode ser exercida efetivamente a partir do intercambio de múltiplas
cidadanias que objetivem o bem-estar da sociedade.
Por fim, verificaremos as noções de cidadania e subjetividade trazidas por
BORDENAVE (1994) que focaliza interfaces entre indivíduos da sociedade. Atualmente, a
subjetividade é cada vez mais presente na vida das pessoas. A “mesquinhez” e a “violência”
se proliferam no cotidiano dos sujeitos fazendo com que este se isole mais dos “outros”.
Diante disso, o indivíduo adquire a capacidade de impulsionar transformações interiores.
Partindo as transformações do interior dos sujeitos para o exterior. A partir de sua própria
consciência de realidade a pessoa pode chegar a colocar em prática formas plurais de vida.
Funcionando a cidadania e subjetividade, sobretudo, com o um despertar em si mesmo.
Nesta pesquisa seguimos o pensamento de BORDENAVE (1994) por acreditarmos que
por meio dos desejos internos de cada sujeito é possível promover a cidadania e o rádio pode
1288

ser um dos meios fomentadores da cidadania subjetiva, inspirando até mesmo condições
estruturais que façam emergir desejos explicitamente coletivos.
Neste momento, faz-se importante ressaltar que a natureza da presente pesquisa é
Página

marcada pela interdisciplinaridade, permitindo uma maior abrangência de temáticas. É no fio

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deste raciocínio que inferiremos a possibilidade de vinculação do rádio no aspecto da
educação e da cidadania, tendo em vista que o rádio estabelece uma relação de parceria e
cumplicidade com o ouvinte. Caracterizando-se ainda por ser instantâneo, portátil, de baixo
custo e popular. Ao mesmo tempo em que o rádio atinge milhares de pessoas, também atinge
o indivíduo em particular.
Nesta perspectiva, entendemos que o rádio atua como agente de formação do coletivo.
Fornece informações sobre empregos, produtos e serviços. Tece crítica em todos os âmbitos
da sociedade. É capaz de promover o contato entre o público e a “sociedade”, com debates
socioeconômicos e políticos, facilitando o diálogo entre indivíduos e grupos. Sendo que ao
divulgar pensamentos, pode até mesmo conduzir ou despertar um “sentido” do receptor à
formação e/ou reprodução de saberes, os quais por sua vez promovem o “pensar”.

3 Análise do Programa Matutino Borborema

A investigação teve como objeto o programa radiojornalístico Matutino Borborema


com o objetivo de analisar a atuação do mesmo no processo de recepção de seus ouvintes ao
escutarem o programa os ouvintes considerando a hipóteses que o radiojornalístico
despertaria nos ouvintes individualmente e/ou coletivamente um processo de construção de
educação e cidadania a partir de mensagens recebidas. Para isso, promovemos um estudo de
caso do radiojornalístico com um olhar para o receptor enquanto sujeito ativo e crítico
inserido na comunicação.
A pesquisadora, DUTRA (2007), despertou interesse pelo tema Educação, Cidadania e
Rádio durante aulas da especialização cursada à época no módulo da disciplina Rádio e
Cidadania quando teve seu contato inicial com o rádio na interface da educação com a
cidadania. No caso, a opção adotada foi mais precisamente o programa Matutino Borborema
por ser um dos programas pioneiros em radiojornalismo no Estado da Paraíba e naquele
momento um dos líderes de audiência no município de Campina Grande e região, local onde
seria aplicada a pesquisa.
O radiojornalístico era realizado de segunda à sexta-feira. A pesquisa foi promovida
1289

ao longo de sete meses, com início em dezembro de 2006 e fim em junho de 2007. Os
conteúdos produzidos pelo programa foram gravados na íntegra ao longo de toda sua
promoção diretamente em estúdio da rádio com o acompanhamento da própria pesquisadora e
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foi selecionado o período de cinco dias entre os dias 12 e 16 de fevereiro de 2007 para estudo.
As gravações programas foram transcritas após cada gravação para posterior análise.
A pesquisadora aplicou para ouvintes do programa questionários semi-estruturados
com questionamentos abertos, semi-abertos e fechados para 30 ouvintes. Nas entrevistas com
os ouvintes a pesquisadora objetivava verificar a existência de uma visão crítica destes
ouvintes diante das mensagens que o programa repassava para os mesmos e identificar se no
confronto com as respostas ofertadas aos questionamentos da entrevista por ela realizada
teriam de alguma forma seus processos de construção de educação e cidadania influenciados
pelo programa.
Além das entrevistas com ouvintes, a pesquisadora também realizou entrevistas com
jornalistas que fazem parte e ou que de alguma forma que já fizeram parte da equipe do
programa Matutino Borborema. As entrevistas com a equipe do programa foram gravados em
fitas k7 e posteriormente suas respostas foram transcritas e analisadas. As entrevistas tinham
como objetivo traçar um breve histórico do programa.
A pesquisadora constatou que em relação ao “Matutino Borborema” não existem
documentos oficiais que relatam a data de início do programa. Porém, os entrevistados da
equipe à época do programa indicaram que a possível data de sua oficialização teria sido por
volta do ano de 1959. Em seu nascimento o programa era composto por uma equipe integrada
por cerca de dez profissionais, entre produtores, repórteres, apresentadores, técnicos e
editores. Não identificou um documento oficial que constasse a quantidade exata conforme a
função.
No ano de feitura da pesquisa, 2007, o programa era levado ao ar ao vivo de segunda-
feira a sexta-feira, de 6h até às 8h duração em média 2 horas de exibição. A linha de produção
do programa era composta por um produtor, três apresentadores e um técnico Não havia
equipe de reportagem, bem como editor.
Durante o período de observação do programa verificamos que os seus destaques eram
entrevistas e notícias de cunho policial e que o programa possuía pouca interatividade
diretamente com os ouvintes. A explicação repassada por um dos entrevistados da equipe de
apresentação seria que seria norma da empresa não permitir a entrada de ouvintes
1290

participando no ar. Quanto ao perfil dos ouvintes, a pesquisadora analisou por meio de
categorias. Posteriormente, tais resultados foram discutidos sob a perspectiva da educação e
da cidadania.
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Gráfico 1: A influência das informações veiculadas na vida do ouvinte

Como se vê no estudo de caso em comento, todos os entrevistados consideraram que


as informações veiculadas pelo Matutino Borborema influenciam suas vidas e entre as
principais justificativas para isso na explicação da pesquisadora destacou-se o fato de
acreditarem que a informação no Matutino Borborema pode proporcionar conhecimento
tornando os ouvintes mais críticos ao repassar conhecimentos atualizados em assuntos
diversificados, o que facilitaria a compreensão dos fatos que ocorrem no mundo, desde
assuntos de caráter local até internacional.

Gráfico 2 A contribuição do programa em termos de educação

Como se vê, a pesquisa mostrou que todos os ouvintes entrevistados do Matutino


Borborema acreditam que as informações veiculadas pelo programa influenciam suas vidas e
exerceriam tal influência de modo benéfico, seja diretamente ou indiretamente. Daí, a
pesquisadora buscou saber se os ouvintes consideravam que as informações veiculadas pelo
1291

programa poderiam contribuir em termos de educação com as vidas dos entrevistados.


Dos entrevistados, 93,3% disseram que sim, 6,7% que contribui sim mas parcialmente
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e 0% que não contribui no sentido de educação. Sodré (1996) (apud DUTRA, 2007) enfatiza

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que não se pode excluir a hipótese de que os meios de comunicação sejam uma escola
paralela de acordo com os impactos ideológicos que exerçam sobre as consciências.
Verificamos que os ouvintes entendem a educação como um campo amplo. Muitos desses
ouvintes citaram o termo “educação para a vida”. Com base nesse entendimento foi que a
maioria deles considerou que as informações veiculadas pelo Matutino Borborema
contribuem em suas vidas em termos de educação. A “educação para vida” citada por esses
ouvintes se constitui em um saber voltado para aplicação das informações fornecidas pelo
programa em questões do dia-dia, a compreensão do mundo em seu redor, da sua própria
realidade, permitir a aquisição de novos conhecimentos, dar ensejo à curiosidade do ouvinte
em se aprofundar em questões do seu interesse, ter embasamento para articular conversas,
entre outros.
Entre as explicações da pesquisadora para a contribuição na Educação dos ouvintes
estaria no fato de perceber que a linguagem radiofônica ser clara, objetiva, simples e não
monótona e de fácil compreensão. Mais uma vez percebemos que o ouvinte enfatiza que a
questão do repasse de informações dever ocorrer de maneira clara, esclarecedora. Dos
entrevistados, somente dois disseram que o programa influencia parcialmente porque
receberiam as mesmas informações repassadas pelo Matuto Borborema por meio dos demais
veículos de comunicação e que contribui de algum modo por meio dos exemplos de situações
mostrados nas informações levadas ao ar pelo programa.

Gráfico 3 A influência do Programa na Cidadania

16,7%
6,6% sim
76,7% não
parcialmente
1292

A maioria dos ouvintes entrevistados do Matutino Borborema considera que o


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programa atende suas necessidades como cidadão. Isso aconteceria na opinião dos ouvintes

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por meio das próprias informações veiculadas, a exemplo de entrevistas e serviços de
utilidade pública que poderiam fomentar críticas nos mais diversos âmbitos da sociedade com
debates socioeconômicos e políticos. Assim, a pesquisadora verificou a existência de
processos de múltiplas cidadanias.
O estudo de caso realizado mostrou nessa perspectiva para a pesquisadora também
como um espaço de reivindicação de direitos a partir do olhar dos ouvintes. O que evidenciou
que embora com situações adversas que pudessem dificultar ou impedir processos ativos dos
sujeitos para um olhar crítico como é o caso da não participação direta do ouvinte no ar
durante o programa, findava por facilitar o diálogo entre indivíduos e grupos promovendo à
educação e a cidadania na medida em que o ouvinte ao estar informado tem a possibilidade
de refletir sobre a mensagem recebida individual ou coletivamente e a partir disso, se desejar,
concretizar uma ação. Atuando antes de tudo em situações que envolvam a cidadania e a
subjetividade nas transformações partindo do interior dos sujeitos para o exterior funcionando
como um despertar em si mesmo para o mundo e com o mundo diante da educação e da
cidadania como um ato de conscientização, reflexão, diálogo e/ou ação.

Considerações finais

A revisão de literatura estudada na presente pesquisa mostrou que a comunicação


ocorre dentro de um contexto social que concede significado e valor ao processo
comunicacional como um todo. Cada pessoa desenvolve ao longo de sua vida as suas próprias
crenças que não, necessariamente, são iguais as do grupo social a que fazem parte, mas que
geram, essencialmente, os seus próprios critérios de interpretação da realidade. Este
pressuposto é inerente à relação desses indivíduos com os meios de comunicação.
Nesse sentido, procuramos perceber a ação do rádio no processo de recepção dos
ouvintes enquanto indivíduos capazes de interpretarem, interagirem e produzirem seus
próprios sentidos através das mensagens recebidas, sendo que isto ocorre por meio de uma
perspectiva multicultural. Partindo dos seus próprios universos culturais e de suas
experiências de vida é que os ouvintes interpretam as mensagens.
1293

O entendimento que concedemos a educação nesta pesquisa foi o de que a educação é


um ato de conscientização, reflexão, diálogo. Assim, verificamos que o despertar para a
Página

educação ocorre, sobretudo, por meio das informações repassadas pelo programa, sejam na

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transmissão de notícias de um modo geral, em debates ou entrevistas. Através de um
programa radiojornalístico Matutino Borborema o ouvinte tem abertas possibilidades
universais de intercâmbios de conhecimento, sendo interpelado individualmente.
Entendemos que a educação e a comunicação são processos que estão imbricam
durante toda a exibição do Matutino Borborema. A educação é comunicação quando
transcende a transferência do saber, promovendo um encontro de interlocutores desembocado
em uma busca de “perguntas e respostas”. Já a comunicação é educação quando desperta uma
consciência crítica, desenvolvendo uma atitude crítica ativa. Sendo assim, o processo de
educação existe seja através de órgãos especializados como são as escolas, as universidades,
enfim; despertando educação e cidadania por meio de todos os seus membros, a cada
momento e em todos os lugares.

Referências

BORDENAVE, Juan E. Diaz. O que é participação. São Paulo: Brasiliense, 1994.

DUTRA, Priscilla Tatianne. Da educação à cidadania: estudo de caso centrado no programa


radiojornalístico Matutino Borborema. Campina Grande, 2007. Monografia apresentada ao
curso de Especialização em Educomunicação. Departamento de Comunicação Social –
Jornalismo, Universidade Estadual da Paraíba.

FREIRE, Paulo. Educação e Mudança Social. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000.

KAPLÚN, Mário. Processos educativos e canais de comunicação. Revista Comunicação &


Educação, São Paulo, Moderna/ ECA-USP, p. 68-75, jan./abr.1999.

SOARES, Ismar de Oliveira. Gestão comunicativa e educação: caminhos da educomunicação.


Revista comunicação e educação, São Paulo, Editora Selesiana, n 23, ano VII,
Jan./Abr.2002.
1294
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ISBN: 978-85-7621-221-8
GT13 – OLHARES PARA O ENSINO/APRENDIZAGEM DA LÍNGUA ESPANHOLA
E PARA AS LITERATURAS ESPANHOLA E HISPANO-AMERICANAS

MÉTODOS E ABORDAGENS: ALGUMAS REFLEXÕES

Diva Wellk de Oliveira Santos.


Pedro Adrião da Silva Junior.

1 Introdução

Este trabalho tem por objetivo propor uma reflexão acerca das diversas abordagens de
ensino utilizadas pelas escolas de idiomas, não iremos aqui explorar todas as abordagens,
falaremos apenas de algumas delas, daremos preferência àquelas que forma utilizadas com
maior frequência e que acabaram sendo mais exploradas pelos pesquisadores. Inúmeros
estudiosos pesquisaram os métodos e suas aplicações no ensino de línguas, aqui destacamos
alguns deles como Leffa (1988), Barbosa (2014), Paiva (2012), Almeida Filho (2008) dentre
outros, porém não creio que este assunto esteja esgotado, pois todos os dias os profissionais
desta área precisam optar por uma metodologia que ajude os seus alunos a atingirem os seus
objetivos. É uma atividade contínua que sempre precisará ser reavaliada na busca de encontrar
o melhor meio de atingir seu objetivo.
Diversas abordagens sob a nomenclatura de método de ensino têm sido utilizadas ao
longo de muitos anos, no entanto, esse universo foi passando por transformações que visavam
facilitar o aprendizado. Os métodos cada um a seu tempo oferecem recursos que ajudam o
processo ensino-aprendizagem, raramente é utilizado neste processo um único método, o que
nos leva a acreditar que eles se adequam a uma ou outra habilidade a ser desenvolvida.
Para facilitar a compreensão o trabalho está apresentado da seguinte forma:
primeiramente serão apresentados os métodos escolhidos para este estudo e o percurso
histórico que fizeram ao longo dos anos em que estiveram em evidência e os principais
objetivos a serem atingidos com cada um deles, na sequencia faremos nossas considerações
finais quanto ao uso dos métodos/abordagens.

2 Percurso histórico dos métodos de ensino


1295

Pela necessidade de se comunicar o homem sempre buscou formas de aprender e em


Página

contrapartida, outros, de ensinar novos idiomas. No princípio da idade média o ensino de

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línguas era um processo mecanizado baseado na gramática, o aluno traduzia livros para sua
própria língua, por meio de dedução. O pai da didática Commenius, deu sua contribuição ao
trazer para o contexto da educação a preocupação com a sistematização, e a utilização dos
métodos, que facilitassem o processo de ensino-aprendizagem.
Segundo Gontijo (2016) “Comenius se preocupou em apresentar métodos de um
ensino que visam a transformação do ser humano através da comunicação de valores éticos e
morais, baseando-se em três pilares dissociáveis e fundamentais: o ensino, a moral e a
piedade”. Para ensinar a língua latina o bispo Commenius em meados do século XVI inovou
ao ensinar o vocabulário desta língua através de desenhos. Daí em diante com a passagem do
tempo diversos métodos de ensino foram desenvolvidos até os dias atuais.
Além da necessidade primária da comunicação outros fatores podem ter favorecido o
desenvolvimento e disseminação dos métodos de ensino-aprendizagem de línguas, corrobora
com este entendimento Barbosa (2014), quando diz:

[...] como as línguas são aprendidas? Como organizamos o conhecimento


linguístico na mente? Como a língua é estruturada? A resposta a estas
questões favoreceu o surgimento de várias abordagens. Um vocabulário
específico passou a ser utilizado a fim de lidar com esses problemas, com
destaque para os termos abordagem, método e técnica.

Neste contexto é perceptível a preocupação com a terminologia, afim de dar a


nomenclatura mais aproximada ao que realmente se refere. No texto de Leffa (1988), o autor
trata da adequação da terminologia e fala que o termo método era utilizado devido a sua
grande abrangência, no entanto com o passar do tempo e a partir de reflexões convencionou-
se subdividir o termo em abordagem que varia de acordo com a variação dos pressupostos e
método.
O termo abordagem é considerado mais abrangente de forma a englobar os
pressupostos teóricos acerca da língua e da aprendizagem, enquanto que o método é mais
restrito e pode estar contido dentro da própria abordagem, podendo ainda envolver regras de
seleção, ordenação e apresentação dos itens linguísticos.
Na mesma obra Leffa (1988) ainda nos chama a atenção quanto a dificuldade definir e
1296

separar os dois termos

A única dificuldade nessas definições de abordagem e de método está na


Página

imprecisão histórica do termo “método”, já consagrado tanto no sentido amplo

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como no restrito (Exemplo: o “método direto”, que na verdade não é um
método, mas uma abordagem). A solução proposta neste artigo é usar o termo
na acepção atual e fazer a necessária ressalva para cada caso.

Conforme o texto da Universidade Castelo Branco temos as seguintes definições adotadas:


 MÉTODO → maneira de proceder; ordem ou sistema que se segue no estudo ou no
ensino de qualquer disciplina, processo ou técnica de ensino (FERREIRA, 1980 apud
UCB).
 ABORDAGEM → pressupostos teóricos acerca da língua e da aprendizagem;
variedade de opções pedagógicas derivadas de concepções teóricas específicas da
linguagem e da aprendizagem de línguas (LEFFA, 1988 apud UCB).
Devidamente conceituados, vamos as abordagens que elencamos para este trabalho.
Ressaltamos que não é nossa intenção aqui tratar de todas as abordagens, selecionamos dentre
as diversas quatro das quais contaram com expressivas adesões cada uma a seu tempo; tão
pouco pretendemos aqui determinar qual delas seria a melhor para o uso no processo ensino-
aprendizagem de uma língua, e sim, chamar a atenção para os pontos positivos e negativos de
cada uma delas e assim facilitar a escolha do professor pela abordagem que o aproxima de
seus objetivos.

2.1 Abordagem Gramática e Tradução (Método Clássico)

Esta abordagem de ensino é a que segundo Leffa (1988) mais tempo esteve em uso no
ensino de línguas e é também a que mais críticas tem recebido. Atualmente ainda é
encontrada, ainda que exporadicamente. Este método ou abordagem consiste na tradução de
textos da língua alvo para a língua materna do aprendiz. O objetivo é fazer com que o
aprendiz seja capaz de ler e escrever na língua estrangeira, a oralidade não é foco desta
abordagem. Em outras palavras é o ensino da língua estrangeira pela língua materna.
No texto de Leffa (1988) o autor afirma que a Abordagem Gramática e Tradução
(AGT) é uma abordagem de dedução que parte da regra para o exemplo, que a ênfase está na
forma escrita da língua. Leffa destaca que sob esta perspectiva os passos essenciais para se
1297

aprender uma língua estrangeira são:


 a memorização de uma lista de palavras;
 o conhecimento mínimo das regras gramaticais que será usado quando o aprendiz
Página

precisar juntar as palavras para formar frases;

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 a execução de exercícios de tradução.
Sob este prisma o importante é que o aprendiz tenha domínio mínimo das regras
gramaticais da língua alvo, não tendo que preocupar-se com a pronuncia.

2.2 Abordagem Direta (Método Naturalista)

Tal qual a AGT esta abordagem é bem antiga, e surgiu como uma opção que supriria a
oralidade não explorada pela AGT. O processo de ensino baseia-se no uso exclusivo da língua
alvo, a língua materna não deve ser utilizada neste modelo de ensino, para explicação de
vocabulário novo o professor lança mão de gestos, mímicas, gravuras, só o que não é
permitido é o uso da tradução.
O objetivo é aproximar o aprendiz da língua alvo da maneira mais natural possível,
sem priorizar os aspectos gramaticais, dando ênfase a língua espontânea, que faz parte do
cotidiano dos falantes. Sobre a Abordagem Direta (AD), Brown (2010) apud Barbosa (2014)
diz que “o aprendizado da segunda língua seguia os princípios da aprendizagem da primeira
língua – ‘bastante interação oral, uso espontâneo da língua, nenhuma tradução da primeira
para a segunda língua, e pouco ou nenhuma análise das regras gramaticais’”.
Sob esta perspectiva Leffa afirma que

O aluno é primeiro exposto aos “fatos” da língua para mais tarde chegar a sua
sistematização. O exercício oral deve preceder o exercício escrito. Para atingir
seus objetivos a técnica de repetição é usado bem como o uso de diálogos
sobre assuntos da vida diária tem por objetivo tornar viva a língua usada na
sala de aula (LEFFA, 1988).

Richard e Rodgers (2001 apud BARBOSA, 2014) elenca alguns princípios da abordagem
direta dentre os quais destacamos:
 As instruções em sala só podem ser na língua alvo;
 As habilidades orais são graduadas e seguem uma progressão criteriosa;
 O vocabulário trabalhando deveria ser concreto, ensinado por meio de demonstração,
objetos e figuras;
1298

 São explorados principalmente a compreensão auditiva e a oralidade, enfatizando a


pronúncia e a gramática correta.
Página

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Neste modelo de ensino a ênfase está sob a oralidade por meio do estudo da língua
falada e por meio de exercícios ou treinamentos fonéticos afim de atingirem uma pronuncia
correta.

2.3 Abordagem Audiolingual (Método do Exército)

Durante a segunda grande guerra, devido a necessidade dos americanos, que acabara
de entrar no conflito, de se comunicar nas áreas de combate, surgiu a Abordagem
Audiolingual (AAL) ou Método do Exército. Segundo Leffa (1988) na intenção de produzir
indivíduos aptos a se comunicarem com a população destas áreas, nenhum esforço foi
poupado, desde o trabalho de especialistas em linguística e mesmo informantes nativos nas
línguas alvo.
Apesar de não ser um método tão inovador assim, pois na verdade era uma nova
roupagem da AD, a abordagem obteve bons resultados, o que atraiu a atenção até mesmo de
grandes universidades, não demorou muito para que as escolas secundárias também
adotassem a AD. O envolvimento de estudiosos da área de linguagens acabou por atribuir o
status de ciências ao ensino de línguas.
Segundo Leffa (1988) as premissas que sustentavam o método ou abordagem eram:
 Língua é fala, não escrita – portanto a ênfase é na oralidade;
 Língua é um conjunto de hábitos – seguia a perspectiva behaviorista do
condicionamento adquirido por meio de processo de estímulo e resposta;
 Ensine a língua não sobre a língua – consiste em aprender a língua pela prática e não
por meio de explicações de regras, a gramática era ensinada através de analogias
indutivas, seguindo o modelo da AD o aluno é exposto aos fatos da língua;
 As línguas são diferentes – baseada na análise contrastiva buscando detectar as
diferenças existentes entre a língua materna e a língua alvo.
Apesar do seu grande sucesso a AAL acabou perdendo força no final dos anos 1960
diante das críticas dos linguistas da época, dentre os seus opositores está Chomsky (1965),
principal linguista ligado ao gerativismo, movimento que colocou em cheque o
1299

behaviorismo que dava suporte à Abordagem Audiolingual.


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2.4 Abordagem Comunicativa

Em meio a todas as investidas dos estudiosos em tentar encontrar novas abordagens


que impactassem o ensino de línguas, surgiu mais uma abordagem que foi a comunicativa, no
entanto esta abordagem parece ter atingido uma maior maturidade quanto ao ensino de
línguas, pois nela espera-se que o aprendiz consiga se comunicar em situações reais de
interação.
Se propuséssemos visitar algumas das diversas escolas de idiomas existentes é
possível que encontrássemos também diversas abordagens, mas seguramente esta será uma
das mais utilizadas.
Esta abordagem tem seu foco no uso da língua em situações reais de comunicação, a
oralidade é muito valorizada, no entanto com o avanço dos estágios de aprendizado as outras
habilidades linguísticas também são exploradas. Sob esta perspectiva acredita-se que, todos os
fatores que influenciam no aprendizado de um idioma são atendidos. Portanto o objetivo
maior é proporcionar ao aprendiz a capacidade de se comunicar nos mais diversos contextos
fazendo bom uso dos aspectos relevantes ao uso da língua.

Desta forma, a característica marcante da Abordagem Comunicativa, que a


diferencia com mais nitidez dos métodos anteriores, é a ênfase no significado
e no uso da língua. Assim, a definição dos conteúdos a serem trabalhados em
sala de aula parte da perspectiva da realidade comunicativa, que apresenta
uma variedade de possibilidades relacionadas às situações comunicativas, ao
léxico e às estruturas linguísticas utilizadas para trabalhar um determinado
conteúdo funcional (VILAS BOAS, VIEIRA e COSTA).

No texto de Vilas Boas, Vieira e Costa, ficam bem claras as características da


abordagem comunicativa e é possível entender o porquê da preferência por esta abordagem
em grande número das escolas de idiomas. No ensino de língua é importante prezar por todos
os aspectos linguísticos mas para atingir o objetivo principal da maioria das pessoas que
buscam aprender um novo idioma que é poder se comunicar em diferentes situações a
abordagem comunicativa parece ser a que mais se aproxima de atingir este objetivo, pois não
trata a língua apenas como regra, ou de maneira mais popular não usa os termos engessados e
1300

estáticos do ensino de gramática ou frases e expressões prontas que pouco tem a ver com a
comunicação.
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3 Considerações finais

As escolas de idiomas adotam a abordagem que acredita ser a que mais lhe trará
resultados positivos, em geral esta escolha é feita por uma equipe pedagógica que leva em
consideração diversos fatores, como o objetivo de seu aprendiz, a missão da instituição e etc.
Mas o fato é, que cada uma delas adota uma estratégia que julga ser a mais benéfica para ela e
para os seus alunos.
Pensar nas abordagens de ensino de língua separadamente nos dá a impressão de que
não será possível atingir o nosso papel de facilitadores no processo ensino-aprendizagem de
uma língua, talvez por este motivo alguns professores optem por modelos híbridos de
abordagens, evidentemente uma se sobrepõe a outra ou outras.
Cada uma das abordagens presentes neste trabalho teve em algum momento o brilho
de conseguir atender ao papel a que se propunha, mas quando visto de mais perto, evidencia
as lacunas deixadas e isto proporcionou a chegada de uma nova abordagem que buscava
suprir as “deficiências” do método em voga até aquele momento.
Certo é que os aprendizes podem ter diferentes objetivos, e as abordagens se ajustam a
estes objetivos, mas se for possível contribuir de forma plena todos os esforços são válidos
para isto. Não se trata de mudar os objetivos dos aprendizes, mas sim, deixar evidente para ele
de que se é possível desenvolver todas ou pelo menos mais de uma habilidade linguística no
mesmo tempo que utilizaria para o desenvolvimento de uma apenas, este esforço empregado
será bem mais enriquecedor e proveitoso.

Referências

BARBOSA, J. R. A. Uma análise crítica das abordagens/métodos para o ensino-


aprendizagem de línguas. In: RIBEIRO, E.S; FARIAS, M.S. Ensino de línguas estrangeiras:
O que é? Como se faz? Curitiba, 2014.

BORGES, E. F. V. Metodologia, abordagem e pedagogias de ensino de língua(s). In


Linguagem & Ensino, Pelotas, v. 13, n. 2, p.397-414, jul./dez. 2010. Disponível
em:http://www.rle.ucpel.tche.br/index.php/rle/article/viewFile/62/35
1301

CABRAL DE PAIVA, R.S. O lugar do texto literário na formação dos professores da


UERN: programas de disciplinas e crenças dos professores, 2012., 230f. Dissertação
(Mestrado em Letras). Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. Pau dos Ferros,
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ISBN: 978-85-7621-221-8
http://www.4shared.com/office/YJGoCB05/DISSERTAÇÃO-_VERSO_FINAL-
_PS_DEF.html

GONTIJO, F.B A didática magna de Comenius e as declarações da UNESCO: educação


para todos – a inspiração de Comenius e a proposição da UNESCO, 2016 93f. Dissertação
(Mestrado em Educação) Universidade de Uberaba. Uberaba, 2016. Disponível em:<
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JALIL, S. A.; PROCAILO, L. Metodologia de ensino de línguas estrangeiras: perspectivas e


reflexões sobre os métodos, abordagens e o pós-método. In IX Congresso Nacional de
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LEFFA, Vilson J. Metodologia do ensino de línguas. In BOHN, H. I.; VANDERSEN, P.


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VILAS BOAS, C.H,, VIEIRA, D. S., COSTA, I.M.F. Métodos e Abordagens: um breve
histórico do ensino de Língua Estrangeira. Escola de Administração do Exército. Salvador –
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1302
Página

ISBN: 978-85-7621-221-8
GT13 – OLHARES PARA O ENSINO/APRENDIZAGEM DA LÍNGUA ESPANHOLA
E PARA AS LITERATURAS ESPANHOLA E HISPANO-AMERICANAS

GÊNERO DO DISCURSO E LETRAMENTO DIGITAL: ESTADO DO


CONHECIMENTO SOBRE A RELAÇÃO ENTRE AS PRÁTICAS DE LEITURA EM
MATERIAL DIDÁTICO DE LÍNGUA ESPANHOLA NA EAD

Luanna Melo Alves212


Samuel de Carvalho Lima213

Introdução

O uso de recursos tecnológicos vem se expandindo pela sociedade de maneira


acelerada, quase que indispensável a qualquer situação. E este fato reflete diretamente nas
relações de comunicação. Aconteceram muitas transformações nos processos de interação
social, estas transformações afetaram desde as nossas atividades cotidianas, como também,
provocaram mudanças na educação, na maneira de ensinar e aprender.
As tecnologias digitais invadiram nossas vidas e foram responsáveis por mudanças
significativas na nossa forma de perceber e de lidar com o mundo, como bem assinala
Dertouzos:

Está transformando a maneira de como vivemos, trabalhamos e nos


divertimos, como acordamos pela manhã, fazemos compras, investimos
dinheiro, escolhemos nossos entretenimentos, criamos arte, cuidamos da
saúde, educamos os filhos, trabalhamos e participamos ou nos
relacionamentos com as instituições que nos empregam, vendem algo,
prestam serviços à comunidade (DERTOUZOS, 1997, p. 153).

As novas tecnologias impulsionaram uma importante e crescente modalidade de


ensino: a Educação à Distância (EaD). Os cursos à distância oportunizam o acesso à educação
a muitas pessoas que por algum motivo são impedidas de acompanhar aulas presenciais.
A nossa experiência em EaD no Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia
do Rio Grande do Norte (IFRN) como tutora, professora pesquisadora e, atualmente, autora
de material didático, motivou-nos a investigar sobre as práticas de leitura, visto que, é uma
das habilidades comunicativas mais utilizadas nessa modalidade de ensino. Atualmente,
1303

212
Aluna de Mestrado em Ensino pelo Programa de Pós-graduação POSENSINO – UFERSA/UERN/IFRN.
Professora de Língua espanhola IFRN/Lajes. E-mail: luanna.alves@ifrn.edu.br
Página

213
Doutor em Linguística pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Professor de Língua inglesa do IFRN/
Mossoró. E-mail: samuel.lima@ifrn.edu.br

ISBN: 978-85-7621-221-8
nossos estudos e pesquisas estão voltados para o tratamento dado aos gêneros do discurso e
sua relação com as práticas de letramento, com vistas à promoção do letramento digital em
uma língua estrangeira.
Para Leffa (2003) o educador poderá desempenhar um trabalho muito importante
durante o processo de ensino na EaD, como incentivador, mas afirma que é no manuseio com
o objeto que a aprendizagem ocorre, reitera a autora, que é como andar de bicicleta, a
presença de um adulto é necessária, observando e orientando, só que o mais importante é ter a
bicicleta para treinar.
Defendemos que o material didático da EaD precisa contemplar, em suas atividades,
propostas que promovam, também, o desenvolvimento do letramento digital e faça uso de
todas as ferramentas disponíveis no Ambiente Virtual de Aprendizagem (AVA), ferramentas
as quais, podemos explorar o trabalho com textos, de modo que leve o aprendiz a
compreender e refletir sobre as propostas e temas apresentados, favorecendo a interação entre
os indivíduos e objetos envolvidos.
Com isso, depreendemos também, que o autor de material didático da EaD tendo
consciência das potencialidades interativa da web, poderá desenvolver, mais facilmente,
propostas didático-pedagógicas que promovam o letramento e, consequentemente, o ensino
significativo da língua. Acreditamos que a oferta de propostas de atividades online pode
contribuir muito com essa conjuntura.
Oliveira (2010) sugere projetos de letramento, com propostas que contextualizem a
leitura e a escrita, possibilitando trabalhar os gêneros não como um ‘fim’, mas como um
‘meio’, ou seja, ensinar com os gêneros e não sobre os gêneros, o que significa considerá-los
como o componente organizador da ação de ensinar.
No que se refere ao letramento digital para a formação de professores, Silva (2012)
defende que há que se incluir nos programas de formação, o caráter reflexivo crítico para que
a inserção das novas tecnologias na prática docente não seja apenas mecânica e reprodutora.
Neste texto, apresentamos estudo do tipo estado do conhecimento, em que
desenvolvemos análise de dissertações sobre o ensino de espanhol à distância e a relação
gênero do discurso e promoção do letramento digital.
1304

A partir deste estudo, elucidamos algumas inquietações do tipo: quais são as


publicações que abordam a temática da relação gênero do discurso e letramento digital na
EaD? Que abordagens utilizam? O que enfocam as pesquisas? Aportes teóricos mais
Página

utilizados? Quais são as lacunas desta área? Cabe ressaltar, que os resultados obtidos, deram-

ISBN: 978-85-7621-221-8
se a partir de filtros voltados para áreas de Letras, Estudos da linguagem e Ensino de língua
estrangeiras.
Dado este mapeamento, o estado do conhecimento será o nosso norteador de caminhos
para execução de estudos que ainda carecem de investigação no campo das Línguas
estrangeiras modernas com foco no desenvolvimento do letramento digital.

1 Estado do conhecimento

Os trabalhos do tipo estado da arte ou estado do conhecimento vem sendo utilizado,


nos últimos anos, com muita frequência, pois este tipo de investigação, ajuda a nortear quais
são as publicações desenvolvidas em um determinado campo do conhecimento de um
determinado período, sejam elas: dissertações, teses e artigos científicos publicados em
revistas, periódicos ou eventos acadêmicos.
Este método de investigação tem suas limitações, pois quem vai utilizar esses dados ou
referenciá-los, precisa conhecer as categorias elencadas na pesquisa e que filtros foram
utilizados para se chegar a tal resultado e análise. Sobre as análises, afirmam Romanowski e
Ens que permitem considerar os destaques e temáticas abordadas nas investigações; os
referenciais teóricos que nortearam as pesquisas; a relação entre o pesquisador e a prática
pedagógica; as sugestões e proposições expostas pelos pesquisadores e as contribuições dos
professores/pesquisadores na definição das tendências, no caso, referindo-se ao campo de
formação de professores.
A investigação no estado da arte ou estado do conhecimento se inicia a partir de
seleção de trabalhos publicados semelhantes a temática a que se propõe a pesquisar, essa
seleção, no primeiro momento, dá-se com as leituras de títulos, resumos e palavras-chave
desses trabalhos.
Sobre os resumos, Ferreira (2002), ancorando-se na visão Bakntiniana de gênero do
discurso, expõe as características desse gênero acadêmico, material base que se utiliza para a
constituição do corpus do estado da arte e estado do conhecimento. Assinala, a autora, que o
resumo é um gênero discursivo da esfera acadêmica, com determinada finalidade e com certas
1305

condições específicas de produção.


A seguir, esquematizamos as descrições de Ferreira (2002. p 268) sobre os resumos
de trabalhos publicados:
Página

ISBN: 978-85-7621-221-8
“Informam ao leitor, de maneira rápida, sucinta
Padronização e objetiva sobre o trabalho do qual se originam.”
“Apresentam aspectos das pesquisas a que se
Conteúdo temático referem.”
“Anunciam o que se pretendeu investigar,
Estrutura composicional apontam o percurso metodológico realizado,
descrevem os resultados alcançados.”
“Linguagem concisa e descritiva, formada de
Estilo verbal frases assertivas, em um certo tom “enxuto”,
impessoal, sem detalhamento, com ausência de
adjetivos e advérbios.”
Tabela 1 descrição dos resumos por Ferreira (2002) enquanto gênero do discurso.
Fonte: Produção da autora (2017)

Pesquisas desenvolvidas utilizando resumos de dissertações e teses, estudos sobre as


produções em congressos e publicações em periódicos na área em mais de uma esfera, são
denominados “estado da arte”, ao passo que, os estudos que abarcam apenas um âmbito das
publicações sobre a temática estudada, é denominado de “estado do conhecimento”
(ROMANOWSKI e ENS, 2006)
Nesta investigação, optamos por trabalhar com a pesquisa do tipo estado do
conhecimento, pois preferimos restringir nosso corpus apenas a uma única fonte básica, as
dissertações disponíveis no Banco de Dados da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal
de Nível Superior (CAPES)

2 Procedimentos metodológicos

Em face dos nossos objetivos, nossa pesquisa se caracteriza como pesquisa


exploratória e descritiva, em contato com o nosso objeto, desenvolveremos trabalho de
análise, avaliação e categorização de elementos selecionados. Quanto aos procedimentos
técnicos, denomina-se como pesquisa bibliográfica, tendo em vista que nosso corpus de
análise está constituído por textos acadêmicos.
Tomando por base teórica e metodológica as orientações de Romanowski (2002, p.15-
16), adotaremos os seguintes procedimentos: 1) definição dos temas ou conceitos para
direcionar as buscas: no nosso caso, iniciamos as investigações a partir dos seguintes
conceitos e palavras-chave: “letramento digital” “ensino de espanhol” “educação a
1306

distância” “ensino de espanhol na EaD”, tais termos abrangem as temáticas que norteiam
nossa pesquisa, por averiguação apenas dos títulos, optamos seguir com o último; 2)
Página

localização dos bancos de pesquisas, teses e dissertações, catálogos e acervos de bibliotecas,

ISBN: 978-85-7621-221-8
biblioteca eletrônica: nosso locus de investigação se restringirá ao Banco de teses e
dissertações da CAPES, pois preferimos desenvolver pesquisa do tipo estado do
conhecimento; 3) estabelecimento de critérios para a seleção do material que compõe o corpus
do estado do conhecimento; 4) levantamento de dissertações catalogadas, nosso trabalho de
avaliação estará pautado somente nas dissertações publicadas no período de 2010 a 2017; 5)
coleta do material de pesquisa disponibilizados eletronicamente; 6) leitura das publicações
com elaboração de síntese preliminar, considerando o tema, os objetivos, as problemáticas,
metodologias, conclusões, e a relação entre o pesquisador e a área; 7) organização do relatório
do estudo compondo a sistematização das sínteses, identificando as tendências dos temas
abordados e as relações indicadas nas teses e dissertações; 8) análise e elaboração das
conclusões preliminares.
Para iniciar a nossa investigação, elegemos como indicador de buscas dos resumos, as
seguintes temáticas e palavras-chave: “letramento digital na EaD” “língua estrangeira” e
“ensino de espanhol na ead”, elencamos o conceito “Letramento digital na EaD” por se
aproximar mais da temática em foco, letramento digital, ao passo que nos outros conceitos
pesquisados, encontramos muitas dissertações voltadas para o ensino de língua materna ou
ensino na EaD relacionado a outras áreas do conhecimento.
Dado este primeiro momento, passamos as etapas subsequentes de seleção de títulos
afins ao nosso objeto, quantificação de dados, a partir de filtros, conforme é demonstrado na
tabela a seguir:

Filtros Categorias selecionadas Quantidade de trabalhos


identificados
Sem filtros “Letramento digital na EaD” 809.609
Tipo Dissertações 567.028
Ano 2010 - 2017 273.878
Grande área do Linguística, Letras e Artes 18.148
conhecimento
Área do conhecimento Linguística e Letras / Línguas 12.891
estrangeiras modernas
Área avaliação Letras e Linguística 12.891
1307

Área de concentração Ensino-aprendizagem de língua e


literatura / Ensino e formação de
240
professor de língua e de literatura /
Página

Estudos da linguagem/ Estudos


Linguísticos

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Nome do programa Linguagem e ensino / Letras: ensino de 240
língua e literatura / Letras / Linguística
Tabela 2 Quantidade de dissertações identificadas a partir de filtros no Banco de Teses e Dissertações da
CAPES.
Fonte: Produção da autora (2017)

A categorização desses dados e sua discussão são apresentadas na seguinte seção, de


Análise de dados e discussão na tentativa de elucidar o entendimento e a caracterização dos
trabalhos que vem sendo produzidos nesta década sobre a promoção do letramento digital na
EaD.

3 Análise de dados e discussão

Após a primeira triagem, a partir do tema indicador de busca “Letramento digital” na


EaD” e seleção de filtros, identificamos 240 dissertações que tratam, de algum modo, sobre o
tema investigado, porém, só pelo títulos, fizemos outro levantamento e este número de 240,
limitou-se a 43 trabalhos, pois os outros, foram descartados de nossa pesquisa, mesmo com os
filtros, apresentavam temas que se distanciavam do que nos propomos a investigar, tais com:
Letramento literário, Ensino de língua materna, Ensino de inglês, Ensino de matemática à
distância, letramento no livro didático do ensino fundamental, ENEM, Prova Brasil, dentre
outros. Este segundo levantamento foi feito com o intuito de afunilarmos mais a nossa
pesquisa e nos aproximar de nosso corpus de investigação.
Em análise, distribuímos os 34 trabalhos selecionados em cinco categorias de temas
predominantes: Letramento Digital (ld) / Ensino na Ead (EEAD) / Ensino de Línguas
Estrangeiras (ELE)/ Gênero do Discurso (GD) / Tecnologias Digitais (TD)

QUANTIDADES DE
CATEGORIAS DISSERTAÇÕES
LD/ TD 02
EEAD -
ELE 02
EE 12
GD 15
LD / EEAD 02
1308

LD / ELE / EEAD 01
Tabela 3 Quantitativo de dissertações que enquadram nas categorias estabelecidas acima.
Fonte: Produção da autora (2017)
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ISBN: 978-85-7621-221-8
Os trabalhos que se enquadraram na categoria LD ou LD junto a outras categorias
como estão dispostos no quadro anterior, serão explanados e detalhados na tabela seguinte:

ÁREA DE
Nº TÍTULO CONCENTRAÇÃ MESTRAD ANO AUTO IES
O O R
Letramento digital e 2013 Denyse UFTO
T1 formação de Letramento digital Letras: Mota da
professores: limites e e formação de Ensino de Silva
potencialidades na professor Língua e Ataide
perspectiva do plano Literatura
nacional de formação
de professores (parfor)
Tecnologias na sala de Práticas de 2014 Lorena UFCG
T2 aula: Possibilidades de multiletramentos Linguagem e Guimara
usos na perspectiva em sala de aula ensino es Assis
dos multiletramentos
Formação de 2014 Marta UFCG
T3 professores para Letramento digital Linguagem e Jordann
letramentos digitais: e formação de ensino a
do oficial ao olhar professor Queiroz
docente Ourique
s
As tecnologias digitais Multimodalidade 2017 Rodrigo UEMT
T4 e seus efeitos nas nas produções de
práticas de digitais Linguística Santana
língua(gem): um Silva
estudo na perspectiva
dos sistemas
adaptativos complexos
A formação do Ensino de línguas 2014 Fernand UFRS
T5 professor para o ensino adicionais em Letras a
de língua adicional em ambientes digitais e Cardoso
ambientes digitais com formação de de
docência professores. Lemos
campartilhada
Tabela 4 Dissertações que tratam da promoção do Letramento Digital.
Fonte: Produção da autora (2017)

As dissertações que se referem ao LD a partir dos filtros, aqui, selecionados, são


datadas entre os anos de 2013 a 2017, duas de programas de pós-graduação em Letras, duas
de Linguagem e ensino e uma de Linguística.
Após esta segunda triagem, debruçamo-nos nas leituras dos resumos e palavras-chave
1309

dos trabalhos selecionados, em alguns casos, tivemos que recorrer a dissertação na integra,
pois alguns resumos não constavam as categorias essenciais para a nossa análise, tais como:
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ISBN: 978-85-7621-221-8
tema, objetivos, metodologia, resultados e conclusões. Essas categorias estão explanadas na
tabela a seguir:

RESULTADOS/
TRABALHO OBJETIVOS METODOLOGIA CONCLUSÕES
S
Identificar, descrever e Âmbito da Constatou-se que os
analisar as práticas de fenomenologia, com estudantes do curso de
letramento digital no abordagem letras do PARFOR da
PARFOR, alcançando quantiqualitativa e estudo UFT de Araguaína
professores formadores de caso. enfrentam algumas
e em formação, dificuldades quando
T1 avaliando suas precisam lidar com as
interações na construção novas tecnologias, no
do conhecimento, caso aqui estudado, o
mediados pelo computador e suas
computador e seus ferramentas digitais.
artefatos. Todavia, o letramento
digital se dá, mesmo em
detrimento das
dificuldades, como é o
caso do acesso ao
ambiente virtual Moodle,
quando precisam acessar
os conteúdos que são
postados pelos
professores formadores on
line.
Investigar os usos que Abordagem qualitativa e Constatou-se que os usos
professores e alunos de base exploratória. das tecnologias em sala de
fazem em sala de aula aula possibilitaram que os
T2 das tecnologias a fim de alunos pudessem emitir
perceber em que suas opiniões acerca da
sentidos esses usos temática estudada e, por
possibilitam práticas de diversos momentos,
multiletramentos assumirem o
protagonismo no processo
de ensino/aprendizagem,
além de vivenciarem
práticas multiletradas por
meio das propostas de
atividades trazidas pelos
professores. Dessa forma,
diante dos resultados
obtidos foi possível
1310

constatar que as
tecnologias estão
presentes nas salas de aula
e que seus usos
Página

acontecem das mais


diversas maneiras, além

ISBN: 978-85-7621-221-8
verificar a preocupação
que os professores
tiveram em oportunizar o
contato com práticas
multiletradas
proporcionando
momentos de interação e
colaboração entre os
alunos
Investigar a formação Abordagem qualitativa e Constata que as reflexões
oferecida/vivenciada base documental dos professores,
pelos professores para distanciam-se do que é
T3 uso das TIC na escola, proposto oficialmente em
tendo em vista a relação aos conteúdos e
promoção de propostas para o curso. Os
letramentos digitais. dados apontam que se
priorizou a aprendizagem
de conhecimentos de
natureza técnica, não
havendo a intersecção
entre a dimensão técnica e
reflexiva da formação,
privando o engajamento
dos professores, em
práticas efetivas de
letramentos digitais.
Identificamos, ainda, que
os professores também se
manifestam em relação ao
caráter limitado do curso,
revelando um
descompasso entre a
formação e as práticas
sociais de uso das
tecnologias.
Compreender, com base Do tipo exploratória e Analisou as práticas de
na Teoria dos Sistemas descritiva com abordagem língua(gem) de alunos e
Adaptativos Complexos qualitativa. compreendeu que as
(SAC), como usuários tecnologias digitais
T4 da internet utilizam causam um efeito de
recursos da desestabilização, pois
multimodalidade para proporcionam aos alunos
enriquecer seu texto, a abertura para expandir
enunciados e demais seus horizontes em
produções digitais. relação aos temas
trabalhados na disciplina,
contribuindo também para
1311

formação desses alunos


enquanto futuros
professores. Todo o
processo da pesquisa foi
Página

norteado pela teoria dos


Sistemas Adaptativos

ISBN: 978-85-7621-221-8
Complexos (SAC)
(HOLLAND, 1999), por
entender que a
multimodalidade
configura-se em um
sistema complexo, pois
apresenta
comportamentos caóticos,
imprevisíveis, sensíveis às
condições iniciais, não
lineares, abertos, auto-
organizáveis e dinâmicos.
Contribuir para o debate Abordagem qualitativa de Os dados analisados
sobre eventos de cunho etnográfica. evidenciaram que na
formação de professores modalidade de ensino a
T5 construídos localmente distância, há condições de
pelos participantes em se verificar as ações
um contexto de ensino e levadas a cabo pelos
aprendizagem online. participantes depois dos
eventos de formação.
Nesse sentido, este estudo
pôde ampliar o conceito
de evento de formação de
momento propício para
aprender a ensinar e a ser
professor em um
determinado contexto
para no momento em que
os participantes
aprenderam a ensinar e a
ser professor em um
determinado contexto,
pois foi possível
relacionar ações dos
professores nas suas
práticas pedagógicas à
discussão e à reflexão que
haviam construídos com
os demais participantes.
Tabela 5 Dissertações que tratam da promoção do Letramento Digital.
Fonte: Produção da autora (2017)

As dissertações expostas na tabela 5, envolvem dois elementos fundamentais para o


contexto da formação docente em uma sociedade digital, com exceção do segundo texto, os
outros tratam da questão do Letramento digital inserido na formação do professor.
1312

No que se refere ao aporte teórico, especificamente, sobre o Letramento e Letramento


Digital, identificamos os autores mais referenciados nos trabalhos: Soares (2002; 2004);
Kleiman (2005); Ribeiro (2012); Marcuschi e Xavier (2010); Rojo (2009); (2012), Braga
Página

(2010; 2013); Coscarelli (2010) e Street (2010).

ISBN: 978-85-7621-221-8
A metodologia ou procedimentos metodológicos, foi a categoria mais difícil e mais
complexa de se identificar nos trabalhos analisados, pois alguns autores não detalham esta
informação ou a encontramos de forma implícita nos procedimentos.
Referindo-nos a cada trabalho especificamente, constatamos que as conclusões do T1,
pareceu-nos contraditórias, a autora assinala muitos entraves na questão da promoção do
letramento digital em um curso de licenciatura a distância, em seguida afirma haver o
letramento, porém não deixa claro em que momentos se dá esta promoção.
O T2, na conclusão, avalia positivamente as práticas de multiletramentos no contexto
analisado, pois afirma que estas práticas proporcionam aos aprendizes momentos de
protagonismo. Já no T3, concluiu-se que há um descompasso entre teria e prática no curso
investigado, não havendo de fato a promoção do letramento.
No T4 que investigou as práticas de linguagem, o pesquisador concluiu que estas
práticas contribuem para formação dos alunos enquanto futuros professores e constatou que
multimodalidade configura-se em um sistema complexo.
Por fim, nas conclusões do T5, identificamos que a pesquisa está mais voltada para a
formação docente em um contexto de educação online do que, propriamente, a questão do
letramento digital
Em análise global dos trabalhos selecionados, ponderamos que apesar de termos
flagrado algumas pesquisas que exploram os objetos de estudo que nos propomos a investigar
(Letramentos digital, EaD, Livro didático e ensino de espanhol) estes objetos, não são
abordados em um mesmo contexto de investigação, no máximo encontramos trabalhos que
relacionam apenas dois.

Considerações

Ao darmos início a este trabalho de investigação, conjecturamos que dificilmente


encontraríamos, no repositório escolhido, algum trabalho acadêmico semelhante ao tema em
foco: “práticas de letramento digital no livro didático de curso superior de espanhol na
modalidade a distância”, tínhamos em mente esta dedução, pois a temática investigada,
1313

relaciona a promoção do letramento digital a mais de um objeto de ensino. Dada a análise,


constatamos que quase todos os trabalhos, contemplava apenas um objeto de ensino ou no
máximo dois e no que se refere a estas práticas ao ensino de espanhol a distância, não
Página

encontramos nenhum trabalho, confirmando assim, nossas hipóteses.

ISBN: 978-85-7621-221-8
Diante do exposto, cabe ressaltar que se faz necessário mais estudos e pesquisas sobre
a promoção do letramento digital na EaD, visto que a compreensão leitora e a escrita são as
habilidades mais utilizadas nesta modalidade de ensino.
O contato com as tecnologias é uma exigência posta pelo contemporâneo, os
estudantes, principalmente, de um curso a distância, que a ferramenta essencial de estudo, é o
computador, precisam saber lidar com esta realidade, se não tiverem o letramento promovido,
comprometerá todo o processo de estudos e, consequentemente, a sua formação acadêmica.

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ISBN: 978-85-7621-221-8
GT13 – OLHARES PARA O ENSINO/APRENDIZAGEM DA LÍNGUA ESPANHOLA
E PARA AS LITERATURAS ESPANHOLA E HISPANO-AMERICANAS

LAZARILLO DE TORMES NA SALA DE AULA: PROPOSTAS DIDÁTICAS PARA O


ENSINO DA HABILIDADE LEITORA EM ESPANHOL COMO LE

Vitoria Girlianny Mendes da Silva.


(UERN - Universidade do Estado de Rio Grande do Norte).

Introdução

A prática da leitura se faz presente em nossas vidas desde o momento em que


começamos a compreender o mundo à nossa volta. Ler é fundamental. E o domínio desta
habilidade permite ao homem o acesso ao conhecimento adquirido pela humanidade ao longo
da história. E quando falamos em aquisição de conhecimentos, nada melhor do que
utilizarmos a literatura clássica, uma vez que esta é composta por uma diversidade de formas
de diferentes épocas e lugares, além de ampliar nossa capacidade de compreender o mundo.
O problema é que no ensino de línguas estrangeiras, no Ensino Médio, percebemos
que a literatura não está tão presente nas salas de aula quanto deveria. Isso acontece porque
para alguns educadores a literatura é um conteúdo muito complexo para se trabalhar numa
aula de ELE. Essa maneira de pensar se justifica, no caso do espanhol, pela carga horária de
quarenta e cinco minutos por semana, podendo assim, dificultar o ensino linguístico na sala de
aula.
Outro fator, é que em muitas escolas as leituras são impostas, através do cumprimento
de tarefas escolarizadas, ler passa a ser compreendido pelos alunos como uma obrigação,
acarretando em muitos o desinteresse na leitura. É necessário permitir que nossos alunos
vejam o quão bom é ler. Estimulá-los e abrir espaço na nossa sala para a leitura. A questão é
mais ampla, vem da falta de estímulos por parte das instituições escolares, para que o jovem
saiba valorizar o hábito de ler, tornando-o não um “sacrifício”, mas um “ato prazeroso”
(MARTINS, 2003).
E através da utilização da literatura clássica, podemos sim reverter essa situação,
promovendo atividades lúdicas, criativas, interativas, que promovam nos educandos o gosto
1316

pela leitura literária, o gosto em aprender e adquirir novos conhecimentos. Apresentando-os a


literatura clássica, de uma maneira envolvente, atrativa. Dessa forma estaremos permitindo
que em nossa sala de aula, ocorra troca de experiências, ocorra à interação entre textos e
Página

leitores. É fundamental que o texto literário faça parte da sala de aula, permitindo assim, que

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os nossos alunos estabeleçam, um maior contato com a língua e a cultura estrangeira. De
acordo com Ítalo Calvino (1993), os clássicos são livros que, quanto mais pensamos conhecer
por ouvir dizer, quando são lidos de fato mais se revelam novos, inesperados, inéditos. O
texto clássico sempre tem algo a nos ensinar, a nos mostrar, a nos surpreender.
Por esse motivo, nosso objetivo geral é analisar a eficácia da literatura, através da obra
literária Lazarillho de Tormes, para o desenvolvimento da habilidade leitora, nas aulas de
Espanhol como língua estrangeira.

1 Contribuições da literatura para o desenvolvimento leitor

No ensino de línguas estrangeiras, muitos educadores utilizam o texto literário em


segundo plano, eliminando inclusive a literatura da lista de gêneros textuais trabalhados em
sala de aula. Isso ocorre porque muitos consideram essa modalidade textual inacessível,
complexa, e até pouco eficaz para o desenvolvimento da competência comunicativa. Porém,
essa realidade vem tomando uma nova roupagem na nossa atualidade, uma vez que o uso da
literatura no ensino de língua tem crescido ao longo dos anos como auxílio para a
aprendizagem de um idioma. E muitos educadores já enxergam a literatura como elemento
que estimula o desenvolvimento da competência escrita, leitora e literária do aprendiz.
Inserir a literatura em sala de aula é, de certa forma, um desafio, primeira pelo fato de
muitos estudantes acharem o texto literário “chato”, extenso, até mesmo pela falta da pratica
da leitura por parte do aluno; assim a, literatura acaba sendo ignorada pelo estudante. Algo
lamentável já que a leitura é fundamental na aprendizagem e conhecimento do aluno.
Segundo, (JOUVE, 2002, p. 137-138 apud PADILLA, 2010):

[...] O texto literário remete sempre a uma pluralidade de significações [...].


O leitor dispõe assim de certa latitude quanto a sua interpretação. A leitura
literária é, mais do que qualquer uma, marcada subjetivamente:
enriquecedora no plano intelectual autoriza também o investimento
imaginário [...]. De essa forma desenha se para cada indivíduo um espaço
ambíguo onde graças à leitura, o psíquico e o social reformulam suas
relações. [...] “a modelização por uma experiência de realidade fictícia”.
Trata-se aqui do papel pedagógico da leitura. Modelizar uma situação é
1317

propor ao leitor experimentar no modo imaginário uma cena que ele poderia
viver na realidade: a leitura, em outras palavras, permite “experimentar”
situações.
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Tendo em vista as considerações de JOUVE (2002), percebemos que a leitura literária
é um “mundo” de informações, no qual o leitor obtém um posicionamento crítico individual,
ou uma interação direta com o texto, assim o leitor poderá atribuir sentido ao que é lido, se
“aproximando” da leitura e da literatura.
Essas limitações, em relação ao preconceito contra o texto literário em sala de aula
acabam fazendo com que professor, se limite, muitas vezes, ao livro didático como único
instrumento de ensino. Neste ponto o educador deve fazer e ser a diferença, não permitir que a
falta de interesse dos alunos o impeça de utilizar o texto literário em classe, quebrar essas
barreiras negativas por parte dos estudantes e mostrar que a literatura pode sim ser trabalhada
de uma maneira envolvente, atrativa, que através dela é possível conhecer traços e costumes
de outros países, por exemplo, e de outras épocas, dessa maneira motivando no aluno o
interesse em querer aprender através da literatura.
No tocante ao ensino de uma língua estrangeira, a presença do texto literário é de suma
importância, pois permite que o aluno se aproxime da cultura da LE em questão. Filho (2003,
p.7-8) menciona que:

O texto literário é um objeto de linguagem ao qual se associa uma


representação de realidades físicas, sociais e emocionais mediatizadas
pelas palavras da língua na configuração de um objeto estético. O texto
repercute em nós na medida em que revele emoções profundas,
coincidentes com as que em nós se abriguem como seres sociais. O artista
da palavra, copartícipe da nossa humanidade, incorpora elementos dessa
dimensão que nos são culturalmente comuns.

Isso significa que, o texto literário é uma forma de linguagem que se apropria de uma
língua para existir. Sendo assim, percebemos que os textos literários são instrumentos
totalmente ligados à cultura de um determinado lugar, o que proporciona ao leitor uma
aproximação com as formas de vidas narradas nesse texto. O poder da literatura no que diz
respeito à aprendizagem e neste caso a aprendizagem de uma LE, é nítido, o texto literário
permite ao leitor a encarar o horror, as crueldades, ou o amor e a felicidade, ou seja, permite
que o leitor viaje por um mundo, às vezes, encantador, fantástico que ao mesmo tempo retrata
a de realidade. No caso da obra literária Lazarillo de Tormes, por exemplo, através da leitura
1318

podemos perceber as dificuldades financeiras, a fome, a desigualdade social, vivenciada por


Lázaro (personagem principal), que desde muito cedo teve que aprender a viver de uma
Página

maneira difícil e encarar uma sociedade injusta e desigual.

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A obra Lazarillo de Tormes é uma novela picaresca espanhola do século XVI, com
autor desconhecido. A novela está dividida em sete tratados, referentes aos mestres que
Lázaro serviu. Ao todo Lázaro teve oito amos, no tratado primeiro, o avarento cego que o
ensinou o quanto a vida é difícil, no tratado segundo um clérigo egoísta e avarento que mal
dava comida a Lázaro, no tratado terceiro um escudeiro que não tinha nem o que comer, no
tratado quarto um Fraile da graça que caminhava muito e foi o primeiro a presentear Lázaro
com um par de sapatos.
No tratado quinto um buldero mal caráter que enganava as pessoas junto com um
aguacil, no sexto um pintor de pandeiros que Lazaro logo deixou de servir , e um capelão ,
que foi o primeiro a da um trabalho no qual Lazaro recebesse seu próprio dinheiro, e no
tratado sétimo um alguacil, com o qual Lázaro durou muito pouco tempo, porque lhe pareceu
que o ofício de seu amo era perigoso. E no final da história, Lázaro consegue um ofício
de pregonero em Toledo e o arcipreste de San salvador, ao ver a habilidade e bom viver
de Lázaro o casou com uma criada sua, e finalmente chegou um período de estabilidade em
sua vida, e para ele não tinha nada melhor.
Lazarillo de Tormes é uma obra incrível, um livro muito interessante e certamente é
uma excelente ferramenta que auxilia no ensino de uma LE. Não é apenas um livro onde as
aventuras engraçadas de um menino que aprende com base de golpes como é difícil a vida,
mas também um romance picaresco que mostra uma nova forma de conceber a realidade da
sociedade narrada, retrata uma sociedade antiga, que equivale a sociedade de hoje. É uma
crítica clara à sociedade da época, e a igreja.
Com a utilização da obra literária Lazarillo de Tormes é possível trabalhar em sala de
aula os diversos problemas sociais, aproximando assim os alunos, não só com as diferenças
sociais, mas também com a língua estrangeira, neste caso a língua espanhola, os levando a
navegar pelo mundo da leitura, aprender mais sobre uma determinada cultura, se emocionar,
se entristecer, ou até mesmo se irritar com os amos ambiciosos e egoístas de Lázaro e torcer
para que no fim ele finalmente possa ser feliz. Com a utilização da obra literária em sala de
aula, o professor, além de aproximar o aluno com a LE, também pode ensinar valores e
costumes que servem para a vida toda.
1319
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2 Procedimentos metodologicos

A pesquisa é um meio de aprofundar o saber, um importante instrumento na construção do


conhecimento. Segundo Gil (2007, p. 17), pesquisa é definida como o:

[…] procedimento racional e sistemático que tem como objetivo


proporcionar respostas aos problemas que são propostos. A pesquisa
desenvolve-se por um processo constituído de várias fases, desde a
formulação do problema até a apresentação e discussão dos resultados.

Durante a realização deste trabalho foram utilizadas múltiplas bibliografias que


serviram de subsídio solido, entre elas: Filho (2003),Ítalo Calvino (1993), entre outros autores
que deram luz à organização das nossas ideias. Conforme esclarece Boccato (2006, p. 266), “a
pesquisa bibliográfica busca a resolução de um problema por meio de referenciais teóricos
publicados, analisando e discutindo as várias contribuições científicas”.
Além de pesquisa de cunho bibliográfico, realizou-se uma pesquisa de campo, na qual
foram aplicadas duas atividades a partir da obra literária Lazarillo de Tormes, para verificar o
potencial didático do texto literário para o desenvolvimento da leitura em ELE no Ensino
Médio.

3 Aplicação das atividades e discursão dos resultados

As duas atividades foram elaboradas a partir da obra literária Lazarillo de Tormes, e


aplicadas no dia sete de abril na escola Escola Estadual Eliseu Viana, localizada no município
de Mossoró, pertencente à Rede Pública de Ensino do Rio Grande do Norte, com uma turma
de terceiro ano do Ensino Médio, a mesma turma que aplicamos o questionário, a fim de
verificar o potencial didático do gênero literário no desenvolvimento da habilidade leitora em
ELE no Ensino Médio.
Utilizamos duas aulas para aplicar as atividades, como a aula de Espanhol só tem
quarenta cinco minutos, utilizamos a aula seguinte, que o professor tinha faltado, e assim foi
possível aplicar as duas no mesmo dia. Para responder as atividades, foi necessária a leitura
1320

da obra adaptada Lazarillo de Tormes. Os alunos tiveram um mês para lê-la, e durante as
aulas a professora sempre abordava algo relacionada à obra, para ter certeza que eles estavam
Página

desenvolvendo a leitura. A turma foi dividida em grupos de três, promovendo assim a

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interação entre os alunos, que segundo Vygotsky, “a interação com outras pessoas é essencial
ao seu desenvolvimento do ser humano”. (apud DAVIS e OLIVEIRA, 1993, p. 56).
A primeira atividade se chama Batalla Naval, consistia num jogo de perguntas e
respostas, que durou vinte e cinco minutos. A turma foi dividida em dois grupos. O jogo foi
desenhado no quadro, e os alunos escolheram um número e uma letra, se o quadro escolhido
tivesse um P acompanhado de um número seria uma pergunta relacionada à obra literária
Lázarillo de Tormes, se fosse um submarino já ganhava o ponto direto, e se fosse água não
pontuava. A equipe que mais pontou ganhou a competição e uma caixa de doces. Segue
abaixo a atividade I aplicada:

Atividade I – Batalla Naval - 3º ANO

1 2 3 4 5
A P8 P4

B P6 P10

C P1

D P5

E P2 P9 P3

Perguntas :
1- Cite dois personagens que você considera marcantes na história e explique o porquê da
sua escolha.
2- Quais os assuntos abordados na obra Lazarillo de Tormes?
3- Como se chama o primeiro amo de Lázaro? Como ele era?
1321

4- Durante a leitura da obra, percebemos que o narrador participa de toda história. Quem
é o narrador?
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5- Quais os problemas sociais retratados na obra Lazarillo de Tormes? Hoje em dia ainda
existem esses tipos de problemas?
6- Quais as astucias que Lázaro fazia para se alimentar? Você acha a atitude dele certa?
7- Você acha que à obra faz crítica a igreja? Explique sua resposta.
8- Além do cego, qual amo chamou mais sua atenção? Justifique sua resposta.
9- De acordo com a obra, como era a sociedade daquela época? Tem alguma semelhança
com a nossa sociedade?
10- Descreva como era o personagem Lázaro.
A segunda atividade se chama El Juicio de Lazarillo , e levou trinta e cinco minutos
para ser executada. Consistia num julgamento. Para sua realização precisou de alguns
personagens, que foram os próprios alunos. Lázaro de Tormes foi julgado pelos furtos e
enganos cometido, e no final foi dada a sentença de culpado ou inocente.
Segue a aixo a atividade II aplicada:

Atividade II - El Juicio de Lazarillo - 3º ANO.

Lázaro cometeu muitos furtos, enganou muita gente e fez trapaças… Será que seus erros são
justificáveis? Veremos a seguir!

Julgamento de Lazarillo de Tormes, pelos furtos e enganos que comenteu.


PARTICIPANTES:
RÉU: Lazarillo de Tormes
ADVOGADO CONTRA: O Cego
ADVOGADO A FAVOR: O escudeiro
JUIZ: Arcipreste de San salvador
JURADOS: O povo
ESCRIVÃO: Pintor de panderos
TESTEMUNHAS A FAVOR: O capelão, Fraile da Graça
TESTEMUNHAS CONTRA: O Buldeiro, O Clérigo.
1322

Durante a aplicação da primeira atividade, percebemos que ouve total interação, os


alunos se articulavam para decidir qual letra e número escolher, e cada um fazia questão de
Página

completar a resposta da pergunta feita, com sua opinião. Quando questionados sobre os dois

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personagens que eles consideraram mais marcantes na história, logo citaram o Cego e o
menino Lázaro, foram varias as opiniões, entre uma delas uma aluna falou que cego ele não
foi totalmente ruim para Lázaro, pois apesar dele ser duro com o menino, de não dar comida e
faze-lo mendigar, ensinou a Lázaro a ser astuto, esperto, mostrou o quanto a vida era difícil.
E quando questionados se as astucias que Lázaro fazia para se alimentar eram corretas,
as respostas foram sim. Afirmaram que o que ele fazia era para sua sobrevivência, foi o que a
vida ensinou, ou ele enganava, pedia esmola a até roubava, ou morria de fome. Como
abordamos na página 23 (vinte e três) do nosso referencial teórico que a fome é algo
fortemente retratado na obra. Lazaro passa necessidades com quase todos os seus amos,
algumas vezes chegando quase a desmaiar de tanta fome, por isso era obrigado a conseguir
comida de qualquer custo.
Durante a discursão os educandos comentaram ainda que, Lázaro assemelhava-se a
muitas crianças de hoje em dia, que também precisam dar um jeito de se alimentar para não
morrer, o que leva a muitos a entrarem na vida do crime, se envolver com coisa errada.
Questionamos também se a sociedade da época tem alguma semelhança com a nossa
sociedade, e além de afirmarem que sim, citaram que existem pessoas que são da igreja e que
não agem como tal, assim como o clérigo que nem comida dava a Lázaro. Pessoas ambiciosas
e egoístas, que usam da inocência dos outros só para se dar bem, como o buldero, que
enganava as pessoas junto a o alguacil. Como relatamos em nosso referencial teórico, que a
história retrata problemas da sociedade daquela época, que ainda existem na nossa sociedade.
Uma obra verdadeira e atemporal, já que todos esses problemas mencionados ocorrem sim na
nossa sociedade atual.
A segunda atividade, El juicio de Lazarillo foi bastante divertida. Eles encarnaram os
personagens. O cego advogado de acusação sempre recordando as coisas ruins que Lázaro o
fez como quase ter o matado. Já o escudeiro advogado de defesa sempre afirmando que
Lázaro era um menino de bom coração, e tudo que fez foi pela sua sobrevivência.
Durante as discussões do julgamento as testemunhas a favor, o capelão, Fraile da
Graça relataram como Lázaro era corajosos, sempre disposto a ajudar e trabalhar. Enquanto o
Buldeiro e o Clérigo, que eram as testemunhas contra, afirmaram que o menino era trapaceiro,
1323

e não passava de um ladrão.


As opiniões estavam divididas entre os jurados, uns acreditavam na inocência do
menino, outros não. E o Pintor de pandeiros que era o escrivão, no canto da sala anotando
Página

tudo. Depois de todas as opiniões, acusações e defesas, o Juiz Arcipreste de San salvador, deu

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a sentença tão esperada. Lázaro foi declarado inocente! A excelência afirmou que tudo que ele
fez foi por sobrevivência, sua sentença era apensas pedir desculpa aos que se sentiram
ofendidos com suas astucias e trapaças.
A partir das atividades aplicadas, alcançamos nosso objetivo de comprovar de
comprovar a eficácia do texto literário. Ouve total interação e participação na sala de aula em
ambas as atividades, os alunos se articulavam para escolher a letra e o número no caso do
jogo da batalha naval, e defendiam com garra suas opiniões no julgamento de Lázaro. E além
de termos aproximamos o aluno com a LE, com o texto literário, também trabalhamos
problemas sociais, quando durante as respostas das atividades as alunos faziam comparações
da sociedade de Lázaro com a nossa, com os problemas que Lázaro enfrentava, que ainda é
enfrentado por muitas crianças em nossa sociedade.
É possível sim utilizar o texto clássico em sala de aula. É sempre importante ressaltar
que os textos selecionados pelo professor devem levar em consideração as escolhas pessoais e
a interação entre leitores e textos, para que assim possamos possibilitar que os alunos
vivenciem de verdade o texto literário. E durante as aplicações das atividades mostramos aos
nossos alunos quanto pode ser prazeroso o contato com a literatura clássica, numa aula
diferente, interativa e educativa. É preciso oferecer a oportunidade aos nossos alunos, de
disfrutarem de todos os benefícios e aprendizados que o texto literário oferece.

Considerações finais

É necessário resgatar o interesse da importância de utilizar a literatura clássica no


Ensino Médio. Percebemos através de nossas pesquisas, os benefícios que ela nos
proporciona, sendo de fundamental importância para o desenvolvimento educativo e social do
aluno, para atualização de sua aprendizagem, para a difusão e construção do conhecimento,
enfim, para a inclusão social, promovendo valores éticos na formação dos jovens estudantes
do Ensino Médio.
Outro fator observado foi que a escola e o professor tem que estarem juntos na
inserção da leitura na escola, incentivando e mostrando a sua importância, que está além da
1324

decodificação do texto, buscando mostrar o texto literário como um instrumento útil para a
construção da aprendizagem e para a realização de valores humanistas que transformem os
nossos alunos em seres humanos melhores, os quais vejam no personagem Lázaro, da obra
Página

Lazarillo de Tormes, ao qual utilizamos em nosso trabalho, determinação, coragem, ousadia

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na superação dos desafios que teve que enfrentar para comer, para sobreviver em seu dia-a-
dia, contribuindo para a formação das personalidades e valores de vida dos educandos.
Foi atestada que a utilização do texto literário é uma ferramenta promissora para o
desenvolvimento da habilidade leitora nas aulas de ELE. O que falta é incentivar os
educandos, é oferecer espaço em nossa sala de aula para que ela habite e cumpra seu papel
transformador, considerando que foram diversas as experiências exitosas dos alunos através
do texto clássico, fazendo-os manifestar sentimentos e opiniões e desenvolver a capacidade
crítica, ajudando-os a melhorar como ser social e como alunos, proporcionando uma prática
rica em aprendizagem. A utilização da literatura clássica, através de atividades didáticas a
partir da obra Lazarillo de Tormes é sim, um instrumento de ensino de qualidade da
habilidade leitora.

Referências

CALVINO, Ítalo. Por que ler os clássicos. In: ______. Por que ler os clássicos. Tradução:
Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 9-16.

DAVIS, Claudia. OLIVEIRA, Zilma. Psicologia na educação. São Paulo: Cortez, 1993

FILHO, D. P. A Linguagem literária. 7. ed. São Paulo: Ática, 2003.

GIL, A. C. Como elaborar projetos de pesquisa. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2007.

JOUVE, V. A leitura. Trad. Brigitte Hervor. São Paulo: Editora UNESP, 2002.

MARTINS, Ivanda. A literatura no ensino médio: quais os desafios do professor? In:


BUZEN, Clécio; MENDONÇA, Márcia (Orgs.). Português no ensino médio e formação de
professor. São Paulo: Parábola, 2006, p. 83-102.

MARTINS, S. C. S.; JÚNIOR, H. G. M. Literatura clássica: um bem indispensável para o ser


humano, com formas mais complexas e refinadas do pensamento e do fazer artístico In:
Seminário PIBID UNEMAT, 5ª. (JC), 2013, Cáceres/MT. Anais... Cáceres/MT: Pró-Reitoria
de Ensino de Graduação - PROEG, 2013. Vol. 2 (2013). Cód. 9733.
1325
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PÔSTER

O DISCURSO POLÍTICO NA AULA DE LÍNGUAS: UMA PRÁTICA DE


LETRAMENTO MULTIMODAL CRÍTICO

José Roberto Alves Barbosa (UERN)214


Alice Chaves de Lima (UERN)215
Ítala Carvalho Lima (UERN)216

Considerações Iniciais

A globalização e o avanço tecnológico têm estreitado as relações sociais e culturais


entre diversos países. Os Estados Unidos da América (EUA) é um país que ocupa posição de
destaque no mundo, sua economia e política exercem papéis fundamentais e sua cultura
influencia diversas pessoas.
Diante desse contexto, destacamos, na política americana, o discurso utilizado por
Donald J. Trump, atual presidente dos Estados Unidos, depois desse ter sido eleito presidente
daquele país, em decorrência da disputa de 2016, conquistando o voto e confiança dos seus
eleitores. O interesse surgiu, por conseguinte, da necessidade de identificar os motivos pelos
quais Trump conseguiu chegar à presidência, enfrentando a ex-candidata do partido
democrata, Hillary R. Clinton.
Inicialmente, destacamos que o discurso de Trump se destacou pela sua ousadia, em
alguns casos, posicionamentos bastante polêmicos. Os críticos destacaram, principalmente, o
discurso de ódio, xenofóbico, ao tratar sobre temas como terrorismo, Islamismo, entre outros.
Podemos analisar os vídeos e observar a forma como o ex-candidato se apresenta, como se
constrói na imagem e no discurso.
Percebemos também a importância de favorecer um letramento crítico de alunos de
línguas, por isso, decidimos levar o material analisado para uma escola pública. O objetivo
dessa fase da pesquisa, de caráter intervencionista, foi conscientizá-los a respeito da política
americana e sua influência no mundo.
1326

214
Docente do Departamento de Letras com habilitação em língua inglesa e suas respectivas literaturas, Campus
Central, UERN. e-mail: joseroberto@uern.br
215
Discente do curso de Letras com habilitação em língua inglesa e suas respectivas literaturas, Campus Central,
UERN. e-mail: msalicechaves@gmail.com
Página

216
Discente do curso de Letras com habilitação em língua inglesa e suas respectivas literaturas, Campus Central,
UERN. e-mail: itala_lima@yahoo.com.br

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Para isso, realizamos na aula de língua inglesa e língua portuguesa, em duas turmas de
9º ano do Ensino Fundamental, em uma escola pública de Mossoró/RN, uma experiência de
letramento multimodal crítico, utilizando-se dos trechos de alguns vídeos considerados os
mais polêmicos do ex-candidato, atentando para as marcas verbais e não verbais.
Para a análise crítica dos vídeos, nos fundamentamos nas contribuições de Fairclough
(2001; 2003), Fairclough e Fairclough (2012) que propõem uma Análise de Discurso Crítica
(ADC), que atente tanto para a dimensão social (FOUCAULT, 1987) quanto textual do
discurso (HALLIDAY, 1985). Para Fairclough e Fairclough (2012), o discurso político pode
ser analisado atentando para suas bases argumentativas, sendo esse ideologicamente marcado
(THOMPSON, 1985), e hegemonicamente constituído (GRAMSCI, 1988; 1995) a fim de
produzir consenso.
Para a análise visual do material coletado, consideraremos os teóricos da Gramática do
Design Visual, propostos por Kress e van Leeuwen (2006), inspirado na Linguística
Sistêmico-Funcional de Halliday (1985), e das contribuições de Bateman e Schimdt (2012),
com vistas à análise multimodal de filmes.
Com vistas ao letramento crítico dos alunos, essa experiência destaca as práticas
sociais, maneiras diversas de uso da língua escrita, regulamentada pelas instituições sociais
(JANKS, 2010). Partindo desse princípio, elaboramos questionários a respeito do assunto
tratado, a partir dos quais os alunos tiveram liberdade de se posicionar.
A necessidade desta pesquisa surge principalmente para os alunos da Escola Pública,
por serem vítimas de violência simbólica (BOURDIEU, 1998), e por serem penalizados por
causa das políticas públicas, que cerceiam seus direitos democráticos. Diante desse
desempoderamento, defendemos a importância da escola ensinar a língua (a leitura e
produção de textos), mas sem deixar de atentar para a formação crítica, com vistas à mudança
social (FAICLOUGH, 2001).

Metodologia

Nessa pesquisa, trabalhamos com análise textual-discursiva. Essa escolha se mostrou


1327

importante porque os textos têm efeitos na vida social das pessoas, ao mesmo tempo que
percebemos que apenas os componentes discursivos são insuficientes para interpretar
condições sociais. A fundamentação teórica da nossa pesquisa contou com diversas teorias,
Página

sendo as principais a Análise do Discurso Crítica (ADC) e a Gramática do Design Visual

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(GDV). Para a análise da ADC precisamos determinar quais os significados acionais,
representacionais e identificacionais, podendo ser substituídos pelos termos: gênero, discurso
e estilo. Observemos a tabela abaixo, adaptada de Gondim (2016).

Tabela 3 Significados da ADC


Investigar como o texto se posiciona nas
SIGNIFICADO ACIONAL (GÊNERO) interações sociais e como contribui para
eventos sociais concretos.
É o conceito de discurso como forma de
SIGNIFICADO REPRESENTACIONAL
representar a realidade. Diferentes realidades,
(DISCURSO)
diferentes discursos.
SIGNIFICADO IDENTIFICACIONAL É o conceito de estilo que constitui a
(ESTILO) identidade do ator social no texto.

Para a análise da GDV, analisamos os elementos não verbais dos vídeos a partir das
três metafunções desenvolvidas por Kress e van Leeuwen (2006). Vemos na tabela abaixo,
adaptada de Gondim (2016), uma síntese das metafunções:

Tabela 4 Metafunções da GDV


Estrutura Narrativa
Responsável pelas estruturas (participantes da imagem engajam
que constroem visualmente a em ações)
REPRESENTACIONAL
natureza dos eventos e suas Estrutura Conceitual
particularidades. (personagens não engajam em
ações)
Contato (para onde o ator da
imagem olha)
Responsável pela relação entre Distância Social (plano da
INTERATIVA os participantes e o leitor imagem)
observador. Perspectiva (ângulo da imagem)
Modalidade (coloração da
imagem e sua confiabilidade)
Valor da Informação
(posicionamento dos elementos
dentro da composição visual)
Responsável pela estrutura e Saliência (importância dada a um
COMPOSICIONAL
formato do texto. determinado elemento da imagem)
Estruturação (qual o nível de
conexão entre os elementos da
imagem)
1328

Em seguida estão os procedimentos do projeto:


1. Para o início da pesquisa fizemos leitura e aprofundamento dos textos sobre a ADC e a
Página

GDV;

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2. Trabalhamos com o gênero vídeo e selecionamos três deles com diferentes discursos
de Donald Trump;
3. Selecionados os vídeos, partimos para a transcrição dos trechos que iríamos utilizar;
4. A partir das transcrições, realizamos a Análise Discursiva, visando identificar os
elementos ideológicos presentes nos discursos do candidato;
5. Após a Análise Discursiva, seguimos para a Análise Imagética, ou seja, atentando para
os elementos visuais dos vídeos;
6. Tendo sido realizadas as análises tanto do texto verbal quanto do não-verbal,
elaboramos os questionários que iríamos utilizar na experiência de Letramento;
7. Com os questionários elaborados entramos em contato com um professor de Língua
Inglesa e uma professora de Língua Portuguesa de uma escola pública do Município
de Mossoró;
8. Tendo conseguido a autorização e o apoio dos professores e da escola, realizamos a
experiência de Letramento em duas turmas do 9º Ano do Ensino Fundamental, uma de
Língua Inglesa e outra de Língua Portuguesa;
9. Na experiência de Letramento iniciamos perguntando quem era o Donald Trump, que
na época havia ganhado as eleições presidenciais nos Estados Unidos. Depois
apresentamos o primeiro vídeo e a entrega dos primeiros questionários com perguntas
sobre política e do vídeo apresentado em sala de aula. Em seguida, apresentamos o
segundo vídeo, onde foi explicado como iriamos fazer as análises do discurso e da
imagem. Depois apresentamos o terceiro e último vídeo, onde entregamos o segundo
questionário. Em nossas análises comparamos se houve alguma mudança nas
respostas dos alunos.
10. Realizada a experiência de Letramento, partimos para as análises dos questionários.
Por motivos éticos, os nomes dos alunos não foram mencionados, ao invés, utilizamos
códigos: AI1A e AI1D (Aluno Inglês 1 Antes e Aluno Inglês 1 Depois) ou AP20A e
AP20D (Aluno Português 20 Antes e Aluno Português 20 Depois);
11. Tanto os alunos de Inglês quanto os de Português estavam na faixa etária entre 13 e 15
anos. As turmas tinham, aproximadamente, 30 alunos cada. Para efeito de análise,
1329

foram utilizados 10 questionários, considerando as respostas mais produtivas dos


alunos.
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Análise

Para a realização desta pesquisa, identificamos o gênero textual predominante nos


vídeos. Dos vídeos assistidos, três foram selecionados para análise e experiência de
letramento. Fizemos a intervenção em duas turmas de 9º (nono) ano do Ensino Fundamental
de uma escola municipal de Mossoró (RN),
uma de Português e outra de Inglês.
Um dos vídeos analisados e
trabalhados em sala de aula com a cena do
vídeo ao lado, onde o então candidato
Donald Trump participava do segundo
debate presidencial com a candidata Hillary
Clinton. Selecionamos o trecho do debate
em que Donald Trump é questionado sobre

Figura 5 Donald Trump no segundo debate um vídeo que foi divulgado, no qual esse
presidencial dos EUA em 9 de Outubro de 2016.
confessa, orgulhosamente, que agrediu
mulheres sexualmente. O apresentador se dirige a Trump e diz: “você entende isso?”. Ao ser
questionado sobre suas palavras, ele afirma:

No, I didn’t say that at all. I don’t think you understood what was said – this
was locker room talk. I’m not proud of it. I apologize to my family. I
apologize to the American people. Certainly, I’m not proud of it. But this is
locker room talk. You know, when we have a world where you have ISIS
chopping off heads, where you have – and frankly drowning people in steel
cages –, where you have wars, and horrible, horrible sights all over… where
you have so many bad things happening, this is like medieval times.
Não, eu não disse nada disso. Eu não acho que você entendeu o que era –
esta foi uma conversa privada. Eu não tenho orgulho disso. Peço desculpas à
minha família. Peço desculpas ao povo americano. Certamente eu não estou
orgulhoso disso. Mas isso é uma conversa privada. Você sabe, quando temos
um mundo onde você tem o EI (Estado Islâmico) decepando cabeças, onde
você tem – e, francamente, afogando pessoas em gaiolas de aço –, onde você
tem guerras, e horríveis, horríveis visões por todos os lados... onde você tem
tantas coisas ruins acontecendo, isso é como os tempos medievais.
1330

Demonstramos nossa análise dos aspectos verbais e não verbais desse trecho na
seguinte tabela:
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Tabela 5 Análise GDV e ADC
GDV – METAFUNÇÃO REPRESENTACIONAL
Narrativa Narrativa
Conceitual Não convém
GDV – METAFUNÇÃO INTERATIVA
Contato: Oferta/Demanda Oferta (ele não olha diretamente para a câmera)
Distância social: Plano fechado/Plano
Plano médio (ator mostrado até a cintura)
médio/Plano aberto
Ângulo frontal (ator representado de frente para
Perspectiva: Ângulo frontal/vertical/oblíquo
o observador)
Destaque para o ator/Cores principais: azul e
Modalidade: Cor/Contexto/Profundidade/Luz
vermelho
GDV – METAFUNÇÃO COMPOSICIONAL
Valor da informação: Central ou
Central
polarizado/Vertical ou horizontal
Saliência: Cor/Tamanho/Contraste/Primeiro
Ator em primeiro plano
plano
Estruturação: Altamente/Fracamente conectado Altamente conectado

ADC
Gênero: Ação Debate
Discurso: Representação Político-hegemônico
Estilo: Identidade Seriedade/Poder/Arrogância

Na experiência de letramento era importante que os alunos conseguissem analisar


criticamente os aspectos verbais e não verbais dos vídeos, onde não seria necessária a
utilização de todos os termos utilizados na explanação da teoria, mas seus principais pontos.
Dos 10 questionários escolhidos estabelecemos os seguintes critérios para análise:
conhecimento sobre política; características do gênero série; o discurso de Donald Trump; o
estilo de Donald Trump; os aspectos representacionais; os aspectos interativos; e os aspectos
1331

composicionais da imagem. Para fins de simplificação iremos apontar apenas algumas das
repostas analisadas.
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Na primeira categoria analisamos as respostas que os alunos deram no início da
pesquisa. Avaliamos seus interesses pelo assunto política, se eles tinham algum conhecimento
sobre o governo brasileiro ou Donald Trump. O aluno AP34A diz “O Brasil está passando por
muitas dificuldades por causa da corrupção praticada pelos políticos e também por causa da
má gestão do governo. A economia brasileira só irá reerguer se tiver um governo com o
propósito de fazer o Brasil avançar”. Alguns alunos ofereceram respostas interessantes como
esta, onde eles demonstram consciência sobre situação política nacional.
Na terceira categoria os alunos iriam observar qual o discurso predominante na fala de
Trump nos vídeos assistidos. Os alunos deveriam identificar dois principais tipos de discurso
nos vídeos assistidos: o discurso xenofóbico e o machista. Mas os alunos poderiam descrever
da forma como eles entenderam. No terceiro vídeo Trump está em um debate contra a
candidata Hillary Clinton, e tenta defender-se da acusação de abuso sexual ao mudar de
assunto para o Estado Islâmico. O AI13D percebeu isso e disse “Parese ser um discurso mais
defensivo como se ele estivesse se protegendo”. Não foi apenas esse aluno que percebeu essa
atitude do candidato. O AI1D percebeu Donald Trump “distorcendo as palavras”, numa
tentativa de se esquivar da verdade.
Na sétima categoria eles iriam observar os elementos da imagem e seus personagens e
como eles se integravam para formar um todo coerente. Um bom exemplo de mudança é o
aluno AP33D, que no primeiro questionário não respondeu, mas que no segundo comentou
sobre a composição da imagem, onde “as cores das bandeiras presentes por trás dele e na
própria roupa, o modo que ele fala, a forma em que ele tenta mudar de assunto”. Mesmo que
ele tenha introduzido elementos do discurso em sua observação, ainda assim soube identificar
o valor dos elementos da imagem.

Considerações finais

Para a realização desta experiência, levamos em consideração que estaríamos lidando


com adolescentes, utilizamos de imagens onde, de forma didática, explicamos a teoria, tendo
os discursos do candidato Donald Trump como base para nossa experiência. Dos
1332

questionários analisados, percebemos que ainda muitos dos alunos não têm interesse por
política, mas alguns gostaram da experiência, ressaltando a importância de se falar desse
assunto em sala de aula.
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A política internacional nos leva a conhecer e ampliar nossa visão sobre o que
acontece no mundo. Os jovens precisam obter mais deste conhecimento e, para isto, é
necessário entender como a essa funciona, inclusive no Brasil. Ao destacarmos o ex-
candidato, agora atual presidente Donald Trump, mostramos um pouco dos recursos
utilizados em sua campanha, onde seu discurso e imagem chamam atenção não apenas dos
americanos, mas do mundo.
Reforçamos a importância de aplicar experiências como essa a fim de empoderar os
jovens e incentiva-los a desenvolver seu pensamento crítico e refletir sobre a política e suas
complexidades. Apesar da resistência por parte de alguns ante ao assunto exposto,
acreditamos que a realização deste trabalho irá despertá-los a uma nova visão, investindo não
apenas em seu conhecimento, mas também na formação como cidadãos, críticos em relação
ao discurso político, e quiçá, em busca de mudança social.

Referências

BATEMAN, J.A., SCHIMDT, K.H. Multimodal film analysis: how films mean. Routledge:
New York, London, 2012.

BOURDIEU, P. A Escola conservadora: as desigualdades frente à escola e à cultura. In:


NOGUEIRA, M. A.; CATANI. A. (orgs.). Escritos de educação. Petrópolis: Vozes, 1998.

FAIRCLOUGH, N., FAIRCLOUGH, I. Political discourse analysis: a method for advanced


students. London: Routledge, 2012.

FAIRCLOUGH, N. Discurso e mudança social. Trad. de Izabel Magalhães. Brasília: Editora


UNB, 2001.

FAIRCLOUGH, N. Analyzing discourse: textual analysis for social research. London:


Routledge, 2003.

FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Trad. L. F. B. Neves. 3. ed. Rio de Janeiro:


Forense-Universitária, 1987.

GONDIM, E. A. Análise crítico-visual e discursiva dos vídeos do candidato à presidência


dos EUA: Donald Trump. Monografia de Graduação. Departamento de Línguas Estrangeiras,
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, 2016. 56 p.
1333

GRAMSCI, A. A Gramsci Reader: selected writings 1916-1935. FORGACS. D. (org.).


London: Lawrence and Wishart, 1988.
Página

GRAMSCI, A. Concepção dialética da história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,


1995.

ISBN: 978-85-7621-221-8
HALLIDAY, M. A. K. Introduction to functional grammar. London: Edward Arnold,
1985.

JANKS, H. Literacy and power. Routledge: New York, London, 2010

KRESS, G.; VAN LEEWEN, T. Reading images: the grammar of visual design. London:
Routledge, 2006.

THOMPSON, J. B. Ideologia e cultura moderna. Petrópolis: Vozes, 1985.

1334
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PÔSTER

CHARGE: UMA LEITURA DISCURSIVA SOB A PERSPECTIVA DA ANÁLISE DO


DISCURSO FRANCESA

Amanda Mikaelly Nobre de Souza (UERN – CAMEAM)


Bárbara Viviany de Souza (UERN – CAMEAM)
Jailson José dos Santos (UERN – CAMEAM)

Considerações iniciais

A linguagem é o recurso pelo qual o sujeito, em sociedade, exerce poder em relação


aos demais. Neste entendimento esta pesquisa surge com a necessidade de refletir acerca da
influência de fatores exteriores à língua que incidem sobre a compreensão de determinados
enunciados, isto é, considerar a relação entre o social, o ideológico é a História na construção
de sentidos do texto, enquanto unidade discursiva.
Nesta perspectiva de contextualização, o presente trabalho objetiva analisar como o
interdiscurso e a memória discursiva atuam enquanto elementos propícios para a construção
de sentidos no gênero discursivo charge, de forma a estabelecer um encadeamento entre o
discurso e as práticas sociais, isto é, relacionar sujeito, discurso e linguagem.
Considerando a especificidade do referido gênero, que satiriza um fato, em geral, de
cunho político, utilizaremos como corpus de pesquisa, duas charges, retiradas do blog Mais
Pajeú, por Romero Morais, que retratam a situação política do Brasil no ano de 2016, com o
processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff, à luz da Análise do Discurso de
linha Francesa (doravante AD).
O estudo encontra-se embasado nas discussões teóricas de FERNANDES (2007) e
MUSSALIM, F. & BENTES, A. C. (2006). Também consideramos as contribuições de
(BRASIL) 2011, que é um trabalho de caráter explanatório, em que o autor expõe os
princípios e algumas noções conceituais acerca desse campo de estudo.
Ademais, o referido trabalho encontra-se organizado em duas seções. A primeira
consiste no embasamento teórico da pesquisa, que reflete a respeito do conceito de sujeito
discursivo, bem como a compreensão acerca do interdiscurso e da memória discursiva, à luz
1335

da Análise do Discurso Francesa (doravante AD). A segunda limita-se à análise do corpus


coletado, duas charges de cunho político, que foram retiradas do blog Mais Pajeú, por
Página

Romero Morais, com link disponível nas referências.

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1 A constituição do sujeito discursivo para a análise do discurso

O sujeito ou sujeito discursivo, para a Análise do Discurso, está associado a “um ser
social”, e para compreendermos como este se constitui é importante considerar que não se
refere a um indivíduo empírico, isto é, a um único ser específico, não se trata de um “eu”
individualizado (sujeito falante), mas sim do “eu” coletivo, construído a partir do conjunto
com outras vozes (sujeito falando). Em outras palavras, o sujeito discursivo é heterogêneo,
polifônico, inserido em um contexto social, dentro da sociedade, marcado sócio-histórico
ideologicamente. Sob essa perspectiva, Fernandes (2007, p. 29) salienta que:

[...] o sujeito discursivo, deve ser considerado sempre como um ser social,
apreendido em um espaço coletivo; portanto, trata-se de um sujeito não
fundamentado em uma individualidade, em um “eu” individualizado, e sim
um sujeito que tem existência em um espaço social e ideológico, em um
dado momento da história e não em outro.

O discurso é a prática de linguagem em movimento, que se encontra situado em


diferentes contextos de interação, seja ele: político, religioso, midiático e etc. Os discursos da
linguagem são produzidos através dos sujeitos, isto é, o “eu” e o “outro” envolvidos em um
contexto social, e essas, chamadas, relações sociais se constroem em âmbitos diferentes, na
qual os discursos circulados se adequam conforme o propósito comunicativo dos falantes.
Brasil (2011, p. 3) realça essa ideia ao enfatizar que “o sujeito na teoria discursiva se constitui
na relação com o outro, não sendo origem do sentido, está condenado a significar e é
atravessado pela incompletude”. A linguagem se dá pelo seu processo histórico e ideológico e
os sujeitos se constroem pela interação social.
É pertinente ressaltar que, os usuários da língua atribuem diferentes sentidos a
linguagem, uma vez que ela é construída, modificada e compreendida através do seu uso, no
contexto sociocomunicativo, isto é, pela interação social. Fernandes (2007) diz que é a partir
disso que se passa a discutir os dois tipos de heterogeneidade: a constitutiva (todo o discurso
que constitui socialmente o sujeito) e a mostrada (a voz do outro fica explícita no discurso do
sujeito). Essa relação se dá na formação do sujeito com a linguagem formando, pois o viés do
1336

inconsciente.
A significação das palavras para produção de sentidos no discurso não é estável, fixa,
não está no próprio vocábulo, mas sim no contexto em que são empregadas. Dessa forma, não
Página

lhes servem os sentidos dicionarizados, denotativos, uma vez que uma determinada palavra ou

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expressão admite diferentes significados, a depender da circunstância em que foi empregada,
e estes significados podem extrapolar o campo do conhecimento linguístico, dicionarizado, e
abarcar o conhecimento enciclopédico ou de mundo. Nesta perspectiva, Fernandes (2007, p.
21) enfatiza que: “[...] Os sentidos são produzidos face aos lugares ocupados pelos sujeitos em
interlocução. Assim, uma mesma palavra pode ter diferentes sentidos em conformidade com o lugar
socioideológico daqueles que a empregam”.
Ademais, é notório destacar que o sujeito discursivo não é definido, não é fixo, uma
vez que se encontra inserido em diferentes conjunturas sociais, sua identidade ainda não lhe
pertence por sempre estar em formação, em continuidade, sofrendo modificações ao longo do
tempo, dos acontecimentos, ao qual chamamos de polifonia da linguagem por ser constituída
de alterações sob diferentes vozes do sujeito em seu discurso.

1.2 O interdiscurso e a memória discursiva para a Análise do Discurso

Para compreender o interdiscurso e a memória discursiva, enquanto categorias do


discurso, é necessário considerar que o discurso não é fixo, ao contrário ele é instável, ou seja,
sofre modificações dependendo do posicionamento do sujeito discursivo, isto é, o contexto
social, histórico e ideológico em que está inserido. Por exemplo, o discurso de um indivíduo
sobre a política brasileira há 10 (dez) anos atrás não é o mesmo de hoje, uma vez que o fator
social, que sofreu várias modificações, interfere na totalidade do seu discurso. Neste
enquadramento, Mussalim & Bentes (2006, p. 122) comenta que “A Análise do Discurso
considera como parte constitutiva do sentido o contexto histórico-social [...]”.
O interdiscurso, para a Análise do Discurso Francesa, é visto como sendo um discurso
dentro do outro, dentro do interior do discurso, ou seja, é a mobilização, a transferência de
discursos, uma vez que a formação de um discurso é resultado da combinação de outros
discursos, já existentes em sociedade. Em outras palavras, um discurso se constrói através do
“já dito”, fazendo surgir outros discursos a partir deste, que se transformam e modificam-se
socialmente em diferentes contextos. Sobre isso, Fernandes (2007, p. 51) acentua que:

[...] toda formação discursiva apresenta, em seu interior, a presença de


1337

diferentes discursos, ao que, na Análise do Discurso, denomina-se


interdiscurso. Trata-se conforme assinalamos, de uma interdiscursividade
caracterizada pelo entrelaçamento de diferentes discursos, oriundos de
diferentes momentos na história e de diferentes lugares sociais.
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Os estudos acerca da memória discursiva ou coletiva, na perspectiva da Análise do
Discurso Francesa, trazem maior enfoque para aquilo que é acionado pelo leitor no instante
em que entra em contato com o texto, isto é, a referência que o leitor faz de um mundo
sociocultural, na qual partilha de acontecimentos, ideologias, e etc, o que particular à cada
indivíduo. Por essa razão, compreendemos que o discurso, além de heterogêneo e coletivo,
engloba aquilo que é anterior e exterior ao texto, através do interdiscurso, apresentado
anteriormente. Nesta dialética, Fernandes (2007, p. 59) destaca que:

[...] Os discursos exprimem uma memória coletiva na qual os sujeitos estão


inscritos. É uma memória coletiva, até mesmo porque a existência de
diferentes tipos de discurso implica a existência de diferentes grupos sociais.
Um discurso engloba a coletividade dos sujeitos que compartilham aspectos
socioculturais e ideológicos, e mantém em contraposição a outros discursos.
Trata-se de acontecimentos exteriores e anteriores ao texto, e de uma
interdiscursividade, refletindo materialidades que intervêm na sua
construção.

Dessa forma, é importante frisar que os fatores históricos-sociais, que envolve a


enunciação do discurso, é pertinente a produção de sentidos. A memória discursiva ou
coletiva e o interdiscurso são duas categorias da Análise do Discurso Francesa, as quais o
leitor utiliza no momento em que entra em contato com o texto e realiza as práticas de leitura.
Ambas as categorias da AD dialogam na materialidade linguística, conforme as condições
sócio-históricas-sociais em que são postas.

3 Análise dos dados

De acordo com Cleudemar Fernandes (2007) o discurso é a prática da linguagem em


movimento, proferido nos diferentes contextos sociocomunicativos, que se utiliza de
elementos linguísticos para conferir existência real, mas que se apropria necessariamente da
exterioridade da língua, isto é, dos elementos sociais e ideológicos. Por isso, é relevante
considerar o acontecimento anterior e exterior a que se refere o enunciado discursivo para a
produção dos sentidos por parte do leitor.
1338

O corpus desta pesquisa é composto de duas charges, de cunho político, retiradas do


blog Mais Pajeú, por Romero Morais, onde propomos descrever e analisar estas, que retratam
a situação política do Brasil no ano de 2016, com o processo de impeachment da presidenta
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Dilma Rousseff, de forma a estabelecer uma ponte dos discursos com as práticas sociais, isto

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é, as relações existentes entre o discurso, a linguagem e o sujeito. Trataremos de explanar,
através da leitura discursiva das charges, os conceitos apresentados no tópico anterior: a
memória discursiva ou coletiva e o interdiscurso.
Na primeira charge, temos uma materialidade linguística, que expressa a ideia de
convencimento com relação a posição ideológica de um sujeito discursivo, na qual
observamos a defesa do processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff,
representado, no segundo quadrinho, como um lobo mascarado “em pele de cordeiro”, que é
um discurso já existente, na verdade um ditado popular, que nesse contexto expressa
imperatividade.

Vejamos a charge:

Fonte: http://www.maispajeu.com.br/search/label/Charge

Nessa charge, vê-se a enunciação do discurso, “o impeachment da presidenta é o


melhor para o país!!”, de um sujeito caracterizado como ovelha, que em seguida, ao retirar a
máscara, percebe-se que é um lobo. O sujeito caracterizado de lobo, dá-se a entender que seja
a mídia, ou até mesmo os políticos quando este pronuncia a seguinte frase: “Acredite em
mim!”, percebe-se então que nesse trecho existe uma influência do povo, ou seja, o
telespectador que vê-se atento ao que se passa na televisão. Todo esse discurso faz referência
ao impeachment da presidenta Dilma Rousseff, situado em um momento da história,
composto por ideologias e marcado por um acontecimento do passado.
É válido mencionar que os dois enunciados, presentes nos quadrinhos da charge, são
1339

frases exclamativas, que representa expressividade, cujo objetivo é convencer o leitor. No


segundo quadrinho a exclamação é de caráter imperativo, o enunciado de forma apelativa,
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“pede” e/ou “ordena” que o leitor acredite no seu discurso ideológico, marcado socialmente
por vários fatores, apresentado no quadrinho anterior.
A partir disso, a charge nos submete a um resgaste da memória discursiva que é
estabelecido pela saída da presidenta Dilma Rousseff, em que o telespectador é influenciado,
levando a acreditar que com a saída desta, o país mostrará garras e obterá melhorias. De fato,
o chargista apresenta um teor crítico, que de forma humorística representa o cenário
construído no ano de 2016, com o processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff,
mas para que se obtenha significado, é necessário que o leitor possua conhecimento de
mundo, necessariamente de cunho político.
Na segunda charge, vê-se a enunciação de um discurso, ao lado da imagem do palácio
do planalto, em Brasília – Distrito Federal, o que faz referência a um acontecimento situado
em um dado momento da história, constituído de ideologias e socialmente marcado, ao qual o
leitor precisa ter conhecimento para compreensão do referido gênero textual.

Vejamos a charge:

Fonte: http://www.maispajeu.com.br/search/label/Charge

A imagem faz com que o leitor se submeta a um resgaste da memória discursiva, que é
estabelecido pela imagem do palácio do planalto, em Brasília – Distrito Federal, e do discurso
estratégico: “[...] se trabalhou tanto assim, [...]”, destacado multimodalmente, utilizado pelo
chargista para provocar o riso. O referido enunciado, faz referência ao episódio da longa
votação na câmara dos deputados, para seguimento ou não do processo de impeachment da
1340

presidenta Dilma Rousseff, que de fato levou horas e horas.


O interdiscurso, presente na referida charge, se refere a um posicionamento comum,
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de alguns brasileiros pelo fato da votação ter se realizado em um final de semana, que

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geralmente é a folga dos trabalhadores, e por ter sido duradoura, o que ocasionou a espécie de
um trabalho “árduo”, que não é comum, culturalmente, dessa classe política que nos
representa. Assim, essa interdiscursividade, reflete uma ressignificação de um acontecimento
anterior, onde chargista expõe de forma de cômica, exprimindo uma memória coletiva na qual
os sujeitos a que se referem estão inscritos.
O riso provocado no leitor, em ambas as charges, só acontece devido a mobilização do
acontecimento e/ou discurso passado, a que a charge se refere, isto é a compreensão da crítica
do chargista com tal produção, o que implica motivar fatores sociais, ideológicos e históricos.
Em outras palavras, o leitor, ao entrar em contato com o texto, passa por um processo de
uniformização da construção de sentidos, que é a significação, conforme os elementos
socioculturais, exteriores à língua.
Dessa forma, a análise das charges de cunho político, aqui apresentadas, são práticas
sociais discursivas onde o leitor, para compreensão e produção de sentidos, faz uso do
interdiscurso e da memória discursiva, apresentadas pela Análise do Discurso Francesa. É
relevante mencionar a relação que se pauta nos campos de estudos da linguagem, existentes
entre, a linguagem, o sujeito e o discurso que proporciona a reflexão e a interpretação dos
discursos inscritos nas práticas sociais, isto é, o interlocutor (sujeito) se insere no contexto
discursivo que o texto traz (linguagem) e compreende-o através da menção do “já dito”
anteriormente (discurso).

Considerações finais

Nas duas charges analisadas neste trabalho, vimos como o discurso, na materialidade
linguística da charge, encontra-se marcado socialmente no indivíduo, enquanto sujeito
discursivo, sob um ponto de vista social, histórico e ideológico, que se relacionam para a
produção dos efeitos de sentidos.
Dessa forma, podemos dizer que o interdiscurso e a memória discursiva, enquanto
elementos propícios para a compreensão da linguagem discursiva no gênero charge, são
reconhecíveis quando acionados pelo leitor, uma vez que é a partir deles que o texto passa a
1341

ter significação. É importante destacar também que o discurso nunca é original, uma vez que
faz referência a um outro já existente, dialogando de forma a compor um novo discurso
inscrito na História, social e ideologicamente.
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À vista disso, com essa pesquisa, podemos dizer que o leitor compreende uma
determinada prática discursiva, a partir da posição em que ocupa no âmbito social, isto é, no
contexto sociocomunicativo, e que ao entrar em contato com o texto aciona as discussões
apresentadas pelo campo da Análise do Discurso Francesa. Desse modo se concretizam as
contribuições da AD, na tessitura deste gênero.
Os resultados deste trabalho realçam a subjetivação do leitor em atribuir sentido a
imagem e aos enunciados, enquanto discursos, existentes na materialidade linguística do
texto, a partir da posição que ele ocupa na sociedade.

Referências

BRASIL, Luciana Leão. Michel Pêcheux e a teoria da Análise de Discurso: Desdobramentos


importantes para a compreensão de uma tipologia discursiva. Revista Linguagem, Estudos e
pesquisas: UFG/Campus Catalão v.15, n. 01, p. 171-182, jan/jun 2011.

FERNANDES, Claudemar Alves. Análise do discurso: reflexões introdutórias. Goiânia:


Trilhas Urbanas, 2005.

MUSSALIM, F. & BENTES, A. C. (Orgs.) Introdução à linguística: domínios e fronteiras.


v. 2 – 5. ed. – São Paulo: Cortez, 2006, p. 121-130. Disponível em:
<http://www.maispajeu.com.br/search/label/Charge>. Acesso disponível em: 30 de maio de
2017.

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RETEXTUALIZAÇÃO E ANÁLISE DE GÊNEROS COMO ESTRATÉGIAS


DIDÁTICAS PARA O ENSINO DA LÍNGUA PORTUGUESA

Anderson Victor Gonçalves de Medeiros (UERN)217


Kemila Kelly Costa Bezerra (UERN)218
Jammara Oliveira Vasconcelos de Sá (DLV/UERN)

1 Introdução

Este trabalho busca contribuir com os estudos linguísticos, fomentando a discussão


sobre as teorias dos gêneros textuais e suas implicações para o ensino de língua portuguesa. E
através de tais discussões, buscamos apresentar a retextualização como estratégia didático-
metodológica no ensino da análise dos gêneros, podendo representar importante recurso para
os professores do ensino básico.
Para essas reflexões, os estudos a respeito dos gêneros e retextualização, e de como
tais assuntos se interdependem, foram realizados através de uma pesquisa bibliográfica, com
base nas teorias de Bakhtin (1997), Travaglia (1993), Marcuschi (2001), e na tese de
doutorado de Benfica (2013).
Os objetivos gerais deste trabalho estão ligados às explanações acerca dessas teorias,
além de retomar a discussão sobre os gêneros textuais, e a análise de gêneros no contexto
escolar, reconhecendo a retextualização como estratégia para facilitar a compreensão dos
alunos a respeito do assunto.

2 A Teoria Dos Gêneros Textuais

É consenso entre estudiosos, tais como Antunes (2007); Mendonça (2006), que o
ensino convencionado estritamente sob o olhar da gramática normativa está cada vez mais
fadado ao fracasso. Este ensino unicamente prescritivo apresenta diversas consequências, tais
como, o desinteresse por parte dos alunos, por se tratar de um ensino descontextualizado com
a realidade do aluno e unicamente normatizador. Teorias linguísticas como as teorias dos
1343
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217
Graduando em Letras/Português pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN).
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Graduanda em Letras/Português pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN).

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gêneros textuais, tem sido (desde os PCNs) o ponto de partida para diversas discussões, no
que diz respeito ao ensino da língua portuguesa.
Antes de tais reflexões, é importante que seja retomada a discussão sobre a teoria dos
gêneros. Bakhtin (1997) postula que “qualquer enunciado considerado isoladamente é, claro,
individual, mas cada esfera de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis
de enunciados, sendo isso que denominamos gêneros do discurso”. Na perspectiva de
Bakhtin, é correto afirmar que os gêneros são considerados “relativamente estáveis” por
serem simultaneamente, iguais e diferentes, ou seja, os discursos são estáveis por que nunca
há discursos novos, sempre alguém retoma algo que já foi dito anteriormente, e são outros por
que sempre que algo já dito é retomado, é posto de maneira criativa e adequada de acordo
com os propósitos do texto. Como afirma Bakhtin (1997, p. 302):

As formas estáveis do gênero do enunciado. O querer-dizer do locutor se


realiza acima de tudo na escolha de um gênero do discurso. Essa escolha é
determinada em função da especificidade de uma dada esfera da
comunicação verbal, das necessidades de uma temática (do objeto do
sentido), do conjunto constituído dos parceiros, etc.

Além disso, pode-se atribuir essa citação, ao processo de transmutação de gêneros, que
é, em suma, o processo de modificação que os gêneros passam, podendo suscitar alterações
em seu conteúdo temático, na estrutura composicional ou no estilo. Alguns gêneros mudam
de acordo com o suporte, como é o caso do blog, que pode ser atribuído como a evolução do
gênero diário, ou o e-mail que seria a evolução da carta, dentre outros.

2.1 Os gêneros no contexto do ensino prescritivo

Conforme Bagno (1999) o ensino de escrita nas escolas ainda é um problema social,
haja vista que o ensino é convencionado geralmente sob a perspectiva da gramática
normativa, de modo restritivo, que embora tenha a sua importância, e seja de certa forma o
ponto de chegada para o domínio de uma boa escrita, essa perspectiva apresenta diversos
problemas, pois, o ensino de língua portuguesa nas escolas deve ser tratado de forma
1344

contextualizada, de forma não excludente àqueles que não dominam a norma culta, que
muitas vezes se dá pelo fato do contexto social em que o aluno está inserido.
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Dessa forma, a proposta para o ensino de escrita, é que a gramática normativa não se
detenha apenas às classificações, nomenclaturas e análises morfológicas e/ou sintáticas
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isoladas, mas que o conhecimento das regras ortográficas seja utilizado na construção de
discursos de forma contextualizada com o que o aluno tem internalizado, algo que muitas
vezes não é concretizado. Conforme Mendonça (2006) o professor de escrita não deve utilizar
a gramática como a única forma de escrever bem, mas como um parâmetro, uma ferramenta,
pois a prática é a única forma de se chegar a um bom domínio da leitura e da escrita.
Uma estratégia que auxiliaria o processo de aquisição de leitura e escrita, seria o
ensino da análise de gêneros textuais, possibilitando que o aluno domine esses conteúdos,
para que acumule o seu conhecimento sobre produção textual.
Destarte, o domínio dos conhecimentos sobre gêneros textuais atua como facilitador
no processo de aquisição de leitura e escrita, além disso, quanto mais conhecimentos sobre
gêneros o aluno tiver internalizado, mais alternativas ele terá para utilizar no contexto da
atividade comunicativa, haja vista que ele poderá fazer as adequações de qual gênero utilizar
em cada esfera comunicativa, de acordo com a necessidade enunciativa da situação. O
professor de língua portuguesa, deve utilizar metodologias que despertem um posicionamento
crítico dos alunos, que eles apreendam a utilizar os mecanismos do texto de forma efetiva, Cf.
(MARCUSCHI, 2008).
Neste sentido, Schneuwly (1988, p. 50) argumenta que “aprender a produzir textos
escritos, implica sempre aprender a agir linguisticamente em situações novas”, ou seja, quanto
mais gêneros acumulados, maior a capacidade de argumentação. Em diálogo com o autor, é
correto afirmar que os gêneros contribuem em demasia para o ensino de língua portuguesa,
haja vista que o aluno saberá produzir diferentes textos, e de acordo com a necessidade da
situação.
Vale ressaltar, neste caso, que nem sempre a escola teve os gêneros dispostos em suas
abordagens, pois o ensino se deu por muitos anos, convencionado sob a perspectiva da
gramática normativa, mas os gêneros estão cada vez mais presentes no contexto escolar, tanto
nos livros didáticos, quanto nas próprias aulas dos professores de língua portuguesa. Os PCNs
(Parâmetros Curriculares Nacionais, 1998) adotam para o ensino de língua portuguesa que:

Cabe à escola promover a sua ampliação [dos conhecimentos] de forma que,


progressivamente, durante os oito anos do ensino fundamental, cada aluno se
1345

torne capaz de interpretar diferentes textos que circulam socialmente, de


assumir a palavra e, como cidadão, de produzir textos eficazes nas mais
variadas situações.
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Desta forma, os PCN’s estabelecem medidas para nortear o professor quanto ao ensino
da língua portuguesa, orientando que a escola promova uma ampliação nos conhecimentos
dos alunos no que diz respeito aos textos, para que o aluno amplie a sua capacidade
argumentativa e possa se comunicar efetivamente nas mais diversas situações.

3 Inovações no ensino de Língua Portuguesa

O ensino de língua portuguesa sob a perspectiva da gramática normativa, não de hoje,


mas desde a década de 70, 80, ou desde a democratização da educação, pois muitas camadas
de pessoas que antes não tinham acesso, passaram a ter acesso à educação, e ao se depararam
com um ensino descontextualizado com sua realidade e seus interesses, que ignorava os seus
conhecimentos já internalizados, seria em sua totalidade fracassado. É nesse contexto que,
Pietri (2003) apud Benfica (2013, p. 39), defende que se constroem as bases sobre as quais o
discurso da mudança se constituirá sustentado sobre três pilares: as ideias linguísticas, o
ensino de língua materna, a tradição gramatical. Bakhtin (1997, p. 302) postula que:

A língua materna - a composição de seu léxico e sua estrutura gramatical -


não a aprendemos nos dicionários e nas gramáticas, nós a adquirimos
mediante enunciados concretos que ouvimos e reproduzimos durante a
comunicação verbal viva que se efetua com os indivíduos que nos rodeiam.

Assim, vale constatar a importância do ensino de gêneros, pois o gênero não deve ser
utilizado apenas como uma ferramenta de comunicação, tendo em vista que a comunicação só
é possível se um gênero for utilizado, mas como um objeto indispensável no ensino-
aprendizagem, permitindo que o professor submeta os alunos à análises, visando auxiliar o
processo de aquisição de leitura e escrita, que só é possível ser efetivado, através da prática, e
nesse contexto estão inseridos os gêneros, pois como já foi dito anteriormente, é essencial
para a comunicação humana, ignorar tais fenômenos é no mínimo contraditório.
Considerando que os textos sempre estão organizados de acordo com seu conteúdo
temático, estilístico e composicional, possibilita que eles pertençam a algum gênero, é correto
afirmar que os gêneros, podem e devem ser tomados como objeto de ensino.
1346

Além da análise de gêneros, algumas outras estratégias didático-metodológicas


auxiliam nesse processo, dentre elas apontamos o objeto deste artigo: A retextualização, que
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é, em suma, o processo de retextualizar textos, modificando ou não os gêneros neles

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imbricados, seja na estrutura composicional, conteúdo temático, ou em outro aspecto
pertencente ao gênero.

4 A retextualização

Inicialmente, o termo retextualização foi empregado por Travaglia (1993), quando a


autora realizava uma tradução, com isso ela concebeu a tradução de uma língua para outra
como retextualização. Posteriormente, Marcuschi (2001) afirma que retextualização não deixa
de ser uma tradução, mas que também é possível retextualizar um texto da mesma língua,
podendo realizar alterações na modalidade discursivas, mas sem sair da mesma língua.
O autor também postula que a retextualização exerce atividade importante no nosso
cotidiano, sendo que retextualizamos textos sem perceber, como afirma Marcuschi (2001)
“lidamos com ela [a retextualização] o tempo todo nas sucessivas reformulações dos mesmos
textos numa intricada variação de registros, gêneros textuais, níveis linguísticos e estilos, por
exemplo, quando alguém lê uma notícia e conta para outra pessoa, quando uma secretária
escreve a ata de uma reunião, nesses casos ocorre o processo de retextualização.
O termo retextualização é comumente confundido com as noções de reescrita, porém
suas aplicações são bem distintas. Para que possamos aplicar esse conceito nas práticas
pedagógicas é necessário compreendermos a que se refere o termo retextualizar.
Diferentemente da reescrita, que busca aperfeiçoar um texto com o exercício da escrita desse
mesmo texto, a retextualização muda a estrutura de um texto transformando o seu aspecto
composicional e a sua função sociocomunicativa. A princípio pode parecer complexo,
contudo essa prática é bem mais comum do que se imagina. Retomando a discussão, para
Marcuschi (2001) esse processo não ocorre de forma mecânica, mas naturalmente utilizamos
da retextualização no nosso cotidiano.

Atividades de retextualização são rotinas usuais altamente automatizadas,


mas não são mecânicas, que se apresenta como ações aparentemente não-
problemáticas, já que lidamos com elas o tempo todo nas sucessivas
reformulações dos mesmos textos numa intricada variação de registros,
gêneros textuais, níveis linguísticos e estilos. Toda vez que repetimos ou
1347

relatamos o que alguém disse, até mesmo quando produzimos as supostas


citações ipsis verbis, estamos transformando, reformulando, recriando e
modificando uma fala em outra (MARCUSCHI, 2001, p. 48).
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O simples ato de trocar informações que ouvimos no jornal com um amigo
compreende a retextualização. Neste sentido, Marcuschi (2001) apresenta diversos exemplos
para nortear o entendimento de seus estudos, mostrando que retextualizamos em variados
níveis e o fazemos com frequência. Contudo, para falarmos de algo mesmo sendo em outra
estrutura é necessário determinada noção e compreensão das informações contida no que
podemos chamar de texto base.

Pois para dizer de outro modo, em outra modalidade ou em outro gênero o


que foi dito ou escrito por alguém, devo inevitavelmente compreender o que
foi que esse alguém disse ou quis dizer, portanto, antes de qualquer atividade
de transformação textual, ocorre uma atividade cognitiva denominada
compreensão (MARCUSCHI, 2001, p. 47).

Reconhecendo a importância da compreensão do texto para a prática de retextualizar,


podemos notar a relevância dessa prática no ensino de gêneros. Conforme Benfica (2013) o
ato de retextualizar ultrapassa as capacidades de escrita do aluno, faz com que ele desenvolva
atividades cognitivas capacitando-o a se articular nas diferentes modalidades discursivas.
Apesar da naturalidade em que ocorre o processo de retextualização, é importante
ressaltar que existem diferentes possibilidades de retextualização, segundo Marcuschi (2001)
o fenômeno pode acorrer em quatro níveis.

(Fonte: Marcuschi, 2001, p. 48)

Podemos perceber a retextualização do texto oral para o texto escrito nas entrevistas
de imprensa. Nelas são recolhidos dados através de um diálogo entre entrevistador e
1348

entrevistado que fornece material para publicação. Outro exemplo bem comum são as
anotações das aulas que os alunos produzem a partir do gênero aula, ou o exemplo de uma
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atividade rotineira de retextualização é a confecção de uma ata, quando uma reunião acontece

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em determinado segmento social, e após isso, essa reunião precisa ser registrada. Para isso, é
necessária a confecção de um texto que possibilite que essas informações sejam guardadas,
nesse contexto que surge o gênero ata, que desde a sua composição, já demonstra dependência
desse processo de retextualização. O processo do texto oral para o texto escrito é mais comum
do que imaginamos, pois vivenciamos alguns dos exemplos citados e outros no cotidiano
Em consonância com Marcuschi (2001), a retextualização do texto oral para o texto
oral é também uma prática comum, que vai de uma tradução até conversas informais. O ato de
relatar acontecimento, narrar situações, recontar fatos presenciados ou compreendidos por
outros meios é também uma prática do processo de retextualizar.
Ao expormos ideias de terceiros em nossas apresentações expositivas, as quais
apresenta teorias de autores estamos aplicando o processo de retextualização do texto escrito
para o texto oral, como aborda Marcuschi (2001), esses processos não ocorrem de forma
mecânica mas há uma sistemática em que se estabelece tais práticas. Este tipo de
retextualização é comumente realizado no gênero aula, por exemplo. Principalmente no
gênero aula expositiva, no qual o professor, em sua maioria, coloca algumas citações de
alguns atores em suas apresentações, e tece algumas explicações sobre elas, nesse caso,
também está ocorrendo o processo de retextualização.

Considerando essa dimensão processual da retextualização, não se pode


ignorar a influência de diversos fatores envolvidos nesse processo, dentre os
quais, destacam-se: o propósito ou objetivo da retextualização, a relação
entre o sujeito retextualizador e o produtor do texto-base, a relação
tipológica entre o gênero textual original e o gênero da
retextualização (BENFICA, 2013, p. 34).

Quando pensamos na retextualização como ferramenta pedagógica para o ensino de


gêneros, procuramos abordar principalmente o processo do texto escrito para o texto escrito.
A prática fornece ao aluno o conhecimento de variados tipos de gêneros. Ao passo que o
aluno compreende as diferentes estruturas e suas funções, torna-se mais apto a se articular nas
mais diversas esferas enunciativas. Um exemplo bem presente desse processo são os resumos
de textos. Neste gênero, o professor apresenta o texto e o aluno transforma o conteúdo
principal do texto em um resumo, que por vez não tem mais o mesmo propósito
1349

comunicativo.
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4.1 A retextualização no ensino dos gêneros

Considerando que o ato de retextualizar está ligado a várias situações das nossas
atividades cotidianas, é importante ressaltar que essa teoria pode ser utilizada como estratégia
didático-metodológica para o ensino de língua portuguesa, de forma que auxilie o aluno na
compreensão dos gêneros textuais. Por exemplo, o professor pode pedir que os alunos leiam a
respeito de uma quantidade de gêneros, e que ao final dessa leitura, os alunos classifiquem os
textos e seus gêneros, discorram sobre sua estrutura composicional, estilo, conteúdo temático,
além de seus propósitos comunicativos e contexto de produção. Após essa atividade, os
alunos podem então retextualizar os textos que aprenderam, fazendo a modificação em suas
estruturas no que diz respeito aos gêneros textuais, por exemplo, uma fábula, pode ser
retextualizada como uma notícia, um desenho, um anúncio publicitário, ou até mesmo uma
charge de conteúdo humorístico. Tal momento possibilitaria a diversão dos alunos, e
consequentemente o interesse pela aula que estaria sendo ministrada, contribuindo para um
ensino dinâmico e efetivo.
Assim, é possível concluir que os alunos que retextualizarão textos, precisam ler mais
de um texto-base para conhecimento de gêneros, considerando a situação comunicativa, pois é
através desta, que os alunos selecionarão os recursos argumentativos necessários para a
construção de um novo texto retextualizado.

4.2 As diferenças entre retextualização, reescrita e revisão

O processo de retextualização, é confundido com as atividades de reescrita de textos e


revisão, sendo que um pertence a uma certa modalidade discursiva no que diz respeito à
produção de novos textos, e que o outro concerne ao processo de refacção de textos.
Uma das diferenças de um para outro, é que a retextualização tem como resultado um
novo texto, a partir do texto base, enquanto que a revisão e a reescrita trabalha-se
exclusivamente com um único texto, resultando no melhoramento de tal texto. Outra
diferença que vale a pena apontar, é que a retextualização implica modificações profundas no
1350

texto, que diz respeito a diversos critérios relacionados aos gêneros do texto, enquanto que a
revisão e a reescrita tem objetivo de aperfeiçoar o texto, podendo ajustá-lo à situação
discursiva, porém, mantendo os propósitos comunicativos do texto, sua estrutura
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composicional, estilo, etc.

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Destarte, conforme Benfica (2013) outra diferença entre estes três processos, é que a
retextualização pode alterar tanto nos propósitos comunicativos, quanto nos gêneros
imbricados no texto e toda a sua gama de possibilidades, haja vista que tem como resultado
um novo texto, já a revisão e reescrita são etapas do processo de refacção de textos, o que
significa que um texto reescrito ou revisado mantém o mesmo sentido, os mesmos propósitos
comunicativos, e o mesmo estilo, enquanto que o texto retextualizado pode sofrer mudanças
consideráveis.

5 Considerações finais

Considerando o diálogo com o referencial teórico deste artigo, é possível concluir que
o ensino de língua portuguesa, está avançando, no que diz respeito à inserção de teorias
linguísticas importantes para o conhecimento do aluno, bem como a retextualização e a
análise de gêneros textuais. A língua é tida como instrumento de razão social, sofrendo
transformações e adequações de acordo com as necessidades dos falantes e do contexto
comunicativo, sendo assim, o professor de língua não deveria utilizar apenas a perspectiva
gramatical para convencionar o ensino.
Nesta perspectiva, a análise de gêneros mostra-se como auxiliadora no processo de
ensino dos gêneros textuais por parte do professor, possibilitando que o aluno reconheça as
propriedades formais e informais dos mais variados textos e os gêneros neles imbricados,
visando desenvolver no aluno as capacidades necessárias para argumentar em diversos
contextos de comunicação, haja vista que um falante que domina dos recursos linguísticos e
argumentativos, sabe adaptar o seu texto, seja ele oral, escrito, multimodal, de acordo com o
que a situação enunciativa exigir. Neste caso, a retextualização apresenta-se como uma
estratégia didático-metodológica que pode auxiliar nesse processo, possibilitando um ensino
dinâmico e eficaz que desperta o interesse por parte dos alunos.

Referências
1351

ANTUNES, I. Muito além da gramática: por um ensino de línguas sem pedras no caminho.
São Paulo: Parábola Editorial, 2007.

BAGNO, M. Preconceito linguístico: o que é, como se faz. São Paulo: Edições Loyola,
Página

1999.

ISBN: 978-85-7621-221-8
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

BENFICA , M. F. M. B. Atividades de retextualização em livros didáticos de português:


estudo dos aspectos linguístico-discursivos dos gêneros implicados. Tese de doutorado.
(Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos da Faculdade de Letras da
Universidade Federal de Minas Gerais). Departamento de Linguística Textual. Universidade
Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte: 2013, 170 p. Disponível
em:<http://www.bibliotecadigital.ufmg.br/dspace/handle/1843/MGSS-9MQPQN>. Acesso
em: 22 maio 2017.

BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionai s: 3º e 4º ciclos do Ensino Fundamental:


Língua Portuguesa. Brasília/DF: MEC/SEF, 1998.

MARCUSCHI, L. A. Da fala para a escrita: Atividades de retextualização. 2. ed. São Paulo:


Cortez, 2001. 133p.

______. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São Paulo: Parábola, 2008.
MENDONÇA, M. Análise linguística no Ensino Médio: um novo olhar, um outro objeto. In:
BUNZEN, C.; MENDONÇA, M. Português no Ensino Médio e formação do professor.
São Paulo: Parábola Editorial, 2006.

PIETRI, E. A constituição do discurso da mudança do ensino de língua materna no


Brasil. Campinas, SP: [s.n.], 2003. Tese (Doutorado) Programa de Pós-Graduação em
Linguística Aplicada, Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de
Campinas. Campinas, 2003.

SCHEUWLY, B. Le Language écrit chez enfant. La producion des textes informatifis et


argumentatifis. Paris Delachax & Niesstlé. 1988.

TRAVAGLIA, Neuza. (1993). A Tradução numa Perspectiva Textual. Tese (Doutorado) -


2003. 305 p. USP, Tradução retextualização: tradução numa perspectiva textual. Uberlândia:
Edufu, 2003.
1352
Página

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PÔSTER

O ENSINO DE VIOLÃO NO PROJETO SESI ARTE MOSSORÓ (RN):


CONTRIBUIÇÕES PARA A PRÁTICA DOCENTE

Andrê Medeiros de Paula Firmino (UERN)219

Introdução

Desde quando conheci o projeto SESI ARTE, sempre tive uma afinidade muito grande
com o referido campo de ensino, seja no desejo de contribuir para o crescimento musical do
projeto, seja na necessidade de aprimorar ainda mais a minha prática docente, ainda mais se
levarmos em consideração o vasto crescimento que o ensino de violão tem passado nos dias
atuais, principalmente quando se trata de espaços não-formais. Em lugares como projetos
sociais, casas de apoio a portadores de deficiências, é bem comum haver aulas de violão, seja
elas individuais ou coletivas, o que abriu ainda mais as possibilidades para que o meu estágio
acontecesse de forma satisfatória.
Escolhi dar aulas individuais de violão porque quase não tive experiência como
professor no referido instrumento, ainda mais se levarmos em consideração que sou
guitarrista e tenho pouca experiência na prática de violão. Boa parte da minha prática musical
se deu tocando em recitais didáticos e auxiliando professores de artes, e então acredito ter sido
um pontapé inicial, tanto para o aprimoramento dos meus conhecimentos na prática do violão,
quanto para a minha melhor atuação como professor do referido instrumento. As aulas
aconteciam uma vez por semana, nas segundas-feiras, das 16h às 17h30, e nesse horário só
havia uma aluna matriculada. Então, desenvolvi meu estágio com a referida aluna durante as
oito semanas em que atuei como professor na referida instituição.
Durante os encontros, haviam diálogos sobre a perspectiva da aluna e o que ela
gostava de escutar ou até mesmo executar no violão, e atividades como: postura corporal,
métodos simples de violão, e partituras de fácil acesso e execução, no intuito de formar um
bom repertório para um recital didático na referida instituição. O método de avaliação
aplicado era contínuo, ou seja, de acordo com a presença, participação da aluna nas aulas e a
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execução das atividades transmitidas, com a finalidade de contribuir, de alguma forma, tanto
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Orientador: Renan Colombo Simões (UFRGS/UERN)

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para o melhor conhecimento da aluna, como para a melhor desenvoltura na minha carreira
docente.
O ensino de violão no projeto SESI ARTE em Mossoró (RN) tem sido uma peça
fundamental na aprendizagem de pessoas que optaram por conhecer e estudar esse
instrumento através de aulas, individuais ou coletivas, e obtido um crescimento satisfatório,
tanto na melhor atuação do professor que as leciona, quanto na aprendizagem dos seus alunos.

1 Contextualização do ensino de violão na instituição

O contexto educacional em que exerci a minha prática docente foi o de um espaço


não-formal. É um espaço que, apesar de ser organizado, regulamentado por lei, seja ele
vinculado em algum núcleo governamental ou não, há mais flexibilidade, ou seja, é de mais
fácil acesso aos cidadãos e os resultados obtidos na aprendizagem dos membros não são
analisados e avaliados de maneira formal. Segundo Gadotti (2005):

A educação não-formal é mais difusa, menos hierárquica e menos


burocrática. Os programas de educação não-formal não precisam
necessariamente seguir um sistema sequencial e hierárquico de ‘progressão’.
Podem ter duração variável, e podem, ou não, conceder certificados de
aprendizagem. Toda educação é, de certa forma, educação formal, no sentido
de ser intencional, mas o cenário pode ser diferente: o espaço da escola é
marcado pela formalidade, pela regularidade, pela sequencialidade. O espaço
da cidade (apenas para definir um cenário da educação não-formal) é
marcado pela descontinuidade, pela eventualidade, pela informalidade. A
educação não-formal é também uma atividade educacional organizada e
sistemática, mas levada a efeito fora do sistema formal. Daí também alguns
a chamarem impropriamente de ‘educação informal’ (GADOTTI, 2005, p.
2).

O autor enfatiza que o acesso aos espaços não-formais de ensino é facilitado pela
natureza de sua estrutura. Existem inúmeros espaços considerados como não-formais de
ensino: lugares como igrejas, ONGs, casas de apoio a portadores de deficiência, comunidades,
asilos, entre outros, são organizações de maior referência para atividades nesse contexto de
ensino.
1354

Apesar do pouco espaço disponível para o ensino de música, por se tratar de ser
apenas um núcleo do SESI, o projeto SESI ARTE conta com um corpo docente capacitado e
condições de sala de aula muito boas. O projeto conta com quatro salas, onde ocorrem as
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aulas, e um auditório, para ensaios e apresentações. Todas as salas são climatizadas,

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equipadas com um bom material de apoio como: cadeiras confortáveis, quadro branco,
instrumentos musicais, estantes, materiais didáticos (livros e apostilas), entre outros.
Em relação às práticas musicais em espaços não-formais, o ensino de violão, seja ele
individual ou coletivo, é comumente encontrado nesses espaços, levando em consideração o
alto índice de pessoas que apreciam o referido instrumento.

O violão é um instrumento de grande importância na cultura brasileira, e


com muitas possibilidades de socialização. Tais ingredientes tornam-no um
instrumento familiar, interessante e agradável à maioria das pessoas. Cabe
despertar o interesse de professores e futuros professores de educação
musical para as inúmeras possibilidades expressivas e pedagógicas do
instrumento no processo educacional, bem como estimulá-los a continuar
ampliando essas possibilidades (OLIVEIRA, 2013, p. 93).

Como enfatiza o autor, é um instrumento bastante popularizado no meio artístico-


musical e talvez um dos mais procurados nesses espaços, para uma melhor aprendizagem,
seja por iniciantes, seja por músicos já formados, que ainda querem continuar expandindo as
suas habilidades numa prática mais aprofundada do referido instrumento.

2 Desenvolvimento das aulas ministradas

As aulas ministradas, durante o período em que estagiei no projeto SESI ARTE como
professor de violão, foram desenvolvidas durante nove semanas, onde eu expus um pouco dos
conhecimentos que adquiri durante os quatro anos em que estudei no Conservatório de
Música D’alva Stella Nogueira Freire, e também dos conhecimentos adquiridos na
Licenciatura em Música pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), que
estudo atualmente.
As nove semanas foram subdivididas em três etapas: Observação, onde eu analisei a
didática e as metodologias que o professor supervisor utilizava para desenvolver as suas
aulas; Planejamento, onde eu pude discutir e planejar com o professor supervisor o que
poderia abordar com a aluna; Regência, onde eu atuei como professor da aluna, com a
presença do professor supervisor.
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 Observação

Durante o período de observação, eu notei uma interação muito boa entre o professor e
a aluna. O professor supervisor demonstrava uma afinidade muito grande com ela, e
procurava sempre aplicar as suas aulas com paciência, observando as dificuldades que ela
apresentava e tentando ajudá-la, para que essas dificuldades pudessem ser sanadas,
estimulando a aluna a um maior envolvimento na aula e aumentando ainda mais o seu
interesse em na aprendizagem do instrumento.
Baseado nessas ideias, Hallam (1998) apud Harder (2008) salienta que:

[...] para que haja um melhor envolvimento entre o professor e o aluno, é


importante que o professor converse com seu aluno a respeito do que está
sendo aprendido. O professor deve também fazer perguntas ao seu aluno a
respeito da prática individual no instrumento, que incluem as dificuldades
por ele enfrentadas e a necessidade que o mesmo tem de auxílio para saber
como praticar [...] (HALLAM 1998 apud HARDER, 2008, p. 130).

Como acabamos de ver, a autora evidencia a importância da interação entre o


professor e o aluno, procurando sempre manter um bom relacionamento entre ambos, para
que os conteúdos sejam absorvidos facilmente, tornando a aula ainda mais proveitosa.
É importante salientar a pontualidade da aluna no horário da aula e a sua atenção
durante a mesma; isso produz um maior empenho na sua aprendizagem musical, e assim a
aula fica ainda mais proveitosa: uma aula onde a participação é coletiva, ou seja, tanto do
professor na transmissão dos conteúdos propostos quanto da aluna na absorção dos mesmos.
O professor aplicava sempre um material didático de fácil acesso e aprendizagem, por
se tratar de uma aluna iniciante; a aluna levava uma música de livre escolha de acordo com
seu gosto musical, e essa música era trabalhada em sala de aula, analisando alguns pontos a
serem trabalhados na execução das mesmas, de acordo com a experiência da aluna, como:
postura corporal, mão direita, mão esquerda, leitura, internalização da melodia das músicas
sugeridas, dentre outros aspectos.

 Planejamento
1356

O planejamento ocorria logo após o horário de regência, e também utilizávamos as


Página

redes sociais para discutir o que seria tratado em cada encontro, seja dos exercícios que

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iríamos trabalhar até o repertório a ser preparado para possíveis apresentações. O
planejamento era fundamental na minha prática docente, e nunca deixávamos de lado essa
importante ferramenta pedagógica.
Segundo Schmitz (2000):

Qualquer atividade, para ter sucesso, necessita ser planejada. O


planejamento é uma espécie de garantia dos resultados. E sendo a educação,
especialmente a educação escolar, uma atividade sistemática, uma
organização da situação de aprendizagem, ela necessita evidentemente de
planejamento muito sério. Não se pode improvisar a educação, seja ela qual
for o seu nível (SCHMITZ, 2000, p. 101).

O autor deixa clara a importância de se fazer um planejamento do que será ministrado


em cada aula, pois, através de um planejamento, organizamos os conceitos, métodos e
atividades que estão mais de acordo com o nível e a vivência do aluno que está sendo
ensinado, o que garante uma boa aula a ser transmitida.
O planejamento de uma aula é fundamental para que o professor transmita suas
propostas de atividade em sala de aula com sucesso, pois, através dele, o professor organiza
os conteúdos a serem transmitidos, de forma que o aluno os absorva de maneira mais
organizada, trazendo contribuições ao seu processo de ensino-aprendizagem; sem
planejamento, o trabalho do professor na formação do aluno se torna bem mais difícil,
prejudicando todo o processo escolar, como aponta Fusari (2008):

A ausência de um processo de planejamento de ensino nas escolas, aliado às


demais dificuldades enfrentadas pelos docentes do seu trabalho, tem levado a
uma contínua improvisação pedagógica das aulas. Em outras palavras, aquilo
que deveria ser uma prática eventual acaba sendo uma “regra”, prejudicando,
assim, a aprendizagem dos alunos e o próprio trabalho escolar como um todo
(FUSARI, 2008, p. 47).

O supervisor de campo não se prendia muito a métodos específicos, trabalhava mais


com repertório, porém utilizava esporadicamente livros didáticos e métodos, levando em
consideração as necessidades da aluna.
1357

Muitas vezes os professores trocam o que seria o seu planejamento pela


escolha de um livro didático. Infelizmente, quando isso acontece, na maioria
das vezes, esses professores acabam se tornando simples administradores do
livro escolhido. Deixam de planejar seu trabalho a partir da realidade de seus
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alunos para seguir o que o autor do livro considerou como mais indicado
(MEC, 2006, p. 40).

O autor ressalta que, muitas das vezes, algum recurso didático pode substituir um
planejamento sistematizado; no caso das aulas no Projeto SESI ARTE, os métodos que eram
trabalhados englobavam mais repertórios de música popular.
Por fim, a avaliação era contínua, ou seja, de acordo com a desenvoltura da aluna em
sala de aula, e apesar das dificuldades que tínhamos de planejarmos pessoalmente,
conseguimos planejar o que seria trabalhado com a aluna em cada semana de aula.

 Regência

As abordagens pedagógico-metodológicas foram basicamente partituras e métodos


como: Iniciação ao violão (Henrique Pinto), Acordes, arpejos e escalas para violão e
guitarra (Nelson Faria), Estudos de guitarra (Mozart Mello), entre outros, pois há toda uma
abordagem metodológica de acordo com o contexto (musical, social ou histórico) e o nível da
referida aluna.
Costa (2014) deixa claro a importância de se trabalhar com um bom material didático
em sala de aula:

Diante disso, não é difícil imaginar como a organização de um método de


ensino de instrumento pode colaborar com o professor na manutenção da
motivação e na seleção ou elaboração de exercícios voltados para sessões de
prática. A gradação de um material didático adequado aos objetivos do
estudante, juntamente com o volume que permita o engajamento por tempo
suficiente em cada etapa da aprendizagem, podem favorecer a manutenção
desse estado de aprendizagem ideal (COSTA, 2014, p. 18).

Nas aulas, além de ensaiar as músicas já aprendidas, nós realizávamos, para as novas
músicas, exercícios de escalas, e a partir daquela determinada escala, tocávamos a melodia da
música proposta. O repertório era constituído por músicas simples, para se trabalhar a
percepção rítmico-melódica da aluna; ela tocava a escala sozinha, depois tocava a melodia a
partir da escala, e eu observava para fazer possíveis ajustes que eram necessários; depois,
1358

acompanhava ela com o violão, fazendo a harmonia, tornando a aula bem produtiva.
Utilizei músicas da nossa cultura popular brasileira e também de outras culturas, como:
Página

Asa branca (Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira) e Greesleaves (Autor desconhecido), que

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fossem de fácil acesso na internet e também de fácil execução. As partituras e métodos eram
utilizados apenas como base, dado que não trabalhei leitura com a aluna; eram utilizados mais
um meio de internalização das melodias, e absorção de conteúdos técnicos.
Havia dificuldades por parte da aluna em relação a alguns aspectos, como postura das
mãos esquerda e direita. Algumas músicas eram melhores executadas do que outras, e
pensando nisso, procurei um repertório simples que não forçasse tanto a execução da aluna e
que fosse de acordo com o seu nível de aprendizagem, o que evitaria alguns danos a sua saúde
como: tendinite, problemas de coluna e outros.

3 Contribuições para a prática docente

Foram muitos desafios enfrentados durante esse período em que exerci a minha prática
de estágio no Projeto SESI ARTE, principalmente pelo fato da minha pouca experiência na
prática docente. Havia muita dedicação nos planejamentos sobre o que eu iria transmitir para
a aluna, busquei um bom material didático, em uma metodologia de fácil aplicação, para que
o aprendizado da aluna não fosse enfadonho, e ela obtivesse bons resultados nas suas práticas
musicais.
Dessa forma, foram inúmeras as contribuições que essa experiência trouxe para a minha
vida acadêmica; com isso, eu pude avaliar, em três aspectos, como essa experiência trouxe
contribuições para a minha prática docente enquanto futuro educador.

 Avaliação das aulas

Levando em consideração a carga horária do estágio, horário das aulas e alguns outros
pormenores que normalmente nos deparamos nesse contexto educacional, as aulas
ministradas foram bastante satisfatórias; conseguimos ministrar os conteúdos propostos nos
planos de aula, e o repertório foi aprendido com facilidade, tornando a aula cada vez mais
produtiva.
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 Avaliação dos alunos

A aluna apresentou algumas dificuldades, tanto nos aspectos estéticos quanto nas
práticas musicais, porém, apesar disso, ela conseguiu absorver os conteúdos com muito êxito
e desenvolveu seus conhecimentos sobre o estudo do violão; conseguiu realizar os exercícios
com precisão e executou as músicas de maneira satisfatória, superando as minhas expectativas
enquanto professor.

 Auto avaliação

Considerando ter sido a minha primeira experiência na prática docente, acredito ter
cumprido os meus objetivos com precisão, porém ainda tenho muito o que aprender. Apesar
da minha pouca experiência como professor, busquei ao máximo não forçar a capacidade da
minha aluna, agir nas suas dificuldades, tentando de alguma forma ajuda-la para que essas
dificuldades fossem superadas.

Considerações finais

Diante de tudo o que foi observado, elaborado, proposto, e ministrado durante esse
período de nove semanas em que exerci a minha prática docente como estagiário, não posso
deixar de ressaltar a importância que essa experiência trouxe para a minha carreira como
professor. Cada etapa desse estágio foi importante para o meu aprendizado, além de bastante
produtivas para o meu crescimento, seja como profissional, seja como ser humano; as etapas
foram tratadas de uma maneira especial, elaboradas com cuidado, assiduidade e precisão.
Apesar das dificuldades, as aulas foram bastante produtivas, trazendo resultados
bastante positivos e muito pouco negativos, tanto para mim quando para a aluna; ela superou
as minhas expectativas, e conseguiu atingir os objetivos de acordo com o que foi planejado.
Levando em consideração ser a minha primeira experiência como professor, acredito ter
conseguido transmitir os conteúdos com precisão. Por fim, essa experiência trouxe inúmeras
1360

contribuições para a minha carreira docente.


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Referências

COSTA, B. X. M. de O. A leitura musical no processo de formação do violonista:


perspectivas a partir dos materiais didáticos utilizados no ensino superior. 2014. 184 f.
Dissertação (Mestrado em Música) - Programa de Pós-Graduação em Música. Centro de
Comunicação, Turismo e Artes. Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2014.

FUSARI, José Cerchi. O planejamento do trabalho pedagógico: algumas indagações e


tentativas de respostas. Disponível em: <http://www.crmariocovas.sp.gov.
br/pdf/ideias_08_p044-053_c.pdf>. Acesso em: 11 ago. 2017.

GADOTTI, Moacir. A questão da educação formal/não-formal. Disponível


em: <http://pt.scribd.com/doc/53944682/GADOTTI>. Acesso em: 11 ago. 2017.

HARDER, Rejane. Algumas considerações a respeito do ensino de instrumento: Trajetória e


realidade. Opus, Goiânia, v. 14, n. 1, p. 127-142, jun. 2008.

MEC – Ministério da Educação e Cultura. Trabalhando com a Educação de Jovens e Adultos


– Avaliação e Planejamento. Caderno 4 (SECAD). Secretaria
de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2006.

OLIVEIRA, V. A. de. Violão e educação musical: por uma metodologia de musicalização


com o violão. 2013. 119 p Dissertação (Mestrado em Música) -Programa de Pós-Graduação
em Música. Escola de Música, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.

SCHMITZ, Egídio. Fundamentos da Didática. São Leopoldo: Editora


Unisinos, 2000, p. 101-110.

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PÔSTER

O GÊNERO PROPAGANDA NO DESENVOLVIMENTO DAS PRÁTICAS DE


LINGUAGEM DOS ALUNOS: EXPERIÊNCIA DO ESTÁGIO SUPERVISIONADO

Antônia Jany da Silva


Universidade Estadual do Rio Grande do Norte-UERN
E-mail: jany_silva_123@hotmail.com
Bruna Luiza Rodrigues do Nascimento
Universidade Estadual do Rio Grande do Norte-UERN
E-mail: blrn_bruna@hotmail.com
Maria Leidiana Alves
Universidade Estadual do Rio Grande do Norte-UERN
E-mail: leidiana_alves2007@yahoo.com.br

Introdução

Os gêneros textuais têm suscitado diversas discussões ao longo do tempo. Na


atualidade não tem sido diferente, uma vez que é através deles que o processo comunicativo
se efetiva. Nesse sentido, os gêneros estão presentes em todos os momentos da nossa vida,
nos mais variados contextos e meios de circulação.
Nas aulas de português, o trabalho com os gêneros se faz imprescindível. Visto que
essas aulas tem como finalidade a ampliação das habilidades de uso da linguagem pelos
alunos, a realização desse trabalho deve ser feita também com base nos gêneros que os alunos
utilizam em seu cotidiano, isso para que eles entendam que esse estudo não é distante, já que
eles utilizam esses gêneros para se comunicar e serem compreendidos desde que começaram a
desenvolver a fala, isso acontece porque os gêneros textuais não são criados por um falante,
mas eles são resultados de “formas socialmente maturadas em práticas comunicativas na ação
linguageira”. (MARCUSCHI, 2008, p.189).
Durante nossas práticas pedagógicas no Estágio Supervisionado I, desenvolvidas e
vivenciadas em uma escola estadual da cidade de Pau dos Ferros, mais especificamente, em
turmas de 7° e 8° Anos, o gênero escolhido por nós para trabalhar foi a propaganda, isso
porque acreditávamos que por ser um gênero bastante presente no cotidiano dos alunos, eles
teriam maior facilidade de aprendizado e participariam mais das aulas. Também escolhemos
1362

esse gênero por entender a importância dos processos argumentativos, que estão embutidos
nele, para o desenvolvimento das habilidades argumentativas dos alunos.
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Com base nisso, desenvolvemos esse trabalho que tem como objetivo mostrar a forma
como o gênero propaganda pode auxiliar no desenvolvimento das práticas de linguagem dos
alunos, ampliando a capacidade de argumentar e desenvolvendo de forma satisfatória a
habilidade de falar em público. Tratamos aqui, também, sobre a importância dos trabalhos
feitos em grupos. Pretendemos, também, oportunizar aos leitores o conhecimento do
funcionamento das práticas pedagógicas na sala de aula durante o estágio, mostrando assim,
que apesar de a teoria muitas vezes diferir da prática, elas estão (ou deveriam estar)
intimamente ligadas.
Apresentaremos primeiramente uma discussão teórica para a qual tomamos como base
as leituras feitas ao longo do desenvolvimento da disciplina, do curso e também em textos que
julgamos bastante importantes para a elaboração desta investigação. Logo após, temos a
análise dos dados que foram obtidos através de pesquisa de campo e posteriormente a
conclusão.
Esperamos com esse trabalho promover aos leitores o conhecimento e entendimento
da importância do trabalho sistematizado com o gênero, fazendo-os entender, também, o
quanto ele auxilia no desenvolvimento dos alunos enquanto atuantes sociais.

Referencial teórico

Muito se tem discutido sobre o papel dos gêneros textuais no processo de ensino-
aprendizagem, como ele pode ser um aliado importante, como pode auxiliar o trabalho do
professor, e como pode atrair a atenção do aluno através de sua dinamicidade e funcionalidade
social, e o quanto ele faz a diferença quando o que se espera é o aprendizado.
A prática de ensino dos gêneros em sala de aula, tem o intuito, também, de trabalhar a
língua contextualizada, já que é assim que ela se configura, dando a oportunidade ao aluno de
se comunicar efetivamente nas mais diversas situações, e o ajudando em possíveis
dificuldades que existam em sua comunicação, acompanhando a evolução comunicativa,
refletida nos gêneros dela advindos. De acordo com Marcushi (2002):
1363

Os gêneros [textuais]caracterizam-se como eventos textuais altamente


maleáveis, dinâmicos e plásticos. Surgem emparelhados a
necessidades e atividades sócio-culturais, bem como na relação com
inovações tecnológicas, o que é facilmente perceptível ao se
Página

considerar a quantidade de gêneros textuais hoje existentes em relação

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a sociedades anteriores à comunicação escrita (MARCUSCHI; 2002,
p. 20).

É interessante, que a escola promova atividades que sejam capazes de subsidiar


elementos necessários para a aprendizagem dos alunos já que, como bem diz os PCNs de
Língua Portuguesa (1998, p. 25) “para boa parte das crianças e dos jovens brasileiros, a
escola é o único espaço que pode proporcionar acesso a textos escritos, textos estes que se
converterão, inevitavelmente, em modelos para a produção”.
Quando se está trabalhando com o gênero textual é necessário que o professor faça
uma sistematização das etapas em que ele será abordado. O conjunto dessas etapas seriam o
que é denominado por Schneuwly e Dolz (2004) de sequências didáticas.

Uma seqüência didática tem, precisamente, a finalidade de ajudar o


aluno a dominar melhor um gênero de texto, permitindo-lhe, assim,
escrever ou falar de uma maneira mais adequada numa dada situação
de comunicação. O trabalho escolar será realizado, evidentemente,
sobre gêneros que o aluno não domina ou o faz de maneira
insuficiente; sobre aqueles dificilmente acessíveis, espontaneamente,
pela maioria dos alunos e sobre gêneros públicos e não privados. As
sequências didáticas servem, portanto, para dar acesso aos alunos a
práticas de linguagem novas ou dificilmente domináveis
(SCHNEUWLY e DOLZ, 2004).

Essas sequências didáticas dão ao professor o acesso a uma gama de processos que
auxiliam na absorção dos conteúdos, e abre espaço também para diversos métodos que
podem também facilitar o desenvolvimento das práticas de linguagem, uma dessas práticas
bastante significativas é o trabalho em Grupo, já que dessa forma estará se trabalhando o
gênero de forma que ele possa estimular os alunos a opinar, debater, e argumentar. Nesse
ponto, uma boa dica para se conseguir essa conversação é o trabalho em equipe.
Os educadores veem o trabalho em grupo como uma estratégia importantíssima no
processo de aprendizagem, essa importância é comprovada nos estudos do famoso psicólogo
Lev Vygotsky, que confere um papel dominante às relações interpessoais no processo de
aquisição do conhecimento. Através do trabalho em grupo, o indivíduo desenvolve diversas
habilidades, tais como interagir socialmente, desenvolver a linguagem e entender que existem
1364

perspectivas que divergem da sua. Ele aprende o quanto é importante agir em coletividade
para o bem do grupo e compreende que não pode fazer tudo sozinho, além de desenvolver a
Página

criatividade e moldá-la de modo a agradar a todos, sobre isso, o Ministério da Educação diz:

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Os alunos devem aprender a escutar com atenção e compreensão, a
dar respostas, opiniões e sugestões pertinentes nas discussões abertas
em sala de aula, falando de modo a serem entendidos, respeitando
colegas e professores(as) e sendo respeitados por eles (Pró-
Letramento, fascículo 1. p, 54).

Uma das habilidades que o trabalho em grupo com apresentação pública desenvolve,
também, é a de argumentar, capacidade essa que é primordial para o êxito de todo e qualquer
individuo na sociedade, uma vez que um indivíduo que não possui a capacidade de
argumentar enfrentará sérios problemas no decorrer de sua vida. Segundo van Eemeren
(1987), a argumentação é uma atividade social, intelectual, verbal e não verbal, utilizada para
justificar ou refutar uma opinião. Um conjunto específico de declarações feitas com o intuito
de obter a aprovação de um ponto de vista particular por um ou mais interlocutores. E por
isso, sabendo da importância de desenvolver a habilidade de argumentar, trabalhamos com
produções sobre o gênero publicidade com foco na propaganda, já que uma de suas principais
características é a de argumentar ao ponto de persuadir.
No que diz respeito ao desenvolvimento da oralidade e da habilidade de argumentação
dos alunos, nada melhor que utilizar o gênero propaganda, uma vez que esse gênero é
conhecido por conter um teor altamente argumentativo.
Segundo o portal da educação, “a propaganda é um meio de anunciar um determinado
produto, crença, ideia. É mostrar em um curto espaço o porquê o que se está anunciando é
bom”. Para isso, procura difundir e aumentar o sentido da mensagem, ultrapassando a simples
dimensão informativa. A finalidade da propaganda é despertar, no consumidor, o desejo pela
coisa anunciada. Para isso, tem como objetivo de argumentar a favor dos seus serviços, ideias
e produtos de modo que venha a convencer os leitores a consumi-los.

Análise dos dados

Considerando o fato de que é na prática social que nossa língua se configura,


primamos durante nossas práticas de ensino na regência do estágio e na oficina, através de
1365

atividades desenvolvidas com base no gênero publicidade, pela prática da habilidade de


interagir socialmente por meio de discussões e de atividades em grupo, desenvolvendo e
Página

instigando a criatividade e a habilidade de argumentar com segurança.

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Na oportunidade, fizemos uso dessas sequências didáticas, utilizando de maneira
sistematizada diversas práticas de linguagem importantes no desenvolvimento cognitivo dos
alunos. Utilizando sempre aspectos como a leitura, a compreensão e a prática oral, a medida
que os alunos iam ofertando livremente suas opiniões sobre o gênero. O clímax de nosso
estágio se deu com a produção do gênero propaganda, que como Schneuwly e Dolz (2004)
sugerem nas sequências didáticas deve ser feita no encerramento de um ciclo.
A opção por trabalhar com produções coletivas que seriam divulgadas perante toda a
turma, surgiu do conhecimento que temos da importância que essa prática tem, pois, além de
apresentar uma grande oportunidade para o aluno construir conhecimento coletivamente, é
um momento de troca, em que os indivíduos se deparam com diversas opiniões sobre o
mesmo assunto, mas sob diversos olhares.
Após repassar os conteúdos utilizando a leitura e a compreensão, constatamos, com
base nas observações do comportamento e da fala dos alunos que eles já possuíam
conhecimento suficiente sobre os aspectos composicionais da Publicidade, e estavam aptos a
desenvolver uma produção. Assim, como é indicado por Schneuwly e Dolz (2004), os alunos
elaboram um primeiro texto inicial, que corresponderia ao gênero trabalhado; é a primeira
produção. Nós dividimos a turma em grupos de 4 para que os alunos fizessem coletivamente
a produção de um anúncio publicitário.
Na realização dessa produção nós tínhamos o intuito não apenas de averiguar se os
alunos haviam adquirido aprendizagem sobre o gênero, mas também tínhamos o objetivo de
desenvolver a criatividade deles e de proporcionar o uso da oralidade durante a elaboração
dos trabalhos e também durante a apresentação do resultado final, buscando assim
desenvolver aspectos como a habilidade de falar em público e de argumentar, já que como diz
os PCN´s (14998) de língua portuguesa, ensinar língua em sua forma oral deve significar
possibilitar o acesso a usos da linguagem mais formalizados tendo em vista a importância que
o domínio da palavra pública tem no exercício da cidadania.
Nessa produção, eles teriam de usar a criatividade para criar um novo produto com
marca, slogan e preço, sendo que ao final deveriam fazer a apresentação do mesmo, utilizando
e abusando da argumentação para nos persuadir a comprar seus produtos. Os alunos
1366

pareceram interessados na proposta de trabalho, e se esforçaram de maneira que pudessem


suprir as expectativas de seus “consumidores”.
E finalmente chegou o dia de fazer a apresentação das produções do gênero
Página

publicidade. E podemos afirmar com propriedade que o que constatamos foi uma riqueza de

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criatividade. Era possível observar a interação entre o grupo e do grupo com todo o restante
da turma, respondendo perguntas, tirando dúvidas. Abusaram da oralidade e deram show de
argumentação que invejaria muitas empresas especializadas em propagandas. Os preços,
formas de pagamento e acessibilidade foram adequados a todo tipo de consumidor. E existiam
produtos para todo tipo de gosto, de forma que parecia difícil que alguém resistisse ao
impulso de adquirir os produtos dos nossos jovens publicitários.
Os alunos foram longe e abusaram da imaginação no quesito de utilidades do produto.
Resultaram vários tipos de produtos, desde loções hidratantes milagrosas para a pele que
prometiam fazer o que produto nenhum fez, e que custava apenas 5 reais, até óculos de visão
noturna que tinha conversor de energia e transportador de matéria quântica e custava 2.000
reais. Veja na imagem abaixo:

Não esquecendo também de uma camiseta que mudava de cor de acordo com o humor
de quem a estava usando e uma linha de cosméticos à prova d’água:

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Conclusão

Foi possível constatar na prática, que o uso do gênero textual em sala de aula pode ser
um poderoso aliado no processo de aprendizado e de desenvolvimento das habilidades de
linguagem. Podemos ressaltar aqui, também, que os alunos se interessam mais pela leitura
quando lhes são apresentados textos que fazem parte de suas vidas, do cotidiano e que
possuem uma funcionalidade significativa para eles.
No caso da nossa análise foi possível comprovar que o gênero propaganda tornou o
processo de comunicação, leitura e escrita dos alunos mais dinâmico, interativo e o gosto pela
leitura e investigação foi incentivado. Os alunos desenvolveram muito bem o tema, e
atenderam aos objetivos. Argumentaram de maneira eficaz, interagiram com a turma e
utilizaram muito a criatividade.
Diante do que foi analisado, é possível concluir que o trabalho com o gênero, quando
feito de forma sistematizada e contextualizada, surte efeitos surpreendentes e pode contribuir
no sentido de levar o aluno a (re)conhecer a funcionalidade e dinamicidade da linguagem nos
seus mais variados usos.

Referências

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Elementos conceituais e


metodológicos para definição dos direitos de aprendizagem e do desenvolvimento do
ciclo de alfabetização. Brasil, 2012.

DOLZ, J., NOVERRAZ, M. & SCHNEUWLY, B. Sequências didáticas para o oral e a


escrita: apresentação de um procedimento. In: Gêneros Orais e Escritos na escola. Tradução
e organização Roxane Rojo e Glais Sales. Campinas-SP: Mercado das Letras, 2004.

GUEDES, P. C. A formação do professor de português: que língua vamos ensinar? São


Paulo: Parábola Editorial, 2006.

MARCUSCHI, L. A. Gêneros textuais: definição e funcionalidade. In: DIONISIO, A. P. et al.


(orgs.) Gêneros textuais e ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2002. p. 19-36.

MARCUSCHI, Luiz Antônio. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São


Paulo: Parábola Editorial, 2008.
1368

Portal da Educação. O que é propaganda? Disponível em:


https://www.portaleducacao.com.br/conteudo/artigos/marketing/o-que-e-propaganda/53698.
Acesso em 30/09 às 10:30.
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PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS: Língua Portuguesa. Brasília: MEC, 2001;
p. 25.

VAN EEMEREN, F. H.; GROOTENDORST, R.; KRUIGER, T. Handbook of


Argumentation Theory: a Critical Survey of Classical Backgrounds and Modern Studies.
Foris Publications Holland, 1987.

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PÔSTER

MEMES: UMA ANÁLISE DO CONTEXTO SOCIOPOLÍTICO BRASILEIRO

Aristóteles Sousa Ferreira (UERN)


Lývia Lorena de Souza Dantas (UERN)
Thâmara Soares de Moura (UERN)
Luciana Fernandes Nery (UERN)

Introdução

A imitação de gestos, ideias e costumes são práticas antigas do ser humano que
permitiram não somente a sobrevivência da espécie sob o prisma biológico, mas, também,
garantiram a perpetuação da organização cultural aos seus descendentes. Dawkins (2001)
denominou, então, de “meme” todos os atos de reprodução, manutenção e disseminação que
perduram as questões socioculturais, seja numa escala vertical ou entre gerações (apud
BRASIL; SILVA, 2016). Em outras palavras, os processos miméticos, consoante com
Gebauer e Wulf, são processos sociais que “produzem significação através de códigos de
comportamentos” apoiados no mimetismo (2004 apud BRASIL; SILVA, 2016, p. 2).
Partindo deste pressuposto, e, considerando o avanço das tecnologias e o aparecimento
de novas práticas de comunicação nas mídias digitais (com ênfase nas redes sociais), a
absorção e compartilhamento de informações deu-se de forma muito mais instantânea e
sintetizada, capaz de disseminar conteúdos e influenciar um número muito maior de
indivíduos. Inseridos neste contexto virtual, os memes, por sua vez, reformularam-se de modo
a unir símbolos, linguagens e ideologias, ou seja, constituíram signos, que conversam
diretamente com o meio exterior ao ciberespaço (político, social e ideológico), representando-
o e usando os usuários como uma espécie de hospedeiros (BRASIL; SILVA, 2016).
Dentro deste contexto socioideológico dos processos meméticos, intensificados pelas
mídias virtuais a partir da difusão instantânea e viral das informações, propõe-se identificar e
analisar, neste trabalho, os diversos discursos políticos existentes nos memes relacionados à
condenação do ex-presidente Lula pelo Juiz Sérgio Mouro, no dia 12 de julho de 2017, sob A
ótica constitutiva e de produção, que envolve aspectos ideológicos, históricos, linguísticos e
1370

imagéticos. Desta forma, a abordagem de tal tema justifica-se no cenário de impacto na


política brasileira que dividiu opiniões em todo país.
Para tanto, será analisado um corpus composto por dois memes retirados da
Página

plataforma Facebook, no dia 13 de Julho do referido ano, sob a perspectiva da Análise do

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Discurso francesa, fundamentando-se em autores e estudiosos da área, como: Brasil e Silva
(2016), contemplando os conceitos, as funcionalidades e a propagação dos processos
meméticos sob um caráter históricossocial e midiático do facebook, adentrando nas questões
imagéticas e sua inclinação ao encurtamento discursivo abordados por Courtine (2003), e, sob
a perspectiva midiática, calcar-se-á em Coulomb-Gully (2014), focalizando os discursos
políticos e seus processos de influência e disseminação.
Mediante as análises, constata-se que a mídia modificou-se, mas que isso não impede
que ideias ainda sejam prescritas. Um exemplo seria um indivíduo que mesmo sendo apenas
acusado de um crime, para sociedade o suspeito já é culpado. Esse senso comum coloca cada
vez mais a política brasileira em descrédito, mas isso também é uma forma de fazer política.
Sendo assim, o fato dos memes se disseminarem rápido só intensifica mais ainda essa
situação, pois eles também somem rápido, pois têm um prazo de validade. A sociedade possui
valores imediatistas, em que tudo é descartável e as lições do passado pouco importam.

1 Memes: um gênero discursivo nas mídias

O termo “meme”, na língua grega, significa imitação. Dawkings (2001) apresenta o


seu conceito como uma prática antiga de transferir e perpetuar conteúdos culturais através de
“unidades de replicação ou imitação (ideais, conceitos, práticas)”. Desta forma, o autor afirma
que “a cultura humana é um ecossistema memético”, uma vez que configura-se numa rede
repleta de significações reproduzidas socialmente. Os memes estariam, portanto, para a
memória social como os genes estão para a genética: interligados, indissociáveis e
constituintes dos seres (apud BRASIL; SILVA, 2016, p. 2).
A partir do desenvolvimento das esferas digitais, o meme surge como um novo gênero
discursivo nestas mídias, mais sintético e instantâneo, “carregado de referência e sentidos”
(JENKINS, 2009 apud BRASIL; SILVA, 2016, p. 3). Desta forma, os sujeitos encontram nas
redes sociais um ambiente interativo, flexível no que concerne à produção e publicação de
conteúdo, o que facilita a disseminação memética nas redes.
Tendo em vista que há presença de conteúdos informativos/ideológicos, construídos
1371

pela união de estruturas linguísticas e imagéticas, Shifman (2013) afirma que, para o
entendimento se dê de forma satisfatória, faz-se necessário que o interlocutor esteja inserido
no contexto de enunciação e/ou tenha conhecimento da referência, caso contrário, o sentido
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não se completará, “pois a decodificação depende do ponto de vista de quem apreende, da

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formação ideológica do expectador” (apud BRASIL; SILVA, 2016, p. 3). Partindo deste
pressuposto ideológico, pode-se materializar, nos memes, discursos políticos, escolares,
médicos, jurídicos, satíricos, entre outros. É, portanto, sob este contexto ideológico nos
memes que os próximos tópicos focarão nos processos de formação dos discursos políticos.

2 Discurso político, mídia e memes

Segundo Couloumb-Gully (2014), no final do século XX, houve uma mudança de


centralidade na política a qual passou a focar mais no indivíduo, havendo assim um
afastamento de ideias mais excessivas causando um amortecimento do discurso político. Algo
que outrora era mais generalizado, hoje se concentra nas características e nas necessidades
mais individuais, claro que se procuram meios de convergência para que hajam metas em
comum. O autor também diz que os discursos midiáticos são tanto prescritivos quanto
descritivos. Um exemplo bem recorrente é o da anorexia que acomete muitos adolescentes,
como a influência de muitos discursos que incitam um padrão de beleza irreal.

Como sucede com todas as “tecnologias do poder” de que fala Michel


Foucalt, as mídias participam diretamente da imposição das normas que
estruturam o Gênero, atuando, assim, senão como um reflexo. O discurso
desses espelhos, que são as mídias, é, na realidade, tanto prescritivo quanto
descritivo (lembremos os danos causados pela anorexia, especialmente nos
adolescentes, como o resultado da incitação ao emagrecimento suscitada
pela exibição de corpos de modelos em revistas). (COULOUMB-GOULLY,
2014, p. 149).

Essas influências estão bem acentuadas nos discursos recorrentes das pessoas, de
modo geral. A forma que elas interpretam o mundo estará totalmente ligada a esses conceitos
predefinidos. Conforme Sargentini (2014), Foucault sempre estudou o discurso, apesar de
admitir, nos anos de 1970, que o seu intuito era mostrar como os sujeitos foram transformados
através da história, e não, observar as formas de poder, como era esperado. Foucault sempre
buscou analisar o discurso na sua materialidade, pois, ele compreendia que o discurso tem que
estar inserido em um contexto histórico-social. Portanto, o discurso é analisado de acordo
1372

com os discursos que o sujeito adquire ao longo do tempo, caracterizando assim, a formação
histórica.
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Compreendemos, então, que para os analistas do discurso, o primeiro legado
de Foucault é própria noção do discurso que não se separa da noção de
sujeito, de acontecimento e de materialidade discursiva. Resta ainda destacar
outro forte legado, que se relaciona com a própria metodologia: trata-se da
proposta foucaltiana do princípio da descontinuidade da história, tema
central também d’A arqueologia do saber (SARGENTINI, 2014, p. 163-164,
grifos do autor).

Nessa perspectiva, o sujeito não pode ser dissociado do contexto histórico-social, pois
o seu discurso é constituído de interdiscursos construídos através do tempo e que são
retomados de acordo com a situação. Outro fato também importante é que Foucault pregava o
pensar diferente, que nem sempre a história seguia fatos lineares e seriais.
Courtine (2003) afirma que a mídia televisiva tem forte influência que pode acarretar
efeitos nocivos aos sujeitos, pois, essa ferramenta de comunicação é carregada de discursos
prescritivos que levam o indivíduo a seguir uma determinada ideologia política. De acordo
com o autor, a democracia sofre com o déficit de apoio social, porque as ideologias políticas
do passado não surgem mais efeitos como antigamente.

A situação, entretanto, é mais complexa. É verdade, desse modo, que as


“grandes narrativas” estão ameaçadas de desaparecimento: fim dos
programas, das enumerações intermináveis de proposições, das dissertações
políticas. Trata-se menos de explicar ou de convencer do que de seduzir ou
de arrebatar: as formas didáticas da retórica política clássica, modeladas pela
instituição escolar, são substituídas por formas novas, que submetem os
conteúdos políticos às exigências das práticas de escrita e de leituras próprias
ao aparelho áudio visual de informação (COURTINE, 2003, p. 22-23).

Seguindo essa linha de pensamento, percebe-se que a velha política perdeu espaço por causa
do surgimento e da eficácia das mídias práticas e rápidas. Dessa forma, as narrativas antigas
não fazem mais efeito como faziam antigamente, porque a mentalidade do sujeito está
mudando em consequência dos meios de comunicação social.

O reinado das formas breves é, assim, o primeiro elemento dessas recentes


transformações da fala pública. É possível ver nelas os efeitos, no campo do
discurso, de uma racionalização do espaço político, totalmente causada pelo
uso de técnicas de comunicação de massa. Na lógica televisa, quer seja
aquela do spot publicitário, da informação ou do debate, as mensagens
1373

simples e curtas são preferidas em relação às longas e complexas.


(COURTINE, 2003, p. 23).
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De acordo com o que foi abordado, nota-se que os discursos mais simplificados estão
sendo os preferidos do público, pois são formas que se adequam melhor de forma que todos
entendem, sem precisar de mensagens complexas, o que, na verdade, dificulta o entendimento
das pessoas. Portanto, sob estas concepções, o próximo ponto ocupar-se-á à análise dos
memes de cunho político produzidos no período em que o ex-presidente Luíz Inácio da Silva,
o Lula, foi condenado a nove anos de prisão por crimes de corrupção passiva e lavagem de
dinheiro na Operação Lava-jato, pelo Juiz Sérgio Moro.

3 Os discursos políticos na construção dos memes referentes à condenação do ex-


presidente Lula

Conforme as discursões fundamentadas Brasil e Silva (2016), Courtine (2003) e


Coulomb-Gully (2014), os memes podem ser conceituados como unidades de reprodução
social que possibilitam a permanência de características culturais, filosóficas, políticas, entre
outros. Com advento das novas tecnologias, bem como o surgimento de novas formas de
relação e compartilhamentos (as redes sociais), a reprodução das informações se deu de forma
muito mais rápida e sintética, atingindo uma maior quantidade de indivíduos sociais.
Acompanhando estas transformações, os memes materializaram-se no contexto virtual
constituindo signos linguísticos carregados de sentido, uma vez que estruturam-se na união de
imagens, unidades linguísticas e ideologias.
Partindo dessa premissa, o processo de construção de um meme pode sofrer influência
de vários discursos ideológicos presentes na sociedade, como, por exemplo, os jurídicos, os
médicos, os políticos, etc., de forma a imprimir as características ideológicas de
determinado(s) grupo(s) social(is), bem como as suas problemáticas. Afunilando esta
discussão à perspectiva do discurso político, percebe-se uma transformação no seu modo de
disseminação com o desenvolvimento e expansão das novas mídias no espaço social. Nestas,
o sujeito é influenciado ideologicamente, construindo suas opiniões a partir do que é imposto
nos meios de comunicação, de forma alienada. Sob estes novos moldes, a democracia
encontra-se ameaçada, uma vez que o sujeito tende a seguir as ideologias políticas de maior
visibilidade, cuja disseminação viraliza-se no meio social. Aproximando estas proposições ao
1374

contexto sociopolítico atual do Brasil, pode-se citar o caso da produção quase que instantânea
dos memes políticos satirizando a condenação do ex-presidente Lula na Operação Lava-Jato,
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pelo juiz Sérgio Moro, no dia 12 de julho de 2017, sob a acusação de lavagem de dinheiro e

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corrupção passiva no que concerne ao triplex no Guarujá recebido como propina pela
Empreiteira OAS.
Fundamentando-se nas proposições anteriores, analisemos agora o meme 1: o referido
meme, mesmo tendo uma intenção inicial voltada para o humor, é carregado de vários
discursos que refletem o momento pelo qual o Brasil está passando. O momento em que o
país está reformulando sua forma de fazer política, não há mais personalidades intocáveis. O
ex-presidente Lula, embora tenha sido um dos presidentes mais populares, não está acima da
lei e foi condenado em primeira instância. O dedo que falta em Lula reflete o discurso da
época em que foi torneiro mecânico no ABC paulista, sendo lá que ele construiu sua carreira
sindicalista que culminou na criação do Partido dos Trabalhadores (PT), e consequentemente
sua eleição para presidência após muitas tentativas. O Lula que foi condenado tantas vezes na
ditadura pela liberdade de expressão e política, hoje é condenado crimes de favorecimento
ilícito e por propina, em um contraste de contextos sociais, se tem discursos que se remetem a
diferentes momentos históricos.
Figura 1:

Fonte: Facebook.

Analisemos, por fim, o segundo meme: neste se torna mais evidente ainda o contraste
entre os diferentes momentos históricos-sociais, e eles consequentemente evidenciam
diferentes discursos. No da esquerda o do Lula preso e injustiçado pela ditadura, por ser
contrário ao regime totalitário estabelecido no Brasil em 1964, o Lula operário e defensor dos
1375

direitos dos trabalhadores oprimidos. Na foto da direita, tem-se um Lula já consolidado, ex-
presidente da república, com fama mundial e amado por uma grande parcela da população
brasileira, mas sendo condenado por crimes de enriquecimento ilícito e uso de influências
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para favorecer empresas privadas. As duas fotos demonstram discursos diferentes e contextos
de prisões totalmente opostos, embora todos tendam ao mesmo lugar, a prisão.

Figura 2:

Fonte: Facebook

Conclusão

De acordo com as discussões anteriores, os memes são unidades de replicação que


refletem e perpetuam determinadas características da sociedade. Quando transformados em
signos linguísticos nas mídias virtuais, estes podem sintetizar e disseminar quase que viral e
instantaneamente ideologias adotadas por determinado(s) grupo(s), sejam elas políticas,
filosóficas, entre outros. Desta forma, fazendo um paralelo ao contexto sociopolítico
brasileiro, é notável os reflexos dos discursos sociais na construção dos memes neste
momento conturbado em que o Brasil está passando.
Partindo dessa premissa, a ideologia do senso comum no corpus analisado é a de que
todos os políticos são corruptos. As imagens discursivas do presidente Lula em questão são
carregadas de vários sentidos polarizados. Mesmo tendo um caráter mais humorístico, trazem
sentidos interdiscursivos e imagéticos que transitam entre toda a trajetória política de Lula até
os últimos acontecimentos. A exemplo disso, um dos memes brincam com o fato do ex-
1376

presidente só ter nove dedos, coincidindo com a quantidade de anos que ele foi condenado. O
segundo, por sua vez, num contraste entre o passado e o recente, ilustra todo conceito
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sociohistório do tempo que Lula foi preso, na Ditadura, equiparando um fato atual acerca da
Lava-jato.
Num olhar mais amplo por sobre os seus aspectos ideológicos constitutivos, é possível
encontrar a posição política e crítica de uma parte da população brasileira, uma vez que, a
partir da formação ideológica dos indivíduos sociais, cria-se grupos com posturas políticas
distintas que retomam ideias favoráveis ou contra às concepções difundidas na sociedade.
Desta forma, mediante a pluralidade de posicionamentos ideológicos relacionados a política
brasileira, vale ressaltar que inúmeras opiniões podem ser suscitadas a partir das imagens
anteriores, não podendo, portanto, os estudos discursivos findarem-se em apenas um ângulo
de observação, abrindo espaço, assim, para outros possíveis vieses de análise.

Referências

BRASIL, Lívia Maia; SILVA, Josimey Costa. Memes imagéticos e as Eleições


Presidenciáveis de 2014 no Brasil: uma análise do discurso e da produção de sentido no
Facebook. Disponível em: <http://www.portalintercom.org.br/anais/nordeste2016/Resumos
/R52-2134-1.pdf>. Acesso em: 29 jul.2017.

GREGOLIN, Maria do Rosário. Discurso e mídia: a cultura do espetáculo. São Carlos: Clara
Luz, 2003.

PIOVEZANI, Carlos; CURCINO, Luzmara; SARGENTINI, Vanice. Presenças de Foucault


na Análise do discurso. São Carlos: EduFSCar, 2014.

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PÔSTER

ENIGMAS DE UM CORPO FANTÁSTICO: UM ESTUDO DE DOIS CONTOS DE


CADEIRAS PROIBIDAS DE IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO

Ana Laura Oliveira Lopes (UERN)


Leylyane Rafaela Silveira de Negreiros (UERN)
Monica Valéria Moraes Marinho (UERN)
Antonia Marly Moura da Silva (UERN)

Introdução

Este trabalho consiste em parte dos resultados da pesquisa intitulada “Do conto
fantástico e seus arredores” (UERN), em andamento. O propósito nesse recorte é desenvolver
um estudo dos contos “O homem do furo na mão” e “O homem cuja orelha cresceu”,
integrantes da obra Cadeiras proibidas (1976) de Ignácio de Loyola Brandão. Trata-se de
uma coletânea de narrativas fantásticas cuja estranheza surpreende o leitor já a partir dos
títulos, além das elencadas como o corpus desta análise, outras igualmente levam títulos
extraordinários, a saber: “O homem que perdeu as letras do livro”; “Os homens que se
transformavam em barbantes”, “O homem que dissolvia xícaras”, “O homem que atravessava
portas de vidro”, “O homem que telefonou para ele mesmo”, “O homem que se endereçou”,
dentre outros. São histórias que narram “[...] um mundo alucinado, em delírio, parecendo
fantasia, [...]” (BRANDÃO, 1998, p.72), como descreve o próprio autor.
Em nossas hipóteses, defendemos que o grotesco é um recurso utilizado pelo escritor
para realçar a conexão entre o literário e o ideológico, pois nos contos, pelo viés do absurdo,
observa-se uma patente denúncia da anormalidade da condição humana, como a exclusão
social e a coisificação do homem moderno. Na leitura pretendida, buscam-se as configurações
do fantástico e do estranho na ação dos personagens, sobretudo, na representação disforme e
alegórica do corpo. Nessa perspectiva, tomamos como referencial teórico os conceitos de
Todorov (1975), Bessière (1974), Ceserani (2006) e Roas (2014) sobre o fantástico, o
conceito de estranho de Freud (1919), o que postulam Hugo (2002) e Batalha (2008) sobre o
grotesco, bem como textos da fortuna crítica de Ignácio de Loyola Brandão.
1378
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1 Do fantástico, do estranho e do grotesco, conceitos basilares

De origem que remonta à Antiguidade, sendo mesmo anterior às letras, o fantástico


sempre esteve presente na criação literária de todos os tempos. Desde textos pagãos, como os
oriundos da mitologia greco-latina, às escrituras sagradas do cristianismo, como as narrativas
bíblicas, o fantástico figura em enredos insólitos. Entretanto, apesar das figurações do
fantástico na literatura no decorrer dos séculos, o marco histórico apontado por grande parte
dos estudiosos como ponto de eclosão da literatura fantástica são os séculos XVIII e XIX.
Trata-se da época em que essa modalidade de ficção encontra as condições ideais para o seu
desenvolvimento – tendo em vista todo o contexto de rejeição às crenças na supremacia da
razão, que tem origem no Iluminismo – e se delineia como discurso literário mais ou menos
definido. A partir disso, uma quase totalidade de críticos cita o romance Le diable amoureux
(1772) do autor francês Jacques Cazotte como o texto fundante do fantástico. Posteriormente
a esse, outros grandes nomes são mencionados enquanto ícones da literatura fantástica, como
Hoffmann, Mary Shelley, Robert Louis Stevenson, dentre outros.
Referência clássica sobre o fantástico, Todorov (2012) postula que o âmago das
narrativas fantásticas consiste em nos colocar em um mundo conhecido, como o nosso, na
presença de um evento aparentemente sobrenatural, que provoca uma ruptura das leis aceitas
como naturais nesse mundo que consideramos real.

Num mundo que é exatamente o nosso, aquele que conhecemos, sem diabos,
sílfides nem vampiros, produz-se um acontecimento que não pode ser
explicado pelas leis deste mesmo mundo familiar. Aquele que o percebe
deve optar por umas das duas soluções possíveis; ou se trata de uma ilusão
dos sentidos, de um produto da imaginação e nesse caso as leis do mundo
continuam a ser o que são; ou então o acontecimento realmente ocorreu, é
parte integrante da realidade, mas nesse caso esta realidade é regida por leis
desconhecidas para nós (TODOROV, 2012, p. 30).

Entretanto, ainda à luz da perspectiva todoroviana, é fundamental que aquele que


percebe o fenômeno insólito não consiga optar por umas dessas soluções possíveis, que não se
estabeleça uma explicação para tal transgressão do real. Pois se houver uma explicação
1379

racional para o acontecimento considerado insólito, adentra-se ao campo do estranho; e se o


leitor admitir novas leis para esse mundo e aceitar esse acontecimento como natural, entra-se
no terreno do maravilhoso. O fantástico todoroviano se sustenta, portanto, da
Página

inexplicabilidade de uma quebra na normalidade. Assim postula Todorov (2012, p. 47-48):

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O fantástico [...] dura apenas o tempo de uma hesitação: hesitação comum ao
leitor e à personagem, que devem decidir se o que percebem depende ou não
da “realidade”, tal qual existe na opinião comum. [...] Se ele decide que as
leis da realidade permanecem intactas e permitem explicar os fenômenos
descritos, dizemos que a obra se liga a um outro gênero: o estranho. Se, ao
contrário, decide que se devem admitir novas leis da natureza, pelas quais o
fenômeno pode ser explicado, entramos no gênero do maravilhoso.

Assim, na concepção de Todorov (2012), a manifestação do fantástico está


condicionada a três requisitos: primeiro, o leitor deve hesitar entre uma explicação racional e
uma sobrenatural; segundo, a hesitação pode ou não ser compartilhada pela personagem do
texto; e terceiro, o leitor deve recusar uma leitura tanto alegórica quanto poética.
Um ponto crucial a ser observado nesse conceito é que o sobrenatural, a despeito de
sua importância, não se constitui sozinho como condição para a manifestação do fantástico.
Trata-se de um ponto importante da teoria todoroviana, pois o realismo é uma necessidade
estrutural de todo texto fantástico, tal como afirma Roas (2014, p. 30-31):

A maioria dos críticos coincide em assinalar que a condição indispensável


para que se produza o efeito fantástico é a presença de um fenômeno
sobrenatural. Mas isso não quer dizer que toda a literatura com intervenção
do sobrenatural deva ser considerada fantástica. [...] Assim, para que a
história narrada seja considerada fantástica, deve-se criar um espaço similar
ao que o leitor habita, um espaço que se verá assaltado pelo fenômeno que
transtornará sua estabilidade.

Segundo Roas (2014), essa necessidade de verossimilhança é fundamental para que o


inaceitável passe como real, que se imponha como factível, e, dessa forma, o objetivo do
fantástico, que consiste em subverter a percepção que o leitor tem do mundo real, seja
alcançado. Estudioso contemporâneo do fantástico, Roas (2014) afirma que o fantástico é um
gênero marcado pelo efeito intranquilizador, que se caracteriza na substituição do familiar
pelo estranho quando nos defrontamos com algo impossível de explicar a partir de nossos
códigos de realidade.
A ideia de fantástico enquanto violação do real vigente, ou quebra da ordem cotidiana,
também é encontrada na ótica de Cortázar (2006). Tomando sua própria contística como
1380

exemplo, esse escritor propõe que o fantástico é originado na realidade e não fora dela.
Segundo Cortázar (2006, p. 148), seus contos fantásticos “se opõem a esse falso realismo que
Página

consiste em crer que todas as coisas podem ser descritas e explicadas como dava por

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assentado o otimismo filosófico e científico do século XVIII”. Dessa forma, ele acaba por
levantar questionamentos mesmo sobre a concepção que se tem do real, sugerindo que esse é
mais abrangente do que supõe um “realismo demasiado ingênuo”.
O pressuposto de que o real é elemento estruturante do modo fantástico também é
postulado por Irène Bessière (2009, p. 2). Segundo essa estudiosa francesa, o fantástico
pressupõe uma lógica narrativa que reflete “as metamorfoses culturais da razão e do
imaginário coletivo” a partir de quadros sócio-culturais que definem os domínios do natural e
do sobrenatural, do real e do surreal, do banal e do estranho, a depender de cada época.
Assim, não basta o inverossímil para definir o fantástico, pois esse instala as fraturas das
convenções e, sendo assim, inevitavelmente, se nutre do cotidiano e destaca desse as
contradições.
Pertinente também para compreensão da literatura fantástica são as concepções
freudianas sobre o estranho. Segundo Freud (1996), o estranho é algo familiar e há muito
tempo guardado na mente que se desdobra em algo desconhecido porque se encontra
recalcado, escondido no inconsciente e, por isso, quando vem à tona é inquietante, assustador,
sinistro, esquisito e incômodo. Conforme esse autor, há duas categorias de experiência
estranha, o estranho proveniente de crenças superadas e o estranho oriundo de complexos
infantis reprimidos. Pois, como afirma o próprio Freud (1996, p. 260), “o animismo, a magia
e a bruxaria, a onipotência dos pensamentos, a atitude do homem para com a morte, a
repetição involuntária e o complexo de castração compreendem praticamente todos os fatores
que transformam algo assustador em algo estranho.” O autor destaca sobre o efeito de
estranhamento que este ocorre “quando se extingue a distinção entre imaginação e realidade,
como quando algo que até então considerávamos imaginário surge diante de nós na realidade,
ou quando um símbolo assume as plenas funções da coisa que simboliza”. (FREUD, 1996, p.
261). Assim, quando esses resíduos do inconsciente vêm à tona, suspeitosamente, em
pressentimentos e suposições que parecem se confirmar na realidade material, antigas crenças
ascendem e o emparelhamento do arcaico e do presente ocasiona o efeito estranho.
O conceito de estranho, tal como concebe Todorov (2012), adquire contornos de um
gênero que esse estudioso utiliza para distanciar do que ele entende como fantástico. Portanto,
1381

é um conceito inserido no âmbito dos estudos teóricos do insólito, diferentemente da ótica


freudiana, focada em uma perspectiva psicanalítica. Com a necessidade de explicar o
fantástico como um gênero situado no limite entre o estranho e o maravilhoso, Todorov
Página

(2012) examina esses dois gêneros vizinhos e mostra que entre cada um deles e o fantástico

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surge um subgênero transitório. Entre o fantástico e o estranho, tem-se o “fantástico-estranho”
e “o estranho puro”. Começando pelo fantástico-estranho, esse ocorre quando acontecimentos
se apresentam como sobrenaturais no decorrer de toda uma história, mas recebem uma
explicação racional no fim. Se por muito tempo esses acontecimentos levam personagem e
leitor a acreditar na intervenção do sobrenatural, são considerados acontecimentos insólitos.
Todorov (2012) frisa, ainda, que essa variedade costuma ser descrita pela crítica como
“sobrenatural explicado”. Já o estranho puro apresenta acontecimentos que podem ser
explicados pelas leis da razão plenamente, mas que de qualquer forma não deixam de ser
extraordinários, inquietantes e insólitos. O estranho realiza a descrição de reações como o
medo e “está ligado unicamente aos sentimentos das personagens e não a um acontecimento
material que desafie a razão” (TODOROV, 2012, p. 53).
Ceserani (2006), ao se referir especificamente ao conto fantástico, afirma que esse
envolve fortemente o leitor, coloca-o em um mundo que lhe é familiar para, a partir disso,
ativar a surpresa, a desorientação e o medo. A essa assertiva, Ceserani (2006, p. 71)
acrescenta que em muitas narrativas fantásticas “um elemento sutilmente humorístico
acompanha o elemento do terror [...]” e por vezes o resultado disso é o grotesco.
No prefácio do Cromwell, cujo título Do grotesco e do sublime já introduz essas duas
categorias estéticas como antagônicas, Victor Hugo (2002) cita uma série de pares opostos
nos quais o grotesco se situa ao lado do feio, do disforme, do mal e da sombra, enquanto o
sublime é ladeado pelo belo, o gracioso, o bem e a luz. Assim afirma Hugo (2002, p. 26) “[...]
o feio existe ao lado do belo, o disforme perto do gracioso, o grotesco no reverso do sublime,
o mal com o bem, a sombra com a luz.”
O grotesco consiste na diferença fundamental que separa a arte moderna da arte antiga,
a literatura romântica da literatura clássica, tal como afirma Hugo (2002, p. 28):

[...] é da fecunda união do tipo grotesco com o tipo sublime que nasce o
gênio moderno, tão complexo, tão variado nas suas formas, tão inesgotável
nas suas criações, e nisto bem oposto à uniforme simplicidade do gênio
antigo; mostremos que é a partir daí que é preciso partir para estabelecer a
radical e real diferença entre as duas literaturas.
1382

Assim, Hugo (2002) ressalta a importância do grotesco para a arte por esse contrastar
o sublime, visto que nos quadros da tradição clássica o que imperava era o sublime sobre o
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sublime, o belo estava em tudo e isso o tornava cansativo. Unindo o disforme ao sublime e o
riso ao sinistro, o grotesco, forma híbrida marginalizada até o Romantismo, torna o belo
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antigo muito maior na estética que se impõe nos primórdios do século XIX. Ao contrário do
grande conjunto épico da Antiguidade, em que a comédia passa despercebida, o grotesco tem
um papel imenso no pensamento da Modernidade, estando por toda parte, “de um lado, cria o
disforme e o horrível; do outro, o cômico e o bufo” (HUGO, 2002, p. 30-31). Vale ressaltar
que a comédia e o grotesco não eram absolutamente desconhecidos entre os antigos, no
entanto, como na Antiguidade a epopeia pesava sobre a arte imprimindo sua forma em tudo,
“o grotesco antigo é tímido” e passa quase despercebido.
Na trilha de Hugo, Batalha (2008) destaca que a sedução dos românticos em relação
ao grotesco se explica, sobretudo, por essa ruptura com a tradição. Segundo essa estudiosa é
inerente à essência do grotesco “a associação entre o cômico e a feiúra, a ligação entre o riso e
o sofrimento, e a presença, em um mesmo personagem, da felicidade e da infelicidade”
(BATALHA, 2008, p. 184). É também próprio dessa estética o primado de uma poética do
estranho e do mórbido, que produz um jogo com o terror e, por vezes, com o repugnante.
Trata-se de uma categoria cara ao fantástico, pois, tal como esse modo narrativo, o
grotesco se liga:

[...] ao imaginário e à realidade da qual ele representa uma de suas faces, que
este desvela pela ótica da deformação. Assim, o grotesco torna-se mais
inquietante do que os discursos racionalistas, pois opera a transgressão do
princípio mimético da reprodução realista do mundo familiar (BATALHA,
2008, p. 188).

Observa-se, desse modo, como o grotesco se associa ao fantástico, uma vez que ambos
vinculam-se ao imaginário e rompem com a lógica vigente de reprodução do real. São
perturbadores ainda, pois não raro o disforme versa no fantástico como tradução do que foge
de nosso entendimento. Ademais, tal como postula Wolfang Kayser apud Batalha (2008), as
representações grotescas se revelam oposições inequívocas a todo racionalismo e sistemática
de pensar, e nisso também se assemelha ao fantástico, que tal como aquele costuma engendrar
ordens antagônicas.

2 Entre corpos fantásticos: uma leitura de “O homem do furo na mão” e “O homem


cuja orelha cresceu”
1383

Nos contos que serão analisados, veremos como o insólito é usado para construção da
Página

narrativa e para a denúncia social. Em textos onde são trazidos o universo de pessoas comuns,

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em ambientes e momentos corriqueiros, de ambiente urbano, sem nomes apresentados, que
tem suas vidas transformadas após sofrerem uma anormalidade em seus corpos, o autor
tenciona trazer esse leitor para uma realidade onde são expostas a condições de exclusão
social causada por uma certa singularidade.
No primeiro texto, “O Homem do Furo na Mão”, a rotina monótona do personagem é
quebrada após aparecer, misteriosamente, um oríficio em sua mão. “Um orifício perfeito.
Como se tivesse sempre estado ali. Nascido” (BRANDÃO, 2002, p. 20). Dá-se o mistério e a
trama se inicia. O autor, em seguida, nos mostra o transtorno ocasionado ao personagem. No
primeiro instante, este se orgulha pelo ocorrido, tornou-se um ser diferente, fugiu do padrão
de uma sociedade onde todos são iguais. Porém, percebe que tal particularida causa
desequilíbrio a ordem e logo ele é excluído pelos os que os cercam.
A possiblidade de não se enquadrar nos padrões implicitamente exigidos provoca uma
culpa que o protagonista nem entende o porquê de possuir. A impessoalidade do ambiente de
trabalho, onde a uniformização de comportamento é demandada, coloca o mesmo num
impasse.
A percepção da própria singularidade o causa uma maior liberdade de pensamento. O
que antes era uma vida apática, apresenta-se com novas possibilidades, já que a existência do
relacionamento não contemplava elementos básicos como a compreensão e o contato com o
outro. Por ter sido encarada como positiva, a partida da mulher se configura como um reforço
de estereótipos desempenhados pelos papéis de masculino e feminino na sociedade.
As sequências, no entanto, apresentam-se desastrosas, todas diferentes do que o
protagonista espera, ele percebe que o furo na mão que o faz sentir diferente e especial é o
mesmo que o faz ser excluído de todos os ambientes que frequenta: ônibus, cinema e até do
trabalho. O trecho abaixo, com um diálogo referente ao momento em que o personagem foi
despedido, remete à duvidosa legalidade que permitia ao governo militar limitar a liberdade
individual. O exagero da narrativa é uma estratégia para provocar o um questionamento
destas:

– E o meu dinheiro? A indenização?


– Indenização? Você foi demitido por justa causa.
1384

– Justa causa?
– É proibido ter buraco na mão. Não sabia?
– Nunca existiu isso nos regulamentos.
– Existe. Está no Decreto Inexistente.
Página

– Quero ver.

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– É inexistente. O senhor não pode ver (BRANDÃO, 2002, p. 24).

O fato de ter sido produzido no período da ditadura militar nos abre a compreensão da
direção da crítica. Nesse período a tentativa era padronizar o comportamento da população, de
modo que todos fossem servis e disciplinares, lê-se isso a partir da exclusão sofrida pelo
protagonista.
Após as sucessivas exclusões o protagonista caminha sem destino, buscando descanso
em uma praça, mas só encontra acolhimento debaixo de um viaduto, onde podia usufruir sua
singularidade em meio a marginalidade e exclusão. O conto se encerra com o trecho abaixo:

Vagabundos (seriam vagabundos?) tinham acendido uma fogueira. Acordou,


o sol nascendo, levantou-se rápido. De pé, lembrou-se que não precisava ir
ao emprego, ir a lugar nenhum. Sentou-se de novo, vendo os vagabundos
(seriam vagabundos?) tomarem o que parecia café. Aproximou-se. Um deles
estendeu uma lata. Quando olhou a mão do homem, viu nela um orifício de
uns dois centímetros de diâmetro que atravessava da palma às costas. Então,
ele também mostrou a mão. O homem não disse nada. Ele tomou o café.
Ralo, de pó catado nos lixos dos bares, já tinha passado uma ou duas vezes
pelo coador. Serviu para assentar o estômago (BRANDÃO, 2002, p. 27).

À margem da sociedade o protagonista encontra outros excluídos como ele. Os


parênteses que destacam a pergunta repetida: “seriam vagabundos?”, têm um caráter de
reflexão. O comportamento do protagonista, que tenta ir contra as situações opressoras, se
apresenta inútil, isso porque os motivos que causam exclusão social frequentemente não
fazem sentido, como é possível ter argumentos quanto a uma opressão que nem faz questão de
se explicar? A pergunta entre parênteses questiona justamente a exclusão do diferente e do
considerado imperfeito numa sociedade que hipocritamente define parâmetros excludentes e
ao mesmo tempo lamenta a marginalização existente.
Seguindo a temática da exclusão sobre um viés diferenciado, o conto “o homem cuja
orelha cresceu” traz a necessidade de reflexão sobre as ações sociais diante do que é diferente
e sobre a instabilidade dos papéis que se ocupa dentro da sociedade.
Logo de início temos a descrição de um homem trabalhador e solitário, que se dedica
exaustivamente a função de se manter útil e sobrevivente: “... eram 11 da noite, estava
1385

fazendo hora extra. Escriturário de uma firma de tecidos, solteiro, 35 anos, ganhava pouco,
reforçava com extras.” (BRANDÃO, 2002, p. 51). Logo adiante, ao descrever que as orelhas
Página

do protagonista crescem misteriosamente e sem parar, o narrador reforça o fato de o mesmo

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ser solitário: “Se tivesse um amigo, ou namorada, iria mostrar o que esta acontecendo. Mas o
escriturário não conhecia ninguém a não ser os colegas de escritório. Colegas, não amigos.”
(BRANDÃO, 2002, p. 51).
Temos nesse conto, à priori, uma diferença peculiar quanto ao conto anterior. Neste a
singularidade do personagem não causa deconforto aos demais, mas a ele próprio, e vemos
que os outros se aproveitam momentaneamente da vantagem ocasionada do seu
agigantamento da orelha. Obviamente, o volume exarcebado de uma orelha traz um incomodo
relevante, justamente se dá a natureza distinta da anormalidade em relação ao outro conto:
embora sejam eventos semelhantes, o propósito é outro. Um conto visa a denúncia de uma
realidade onde a singularidade é motivo de exclusão social. O outro, a denúncia a de um
sistema social que facilmente descarta as pessoas conforme estas deixam de ter valia.
“Incapaz de pensar, dormiu de desespero... Tentou se levantar. Difícil. Precisava
segurar as orelhas enroladas. Pesavam. Ficou na cama.” (BRANDÃO, 2002, p. 51). O que
acontece com o protagonista sugere os sentimentos de inadequação e apatia que um enfermo
possui ao se encontrar em estado depressivo, o personagem dorme o tempo todo por não saber
o que fazer diante de seu conflito.
A partir do momento em que as orelhas crescem progressivamente e deixam de fazer
parte somente do espaço do homem que as possui este deixa de ser protagonista. A sociedade,
ao mesmo tempo em que assustada com aquela manifestação incomum, procura tirar proveito
do inusitado, e nesse momento todas as camadas da sociedade (incluindo a marginalizada) são
beneficiadas: “O prefeito mandou dar carne aos pobres. Vieram os favelados, as organizações
de assistência social, irmandades religiosas, donos de restaurantes, vendedores de
churrasquinho na porta do estádio, donas de casa.” (BRANDÃO, 2002, p. 51).
É nesse momento que o cerne da crítica ganha destaque, o protagonista nem é mais
lembrado, seus sentimentos e sensações diante daquilo tudo são ignorados pelo narrador tal
como pela sociedade. Enquanto isso o diferencial perde o caráter de novidade e a população
perde o interesse no que até então era benefício: “E a orelha crescia, era cortada e crescia, e os
açougueiros trabalhavam. E vinham outros açougueiros. E os outros se cansavam. E a
sociedade não suportava mais carne de orelha.” (BRANDÃO, 2002, p. 52). O fato de não
1386

existe marcação de tempo depois do início do conto demonstra que os acontecimentos


desenvolvem em curto período, nesse ponto reside a crítica quanto a liquidez dos status
sociais, que podem partir da evidência para o declínio em um curto espaço de tempo.
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O desfecho sinaliza um posicionamento ainda mais cruel do que o de exclusão do
conto anterior, ao sugerir o extermínio do dono da orelha através da fala de uma criança: “E
quando não havia mais solução, um menino, diante da rua cheia de carne de orelha, disse a
um policial: ‘Por que o senhor não mata o dono da orelha? ’” (BRANDÃO, 2002, p. 52).
Isto abre um questionamento sobre o modo que as pessoas podem ser subjugadas e
descartadas dentro da sociedade mediante suas utilidades sociais, assim como abre à
interpretação sobre a naturalidade e crueza que esses comportamentos são passados para a
nova geração.
Em ambos os contos o narrador não nomeia seus protagonistas e fornece ao leitor
poucas pistas quanto aos sentimentos e pensamentos destes. Essa impessoalidade é
estratégica, ao classificar os personagens simplesmente como “homem” o autor colocar o
leitor numa posição reflexiva e questionadora: Será que as estranhezas e absurdos do universo
fantástico podem estar presentes na chamada vida real?

Conclusão

Apartir dessa análise, vimos que a anormalidade na mão e o agigantamento da orelha ,


enfim, o fenômeno insólito, é a peça para o desencadeiamento de toda a estória. É através
desse elemento fantástico que o autor desenvolve sua analogia e nos possibilita a reflexão
sobre a denúncia social que envolve a trama. É quandos os personagens tem seus destinos
alterados pela deformidade em seus corpos que a próblemática se inicia.
Vale a pena notar que os personagens não se sentem intrigados com o aparecimento
misterioso da deformidade, preocupam-se apenas com as consequências dele. Essa vacilação
vem a nós leitores, mas não invadem o universo da trama, como se o inexplicável valesse
apenas pra nós, como se não houvesse o sobrenatural e tais acontecimentos fossem
esperáveis. Logo, nos faz concluir que esse recurso é utilizado pelo autor, propositalmente,
para gerar uma analogia de múltiplas interpretações. Se tais fatos não são sobrenaturais, então
a que se referem? O que o autor está querendo nos dizer?
Eis uma das diversas vantagens da literatura fantástica, sua natureza mística abre
1387

possibilidades para interpretações distintas. Fato que faz muitos autores utilizá-la como
recurso em suas tramas, pois podem realizar uma denúncia sem, de fato, falar sobre ela.
Ignácio de Loyola Brandão, em seus contos, patentemente denuncia a realidade sufocante da
Página

ditadura militar e o fantástico é sua ferramente para isso.

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Referências

BRANDÃO, Ignácio de Loyola. Cadeiras proibidas. 9. ed. São Paulo: Ed. Global, 2002.

____. Cadernos de literatura brasileira. São Paulo, n. 11, 2001.

____. O homem do furo na mão & outras histórias. São Paulo: Ática, 1998.

BESSIÈRE, Irène. O relato fantástico: forma mista do caso e da advinha. Revista Fronteiraz.
PUC-SP, vol. 3, nº 3: 1-18, São Paulo, set. 2009. Disponível:
<http://revistas.pucsp.br/index.php/fronteiraz/issue/view/875. Acesso em 22.03.2015>.

CESERANI, Remo. O fantástico. Trad. de Nilton Cezar Tridapalli. Curitiba: Ed. UFPR,
2006.

CORTÁZAR, Julio. Valise de Cronopio. Trad. Davi Arrigucci Jr. e João Alexandre Barbosa.
2 ed. São Paulo: Perspectiva, 2006.

FREUD, Sigmund. O estranho. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas
completas de S. Freud. V. XVII. Trad. dirigida por Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago,
1996. p. 237-269.

HUGO, Victor. Do grotesco e do sublime. Trad. Célia Berretini. 2. ed. São Paulo:
Perspectiva, 2002.

ROAS, David. A ameaça do fantástico: aproximações teóricas. Trad. Julían Fuks. São Paulo:
Ed. Unesp, 2014.

TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. Trad. Maria Clara Correa Castelo.
4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2012.

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PÔSTER

ANÁLISE DO GÊNERO NOTÍCIA À LUZ DAS TEORIAS BAKHTINIANAS

Bárbara Luíza Alves Rubio (UERN)220


Maria Caroline Andrade de Lima (UERN)221
Jammara Oliveira Vasconcelos de Sá (DLV /UERN)

1 Introdução

Os estudos de Bakhtin sobre os gêneros tem ganhado espaço na esfera acadêmica,


neste trabalho será realizada uma análise do gênero notícia, tomando como referencia as
reflexões de Rodrigues (2005) e Gubert (2015) a respeito cos conceitos de Bakhtin.
Será analisada uma matéria da revista Veja, Um jogo em que todos ganham da edição
2523, que trata sobre o processo da terceirização dos empregos e como isso afetará a
sociedade. A análise trará os aspectos verbais, como as escolhas estilísticas do autor, e os
pontos sociais como o público foco da matéria e a esfera social que a notícia atinge.

2 Perspectivas dos gêneros do discurso e da linguagem

Rodrigues (2005) destaca a importância da terminologia nas obras a respeito do


Círculo, visto que as traduções se apropriam de termos que flutuam em determinados
momento do texto:

Por exemplo, enquanto na tradução brasileira do livro Marxismo e filosofia


da linguagem (Bakhtin [Voloshinov], 1988 [1929]) encontram-se, entre
outros, os termos gêneros linguísticos e categorias de atos de fala (p.43 e
124), na tradução de língua inglesa, nas mesmas passagens, os termossão
speech genrese speech performance (2000), p. 20 e 96) (RODRIGUES,
2005, p. 154) [grifos do autor]

Portanto, compreender os gêneros textuais é, antes de tudo, examinar as bases que


fundamentam seu conceito, especialmente porque Bakhtin tenta cunhar novos termos no
desenvolvimento das obras.
1389
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220
Aluna de Graduação em Letras/Português pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte.
221
Aluna de Graduação em Letras/Português pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte.

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O conceito de língua encontrado no Círculo difere das demais concepções
historicamente reconhecidas: a Filosofia da Linguagem e a Gramática Normativa. Para a
primeira, a língua seria expressão concreta do pensamento, ou seja, se o mundo figura os fatos
da realidade, a língua puramente os expressa. Esse pensamento, que se encontra na primeira
obra de Wittgenstein, perdura até o momento em que o filósofo desenvolve a teoria dos Jogos
de Linguagem. Já a Gramática Normativa compreende a língua como sistema abstrato de
formas. Por isso, o estruturalismo teria o seu limite no próprio enunciado (como estrutura,
frase), e as únicas alterações possíveis nesse sistema ocorreriam nos eixos paradigmático e
sintagmático.
Para Bakhtin, no entanto, o conceito de língua acentua uma nova forma de enxergar o
mundo. Segundo o autor, a realidade fundamental que compete seu modo de existência é o
fenômeno social da interação verbal. Dessa forma, o termo língua é utilizado ao lado do
termo discurso, quando remete as situações concretas e pragmáticas; e são utilizados em
oposição quando língua é igual a sistema.
Outro conceito que deve ser esclarecido e que é apontado por Rodrigues (2005) em
seu trabalho é a definição de enunciado, que diferencia-se da Linguística Textual e da
Argumentação. Na primeira, área o termo aparece muitas vezes como definição da
textualidade, e a expressão “sequência de enunciados intercambiada por sequencias de frases
(RODRIGUES apud KOCH; TRAVAGLIA, 2005, p. 157). Já na Argumentação há uma
dicotomia entre frase e enunciado, sendo a primeira uma entidade linguística abstrata e a
segunda a frase + o contexto em enunciação. As duas visões têm suas reflexões sobre
enunciado numa perspectiva mais reducionista que a de Bakhtin.
Para o autor, o enunciado consiste em uma unidade da comunicação discursiva que
transcende os limites do próprio texto. Bakhtin afirma que os romances, as crônicas, as
notícias, entre outros, são exemplos de enunciados. Outra característica do enunciado
bakhtiniano é o fato de apoiar-se nos “já ditos”, de forma que as falas sempre estão
sustentadas por outras vozes no discurso, e por esse fator diferencia-se do termo texto. Este,
por sua vez, seria o dado primário, o ponto de partida para abstração do sentido imposto pelo
autor em seu discurso. No entanto, as traduções usam os termos como intercambiáveis e
1390

causam a mesma oposição encontrada no conceito de língua.


Além dessas reflexões, é importante ressaltar o conceito de gênero. Este é destacado
por Rodrigues (2005) pelo fato de Bakhtin optar pelo termo gêneros do discurso, e que eles
Página

seriam “tipos relativamente estáveis de enunciados” (RODRIGUES, 2005, p. 163),

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historicamente reconhecidos pelas comunidades discursivas e convencionado. Os gêneros
atuam nas diferentes esferas sociais e têm funções distintas. Ademais, como estão vinculados
às situações sociais, e visto que há uma infinitude de relações, entende-se que o gênero
apresenta um repertório infinito e se “complexifica” à medida das mutações.
É através dessas reflexões acerca dos gêneros discursivos que fundamentou-se a
pesquisa desse trabalho. Também tomou-se como base a análise, e as contribuições de Gubert
(2015) para o exame das matérias da revista “Veja”, publicadas no ano de 2017 e 2016. Com
a análise, tentar-se-á conhecer os objetivos imbricados nas notícias, observando o impacto nas
esferas sociais desse gênero discursivo.

3 Análise do gênero notícia

A notícia proposta para a análise do gênero foi publicada em uma revista de grande
influência nacional, a revista “Veja”, que pode ser encontrada online e em bancas de jornal.
Para o recorte, analisaremos uma notícia sobre a reforma da terceirização intitulada de “Um
jogo em que todos ganham”, na revista Veja (ed.2523).
Para o estudo e análise do gênero utilizaremos dois métodos propostos por Rodrigues
(2005), são eles compostos da seguinte forma: o 1° passo é definir a esfera em que o gênero
está inserido, que no caso desse trabalho é a esfera jornalística, e o 2° passo é feito a análise
do gênero em definitivo, abordando a dimensão social e a dimensão verbal da notícia.

3.1 Dimensão social do gênero notícia

Antes de a notícia ser propriamente escrita, é levado em consideração o meio social e a quem
a notícia deverá atingir. Quando é produzida e antecedentemente de ser publicada, a matéria
passa por uma revisão que seleciona o material a partir do interesse e do propósito da notícia.
Rodrigues (2005) relata que

Entre o processo da produção e o da interpretação dos enunciados na


comunicação jornalística, que ‘regulamente’ as diferentes interações nesse
1391

espaço, ‘filtra’, ‘interpreta’ (impõe um acento de valor) e põe em evidencia


os fatos, acontecimento, saberes, opiniões etc. que farão parte do universo
temático-discursivo jornalístico (RODRIGUES, 2005, p.170, grifo do autor).
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A notícia analisada não deixa espaço para a interação direta do autor com o leitor, em
que a opinião e o contato com o interlocutor não influencia na construção da publicação.
Antes de construída, o autor leva em consideração o tempo que a notícia é importante e válida
para o público leitor, tendo em vista que em um determinado momento, ela perde a sua
utilidade de informação.
Nesta perspectiva, a matéria publicada na Veja (ed. 2523) em março de 2017, tem
como o tema a reforma da terceirização, um assunto polêmico e muito comentando na época
em que a revista foi publicada. O autor escolhe e opina sobre o tema da matéria, trazendo um
assunto cotidiano e que apresenta relatos de valor sobre o tema escolhido. No caso da matéria
analisada, a temática selecionada tem valor político e o autor apresenta opiniões de pessoas
que têm grande influência sobre esse assunto, tudo isso visando às características sociais que
a matéria é publicada.
A publicação é dirigida para as classes sociais em que a noticia é de grande atuação e
de interesse, embora que a revista seja disponível para todos os interlocutores, tanto na
internet quanto nas bancas de jornal, nem todas as pessoas apresentam condições para
comprar a revista ou para acessar pela internet mensalmente. Na situação da Veja (ed.2523), o
público alvo são os leitores de classe média e classe média alta, que oferecem condições para
ter o acesso da revista mensalmente, e que a publicação é de grande interesse para esse
específico leitor, sendo algo que vai envolver e chamar mais atenção para o determinado
público alvo.
Desta forma, o autor não precisa ter uma posição social significativa para falar sobre o
assunto, o que é levado em conta é se a temática desenvolvida na matéria é da especialidade
do autor, ele precisa ter um posicionamento e autoria para falar sobre o tema, sendo definido
como “postura de autor” por Rodrigues (2005 apud BAKHTIN, 2002, p. 171). Sobre a notícia
analisada, o escritor é um economista de grandes realizações e por isso ganha prestígio ao
falar sobre o assunto da terceirização, levando em conta a crise econômica que o país está
sofrendo e por ele ser um especialista tratando desse assunto. O autor não expressa
propriamente a sua opinião na notícia, mas ele constrói e reproduz o enunciado a partir de
diversos outros discursos que abordem sobre o assunto, sendo o texto o resultado da
1392

construção de discursos e fatores comentados anteriormente sem a participação direta do


autor.
Os aspectos sociais encontrados na notícia analisada são definidos antes de ser
Página

publicada, o assunto que envolve a economia do país atinge a camada média e alta da

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sociedade que são empreendedores e que tem fácil acesso à revista, a editora escolhe um
economista para escrever sobre o assunto, utilizando discursos já existentes para formar um
novo, assim a notícia é construída e passada para as esferas sociais.

3.2 Dimensão verbal da notícia

A primeira característica da notícia é o horizonte verbal, que se sintetiza por ser a


interseção entre a esfera de atuação do escritor e a esfera própria da comunicação jornalística.
O texto que será analisado é uma matéria de março de 2017 da revista Veja (ed.2523) que
aborda a terceirização das empresas.
É um tema bastante atual que trará grandes consequências para a sociedade brasileira,
a notícia veio com o intuito de explanar a situação do processo de terceirização para o leitor.
É necessário que se perceba que a voz do autor não é a única presente no texto, uma vez ele
insere outras vozes.
Essas vozes segundo Rodrigues (2005) estão presentes nas estratégias de
enquadramento como a de assimilação e a de distanciamento, sendo a de assimilação um
acumulo de autoria, pois o autor sustenta seus argumentos na outra voz. Por exemplo, “‘A
terceirização é um fenômeno mundial, não uma invenção nacional’, diz Domingo Fortunato,
sócio do Mattos Filho Advogados” (Veja, ed. 2523), autor trouxe essa citação para reforçar
sua opinião de que a terceirização é um processo produtivo.
E no que concerne ao movimento de distanciamento, segundo Gubert (2015), ele se
caracteriza por isolar a outra voz, que geralmente não é acompanhada pela referência, passa a
ideia de que não há credibilidade, o autor faz uso dessa estratégia em “Os sindicatos e a
oposição são contra. Eles dizem que a terceirização levará a uma precarização das condições
de trabalho e entendem que não gerará mais empregos” (Veja, ed. 2523), há o
desmerecimento da outra voz, por meio da omissão de sua referência, para que haja a
valorização de sua opinião em comparação com citação.
Rodrigues (2005) explica que da relação dialógica com o anterior também há a relação
com o interlocutor, pois é em função dele que se constrói o discurso. A autora traz os três
1393

tipos básicos de movimentos dialógicos com o interlocutor: o movimento de engajamento, o


movimento de refutação e o movimento de interpelação.
No movimento de dialógico de engajamento o autor trata o leitor como aliado,
Página

colocando-o numa posição de coautor, não há um exemplo desse movimento na notícia

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analisada, mas é geralmente marcado pelos traços estilístico-composicionais como o verbo e o
pronome na primeira pessoa do plural.
Já no movimento dialógico de refutação o autor prevê a possível reação do leitor que
poderia ser contrária e já as abafa, nessa matéria nós não encontramos exemplo desse
movimento.
É importante salientar que no movimento dialógico de interpelação determinado ponto
de vista é visto como a verdade absoluta fazendo com que o leitor se sinta compelido a
acreditar e concordar, como em “[...] a terceirização é inevitável e será uma importante
ferramenta de desoneração das empresas” (Veja, ed. 2523) o autor não deixa espaço para que
o leitor reflita ou tire suas próprias conclusões.

4 Conclusão

O estudo dos gêneros, partindo das reflexões bakhtianas, permite uma análise mais
apurada dos componentes textuais e o seu impacto consideradas as esferas sociais. Neste
artigo utilizamos o gênero notícia para analisar mais detalhado, um gênero que é comum para
a maioria das esferas sociais e facilmente encontrado no dia-dia, que apresenta um grande
impacto de acordo com as reflexões bakhtianas sobre o dialogismo e a utilização dos gêneros
discursivos para influenciar o meio. Outros textos podem ser analisados a partir deste estudo
para definir as características e influências que o estudo do gênero pode proporcionar.

Referências

RODRIGUES, Rosangela Hammes. Os gêneros do Discurso na perspectiva dialógica da


linguagem: a abordagem de Bakhtin. São Paulo: Parábola, 2005. 183 p.

GUBERT, Antonio Luiz. O gênero notícia sob a perspectiva dialógica de Bahktin.


Linguagens - Revista de Letras, Artes e Comunicação, Blumenau, v. 9, n. 2, p. 241-252,
maio. 2015. Disponível em:
<https://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=4&ved=0ahUKE
wijlI-_w7PTAhUCiJAKHXM0BscQFgg0MAM&url=http%3A%2F%2Fproxy.furb.br%2Foj
s%2Findex.php%2Flinguagens%2Farticle%2Fdownload%2F4874%2F3021&usg=AFQjCNE
wD4Fsi4wqHMPDDRCldiGrvvp-TQ>. Acesso em: 17 abr. 2017.
1394

SAKATE, Marcelo. Um jogo em que todos ganham. Revista Veja. São Paulo: Abril, n.13,
edição 2523, p. 64-65, mar. 2017.
Página

Revista Veja. São Paulo: Abril, n.13, ed. 2523, mar/ 2017.

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5 ANEXOS

ANEXO 1
fonte: < https://acervo.veja.abril.com.br/index.html#/edition/49681?page=64&section=1 >

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ANEXO 2
fonte: < https://acervo.veja.abril.com.br/index.html#/edition/49681?page=64&section=1 >
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O PRECONCEITO LINGUÍSTICO E O ENSINO DE LÍNGUA MATERNA: O PAPEL


DO EDUCADOR NO AMBIENTE ESCOLAR

Christian Lucas Siqueira Brasil


Sávio de Souza Carlos

1 Introdução

O ensino de língua materna tem gerado debates na academia. A questão que gira em
torno da temática visa elaborar métodos e avaliar formas de aprendizado da Língua
Portuguesa. Nesse cenário, há pelo menos duas visões que apresentam conceitos diferentes a
respeito da língua: a Gramática Normativa, e a Linguística. A primeira parte da premissa
estruturalista, enxergando o objeto de estudo estático; a segunda traz conceitos mais flexíveis
acerca da língua e demonstra sua evolução no tempo. É nesse ambiente que está inserido o
educador que se propõe a harmonizar as questões levantadas em detrimento do ensino e levar
propostas adequadas às instituições escolares.
Dessas duas visões, percebe-se, no entanto, que a Gramática Normativa se situa sobre
uma realidade utópica, pois, evidentemente, trata somente da língua que se considerou como
norma culta, supervalorizando essa variante e considerando as demais como desvios, erros,
deformações, degenerações da língua. Este processo de normatização retira da língua a sua
realidade social, complexa e dinâmica, tornando-a como um objeto externo a essa própria
realidade, criando o estereótipo que a língua portuguesa é de difícil aprendizado.
Se não bastasse as teorias, o panorama do ensino ainda revela algo mais trágico: o
preconceito gerado pela falta de conscientização linguística. O que hoje se manifesta como
ensino, amanhã é tomado como uma verdade irrevogável. Os professores têm
comportamentos diferentes dos transmitidos na academia e reconhecido ao longo dos anos
como as formas mais aceitáveis de correção para com o aluno. Se, por questões adversas,
qualquer pessoa concorda o verbo com o sujeito pronominal erroneamente, já é motivo para
conflito e para levantar a bandeira do purismo linguístico. Os fatores são muitos para toda a
agitação: o uso indevido da crase; a ausência de marcação de plural nas frases, entre outros.
1397

É inevitável que a postura do professor reflita uma reposta no aluno, e essa resposta,
muitas vezes, é negativa com relação à disciplina, e à metodologia. Não é de surpreender que
Página

haja pessoas que concluíram o ensino médio e não saibam adequar a escrita ao gênero

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proposto. No entanto, o que se vê ainda é aulas voltadas para o ensino tradicional das
nomenclaturas que poucas vezes, ou talvez nenhuma delas, tornarão o aluno capaz de
desenvolver e interpretar textos.
Por isso, retomar-se-á a questão que envolve o ensino da língua materna e o
preconceito que engloba a prática pedagógica fomentada pelos compêndios gramaticais.
Apresentar-se-á, na primeira seção, as reflexões de Marcos Bagno (1999) acerca desse
preconceito, bem como as contribuições de Calvet (2002) sobre os comportamentos tomados
pelos falantes.
Nas demais seções serão trabalhadas as posturas que podem ser tomadas pelos
profissionais da educação no Brasil, tanto com respeito ao ensino da língua materna como o
papel do professor nesse cenário pedagógico.

2 O preconceito linguístico

Segundo Bagno (1999), existem três fatores que contribuem para a propagação do
preconceito linguístico, o que ele denomina de “A Santíssima Trindade do Preconceito
Linguístico”, são eles: o ensino tradicional; a gramática; e os livros didáticos. Dados os
pilares que reforça essa perspectiva, o autor cria a metáfora do círculo vicioso do preconceito
linguístico. Funciona da seguinte forma:

A gramática tradicional inspira a prática de ensino, que por sua [pg. 73] vez
provoca o surgimento da indústria do livro didático, cujos autores —
fechando o círculo — recorrem à gramática tradicional como fonte de
concepções e teorias sobre a língua (BAGNO, 1999, p. 68).

Bagno (1999) afirma que, embora o Brasil fosse a nona economia do mundo, ocupava
a 93ª posição no quesito educação. Há pelo menos três fatores que desencadeiam a crise na
educação brasileira: primeiro, a grande quantidade de analfabetos – pessoas que não
frequentaram a escola, bem como analfabetos funcionais, ou seja, aqueles “que frequentaram
a escola por um período insuficiente para desenvolver plenamente as habilidades de leitura e
redação” (BAGNO, 1999, p. 97). Os números revelam uma quantidade exorbitante de
1398

indivíduos, que chegava a ser duas vezes a população de Portugal, na faixa etária maiores de
15 anos. O IBGE afirma que comparado aos anos 2000, houve uma queda de
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aproximadamente 12,8% no número de analfabetos até 2010, ou seja, isso é reflexo de que
estamos mudando a lentos e bondosos passos.
Segundo, o autor também afirma que:

Por razões históricas e culturais, a maioria das pessoas plenamente


alfabetizadas não cultivam nem desenvolvem suas habilidades linguísticas
no nível da norma culta. Ler e, sobretudo, escrever não fazem parte da
cultura das nossas classes sociais alfabetizadas” (BAGNO, 1999, p. 98).

Mesmo que disponham das habilidades não o fazem. Segundo Bagno (1999), isso está
intrinsecamente ligado aos preconceitos de que “brasileiro não sabe português” e de que
“português é difícil”. A qualidade textual deve estar embasada na produção textual. Se o
aluno passa horas desvencilhando termos sem utilidade prática, ou seja, a dissertação, os
resultados do ensino tradicional serão sempre os mesmos. É importante que o aluno assuma
características que passem da mera memorização, como é o caso da Gramática Normativa;
esse fator pode ser considerado crucial para o desenvolvimento prático da aprendizagem.
Internalizar procedimentos como a coesão e a coerência são mais oportunos e ricos, como
mostra Márcia Mendonça ao citar o PCNs (Parâmetros Curriculares Nacionais).

Considera-se mais significativo que o aluno internalize determinados


mecanismos e procedimentos básicos ligados à coerência e à coesão do que
memorize, sem a devida apreensão de sentido, uma serie de nomes de
orações subordinadas ou coordenadas (MENDONÇA, 2014, p. 204).

Terceiro, a discriminação pelo fato das pessoas não utilizarem a norma culta. A
realidade da gramática é baseada no português de Portugal, tendo em vista que as reformas
gramaticais ocorridas no país se dão por acordos entre as duas nações. Ora, se a gramática
prescreve uma realidade que não se conhece no Brasil, se faz necessário que se abandone de
vez o mito de unidade linguística existente entre os dois países, e passe a reconhecer a
verdadeira diversidade e variedade. Grande parte do ensino de língua portuguesa passa a ser
para o a aluno ensino de uma “língua estrangeira” distante de sua realidade social e cultural,
ou nas palavras de Bagno (1999, p. 104):
1399

Sem essa gramática que nos descreva e explique a língua efetivamente falada
pelas classes cultas, continuaremos à mercê das gramáticas normativas
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tradicionais, que chamam erradamente de norma culta uma modalidade de


língua que não é culta, mas sim cultuada: não a norma culta como ela é, mas

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a norma [pg. 114] culta como deveria ser, segundo as concepções antiquadas
dos perpetuadores do círculo vicioso do preconceito linguístico.

A norma padrão é apenas um modelo anacrônico que descreve a escrita de autores


prestigiados. Todavia, se entender-se a expressão norma culta como um conjunto de
expressões urbanas usadas por pessoas mais letradas, com um grau maior de educação que a
grande parte dos brasileiros, então ter-se-á que admitir que a norma culta existe como tal. A
verdadeira função de uma gramatica normativa seria justamente esta: coletar os dados e
expressões usadas pelas classes mais prestigiadas, e assim, organiza-las de forma que seu
entendimento possa ser claro e objetivo, com uma metodologia precisa para que possa causar
efeito lógico para pessoas menos letradas, fazendo com que elas cheguem à aquisição da
norma.
Essa inversão de valores acaba que confundindo, no que diz respeito a achar que
primeiro se escreveu uma gramatica para que depois as pessoas pudessem falar a língua.
Sabe-se que a língua é um fator social, então ela nasce da comunicação entre os indivíduos em
determinadas situações de comunicações, sobre isso o autor Bagno (1999, p. 82) argumenta
que:

Ora, as plantas por acaso só existem porque os livros de botânica as


descrevem? É claro que não. Os continentes só passam a existir depois que
os primeiros cartógrafos desenharam seus mapas? Difícil acreditar, a terra só
passou a ser esférica depois que as primeiras fotografias tiradas do espaço
mostraram ela assim? Não.

O autor cita exemplos para reforçar a ideia de que a língua falada não precisa de um
conjunto de regras anterior a ela para que possa existir, na verdade essa é uma confusão feita
entre língua e gramática normativa, a qual precisa ser desconstruída. Não há por que
confundir as partes com o todo, a língua é muito mais ampla do que apenas um conjunto de
regras convencionadas por uma parte mais favorecida.
É obvio que o estudo gramatical tem o seu valor para o conhecimento, todavia, ele
deve ser ensinado quando o aluno tiver maturidade o suficiente para aprender usar de fato a
língua, ou seja, quando o aluno já tem conhecimento prévio do funcionamento da língua e
1400

precisa recorrer a gramática para aprender novos e diferenciados usos daquilo que ele já
possui internalizado (BAGNO, 1999).
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ISBN: 978-85-7621-221-8
Em consonância com Bagno (1999), Calvet (2002), aprofundando um pouco mais a
questão, aponta que há uma relação sentimental que acarreta diversos comportamentos do
falante sobre as línguas. Para o autor, o preconceito nasce na diferença, pois os valores que
são atribuídos às línguas, de maior ou menor expressividade, na verdade giram em torno de
quem fala, ainda mais quando se percebe que esse fenômeno não está somente após as
barreiras nacionais, como também se propaga dentro do próprio território – ambiente onde se
fala a mesma língua.
Já está mais que provado no meio acadêmico que só o ensino da gramática normativa
não é eficaz na formação de um aluno, ou seja, só o estudo descontextualizado gramatical não
produzirá um bom falante nem um bom escritor. Antes que as aulas possam ser preenchidas
com outras atividades, as quais possam oferecer aos alunos o verdadeiro ensino da língua,
para que eles possam desenvolver suas habilidades na área da escrita e posteriormente se
tornem um bom falante da língua. É através da leitura e da escrita que se pode chegar a esse
resultado, somente depois de muita leitura e muita escrita que a escola deve levar o aluno ao
estudo sistemático da língua, pois para Bagno (1999) é muito mais importante aprender a
língua do que aprender sobre a língua.

3 O ensino de língua materna

Atualmente os estudos sociolinguísticos têm avançado no que diz respeito ao combate


ao preconceito linguístico. Contudo, é difícil enfrentar algo que está tão impregnando em
nossa cultura, tendo em vista que nosso país tem um histórico de preconceito contra classes
menos favorecidas, e por muitas vezes, essas classes são associadas ao “mau” uso da norma.
Mollica (2004, p.13) afirma que “o preconceito linguístico tem sido um ponto bastante
debatido na área, uma vez que se nota ainda a predominância de práticas pedagógicas
assentadas em diretrizes maniqueístas do tipo certo/errado”. Para a autora os estudos
sociolinguísticos são de bastante importância, pois ajuda a entender essa variação da norma
que muitas vezes é excluída pela escola. É dever da escola entender esses fenômenos
linguísticos, deixando de lado aquele velho estudo descontextualizado que é fruto de uma
1401

educação arcaica, normativa e cheia de regras. Assim dando lugar ao estudo contextualizado
que entenda as limitações de cada aluno.
Bagno (1999) aponta que, ainda hoje, há uma associação do falar bem com o uso
Página

correto da gramática normativa. Existe uma cobrança paterna sobre os professores, afim de

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que ensinem a gramática da mesma forma que os pais em seus tempos aprenderam. Todavia,
associar a boa escrita ao domínio da gramática é um erro ainda cometido, tendo em vista que,
se essa afirmação fosse verdadeira, então todo gramático seria um exímio escritor (BAGNO,
1999). Entretendo, a premissa dessa associação é falsa, pois a gramática no que diz respeito a
sua estrutura, não oferece estratégias textuais das quais possam melhorar a escrita de um
aluno.
Bagno (1999) traz Perini (1996) para o debate e alerta que apenas o ensino da
gramática normativa não torna o aluno capacitado para ser um bom escritor e falante da
língua. O autor aborda essa questão como “uma mercadoria que não podemos entregar”, tendo
em vista que, o ensino prescritivo da norma culta não fornece estratégias didáticas que visam
a boa escrita, muito pelo contrário, o que por muitas vezes acaba acontecendo é uma
desmotivação por parte do aluno, medo e aversão

Quando justificamos o ensino de gramática dizendo que é para que os alunos


venham a escrever (ou ler, ou falar) melhor, estamos prometendo uma
mercadoria que não podemos entregar. Os alunos percebem isso com
bastante clareza, embora talvez não o possam explicitar; e esse é um dos
fatores do descrédito da disciplina entre eles. (PERINI, 1996, p. 66).

As grandes obras da literatura já existiam muito antes das primeiras gramáticas, o que
acontece é que houve uma inversão de ideias. Antes, as gramáticas foram criadas para
explicar os fenômenos contidos na escrita dos grandes autores, elas foram desenvolvidas
como forma de padronizar as manifestações espontâneas ocorridas na escrita. Vale ressaltar
que a gramática nasce da língua escrita, então é correto afirmar que, ela é dependente da
linguagem e nunca ao contrário (BAGNO, 1999).
Porém, ao longo do tempo, a língua passou a ser um instrumento de ascensão social,
ou seja, o falar bem está ligado a esse poder. Para muitos, se expressar bem, conforme a
norma padrão, ainda representa um comportamento que deve ser imitado pelos demais
falantes da língua portuguesa. Por causa dessa visão a qual julga a gramática como sendo
“bonita”, “correta” e “pura” que a língua passou a ser subordinada e dependente da gramática
normativa e o ensino a tomou como base (BAGNO, 1999)
1402
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4 Papel do professor como educador

Sabe-se que o papel do professor é muito mais amplo do que apenas um transmissor, o
professor exerce uma relação de poder em sala de aula. Poder aqui deve ser entendido como
“aquele que detém o conhecimento”. A forma como é apresentada a disciplina ao aluno que
determinará a sua aceitação. O professor de língua portuguesa deve demonstrar ao aluno a
língua propriamente dita, levando em conta seus contextos e sua variação. Reconhecer as
diversas realidades linguísticas dará ao professor capacidade de entender a forma que o aluno
compreende a língua. Todavia segundo Dias (1996, p. 19):

[...] a escola ainda opta somente pela veiculação da língua cultivada pela tradição
gramatical, cristalizando a variedade padrão como única correta e excluindo as
demais como “formas incorretas”, “ erros”, “desvios”. Em outras palavras, a escola
considera a norma padrão-culta linguisticamente superior a todas as outras
variedades

Transformar a disciplina de língua portuguesa em ensino de gramática é excluir a


riqueza que ela possui, pois quando o professor apresenta apenas o ensino da nomenclatura
sem atentar para os contextos, os alunos acabam que se distanciando da disciplina. Os alunos
constatarão que o ensino na escola está muito distante de suas realidades. É papel do professor
reconhecer as diversas realidades e os contextos sociais que os alunos estão inseridos, pois
quando o aluno entende que a forma que ele se expressa (escrita/fala) não está errada, o
professor consegue aproxima-los da disciplina, criando assim, estratégias para adapta-los.
O aluno de língua portuguesa só irá se familiarizar com a disciplina quando o
educador reconhecer e ensinar que o domínio verdadeiro da língua não se refere apenas à
gramática normativa, ou seja, conhecer a gramática e conhecer a língua são coisas distintas,
tendo em vista que, conhecer uma língua é uma coisa e saber analisá-la é outra. Todavia, para
que o professor seja capacitado a assumir a sala de aula ele deverá dominar todas as variações
da língua inclusive a norma culta, entretanto essa cobrança não deve pesar também sobre o
aluno. Sobre isso Bagno (1999, p. 119) afirma que:
1403

Nós, sim, professores, temos que conhecer profundamente o hardware da


língua, a mecânica do idioma, porque nós somos os instrutores, os
especialistas, os técnicos. Mas não os nossos alunos. Precisamos, portanto,
redirecionar todos os nossos esforços, voltá-los para a descoberta de novas
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maneiras que nos permitam fazer de nossos alunos bons motoristas da


língua, bons usuários de seus programas.

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Harmonizar as aulas de português ao contexto dos alunos, se atentar para a realidade
da sala de aula tornará o ensino mais eficaz em comparação ao ensino normativo, tendo em
vista que, o ensino contextualizado aproximará o aluno dá disciplina, pois ao passo que o
professor toma como estratégia usar recursos pedagógicos para trazer o contexto do aluno
para dentro da sala, fará com que o aluno entenda os fenômenos da língua, o tornando assim,
capaz de entender e domina-la com excelência.
O professor quanto educador deve levar o aluno a reflexão, é preciso muito mais que
apenas regras gramaticais para que isso seja feito. É preciso que o professor desenvolva no
aluno a capacidade da escrita e da oralidade sempre levando em conta o contexto que ele está
inserido, como afirma Cardoso (1999, p. 29):

[...] o texto passa a ser considerado o centro de todo o processo ensino/


aprendizagem de língua materna. O conteúdo a ser trabalhado na sala de aula
é a própria linguagem, por intermédio de três práticas interdependentes: a
leitura, a produção de texto e a análise linguística.

5 Conclusão

O ensino de língua portuguesa está passando por grandes mudanças, todavia é preciso
cada vez mais voltar-se para o ensino contextualizado. A partir desse ensino criar alunos os
quais dominem a leitura e a oralidade, não apenas formar pessoas que saibam decodificar
palavras e analisá-las. Para chegarmos nesse estágio é fundamental que o professor conjugue
a realidade do aluno com as discussões em sala de aula. Então, é de suma importância criar
alunos que consigam pensar criticamente e que sejam capazes de interpretar e compreender
textos.
Além disso, a proposta da análise linguística é uma via ideal para transpassar a
corrente do preconceito. Com uma postura político-social, o professor pode atingir problemas
e conduzir os alunos à norma padrão para que as oportunidades de ascensão social não sejam
perdidas por eles.
1404

Referências

BAGNO, Marcos. Preconceito Linguístico: o que é, como se faz. São Paulo: Loyola, 1999.
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ISBN: 978-85-7621-221-8
CARDOSO, Silva H. Bardi. Discurso e Ensino. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.

CALVET. L. Sociolinguística: uma introdução crítica. São Paulo: Parábola, 2002.

DIAS, Juçá Fialho Vazzata. A concordância de Número nos Predicativos e nos Particípios
Passivos na fala da região Sul: um estudo variacionista. Florianópolis. Dissertação de
Mestrado, 1996.

MENDONÇA, Márcia. Análise Linguística no Ensino Médio: um novo olhar, um outro


objeto. São Paulo: Parábola, 2014.

MOLLICA, M.C. Fundamentação teórica: conceituação e delimitação. In: MOLLICA, M.C.;


BRAGA, M. L. (Orgs.). Introdução à Sociolinguística: o tratamento da variação. 2. ed. São
Paulo: Contexto, 2004. p. 9-14.

PERINI, Mário A. Gramática descritiva do português. 2. ed. São Paulo: Ática, 1996.

1405
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PÔSTER

PINTURA EM TELA: RELEITURA DE DIVERSOS ARTISTAS PLÁSTICOS. UM


RELATO DE EXPERIÊNCIA DO PROJETO PIBID ARTE/MÚSICA NA ESCOLA
ESTADUAL DIRAN RAMOS DO AMARAL

Criscianne Ellen Vasconcelos de Santana (UERN)


criscianne_ellen@hotmail.com
Luandrey Célio Silva da Costa (UERN)
luandreycelio@hotmail.com
Juliana de Oliveira Revoredo Souza (SEEC RN)
Juliana_revoredo@msn.com

Introdução

No processo de construção docente nos cursos de licenciatura o Programa


Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência – PIBID, vem dando grandes contribuições
para a formação de novos professores e auxílio para os estudantes de licenciaturas, pois ele
promove o contato dos futuros docentes com a realidade escolar, levando-os a uma
construção e aprimoramento dos conhecimentos adquiridos nas disciplinas, tendo em vista a
relação teoria e prática, dando assim a oportunidade destes conhecerem a realidade de seu
futuro campo de trabalho, tornando-os assim profissionais mais qualificados para atuar em
sala de aula.
Sobre os objetivos do projeto, Montandon fala que:

O objetivo do PIBID é inserir estudantes de cursos de licenciatura plena em


atividades pedagógicas em escolas públicas do ensino básico, aprimorando
sua formação e contribuindo para a melhoria da qualidade do ensino nessas
escolas, por meio de metodologias inovadoras. Nesse sentido, a ideia é
tratar de forma criativa e integrada os problemas da educação em seus
diferentes níveis – escola básica e formação de professores – em uma
relação direta da prática e teoria e com o envolvimento de todos os atores
relacionados ao processo (MONTANDON, 2012, p. 51).

Assim o PIBID tem dado grande suporte para o aprimoramento e desenvolvimento da


formação docente nos cursos de licenciatura, aproximando os discentes de seu provável
campo de trabalho, com isso acontece uma troca entre o supervisor e os pibidianos, na qual o
1406

professor contribui com a experiência docente e os pibidianos buscam contribuir com as


inovações metodológicas adquiridas na graduação, pois as mesmas estão em constante
Página

transformações.

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O PIBID - Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência é um programa
do Governo Federal e foi criado em 2007. Esse é financiado pela Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), ele tem a finalidade de fortalecer a
Educação Básica, dando auxílio para futuros professores e para os professores que já atuam
na mesma. O mesmo é dividido da seguinte forma, vejamos a tabela.

Fonte: PIBID Biologia – UFAL

Na Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN) o programa PIBID vem


sendo desenvolvido em cinco dos seis campi avançados da UERN. Em 2010 o projeto
institucionalizado com seis subprojetos; em 2011 implementamos um segundo com cinco
subprojetos; em 2012 ampliamos o projeto de 2010 e acrescentamos mais nove subprojetos,
totalizando vinte subprojetos em andamento.222
Com isso, desde 2014 o projeto PIBID/Música está sendo desenvolvido em quatro
escolas estaduais de Mossoró-RN, contribuindo para formação docente dos alunos da
licenciatura em Música da UERN campus central, proporcionando um melhor formação para
os alunos das escolas contempladas, como também para os bolsistas.
Entre as escolas contempladas com o projeto PIBID/Música se encontra a Escola
1407

Estadual Diran Ramos do Amaral que está situada no bairro Redenção, em uma área de risco
Página

222
SUBPROJETO PIBID MÚSICA/UERN. Subprojeto PIBID de licenciatura em Música. Mossoró, 2013.

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social. O projeto está sendo desenvolvido nessa escola desde 2014 e conta com a
colaboração de cinco bolsistas que atuam nas turmas do ensino fundamental e médio.
A escola proporciona autonomia para a execução dos projetos que são desenvolvidos
em sala de aula e mostra bastante interesse nas atividades propostas, percebendo então a
grande importância do projeto que veio para somar na escola, mostrando que é de tamanho
fortalecimento e preenchimento para as lacunas que permeiam as aulas de educação básica.
Dessa forma o presente artigo busca por meio de um relato de experiência, apresentar
o projeto pintura em tela, que foi desenvolvido pelos bolsistas do Projeto PIBID/Música,
juntamente com a professora supervisora, na Escola Estadual Diran Ramos do Amaral.

Processo criativo

Quanto ao direcionamento das aulas de Artes são trabalhadas todas as linguagens,


não sendo as modalidades de Artes isoladas por bimestre, ligando na medida do possível um
conteúdo ao outro deixando interdisciplinar.
Nas aulas de artes são trabalhadas todas as linguagens artísticas (artes visuais, teatro,
dança e música), a depender do projeto executado, trabalhando as linguagens separadamente
por bimestres ou de forma em que elas dialoguem ao mesmo tempo. Segundo a professora
supervisora do PIBID/Música até o ano passado os projetos que vinham sendo
desenvolvidos estavam divididos cada bimestre em uma linguagem, no primeiro bimestre
trabalhando artes visuais, no segundo bimestre geralmente teatro, no terceiro bimestre
música e no quarto dança. Por se tratar de um ambiente que tem uma multiplicidade de
linguagens. Segundo a Base Nacional Comum Curricular (BNCC):

A Arte é uma área do conhecimento e patrimônio histórico e cultura da


humanidade. No Ensino Fundamental, o componente curricular está centrado
em algumas de suas linguagens: as Artes visuais, a Dança, a Música e o
Teatro. Essas linguagens articulam saberes referentes a produtos e
fenômenos artísticos e envolvem as práticas de criar, ler, produzir, construir,
exteriorizar e refletir sobre formas artísticas. A sensibilidade, a intuição, o
pensamento, as emoções e as subjetividades se manifestam como formas de
expressão no processo de aprendizagem em Arte (BRASIL, 2017, p. 151).
1408

Nesse sentido, essa disciplina busca estimular nos alunos o fazer artístico por meio de
suas linguagens, levando em consideração o processo criativo, o contexto histórico e a
Página

interação critica entre os alunos.

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Podemos perceber que o planejamento é algo indispensável para se construir um
melhor saber docente. Logo mostramos a importância do planejamento segundo Hentschke;
Del-Ben:

A importância do planejamento esta justamente no fato de ele ser uma


projeção daquilo que queremos, daquilo que pretendemos em relação ao
ensino e de como ele poderá ser realizado em sala de aula. Mas é preciso ter
em mente embora o plano oriente a ação de ensinar, definindo um caminho
para sua realização, isso não significa que essa ação possa ser determinada
previamente em todos seus detalhes (HENTSCHKE; DEL-BEN, 2003, p.
178).

É preciso ter uma ideia prévia do que se quer trabalhar para uma prática pedagógica
satisfatória, levando em consideração o desenvolvimento das atividades e a organização dos
conteúdos a serem trabalhados em sala.
Entre as atividades que foram desenvolvidas vamos relatar as experiencias com o
projeto pintura em tela que teve por objetivos: avaliar a importância da arte e da história para
que possamos refletir sobre a aprendizagem na educação, reconhecendo assim a importância
da arte visual na sociedade e na vida dos indivíduos; bem como observar as expressões
artísticas em diferentes contextos históricos; aprendendo desta feita a identificar os
significados expressivos e comunicativos das formas visuais; levar o aluno a ter acesso a
pintura em tela.
O projeto aconteceu nas turmas de 6º e 7º anos no qual foram trabalhado sobre os
pintores Tharcília do Amaral, Botelho e Van Gogh. As aulas que deram seguimento a este
projeto aconteciam da seguinte forma foi retratado sobre os pintores onde cada sala teve que
fazer uma pesquisa sobre eles, após isso foram feitos esboços, rascunhos das obras que eles
queriam representando em papel A4, para depois executar a pintura em tela, para a parte das
telas foi pedido que cada aluno comprasse a tela, porém teve uma ajuda de custos advinda por
parte dos professores e nossa.
Alguns alunos tiveram dificuldades na execução das pinturas, mas com as orientações
feitas em sala todos conseguiram concluir as pinturas, tendo como consequência quase cem
quadros.
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Fonte: do autor Fonte: do autor

Como resultado final foi feita uma exposição das telas aberto ao público e contou com
a presença de alunos e responsáveis. Na abertura da exposição houve uma apresentação
musical executada pelos educandos, que utilizaram instrumentos confeccionados com
materiais reciclado.

Fonte: do autor
1410
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Fonte: do autor

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Dessa forma o contato com a técnica de pintura em tela e da história contribuiu
diretamente para o processo criativo dos alunos, cooperando para um melhor aprimoramento
da coordenação motora e do trabalho em equipe, levando-os a apresentar obras de grandes
artistas conhecido mundialmente.

Conclusão

No processo de construção docente nos cursos de licenciatura, projeto PIBID é sem


dúvida de extrema importância por preparar melhor o aluno para enfrentar a sala de aula e as
dificuldades presentes nesses espaços, o dando a oportunidade de conhecer melhor o seu
campo de trabalho, proporcionando a construção e o aprimoramento dos conhecimentos
adquiridos no curso tendo em vista a relação dialética entre a teoria e prática, oferecendo mais
segurança ao discente, pois o acompanhamento do professor superviso e a troca de ideias nos
encontros semanais do PIBID ajudam a selecionar as atividades a serem desenvolvidas e
propostas de solução para alguns problemas no decorrer das aulas.
No contato com a sala de aula percebemos que o processo de ensino e aprendizado
está além dos conteúdos, pois envolve uma série de problemas relacionados ao espaço físico
da instituição e a aspectos afetivos, políticos, econômicos e socioculturais.
Assim, apesar de algumas dificuldades para o desenvolvimento de atividades
relacionadas ao fazer artístico o projeto pintura em tela proporcionou aos alunos o processo
criativo, podendo identificar os significados expressivos e comunicativos das formas visuais,
mostrando aos mesmos que arte e a história vem para complementar e incentivar na
concepção de cidadãos que possam fazer diferenças no mundo atual. Como resultado final
foi feito a exposição das pinturas realizadas pelos alunos para a comunidade, contando com
uma apresentação musical dos mesmos, que utilizaram instrumentos confeccionados em sala
de aula.
Dessa forma pretendemos com esse relato contribuir com as diversas possibilidades
de se trabalhar arte no contexto escolar, tendo em vista o desenvolvimento do fazer artístico
1411

e do processo criativo, mostrando também algumas das contribuições do projeto


PIBID/Música.
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Referências

ARROYO, Margarete. Juventudes, músicas e escolas: análise de pesquisas e indicações para


a área da educação musical. Revista da ABEM, n. 21, p. 53- 66, 2009.

BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Proposta preliminar.


Segunda versão revista. Brasília: MEC, 2016. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.
gov.br/documentos/bncc-2versao.revista.pdf>. Acesso em: 23 mar. 2017.

BELLOCHIO, Cláudia Ribeiro; FIGUEIREDO, Sérgio Luiz Ferreira de. Cai, cai balão…
Entre a formação e as práticas musicais em sala de aula: discutindo algumas questões com
professoras não especialistas em música. Música na educação básica. Porto Alegre, v. 1, n.
1, outubro de 2009.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São


Paulo: Paz e Terra, 1996.

HENTSCHKE, L.; DEL BEN, L. Aula de música: do planejamento e avaliação à prática


educativa. In: HENTSCHKE, Liane; DEL BEN, Luciana (Org.). Ensino de música:
propostas para pensar e agirem sala de aula. São Paulo: Editora Moderna, 2003.

MONTANDON, M. I. Políticas públicas para a formação de professores no Brasil: os


programas Pibid e Prodocência. Revista da ABEM. Londrina, v. 20, n. 28, p. 47-60, 2012.

MORENO, E.G. Profissão professora: um contentamento descontente. In: BUENO, B.


O.; CATANI, D. B; SOUSA, C. P. (orgs.). A Vida e o Ofício dos Professores. São Paulo:
Editora Escrituras, 1998, p. 129-136.

SUBPROJETO PIBID MÚSICA/UERN. Subprojeto PIBID de licenciatura em Música.


Mossoró, 2013.

TARDIF, Maurice. Saberes docentes e formação profissional. Tradução de Francisco


Pereira. 12. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.
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A AMBIGUIDADE LEXICAL NAS CHARGES:


POLISSEMIA E HOMONÍMIA NO DISCURSO POLÍTICO

Damasceno Medeiros (UERN)


Josiender Meneses (UERN)
Veronica Palmira Salme de Aragão (UERN)

1 Introdução

Este trabalho tem como objetivo analisar a ambiguidade lexical: polissemia e


homonímia do discurso político, no gênero discursivo charge. Interpretando a ambiguidade
lexical presente nas charges, buscaremos refletir sobre o papel da polissemia e da homonímia
para a construção dos sentidos nas charges políticas. Mostraremos que a interpretação pode
ser explicada a partir de uma abordagem semântica dos fenômenos lexicais da língua.
O método utilizado nessa pesquisa é qualitativo, já que baseamos o nosso estudo em
leituras e análises realizadas sobre a ambiguidade lexical e seus tipos. Faremos a diferença entre
polissemia e homonímia, e mostraremos a linguagem irônica e humorística presente nas charges
estudadas, assim como as suas definições semânticas: polissemia e homonímia. As charges
foram retiradas dos sites da internet: “Lendo”, “Revista” e “Metamorfoses Históricas”, que têm
como foco o discurso político.
Este artigo está dividido em dois momentos: no primeiro momento, está presente a
fundamentação teórica utilizada, com as principais contribuições nos estudos. Mostraremos a
relação da ambiguidade lexical com o gênero textual abordado, assim como as suas definições.
Assim nesse estudo, diferenciamos polissemia e homonímia, apresentando exemplos para uma
maior compreensão. No segundo momento, analisaremos as charges, caracterizando
ambiguidade lexical presente e os sentidos atribuídos na charge.
Para tanto, adotamos como fundamentação teórica para o estudo da ambiguidade lexical,
polissemia e homonímia, nas charges, as contribuições de Cançado (2012) ao estabelecer o
conceito da ambiguidade; Fiorin (2009) ao descrever como a ambiguidade é formada; Teixeira
(2010) ao apontar os sentidos de humor nas charges.
1413
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2 Fundamentações teóricas

Consideramos relevante abordar a ideia de diferentes estudiosos, observando seus


diferentes pontos de vista sobre os conceitos de ambiguidade. Sendo destacado com mais
relevância a polissemia e homonímia em torno da ambiguidade lexical, sendo foco deste
artigo.
Para as análises das charges, é necessário atentar para o contexto, e assim, dependerá
do conhecimento de cada interlocutor para serem construídos sentidos. Segundo Moura
(2006, p.58), “há, assim, certo tipo de contexto que está ligado às crenças assumidas pelo
falante, e que ele imagina serem compartilhadas pelos interlocutores”, portanto pode
acontecer uma variação na referência de uma palavra de acordo com o contexto e com as
crenças impostas pragmaticamente ao interlocutor.
O contexto ajuda na interpretação de expressões indeterminadas, como em casos que
possuem ambiguidade, nas quais podem ser encontradas em frases em que é possível a
localizações de dois ou mais sentidos em uma frase ou imagem, também em sentenças que
oferecem várias possibilidades de combinação de palavras. A sentença torna-se ambígua
quando apresenta mais de um sentido na estrutura sintática. A ambiguidade é encontrada na
maioria das charges, ou seja, duplo sentido atribuído a termos, palavras, gestos registrados nas
charges analisadas.

2. 1 Ambiguidade

A ambiguidade é um recurso da semântica, que se ocupa com o estudo dos sentidos


possíveis da palavra. Juntamente com o estudo da significação, a semântica deve “ser
estudada como um sistema que interage com outros sistemas no processo da comunicação e
expressão dos pensamentos humanos”, cf. (CANÇADO, 2012, p. 21).
Na teoria, encontrar um significado para determinada palavra pode parecer fácil, mas
na prática não se mostra tão fácil. Uma palavra pode ter muitos significados, de acordo com o
contexto em que ela está inserida. Por isso, atribuir um significado a uma palavra já
1414

contextualizada é normalmente mais simples. A palavra “banco”, por exemplo, possui pelo
menos dois significados possíveis: um como acento (de praça), outro como uma instituição
financeira; tais significados só serão atribuídos de forma coerente à palavra “banco”, quando
Página

esta vier inserida em um contexto.

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Segundo Fiorin (2009), “temos a ambiguidade com origem no fato de que a frase pode
ter uma estrutura sintática propensa de várias intepretações.” A ambiguidade é formada de
diferentes maneiras de reorganizar as frases, gerando diferentes estruturas sintáticas na mesma
sentença.
Mattoso Câmara (1986, p. 48-49) apresenta a seguinte definição de ambiguidade:
“circunstância de uma comunicação linguística se prestar a mais de uma interpretação; a
antiga retórica grega focalizou-a na construção da frase sob o nome de Anfibologia”. A
ambiguidade se origina do fato da frase ter uma estrutura sintática suscetível de várias
interpretações gerando a sua ambiguidade nas suas diferentes formas de interpretações.
A ambiguidade para Aristótoles (1996, apud PASSINI, 2013, p. 58) é entendida como
uma imprecisão que ocorre devido à manifestação da língua, e pode ser tida por três maneiras:

Um, é quando a expressão, ou o nome, na acepção própria, tem várias


significações como aetóse kuon; outro, quando temos o hábito de utilizar um
nome em mais de uma acepção; outro, enfim, quando as palavras,
combinadas umas com as outras, têm vários significados, enquanto, em si
mesmas, só têm um.

Segundo o autor, a ambiguidade pode ocorrer de três maneiras: primeiro quando a expressão ou
o nome tem vários significados; a segunda quando utilizamos a palavra para expressar outros
sentidos; a terceira quando uma palavra combina com outra para expressar mais de um
significado.
Ullmann (1964, p. 323-330) discute sobre a ambiguidade, afirmando que ela surge de
vários modos (fonética, gramatical e lexical), sendo as três modalidades:
a) A ambiguidade fonética, predominante na fala pertence à estrutura fonética,
pertence à estrutura fonética da frase, quando se tornam homônimos e às vezes
ambíguos.
b) A forma gramatical da ambiguidade encontra-se dentro da estrutura de uma
oração.
c) A terceira forma é a ambiguidade lexical que é a característica de uma palavra
possuir diversos significados.
1415

Segundo o autor, esses três modos que geram a ambiguidade acontecem pelo fato de
caracterizar mais de um sentido para a pronúncia, pela estrutura da frase e pela palavra,
Página

exprimindo mais de um sentido para o receptor. A ambiguidade lexical consiste na dupla

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interpretação que incide apenas sobre o item lexical. Segundo Mattoso Câmara (1986), a
ambiguidade é consequência da homonímia, polissemia e deficiência dos padrões sintáticos.
Concluímos que a ambiguidade tem papel estilístico, ou seja, o seu uso é intencional,
podendo ser encontrada em diversos tipos de textos: Literários, poéticos, publicitários, frases,
provérbios e etc. Assim podemos entender a polissemia e homonímia como um fenômeno que
enriquece o conteúdo do texto em que está inserida.

2. 2 Ambiguidade lexical: polissemia e homonímia

A ambiguidade mais comum de encontrar nas charges é a ambiguidade lexical, na qual o


fonema pode assumir vários sentidos, ou seja, o interlocutor pode interpretar de várias maneiras
o que a charge está transmitindo, dependendo do conhecimento de mundo do leitor. Segundo
Pinkal (apud OLIVAN, 2009, p. 52), a ambiguidade é lexical quando um termo possui duplo
sentido, provocando mais de uma interpretação do enunciado, e que pode ocorrer com os casos
de homonímia (manga “fruta” vs. manga “parte de vestuário”) e da polissemia (universidade
“local” vs. universidade “instituição”).
A homonímia caracteriza-se pela mesma grafia nas palavras ou a mesma pronúncia, ou
seja, usa-se a mesma palavra para designar sentidos diferentes como vemos no exemplo: (manga
“fruta” vs. manga “parte de vestuário”) em que utiliza a mesma palavra para referir-se a algo
com sentidos diferentes.

A polissemia – ou seja, multiplicidade de sentidos – contribui para a


ambiguidade, fazendo o jogo programado do sentido de modo a permitir
várias leituras de um texto. [...] É o mesmo que sentidos múltiplos: a um
plano de expressão correspondem vários planos de conteúdo, cf.
(CARVALHO, 2006, p. 59).

Sobre a homonímia, Biderman (1978, p. 128) define: “homônimos são palavras que
têm formas idênticas, mas que expressam conteúdos distintos. Em outras palavras
significantes idênticos se referem a significados diferentes”, conforme o exemplo abaixo:
Qualquer canto está bom para Maria.
1416

Meus Amigos decoraram o show.

Em (1), a palavra “canto” pode apresentar as seguintes leituras: canto (lugar) ou canto
Página

(música). Essas palavras não têm o mesmo sentido, apenas mesma grafia e som, portanto
ISBN: 978-85-7621-221-8
exemplificam a homografia e homofonia. Em (2), a palavra “decoraram” traz duas leituras
possíveis: a primeira de enfeitar o ambiente do show; na segunda o sentido de memória, ou
seja, a pessoa decorou ou memorizou o show.
A polissemia permite que a palavra apresente muitos significados, permitindo ao leitor
ter várias interpretações de sentido da palavra, mas mantendo relações entre si. No exemplo
“Maria conheceu a universidade”; a palavra universidade assume tanto o sentido de lugar,
quanto das pessoas que estão na instituição, sendo assim, poderíamos entender que Maria
conheceu a estrutura da universidade ou os alunos e professores da universidade.
Sobre a polissemia, Pietroforte e Lopes (2007, p. 132) afirmam que toda a linguagem é
polissêmica, por terem natureza arbitrária e terem ganhado valores nas relações com outros
signos, sofrendo mudanças de sentido em cada contexto que estiver presente, assim desse
modo, a polissemia depende do contexto inserido para ocorrer seus vários sentidos no texto.
Enquanto na homonímia, a palavra depende do contexto para o seu significado, já que
só a palavra sem está inserida em um contexto não transmite o real sentido, dependendo do
significado dado pelo texto. Na polissemia, a palavra no contexto apresenta várias
interpretações, dependendo do conhecimento do leitor vai ter vários sentidos para a palavra,
como veremos mais a frente nas charges.

2. 3 Gênero textual charge

A charge está cada vez mais presente no cotidiano das pessoas, seja em jornais,
revistas, almanaques, livros didáticos, internet e principalmente em publicações periódicas,
gerando interesse no público de diferentes faixas etárias, além de ser uma forma de
entretenimento. Proporciona ao leitor várias formas de entender a mensagem. As charges
apresentam normalmente um ou dois quadros, acompanhados por figuras e o texto verbal.
Teixeira afirma que:

A charge engloba o verbal e não verbal como reforçadores na produção de


efeito de sentidos. Focalizando frequentemente a política, a charge pode
apresentar-se em um único quadro ou em mais cenas com escritas
1417

representando as falas dos personagens em balões ou até mesmo sem


nenhuma representação da escrita, apenas a imagem falando por si mesma”,
cf. (TEIXEIRA, 2010, p. 96-97).
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ISBN: 978-85-7621-221-8
Segundo Bakhtin (2003), os gêneros são definidos através de suas características básicas,
portanto definiremos a charge sendo um gênero discursivo que faz parte do âmbito jornalístico, e
que são organizadas por elementos verbais e não verbais. Tendo como função inicial provocar o
humor e o riso, recurso utilizado para atrair o leitor para algo mais sério, o chargista quer levar o
leitor a uma crítica de um assunto atual.
A charge também pode ser considerada temporal, ou seja, retrata fatos recentes, por isso o
leitor deve estar sempre informado de assuntos da atualidade para conseguir compreendê-la. A
palavra “charge” vem do francês que quer significa “carga”. O objetivo do gênero charge é
atacar criticamente situações cotidianas da vida dos políticos e da vida social de uma sociedade,
através do humor causado pelos vários recursos presentes na charge. De acordo com Mouco
(2007):

Uma crítica humorística de um fato ou acontecimento específico. É a


reprodução gráfica de uma notícia já conhecida do público, segundo a
percepção do desenhista. Apresenta – se tanto através de imagens quanto
combinando imagem e texto. A charge absorve a caricatura em seu ambiente
ilustrativo.

Criticando através da charge, o chargista passa para o leitor à crítica de forma cômica, só
saberá do que se trata o contexto da charge quando o leitor tiver conhecimento do acontecimento
em que a charge está retratando.

3 Análise

Para a análise das charges, levamos em consideração os aspectos verbais (título, falas) e
os não-verbais (a figura em si) e o contexto. Primeiramente indicamos o tema, para depois
relacioná-lo com os aspectos mais relevantes. É preciso explicar os elementos que compõem esse
tipo de texto sempre buscando associá-los ao tema.

3. 1 Caracterização do corpus da pesquisa


1418

Analisaremos o gênero charge, de modo a abordar sua linguagem, características e seu


propósito comunicativo enquanto texto que prima pela persuasão do leitor para obter humor e
Página

posicionamento crítico sobre determinado assunto. Além disso, mostraremos a relação da


ambiguidade com o gênero textual abordado.
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3. 2 Análise das charges

Charge 1:

Fonte: http://www.lendo.org Acessado em 25/04/2017

Esta charge carrega a ambiguidade lexical pela polissemia do termo “político”. O


sentido original (segundo o dicionário Aurélio: indivíduo pertencente a um partido) que é o
literal, pode ser interpretado como um sentido figurado, de xingamento.
Esse xingamento revela um uso com a intenção de agredir. Essa interpretação é possível
pelo contexto político e social, em que o termo “político” corresponde à desonestidade, sujeira,
trapaça e corrupção.
No âmbito não-verbal, verifica-se a construção do sentido figurado do termo “político”
como um xingamento, já que o personagem apresenta toda uma gesticulação de agressão ao seu
interlocutor. 1419
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Charge 2

http://www.revista.vestibular.uerj.br/ Acessado em 24/04/2017

Na segunda charge, observamos o fenômeno da ambiguidade lexical pela polissemia.


O termo ambíguo é a palavra sistema por apresentar significados distintos. Os “sistemas” são
diferentes, mas ambos advêm de uma relação semântica. Observe alguns usos desta palavra:
sistema político, sistema eleitoral, sistema de som, sistema digestório.
A palavra “sistema”, na primeira enunciação, denota o sentido de sistema político e
eleitoral. Na segunda enunciação, a noção de sistema é associada à tecnologias, mostrando
que tipo de sistema estão na fala do enunciador.
O gênero gera dupla interpretação em torno da palavra “sistema” que pode ser
entendida como a política que está gerenciando o governo, quanto ao meio pelo qual deve-se
fazer tal protesto. Neste caso, o meio tecnológico, com a expressão “fora do ar”, típica desse
meio. Isso ocorre devido à relação de significados existentes. Ambos tendo suas origens
ligadas, e proporcionando nestes enunciados a sobreposição de sentidos. O efeito de sentido é
irônico e humorístico, ao evidenciar a falta de atenção dos políticos para com a população.
1420
Página

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Charge 3

Fonte: http://metamorfoseshistoricas.blogspot.com.br/2014/09/ Acessado em 20/05/2017

Nesta charge, a ambiguidade lexical se dá através da polissemia e também da


homonímia. A palavra “poupança” contém uma dupla significação. É observado que a
mulher, ao indagar o rapaz se ele trabalha para o governo, revela o primeiro sentido dado à
“poupança”, “que é o de poupar dinheiro, ou referente ao local onde é posto o dinheiro”.
Juntamente com essa ambiguidade causada pela polissemia da palavra “poupança”, há a
crítica à apropriação da “poupança” (sentido literal “poupar”) pelo governo.
O enunciado é completado pela fala do rapaz e depois pela mulher novamente. O texto
verbal em consonância com o não-verbal retrata uma situação social dos transportes públicos
lotados e o assédio sexual sofrido por muitas mulheres nas conduções públicas. Com isso, o
termo “poupança” passa a conotar o sentido de parte do corpo (as nádegas), revelando, com
isso, a homonímia do termo.

4 Considerações finais

Dentre as charges analisadas, observamos que a homonímia e a polissemia são


1421

fenômenos que estão ligados, e devem ser vistos com um olhar crítico. Por meio das análises, foi
possível refletirmos sobre o processo de construção dos enunciados, assim como sua
interpretação e objetivo enquanto texto crítico e humorístico.
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A ambiguidade pode ser causada por fenômenos linguísticos (lexical) e semânticos
(ambiguidade, polissemia e homonímia), sendo esses últimos baseados, ainda, nos sentidos
literal e figurado da língua. Além disso, o contexto é fundamental para a compreensão desses
sentidos e para a interpretação do texto como um todo.
O texto humorístico explora bastante os sentidos ambíguos, portanto a semântica como
um todo. Observamos que o texto irônico baseia-se na duplicidade dos enunciados para causar
humor e crítica. Portanto, charges revelam uma intenção de elevar, de maneira descontraída, a
inteligência e capacidade de raciocínio lógico do leitor, e provocar uma reflexão crítica.

Referências

BAKHTIN, M. A estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2003.

BIDERMAM, M. T. C. Teoria linguística: Linguística quantitativa e computacional. Rio de


Janeiro: Livros Técnicos e Científicos, 1978.

CÂMARA, J. M. Problemas de linguística descritiva. 12. ed. Petrópolis: Vozes, 1986.

CANÇADO, M. Ambiguidade e vagueza. In: CANÇADO, Márcia. Manual de Semântica:


noções básicas e exercícios. São Paulo: Contexto, 2012. Cap. II, p. 65-81.

CARVALHO, N. de. Publicidade: a linguagem da sedução. 3. ed. São Paulo. Ática. 2006.

FIORIN, J. L. Introdução à linguística, II. Princípios de análise. 4.. ed. 2. reimp.. São Paulo:
Contexto, 2009.

MOUCO, Maria Aparecida de Morais. Leitura, análise e intepretação de charges com


fundamentos na teoria semiótica. Disponível em:
https//www.diadiaeducacao.pr.gov.br/portals/pde/arquivos/1104 -4. Acesso em: 20 maio
2017.

MOURA, Heronides Maurílio de Melo. Significação e Contexto: uma introdução a questões


de semântica e pragmática. 3. ed. – Editora Insular. Florianópolis, 2006.

OLIVAN, K. N. A semântica e o ensino da Língua Portuguesa. Florianópolis: UFSC, 2009.


Disponível em: <http://periodicos.ufsc.br/index.php/workingpapers/article/view/10038>
Acesso em: 20 maio 2017.
1422

PASSINI, M. T. A (im)precisão dos sentidos: uma reflexão acerca da ambiguidade pela


ótica discursiva. Disponível em:
<http://www.entrepalavras.ufc.br/revista/index.php/revista/article/view-199/166>. Acesso em
20 maio 2017.
Página

ISBN: 978-85-7621-221-8
PIETROFROTE, A. V. S; LOPES, I. C. A semântica Lexical. In: Fiorin, J. L.(org).
Introdução a linguística II. Princípios e analise. 4.. ed. São Paulo: Contexto, 2003.

TEIXEIRA, M. C. O gênero jornalístico charge no letramento escolar. Universidade


estadual do Centro-Oeste – Unicentro. v. 12, n. 19, p. 89-107, 2010.

ULLMANN, Stephen. Semântica: uma introdução à ciência do significado. 2. ed. Lisboa:


Fundação Calouste Gulbenkian, 1964. Disponível em:
<http://www.lendo.org> Acessado em 25/04/2017.
<http://www.revista.vestibular.uerj.br/>. Acessado em: 24/04/2017
<http://metamorfoseshistoricas.blogspot.com.br/2014/09/>. Acessado em: 25/04/2017.

1423
Página

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PÔSTER

O ENSINO DE LEITURA E PRODUÇÃO ESCRITA: UMA ANÁLISE DOS


GÊNEROS TEXTUAIS/ DISCURSIVOS PRESENTES NOS LIVROS DE LÍNGUA
INGLESA DO SEXTO E SÉTIMO ANO DAS ESCOLAS PÚBLICAS DE MOSSORÓ

Débora Brenda Teixeira Silva (UERN)


Paulo Dhiego Oliveira Bellermann (UERN)
Adriana Morais Jales (UERN)

Introdução

O estudo pautado nos gêneros textuais/discursivos, cada vez mais, tem obtido maior
visibilidade no ensino de línguas. A partir do proposto pelas considerações dos PCN
(BRASIL, 1998, p. 23), o desenvolvimento da “competência discursiva” passa a ser a
finalidade basilar a ser desenvolvida durante a formação escolar. Nessa perspectiva, o livro
didático se firma como principal ferramenta de ensino/aprendizagem, e por isso, se faz
necessário sua observação e análise, para averiguação se as atividades nele propostas são
pertinentes para com o estudo da língua.
O presente trabalho tem por finalidade apresentar, analisar e discutir como as
atividades de leitura e produção escrita são apresentadas e orientadas pelos autores dos livros
didáticos de Língua Inglesa do sexto e sétimo ano (coleção de 2016) em adequação à teoria
dos gêneros, dando continuidade a estudos anteriores desenvolvidos em nível médio e
superior realizados por Jales (2007; 2010).
Nossa fundamentação teórica fica a cargo das considerações de Bakhtin (2003),
Marcuschi (2003; 2008), Koch e Elias (2012), Antunes (2009), Lopes-Rossi (2006), dentre
outros. Nossos esforços são fruto do projeto de pesquisa vinculado ao Programa Institucional
de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC) – 2016/2017 – inicialmente intitulado de “Gêneros
textuais, livro didático e ensino: um estudo das atividades de leitura e de produção escrita no
Ensino Fundamental – Fase I”.
O estudo teve por objetivos (1) verificar como as atividades de leitura e produção
escrita dos livros didáticos de Língua Inglesa do sexto e sétimo ano são orientadas; (2) indicar
1424

os gêneros textuais trabalhados nas atividades de leitura e produção escrita; (3) examinar se o
gênero textual é indicado nas propostas de produção escrita e identificar quais; (4) Identificar
se as atividades de produção escrita estão de acordo com a teoria dos gêneros; e por último (5)
Página

especificar se há correlação das atividades de leitura com as de produção escrita. O trabalho

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encontra-se estruturado a partir da inserção da fundamentação teórica, seguido da
metodologia adotada na realização da pesquisa e seus resultados, finalizando com algumas
considerações pertinentes observadas a partir da realização do estudo.

1 Fundamentação Teórica

Os gêneros textuais/ discursivos se tornaram objeto de estudo de muitas pesquisas.


Partindo da certeza de que a comunicação se concretiza a partir do uso dos gêneros, acredita-
se ser essencial ressaltar algumas noções conceituais e funcionais acerca de seu estudo,
principalmente, levando em consideração as afirmações de Bakhtin (2003), Marcuschi (2008),
Antunes (2003, 2009) e Koch e Elias (2012).
Quando se estuda os gêneros textuais/ discursivos, a primeira máxima a considerar é
que são “tipos relativamente estáveis de enunciados” (BAKHTIN, 2003, p.262). Isso permite
compreender que gêneros não se realizam da mesma forma em todas as situações de uso, pois
entra em questão uma parte importante na produção linguística, que é o falante. Os seres
humanos são singulares, cada um possui sua subjetividade, e, ao fazer uso de qualquer gênero,
transferem para estes sua particularidade, seu estilo, como assim conceituado por Marcuschi
(2008). A comunicação se realiza por meio de textos, isso já é defendido por Antunes (2003,
2009) e, portanto, nos leva a trata-los como “práticas sociocomunicativas” (KOCH & ELIAS,
2012, p. 101), que se encontram dentro da sociedade e acompanham o desenvolvimento da
língua, o mudar histórico, variando com passar do tempo.
Os gêneros são usados diariamente, sejam percebidos ou não, isso porque “na prática,
usamo-los com destreza, mas podemos ignorar totalmente a sua existência teórica”
(BAKHTIN, 1992, p.301-302 apud KOCH & ELIAS, 2012, p. 102). Koch e Elias justificam
ainda por competência metagenérica, a capacidade que os indivíduos possuem e que os
permitem adaptar-se às diversas situações sociais em que se encontram. Baseados nisso, os
Parâmetros Curriculares Nacionais (1998) trazem como exigência o estudo do texto de forma
concreta, ou seja, o estudo por intermédio dos gêneros textuais/ discursivos. Marcuschi (2003,
p. 29) intervém e explica que “quando dominamos um gênero textual, não dominamos uma
1425

forma linguística e sim uma forma de realizar linguisticamente objetivos específicos em


situações particulares”.
Uma das principais noções defendida pelo autor em questão refere-se à
Página

impossibilidade de se comunicar a não ser por meio de gêneros, pois “toda manifestação

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verbal se dá sempre por meio de textos realizados em algum gênero” (MARCUSCHI, 2008,
p. 154). O autor ainda conceitua tipo textual, gêneros e domínios discursivos. Os tipos
textuais são aqueles relacionados à “natureza linguística de sua composição,” representados
pela narração, descrição, injunção, argumentação e exposição. O gênero são os textos
materializados no meio comunicativo, uma forma de padronização com função, propósito e
estilo. O domínio discursivo remete à ideologia de Bakhtin que compreende a ‘esfera da
atividade humana’ (BAKHTIN, 1979 apud MARCUSCHI, 2008, p. 155), o que envolve a
realidade comunicativa de cada campo social. Marcuschi ressalta que gênero e tipo textual
não são separáveis, mas apresentam-se de forma interativa, já que “[...] todos os textos
realizam um gênero e todos os gêneros realizam sequências tipológicas diversificadas”
(MARCUSCHI, 2008, p. 160).
Diante do exposto, entende-se a necessidade de compreender os gêneros como
atividades sociocomunicativas e dinâmicas, com atenção à sua função. Com a pluralidade de
estudos, faz-se necessário considerar a pertinência de cada um, uma vez que cada autor
contribui com uma informação nova, ou com uma releitura frente à construção, variação e
função dos gêneros em meio aos discursos.

2 Metodologia

Para melhor sistematizar, a presente pesquisa foi dividida pelas seguintes etapas: Etapa
1: Levantamento das três maiores escolas de Ensino Fundamental da cidade de Mossoró –
RN, segundo a quantidade de alunos; Etapa 2: Levantamento dos livros didáticos do sexto e
sétimo ano utilizados em tais escolas; Etapa 3: Análise das atividades de leitura e de produção
escrita presentes nos livros didáticos. Em nossa investigação, direcionamo-nos nas questões
abaixo enumeradas.
1- Que gêneros textuais são trabalhados nas atividades de leitura no livro didático de Língua
Inglesa do sexto e do sétimo ano?
2- Que gêneros textuais são orientados nas atividades de produção escrita no livro didático
de Língua Inglesa do sexto e do sétimo ano?
1426

3- As atividades de leitura e produção escrita no livro didático estão de acordo com as


teorias dos gêneros textuais?
4- Há correlação entre as atividades de leitura e produção escrita?
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3 Resultados e Discussões

As etapas mencionadas anteriormente conduziram a realização de nosso estudo. Neste


momento, apresentamos algumas discussões sobre os dados coletados acerca dos gêneros
textuais/ discursivos em livros didáticos do Ensino Fundamental do 6º e 7º ano.
As informações a respeito das escolas e seus respectivos livros didáticos adotados
foram coletados na Diretoria Regional de Educação, Cultura e Desportos – DIRED – da
cidade de Mossoró (RN). Obteve-se o conhecimento de que as maiores escolas em número de
alunos são: Escola Estadual Monsenhor Raimundo Gurgel (1059 alunos/ Livro Alive), Centro
de Educação Integrada Professor Eliseu Viana – CEIPEV (1305 alunos/ Livro Way to English
for Brazilian Learners), Escola Estadual Governador Dix-sept Rosado (1258 alunos/ It Fits).
Apresentamos a seguir, primeiramente, a indicação do gênero textual/discursivo nas
atividades de leitura e de produção escrita nos livros didáticos do Ensino Fundamental no 6ª e
do 7ª ano.

Quadro 1: Lista geral de recorrência dos gêneros textuais/discursivos nos livros do 6ª e 7ª ano
LISTA E RECORRÊNCIA DOS GÊNEROS TEXTUAIS/ DISCURSIVOS –LIVROS DO
6ª E 7ª ANO
LEITURA QUANTIDADE ESCRITA QUANTIDADE
Documento de identidade 1 Cartão Postal 2
Cartaz 1 Cartaz 3
Artigo 5 Questionário 1
Mapa 1 Letra de Música 1
Letra de música 2 Receita 2
Receita 1 Lista 2
Infográfico 1 Home Page 1
Home Page 2 Pôster 2
História em quadrinho 3 Autobiografia 1
Reportagem 1 Biografia 3
Biografia 6 Agenda 1
Agenda 1 Poema 1
Poema 3 Tirinha 1
Pôster 2 Perfil 2
Roteiro (Script) 2 Árvore genealógica 1
1427

Aviso 2 Anúncio pessoal 1


Fragmento de texto 3 Cardápio 1
Panfleto 1 E-mail 1
Página

Quiz 2 Tweet 1
Debate em fórum on-line 1 Roteiro de peça de

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teatro
Boletim informativo 1 Anúncio 1
Texto informativo 1 Panfleto 1
Pedido e conselho médico 1 Quiz 2
Cartum 2
Paródia 1
Ficha 2
Debate em fórum 1
on-line
Pesquisa de opinião 1
Mapa Turístico 1
Minissaga 1
Guia turístico 1
Aviso 1
Itinerário de viagem 1

A partir da análise dos livros, percebe-se que há a indicação dos gêneros na maioria
das lições, são poucas que não apresentam esse ponto. Pode-se inferir a partir de sua
quantificação, que os autores investem na diversidade de gêneros, o que contribui para a
formação de alunos, que dentro do ambiente escolar estão expostos a diversos gêneros, o que
aumenta a capacidade comunicativa segundo os domínios discursivos em que se inserem
(MARCUSCHI, 2008).
Por sua vez, a análise das propostas de atividades de escrita se apresenta de acordo
com a teoria dos gêneros. Pela teoria dos gêneros ser de natureza vasta, delimitamos em nossa
pesquisa a observação de quatro aspectos: a indicação do gênero, o destinatário, propósito
comunicativo e a forma composicional. Em outras palavras é o quê, para quem, para quê e o
como o aluno irá escrever. Os autores dos livros didáticos analisados apresentam grande
preocupação no destaque dos pontos mencionados anteriormente, porém em algumas
atividades dos livros do 6ª e 7ª ano é bastante difícil observá-los (ver tabelas 1e 2).

Tabela 1 – Apresentação da quantidade de atividades de produção escrita por livro (6ª ano) e
sua adequação com a teoria dos gêneros, julho de 2017 – Brasil.
LIVROS Quantidade Indicação do Indicação do Indicação do Forma
de atividades gênero textual destinatário propósito composicional
comunicativo
LIVRO 1 8 7 7 7 7
1428

LIVRO 2 8 7 7 7 7
LIVRO 3 8 7 5 5 7
TOTAL 24 21 19 19 21
Fonte: dados da pesquisa, 2017.
Página

Tabela 2 – Apresentação da quantidade de atividades de produção escrita por livro (7ª ano) e

ISBN: 978-85-7621-221-8
sua adequação com a teoria dos gêneros, julho de 2017 – Brasil.
LIVROS Quantidade Indicação do Indicação do Indicação Forma
de atividades gênero textual destinatário propósito composicional
comunicativo
LIVRO 1 8 8 8 8 8
LIVRO 2 8 8 8 6 7
LIVRO 3 8 7 5 5 7
TOTAL 24 23 21 19 22
Fonte: dados da pesquisa, 2017.

O exemplo que segue se encontra no livro It fits (7ª ano) e possibilita inferir que as
atividades estão cada vez mais completas, pois há a criação de uma situação para os alunos
escreverem, já que são convidados a imaginar que vivem em um país em que a língua materna
é o inglês e que a família deseja vender a casa, convidando o aluno a escrever um anúncio que
será publicado em jornal local (cf. Fig. 1). Atividades como estas são altamente
recomendadas, uma vez que apresenta o porquê do aluno desenvolver um texto, ao propor
uma situação fica muito mais fácil e lógico para o aluno o desenvolver.

Fig. 1: Proposta escrita presente no livro It Fits (7ª ano), unidade 3.

Com relação ao critério correlação de atividades, percebemos que os autores dos livros
didáticos apresentam alguma dificuldade em solicitar atividades na seção escrita que
correspondam ao gênero trabalhado na seção de leitura (ver gráficos 1e 2).
1429
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ISBN: 978-85-7621-221-8
Gráficos 1 e 2 – Quantidade geral de gêneros solicitados nas propostas de leitura e escrita dos livros
didáticos do 6ª e 7ª ano (respectivamente), seguido de sua correlação.

Fonte: dados da pesquisa, 2017.

Com o auxilio dos gráficos ilustrativos, podemos perceber que a maioria das unidades
não apresenta correlação de gêneros. Ao somarmos as propostas de leitura presentes em
todos os três livros, têm-se um total de 19 gêneros na seção de leitura (livros 6ª ano) e 21 na
seção escrita, dessas atividades apenas 9 são correlatas. Já o gráfico 2 ilustra que, na seção de
leitura dos livros do 7ª ano são apresentados um total de 23 gêneros, assim como, 23 gêneros
nas propostas de escrita, no entanto, apenas seis são correlatas. Ao considerarmos a colocação
de Lopes-Rossi (2006) de que a leitura de gêneros nem sempre será acompanhada de
produção escrita, porém esta última para ser desenvolvida faz necessário o uso da leitura,
podemos inferir que seria muito mais eficiente para o aluno desenvolver um gênero na seção
escrita que já tivesse estudado durante a seção de leitura, já que somente assim o gênero
poderia ser melhor apropriado pelo aluno vindo a produzi-lo de forma satisfatória dentro de
situações comunicativas autênticas.

Conclusão

A partir dos resultados obtidos, podemos inferir que os livros adotados pelas escolas
CEIPEV, Raimundo Gurgel e Dix-sept Rosado (coleção de 2016) estão de acordo com a
1430

teoria dos gêneros segundo a maioria dos quatro critérios observados. Somente em algumas
unidades percebemos a inexistência desses critérios, muitos deles envolvendo o propósito
comunicativo e a forma composicional. Houve atividades que não apresentaram a relação com
Página

a teoria dos gêneros de forma clara, no entanto, é possível inferir que as atividades são

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possíveis de serem desenvolvidas com base naquilo que os autores inserem em seções
anteriores que compõem o livro didático. Com relação ao último aspecto que compõe os
objetivos de nossa pesquisa, que é a correlação das atividades de leitura com escrita,
percebemos que, os livros didáticos analisados apresentam baixa correlação de atividades.
Evidencia-se também, que não deve ser tarefa fácil para os autores escolherem os gêneros que
serão trabalhados em seus livros, reunindo assim, uma quantidade de gêneros satisfatórios a
inserção do discente em situações comunicativas diferentes. De acordo com os resultados
apresentados, toma-se consciência do quanto esses livros melhoram em comparação a
pesquisas anteriores desenvolvidas por Jales (2007; 2010).

Referências

ANTUNES, Irandé. Aula de português: encontro & interação. São Paulo: Parábola Editorial,
2003.

______. Língua, texto e ensino: outra escola possível. São Paulo: Parábola Editorial, 2009.

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

BRASIL, Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais:


terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: língua estrangeira. Brasília, MEC/SEF, 1998.

JALES, Adriana Morais. Os gêneros textuais e o ensino da produção de texto: análise de


propostas em livros didáticos de língua inglesa. Dissertação de Mestrado em Lingüística
Aplicada – Universidade Estadual do Ceará – UECE, 2007.

KOCH, Ingedore Villaça; ELIAS, Vanda Maria. Ler e compreender: os sentidos do texto. 3.
ed. São Paulo: Contexto, 2012.

LOPES-ROSSI, Maria Aparecida Garcia. Gêneros discursivos no ensino de leitura e produção


de textos. In: KARWOSKI, A.M.; GAYDECZKA, B.; BRITO, K. S. (Orgs.). Gêneros
textuais: reflexões e ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2006, p.73-84.

MARCUSCHI, L. A. Gêneros textuais: definição e funcionalidade. In: DIONISIO, A. P.;


MACHADO, A. R.; BEZERRA, M. A. (Org.) Gêneros textuais & ensino. 2. ed. Rio de
Janeiro: Lucerna, 2003,

______. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São Paulo: Parábola


Editorial, 2008.
1431
Página

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PÔSTER

GÊNERO DISCURSIVO/ TEXTUAL RESENHA DE RESTAURANTE: UM


TRABALHO DE PRODUÇÃO ESCRITA ATRAVÉS DE SEQUÊNCIA DIDÁTICA

Débora Brenda Teixeira Silva (UERN)


Maria Idalina Mesquita de Morais (CEIPEV)
Adriana Morais Jales (UERN)

Introdução

O ensino de língua estrangeira ainda ocupa posição de grande desafio em escolas


públicas. Visando a melhoria desse quadro, diversos estudos têm sido realizados em vista de
identificar as falhas e propor meios que possibilitem melhoras no meio escolar. Tendo isso em
vista, uma das linhas de estudo se direciona para os gêneros discursivos/textuais, uma vez que
se entende que a comunicação humana se realiza por meio de textos, como defendido por
Antunes (2009) e Koch e Elias (2012), e se apresentam por meio dos gêneros textuais/
discursivos.
Nas práticas de linguagem defende-se, principalmente, a necessidade de trabalhar as
quatro habilidades necessárias à comunicação (ouvir, falar, ler, escrever). Trazida pela
corrente do Interacionismo Sociodiscursivo (ISD), a proposta de desenvolvimento de
habilidade escrita e oral se dar através de sequência didática de gêneros situados em
“contextos de produção precisos” (SCHNEUWLY & DOLZ, 2004, p. 96). O presente artigo
tem por finalidade apresentar a aplicação de sequência didática a partir do gênero resenha de
restaurante no Centro de Educação Integrada Professor Eliseu Viana (CEIPEV). A proposta
de trabalhar a produção escrita nasce das discussões do Programa Institucional de Bolsa de
Iniciação à Docência (PIBID/ CAPES), Subprojeto Língua Inglesa. Respaldamo-nos na teoria
dos gêneros, principalmente nos ideais defendidos por Bakhtin (2003), Antunes (2003; 2009),
Marcuschi (2008), Koch & Elias (2012) dentre outros. A proposta de ensino através de
modelo teórico sequência didática é autoria de Schneuwly & Dolz (2004), sendo que nos
apoiamos, também, em releituras, como aquelas trazidas por Petreche e Cristóvão (2014).
O trabalho encontra-se estruturado a partir de discussões de premissas teóricas, onde
1432

embasamos nosso trabalho segundo contribuições de autores que se dedicam ao estudo


detalhado dos gêneros textuais. Na seção seguinte, apresentamos a metodologia, na qual
Página

discursamos como a sequência didática foi produzida, seguindo os resultados e as discussões.

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Após, apresentamos nossas conclusões, momento em que refletimos sobre a relevância do
trabalho e seus resultados.

1Fundamentação Teórica

Os gêneros textuais/discursivos ocupam cada vez mais espaço nos meios acadêmicos
enquanto objeto de estudo. Isso se dá, principalmente, pela percepção de que a comunicação
se realiza através de textos, e tais textos se apresentam sob a forma de gêneros. Respaldando-
se nas contribuições teóricas de Bakhtin (2003), Marcuschi (2008) e Koch e Elias (2012),
situa-se os gêneros textuais/ discursivos segundo sua definição e função em meio social. Para
Bakhtin (2003), todo e qualquer agir humano relaciona-se e realiza-se através do uso da
linguagem, seja esta escrita ou oral.
Faz-se importante ressaltar a distinção que Marcuschi (2008) concebe entre gênero e
tipos textuais. Tipos textuais são aspectos sequenciais linguísticos (narração, argumentação,
exposição, descrição e injunção), já os gêneros são textos materializados com função
comunicativa. Aqui se faz necessário destacar que, por materializados não se entende algo
estanque e acabado, mas sim, à existência de uma forma, uma vez que gêneros discursivos são
“tipos relativamente estáveis de enunciados” (BAKHTIN, 2003, p. 262), que mesmo
possuindo uma forma, não se realizam do mesmo modo, já que cada pessoa transfere para o
gênero suas particularidades, a isso Marcuschi (2008) chama de estilo. Os gêneros se fazem
presentes em todos os lugares, servindo à comunicação, o que permite a afirmação de Koch e
Elias (2012, p. 101) de que são “práticas sociocomunicativas” e variam com o passar do
tempo.
Marcuschi (2008, p. 160) evidencia que gênero e tipo textual não são separáveis, mas
apresentam-se de forma interativa, uma vez que “[...] todos os textos realizam um gênero e
todos os gêneros realizam sequências tipológicas diversificadas”. O autor enfatiza que os
gêneros são construções histórico-sociais, e que por esse motivo surgem e adaptam-se aos
contextos atuais. De acordo com essa perspectiva, gêneros textuais são ativamente maleáveis
segundo a necessidade do falante, podendo até mesmo assumir a função de outro, o que revela
1433

a propriedade de intergenericidade, a “plasticidade e dinamicidade” (MARCUSCHI, 2008 p.


166).
Concebendo a importância dos gêneros, é singular a necessidade de inseri-los em sala
Página

de aula enquanto objeto de estudo. Antunes (2009) afirma que, para ocorrer um ensino de

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língua efetivo, é imprescindível o uso do texto, verdadeira manifestação de língua que é, e os
gêneros textuais/discursivos permitem a imersão na língua, na interação, na logicidade da
expressão verbal. Consonante a isso, torna-se basilar a adaptação dos gêneros ao ensino, uma
vez que a função primeira desses é a comunicação, ou seja, precisa-se primeiro investir na
transposição didática do gênero, termo defendido pelos pesquisadores da corrente teórica do
Interacionismo Sociodiscursivo (ISD), em que Bronckart e Schneuwly e Dolz (PETRECHE;
CRISTOVÃO, 2014) destacam-se como seus principais representantes.
Schneuwly e Dolz (2004) apresentam uma proposta de desenvolvimento de habilidade
escrita e oral através do estudo dos gêneros textuais/ discursivos. Isso se dá por meio de uma
sequência didática (SD). Segundo os autores supracitados, sequência didática “é um conjunto
de atividades escolares organizadas, de maneira sistemática, em torno de um gênero textual
oral ou escrito” (2004, p. 97). A sequência se estrutura a partir da apresentação da situação,
produção inicial, módulos e produção final (ver figura 1).

A apresentação da situação é o momento em que o professor insere o gênero a ser


estudado, o conceitua, revela sua finalidade, destaca sua estrutura (forma composicional) e
principalmente sua função comunicativa segundo o contexto social em que se realiza. A
produção inicial é o primeiro texto desenvolvido pelos alunos, pois partindo daquilo que os
alunos já sabem (VYGOTSKY, 2006) juntamente com o que será estudado durante a
apresentação do gênero, os alunos serão convidados a produzir seus próprios textos. Esses
textos serão, então, corrigidos pelo professor que observará a ocorrência de equívocos, sejam
1434

estes de ordem linguísticas ou estruturais do gênero.


Após a verificação da existência de irregularidades na primeira produção dos alunos, o
professor elaborará um conjunto de atividades que serão trabalhadas durante a fase
Página

denominada de módulos. Os módulos podem se estruturar em várias atividades e a quantidade

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varia de acordo com a necessidade manifestada pela turma. Com o fim da aplicação dos
módulos, momento em que se acredita que as dúvidas dos alunos foram sanadas, propõe-se a
produção final, fase em que os alunos refazem seus textos, observando todas as
irregularidades cometidas na primeira produção, e que foram estudadas durante os módulos.
A partir de então, pode-se avaliar o desenvolvimento dos alunos na construção do gênero e,
consequentemente, no aprendizado de mais uma ferramenta comunicativa.
Deste modo, entende-se a necessidade de um ensino de línguas voltado à
comunicação, e que sua efetividade somente se realiza com o uso de textos, com o uso de
gêneros textuais/ discursivos. A proposta de estudo desses por meio de sequências didáticas
possibilita o conhecimento, produção e apropriação de meios que servem à comunicação. O
que permite conjecturar sobre a ação da escola, como uma escola atuante, que proporciona
aos alunos recursos para as práticas comunicativas, apoiados e inclinados ao uso de diferentes
gêneros, já que, assim como defendido por Marcuschi (2008) toda manifestação linguística se
apresenta e realiza-se por meio de gêneros.

2 Metodologia

Com o intuito de trabalhar a produção escrita com eficiência, de modo a contribuir


para a formação do aluno-escritor e expandir seu contato com a língua inglesa dentro de
verdadeiras práticas comunicativas, propomos uma sequência didática com o gênero resenha
de restaurante. A sequência foi realizada em uma turma de terceiro ano do Ensino Médio do
Centro de Educação Integrada Professor Eliseu Viana (CEIPEV). O principal motivo que nos
levou a escolha do gênero foi a possibilidade de favorecer a turma maior intimidade com o
Inglês, através de um gênero que exige de seus usuários a formulação e exposição de opinião,
o que contribui para o desenvolvimento de posicionamento crítico em sociedade.
Saber escrever uma resenha pode ser bastante útil quando se deseja compartilhar
informações, uma vez que o gênero permite o emprego de opinião sobre determinado objeto,
no caso da proposta, sobre determinado restaurante que pode revelar a outros potenciais
consumidores se é viável consumir determinado serviço oferecido por um estabelecimento.
1435

Visando maiores esclarecimentos, uma resenha é um texto que resume o objeto analisado e
permite o emprego de avaliação, de uma crítica, apontando aspectos positivos ou negativos.
Trata-se, portanto, de um texto de informação e de opinião. Tendo isso em vista, a sequência
Página

didática foi realizada ao decorrer de seis aulas de 1 hora e 40 minutos cada.

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Em vista de introduzir o gênero, foi ministrada uma aula de leitura na qual o aluno
pôde entrar em contato com o texto, sua forma, função e particularidades linguísticas. A
sequência didática de escrita não se realiza simplesmente escrevendo, pois entendemos que o
ato de ler é essencial na construção de qualquer conhecimento. A partir da afirmação de
Lopes-Rossi (2006, p.75), de que “[...] a leitura de gêneros discursivos na escola não
pressupõe sempre a produção escrita. Esta, no entanto, pressupõe sempre atividades de leitura
[...]” permite inferir que, para o aluno adequar seus conhecimentos às informações do gênero,
fez-se necessário um estudo meticuloso das partes, função e estrutura do gênero resenha.
Utilizamos um exemplo comum para apresentação do gênero (ver figura 2), destacando
aspectos como estrutura, recursos linguísticos e adequação comunicativa.

Figura 2. Exemplo de resenha de restaurante. Fonte:


< https://law.duke.edu/communityinfo/restaurants/recommendations/ > Acesso em: 07 Fevereiro, 2017.

Após o estudo detalhado do gênero, os alunos foram convidados a redigir seus


próprios textos. Para tanto, pediu-se que os alunos imaginassem que as resenhas foram
solicitadas por um jornal online. Com a apresentação da situação, os alunos tomam
conhecimento do que, para que, e para quem escrever, uma vez que textos “são atos de
linguagem” (ANTUNES, 2003, p. 63). Nesse ponto, os alunos foram informados que o
resultado de suas produções escritas seria divulgado em blog específico da escola. Isso
contribui para que os alunos percebam a função comunicativa de seus textos.
1436

Para realizar a tarefa, os alunos foram divididos em duplas. Entende-se que o gênero
requisitado foi bastante desafiador para os estudantes que não possuíam nenhuma prática de
escrita em Língua Inglesa. Com o auxílio de dicionários e disposição das professoras
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(professora supervisora e aluna bolsista), os alunos tentaram adequar o vocabulário do

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português para o Inglês. Esse foi um dos momentos mais difíceis, pois os alunos
demonstraram dificuldade no manuseio dos dicionários e na adequação das palavras ao
contexto da resenha. Para a primeira produção, foram dispostas duas aulas.

3 Resultados e Discussões

Os módulos são as fases destinadas ao estudo e exercício daquilo que mais se errou na
primeira produção. Durante a realização da sequência didática foi necessário o
desenvolvimento de dois módulos, realizados em duas aulas. Um módulo foi destinado ao
exercício do uso dos adjetivos, uma vez que os alunos apresentaram muitas dificuldades no
emprego da ordem dessa classe gramatical em seus textos.
O outro módulo voltou-se para o estudo da estrutura do gênero trabalhado, já que no
decorrer da correção das resenhas, percebeu-se que os alunos não entenderam a forma
composicional, ou seja, a estrutura pela qual o gênero resenha se apresenta. Ainda no segundo
módulo, também foi abordado o emprego dos verbos (principalmente o verbo to be) e sua
concordância com o sujeito da frase, posto que, percebeu-se que os discentes cometeram
alguns equívocos envolvendo a concordância do verbo com o sujeito. Um último aspecto
observado foi a tentativa de omitir o sujeito no texto, o que é perfeitamente compreensível,
uma vez que na língua materna essa prática é recorrente, no entanto, em língua inglesa não
existe sujeito oculto.
A produção final dos alunos foi muito proveitosa, notou-se grande cuidado destes na
observação dos pontos marcados como equívocos durante a produção inicial. O processo de
refacção do texto é bastante significativo, pois assim como colocado por Lopes-Rossi (2006,
p.79) “não se pode esperar que a primeira versão do texto já esteja perfeita”. É importante que
os alunos percebam isso e que as práticas de linguagem se ampliam conforme seu uso, que
escrever é prática e que demanda tempo para sua construção.
Durante a sequência, observou-se que, por ser uma atividade realizada em dupla,
houve situações em que foi nítida a falta de entrosamento de um dos parceiros durante a
atividade, no entanto, foram apenas em duas duplas que esse fator foi observado. O restante
1437

da classe demonstrou esforço e compromisso com a construção do gênero, o que evidencia a


natureza eficiente da sequência didática.
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Conclusão

A compreensão dos gêneros textuais/discursivos enquanto práticas linguísticas,


interacionais e sociais é fundamental para a formação de falantes que dominam a língua
segundo suas necessidades comunicativas. O estudo da língua pautado nos gêneros vem se
diversificando cada vez mais, principalmente em decorrência das exigências dos Parâmetros
Curriculares Nacionais. O método de ensino através de sequência didática permite não só a
aproximação do aluno ao uso da língua inglesa de forma ativa em sala de aula, como também,
ao domínio de gêneros que favorecem a expansão dos recursos comunicativos.
A experiência do trabalho com gênero resenha de restaurante na escola Eliseu Viana
foi muito satisfatória, pôde-se perceber a progressão dos alunos no entendimento do gênero,
assim como a pertinência do método como ferramenta de ensino. Desenvolver habilidade
escrita é umas das propostas do ensino de línguas, porém é factual que dificilmente um aluno
de escola pública desenvolve habilidades comunicativas em Inglês. Trabalhos como esse
colaboram para a formação de pensamento de que, se verdadeiramente o ensino fosse pautado
em gêneros e estes fossem estudados de forma eficiente, como por meio de sequência
didática, desde o início da formação escolar, não seria utópico pensar na possibilidade de
egressos do ensino público dominarem outro idioma.

Referências

ANTUNES, Irandé. Aula de português: encontro & interação. São Paulo: Parábola Editorial,
2003.

______. Língua, texto e ensino: outra escola possível. São Paulo: Parábola Editorial, 2009.

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

BRASIL, Ministério da Educação. Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Parâmetros


Curriculares Nacionais: ensino médio. Brasília, 1999.

DOLZ, Joaquim; NOVERRAZ, Michèle; SCHNEUWLY, Bernard. Sequências didáticas para


o oral e a escrita: Apresentação de um procedimento. In: DOLZ, Joaquim; SCHNEUWLY,
Bernard e colaboradores. Gêneros orais e escritos na escola. Organização e tradução de
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ROJO, Roxane; CORDEIRO, Glaís Sales. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2004. p. 95-
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KOCH, Ingedore Villaça; ELIAS, Vanda Maria. Ler e compreender: os sentidos do texto. 3.
ed. São Paulo: Contexto, 2012.

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LOPES-ROSSI, Maria Aparecida Garcia. Gêneros discursivos no ensino de leitura e produção
de textos. In: KARWOSKI, A.M.; GAYDECZKA, B.; BRITO, K. S. (Orgs.). Gêneros
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MARCUSCHI, Luiz Antônio. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São


Paulo: Parábola Editorial, 2008.

PETRECHE, C. R. C e CRISTOVÃO, V. L. L. O gênero textual Home Page na aula de


língua inglesa do Ensino Médio: analisando capacidades de linguagem. In.: BARROS, E. M.
D. de e RIOS-REGISTRO, E. S. Experiências com sequências didáticas de gêneros
textuais – Parte 2. Campinas: Pontes, 2014, p. 235-259

VYGOTSKY, L.S.; LURIA, A.R.; LEONTIEV, A.N. Linguagem, pensamento e


aprendizagem. Trad. de Maria da Penha Villalobos. São Paulo: Ícone, 2006.

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A ANTONÍMIA COMO RECURSO LITERÁRIO SOB A PERSPECTIVA


SEMÂNTICA

Emanuelle Kelly Alves de Souza (UERN)


Rayssa Rovanya Torquato Carvalho (UERN)
Samara Augusta de Paiva Silva (UERN)
Veronica Palmira Salme de Aragão (UERN)

1 Introdução

A antonímia permeia o dia a dia dos falantes da língua portuguesa inúmeras vezes,
seja em uma propaganda publicitária, em uma poesia, canção ou até mesmo no ato
comunicativo. O que não se pode negar é que, muito mais do que uma simples definição
contida nos livros didáticos ou em gramáticas, a antonímia faz-se presente e nos cerca em
suas múltiplas funções e concepções adquiridas ao longo do tempo. Abordar-se-á, nesse
contexto, a antonímia como recurso literário, na canção O Quereres, de Caetano Veloso.
Concebendo a importância do objeto de análise do presente artigo, que é a antonímia
como recurso literário, observou-se que é de fundamental relevância esclarecer acerca das
definições de antonímia em uma perspectiva tradicional e moderna. As reflexões aqui
relatadas servem de base para a compreensão da antonímia de modo mais significativo e atual,
tendo em vista as suas relações com o contexto e o seu papel como construtora de sentido.
Optou-se por trazer diferentes perspectivas acerca da antonímia, frente a problemática
de que apenas a visão tradicional tem prevalecido no ensino da figura de linguagem em
questão. Ver a língua com um olhar estático limita a visão do indivíduo diante desse horizonte
gigantesco de sentidos que a abarca. Portanto, é de suma importância mostrar a amplitude da
língua e suas relações com o cotidiano, de maneira múltipla e variável.
O objetivo central deste trabalho é o de propor alguns questionamentos e reflexões a
respeito das relações semânticas de oposição, no sentido de nelas considerar o conceito de
antonímia. Pretende-se refletir sobre o objeto de estudo, de forma mais prática, observando
algumas possibilidades de exploração desse fenômeno no âmbito da sala de aula, mostrando o
1440

que pode ser abordado sobre os mais diversos aspectos, sobretudo como recurso literário.
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2 Antonímia em uma perspectiva tradicional

O estudo tradicional da antonímia pouco se tem a contribuir para uma visão mais
ampla e significativa da antonímia em uma perspectiva atual. Os autores ditos
“conservadores”, embora se preocupassem em definir o termo, não conseguiram estabelecer
relações entre ela e o contexto comunicativo, que é variável.
Segundo Bechara (2009, p. 492), “antonímia é o fato de haver palavras que entre si
estabelecem uma oposição contraditória (vida; morte)”. Nesta concepção, não se leva em
consideração as mudanças de sentido que uma palavra pode sofrer ao longo do tempo. Outro
questionamento quanto a essa concepção tradicional de Bechara é o fato de morte e vida
serem conceituadas como uma oposição contraditória, visto que o fato dessas palavras
correlacionarem não significa que são contrárias uma à outra. As mesmas expressam apenas
tempos distintos de um mesmo ciclo.
De acordo com Aurélio Buarque (2000, p. 48), “antônimo é uma palavra de
significação oposta à de outra”. Essa definição, do mesmo modo que a de Bechara, pouco
acrescenta para o estudo mais detalhado do que de fato é a antonímia. A visão tradicional está
pautada em uma análise mais conceitual do que explicativa, tendo em vista que não esclarece
a respeito das situações comunicativas, muito menos distingue a antonímia das outras relações
de contraste.
Basta pesquisar nos livros didáticos de Língua Portuguesa para se perceber que o
ensino da antonímia encontra-se nessa perspectiva tradicional, principalmente referindo-se ao
ensino fundamental e médio. Não há uma preocupação explícita dos docentes quanto à
formação crítica dos seus alunos, dado que os mesmos (ou maior parte deles) compactuam
com esse sistema de ensino ultrapassado.
No campo da semântica atual, conceber essa definição tradicional de antonímia pode
ocasionar um enorme prejuízo para o avanço do conhecimento do termo. Enquanto se
perpassa a ideia de antônimos somente como uma relação de “oposição contraditória”, mais
se distancia de um ensino extensivo e qualitativo da estilística, um ensino que contemple o
conhecimento crítico e contextualizado da Antonímia.
1441
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3 Antonímia, de acordo com Pietroforte e Lopes

Durante anos, os conceitos de antonímia estavam calcados apenas na visão tradicional


acerca da língua. Esta figura de linguagem era definida apenas como palavras de sentido
contrário, independente do contexto a qual estivesse inserida. Destarte, ocorreram novos
estudos e passou-se a observar a linguagem de maneira mais ampla, levando em consideração
o contexto comunicativo. Estudiosos como Pietroforte e Lopes trouxeram significativas
contribuições para essa nova visão de língua, mostrando a importância de analisá-la em sua
completude.
Assim sendo, se foi objetivado aqui mostrar suas contribuições para o estudo da
antonímia, uma vez que estudá-la em sua totalidade requer mais que conhecimentos
gramaticais. Pietroforte e Lopes (2004), em seu livro Introdução à linguística II, estabelece a
antonímia participante do campo lexical, dado que acontece por meio da palavra, e a definem
como: “Significados contrários são realizados por meio do léxico. Assim como não existe
semelhança total de sentido entre sinônimos, não há oposição absoluta entre antônimos.
Palavras diferentes podem ter um mesmo antônimo, desde que tenham ao menos um sentido
em comum”.
Esses autores enxergam a antonímia de maneira contextualizada cuja oposição ocorre
de acordo com o sentido atribuído às palavras no contexto comunicativo, assim sendo,
palavras como fresco e jovem podem ser antônimas de velho, porque fresco se refere a
alimentos que acabaram de ser preparados, novo. Daí vem as expressões pão fresco e pão
velho.
Segundo Pietroforte e Lopes (2004, p. 127), “uma só e mesma palavra pode ter tantos
antônimos quantos forem seus significados”, dessa maneira, preto pode opor-se a colorido em
“TV preto e branco”, “a mais claro em seu gênero” em pão preto, a limpo em “tinha unhas
pretas”. Como também, negro opõe-se a destinado ao bem em “magia negra” e a legal em
“mercado negro”.
Pietroforte e Lopes (2004, p. 127) ainda esclarecem que há antônimos que expressam
oposições polares como “dar vs receber, morto vs vivo, comprar vs vender. Outros definem os
1442

limites de um contínuo que, por sua vez, pode ser recortado por gradações: rico vs pobre
(pode ser mais ou menos rico, mais ou menos pobre)”.
Em contrapartida, esses antônimos dependem do ponto de vista colocado em discurso.
Página

Como exemplo disso, pode-se observar pequeno vs grande. Esses tamanhos dependem da

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concepção que cada pessoa tem de grande e pequeno, o que é pequeno para uma determinada
pessoa, pode ser grande para outra e o que é grande para uma, pode ser grande para outra.
Nestes termos, a visão de Pietroforte e Lopes em respeito a antonímia, transcende a
visão mecanicista e estática apresentada na gramática tradicional. Esses autores a enxergam
de forma contextualizada e variável de acordo com as concepções dos interlocutores e do
ambiente cultural, regional e social a qual as palavras estão inseridas.

4. A Proposta de Lyons para a antonímia

Em se tratando de antonímia, há limitação em compreender o fenômeno apenas como


uma relação paradigmática e conceber a língua como algo estático especialmente em textos
literários. A delimitação do conceito de antonímia, para alguns, como no caso de Lyons, é
bastante restrita e aplicada a apenas um tipo de contraste; para outros, os da teoria de Katz, é
extremamente amplo e igualado a qualquer tipo de incompatibilidade semântica.
Pretendemos, assim, mostrar a enorme cadeia de possibilidades de abordagem da
antonímia, contudo, enfatizaremos às postulações teóricas da semântica formal, cuja base
buscaremos na proposta de Lyons (1977).
Para alguns escritores, a categorização de experiências em termos dicotômicos é uma
tendência global. Porém, para Lyons (1977, p. 220), as línguas nativas possuem um elevado
número de pares de lexemas opostos, o que leva os falantes a dicotomizar ou polarizar os
juízos e as experiências. Trier (apud LYONS, 1977) declara que o contrário se faz presente
na mente do emissor e do receptor durante o ato de enunciação. Segundo os autores Rychalak
et al. (1989), Aristóteles foi bem mais ousado, porque incluiu os fundamentos de contrário e
de oposto como modos interior de associação de ideias, isto é, não apenas palavras.
Segundo alguns autores, a saber, Rychalak et al. (1989) que também confirma a ideia
de que a oposicionalidade presta um papel muito relevante na cognição. Conforme essa
percepção, esse pressuposto se dá através de quatro pontos cruciais, chegando a conclusão que
os sujeitos: reconhecem padrões de oposição em significados de palavras e de sentenças; são
inclinados a usar a estratégia de oposicionalidade na solução de problemas; conseguem
1443

aumentar, através da sua prática, sua habilidade em transformar significados de sentenças


oposicionalmente; podem reconhecer os significados oposicionais de uma sentença tão rápida
e aprimorada quanto podem encontrar as possíveis paráfrases dessa sentença.
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Dessa forma, para eles, isso não garante a existência de uma oposicionalidade,
implícita no processo cognitivo humano, mas assegura que ela está inerentemente ligada à
cognição. A propósito, é relevante a observação de Vilela (1979, p. 194), acerca da questão da
antonímia:

A antonímia, em sentido amplo, representa um princípio fundamental na


estruturação léxica: será mesmo impossível a existência duma língua sem a
presença da oposição antonímica. Sem nos aventurarmos a afirmar que se
trata de um fenômeno geral: as línguas conhecidas apresentam a antonímia
como relação semântica fundamental. A língua portuguesa é toda ela
atravessada pela oposição antonímica em diferentes coordenadas e tipos [...].

Os semanticistas têm se voltado mais para a noção de sinonímia do que para a de


antonímia. A própria criação da nomenclatura, conforme Vilela (1979) por analogia à
sinonímia e originado pelo francês no século XIX, embora o conceito tenha aparecido bem
antes. Refutando a ideia de que a antonímia é o inverso da sinonímia, Palmer (apud
Monteiro, 1989) relata que esses dois tipos de relação semântica se comportam de formas
diversas e destaca que as línguas podem até desconsiderar os sinônimos, mas não os
antônimos.
O conceito de antonímia não está rigorosamente estabelecido, e isso, advém,
argumenta Monteiro (1989), de tal estado de desinteresse pelo assunto. A proposta de Lyons
para a classificação dos contrates é trabalhada dentro dos limites da semântica lexical. Para
ele, as relações de contrastes, além de outras relações de sentido se apresentam em campos ou
domínios lexicais e analisa essas relações fundamentadas em relações lógicas.
A propósito, em relação à antonímia, Lyons (1979) destaca três tipos de oposições de
sentido: a complementaridade, reciprocidade e a antonímia. O autor frisa que em se tratando
da complementaridade, pode-se definir como uma relação que se estabelece entre pares de
palavras, como no caso: solteiro/casado. Ainda acrescenta, ao afirmar que em relação à
complementaridade, a negação de um implica a afirmação do outro e a afirmação de um
implica a negação do outro.
Exemplo:
“Helena não é casada” logo, “Helena é solteira”
1444

“Helena é casada” logo, Helena não é solteira”


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Como exemplifica o autor, apesar de a negação de um termo implicar na confirmação
do outro, é consideravelmente possível “abolir” uma ou as duas implicações. Como veremos a
seguir: “Helena é casada e solteira”.
A segunda oposição possível para Lyons é a própria antonímia. Conforme sua defesa,
o que caracteriza os antônimos dessa segunda classe é a questão de poderem ser graduáveis.
Sendo que as comparações entre eles, podem ser implícitas ou explícitas. Seguindo essa regra
de análise, na comparação feita entre antônimos implicitamente graduáveis, a negação de um
termo, não implica a afirmação do outro.
Exemplo:
“Meu livro não é grande” não implica “Meu livro é pequeno”
Sobre essa questão, Gomes (2009) afirma que os antônimos “grande” e “pequeno”
não se referem a qualidades independentes e opostas; são apenas recursos lexicais de
gradação. Logo, o termo “grande” é relativo; ou seja, perde a sua significação quando privado
de sua conotação mais do que e menos do que; significa qualquer tamanho tomado como
ponto de partida; e esse ponto vai variar de acordo com o contexto de uso (GOMES, 2009, p.
37).
Em síntese, os termos citados em qualquer texto, descontextualizados mentem, não
corresponderiam necessariamente antônimos. Portanto, a oposição dos termos depende, em
muitos casos, do contexto/situação: extralinguístico, comunicação, época, lugar, grupo social,
cultural ou etário dos falantes.
Exemplo:
“Este café é muito doce” não implica “Uma doce melodia preenchia o ambiente”
Outro tipo de oposição que o autor apresenta é a reciprocidade, isto é, a relação em
que os termos opostos estão em permuta assimétrica, por exemplo: mãe/filho (se A é mãe de
B, logo, B é mãe de A). Lyons argumenta em favor da centralidade da antonímia para o
melhor funcionamento da linguagem, ou seja, as línguas não funcionam sem antônimos. O
autor desse raciocínio não entende a razão por que os, então, semanticistas sempre priorizaram
o estudo da sinonímia em detrimento da antonímia, sendo ela tão fundamental para linguagem.
Em relação as diversas utilidades de uso da antonímia argumenta Monteiro que a
1445

antonímia oferece possibilidades criativas e argumentativas de ironizar, satirizar, questionar


posturas e valores impostos a uma sociedade e a seus membros (MONTEIRO, 1989).
Os significados que as palavras assumem entre si proporcionam uma variedade de
Página

entendimento. Num texto literário qualquer palavra pode ganhar outro significado. Para

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refletir sobre si mesmos e sobre as coisas do mundo e para traduzir seus sentimentos, suas
ambivalências, seus conflitos internos, enfim, para expressar seus estados d’alma.
Na verdade, as relações de oposição só se realizam plenamente, se contextualizadas.
Prova dessa questão, afirma Lima (2001, p.158), que a oposição de um termo a outro,
contextualizadamente, pode originar relações de contraste impossíveis de serem previstas no
nível paradigmático e lógico.
Como observa Marcuschi (1999), a referência é uma atividade de designação realizada
no discurso, entendida este como uma reelaboração mental da realidade influenciada tanto por
questões linguísticas quanto por questões sociais, culturais e históricas.
Segundo os referidos autores, as conclusões que chegaram não asseguram a existência
de uma relação oposta que seja implícita à cognição humana, contudo revela que ela está
inteiramente ligada à cognição. Essa natureza da oposição também traduz o pensamento e a
visão de Lyons (1997), conforme já discorremos nesse estudo.

5 As contribuições da antonímia para a poesia

No século XVI ao XVIII, a Europa vive em um clima de profundo questionamento e


mudanças políticas. O homem europeu dessa época está dividido e confuso: ele não sabe se
acredita no Deus da Igreja católica; não sabe se acredita nas verdades científicas; não sabe se
devem aceitar outras crenças; a sua época está abalada por crises e guerras.
Houve, na literatura, uma época fundamental, a barroca, em que o contrário se tornou
a expressão máxima, por se prestar à tradução do estado de espírito conflitante do homem
europeu do século XVII. Assim, pode-se dizer que o homem europeu dessa época é um ser
conturbado, confuso, uma vez que a sua época é também assim. O contrário se tornou a
figura mais relevante da estética barroca, através da antítese e do paradoxo.

5.1 A antonímia na canção O Quereres (Caetano Veloso)

Na canção O Quereres, de Caetano Veloso, pode-se observar diversas construções


1446

semânticas. Tratando da antonímia especificamente, é perceptível que o cantor e compositor


utilizou-a de modo peculiar, não limitando-se somente à visão tradicional, mas estabelecendo
princípios inovadores quanto a essa importante ferramenta estilística.
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No que concerne à análise tradicional, Caetano utilizou a antonímia como uma
“oposição de palavras”, conforme sugere os gramáticos conservadores. Vale enfatizar,
todavia, que o mesmo não permanece somente nessa perspectiva tradicional, mas elencou-a
em seus múltiplos aspectos e concepções.
Ao observar os versos: “E onde queres bandido, sou herói”, “Onde queres a lua, eu sou
o sol” e “Bem a ti, mal ao quereres assim”, que aparecem na canção aleatoriamente, é possível
identificar facilmente a visão tradicional. Essa rápida e fácil concepção se dá pela ideia
ultrapassada de antonímia que habitualmente tem-se empregado nas escolas e, muitas vezes,
também nas universidades.
Os pares bandido e herói, lua e sol e bem e mal, que aparecem nos versos
supracitados, exprimem claramente oposições calcadas na concepção de Aurélio e Bechara.
Isso não significa dizer que somente nesses versos é possível encontrar a antonímia. Objetiva-
se, por meio dessa análise, não limitar-se somente à antonímia tradicional, mas explanar,
embora sucintamente, as diversas concepções acerca dos pares antônimos presentes na canção
O Quereres.
Percebe-se que o cantor usou muito dos aspectos de antonímia apresentados por
Pietroforte e Lopes. Assim sendo, os trechos da música em questão não estão calcados apenas
no prisma do tradicionalismo, mas trazem oposições que só se podem ser compreendidas se
levado em consideração o contexto comunicativo.
Portanto, é perceptível o uso da antonímia na concepção desses autores no terceiro
verso “Onde queres descanso, sou desejo”, em que ocorre a contradição entre descanso e
desejo, uma vez que o traz inquietações tirando qualquer sentimento de paz ou descanso
entre um eu e um tu. Percebe-se ainda no sexto verso “E onde voas bem alto, eu sou o chão”
a contradição existente entre voar e ser o chão.
Referente a antonímia ainda na ótica de Veloso, é possível observar no primeiro verso
da terceira estrofe: “Onde queres o ato, eu sou o espírito”, a oposição existente entre o ato
algo concreto e o espírito abstrato. É importante ressaltar também os versos: “E onde queres
romance, rock'n roll”, em que o eu-lírico constrói a contradição entre dois gêneros musicais
diferentes.
1447

O verso “Onde queres quaresma, fevereiro” traz a contradição entre duas épocas
comemorativas: a primeira refere-se a um momento de consagração e renúncia para os
cristãos. Nesse momento, os católicos preparam-se para a páscoa, para celebrar a ressurreição
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de Jesus Cristo, em contrapartida, em fevereiro, o carnaval é conhecido como festa da carne e
as pessoas entregam-se aos prazeres carnais demasiadamente.

5.2 Resultados parciais

Em virtude da análise apresentada, vale salientar a oposição de acordo com o contexto,


aspecto de destaque na teoria de Pietroforte e Lopes, isto posto, para compreender a relação
de contraste faz-se necessário um conhecimento do contexto em que as palavras que
compõem a música estão inseridas.
A antonímia exerce um importante papel para a o sentido nesta canção. Caetano
Veloso usou esta figura de linguagem de forma diferente não limitou-se apenas a concepção
apresentada pela gramática tradicional, mas levou em consideração o contexto e mostrou que
seu poder de contradição transcende o convencionalismo e que a língua não é estática, mas
múltipla. Com isso, sua poesia revela as contradições existenciais, ampliando os efeitos de
sentido com uma estética rica e crítica, e não dicotômica, artificial e limitadora do
pensamento.

6 Conclusão

Prezou-se, por meio do presente artigo, expor de modo significativo e sucinto a


antonímia como recurso literário, perpassando concepções de autores tradicionais e
contemporâneos acerca do assunto. O objetivo da presente análise está em contribuir
positivamente para o avanço da abordagem da antonímia em sala de aula, visto que, como
futuros docentes, precisamos atualizar nossa didática à crítica de modo que se contribua para
um ensino que contemple os alunos em sua totalidade.
Dessa forma, nossas considerações não se pretenderam rigorosas ou definitivas,
devido à abrangência e relevância do tema proposto. Tecemos aqui uma abordagem curta,
porém significativa acerca das contribuições da antonímia para literatura, acreditando que
poderá significar um ponto de partida para novas pesquisas.
1448

Referências
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BECHARA, Evanildo. Moderna gramática portuguesa. 37. ed. rev., ampl. e atual. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 2009.

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CUNHA, Celso Ferreira da. Gramática da Língua Portuguesa. 9. ed. Rio de Janeiro: FAE,
1983.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Mini Aurélio: o mini dicionário da língua


portuguesa escolar. 4. ed. rev. ampliada. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.

GOMES, Fernanda e SANT’ ANNA, Simone. A Semântica Lexical e as relações de


sentido: Sinonímia, antonímia, hiponímia e hiperonímia. Livro de Minicursos. Rio de Janeiro:
Cifefil, 2009.

LIMA, Maria Luiza Cunha. Construção da referência e representação lexical. Cadernos de


estudos linguísticos n. 41, Campinas: UNICAMP, 2001.

LYONS, John. Semântica estrutural. Lisboa: Presença, 1963.

MARCUSCHI, Luiz Antônio. Referenciação e Progressão tópica: aspectos cognitivos e


textuais. Fortaleza: XVII Jornada de estudos linguísticos do Nordeste Anais..., 1999.

MONTEIRO, José Lemos. Em torno do conceito de antonímia. Revista de Letras.


Campinas: PUCCAMP, v. 8, n 1 e 2, dezembro, 1989.

PIETROFORTE; LOPES. A semântica lexical. In: FIORIN. Introdução à Linguística II.


São Paulo: Contexto, 2004, p. 111-135.

RYCHALAK, Joseph F. et al. The recognition and cognitive utilization of oppositionality.


In.Journal of psycholinguistic research, v. 18, n 2, 1989.

VELOSO, Caetano. O quereres. 1984.

VILELA, Mário. Estudos lexicais. Lisboa: Almedina, 1979.

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PÔSTER

VARIANTES LINGUÍSTICAS: UM ESTUDO SOBRE DIFERENTES


LINGUAGENS EM MEIO Á FEIRA LIVRE DE PATU

Fernanda Gomes Filgueira


Fabiana Gomes Filgueira
Antônia Roberta de Menezes
Luciana Fernandes Nery

Considerações iniciais

Com base nas teorias estudas sobre a Sociologia da Linguagem, surgiu o interesse
em relacionar a prática com a teoria, nesse sentido, tivemos que conhecer de perto o cotidiano
de algumas pessoas para poder dialogar com os conceitos abordados pelos estudiosos com a
realidade sociocultural dos feitantes/ vendedores e consumidores da feira. Com base nisso
fomos visitar a feira livre na cidade de Patu – RN com objetivo de encontrar as variações
linguísticas lá presentes.
Para obtermos material para desenvolver a pesquisa, primeiro fomos observar a
comunicação dos vendedores e compradores, em outro momento foi necessário dialogar com
algumas pessoas que nos contaram um pouco se suas histórias e muitos afirmaram que
trabalham nessa área porque não se mostram aptos ao estudo, e por isso foram trabalhar com
os pais que antes trabalhou com meus avós e hoje somos nós que encontram-se na mesma
condição da nossa família.
Este artigo assegura-se na pesquisa de Araújo (2012) enfatizando a comunidade da
fala, na visão de Lucchesi e Calvet (2002) nos apresentando a língua em relação com a
comunidade e nas observações feitas com os feirantes, os quais apresentam diferente falares,
que faz parte do referido trabalho.
O trabalho apresenta um método qualitativo, pois proporciona uma construção de
novas abordagens, conceitos e categorias referentes ao fenômeno estudado. É composto
primeiramente pelas considerações iniciais, o aporte teórico, a análise que é a parte principal
da investigação, onde aplicamos as teorias que dialogam com o que vivemos na feira livre e
1450

por fim, as considerações finais, em que apresentaremos os resultados que essa pesquisa nos
proporcionou. Além disso, tem-se a referências aos quais foram retiradas as teorias que nos
baseamos e por fim os anexos que comprovam nossa presença nessa região.
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Aporte teorico

A sociologia da linguagem é uma disciplina da linguística que estuda os aspectos da


língua em relação com a sociedade, tendo em vista que existem vários fatores que contribuem
para a heterogeneidade da língua. Interessando-se não somente as grandes comunidades, mas
valorizando também as pequenas. Para Lucchesi e Araújo (p.1, 2012). “A sociolinguística tem
por objeto de estudo os padrões de comportamentos linguísticos observáveis dentro de uma
comunidade de fala”.
A língua é essencial para vida do ser humano, pois ela é que permite a interação entre
sujeitos, bem como, reflete na capacidade de construção de uma sociedade representativa. O
individuo passa a interagir com o seu ambiente e sua cultura, criando relações positivas ou
negativas. Através disso, a língua é que tem o poder de inserir ou excluído o sujeito da
sociedade o qual pertence. Para Bagno:

A língua também fica diferente quando é falada por um homem ou por uma
mulher, por uma criança ou por um adulto, por uma alfabetizada ou por uma
não-alfabetizada, por uma pessoa de classe alta, ou, por uma pessoa de classe
média ou baixa, por um morador da cidade e por um morador do campo e
assim por diante (BAGNO, 2001, p. 18).

De acordo com a citação, quanto mais envolvido o sujeito estiver com o meio social
mais discernimento terá para dominar as variedades da língua, com isso poderá usar ou até
mesmo criar novas palavras, isso vai depender muito a situação de comunicação em que ele se
encontra.
De modo geral, os fatores sociais influenciam de forma significativa na variação
linguística, sendo eles: o sexo, a idade, o nível sociocultural, nível instrução e a etnia que
pertence um determinado grupo. É evidente que esses fatores não vão funcionar de forma
idêntica em todo meio, pois para cada comunidade de fala é preciso levar em consideração o
contexto que aquelas pessoas estão inseridas, ou seja, as suas coordenadas sociais. Assim
sendo, a língua é usada todos os seus falantes, assim o seu uso varia de acordo com o meio
que o sujeito está inserido, seja regional, social, cultural.
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Análise

A sociologia da linguagem busca encontrar e analisar variações existentes na


linguagem de uma comunidade linguística sempre estabelecendo elos com as condições
sociais do local e de seu povo. Nessa perspectiva a visita a Feira Livre na cidade de Patu- RN
nos proporcionou um extenso estudo sobre os feirantes e seus clientes, e também o modo
como estes utilizam a língua.
Assim, o trabalho de análise dos dados teve por base visitas à feira livre na cidade de
Patu- RN, com um olhar crítico a fim de observar as variações da linguagem existentes entre
os feirantes e os consumidores. Levando em consideração os fatores históricos e sociais da
origem da feira livre. Apesar de que estudar uma comunidade linguística não é nos prender
apenas na língua ou nos fechar na sociedade, pois isso nos leva à impotência. Assim sendo,
Calvet (2002, p. 143) nos mostra que “o objeto de estudo da linguística não é apenas a língua
ou as línguas, mas a comunidade social sob seu aspecto linguístico.”
Para tanto, também faz parte do nosso estudo: as feiras, que se caracterizam como um
evento sociocultural e econômico constituído de pessoas e barracas, que apresentam diversos
tipos de produtos nas ruas, dentre eles: roupas, artesanatos, sapatos, brinquedos etc. É
realizado uma vez por semana e em locais específicos, com objetivo de oferecer mercadorias
com um preço mais acessível. Assim, analisando o local onde a pesquisa foi desenvolvida,
podemos perceber que geralmente são pessoas de mais velhas e que pertencem à classe social
média e baixa que vão semanalmente realizar suas compras. Os vendedores apesar de não ter
domínio da língua culta, usam de seus conhecimentos adquiridos certas estratégia para atrair
os consumidores de modo a comprarem os produtos, essas táticas usadas pelos variam
conforme as experiências já vividas por eles.
Os dados mostram que os feirantes não se prendem a uma única cidade para colocar
suas bancas, por exemplo, eles frequentam feira de Patu, assim como as que acontecem nas
cidades vizinhas e essa variação de lugares faz com que eles adquiram mais conhecimentos
como também, através da convivência semanal com diferentes comunidades faze com que o
modo de falar dessas pessoas apresente variações linguísticas em sua fala. Como nos mostra
1452

Lucchesi e Araújo (2012) “Os processos de mudança que se verificam em uma comunidade
de fala se atualizam na variação observada em cada momento nos padrões de comportamento
linguístico observado nessa comunidade [...]” (LUCCHESI e ARAÙJO, 2002).
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Para termos mais conhecimentos sobre a vida vendedores perguntam ao senhor
Evaristo se ele poderia conversar um pouco com nós e falar sobre seu trabalho, ele inicia
dizendo. “Moro na cidade Almino Afonso-RN, trabalho comu ferante a mais de 10 ano,
comecei a vender brinquedos, já que não tinha estudo e por isso não tinha espaço pa mim no
mercado de trabalho, então pensei vo vender minha mercadoria em feiras e é o que tenho feito
até hoje, até purque preciso sustentar mia famia. Mais hoje o negoço andar de vagar e o povo
não vem mais a fera comu antigamenti.” (grifo nosso).
Na fala do vendedor percebemos que seu trabalho não foi algo passado por gerações,
mas devido sua falta de interesse em estudar foi o que ocasionou escolher esse emprego, e
hoje com uma gama de lojas, mercados as bancas estão desaparecendo já que não tem muitos
compradores e, portanto está deixando de ser valorizada pelas pessoas que preferem
frequentar outros lugares. Em relação à falta do entrevistado vemos que usa um dileto
bastante simples devido a falta de estudo ele se comunica de acordo com o que foi
aprendendo ao logo da vida.
Analisando o comportamento do vendedor e sua interação com seus clientes, é
perceptível que ele utiliza alguns termos específicos para conseguir atrair os consumidores,
com o intuito de persuadir o cliente, fazendo com que ele se interesse pelo produto e decida
compra-lo. Sendo assim, outra fala que presenciamos de perto foi uma conversação entre
vendedor e cliente o qual nos faz ver com nitidez algumas diferenças na forma de falar
determinadas palavras. Vejamos abaixo essa situação de comunicação
____Vendedor: Bom dia.
____Cliente: Bom dia, seu Evaristo.
____ Cliente: Deixe-me ver esse boneco!
____ Vendedor: toma aqui
____ Cliente: Irei levar hoje não.
____ Vendedor: Leve omi, seu neto vai ficar muito feliz
____ Cliente: Não, hoje não.
____ Vendedor: Omi leve, ò faço um preciso bem camarada
____ Cliente: Quanto?
1453

____ Vendedor: Ó deixo por quize reais


____ Cliente: Não, deixe para outra vez
____ Vendedor: Então comu é pra senhora deixo por dez
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____ Cliente: Está bem irei levar

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Percebemos através das falas uma diferença significante entre o modo de falar entre
vendedor e cliente, este ultimo tem uma linguagem mais adequada no que se refere ao léxico
da língua portuguesa que é ensinado nas escolas, já o primeiro desenvolveu outra forma de
falar, ou seja, ele adquiriu essas expressões em meio aos caminhos percorridos durante sua
vida.
No observado, podemos ver além das discursões acima já mencionadas, outras frases
proferidas pelos feirantes quando se está na feira,
“ _Olha o abacaxi fresquinho! Fiado morreu”
“_Bora comprar! moça bonita não paga, mas também não leva”
“_Senhora, pode chegar pra olhar!”
“_Olha a verdura, hoje tá de R$ 2,00 o quilo”
“_Hoje quem manda é o freguês!
“_Chega pra cá, olha a batata como tá bonita”
“_Tem sombrinha, tem sombrinha! Olha lá vem a chuva!”
Essas expressões são muito presentes no cotidiano dessas pessoas e que apresentam
diferenças linguistas com relação aos falares deles. É através destas expressões que boa parte
dos feirantes consegue atrai os clientes até a sua banca para terem sucesso em suas vendas.
É possível perceber a variação linguística presente no ambiente, pois os feirantes que
frequentam o local são de comunidades distintas com aspectos culturais e sociais diferentes
essa variação e perceptível tanto nos feirantes quanto nos frequentadores da feira, pois em
uma linguagem sistemática e coerente podem ocorrer formas diferentes de se efetuar a língua.
Segundo Calvet:

A variação linguística é a identidade de uma comunidade/região. Este autor


ainda afirma que “a etiqueta linguística é exatamente o registro da
diversidade da linguagem de um povo”. Mesmo com os estudos atuais
acerca da mudança e da variação linguística, muitos usuários da língua
percebem as variações linguísticas como um elemento de desqualificação do
sujeito da linguagem verbal, quer oral ou escrita. As diferenças, sabemos,
são de várias ordens: desde sexo, idade, grupo social.

A variação linguística é um fenômeno que acontece com a língua e pode ser


1454

compreendida por intermédio das variações históricas e regionais, vale destacar que as
diferentes formas de falar devem ser consideradas como variações e não como erros, pois
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analisamos pessoas durante a entrevista que tinham receio de falar devido a sua má formação

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escolar. Muitos deles disseram que seguiram esse caminho por falta de oportunidade de
frequentar uma escola e devido esse obstáculo não conseguiram seguir outra profissão.

Considerações finais

Considerando os resultados obtidos, foi possível constatar que as pessoas que


frequentam a feira se comunicam de modo distintos, sendo que uns falam “correto” enquanto
outros se expressam em seu cotidiano usando uma linguagem mais coloquial. Assim o que
difere a linguagem de alguns compradores para os dos feirantes é a forma de como linguagem
é empregada.
Como vimos à feira é mais frequentada por pessoas mais velhas e a linguagem
utilizada naquele local varia de acordo com os frequentadores. Verificamos que há uma
variação linguística na fala dos vendedores e dos clientes, pois os mesmos utilizam termos
adquiridos no convívio social o que nos faz perceber a heterogeneidade da língua. Também
constatamos que a idade, o nível sociocultural, nível de instrução, dentre outros fatores que
são transferidos entre pessoas que fazem uso dos mais variados termos para se comunicarem.
Desse modo, quanto mais experiências e conhecimento os feirantes adquirirem melhor será
sua poder de atrair mais clientes.
No observado, a cidade de Patu há uma diversidade de variantes que se misturam e se
encontram na feira livre, local esse que são encontradas diversas pessoas de diferentes classes,
mediante a essa interação de compra e venda á uma variação que vai desde o sotaque,
regionalização e historicidade desses sujeitos.
Por meio da pesquisa podemos concluir que cada pessoa é possuidora de uma cultura
própria, pela qual se constitui como sujeito atuante na sociedade, mesmo que muitos não
pensem assim e acreditem que o certo é seguir um padrão socialmente imposto, não podemos
julgar pessoas por elas dominarem certa língua, mas devemos aprender a comporta-se em
cada situação comunicativa.
Nesse sentido, o presente trabalho nos permitiu refletir sobre o quanto a língua é
mutável, e por isso as pessoas falam de diferes maneiras e essas mudanças acontece de varias
1455

modos que vais desde região para região, faixa etária, classe social e pessoa para pessoa como
podemos ver os falantes da feira que residem na cidade de Patu-RN. Por tanto, presente
pesquisa nos permitiu identificar aspectos que a Sociologia da Linguagem busca estudar.
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Referências

BAGNO, Marcos. Preconceito linguístico: o que é, como se faz. São Paulo: Loyola 1999.

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CALVET, Louis Jean. Variação linguística e o ensino de língua portuguesa. 2010


Disponível em:
<http://www.pgletras.uerj.br/linguistica/jel/2010/resumos/VIJELUERJ_SC_VII_R05.pdf>.
Acesso em: 03 dez. 2016.

LUCCHESI, Dante e ARAÚJO, Silvana. A Teoria da Variação Linguística. 2012.


Disponível em: http://www.vertentes.ufba.br/a-teoria-da-variacao-linguistica. Acesso em: 03
maio, 2017.

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PÔSTER

O ENSINO DE GRAMÁTICA NAS AULAS DE LÍNGUA PORTUGUESA: UM


RELATO DE EXPERIÊNCIA DO ESTÁGIO SUPERVISIONADO

Amanda Mikaelly Nobre de Souza (UERN – CAMEAM)


Francisca Cleidiana da Costa Barros (UERN – CAMEAM)
Maria Leidiana Alves (UERN - CAP)

Considerações Iniciais

As discussões acerca do ensino de gramática nas aulas de língua portuguesa têm


provocado uma inquietação aos estudiosos, no que concerne aos aspectos teóricos-
metodológico que ancoram o ensino. Esta é uma problemática que aflige o professor, em sala
de aula, no que diz respeito à sua prática didático-pedagógica, em tornar o ensino de
gramática prazerosas e interativas do ponto de vista do aluno.
Considerando a contextualização da problemática, o presente trabalho tem como
finalidade refletir acerca da funcionalidade do ensino de gramática, de maneira
contextualizada, por meio do trabalho de leitura de textos situados em diferentes contextos de
interação, de tal forma a trabalhar a capacidade comunicativa do aluno.
Para tanto, nosso procedimento metodológico de coleta e análise dos dados consiste de
uma experiência teórico-prática vivenciada no Estágio Supervisionado II, em língua
portuguesa, no que diz respeito às aulas ministradas, em duas turmas de 2º série do ensino
médio, de uma escola estadual da cidade de Pau dos Ferros – RN, correspondente a uma carga
horária de 30 horas/aula. Nesse sentido, o presente trabalho é de cunho qualitativo, pois
observamos, através da prática, a compreensão do contexto de ensino de gramática.
O foco de análise deste trabalho, acerca das práticas de linguagens, pertence ao estudo
de gramática/análise linguística. Ademais, o estudo tem como embasamento teórico as
discussõess de Antunes (2003) e (2006), Buzen; Mendonça (2006), Oliveira (2010), Martins
(2007) e de documentos oficiais como Brasil – OCNS (2006).
Desse modo, o referido trabalho encontra-se organizado em duas partes. A primeira
consiste nas reflexões teóricas no que diz respeito ao ato de ler, como tarefa articuladora da
1457

compreensão dos textos, bem como o ensino de gramática nas aulas de língua portuguesa. A
segunda concerne à análise do corpus, que se centra nas aulas lecionadas, conforme exposto
anteriormente, especificadamente ao estudo de gramática/análise linguística.
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1 Aparato teórico

1.1 O ato de ler: tarefa articuladora dos sentidos do texto

Partindo do pressuposto de que nenhum indivíduo realiza uma leitura isolada, isto é,
sem relacioná-la a algo já lido antes, o ato de ler se configura como uma atividade de
processamento textual, em que procuramos fazer associações com outras leituras realizadas
anteriormente, bem como criar pontes de diálogos entre os textos.
A leitura é uma atividade interativa, que está relacionada ao cotidiano das pessoas,
seja através da linguagem verbal ou não-verbal, e a todo momento estamos utilizando-a para
se relacionar no meio em que vivemos, uma vez que leitura é comunicação, promove aos
indivíduos a capacidade interpretativa de se comunicar e entender as coisas do mundo.
O ato de ler é uma forma de interpretar um conjunto de informações contidas no nosso
dia-a-dia, é por meio deste que desenvolvemos nossa capacidade crítica e nos relacionamos
em sociedade, tendo em vista que os textos são fontes de comunicações, portam informações
e interagem com o interlocutor. A leitura é a melhor forma de adquirir conhecimento e
interpretar as coisas do mundo, e por isso dizemos que está presente em todas as ações do ser
humano, da mais simples a mais complexa, como por exemplo ler um convite de aniversário
ou ler um romance machadiano, respectivamente. Nesse sentido Antunes (2003, p.70) nos diz:

A atividade da leitura favorece, num primeiro plano, a ampliação dos


repertórios de informação do leitor. Na verdade, por ela, o leitor pode
incorporar novas idéias, novos conceitos, novos dados, novas e diferentes
informações acerca das coisas, das pessoas, dos acontecimentos, do mundo
em geral.

No que concerne ao ensino de leitura sabemos que o déficit é elevado, isso porque a
cada dia a leitura tem sido reduzida a momentos de estudo gramatical e a memorização de
regras ortográficas, criando assim uma barreira para o desenvolvimento de tal competência,
deixando de trabalhar a construção critico-reflexiva do aluno.
O trabalho com a leitura em sala de aula, é um fator determinante para o processo
1458

cognitivo dos alunos, sendo de grande importância que a escola busque sempre maneiras de
despertar no aluno o gosto e o interesse por essa atividade. Sabemos da grande dificuldade
que o ensino de leitura vem enfrentando na realidade escolar, por esse motivo é importante
Página

destacar que não apenas a escola tem a função de despertar no aluno essa habilidade, visto que

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o educador funciona apenas como um auxílio na aprendizagem de cada cidadão, como o
mediador desta atividade, possibilitando múltiplas condições. Nessa perspectiva Martins
(2007, p. 34) afirma que:

[...] A função do educador não seria precisamente a de ensinar a ler, mas a de


criar condições para o educando realizar a sua própria aprendizagem,
conforme seus próprios interesses, necessidades, fantasias, segundo as
dúvidas e exigências que a realidade lhe apresenta.

É importante frisar que além da escrita, a leitura deve estar ligada a oralidade, uma vez
que a relação entre essas atividades possibilita a interação verbal no ambiente escolar, a
capacidade comunicativa do aluno. Como afirma Colomer (2002, p.70) “[...] se o aluno lê
bem, isto é, se sabe traduzir adequadamente o texto escrito a uma forma oral, entenderá o
texto porque sabe falar e entender a linguagem oral”.
Assim, a leitura funciona como um processo que envolve um conjunto de atividades
que possibilita a reflexão crítica aos indivíduos, vale ressaltar ainda, que a escola funciona
como um instrumento que possibilita o desenvolvimento de tal atividade, e o professor apenas
no papel de mediador. Contudo, a leitura deve ocupar um lugar importante nas aulas de língua
materna, visando construir seres capazes de se comunicar de forma crítica na sociedade ao
qual estão inseridos.
É nesse âmbito de ensino de leitura que as aulas de gramática devem se portar, de
maneira contextualizada, relacionando-a com as práticas de linguagem: leitura, escrita (e
reescrita) e oralidade, tendo em vista que gramática é uso, está presente em todos os
enunciados sejam eles formais ou informais. A esse contexto, é conveniente destacar a ideia
de Antunes (2007) de que o falante nativo de uma língua é o melhor gramático que existe, que
desde cedo, em contato com o outro e sob a influência do meio social, constrói enunciados
coerentes, mesmo “sem ter” conhecimento de gramática, a normativa, trabalhada em sala de
aula.

1.2 O ensino de gramática nas aulas de Língua Portuguesa


1459

O ensino de gramática em sala de aula é uma problemática que aflige o professor, em


sala de aula, no que diz respeito à sua prática didático-pedagógica de como proceder para
Página

tornar o ensino desta prática de linguagem atrativo e prazeroso. Ele deve ser conduzido

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através de uma concepção de língua associada a ideia de interação, de contexto
sociocomunicativo, e o seu trabalho em sala de aula baseado em textos, diversificados, sob
uma perspectiva linguística de contextualização, de uso.
É nessa perspectiva de contextualização, de trabalho com diferentes gêneros textuais,
explorando a leitura, a interpretação, buscando refletir acerca das nomenclaturas, de forma a
enxergar a função de cada classe gramatical nos textos, bem como sua variabilidade, que se
centra no ensino de gramática baseado no uso. Isto possibilita ao aluno perceber a importância
de estudar gramática, e consequentemente traz melhorias para sua escrita, para sua oralidade,
no que diz respeito à capacidade de se expressar, de forma adequada, em diferentes contextos
de interação.
O trabalho com a gramática nas aulas de língua portuguesa, deve ser relacionado a
uma concepção de língua que seja objeto de socialização, de interação, entre duas ou mais
pessoas, de forma que conscientize os alunos acerca da sua funcionalidade em sociedade, na
realização de práticas comunicativas, levando-os a se expressar melhor. Neste âmbito Antunes
(2007, p.40) nos diz “Ora a língua, por ser uma atividade interativa, direcionada para a
comunicação social, supõe outros componentes além da gramática, todos, relevantes, cada um
constitutivo à sua maneira e em interação com os outros”.
Assim, a forma como o professor trabalha gramática em sala de aula é reflexo da sua
concepção de uma língua adotada, isto é, se o professor concebe a língua como sendo
homogênea, estática, regida a normas de “bela linguagem”, consequentemente o ensino de
gramática será reduzido a regras, classificações e terminologias, que julga as expressões ou
palavras como certo e/ou errado, a partir do trabalho com frases soltas e isoladas. Nesta
perspectiva, Oliveira (2010, p. 234) diz que:

A chave para a mudança na forma de os professores ensinarem gramática


não reside na adoção de um termo, análise linguística, e no abandono de
outro, ensino de gramática. Reside na conscientização do professor a
respeito de concepções de língua e de gramática que eles adotam, as quais
exercem influência determinante na sua prática pedagógica.

Nesse eixo, o ensino de gramática em sala de aula deve consistir sob uma perspectiva
1460

de contextualização, de reflexão acerca da sua funcionalidade em sociedade, por meio do


trabalho com textos situados em diferentes contextos de interação, de tal forma a trabalhar a
capacidade comunicativa do aluno, ampliando a noção de gramática, passando a enxergá-la
Página

no uso, na construção dos enunciados.

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3 Análise dos dados

No decorrer da fase de regência, desenvolvemos um trabalho relevante com o ensino


de gramática, introdutoriamente apresentado no livro didático “Português: Contexto,
interlocução e sentido”, (ABAURRE, M. L. M.; ABAURRE, M. B. M.; PONTARA, M.
2013), seguido de aulas expositivo-dialógicas, e com a realização de uma atividade lúdica, um
jogo de gramática. O nosso objetivo para com o desenvolvimento das aulas era de refletir
acerca da funcionalidade da gramática, e suas relações morfossintáticas, por meio da análise
de palavras em diferentes contextos de interação, de maneira a trabalhar a capacidade
comunicativa do aluno, centrando interesse no uso. Para tanto, destacamos a nossa
preocupação em explorar os aspectos da gramática no processo de atividades de leitura, o que
foi feito através dos gêneros trabalhados para realização do jogo lúdico.
Inicialmente, foi feita a exposição de um vídeo: O que é gramática? em Turma da
Mônica, com a finalidade de introduzir o conteúdo, fazendo surgir o questionamento acerca
do que venha a ser gramática. A discussão, de maneira geral, se deu no esclarecimento de três
tipos de gramática: normativa, descritiva e internalizada; desmistificando a ideia de que a
gramática normativa é a única existente, a que deve prevalecer, e que é associada a concepção
de língua. A referida discussão foi realizada através de questionamentos orais, a partir dos
conhecimentos prévios dos alunos.
Depois de feita a introdução do conteúdo, dispomo-nos de apresentar a turma uma
explanagem mais ampla do assunto: relações morfossintáticas e classes de palavras; por meio
de slides. Nisso foi abordada a variabilidade das classes de palavras, e a importância de
analisar o contexto em que estão inseridas, utilizando textos inseridos em situações
sociocomunicativa, como forma de contextualizar o ensino de gramática. Em outros termos,
uma mesma palavra pode apresentar funções diferentes, isto é, representar classes gramaticais
diferentes, a depender do contexto de uso.
Nesse entendimento, foi abordado, durante as aulas ministradas, que a classe
gramatical (morfológica) de uma palavra é variável, a depender do contexto de uso, isto é, das
relações que esta estabelece com as outras palavras no eixo sintagmático. Acerca disso, temos
1461

como exemplo o vocábulo “forte”, que em três situações apresentam funções diferentes: a) O
forte verá nossos sinais de fumaça; (função de substantivo), b) À tarde, uma chuva forte
inundou a avenida; (função de adjetivo), c) Ao cobrar a falta, o jogador chutou forte, mas o
Página

goleiro defendeu; (função de advérbio).

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Posteriormente, foi realizado um jogo, relacionado ao ensino de gramática, em que a
turma se dividiu em dois grandes grupos, tendo cada um a oportunidade de sortear um
envelope enumerado, com um gênero textual distinto dos demais, cada grupo faria a leitura do
texto, e responderia a que classe gramatical se refere a palavra destacada no texto, de modo a
refletir sobre como a classe gramatical, destacada, contribui para a construção de sentido do
texto e que função ela assume em diferentes contextos de uso. Dentre os gêneros textuais
trabalhos, durante a realização do jogo, tínhamos: charge, cartum, tirinha, poema, anúncio
publicitário, e etc.
Para tanto, foi ressaltado a importância de analisar o contexto sociocomunicativo das
palavras em cada texto. Essa atividade lúdica possibilitou uma reflexão acerca da função de
determinadas palavras, em textos curtos, dentro de contextos diferentes, de forma instigante,
uma vez que utilizamos o lúdico para desenvolver o trabalho com a gramática em sala de aula.
Observe, logo abaixo, alguns dos gêneros textuais trabalhados no jogo e as palavras em
destaque:

Figura 1: Cartum Figura 2: Anúncio publicitário

No primeiro texto temos a presença de um mesmo vocábulo, “leve”, porém


com funções distintas: o primeiro apresenta a função de adjetivo, e o segundo de verbo. No
segundo texto vê-se duas palavras que isoladamente seriam substantivos, são palavras que se
1462

referem a animais: cão e gato, mas nesse contexto, variam na posição sintática do enunciado e
representam substantivo e adjetivo, respectivamente. Nisso, os alunos foram instigados a
refletir sobre a funcionalidade desses vocábulos e a função que assumem como determinada
Página

classe gramatical, como contribui para a construção de sentido dos textos.

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Ainda nessa conjuntura, observe abaixo outros dois exemplos de textos
trabalhados na realização do jogo lúdico de gramática:

Figura 3: Tirinha Figura 4: Tirinha

Em ambos os textos, tirinhas, vemos a mesma ocorrência do que há no primeiro texto:


a presença de um mesmo vocábulo, porém com funções distintas, isso devido a posição no
eixo sintagmático, em combinação com as outras palavras. Na figura 3 temos o vocábulo
“Reduza”, que representa, respectivamente, um verbo e um substantivo. Na figura 4 temos o
vocábulo “Barata”, que configura a função de substantivo e adjetivo.
À medida em que os alunos emitiam as respostas, solicitadas no jogo, conforme
realizado o processo de leitura dos gêneros trabalhados, era realizada, mediante toda a turma,
a explanação do referido gênero, isto é, a explicação da funcionalidade classe gramatical da
palavra em destaque no texto, mesmo que a resposta estivesse correta. Essa metodologia fez
com que ambos os grupos refletissem acerca de todos os textos, até mesmo os da equipe
adversária.
É válido destacar que com esta maneira lúdica e dinâmica de trabalhar gramática, em
sala de aula, percebemos o interesse dos alunos, a interação entre os grupos e com a turma.
Através da realização do jogo, isto se tornou perceptível em função do sentimento de
competividade, da prática da leitura reflexiva, procurando entender a função das palavras no
contexto em que estão situadas.
1463

Dessa forma, notamos a extrema relevância do professor de português buscar


dinamizar suas aulas, principalmente quando se trata do ensino de gramática, de forma a
facilitar o aprendizado do aluno, obter melhor rendimento das aulas, incentivar a
Página

participação/interação, fazendo-o enxergar a funcionalidade desse ensino no nosso meio.

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Salientamos que uma boa leitura, bem como a necessidade de analisar o contexto no qual as
palavras se inserem é o caminho para que o estudante possa ter uma compreensão ampla
acerca de gramática, passando a refletir sobre a funcionalidade da língua, e não a decorar
termos e nomenclaturas.

Considerações finais

Conforme a discussão realizada e experiência vivenciada sobre o trabalho com a


gramática em sala de aula, mais especificamente, sobre da funcionalidade do ensino de
gramática, de maneira contextualizada, por meio do trabalho de leitura de textos situados em
diferentes contextos de interação, propõe-se que este esteja relacionado aos diversos contextos
de interação, de modo que possibilite ao educando compreender a sua funcionalidade,
propiciando o desenvolvimento da capacidade comunicativa desses sujeitos por meio da
leitura. Assim, é tarefa do professor buscar recursos didáticos para garantir uma aprendizagem
crítica, de tal forma que torne o ensino de língua portuguesa significativo.
Como resultados alcançados, podemos afirmar que a referida atividade possibilitou
uma reflexão acerca da função de determinadas palavras, dentro de contextos variados, bem
como considerações sobre o ensino de gramática articulado com atividades de leitura, em sala
de aula, destacando que quando dinamizado facilita o aprendizado do aluno, assim como o
interesse do mesmo. Logo, a necessidade de analisar o contexto, bem como refletir sobre o
uso e funcionalidade dos aspectos gramaticais para a construção de sentido dos textos em
atividades de leitura, é o caminho para que o estudante possa ter uma compreensão ampla
acerca de gramática.
Dessa forma, vale ressaltar que o referido trabalho é bastante significativo para as
aulas de língua portuguesa, uma vez que contribui para o ensino de gramática de forma
contextualizada, isto é, o trabalho com textos, com enfoque na reflexão das palavras em
combinação com as demais, no contexto de uso, através da atividade de leitura. Frisamos
ainda a relevância do professor de português tornar mais dinâmica suas aulas, sobretudo
quando se trata de análise linguística, de forma a facilitar o aprendizado do aluno, e obter
1464

melhor rendimento.
Ademais, essa experiência vivenciada no Estágio Supervisionado nos possibilitou um
aprendizado relevante para nossa prática pedagógica, de modo que ativamos em sala de aula
Página

os conhecimentos adquiridos no curso, o que contribui bastante para nossa formação.

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Destacamos, portanto, a relevância deste trabalho, uma vez que apresenta uma reflexão acerca
da prática do ensino de gramática de maneira contextualizada, tendo como análise a prática
regente, em sala de aula. Entretanto, salientamos que os estudos acerca dessa área não se
esgotam em nossa discussão, uma vez que elas suscitam a necessidade de estarmos sempre
em processo de formação.

Referências

ABAURRE, M. L. M.; ABAURRE, M. B. M.; PONTARA, M.;. Português: Contexto,


interlocução e sentido. 2. ed. São Paulo: Moderna, 2013.

ANTUNES, I. Aula de português: encontro e interação. São Paulo: Parábola Editorial, 2003.

ANTUNES, I. Muito além da Gramática: por um ensino sem pedras no caminho. São
Paulo: Parábola Editorial, 2007.

BRASIL. Ministério da Educação – Secretaria de Educação Básica. Orientações


Curriculares para o Ensino Médio/Linguagens, códigos e suas tecnologias. Brasília; MEC,
2006.

BUZEN, C.; MENDONÇA, M.; KLEIMAN, A. B. [et. al.]. Português no ensino médio e
formação do professor. São Paulo: Parábola Editorial, 2006.

OLIVEIRA, L. A. Coisas que todo professor de português precisa saber: a teoria na


prática. São Paulo: Parábola Editorial, 2010.

MARTINS, M. H. O que é leitura. São Paulo: Brasiliense, 2007. (Coleção primeiros passos;
74).

1465
Página

ISBN: 978-85-7621-221-8
PÔSTER

RETRATOS DA VIOLÊNCIA: FOTOGRAFIA E PRODUÇÃO DE SENTIDOS

Francisca Meiriane da silva(UERN)223


Marcília Luzia Gomes da Costa Mendes (UERN)224
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte - UERN, Mossoró, RN

Introdução

Na atualidade as pessoas tomam conhecimento dos acontecimentos, em grande parte,


pelos meios de comunicação. Mas, os fatos, antes de chegarem ao receptor, passam por filtros
no processo de produção da notícia. Dessa forma, a realidade apresentada pela mídia é apenas
um recorte do que ocorreu, podendo ficar de fora aspectos necessários à compreensão do fato.
A Pesquisa Brasileira de Mídia 2016225 mostra que o jornal está em quarto lugar como
meio de comunicação mais utilizado pelos brasileiros para se informar. Mesmo com o acesso
à internet, os brasileiros ainda preferem o jornal impresso à versão online. No jornal, o que
chama primeiro a atenção das pessoas são as imagens. E algumas olham apenas as imagens e
as manchetes. Por isso, as fotografias têm um papel de destaque nas notícias veiculadas pelos
meios de comunicação.
A forma como os indivíduos vão interpretar as imagens vai depender tanto do recorte
da fotografia como também do repertório de conhecimento de cada pessoa. Berger afirma que
“a maneira como vemos as coisas é afetada pelo que sabemos ou pelo que acreditamos”
(BERGER, 1999. p. 10).
Sabendo-se que a fotografia é produzida com uma intenção, podemos dizer que por
trás das imagens há uma ideologia, assim também como nos enunciados, mesmo que de forma
implícita. Boris Kossoy afirma que “as diferentes ideologias, onde quer que atuem, sempre
tiveram na imagem fotográfica um poderoso instrumento para a veiculação das ideias e da
consequente formação e manipulação da opinião pública” (KOSSOY, 2002. p. 20).

223
Discente do Curso de Comunicação Social, habilitação em Jornalismo, da Universidade do Estado do Rio
1466

Grande do Norte (UERN). Email: meiri10008@gmail.com.


224
Orientadora do trabalho. Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte
(UFRN). Docente do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais e Humanas (PPGCISH) e do
Departamento de Comunicação Social (DECOM), da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, Líder do
Grupo de Pesquisa Informação, Cultura e Práticas Sociais. Email: marciliamendes@uol.com.br.
Página

225
Disponível em: <http://www.secom.gov.br/atuacao/pesquisa/lista-de-pesquisas-quantitativas-e-qualitativas-
de-contratos-atuais/pesquisa-brasileira-de-midia-pbm-2016-1.pdf/view>. Acesso em: 15 jun. 2017.

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Em vista disso, após analisarmos dez fotografias de jovens vítimas de violência
veiculadas pelo jornal O Mossoroense226 no período de 2011 a 2013, procuramos neste estudo
investigar como essas imagens podem reforçar a ideia propagada pelo senso comum de que
“bandido bom é bandido morto”. Nossa preocupação recai sobre essa frase devido às
consequências que esse discurso de ódio pode trazer, como, por exemplo, o linchamento de
pessoas acusadas de cometerem crimes.
Como nosso objetivo é investigar como o discurso dessas fotografias de jovens vítimas
de violência pode contribuir com o discurso de ódio propagado pelo senso comum,
utilizaremos a Análise de Discurso de orientação francesa como percurso teórico e
metodológico, pois procuramos analisar os possíveis sentidos produzidos pelo discurso dessas
imagens e como podem contribuir para reforçar preconceitos contra os jovens mais pobres
que estão em conflito com a lei.
A Análise de Discurso analisa não somente o que é dito, mas também o que não é dito,
pois como afirma Orlandi “ao longo do dizer, há toda uma margem de não-ditos que também
significam” (ORLANDI, 1999, p. 82). E é no discurso que podemos observar a ideologia.
Como afirma Orlandi “todo dizer é ideologicamente marcado” (ORLANDI, 1999, p. 38).
Também é importante ressaltar que há uma memória discursiva, ou seja, há uma relação do
discurso com outros já ditos. Como afirma Manhães a Análise de Discurso de orientação
francesa “caracteriza-se pela ênfase no assujeitamento do emissor, que se expressaria
mediante a incorporação de discursos já instituídos [...]” (MANHÃES, 2009, p. 306).
Para Gregolin a Análise de Discurso “investiga o campo dos enunciados a fim de
entender os acontecimentos discursivos que possibilitaram o estabelecimento e a cristalização
de certos sentidos em nossa cultura” (GREGOLIN, 2006, p. 27). Dessa forma, para entender o
que os discursos significam é preciso conhecer outros enunciados já ditos que fazem parte da
nossa cultura e identificar a ideologia presente nesses discursos.
Setton afirma que “estudar a ideologia dos bens culturais midiáticos é explicitar a
conexão entre o sentido/significado mobilizado pelas mensagens midiáticas e as relações de
dominação que esse sentido mantém” (SETTON, 2010, p. 18). Assim, as mensagens que são
carregadas de ideologia contribuem para manter determinadas relações de poder na sociedade.
1467

Dessa forma, precisamos investigar como os meios de comunicação contribuem para a


Página

226
“Foi fundado em 1872 [...], atualmente um dos quatro mais antigos do país [...]” (NASCIMENTO, 2002, p.
102).

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manutenção da dominação de determinados grupos em relação a outros, reforçando
preconceitos contra as pessoas mais vulneráveis da sociedade.

1 Os indivíduos mais vulneráveis da sociedade

O Mapa da Violência 2015227 revela uma realidade bastante conhecida. A pesquisa


intitulada Juventude Viva: mortes matadas por armas de fogo, elaborada pelo pesquisador
Julio Jacobo Waiselfisz, vem sendo realizada desde 1998. De acordo com o estudo “a
violência é tolerável em determinadas condições, de acordo com quem a pratica, contra quem,
de que forma e em que lugar” (WAISELFISZ, 2015, p. 9). Mais adiante o autor explica que:

Mais jovens morrem por armas de fogo, apesar da redução inicial provocada
pela aprovação do Estatuto do Desarmamento. E a gravidade se torna ainda
maior quando se sabe que, em sua maioria, são os jovens negros as vítimas
dessa escalada. Racismo, violência e impunidade se associam na degradação
do ambiente social brasileiro (WAISELFISZ, 2015, p. 10).

São jovens de famílias de baixa renda, moradores das periferias, as maiores vítimas de
violência no Brasil. Muitos são de famílias desestruturadas e que não tiverem acesso a uma
educação de qualidade. E essa realidade é apresentada pelos meios de comunicação
diariamente. Porém, geralmente, a mídia não reflete sobre as causas dessa violência, que tem
como origem a desigualdade social. Mauro Del Pino explica que:

Sob a ideologia da globalização, os governos dos países dependentes, entre


eles o Brasil, acenam com a necessidade de integração à economia mundial,
dentro dos padrões propostos por esta integração, como único meio de
afastar a degradação social e o aprofundamento da condição de pobreza
destes países. Todavia, esta hipótese é falsa. A integração através do atual
padrão de desenvolvimento é impossível. O que se vê é o crescimento de
desigualdades que passam a chamar cada vez mais atenção pela violência de
seu crescimento e resultados sociais (PINO, 2011, p. 66).

Portanto, há uma busca pelo desenvolvimento econômico do país, mas não há,
paralelo a isso, um desenvolvimento social. Enquanto o Brasil se desenvolve, a maioria da
1468

população continua na mesma situação precária de habitação, de saúde, de educação e de


trabalho. Tudo isso resulta em mais violência. Não há uma preocupação em resolver a causa
Página

227
Disponível em: <http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2015/mapaViolencia2015.pdf>. Acesso em: 08 dez.
2016.

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do problema que é através da educação e de oportunidades melhores de trabalho para as
pessoas mais vulneráveis da sociedade. Quando acontece a violência esses indivíduos são
punidos apenas sendo presos, lotando ainda mais os presídios que já ultrapassam a sua
capacidade. É como se a responsabilidade de ter uma vida digna fosse colocada apenas nas
mãos de cada indivíduo, como se não vivessem em um sistema que privilegia os mais ricos e
exclui os mais pobres. Tavares afirma que “o investimento do Estado Penal com a
intensificação da intervenção do aparelho policial e judiciário é o mesmo que implantar uma
verdadeira ditadura sobre os pobres” (TAVARES, 2011, 128).
Sobre a causa do problema dos jovens em situação de rua, Pedro Demo afirma que “a
raiz mais imediata do problema das crianças e adolescentes em situação de rua é a pobreza
material das respectivas famílias, ao lado de outras também relevantes como os desajustes
familiares” (DEMO, 1995, p. 101-102). Dessa forma, é necessário pensar em medidas para
ajudar também as famílias dos jovens em situação de rua e/ou em conflito com a lei, pois é
com a família que os indivíduos têm suas primeiras experiências com o mundo, é na família
que se realiza a socialização primária, ou seja, o primeiro contato da criança com as normas
da sociedade. Berger e Luckmann explicam os processos da socialização primária e
secundária:

A socialização primária é a primeira socialização que o indivíduo


experimenta na infância, e em virtude da qual torna-se membro da
sociedade. A socialização secundária é qualquer processo subsequente que
introduz um indivíduo já socializado em novos setores do mundo objetivo de
sua sociedade (BERGER; LUCKMANN, 2001, p. 175).

Portanto, é com a família que a criança aprende as primeiras normas para conviver na
sociedade. Por isso, além de orientar e ajudar os jovens é preciso também intervir nas famílias
para que as crianças e os adolescentes possa ter uma vida mais digna e não voltar para as ruas
e/ou não voltar a praticar crimes.
Diante desse contexto, a mídia pode desempenhar um importante papel na luta contra
a desigualdade social e consequentemente contra a violência, não só apresentando os casos de
violência, mas também e principalmente apresentando para a sociedade medidas para ajudar a
solucionar o problema. Não entrevistando somente a polícia, advogados, etc., mas trazendo a
1469

contribuição de psicólogos, educadores e demais estudiosos do assunto.


Também é preciso que as oportunidades sejam iguais para todos e mais do que isso, é
Página

necessário dar condições para que as pessoas mais pobres possam concorrer de forma justa

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com os demais, pois esses indivíduos já nascem em desvantagem porque sofrem vivendo em
bairros violentos, em muitos casos sem uma orientação adequada em casa e sem as mínimas
condições de vida, como saúde, educação e moradia.

2 A produção da notícia

Sabemos que a produção da notícia não depende somente do jornalista, pois este está
submetido à política editorial da empresa para a qual trabalha. Nelson Traquina (2005),
fazendo referência ao estudo de Warren Breed, elenca seis fatores que fazem com que os
jornalistas se submetam à política editorial da organização, são eles:
1. A autoridade institucional e as sanções;
2. Os sentimentos de obrigação e de estima para com os superiores;
3. As aspirações de mobilidade;
4. A ausência de grupos de lealdade em conflito;
5. O prazer da atividade;
6. As notícias como valor.
Portanto, os jornalistas não são totalmente livres para produzir as notícias. Mas eles
têm em mãos um meio para contribuir com a sociedade para melhorá-la ou de apenas
reproduzir as injustiças que acontecem no meio social. A mídia agenda debates na sociedade,
pois o que é discutido nos meios de comunicação, seja em jornais ou nos programas como
novelas e séries, são também os temas mais debatidos na sociedade. Assim, a mídia pode
apresentar somente os fatos ou debatê-los de forma crítica para buscar possíveis soluções para
os problemas enfrentados pela sociedade. Os meios de comunicação também tem o poder de
invisibilizar determinados atores sociais, como afirma Sant’Anna “as mídias e seus produtos,
ao espelharem a divisão estrutural da sociedade, não asseguram o mesmo padrão de acesso
nem o mesmo poder de interação a todos os segmentos sociais” (SANT’ANNA, 2009, 215).
Dessa forma, para que alguns atores sociais obtenham visibilidade é preciso que eles
perturbem a ordem. Mas, mesmo assim, eles não terão a visibilidade desejada, pois a mídia
mostra os fatos de acordo com seus interesses, ou seja, do ângulo que querem apresentar o
1470

acontecimento.
Mesmo os jornalistas não tendo total liberdade para produzirem as notícias, eles têm
um compromisso com a sociedade que está no Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros,
Página

que em seu artigo 6º inciso VIII traz um dos deveres dos jornalistas que é “respeitar o direito

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à intimidade, à privacidade, à honra e à imagem do cidadão” (FENAJ, 2007). Mas,
geralmente, o direito à imagem do cidadão não é respeitado por parte de alguns veículos de
comunicação, pois quando um acusado ou vítima de violência não é de família rica, a imagem
do indivíduo é exposta geralmente sem os devidos cuidados.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) no seu artigo 247 afirma que:

Divulgar, total ou parcialmente, sem autorização devida, por qualquer meio


de comunicação, nome, ato ou documento de procedimento policial,
administrativo ou judicial relativo a criança ou adolescente a que se atribua
ato infracional: Pena - multa de três a vinte salários de referência, aplicando-
se o dobro em caso de reincidência. § 1º. Incorre na mesma pena quem
exibe, total ou parcialmente, fotografia de criança ou adolescente envolvido
em ato infracional, ou qualquer ilustração que lhe diga respeito ou se refira a
atos que lhe sejam atribuídos, de forma a permitir sua identificação, direta ou
indiretamente (ECA, 1990).

Desrespeitando o ECA, alguns veículos de comunicação identificam os adolescentes


vítimas de violência que tiveram algum envolvimento com crimes divulgando nome completo
e bairro. Assim, tanto os familiares desses jovens sentem-se constrangidos, como também o
bairro onde eles residiam ficam estigmatizados, o que acarreta preconceito até quando os
jovens moradores dessas áreas vão em busca de emprego.
Outro problema é o fato de que não é comum vermos comoção pelas mortes desses
jovens. Fábio Paiva, pesquisador que estuda a violência da Universidade Federal do Ceará
(UFC), em entrevista ao telejornal Bom dia Brasil228 afirmou que os casos de assassinatos de
jovens que tinham algum envolvimento com crimes acabam sendo arquivados, ou seja,
geralmente não são investigados. E uma pesquisa realizada pelo Datafolha229 mostrou que
57% da população brasileira concordam com a afirmação “bandido bom é bandido morto”,
umas das frases de ódio difundidas pelo senso comum.
A forma sensacionalista como alguns veículos de comunicação divulgam crimes pode
gerar uma sensação exagerada de medo e revolta na população contribuindo para que
aconteçam os linchamentos. Assim, o sofrimento ou a morte são transformados em espetáculo
1471

228
Edição do dia 04 de julho de 2016. Disponível em: <http://g1.globo.com/bom-dia-
brasil/videos/t/edicoes/v/fortaleza-e-a-capital-do-pais-com-maior-taxa-de-homicidios-de-criancas-e-
adolescentes/5137785/>. Acesso em: 04 jul. 2017.
229
Disponível em: <http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2016/11/para-57-dos-brasileiros-bandido-bom-e-
bandido-morto-diz-datafolha.html>. Acesso em: 04 jul. 2017.
Página

ISBN: 978-85-7621-221-8
para ganhar audiência. Para Susan Sontag “desde quando as câmeras foram inventadas, em
1839, a fotografia flertou com a morte” (SONTAG, 2003, p. 24).
Vivemos em uma sociedade cada vez mais preocupada com a imagem, mas que entra
em contradição, pois como ressalta Carlos, Mendes e Barreto os indivíduos “rejeitam a morte
em suas rotinas, mas a consomem como espetáculo através dos jornais” (CARLOS;
MENDES; BARRETO, 2015, p. 2). Dessa forma, as pessoas querem compartilhar apenas
imagens de seus momentos felizes, evitando divulgar suas tristezas, mas, ao mesmo tempo,
dão atenção a imagens de violência e de mortes, gerando audiência para os meios de
comunicação sensacionalistas.
Diante desse quadro, é necessário que os profissionais da comunicação sejam pessoas
preparadas, que conheçam as leis sobre o uso da imagem, bem como os direitos dos cidadãos
e que também sejam pessoas que trabalhem de forma ética. Assim, antes de se submeterem às
‘regras’ da empresa para a qual trabalham, os jornalistas têm o dever de seguir as leis, de
tratar todos os cidadãos com respeito, independente de sua renda ou origem.

3 Fotografia e produção de sentidos

Depois de analisarmos dez fotografias do jornal O Mossoroense em estudo anterior230,


e observarmos uma indignação seletiva nos casos de violência, tanto por parte de alguns
veículos de comunicação como por parte da sociedade, decidimos investigar de que forma o
discurso das fotografias que analisamos do jornal em estudo, pode contribuir com a frase
propagada pelo senso comum de que “bandido bom é bandido morto”.
O Atlas da Violência 2017231 mostra que a taxa de homicídio médio da população
brasileira é de 28,9 mortes por 100 mil habitantes, enquanto que a taxa de homicídio da
população jovem é de 60,9 mortes por 100 mil habitantes, ou seja, mais do que o dobro da
população geral. O aumento da violência, principalmente entre os jovens, tem gerado um
discurso de ódio propagado pelo senso comum e que é reproduzido pela mídia. Um caso
bastante conhecido foi o comentário de Rachel Sheherazade, apresentadora do telejornal SBT
Brasil232, no qual a jornalista fala de um adolescente que foi acorrentado sem roupas a um
1472

230
Disponível em: <http://www.portalintercom.org.br/anais/nordeste2016/resumos/R52-0829-1.pdf>.
231
Disponível em: < http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=30253>.
Página

Acesso em: 06 jul. 2017.


232
Disponível em:<http://www.sbt.com.br/jornalismo/sbtbrasil/apresentadores/>. Acesso em:: 06 jul. 2017.

ISBN: 978-85-7621-221-8
poste233. Ela defendeu a atitude de “justiceiros” que prenderam o jovem a um poste e o
espancaram. Atitudes como essa são muito preocupantes, pois mostra que alguns jornalistas
não estão preparados para exercer a profissão que deveria defender os direitos de todos os
cidadãos e não incitar a violência.
Ao mesmo tempo em que a mídia reflete o que se passa na sociedade, ela também
interfere no meio social. De acordo com Roger Silverstone “a mídia depende do senso
comum. Ela o reproduz, recorre a ele, mas também o explora e distorce” (SILVERSTONE,
2002, p. 21).
Dessa forma, utilizando-se de uma memória discursiva comum aos indivíduos e do
discurso de ódio, alguns veículos de comunicação podem contribuir para que os sujeitos
historicamente marginalizados continuem à margem da sociedade, sem ter acesso aos seus
direitos, como a liberdade e sua defesa perante os crimes cometidos. Para Marilena Chauí:

A função principal da ideologia é ocultar e dissimular as divisões sociais e


políticas, dar-lhes a aparência de indivisão e de diferenças naturais entre os
seres humanos. [...] Somos levados a crer que as desigualdades sociais,
econômicas e políticas não são produzidas pela divisão social de classes,
mas por diferenças individuais dos talentos e das capacidades, da
inteligência, da força de vontade maior ou menor (CHAUÍ, 2006, p. 175).

Assim, a mídia brasileira, geralmente servindo aos interesses da elite, utiliza de


espetáculos midiáticos carregados de ideologia, para tentar convencer os indivíduos que são
excluídos da sociedade a aceitarem sua condição de subordinação. Como afirma Setton “para
o bem ou para o mal, as mídias transmitem mensagens contribuindo para a formação das
identidades de todos” (SETTON, 2010, p. 15). Dessa forma, aceitando sua condição
“inferior” as pessoas marginalizadas pela sociedade não buscam seus direitos e cada vez mais
sofrem com as injustiças praticadas pelos que estão no poder.
Diante desse contexto, a frase “bandido bom é bandido morto”, na prática, só vale para
os indivíduos mais pobres, principalmente para as pessoas negras moradoras da periferia. E as
fotografias que analisamos de jovens vítimas de violência do jornal O Mossoroense podem
contribuir com o preconceito contra os jovens mais pobres que tiveram algum envolvimento
com crimes.
1473
Página

233
Disponível em: < https://www.pragmatismopolitico.com.br/2014/02/ta-com-pena-adote-um-bandido.html>.
Acesso em: 05 jul. 2017.

ISBN: 978-85-7621-221-8
Foram dez fotografias, sendo que não analisamos somente as imagens, mas também os
textos que as acompanhavam, pois os enunciados dão sentido às fotografias. Observamos que
não há um interesse mais aprofundado pelas investigações quando os jovens assassinados
tinham algum envolvimento com crimes e/ou drogas, o que leva a crer que não há uma
comoção pela morte desses adolescentes. Outro ponto importante é que em algumas imagens
a polícia aparece em primeiro plano. E os nomes das vítimas assim como seu endereço são
divulgados. Dessa forma, contribuindo para reforçar o preconceito contra esses bairros mais
pobres.
Quando não observamos uma comoção pelas mortes desses jovens que tiveram algum
envolvimento com crimes e/ou drogas, isto reforça a ideia propagada pelo senso comum de
que “bandido bom é bandido morto”, mas desde que o “bandido” seja pobre. Na mídia,
geralmente, quando o acusado de um crime é de origem rica há todo um cuidado com sua
imagem e com a forma como irão denominá-lo, jamais o chamando de “elemento, bandido”,
etc. A forma como algumas imagens são veiculadas pode causar constrangimento aos
familiares e amigos das vítimas. Assim, percebe-se que há mais um espetáculo em torno da
morte desses jovens a fim de conseguir audiência do que uma preocupação com o problema
da violência, o que acaba reforçando o preconceito sofrido pelos jovens mais pobres
moradores da periferia.

Conclusão

É preocupante a forma como alguns meios de comunicação tratam a questão da


violência. Ao invés de buscar soluções para os problemas junto a especialistas no assunto, a
mídia acaba transformando esse problema em um espetáculo, pois a morte chama a atenção de
muitas pessoas. E em alguns casos, a mídia acaba “julgando” esses jovens mesmo antes da
justiça, que, aliás, como não observa-se um aprofundamento das investigações, talvez esses
casos de assassinatos nunca serão investigados porque as vítimas eram indivíduos pobres e
que tiveram algum envolvimento com crimes e/ou drogas, como se isto tirasse deles o direito
de defesa.
1474

A situação em que vivem essas adolescentes e a falta de uma boa orientação não são
levados em consideração, como se sozinhos eles tivessem que aprender o que é certo e o que é
errado, mesmo vivendo em bairros violentos. Assim, a forma como esses assassinatos são
Página

mostrados pela mídia acaba contribuindo para que esses jovens continuem sendo

ISBN: 978-85-7621-221-8
marginalizados e aceitem sofrer punições por parte da sociedade e, dessa forma, contribuindo
para reforçar a frase “bandido bom é bandido morto”, mas desde que seja um indivíduo que
não tenha acesso a seus direitos.

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1477
Página

ISBN: 978-85-7621-221-8
PÔSTER

ESTUDO DA INTERDISCIPLINARIDADE NO LIVRO DIDÁTICO DE ESPANHOL


DO ENSINO MÉDIO PÚBLICO

Gecina Melanie Anastácio da Silva234 (UERN)


Izabela Bezerra Da Silva235 (UERN)
Pedro Adrião da Silva Júnior236 (UERN)

Introdução

O conceito de Interdisciplinaridade está relativamente voltado para o processo de


interação entre disciplinas que dialogam entre si em um determinado contexto com aqueles
que a desenvolvem, formando assim, um elo entre o entendimento de disciplinas nas suas
mais variadas áreas. Sobre o conceito de interdisciplinaridade, Fazenda (2008, p. 161) diz que
a “interdisciplinaridade significa, em sentido geral, relação entre as disciplinas.” Trata-se,
pois, de um processo dinâmico de habilidades e capacidades interdisciplinares desenvolvidas
no processo de aprendizagem.
Segundo Fazenda (2002, p. 11), a “Interdisciplinaridade é uma nova atitude diante da
questão do conhecimento, de abertura à compreensão de aspectos ocultos do ato de aprender e
dos aparentemente expressos, colocando-os em questão [...]”.
O presente artigo tem como objetivo analisar a importância da interdisciplinaridade no
ensino de Língua Estrangeira a partir do Livro Didático trabalhado em sala de aula do ensino
médio público. Destacamos, ainda, que a Língua Estrangeira a que nos referimos é a
espanhola. Desse modo, buscamos aprofundar e esclarecer essa prática interdisciplinar, na
qual disciplinas dialogam entre si, levando conhecimento extracurricular para dentro e fora da
sala de aula. Verificamos, também, em nossa pesquisa, como a interdisciplinaridade é
trabalhada em sala de aula e como o professor utiliza-se de métodos que contribuem para o
aprofundamento dessa prática interdisciplinar abordada no Ensino Médio.

234
Graduanda do Curso de Licenciatura de Língua Espanhola da Universidade do Estado do Rio Grande do
1478

Norte e aluna bolsista do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência- PIBID.


235
Graduanda do Curso de Licenciatura de Língua Espanhola da Universidade do Estado do Rio Grande do
Norte e aluna bolsista do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência-PIBID.
236
Professor do Curso da Licenciatura de Língua Espanhola da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte
e Coordenador do Subprojeto em Língua Espanhola do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência-
Página

PIBID.

ISBN: 978-85-7621-221-8
Para nosso estudo, analisamos o livro didático Enlaces: español para jóvenes
brasileños, adotado na Escola de Ensino Médio Maria Estella Pinheiro da Costa, na cidade de
Mossoró.
O trabalho foi fundamentado em teóricos como FAZENDA (2002), que esclarece
sobre a abertura que a interdisciplinaridade oferece para outras disciplinas; PAVIANI (2008),
o qual discute conceitos sobre interdisciplinaridade; e os PCNs (2000), que descrevem como a
interdisciplinaridade deve ser trabalhada no Ensino Médio.

1 a importância da interdisciplinaridade no ensino do espanhol como LE

O ensino de língua espanhola deve ser dotado de métodos que despertem nos alunos o
interesse não só pela língua, mas também pelas diversas culturas dos países hispânicos. O
ensino de língua estrangeira não deve limitar-se apenas ao ensino da gramática, é importante
que o aluno tenha dentro da sala de aula acesso a conhecimento daquilo que está além do seu
convívio social, desta forma seu conhecimento de mundo será ampliado dentro das diversas
áreas do saber.
Nisso, a escola juntamente com o professor, devem trabalhar juntos de maneira que
conhecimentos extracurriculares sejam levados para dentro da sala de aula, abordando
conteúdos interdisciplinaridade. A elaboração de atividades dinâmicas como jogos, filmes,
música e etc. devem ser vistos como métodos que auxiliem no ensino-aprendizagem do aluno,
de maneira diversificada e prazerosa.
No que concerne ao ensino de Línguas Estrangeiras no Ensino Médio, um ponto a ser
considerado pelos PCNs (2000, p. 29) diz respeito à “forma pela qual as diferentes disciplinas
da grade curricular podem e devem interligar-se”. Isso porque, quando o Livro Didático
aborda conteúdos interdisciplinares relacionados com outras disciplinas do currículo escolar,
o mesmo estará oferecendo ao aluno novas oportunidades de aprendizagem.

A interdisciplinaridade não dilui as disciplinas, ao contrário, mantém sua


individualidade. Mas integra as disciplinas a partir da compreensão das
múltiplas causas ou fatores que intervêm sobre a realidade e trabalha todas
1479

as linguagens necessárias para a constituição de conhecimentos,


comunicação e negociação de significados e registro sistemático dos
resultados (BRASIL, 1999, p. 89).
Página

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Dentro da área pedagógica, a prática interdisciplinar acontece quando disciplinas
relacionam seus conteúdos para aprofundar o conhecimento e levar dinâmica ao ensino. A
relação interdisciplinar é a base para um ensino mais interessante onde uma matéria auxilia a
outra no processo ensino-aprendizagem do aluno. Nenhuma disciplina ocupa o lugar da outra,
mas sim se complementam levando conhecimento e aprendizagem para sala de aula. Dentro
dessa área de ensino interdisciplinar, escola e professores, juntamente com o auxilio do livro
didático devem ser aliados na educação desses alunos.
Segundo Fazenda (2005, apud Haury Temp, 2015), “uma Interdisciplinaridade no
ensino com vistas a novos questionamentos e buscas, supõe uma mudança de atitude no
compreender e entender o conhecimento, uma troca em que todos saem ganhando: alunos,
professores e a própria instituição”.
O livro didático tem no âmbito escolar o importante dever de passar para o aluno
diversos tipos de conhecimentos que o leve a interagir junto com professor que está ali não só
para ensinar, mas também para aprender junto ao aluno. Essa interação entre aluno e professor
faz com que o conhecimento interdisciplinar existente no livro didático seja um grande aliado
na formação desses alunos que estão na escola em busca de novos conhecimentos. Quando há
um intercâmbio de culturas entre diversas disciplinas, aluno e professor só tem a ganhar, mas
para que isso aconteça o docente precisa também saber trabalhar a interdisciplinaridade,
facilitando assim a compreensão e interesse do aluno em sala de aula.
De acordo com os Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio (PCNs):

O Ensino Médio possui, entre suas funções, um compromisso com a


educação para o trabalho. Torna-se, pois, imprescindível incorporar as
necessidades da realidade ao currículo escolar de forma a que os alunos
tenham acesso, no Ensino Médio, aqueles conhecimentos que, de forma mais
ou menos imediata, serão exigidos pelo mercado de trabalho (PCNs, 2000, p.
27).

A interdisciplinaridade tem papel fundamental na educação e formação do aluno


quando esta oferece ao aluno criatividade e interação entre os diversos saberes. Professores
interdisciplinares também são fundamentais nessa prática que envolve toda uma comunidade.
Assim, escola e professores são os grandes responsáveis para que a interdisciplinaridade seja
1480

vista e aceita como de grande importância no conhecimento escolar, onde professores e


alunos através da interação com diversas disciplinas descobrem o verdadeiro significado de
Página

ser interdisciplinar.

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1.1 A interdisciplinaridade e o ensino de idiomas

Não é de hoje que o ensino de línguas no Brasil tem se tornado um grande aliado na
formação do aluno dentro e fora da sala de aula. Embora ainda exista nesse campo de
aprendizagem certa indiferença com o ensino de Língua Estrangeira, como é o caso do
espanhol, por exemplo, que muitas vezes é visto com menos prestígio se comparado com o
ensino de outras línguas como o inglês, com o passar dos anos, veio tomando lugar no
mercado de trabalho e no meio social.

No âmbito da LDB, as línguas Estrangeiras Modernas recuperam, de alguma


forma, a importância que durante muito tempo lhes foi negada. Consideradas
muitas vezes e de maneira injustiçada, como disciplina pouco relevante, elas
adquirem agora, a configuração de disciplinas tão importante como qualquer
outra no currículo, do ponto de vista da formação do individuo (PCNs, 2000,
p. 25).

Contudo, trabalhar com uma segunda língua em escolas de Ensino Médio público não
é tarefa fácil, tendo em vista que muitas vezes há uma recusa do próprio aluno em aceitá-la
como Língua Estrangeira (LE); e, no caso da língua espanhola, essa rejeição pode ter um
índice ainda maior. Entretanto, uma maneira de amenizar esse quadro seria incluir o trabalho
interdisciplinar na prática escolar envolvendo a escola e comunidade; aluno e professor; e por
último o Livro Didático trabalhado em sala de aula auxiliado pelo docente.
A priori, para que a interdisciplinaridade aconteça de maneira que possa oferecer ao
aluno a interação envolvendo outras disciplinas do currículo escolar, é preciso que o próprio
material didático traga conteúdos interdisciplinares que contribuam para a aprendizagem e
avanço do conhecimento escolar e extracurricular do aluno. É papel do professor, também,
pensar métodos que facilitem essa prática interdisciplinar no ensino de Língua Estrangeira em
sala de aula.
De acordo com os PCNs (2000, p. 26), “É essencial, pois, entender-se a presença das
Línguas Estrangeiras Modernas numa área, e não mais como uma disciplina isolada no
currículo escolar.” E complementam dizendo que:
1481

Conceber-se a aprendizagem de Línguas Estrangeiras de uma forma


articulada, em termos dos diferentes componentes da competência
linguística, implica necessariamente, outorgar importâncias às questões
Página

culturais. A aprendizagem passa a ser vista, então, como fonte de ampliação


dos horizontes culturais. Ao conhecer outra(s) cultura(s), outra(s) forma(s)

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de encarar a realidade, os alunos passam a refletir, também muito mais sobre
a sua própria cultura e ampliam a sua capacidade de analisar o seu entorno
social com maior profundidade [...] (PCNs, 2000, p. 30).

A Interdisciplinaridade no ensino de língua estrangeira tem papel fundamental na


aprendizagem do aluno e na aquisição de conhecimento envolvendo outras disciplinas do
currículo escolar. Quando o professor de língua estrangeira aborda em sua aula conteúdo
interdisciplinar, um artigo científico tratando de outra disciplina da grade escolar como a
Biologia, por exemplo, o aluno além de ter contato com o léxico da língua estrangeira, estará
ao mesmo tempo em contato com temáticas que envolvem o universo da ciência. Desta forma
o professor estará oferecendo ao aluno um novo método interacional que faz com essas
disciplinas de alguma forma se inter-relacionem sem perder o foco de ensino de idiomas.
Esse processo dinâmico e interacional entre disciplinas são fundamentais no ensino de
línguas estrangeiras. E sobre essa prática interdisciplinar no ensino de línguas estrangeiras, os
PCNs (2000) dizem que:

Ademais, será uma maneira de deixar mais evidente que nenhuma área
prescinde de outras. Ao contrário, elas estão perfeitamente interligadas e
inter-relacionadas e qualquer tentativa de desvinculá-las redundará, com
certeza, na criação de contextos altamente artificiais geradores de
desinteresse (PCNs, 2000, p. 30).

Portanto, não basta apenas o Livro Didático trazer essa interdisciplinaridade em seu
conteúdo. É preciso que o professor esteja apto a trabalhá-la em sala de aula. Os professores
como mediadores, devem buscar abordagens e metodologias que auxiliem nessa prática do
ensino de idiomas. Como ex-alunos de escola pública, sabemos que são muitos os fatores que
impedem essa prática interdisciplinar no Ensino Médio, mas não significa que seja impossível
de ser trabalhada. É importante que a escola e professores trabalhem juntos a
interdisciplinaridade abordada no material didático, disponibilizando tempo necessário e
metodologias que ajudem nessa prática.

2 Diferentes formas de trabalhar a interdisciplinaridade em sala de aula


1482

A interdisciplinaridade tem a função de juntar as diferentes disciplinas e fazer com que


o aluno consiga absorver o máximo de conhecimento de cada uma delas. Desse modo faz-se
Página

necessário estabelecer uma relação de interação entre as disciplinas e um maior planejamento

ISBN: 978-85-7621-221-8
das aulas por parte dos professores para poder trabalhar bem a interdisciplinaridade dentro da
sala de aula com os alunos.

As iniciativas interdisciplinares precisam ser planejadas, pois raramente


obtêm resultados positivos quando conduzidas de modo impensado. Exigem
uma ação estratégica que objetive as intenções. Os objetivos, as definições
conceituais, os tipos de ação, o contexto institucional, tudo requer previsão.
A integração, a cooperação e as inter-relações de conhecimentos dependem
de procedimentos a serem adotados (PAVIANI, 2008, p. 63).

Para se trabalhar bem a interdisciplinaridade é preciso muita atitude da parte do


docente, pois não é tarefa fácil ensinar uma língua estrangeira e a partir desse ensino de língua
inserir outras disciplinas para que o aluno além de absorver, por exemplo, a gramatica de uma
LE também possa aprender geografia, biologia e assim por diante. Existem vários métodos de
ensino para a língua estrangeira, como o método direto, Gramática tradução, por exemplo,
porém cabe ao professor analisar o melhor modo de usar a interdisciplinaridade na hora de
passar o conteúdo e também a segunda metodologia para o ensino da língua.
Segundo Paviani (2008), a função da interdisciplinaridade é estender uma ponte entre
o momento identificador de cada unidade básica de conhecimento e o necessário corte
diferenciador. Dentro desse contexto observamos que o uso da interdisciplinaridade não é tão
simples, tem que haver muita motivação por parte docente, pois além de ter que chamar a
atenção dos alunos para a aprendizagem do espanhol quanto para o segundo assunto, seja
dentro da geografia, biologia.

A interdisciplinaridade traz à luz formas diferentes de se chegar ao


conhecimento, uma delas seria pela análise da ação, no caso do professor, de
sua ação no processo educativo. Por isso, exige do professor, uma
capacidade de memória e análise profunda para que este acabe por encontrar
sua estética e sua ética singular (RAMIREZ,2014, p. 05 apud FAZENDA,
2005, p. 118).

Para que a interdisciplinaridade aconteça de forma constante na escola tem que haver
uma concordância entre professor, instituição e aluno. Pois ainda existe aquela escola de
ensino médio e professor que se apegam totalmente ao método de ensino de LE gramática
1483

tradução, por exemplo. Segundo


Página

para trazer a interdisciplinaridade da retórica à verdadeira ação pedagógica


no campo da educação básica é necessário, antes de tudo, que a escola seja

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interdisciplinar, em todas as suas dimensões; e que assim sendo, o professor
se permita ser interdisciplinar, tenha o espírito interdisciplinar e seja
autônomo nessa decisão. A interdisciplinaridade não depende apenas de boa
vontade, de intenções e propostas externas, mas das condições científicas,
sociais e institucionais (FORTUNATO, 2013, p. 14).

Existem sempre maneiras diferentes de planejar uma aula, a interdisciplinaridade


ajuda a trabalhar com temáticas atuais, com isso possibilita uma melhor aprendizagem dentro
da sala de aula, especialmente dentro do ensino de uma língua estrangeira como o Espanhol,
em que os alunos acham uma disciplina fácil e geralmente as aulas são ministradas dentro do
modo gramática tradução. O ensino da língua é empobrecido, restringindo-se ao formal.
(FAZENDA, 2008, p. 91 apud FAZENDA, 2003, p. 60).

3 Aspectos metodológicos e análise da interdisciplinaridade presente no livro didático


Enlaces

Os professores de língua estrangeira, especialmente o da língua espanhola do ensino


médio da rede pública, enfrentam algumas dificuldades dentro da sala de aula na hora de
ensinar os conteúdos. O tempo da aula é de apenas 50 minutos, turmas com um alto número
de alunos e apenas o livro didático como material de ensino. Isso faz com que cada aula seja
um desafio imenso. Ensinar uma segunda língua nessas condições não é tarefa fácil. Como diz
Fazenda (2008), podemos considerar a interdisciplinaridade uma categoria de ação, pois leva
em conta a dinâmica real da sala de aula, com todos os seus implicadores.
O professor tem que se esforçar bastante para poder transmitir o conteúdo para o aluno
de uma forma que o mesmo seja absorvido ao máximo.
Por tanto, nós Graduandas do Curso de Licenciatura de Língua Espanhola da
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte e alunas bolsista do Programa Institucional
de Bolsa de Iniciação à Docência- PIBID resolvemos analisar a ferramenta de trabalho que
está sempre presente no dia a dia dos professores e alunos, o livro didático. Para nossa
análise, avaliamos o livro ENLACES 3, que é usado no 3° ano do ensino médio da rede
pública. Será descrito a maneira em que a interdisciplinaridade está presente no livro e as
abordagens metodológicas usadas na hora de ministrar o conteúdo na sala de aula.
1484

O livro didático ENLACES do 3° ano do ensino médio público é composto por 8


unidades, dentro delas podemos identificar a presença da interdisciplinaridade. O conteúdo é
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baseado na gramática da Língua Espanhola e dentro desse conteúdo podemos identificar
várias outras disciplinas.
Na unidade 3 do livro, o assunto gramatical tratado é El pretérito pluscuamperfecto,
incluído está também o tema dos BRICS e MERCOSUR, que seria um assunto da matéria
Geografia. Para poder ensinar a gramática da língua espanhola dentro desse contexto foi
preciso a preparação de uma aula especial para que além de os alunos compreendessem a
gramática da LE, também fosse compreendido o assunto de Los BRICS que se encaixa na
disciplina Geografia. Na classe foi abordado o conhecimento prévio dos alunos sobre Los
BRICS. Depois de avaliar os alunos vimos que eles não sabiam do que se tratava então o
assunto foi explicado de modo comunicativo na língua espanhola e depois foi mostrado um
slide com outras explicações. Em seguida, dentro do tema MERCOSUR, foi abordado a
gramática do pluscuamperfecto com explicação através do método de ensino comunicativo.
Somente após toda a explicação dos assuntos foram feitas algumas atividades com os alunos.
Já na unidade 4 do livro ENLACES, constatamos a presença da disciplina Biologia. O
assunto abordado na gramática era voz passiva. Dentro da Biologia estavam textos sobre
transplantes de órgãos sintéticos, célula mãe que pode tratar pessoas com leucemia. Neste
caso, o conteúdo foi transmitido apenas por meio de uma aula com enfoque comunicativo e
em seguida foram feitas as atividades presentes no livro didático.
A interdisciplinaridade tem uma importância enorme na hora de transmitir os
conteúdos que estão presentes no livro didático do ensino da língua espanhola, pois além de o
aluno aprender a gramática da língua, aprende sobre inúmeros assuntos que são de suma
importância para aprendizagem e que sem sombra de dúvidas vão ajudar o aluno nas outras
disciplinas em que são aplicados.

Eliminar as barreiras entre as disciplinas é um gesto de ousadia, uma


tentativa de romper com um ensino transmissivo e morto, distante dos olhos
das crianças e dos adolescentes que correm pelos corredores das escolas. Nas
diferentes disciplinas há sempre mais de uma possibilidade metodológica de
organização das aulas (FAZENDA, 2008, p. 87).

Para que se tenha uma atenção maior dos alunos, é importante sempre usar uma
1485

metodologia que seja atrativa e que faça surgir um maior interesse do assunto abordado em
sala de aula. Sendo assim, a interdisciplinaridade se torna uma grande aliada do professor na
Página

hora de transmitir o conteúdo para o aluno.

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Conclusão

A interdisciplinaridade no âmbito escolar é fundamental para a aprendizagem do aluno


tanto no meio escolar como no social. Ao trazer essa abordagem interdisciplinar na área do
ensino de línguas foi possível observar que o aluno além de ter contato com outra(s) língua(s),
outra(s) cultura(s), aprende de maneira interativa não só o conteúdo gramatical da disciplina,
mas também conhecimentos que envolvem outras áreas.
O trabalho interdisciplinar no ensino de Línguas Estrangeiras é fundamental na
aprendizagem do aluno. Um meio que pode despertar interesse naqueles que muitas vezes
veem a disciplina sem nenhum atrativo importante ou até mesmo sem nenhum fundamento. A
prática interdisciplinar envolvendo disciplina do currículo escolar pode sim oferecer ao aluno
várias formas de aprender sem estar preso apenas ao ensino de gramática.
Desta forma, podemos concluir que a prática interdisciplinar quando bem elaborada e
pensada pelo professor e a escola, é uma grande aliada no ensino de Línguas Estrangeiras.
Contudo, essa prática interdisciplinar tem que vir de ambas as partes, pois o interesse de
melhorar o ensino de LE é um objetivo a ser alcançado por todos do ambiente escolar, sem o
devido interesse será bem mais difícil respostas satisfatórias no ensino-aprendizagem dos
alunos.

Referências

BRASIL. Ministério da Educação, Secretaria de Educação Média e Tecnologia. Parâmetros


Curriculares Nacionais: códigos e suas tecnologias. Língua Estrangeira. Brasília: MEC,
2000.

FAZENDA, Ivani Catarina Arantes. Dicionário em construção: Interdisciplinaridade. 2. ed.


- São Paulo: Cortez, 2002.

FAZENDA, Ivani Catarina Arantes. O que é interdisciplinaridade? São Paulo: Cortez,


2008.

PAVIANI, Jayme, Interdisciplinaridade: conceitos e distinções. 2. ed. rev. -Caxias do Sul,


RS: Educs, 2008.
1486

OSMAN, Soraia, Et al. Enlaces: español para jóvenes brasileños. 3. ed. Cotia, SP:
Macmillan, 2013.
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FORTUNATO, Raquel. Et. al. Interdisciplinaridade nas escolas de educação básica: da
retórica à efetiva ação pedagógica. 2003. Disponível em:
<https://www.ideau.com.br/getulio/restrito/upload/revistasartigos/28_1.pdf> Acesso em:
10.08.2017.

FORTES, Clarissa Corrêa. Interdisciplinaridade: origem, conceito e valor. 2012. Disponível


em: < http://www.pos.ajes.edu.br/arquivos/referencial_20120517101727.pdf> Acesso em:
15.08.2017.

TEMP, Haury. DELEVATI, Anderson. DELEVATI, Morilo Aquino. A


interdisciplinaridade nos livros didáticos. 2015.
Disponível em: <http://sistemas.iffarroupilha.edu.br/anais-mobrec-
2015/pages/trabalhos/trabalhos/Haury%20Temp.pdf> Acesso em: 15 ago. 2017

1487
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PÔSTER

A ABORDAGEM DA VARIAÇÃO LINGUÍSTICA NA PRÁTICA DE ENSINO DE


LÍNGUA PORTUGUESA237

Gerizilda Dantas de Souza (UERN)


Maria Érica Ismael Silva (UERN)

Introdução

A atuação do professor dentro da sala de aula é estabelecer uma prática pedagógica


onde o aluno sinta-se mais preparado para desenvolver sua fala. Mas será que o uso
diferenciado da língua pelos vários tipos de alunos, fator que ocorre justamente pelo fato de
ser um sistema herogêneo, sujeito a variações, recebe um tratamento adequado em uma escola
pública ou privada? Será que os professores são capacitados suficientemente para
compreender essas variações?
Sabemos que a realidade em uma escola pública é diferente da realidade em uma
escola privada diante da enorme quantidade de alunos e da qualidade de ensino, e em cada
uma existe diferenciados perfis de alunos, com seus costumes e particularidades na fala, fator
esse que pode ser motivado pela idade, classe social, grupo de amigos e familiares, seja qual
for o fator, as escolas não podem negar que existe uma variação no que diz respeito à língua, e
como cada escola/professor trata isso pode ser mais um determinante de diferença entre elas.
O ensino da língua na escola é voltado para a aprendizagem da escrita e da leitura
seguindo regras presentes na gramática e nos livros didáticos, muitas vezes os alunos passam
todos os anos vendo praticamente a mesma coisa, de forma sistemática e cheia de regras,
alguns professores não buscam uma metodologia que possa instigar seus alunos a pesquisar e
entender a língua de uma maneira mais ampla do que apenas aprender ou até mesmo
simplesmente decorar regras.
Com a realização dessa pesquisa queremos entender como a prática do docente irá
afetar a vida do seu aluno, se de forma negativa ou positiva, se as regras da gramática devem
realmente ser apenas as que devem ser seguidas e aceitas na metodologia de ensino, pois
sabemos que mesmo que as regras gramaticais sejam aplicadas na sala de aula, as variações
1488

não irão desaparecer, pois a língua está sempre se modificando ao passo que a sociedade
Página

237
Trabalho prático apresentado à disciplina Sociolinguística, sob a orientação da professora Dra. Rosângela
Alves dos Santos Bernardino, como complementação da carga-horária.

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evolui e as relações entre seus falantes se modificam. Assim, o objetivo desse trabalho é
estudar sobre o tratamento direcionado à variação linguística por professores de língua
portuguesa em uma escola pública e em uma escola privada.
Visando obter mais informações sobre como a variação linguística e a gramática são
trabalhadas em sala de aula, fizemos uma entrevista com professores das cidades de São
Miguel, Pau dos Ferros e Luiz Gomes, do estado do Rio Grande do Norte, dando um total de
3 professores (2 de escola pública e 1 de escola privada) com questões referentes aos métodos
que eles utilizam para trabalhar o ensino da língua portuguesa e suas variedades, buscando
mostrar as diferenças e/ou semelhanças que ocorrem entre a metodologia do educando da rede
pública e o da rede privada de ensino. Para realização do trabalho, analisamos os dados
coletados nas entrevistas com os professores para sabermos como ambos lidam com as
diferenças linguísticas de seus alunos, através das respostas obtidas durante a entrevista sobre
esses fatores que iremos obter uma conclusão sobre como a gramática e as variações
linguísticas são trabalhadas. Não foi pedido que os professores se identificassem, por
questões de privacidade e para deixá-los mais à vontade para responder as questões, portanto,
a identificação dos professores das escolas públicas estarão da seguinte maneira: PP1, PP2; já
o professor da escola privada estará identificado como: Pp1.
Para fundamentação teórica utilizamos os estudos de Bagno (2007), Camacho (2001),
Coelho (2010), Dionisio (2005), os Parâmetros Curriculares Nacionais (1998), Wall (2009). O
trabalho está dividido nas seguintes seções: primeiro, fazemos algumas discussões sobre os
termos da sociolinguística variacionista; segundo, abordamos sobre o ensino de língua
materna; terceiro, analisamos o tratamento da língua portuguesa e suas variações feito por
professores de rede pública e básica de ensino; por fim, a síntese das análises e as conclusões
que obtivemos.

2 Síntese Teórica

2.1 Sociolinguística Variacionista: conceitos e princípios teóricos


1489

Apresentada na década de 60 por William Labov, os princípios da sociolinguística


vieram criando espaço entre os linguistas que buscavam defender as variações que a língua
sofria no decorrer do tempo e no seu uso atual. Os pressupostos teóricos da sociolinguística
Página

vieram mostrar que a língua é variável, pois seus falantes não se expressam apenas de uma

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maneira, em cada contexto em que está inserido, o falante de uma língua varia sua fala.
Labov, em meio aos seus estudos, nos apresenta que toda variação da língua ocorre no meio
social, por ser na sociedade que encontramos as diferentes maneiras do ser humano utilizar a
linguagem, também por ser no meio social que encontramos os mais diferenciados perfis,
como classe social, faixa etária, regionalismo, escolaridades, entre outros fatores que
determinam o tipo de cada variação. Assim, “não existe uma comunidade de fala homogênea,
nem um falante-ouvinte ideal. Pelo contrário, a existência de variação e de estruturas
heterogêneas nas comunidades de fala é um fato comprovado.” (LABOV, 1972, apud
COELHO, 2010, p. 22).
A heterogeneidade da língua defendida por Labov vai contra as ideias de linguistas que
antecederam ele, como Saussure e Chomsky, que viam a língua como homogênea. Já a
sociolinguística apresenta a língua e suas variantes sem ideias preconceituosas, tendo por
objetivos estudar a língua em seu uso real, no dia-a-dia de cada falante, mostrando as
situações em que ela é modificada e por que isso ocorre, assim os sociolinguistas conseguem
entender a multabilidade de cada variação, podendo dizer quais os fatores que contribuíram
para ela ocorrer.
Camacho (2010) diz que a língua é de natureza variável (tendo duas ou mais formas de
expressão), natureza contínua (algumas variantes podendo assumir valores negativos) e de
natureza quantitativa (considerando a relevância das variantes que constituem uma variável de
acordo com a frequência percentual de cada uma em relação aos diferentes fatores que as
condicionam). Assim, é impossível ignorar a variação, já que a língua é heterogênea, havendo
mais de uma forma de falar, assim sempre evoluindo para que possa existir comunicação
entre os falantes. Ao ignorar a variação da língua, fica apenas o conceito dela ser homogênea
e invariável, incapaz de mudar, prendendo os falantes a conceitos da gramática. Bagno (2007)
reforça os postulados da sociolinguística ao falar que:

O objetivo principal da sociolinguística, como disciplina científica, é


precisamente relacionar a heterogeneidade linguística com a
heterogeneidade social. [...] Para o sociolinguista, é impossível estudar a
língua sem estudar, ao mesmo tempo, a sociedade em que essa língua é
falada, [...] não dá para estudar a sociedade sem levar em conta as relações
1490

que os indivíduos e os grupos estabelecem entre si por meio da linguagem.


(BAGNO, 2007, p. 38).
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Os estudos da Sociolinguística, ao assumir o direito de heterogeneidade inerente à
linguagem, vieram eliminar os preconceitos, ao afirmar que toda língua e toda variedade da
língua são eficientes e que não impõe limitações cognitivas na percepção e na produção de
enunciados. Portando, no ensino, é importante o professor ter noção de que assim como as
normas padrão da língua são necessárias, também é necessário respeitar e trabalhar as
variações linguísticas de seus alunos, para que assim não se tenha apenas um ensino
sistemático centrado na norma.

2.2 Variação linguística e ensino de língua materna

A língua pode mudar em toda a sua história no decorrer do tempo, esse fato ocorre
porque seus falantes mudam a cada época, e com isso vai surgindo a necessidade dos falantes
de adquarem a língua às necessidades interacionais, as variações linguísticas podem ocorrer
em variados aspectos, como a variação lexical que se relaciona com os diferentes modos que
o vocábulo muda como, por exemplo, palavras que antes faziam parte da língua, hoje não
fazem mais, porque foram modificadas ou trocadas por novas palavras, também quando em
cada região um mesmo objeto tem várias determinações, por exemplo “macaxeira”, “aipim”,
mesmo alimento, mas que dependendo da região ganha um novo nome. Citemos, também, a
variação fonológica, por exemplo, em alguns casos a troca e/ou a falta de fonemas, como a
palavra “vamos” falada em alguns casos como [vãmu] e em outros como [vãmus]; a variação
regional, definida por cada lugar onde cada falante mora, como os falantes do Rio de Janeiro
falam de maneira diferente dos falantes da Bahia, falantes do Brasil e da Itália, e assim por
diante. Temos, ainda, as variações sociais que envolvem a classe social, a escolaridade, a
faixa etária e o sexo de cada falante, pois cada um que se encaixa em uma ou mais dessas
categorias tem seu modo de conceber a língua. Portanto, hà variados modos de ocorrer a
variedade linguística, tendo fatores internos e externos à língua, dependendo de cada falante e
seu domínio sobre a norma padrão e a situação em que está ao se comunicar com outra
pessoa, como é apontado por Camacho (2010).
A variação linguística ainda é um assunto sem muito destaque nas escolas, apesar dos
1491

estudos apresentados por Labov estarem presentes há algum tempo nas matrizes curriculares
dos professores, na prática as teorias não são trabalhadas, ainda existe certo preconceito nos
métodos de ensino quando se trata da variação da língua, isso porque o ensino de língua nas
Página

escolas ainda é seguido de acordo com as regras apresentadas no livro didático, ou seja, as

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regras da língua padrão, língua essa que é vista como a única correta na sociedade e que todos
os falantes devem dominar. Em muitos casos

A Língua Portuguesa é vista como um sistema fechado, onde mudanças não


são “permitidas”, há uma fragmentação no ensino onde as aulas de gramática
não se relacionam com as aulas de leitura e produção textual. A metodologia
utilizada tem caráter transmissivo dedutivo, ou seja, os conteúdos são apenas
repassados, transmitidos aos alunos, as atividades propostas sempre seguem
um modelo estipulado, como por exemplo, siga o modelo. [...]. Os conteúdos
gramaticais são abordados isoladamente, como por exemplo, trabalha-se a
gramática partindo de textos, entretanto dos mesmos são retirados e
trabalhados apenas frases e palavras isoladas, desvinculadas do sentido dos
textos (WAAL, 2009, p. 984).

Seguindo o pensamento de Wall (2009), podemos afirmar que os alunos, nos anos
iniciais na escola, aprendem a partir do livro didático, a diferenciar as palavras de acordo com
a classe gramatical a que pertencem, por exemplo, se a palavra velho é um substantivo ou um
adjetivo, qual seria o total de sílabas que ela possui, qual sílaba é a mais forte e assim vai
seguindo, até chegar em um ponto aonde é pedido aos alunos que leiam textos e
posteriormente identifiquem a que gênero textual eles pertencem, que digam sobre o que esses
textos tratam (o assunto), seguindo as normas de compreenção e interpretação textual. E
assim, vai ficando para os alunos poucas páginas desses livros para levarem as variedades
linguísticas existentes na língua, as vezes apenas algumas páginas de algum capítulo com o
objetivo de fazer o aluno refletir sobre determinado tema, como por exemplo, as diferenças
regionais ou sociais, são apresentadas aos alunos textos em que eles devem identificar as
diferenças no modo de falar de um falante X e um falante Y, depois, são sugeridas atividades
para que eles escrevam na norma padrão as falas que apresentam desvios das regras
gramaticais. Desse modo, não é levado aos alunos conceitos que os façam refletir sobre a
variação, para que eles entendam como elas ocorrem e porque ocorrem, apenas é sugerido que
eles devem corrigir esses “erros” presentes nos textos aonde são apresentadas variações da
língua e que fogem da língua padrão.

2.3 A língua portuguesa e suas variações trabalhadas por professores de rede pública e básica
1492

de ensino

O ensino de língua portuguesa nas escolas, como já mencionado acima, ainda é levado
Página

por base nos livros didáticos e as regras para se construir a língua padrão, mas há algum

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tempo surgiram leis que tentam levar a interação e o respeito à variação para as salas de aula,
essas leis como a LDB e os PCN’s visam o ensino da língua com base nas regras normativas,
mas que essas regras não sejam predominantes no plano de aula. Assim, poderia ser
trabalhado em sala de aula a língua padrão e as variedades que existem na língua em todo seu
contexto social, para que os alunos pudessem analisar e aprender todas as formas da
comunicação, por isso

A acolhida democrática da escola às variações linguísticas toma como ponto


de partida os conhecimentos linguísticos dos alunos, para promover
situações que os incentivem a falar, ou seja, fazer uso da variedade de
linguagem que eles empregam em suas relações sociais, mostrando que as
diferenças de registro não constituem, científica e legalmente, objeto de
classificação e que é importante a adequação do registro nas diferentes
instâncias discursivas. (PARANÁ, 2008, p. 55 apud FREITAS, 2010 p.
2118.).

Uma das realidades que podemos constatar sobre o professor de escola pública e
privada é que o primeiro tem maior contato com essas variações do que os professores de
escolas privadas, pelo fato da diferença de alunos que frequentam essas escolas. O ensino
público recebe uma ampla variedade de alunos de várias classes e lugares, tendo alunos que
em muitas situações não convivem com a norma padrão, enquanto nas escolas privadas, os
alunos geralmente desde cedo convivem com pessoas que trabalham e usam a língua em sua
norma culta. Mas apesar das diferenças de alunos de uma escola e outra, a variedade
linguística ainda existe, mas vai depender de cada professor a maneira de trabalhar elas, o
professor de escola pública pode preferir trabalhar apenas o livro didático, enquanto o
professor de escola privada trabalha as regras da gramática e norma padrão, mas incentivando
os alunos a pesquisarem sobre as diferentes variedades na língua e vice versa. Os PCN’s
sugerem que alguns métodos que os professores podem usar para trabalhar as variedades
linguísticas nas aulas de língua materna, entre eles estão

Transcrição de textos orais, gravados em vídeo ou cassete, para permitir


identificação dos recursos lingüísticos próprios da fala; edição de textos
orais para apresentação, em gênero da modalidade escrita, para permitir que
1493

o aluno possa perceber algumas das diferenças entre a fala e a escrita; análise
da força expressiva da linguagem popular na comunicação cotidiana, na
mídia e nas artes (BRASIL, 1998, p. 82-83).
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Assim, a forma como cada professor escolhe trabalhar a língua e suas variedades irá
desenvolver ou frear os conhecimentos que os alunos podem desenvolver sobre a linguagem
que lhe pertence e ao meio social a sua volta.

3 Análise e discussão dos dados

3.1 A gramática e a língua do ponto de vista dos professores

Antes de abordamos as compreensões dos professores sobre língua e gramática, é


necessário levar em consideração os pensamentos dos dois principiais estudiosos da área da
linguística que vêem a língua como homogênea e o outro como heterogênea. O primeiro a
apresentar estudos sobre a língua enfatizando sua homogeneidade foi o linguista Ferdinand
Saussure (apud COELHO, 2010, p. 13), ao apresentar a língua como “tomada em si mesma,
separada de fatores externos, vista como uma estrutura autônoma, valendo pelas relações de
natureza essencialmente linguística que se estabelecem entre seus elementos”. Assim, para
Saussure, a língua faz parte da convivência de um falante com o outro, com suas
características internas, não podendo ser modificada, apenas servindo como comunicação.
Para Labov, a língua e a sociedade são indispensáveis, uma vez que toda a interação que
ocorre entre os falantes ocorre no meio social, e todas as variedades apresentas na língua
ocorrem pela necessidade de adequação do falante ao momento de diálogo em que está
envolvido, modificando através de fatores internos e externos da língua.
Sabemos que todo falante de uma língua possui em si sua própria gramática, o
professor, ao ensinar a língua, está ensinando na verdade a gramática normativa que é exigida
nas normas de ensino das instituições escolares. Dessa forma, os professores ainda durante
sua formação acadêmica são rodeados de conceitos sobre o ensino da língua, sobre o que é
essa língua e como ela se constitui, são vistas várias concepções acerca das gramáticas que
formam essa língua e como elas devem ser levadas até aos alunos. Assim, as primeiras
questões (1-3) abordam as ideias que os professores tem sobre língua e gramática, dessa
forma, podemos ter um ponto de partida para entender quais os conceitos que esses
1494

professores abordam em sua própria concepção, podemos dizer se a língua e a gramática


vistas por esses professores fazem parte de teorias sobre a língua heterogênea ou como uma
língua homogênea, seguindo os pressupostos da gramática normativa ou da sociolinguística,
Página

dito isto, eis as respostas obtidas.

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Entende-se por língua, o conjunto de elementos e de regras usados na linguagem falada ou escrita,
objetivando estabelecer a comunicação entre os indivíduos de uma determinada comunidade,
enquanto que a gramática tem como principal função regulamentar essa linguagem ou comunicação,
e estabelecer padrões de escrita e de fala dentro de um contexto de unidades e estruturas que
permitem o bom uso da língua. Portanto a gramática apresenta as regras, mas quem movimenta e faz
da língua um sistema vivo e mutável somos nós, agentes da comunicação (PP1 – São Miguel)

Compreendo a língua com o código mais completo e eficiente para a realização da comunicação e
registro da nossa memória. E gramática como sendo a organização da língua para estudo cientifico.
(Pp1 – Luis Gomes)

A partir das respostas obtidas percebemos que os professores tanto da rede pública
como privada tem conceitos de gramática e língua como parte de um conjunto de elementos
que devem ser trabalhados juntos, respitando as particularidades de cada uma. Podemos supor
que o Pp1 apresenta sua resposta de acordo com os conceitos apresentados na maioria dos
estudos sobre língua e gramática, em que a segunda é vista como o conjunto de regras da
primeria aonde estão presentes os elementos “corretos” da língua, sendo ela como um
conjunto de elementos e de regras com objetivo de comunicação entre os indivíduos de uma
determinada língua, por exemplo, a portuguesa. As respostas do PP1 mostra-se em sintonia
com os potulados da Sociolinguística, ao defender língua como ato social, com fatores
externos que justificam as variedades linguísticas presentes nela, e a gramática como a
responsável para estudar os elementos que estão presentes nessa língua, porém ela não
consegue atingir toda a magnitude da língua, pois, cada individuo apresenta sua própria
gramática.

3.2 A aborgagem da variação linguística no ensino

Como já mencionado nesse trabalho, a variação da língua é um fator que deve ser
levado às escolas, mas infelizmente algumas regras escolares ou até mesmo algumas
metodologias aplicadas pelo professor de língua, exclui a variação (praticamente na sua
totalidade) do ensino. O que ainda predomina é o ensino das regras gramaticais. Essa pouca
1495

relevância que as variações tem no ensino ainda ocorrem, apesar de desde 1996, terem
surgido os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs).
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A ideia dos PCNs é justamente ajudar os professores e os alunos a trabalharem com as
diversidades em sala de aula, no ensino de língua portuguesa, sugerem que os professores
trabalhem a gramática, mas sem deixar de mostrar aos alunos as variedades que existem na
língua em diferentes contextos, afinal até mesmo a norma padrão varia, como Dionisio
(2005) cita em determinado ponto do seu texto “Variedades linguísticas: avanços e entraves”,
isso nos leva a refletir sobre as variações, pois se até mesmo as regras/os padrões variam,
então porque não ensinar isso aos alunos? Essa questão foi o que nos levou a questionar os
referidos professores do ensino publico e privado, o que a variação linguística significa no
meio do ensino. Sobre a implantação das variedades linguísticas (variedades desprestigiadas,
em alguns casos de classificação) no meio do ensino das regras gramaticais que são sugeridas
pelos PCNs e outros documentos e estudiosos, como Camacho (2001), Bagno (2007),
conseguimos perceber que os professores apesar de serem freados pelo sistema educacional
(que ainda resiste em alguns pontos a essa ideia de variedade, como se estivesse ensinando o
“errado” aos alunos), tentam levar aos alunos realidades da língua no seu dia-a-dia, até
mesmo desconsiderando essa ideia de variedade desprestigiada, pois qualquer variedade da
língua deve ser aceita, por ser ela um ato da sociedade e mutável, diante disso eis as opiniões
dos professores sobre esse ponto:

Acredito no equivoco do próprio termo variedades desprestigiadas, pois a própria língua padrão pode
ser considerada desprestigiada por algum falante ou comunidade linguística em determinada situação
comunicativa. O que acontece é apenas uma covenção de colocar uma outra variedade como
prestigiada. Entendo que não se deve utilizar essas variedades apenas a titulo de estudo de regras
gramaticais, mas em outros momentos que forem relevantes. Se considerarmos apenas esses instantes,
estamos retrocedendo ao engano de desconsiderar a hetoregeneidade que constitui a língua e os
diferentes falantes. (PP2 – Luiz Gomes).

Como podemos perceber, apesar de apresentar dificuldade de distinção entre variedade,


língua e norma, o PP2 acredita que a variação linguística é um fator que deve ser considerado
no ensino e na sociedade, falando sobre as variedades prestigiadas (norma padrão) é
considerada menos ou mais prestigiada de acordo com o próprio falante da língua, ao ser
questionado sobre a implantação dessas variações na suas aulas, ele demonstrou que apesar
1496

dos livros didáticos falarem das variações superficialmente e em atividades pedir para os
alunos corrigirem esses “erros” encontrados nos textos apresentados, ele levar outras
Página

atividades para seus alunos que permite que eles percebam “que não existe uma variedade

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mais importante ou prestigiada, certa ou errada” (PP2 – Luiz Gomes). Ele descreveu uma de
suas aula aonde é trabalhado a variedade linguística, como podemos ver no trecho a seguir

Duração: 05 h/a – 45 minutos cada


Aula divididas em dois dias
Total de alunos: 25
Ano: 6º

Descrição das aulas:


Iniciei a primeira aula levantando questionamentos a respeito do conhecimento prévio dos
alunos sobre variedades linguísticas, onde podemos encontrar essas variedades, preconceito
linguístico, etc. Em seguida, fiz a exposição em slides do conteúdo, mostrando as noções básicas de
linguagem padrão, não padrão, diferença entre fala e escrita. Na mesma apresentação, fiz, junto aos
alunos, a análise dos poemas Vívio na fala, de Oswald de Andrade e O poeta da Roça, de Patativa de
Assaré.
Após esse momento introdutório, dividi a turma em 5 grupos de 5 componentes. Cada grupo
recebeu o nome de uma região do Brasil. Com acesso a internet e um notebool, a equipe deveria
pesquisar sobre os diversos falares na região para a qual foram orientados. Além disso, poderiam
pesquisar sobre a origem desses falares e relacionar o lugar em que eles moram ou outros.
Por fim, cada equipe fez a socialização com ilustrações em cartazes e oralmente do que
pesquisou. Por último, fizemos os comentários gerais e a avaliação da aula, ressaltando o que
aprendemos e o que esclarecemos ao nosso entendimento sobre a língua e seu uso.
Obs.: Em uma aula posterior fizemos a mesma atividade, entretando, pesquisando sobre os
países que falam a língua portuguesa.

Aula sobre "Variações linguísticas" descrita pelo PP2.

O método adotado pelo professor ao tratar da variação durante a aula fez com que seu
aluno aprendesse sobre a sua língua materna muito mais do que apenas classificar as palavras
em verbos ou adjetivos. Esse método de levar o aluno a pesquisar sobre as variedades
linguísticas forma um aluno investigador, saindo do padrão de apenas mais um a repetir
regras e mais regras gramaticais. O professor permitiu que seus alunos explorassem as
variedades em vários lugares e várias realidades, isso é o que os PCNs sugerem, que a língua
seja trabalhada para que o aluno reflita e aprenda sobre ela, sem criar concepções
preconceituosas sobre as variedades.
O segundo professor questionado do mesmo modo que o PP2 nos mostrou que as
formas “desprestigiadas” devem sim ser consideradas “a fim de estabelecer a consciência de
que existem as várias formas de linguagem, compreendê-las e reduzir o preconceito” (Pp1 –
1497

Luiz Gomes). Essa ideia de Pp1 está bem no foco do que Dionisio (2005, p.75) relata ao citar
os PCN (1998:31) em seu texto ao falar que “não basta somente uma mudança de atitudes; a
escola precisa cuidar para que não se reproduza em seu espaço”. Assim, é fundamental que os
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ISBN: 978-85-7621-221-8
professores e a escola trabalhem a variação durante as aulas de língua materna, pois irá
impedir que os preconceitos sobre essa diferença de dialetos cresça. O Pp1 na sua
metodologia de ensino optou por levar vídeos aonde se apresentem formas inusitadas dos
falantes se expressarem, poesias de Patativa do Assaré (em áudios e leituras feitas pelos
próprios alunos), e pedaços da novela “Êta mundo bom”, em que ele pediu aos alunos para se
inspirarem na história do personagem principal que sofre muito preconceito linguístico, na
atividade proposta por ela, os alunos deveriam “criar uma história sobre alguém que saiu da
sua cidade natal em busca da felicidade; e nessa história, o personagem teria de sofrer
preconceito pelo jeito de falar. Ao final da narrativa, deveria constar um ensinamento” (Pp1 –
Luiz Gomes).
São atividades como essa que nos fazem entender a variedade da língua e a gramática
ao mesmo tempo, pois ao estudar esses “desvios” da norma padrão, o aluno aprende que a
linguagem varia de acordo com a necessidade do falante, da sua escolaridade, da sua região,
entre outros fatores, ele pode comparar até certo modo as variadas formas de se expressar, e
as diferenças entre as formas apresentadas na gramática e as formas que são vista no
cotidiano.
Podemos ver que os professores apesar de se depararem com materiais didáticos
(principalmente o livro) que se limitam a conceitos sintéticos a respeito da variação
linguística e de como os professores devem trabalhar ela (muitas vezes apenas reescrevendo
os “erros” para a norma ”correta” da língua), os professores tentam fugir dessa metodologia e
implantam novidades que vão formar seus alunos como pesquisadores/investigadores da
língua e não apenas um amontado de alunos que decoram normas gramaticais.

Conclusões

Para concluir nossa pesquisa, queremos ressaltar que os termos de Labov vieram
contribuir muito mais do que apenas para a sociedade e os linguistas da sua época, suas
teorias contribuíram para uma melhor educação, pois abriu novas possiblidades para o
professor trabalhar a língua, saindo daquela forma monótona do livro didático e da gramática.
1498

A postura tanto dos professores de ensino publico (PP1; PP2) como o professor de ensino
privado (Pp1), procuram desenvolver os meios e sugestões dos PCNs e da sociolinguística de
Labov, pois desenvolvem a variação e incentivam os seus alunos a compreenderem e
Página

analisarem a linguagem em variados contextos.

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Concluimos, assim, nosso trabalho ressaltando a importância que a variação linguística
tem para o ensino de língua materna, e principalmente o papel do professor como mediador
dos conhecimentos que irão trabalhar a língua e suas variedades. Labov foi o iniciante de um
rico trabalho sobre a língua, mas os professores são os responsáveis pelo crescimento dos
pressupostos apresentados por ele. Por esse motivo, podemos afirmar que os professores
entrevistados estão no caminho de formar alunos pesquisadores da língua, e não ditadores
dela.

Referências

BAGNO, M. Nada na língua é por acaso: por uma pedagogia da variação linguística. São
Paulo: Parábola Editorial, 2007.

BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais:


terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: língua portuguesa. Brasília: MEC/SEF, 1998.

CAMACHO, R. G. Sociolinguística – parte II. In: MUSSALLIM, F.; BENTES, A. C.


Introdução à linguística: domínios e fronteiras. v. 1 São Paulo: Cortez, 2001, p. 49-75.

COELHO, I. L. [et al.]. Sociolinguística. Florianópolis: LLV/CCE/UFSC 2010.172p.

DIONÍSIO, A. P. Variedades linguísticas: avanços e entraves. In: DIONÍSIO, A. P.;


BEZERRA, M. A. (Orgs.). O livro didático de Português: múltiplos olhares. 3. ed. Rio de
Janeiro: Lucerna, 2005. p. 75-88.

PARANÁ, Secretaria de Educação do Estado do. Departamento de Educação Básica.


Diretrizes Curriculares da Educação Básica: língua portuguesa. Paraná, 2008. Disponivel
em:
<http://www.uel.br/eventos/sepech/sumarios/temas/ha_variacao_linguistica_nas_escolas_publ
icas.pdf>. Acesso em: 29 abr. 2016.

WAAL, Daiane Van Der-UNICENTRO. Gramática e o ensino da língua portuguesa.


Disponivel em: <http://www.pucpr.br/eventos/educere/educere2009/anais/pdf/2003_1006.pdf>.
Acesso: 29 abr. 2016.
1499
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PÔSTER

A RELAÇÃO LEITURA E LITERATURA NA SALA DE AULA: EXPERIÊNCIAS


DO ESTÁGIO SUPERVISIONADO II DE LÍNGUA PORTUGUESA

Gerizilda Dantas de Souza (UERN)


Iara Morais Campelo (UERN)
Sueilton Junior Braz de Lima (UERN)

1 Introdução

O presente trabalho vem mostrar as experiências e análises feitas durante o processo


de estágio nas suas duas fases, a primeira de diagnóstico (30 h/a), realizada nos 2º ‘A’, ‘B’,
‘C’ e ‘D’, além de participar das reuniões de planejamento da escola, já a segunda fase sendo
a regência (25 h/a), realizada no 2º ‘B’ e ‘D’, na Escola Estadual em Tempo Integral Dr. José
Fernandes de Melo, localizada na cidade de Pau dos Ferros/RN, do dia 09 de março de 2017
ao dia 12 de abril do referido ano, em turno integral.
Sabemos que o objetivo do estágio supervisionado II é o fortalecimento do aluno de
graduação com a profissão ao qual ele estar tendo seu aparato teórico, exercendo agora as
atividades de professor estagiário na preparação dos alunos da escola colaboradora para o
término dos estudos na rede de ensino médio e para posteriormente ter possível ingressão no
ensino superior. Dessa forma, o aluno estagiário submete-se as experiencias da docência,
aplicando os conhecimentos sobre texto, língua, gramática e literatura adquiridos durante o
curso de graduação.
Assim, durante esse trabalho iremos apresentar como foi a troca de experiência ao qual
nos submetemos, levando para a sala de aula os conhecimentos teóricos adquiridos durante a
formação acadêmica, tendo como objetivo abordar a importância da leitura e literatura no
Estágio Supervisionado II como forma de trabalhar com diferentes textos em sala de aula
ajudando os alunos na aquisição de um aparato de análise e interpretação vasto.
Nosso aparato teórico está voltado para Brasil (2006), Lois (2010), Marcuschi (2008),
Silva (2012) e Oliveira (2010). Em algumas seções abordaremos como é a prática de ensino
na escola de estágio, o trabalho com o Livro Didático de Língua Portuguesa (LDP), o trabalho
1500

com a literatura e os gêneros textuais e a relação professor e aluno para um bom desempenho
no ensino e aprendizagem, principalmente ao se tratar de aluno do ensino médio que está
Página

passando por toda a pressão de concluir essa fase de estudos e ingressar em uma universidade.

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2 Síntese Teórica

2.1 A mediação de textos do livro didático através do professor e sua relação com os alunos

A mediação do professor é de fundamental importância para o desenvolvimento de


algumas aquisições, como a interpretação textual, a escrita e reescrita, a capacidade de
assimilar e relacionar o conteúdo visto com a realidade que o indivíduo está inserido e a
capacidade oral de se expressar, assim a forma que o professor irá conduzir cada estratégia, é
de fundamental importância para a compreensão leitora e escrita.
O livro didático é uma importante ferramenta que subsidia o desenvolvimento e os
trabalhos realizados em sala pelo professor. É nele que está todo o conteúdo a ser trabalhado
em sala de aula, por isso o professor não tende a ficar preso apenas ao conteúdo do livro
didático, mas pode tê-lo como apoio e suporte onde o mesmo irá nortear outras pesquisas para
serem utilizadas como atividades extras.
Ainda existe certa resistência com o livro didático, mas tudo vai depender de como ele
será utilizado pelo professor em sala de aula, pois o mesmo ainda é a principal ferramenta de
conhecimento nas escolas públicas e particulares, sendo seu uso de fundamental importância
no âmbito escolar.
Assim,

O autor do livro didático compila e seleciona, segundo seus próprios


critérios, aquilo que deverá ser lido e estudado pelo estudante. [...] Através
da sua própria leitura critica, o professor deve separar aquilo que facilita o
trabalho daquilo que o limita.90 Caminhar com as perguntas do estudante e
perceber que é necessário ir aa outras fontes (livros, filmes, museus e todos
os espaços onde existam a marca do homem). Pesquisar. Percorrer trilhas
que os autores dos livros didáticos não fizeram (até porque eles não podem
dar conta de tudo). Concordar Discordar. Multiplicar ideias e, acima de
tudo, ampliar leituras (LOIS, 2010, p. 20).238

O livro didático não é um produto pronto acabado, o professor tem que ser flexível, e
mudar ou adequar quando achar conveniente, pois nem sempre o conteúdo programático irá
satisfazer a necessidade das turmas, se fazendo necessário sempre que possível de um
1501

complemento.
Página

238
LOIS, Lena. Teoria e prática de formação do leitor: leitura e literatura na sala de aula. Porto Alegre:
Artmed, 2010.

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Sabemos que o ensino de leitura nas escolas gira em torno dos livros que são
fornecidos para tal atividade, assim o professor deve conhecer o livro didático e analisar as
atividades e propostas de ensino que contêm nele, para conseguir desenvolver atividades que
irão ajudar os alunos na aquisição das atividades presentes nesse livro, pois,

O livro didático é um produto cultural dotado de alto grau de complexidade e


que não deve ser tomado unicamente em função do que contém sob o ponto
de vista normativo, uma vez que não só sua produção vincula-se a múltiplas
possibilidades de didatização do saber histórico, como também sua
utilização pode ensejar práticas de leitura muito diversas.
(MIRANDA;LUCA, 2004, p. 124 apud SILVA, J.R.)

Sendo assim, a maneira que o professor irá trabalhar com o livro didático para
aquisição da leitura, irá determinar a eficiência ou ineficiência desse livro, pois, muitas
informações são apresentadas a cada unidade do livro, mas muitas delas deixam lacunas a
serem preenchidas tanto pelos alunos, como também pelos professores, dessa forma o
professor poderá utilizar dessa deficiência dos livros para exercitar a capacidade de dedução e
conhecimentos prévio de seus alunos. Os textos apresentados podem ser usados como fontes
de pesquisa para outros textos, assim o aluno aumentará seu conhecimento de mundo e
acadêmico.
Como mediador da leitura, o professor deve conhecer bem os textos a serem
trabalhados, fazendo planejamento de como irá se encaixar em determinada situação em sala.
Selecionando no livro didático os textos e as atividades que podem formar seu aluno um leitor
ativo. Essa seleção irá ajudar tanto na formação do aluno, como também na formação do
professor e sua relação com o texto. Sobre isso a autora Lois (2010, p.76), que “cada vez que
o professor dialoga com o texto, buscando extrair dele apenas aquilo que lhe será útil durante
o ano, deixa de ser leitor e passa a ser o funcionário da educação e condena um pedaço do seu
prazer no trabalho”. Isso fortalece a importância que o professor tem na aquisição da leitura
dos seus alunos, o que ele irá levar para a sala de aula e a forma como ele irá trabalhar esse
texto, será determinante para formação eficaz do seu aluno.

2.2 A literatura e os gêneros textuais


1502

Sobre a importância dos gêneros, Marcuschi (2008, p. 161) ressalta que “os gêneros
Página

são atividades discursivas socialmente estabilizadas que se prestam aos mais variados tipos de

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controle social e até mesmo ao exercício de poder”. Trabalhar com diferentes textos em sala
de aula ajuda o aluno a conquistar um aparato de análise e interpretação muito maior,
principalmente em uma sociedade que o cobra o domínio dessa atividade de reconhecimento e
escrita de textos variados. O aluno de ensino médio necessita de uma atenção especial nesse
quesito, pois está em uma fase de formação estudantil em que é exigido que ele domine ou ao
menos conheça os principais gêneros usados em grandes exames para o ingresso em
instituições de ensino superior.
Associar os estudos voltados para os gêneros textuais com os da literatura é um
caminho que facilita ao aluno a leitura, a escrita e a interpretação de variados textos. É
importante, no entanto, ressaltar que o ensino de literatura vem sendo usado em alguns casos
como mais uma ajuda para conhecermos as regras normativas da língua portuguesa e a
história do nosso país, devido no livro didático ser apresentado o contexto literário
coincidente com a história do país.
Esse método não é eficaz se formos pensar que dessa forma, os textos são
apresentados apenas como introdução a conteúdos que já tem uma parte especifica do ensino
para si, como as regras gramaticais e a história, o texto literário fica com gosto de pronto e
finalizado, essa ótica pode ser modificada se o professor levar nossos meios para que o aluno
use os textos e os variados gêneros presente (prosa, poesia/poema, soneto, musicas) para
interpretação e reflexão acerca do contexto de escrita, o que o autor quis demonstrar com
aquele texto, quais aspectos podem servir para análises. Assim, é necessário o uso dos textos
literários e dos seus variados gêneros de forma mais didática, gerando assim um letramento
literário.
Pois,

só assim será possível experimentar a sensação de estranhamento que a


elaboração peculiar o texto literário, pelo uso incomum de linguagem,
consegue produzir no leitor, o qual, por sua vez, estimulado, contribui com
sua própria visão de mundo para a fruição estética. A experiência construída
a partir dessa troca de significados possibilita, pois, a ampliação de
horizontes, o questionamento do já dado, o encontro da sensibilidade, a
reflexão, enfim, um tipo de conhecimento diferente do cientifico, já que
objetivamente não pode ser medido (BRASIL, 2006, p. 55).
1503

O ensino da literatura e do gênero textual deve estar em foco nas escolas, o professor
é responsável pela formação dos seus alunos, a maneira como ele trabalhar essas áreas de
Página

fundamental importância formadora irá definir positiva ou negativamente os caminhos dos

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seus alunos na conclusão dos seus estudos em toda a vida escolar, principalmente no ensino
médio, onde realmente ele sofre mais cobranças.
3 Análise e discussão dos dados

3.1 Breve discussão acerca do diagnóstico e da regência

A fase de diagnóstico iniciou com planejamento pedagógico, onde foi observado as


reuniões e discussões realizadas com os professores, coordenadores e toda equipe da escola.
Nesse período foram observadas 20h/a, nas quais juntamente com a professora, foram
discutidos e planejados os assuntos que seriam trabalhados na fase de regência.
Posteriormente foram observadas 10h/a de Língua Portuguesa, nos dias 27 e 28 de março de
2017, nas turmas de 2º ano do Ensino Médio, no turno diurno.
Nas observações em sala de aula, foram notadas que algumas aulas estavam conforme
os conteúdos disponibilizados no livro didático, porém a professora sempre trazia atividades
complementares ao livro didático que eram organizadas e planejadas visando adequar-se às
necessidades dos alunos, outras atividades eram referentes à produção e interpretação textual,
utilizando-se de práticas mais dinâmicas, como a leitura compartilhada e em voz alta de
textos, incentivando assim a oralidade e a interação entre os alunos, aulas expositivas, fazendo
os alunos sentirem-se atraídos pela metodologia oferecida. Nas aulas sempre havia a abertura
para o discurso dos alunos, para que assim eles pudessem desenvolver suas competências
comunicativas nas diversas formas de linguagem verbal (oral e escrita), desde a produção até
o relato de textos produzidos.
A metodologia utilizada tanto nas turmas implicava em debater previamente os
conhecimentos que os alunos tinham sobre o determinado assunto daquela aula,
posteriormente exemplos dados pela própria professora, seguido de incentivos para que os
alunos elaborassem seus próprios exemplos, isso gerava um debate em toda a turma, pois
compreendiam o que era ensinado e conseguiam expressar isso na fala e na escrita durante a
resolução dos exercícios e elaboração de textos.
Esses foram alguns relatos das observações das primeiras aulas do ano letivo na
1504

escola, e com isso podemos conhecer a turma, tomar conhecimento da didática da professora,
e ainda saber desenvolver atividades que se moldem à turma, e metodologias que contribuam
para uma aprendizagem de maior qualidade, contando que iríamos começar na regência.
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Acabado a primeira fase do estágio, passamos para a sua segunda fase, a regência, que
foi iniciada do dia 03 de abril de 2017 ao dia 12 de abril 2017, em duas turmas do 2º ano. A
escolha das turmas foi feita a partir de discussões com a segunda dupla de estagiarias da
professora colaborada, que ficaram com as turma do 2º ‘A’ e ‘C’, enquanto ficamos com as
turmas ‘B’ e ‘D’, além de sugestões da professora Antônia Holanda, que queria que
ficássemos com duas turmas de mesmo ano, para assim trabalhar os conteúdos
concomitantemente uma com a outra, dessa forma conseguiríamos fazer nossos planos de aula
a partir dos conteúdos que ela já havia planejado para trabalhar durante o bimestre com seus
alunos, não comprometendo assim, seu planejamento para conteúdo do 1º bimestre feito em
concordância entre ela e a supervisão da escola.
Apesar de trabalharmos os conteúdos já planejados e separados pela professora
colaboradora, pudemos executa-los com nossa própria metodologia e sequência de
organização, trabalhando textos extras, vídeos como reforço de explicação de atividades aos
alunos. Durante a regência, trabalhamos o capitulo 1 “A estética romântica: idealização e
arrebatamento. Romantismo em Portugual”, e capitulo 2 “Romantismo no Brasil. Primeira
geração: literatura e nacionalidade, da unidade 1: “Romantismo”, do livro didático de Língua
Portuguesa, das autoras Maria Luiza M. Abaurre, Maria Bernadete M. Abaurre e Marcela
Pontara.

3.2 A literatura e os gêneros em sala de aula

Para realização da análise, escolhemos o trabalhar o trabalho com a literatura e os


gêneros como recurso de leitura e escrita, tendo o professor como principal mediador para que
isso ocorra. Sendo esse processo feito pelo professor com o apoio dos variados textos
existentes e o livro didático.
O processo de leitura e escrita vem andando de mãos dadas durante toda a formação
estudantil dos alunos, desde a identificação das primeiras palavras, como também a escrita
delas. No ensino médio, o professor como mediador de conhecimentos, se ver diante da busca
de táticas de melhoramento da prática de escrita e leitura dos seus alunos, pois em alguns
1505

casos, principalmente, na escola colaboradora descrita durante o desenvolvimento desse


relato, podemos perceber a dificuldade que os alunos possuíam ao executar as tarefas de
leitura, interpretação e escrita. Dessa forma, o educador submete-se a novos estudos de
Página

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sequências didáticas, de escrita e de leitura para ajudar os alunos a desenvolver os seus
próprios argumentos e conhecimentos dentro das produções textuais.
Um dos recursos mais marcantes é o livro didático, rico em literatura e gêneros que
ajudam o professor e o aluno a aprender e se desenvolver. O primeiro passo para uma boa
escrita é a leitura dos textos literários, assim o aluno poderá “saber se posicionar sobre aquilo
que se encontra escrito; é ter seus próprios pensamentos; é se envolver com a trama; é gostar
de conhecer muitos mundos” (Lois, 2010, p. 79). Assim, ao explorar as escolas literárias e os
gêneros textuais que fazem parte desse ciclo, o professor colabora para o desenvolvimento do
senso crítico dos seus alunos, facilitando para eles os processos de análises de variados textos.
Diante disso, o trabalho desenvolvido nas práticas de leitura e escrita devem ser
levadas em consideração como uma atividade estimulante e interativa, em que os alunos
explorem todos os conhecimentos dos textos apresentados, a estrutura do texto, regras
gramaticais, a história da escrita do mesmo, para que assim, eles desenvolvam capacidade
leitora e escrita diante de novos textos.
A literatura no livro didático deve ser usada como forte ferramenta, trabalhar um
mesmo poema, por exemplo, em questões de gramatica, de linguagem, de estrutura e de
escrita, ajuda o aluno a desmistificar que as áreas de língua portuguesa devem ser trabalhadas
separadamente. Mesclar textos canônicos com textos atuais, conhecidos pelos alunos, também
é uma boa ferramenta de conhecimento, esmiuçar os conhecimentos de mundo que eles
possuem, seus gostos particulares e levar para a sala de aula como método de ensino.
O professor deve estar preparado para o novo universo criado pelos alunos, é
necessário alfabetizar os já alfabetizados, mostrar a esses jovens a importância de ser um bom
leitor e escritor. Assim, “quanto mais profundamente o receptor se apropriar do texto e a ele
se entregar, mais rica será a experiência estética, isto é, quanto ais letrado literariamente o
leitor, mais crítico, autônomo e humanizado será.” (BRASIL, 2006, p. 60).
Isso foi o que a professora colaboradora de estágio e a nossa regência propôs aos
alunos. Levar o universo literário através do próprio universo já criado por eles, para assim
formar alunos críticos e analíticos.
1506

4 Considerações finais

Concluímos nosso trabalho ressaltando a importância do professor como mediador de


Página

conhecimentos, em que o mesmo deve procurar sempre estar atualizado e dentro dos

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universos dos seus alunos para posteriormente trazer eles para o universo de Língua
Portuguesa, suas gramaticas e suas literaturas. O estágio ajudou a nos conhecermos como
futuras professoras, observando e colocando em prática atividades que vão muito além do
apenas aprender teorias, mas vivê-las.
Podemos destacar ainda que de tudo visto durante o Estágio Supervisionado II, tanto
na fase de diagnóstico quanto na fase de regência, podemos constatar dois aspectos que
consideramos de extrema importância no ensino de todas as áreas educacionais. O primeiro
ponto refere-se ao uso da literatura e dos gêneros para o ensino e aprendizagem, como forma
de interação e aproximação dos alunos e do texto. O outro ponto é a relação do professor e
seu aluno, como forma de melhor aproveitamento das aulas e troca de conhecimentos.

Referências

ABAURRE, Maria Luiza M.; ABAURRE, Maria Bernadete M.; PONTARA, Marcela.
Português: contexto, interlocução e sentido. 2. ed. São Paulo: Moderna, 2013.

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Orientações Curriculares


para o Ensino Médio: Linguagens, códigos e suas tecnologias. Brasília; MEC, 2006.

LOIS, Lena. Teoria e prática da formção do leitor: leitura e literatura na sala de aula. Porto
Alegre: Artmed, 2010.

MARCUSCHI, Luiz Antônio. Produção de texto, análise de gêneros e compreensão. São


Paulo: Parábola Editorial, 2008.

OLIVEIRA, Luciano Amaral. O ensino pragmático da leitura. In.:______. Coisas que todo
professor de português precisa saber: a teoria na prática. São Paulo: Parábola Editorial,
2010. p. 59-108.

SILVA, Jeferson Rodrigo da. Professor, aluno e livro didático: análise das leituras como
práticas inventivas no cotidiano da sala de aula. 2012. Disponível em:
<http://www.uel.br/eventos/sepech/sumarios/temas/professor_aluno_e_livro_didatico.pdf>.
Acesso em: 12 maio 2017.
1507
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PÔSTER

PRÁTICA DOCENTE NA TURMA DE ENSINO COLETIVO DE INSTRUMENTOS


DE SOPRO DO PROJETO SOCIAL SESI ARTE DE MOSSORÓ (RN): UM RELATO
DE EXPERIÊNCIA

Gustavo Gomes Pereira239 (UERN)


Luiz Carlos de Lima Filho (UERN)
Renan Colombo Simões (UERN/UFRGS)

Introdução

O presente trabalho é fruto da atuação e reflexão da prática docente através do


componente curricular Estágio Supervisionado I, do curso de Licenciatura em Música da
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). Assim, estão aqui explícitos os
aspectos que subsidiaram minha prática docente, incluindo objetivos, relação teoria-prática,
detalhamento dos procedimentos teórico-metodológicos utilizados, descrição pormenorizada
do campo de estágio, como também as reflexões e considerações formuladas através dessa
atuação.
Diante disso, o objetivo geral do componente curricular Estágio Supervisionado I está
centrado em proporcionar uma visão ampla da atividade docente em contextos socioculturais
como igrejas, Organizações Não Governamentais (ONGs), associações comunitárias, projetos
e programas educacionais, de saúde, assistência social, extensão universitária, entre outros.
Nesse sentido, ambiciona-se contribuir para a construção de saberes docentes do aluno por
meio da relação dialética entre teoria e prática docente em múltiplos contextos de ensino e
aprendizagem musical no Terceiro Setor. Para isso, se faz necessário conhecer e praticar
aspectos essenciais para a Educação Musical em contextos informais de aprendizagem da
música, bem como desenvolver atividades de observação, planejamento e regência em
espaços pré-estabelecidos.
O componente curricular Estágio Supervisionado I compreende aspectos como
observação, planejamento, regência, participação nas rotinas acadêmicas e elaboração do
relatório final. Assim, a carga horária, de 105 horas, se divide em:
1508

 Observação (8 horas): observação dos possíveis campos para a realização do estágio;


Página

239
O primeiro autor deste trabalho foi o estagiário no Projeto SESI ARTE, em Mossoró (RN), com supervisão de
campo do segundo autor e supervisão acadêmica do terceiro.

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 Planejamento (16 horas): elaboração dos planos de aula, realizado sob a orientação do
supervisor acadêmico e do supervisor de campo, buscando sintonia entre a atuação do
estagiário e os conteúdos abordados na disciplina;
 Regência (16 horas): regência de estágio no campo escolhido, desenvolvido ao longo de
dois meses e meio, incluindo as atividades realizadas em sala de aula;
 Participação nas rotinas acadêmicas (15 horas): participação do aluno na rotina da
instituição na qual realizará o estágio e participação do aluno no seminário de estágio, que
será promovido pelo coordenador e supervisores de estágio;
 Elaboração do relatório final (20 horas): elaboração do relatório final do estágio, realizado
sob a orientação do supervisor acadêmico;
 Aulas (30 horas): aulas do componente curricular Estágio Supervisionado I.
O local no qual escolhi estagiar foi a Banda Filarmônica do Projeto SESI ARTE. O
motivo que me conduziu a optar por esse espaço foi gerado, inicialmente, por dificuldades na
primeira opção de contexto, mas também pela afinidade que possuo com o ensino de
instrumentos de sopro, dado minha iniciação ter se dado no contexto de banda de música,
contexto no qual desenvolvo minha atuação performática. Além disso, o Projeto SESI ARTE
consiste em um espaço não formal de ensino de música, critério este que é exigido na escolha
do campo do componente Estágio Supervisionado I.
Frente a isso, compreendo a importância de exteriorizar a experiência adquirida nessa
atuação, pois a experiência é fruto de prática seguida de reflexão; assim, as reflexões aqui
apresentadas podem ser úteis para se repensar a prática docente em tais situações, como
também podem contribuir para a construção de uma visão mais ampla e meditativa do ensino
de música nesses contextos. Para tanto, percebo a contribuição que a Universidade propicia
quando estabelece que tal prática é necessária, assim como afirma Oliveira (2014), quando
expõe que “a universidade, além de preparar o aluno para enfrentar as exigências do mercado,
o prepara para manter e desenvolver saberes em que o mercado não tem interesse”
(OLIVEIRA, 2014. p. 98).
Diante do exposto, vale salientar a concepção que tenho sobre educação não formal,
tão presente nos espaços não-formais de ensino de música. Nesse sentido, entendo que a
1509

educação dessa natureza não exige uma sistematização criteriosa, ou seja, o objetivo é
contribuir com a formação integral do ser, no sentido de dar-lhe melhor suporte na construção
cidadã. Por isso, não impõe um modelo a ser seguido. Nessa perspectiva, Gadotti (2005)
Página

coloca que:

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A educação não-formal é mais difusa, menos hierárquica e menos
burocrática. Os programas de educação não-formal não precisam
necessariamente seguir um sistema seqüencial e hierárquico de “progressão”.
Podem ter duração variável, e podem, ou não, conceder certificados de
aprendizagem (GADOTTI, 2005, p. 3).

Sobre a importância desse tipo de educação, compartilho do pensamento de Gohn


(2009), quando argumenta que:

[...] a educação não formal é uma ferramenta importante no processo de


formação e construção da cidadania das pessoas, em qualquer nível social ou
de escolaridade. Entretanto, quando ela é acionada em processos sociais
desenvolvidos junto a comunidades carentes socioeconomicamente, ela
possibilita processos de inclusão social no resgate da riqueza cultural
daquelas pessoas, expresso na diversidade de práticas, valores e experiências
anteriores. Quando presente na fase de escolarização básica de crianças,
jovens/adolescentes ou adultos, (...)ela potencializa o processo de
aprendizagem, complementando-o com outras dimensões que não têm
espaço nas estruturas curriculares (GOHN, 2009. p. 42).

Colocando esse pensamento de uma forma mais detalhada, Gohn (2009) esclarece que:

A educação não-formal designa um processo com várias dimensões tais


como: a aprendizagem política dos direitos dos indivíduos enquanto
cidadãos; a capacitação dos indivíduos para o trabalho, por meio da
aprendizagem de habilidades e/ou desenvolvimento de potencialidades; a
aprendizagem e exercício de práticas que capacitam os indivíduos a se
organizarem com objetivos comunitários, voltadas para a solução de
problemas coletivos cotidianos; a aprendizagem de conteúdos que
possibilitem aos indivíduos fazerem uma leitura do mundo do ponto de vista
de compreensão do que se passa ao seu redor; a educação desenvolvida na
mídia e pela mídia, em especial a eletrônica, etc. São processos de auto-
aprendizagem e aprendizagem coletiva adquirida a partir da experiência em
ações organizadas segundo os eixos temáticos: questões étnico-raciais,
gênero, geracionais e de idade, etc. (GOHN, 2009, p. 31).

Diante disso, deixo claro a concepção que adoto sobre educação não formal e suas
respectivas contribuições para a formação do ser, ao argumentar, sob a ótica de outros autores,
a relevância que tal perspectiva assume frente à formação docente. Dessa forma, procuro
1510

refletir, nesse sentido, sobre o que é a educação não formal e se a forma como ela foi
trabalhada no referido estágio condiz com a concepção desses autores.
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No trabalho de campo, objetivei compreender os aspectos envolvidos no ensino não
formal de música e refletir sobre eles, como forma de contribuição para a formação docente.
Para tal, identifiquei os aspectos que auxiliam a atuação do professor de música diante do
ensino informal; planejei e ministrei aulas de música através dos itens identificados; realizei
relatórios das aulas, para refletir sobre sua fluência, considerando o que se concretizou ou não
dos planejamentos; identifiquei as dificuldades encontradas; apontei o detalhamento dos
procedimentos teórico-metodológicos utilizados.

1 Contexto de ensino

O espaço em questão, onde ocorreu minha prática de estágio, foi o Projeto SESI
ARTE, em Mossoró (RN). Este SESI ARTE está implantado na sede do Centro de Atividade
(CAT)240 do SESI Mossoró, que desenvolve diversas atividades, tais como: Escolinhas de
Futebol, Futsal, Hidroginástica, Natação e Vôlei, que fazem parte do Projeto Vida Saudável.
Tais atividades ambicionam proporcionar a aprendizagem, aperfeiçoamento e entretenimento,
resultando na melhoria das condições essenciais de saúde, da educação integral e da inclusão
social, culminando em uma melhor qualidade de vida. Para tanto, Penna (2104) argumenta
que “Sem dúvida, há de se considerar a especificidade dos diferentes contextos de educação
não formal. Há aqueles em que a música é uma de várias atividades educativas desenvolvidas
com vistas à formação global das crianças e jovens [...]” (PENNA, 2014, p. 74).
Nesse sentido, O SESI ARTE, no qual estão inseridas as aulas de música, age como
ferramenta de fomentação da cultura e disseminação do fazer musical, envolvendo pessoas de
várias idades e contextos socioculturais distintos.
A Banda Filarmônica do SESI ARTE Mossoró teve início junto com a implantação do
projeto SESI ARTE no Rio Grande do Norte no ano de 2013. Ela é formada por alunos do
SESI e da comunidade em geral, tendo sua apresentação inaugural em 2014, no auditório do
SESI Centro de Atividades de Mossoró. Desde essa data, o referido grupo se apresenta em
eventos relacionados ao SESI-RN, ao sistema FIERN241 e em recitais de alunos.
O planejamento das atividades acontece com base nas metas propostas pela
1511

coordenação do SESI ARTE, que faz suas reuniões semestralmente. Diante disso, os materiais

240
Existem vários Centros de Atividades (CATs) que fazem parte do Projeto SESI ARTE (RN), e os mesmos
Página

encontram-se distribuídos nas Cidades de Natal, Assú, Macau e Mossoró.


241
Sistema FIERN: Federação das Indústrias do Estado do Rio Grande do Norte (IEL, SENAI, SESI).

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utilizados nas aulas ficam à preferência dos professores, contanto que os mesmos lhes ajudem
na condução das aulas, favorecendo, assim, para que os objetivos propostos sejam atingidos.
A turma na qual escolhi desenvolver minha prática de estágio foi a Banda Filarmônica
do SESI ARTE, e detive-me ao ensino coletivo dos instrumentos de sopro; além dos
instrumentos de sopro, a banda possuía também uma bateria e um violão. Os processos de
ensino e aprendizagem estavam voltados preferencialmente aos alunos dos sopros, e por isso
concebi a experiência como ensino coletivo de instrumentos de sopro, dado que esses alunos
eram submetidos a exercícios e práticas que os faziam refletir individualmente e em grupo, o
que melhorava a execução do repertório. Entre os instrumentistas de sopro, a turma dispunha,
na época, de dois trombonistas, três saxofonistas (dois altos e um tenor), quatro trompetistas e
duas flautistas. A banda possuía alunos com faixa etária entre 7 e 53 anos, sendo três
mulheres e dez homens.
Os alunos se mostraram interessados e participativos durantes as aulas. Nesse sentido,
se fez possível uma avaliação contínua, onde pude acompanhar e perceber o desenvolvimento
de cada um. A turma era heterogênea, pois havia, por exemplo, uma pessoa com quarenta
anos de prática no instrumento e pessoas com menos de um ano. Nesse contexto, vale pontuar
o progresso dos alunos que tocavam o instrumento há menos de um ano, e que tendiam a
apresentar maiores dificuldades.
Seguindo nessa linha de raciocínio, os alunos que tocam há mais de dois anos
apresentavam menos dificuldades e correspondiam melhor às expectativas das aulas; por
outro lado, os que possuíam até um ano de prática instrumental apresentavam maiores
dificuldades nas atividades propostas. Assim, pude notar o desenvolvimento destes alunos,
porque, no decorrer das aulas, eles começaram a demonstrar maior facilidade para realizar o
que era solicitado.
Nessa perspectiva, eram trabalhados aspectos que favorecessem a execução do
repertório, como articulações (legato, staccato e staccato-legato), escalas que possuíam a
mesma armadura de clave das músicas, durações e divisões rítmicas, dinâmicas (pianíssimo,
piano e forte), etc. Desse modo, os alunos eram desafiados a perceber a dinâmica do trabalho
em grupo e a se inserir, visando contribuir com o todo.
1512

Diante disso, percebi que os alunos que apresentavam dificuldades com armaduras de
claves, dinâmica, manutenção da uniformidade da coluna de ar para uma melhor execução
sonora, começaram a apresentar, gradualmente, uma melhora, e consequentemente as músicas
Página

do repertório da banda eram executadas de forma cada vez mais aprimorada.

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Os desafios por mim encontrados dizem respeito ao tratamento do qual me utilizaria
para trabalhar em uma turma heterogênea, onde conseguisse contribuir com a formação de
cada um. Frente a isso, busquei utilizar conteúdos e ferramentas de interesse comum; isto é,
como todos tinham em comum o repertório, busquei trabalhar aspectos das músicas que
seriam cobrados em seu aprimoramento. Nesse sentido, Penna (2014) coloca que “Esta
necessidade de o educador compreender, respeitar e interagir com a especificidade do grupo
implica uma postura de aceitação da diversidade – e queremos enfocar, particularmente, a
diversidade cultural.” (PENNA, 2014, p. 38). Assim, percebi que era fundamental adotar uma
postura de respeito para com o grupo, considerando as especificidades de cada um.
Outra questão desafiadora foi nunca ter atuado como docente em tal contexto; assim,
procurei sanar minhas dificuldades na regência das aulas, procurando sempre repensar minhas
práticas e objetivar novas possibilidades para uma construção mais fluente do conhecimento.
Em continuidade, também é importante frisar que os alunos, de modo geral, buscavam
sempre aperfeiçoar sua prática para contribuir com o resultado coletivo; assim, se tornou
perceptível o crescimento que conseguiram atingir gradualmente, pois as dificuldades
observadas durante o trabalho foram, paulatinamente, sanadas. Desse modo, os desafios
propostos eram concebidos como ferramenta de crescimento, pois os mesmos impulsionavam
os alunos a buscar a melhor condição de si enquanto instrumentistas.

2 Experiência docente

Como desenvolvi minha prática de estágio em uma turma de ensino coletivo de


instrumentos, procurei averiguar inicialmente em que consiste esse tipo de ensino e de que
forma eu poderia atuar em tal espaço. Nesse sentido, percebi através de Nascimento (2006)
que:

A metodologia do ensino coletivo de instrumentos musicais consiste em


ministrar aulas ao mesmo tempo para vários alunos. Essas aulas podem ser
de forma homogênea ou heterogênea e é efetuada de maneira
multidisciplinar, ou seja, além da prática instrumental, podem ser
ministrados outros saberes musicais intitulados academicamente como:
1513

teoria musical, percepção musical, história da música, improvisação e


composição (NASCIMENTO, 2006, p. 96).
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Através desta concepção, notei que poderia desenvolver atividades de diferentes
aspectos e não só as que diziam respeito à performance. Assim, havia a possibilidade de se
trabalhar aspectos gerais da música e do instrumento, além dos que já estavam implícitos no
repertório. De tal modo, pude auxiliar os alunos na manipulação do instrumento, pois, frente a
isso, percebi, como Cislaghi (2014), que “No decorrer das aulas, à medida que os alunos vão
se familiarizando com o instrumento, o professor passa a explicar um pouco mais sobre
postura, embocadura, emissão, digitação do instrumento, entre outros.” (CISLAGHI, 2014. p.
68).
Nessa perspectiva, observei que mesmo sendo possível e, em certos casos, necessário,
o trabalho de diferentes aspectos musicais neste tipo de aula, o foco está geralmente voltado
ao repertório. Sendo assim,

As aulas coletivas se dividem, na maioria das vezes, em aquecimento e


repertório. Além da aplicação dos exercícios produzidos e impressos, nos
aquecimentos também são utilizados recursos orais de repetições. O
educador escolhe uma nota em comum para todos instrumentos e são
trabalhadas figuras rítmicas mais complexas, das que aparecem nos quadros
técnicos, através da audição cantada e repetição oral, seguida do
instrumento. Dessa maneira tem possibilitado a produção de repertórios mais
complexos uma vez que os alunos já têm memorizado os valores de tempo
das figuras (LIMA, 2014, p. 3).

Nesse sentido, compreendi que as aulas coletivas possibilitam que o aluno reflita
acerca do trabalho em grupo, pois, quando tal reflexão é feita, se torna possível a percepção
de que trabalhar em grupo pressupõe pensar o fazer musical como um todo, onde cada pessoa
é responsável pelos processos desenvolvidos coletivamente e pela constituição do resultado
final.
Diante disso, percebi, através da lógica de Lima (2014), que:

Fazer as aulas de forma coletiva torna possível trabalhar a consciência de


grupo. Isso fundamenta-se em desenvolver elementos musicais importantes
adquiridos pela prática de conjunto nos quais consistem no equilíbrio sonoro
- ou volume, e afinação coletiva. Na prática percebe-se que há uma diferença
entre afinar uma nota individualmente, quando apenas se ouve o seu
instrumento, e fazer o mesmo em grupo (LIMA, 2014, p. 3).
1514
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Através desta reflexão, notei a importância do trabalho coletivo pensado como um
todo, pois, em tal, cada pessoa é encarada como peça fundamental no processo de
desenvolvimento do grupo, tornando possível uma construção coletiva do conhecimento.
Os objetivos das aulas corresponderam aos do estágio, e assim, na busca pela
compreensão dos aspectos perceptíveis no ensino não formal de música e na reflexão sobre
eles, como forma de contribuição para a minha formação docente, procurei estabelecer uma
relação entre a prática e teoria. Nesse sentido, sempre fazia relatórios das aulas e refletia sobre
a fluência delas, considerando o que se concretizou ou não dos planejamentos.
Frente a isso, considerando a turma na qual desenvolvi minhas práticas, busquei
desenvolver atividades de interesse de todos, pois tal abordagem se fazia necessário, dado ser
um grupo heterogêneo, onde, além das faixas etárias distintas, estavam presentes pessoas com
diferentes níveis de compreensão e técnica.
Sendo assim, os conteúdos trabalhados nas aulas eram aplicáveis ao repertório e,
independentemente do nível em que o aluno se encontrasse, ele poderia utilizar o conteúdo
das atividades propostas no próprio repertório, ou seja, com uma finalidade coletiva.
As atividades desenvolvidas trabalhavam aspectos de dinâmica (forte, piano e
pianíssimo), articulação (legato, staccato e staccato-legato), escalas que possuíam a mesma
tonalidade e armadura de clave das músicas (tons relativos), durações e divisões rítmicas,
transposição, respiração, embocadura, digitação do instrumento, etc., além de trabalhar as
próprias partituras do repertório.
Para auxiliar nas atividades, utilizei o celular, ao qual recorria para conferir a afinação
dos instrumentos, através do afinador eletrônico, e o trombone, que utilizei para a
demonstração de exercícios técnicas e passagens das músicas, bem como na composição do
grupo, onde executava o repertório juntamente com os alunos.

3 Avaliação

A avaliação aconteceu de forma que se priorizasse a aprendizagem consistente, onde o


principal objetivo é a construção do conhecimento do aluno; desse modo, nota-se, no
1515

raciocínio de Luckesi (2004), a importância de uma avaliação significativa quando o mesmo


afirma que:
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O ato de avaliar a aprendizagem implica em acompanhamento e reorientação
permanente da aprendizagem. Ela se realiza através de um ato rigoroso de
diagnóstico e reorientação da aprendizagem, tendo em vista a obtenção dos
melhores resultados possíveis, frente aos objetivos que se tenha à frente
(LUCKESI, 2004).

Diante de tal pressuposto, e através da observação do progresso dos alunos, a


avaliação ocorreu de forma diagnosticada, contínua e formativa, que consistem em um
processo cuja finalidade é intermediar a construção do conhecimento da forma mais
significativa possível, e consideram todas as etapas do processo que, por sua vez, se sucedem
de forma construtivista. Assim, através da percepção de Hoffmann (2002), é notório que não
se trata de um “diagnóstico” de capacidades, mas dos processos e caminhos que os alunos
trilham na busca por estratégias de ação que culminem no favorecimento da construção do
conhecimento.
Vislumbrando a reflexão para o crescimento e construção de uma visão mais ampla,
procurei sempre repensar sobre minhas práticas e planejamentos. Nessa perspectiva, busquei
fazer relatórios das aulas ministradas e verificar até onde os respectivos planejamentos tinham
se concretizado, e o que eventualmente poderia ter influenciado para que algo não ocorresse
conforme os objetivos. Assim, Oliveira (2014) nos leva a pensar que:

Muito especialmente nas ONGs, o profissional precisa estar preparado para


autoconhecer-se e desenvolver-se continuamente, para avaliar a sua atuação
diante dos saberes do outro, avaliar o outro em relação aos objetivos da
entidade, em relação a ele próprio e aos colegas (OLIVEIRA, 2014, p. 97).

Diante disso, percebo a importância da autoavaliação para a construção da prática


docente. Assim, avaliar-se remete à busca pelo melhor de si, isto é, no que diz respeito a
mediar a construção do conhecimento dos alunos, e em investir sempre em melhores maneiras
para a lapidação do conhecimento de forma consistente. Deste modo, Kater (2014) esclarece
que:

Torna-se então no mínimo uma demonstração de cuidado, por parte do


professor, dedicar-se a um trabalho de desenvolvimento pessoal (o que
1516

significa dizer conhecer-se melhor, cultivar o equilíbrio interno,


centramento, determinação, coerência, criatividade, auto-observação, etc.),
consciente da situação de referência que representa (KATER, 2014, p. 45).
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Nessa perspectiva, é notável que repensar as práticas é sinônimo de progredir. Dessa
forma, se faz necessária a reflexão sobre os aspectos que culminaram de forma desejada, e
sobre os que não alcançaram as metas, procurando, assim, verificar o que pode ter contribuído
com esses fatores e buscar novas alternativas que permitam alcançar os resultados
ambicionados.

Considerações finais

Em suma, o presente trabalho reflete sobre a prática do estágio e sobre sua


contribuição para a formação docente. Nesse sentido, notei que vários aspectos favoreceram a
construção do conhecimento dos alunos da turma de ensino coletivo de instrumentos de sopro
do Projeto SESI ARTE. Assim, em um processo contínuo de avaliação, pude notar que as
condições sobre as quais as aulas aconteciam favoreceram os processos de desenvolvimento,
culminando em uma construção mais sólida do conhecimento.
Diante disso, essa turma de ensino coletivo, que consiste em uma banda filarmônica,
teve início em 2013, juntamente com a implantação do Projeto SESI ARTE no Centro de
Atividades de Mossoró. A estrutura do local e os recursos materiais, como estantes, cadeiras,
instrumentos e partituras, ficam acessíveis e são suficientes para todos.
As aulas desenvolvidas proporcionaram uma visão de grupo mais ampla onde, visto
como um todo, o ensino e aprendizagem que acontecem de forma coletiva podem contribuir
com o convívio social e a interação dos alunos. Nesse sentido, Cruvinel (2005) expõe que:

O ensino em grupo possibilita uma maior interação do indivíduo com o meio


e com o outro, estimula e desenvolve a independência, a liberdade, a
responsabilidade, a auto-compreensão, o senso crítico, a desinibição, a
sociabilidade, a cooperação, a segurança, [...] desenvolve a auto-estima no
aluno, na medida em que assimila os conhecimentos de forma eficaz e
prazerosa. A partir da interação com o grupo, o sujeito passa a conhecer mais
a si próprio e o outro, trocando experiências. Na medida em que essa
interação grupal ocorre, o sujeito se sente realizado por fazer parte daquele
grupo, com isso, a sua auto-estima aumenta, da mesma forma que sua
produção e rendimento (CRUVINEL, 2005, p. 80-81 apud ARAÚJO, 2014,
p. 6).
1517

Frente a isso, percebi que no conhecimento construído coletivamente estão implícitos


aspectos que compõem uma formação cidadã, como interação, colaboração, responsabilidade,
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sensibilidade, reconhecimento de si enquanto parte importante de um todo, entre outros.
Sobre essa linha de pensamento, Kater (2014) evidencia que:

Todo o investimento neste presente representa o empenho de exploração de


potenciais sociais que progressivamente poderão se concretizar. E aí reside o
maior privilégio do educador: participar, de maneira decisiva e por meio da
formação musical, do desenvolvimento do ser humano, na construção da
possibilidade dessa transformação, buscando no hoje tecer o futuro do aluno,
cidadão de amanhã (KATER, 2014, p. 46).

Diante do exposto, a experiência com o Estágio Supervisionado I me proporcionou


uma maior reflexão sobre a atuação em espaços não formais de ensino de música, onde a
educação acontece de forma mais livre, isto é, menos sistematizada. Assim, compreendi que
em tais espaços a educação age, quase que prioritariamente, como ferramenta de formação
cidadã. Nesse sentido, pude ampliar minha visão e meditar sobre minhas práticas enquanto
docente, possibilitando, assim, a busca pela melhor condição de si, visando contribuir com a
formação do aluno.

Referências

ARAÚJO, José Magnaldo de Moura. Educação musical no terceiro setor: as relações do


modelo pedagógico de Swanwick com as atividades musicais das ONGs de Mossoró/RN. In:
XII Encontro Regional da ABEM Nordeste, Anais... São Luis, 2014.

CISLAGHI, Mauro César. A educação musical no Projeto de Bandas e Fanfarras de São José
(SC): três estudos de caso. Revista da ABEM, v. 19, n. 25, 2014.

GADOTTI, Moacir. A questão da educação formal/não-formal. Sion: Institut Internacional


desDroits de 1º Enfant, p. 1-11, 2005.

GOHN, Maria Gloria. Educação Não-Formal e o Papel do Educador (a) Social. Revista
Meta: Avaliação, v. 1, n. 1, p. 28-43, 2009.

HOFFMANN, Jussara (2002): Um olhar sensível e reflexivo sobre a criança. 10. ed. Porto
Alegre: Mediação (Cadernos de Educação Infantil, v. 3).

KATER, Carlos. O que podemos esperar da educação musical em projetos de ação


social. Revista da ABEM, v. 12, n. 10, 2014.
1518

LIMA, Patrick André de Amorim. Além do método: o ensino coletivo na filarmônica


Meninos do Engenho. In: II Fórum para Bandas Filarmônicas – Pedagogia, Gestão e
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Pesquisa. Salvador, Bahia. 2014.

ISBN: 978-85-7621-221-8
LUCKESI, Cipriano Carlos. Considerações gerais sobre avaliação no cotidiano escolar.
Entrevista concedida à Aprender a Fazer. Curitiba (PR) publicada em IP-Impressão
Pedagógica, publicação da Editora Gráfica Expoente, v. 36, p. 4-6, 2004.

NASCIMENTO, Marco Antonio Toledo. O ensino coletivo de instrumentos musicais na


banda de música. In: Anais do XVI Congresso da ANPPOM. Brasília: UnB. 2006. p. 94-98.

OLIVEIRA, Alda de. Atuação profissional do educador musical: terceiro setor. Revista da
ABEM, v. 11, n. 8, 2014.

PENNA, Maura et al. Educação musical com função social: qualquer prática vale?. Revista
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PENNA, Maura. Desafios para a educação musical: ultrapassar oposições e promover o


diálogo. Revista da ABEM, v. 14, n. 14, 2014.

SESI. SESI Arte. Disponível em:<http://www.rn.sesi.org.br/index.php/o-que-e-o-sesi/vida-


saudavel/sesi-arte>. Acesso em: 21/05/2017.

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PÔSTER

A MÚSICA DESPERTANDO TALENTOS: O PROJETO “THE VOICE DIRAN” NO


MUNICÍPIO DE MOSSORÓ-RN

Ítalo Soares da Silva (Aluno Bolsista PIBID/Música-UERN)


Juliana de Oliveira Revoredo Souza (Escola Estadual Diran Ramos do Amaral)

Introdução

Despertar a musicalidade no aluno é um dos principais objetivos do educador musical


na contemporaneidade. Sabemos que em sala de aula, cada um tem sua história e apresenta
uma bagagem única e especial de experiências culturais. Assim, cabe ao professor promover
situações na qual valorize essa diversidade no ambiente escolar.
Criar ambientes e situações diversas de aprendizagem podem garantir além de boas
relações entre aluno e professor, também vem a possibilitar aparições de habilidades e
competências nas quais não são possíveis serem observadas no exercício docente em sala de
aula. Deste modo, é muito importante que se tenha uma valorização ao conhecimento em que
o aluno traz para a escola, e que esses conhecimentos possam ser explorados trazendo assim a
vivencia do aluno cada vez mais próximo para o ambiente escolar.
Percebemos que as preferências musicas dos jovens atualmente passaram por
diferentes transformações e que hoje podemos dizer que se houve mudanças em relação a
décadas atrás. Deste modo, se torna um grande desafio do docente, abordar em sala de aula as
diversas representações e formas em que a música vem sendo apresentada atualmente no
Brasil.
Diante tantas transformações no cenário musical brasileiro, reconhecemos o quanto é
importante a inserção da música na escola, pois além poder despertar habilidades diversas na
qual a música proporciona, também possibilita o desenvolvimento da socialização, expressão,
criação, percepção e também ajudando no desenvolvimento de sujeitos críticos e reflexivos.
Habilidades como essas se tornam mais difíceis serem desenvolvidas em sala de aula, por
meio de disciplinas como português e matemática, nas quais por muitas vezes são vistas como
de maior importância na educação básica.
1520

É nessa perspectiva em que este trabalho vem apresentar diversas atividades musicais
desenvolvidas por meio da disciplina de Arte, na Escola da Estadual Diran Ramos do Amaral
Página

na cidade de Mossoró-RN. As atividades foram resultantes de um projeto desenvolvido na

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escola na qual teve diversos objetivos, sendo eles: estimular talentos, descobrir habilidades,
promover entretenimento e cultura à comunidade escolar, tornar a música mais próxima dos
alunos, dentre outros. Para esse estudo foi utilizado o relato de experiência como percurso
metodológico da pesquisa, tendo como instrumentos para coleta de dados a observação
participante e o registro de fotos, áudio e vídeos, como também uma breve revisão de
literatura sobre música, canto e educação básica.
O projeto intitulado “The Voice Diran” foi desenvolvido no ano de 2017, tendo como
responsáveis duas professoras da Escola Estadual Diran Ramos do Amaral, e ajuda de
bolsistas do Programa de Bolsas de Iniciação à Docência-PIBID, do Curso de Licenciatura em
Música da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte-UERN. Assim, este trabalho vem
a apresentar as atividades realizadas no Projeto, suas contribuições tanto para os alunos,
professores e comunidade escolar, como também o engajamento dos bolsistas do
PIBID/Música UERN.

Música na escola: O The Voice Diran

A ideia do Projeto se deu com base de um show de talentos exibido em diversos


programas da televisão no mundo. A primeira franquia desse programa se deu na Holanda,
logo após chegando a vários outros países, como foi o caso de Brasil. Desta forma, o
programa de televisão veio repercutindo por todo o país e acabou despertando o interesse em
cantar a muitos dos jovens brasileiros. Foi assim que aconteceu na Escola Estadual Diran
Ramos do Amaral na cidade de Mossoró-RN. Devido a Escola ter um grande publico de
alunos interessados pela Arte, em especial a música, dirigentes, professores e alunos
decidiram montar um projeto na qual buscasse mostrar através do canto e da arte os talentos
em que havia na escola.
A proposta ganhou forma é foi dada uma maior importância para sua efetivação.
Assim, após iniciativa de duas professoras da Escola Estadual Diran Ramos do Amaral, sendo
uma delas da disciplina de Língua Portuguesa e a outra de Arte, ambas sempre buscando em
suas práticas pedagógicas a interdisciplinaridade, decidiram realizar o projeto. Percebendo a
1521

magnitude do projeto, as professoras vieram solicitar a parceria e ajuda aos bolsistas do


PIBID/ Música UERN, na qual faziam parte do quadro de estagiários na disciplina de arte na
escola.
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As atividades em função do projeto iniciaram-se em sala de aula. Nas aulas da
disciplina de arte na qual os estagiários do PIBID faziam parte, durante o período em que
antecedia o evento, havia sendo trabalhados com os alunos vários conteúdos musicais
voltados ao canto, na qual dariam um suporte aos alunos que iriam participar. Além de
conteúdos musicais, como técnica vocal, postura, performance musical e outros, também
foram abordados assuntos referente a socialização, como lhe dar com o público, a construção
de uma boa relação em sala de aula tanto de alunos com alunos, como de alunos professores e
estagiários como também a tentativa de superação de dificuldades entre os alunos.
Através da atividade do canto acreditamos que ela visa dentre outros objetivos,
estimular os seres humanos a desenvolverem talentos ou habilidades além do seu ambiente de
convivência diária. Também desperta a liderança, comunicação, uso consciente da voz
(respiração e expressões corretas) e apresentações em público. Podemos dizer que a música é,
entre as formas de expressão humana, a mais completa. Nela, e através dela, o homem coloca
as emoções, sensações e percepções em relação a si mesmo e ao mundo. Segundo Beineke
(2003):

A música é uma atividade humana que se manifesta no fazer, na prática


musical. Sendo assim, a primeira função que pode se atribuir à educação
musical é a de introduzir os estudantes em formas de vida musical,
enraizadas em um fazer musical autêntico, artístico e criticamente reflexivo
(BEINEKE, 2003, p. 26).

Abordar o canto na escola, também pode e deve ser uma forma de ensinar música
tanto em sala de aula ou fora dela. Com isso, através do canto podemos fazer relaciona-la com
diversos contextos de aprendizagem, a fim de tornar o aluno um sujeito reflexivo ao entender
e vivenciar manifestações culturais variadas, através de sua prática musical.
Embora a prática de canto na escola seja algo que não necessite de tantos recursos
materiais para ser desenvolvido em sala de aula, sendo que o principal instrumento a ser
utilizado é a voz, ainda precisa está mais presente nas escolas da educação básica. Isso ficou
evidente após um uma breve revisão de literatura que versava sobre a prática de canto na
escola. Mateiro (2014) ao fazer uma extensa revisão de literatura sobre o estado da arte
1522

referente a prática de canto na escola básica no Brasil, suas pesquisas revelaram que grande
maioria dos trabalhos publicados destacam o canto como não sendo um recurso utilizado para
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o ensino de música, e que ele esta sendo inserida em meio de diversas práticas sendo: a
criação e composição, interações com poesia, atividades lúdicas, improvisação, canto coral,
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jogos e brincadeiras. Ainda constatou-se que há uma grande escassez de trabalhos
relacionados a prática do canto no ensino fundamental.
Na Escola Diran Ramos do Amaral, a prática do canto sempre era algo presente, tanto
em sala de aula como fora dela. Na Escola, além de terem grupos musicais onde as atividades
de canto estavam presentes, também era abordado nas aulas de arte conteúdos musicais, pois
além da professora ser formada em Licenciatura em Música, os Pibidianos também
estimulavam o ensino e prática de música na escola como buscar formas de tornar a música
cada vez mais presente na vida daqueles alunos, afim de contribuir para formação dos
mesmos.
Durante todo o período de inserção do PIBID/Música UERN na escola, pode-se
perceber uma maior valorização do ensino de música na escola, pois mesmo tendo como
professora da disciplina de Arte uma licenciada em música, incialmente não era tão
perceptível a música na escola. Essa valorização pode ter sido dada por diversos fatores. Um
deles é em relação ao Programa Mais Educação, atualmente chamado de Novo Mais
Educação, na qual ocorriam aulas de banda fanfarra, violão, capoeira e dentre outros. Como
na escola havia vários instrumentos, os alunos também decidiram formar uma banda para as
diversas apresentações no âmbito escolar. E como forte contribuição, devemos destacar a
grande colaboração do PIBID/Música na escola, pois além de buscar essa maior valorização e
efetivação do ensino de música na escola, também proporcionou diversas vivências musicai
trazendo uma variedade de propostas pedagógicas para o ensino de música.
O PIBID/música na escola veio a proporcionar aos alunos uma maior aproximação e
entendimento da música em seus diversos aspectos, como também mostrar aos professores a
importância do ensino de música. Além disso, pode trazer reflexões para a professora de arte,
sobre suas práticas pedagógicas contribuindo cada vez mais para o exercício da docência.
Para os Pibidianos, o programa é uma das melhores formas de poder colocar em prática tudo
aquilo que esta sendo visto durante sua formação. Também é visto como uma ótima forma de
poder antecipar a prática docente, e conhecer o seu possível ambiente de trabalho. Pode-se
dizer que o The Voice Diran foi resultante e resultado de muitos anos de trabalho.
O The Voice Diran foi apenas mais uma forma de poder estimular e despertar o fazer
1523

artístico dos alunos. Pode-se perceber através do projeto que além de descobrir novos talentos
por meio da música também houve um desenvolvimento de aprendizagem e enriquecimento
da linguagem musical, a construção do senso artístico, criativo e social, o estimulo através do
Página

canto como uma atividade cultural, proporcionando uma atividade agradável a fim de

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aumentar o comprometimento do aluno com suas atividades escolares. Também buscou-se
como objetivos compreender e utilizar a arte como expressão, mantendo uma atitude de busca
pessoal e/ou coletiva, articulando a percepção, a imaginação, a emoção, a investigação, a
sensibilidade e a reflexão ao realizar e fruir produções artísticas. O desenvolver o raciocínio
lógico e crítico através do ritmo, melodia, tempo, métrica, como também a escuta ativa com o
intuito de reconhecer, identificar, discriminar, relacionar e associar aspectos inerentes a
música. Possibilitar que os alunos aprendam a utilizar e cuidar da voz como meio de
expressão e comunicação musical e trabalhar a pluralidade cultural também foram aspectos
desenvolvidos durante todo o projeto. Assim, buscou-se proporcionar diversas situações antes
durante e depois do The Voice Diran para que pudesse desenvolver esses aspectos
mencionados vindos a contribuir com o desenvolvimento do aluno.
Em relação especificamente ao dia do evento, o mesmo acorreu no mês de junho no
teatro Municipal Dix-Huit Rosado na cidade de Mossoró. O evento foi aberto ao público na
qual contou com a presença de alunos, ex-alunos, professores, funcionários, representantes da
12° Diretoria Regional de Educação e Cultural-DIREC, comunidade externa e entre outros.
Compondo a mesa julgadora faziam presentes professores da Universidade do Estado do Rio
Grande do Norte-UERN, ambos formados em música. Tantos os jurados como a secretaria de
Educação parabenizaram toda a escola pelo belo trabalho como também disseram terem
ficado bastante impressionados com a capacidade o nível e o grande talento dos alunos da
Escola.
Ficou perceptível diante as atividades desenvolvidas na escola que mesmo diante de
tantas dificuldades em que a educação básica vem sofrendo atualmente, é possível fazer um
bom trabalho. As péssimas condições de trabalho, a falta de estrutura física, recursos
materiais e dentre outros aspectos, não foram problemas para poder mostrar o grande
potencial da escola básica. A força de vontade e o trabalho em equipe superaram além de
grandes barreiras, as expectativas do tamanho do sucesso e repercussão que foi o projeto.
Assim, apenas julgar as condições oferecidas para a educação básica não é a única alternativa
para tentar propor mudança, educadores e toda escola deve abraçar cada vez mais propostas
como essas, não medindo esforços e dificuldades para que o trabalho aconteça.
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Resultados e discussões

Percebendo diante a revisão de literatura que na maioria das publicações analisadas,


realmente a prática de canto é realizada em momentos oportunos como ferramenta no
processo da aprendizagem musical, sendo ela não é tida como a atividade principal das aulas
de música, o The Voice Diran possibilitou que ocorresse esse ensino propriamente dito. Na
prática docente, percebendo que havia a necessidade de abordar o ensino de canto tanto para
conhecimento dos alunos como para preparar para o projeto, várias atividades vinham sendo
realizadas. Inicialmente fez um levantamento de quantos alunos tinham interesse em
participar da proposta e assim, aos poucos abordando conteúdos sobre o canto, mostrando
possibilidades e trabalhando aspectos vocais e performáticos em sala de aula muito alunos
foram se interessando. Assim, uma das formas que se pode ser trabalhado em sala de aula
inicialmente e lançar a proposta. Em seguida tentar trazer aquele conteúdo relacionado com a
vivência dos alunos, a fim de despertar o interesse.
Com o intuito de provocar interesse aos alunos, foi trago grupos musicais para a
escola, assim muitos dos alunos se sentiam capazes e motivados para participar das atividades
e estudar mais sobre o canto. Em sala também foi trabalhado os principais conteúdos sobre a
prática canto, e ficou perceptível o quanto o ambiente de sala de aula se tornou cooperativo,
pois além dos alunos trocarem ideias, fazerem perguntas também ocorreu momentos de ajudar
ao próximo, sendo eles motivando, ensinando e compartilhando.
O envolvimento no durante todo o processo de aprendizagem musical desses alunos
nós mostrou o quanto é necessário que reconhecimento e a importância da inserção da música
na escola. O The Voice Diran foi um ótimo meio para trabalhar aspectos musicais que se se
apresentava como dificuldade de poder trabalhar na escola. Além disso, de tornou o canto um
recurso utilizado para ensinar música na escola, possibilitando que ocorresse esse ensino de
maneira a promover o despertar artístico e de outras habilidades nos alunos, como também de
aspectos como a expressão, criação e percepção, e construção de um sujeito crítico e
reflexivo. Desta forma, as diversas atividades desenvolvidas antes, durante e após o Projeto,
promoveram oportunidades para a fruição, criação e superação de diversas dificuldades
1525

encontradas tanto em alunos, professores e comunidade escolar, como também no contexto da


escola pública em Mossoró-RN. Deste modo, o projeto além mostrar grandes talentos
também, revelou o potencial que tem a escola pública, que mesmo diante das tantas
Página

dificuldades encontradas, tornou-se um cenário exemplar.

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Considerações

É muito desafiador O canto é uma ferramenta apropriada para propostas no ensino e


aprendizagem da música enquanto área de conhecimento e de promover o despertar artístico
dos alunos. Tem sido desafiador o exercício da docência na educação básica, mais
especificamente no que tange ao ensino de música. É dever de professores e estudantes buscar
constantemente estratégias para ensinar música com diferentes perspectivas e abordando o
máximo de conteúdos possíveis, mesmo diante da carência dos suportes necessários. Assim,
esperamos que esse trabalho possibilite reflexões acerca da prática docente em música,
possibilitando maiores oportunidades aos alunos da educação básica a desenvolverem
atividades musicais considerando suas especificidades, a fim de despertar seus talentos.

Referências

BEINEKE, Viviane. O ensino de flauta doce na educação fundamental. In: HENTSCHKE,


Liane; DELBEN, Luciana. Ensino de música: propostas para pensar e agir em sala de aula.
São Paulo: Moderna, 2003, v. , p. 86-100.

MATEIRO, Teresa et al. A prática do canto na escola básica: o que revelam as publicações da
ABEM (1992-2012). Revista da Abem, Londrina, v. 22, n. 33, p.57-76, jul./dez. 2014.

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PÔSTER

A CRÍTICA SOCIAL EM OS BRUZUNDANGAS NA PERSPECTIVA DO


NARRADOR

Jessé Carvalho Nunes (UERN)242


Natália Regina Oliveira Silva(UERN)243

Considerações iniciais

A literatura, em sua vasta abrangência de conhecimentos, permeia por vários estilos e


abordam diversos assuntos, cada um no período em que lhe compete essa abordagem. A
verossimilhança é um aspecto essencial e importante que a literatura trata, pois traz para a
narrativa, aspectos relacionados com a realidade. Gancho (2002) nos diz que verossimilhança
“é a lógica interna do enredo, que o torna verdadeiro para o leitor; é, pois a essência do texto
de ficção”. Nesse aspecto, vemos que a literatura denuncia uma realidade através da escrita,
como é notável em várias obras da literatura brasileira, como por exemplo, na obra O cortiço,
onde vemos que a busca pela ascensão social é maior que tudo e todos.
O pré-modernismo brasileiro foi um período de transição que ocorreu no início do
século XX. Era considerado de transição porque convivia com as tendências artísticas da
segunda metade do século XIX, e as novas ideias do modernismo que ganhou maior destaque
com a Semana de Arte Moderna, revolucionando as artes brasileiras. O Brasil no início do
século XX passou por várias mudanças no setor social, cultural e político, surgindo a ideia de
um país mais justo, mas as desigualdades continuaram, o poder político continua situado nas
mãos da elite brasileira. Nessa época o país vivia a política do café-com- leite, com a
economia totalmente predominada nas mãos dos latifundiários do café. As obras que surgiram
nesse período, diferentemente da arte conservadora que havia anteriormente era considerada
revolucionaria, com aspectos de modernidade.
Lima Barreto, nascido no Rio de Janeiro, autor negro e filho de pais humildes teve
oportunidade de estudar graças à ajuda do Visconde de Ouro Preto, fazendo curso secundário
no colégio Pedro II e cursando Engenharia, mas para cuidar do pai e da família teve que
1527

242
Graduando em Letras/Português pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN, no Campus
Avançado de Patu – CAP e bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência – PIBID.
Página

243
Graduanda em Letras/Português pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN, no Campus
Avançado de Patu – CAP e bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência – PIBID.

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abandoná-lo no terceiro ano. Lima Barreto, em sua infância enfrentou diversos problemas e
dissabores.
Os Bruzundangas, obra publicada após a morte do autor, traz uma denuncia social,
contra políticos que detinham poder naquela época, a burguesia, ou seja, aos cidadãos que
queriam obter prestigio social.
Nosso objetivo é analisar a questão de como o discurso do narrador é importante na
construção da narrativa; o quanto o posicionamento dele influencia na narrativa, enfatizando
suas relevâncias para estruturação da história.
O presente artigo está divido da seguinte forma: na primeira parte falaremos sobre os
aspectos característicos do autor Lima Barreto bem como o período a qual fez parte. Na
segunda parte apresentaremos as teorias que fundamentam o trabalho, falando sobre a
importância e contribuições que o narrador possui na narrativa, na terceira e ultima parte,
faremos uma análise de quatro crônicas da obra Os Bruzundangas, observando o olhar que o
narrador possui na obra em questão.

1 Lima Barreto: crítico social

A vida de Lima Barreto foi bem conturbada, sendo comum encontrar em suas obras
críticas a respeito à discriminação racial, era um autor que saía em defesa dos fracos e
oprimidos, sempre denunciado essa relação de dominação que as pessoas ricas impõem sobre
pessoas pobres e humildes. Abordava temas da difícil vida dos subúrbios das cidades em
comparação com a vida luxuosa das classes altas, revelando a grande diferença social
existente na sociedade (CEREJA E MAGALHÃES, 2000).

2 O narrador e suas contribuições na narrativa

Ao analisar um texto ficcional é de fundamental importância perceber e entender qual


a função de cada elemento da narrativa, suas características, suas diferenças. Esses aspectos
permitem ao leitor ter a possibilidade de fazer uma análise com mais precisão.
1528

Segundo Gancho (2002) O narrador é o elemento estruturador da história, não existe


narrativa sem narrador. Este mesmo autor ainda nos afirma que existem duas concepções de
narradores: narrador em primeira pessoa, que tem participação direta no enredo, como
Página

qualquer outro personagem, entretanto este tipo de narrador tem seu campo de visão limitado.

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O narrador personagem ainda divide-se em narrador testemunha, que não é personagem, mas
narra acontecimentos em que participou; e narrador protagonista que é também personagem
central do enredo. Nestes dois tipos apresentados, temos narradores que estão distantes dos
fatos narrados e, por isso, pode ser mais crítico de si mesmo.
O narrador em terceira pessoa, ou narrador observador, mesmo não participando
diretamente da historia, observa os fatos ocorridos no enredo. Caracteriza-se por sua
onisciência, pois sabe tudo sobre a história, até mesmo o pensamento dos personagens; e
onipresença, onde o narrador está presente em todos os lugares da historia. O narrador em
terceira pessoa pode ser intruso, onde o mesmo fala com o leitor e julga o comportamento dos
personagens; e narrador “parcial”, que é aquele que se identifica com determinado
personagem da historia e, mesmo não o defendendo explicitamente, faz com que esse
personagem tenha mais espaço na historia, do que os outros personagens (GANCHO, 2002).
Um dos equívocos que são comuns nas análises de obras literárias é o leitor confundir
o narrador com o autor do livro. O leitor tem que entender que o autor pode criar vários tipos
de narradores para narrar suas historias. Portanto, se trata de um elemento que só existe dentro
do texto ficcional. Franco Júnior vem dizer que:

A primeira coisa que se deve saber sobre narrador é que ele é uma categoria
específica de personagem, e não deve, portanto, ser confundido com o autor
do texto, por mais próximo que pareça estar deste. Autor, para ficarmos com
uma simplificação externa, é aquele que cria o texto e narrador é uma
personagem que se caracteriza pela função de, num plano interno à própria
narrativa, contar a historia presente num texto narrativo (FRANCO JUNIOR,
2009, p. 40).

Quando se faz a leitura de uma obra, o leitor tem que saber identificar as
características, saber distinguir que tipo de narrador está contando a história, se está em
primeira ou em terceira pessoa. Esse fato contribui muito no momento da análise, pois cada
um transmite uma interpretação diferente, indicando o seu grau de participação, conduzindo o
leitor para determinada forma de entendimento. Cada narrador tem sua própria forma de
conduzir à narrativa. Franco Junior nos diz ainda que:
1529

Uma possível classificação do narrador segundo os critérios anteriormente


citados estabelece uma relação entre a pessoa do discurso utilizada para
narrar e o grau de participação do narrador na historia que narra. Assim, o
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narrador que utiliza a 1ª pessoa do discurso (eu/nós) seria classificado como


narrador participante, já que evidenciaria a sua participação na história

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narrada. Por sua vez, o narrador que utiliza a 3ª pessoa do discurso (ele/eles)
seria classificado como narrador observador, pois a 3ª pessoa evidencia o
distanciamento em relação a historia narrada (FRANCO JUNIOR, 2009).

O narrador tem muitas funções em um texto ficcional. Como podemos perceber, é de


suma importância essa mediação que se estabelece entre narrador e leitor. É através dele que
conhecemos o lugar onde se passa a historia, o tempo em que os fatos ocorreram. Somos
apresentados aos personagens, passamos a entender os problemas que faz parte de suas vidas
e consequentemente, entendemos o enredo do texto. O narrador conduz o leitor desde a
apresentação dos fatos até o desfecho, ou seja, através da descrição que ele faz contando
detalhadamente todos os fatos e que permite o leitor entrar no mundo ficcional. Franco Junior
apud Aguiar e Silva nos diz:

A voz do narrador tem como funções primarias e inderrogáveis uma função


de representação, isto é, a função de produzir intratextualmente o universo
diegético – personagens, eventos etc. -, e uma função de organização e
controle das estruturas do texto narrativo, quer a nível tópico
(microestruturas), quer a nível transtópico (macroestruturas). Com funções
secundarias e não necessariamente actualizadas, a voz do narrador pode
desempenhar uma função de interpretação do mundo narrado e pode
assumir uma função de ação neste mesmo mundo (a assunção destas ultimas
funções repercute-se nas duas primeiras e suscita problemas focalização
(FRANCO JUNIOR, 2009, p. 41).

Sabemos da importância de identificar o modo como o narrador escolheu para contar a


historia. A partir desse aspecto percebemos se ele conta com o intuito de manipular o
pensamento do leitor, sugerindo situações para levá-lo a ter uma determinada visão. Podemos,
no entanto, encontrar narradores que são neutros, que apenas contam a historia sem se
influenciar na interpretação, apenas fazendo a narração dos acontecimentos, sem tomar
partido de nenhuma situação. Outros narradores fazem crítica no texto, em que o leitor
percebe nas entrelinhas da narração, fazendo com que a interpretação seja guiada para
determinado ponto. Podemos identificar que cada narrador tem seu ponto de vista. Franco
Junior nos afirma:
1530

A focalização corresponde, como o próprio nome sugere, à posição adotada


pelo narrador para narrar à história, a seu ponto de vista, o foco narrativo é
um recurso utilizado pelo narrador para enquadrar a história de um
determinado ângulo ou ponto de vista. A referência à visão, aqui, não é
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casual. O foco narrativo evidencia o propósito do narrador (e, por extensão,


do autor) de mobilizar intelectual e emocionalmente o leitor, manipulando-o

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para aderir às ideias e valores que veicula ao contar a historia (FRANCO
JUNIOR, 2009, p. 42).

As possibilidades de foco narrativo são muitas e distintas uma das outras, por isso
torna-se necessário a delimitação do objeto de estudo. Sendo muitas as questões a serem
respondidas para se chegar a qual posição o narrador se encontra no momento da narração.
Saber se ele se expressa por meio de pensamentos, se está fazendo uma crítica, se está
transmitindo o seu próprio sentimento ou se apenas descreve fatos que presenciou. Tudo isso
pode ser percebido pelo posicionamento que ele adota para contar a historia. Com isso
constrói-se uma relação com o leitor, podendo aproximá-lo dos fatos narrados, por existir uma
identificação entre o mundo ficcional e a realidade de quem ler, ou pode afastá-lo ficando
evidente o poder que o narrador exerce sobre o leitor através de seu posicionamento.

Benjamin nos diz:

A experiência que passa de pessoa para pessoa é a fonte a que recorreram


todos os narradores. E, entre as narrativas escritas, as melhores são as que
menos se distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros narradores
anônimos. Entre estes, existem dois grupos, que se interpenetram de
múltiplas maneiras. Figura do narrador só se torna plenamente tangível se
temos presentes esses dois grupos. “Quem viaja tem muito que contar”, diz o
povo, e com isso imagina o narrador como alguém que vem de longe
(BENJAMIN, 1994).

O autor nos traz a concepção de que o narrador tem muito a nos ensinar, pois a partir
das experiências vividas, traz novas formas de aprendizado. Forma um conceito de que o
narrador é um ser que viaja e perpassa por várias fontes e caminhos, e por isso diz que quem
viaja tem muito que contar, pois conhece outros meios e modos ensinamento/aprendizado.
É visível para o leitor, ao debruçar-se na obra em análise, que o narrador possui um
leque de conhecimento de diversas áreas de abrangências, pois o mesmo conta a historia do
país, trazendo comparações a outros países, mostrando assim que possui viagens e
conhecimentos sobre determinados assuntos.
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3 O olhar do narrador na narrativa os bruzundangas

Lima Barreto, em suas obras aborda temas relacionados a questões sociais, como
percebemos tanto na obra Triste fim de Policarpo Quaresma, quanto na obra em análise Os
Bruzundangas, onde ele trata de questões da alta burguesia, lutava pelos direitos iguais para
todos.

O título — doutor — anteposto ao nome, tem na Bruzundanga o efeito do —


dom — em terra de Espanha. Mesmo no Exército, ele soa em todo o seu
prestígio nobiliárquico. Quando se está em face de um coronel com o curso
de engenharia, o modo de tratá-lo é matéria para atrapalhações protocolares.
Se só se o chama tout court — doutor Kamisão — ele ficará zangado porque
é coronel; se o designa unicamente por coronel, ele julgará que o seu
interlocutor não tem em grande consideração o seu título universitário-
militar. Os prudentes, quando se dirigem a tais pessoas, juntam os dous
títulos, mas há ainda aí uma dificuldade na precedência deles, isto é, se
devem designar tais senhores por — doutor coronel — ou — coronel doutor
(BARRETO, p. 34).

É notável no trecho uma crítica social do narrador, com relação à questão do prestigio social
que os habitantes de bruzundanga almejavam. Podemos perceber que as pessoas que ali viviam,
objetivavam em sempre possuir títulos de nobreza e de doutor, mesmo sem ter mérito ou ter estudado
para obter tais títulos. É notável neste trecho um belo exemplo disso, pois as pessoas queriam ser
chamadas pelos dois títulos que possuíam, pois assim mostrava que eles estavam em alta.
Outro ponto que percebemos na sátira Os Bruzundangas, é em relação a literatura daquele
país, ou como o próprio narrador diz “o que era considerado literatura” pelos cidadãos de
bruzundanga, nos trazendo a concepção de que tudo era considerado literatura.

Quando abrimos qualquer compêndio de geografia da Bruzundanga; quando


se lê qualquer poema patriótico desse país, ficamos com a convicção de que
essa nação é a mais rica da terra.
"A Bruzundanga, diz um livro do grande sábio Volkate Ben Volkate, possui
nas entranhas do seu solo todos os minerais da terra” (BARRETO, 1923, p.
45).

Podemos perceber que o narrador, no capitulo V nos apresenta as riquezas da


Bruzundanga, mostrando detalhadamente quais são as fontes de riquezas que o país usa para o
1532

fortalecimento da nação. Ele nos diz que o país dispõe de muitas riquezas, dando a ideia de
que nele todas as pessoas vivem em grande abundancia, com minas de ouro, diamante,
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esmeralda, tendo em suas terras grandes diversidades de plantas como: o café, a cana – de –

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açúcar, o pé de cacau e a seringueira, árvore responsável pelo progresso de uma região do
país, dando a entender que pelas riquezas naturais que nela existe, sua população vivia em
condições dignas. “Entretanto, quem examinar com calma esse ditirambo e o confrontar com
a realidade dos fatos há de achar estranho tanto entusiasmo” (BARRETO, 1923, p. 45).
Neste trecho, podemos perceber que o narrador nos apresenta essa dualidade em
situações bem extremas, de um lado o “dominador”, que usufrui de todas as regalias de seus
recursos, perpetuando o poder nas mãos de sua família e do outro os “dominados”, que são
pessoas pobres, trabalhando a vida toda, cuidando e produzindo as riquezas oriundas da terra,
em benefício do crescimento da nação, mas que a maioria da população é constituída de
pessoas humildes vivendo em condições desumanas, sem nenhuma perspectiva de melhoria.
Entretanto, em uma análise mais profunda, ele nos mostra que as grandes riquezas
naturais só beneficiavam a elite agrária, deixando os trabalhadores rurais em condições de
vida muito precária, com mortes e famílias sem ter com que se alimentarem. Tomamos
conhecimento de todos esses aspectos, através da visão de um narrador em terceira pessoa,
que observou os fatos e nos apresenta o modo de vida daquela sociedade.

Os meninos ou rapazes, que se destinam a elas, não têm medo absolutamente


das dificuldades que o curso de qualquer delas possa apresentar. Do que eles
têm medo, é dos exames preliminares. De forma que os filhos dos poderosos
fazem os pais desdobrar bancas de exames, pôr em certas mesas pessoas
suas, conseguindo aprovar os pequenos em aritmética sem que ao menos
saibam somar frações, outros em francês sem que possam traduzir o mais
fácil autor. Com tais manobras, conseguem sair-se da alhada e lá vão, cinco
ou seis anos depois, ocupar gordas sinecuras com a sua importância de
"doutor" (BARRETO, 1923, p. 48).

Fica claro que, os profissionais que existe em Bruzundanga, não mereciam muita
confiança, pois na maioria das vezes, ao termino do curso eles saem mais ignorantes do que
quando lá entraram, mostrando a importância que essa população tem com a educação,
disponibilizando um ensino de baixa qualidade, não oportunizando o aperfeiçoamento do
senso crítico dos seus cidadãos, criando pessoas com pensamentos fúteis e mesquinhos,
deixando de lado um fator que contribui para a formação intelectual do individuo, que é uma
boa educação.
1533

Há casos tão escandalosos que, só em contá-los, metem dó. Passando assim


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pelo que nós chamamos preparatórios, os futuros diretores da República dos


Estados Unidos da Bruzundanga acabam os cursos mais ignorantes e

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presunçosos do que quando para lá entraram. São esses tais que berram:
"Sou formado! Está falando com um homem formado!" (BARRETO, 1923
p. 48).

O ensino que é disponibilizado nas escolas de bruzundanga é algo que merece


destaque, pois o que prevalece nelas não é o grau de conhecimento que seus alunos possuem,
mas sim o quanto de recursos financeiros os pais tem para contribuir com a instituição. Sendo
comum os pais pagarem para os filhos conseguirem concluir em seus respectivos cursos,
entretanto, quando chegam no mercado de trabalho, são profissionais desqualificados, porque
tiveram um ensino de baixa qualidade, contribuindo para a sua má formação. Vemos aqui
mais uma crítica em relação à desigualdade social, os humildes e pobres são deixados de
lados e os da alta sociedade com grande patrimônio econômico têm mais destaque. Não dão
oportunidade a todos. Fica evidente que para eles o que interessa é exibir seus diplomas, seja
em direito, medicina, engenharia, em fim, para com isso ganhar prestigio e glória no país. O
narrador nos mostra o quanto o pensamento da “alta” sociedade desse país é fútil.

Os que formam direitamente a grande sociedade, são os médicos ricos, os


advogados afreguesados, os tabeliães, os políticos, os altos funcionários e os
acumuladores de empregos públicos.
Por mais que se esforcem, por mais que queiram, semelhantes homens,
atarefados dia e noite, nos escritórios, nas repartições, nos tribunais, nos
cartórios, na indústria política, não podem ter o repouso de espírito, o ócio
mental necessário à contemplação desinteressada e à meditação carinhosa
das altas cousas. Limitam-se a pousar sobre elas um olhar ligeiro e
apressado; e a preocupação de manter os empregos e fazer render os
cartórios, tirar-lhes-á o sossego de espírito para apreciar as grandes
manifestações da inteligência humana e da natureza (BARRETO,1923, p.
71).

Percebemos claramente que, apenas quem faz parte da sociedade de Bruzundanga são
pessoas formadas e que tem grandes posses econômicas. A outra parte da população é
composta por pessoas humildes e trabalhadoras, que não se encontram incluídas dentro dessa
sociedade, mostrando o descaso com as pessoas pobres. É algo comum de se encontrar em
uma sociedade, pois pessoas que não tem dinheiro não são consideradas como sendo da
sociedade, pelo contrario, elas vivem a margem. As pessoas que detêm o poder, em nada
1534

contribuem para mudar essa situação, pelo contrário, para eles está bom do jeito que está, pois
pessoas que não tiveram acesso à educação não se revoltam contra as regras que o governo
Página

estabelece, pois desconhecem seus direitos e deveres, porque não tiveram a oportunidade de

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obter uma educação que lhes proporcionasse o exercício de sua cidadania. O narrador faz uma
crítica importante sobre o descaso com as pessoas de classes sociais menores.
Por ser característica do narrador em análise, ele detalha os acontecimentos de maneira
muito clara, pois sendo um narrador em terceira pessoa ele sabe de todos esses fatos e nos
apresenta sua visão sobre a situação.

Considerações finais

O presente trabalho, partiu de uma pesquisa bibliográfica, onde analisamos algumas


crônicas da obra Os Bruzundangas, escrita pelo autor Lima Barreto, que por ser do período
pré-modernista, utiliza uma linguagem simples para escrever suas obras, sempre voltado para
questões sociais, entre elas a discriminação racial, criticando a postura de pessoas influentes
da sociedade.
Nessa perspectiva buscamos identificar o posicionamento do narrador, que a todo
instante, usando um tom irônico, denuncia as mazelas existentes no país Bruzundanga. A
análise interpretativa da obra foi feita com o intuito de analisar a influência e contribuições do
narrador na construção da narrativa. Mostrando a relevância do narrador na obra, abordando
todos os acontecimentos que se passa nesse país.
O reconhecimento das características desse narrador nos permite entender o modo
como a historia esta sendo narrada, contribuindo para uma interpretação adequada das
crônicas presentes no livro.
De acordo com os fatos mencionados concluímos que, a partir dos resultados obtidos
pela pesquisa feita sobre o narrador, o presente trabalho contribuiu pra o reconhecimento das
funções que o narrador desempenha dentro de um texto, mostrando que esse elemento da
narrativa exige um estudo mais aprofundado para entender que existem vários tipos de
narradores e que cada um conta a historia de formas diferentes, ou seja, cada um tem suas
particularidades que precisam ser reconhecidas em um texto ficcional.

Referências
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BARRETO, Lima. Os Bruzundangas. 3. ed. São Paulo: Ática, 2005.


Página

ISBN: 978-85-7621-221-8
BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. Magia e
técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense,
1994, p. 197-221.

CEREJA, William Roberto e MAGALHÃES, Thereza Cochar. Literatura Brasileira. 2. ed.


Atual editora. 2000.

GANCHO, Cândida Vilares. Como analisar narrativas. São Paulo: Ática. 2002.

JUNQUEIRA, Eduardo. Lima Barreto, escritor e jornalista:


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NEEDELL, J. Belle; STEGAGNO-PICCHIO, L. História.

FRANCO JÚNIOR, Arnaldo. Operadores de leitura da narrativa. 3. ed. 2009.

MOURA, Samara Loureiro de. Lima Barreto: um mulato intelectual na bruzundanga. Porto
Alegre. 2010.

NORONHA, Carlos Alberto Machado. Lima Barreto entre lutas de representação: uma
análise da modernização da cidade do Rio de Janeiro no início do século XX. Feira de
Santana, 2009.

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ISBN: 978-85-7621-221-8
PÔSTER

ETHOS, NACIONALISMO E POPULISMO: UMA ANÁLISE DO DISCURSO DE


POSSE DE DONALD TRUMP

Ana Carolina da Silveira Costa Santiago** (UERN)


Emerson Ricardo de Souza Brasil** (UERN)
John Cleberson Carlos da Silva** (UERN)

Uma Introdução

Este campo do saber teve seu início nos anos 60, na necessidade de estudar o sentido
das falas produzidas pelo homem, onde a linguagem é vista com outras perspectivas
diferentes das que estavam habituadas como a análise do sistema de signos, das regras
formais de escrita e fala. Como Orlandi afirma (2000), a Análise do Discurso veio para mudar
essa área de estudo (a linguagem), por ser um campo de conhecimentos fronteiriço, ele se
entrelaça com a Linguística, o Marxismo, a Historicidade do homem e a Psicanálise, sendo
assim por isso que não deve ser delimitada apenas pelo nome de “disciplina”.
A Análise do Discurso, como seu próprio nome indica, não trata da língua, não trata da
gramática, embora todos esses temas lhe interessam (ORLANDI, 2000). Não dá para analisar
o discurso separando-o das demais áreas em que está intrinsecamente relacionado, mas o foco
de seu estudo está na palavra em ação, no curso da linguagem, seu movimento e metamorfose,
na observação do homem enquanto fala. Para AD o discurso é uma mediação entre o homem
e sua realidade histórica e socioeconômica, na produção da fala se materializa o discurso e na
materialização do discurso podemos identificar as ideologias de cada indivíduo para que
assim se possa transformar o homem e sua realidade através de suas próprias palavras.
Pêcheux (1975) afirma que não há discurso sem sujeito e não há sujeito sem ideologia: o
indivíduo é interpelado em sujeito pela ideologia e é assim que a língua faz sentido.

“Washington floresceu, mas o povo não compartilhou sua riqueza”


(TRUMP, 2017).

Em que sentido Trump nos traz essa palavra “florescer” em meio seu discurso de
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posse? Florescer aqui vem denotando crescimento, desenvolvimento em uma parte da


América enquanto que a outra sofre, a parte e esquecida. Donald Trump em vários de seus
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discursos, antes do seu discurso de posse de fato, se mostra ser um homem hostil em alguns

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aspectos e com algumas situações (imigração, fronteiras, raças), contudo gradualmente vai
delineando sua imagem e com sua argumentação consegue atrair uma maioria esmagadora a
seu favor.

Uma das primeiras coisas que Trump fez foi demonstrar desprezo pelo
“politicamente correto”, o que era também uma forma de dizer às pessoas
que elas podiam recuperar alguma dignidade humana e deixar de ser
bichinhos insignificantes face às divindades da política norte-americana
(MÍDIA SEM MÁSCARA, 2016).

A proposta intelectual em que se situa a AD é marcada pelo fato de que a noção de


leitura é posta em segundo plano, enquanto que o sentido construído é o verdadeiro foco de
análise (ORLANDI, 2000). Dar sentido ao mundo e as coisas é a base para o desenvolvimento
do ser ‘humano’ como ser social, o sentido é a força que move os sujeitos e suas respectivas
atividades sociais na realidade em que estão inseridos, uma única coisa pode ter diferentes
sentidos dependendo do seu contexto, de seus interlocutores e da situação onde foi colocada.
A língua se insere na história para produzir sentidos, e o analista precisa romper com os
limites das estruturas linguísticas para compreender do que se constitui o discurso em si
(FERNANDES, 2005).
O discurso como objeto de análise em questão neste artigo, será o discurso político
construído na posse da presidência dos Estados Unidos da América, pelo então eleito Donald
Trump. Que tipo de ethos político o candidato Trump quis construir e quais as estratégias ele
utilizou para atingir seus objetivos, quais efeitos de sentido foram construídos depois de sua
vitória?
Em seu discurso de posse, Trump traz à tona o tema ‘América para os americanos’, no
qual a sua fala é dedicada a esse enfoque como algumas das partes citadas a seguir:

“Juntos iremos determinar o curso da América e do mundo por muitos,


muitos anos” (TRUMP, 2017) ou
“Vamos tirar nosso povo do seguro-desemprego e colocá-los de volta ao
trabalho, reconstruindo nosso país com mãos americanas e trabalho
americano” (TRUMP, 2017).
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É essa vertente ultranacionalista que ele aborda, procurando ganhar a confiança


daqueles que se sentem perdidos dentro de um país que apesar de tudo continua sendo uma
das maiores potencias mundiais. Trump, se coloca entre o povo e fora do corpo político, ele se
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coloca como um americano como todos os outros que anseiam por mudanças radicais;

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observe que o Trump só é o que é hoje porque outros discursos de pessoas comuns interagiam
com o discurso construído pelo candidato e então presidente dos EUA. Donald Trump assume
o posto de presidente não só por causa própria, mas por uma causa compartilhada entre
milhões de pessoas que se identificam com o mesmo.

“Não iremos mais aceitar políticos que são apenas discurso e nenhuma ação
– constantemente reclamando, mas nunca fazendo nada a respeito”
(TRUMP, 2017).

Acima, mais uma passagem onde ele se põe no lugar do cidadão americano que quer
mudanças de verdade e não apenas falácias, toda essa imagem construída de si perante seu
eleitorado foi de fato o que elevou Trump a seu status hoje, seja essa imagem verdade ou não,
foi a verdade que ele construiu e a verdade que seu eleitorado recebeu.
Na perspectiva Bakhtiniana, um discurso precisa de outro para ser, ou seja, um
discurso não pode ser discurso sozinho, ele precisa interagir com outras práticas discursivas,
nessa perspectiva uma voz não existe isoladamente como confirma Wertsch (1993),
“...meaning can come into existence only when two or more voices come into conctact: when
the voice of a listener responds to the voice of a speaker”.

O Discurso Político

O discurso político, sendo um conjunto de pensamentos ideológicos com toda uma


carga social e histórica forma um dizer que será usado diretamente a um público do qual o
sujeito político usará de elementos persuasivos para convencer seu público específico com a
finalidade de um bem comum (CHARAUDEAU, 2006).
A linguagem é o meio pelo qual o discurso é direcionado ao outro, essa relação entre
discurso e linguagem é algo inseparável, não há outra maneira de direcionar o discurso para
alguém sem a utilização de um veículo que transfere toda a carga discursiva do enunciador.
Assim toda as informações de memória, ideológicas e sociais são transmitidas para o
enunciatário de forma que todo o discurso já foi produzido para causar efeito no outro. Esses
efeitos que são levados juntamente com o discurso, são efeitos de sentido produzidos em um
1539

ato de enunciação (FERNANDES, 2008), em que os sujeitos transferem um ao outro os


efeitos, de modo que a palavra poderá fazer sentido, mas claro dependendo de todo um
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contexto ideológico, sócio histórico do qual os mesmos sujeitos estão inseridos. Portanto uma

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palavra poderá produzir diferentes sentidos dependendo do que o locutor pronunciará e para
quem a palavra será direcionada.

O sujeito político é o ponto de condensação entre linguagem e ideologia, o


lugar onde os sistemas de conhecimento político se articulam na
competência linguística, diferenciando-se um do outro, mesclando-se um ao
outro, combinando com um outro ou afrontando-o em uma determinada
conjuntura política (COURTINE, 2006, p. 64).

O discurso político conta com um ator político e seu alvo que pode ser além dos
eleitores os próprios colegas de partido, como também seus adversários. Dessa forma o
discurso passa a ter sentido, no que diz respeito a produzir o discurso para que possa fazer
sentido para alguém e esse alguém o aderir ou não, assim pode-se afirmar a importância de
existir o outro lado, o meio final pelo qual o discurso chega através da linguagem para que
esse discurso faça algum efeito no ouvinte. Esse discurso político é construído principalmente
com o objetivo de convencer e até persuadir o alvo, trata-se de um discurso planejado, bem
arquitetado, formado de acordo com o contexto ideológico e histórico do orador para com o
do alvo ouvinte.
Esse dizer político, diz respeito a uma verdade imposta pelo enunciador do discurso ao
enunciatário que poderá ou não aceitar sua palavra como verdadeira para si, trata-se de um
jogo argumentativo no discurso. Não só o discurso político, mas também como todo discurso
é um discurso dirigido, há sempre um alvo ou vários no caso de uma grande plateia, por isso o
discurso passa a ser considerado uma ação sobre o outro como afirma Fiorin, “O uso de
determinado discurso é, de certa forma, uma ação no mundo (FIORIN, 2007, p. 75). Essa
ação que atua no mundo é a ação que o discurso causa, movendo as pessoas que por sua vez
atuam no mundo político.
Mais adiante iremos observar algumas das principais ferramentas utilizadas no meio
político discursivo para então ganhar a admiração e confiança do eleitor. Quando o ator
político constrói sua imagem (ethos) aceitável ao outro além de também uma certa comoção
e/ou outras emoções (pathos) no ouvinte resultando muitas vezes no consentimento do povo
ao ouvir o discurso produzido.
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A construção do ethos de Donald Trump em seu discurso de posse

O locutor usará de elementos persuasivos para que ele edifique sua credibilidade
perante seu público, ou seja, a construção de uma figura ou imagem (ethos) favorável a ele
próprio e que favoreça ao público alvo. Esse discurso servirá de apoio na conquista de seus
objetivos enquanto candidato.
O enunciador político está em uma condição que nenhum outro poderia, ele está
empossado de um poder ao qual lhe foi dado, e este poder foi conseguido por mérito de
confiança, “O poder não é então algo que alguém possa deter, ou o que pode emanar de
alguém, existe em relações de forças, é marcado por dispersão, sofre intermediações, apoios
recíprocos etc.” (FERNANDES, 2012, p. 52), essa confiança o candidato construiu através de
sua imagem junto ao seu público, seus interlocutores.
Vejamos um trecho do momento em que o atual presidente norte americano tenta
passar a imagem de cuidador seu povo.

“Os homens e mulheres esquecidos de nosso país não serão mais


esquecidos” (TRUMP, 2017).

Nesta passagem do discurso, o candidato busca o sentido na memória do seu eleitor,


suas desilusões com os representantes passados.

“20 de janeiro de 2017 será lembrado como o dia em que o povo se tornou o
comandante desta nação novamente” (TRUMP, 2017).

“As vitórias dele não foram as suas vitórias. O triunfo dele não foi o de vocês. E
enquanto eles celebravam em nossa capital, havia pouco para celebrar para famílias
em dificuldade ao redor de todo o país” (TRUMP, 2017).

Já em outros momentos do discurso, o candidato vem trazendo à tona o sentido histórico


dos acontecimentos anteriores para reforçar seu ethos nacionalista e populista, já que na
maioria das vezes a construção do ethos do enunciador se dá a partir da interação verbal.
“Logo, observamos que todo ato de linguagem é, inevitavelmente, um agir sobre o outro de
1541

modo que é a língua o principal instrumento de persuasão utilizado pelo locutor” Chareudeau
(2006, p. 253).
Trump faz uso de fragmentos históricos dos governantes passados para tornar o
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discurso anterior inferior ao seu próprio atual.

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“Por muitas décadas enriquecemos a indústria estrangeira às custas da indústria
americana” (TRUMP, 2017).

“Subsidiamos os exércitos de outros países enquanto permitíamos ao muito triste


esgotamento de nosso poder militar” (TRUMP, 2017).

“Nós defendemos as fronteiras de outros países enquanto nos recusamos a defender


as nossas próprias” (TRUMP, 2017).

“E gastamos trilhões e trilhões de dólares além-mar, enquanto a infraestrutura dos


Estados Unidos caiu em degradação e deterioração” (TRUMP, 2017).

Para Maingueneau (2005) essa imagem do adversário político se denomina antiethos,


a criação dessa oposição está relacionada ao reflexo da sua própria imagem, ao qual ele terá
que mostrar que seu adversário é o reflexo negativo de seu ethos, um espelho de suas ideias.

“Deste dia em diante, uma nova visão vai governar nossa terra. Deste dia em
diante, vai ser só a América primeiro, a América primeiro” (TRUMP, 2017).

“A América vai começar a vencer de novo, vencer como nunca antes”


(TRUMP, 2017).

Usando um sentimento patriótico, Trump busca fortificar sua imagem criada perante
seu país, e agora produz discursos buscando unir todos os que nele votaram e os que não.

“Não iremos mais aceitar políticos que são apenas discurso e nenhuma ação
– constantemente reclamando, mas nunca fazendo nada a respeito”
(TRUMP, 2017).

Acima, mais uma passagem onde ele se põe no lugar do cidadão americano que quer
mudanças de verdade e não apenas falácias, toda essa imagem construída de si perante seu
eleitorado foi de fato o que elevou Trump a seu status hoje, seja essa imagem verdade ou não,
foi a verdade que ele construiu e a verdade que seu eleitorado recebeu.

O pathos e sua intencionalidade no Discurso Político


1542

Assim como o ethos, o pathos é usado com a finalidade discursiva de persuadir o


auditório através do uso de certas palavras e expressões, mas, ao contrário do primeiro, esse
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atá ligado a imagem que é feita do público-alvo pelo orador. Através dessa imagem é feita

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uma seleção de temas que podem estar ligados a esse público no intuito de ativar certas
memórias que possam despertar emoções na plateia. É importante destacar que essa imagem
do público está ligada também à imagem que o orador está criando para si, pois a escolha das
palavras e emoções que serão propagadas fará com que o ethos seja reforçado ou
desconstruído.
No discurso de posse do presidente Donald Trump é claro o uso desse recurso retórico
na construção da imagem do seu eleitorado. Vejamos a seguir como o pathos foi usado de
forma a favorecer a imagem do candidato eleito:

“Nós vamos reforçar alianças antigas e formar novas - e unir o mundo


civilizado contra o terrorismo radical islâmico, que vamos erradicar
completamente da face da Terra” (TRUMP, 2017).

Nesse breve enunciado o presidente dos Estados Unidos trouxe aos seus espectadores
a memória dos diversos atentados terroristas sofridos pelo país, que causaram grande dor à
nação e, provavelmente, provocou fortes emoções nos que ouviam o discurso.
Para compreender melhor essa relação do pathos com a ativação de memórias
recorremos a Charadeau (2007), que diz que as emoções estão ligadas ao conhecimento
prévio do leitor e suas experiências de vida, sendo através dessas experiências que o orador
desperta empatia no seu público-alvo. Ainda nessa concepção, o pathos está ligado, não ao
sentir, mas ao fazer sentir. Caes (2012), também considera que esse recurso é “muito mais do
que apenas racionalidade humana, é sofrer na pele.”. Sendo assim, a preocupação do orador
não será o sentido lógico das palavras, e sim o significado emocional que ela pode
desencadear nos ouvintes, no trecho acima, a lembrança das mortes violentas nos atentados
terroristas.
Um outro ponto de destaque no discurso político e que envolve a criação do pathos é o
populismo. Esse recurso é entendido em Charadeau (2007) pela criação de uma situação
caótica ou de crise que seja propícia para o surgimento do orador como o “salvador da pátria”.
O discurso de posse de Donald Trump foi considerado por diversos cientistas políticos um
discurso bastante populista, tendo em vista que ele enfatizou a atual situação socioeconômica
1543

do país, mas deixando claro que isso ficaria no passado, como podemos analisar a seguir:

“Mães e crianças presas na pobreza das zonas carentes de nossas cidades,


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fábricas enferrujadas espalhadas como lápides pela paisagem de nosso país”


(TRUMP, 2017).

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“Vamos trazer de volta nossos empregos. Vamos trazer de volta nossas
fronteiras. Vamos trazer de volta nossa riqueza, e vamos trazer de volta
nossos sonhos” (TRUMP, 2017).

No primeiro fragmento Trump usa a imagem de crianças pobres para sensibilizar os


americanos e lembrá-los que isso é resultado do governo anterior. Na segunda fala o
presidente se coloca como solucionador dessa situação, na intenção de conseguir novos
adeptos a seu discurso. Essa sequência de enunciados possibilita a construção do ethos de
Donald Trump como um sujeito que trará de volta os “bons tempos” à América, destacando
assim o caráter populista de seu discurso.

Considerações finais

Como observamos até aqui, o discurso político leva uma vasta carga de aspectos e
conceitos que permitem a compreensão dessa importante construção discursiva na sociedade.
Dito isto, o discurso político não diferente de outros discursos utiliza de formas de construção
de sentidos como também elementos para conseguir a aceitação de um determinado público.
Conseguimos perceber como a análise discursiva nos orienta a enxergar o discurso de uma
outra maneira mais relevante no contexto social.
A partir dos enunciados analisados fica evidente as intencionalidades do discurso do
presidente norte-americano Donald Trump, assim como a construção de sua imagem e da
imagem dos cidadãos que ouviriam o seu discurso. Com base na teoria estudada podemos
concluir que o discurso político deve ser analisado de forma crítica, com base na historicidade
e no contexto social que lhe compõe.

Referências

CAES, V. Existência na dimensão de pathos em Kierkegaard: o conceito de paixão (pathos).


Revista Eletrônica do Curso de Pedagogia OPET, dez, 2012.

CHARAUDEAU, P. Discurso das mídias. São Paulo: Contexto, 2006.

CHARADEAU, P. Pathos e o discurso político. In. MACHADO, I; MENEZES, W;


1544

EDUARDO, Luiz Felipe Melo. As estratégias do Discurso político: uma análise de imagens
e procedimentos llinguisticos. Palimpsesto, Rio de Janeiro, n. 19, out./nov. 2014, p. 459-475.
Página

ESTEVES, L. B., NASCIMENTO, D. M. do. Revista Anagrama: Revista Cientifica


Interdiciplinar da Graduação, ano 4, ed. 4, jun./ago., 2011.

ISBN: 978-85-7621-221-8
MENDES, E. As emoções no discurso. Rio de Janeiro: Lucerna. 2007. p. 240-251.

Notas sobre o debate Hillary x Trump. Disponível em:


<http://midiasemmascara.org/artigos/cultura/notas-sobre-o-debate-hillary-x-trump/>.
Acessado em: 28 de maio de 2017.

COURTINE. Metamorfoses do discurso político. Derivas da fala pública. Trad. Nilton


Milanez; Carlos Piovezani Filho. São Carlos (SP): Editora Claraluz, 2006. 157 p.

FERNANDES, Cleudemar Alves. Análise do Discurso: Reflexões Introdutórias. 3. ed. [S.l.]:


Claraluz, 2008.110 p.

FERNANDES, Cleudemar Alves. Discurso e Sujeito em Michel Foucault, Cleudemar Alves


Fernandes. Apresentação de Vanice Sargentini. São Paulo: Intermeios, 2012.

FIORIN, Jose Luiz. Linguagem e ideologia. 8. ed. São Paulo: Ática, 2007.

MARQUEZ, Welisson. Discurso, Mídia e Política: Da Utopia ao Caos sob analise. Revista
Veredas Atematicas, v. 17, n. 02, 2013.

ORLANDI, Eni. Análise de Discurso: princípios e procedimentos. 2. ed. Campinas: Pontes,


2000.

WERTSCH, James, V. Voices of the mind. Cambridge, Mass: Harvard University, 1993.

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PÔSTER

DRAMATURGIA BARROCA: UM ESTUDO DAS METÁFORAS PRESENTES EM


EL GRAN TEATRO DEL MUNDO, DE CALDERÓN DE LA BARCA

Kamila Rayanne Alves de Melo (UERN) 244


Márcia Socorro Ferreira de Andrade Silva (UERN) 245

Introdução

A presente pesquisa adotou os pressupostos teóricos da teoria da metáfora conceitual


de Lakoff e Johnson (2002) e teve um texto literário como corpus para a análise dos dados, a
obra literária do barroco espanhol El gran teatro del mundo, de Calderón de La Barca. Nossa
questão de pesquisa foi: Quais as metáforas conceituais exploradas por Calderón de La
Barca em sua obra El gran teatro del mundo acerca da existência humana?
Lacoff e Johnson (2002) afirmam que o “nosso sistema conceptual é
metaforicamente estruturado” (LACOFF E JOHNSON, 2002, p. 127), assim compreendemos
que a nossa mente já advém com esse código previamente estabelecido a partir de nossas
experiências cotidianas.
Na literatura, esse sistema opera da seguinte forma: uma obra literária, na maioria
das vezes, irá nos remeter a outra já existente ou a fatos da vida cotidiana. El gran teatro del
mundo reflete exatamente que a dramatização da peça teatral é tão somente a vida humana
sendo representada num teatro e que as experiências expressas na obra são as mesmas que os
espanhóis viviam na época.
Este artigo é um recorte de nosso trabalho monográfico de conclusão de curso e está
dividido em três partes. Iniciamos com os pressupostos teóricos acerca da metáfora, onde
explicamos as teorias nas quais nos baseamos para nossa pesquisa; em segundo lugar
expomos a metodologia da pesquisa, onde explicamos o corpus e relatamos os procedimentos
para a identificação das metáforas conceituais e de suas correspondentes expressões
metafóricas, e; finalmente, as considerações finais e as referências bibliográficas que usamos
para a pesquisa.
1546

244
Aluna do 8° período do curso de Letras com Habilitação em Língua Espanhola, do Núcleo Avançado de
Educação Superior de Apodi- NAESA/UERN.
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Professora do Departamento de Letras Estrangeiras da Faculdade de Letras e Artes da Universidade do Estado
do Rio Grande do Norte.

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1 Pressupostos teóricos acerca da metáfora

Abordamos o estudo da metáfora através de: Lakoff e Johnson (2002), Ynduráin


(1974), Berber Sardinha (2007), entre outros. A metáfora, nesta perspectiva, passa a ser vista
não apenas na linguagem, mas adotando a teoria da metáfora conceitual, percebemos que a
metáfora começa no pensamento humano estendendo-se às realizações cotidianas. Assim,
afirmam Lakoff e Johnson (2002, p. 45): “Nosso sistema conceptual ordinário, em termos do
qual não só pensamos mas também agimos, é fundamentalmente metafórico por natureza”.
Neste sentido, nos aprofundamos ao estudo da metáfora e resumimos a seguir o que é
abordado nas principais teorias que fundamentam as atuais concepções de metáfora, a fim de
que o leitor compreenda a teoria na qual nos orientamos para os procedimentos
metodológicos adotados no presente estudo.

1.1 Perspectivas teóricas da metáfora

Como não somos capazes de abordar todas as teorias existentes sobre a metáfora,
tratamos apenas de algumas, começamos com as mais tradicionais embasadas nas
perspectivas de Aristóteles até as principais modernas.
Nas visões tradicionais, vemos a metáfora como a figura de linguagem usada como
estratégia para dar beleza aos textos e substituir termos por outros termos. Assim refere-se
Berber Sardinha (2007): “A noção mais antiga de metáfora no Ocidente vem de Aristóteles,
do século IV a.C. Segundo ele, uma metáfora é o uso do nome de uma coisa para designar
outra” (BERBER SARDINHA, 2007, p. 20).
Segundo Aristóteles, a metáfora não somente substitui um nome por outro nome, ela
vai além, é a figura de linguagem mestra, porque proporciona que o ser humano seja capaz de
refletir e fazer a similaridade entre os termos usados, principalmente se forem expressões
metafóricas novas. Por tanto, a teoria mais clássica de metáfora é a definida por Aristóteles,
de que ela não é apenas um truque de embelezamento e artifício usado para fazer
comparações, a metáfora também tem seu papel cognitivo na mente humana.
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Mas a concepção de metáfora de Aristóteles foi sendo dividida e ganhando novos


conceitos, assim aponta Berber Sardinha (2007):
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Ao longo dos anos, a categoria de metáfora inicial de Aristóteles foi sendo
desmembrada e refinada em muitas ‘figuras de linguagem’. Essa é uma
tradição antiga. Foi possivelmente na Renascença que a classificação das
figuras de linguagem se intensificou, em conformidade com a tendência da
época de classificar o mundo em categorias. Há vários desses esquemas
classificatórios de figuras de linguagem, podendo chegar a um repertório de
184 figuras (BERBER SARDINHA, 2007, p. 21).

Faz-se ainda necessário entender que as figuras de linguagem, geralmente, são


usadas para melhorar as técnicas de argumentação e persuasão, isso explica o porquê do seu
uso em El gran teatro del mundo, já que o autor pretendia causar exatamente uma espécie de
convencimento no seu público. Segundo Berber Sardinha (2007), uma metáfora é uma
semelhança entre dois campos diferentes, o que também nos remete ao fato de que Caldeón
dava a cada personagem um significado simbólico.
Em geral, a visão que se faz acerca da metáfora é de que ela é uma figura que faz
comparação implícita entre duas coisas, assuntos, ou entidades não relacionadas. Sendo
assim, metáfora é uma substituição de sentido de uma coisa para outra, trazendo semelhança
entre os termos ou não.
Depois de alguns estudos no campo metafórico, o interesse em se estudar a metáfora
acendeu novamente, Sardinha (2007) cita alguns dos principais estudiosos que se interessaram
pelo assunto, dentre todos esses teóricos, aprofundamos o nosso estudo nas teorias do
linguista George Lakoff e do filósofo Mark L. Johnson, ambos americanos, que formularam a
teoria da metáfora conceptual e, da inglesa Lynne Cameron que deu início ao estudo da
metáfora sistemática (BERBER SARDINHA, 2007).

1.2 Metáfora conceitual

A teoria da metáfora conceitual iniciada por George Lakoff e Mark L. Johnson, por
volta do ano de 1970, foi lançada em seu livro Metaphors We Live By246 (1980), que segundo
Berber Sardinha (2007):

O título da obra já deixa claro o ponto principal da teoria: Vivemos de


1548

acordo com as metáforas que existem na nossa cultura; praticamente não


temos escolha: se quisermos fazer parte da sociedade, interagir, ser
entendidos, entender o mundo etc., precisamos obedecer às metáforas que
nossa cultura nos coloca a disposição (BERBER SARDINHA, 2007 p. 30).
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Tradução brasileira: metáforas da vida cotidiana (tradução nossa).

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Assim, entendemos que as metáforas estão em toda parte e se quisermos ser
compreendidos e tornar as coisas compreensíveis, precisamos ter algum domínio sobre essa
figura de linguagem.
Uma metáfora conceitual é a forma como conceituamos algum termo para torná-lo
com outro sentido, por exemplo, Berber Sardinha (2007) utiliza a expressão ‘O AMOR É
UMA VIAGEM’ para exemplificar uma metáfora. A metáfora conceitual tem sempre dois
domínios, como aponta Berber Sardinha (2007):

Há dois tipos de domínio: fonte e alvo. O domínio-fonte é aquele a partir do


qual conceitualizamos alguma coisa metaforicamente; no exemplo, viagem;
geralmente é algo concreto, advindo da experiência. O domínio-alvo é
aquele que desejamos conceitualizar; esse é o domínio abstrato, no exemplo,
o amor (BERBER SARDINHA, 2007, p. 31).

Há cinco tipos de metáforas conceituais que são consideradas principais: as


estruturais, que são as que servem de exemplos para as demais, servem como uma base. As
orientacionais, “aquelas que envolvem uma direção e que são gerais. Exemplo: BOM É
PARA CIMA.” (BERBER SARDINHA, 2007, p. 34). Ainda há as ontológicas, aquelas que
consolidam algo abstrato, “essa concretização é expressa em termos de uma entidade que
pode ser contada, medida fracionada etc. Exemplo: INFLAÇÃO É UMA ENTIDADE.”
(BEBER SARDINHA, 2007, p. 35). A personificação que são metáforas ontológicas onde a
entidade é uma pessoa, por exemplo, fatos pode ser uma pessoa, quando falamos ‘os fatos
comprovam que...’ etc. E por último, as primárias que são metáforas “básicas presentes em
muitas culturas e motivadas por aspectos físicos do corpo humano” (BERBER SARDINHA,
2007, p. 35).
Neste sentido, compreendemos que a metáfora conceitual é cognitiva, porque busca
conceitos abstratos para nomear algo concreto, mas além de serem abstratas, notamos a sua
existência, pois elas ganham forma na fala e na escrita, e o seu significado pode variar de
acordo com a cultura ou sociedade em que vivemos.
1549

1.3 Metáfora sistemática


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A metáfora sistemática, também chamada de abordagens discursivas, teve início com


as pesquisas de Lynne Cameron, aproximadamente no ano de 2000. Esse estudo faz uma
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aliança entre termos que são ligados semanticamente e usados para falar sobre um conjunto de
ideias. Nesta perspectiva segue-se exatamente o oposto da teoria conceptual, enquanto a
conceptual aborda o uso metafórico abstrato, a metáfora sistemática trata do uso da metáfora
na realização direta na linguística. (BERBER SARDINHA, 2007).
Esta abordagem discursiva traz uma série de pressupostos tanto baseados em outros
teóricos, reunindo conceitos para a metáfora em uso, como ainda estabelece noções para se
realizar uma pesquisa com metáforas. Dentre os conceitos principais dessa abordagem
destacamos os essenciais, que segundo Berber Sardinha (2007) são: metáfora linguística,
aquela que aparece em qualquer meio escrito, na oralidade, em orações, propagandas,
enunciados e etc. Esse conceito ainda nos revela que uma metáfora sistemática pode não ser
entendida no exato momento que é lida, vista ou ouvida, pois se tratam de termos comuns da
nossa língua e que não se consegue identificar como um sentido metafórico facilmente. A
metáfora processual, que é aquela onde conseguimos assimilar o termo metafórico a alguma
outra expressão já existente.
Ainda há o conceito de metaforema para a gramática sistemática, como diz Berber
Sardinha (2007): “O conceito de metaforema serve para explicar a relação recorrente entre
uso de uma metáfora e sentido de uma metáfora, algo que os termos existentes não exprimem
com clareza” (BERBER SARDINHA, 2007, p. 42).
O metaforema está ligado à forma, a definição, contém um sentido semântico e
pragmático, porque revela experiências passadas. O autor nos dá o exemplo de ‘BAGAGEM’,
na expressão: tenho uma bagagem de conhecimentos, assimilamos logo a um sentido
metafórico de que a pessoa traz consigo experiências vividas. Berber Sardinha (2007) explica:

Essa abordagem surgiu, em parte, como contraponto à teoria conceptual da


metáfora, e, em parte, devido à maior disponibilidade de dados sobre uso da
linguagem, principalmente em formato digital (corpora eletrônicos), o que
permite, com o uso de programas de computador adequados, a percepção da
sistematicidade do uso da metáfora em sua plenitude (SARDINHA, 2007, p.
43).

Neste sentido, a metáfora sistemática é o termo verbal que dá foco ao uso literal da
linguagem usando sentidos metafóricos para abordar assuntos comuns de um determinado
1550

grupo social. Dessa forma, buscamos os significados metafóricos utilizados por Calderón em
El gran teatro del mundo. Adiante, explicamos os detalhes metodológicos da nossa pesquisa.
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2 Metodologia da pesquisa

Na presente seção, explicamos o corpus e relatamos os procedimentos para a


identificação das metáforas conceituais e de suas correspondentes expressões metafóricas,
conforme expomos abaixo.

2.1 Corpus

A pesquisa teve como corpus a obra teatral completa de Calderón de la Barca (1600-
1681), El gran teatro del mundo (1655), de onde se identificou as metáforas conceituais da
obra e as expressões metafóricas a elas relacionadas. Utilizamos a edição de 1997, da editora
Crítica, que contém comentários de Jonh J Allen e Domingo Ynduráin.
Trata-se de uma obra barroca, porque reflete os mais diversos contrastes deste
movimento literário, representada em uma alegoria com cenas do cotidiano. Esta peça de
teatro era comumente apresentada nas festas de Corpus Christi, onde as pessoas que assistiam
ao espetáculo viam nas cenas, representações da vida real, social e religiosa que viviam.
A situação religiosa e social da Espanha, no século XVII, não estava das melhores, o
país vivia momentos de crises sociais e era dominado pela igreja católica, até instaurar-se uma
Reforma religiosa, que levou muitos fiéis a se rebelarem e; assim, a igreja católica foi
perdendo o domínio social que exercia.
A obra El gran teatro del mundo convida os expectadores a refletirem sobre a vida
desde o sentido de nascer até ao de morrer e a consequência da vida que se pode ter depois da
morte. Calderón explorou, nesta obra, uma doutrina eclesiástica para que os fiéis se voltassem
à igreja antes que morressem e pudessem alcançar o galardão que só teria quem continuasse
vivendo de forma obediente aos comandos da igreja católica, quem não vivesse de forma
satisfatória à doutrina católica, receberia o castigo eterno.
A sua temática aborda, profundamente, o sentido da vida humana, como o tempo
aqui na terra passa rápido, e que a morte é o destino para cada um que decide encenar o seu
papel nesta vida. Ainda traz a reflexão de que cada um que passa pela vida, ao final receberá
1551

sua recompensa, seja ela boa ou má.


O determinismo e o livre arbítrio, o caos no mundo e a providência divina, a vida
como esperança e a existência como um castigo, foi o jogo de simbolismo utilizado por
Página

Calderón na construção de El gran teatro del mundo. Os personagens são seres distribuídos

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em um mundo desconhecido, lutam e se rebelam por causa das condições em que vivem,
vivendo em absoluta descrença. E quando esses personagens estão a ponto de serem
aniquilados por sua própria consciência, aparece uma figura de ser superior.
Compreendemos, portanto, que o verdadeiro sentido de viver estava na vida que se
conseguiria depois da morte, e que a vida aqui na terra era apenas uma espécie de encenação
teatral, o único meio de salvar-se da condenação eterna seria através da figura superior.
El gran teatro del mundo é uma obra escrita em verso, com um vocabulário ligado
mais ao conteúdo que à forma, ou seja, apesar do autor usar a forma culta da linguagem, a
utilizou de uma maneira que todos entendessem. Pois a obra era apresentada para o público
em geral, tanto clássico quanto popular.
A obra começa com a introdução de uma conversa entre os personagens Autor e
Mundo, onde propõem realizar uma comédia acerca da vida humana e explicam o significado
da apresentação que tem valor teológico e transcendente. Depois há uma descrição das coisas
que são criadas no mundo pelo Autor, especifica-se que há dois globos, um terrestre e outro
celeste, em um está o Autor em seu trono e no outro, duas portas, uma para o nascimento e
outra para a morte.
Os personagens são chamados pelo Autor a entrarem no palco e receberem suas
atribuições. Os personagens são: Autor, Mundo, Rei, Discrição, Lei, Formosura, Lavrador,
Rico, Pobre, uma Voz e uma Criança.
Autor é visto na apresentação como a figura superior que pode dar o sentido de toda
a vida dos demais personagens. O Mundo é uma espécie de intermediário entre a figura
superior e os outros personagens. O Rei representa uma categoria de autoridade, a Discrição é
vista como um exemplo de espiritualidade a ser seguido, a Lei tem a função de lembrar os
demais acerca do que se deve fazer para representar bem, funciona como uma doutrina. A
Formosura é vista como uma representação do físico, de que a beleza exterior é algo
passageiro. O Lavrador simula a atividade do homem comum, popular, que vive uma vida
simples e de murmurações. O Rico e o Pobre são representações de classes sociais, uma
favorecida e outra prejudicada. E a Criança faz a representação de uma idade.
Alguns dos personagens no decorrer da peça são subjugados pela própria
1552

consciência, outros murmuram das atribuições que foram lhes dadas no início da
apresentação, há aquele que vive o que lhe é estabelecido sem nenhuma reclamação, como
também há o caso de quem nem chega a representar porque não chegou a nascer, o caso da
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Criança.

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Nesta perspectiva, observou-se que há uma representatividade muito grande entre o
teatro e a vida humana na terra, principalmente no âmbito que a Espanha vivia na época. As
situações mostradas na apresentação são muito similares ao que vemos na vida social da
época. Neste sentido, notamos que o autor usou dos artifícios linguísticos para causar uma
enorme reflexão na sociedade espanhola.

2.2 A pesquisa

Nosso estudo se classifica como pesquisa descritiva e interpretativa, a partir de uma


abordagem qualitativa. Nossos procedimentos surgiram a partir do estudo feito ao material de
Berber Sardinha (2009; 2007), que aborda a metáfora de forma detalhada. Inicialmente nossos
métodos para coletar os dados eram o de introspecção, o de leitura e o método identificador de
metáforas, utilizando o site da CEPRIL disponibilizado por Berber Sardinha, que identificava
os candidatos a metáfora de qualquer corpus digital.
No entanto, quando já estávamos iniciando a análise, descobrimos que o
identificador de metáforas usado no site da CEPRIL não analisava mais as ocorrências de
concorrentes à metáfora em corpus, e sim analisava apenas concordâncias de palavras. Por
algum motivo não explicado pelos responsáveis, o site parou de oferecer este serviço.
Dessa forma, nossa pesquisa teve como procedimentos, o método de introspecção e o
de leitura. A primeira leitura se deu logo no início da pesquisa, depois veio uma nova leitura
que já apresentou novas perspectivas sobre o conteúdo, sobretudo, foi somente a partir da
terceira leitura que pudemos identificar alguns termos que seriam considerados metafóricos.
Com algumas metáforas já identificadas, partimos para mais uma releitura do
material, a partir da qual foi possível a identificação de outras. E para que houvesse a
comprovação ou reprovação dos termos encontrados, pedimos para que outra pessoa lesse o
corpus, e a análise dos resultados.

2.3 Resultados e Discussão


1553

A metáfora central identificada na obra foi A VIDA É UM TEATRO. Essa metáfora


identificada se trata de dois domínios, onde um produz similaridade no outro. O domínio
fonte (teatro) se relaciona diretamente com o domínio alvo (vida), assim comprovamos que no
Página

decorrer de toda a obra aparecem várias expressões que transmitem essa ideia de que a vida é

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realmente um teatro. Encontramos mais de cinquenta expressões relacionadas à metáfora A
VIDA É UM TEATRO.
Se a vida é um teatro, o viver do ser humano é representatividade teatral onde lhe é
entregue papéis para cumprir a encenação da vida humana. Notamos ainda que, às vezes, os
atores destes papéis podem ser aplaudidos ou não, depende da maneira como se faz a
encenação. Vejamos nos exemplos de algumas das expressões metafóricas encontradas:

(1) “... y como siempre ha sido lo que más ha alegrado y divertido la representación
bien aplaudida, y es representación la humana vida...” [p. 4 L. 43-46]
Aqui o autor expressa a comparação direta de que a vida humana é uma
representação.

(2) “... en el teatro del mundo, que contiene partes quatro, con estilo oportuno han
de representar.” [ p.5 L. 53-56]
Neste trecho o autor faz um jogo de simbolismo, assumindo que há um teatro no
mundo e que o viver no mundo é um teatro.

(3) “Yo a cada uno el papel le daré que le convenga...” [p. 5 L. 56-57]
Esta expressão mostra que o autor entrega o papel que convêm a cada um
representar.

(4) “Autor generoso mío, a cuyo poder, a cuyo acento obedece todo, yo, el gran
teatro del mundo, para que en mí representen los hombres, y cada uno halle en mí
la prevención que le importe al papel suyo...” [p. 5 L. 67-74]
O simbolismo remete-nos a crer que o mundo ganha voz, que os homens são atores e
que cumprirão seus papéis na vida.

(5) “Mortales, que aún no vivís y ya os llamo yo mortales, pues en mi concepto


iguales antes de ser asistís: aunque mis voces no oís, venid a aquestos vergeles,
1554

que ceñido de laureles, cedros y palma os espero, porque yo entre todos quiero
repartir estos papeles.” [p. 12 L. 269-288]
Mais uma vez vemos a repartição dos papéis para cada um que irá representar na
Página

encenação.

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(6) “...sopla aqueste polvo, pues, para que representemos. ” [p. 13 L. 297-299]
A expressão nos mostra que literalmente os personagens são chamados o tempo todo
a representarem.

(7) “...pero si hacia el mundo vamos todos a representar, los papeles puedes dar,
pues en aquesta ocasión no tenemos elección para haberlos de tomar.” [p. 13 L.
303-308]
Aqui novamente, os personagens são convocados a representarem no mundo.

(8) “Ya sé que si para ser el hombre elección tuviera, ninguno el papel quisiera del
sentir y padecer; todos quisieran hacer el de mandar y regir, sin mirar, sin
advertir, que en acto tan singular aquello es representar, aunque piense que es
vivir.” [p. 13;14 L. 319-328]
Esta expressão nos remete a uma reflexão de que, se o ser humano pudesse escolher
o papel para fazer sua encenação na vida real, jamais escolheria um papel que lhe causasse
sofrimento e sim, escolheria um papel em que pudesse estar no comando dos demais.

(9) “Pero yo, Autor soberano, sé bien qué papel hará mejor cada uno; así va
repartiéndolos mi mano...” [p. 14 L. 329-332]
Na obra quem escolhe o papel de cada personagem é o Autor soberano, assim como
nos remete a ideia de que na vida real que escolhe o que cada ser humano vai viver é Deus.

(10) “...y así seré en la comedia el peor representante.” [p. 15 L. 357-358]


O personagem faz uma afirmativa de que representará na comédia da vida da pior
forma possível.
Ainda encontramos outras duas principais metáforas acerca da vida nesta obra, que
foram: A VIDA É UMA VIAGEM e A VIDA É UMA FLOR.
1555

Considerações finais

Conseguimos encontrar a metáfora conceitual central A VIDA É UM TEATRO no


Página

corpus analisado e ainda atribuir a ela expressões linguísticas metafóricas que se ligam

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naturalmente à esta metáfora conceitual central. Ainda pudemos encontrar mais duas
metáforas principais acerca da vida humana: A VIDA É UMA VIAGEM e A VIDA É UMA
FLOR.
Ressaltamos, no entanto, que este estudo foi uma pesquisa muito iniciante, sendo este
o primeiro contato da autora, uma concluinte do curso de graduação em licenciatura em Letras
Língua Espanhola, da UERN, núcleo de Apodi (NAESA), com uma teoria tão complexa e
ainda com tantas descobertas a serem alcançadas. Enfatizamos também o valor inovador deste
tema, como abordagem monográfica no curso de Letras da Uern, sendo a primeira pesquisa a
utilizar um corpus da literatura espanhola com foco na teoria da metáfora conceitual (Lakoff e
Johnson, 2002). Finalizamos, portanto, expressando que o principal resultado deste estudo foi
a redescoberta da metáfora e o interesse surgido em continuarmos estudando o assunto em
momentos futuros, inclusive em estudos de pós-graduação.

Referências

BACZYNSKA, Beata. Pedro Calderón de la Barca Dramaturgo en el gran teatro de la


história. Espanha: Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes Alecante, 2016.

BARCA, Pedro Calderón de la. El gran teatro del mundo. Espanha: Editorial Crítica, 1997.

BERBER SARDINHA, Tony. Metáfora. São Paulo: Parábola Editorial, 2007.

BERBER SARDINHA, Tony, PAULO, Antonio. Pesquisa em linguística de corpus com


Wordsmith tools. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2009.

LAKOFF, George. JOHNSON, Mark. Metáforas da vida cotidiana. Campinas, SP: Educ,
2002.

MARAVALL, José Antonio. La cultura del barroco. Barcelona: Ariel, 1975.

MARTINI, Maria de Lourdes. O grande teatro do mundo: teatro espanhol medieval. Rio de
Janeiro: Francisco Alves, 1988.

MERINO, José María. Realidad y ficción en la literatura española. Çedille: Revista de


Estudios Franceses, Asociación de Francesistas de la Universidad Española. Tenerife,
España, núm. 6, p. 53-67. 2016.
1556

QUEVEDO, Francisco. Obras de Dom Francisco de Quevedo Villegas. s/e: s/l, 1772.
Disponível em: https://play.google.com/store/books Acesso em: 07 abr.2017.
Página

RAMÓN, Francisco Ruiz. História del Teatro Español. Madrid: Cátedra, 1996.

ISBN: 978-85-7621-221-8
YNDURÁIN, Domingo. El gran teatro de Calderón y el Mundo del XVII. Madrid:
Consejo superior de Investigaciones Científicas Patronato Marcelino Menéndez Pelayo, 1974.
Disponível em: <http://www.cervantesvirtual.com/obra-visor/el-gran-teatro-de-calderon-y-el-
mundo-del-xvii/html/8fb410f8-a101-11e1-b1fb-00163ebf5e63_10.html>. Acesso em: 08 abr.
2017

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PÔSTER

IDENTIDADE DA MULHER E IDEOLOGIA DE GÊNERO — UMA ANÁLISE DE


PROPAGANDAS TELEVISIVAS

Joyce Heloísa Pascoal de Oliveira (UERN)


Lara Marques de Oliveira (UERN)

Introdução

A Análise do Discurso (ADC) estuda as produções de sentido envolvidas nos


discursos. Dessa maneira, o papel social da linguagem é fundamental nos estudos desse
campo. Não há como estudar a ADC sem levar em consideração o papel das relações de poder
no discurso. Essas relações de poder se fundamentam nas mais diversas práticas sociais, não
são exclusivas de alguns ambientes discursivos.
Mesmo assim, há alguns mecanismos de dominação do poder evidentes. Alguns
meios, dentre eles a política e a mídia, que têm o papel de formular como verdade conceitos
criados por esses eles mesmos, manipular opiniões e criar verdades.
Nessa perspectiva, o presente estudo objetiva analisar o papel da mídia na construção
de identidade. Especificamente o papel das propagandas na construção da identidade
feminina. Com isso, serão analisadas três propagandas: duas da empresa “Snickers”: “A
república” com Beth Faria e “Vestiário” com Cláudia Raia, que tem como slogan: “Você não
é você quando está com fome” e a última propaganda da empresa “Pepsi” com as cantoras
Beyoncé, Pink e Britney Spears. Pessoas com destaque na mídia têm um apelo
social/midiático muito amplo e contribuem para a aceitação do discurso veiculado.
A análise foi dividida nos seguintes critérios: a) ambiente da propaganda; b) sujeitos
discursivos e suas colocações no ambiente; c) linguagem dos sujeitos discursivos e se
estendeu em critérios linguísticos e imagéticos.

1 A mídia e a Análise do Discurso:

A Análise Crítica do Discurso (ADC) tem como objeto de estudo as relações de poder
1558

imbricadas nas práticas sociais. Nesta perspectiva, a mídia é considerada uma das ferramentas
mais poderosas da sociedade e um agente construtivo da realidade, por isso, a análise de seus
Página

elementos é corriqueira. Nessa perspectiva, o presente estudo busca de desvendar as

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influências do discurso midiático nas relações de poder. O objetivo é claro: suscitar uma
reflexão acerca de mecanismos dominadores na linguagem.

[...] as mídias desempenham o papel de mediação entre seus leitores e a


realidade. O que os textos da mídia oferecem não é a realidade, mas uma
construção que permite ao leitor produzir formas simbólicas de
representação da sua relação com a realidade concreta (GREGOLIN, 2007,
p. 16. Grifo da autora).

É importante destacar que a Análise Crítica do Discurso aproxima seus estudos


estreitamente da perspectiva Sistêmico-Funcional, mais conhecida como “LSF”, desenvolvida
por Halliday. Nessa abordagem, a linguagem é constituída através das relações sociais
subjacentes ao sistema linguístico, na qual a Análise do Discurso Crítica ou “ADC” pautou
sua teoria de reflexos discursivos, aos quais se situam no âmbito “relacional”, “ideacional” e
“identitário”.
Fairclough trata dessas macrofunções da seguinte maneira:

O discurso contribui, em primeiro lugar, para a construção do que


variavelmente é referido como ‘identidades sociais’ e ‘posições do sujeito’
para os sujeitos sociais e os tipos de “eu” [discurso identitário] [...] Segundo,
o discurso contribui para construir as relações sociais entre as pessoas
[discurso relacional]. E terceiro, o discurso contribui para a construção de
sistemas de conhecimento e crença [discurso ideacional] (FAIRCLOGH,
2001, p. 91).

Essas macrofunções, como reflexos e ações discursivas, situam-se no campo


linguageiro e social, pois o discurso é uma maneira de agir no mundo e sobre o mundo, na
concepção da ADC. Essa visão dialoga diretamente com o que Fairclough (2001) enfatiza ao
dizer que o discurso é um modo de ação, uma forma em que as pessoas podem agir sobre o
mundo, sobre os outros e, além disso, uma forma de representação. Por essa razão, o discurso
constitui, naturaliza, mantém e transforma os significados do mundo de posições diversas nas
relações de poder.
Nessa perspectiva analítica, a Análise do Discurso Crítica se situa como
problematizadora dos papéis assumidos pela mídia, seja para a promoção de uma crítica aos
1559

padrões sócio-culturais vigentes, seja por enfatizar o papel do sujeito crítico na militância
numa ação contra hegemônica.
A publicidade é um dos principais recursos utilizados pela mídia para a divulgação de
Página

produtos, serviços, etc. Nesse contexto, a televisão se posiciona como líder mercadológica,

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disseminando o padrão capitalista de sociedade: pautado no consumo e difusão do
comércio.
A televisão é ela mesma um produto do capitalismo avançado e, como tal,
tem de ser vista no contexto da promoção de uma cultura do consumismo.
Isso dirige a nossa atenção para a produção de necessidades e desejos, para a
mobilização do desejo e da fantasia, para a política da distração como parte
do impulso para manter nos mercados de consumo uma demanda capaz de
conservar a lucratividade da produção capitalista (HARVEY apud
MAGALHÃES, 2005, p. 233).

Considerando a perspectiva da ADC em que os discursos são permeados pelas


relações de poder vigentes em sociedade, é preciso enfatizar o papel da mídia como
perpetuadora ou agente revolucionária de padrões identitários, relacionais e ideacionais.

2 A representatividade da mulher na publicidade:

Compreender a mídia como elemento cultural é essencial para inserção do texto


publicitário num aparato linguístico/extralinguístico dotado de objetivos específicos e
mecanismos de simbolização das identidades. Nos dizeres de Thompson (1998, p. 19),

[...] os meios de comunicação têm uma dimensão simbólica irredutível: eles


se relacionam com a produção, o armazenamento e a circulação de materiais
que são significativos para os indivíduos que os produzem e recebem [...] o
desenvolvimento dos meios de comunicação é, em sentido fundamental, uma
reelaboração do caráter simbólico da vida social, uma reorganização dos
meios pelos quais a informação e o conteúdo simbólico são produzidos e
intercambiados no mundo social e uma reestruturação dos meios pelos quais
os indivíduos se relacionam entre si.

As práticas sociais globalizadas permitem uma maior flexibilidade na composição dos


gêneros discursivos, o que ocasiona um hibridismo genérico e, consequentemente, identitário
nas relações de gênero social. (MAGALHÃES, 2005b, 2005c apud MAGALHÃES, 2005).
No entanto, esse hibridismo identitário não reflete no que é propagado pela televisão. A tevê e
outros meios de comunicação, muitas vezes, adotam um modo padronizado de representação
do indivíduo.
1560

Adotar esse modo padronizado ou estereotipado implica em interferir nas relações de


identidade subjetiva do telespectador, isto é, como o sujeito se percebe em sociedade, nas
relações entre os indivíduos, e em suas ideologias, pois a publicidade mostra apenas o que
Página

julga ideal ou adequado.

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A imagem da mulher historicamente esteve associada à idealização. Isto se reflete no
modelo de perfeição e delicadeza ou no papel de servilidade frente ao homem. As
propagandas, muitas vezes, tendem a ressaltar esses estereótipos e reafirmar o papel de
submissão da mulher. No entanto, essa relação de submissão não pertence ao ambiente
genético individual, mas a um papel social na determinação da imagem dos indivíduos.

3 As publicidades discursivas e uma questão discursiva

Comercial 1:
Linguagem da Beth Faria:
B: “Maravilha... esvaziar a geladeira os vagabundos sabem, agora fazer
compras...
L1: Depois a gente faz, velho.
B: Depois a gente lava, depois a gente limpa, depois a gente espera o trouxa
fazer tudo.
L2: Na boa, Léo, come um snickers.
B: Por quê?
L2: Porque você fica insuportável quando cê tá com fome.
B come o “Snickers”.
L2: Melhor?
B: Melhor...!

O vídeo se passa num apartamento aparentemente masculino em que dois jovens


estão no sofá muito concentrados jogando e um dos jovens está em pé. Além disso, a louça
suja. Nessa propaganda, é possível fazer uma associação dos papéis predeterminados pela
mulher em sociedade. A atriz Beth Faria se coloca como “a chata”, pois cobra dos jovens um
comprometimento com a limpeza do ambiente. Tal voz discursiva retoma o conceito de
mulher como responsável pelo lar. Além disso, a fala de L2: “Por que você fica insuportável
quando cê ta com fome” traz ao telespectador a ideia de que reclamar porque o ambiente está
sujo de uma maneira grosseira é uma característica da mulher. No final, esse texto publicitário
reforça o conceito:
1561
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IMAGEM 1: Slogan da propaganda “Snickers”.

A idéia principal dessa publicidade é: se você não quer ficar com fome e se mostrar
histérica, coma um “Snickers”. Outra questão é o fato de a propaganda não utilizar uma
mulher desconhecida, mas uma atriz famosa. Esse fato reforça a associação da figura feminina
à ideologia de que a mulher pode ficar histérica em situações como a evidenciada na
publicidade, em que a atriz, mesmo sendo bem sucedida, não está livre dessa característica
tipicamente feminina.
Essa perspectiva estereotipada de gênero “masculino-feminino” ultrapassa questões
cômicas e se reflete nas relações sociais formuladas pelo gênero discursivo: “o efeito
ideacional”, “representacional” e “identitário” dos sujeitos.

Comercial 2:
C: Aí, seus pela saco, quem foi que pegou meu desodorante?
L1: Ih, se liga, você acha mesmo que alguém quer ficar com um cheirinho
igual ao seu?
C:Booa ! hêhêhêhê...A sua irmã não reclama do cheiro, pelo contrário...
L2: Rafa, come um snickers.
C: Por quê?
L2: Porque você dá muito chilique quando ta com fome
(RAFA COME O SNICKERS)
L2: Melhor?
R-C: Melhor!

A segunda propaganda se passa no vestiário masculino, cenário culturalmente restrito


aos homens. Por sua vez, também reforça estereótipos masculinos e femininos, uma vez que
Cláudia Raia está interpretando o papel de uma mulher e se coloca de uma maneira
1562

“masculinizada” de ser. Da mesma forma, interpreta uma função meramente depreciativa por
dar muito chilique quando está com fome. O que melhor poderia acontecer quando você se
alimenta? Transformar-se num homem! A propaganda reforça o paradigma social imposto de
Página

que ser homem é seguir um determinado padrão de linguagem e, além disso, ser mulher é

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respeitar também esse padrão. Tudo que se dissocia disso é equivocado. A mulher é, a todo o
momento, evidenciada, nessa propaganda, diante da dualidade homem-mulher, de maneira
estereotipada. Isso pode se observar quando uma mulher, numa posição masculina, refere-se a
outra mulher que nem ocupa o ambiente: “A sua irmã não reclama do cheiro, pelo
contrário...”. Essa linguagem reforça o papel de submissão feminina. Para, além disso, o
irmão não fica contente com a provocação. Sua expressão assume um caráter de defesa:

Página Snickers Brasil . Vestiário. 1 vídeo: (0:30). Disponível em:


<https://www.youtube.com/watch?v=HNpDnr9JQZg>. Acesso em: 13 maio 2017.

Essa reação demonstra o velho padrão de que o homem mais forte protege o elo mais
fraco: o feminino. A irmã, que mesmo não estando presente, precisa ser defendida do ataque.
Para muitos, essas propagandas são apenas humor e não deveriam ser analisadas de modo tão
ferrenho, no entanto, numa visão mais ampla de linguagem, pode-se observar que os papeis
sociais são predeterminados e não deixam espaço para contestação. Essa propaganda ressalta
o velho pressuposto de que a mulher está numa posição subalterna de gênero.

Comercial 3:
Nessa publicidade, é ressaltado o empoderamento feminino. Três cantoras
mundialmente famosas numa arena bastante usada na era medieval para as lutas entre os
gladiadores (lutadores altamente treinados da época) se colocam contrárias a um rei
autoritário, único detentor da bebida “Pepsi”. A publicidade não possui falas entre as
cantoras- atrizes, é apenas cantada a música “We Will rock you” da banda “Queen”.
1563

É possível perceber que há uma inversão de papéis, pois na era medieval somente os
homens poderiam lutar nas arenas; as lutas eram verdadeiros “shows”, que reuniam pessoas
Página

das mais altas cortes, e também cidadãos de todas as classes para assistir às lutas. A figura de

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linguagem é explícita no que diz respeito ao empoderamento feminino; através da música
cantada, percebemos um enfrentamento das cantoras-lutadoras contra o governo autoritário do
rei, que possui suas riquezas (neste caso associada a bebida “Pepsi”) e não a divide com os
seus súditos. Esse texto publicitário tem por fim a “derrota” do rei, entregue a um leão (essa
figura de linguagem era bastante usada na era medieval. Quando um lutador era derrotado,
colocavam-no para lutar com leões famintos); e a tomada do “poder” feita pelas cantoras-
lutadoras; que logo em seguida, distribuem a bebida ”Pepsi” com os espectadores da luta.

Página WeLoveBritneySpears. [HD] Britney Spears, Beyonce & Pink - We Will Rock You (Pepsi). 1 vídeo:
(3:07). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=pES8SezkV8w>.Acesso em: 20 maio 2017.

1564

Página WeLoveBritneySpears. [HD] Britney Spears, Beyonce & Pink - We Will Rock You (Pepsi). 1 vídeo:
(3:07). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=pES8SezkV8w>.Acesso em: 20 maio 2017.
Página

ISBN: 978-85-7621-221-8
Página WeLoveBritneySpears. [HD] Britney Spears, Beyonce & Pink - We Will Rock You (Pepsi). 1 vídeo:
(3:07). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=pES8SezkV8w>.Acesso em: 20 maio 2017.

Conclusão

O papel da mulher no decorrer da história esteve associado a um modelo idealizado e


submisso em relação ao homem. Esse paradigma é reforçado pela mídia, que difunde um
modelo padronizado das identidades das mulheres e dos homens. A principal influência dessa
padronização é uma maneira estereotipada de representar o gênero feminino, que resulta em
um modelo estereotipado também de representação, seja da maneira como o indivíduo se
enxerga, seja da maneira em que vê o outro. No entanto, é necessário observar que da mesma
maneira que discursos preconceituosos servem como perpetuadores de preconceito, também
mobilizam discursos de contestação: como o que vislumbramos apresenta nesse artigo.

Referências

THOMPSON, Jhon Brookshire. Comunicação e contexto social. In: A mídia e a


modernidade: uma teoria social da mídia. Trad. Wagner Oliveira Brandão.Petrópolis,
RJ:Vozes, 1998.

FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e mudança social. Tradução: Izabel Magalhães. Brasília:


UNB, 2001.
1565

GREGOLIN, Maria. Análise do Discurso e mídia: a (re)produção de identidades. Revista


comunicação, mídia e consumo. São Paulo, v.4, n.11, p.11-25. Nov. 2007. Disponível em:
<http://revistacmc.espm.br/index.php/revistacmc/article/view/105/106>. Acesso em: 12 maio
2017.
Página

ISBN: 978-85-7621-221-8
MAGALHÃES, Izabel. Análise do Discurso Publicitário. Revista da Abralin, v. 4, n. 1, 2, p.
231-260. Dez de 2005. Disponível em:
<http://www.abralin.org/revista/RV4N1_2/RV4N1_2_art8.pdf>. Acesso em: 20 maio 2017.

República. Snickers Brasil. 1 vídeo: (0:30). Disponível em :


<https://www.youtube.com/watch?v=L0XSxoB5K1I>. Acesso em: 12 maio 2017.

Vestiário. Snickers Brasil. 1 vídeo: (0:30). Disponível em:


<https://www.youtube.com/watch?v=HNpDnr9JQZg>. Acesso em: 13 maio 2017.

[HD] Britney Spears, Beyonce & Pink - We Will Rock You (Pepsi). We Love Britney
Spears. 1 vídeo: (3:07). Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=pES8SezkV8w>. Acesso em: 20 maio 2017.

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SEQUÊNCIA DIDÁTICA: UM TRABALHO COM O GÊNERO TIRINHA

Larissa Gomes de Melo (UERN)


Maria Idalina Mesquita (CEIPEV)

Introdução

Hodiernamente, as sequências didáticas podem ser julgadas como excelentes


instrumentos de trabalho no ensino de línguas, particularmente na aplicação de línguas
estrangeiras nas modalidades de leitura, escrita, oralidade e compreensão oral. Esse estilo de
aplicação em sequências didáticas foi elaborado por Dolz e Schneuwly e encontra
embasamento em uma sucessão de atividades com primazia na utilização dos gêneros
textuais. Nas palavras dos autores, a sequência didática “é um conjunto de atividades
escolares organizadas, de maneira sistemática, em torno de um gênero textual oral ou escrito”
(DOLZ, NOVERRAZ & SCHNEUWLY, 2004, p. 97).
Neste sentido e com base no modelo apresentado por estes pesquisadores, esse
trabalho foi realizado utilizando o gênero textual tirinha como proposta de sequência didática
para que fosse oferecido ao aluno uma maior oportunidade de se aprofundar nesse gênero já
que, segundo Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004, p. 98) “sequências didáticas servem para
dar acesso aos alunos a práticas de linguagem novas ou dificilmente domináveis. ”.

Desenvolvimento

A atividade foi realizada em uma turma de 3º ano do Ensino Médio no Centro de


Educação Integrada Professor Eliseu Viana (CEIPEV), como resultado do trabalho
desenvolvido por alunos do Projeto Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência
(PIBID/CAPES) com subprojeto em Língua Inglesa. Esta sequência teve início com uma
demonstração do gênero tirinha, através de exemplos de textos do gênero, selecionados com o
objetivo de mostrar sua diversidade em relação aos temas que podem ser abordados, como
1567

também com o intuito de pontuar suas características estruturais através de uma aula de
leitura, partindo do pressuposto de que os alunos já portavam algum conhecimento acerca do
gênero.
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Nessa primeira etapa, foi apresentado o gênero ao aluno, através do uso de slides, com
toda sua estrutura e elementos constitutivos, tais como personagens, balões e onomatopeias.
Em seguida, e, conforme o que sugeria o plano de aula (ANEXO A), foi proposto que, em
duplas, os alunos realizassem a primeira produção da atividade escrita, obedecendo as
características apresentadas nas tirinhas impressas e distribuídas entre eles. Na primeira
produção, foram distribuídos desenhos sem legendas (ANEXO B) para que as duplas
criassem o diálogo entre as personagens em inglês com o conhecimento que eles já possuíam
e contando com o auxílio de dicionários. A primeira escrita foi feita em uma folha de papel
separada (ANEXO C), para que, durante o processo de escrita, seguindo os passos da
sequência, esse diálogo pudesse ser reescrito até se chegar a forma adequada, e só então seria
colocada nos desenhos para fazer a escrita final.
Após esta etapa de produção, foram observados os erros mais recorrentes nas
atividades pré-produzidas e, feita a correção, foi elaborado o primeiro módulo. Segundo
BARROS (2007):

Os módulos constituem várias “oficinas” de atividades (exercícios e


pesquisas) que permitem a apropriação do gênero, uma vez que a
organização de tais oficinas constitui um trabalho planejado
sistematicamente com o objetivo de levar os alunos a desenvolver
capacidades de linguagem que lhes permitam ler e produzir um
determinado gênero de forma eficaz.

Nesse caso, o primeiro módulo (ANEXO D) teve como objetivo alertar o aluno quanto
a forma de diálogo, apresentação e conversação entre as personagens de cada tirinha. Levou –
se em consideração também o uso de adjetivos, pois a maioria dos textos foram descritivos,
porém com menos ênfase do que necessitava as correções anteriormente citadas. Esse
primeiro módulo consistiu em apresentar ao aluno algumas possíveis maneiras de se elaborar
diálogos em inglês e, em seguida, solicitou – se que cada dupla pusesse em prática aquilo que
foi comentado.
Após a correção da segunda escrita, foi observado que os alunos haviam alcançado
uma melhora significativa quanto à estrutura de um diálogo, porém ainda apresentavam certa
dificuldade quanto ao uso de adjetivos. Desse modo, foi elaborado um segundo módulo
1568

(ANEXO E) para que essa deficiência pudesse ser suprida. Após a miniaula sobre o tema,
pode-se constatar que os alunos obtiveram melhor desempenho na atividade proposta.
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Posteriormente, após correção e avaliação das atividades até então produzidas pelos
alunos, foi proposto que, dessa vez, eles pudessem reescrever os diálogos nas tirinhas,
relembrando os módulos e atividades passadas. Deu-se, assim, o que Dolz, Noverraz e
Schneuwly, a partir de seu esquema de SD, denominaram de “produção final” (ANEXO F).
Vale salientar que, em todo o processo dessa sequência didática, os alunos estavam
sendo avaliados através de sua participação nas diversas atividades na sala de aula. Portanto,
todas as atividades tiveram fim somativo, como consta no plano de aula.

Conclusão

Concluímos que, ao fim da elaboração desse trabalho, a sequência didática com o


gênero tirinha proporcionou a cada um deles a oportunidade de ativar a sua criatividade e
conhecimento prévio. As atividades propostas, através da sequência didática, durante as aulas
da disciplina de Língua Inglesa os aproximou de uma atividade autêntica integralmente
produzida por eles, dando-lhes espaço para trazer à sala de aula e à toda a instituição o
conhecimento de situações e características de seu cotidiano, não deixando o gênero textual
apenas como meio para aprendizado da gramática, mas demonstrando sua importância e uso
social. Por meio dessa experiência, os alunos puderam também enriquecer o vocabulário e
revisar os conteúdos gramaticais específicos para o gênero.

Referências

DOLZ, Joaquim; NOVERRAS, Michele; SCHNEUWLY, Bernard. Sequências didáticas para


o oral e a escrita: Apresentação de um procedimento. In: SCHNEUWLY E DOLZ. Gêneros
orais e escritos na escola. Campinas, SP: Mercado de Letras,2004.

BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Os gêneros do discurso. 2. ed. São Paulo:


Martins Fontes, 1997.

BARROS, Eliana Merlin Deganutti de. Seqüências didáticas: uma proposta pedagógica com
o gênero resenha cinematográfica. Paraná: Universidade do Estado de Londrina, 2007.
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O ENSINO DA ESCRITA NA LÍNGUA INGLESA UTILIZANDO O GÊNERO


TEXTUAL CURRICULUM VITAE

Larissa Kália Fernandes Costa (UERN);


Maria Idalina Mesquita de Morais (CEIPEV);

1 Introdução

Marcuschi (2002) afirma que é impossível pensar em comunicação a não ser por
gêneros textuais. Partindo desse pressuposto, podemos afirmar que como a comunicação se dá
através de gêneros textuais, é fundamental que o professor em sala de aula trabalhe e auxilie o
aluno na prática do uso dos gêneros textuais, pelo fato de serem textos presentes no cotidiano
do aluno tornando-os assim textos autênticos. Segundo Brown (1994), Um texto autêntico é
um material escrito, de qualquer natureza, veiculado socialmente, para satisfazer um
propósito. São exemplos de textos autênticos artigos de jornal, revistas, poemas, capítulos de
telenovela, propagandas, embalagens, recibo de cartão de crédito, menu de restaurantes, bulas
de remédio, catálogos, filmes, vídeos, música etc. O uso de textos autênticos, ou seja,
originais, proporciona um aprendizado mais efetivo, colocando o aluno no contexto em que o
texto está inserido, esse tipo de texto impulsiona o aprendizado do aluno, deixando-o mais
motivado, proporcionando um conhecimento extra para ele, valorizando seu conhecimento
prévio.
Neste trabalho utilizaremos o gênero textual Curriculum vitae para desenvolver a escrita
do aluno com atividades propostas através de uma sequência didática que é “um conjunto de
atividades escolares organizadas, de maneira sistemática, em torno de um gênero textual oral
ou escrito” (DOLZ, 2004, p. 97).
A atividade foi aplicada em uma turma do 2º ano do Ensino médio do Centro de
Educação Integrada Professor Eliseu Viana, como resultado do trabalho desenvolvido por
alunos do Projeto Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID/CAPES) e do
subprojeto de Língua Inglesa.
O objetivo desse trabalho é que os alunos (re) conheçam e produzam o gênero textual
1570

Curriculum Vitae, podendo assim compreender e ter a oportunidade de estudar o tipo de


vocabulário utilizado no gênero. Para isso, primeiro faremos uma aula de pré-leitura. Nesse
Página

momento ocorrerá à verificação do conhecimento prévio do aluno sobre o gênero e

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apresentação do gênero, bem como sua composição. Em um segundo momento, faremos uma
aula de leitura com interpretação de textos e o estudo do vocabulário mais utilizado no
Curriculum Vitae. E por último, uma aula de escrita onde apresentaremos a situação e
iniciaremos a etapa de primeira produção do Curriculum Vitae. Em seguida aplicou – se os
módulos necessários para que ocorresse uma produção final com êxito.
Pretendemos também, verificar como se dá, e como é possível, o ensino da escrita
utilizando o gênero textual Curriculum vitae.

2 Gêneros textuais e o ensino em sala de aula

Koch (2004) defende a ideia segundo a qual os indivíduos desenvolvem uma


competência metagenérica que lhes possibilita interagir de forma conveniente, na medida em
que se envolvem nas diversas práticas sociais. Portanto, os gêneros textuais estão fortemente
ligados ao nosso cotidiano, cabendo assim o estudo e o uso em sala de aula, já que nesse
âmbito o aluno utiliza o gênero para se comunicar e também para que ocorra a própria aula, já
que nesse contexto é necessário o uso dos gêneros, como por exemplo a produção de um
resumo, uma resenha, a interpretação de uma tirinha, a realização de uma palestra, entre
outros.
Devido às inúmeras práticas sociais existentes, temos diferentes gêneros textuais que
são produzidos através de modelos. Escritores produzem textos com base em “modelos”
construídos socialmente, razão pela qual, de um modo geral, não temos dificuldade de
produzir, por exemplo, um bilhete ou um e-mail, já que se trata de gêneros textuais bastante
comuns em nossa comunicação diária, os modelos são abstrações de situações de que
participamos e do modo de nos comportamos linguisticamente. Também os modelos são
constituídos e desconstituídos ao longo de nossa existência em decorrência de inúmeras
práticas sociais de que participamos.
É muito importante que o professor trabalhe os diversos tipos e gêneros que fazem parte
do cotidiano do aluno, para que eles possam compreender que o texto é construído
diariamente nos momentos de comunicação tanto escrito quanto oralmente, e não apenas as
1571

formas com a qual a escola vem trabalhando (narração, dissertação etc).


Trabalhar os gêneros textuais em sala de aula aproxima o aluno do seu cotidiano e isso
proporciona condições melhores para a aprendizagem, devido o uso contínuo do gênero fora
Página

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da sala de aula. Também facilita o domínio sobre os gêneros e contribui de maneira
significante para a prática da escrita.
É importante conhecermos os diferentes gêneros textuais que circulam em nosso
contexto social, porém não se faz necessário produzir todos, visto que são muitos, pois são
inúmeras nossas práticas sociais.
Sendo assim, os gêneros textuais não devem ser trabalhados de maneira isolada, o aluno
não precisa memorizar todos os gêneros textuais. Pelo contrário, deve ocorrer de maneira
contextualizada, trazendo uma reflexão para o aluno para que o aluno compreenda em que
situação o gênero será lido e em qual contexto o texto foi escrito, com qual finalidade o texto
foi escrito.
O professor precisa atuar como mediador, levando o aluno a compreender o sentido do
texto, seu propósito comunicativo, dando oportunidade para o aluno de escrever também para
outros leitores e não apenas para o professor.
A esfera social dos alunos é determinante para o estudo dos gêneros em sala de aula,
pois é interessante o estudo dos gêneros que os alunos mais utilizam ou que irão precisar
produzir em um futuro próximo, como o curriculum por exemplo, já que a maioria irá precisar
produzir para inserir-se no mercado de trabalho.

A escola é tomada como autêntico lugar de comunicação e as situações


escolares como ocasiões de produção/recepção de textos. Os alunos
encontram- se, assim, em múltiplas situações em que a escrita se torna
possível, em que ela é necessária. Mais ainda: o funcionamento da escola pode
ser transformado de tal maneira que as ocasiões de produção de textos se
multiplicam: na classe, entre alunos; entre classes de uma mesma escola; entre
escolas. Isto produz, forçosamente, gêneros novos, uma forma toda nova de
comunicação que produz as formas lingüísticas que a possibilitam. Freinet é,
sem dúvida, quem foi mais longe nesta via que encara com seriedade a escola
como autêntico lugar de produção e utilização de textos (SCHNEUWLY e
DOLZ, 1997).

Bernard Schneuwly e Joaquim Dolz trás a ideia de que a escola é o lugar adequado para
que ocorra as ocasiões linguísticas, como a produção e a recepção de textos. Pois o aluno
encontra um leque de situações de escrita possíveis.
Para facilitar o trabalho do professor com os gêneros textuais, devem-se utilizar as
1572

sequências didáticas. Segundo Schneuwly, Dolz (2004) a sequência didática é considerada um


conjunto de atividades didáticas, que são organizadas de maneira sistemática que envolve um
Página

gênero textual tendo como objetivo facilitar ao aluno o domínio desse gênero, fazendo com

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que ele possa escrever e falar de uma forma mais adequada em uma situação comunicativa.
As sequências didáticas (SD) são atividades ordenadas, ligadas entre si, e por meio delas o
professor pode explorar diferentes práticas escritas, incluindo módulos e correções antes da
produção final. Observando assim a progressão do aluno, oportunizando-o a correção de seus
erros juntamente com uma reescrita, garantindo o alcance do objetivo, que é a produção final.
A utilização da sequência didática como instrumento de ensino garante ao aluno uma
preparação antes da produção final, já que a uso dessa estratégia se dá por etapas, em que
primeiro se conhece o gênero, suas partes, composição, função e esfera social de
comunicação, para só então, ser feita a proposta de interpretação do texto recorrente do
gênero e a realização de sua primeira produção.
A utilização das sequências didáticas contribui muito para a aprendizagem dos alunos,
pois eles podem integrar o conhecimento adquirido em sala de aula às suas práticas
comunicativas do seu cotidiano.

3 Metodologia

Primeiramente realizamos uma aula de pré-leitura, em que verificamos se os alunos


tinham algum conhecimento prévio sobre o gênero textual curriculum vitae. Em seguida
perguntamos em que esfera comunicativa geralmente esse gênero circula, quem são os
interlocutores desse gênero e qual suporte rotineiramente é usado para sua divulgação. Então
o professor fez alguns questionamentos para que esse conhecimento prévio fosse ativado. A
maioria dos alunos disseram que nunca tinham produzido o gênero, mas que sabiam que, em
um futuro próximo, iriam precisar produzir, pois gostariam de começar a trabalhar e se
mostraram motivados para a realização das atividades que iriam ser propostas. Só então
utilizando um equipamento de Datashow, mostramos o gênero, iniciando a aula de leitura. A
partir daí começamos a observar as partes que o compõem, o que cada parte deve conter e
quais informações devem ser colocadas em cada parte. Então, discutimos a descrição do
gênero bem como suas características.
Para a aula de leitura, escolhemos cinco currículos que estavam disponíveis na internet,
1573

em Língua Inglesa, e distribuímos para que eles observassem e trocassem informações entre
si. Só então foi feita a interpretação dos currículos, observando os perfis dos candidatos e
quais os vocábulos mais comuns em todos os currículos disponíveis em sala. Essa aula foi,
Página

também, fundamental para destacar a importância do uso e a função do currículo em nosso

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cotidiano e sobre as vantagens de ter e produzir um bom currículo, pois é através dele que o
interlocutor se conecta com o mercado de trabalho da nossa sociedade e com a carreira
profissional escolhida. Esse entendimento gerou a criação de uma situação real de
comunicação e preparou – os para a atividade de escrita que era produzir seu próprio
currículo.

4 Aula de escrita através da sequência didática

Após as etapas vistas anteriormente e de todo o passo a passo de como escrever o


currículo, os alunos foram introduzidos em uma situação real de trabalho: a professora criou
uma empresa estrangeira que estava com vagas abertas para alguns cargos. A partir de um
anúncio disponível em um jornal, o aluno imaginaria que estava desempregado, mas era
qualificado para assumir o cargo. Os currículos deveriam ser produzidos em língua inglesa, e
o aluno escolheria o cargo no quadro disponível colocando sua qualificação de acordo com a
vaga pretendida. A atividade foi desenvolvida individualmente e o professor auxiliou os
alunos em todo o processo de escrita. Nesse momento os alunos poderiam consultar os
modelos impressos entregues em sala de aula, como também dicionários de língua inglesa
para retirar as eventuais dúvidas com relação a vocabulário. Ao final da produção, o professor
recolheu os trabalhos para que assim pudesse corrigir e verificar quais os erros mais
frequentes, para, só então, produzir os módulos de escrita com o objetivo de revisar o
conteúdo que os alunos mais erraram antes de sugerir a produção final.
Durante a correção da primeira produção de escrita observou - se que os principais erros
ocorreram na escrita dos endereços, já que em língua inglesa o endereço é escrito de maneira
diferente (inversa) com relação à escrita do endereço em língua portuguesa. Apareceram
erros, também, quanto a escrita das profissões, pois eles escolheram cargos que não lhes
foram ofertados no quadro “Há vagas” do jornal fictício, ignorando a indicação de que o
cargo pretendido deveria estar de acordo com o os cargos oferecidos.
Levando em conta essa dificuldade, elaboramos dois módulos referentes a esses
assuntos, trouxemos para a sala de aula, na aula seguinte, junto com as produções corrigidas.
1574

Os módulos tinham o objetivo de trabalhar esses erros frequentes.


Na aula seguinte, depois de aplicarmos os módulos e tirarmos as dúvidas, entregamos
para os alunos à primeira produção para que eles observassem quais foram os erros, que
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estavam enumerados e descritos em cada atividade. Os alunos foram orientados a corrigir os
erros e fazer a produção final.

5 Resultados

Todos os alunos participaram efetivamente das atividades desenvolvidas por meio da


sequência didática. A produção final teve êxito, pois todos corrigiram os erros selecionados.
Acreditamos que a utilização do gênero Curriculum Vitae em sala de aula trouxe uma
visão mais ampla da linguagem escrita fora do contexto da sala de aula, e comumente usada
no cotidiano do aluno, levando-o a refletir sobre a necessidade de aperfeiçoar, compreender e
aprender a escrita no idioma alvo, a língua inglesa.

6 Considerações finais

Ao término deste trabalho concluímos que a utilização de sequências didáticas


utilizando os gêneros textuais no ensino da escrita geram bons resultados, pois o aluno fica
motivado pelo fato de o texto ser autêntico e fazer parte do seu cotidiano, ressaltando ainda
que a maioria deles irá produzir seu próprio currículo durante sua vida profissional. Através
dessa atividade, tivemos a oportunidade de trabalhar tópicos gramaticais e tirar dúvidas sobre
vocabulário existente no gênero.

Referências

DOLZ, Joaquim; NOVERRAS, Michele; SCHNEUWLY, Bernard. Sequências didáticas para


o oral e a escrita: apresentação de um procedimento. In: SCHNEUWLY E DOLZ. Gêneros
orais e escritos na escola. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2004.

BEATO-CANATO, Ana Paula Marques; CRISTOVÃO, Vera Lúcia Lopes. Proposta de


avaliação de sequências didáticas com foco na escrita. In.: BARROS, E. M. D. de e RIOS-
REGISTRO, E. S. Experiências com sequências didáticas de gêneros textuais – parte 2.
Campinas: Pontes, 2014, p. 203-233.
1575
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ISBN: 978-85-7621-221-8
PÔSTER

OS LETRAMENTOS ESCOLARES E O DESENVOLVIMENTO CRÍTICO-


REFLEXIVO DO DISCENTE

Lara Marques de Oliveira (UERN/PIBIB/PIBIC)247


Lívia Maria Pereira da Silva (UERN/GEDUERN/PIBID/PIBIC)248
David Rodrigues (UERN/PIBID)249

Introdução

Os projetos escolares são muito importantes para a aplicação de conhecimento


produzido em sala de aula. O alunado exercita o vínculo social a partir do diálogo com o
outro, contribui com sugestões e críticas construtivas e participa junto ao professor de uma
construção de saber. Tais práticas rompem os muros da escola e se completam no diálogo
incessante com o mundo: contribuindo para a formação crítica-reflexiva do aluno. Dessa
maneira, a presente pesquisa baseia-se numa metodologia qualitativa em que o pesquisador
age diretamente sobre os dados coletados. Assim, é uma pesquisa-ação de cunho qualitativo.
Busca-se adentrar num diálogo constante entre uma prática situada de construção do
conhecimento e a fundamentação do letramento escolar, que exige a constituição de um aluno
que respeita a norma-padrão, mas se completa no fato de esse aluno conhecer e refletir sobre a
realidade que o cerca: tornando-se mais receptivo ao novo e acolhedor ao diferente.
Portanto, o trabalho apresenta um objetivo geral: uma discussão acerca de 4 (quatro)
temáticas sociais importantes para a formação de um cidadão crítico e reflexivo. E apresenta
um objetivo específico: a partir dessa construção de conhecimento de mundo sobre as quatro
temáticas, o adentramento nos gêneros discursivos complexos por meio do processo de
letramento escolar. Assim, os discentes fundamentam seus processos de letramento como
sujeitos dentro de um construto escrito e oral, mas também social e reflexivo.
O objetivo da pesquisa-ação é alinhado aos Parâmetros Curriculares Nacionais do
Ensino Médio (PCNEMs), que consideram a linguagem como capacidade humana de articular
significados coletivos e compartilhá-los de acordo com as necessidades desenvolvidas em
1576

247
Discente do Curso de Letras com habilitação em Língua Portuguesa e suas respectivas Literaturas, da
Faculdade de Letras e Artes, Campus Central, UERN-PIBID. E-mail: lara_marx@hotmail.com
248
Discente do Curso de Letras com habilitação em Língua Portuguesa e suas respectivas Literaturas, da
Faculdade de Letras e Artes, Campus Central, UERN-PIBID. E-mail: liviampsilva@gmail.com
Página

249
Docente da rede pública do Estado do Rio Grande do Norte, UERN-PIBID. E-mail: david10@bol.com

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sociedade. Para os PCNEMs, o essencial na linguagem é a produção de sentido. A proposta
dos PCNEMs se alinha de maneira harmônica com projetos que priorizam as práticas de
letramento como vínculo social/ reflexivo fundamentados em uma preocupação acerca do
cidadão.
A pesquisa-ação foi fundamentada a partir de um projeto desenvolvido nas aulas de
Língua Portuguesa do Ensino Médio com as turmas dos 2° e 3° anos do turno vespertino com
as seguintes temáticas: idosos, preconceito racial, homossexualidade e a mulher. O projeto foi
desenvolvido em duas etapas, visando em um primeiro momento a coleta de dados pelos
alunos e em um segundo momento o desenvolvimento de apresentação cultural.
Como referencial teórico usa-se a concepção de Freire (2008) acerca da construção
pedagógica de maneira política, que tem no aluno o seu foco. Além disso, utiliza-se da
perspectiva de Kleiman (2005) acerca do letramento como prática social, inserido na
formação discursiva e cidadã do sujeito. Um letramento que não está apenas na escola, não é
apenas leitura de código, mas se constitui a partir de conhecimentos múltiplos nos mais
diversos ambientes sociais. Por isso, a autora afirma: “Quando se ensina uma criança ou
jovem ou adulto a ler e a escrever, esse aprendiz está conhecendo as práticas de letramento da
sociedade” (KLEIMAN, 2005, p. 5). O conceito de gênero discursivo na perspectiva
bakhtiana é essencial para o desenvolvimento desse trabalho, pois Bakhtin divide os gêneros
em simples e complexos. Os simples são os diálogos cotidianos e os complexos, textos feitos
sem contato direto com o interlocutor. Além disso, Bakhtin situa os gêneros discursivos em
enunciados relativamente estáveis, sujeitos às condições e finalidades das mais diversas
práticas sociais. Por sua vez, Marcuschi e Dionísio (2007) fundamentam a união fala-escrita
como forma de ação do indivíduo e de completude comunicacional a partir de um letramento
situado, verificado a partir de um contexto específico e, portanto, formador de identidade.
Dessa maneira, as duas vertentes [fala e escrita] devem ser desenvolvidas pelo aluno da
melhor maneira possível tendo em vista um letramento situado, contextualizado e revelador
de identidade pessoal.

1 Uma questão de letramento e posicionamento crítico


1577

Paulo Freire (2008) encara a leitura como compreensão crítica, que se fundamenta a
partir da leitura de mundo em direção à leitura da palavra. Dessa maneira, construir
Página

conhecimento é situar-se num contexto de modo ativo e partilhar de unidades de sentido. O

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professor Freire não determina a leitura como a interpretação de um código, mas como um
processo ativo entre o alfabetizando e o alfabetizador. Uma das máximas mais conhecidas de
Freire é que a linguagem e a realidade se prendem dinamicamente. Dessa maneira, para esse
autor, situar a prática pedagógica como elemento desvinculado da realidade é minar a
consciência crítica-reflexiva do aluno, sujeito não apenas no ambiente escolar, mas sujeito
enquanto cidadão.
Mas, se as aulas de LP não devem ser apenas de conhecimento do código, e sim de
adentramento nas práticas sociais de letramento, como despertar a escola para essa mudança?
Para Kleiman (2005, p. 5) “Letramento’ é um conceito criado para referir-se aos usos da
língua escrita não somente na escola, mas em todo lugar. Porque a escrita está por todos os
lados, fazendo parte da paisagem cotidiana”.
O letrar-se não é uma habilidade ou método incutido (a) pela escola, pelo contrário, o
letramento está nos mais diversos núcleos sociais e um indivíduo será tanto mais letrado
quanto souber dominar os mais diversos usos da linguagem nas mais distintas situações. O
papel da escola está nesse entrelaçamento de usos da linguagem: a escola deve se pautar no
letramento escolar, mas esse letramento deve estar em contínua relação com a vida do
indivíduo, que também é repleta de situações que envolvem a língua escrita e situações que
requerem o uso de uma reflexão para além do código, reflexão crítica de um cidadão ativo e
participativo das relações sociais. Um cidadão ativo e reflexivo é aquele que vê uma notícia e
sabe que os mais diversos jornais partilham de opiniões diferentes e veiculam as notícias de
acordo com suas opiniões. Além disso, é um sujeito que compartilha idéias e diálogos com o
diferente e se vê como sujeito entre suas opiniões, aquele que pode usar da palavra sem se
sentir constrangido ou diminuído diante dos outros se expressando de acordo com seus
objetivos e intenções comunicativas.
A escola deve preparar o aluno para isso: alguém que utilize a linguagem de modo
mais coerente com o propósito comunicativo e alguém que não se restrinja a absorver
informações como um ser passivo, mas reflita sobre as condições sociais de composição
dessas informações. A escola deve ter esse objetivo e é tanto mais eficaz quanto maiores
forem os letramentos partilhados pelo corpo discente.
1578

Mais do que um simples instrumento, a língua é uma prática social que


produz e organiza as formas de vida, as formas de ação e as formas de
Página

conhecimento. Ela nos torna singulares no reino animal, na medida em que


nos permite cooperar intencionalmente, e não apenas por instinto. Mais do

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que um comportamento individual, ela é atividade conjunta e trabalho
coletivo, contribuindo de maneira decisiva para a formação de identidades
sociais e individuais (MARCUSCHI; DIONÍSIO, 2007, p. 14).

Os alunos já chegam à escola dominando a linguagem, eles a criam e recriam de


acordo com seus objetivos, partilham de opiniões, têm um conhecimento internalizado acerca
da gramática de língua portuguesa, etc. O que a escola faz é sistematizar esse conhecimento e
utilizá-lo em contínua relação com a sociedade: que é multifacetada e repleta de indivíduos
diferentes, com opiniões diversas e necessidades complexas. O discente que está apto a se
relacionar de maneira mais satisfatória é aquele que tomará a palavra e participará com menor
constrangimento em ambientes diversos, formais, que procurem fomentar reflexões.

Além disso, a criança, o jovem ou o adulto já sabe falar com propriedade e


eficiência comunicativa sua língua materna quando entra na escola, e sua
fala influencia a escrita, sobretudo no período inicial da alfabetização, já que
a fala tem modos próprios de organizar, desenvolver e manter as atividades
discursivas. Esse aspecto é importante e permite entender um pouco mais as
relações sistemáticas entre oralidade e escrita e suas inegáveis influências
mútuas (MARCUSCHI; DIONÍSIO, 2007, p. 15).

Desse modo, quanto mais variadas forem as práticas de letramento escolar melhor será
o desempenho dos alunos. As práticas devem envolver a escrita, mas também a oralidade, o
contínuo de leitura e partilhamento de interpretações, mas também a produção e a correção do
material escrito pelo aluno, além do partilhamento de informações e reflexões: tais práticas
funcionam como um elo complexo e servem como uma preparação para a vida em sociedade,
por isso são práticas situadas e que mudam a maneira com que o aluno se relaciona com a
escola e com o meio social. “Essa relação é corriqueira numa sociedade tecnológica moderna:
escrita e fala se completam: são coadjuvantes na complexa encenação de eventos nas
instituições” (KLEIMAN, 2005, p. 22).
A sociedade apresenta as mais diversas exigências ao indivíduo, essas exigências
respeitam um contexto de produção de informações e requerem um propósito comunicativo
muito diverso. O diálogo cotidiano já é dominado pelo aluno ao chegar à escola, mas a
oralidade em ambientes formais, a escrita, o domínio dos mais diversos gêneros discursivos, a
1579

produção e correção de textos orais e escritos, o domínio da linguagem em ambientes mais


formais passa a ser desenvolvido na escola e, se for constituído de maneira mais significativa,
passa a constituir a identidade discursiva do corpo discente. “Uma característica das práticas
Página

de letramento fora da escola é que elas variam segundo a situação em que se realizam as

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atividades de uso da língua escrita [...] as práticas de letramento são práticas situadas”
(KLEIMAN, 2005, p. 25).
Uma das competências listadas pelos PCNEMs de Língua Portuguesa é a
compreensão das diferentes linguagens como meio de organização cognitiva da realidade
pela constituição de significados, expressão, comunicação e informação (BRASIL, 2000.
Grifo nosso). Tal proposta está intimamente relacionada com o postulado de uma aula de
Língua Portuguesa repleta de diversidade: de gêneros discursivos e de temas sobre reflexões
sociais.
As aulas de Língua Portuguesa seguiram uma tradição de situarem a escrita como
modelo ideal de linguagem e a fala foi relegada à margem do diálogo cotidiano. Assim, os
professores de Língua Portuguesa se detinham no entendimento do código linguístico sem
efetivação dos mais diversos gêneros discursivos, orais ou escritos. No entanto, pesquisas
recentes associadas à Sociolinguística, etc; têm mostrado que a língua muda no decorrer do
tempo e se apresenta de maneira diversificada a partir dos gêneros discursivos. A oralidade
seria uma dessas formas e não faz uma oposição à língua escrita, mas é harmônica em relação
a ela. “Hoje, há uma grande sensibilidade para os usos da língua. O ensino volta-se para a
produção textual e para a compreensão tendo em vista os gêneros textuais e as modalidades
de uso da língua e seu funcionamento” (MARCUSCHI; DIONÍSIO, 2007, p. 16).
Dessa maneira, não há como desvincular o uso da linguagem de práticas relacionadas
à diversidade de objetivos e contextos situacionais. O trabalho do professor de Língua
Portuguesa torna-se mais complexo, pois é muito amplo trabalhar com práticas sociais de
leitura e escrita contextualizadas e efetivas, mas esse trabalho torna-se mais significativo, pois
transcorre para a vida do discente, se completa na reflexão social e linguageira do indivíduo.
“O indivíduo letrado, o indivíduo que vive em estado de letramento, é não só aquele que sabe
ler e escrever, mas aquele que usa socialmente a leitura e a escrita, pratica a leitura e a escrita,
responde adequadamente às demandas sociais de leitura e de escrita” (SOARES, 1998 apud
MARCUSCHI; DIONÍSIO, 2007, p. 34).

2 Os gêneros discursivos a partir de uma prática situada e contextualizada do sujeito


1580

Bakhtin divide os gêneros discursivos em primários, gêneros simples, que são diálogos
do cotidiano, e gêneros secundários, segundo ele, gêneros complexos, pois não contam com
Página

uma resposta simultânea do interlocutor. Dessa maneira, a construção de gêneros discursivos

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respeita tais critérios, o que os faz ser situados. Constituídos com objetivos específicos dentro
de um contexto social.
Além disso, o teórico postula que os gêneros são enunciados relativamente estáveis,
isto é, sujeitos às alterações contextuais e de objetivos comunicativos, mas sujeitos às
coerções estilísticas: “Onde há estilo há gênero. A passagem do estilo de um gênero para
outro não só modifica o som do estilo nas condições do gênero que não lhe é próprio como
destrói ou renova tal gênero” (BAKHTIN, 1997, p. 268).
Dessa maneira, quando se veicula uma proposta de ensino no âmbito do letramento
escolar levando-se em conta os diversos gêneros discursivos num contínuo entre oralidade e
escrita, o profissional de educação se depara com uma seara muito grande de possibilidades,
de um conjunto de informações e reflexões muito específicas e que ele, como mediador deve
trabalhar.

A riqueza e a diversidade dos gêneros do discurso são infinitas porque são


inesgotáveis as possibilidades da multiforme atividade humana e porque em
cada campo dessa atividade é integral o repertório de gêneros do discurso,
que cresce e se diferencia à medida que se desenvolve e se complexifica um
determinado campo (BAKHTIN, 1997, p. 262).

Em uma proposta de ensino em que se trabalha com a diversidade de gêneros do


discurso não se muda apenas a maneira de apresentar a estrutura composicional dos gêneros
do discurso, mas é apresentado aos discentes estilos de escrita ou de oralidades diferenciados
em determinados contextos, o aluno deve saber que o conteúdo temático varia de acordo com
os objetivos específicos de cada gênero, muda-se o estilo do gênero e do escritor e assim por
diante.
Em consonância com os PCNEMs, a melhor prática a ser desenvolvida pelo
profissional da educação em relação aos estudantes é: “O debate e o diálogo, as perguntas que
desmontam as frases feitas, a pesquisa, entre outros, seriam formas de auxiliar o aluno a
construir um ponto de vista articulado sobre o objeto em estudo”. (BRASIL, 2000, p.9)

3 A aplicação do projeto
1581

O projeto escolar foi elaborado abordando 4 temas: a questão da mulher, da


homossexualidade, dos idosos e do preconceito racial. Tais temáticas englobam a proposta
Página

dos PCNs (Parâmetros Curriculares Nacionais), que tratam a relação pedagógica como

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mediadora no processo ensino-aprendizagem. O projeto durou em média 2 (dois) meses
dividindo-se em duas etapas: primeiramente, um simpósio, no qual os alunos fizeram uma
pesquisa inicial e trouxeram dados e experiências sobre os respectivos temas; e a segunda
etapa, uma apresentação cultural fundamentada em peças teatrais e sarau. O projeto foi
desenvolvido em duas turmas do ensino médio: segundo e terceiro ano. Primeiro, os alunos
fizeram uma pesquisa inicial sobre os temas, com a supervisão do professor, e levaram dados
para a escola. Na primeira etapa, os dados serviram para a fundamentação teórica do
simpósio. Já com os dados primordiais acerca do tema, os discentes puderam fundamentar
produções próprias acerca de suas temáticas. A partir do já conhecido, produziram
conhecimento por meio de peças e saraus. No desenvolvimento dessas atividades, a mediação
do professor se faz primordial: diversas intervenções do docente ajudam o aluno a
compreender sobre como melhor desenvolver suas produções.
Logo, trabalhos de desenvolvimento prático do aluno, por meio de promoções de
diálogos de inclusão social, promovem tanto o adentramento nos gêneros discursivos
complexos, pois os alunos tiveram que produzir na 2° etapa do projeto roteiros para as peças
— nos quais o professor interviu com ideias e sugestões, como também promovem o
desenvolvimento de conteúdo temático para as futuras produções do corpo discente. Além
disso, cada gênero, conforme postulado por Bakhtin, possui estilos próprios advindos do
escritor ou do próprio gênero. Assim, os alunos puderam partilhar da diversidade de gêneros a
partir da estrutura composicional, do estilo, do conteúdo temático, etc.
Na perspectiva de adentramento em reflexões de cunho social, os alunos puderam, na
primeira fase do projeto, colher informações sobre as temáticas, compartilharam com os
colegas tais informações e adensaram esses conhecimentos produzidos a partir de slides
produzidos por eles mesmos. Essa prática de produção dos slides também ajudou na inserção
dos gêneros discursivos complexos a partir da prática da escrita padrão, pois os alunos foram
mediados pelo professor na correção dos slides, na produção de informações. O professor se
constituiu como um elo entre as práticas sociais de leitura e escrita e como agente formador
de diálogos e reflexões sociais sobre as temáticas dos idosos, das mulheres, da
homossexualidade e do preconceito racial.
1582

Na segunda fase do projeto, os alunos puderam com maior vigor partilhar do


conhecimento de gêneros discursivos complexos, pois precisaram construir um roteiro de
peça teatral, no qual necessitarem colher mais informações, refletir sobre o já pesquisado a
Página

fim de criar um desfecho para a peça que promovesse reflexão; Além disso, nas duas fases

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praticaram a oralidade no registro oral padrão, pois nas duas fases apresentaram uma
preocupação tanto com a forma de falar adequada àquele contexto como também uma
vestimenta adequada ao ambiente, etc.
A escola deve romper os seus muros e se fundamentar enquanto elemento substancial
no processo formativo do cidadão. Assim, as aulas de Língua Portuguesa (LP) na escola são
cruciais nessa fundamentação discursiva-ativa do alunado, pois esse ambiente deve contribuir
com interpretação e construção de gêneros discursivos a partir de uma postura crítica-
reflexiva: desse modo constitui-se o processo de letramento escolar.

Conclusão

Pode-se concluir, portanto, que tal atividade contribuiu para o desenvolvimento


crítico-reflexivo dos alunos, despertando-os para a mudança de comportamento, a partir da
valorização das práticas que englobam a educação, o acolhimento e o respeito, promovendo o
pleno desenvolvimento do indivíduo como cidadão neste processo de transformação dos
saberes. Além disso, contribui para que o discente tenha em mente que refletir sobre as mais
diversas temáticas é essencial para um sujeito crítico-reflexivo em constante processo de
aprendizado e de desenvolvimento dos multiletramentos exigidos em sociedade. Para além
dos conteúdos, muitos discentes contribuíram com experiências e reflexões sobre suas
temáticas, conduzindo a comunidade escolar a uma ponderação sobre como essas temáticas
— a homossexualidade, a questão da mulher, dos idosos e do preconceito racial, podem
promover discussões e mudanças de atitudes diante das dificuldades enfrentadas por esses
setores da sociedade, considerados minorias. Um sujeito crítico é capaz de, além de
reproduzir conhecimento, ponderar e refletir sobre a sociedade, tendo em vista as
necessidades sociais. Não há como pensar num aluno preparado para os desafios da sociedade
sem pensar em sua formação reflexiva, crítica e analítica.

Referências

BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: ______. Estética da criação verbal. Tradução


1583

(do francês) por PEREIRA, M.E.G, 2. ed., São Paulo: Martins Fontes, 1997.

BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais. Ensino Médio: língua portuguesa. Brasília:


Página

Ministério da Educação e do Desporto, Secretaria da Educação Fundamental, l998.

ISBN: 978-85-7621-221-8
FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. 49. ed. São
Paulo: Cortez, 2008.

KLEIMAN, Ângela. Preciso ensinar o “letramento”?Não basta ensinar a ler e a escrever?


Cefiel/IEL/ Unicamp: 2005.

MARCUSCHI, L. A. (Org.); DIONISIO, A. P. (Org.). Fala e Escrita. Belo Horizonte:


Autêntica, 2007.

1584
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PÔSTER

O ENSINO COLETIVO DE INSTRUMENTOS DE METAL NO CONSERVATÓRIO


DE MÚSICA D’ALVA STELLA NOGUEIRA FREIRE

Luandrey Célio Silva da Costa (UERN)


luandreycelio@hotmail.com
Renan Colombo Simões (UERN/UFRGS)
renansimoes@hotmail.com

Introdução

O presente trabalho apresenta um recorte da minha monografia em andamento, que


busca compreender de que forma as atividades desenvolvidas através do ensino coletivo de
instrumentos de metal (trompete, trompa, trombone, bombardino e tuba) no Curso Livre de
Metais do Conservatório de Música D’alva Stella Nogueira Freire/UERN, situado em
Mossoró (RN), contribuem para o desenvolvimento musical de seus alunos.
O Conservatório de Música D’alva Stella Nogueira Freire, fundado em 1988,
desenvolve atividades diversas envolvendo ensino, produções artísticas e de incentivo ao
desenvolvimento musical e cultural de seus alunos. É reconhecido como uma importante
instituição no ensino formal de música em Mossoró (RN) e na região alto-oeste potiguar
atraindo interessados de diversas cidades circunvizinhas e até de outros estados. 250
O Conservatório de Música, que em 2016 foi vinculado ao Departamento de Artes da
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), contribui para o ensino formal de
música no interior do Estado, possibilitando formação inicial de profissionais da área e em
espaços musicais como bandas, corais, grupos instrumentais, entre outros.
Na estrutura de ensino da escola são ofertados três cursos regulares – Musicalização
Infantil, Formação Musical Básica e Formação Musical Média – com diferentes
características e perfis, e possuem duração de quatro semestres cada, com abertura de novas
vagas para ingresso anual. Vinculado a estes cursos, estão disciplinas teóricas e práticas, na
qual o aluno tem a possibilidade de escolher um instrumento de seu interesse para estudar
aspectos técnico-musicais durante o curso. Além dos cursos regulares, há possibilidade de
1585

250
Disponível em <http://proex.uern.br/conservatoriodemusica/default.asp?item=conservatorio-apresentacao>.
Página

Acesso em 27 de maio de 2017.

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criação de cursos livres ofertados isoladamente no semestre, sem a necessidade de sequência
obrigatória e a depender da disponibilidade do professor.
Após verificar o baixo número de matrículas na instituição para os instrumentos de
metal e perceber que tal fato se dava pelo receio dos alunos ao se submeterem aos testes de
seleção da instituição, a partir de 2015 foi ofertado o Curso Livre de Instrumentos de Metal
(CLM), através do ensino coletivo de instrumentos.
O Curso Livre teve como principal objetivo atrair novos alunos para a escola,
possibilitando atividades musicais diversas através de aulas coletivas, práticas de conjunto de
metais, dentre outras atividades, buscando assim dar uma maior contribuição para a inserção
de novos alunos na escola e para a formação de instrumentistas na região. Sem a necessidade
de testes de seleção para o ingresso e com vagas para os três turnos, vimos o número de
matrículas passar de três alunos em 2014.2 para treze alunos em 2015.1.

Gráfico 1: Alunos matriculados no curso livre de metais.

Fonte: Documentos do Conservatório de Música D’alva Stella Nogueira Freire.

O CLM passou a ser ofertado nos três turnos, tendo carga horária de 30 horas cada
turma, com um encontro semanal de uma hora e meia. Para o ingresso na escola, o aluno só
precisa possuir o instrumento que pretende estudar.
No CLM, as atividades desenvolvidas se dão de formas mistas, havendo aulas
individuais e coletivas. As aulas individuais são direcionadas aos alunos mais experientes e
com técnica inicialmente desenvolvida; as aulas coletivas, direcionadas aos iniciantes, que são
a grande maioria dos alunos; e sempre que possível, juntam-se todos em aulas coletivas e
práticas de conjunto.
1586
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Foto 1: Aula do CLM

Fonte: Autor.

Em ambas as metodologias visa-se trabalhar os fundamentos técnico-musicais para


melhorar o desempenho do aluno na execução do seu instrumento, explorando e
desenvolvendo diferentes questões como, por exemplo, alongamentos, postura, respiração,
embocadura, emissão do som, dentre outros aspectos, tendo uma perspectiva gradativa do
desenvolvimento musical durante as aulas e sempre realizando uma aplicação direta ao
repertório, que pode ser voltado à música popular ou erudita. Semestralmente é realizado o
planejamento das atividades, conteúdos e repertório, buscando o aprimoramento das aulas
individuais e/ou coletivas.
Para o aprendizado dos alunos, o desenvolvimento desses fundamentos e o suporte
para o estudo em casa, eu elaborei, juntamente com o professor da disciplina, um pequeno
material didático a partir de experiências e reflexões sobre alguns dos principais livros e
métodos para o estudo de instrumentos de metal. Como grande parte destes materiais está em
outras línguas e cada um possui metodologias e exercícios diversificados, tomamos por
direcionamento, utilizar os exercícios do livro 15 minute warm-up routine (DAVIS, 1997),
considerando algumas características importantes, como:
 Possuir exercícios elementares;
 Trazer exercícios padrões de notas longas, entonação, flexibilidade e escalas;
 Possuir excelente playback para acompanhamento.
A partir da seleção do livro utilizado e dos exercícios que seriam aplicados, realizamos
1587

a edição desses exercícios utilizando o programa Sibelius e fizemos as transposições


necessárias para cada um dos instrumentos de metal, resultando em quatro apostilas –
trompete, trombone, trompa e bombardino, e tuba – podendo ser estudada individualmente
Página

e/ou em grupo.
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Desta forma, com base no exposto anteriormente, pretendemos apresentar uma revisão
de literatura acerca do ensino coletivo de instrumentos de metal, a fim de fundamentar nosso
trabalho.

1 Revisão de literatura

O ensino coletivo de instrumento vem sendo cada vez mais aceito e utilizado por
professores e instituições de ensino no Brasil. Uma grande contribuição, tanto para a
fomentação e consolidação dessa metodologia de ensino quanto para auxiliar os professores
que atuam nessa área, foi a criação do ENECIM (Encontro Nacional de Ensino Coletivo de
Instrumentos Musicais), que teve sua primeira edição em 2004, na cidade de Goiânia (GO),
coordenado pela professora Flávia Maria Cruvinel (UFG) e contou com a colaboração de José
de Almeida, Joel Barbosa, Maria Isabel Montandon e Ana Cristina Tourinho, referências do
ECIM. Atualmente, o ENECIM encontra-se em sua sétima edição.
No Brasil, segundo Silva Sá (2016) essa metodologia surgiu:

[...] na década de 1950 com o professor José Coelho de Almeida, realizando


experiências de ensino com bandas de música em fábricas do interior
paulista. Na década de 1970, acontecem os primeiros experimentos de
ensino coletivo de cordas, com o casal Alberto Jaffé e Daisy de Lucca. Em
1975, o casal iniciou um programa de ensino coletivo de cordas em
Fortaleza, a convite do Serviço Social da Indústria (SESI) (SILVA SÁ,
2016, p. 25).

Entretanto, apenas na última década do século XX, segundo Tourinho (2007), foi que
começaram a surgir trabalhos acadêmicos sobre o ECIM. Como referências desse marco
inicial estão: Moraes (1995; 1996), Montandon (1996), Tourinho (1995), Oliveira (1998),
Galindo (2000), Cruvinel (2001; 2005) e Barbosa (2004).
A questão mais comumente abordada nos trabalhos é a metodologia. Há pouco
material desenvolvido para a aula coletiva de instrumentos, o que faz com que os professores
façam relatos de suas experiências em artigos, buscando compartilhar ideias e buscar soluções
para o desenvolvimento das aulas. Para Montandon (2004):
1588

É natural que a confiança para tentar desenvolver aulas em grupo só venha


depois de conhecermos algumas referências. Por isso, entendo bem a
Página

necessidade de muitos professores de buscarem as chamadas “receitas” em


um primeiro momento, até adquirirem autonomia na elaboração e condução

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do ensino em grupo - caso essa seja uma opção do próprio profissional
(MONTANDON, 2004, p. 45).

Em uma breve revisão de literatura foi possível identificar que ainda é escasso o
número de trabalhos que tratam sobre o ensino coletivo de instrumentos de metais. Estes
geralmente são abordados dentro do contexto das bandas de música. Podemos citar o trabalho
de Vecchia (2008), que pesquisou sobre os processos de ensino e aprendizagem dos
fundamentos técnicos na aplicação do método Da Capo na iniciação ao trompete, trompa,
trombone, bombardino e tuba, e mais recentemente o trabalho de Serafim & Matos (2016),
apresentado no VII ENECIM, sobre o “ensino-aprendizagem de instrumentos de sopro em
contextos coletivos: abordagens metodológicas e materiais didáticos para a formação de
licenciados em música”.
Tendo em vista os fatores apresentados, este trabalho pretende contribuir tanto para o
crescimento das discussões sobre metodologias quanto para a ampliação de trabalhos que
discorram sobre o ensino coletivo de instrumentos de metais.

2 Fundamentação teórica

O Ensino Coletivo de Instrumentos Musicais (ECIM) é uma abordagem ampla para o


desenvolvimento de práticas musicais realizadas com mais de um indivíduo simultaneamente,
podendo apresentar diversas possibilidades, além de “[...] ser uma importante ferramenta para
o processo de socialização do ensino musical, democratizando o acesso do cidadão à
formação musical” (CRUVINEL, 2008, p. 5).
Na área da educação musical, o ensino coletivo de instrumentos musicais vem se
destacando, tendo em vista a sua crescente utilização nas aulas práticas e em alguns pontos
que o ensino individual não consegue abranger. Entre esses pontos destacam-se a quantidade
de alunos por aula, o baixo custo para a realização dessas atividades, promoção da interação
social e da motivação; porém, essa metodologia mostra-se mais adequada para iniciantes.
Keith Swanwick diz que:
1589

O trabalho em grupo é uma excelente forma de enriquecer e ampliar o ensino


de um instrumento. Não estou defendendo a exclusividade do ensino em
grupo, e muito menos denegrindo as aulas individuais. Simplesmente quero
chamar a atenção para alguns benefícios em potencial do ensino em grupo
Página

enquanto uma estratégia valiosa no ensino de instrumentos. Para começar,

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fazer música em grupo nos dá infinitas possibilidades para aumentar nosso
leque de experiências, incluindo aí o julgamento crítico da execução dos
outros e a sensação de se apresentar em público. A música não é somente
executada em um contexto social, mas é também aprendida e compreendida
no mesmo contexto. A aprendizagem em música envolve imitação e
comparação com outras pessoas. Somos fortemente motivados a observar os
outros, e tendemos a “competir” com nossos colegas, o que tem um efeito
mais direto do que quando instruídos apenas por aquelas pessoas as quais
chamamos "professores" (SWANWICK, 1994, p. 3).

Nesse sentido, percebemos que o grupo se transforma e evolui através de motivações


constantes, provocações pela descoberta do novo na prática. Sobre os benefícios da prática
instrumental coletiva, Cruvinel (2005) relata que:

O ensino em grupo possibilita uma maior interação do indivíduo com o meio


e com o outro, estimulando e desenvolvendo a independência, a liberdade, a
responsabilidade, a auto-compreensão, o senso crítico, a desinibição, a
sociabilidade, a cooperação, a segurança e, no caso específico de ensino de
música, um maior desenvolvimento musical como um todo (CRUVINEL,
2005, p. 80).

Diante disso o ECIM faz com que o aluno desenvolva simultaneamente os aspectos
musicais e técnicos de um instrumento, funcionando também como uma importante
ferramenta de interação social.
No Brasil, grande parte dos instrumentistas de sopros têm essa experiência inicial nas
bandas de música, que ainda se apresentam como um importante espaço de formação musical.
Sobre a relação do ensino coletivo com as bandas de música, Serafim (2014) nos relata que:

O ensino de instrumentos de sopro, no Brasil, tem importantes raízes


fundadas na prática de bandas de música, entendendo-se ser impossível
separá-lo desse seu tradicional ambiente de cultivo. Defende-se, que
iniciativas em favor de procurar entender e propor encaminhamentos para o
ensino de instrumentos de sopro no país devem passar, necessariamente, por
compreendê-lo ali, onde efetivamente persistem enquanto práticas culturais
espontâneas, há séculos. As bandas de música brasileiras são fruto de uma
tradição musical originada nos tempos do Brasil Colônia, que se
transformaram em uma popular e ainda atual manifestação da cultura
nacional (SERAFIM, 2014, p. 17).
1590

Neste mesmo trabalho, o autor comenta sobre a falta de opções para a formação dos
mestres de banda e também sobre a escassez de materiais didáticos apropriados ao ensino
Página

coletivo de instrumentos musicais. Um dos mais conhecidos e utilizados é o Método Da

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Capo, de Joel Luís Barbosa. Sobre o conceito de método, levamos em consideração a mesma
perspectiva de Serafim (2014):

É necessário acrescentar que, ao tratarmos de método, não nos referimos


apenas aos materiais didáticos assim intitulados, compreendidos como livros
de partituras, de teoria ou de solfejo, que contém numa ordem de progressão
lógica instruções básicas e partituras para o aprendizado de algum
instrumento musical ou teoria musical; está sendo pensado, isso sim, no
conceito atual de método, o qual implica o processo de ensino-aprendizagem
como um todo, ou seja, levando em consideração, além dos
materiais didáticos, as abordagens pedagógicas, os demais materiais de
apoio, como meios de veiculação e espaço físico, as ferramentas de suporte e
produção de ambientes de ensaio e espetáculos, o público-alvo, as formas
de interação, entre outros (SERAFIM, 2014, p. 30).

Dessa forma, pretendemos compreender de que forma as atividades desenvolvidas


com ensino coletivo de instrumentos de metal (trompete, trompa, trombone, bombardino e
tuba) no Curso Livre de Metais do Conservatório de Música D’alva Stella Nogueira
Freire/UERN, situado em Mossoró (RN), contribuem para o desenvolvimento musical de seus
alunos, enfocando as estratégias utilizadas pelo professor na transmissão dos conhecimentos,
o material didático e os critérios de utilização dos mesmos.

Considerações finais

A partir da revisão realizada, observamos que o ECIM vem se destacando cada vez
mais, fato que pode ser observado pela presença constante desse tema em eventos e periódicos
científicos na área da Educação Musical, como também pela criação do Encontro Nacional de
Ensino Coletivo de Instrumentos Musicais (ENECIM), que vem sendo realizado desde 2004,
demostrando assim a importância dessa metodologia para a formação de músicos.
Esse trabalho tem auxiliado diretamente nas reflexões a serem abordadas em meu
trabalho de conclusão de curso, tendo em vista as diversas possibilidades dessa metodologia e
suas características, como o baixo custo para ser desenvolvida, e abrange um maior número
de alunos por turma, proporcionando um desenvolvimento musical e social do indivíduo.
1591

Assim, a partir dessa revisão e do trabalho de campo a ser realizado, pretendemos


responder a seguinte problemática: de que forma as atividades desenvolvidas através do
ensino coletivo de instrumentos de metal (trompete, trompa, trombone, bombardino e tuba) no
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Curso Livre de Metais do Conservatório de Música D’alva Stella Nogueira Freire/UERN
contribuem para o desenvolvimento musical de seus alunos?

Referências

CRUVINEL, Flavia Maria. O Ensino Coletivo de Instrumentos Musicais na Educação Básica:


compromisso com a escola a partir de propostas significativas de Ensino Musical. In:
Congresso Regional Centro-Oeste da ABEM, 8., 2008, Brasília. Anais... Brasília: Associação
Brasileira de Educação Musical. 2008.

______. Educação Musical e Transformação Social uma experiência com ensino coletivo de
cordas. Instituto Centro Brasileiro de Cultura. Goiânia, 2005.

DAVI, Michael. 15 minute warm-up routine. The hip-bone music. 1997.

MONTANDON, Maria Isabel. Ensino Coletivo, Ensino em Grupo: mapeando as questões da


área. Anais do ENECIM, 2004, p. 44-48.

SERAFIM, Leandro Libardi. Modelos pedagógicos no ensino de instrumentos musicais em


modalidade a distância: projetando o ensino de instrumentos de sopro. 177 f. 2014.
Dissertação (Mestrado em Educação Musical) – Programa de Pós-Graduação em Música,
Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014.

SILVA SÁ, Fábio Amaral Da. Ensino coletivo de violão: uma proposta metodológica.
Goiânia, 2016. Dissertação (Mestrado) Universidade Federal De Goiás, Goiânia, 2016.

SWANWICK, Keith. Ensino instrumental enquanto ensino de música. Tradução de Fausto


Borém de Oliveira e Revisão de Maria Betânia Parizzi. In: Cadernos de Estudo: Educação
musical 4/5. São Paulo: Atravez. p. 7-13. 1994

VECCHIA, Fabrício Dalla. Iniciação ao trompete, trompa, trombone, bombardino e tuba:


processos de ensino e aprendizagem dos fundamentos técnicos na aplicação do método da
capo. Salvador, 2008. Dissertação (Mestrado) Universidade Federal da Bahia, Salvador,
2008.
1592
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ISBN: 978-85-7621-221-8
PÔSTER

A MULHER NA POESIA DE FLORBELA ESPANCA

Luzia Regina Alves Regis (UERN)


Poliana Menezes Amorim (UERN)

Considerações iniciais

Podemos dizer que desde a origem da vida a mulher foi destinada a viver submissa, tal
hipótese pode ser constatada por uma interpretação bíblica quando Deus cria Eva para ser
esposa de Adão, o homem, então, era visto como um ser de sabedoria e, a mulher deveria
apenas obedecê-lo. Seus desejos e vontades são reprimidos, passando a ser apenas um objeto
de procriação, destinada ao mundo interior, ou seja, ao lar e aos filhos. Enquanto o homem
assume a frente das relações sociais garantindo o sustento da família. E com isso o casamento,
torna-se a única saída para a mulher, pois o matrimonio era considerado uma “garantia de
vida”, financeira e de respeito.
A partir dessa teoria bíblica, é fácil perceber que a luta pela igualdade também
começou com Eva, a primeira mulher da história que causa uma grande revolução quando
come o fruto proibido, desobedecendo a Deus e mudando todo o percurso de uma história de
submissão.
No entanto, o modelo ideal do que é ser mulher na sociedade, por muitos anos esteve
associada ao de Maria mãe de Jesus, mulher pura, submissa ao seu esposo e devota aos
princípios religiosos, dedicou a sua vida ao lar e aos filhos. Quando a mulher quebra esses
estereótipos, assumindo um novo modo de vida que renega o matrimonio e a submissão, passa
a ser comparada a Maria Madalena, mulher impura, desmerecedora do respeito social.
Com o passar dos séculos às lutas femininas intensificam-se, para garantir o seu
espaço na sociedade muitas foram queimadas e apedrejadas por lutarem pela libertação
identitária e pela igualdade de gênero.
Visando refletir sobre essa nova mulher será analisada a poesia de Florbela Espanca,
uma mulher que auto se representa, quebrando estereótipos de uma sociedade totalmente
conservadora. Problematizando questões históricas e culturais acerca do que é ser mulher na
1593

cultura portuguesa impactada pela revolução industrial, assim, segundo Carrancho (2003),
após a revolução industrial, a figura feminina começa a assumir um novo papel, além de
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esposa e mãe agora também é operária. Nessa mesma perspectiva, Carrancho (p.69) também

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nos diz que “Na rua não cabem Marias, em casa não cabem Madalenas’. A mulher atinge um
novo paradigma social e começa a ser libertar de uma sociedade hipócrita, reguladora e
machista.
Através dessa atmosfera de luta e resistência feminina, a mulher desloca-se do
universo doméstico que por muito tempo esteve confinada e se insere no campo cultural
literário, passando a ter voz e liberdade de expressão, mesmo que seja nas margens da
sociedade, inicia-se, ainda que de modo resguardado, uma construção identitária, uma vez que
passam a ser inserir como sujeito participante nas relações sociais.
É conveniente destacar que, as reflexões discutidas neste artigo terão como base o
método analítico-interpretativo, norteado por pesquisas bibliográficas já realizadas, e
discussões feitas em sala de aula sobre o assunto. No entanto, outras partirão do nosso próprio
ponto de vista.

1 A Obra de Florbela Espanca e a dificuldade de ser escritora

Ser mulher não é e nunca foi algo fácil, ainda mais quando quebra os rótulos de uma
sociedade. Florbela Espanca, é um grande exemplo de auto-afirmação feminina que pode ser
constatado tanto na sua vida quanto na sua obra. Casou-se três vezes, quando o divorcio ainda
não era muito aceito, interessava-se por política, enfim, tudo isso nos leva a crer que Florbela
era uma mulher muito a frente do seu tempo. Apesar de estar inserida na época do
modernismo não se vinculou a nenhuma corrente literária.
No plano literário, Florbela quebra a concepção de que a mulher era para escrever
assuntos sentimentais, do lar e religioso. A autora ao desnudar essa ideia, descreve uma
mulher que ama, deseja e sensualiza. O que logo recebe duras críticas da igreja e da sociedade
que consideravam os seus livros e a sua vida pessoal como má influência. Carrancho (p.33)
nos explica o porquê da escrita feminina ser tão rejeitada pela sociedade “a escrita literária de
autoria feminina pretende falar da luta da mulher por espaço, reconhecimento, igualdade, mas,
sobretudo da reformulação da identidade feminina na sociedade”. Através desse ponto,
percebemos que a obra de Florbela foi apedrejada por essa razão, pois antes de tudo a autora
1594

buscava através dos seus versos a libertação da identidade feminina do século XX, que ainda
possuía a concepção de que a mulher escritora não deveria falar de certos assuntos para não
manchar a honra e os princípios patriarcalista da época. Tal rejeição da escrita feminina,
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também, se dava pela falsa concepção de que apenas os homens possuíam o talento para a

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criação literária, e através dos olhos deles a mulher era descrita. Quando elas passam auto se
descrever gera um enorme desconforto social, pois segundo Héléne Cixous citado por
Carrancho (p.42) “[...] a escrita Feminina foi algo revolucionário porque rompia com as
estruturas opressivas e convencionais da linguagem e do pensamento masculino”. A mulher
passa a descrever o seu ponto de vista em relação ao mundo, saindo das margens da sociedade
e assumindo um papel ativo nas relações sociais e comunicativas.
Em consonância com este enfoque, Anna Klobucka relata que Florbela Espanca além
de vivenciar, articulou em sua poesia essa desigualdade dos sexos na emancipação feminina,
enquanto escritora portuguesa, pois buscava questionar os papeis culturais oferecidos a
mulher pela sociedade, buscando construir uma identidade própria.
Assim a obra de Florbela, se torna única pelo fato dela utilizar-se das vantagens
masculinas para construir a sua identidade, segundo Dal farra:

[...] a nossa poetisa se apodera dos mitos sociais masculinos, não para
suportá-los enquanto tais, mas para dialogar com eles, para conhecê-los,
vasculhando-os por dentro a ponto de vestir deles a máscara, num esforço
crítico de descerramento da sua própria feição intima (DAL FARRA, p. 40).

Em muitas das suas poesias não vemos uma mulher que é cortejada, mas uma mulher
galanteadora que usa a sensualidade para atrair o amado, que se embriaga, que sai às noites e
entrega-se demasiadamente a fogosas paixões, tornando-se uma verdadeira Don Juan.
Em outra vertente da autora, temos uma mulher que sofre e chora com a rejeição do
amado e da sociedade, mas que não se deixa abalar, sempre dá a volta por cima, Dal farra
(p.42) aponta que “é, portanto, a arte poética dessa mulher, revertendo em bem, em força
produtiva, as vicissitudes negativas da condição feminina, o sofrimento amoroso e a
marginalidade que permite a Florbela, como “freira”, a conjunção de... milagres”.
Florbela ao representa a imagem feminina rompe com a figura bíblica de Maria
(submissa) e passa a ser a mulher dona de si que possui os mesmos direitos dos homens de
seduzir, de gostar de sexo e de ser entregar a vários. Tornando-se, assim, a nova Maria
Madalena do século XX.
1595
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2 O aprisionamento e o anseio pela liberdade feminina em “A mulher” e “Amar”

A fim de compreendermos como a imagem feminina é representada na poesia de


Florbela Espanca, serão analisados dois poemas, que aparentemente descrevem a mulher e
expressam o seu desejo de liberdade diante de uma sociedade presa a moldes moralistas.
Assim, foi escolhido o poema “Amar” do livro Charneca em Flor que foi publicado um mês
após a sua morte no ano de 1931. E também o poema “A mulher” do livro trocando olhares
que começou a ser escrito no ano de 1915, o livro reúne uma coletânea de 85 poemas, sendo
publicado em 1994 pela impressa nacional.
O poema “A mulher” será utilizado para que possamos ver a opressão do feminino e a
sua resistência contra o opressor.
O eu lírico descreve na primeira estrofe do poema as características do sexo feminino
aos olhos da sociedade, revelando as suas angustias e sentimentos reprimidos, demonstrando a
dor, a fraqueza, a força e bondade da essência feminina que mesmo com o coração sangrando,
continua sacrificando sua vida em prol dos outros.

Um ente de paixão e sacrifício,


De sofrimento cheio, eis a mulher!
Esmaga o coração dentro do peito,
E nem te doas coração, sequer!
(ESPANCA, p. 143)

Na terceira e quarta estrofe, é traçado um perfil real do que acontece com as mulheres
que quebram os paradigmas impostos pela sociedade:

Se à vezes tu fraquejas, pobrezinho,


Essa brancura ideal de puro arminho
Eles deixam pra sempre maculada;

E gritam então vis: "Olhem, vejam


É aquela a infame!" e apedrejam
a pobrezita, a triste, a desgraçada!
(ESPANCA, p. 143).

O que podemos ver nos versos a cima é que diferentemente do sexo masculino que
1596

pode amar, seduzir e enganar quantas desejar, a mulher não possui essa liberdade, devendo se
manter pura e forte quanto as tentações masculinas, o eu lírico utiliza uma metáfora de que
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aos olhos da sociedade a mulher dever ser como um arminho, animal de pelagem branca,

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muito valiosa. Dessa forma, a menção ao arminho pode estar simbolizando a pureza feminina,
se por um deslize a mulher se corrompe a sua pureza, assim, como a pele branca do animal
ficará manchada, desmerecendo o respeito da sociedade.
No verso final, ocorre o empoderamento do eu lírico para que a mulher seja forte e
valente e forte:

Sê forte, corajoso, não fraquejes


Na luta: sê em Vênus sempre Marte;
Sempre o mundo é vil e infame e os homens
Se te sentem gemer hão-de pisar-te!
(ESPANCA, p. 143).

Também vemos uma menção ao planeta Vênus e Marte que na mitologia grega,
ambos, representam deuses. Vênus é uma deusa que representa o amor, a beleza feminina e a
sensualidade, e o planeta Marte representa o Deus da guerra, dessa forma, entendemos que o
eu lírico aconselha que a mulher, embora, seja vista como uma pessoa delicada, amorosa e
sensual seja sempre sinônima de guerra para que não seja ridicularizada pela hipocrisia da
sociedade.
Segue o poema “Amar” para que possamos ver a mulher de outra vertente, um eu
lírico sedutor e libertino que se mostra dono de si.
Logo na primeira estrofe, o eu lírico é um tanto ousado quando se utiliza de uma
espécie de Don Juanismo, o uso do pronome pessoal em primeira pessoa do singular “eu”, nos
indica um desejo internalizado do eu lírico feminino que assume uma característica
tipicamente masculina de sedução, amar vários ao mesmo tempo sem prender-se a ninguém,
outro fato que nos leva esse pensamento é a repetição do verbo “amar” essa anáfora consiste
em reforçar que o eu lírico almeja ter vários relacionamentos amorosos durante a sua vida,
demonstrando o seu anseio pela liberdade das imposições sociais.

Eu quero amar, amar perdidamente!


Amar só por amar: Aqui... Além...
Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente...
Amar! Amar! E não amar ninguém!
(ESPANCA, p. 100).
1597

Diante do contexto, sócio cultural da época não era comum uma mulher ter esse
comportamento, uma vez que a figura feminina ainda era ligada ao matrimonio, esse tipo de
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atitude, manchava a honra da mulher impossibilitando-a de um casamento “decente”, ou seja,
era mais uma Maria Madalena para a sociedade, mulher libertina e desonrada.
Já na segunda estrofe, nos dos primeiros versos vemos o uso da antonímia, para
mostrar o atrito interno do eu lírico que se encontra indecisa, perdida em meio às perturbações
emocionais.

Recordar? Esquecer? Indiferente!...


Prender ou desprender? É mal? É bem?
Quem disser que se pode amar alguém
Durante a vida inteira é porque mente!
(ESPANCA, p. 100).

Entretanto, nos dois últimos versos, podemos ver uma mulher consciente que
vulgariza o sentimento amoroso como sendo algo passageiro, um ciclo que nasce, morre e
renasce, uma atitude que não era de se esperar de uma mulher da época, uma vez que está era
conhecida pela sua sentimentalidade amorosa.
Tal característica de empoderamento feminino, também, está presente nos dois últimos
versos, em que o eu lírico começa o primeiro terceto utilizando a primavera como metáfora,
insinuando que a mulher deve entregar-se as paixões, independente da idade e que aproveite
sempre o melhor da vida.

Há uma primavera em cada vida:


É preciso cantá-la assim florida,
Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar!

E se um dia hei-de ser pó, cinza e nada


Que seja a minha noite uma alvorada,
Que me saiba perder... Pra me encontrar...
(ESPANCA, p. 100).

Na última estrofe podemos ver uma espécie de alerta, um dia a morte virá e não
adiantará de nada não ter aproveitado a vida sem experimentar as facetas do amor, a autora
ainda faz o uso da antonímia “perder/encontrar” supostamente nos indicando que, quando
uma mulher exercia tal postura diante da sociedade ela era vista como mundana, mas para o
1598

eu lírico, essa perdição é necessária, pois através disso, ela poderá se encontrar, por meio
daquilo que a sociedade abomina envolver-se em vários relacionamentos afetivos.
De modo geral, ao tratar da representação feminina, ambos os poemas nos mostra uma
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nova identidade sendo construída, de um lado no poema “A mulher” temos uma poeta que

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descreve como a mulher ainda é presa dentro de um sistema tradicionalista e conservador que
a recrimina, caso, ela não siga os princípios moralistas da sociedade que é manter-se pura á
sombra do homem e submissa. Mas ao mesmo tempo o poema também nos passa a noção de
empoderamento quando diz que a mulher é forte e que tudo suporta e, por essa razão deve
lutar contra o modelo construído no campo social e cultural da sociedade que a considera
como ser inferior.
Em concordância a esse pensamento de empoderamento, vemos no poema “Amar”,
uma autora que mostra as características de uma mulher da sociedade moderna, determinada e
ousada que não sente vergonha dos seus desejos carnais, desafiando a sociedade ao propor um
novo modelo de vida, tentando se igualar ao sexo masculino.
Nos poemas analisados de Florbela levando para o contexto bíblico podemos ver as
três personagens bíblicas Maria, sinônimo de amor e sacrifício, Eva que não aceitar ser
submissa e Maria Madalena que quer amar quantos desejar. Essa pluralidade de vozes
femininas encontradas nos poemas abre espaços para que vejamos as mulheres como sujeitos
que constroem a sua própria história e que só é possível perceber quando saímos desse molde
de que a mulher é muda, submissa e sem desejos.

Considerações finais

O que podemos ver é que a poesia de Florbela abriu caminho para uma nova forma de
ver a mulher, como ser capaz de decidir o seu próprio destino, ou seja, a mulher passa a ter
voz e sai das margens da sociedade, quebrando falsos paradigmas e revelando a sua
verdadeira face de mulher que sonha, ama, luta e deseja. Para melhor refletirmos, vale utilizar
a citação de Níncia a respeito dessa quebra de paradigmas que a escrita feminina gera na
sociedade

Durante muitos séculos, as mulheres foram representadas em páginas


literária enclausuradas em visões daqueles que detinham o poder de
determinar o cânone. À medida que as mulheres vão saindo desse
encarceramento sua atividade de sujeitos, sua inserção no cânone literário
também se realiza (NÍNCIA, p. 16).
1599

Nos dias atuais percebemos que houve um grande avanço no que diz respeito à escrita
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feminina, a mulher pode falar sobre sexo, prostituição e baladas e isso não altera em nada na
sua vida pessoal, pois a sociedade aprendeu a separar e escrita da escritora. No entanto, vemos
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uma inversão de valores literários, ou seja, para muitos a prática de escrever, produzir versos
e poesias já é algo feminino e, o homem que por muito tempo teve o domínio do dom
literário, agora se encontra de modo preconceituoso nas margens da sociedade.
Já no que diz respeito à vida social, a mulher ainda é marginalizada, vista como um ser
inferior presa a um sistema cultural ultrapassado regido por diferenças de gênero. O que nos
leva a concluir que ainda há um longo percurso de luta e resistência para que de fato a mulher
consiga por completo o seu espaço na sociedade.

Referências

CARRANCHO, R. S.: Cheherazade: In:______. Feminino: a resolução que marca a


diferença. Campinas, SP. Editora Átomo. 2003. p. 61-74.

ESPANCA, Florbela. Poemas. Estudo introdutório, organização e notas de Maria Lúcia Dal
Farra. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

ESPANCA, Florbela. Melhores poemas. Seleção Zina C. Bellodi. São Paulo: Global Editora,
2005.

KLOBUCKA, A. M. O formato mulher: a emergência da autoria feminina na poesia


portuguesa. Coimbra: Angelus novus, 2009.

TEIXEIRA, N. C. R. B. Escrita de mulheres e a desconstrução do cânone literário na pós


modernidade. Guarapuava: Unicentro, 2008.

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PÔSTER

O MODERNISMO EM AUGUSTO DOS ANJOS

Aristóteles Sousa Ferreira (UERN)


Lývia Lorena de Souza Dantas (UERN)
Maria Fabricia Dantas (UERN)
Francisca Lailsa Ribeiro Pinto (UERN)

Considerações iniciais

A obra Eu (1912) do poeta Augusto dos Anjos causou um grande estranhamento na


época em que foi escrita, tendo sido considerada muito mórbida e até mesmo vulgar, por
causa de seus temas e críticas a sociedade vigente. No entanto os críticos perceberam a sua
singularidade tanto na linguagem quanto nas suas temáticas que traziam críticas ao modo de
vida daquela época; o poeta também tinha características Parnasianas, Simbolistas e várias
outras influências na sua obra, sendo tudo isso algo difícil de se definir, por isso sua obra é
considerada sincretista, algo muito proeminente naquele período que ficou conhecido como o
pré-modernismo. Segundo Moisés (2012), o poeta Augusto Carvalho Rodrigues dos Anjos
nasceu na cidade Engenho do Pau D’Arco, dia 20 de abril de 1884. Com o auxílio do seu pai,
um homem culto e de conhecimentos literários, formou-se no Liceu Paraibano e depois,
cursou a Faculdade de Direito do Recife, em 1907. Quando terminou o ensino superior,
ensinou em João Pessoa e logo após, se transferiu para o Rio de Janeiro. Tornou-se diretor do
Grupo Escolar de Leopoldina (Minas Gerais), após passar pelo Ginásio Nacional e Escola
Normal. Poucos meses depois, faleceu, em 12 de novembro de 1914. Com o auxílio do seu
irmão, publicou, em 1912, a compilação dos seus versos em um livro chamado Eu, que hoje,
constitui a sua herança literária. Depois de sua morte foi lançada uma nova versão chamada
Eu e outras Poesias, obviamente com poesias novas. O poeta Augusto dos Anjos desenvolveu
sua poesia numa época de efervescência na literatura brasileira que se inicia em 1902 até
1922.

A historiografia tem chamado de vários modos o período que se inicia em


1601

1902 com a publicação de Canaã, de Graça Aranha, e de Os Sertões, de


Euclides da Cunha, e termina com a “Semana de Arte Moderna”, em 1922.
Alguns o rotulam de período “nacionalista” ou “eclético”, ou “pré-
moderno”, outros de “sincrético” ou “sincretista” ou de “transição e
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sincretismo”, enquanto outros propõem o apelativo de art nouveau


(MOISÉS, 2012, p. 357).

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O presente trabalho tem como finalidade analisar as características modernistas na
obra Eu e outras poesias (1998), de Augusto dos Anjos e seus aspectos singulares. A
metodologia se dá em uma análise bibliográfica fundamentada em Moisés (2012), Moisés
(1987), Viana (2014), Santos (2013) e Rubert (2007).

1 Augusto Dos Anjos – Um Poeta Além Do Seu Tempo

As duas primeiras décadas do século XX, demonstravam um sentimento de


modernidade, com a libertação dos escravos e a proclamação da república, embora de forma
muito contida e muito arraigada aos ideais do século XIX. O pré-modernismo se caracterizou
numa mistura de ideias em que vários estilos de outrora entravam em conflito, e de certa
forma criava-se algo novo, fato que tornou tão difícil a caraterização deste momento de
transição (LITERATURA BRASILEIRA II, 2009).
Conforme Moisés (2012), Augusto dos Anjos sofreu influências de vários movimentos
e autores, como Baudelaire e sua poesia simbolista, de Cesário Verde e da sua poesia urbana e
cotidiana, do filósofo Schopenhauer e da sua filosofia da Dor e da Vontade, algo que pode ser
notado no seu poema “Versos Íntimos”; de Hegel e sua filosofia idealista, como pode ser visto
nas poesias “O Meu Nirvana”, “Vítima do Dualismo”, “Ao Luar” e também dos naturalistas
Darwin e Haeckel, com suas teorias evolucionistas. Por isso, existe a dificuldade de enquadrá-
lo numa perspectiva histórico-estético.
Viana (2014), também fala desse momento singular em que a poesia de Augusto dos
Anjos se desenvolveu, período o qual o Parnasianismo e o Simbolismo andavam juntos, mas
não necessariamente sua poesia pode ser enquadrada nisso.

O Eu surgiu num momento em que Parnasianismo e Simbolismo conviviam,


mas a rigor não se filia a nenhum desses estilos. Os historiadores terminaram
incluindo-o no Pré-Modernismo, já que ele constitui uma ponte entre os
simbolistas e os modernos. Conserva dos primeiros a musicalidade e o tom
soturno, que lembra Cruz e Sousa. E tem dos segundos o vocabulário
prosaico, por vezes apoético, em que palavras de uso cotidiano (vinagre,
tesoura, sorvete) se alternam com vocábulos científicos. (VIANA, 2014, p.
1602

17).

Entretanto, a sua modernidade pode ser constatada não pela sua metrificação, não se
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atendo a versos livres e sim pelo seu sincretismo. De acordo com Viana (2014), a

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modernidade de Augusto dos Anjos está mais no seu conteúdo do que na estrutura dos seus
poemas, ele era moderno por adotar padrões que fugiam da nossa tradução lírica. Conservava
a musicalidade e o tom soturno, vocabulário prosaico que às vezes revezam com vocábulos
científicos.
Segundo Santos (2013), a lírica moderna não se refere a um “eu” específico ou a
alguma pessoa em particular, nela não há como ser objetiva e muito menos subjetiva,
existindo de certa forma um anti-lirismo. Algo que também chamava atenção era o fato de se
trabalhar estéticas que eram consideradas feias naquela época, como a decomposição do corpo
humano e o escarro. No Modernismo, é importante a idealização do feio, que não é mais visto
como algo de repulsa, pois no contraste é que se encontra novos estímulos para a construção
da poesia moderna, algo que outrora já havia sido proposto pelo Romantismo. Não é a
oposição entre o belo e o feio que causa esse estímulo, e sim, a sua junção em contraste que
produz tal inspiração, que é o seu real objetivo.

A desvalorização da forma orgânica, que em uma inversão hierárquica


desloca o homem para o degrau mais baixo fazendo-o parecer menos
possível com um homem e a anulação do sentido humano, possibilita novos
olhares e outra dimensão ao significado de um objeto artístico. Seu valor
lírico se encontra no próprio objeto, enquanto desfigurado da realidade
(SANTOS, 2013, p. 12).

Para Moisés (1987), não é nada fácil definir o que é poesia, não seria ela apenas a
expressão do “eu”, fato notável que a diferencia da prosa, mas em essência o que se está em
discussão é o conhecimento de objeto cultural dentre vários textos, de forma que eles possam
ser diferenciados de textos não poéticos. Na definição do que é poesia, não se pode levar em
conta apenas os aspectos teóricos, já que nenhum deles pode portar as definições apropriadas
para cada tipo de poesia numa determinada abordagem.

Mas ainda: as várias respostas acerca da interrogação – que é poesia? – não


podem, sob pena de incidirmos num ecletismo mecânico, ser meramente
justaposta. Uma teoria do fenômeno poético que levasse em conta todas as
propostas, ou as mais relevantes, correria o risco de tornar-se um monstro de
mil cabeças. Inoperante, pois, tal procedimento, caberia reclamar cooperação
das teorias naquilo em que realmente pudessem ajudar no esclarecimento de
1603

algum recanto do problema. Por outro lado, nenhuma delas pode ser adotada
como absoluta, sem deixar em suspenso questões importantes (MOISÉS,
1928, p. 104).
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Dessa forma, não é uma tarefa nada fácil analisar uma obra tão rica quanto a de
Augusto dos Anjos, por sua inovação e mistura de elementos que por consequência viria a
criar uma poesia tão singular e apreciada.
Rubert (2007) diz que Augusto dos Anjos é um poeta de difícil classificação, pois a
sonoridade liga a poesia ao Simbolismo, que é anulada pelo cientificismo e por palavras
consideradas “a-poéticas”, características bem próximas de temas do Realismo e Naturalismo.
Também tem características formais do Parnasianismo, já que escreveu quase tudo em versos
decassílabos. Apesar de a métrica identificar as poesias do poeta, ele não deixou de lado a
musicalidade do simbolista.
Segundo Helena (1977, p. 18, apud RUPERT, 2007, p.06) Augusto dos Anjos,
aparentemente, é “um soneticista da poesia cientificista do realismo-naturalismo”, ainda com
resquícios do simbolismo. Assim, Rupert (2007) ressalta que “este comentário já concilia,
pelo menos, três das várias correntes literárias que julgam algum contato com o poeta.” Dessa
forma chamando a atenção para essa riqueza de variedades de influências que o autor tinha.
Assim, Rupert (2007) pontua que o poeta enfrentou muitos desafios e resistências por causa
de suas inovações. Rupert (2007) conclui que Augusto dos Anjos estava numa encruzilhada
entre o pós romantismo e o pré-modernismo, pois ambas estavam presentes na sua obra.

2 Uma poesia que causou estranheza

Segundo Viana (2014), a poesia de Augusto não era pra quem estava adaptado com
características parnasianas, como as quais acalentavam o ouvido. A obra Eu (1912), veio
contrapor todos os ideais de beleza e de arte pela arte, como podemos ver no trecho do poema
“Monólogo de uma Sombra”.

Monólogo de uma Sombra251


Sôfrego, o monstro as vítimas aguarda
Negra paixão congênita, bastarda,
Do seu zooplasma ofídico resulta...
E explode, igual à luz que o ar acomete
Com a violência mavórtica do aríete
E os arremessos de uma catapulta.
1604
Página

251
Todas as poesias citadas foram tiradas do livro Eu e outras poesias (1998).

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Ainda de acordo com Viana(2014), esses versos quebraram o costume que se tinha de
ouvirem apenas a musicalidade de poetas parnasianos e simbolistas, porque havia palavras
cheias de consoantes que Augusto usava uma poesia, de certa forma científica, que não
condizia com os padrões e modas da literatura brasileira da época. Por isso estes versos
causaram tal surpresa, num ambiente em que se predominava uma apatia literária.
Segundo Rubert (2007), a poesia de Augusto dos Anjos tem ligação com a estética do
século XX, pois havia pensamento modernista em seus poemas como: desligar-se da palavra
encantadora, fugir da realidade do “Belo” e do romântico, pois são utilizados termos
considerados “a-poéticos”.

A modernidade de Augusto dos Anjos revela-se nesse ato de dessacralização


até agora não compreendido: no âmbito de sua poesia dele reverencia o
léxico repudiado pela estética do “belo”. O vigor de sua linguagem se nutre
d’essa necessidade de horroroso /que é talvez propriedade do carbono!
(HELENA apud RUBERT, 2017, p. 07).

Também de acordo com Rubert (2007), essa mistura de tendências de Augusto dos
Anjos, englobando as escolas literárias da segunda metade do século XIX, fato que o
evidenciou como um poeta com tendências modernistas, como se percebe o uso de
abreviaturas e o uso de palavras cotidianas e científicas, o que evidencia o seu modernismo no
poema abaixo:

Budismo Moderno
Tome, Dr., esta tesoura, e... corte
Minha singularíssima pessoa.
Que importa a mim que a bicharia roa
Todo o meu coração, depois da morte?!

Ah! Um urubu pousou na minha sorte!


Também, das diatomáceas da lagoa
A criptógama cápsula se esbroa
Ao contacto de bronca dextra forte!

Dissolva-se, portanto, minha vida


Igualmente a uma célula caída
Na aberração de um óvulo infecundo;
1605

Mas o agregado abstrato das saudades


Fique batendo nas perpétuas grades
Do último verso que eu fizer no mundo!
Página

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Segundo Rubert (2007), o “anti-lirismo” e o “mau-gosto” de Augusto dos Anjos é
evidenciado em suas expressões ousadas que se diferem um pouco da poesia, pois são
palavras usadas no meio científico e também, por consequência da musicalidade nos sonetos,
como podemos observar o cuidado que ele tinha na colocação de palavras em seus versos, no
poema “Barcarola”:

Cantam nautas, choram flautas


Pelo mar e pelo mar
Uma sereia a cantar
Vela o Destino dos nautas.

Percebe-se o cuidado que o poeta tinha em fazer rimas, como as palavras que
terminam os versos “flautas” que rima com “nautas” e “mar” que rima como “cantar”. Como
Rubert (2007) observou, essa característica sonora foi quebrada no poema “Mistérios de um
fósforo” pelo cientificismo do Realismo/Naturalismo, o que se nota abaixo:

Mistérios de um fósforo
Presto, irrupto, através ovóide e hialio
Vidro, aparece, amorfo e lúrico, ante
Minha massa encefálica minguante
Todo o gênero intra-uterino!
É o caos da avita víscera avarenta
- Mucosa nojentíssima de pus,
A nutrir diariamente os fetos nus
Pelas vilosidades da placenta!

É notório o uso de palavras científicas no poema, como se pode destacar “ovóide”,


“hialio”, “amorfo”, “encefálica”, “intra-uterino”, “víscera”, “mucosa” e “placenta”. Para
Rubert (2007), o uso dessas palavras são para compensar o uso das palavras simples que têm
em outros poemas de Augusto dos Anjos, que eram expressões consideradas para leitores
leigos. Apesar de existirem muitas palavras de cunho científico nos poemas, estatisticamente
elas não eram maioria.

Considerações finais
1606

Na época em que foi publicada a obra Eu, não foi bem recebida justamente por ser
algo que fugia dos padrões poéticos daquele período que era dominado por influência
Página

parnasianas, simbolistas, naturalistas e realistas. Diante desses fatos, a poesia de Augusto dos

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Anjos sofreu muito preconceito, principalmente por misturar temas recorrentes com
científicos, também pela sua idealização do feio que falava do corpo em decomposição, dos
vermes que ali estavam. Assim, o poeta não se preocupou em seguir apenas uma característica
e sim mesclar todas elas, criando algo novo em um momento que se predominava várias
influências. O objetivo de analisar as características modernistas na obra de Augusto, não foi
fácil por causa de sua pluralidade de ideias, tendo em vista suas influências parnasianas,
simbolistas, realistas, naturalistas e cientificistas. Todas as ideias desses movimentos
causaram uma confusão, pois toda hora criava-se algo novo, o que dificultou ainda mais sua
definição. O Brasil também estava em um grande momento de transformação, já que tinha
acabado de sair de um regime de Monarquia e os escravos tinham sido libertos, embora essas
mudanças não fossem tão perceptíveis, já se via que algo novo estava por vir.

Referências

ANJOS, Augusto dos. Eu e outras poesias. 42. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1998.

Literatura brasileira II / [organizado pela] Universidade Luterana do Brasil. – Curitiba:


Editora Ibpex, 2009.

MOISÉS, Massaud. A criação literária: poesia / Massaud Moisés. – 10. ed. rev. – São Paulo:
Cultrix, 1987.

MOISÉS, Massaud. A literatura brasileira através dos textos / Massaud Moisés. – 29. ed.
rev. E ampl. – São Paulo: Cultrix, 2012.

RUBERT, Nara Marley Aléssio. O lugar de Augusto dos Anjos na poesia brasileira. Revista
eletrônica de crítica e teoria de literaturas Comunicações dos fóruns PPG-LET-UFRGS –
Porto Alegre – Vol. 03 N. 02 – jul/dez 2007.

SANTOS, Lia Machado dos. A modernidade na lírica de Augusto dos Anjos. Ijuí – RS,
2013.

VIANA, Chico. Sobre a modernidade em Augusto dos Anjos. 2014. In ARAGAO. Maria do
Socorro Silva de. (Org.). II Congresso Nacional de Literatura – II CONALI – Anais... João
Pessoa: Mídia, 2014, 1054 p.
1607
Página

ISBN: 978-85-7621-221-8
PÔSTER

DISCURSIVIDADE E SUBJETIVAÇÃO NO ESQUADRÃO DA MODA: A


CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO NO ESPAÇO DO VESTIR-SE BEM

Antonio Genário Pinheiro dos Santos (UFRN)252


Marcelino Gomes dos Santos (UFRN)253

Introdução

No plano da discursividade, o olhar para as práticas dos sujeitos na sociedade


contemporânea oportuniza a discussão sobre os modos a partir dos quais tais sujeitos são
subjetivados, sobre o trânsito de verdades e sobre os efeitos de sentido decorrentes dessa
relação. Neste norte, e considerando a inscrição da atividade midiática nos dias de hoje, este
trabalho investiga, à luz dos pressupostos teórico-metodológicos da Análise do Discurso de
orientação francesa, o discurso da moda e suas implicações na tessitura do espaço do vestir-se
bem.
Pretendemos, com base no método arquegenealógico de Foucault (2005), entender
como os regimes de verdade que circulam em sociedade mobilizam ações de subjetivação e
objetivação de sujeitos inscritos em um processo de positivação de suas existências, com
vistas ao cuidado de si, ao bem-estar, à aceitação social e, não menos importante, aos efeitos
de felicidade provocados por tais comportamentos.
Nesta perspectiva de leitura e interpretação, tomamos para análise a produção
discursiva mobilizada no Esquadrão da Moda254, programa exibido na TV aberta brasileira,
atentando para a relação entre o saber institucionalizado e autorizado da moda, os regimes de
verdade que ali se constituem e aos efeitos de sentido que emergem dessas relações
discursivas. A proposta é atentar para o modo como as dizibilidades sobre o vestir-se bem são
conduzidas de forma a propor um paradoxo entre um antes e um depois daqueles sujeitos
submetidos ao respectivo programa.

252
Professor Doutor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – DLC/CERES/UFRN. E-mail:
1608

gennaryo@yahoo.com.br
253
Graduando em Letras – Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). E-
mail: marcelinogomes_@outlook.com
254
Programa transmitido pela SBT, sob a direção de Johnny Martins. Estreou em 03 de março de 2009 e é
exibido aos sábados, no horário nobre noturno. O programa conta com a apresentação da consultora de moda
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Isabella Fiorentino e o stylist Arlindo Grund, que têm, na proposta do programa, a missão de ensinar às pessoas
as regras do vestir-se bem e com estilo.

ISBN: 978-85-7621-221-8
Concebemos a moda como um dispositivo de poder constituído de discursos que
mobilizam sujeitos cotidianos e os inscrevem em processos de subjetivação, tendo em vista o
fato de que esses sujeitos são produzidos nos e pelos discursos, em uma relação direta com a
exterioridade.
No trajeto de transformação do eu pela relação antes x depois, buscamos entender de
que forma estes saberes, legitimados sob a égide do poder da mídia, influenciam os sujeitos
participantes do referido programa, condicionando-os a assumir determinadas posições e a
comportarem-se de determinadas formas – e não outras em seu lugar – sob o crivo da
vigilância e do governamento mobilizados pelos ditames autorizados da moda.
Defendemos, portanto, que na ordem discursiva da moda, os saberes
institucionalizados incidem sobre o comportamento dos sujeitos-participantes em termos de
escolhas de vestuário e de normas de racionalização de condutas, tecendo verdades com vistas
ao direcionamento e à pedagogização de certas performances e práticas de sujeitos inscritos
no seio da vida cotidiana: em casa, na igreja, no trabalho, etc.
Para empreender as nossas análises, elencamos como categorias e problematizamos a
discussão sobre discurso, moda, regimes de verdade, efeitos de sentido, memória discursiva,
governamento de si, tecnologias do eu, saber, poder e mídia, tecendo considerações sobre as
implicações de tais elementos no processo de emergência de sentidos e, desse modo, de
leitura discursiva. Além disso, discutimos o poder da mídia como operador de discursividade
acerca do mundo da moda, bem como sua influência na disseminação dos saberes
institucionalizados e dos regimes de verdade que dessas relações discursivas irradiam,
incessantemente.
Em um primeiro momento desse estudo, trazemos considerações sobre a relação entre
a mídia e a moda, sobre o que se constitui como verdade e como padrão aceito e o batimento
decorrente da relação hábito comum x estilo adequado dos sujeitos-personagens envolvidos.
Na sequência, discutimos o papel da moda enquanto dispositivo que mobiliza o eu com vistas
ao cuidado de si; e, por último, apresentamos um exercício de análise do objeto em questão de
forma a afunilar a discussão sobre discurso e moda, subjetivação e produção de verdade no
espaço do vestir-se bem.
1609
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1 Mídia e discursivização sobre o vestir-se bem: o sujeito no cotidiano da moda

As condições de produção que constituem e determinam o surgimento dos discursos


estão enredadas às relações de forças que circulam em todas as esferas sociais. Segundo
Orlandi (1999, p. 39), “o lugar a partir do qual fala o sujeito é constitutivo do que ele diz”.
Nesse sentido, é importante atentarmos para o fato de que os discursos significam de modo
diferente, dependendo de sua inscrição institucional, de sua ligação ao poder e dos
dispositivos disseminadores de dizibilidades aos quais estão atrelados. Em outras palavras,
podemos afirmar que os discursos são perpassados por efeitos de credibilidade, de eficiência,
de aplicação, de positividade, haja vista serem objeto de desejo e de vinculação ao poder. O
discurso “não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas
aquilo porque, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar” (FOUCAULT, 2006,
p. 10).
Estas relações de forças, presentes em toda sociedade, tomam respaldo, são
potencializadas e se legitimam com base nas relações imaginárias, como afirma Orlandi
(1999, p. 40):

Resta acrescentar que todos esses mecanismos de funcionamento do discurso


repousam no que chamamos formações imaginárias. Assim não são os
sujeitos físicos nem os seus lugares empíricos como tal, isto é, como estão
inscritos na sociedade, e que poderiam ser sociologicamente descritos que
funcionam no discurso, mas suas imagens que resultam de projeções.

Nesta perspectiva de leitura, entendemos que as formações imaginárias dos sujeitos


determinam a irradiação de discursos – e as relações de poder que em torno deles se
constituem – estando esses, portanto, intimamente relacionados às condições de produção e ao
papel da memória discursiva, que permite a atualização de tudo aquilo que já foi dito sobre
determinado assunto e que, portanto, atravessa o processo de constituição de novos sentidos.
Desse modo, este processo implica a materialização de discursos e a imposição de regimes de
verdade na sociedade, uma vez que, como afirma Foucault (2007, p. 12):
1610

Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua “política geral” de verdade:
isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros;
os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados
verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as técnicas
Página

e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o

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estatuto daqueles que têm o emprego de dizer o que funciona como
verdadeiro.

Nesse sentido, percebemos a íntima correlação entre as noções de poder, saber e


ordem discursiva, pois, segundo Santos (2015, p. 15), “enquanto efeito de linguagem, o
discurso se constitui como o espaço fortuito de produção de saber, de funcionamento de
poder, de evidência de imagens e, dessa forma, de fabricação de verdades”. Por isso,
entendemos que a relação saber-poder condiciona sujeitos a assumirem determinadas posições
discursivas e os inscrevem em processos de subjetivação, momento em que se tornam, de
fato, sujeitos de suas próprias existências.
Assim, é importante considerar, então, que em uma sociedade como a nossa, assim
como em qualquer modelo societário vigente, existem relações de poder múltiplas e plurais
que perpassam, atravessam, marcam e constituem o corpo social. Tais relações de poder “não
podem se dissociar, se estabelecer nem funcionar sem uma produção, uma acumulação, uma
circulação e um funcionamento do discurso” (FOUCAULT, 2005, p. 179). Nessa conjuntura,
e dadas as características da sociedade contemporânea, a mídia vem ocupar espaço
preponderante, sobretudo no tocante à vida social e, mais especificamente, à questão da moda.
Trata-se de observarmos que, no escopo do vestir-se bem ou adequadamente, a
instituição midiática provoca efeitos de sentidos os mais diversos, apontando para a
efetividade dos processos de subjetivação dos sujeitos, inscrevendo-os, no caso do programa
Esquadrão da Moda, em um espaço ao mesmo tempo de reprovação e redefinição, de
aceitação e de transformação. A materialidade dessa operação midiática se mostra pelo regime
do cuidado e afirmação de si, a partir do qual os sujeitos, submetidos ao programa, são
trazidos à visibilidade televisiva, conduzidos pelo saber institucionalizado e agregados a
critérios de valoração de suas escolhas de vestuário com implicações diretas para suas
vivências cotidianas, em diferentes esferas, dentre elas, o mercado de trabalho, o convívio
familiar e as relações interpessoais.
De acordo com Martins (2014, p. 80):

Os discursos e manifestações acerca da Moda foram alavancados de maneira


1611

surpreendente a partir da consolidação da era da informação e da


comunicação, pois se tornaram bastante acessíveis e foram entendidos
também como um caminho para se apreender e estudar os elementos
valorativos que portam traços subjetivos e objetivos que constituem a
Página

natureza humana; a relação do sujeito para consigo mesmo e para com o

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“outro”, no âmbito das relações intersubjetivas; e o próprio contexto social,
político, econômico que a engloba.

Face ao exposto, podemos refletir a íntima e produtiva relação entre moda e mídia,
uma vez que, por meio de seu potencial de disseminação na sociedade, de propagação de
verdades, jogos de verdade, conseguem, em uma relação mútua, atingir diretamente os
sujeitos inscritos no bojo da vida cotidiana, mobilizando-os com vistas ao cuidado de si. Os
jogos de verdade, por sua vez, dizem respeito a um conjunto de regras e mecanismos de
produção da verdade e de mudanças das regras que circunscrevem, produzem e determinam o
alcance de tal verdade. São denominados de jogos de verdade por representarem um conjunto
de procedimentos a partir dos quais e pelos quais a verdade é instaurada, instituída e
desinstituída pelos sujeitos, por meio de suas práticas (MURAD, 2014).
Além disso, outro ponto que merece destaque é o fato de que os discursos da moda,
veiculados na mídia, são legitimados e, portanto, estabelecem padrões de vestir-se bem ou da
condução adequada da imagem de si pelo vestuário, os quais incidem diretamente sobre as
práticas de racionalização de condutas e/ou definição dos padrões de comportamento social de
sujeitos cotidianos, uma vez que estas mídias, enquanto mostram, “disciplinam pela maneira
de mostrar” (GOMES, 2003, p. 77 apud SILVA, 2004, p. 178).
Assim, a medida em que mostra, a mídia orienta, disciplina e induz os sujeitos a
assumirem certas posições e a agirem sob determinados regimes de verdade, em busca de um
padrão estético de beleza socialmente construído e discursivizado, uma vez que esses sujeitos
buscam ou são levados a pertencer a determinados lugares, a portos que lhes asseguram suas
existências no seio da vida social, tendo em vista que “se o poder existe sob a forma de
relações, um exercício de forças entre os sujeitos, a verdade, que não existe fora do poder,
será exercida, por meio dos discursos, entre os sujeitos” (FERNANDES, 2012, p. 70).
A operação midiática se apresenta, então, como um operador de discursividade e de
subjetivação, pois oportuniza a materialização e a proficuidade de relações de poder e de
saber que agem na égide da afirmação de si e no espaço da constituição de lugares discursivos
e de posições-sujeito determinadas. O sujeito é sempre conduzido, inscrito em redes de
discursividade que o convocam a um depois – símbolo de beleza e de transformação – e a um
1612

antes – atrelado aos efeitos de inadequação e caricatura no tocante aos padrões do vestir-se
bem.
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2 Controle e governamento do eu: a moda como dispositivo de afirmação de si

Sabemos que os discursos, condicionados e inscritos na/pela história, não são neutros.
As condições de produção determinam o surgimento de certos enunciados – e não outros em
seu lugar – e os inscrevem em determinadas formações discursivas. De acordo com Paixão
(2017, p. 11), “a moda é um dispositivo discursivo no qual/por meio do qual se constroem
indivíduos dóceis e úteis para as sociedades pautadas na produção e no consumo, ou ainda,
um dispositivo que controla a população ao produzir a ilusão de que leva ao bem-estar e à
felicidade”. Face ao exposto, podemos estabelecer um elo entre as relações de saber-poder
que irradiam do mundo da moda e o seu papel enquanto dispositivo que mobiliza o eu com
vistas ao cuidado de si, uma vez que, de acordo com Agamben (2009, p. 38 apud
FERNANDES, 2012, p. 68), “os dispositivos devem sempre implicar um processo de
subjetivação, isto é, devem produzir o seu sujeito”.
Nesta direção, retomamos as contribuições foucaultianas na Microfísica do Poder ao
tratarem do dispositivo. Segundo o autor,

O dispositivo, portanto, está sempre inscrito em um jogo de poder, estando


sempre, no entanto, ligado a uma ou a configurações de saber que dele
nascem, mas que igualmente o condicionam. É isto, o dispositivo: estratégias
de relações de força sustentando tipos de saber e sendo sustentadas por eles
(FOUCAULT, 2007, p. 246).

Nesse sentido, os ditames da moda, pautados em regimes de verdade e saberes


institucionalizados, moldam sujeitos inscritos em processos de subjetivação e os condicionam
a agir de determinadas maneiras em sociedade, sempre com vistas a uma suposta positivação
de suas existências, tendo em vista que, segundo Fernandes (2012, p. 61), “o saber transforma
os corpos em objetos de saber e produz mecanismos para promover-lhes a sujeição”. Os
efeitos de sentido que irradiam desses discursos encontram legitimidade social na e pela
mídia, incidindo diretamente na vida de sujeitos cotidianos, moldando-lhes suas existências e
os induzindo a agir de determinadas formas (e não de outras).
1613

3 Pense rosa, mas não use: o sujeito sob a vigilância do esquadrão da moda

O programa televisivo Esquadrão da Moda, exibido na TV aberta brasileira pela


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emissora SBT, conta com a participação de dois apresentadores: a consultora de moda

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Izabella Fiorentino e o stylist Arlindo Grund. Sobre o processo ao qual os participantes se
submetem no programa, segundo informações de seu próprio portal, afirmam os diretores que
“a vítima confronta seus piores pesadelos, mas aprende a se enxergar sob um novo olhar,
além de aprender por meio de regras fáceis a ter estilo e a ser elegante”.
Segundo Marcello (2009, p. 234 apud SANTOS, 2015, p. 60):

O grau de visibilidade que um sujeito adquire perante o acontecimento é um


efeito, uma marca de práticas discursivas imbuídas na operacionalização de
táticas de poder e de estratégias de saber. Desse modo, a insistência
indiscreta do poder obriga o sujeito a desapropriar-se de si, mas constituindo
para si mesmo uma subjetividade e uma objetividade.

A partir dessas considerações, refletimos sobre o processo ao qual os sujeitos inscritos


no programa são submetidos: os participantes, sob o crivo e a vigilância dos ditames do
mundo fashion, são subjetivados e levados a seguir determinadas condutas, a fazer
determinadas escolhas e a se constituir socialmente, enquanto sujeitos, sob os
direcionamentos dos saberes institucionalizados que circulam no programa e se materializam
discursivamente.
Estas práticas se encontram explicitadas na própria tessitura do jogo discursivo-
ideológico do reality-show. Um exemplo disso são os trajetos do antes x depois, sobre o qual
o Esquadrão da Moda se organiza, enquanto programa televisivo: de um lado, temos a
realidade do antes, passível de julgamentos, críticas, juízos de valor, apontamentos de certo e
errado, positivo e negativo, etc.; do outro, a realidade do depois, redirecionada, repaginada e,
portanto, discursivamente positivada.

Figura 1 – Apresentadores do Esquadrão da Moda Figura 2 – Antes x Depois 1614


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Fonte: http://www.otvfoco.com.br Fonte: http://www.sbt.com.br/esquadraodamoda

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A realidade do antes, como podemos observar, é sempre maior que o depois. Sobre
este aspecto, percebemos que o jogo discursivo do programa é, em maior parte, direcionado
para o antes, haja vista que, nesse momento, os saberes e poderes são discursivizados e
incididos sobre os sujeitos, no intuito de julgar suas condutas e comportamentos, de
direcioná-los e, principalmente, de readequá-los com base no padrão do vestir-se bem. Ao
depois, resta a promessa da autoestima recuperada e da tão almejada aprovação social no seio
da vida cotidiana, por parte dos amigos, familiares e colegas de trabalho. Nesse sentido, é que
o discurso da moda funciona: como um dispositivo socialmente determinado que conduz os
sujeitos à subjetivação, com base em padrões estéticos socialmente construídos,
discursivizados a partir de um regime de positividade e afirmação, e inscritos na história.
Sobre este aspecto, Paixão (2013, p. 31-32) salienta que:

O próprio ato de vestir-se, de fazer uso de determinada indumentária


também aponta para formas engendradas socialmente a partir de um modelo
de bem vestir-se. Isso equivale a dizer que, assim como há nas práticas
linguísticas certo padrão valorizado socialmente, uma forma standard de
falar, de maneira análoga, há, no plano da moda, um certo standard a seguir.
Daí não ser novidade encontrar em diferentes lugares sociais, mas em
especial nos mass media, textos que se imbuem da tarefa de indicar o que e
como vestir, seja em situações informais, de suposta informalidade, mas
também em situações de formalidade, de trabalho.

Percebemos, no jogo discursivo do programa, referências constantes às formas de bem


vestir e ao resgate existencial de seus participantes: “Moça viciada em Mickey Mouse é salva
pelo Esquadrão da Moda255”, “Vendedora de semijoias será transformada pelos
apresentadores do Esquadrão”256, “Bióloga metida a roqueira é salva pelo Esquadrão da Moda
neste sábado”257.
1615

255
Afirmação em spot de anúncio e chamada de matéria. Disponível em: www.sbt.com.br/esquadraodamoda.
Acesso em: 24 jul. 2017.
Página

256
Idem.
257
Idem.

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Figura 3 – Madrinha de casamento cafona é abordada do Esquadrão da Moda neste sábado.

Fonte: http://www.sbt.com.br/esquadraodamoda

Nessa conjuntura, percebemos que a sociedade pós-moderna intensifica a aplicação


discursiva dos regimes de verdade com base no jogo da dualidade: certo e errado, positivo e
negativo, adequado e inadequado, bonito e feio, estratégia essa curiosamente semelhante ao
trabalho operado pelos famigerados manuais e gramáticas para o bem falar e o bem escrever.
Assim, “grande parte desse adestramento ou dessa pedagogização, no sentido de determinar
uma forma ideal de comportamento, encontra respaldo nos diferentes meios midiáticos e por
meio deles se cristalizam” (PAIXÃO, 2013, p. 32).
A veiculação desses discursos, para além do poder de legitimação dos saberes
institucionalizados, encontram na mídia uma potencialização de seus efeitos de sentido e de
propagação social. Esta proposta nos permite, portanto, conceber que a verdade é
materializada ações de nos discursos e que está em circulação em todas as esferas sociais,
promovendo subjetivação e objetivação de sujeitos, no bojo da discursividade e da efetividade
das relações de poder-saber.

Considerações finais

A produção de discursos e sujeitos, ambos inscritos na história, e em uma relação


descontínua de imbricamento, é sempre condicionada por fatores externos. Como sabemos,
tendo em vista os regimes de verdade socialmente construídos e propagados e as ordens de
1616

saber e poder, não podemos falar de tudo em todo lugar e em toda época. Os saberes e
poderes constituem uma malha minuciosamente articulada, que incidem sobre a vida de
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sujeitos cotidianos em todas as esferas sociais de forma direta, moldando-lhes suas existências

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e condicionando-os a agir de determinadas formas: em casa, no trabalho, na escola, no
convívio social.
Sabemos, também, que os discursos que circulam na sociedade não são neutros. Pelo
contrário, são determinados por questões que estão para além daquilo que é linguístico, não
tendo, portanto, um caráter meramente gramatical. É isso que nos revela e orienta a Análise
do Discurso francesa: conceber os discursos e sujeitos como produções historicamente
situadas. O sujeito, assim como os discursos, não são transparentes nem permitem um
atravessamento do analista no sentido de seu interior; pelo contrário: para apreendê-los, temos
de nos voltar para a exterioridade, pois é ela que o(s) constitui.
É nessa conjuntura discursiva que o programa Esquadrão da Moda se estrutura:
enquanto mostra, orienta, determina, evidencia, silencia, disciplina pela maneira de mostrar.
Nesse sentido, nossas análises revelam a efetividade de regimes de poder e verdade que, a
partir de condições de produção determinadas, dão margem ao surgimento de espaços de
subjetivação. A partir de tal operação, os sujeitos são confrontados consigo mesmos no bojo
da vida cotidiana, sendo levados a assumir determinadas posições – e não outras em seu lugar
– sempre com vistas ao cuidado de si e aos efeitos de felicidade conquistados quando da
positivação de suas existências, pela moda.

Referências

FERNANDES, C. A. Discurso e sujeito em Michel Foucault. São Paulo: Intermeios, 2012.

FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005.

_____. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 2006.

_____. Microfísica do Poder. Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2007.

GOMES, M. R. O poder no jornalismo. São Paulo: Hacker Editores, 2003.

MARTINS, M. M. Corpo masculino na publicidade: casos de persuasão. Revista Dobra[s]. v.


7, n. 16 (2014). p. 79 – 86, 2014.

MURAD, M. F. G. O sujeito em Foucault. Disponível em: <www.spid.com.br/pdfs/2010-


1617

2/Atividades-Jornadas-Interna-2010.1-O-SUJEITO-EM-FOUCAULT-Maria-Fernanda-Guita-
Muraddoc.pdf>. Acesso em: 27 jul. 2017.
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ORLANDI, E. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 1999.

ISBN: 978-85-7621-221-8
PAIXÃO, H. Saber, poder e sujeito no dispositivo da moda. 2013. 185f. Dissertação
(Mestrado em Linguística) – Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2013.

______. Resistência e poder no dispositivo da moda. 2017. 258f. Tese (Doutorado em


Estudos Linguísticos) – Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2017.

SANTOS, A. G. P. Poder, discurso e mídia: a espetacularização de imagens no


acontecimento da política norte-americana. 2015. 220f. Tese (Doutorado em Letras) –
Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2015.
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SILVA, F. P. Articulações entre poder e discurso em Michel Foucault. In: SARGENTINI, V;
NAVARRO-BARBOSA, P. Foucault e os domínios da linguagem: discurso, poder,
subjetividade. São Carlos: Claraluz, 2004.

1618
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ISBN: 978-85-7621-221-8
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GÊNERO DISCURSIVO/BIOGRAFIA: UM TRABALHO DE PRODUÇÃO ESCRITA


ATRAVÉS DE SEQUÊNCIA DIDÁTICA.

Maria do Socorro do Nascimento Silva (UERN)


Odejane Fernandes (UERN)
Maria Idalina Mesquita de Morais (CEIPEV)

Considerações iniciais

Esse projeto foi realizado por meio de uma sequência didática e teve como ponte para
a escrita o gênero biografia que tem como função relatar a história de vida de alguém, focando
nos principais acontecimentos, usando um texto narrativo não ficcional, em que os fatos são
contados em ordem cronológica.
Tivemos como base os autores Schneuwly e Dolz (2004), Bakhtin (2003), Antunes
(2003;2009). As dificuldades encontradas pelo professor são inúmeras ao trabalhar uma
atividade escrita em língua inglesa, mas dentre elas podemos destacar a apreensão que alguns
alunos têm ao se depararem com algo novo, seja ele de qual natureza for, formando assim
uma barreira e dificultando seu processo de aprendizagem. Então, para que a aula planejada
ocorra da melhor maneira possível, o professor precisa motivar o aluno usando algumas
estratégias, mostrando aos mesmos o real valor de terem em mãos algo novo, desafiador
talvez, mas que no final da atividade o conhecimento para desenvolvê - la adequadamente
será adquirido.

Fundamentação teórica

Diante dos problemas enfrentados pelos professores ao ensinar do modo tradicional, e


pelos alunos, por não adquirirem conhecimento adequado por meio desse ensino, os gêneros
discursivos/textuais se fazem necessários nas salas de aula de língua inglesa para um melhor
ensino-aprendizagem, pois através deles o professor pode elaborar diferentes estratégias de
trabalho, fazendo com que o aluno perceba o estudo da segunda língua como algo real, que
1619

pode ser usado em seu dia a dia para promover a comunicação. Enquanto o professor, através
do ensino dos diferentes gêneros textuais, pode proporcionar aos seus alunos a oportunidade
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de desenvolver as quatro habilidades: ouvir, falar, ler e escrever.

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De acordo com Charles Bezerman:

são fatos sociais sobre os tipos de atos de fala que as pessoas podem realizar
e sobre os modos como elas os realizam. Gêneros emergem nos processos
sociais em que as pessoas tentam compreender umas às outras
suficientemente bem para coordenar atividades e compartilhar significados
com vista a seus propósitos práticos. […] são parte do modo como os seres
humanos dão formas às atividades sociais (2006, p. 31).

Desse modo, é visto que é por meio da necessidade que os seres humanos têm de
entender uns aos outros, eles buscam sempre manter uma atividade de comunicação e
compartilhar atividades sociais, ou seja, estarem inseridos na sociedade.
O uso da sequência didática é uma maneira de explorar a fundo os gêneros textuais,
pois o aluno terá a oportunidade de ler, compreender, escrever e no final irá ver o seu
progresso, seu crescimento, os resultados de sua dedicação em prol de todo um processo.

1Metodologia

1.1 Pré-leitura

Nesse primeiro momento a professora perguntou se os alunos conheciam a palavra


biografia, de que tipo de texto se tratava, se eles sabiam a diferença entre biografia e
autobiografia. Logo em seguida foi distribuído para os alunos a biografia de um artista
famoso sem identificar quem era. Após a leitura espera-se que o aluno identifique a
celebridade. Os questionamentos e a leitura tiveram como objetivo ativar o conhecimento
prévio do aluno.

1.2 Primeira Leitura

Após a leitura da biografia foi pedido aos alunos que dividissem o texto em 03 (três)
partes: introdução, que se trata da apresentação inicial do protagonista; desenvolvimento, que
aborda os principais fatos que compõem a história do protagonista e por fim, a conclusão, que
1620

trata da parte final de caráter subjetivo. Em seguida, de forma oral, foi questionado sobre a
finalidade do texto, que informações iniciaram o texto e que parte do texto menciona o
Página

contexto histórico em que aquela pessoa está inserida.

ISBN: 978-85-7621-221-8
2 Pesquisa

Os alunos fizeram uma pesquisa sobre o artista escolhido seguindo o seguinte roteiro:
nome completo, local e data de nascimento, principais eventos da sua vida, profissões
exercidas, principais talentos, entre outros.

2.1 Apresentação da situação

Em meio a várias discussões a respeito dos ídolos, foi lançado o desafio: cada aluno deveria
escrever a biografia sobre seu ídolo, tendo como objetivo convencer seus colegas de classe de
que seu ídolo é realmente uma pessoa digna de admiração. Após a escrita final os textos
seriam disponibilizados para que os colegas pudessem avaliar a defesa do ídolo feita por cada
aluno.

3 Primeira produção

Os alunos fizeram a primeira produção

3.1 Módulo

Os erros mais frequentes encontrados na primeira produção foram a organização das


informações, acréscimo de informações desnecessárias, o uso do tempo verbal, e
principalmente, a escrita que deveria ter ocorrido em inglês, mas grande parte fez em
português.

Sugestão de atividade1:
Para que os alunos conseguissem organizar melhor as informações obtidas dos artistas,
foi apresentado, através de um slide, uma biografia contendo todas as informações
necessárias, dividida por partes, de acordo com sua estrutura organizacional. Logo após essas
1621

informações os alunos responderam duas atividades em que eles teriam que identificar o
sujeito, que não aparecia na frase, mas que era facilmente identificado pelo contexto pelo
contexto, uma vez que na língua inglesa não existe sujeito oculto. Na segunda atividade eles
Página

ISBN: 978-85-7621-221-8
deveriam colocar os adjetivos em ordem, obedecendo ao critério de especificidade ou
generalização do substantivo a que se refere. Essas atividades podem ser vistas no anexo (2).

Sugestão de atividade 2
Os alunos transcreveram, usando as correções feitas pelo professor, seus textos para a
língua inglesa.

3.2 Produção final

A produção final foi a parte em que os alunos tiveram chance de identificar e corrigir
seus erros.

Considerações finais

Através desse trabalho buscamos instigar o aluno a escrever um texto em uma segunda
língua por meio do gênero biografia, fazendo com que o processo de escrita se tornasse
prazeroso. Nos deparamos com a resistência do aluno e com a sua falta de habilidade em
escrever em inglês, mas levando em consideração que estávamos lidando com algo novo, o
resultado foi satisfatório.
Na fase final da sequência didática se espera que o aluno, além de desenvolver uma
atividade de escrita, se familiarize com os elementos que caracterizam a biografia. Nossos
objetivos foram alcançados, pois os alunos tiveram um bom desempenho ao seguirem o
processo de escrita e reescrita.

Referencias

ANTUNES, Irandé. Textualidade e gêneros textuais: Referência para o ensino de línguas. In:
__. Língua, texto e ensino: outra escola possível. São Paulo: parábola editorial. 2009.

BAZERMAN, Charles. Atos de fala, gêneros textuais e sistemas de atividades: como os


1622

textos organizam atividades e pessoas. In: DIONÍSIO, Ângela Paiva; HOFFNAGEL, Judith
Chambliss (orgs.). Gêneros textuais, tipificação e interação. São Paulo: Cortez, 2006.
Página

ISBN: 978-85-7621-221-8
DOLZ, Joaquim; NOVERRAZ; Michele; SCHNEUWLY; Bernard. Sequencias didáticas para
oral e escrita: apresentação de um procedimento, In: DOLZ, joaquim, Bernard e
colaboradores. Gêneros orais e escritos na escola. Campinas: Mercado de letras, 2004.

Anexos
Anexo 1: Escrita e correções e reescrita

1623
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ISBN: 978-85-7621-221-8
Anexo 2
UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE - UERN
PROGRAMA INSTITUCIONAL DE BOLSAS DE INICIAÇÃO A DOCENCIA – PIBID.
CENTRO INTEGRADO PROFESSOR ELISEU VIANA – CEIPEV
SEQUENCIA DIDÁTICA: BIOGRAFIA

PROFESSORA: MARIA IDALINA


BOLSISTAS: MARIA SOCORRO
ODEJANE SOUZA FERNANDES
ALUNO: _________________________________________________________

MODULO 1: USO DE SUJEITO OCULTO

EXERCISE 1- you should Translate the following texts about famous people:

a) Fátima Gomes Bernardes, 54 anos, divorciada, mãe de três filhos. É uma jornalista e apresentadora de
televisão brasileira.
___________________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________________.

b) Roberto Pisani Marinho nasceu em 03 de dezembro de 1904, foi um jornalista e empresário brasileiro.
Proprietário do Grupo Globo de 1925 a 2003, foi um dos homens mais poderosos e influentes do país
no século XX.
___________________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________________
___________________________________________________

c) Luan Rafael Domingos Santana, conhecido como Luan Santana, irmão de Bruna Domingos Santana,
filho do casal Marisete Santana e Amarildo Domingos, é um cantor e compositor brasileiro.
___________________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________________
_______________________________________________________

1624
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ISBN: 978-85-7621-221-8
Anexo 3

PROGRAMA INSTITUCIONAL DE BOLSAS DE INICIAÇÃO A DOCENCIA – PIBID.


CENTRO INTEGRADO PROFESSOR ELISEU VIANA – CEIPEV
SEQUENCIA DIDÁTICA: BIOGRAFIA

MARIA IDALINA
BOLSISTAS: MARIA SOCORRO
ODEJANE SOUZA FERNANDES
ALUNO: _________________________________________________________

MODULO 2- POSIÇÃO DOS ADJETIVOS


Exercise 2
Order of adjectives
1- Put the adjectives into the correct groups and ignore those that do not fit.

General
opinion:____________________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________________________
________________________________________________________________.
Specific
opinion:____________________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________________________
________________________________________________________________
2- Put the words in the correct order.
a) Blue, cotton, socks. _____________________________________________
b) Large, roon, a, circular.___________________________________________
c) Blue,raincoat, plastic, a. __________________________________________
d) Old, table, a, wonderful, bamboo.____________________________________
1625
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ISBN: 978-85-7621-221-8
PÔSTER

AS REPRESENTAÇÕES FEMININAS EM “MULHERES” E “TERESA”, DE


MANUEL BANDEIRA

Francineide Dantas dos Santos258


Maria Lara Alves Rocha259

Considerações iniciais

O livro Libertinagem, publicado em 1930, no auge do movimento modernista e de


autoria de Manuel Bandeira, é considerado um marco na história da literatura brasileira e na
vida do autor, principalmente no que concerne a sua maturidade na escrita, a partir daqui ele
se consolida como um dos melhores poetas dos versos livres e dos versos brancos, com uma
maior liberdade para escrever e tratar de assuntos recorrentes no cotidiano.
Tomando como marco inicial a Semana de Arte Moderna, em 1922 na cidade de São
Paulo, o início do século XX marca uma virada na literatura e é nesse contexto de
transformações nos campos econômico, social, político e cultural que se perpassava pelo o
Brasil que surge o Modernismo, subsequente à escola Simbolista, chegando com a fervura de
novas ideias e novos modelos. Por apresentar estéticas inovadoras o termo Modernismo, em
tom ambíguo, foi suficiente para abarcar todas as novas necessidades que se apresentavam em
decorrência da já então fadigosa concepção defendida por simbolistas e parnasianos.
O Modernismo, em suma, foi um rompimento com o tradicional em busca de uma
independência cultural, trazendo novas experiências com a linguagem, como representação de
uma crítica plena ao comportamento das velhas gerações a fim de refletir acerca da realidade
brasileira de então. É como nos mostra Souza:

O Brasil e seus autores vão delineando uma literatura livre de normas,


formas e tradicionalismos tanto estéticos como na linguagem e nos temas. A
arte regional e popular passa a ser valorizada. Há uma proposição de
valorização da linguagem, da vida social, num compromisso entre arte e
realidade (SOUZA, 2005, p. 58).
1626

258
Graduanda do 6º período do curso de Letras/Língua Portuguesa pela Universidade do Estado do Rio Grande
do Norte (UERN), Campus Avançado de Patu (CAP). E-mail: soufiagodeiro@gmail.com.
Página

259
Graduanda do 6º período do curso de Letras/Língua Portuguesa pela Universidade do Estado do Rio Grande
do Norte (UERN), Campus Avançado de Patu (CAP). E-mail: lararocha316@gmail.com.

ISBN: 978-85-7621-221-8
Portanto, a geração moderna de 22 buscava extinguir os padrões tradicionais
românticos e pôr fim à rigidez da forma. As vanguardas serviram fortemente como
entusiasmo para os autores desse período, que misturam nacionalismo para criar expressões
artísticas independentes. Como características modernas destacam-se, principalmente, verso
livre, mistura entre prosa e poesia, uso da ironia e utilização de linguagem coloquial.
É nesse período literário do Modernismo que se destaca, dentre tantos outros
escritores, Manuel Bandeira, tendo sido conhecido através de sua poesia, embora possua uma
obra bem mais extensa também como cronista, crítico e tradutor. Assim, constituiu-se como
um dos principais pilares da poesia brasileira, considerado o fundador da lírica moderna.
Bandeira passeou ativamente por todas as fases do Modernismo, desde o neo-parnasianismo
até o concretismo de 50, dominando as diversas formas que um poema pode assumir,
consagrando-se como um autêntico poeta do século XX.
Uma característica sua que mais chama atenção em seus trabalhos é o seu jeito
simples, que mesmo sabendo da virtuosidade de suas poesias age de forma despretensiosa,
com tamanha modéstia, lhe rendendo a fama de maior poeta modernista.
Seguindo por esse viés, o presente artigo tem como objetivo analisar os seguintes
poemas: “Mulheres” e “Teresa”, ambos de autoria de Manuel Bandeira e publicados em seu
livro intitulado Libertinagem de 1930. Nossa análise percorrerá pelo viés de como o autor
concebe e retrata a sensualidade na imagem da mulher nas obras acima citadas. Portanto, nos
baseamos, principalmente, nos estudos de Bosi (2015) para tratar da escola literária
modernista. No que diz respeito ao autor, Manuel Bandeira, nos adentramos nas pesquisas de
Campos (2011). E no que se refere ao papel da mulher na sociedade e de como ela é retratada
na literatura brasileira durante o Modernismo serviram-nos de base os pressupostos teóricos
de Hollanda (1994) e Souza (2005).
Nosso trabalho divide-se em duas partes, primeiramente trataremos brevemente de
como se caracteriza a escrita de Manuel Bandeira, principalmente em seu livro Libertinagem,
adentrando de forma sucinta no contexto da obra buscando entender qual a relevância da
mulher na literatura modernista e, por último, analisaremos, dessa obra, os poemas já
mencionados: “Mulheres” e “Teresa”.
1627
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ISBN: 978-85-7621-221-8
O “Poeta Menor”, a virada do século XX e a mulher

Como já vimos, Manuel Bandeira foi reconhecido como uma das figuras de maior
destaque na escola literária de sua época, o Modernismo, e o que lhe rendeu esse título, além
de seu talento, foi o seu jeito simples e modesto de ser. Como diz Alfredo Bosi “chamou-se
‘poeta menor’. Fez por certo uma injustiça a si próprio, mas deu, com essa notação crítica,
mostras de reconhecer as origens psicológicas da sua arte.” (BOSI, 2015, p. 385, 386). Tal
atitude comprova certo acanhamento por parte do autor, mostrando-se contrário ao
individualismo. E o seu esforço por romper com as concepções simbolistas e parnasianas o
consagrou como um dos melhores poetas do verso livre brasileiro.
Em seu livro Libertinagem, obra que lhe dedicou maior destaque, pois sua publicação
é considerada o despertar, o amadurecimento do poeta, já que é nele que este abusa do verso
livre e branco, e com isso Manuel Bandeira se consagra como um real modernista e nos
coloca diante de um fator importante presente em seus poemas dessa coletânea: a
sensualidade da mulher.
É pensando dessa forma que Campos afirma:

Concordamos em nomear as obras que antecedem Libertinagem como


preparatórias, sobretudo se tomarmos o ponto de vista modernista como
parâmetro de mesura. Quer dizer, a crítica que defende a maturidade de
Libertinagem é a crítica modernista, que está interessada em reconhecer e
valorizar as obras que contemplem os pressupostos poéticos que compõem o
próprio movimento (CAMPOS, 2011, p. 54).

Como podemos perceber, ler criticamente os poemas dessa obra é ficar procurando por
indícios do movimento surgido em 1922, pois esta apresenta os critérios primordiais para a
literatura do início do século XX, já que essa surge no fim da vanguarda. Pensando no título
da obra, Libertinagem, não se pode associar à fúria sexual clássica do século VXIII, “no
entanto, não se pode ignorar o título escolhido para a obra, preenche de erotismo e revelador,
para dizer o mínimo, da corporificação textual de um desejo de transgressão e de aproximação
da vida sob um viés acentuadamente materialista.” (CAMPOS, 2011, p. 58). Seria, então,
libertinagem de espírito, há apenas o desejo, o abstrato, é como contemplar e não participar.
1628

Os valores libertinos seriam apenas idealizados, sem de fato serem incorporados.


Essa virada na literatura também afetou a imagem da mulher. A idealização do
Página

desnudo foi substituída pelo fetiche por um corpo vestido, o que serviu para romper com o

ISBN: 978-85-7621-221-8
padrão de mulher responsável pela vida familiar e de apenas um corpo marginalizado. A
mulher torna-se sensual, metaforicamente, a partir de seus adereços. É assim que Hollanda
assegura “ao ‘objetificar’ a sensualidade, a literatura assegurou uma constituição da mulher
que evitou o difícil diálogo com as mulheres e inventou uma estética modernista de alcance
transnacional.” (HOLLANDA, 1994, p. 119).
É importante lembrar o quanto a literatura anterior foi limitada em refletir a mulher
como um ser social e político. À mulher só era atribuído o papel da maternidade e nem ser
quer eram pensadas como possuidoras de direitos civis, dependentes, seus corpos são apenas
uma ferramenta de reprodução, penetração e apropriação.
Ponderando sobre a mulher moderna, Hollanda nos coloca que “a instabilidade sempre
aliada à questão da mulher pode ser uma das características que mais distinguem a nação
moderna de outras formas de comunidade humana” (HOLLANDA, 1994, p. 132). Apresentar
a mulher com tamanha instabilidade nos leva a crer que a sociedade como o um todo também
é instável, por permitir tais transformações.
No que se refere à literatura podemos constatar que a mulher também evoluiu. Quando
chegamos ao Modernismo, a mulher luta pela sua liberdade física, moral e intelectual. E
segundo Souza “a mulher que mal tinha permissão para sair de casa, pôde ampliar seus
horizontes. Podia, inclusive, estudar na Europa. Com as escolas aqui, porém seria mais fácil o
ingresso de mulheres nas aulas” (SOUZA, 2005, p. 71). Há uma espécie de superação, a
mulher consegue se firmar independentemente por mérito próprio e expandir as suas relações
interpessoais, embora tudo isso ainda narrado segundo uma visão masculina.

Manuel Bandeira e a sensualidade da mulher

Esta parte do artigo destina-se a fazer uma análise de como a mulher era retratada no
Modernismo, dando um enfoque principal para a sensualidade que lhes era atribuída.
Definimos como corpus de nossa análise os poemas “Mulheres” e “Teresa” ambos extraídos
do livro Libertinagem, do autor modernista Manuel Bandeira.
De início temos o poema “Mulheres”:
1629

Como as mulheres são lindas!


Inútil pensar que é do vestido...
Página

E depois não há só as bonitas:


Há também as simpáticas.

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E as feias, certas feias em cujos olhos vejo isto:
Uma menininha que é batida e pisada e nunca sai da cozinha.

Como deve ser bom gostar de uma feia!


O meu amor porém não tem bondade alguma,
É fraco! Fraco!
Meu Deus, eu amo como as criancinhas...

És linda como uma história da carochinha...


E eu preciso de ti como precisava de mamãe e papai
(No tempo em que pensava que os ladrões moravam no morro atrás de casa e
tinham cara de pau).260

O poema, no que diz respeito à estrutura, divide-se em três estrofes. Na primeira


estrofe há uma alusão de que o eu-lírico seja um adulto que faz uma constatação acerca da
beleza feminina, de início como se nas mulheres o termo beleza já fosse algo natural. A
exclamação denota um tom de euforia ao proclamar esse atributo inato às mulheres e
prossegue afirmando que seria tolice atribuir essa beleza somente ao vestido, somente às suas
roupas.
Depois do seu deslumbramento inicial, ele divide as mulheres em categorias: as lindas,
as simpáticas e as feias. A ideia de gradação dá lugar à uma reflexão, não há apenas mulheres
lindas, há também as simpáticas e as feias. Estas últimas, entendidas como sofredoras e que a
aparência é resultado de muita exploração, trabalho e falta de vaidade.
É nesse ponto, na segunda estrofe, que autor ironicamente usa o adjetivo “bom”, no
primeiro verso, e o advérbio “bondade” no segundo. O “bom” nos remete a ideia de que amar
uma mulher feia seja algo prazeroso, reconfortante. Logo após, o uso do termo “bondade”,
associado ao primeiro, nos dá o sentido de um gesto de doação, de amabilidade. Entretanto, o
eu-lírico é um libertino, aquele que idealiza o erótico, mas não efetiva. O amor seria, então,
algo livre. O amor dele, que não contempla da bondade, só se interessa pelo o que é belo,
agregando a ideia do amor infantil.
Na última estrofe o eu-lírico comprova o seu amor como uma espécie de proteção, a
mesma proteção que sentimos diante de nossos pais. E o fato de “precisar” da amada o coloca
como alguém indefeso e a compara à uma “história da carochinha”, ou seja, uma história
infantil. No final do poema também percebemos que o eu-lírico se dirige a alguém específico,
1630

partindo do geral de que “as mulheres são lindas” para na última estrofe nos situar diante de
Página

260
Poema extraído do livro Libertinagem (1930), de Manuel Bandeira.

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uma declaração de amor incomum fazendo uma comparação ao seu tempo de criança,
referindo-se agora a uma única mulher.
No poema em questão temos um eu-lírico capaz de dividir as categoricamente as
mulheres, de reconhecer-lhes a beleza e de assumir que gosta somente das belas, mas também
temos um mesmo eu-lírico que, ao se dirigir à uma mulher específica, a sua amada, a envolve
em uma ternura infantil, bastante diferente do que era comum de se vê nas declarações de
amor clássicas, onde se evidenciava a beleza da amada e o desejo, abertamente sexual, que
esta despertava no apaixonado. E se tratando do poema de Bandeira, não vemos isso.
Passamos agora a analisar o segundo poema selecionado, “Teresa”:

A primeira vez que vi Teresa


Achei que ela tinha pernas estúpidas
Achei também que a cara parecia uma perna

Quando vi Teresa de novo


Achei que os olhos eram muito mais velhos que o resto do corpo
(Os olhos nasceram e ficaram dez anos esperando que o resto do corpo
[nascesse)

Da terceira vez não vi mais nada


Os céus se misturaram com a terra
E o espírito de Deus voltou a se mover sobre a face das águas.261

Em se tratando de estrutura o poema se divide em três estrofes, cada uma com três
versos livres e brancos, característica já conhecida do autor.
Na primeira estrofe o eu-lírico retrata o seu primeiro encontro com Teresa,
considerado algo banal e sem grande importância. Há certo teor irônico na comparação que
ele faz entre a cara e a perna dela, pois se dizes que a perna é estupida, a cara também segue a
mesma categorização, atribuindo à Teresa um ar de infantilidade. Nesse primeiro encontro
não há o despertar de um sentimento amoroso ou mesmo atração carnal entre o eu-lírico e a
mulher narrada. É perceptível também que o eu-lírico sente dificuldade em expressar o que
Teresa lhe causa.
Na estrofe seguinte, nota-se o amadurecimento de Teresa marcado pela comparação
“olhos velhos” / “corpo” determinada pela transição do tempo, onde começa a desapontar a
1631

sensualidade ainda complexa. O eu-poético se sente inquieto em relação ao misterioso olhar


Página

261
Poema extraído do livro Libertinagem (1930), de Manuel Bandeira.

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de Teresa. Essa inquietação em relação aos olhos é para dispersar o desejo florindo junto com
a sensualidade que a “garota” já possui e que insiste em perturbá-lo.
É somente na terceira e última estrofe que o eu-lírico ressalta o profundo sentimento
amoroso que possui ao encontrar com Teresa pela terceira vez, sem conseguir mais pensar em
nada diante da amada. O eu-poético dimensiona o seu sentimento através de uma alusão à
religiosidade, comprovada através das expressões “céu”, “terra”, “o espírito de Deus” e “a
face das águas” como analogia à “confusão” gerada pelo encontro.
Quando chegamos ao final do poema e recordamos o que Bosi afirma sobre a poesia
de Bandeira, “onde não raro um ardente sopro amoroso envolve as imagens femininas”
(BOSI, 2015, p. 389), é como se o mistério vivido pelo eu-lírico fosse substituído por
arrebatamento sentimental que reordena todo o caos gerado. Concluída a leitura, observamos
que o poema se passa linearmente, primeiro a confusão infantil, segundo o mistério
adolescente e por fim a maturidade do amor adulto, quando o eu-lírico se acha capaz de
reconhecer os encantos de sua amada e de amá-la por isso.
Ao estabelecermos uma comparação entre os dois poemas acima analisados levando
em consideração o fato de como a figura da mulher foi retratada, podemos entender que há
uma valorização da mulher em sua sensualidade.
No primeiro, “Mulheres”, há uma exaltação da beleza feminina, vista como algo inato.
É quando o eu-lírico divide a mulher em categorias: lindas, simpáticas e feias, que ele revela
sua preferência pelo que é belo, ao afirmar que, limitando-se a sua amada, “és linda como
uma história da carochinha” e comprova o seu amor ardente, dependente quando assegura
“precisar” dela como precisava dos pais.
No segundo poema, a sensualidade da mulher vai aflorando no decorrer da poesia a
cada encontro do eu-lírico com Teresa. O estranhamento do primeiro encontro é trocado por
um sentimento exasperado que surge com o decorrer do tempo. No fim do poema,
percebemos que o eu-poético, já amadurecido, é desestabilizado diante da imagem de Teresa,
tamanho é o turbilhão de sentimentos que não consegue nem ao menos expressar o que sente,
e diante de tamanha agitação apenas afirma “da terceira vez não vi mais nada”, pois se
encontrava cego diante da significativa sensualidade existente agora em Teresa.
1632
Página

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Considerações finais

O presente artigo teve como objetivo analisar os poemas “Mulheres” e “Teresa” de


Manuel Bandeira, retirados de seu livro Libertinagem considerando como o autor retratava
em suas obras a sensualidade presente na imagem da mulher.
Vimos que o Modernismo, escola literária à qual Bandeira era adepto, foi uma espécie
de rompimento com as concepções tradicionais do século passado tendo como marco inicial a
Semana de Arte Moderna que aconteceu em São Paulo em 1922 e que buscava inovar através
de novas experiências com a linguagem, sem seguir por normas, abusando do verso livre e
branco e evidenciando a vida cotidiana.
Pudemos ver também que Manuel Bandeira tornou-se conhecido através dos seus
poemas, mas que essa não foi a sua única área de atuação, também foi cronista, crítico e
tradutor. Uma característica sua mais marcante é a sua simplicidade e modéstia, tão definidas
que o próprio se intitulava de “poeta menor”. A sua luta por se distanciar das ideias simbolista
e parnasianas, contrariando as concepções individualistas, o consagrou como um dos
melhores poetas brasileiros do verso livre.
Ao analisarmos os poemas “Mulheres” e “Teresa” concluímos que os dois retratam as
mulheres focalizando, principalmente, em seus atributos que lhes tornam um ser sensual. Isso
é visível no primeiro poema quando o eu-lírico afirma gostar apenas das mulheres lindas e
que esse sentimento é tão intenso que o faz precisar dele da mesma forma que precisava do
pai e da mãe quando era criança. No segundo poema, a questão da sensualidade e do poder da
mulher vai aparecer aos poucos, de forma linear, ficando implícita apenas no fim do poema. É
nesse ponto que notamos o amadurecimento do eu-lírico quando ele passa a reconhecer o
sentimento que Teresa desperta nele. Sentimento esse que aflora uma grande agitação,
deixando-o desnorteado e incapaz de expressar o que Teresa causa nele, sentindo-se
momentaneamente cego.
Por fim, esperamos que este trabalho possa, então, contribuir para pesquisas e estudos
desenvolvidos futuramente na área de análise literária em toda a sua abrangência.
1633

Referências

BANDEIRA, Manuel. Libertinagem. 1 ed. especial. – Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.
Página

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 50. ed. São Paulo: Cultrix, 2015.

ISBN: 978-85-7621-221-8
CAMPOS, Rafael Ubirajara de Lima. Manuel Bandeira: uma poética de amor e da infância.
Belo Horizonte, 2011. Disponível em:
<http://www.bibliotecadigital.ufmg.br/dspace/bitstream/handle/1843/ECAP-
8KUKBC/disserta__o.pdf?sequence=1>. Acesso em: 04 de maio de 2017.

HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Tendências e impasses: o feminismo como crítica da


cultura / organização de Heloisa Buarque de Hollanda. – Rio de Janeiro: Rocco, 1994.

SOUZA, Ainda Kuri. A personagem feminina na literatura brasileira. Criciúma, 2005.


Disponível em: <http://www.bib.unesc.net/biblioteca/sumario/000027/000027C9.pdf>.
Acesso em: 04 de maio de 2017.

1634
Página

ISBN: 978-85-7621-221-8
PÔSTER

AS POLÍTICAS DE ASSISTENCIA ESTUDANTIL NO INSTITUTO FEDERAL DE


EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA DO RIO GRANDE DO NORTE: TEMER
JAMAIS

Bruna Rafaella de Sousa Silva¹


Mariana Gleicy de Oliveira Silva262
Gilcélia Batista de Gois263

Introdução

A abordagem presente no artigo refere-se à análise das políticas de assistência


estudantil no IFRN campus Mossoró. Como se dá a inserção do Serviço Social nesse campus,
na gestão dessas políticas, e em qual contexto isso ocorre, quais são suas demandas e como
esse trabalho se estrutura em seu cotidiano, seus desafios, rebatimentos e a correlação de
forças que está presente na unidade de ensino. Iremos relatar quais as tensões entre o projeto
profissional e o fazer profissional.
Sinalizaremos também em qual momento histórico se deu a aproximação do serviço
social com a política de educação. Apresentaremos ainda, algumas possibilidades que as
assistentes sociais no IFRN possuem para sair desse viés meramente técnico e de meras
executoras da política de assistência estudantil com um processo de luta cotidiana para que os
direitos dos usuários sejam materializados, pois apesar das dificuldades enfrentadas, tem que
se criar diversas estratégias para que os usuários se reconheçam enquanto sujeito de direito e
tenham acesso à política de assistência estudantil.
Além disso, iremos expor a concepção de educação que deve orientar a prática
profissional dos/das assistentes sociais dentro da política de educação é a que forje processos
de autoconsciência dos sujeitos tendo como base a ação política trazendo sua emancipação,
para assim produzir uma contra hegemonia à concepção educacional de consensos e de
manutenção da ordem trazido pela lógica do capital. Analisaremos a imensa importância
desses/as profissionais atuando na política de educação e a necessidade do seu trabalho para a
garantia e acesso dos direitos sociais na área educacional e como os cortes promovidos nos
1635

if”s na era TEMER, afeta a vida dos/as estudantes.

262
Discentes do 5º período de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte-UERN.
Página

bruna.rss10@hotmail.com/mariana.gleicy@hotmail.com.
263
Prof. Dra. Orientadora da Faculdade de Serviço Social – FASSO/UERN.

ISBN: 978-85-7621-221-8
2 A relação do serviço social com a política de educação

Para analisar o diálogo entre o serviço social e a política de educação, é indispensável


que se tenha primeiramente o conhecimento acerca dos processos históricos da gênese da
profissão e também como foi construída a política de educação no Brasil. Dentro desse
entendimento sabemos sobre a vinculação da prática profissional do assistente social com viés
de caridade e de conformação das classes, e essas mesmas por sua vez, desde os primórdios
estão permeadas por conflitos devido à expropriação da riqueza socialmente produzida. Uma
grande característica referente à construção da educação na sociedade brasileira é sem dúvida, a
dificuldade que o país enfrentou, e ainda enfrenta de diminuir a desigualdade acumulativa264
que ocorreu desde os princípios da colonização do Brasil, pois, a educação sempre se
reproduziu por meio de interesses dos que detinham o poder e se utilizavam da educação para
perpetuação das suas ideologias e consequentemente de suas riquezas, por isso, entendemos
que essas condicionalidades se metamorfoseiam até os dias atuais, configurando uma das
expressões da questão social demandando atuação de um profissional especializado que atue
sobre essas expressões.
Tendo feito a análise supracitada, alguns autores (CASTRO, 2000; CFESS, 2011)
sinalizam a articulação do serviço social e educação no Brasil com o surgimento da primeira
escola em meados 1936, em São Paulo. Porém, a categoria profissional compreende que essa
relação foi constituída junto com o processo histórico da profissão, uma vez que, o caráter
educativo sempre esteve presente mesmo sendo anterior a institucionalização da profissão. No
entanto, 1990 é um marco de referência que expressa um aumento significativo da atuação do
serviço social na política de educação, junto com o amadurecimento teórico e político que o
serviço social alcançou após o movimento de reconceituação265, esse por sua vez elevou a
profissão a um patamar maior de visibilidade, garantindo a inserção dos/as assistentes sociais
em instituições educacionais públicas e privadas.
Percebemos que, o envolvimento do assistente social se dá principalmente em
atuações relacionadas à proteção social, riscos sociais, vulnerabilidade social, seguridade,
acesso e permanência, programas e benefícios assistenciais, entre outros componentes (SILVA,
1636

264
Esse termo foi pensado pelas autoras do referido artigo, devido ao entendimento de que no Brasil a educação
nunca foi pauta de privilégio de nenhum governo até os dias atuais, é por isso que o país enfrenta uma
desigualdade tão latente desde os seus períodos de colônia até a contemporaneidade.
Página

265
Movimento de reconceituação, que teve início em 1960, se caracteriza como a ruptura com o
conservadorismo e o tradicionalismo do serviço social e sua aproximação com a teoria social de Marx.

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Roberto; DENTZ 2014). Após a aprovação da Constituição Federal de 1988 que preconiza a
educação como direito de todos e dever do Estado, com isso, ocorre o avanço de políticas
públicas voltadas para a área educacional e destaca-se também a aproximação do serviço social
nessas políticas.

3 A inserção do serviço social no IFRN

A atuação do Serviço Social na educação, de maneira geral, teve início na década de


1930. Porem só a partir dos anos de 1990 que houve um aumento relevante de assistentes
sociais na educação. Já nas instituições federais a sua inserção se deu em 1962, na extinta
Escola Industrial do Rio Grande do Norte, que posteriormente seria denominada ETFRN
(Escola Técnica Federal do Rio Grande do Norte). Em 1995, no governo FHC266, é criada a
primeira Unidade de Ensino Descentralizada (UNED) do Rio Grande do Norte na cidade de
Mossoró. Sua inserção só foi possível devido à elaboração de um projeto de expansão das
Unidades de Ensino UNED’s. A inserção da primeira assistente social na unidade de Mossoró
foi através de concurso público. Vale salientar que UNED Mossoró após três anos, ficou sem
assistente social, visto que a profissional concursada solicitou o seu afastamento.
O contexto histórico do Brasil em 1995, mais precisamente do Estado com ofensivas
neoliberais, não era favorável para a expansão dos direitos sociais, com um processo de cortes
e escassez nos gastos públicos, sucateamento das instituições públicas, privatizações,
desemprego estrutural e flexibilização nas relações de trabalho diminuindo os postos de
trabalhos formais no país, a ETFRN, nesse contexto, passou sete anos sem contratar
profissionais da área de Serviço Social. Somente no ano de 2004, no governo Lula, houve
novamente a possibilidade de haver concursos públicos, havendo nessa época a entrada de
uma assistente social na instituição.
Atualmente, no governo ilegítimo267 de Michel Temer, o IFRN conta com um quadro
de duas assistentes sociais, cumprindo fidedignamente as atribuições e responsabilidades a
elas conferida pela instituição, de acordo com os programas governamentais e baseando-se no
código de ética profissional dos assistentes sociais. Tais atribuições dizem respeito a gestão e
1637

controle das propostas do Plano Nacional de Assistência Estudantil (PNAES) e podemos

266
Presidente Fernando Henrique Cardoso.
Página

267
Entendemos assim pelo fato de seu governo não ter tido voto popular direto, sendo presidente interino pela
saída da presidente Dilma, através de um impeachment no ano de 2016, do poder.

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apreender que as condições de funcionamento e atuação do Serviço Social na instituição de
ensino teve diversas mudanças que foram sendo moldadas de acordo com as alterações na
conjuntura brasileira, e mais precisamente nos governos.

3.1 O trabalho desenvolvido pelo/a assistente social no IFRN e as políticas e programas de


assistência estudantil.

As assistentes sociais inseridas no IFRN campus Mossoró, atuam em conjunto com


uma equipe multiprofissional: psicólogo/a, enfermagem e odontologia, em um conjunto
integrado de ações que fazem parte da COAES (Coordenação de Atividade Estudantil) com
objetivo de atender melhor os alunos da instituição. Esse processo fortalece os serviços
socioassistenciais dentro da instituição, e em articulação com nosso projeto ético-político,
visando não somente a garantia mais a ampliação de direitos sociais.
Expondo mais especificamente o trabalho das assistentes sociais no IFRN Campus
Mossoró, estão inseridas diretamente na gestão, planejamento, execução e controle dos
programas da Assistência Estudantil que segundo o decreto 7234/10 tem como finalidade
“[...] ampliar as condições de permanência dos/as jovens na educação superior pública
federal” (BRASIL, 2010) lutando pela garantia desses direitos e pelo reconhecimento da
cidadania dos/as alunos/as com um viés informativo a esses sujeitos.
Esses/as profissionais que trabalham com as políticas de Assistência Estudantil, tem
como objetivo viabilizar os direitos aos estudantes, em um processo contínuo de
acompanhamento, dentro da política de educação, onde essas profissionais supervisionam268
os/as alunos/as em todo o período de duração da bolsa, sempre buscando estimula-los no
processo ensino-aprendizagem, pois evidenciamos que existe critérios que fazem os/as
estudantes perderem os benefícios, entre eles ter faltas acima de 25% da carga horaria.
Vale destacar que o IFRN desde a década de 1980 implementou a reserva de vagas
para alunos/as oriundos de escolas públicas. São 50% das vagas destinada a esse objetivo.
Com a promulgação de Lei de Cotas nº 12.711/2012, IFRN destina dentro desse percentual
25% de vagas que atende os critérios estabelecidos na referida Lei, assim distribuídos: para
cotas sociais (L1) e para as raciais (L2). Nesse contexto, é imprescindível na instituição,
1638

268
Vale ressaltar que essa fiscalização não é no sentido de “vigilância” para a retirada de direitos, mas sim para
Página

acompanhar esses/as estudantes em seu processo de formação com uma assistência continua e não focalizada,
como está sendo as políticas sociais de maneira geral na contemporaneidade com o Estado neoliberal.

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programas sociais que viabilizam a permanência desse público, oriundo de contextos sociais
adversos, fruto de um sistema desigual e excludente.
Destaca-se que, as inscrições nos programas de assistência estudantil é
responsabilidade dos/as estudantes e atribuição dessas profissionais executá-las, num longo
processo entre: inscrição, seleção, inserção dos alunos nas bolsas e acompanhamento dos
mesmos. É importante problematizar que as assistentes sociais inseridas na instituição passam
por um processo de burocratização institucional, onde o SUAP (Sistema Unificado de
Administração Pública) tem que ser atualizado constantemente gerando nessas, para além de
todo o processo citado acima, uma sobrecarga de trabalho.

4 Os programas da assistência estudantil

Os programas da Assistência Estudantil possui destaque na instituição, tendo em vista


que proporcionam aos estudantes que se encontram em situação de vulnerabilidade social e/ou
econômica uma condição básica de apoio à permanência com qualidade na referida instituição
de ensino, dessa maneira, pode ser caracterizado como meio de contribuição para formação
qualificada, consequentemente auxiliando na redução do percentual de evasão escolar, que
decorrem na maioria das vezes pela condição de vulnerabilidades sócio econômica. Tendo em
vista que o IFRN Mossoró possui um número considerável de estudantes oriundos de escola
pública, entendendo assim que estes necessitam de um apoio maior para participarem nas
atividades que a instituição promove, surge a demanda de viabilizar formas de garantir os
direitos tanto de acesso quanto de permanência no Instituto.
O IFRN campus Mossoró oferta programas de auxilio estudantil, entre eles: programa
de alimentação estudantil, programa de iniciação profissional e auxílio transporte. Está
inserido também nos programa de Assistência Estudantil os alunos da PROEJA269, garantindo
a esse público o recebimento de um valor em torno de R$ 100,00 mensais para auxiliar na
permanência desses/as estudantes na instituição.
O programa de iniciação Profissional refere-se a uma bolsa que repassa uma quantia
monetária equivalente a R$ 300,00 mensais, tendo como contrapartida para o aluno, o
1639

exercício de atividades institucionais nos setores administrativo da instituição, por três horas
diárias em um horário oposto ao de sua aula.
Página

269
Programa Nacional de Integração da Educação Básica com a Educação Profissional na Modalidade de
Educação de Jovens e Adultos.

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O Programa de auxílio transporte também conhecido como "passe estudantil", é uma
concessão de uma bolsa no valor estimado de 50,00 reais mensais, destinados aos alunos que
não possuem condições financeiras de se deslocar até a escola técnica. Esse benefício pode ser
utilizado tanto por estudantes provenientes de cidades circunvizinha quanto os que residem na
mesma cidade do campus IFRN Mossoró.
O Programa de Alimentação dispõe de 200 refeições diárias, sendo elas divididas entre
almoço e jantar. Para ter acesso a este programa, assim sendo critério também para os
demais, é necessário a realização do cadastro no SUAP no qual o aluno deve efetuar o
preenchimento de todos os dados pedidos de acordo com a situação socioeconômica em que
está inserido, esse programa é um dos mais visibilizados da instituição.

5. Os Rebatimentos Do Modo De Produção Capitalista no IFRN, os cortes no orçamento


e os impactos para os/as estudantes

A correlação de forças está presente nas instituições de maneira geral, e no contexto


do Estado brasileiro com ideologia neoliberal essa correlação se acirra, com classes sociais
onde o poder é minado por uma classe específica, a burguesa, da qual o Estado é seu agente
direto. Antes de expor como se dá a correlação de forças no IFRN, iremos conceitua-la
segundo Faleiros (1999)

[...] confrontação de interesses, recursos, energias, conhecimentos, inscrita


no processo de hegemonia/contra hegemonia, de dominação/resistência e
conflito/consenso que os grupos sociais desenvolvem a partir de seus
projetos societários, fundados nas relações de exploração e de poder
(FALEIROS, 1999, p. 44).

De acordo com o autor, podemos analisar a correlação de forças como processos que
se constroem a partir da luta implícita, às vezes explícita, entre projetos societários, que passa
por diversos conflitos de dominação/resistência, conflito/consenso. No IFRN ao analisarmos a
assistência estudantil vemos que não está distante dessa realidade, essa política é perpassada
por disputas no campo dos direitos, onde os seus recursos são seletivos, e deixa parcela
significativa dos alunos sem esse direito social, e o Estado burguês com práticas neoliberais
1640

está pautado no desfinanciamentos das políticas sociais.


A concessão dos auxílios e das bolsas que fazem parte da assistência estudantil estão
Página

sobre a gestão das assistentes sociais, elas informam que é muito forte o caráter burocrático

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das suas funções e a sobrecarga do trabalho para realização dessas atividades que colaboram
para o aumento da “tecnificação”270 dessas atividades.
Estamos vivenciando um cenário fortemente adverso para a classe trabalhadora,
marcado pela era Temer que elabora sucessivos retrocessos nas áreas sociais que mais
necessitam de investimento. Sendo assim, nos deteremos aos cortes aplicados nos IF’S e seus
impactos para a permanência e na vida dos estudantes na referida instituição de ensino.
Sobre isto, é preciso primeiramente registrar que a política de Assistência Estudantil
do IFRN possui uma grande relevância na vida acadêmica e pessoal dos(as) alunos(as) que
estão inseridos nela, que através dessa política que os mesmos possuem a capacidade de se
deslocar da sua moradia até a instituição, pois recebem um valor financeiro para efetuarem o
pagamento do transporte.
Enfatizamos também que muitos dos alunos(as) beneficiados pelo programa de
Alimentação são oriundos de cidades circunvizinhas271; é por meio dessa política também que
os alunos(as) fazem as refeições no Instituto quando necessitam permanecer quando tem aula
em outro turno, fora os que estão inseridos no Programa de Iniciação Profissional, Monitoria,
Pesquisa e Extensão que necessitam ficar todos os dias no contra turno para o
desenvolvimento das atividades inerentes a cada programa.
A política de Assistência Estudantil permite que os(as) estudantes viajem para
determinadas cidades e até mesmo países diferentes para concorrer e/ou apresentar projetos
elaborados por eles no IFRN, sendo custeada toda a viagem do aluno rumo a uma conquista
efetuada dentro da instituição por meio dos conhecimentos que ali foram adquiridos.
Tendo em visto todo o exposto acima, é possível compreendermos a importância que a
política de assistência estudantil no IFRN assegura na vida dos (as) alunos (as) que fazem
parte da Instituição. Entretanto, já estão sendo aplicados e divulgados cortes nos orçamentos
de todos os Institutos da rede Federal Ciência e Tecnologia, alguns representantes dos
institutos já se pronunciaram acerca dos cortes e informam que o repasse do semestre de 2017
já foi reduzido e que as dificuldades financeiras são devido à demora no repasse pelo
Ministério da Educação.
Esses cortes propostos pela era TEMER ameaça não somente a política de assistência
1641

estudantil como a sobrevivência dos IF’s, essas atitudes fazem parte de um pacote de

270
Termo usado para expressar o processo de tornar algo complexo como técnico, ou seja, mais simples.
271
De acordo com a caraterização socioeconômica disponibilizada no SUAP o Campus Mossoró tem
Página

matriculados alunos oriundos de Areia Branca, Baraúnas, Apodi, Caraúbas, Felipe Guerra e Governador Dix-
Sept Rosado.

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contenção de gastos que o atual governo executa em áreas sociais essenciais, constrangendo
diretamente o desejo e o direito de todos por uma educação pública, gratuita e de qualidade.
Anunciado em março do ano letivo por meio de documentos oficiais da portaria 28/2017 do
272
Ministério da Educação o corte de 25% da verba destinadas ao IFRN. O MCTIC informou
que o corte no ano de 2017 para o setor está ocasionando um estrangulamento nos institutos
federais, e ameaçando sua existência.
A partir desses acontecimentos se faz necessário também evidenciar as mobilizações
efetuadas pelos estudantes e profissionais dos Institutos que contrários a esses cortes e a essa
política educacional reduzida que está sendo proposta pelo atual governo, paralisam suas
atividades como forma de protesto contra o arsenal de imposições que rebate na política de
educação, entre estas propostas estão: A Reforma do Ensino Médio273, da Lei da
Amordaça274, da PEC 241275, que congela salários por 20 anos, além de extinção de
programas e projetos para o segmento estudantil, entre outros, como Pronatec, Fies, Ciência
Sem Fronteira, Bolsa Permanência, mais Educação, dentre outros.
Este conjunto de atitudes retrógradas marcará negativamente a vida dos estudantes,
profissionais e consequentemente do Brasil como um todo, pois sabemos que o caminho para
a conquista de um país desenvolvido é a importância que se dá a uma educação pública,
gratuita e de qualidade. Foram realizados “abraços simbólicos” em frente ao IFRN campus
Mossoró, registrado pelo jornal Mossoró notícias no dia 16 de maio de 2017, alunos e
servidores protestando contra os cortes, essas resistências ocorreram não somente no campus
de Mossoró, mas em diversos outros polos dos IF’s.
Destacamos aqui a fala da Secretária Geral da Rede de Grêmios (REGIF) do IFRN,
Ana Flavia informa que “A medida imposta pelo Governo vai causar danos severos na
assistência estudantil, desenvolvimento de projetos de pesquisa e extensão e na manutenção
de laboratórios e demais serviços dos campis”. Seguindo analises dos cortes, foi visto a
dificuldade de disponibilização de verba para os projetos de incentivo a inovação e pesquisa
que os alunos são custeados para sair do país e concorrer ou promover os projetos, ou seja, os
estudantes não terão mais incentivos reais para criar e elaborar de pesquisas e inovação.
Conselhos de Reitores dos If”s também não silenciaram, emitiram um documento, deixaram
1642

272
Fonte: www.istoe.com.br. Acesso em 10/08/2017
273
Medida Provisória-746/2016.
274
O Projeto de Lei - 7180/2014.
Página

275
Proposta de Emenda à Constituição- 241/2016.

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público no portal do IFRN, o posicionamento contrário ao contingenciamento de verbas na
Educação.
Logo, a partir dessas informações é possível entendermos que a redução de
investimento na educação, especificamente nos IF’S impacta diretamente a permanência dos
alunos que dependem dos programas e incentivos a projetos e pesquisas que são custeados
pela verba Federal, sem esses incentivos financeiros não será possível garantir a qualidade de
ensino que sempre foi objetivo central dos institutos federais.

Considerações finais

As políticas de assistência estudantil e a área educacional como um todo, em um


contexto capitalista-neoliberal tem muitos desafios a enfrentar para sua plena efetividade. Na
atualidade tem uma lista imensa de contras-reformas do atual governo, que afetara
diretamente o campo da educação, cortes de verbas na educação pública, a PEC 241, reforma
do Ensino Médio, da Lei da Amordaça. Necessita-se de propostas de governo com pautas de
investimentos maiores na educação, e consequentemente para a assistência estudantil, e não
do desfinancimaneto feito pelo Estado brasileiro. 1 para. Para conclusão.
Sabemos que na sociedade capitalista o modelo de educação que está em destaque é o
tecnicista, visando apenas a educação voltada para o mercado de trabalho, mas o Serviço
Social tem uma visão de educação diferente, que em consonância com o projeto ético-político
luta por uma educação pública, laica, gratuita, presencial e de qualidade que potencialize
formas de sociabilidade humanizadora.
De acordo com os Subsídios para a atuação de assistentes sociais na política de
educação, elaborado pelo grupo de trabalho do conjunto CFESS-CRESS a concepção de
educação que deve orientar a pratica profissional dos/das assistentes sociais dentro da política
de educação que deve forjar processos de autoconsciência dos sujeitos tendo como base a
ação política trazendo assim sua emancipação, produzindo com esse processo uma contra
hegemonia ao prisma educacional de consensos trazido pela lógica do capital. Daí
percebemos a imensa importância desses/as profissionais atuando na da política de educação.
1643

O Serviço Social enfrenta diversos rebatimentos enquanto de trabalhador (a)


assalariado (a) lutando sempre na contracorrente dessa sociabilidade que tem como premissa
o trabalho abstrato e alienação. Em se tratando da Instituição IFRN, esta possui condições
Página

plausíveis de ofertar ações mais amplas e discussões que colaborem para a conscientização

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dos alunos a respeito dos seus direitos, para que os mesmos possam usufruir destes tendo
reconhecimento de que aquela bolsa/auxílio pode ser concebido como um dos instrumentos
/recursos utilizados pelos estudantes buscando garantir enquanto sujeitos permanecer com as
condições necessárias no IFRN.

Referências

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília,


DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.

_______. Ministério da Educação –MEC. Decreto Nº 7.234/19/07/2010. Programa Nacional


de Assistência Estudantil - PNAES, disponível em < http://www.planalto.gov.br>. Acesso
em 16/08/2017.

______. Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão. Portaria n. 28,


16/02/2017.

______. Lei Nº 12.711/29/08/2012. Brasília, DF: Senado Federal. 2012.

CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL - CFESS. Código de Ética Profissional


do/a Assistente Social. Brasília: CFESS, 1993.

CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL - CFESS. Subsídios para a atuação de


Assistentes Sociais na Política de Educação. 3 série. Brasília: CFESS/CRESS.

DENTZ, Marta Von; SILVA, Roberto Rafael Dias. Dimensões Históricas das Relações
Entre Educação e Serviço Social: um caminho em construção. X ANPED SUL.
Florianópolis, 2014.

FALEIROS, Vicente de Paula. Estratégia em Serviço Social. 2. ed. São Paulo: Cortez,
1999.

OLIVEIRA. Alyson. Alunos e servidores do IFRN Mossoró protestam contra cortes no


orçamento. Disponível <http://www.mossoronoticias.com.br>. Acesso em: 05/2017.
www12.senado.leg.br.noticias/materias/comissao-analisa-impacto-de-cortes-no-orcamento-
para-universidades-e-institutos-federais. Acesso em 10/08/2017.
<www.portal.ifrn.edu.br/campus/reitoria/noticias/conselho-de-reitores-dos-institutos-federais-
se-posiciona-contra-o-contingenciamento-de-verbas-da-educacao>. Acesso em 10/08/2017.
1644
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PÔSTER

“JURIDIQUÊS”: A RELAÇÃO ENTRE A LINGUAGEM JURÍDICA E O ACESSO A


JUSTIÇA

Mateus Felipe Barbosa de França (UERN)


Maria Alcilene Dantas (UERN)
Andrea Maria Pedrosa Silva Jales

Introdução

A linguagem constitui-se de um conjunto de signos que tem por fim uma manifestação
de vontade, ideia, ou mensagem. É através da linguagem que nos expressamos no dia-a-dia,
trocando informações, enviando e recebendo mensagem, constituindo a chamada
comunicação.
A teoria da comunicação explica que no processo de interação entre os indivíduos, é
necessário que se perfectibilize todos os elementos da comunicação, para que os indivíduos
possam interagir entre si. Assim, faz-se necessário que alguém emita uma mensagem através
de um código, e que o outro receba e a compreenda, para que se complete o ciclo da
comunicação, sendo a linguagem o meio determinante, ou melhor, dizendo, o código através
do qual é emitida a mensagem.
Pois bem, sem mais delongas, cabe ressaltar que a vida em sociedade é permeada por
normas, que regulam as ações humanas, com vista a resguardar os conflitos e impedir a
desordem social. E nessa tarefa surge o direito, como ciência social, que através da norma,
impede, limita, permite, as ações humanas, com vista garantir o equilíbrio social, a que
chamamos justiça.
Desde o nascimento os indivíduos passam a escutar termos jurídicos, seja através dos
meios de comunicação, como jornais, revistas, ou mesmo participando ativamente de um
processo judicial, de modo que a linguagem jurídica se faz presente não apenas nos ambientes
forenses, (tribunais, escritórios de advocacia, etc.), eclodindo de maneira constante no seio
social.
Em razão da manifestação da linguagem jurídica no seio social ser constante, é
1645

necessário ressaltar que a sociedade em sua maior parte é composta por pessoas com pouco
ou quase nenhum conhecimento jurídico, o que desemboca na problemática, objeto deste
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artigo, tendo em vista que as relações sociais são regidas pelas normas de Direito e que no
meio dessas relações os cidadãos devem possuir o acesso à justiça.

1 Linguagem Jurídica

A linguagem jurídica pode ser compreendida como uma linguagem específica, com
termos próprios, chamada pelos estudiosos do direito de “juridiquês’’. O que a adjetiva como
tal, são seus termos específicos, utilizados na maioria das vezes por profissionais da área
jurídica, como advogados, juízes, promotores e etc.
Os termos rebuscados e os estrangeirismos, decorrentes da evolução histórica da
ciência do direito, usados nos órgãos promotores da justiça (órgãos judiciais), ainda hoje
permanecem impregnados na linguagem falada no meio jurídico. Percebe-se que a noção de
justiça se modificou e a conquista dos direitos se prolongou no tempo, de forma geométrica,
enquanto que a linguagem jurídica, não se adequou ao contexto social, manteve-se linear, até
os dias atuais.
Essa formatação da linguagem forense, com termos arcaicos e latinismos, desencadeia
efeitos sobre a realidade social, e termina por desconfigurar o papel da comunicação,
provocando um distanciamento da população leiga do acesso aos órgãos jurisdicionais.
Essa postura da ciência jurídica implica em termos finalísticos na quebra da própria
ideia de democracia, uma vez que mitigando o acesso à justiça, a desigualdade emerge dentro
da sociedade, entre os que detêm conhecimento do direito, e, portanto são mais integrados na
defesa de seus direitos, e os que não o possui, sendo estes mais vulneráveis quando precisam
bater as portas do Judiciário.
Nesse sentido que se posiciona Bittar citado por Oliveira:

A democratização implica numa aproximação do direito da realidade que


procura representar e sobre a qual pretende agir, implica na adoção de uma
postura que não cria divisões e separações entre universos discursivos,
quando a síntese a simplicidade podem significar mais (BITTAR apud
OLIVEIRA, 2010, p. 390).
1646

Como bem colocado pelo autor, à simplicidade da linguagem jurídica preserva os


princípios democráticos, e garantem com maior eficiência o acesso à justiça pelos cidadãos,
enquanto que o “juridiquês” segrega e separa o indivíduo da defesa de seus interesses.
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A adequação da linguagem no direito é medida necessária, até para que seus fins
sejam alcançados. Na pragmática do direito, a ideia de jurisdição é dizer o direito no caso
concreto, ou melhor, dizendo, explicar a cada indivíduo (jurisdicionado), que procura os
órgãos judiciais, qual direito lhe assiste, em termos claros e precisos, de modo que aquele o
mesmo se sinta informado e possa atuar mais diretamente para satisfazer sua pretensão
(defender seus direitos).
Nas palavras de Henrique e Damião em seu curso de Português jurídico:

A clareza das ideias está intimamente relacionada com a clareza e precisão


das palavras, consoante assevera Othon Garcia (1975, p. 135). No Direito, é
ainda mais importante o sentido das palavras porque qualquer sistema
jurídico, para atingir plenamente seus fins, deve cuidar do valor nocional do
vocabulário técnico e estabelecer relações semântico-sintáticas harmônicas e
seguras na organização do pensamento (HENRIQUE e DAMINÃO, 2009)

A linguagem é o caminho para a comunicação, é o instrumento que dar corpo a


mensagem, se a linguagem não é compreensível a seu destinatário não se verifica a
capacidade de se descodificar a mensagem tornando a transmissão dessa linguagem inútil.
Uma linguagem compreensível é uma linguagem clara, limpa de qualquer
obstacularização. Essa é a linguagem falada no meio social, compreensível à todas as pessoas
independentemente de suas diferenças de níveis de escolaridade e áreas de conhecimento.
Neste passo a linguagem é o instrumento de decodificação das pessoas que vão receber a
mensagem, não se pode falar em acesso a justiça se não se falar em compreensão da
mensagem dos órgãos/membros do Judiciário pelo cidadão, isso corresponde a inviabilidade
de um direito garantido na Constituição Federal.
Assim, considerando a fala de CALDEIRA XAVIER que diz que “o Direito é, por
excelência, entre as que mais o sejam, a ciência da palavra” 2 (XAVIER, 2003, p.1) não se
pode compreender a incompreensão das mensagens jurídicas, entre a sociedade, simplesmente
por causa de neologismos jurídicos que dificultam a compreensão social. O Direito esta a
serviço da sociedade, seu principal fundamento é buscar a justiça a medida que impõe ordem
através de normas, regulando a vida dos indivíduos desde da geração, ou até mesmo antes, até
a morte, e mesmo depois, dispõe regras a serem respeitadas pelos demais indivíduos em
1647

relação ao falecimento de uma determinada pessoa.


O Direito está presente em todas as searas sociais, devido a isto não se concebe que o
Página

acesso a justiça fique limitado por lacunas de comunicação. O cidadão quando procura a

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prestação jurisdicional exercita um direito e permite que o Judiciário trate do problema
apresentado. Diante da situação o mais lógico que se poderia esperar é que o cidadão
acompanhe o desenrolar do caso no processo judicial, porém, devido a ausência de
familiaridade dos indivíduos com o “juridiquês”, tendo em vista o excesso de rebuscamento
da linguagem jurídica, a grande massa da sociedade não consegue fazer esse
acompanhamento, praticando uma verdadeira delegação da resolução de sua questão pelo
Judiciário, uma vez que não compreende a própria discussão de sua lide.
É necessário ressaltar que, o Direito é uma ciência, e como toda ciência termos
técnicos podem ser inerentes a ela. Aqui não se discute a utilização de termos técnicos da
ciência do Direito, o que se discute é justamente o excesso de palavras rebuscadas ou mesmo
derivadas do latim que são incomuns na linguagem social, produzindo um efeito de limitação
do acesso a justiça.
Verificado esse fenômeno constata-se um enorme contraste existente entre os
fundamentos do Direito e a atuação jurídica na sociedade, tendo em vista a limitação do
particular em entender o andamento das discussões jurídicas, inutilizando, nessas situações, o
próprio princípio da publicidade presente nos atos jurisdicionais.

2 O Acesso a Justiça

Como demonstrado acima, podemos perceber que a linguagem rebuscada gera


implicações no acesso a justiça. A excessividade de termos técnicos, aliado a falta adequação
social do “juridiques”, obstrui a efetividade de um direito constitucionalmente garantido a
todos os indivíduos, que é o acesso à justiça.
O acesso à justiça não se confunde com o acesso aos órgãos jurisdicionais. A noção de
justiça não se subsume a mero procedimentalismo processual, formal, e instrumental que,
emanado de uma lide, é levado a juízo. A Justiça está mais além, pois possui um sentido
finalístico-pragmático que é a necessidade de salvaguardar o bem comum.
Em sua Ética a Nicômaco, ARISTÓTELES assim define a noção de justiça:

A justiça é a forma perfeita de excelência moral porque ela é a prática efetiva


1648

da excelência moral perfeita. Ela é perfeita porque as pessoas que possuem o


sentimento de justiça podem praticá-la não somente a sim mesmas como
também em relação ao próximo (ARISTÓTELES, 1996, p. 195).
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É nessa toada aristotélica que devemos entender como a linguagem pode implicar no
acesso a justiça pelos cidadãos, uma vez que a justiça material se aproxima cada vez mais do
jurisdicionado à medida que este dialoga com a justiça, que compreende de maneira clara seus
direitos e pode exercê-lo conscientemente.
Assim podemos afirmar que o juridiquês implica diretamente no entendimento social
das discussões jurídicas e no processo de compreensão da própria justiça do caso concreto.
Toda decisão para ser legitima precisa ser compreendida, principalmente as que necessitam
transmitir um caráter de justiça. A finalidade dos princípios judiciais é justamente embasar as
decisões jurídicas para transmitir a noção de justiça social encorpada no ordenamento jurídico
de uma determinada sociedade.
Daí se destaca a importância do princípio do acesso à justiça que está firmado na nossa
Constituição Federal:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes:
[...]
XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou
ameaça a direito;

A Constituição de 1988 trouxe como estrutura do país os pilares de um Estado


Democrático de Direito. Em seu seio estão abarcadas as diretrizes da proteção à dignidade da
pessoa humana alimentada por um extenso rol de direitos fundamentais que protegem os
indivíduos e garantem a prestação de serviços frente ao Estado. Neste passo, não se poderia
falar em Estado Democrático de Direito se não houvesse direito ao acesso a justiça.
As implicações ao acesso à justiça implicam no exercício da cidadania, tendo em vista
que o acesso à justiça se materializa com o acesso a apreciação jurisdicional de uma violação
aos direitos dos cidadãos. Neste viés, a compreensão social das decisões político-jurídicas é
um caminho para que a sociedade melhor pratique a democracia, tendo em vista que necessita
de informações para poder opinar a respeito e expressar seus posicionamentos frente a
determinadas questões.
1649

Exemplo prático de efetivação do acesso à justiça pode ser vislumbrado no trecho do


julgado abaixo, proferido em decisão do Tribunal Regional do Trabalho 4ª (quarta) região
Página

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(TRT4), que utilizando de uma linguagem simples e sem rebuscamentos, aproximou a
linguagem jurídica do cidadão.

[…] Dano moral - Se a pessoa sofre um abalo, uma tristeza, um


constrangimento ou uma dor, por culpa de outro, tem direito a receber uma
indenização de quem lhe causou isso. Não é qualquer dorzinha que dá direito
a uma compensação em dinheiro, mas a que o Lucas teve e tem, certamente,
é de indenizar. Caiu, ficou desacordado, foi para o hospital, sofreu
procedimentos, medo das sequelas e a dor que até agora sente em alguns
movimentos do corpo, além de ficar sem poder trabalhar no seu ofício. Essa
indenização serve para amenizar um pouco o sofrimento de Lucas, mas
também serve para Itamar lembrar que tem obrigação de cuidar da segurança
daqueles que trabalham na sua casa, mesmo quando não são empregados. A
lei não fixa valores para cada caso e o Juiz tem que fazer isso com bom
senso. Não pode ser uma indenização tão pesada que vire um inferno para
seu Itamar pagar; nem muito pouco, porque aí ele paga sem problemas e não
se importa se amanhã ou depois outro acidente acontece em sua casa. Lucas,
por sua vez, não pode pretender ficar rico com a tragédia; mas também o
dinheiro tem que fazer alguma diferença na sua vida.

Pelo julgado acima transcrito, podemos perceber que a melhor maneira de efetivar o
acesso à justiça é adaptar a linguagem dos membros que instrumentalizam o Direito a uma
linguagem menos dotada de expressões rebuscadas, de termos incompreensíveis pelos
cidadãos comuns, dando margem, neste passo, a uma melhor compreensão social.
Sobre o tema MORALES (apud ROSSI) elenca outros obstáculos que infringem o
princípio da igualdade do acesso à justiça, quais sejam: obstáculos econômicos,
socioculturais, funcionais, éticos e psicológicos, no dizer do autor:

as pessoas economicamente desfavorecidas têm dificuldades em reconhecer


os direitos tradicionais e os novos, e, quando os reconhecem, muitas vezes
estão sem informação dos instrumentos de reivindicação, ou desacreditam no
poder judiciário como espaço para efetivação dos seus direitos – descrédito
que se acentua principalmente quando a outra parte que as lesa são grandes
conglomerados econômicos ou o próprio estado na sua função legislativa ou
administrativa. Por outro lado, o espaço social em que as classes menos
favorecidas convivem não oferecem de consultoria jurídica, nem ocasiona
normalmente, a convivência com profissionais da área jurídica que lhes
permita esclarecimentos sobre possíveis direitos e mecanismos para
reclamação destes (MORALES apud ROSSI, 2007).
1650

Sem dúvidas os entraves ao acesso à justiça pelo cidadão, seja eles de ordem
linguística, econômica ou funcional, representam retrocesso na efetivação dos direitos
Página

fundamentais reconhecidos em nossa Carta Maior, a Constituição Federal, e para combatê-los

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se faz necessário, a reformulação da linguagem jurídica, de modo a tornar mais simplificada e
compreendida pela sociedade, que assim poderá exercer seus direitos conforme os ditames da
igualdade e justiça social.
Na prática são poucas as iniciativas dos órgãos jurisdicionais, para a reformulação da
linguagem jurídica, que vise aproximar o direito e sociedade, donde se depreende que o
“juridiquês” permanece como regra absoluta nos processos judiciais e demais atos
relacionados ao acesso à justiça, deixando o cidadão a margem do mundo do jurídico, e do
acesso justiça, apesar de ser regulado pelo primeiro.

Conclusão

A linguagem é o meio de comunicação entre os seres humanos na convivência em


sociedade. Desde os primórdios o Homem utilizou de sinais para se comunicar com o
próximo. A comunicação é o que move a convivência em sociedade e a linguagem é o meio
dessa comunicação, na medida em que a linguagem é estranha aos seus receptores a
comunicação fica limitada, carente de outro meio capaz de traduzir a mensagem aos seus
receptores.
É o que ocorre no juridiquês. Apesar da previsão constitucional do direito a justiça
ainda é necessário ampliar esse acesso à justiça com a aproximação da linguagem jurídica ao
cidadão. A língua comum falada entre os diversos setores da sociedade não é falada da mesma
forma no Judiciário. Mesmo com a utilização de termos técnicos, os atores que atuam para
compor o sistema jurídico enfeitam o palavreado judicial com terminologias desnecessárias,
rebuscadas, carentes de simplicidade.
É nesse contexto que a linguagem jurídica se distancia cada vez mais do social, de
quem vem ao Judiciário utilizar os seus serviços, de quem sofre o impacto de suas decisões. O
que não se mostra nada harmônico com o acesso a justiça.
O acesso à justiça da forma que é trazido pela Constituição, como já falado, é o acesso
a um amparo judicial dos direitos dos cidadãos, é justiça materializada no caso concreto.
Dessa forma, não se exercita plenamente esse direito se o cidadão não compreende a
1651

discussão, simplesmente se vê na situação de levar a lide e receber uma decisão. A dificuldade


de compreender o desenvolver do julgamento o limita a opinar, a saber, o que acontece,
necessita sempre da “tradução” de quem atua na área jurídica, aumentando a distância entre os
Página

dotados de saberes jurídicos e o mundo social

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Ante o exposto, pode-se concluir que o tradicional juridiquês utilizado no meio
jurídico causa fortes implicações ao acesso a justiça, na medida em que limita os cidadãos,
através da linguagem, de se aproximarem das discussões judiciais, sendo segregados da
compreensão da própria justiça.

Referências

ARISTÓTELES. Ética à Nicômaco. São Paulo: Nova Cultural, 1996.

DAMIÃO, Regina Toledo. HENRIQUES, Antônio. Curso de Português Jurídico. São


Paulo: Atlas, 2009.

OLIVEIRA, Nirlene da Consolação. Linguagem Jurídica e o Acesso a Justiça. Disponível:


<http://revistapensar1.hospedagemdesites.ws/direito/pasta_upload/artigos/a121.pdf> Acesso
em: 01 set.2017.

ROSSI, Morize Rossi. O Juizado Especial como Instrumento de Acesso a Justiça.


Dissertação de Mestrado. Centro Universitário Toledo. Araçatuba, 2007. 204p

XAVIER, Ronaldo Caldeira Xavier. Português no Direito. Rio de Janeiro: Forense, 1996.

1652
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PÔSTER

GÊNERO DISCURSIVO AVISO: UM TRABALHO DE PRODUÇÃO ESCRITA


ATRAVÉS DE SEQUÊNCIA DIDÁTICA

Melissa Rafaela da Silva Morais (UERN)


Ítala Carvalho Lima (UERN)
Maria Idalina Mesquita de Morais (CEIPEV)

Introdução

O uso dos gêneros textuais para o desenvolvimento do processo de ensino-


aprendizagem de língua estrangeira, especificamente, a língua inglesa, com a qual
trabalhamos, tem crescido nos últimos anos tornando-se alvo de estudos por parte de alguns
pesquisadores, por ser um instrumento facilitador para o acesso a uma segunda língua, pois os
conhecimentos adquiridos em sala de aula podem ser usados de forma prática no dia a dia do
aluno. Para a aula de escrita em inglês, o uso dos gêneros textuais através de uma sequência
didática objetiva facilitar a aprendizagem dessa habilidade que por muitas vezes é complexa.
Mediante determinadas dificuldades dos alunos com escrita em língua inglesa,
escolhemos o gênero aviso por ser acessível e prático para a elaboração da escrita. O aviso é
um gênero informativo, cuja finalidade é comunicar, informar, noticiar algo com eficácia a
alguém, sendo assim, o mesmo resulta em textos breves e claros proporcionando ao leitor o
entendimento prático do seu objetivo. Os avisos podem ser colocados em lugares públicos ou
privados, variando de estilo, atendendo um caráter formal, com uma estrutura mais elaborada,
como avisos para universidades, jornais ou oficiais, ou de caráter informal, em que suas
características são mais simples e acessíveis ao leitor, como avisos expostos em casas, escolas
e ambientes populares.
Este gênero foi apresentado ao aluno através de uma sequência didática em que
sugerimos tarefas que viessem facilitar a escrita dos alunos em língua inglesa “Uma sequência
didática tem, precisamente, a finalidade de ajudar o aluno a dominar melhor um gênero
textual, permitindo-lhe, assim, escrever ou falar de uma maneira mais adequada numa dada
situação de comunicação”. (DOLZ, NOVERRAZ, SCHNEUWLY, 2004). Segundo os autores
1653

esta sequência contribui para melhor entendimento do gênero textual trabalhado pelo
professor, pois em geral o estudante não tem domínio sobre os mesmos, ou por muitas vezes
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desconhecem, e, portanto, não poderão apreciá-los e utilizá-los de forma efetiva em sua
prática diária.

1 Metodologia

A escolha do gênero textual Aviso se deu através de uma análise de que esse gênero é
visto em alta circulação entre os jovens e devido estar presente na esfera social dos alunos,
acreditamos também ser um instrumento de ensino de alta relevância na aquisição da Língua
Estrangeira. E por ser muito utilizado tanto em nossa língua materna como em nossa segunda
língua, no caso o inglês, com a finalidade de fazer com que a prática da escrita tenha uma
proposta objetiva partindo de um texto breve e usando uma linguagem clara. Para tal
pesquisa, fizemos um levantamento prévio com os alunos sobre o gênero e a partir dessa
sondagem elaboramos a sequência didática.
A aplicação desse projeto se deu no Centro de Educação Integrada Professor Eliseu
Viana da cidade de Mossoró – RN, sendo implementado com o apoio da Professora Maria
Idalina Mesquita de Morais, e sucedeu da seguinte forma: foram observadas algumas aulas na
turma da 3ª série A do Ensino Médio da referida escola, no qual são matriculados trinta
alunos. Após isso apresentamos a proposta de atividade de escrita em que o objetivo seria que
cada aprendiz produzisse o seu Aviso. Foram usados alguns recursos tecnológicos para o
enriquecimento das aulas, como pen drive e projetor multimídia. As aulas foram
desenvolvidas de acordo com um cronograma de quatro aulas no mês de abril. Para trabalhar
com os alunos, foi elaborado um material impresso e outro projetado.

2 Sequência Didática

De acordo com Schneuwly & Dolz (2004, p.97), “sequência didática é um conjunto de
atividades escolares, de maneira sistemática, em torno de um gênero textual oral ou escrito”.
Partindo desse pressuposto, as Sequências Didáticas são e planejadas seguindo uma ordem, a
qual Dolz et al. (2004, p. 83) denominam “estrutura base”, ilustrada na figura 1.
1654
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Fonte: Dolz et al. (2004, p. 83).
Figura 1 – Esquema da sequência didática

Ao observarmos a Figura 1, podemos perceber uma proposta de atividades


organizadas de maneira sequencial tendo como propósito a produção final. A partir da
situação apresentada, os alunos realizam uma primeira produção escrita relacionada com o
gênero proposto e, em seguida, os módulos são desenvolvidos com a finalidade de decrescer
as dificuldades encontradas na produção inicial, tendo em vista que, durante todo o
desenvolvimento das etapas, o foco principal é a produção final.

2.1 Apresentação da situação

A atividade foi iniciada através de uma conversa informal para verificarmos o


conhecimento prévio do alunado com relação ao gênero Aviso, seguindo essa conversa
exibimos algumas indagações como: “Qual a mensagem dos textos?; Quais são os seus
destinatários? Qual é o contexto?; Que gênero textual estamos lendo?; Qual a sua importância
para o meio social?; Já viram esse tipo de texto em língua Inglesa?;” Só, então, fizemos uma
explanação sobre o gênero, com o objetivo de demonstrar sua função, principais
características, a forma como ele é apresentado e suas estruturas formais e informais.

2.2 A primeira produção

A primeira produção trata-se do “primeiro lugar de aprendizagem” (DOLZ et al.,


2004, p. 87), e tem como objetivo preparar o educando para a produção do gênero proposto.
1655

Pedimos aos alunos que imaginassem uma situação em que eles desenvolveriam a função de
zelador da escola e, portanto, saberiam que determinado espaço (pode ser a sala de aula, sala
dos professores, biblioteca, pátio ou auditório, ou os banheiros) precisava de um aviso, por
Página

exemplo, um local que esteja sujo, pois as pessoas não colocam lixo no cesto, ou um local

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perigoso, mas que as pessoas não sabem que estão em perigo. Após a apresentação da
proposta pedimos que produzissem um aviso em inglês, alertando ou informando sobre tal
situação. Na aula seguinte recebemos a produção escrita, e após as devidas correções notamos
que as principais falhas e erros cometidos seriam as palavras ortograficamente erradas, pouca
coerência nos textos, não seguiram a estrutura correta do gênero e não fizeram o uso correto
das preposições.

2.3 Módulos

Os módulos têm a finalidade de trabalhar as dificuldades encontradas na produção


inicial, e são divididos de acordo com a necessidade dos aprendizes, partindo desse
pressuposto elaboramos os módulos em três etapas:

Módulo 1. Nesse módulo formulamos uma atividade sobre prepositions of place


fazendo a utilização das preposições in, on, at, next to, and, above e in font of. Atividade
disponível em apêndice.

Módulo 2. O segundo módulo se deu com um estudo de palavras-chave. Uma


atividade baseada na proposta de Souza (2007, p.58), onde os alunos deveriam selecionar uma
palavra-chave para ser estudada em termo de seu significado e suas combinações com outras
palavras. Atividade disponível em apêndice.

Módulo 3. Neste módulo, fizemos a distribuição dos avisos ao redor da sala e pedimos
aos aprendizes que encontrassem os verbos no imperativo disponível nos avisos e fizessem
anotações. Atividade disponível em apêndice.

2.4 Produção final

A produção final consistiu na escrita do trabalho final referente ao gênero estudado.


1656

Os alunos colocaram em prática o que aprenderam e produziram para os interlocutores a


mensagem escrita de forma clara, correta e utilizando os devidos vocabulários de forma
adequada. Em seguida foram colocados os avisos nos locais determinados por cada aluno.
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Pois como cita Antunes (2009, p. 79) “ninguém fala ou escreve de forma a não se fazer
entender”.

3 Resultados e discussões

O gênero escolhido para esta produção foi o aviso onde teve como propósito ajudar os
alunos a entender sua função através da prática de leitura e escrita em língua inglesa. Por se
tratar de um gênero acessível, o mesmo nos proporciona uma aprendizagem de escrita simples
e prática em que o aluno se sente capaz de desenvolver, pois o mesmo traz motivação além de
um melhor conhecimento do gênero, objetivo e importância para seu dia a dia. A partir da
apresentação do tipo de gênero que seria trabalhado, suas estruturas, meio de utilização,
proposta de atividade escrita, criação de módulos e reescrita do gênero tratado, nós pudemos
observar que é possível trabalhar um gênero textual/discursivo em língua inglesa de forma
satisfatória desde que o aluno receba as orientações adequadas para tanto.

Conclusão

Ao iniciarmos o trabalho tínhamos como objetivo levar o aluno a ver a leitura e a


escrita em língua inglesa como algo significativo e a produzir uma atividade que o ajudasse
em seu âmbito social, com o estudo dos gêneros discursivos/textuais e a sequência didática
pudemos colocar em prática essa proposta. Observamos que há um desafio com relação a esse
tipo de aplicação na aula de língua inglesa, todavia conseguimos um resultado satisfatório
visto que os aprendizes progrediram a cada exercício realizado.

Referências

ANTUNES, I. Língua, texto e ensino: outra escola possível. 2. ed. São Paulo: Parábola,
2009.

DOLZ, Joaquim; NOVERRAZ, Michèle; SCHNEUWLY, Bernard. Sequências didáticas para


o oral e a escrita: Apresentação de um procedimento. In: DOLZ, Joaquim; SCHNEUWLY,
1657

Bernard e colaboradores. Gêneros orais e escritos na escola. Organização e tradução de


ROJO, Roxane; CORDEIRO, Glaís Sales. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2004. P. 95-
128.
Página

SOUZA, A. L. S. et al. Letramentos no ensino médio. São Paulo: Parábola, 2007.

ISBN: 978-85-7621-221-8
Anexo 1

Atividade

1) Complete com as preposições de lugar in, on, at, next to, above e in front of.

On – For days and dates, surface, a parto f the body / Em, no, na – dias e datas, superfícies e partes do
corpo.
At – For a precise time, for indicate a place / Em, no, na – tempo exato, indicar lugar.
In – For months, years, centuries and long periods, enclosed space / Em, no, na – meses, anos, séculos,
longos períodos e espaços fechados/específicos

My name is Jhon. I live ___________ Los Angeles.

I have one apartment ________ Paradise Avenue _____________ the bank.

I am sitting __________ Susan.

We are metting ___________ the café.

The football game is _______________ the stadium.

They´re putting their name ________________ the wall.

Let´s meet ___________ France.

I´ll meet her ____________ the party.

2) Os alunos selecionarão uma palavra-chave de alta para ser estudada em termos de “seu significado, suas
combinações com outras palavras. Vejo o exemplo a seguir.

Verb Noun
Clean
Open
Enter Area
Close

A atividade também pode se inverter, (verbos/ substantivos) ou (substantivos/ verbos) o objetivo é que
os alunos pratiquem os vocabulários em inglês. O professor mostrará uma lista de palavras
(verbos/substantivos) e pedirá para que os alunos (cada dupla) escolham (verbos/substantivos) e
desenvolvam a tabela já apresentada anteriormente.

NOTICE
RUBBISH
TURN OFF
LIGHTS
BARGAGE CAN
ENTER
1658

LEAVE
DANGER

AREA
KEEP
Página

CLEAN
SMOKING

ISBN: 978-85-7621-221-8
OPEN
SCHOOL

3) O professor mostrará alguns avisos e pedirá para que os alunos encontrem qual dos avisos encontram
verbos no imperativo. Em seguida anotaram esses verbos no quadro:

Figura 2 – Imagens utilizadas para mostrar aos alunos

ANEXO 2

1659

Figura 3 – Aviso produzido por aluno


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Figura 4 – Aviso produzido por aluno

1660
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PÔSTER

TRABALHANDO SEQUÊNCIA DIDÁTICA ATRAVÉS DE GÊNERO TEXTUAL:


ANÚNCIO PUBLICITÁRIO NO CENTRO DE EDUCAÇÃO INTEGRADA
PROFESSOR ELISEU VIANA

Paloma Luana da Silva Delfino (UERN)


Maria Idalina Mesquita de Morais (CEIPEV)

Considerações Iniciais

O ensino de Língua Inglesa em escolas públicas tem passado por muitas melhorias.
Uma das justificativas é a atenção ao estudo dos gêneros textuais/ discursivos em sala de aula,
já que segundo os PCN, o ensino deve ser pautado em textos com função comunicativa
(Antunes, 2009). Através das disposições de que a comunicação humana se realiza por meio
de textos concretos que se manifestam em diversos gêneros textuais, entende-se a necessidade
de que o ensino de línguas esteja ancorado no estudo destes em diversas situações
comunicativas. Torna-se imprescindível que a escola favoreça um ensino pautado no
desenvolvimento das quatro habilidades linguísticas (ouvir, falar, ler e escrever).
Com bases na teoria dos gêneros e na corrente de estudo do Interacionismo
Sociodiscursivo de Bronckart (2009 apud RIOS-REGISTRO, 2014, p. 261) este artigo tem
por propósito trabalhar o gênero textual/discursivo anúncio publicitário através de sequência
didática no segundo ano do Ensino Médio no Centro de Educação Integrada Professor Eliseu
Viana (CEIPEV). A proposta de trabalhar a produção escrita através desse gênero surgiu
durante as discussões do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência
(PIBID/CAPES), subprojeto Língua Inglesa.
O presente trabalho encontra-se estruturado a partir de uma fundamentação teórica
em que expomos as teorias em que nos baseamos, tanto com relação ao gênero, como sobre
aspectos voltados para a sequência didática de Dolz et. al. (2004). Segue da apresentação da
metodologia, de como o trabalho foi realizado, dos resultados e discussões, momento em que
consideramos alguns dos aspectos percebidos a partir do resultado de nosso estudo e
finalizamos com as considerações finais.
1661
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Fundamentação Teórica

O estudo dos gêneros textuais/ discursivos se torna cada vez mais difundido na
academia, considerando que a manifestação da língua se dá através destes, é perfeitamente
compreensivo a necessidade de fomento a pesquisas na área. A concepção de gêneros
segundo os autores Bakhtin (2003), Marcuschi (2008), Antunes (2009) e Koch e Elias (2012),
ressalta a função destes no meio social, partindo de sua definição. Para Bakhtin (2003) o uso
da língua realiza os gêneros, e sejam estes escritos ou orais, servem à comunicação.
Segundo Antunes (2009), as disposições dos Parâmetros Curriculares Nacionais
(PCNs) enfatizam a necessidade dos textos serem trabalhados de forma mais contextualizada
nas escolas, uma vez que a comunicação se dá através destes. Antunes defende que os textos
são amplos, cada um com função comunicativa, estrutura, e se dão por meios dos gêneros
textuais que abrangem o linguístico e o social. Bakhtin (2003, p. 262) exprime que os gêneros
discursivos são “tipos relativamente estáveis de enunciados”, que possuem uma forma, mas
que na realização não ocorrem sempre do mesmo modo, já que cada pessoa possui um estilo e
o transfere para o gênero. De acordo com Koch e Elias (2012, p. 101) os gêneros são “práticas
sociocomunicativas”, e que, portanto, variam com o passar do tempo. Ressaltam ainda a
competência metagenérica que as pessoas possuem, capacidade que permite a adaptação a
diferentes situações comunicativas (KOCH & ELIAS, 2014).
Para Marcuschi (2008), os gêneros são textos materializados com função, propósito e
estilo. O autor defende que “toda manifestação verbal se dá sempre por meio de textos
realizados em algum gênero” (MARCUSCHI, 2008, p. 154), o que permite inferir que a
comunicação é regida pelos gêneros discursivos/ textuais. Considerando que, por serem
manifestações sócio-históricas, os gêneros sempre acompanharão o desenvolvimento da
sociedade, e esta fará uso dos gêneros devido à necessidade de se comunicar. Marcuschi
(2003, p. 20) ressalta que os gêneros não são apenas estruturas linguísticas, com uma forma
que permeia todos os existentes, pois, estes “caracterizam-se muito mais por suas funções
comunicativas, cognitivas e institucionais do que por suas peculiaridades linguísticas e
estruturais”.
1662

Tendo por base que os gêneros se manifestam tanto na escrita como na oralidade, faz-
se importante que tais aspectos sejam trabalhados no meio escolar. A escrita é uma atividade
de interação, o que implica a existência de uma relação entre sujeitos, o escritor e o leitor
Página

(ANTUNES, 2003). Considerando a vertente de estudos do Interacionismo Sociodiscursivo

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(ISD), em que Schneuwly e Dolz fundamentam seus estudos (STUTZ et. al., 2014), percebe-
se a necessidade de adaptar os gêneros textuais aos objetivos da escola, uma vez que estes não
possuem por função primeira o ensino, mas sim, a comunicação.
Schneuwly e Dolz (2004) trazem uma proposta que permita o desenvolvimento da
habilidade escrita através de atividades sequenciadas, seria a sequência didática. Essa tem por
finalidade principal propiciar ao aluno um melhor domínio do gênero estudado. A sequência
didática é esquematizada com a apresentação da situação, produção inicial, módulos e por
fim, tem-se a produção final. (ver figura 1).

A apresentação da situação é o momento que o professor expõe de forma detalhada a


tarefa que os alunos terão que realizar, ressaltando os aspectos inerentes ao gênero, como
particularidades linguísticas e função comunicativa. Na produção inicial solicita-se que os
alunos elaborem uma primeira versão do gênero, momento em que poderão colocar em
prática aquilo que foi estudado durante a apresentação da situação. A partir desta primeira
versão, o professor pode analisar se houve equívocos relacionados à estrutura ou a aspectos
gramaticais.
Após a correção da primeira produção, se houver necessidade, o professor elabora os
módulos, atividades diversas que possibilitam aos alunos exercitarem e relembrarem os
pontos em que mais tiveram dificuldade. Na produção final, o aluno colocará em prática as
noções aprendidas sobre o gênero desde a produção inicial. O processo de escrita é bastante
enriquecedor, pois os alunos podem perceber que “o conhecimento é construído
progressivamente em práticas comunicativas e culturais situadas” (BEATO-CANATO et al.,
1663

2014, p. 216).
Desta forma, percebe-que que o ensino de línguas deve ser voltado para o
Página

desenvolvimento da comunicação, e que por se manifestarem através dos gêneros discursivos/

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textuais, se faz altamente necessário o emprego de atividades que possibilitem aos alunos
desenvolverem suas competências comunicativas. Rios Registro (2014, p. 264), salienta que
“é por meio da apropriação do gênero que os indivíduos agem com linguagem. Assim, a
sequência didática é um importante meio de introduzir um estudo estruturado, sequencial que
permite ao aluno entender sua construção e importância, uma vez que a produção escrita de
textos legítimos é um processo bastante complexo, daí a necessidade de trabalhá-los de forma
gradativa para que se consiga uma evolução favorável.

2 Metodologia

A proposta de trabalhar sequência didática através do gênero anúncio publicitário


surgiu com o propósito de aprimorar o desenvolvimento da habilidade escrita em inglês.
Tendo por base o modelo de sequência didática proposta por Schneuwly e Dolz (2004), foi
trabalhado a apresentação da situação; a primeira produção; os módulos, que nesse caso foram
dois; e a produção final respectivamente. A aplicação desta sequência se deu em uma turma
do 2º série do ensino médio no Centro de Educação Integrada Professor Eliseu Viana
(CEIPEV), no decorrer de quatro aulas, de cinquenta minutos cada.
Com o intuito de apresentar o gênero, foram inicialmente exibidos, com auxílio de um
projetor de mídia, alguns exemplos de anúncios em língua inglesa durante uma aula de leitura
para que o aluno pudesse ter um primeiro contato e assim se familiarizar com o gênero (figura
2). Com o objetivo de avaliar a percepção do aluno quanto à forma, estrutura, função e as
características do gênero e para que seus conhecimentos prévios fossem avaliados foram
feitas às seguintes perguntas: O que está sendo anunciado? Quais cores compõem o anúncio?
Você consegue entender o contexto?
1664
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Fonte: http://www.welikeviral.com/files/2014/09/Funny-Billboard-3.jpg

Após o estudo do gênero, foi pedido aos alunos que desenvolvessem anúncios
publicitários, os quais deveriam ter como objetivo a divulgação de um novo negócio em sua
cidade, bairro ou rua. Após a primeira escrita, com a identificação dos desvios relativos à
estrutura e elaboração de frases, houve a correção através da elaboração de módulos, a
proposta de reescrita e, ao final da sequência, os textos dos alunos foram encaminhados para
publicação em mídias digitais e divulgação nos murais da escola. A partir da criação da
situação permitiu-se que o aluno tivesse clareza do quê, para quê, e para quem escrever, tendo
a oportunidade de dialogar diretamente com seu público alvo, assim como ressalta Marcuschi
(2003) ao dizer que “a criação de situações com contextos que permitam reproduzir em
grandes linhas e no detalhe a situação concreta de produção textual”.

3 Resultados e Discussões

Após a correção da primeira produção, notou-se que os alunos não conseguiram


entender a estrutura pela qual o gênero anúncio publicitário se manifesta, pois alguns alunos
não inseriram imagens em suas produções, por exemplo. Outro equívoco cometido foi a falta
do uso de verbos no modo imperativo que são predominantes no gênero, sendo utilizados pelo
anunciante como ferramenta para persuadir o comprador.
1665

Fez-se necessário, a aplicação de dois módulos, com intuito de trabalhar os desvios


encontrados nas correções. Um, com ênfase no estudo da estrutura do anúncio publicitário, e
Página

outro, voltado para o exercício do uso do modo imperativo. Em seguida, foi realizada a

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produção final (figura 3 e 4), momento em que se deu o processo de refacção da produção
inicial, pois, como enfatizado Lopes-Rossi (2006), a reescrita é uma importante etapa no
processo de aprendizagem. É necessário que os alunos entendam que escrever é um processo
que demanda tempo para sua realização e que quanto mais praticada, melhor se torna. Apesar
da sequência didática trazer o termo produção final, entende-se que a escrita nunca pode ser
acabada, esta é apenas considerada satisfatória para um determinado objetivo.

Fonte: Produção escrita de alunos do 2º ano do Ensino Médio, 2017.

Durante essa última etapa, percebeu-se que os alunos tiveram uma atenção maior
quanto à correção dos pontos que foram destacados nas produções anteriores. Houve alguns
casos em que o aluno não completou o processo da sequência, por motivo de falta às aulas,
mas pode-se dizer que a atividade com gênero anúncio publicitário foi bastante satisfatória,
pois teve a participação e o empenho da maioria dos alunos.

Considerações finais

Este trabalho teve como principal objetivo desenvolver a habilidade de escrita em


língua inglesa por meio do gênero textual/discursivo anúncio publicitário, tendo como base a
proposta de sequência didática de Schneuwly & Dolz. Essa proposta de trabalhar a produção
escrita através desse gênero surge das discussões do Programa Institucional de Bolsa de
1666

Iniciação à Docência (PIBID/CAPES), subprojeto Língua Inglesa.


Compreende-se que, a comunicação se dá por meio de gêneros e que a sua escolha,
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segundo Bakhtin (2003), evoca a vontade discursiva do falante, por isso, é necessário que o

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professor traga para sala de aula os propósitos comunicativos dos gêneros, atrelados às
práticas discursivas, motivando o aluno às práticas de escrita diante do uso real da língua.
Por fim, nota-se que trabalhar com os gêneros discursivos/ textuais no ensino de
língua inglesa, ainda representa um grande desafio quando voltados ao trabalho ativo em sala
de aula, principalmente na escola pública onde vemos a grande falta de recursos e
desmotivação dos alunos ao aprendizado de uma língua estrangeira. No entanto, pôde-se
constatar através dessa experiência, que é possível trabalhar a língua inglesa de forma ativa,
motivando o aluno ao uso da língua, para que assim este perceba que pode sim desenvolver
habilidades linguísticas em outro idioma e usá-lo para a comunicação.

Referências

ANTUNES, Irandé. Aula de português: encontro e interação. São Paulo: Parábola Editorial,
2003.

______. Língua, texto e ensino: outra escola possível. São Paulo: Parábola Editorial, 2009.

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

BEATO-CANATO, Ana Paula Marques; CRISTOVÃO, Vera Lúcia Lopes. Proposta de


avaliação de sequências didáticas com foco na escrita. In.: BARROS, E. M. D. de e RIOS-
REGISTRO, E. S. Experiências com sequências didáticas de gêneros textuais – Parte 2.
Campinas: Pontes, 2014, p.203-233.

DOLZ, Joaquim; NOVERRAZ, Michèle; SCHNEUWLY, Bernard. Sequências didáticas para


o oral e a escrita: Apresentação de um procedimento. In: DOLZ, Joaquim; SCHNEUWLY,
Bernard e colaboradores. Gêneros orais e escritos na escola. Organização e tradução de
ROJO, Roxane; CORDEIRO, Glaís Sales. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2004. P. 95-
128.

KOCH, Ingedore Villaça; ELIAS, Vanda Maria. Escrita e práticas comunicativas. In: Ler e
escrever: estratégias de produção textual. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2014, p. 53- 62.

______. Ler e compreender: os sentidos do texto. 3. ed. São Paulo: Contexto, 2012.

LOPES-ROSSI, Maria Aparecida Garcia. Gêneros discursivos no ensino de leitura e produção


de textos. In: KARWOSKI, A. M.; GAYDECZKA, B.; BRITO, K. S. (Orgs.). Gêneros
textuais: reflexões e ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2006, p.73-84.
1667

MARCUSCHI, L. A. Gêneros textuais: definição e funcionalidade. In: DIONISIO, A. P.;


MACHADO, A. R.; BEZERRA, M. A. (Org.) Gêneros textuais & ensino. 2. ed. Rio de
Janeiro: Lucerna, 2003, p. 19-36.
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______. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São Paulo: Parábola
Editorial, 2008, p. 146 - 224.

RIOS-REGISTRO, E. S. A sequência didática na formação inicial: o gênero literário em foco.


In.: BARROS, E. M. D. de e RIOS- REGISTRO, E. S. Experiências com sequências
didáticas de gêneros textuais – Parte 2. Campinas: Pontes, 2014, p. 261-278.

STUTZ, Lídia; LANFERDINI, Priscila Azevedo da Fonseca; SOUZA, Josiane Silva de.
Trabalho de parceria entre a Universidade e a escola: uma experiência de intervenção de
ensino mediada pela proposta de elaboração de sequências didáticas. In.: BARROS, E. M. D.
de e RIOS-REGISTRO, E. S. Experiências com sequências didáticas de gêneros textuais –
Parte 2. Campinas: Pontes, 2014, p. 157-179.

1668
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PÔSTER

FORMAÇÃO E POSTURA NO CURSO DE PEDAGOGIA/UERN: UM NOVO


OLHAR A PARTIR DA MULTIRREFERENCIALIDADE

Francisca Geise Varela Costa (UERN)


Thalita Juliana de Freitas Meneses (UERN)
Mayra Rodrigues Fernandes Ribeiro (UERN)

Introdução

Buscamos com este trabalho refletir sobre o encontro com as noções multirreferenciais
enquanto alunas do Curso de Pedagogia/UERN, narrando quais as sensações das vivências,
leituras, debates, significações e ressignificações a partir da epistemologia multirreferencial.
Ao longo desta experiência tivemos a oportunidade de participar do componente Pesquisa-
Formação, Ciberautorcidadão e Abordagem Multirreferencial no Programa de Pós-
graduação em Educação (POSEDUC) e traremos este como um momento significativo para a
ampliação destas ideias.
De acordo com Berger (2012) a multirreferencialidade traz consigo fortemente a
noção de prática. Assim, compreendemos que esta noção provoca no sujeito uma postura
outra diante das práticas cotidianas. Desta maneira buscamos, portanto, por meio de relatos
escritos no Diário de Pesquisa evidenciar estas sensações como a possibilidade de reflexão e
uma leitura de si, reafirmando este sujeito que se permite dizer de si, se autorizando diante de
seus medos, angústias, dilemas, questionamentos e sensações vividas/sentidas.
Tentamos nos aproximar de uma escrita reflexiva, problematizadora, portanto,
multirreferencial. Para isso lançamos mão de leituras em autores como Barbosa, Macedo e
Borba (2012), Borba (2013), Macedo (2010) por nos auxiliarem na compreensão das noções
que estão relacionadas à multirreferencialidade e a formação. Como antes dito, utilizamos a
escrita do Diário de Pesquisa embasado nas leituras de Barbosa e Hess (2010)
compreendendo-o como um instrumento que possibilita dar voz as sensações vividas/sentidas
nos diversos momentos formativos.
Desse modo, narramos nossa itinerancia formativa desde os primeiros encontros com
1669

as principais noções multirreferenciais por meio de encontros e leituras no Programa


Institucional de Bolsa de Iniciação Cientifica (PIBIC), sendo este o desencadeador de nossa
Página

participação nas aulas da disciplina na Pós Graduação em Educação da Universidade do

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Estado do Rio Grande do Norte (UERN). Consideramos que tais experiências foram
relevantes e bastante significativas, uma vez que pudemos reeducar o nosso olhar sobre as
práticas cotidianas.

Aproximação com a multirreferencialidade: algumas impressões

Consideramos que falar de si não é tarefa fácil perante a sociedade que vivemos, uma
vez que esta preserva uma postura silenciosa, um sujeito perfeito, diante de padrões que os
enquadra como certo e/ou errado. De acordo com Macedo (2012, p. 37) o pensamento
multirreferencial é mobilizado pela busca de conhecimento que sente a necessidade e
emergência de fazê-lo pela falta “[...] porque se faz a partir da plural emergência das maneiras
humanas de conhecer e criar soluções para suas comuns, mas, ao mesmo tempo, diversas
problemáticas da vida.” Diante disso, compreendemos que o modelo de trabalho que
desenvolvemos se apresenta em uma postura multirreferêncial, uma vez que permite a
teorização de reflexões e práticas de sujeitos diante de seus dilemas.
Desse modo o seguinte trabalho surge das vivências no componente curricular
Pesquisa-Formação, Ciberautorcidadão e Abordagem Multirreferencial do Programa de Pós
Graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), em
que nos sentimos instigadas a falar sobre esta experiência, levando em consideração o
momento vivido/sentido enquanto alunas do oitavo período do Curso de Pedagogia da
Faculdade de Educação (FE/UERN) como ouvintes no referido componente. Neste exercício,
vamos atribuindo os sentidos e compreendendo a ressiginificação de uma postura a partir da
multirreferencialidade, percebendo-a como uma atividade complexa, que exige autoria,
reflexão e sensibilidade do sujeito.
Ressaltamos que o encontro com a multirreferencialidade se deu a partir da vivência
no projeto intitulado como Novos espaçostempos de aprenderensinar nas disciplinas da
graduação em Pedagogia da UERN: interações docente e discente na rede social facebook,
institucionalizado pelo Programa Institucional de Iniciação Científica (PIBIC, 2016/2017) da
UERN, em que nos deparamos com novas leituras e debates que nos provocou conflitos e
1670

estranhezas, pois a medida que fazíamos as leituras, nos sentíamos incomodadas e nos
questionávamos sobre as práticas vividas/sentidas durante todo o percurso formativo, seja no
ensino superior ou no processo de escolarização.
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Entravamos constantemente em conflito por perceber a multirreferencialidade como
uma nova perspectiva que nos causavam sensações estranhas ao nos deixar a vontade à
questionar, bricolar, provocar rupturas, permitindo externar nossos saberes e não saberes, a
qual não estávamos acostumadas. Como vemos no trecho seguinte do Diário de Pesquisa:

[...] percebo que existe algo que sempre nos direciona a algum lugar, que
inocentemente seguimos sem pensar o porquê e se isso é realmente o que
queremos. Hoje percebo que no mundo acadêmico isso também acontece.
Temos padrões e devemos nos encaixar neles e para isso seguiremos passos
antes já realizados, como se fossem reproduções. Pensando no texto
discutido no encontro anterior, consigo perceber como tentamos definir tudo
como certo e errado, então quem estiver dentro do padrão, segue, e quem
não está, fica de fora (DIÁRIO DE PESQUISA/Thalita Meneses, 08 de
setembro 2016).

Podemos perceber uma postura que se assemelha ao que Barbosa e Hess (2010, p.16)
apresenta como necessária ao pesquisador, em que se inquieta diante do contexto social.
Destarte, ressaltamos que vivemos em uma sociedade que se move a todo instante e que,
portanto, não mais devemos nos contentar com aquilo que estável, como afirma Macedo,
Barbosa e Borba (2012, p. 37) “[...] esse conforto curricular pedagógico perdeu o fôlego e não
mais responde ao contemporâneo e seus desafios formativos”. Desse modo ao compreender
que a multirreferencialidade não se enquadra em uma ciência positivista ou que se quer
manter purista, concordamos que as práticas devam ser constantemente problematizadas.
Posteriormente a essa experiência a professora Drª Mayra Ribeiro 276, propositora do
projeto de pesquisa citado, juntamente com o professor Drº Joaquim Barbosa277 iniciaram
encontros com o propósito de realizar leituras e debates relacionados a multirreferencialidade,
o que para nós foi mais um momento significativo diante do encontro dessa nova perspectiva.
Percebíamos que os encontros eram conduzidos de uma outra forma, pois nestes podíamos
expor dilemas, questionamentos, angústias, não saberes, sem que nos fosse cobrado saber e
compreender as leituras propostas, como podemos ver no trecho do Diário:

[...] A maneira como Joaquim falava com a gente era estranho. Ele nos
perguntava o que estávamos entendendo e parecia que lia nossas expressões,
para a partir dela dizer algo. Perguntava sobre o que estávamos sentido. Isso
1671

chega a ser engraçado, pois ninguém nos pergunta sobre o que estamos
sentido. Sai feliz do encontro e ao mesmo tempo com a cabeça fervilhando.
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276
Professora adjunta IV da UERN, do Departamento de Educação (DE).
277
Professor visitante do Programa de Pós Graduação em Educação da UERN.

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Mayra e Joaquim nos disse que deveríamos relaxar e que a
multirreferencialiade não é algo estático, mas que cada sujeito vai vê-la de
uma maneira e que não adianta esta enquadrando procurando definir o
conceito sobre ela. Relatei que minha dificuldade estava no costume de
compreender primeiro o conceito para depois entender do que se trata, mas
percebi que não devo me preocupar com esta ordem. [...] (DP/Thalita
Meneses, 08 de setembro de 2016).

Posteriormente a esses encontros, fomos convidadas a participar do componente


Pesquisa-Formação, Ciberautorcidadão e Abordagem Multirreferencial (POSEDUC/UERN),
o que nos possibilitou ainda mais a ampliação do repertorio de leituras e compreensão das
novas noções. Concomitante a esta vivência estávamos realizando a construção do Trabalho
de Conclusão de Curso (TCC) a qual optamos por utilizar como plano de fundo a
multirreferencialidade. Toda essa itinerancia nos auxiliou a perceber as práticas com outros
olhos, de forma mais sensível, aguçada, crítica e bastante questionadora.
Era inevitável não fazermos reflexões e questionamentos sobre as práticas de
formação no curso de pedagogia, íamos percebendo o quanto vivemos em meio a práticas
tradicionais e desautorizantes e o quanto isso nos privam de nos autorizar e problematizar o
cotidiano. Em Barbosa (1998) percebemos claramente que isso resulta de uma pedagogia
desautorizante, desenvolvida fortemente em práticas escolares que podam seus alunos,
desestimulando a criação, imaginação, questionamentos, etc. dos sujeitos. Diante da
multirreferencialidade percebemos que o imaginário, que em outros espaços é negado, é lhe
dado voz, pois o pensamento multirreferencial compreende que este é necessário nas práticas
formativas em educação (MACEDO, BARBOSA e BORBA, 2012).

O Diário de Pesquisa como escuta de si no processo vivido/sentido na formação inicial

Durante nossas vivências enquanto alunas pesquisadoras no Programa Institucional de


Bolsas de Iniciação Cientifica (PIBIC) conhecemos a importância dos escritos de nosso
cotidiano formativo na universidade. Percebemos o quanto a escrita subjetiva poderia nos
ajudar a organizar nossas ideias e nossas compreensões. No entanto, quando tivemos acesso à
leitura da obra Diário de Pesquisa: o estudante universitário e seu processo formativo de
1672

Barbosa (2010) compreendemos que a escrita era imprescindível tanto para a organização do
nosso pensar; quanto para a organização da nossa subjetividade íntima e inconsciente.
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Assim, o Diário de Pesquisa é considerado um recurso formativo importantíssimo para
nossa caminhada formativa durante a pesquisa PIBIC, nosso trabalho monográfico e não foi
diferente em nossa participação nas aulas da disciplina do Mestrado. Era no diário que
desabafávamos nossas angústias, dilemas, alegrias, saberes e anseios. Concordamos com
Barbosa (2010, p. 33) quando afirmam que devemos utilizar a angústia como um novo
método, não precisando descartá-la, uma vez que nas pesquisas em ciências humanas o objeto
a ser observado se constitui de sujeitos tornando-a mais complexa, desse modo “[...] ao
observá-la [a angústia] atentamente, interrogá-la e escutá-la de modo clínico e perspicaz, é
possível caminhar em direção aos possíveis significados que emergem do objeto observado.
[...]” (grifos nossos). Portanto, acreditamos que todos os sentidos e significados atribuídos as
vivências em nosso cotidiano devem ser levados em consideração em nosso processo de
formação.
O diário contribuiu fortemente para a percepção de nós mesmas, pois a cada escrita
feita podíamos perceber nossas ações e dúvidas. Podemos afirmar que este instrumento
muitas vezes “ouviu” nossas dúvidas que julgamos bobas; presenciou nossas indagações
tímidas que não foram exteriorizadas por consequência da desautorização; percebeu nossos
dilemas e confidenciou muitos dos nossos segredos, aqueles que ficaram guardados e que
poderiam ser esquecidos em nossa itinerancia formativa, se não houvéssemos escrito no
diário. Um dos escritos revela nossas reflexões, indagações e sensações vividassentidas na
aula da disciplina do Mestrado:

O professor Joaquim explicou a distinção entre alteridade e alteração [...].


Segundo sua fala, lidar com a ideia do outro (alteridade) seria mais
“simples” do que com a ação (alteração), e é isso que Ardoino muito bem
ressalta. Mas fiquei me indagando: Ao lidarmos com a ideia do outro não
estaríamos dando condições para a alteração? A alteridade, nesse sentido,
não subsidia um processo de alteração do sujeito? Como mudamos em
postura sem antes nos atentarmos a dimensão da ideia? Existe linearidade:
uma acontece antes da outra? Não precisamos refletir (ideia) para
ressignificarmos nossas práticas cotidianas enquanto pessoas? Confesso que
estava com todas essas dúvidas na cabeça, mas não consegui exterioriza-las
na aula [...] (DP/Geise Varela, 06 de março de 2017).
1673

Como percebemos no fragmento exposto acima, o diário foi um recurso importante


para que fosse possível externar os questionamentos e dilemas silenciados durante os
encontros na disciplina. Provavelmente tivesse sido mais interessante ter lançado essas
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indagações na aula, no entanto, tendo em vista a desautorização no momento da discussão, o

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diário foi o confidente dos dilemas e dessa maneira, as ideias não foram esquecidas. Pelo
contrário, os escritos foram importantes para o amadurecimento teórico e atua como um
importante mediador para o exercício de estranhamento e reflexão do que fora vivido naquele
momento. Ressaltamos que a escrita nos proporcionou olharmos novamente para o vivido e
proporcionou ricas reflexões, bem como a construção deste trabalho científico.
Segundo Barbosa (2010, p. 65-66) a escrita do diário deve ser realizada em uma dupla
perspectiva, de uma dimensão externa que se apresenta como relativo ao interesse do sujeito,
seja por trabalhos de componentes curriculares, TCC, relatórios, etc.; bem como interna,
envolvendo a subjetividade, dilemas, angustias, etc. e sobre a tais perspectivas assim
apresenta os autores:

[...] Consideramos extremamente ricas tais relações decididamente


provisórias, mas que amanhã poderão se apresentar significativas, pois,
como já foi dito, é nesse processo que sutilmente abrimos uma fenda para
nossa presença, como sujeito capaz de significar e imprimir sentido ao que
fazemos e, portanto, autor de sentido para a escrita e para a vida. [...]”

Desse modo, compreendemos que a escrita subjetiva e significativa de nossas


vivências colocadas no Diário é de grande relevância, uma vez que nos possibilita o diálogo
com o nosso íntimo, com nós mesmas, bem como permitindo a leitura de quem somos, nos
encontrando como sujeito que se apresenta imperfeito, inconcluso e problematizador da sua
realidade.

A multirreferencialidade como ressignificação de postura para/na vida

A noção multirreferencial configura-se como uma epistemologia formativa da prática,


de um saber-fazer complexo especialmente por ser necessária a construção de um olhar
ressignificado para as coisas, sendo dessa forma, imprescindível uma mudança de olhar. O
exercício da busca para compreender esta noção não se limita somente em ler as principais
obras de importantes autores que a discutem, sobretudo, é necessário que o processo de leitura
e compreensão se dê à luz de sentidos suscitados de modo que estes não se separem da vida.
1674

Nesse sentido, a epistemologia multirreferencial possui uma íntima relação com a prática, ou
seja, não se separa das relações sociais, do vivido pelos sujeitos:
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A multirreferencialidade, mais do que um conceito, apresenta-se como uma
epistemologia, um modo de ver o mundo no qual nos inserimos; um modo
de compreender a ciência, o outro, nossa própria atuação no social e conosco
mesmos (MACEDO, BARBOSA e BORBA, 2012, p. 63-64).

Enquanto alunas da graduação podemos afirmar que foi por meio das leituras, dilemas
e sentidos construídos quanto a essas noções que compreendemos a suma importância de
reeducarmos o nosso olhar para percebermos as nuances do cotidiano, da vida acontecendo,
da nossa formação sendo tecida. Ressaltamos que esse exercício foi extremamente marcante e
desafiador para nós, especialmente por estarmos ligadas, como a maioria das pessoas, a
ciência moderna que naturaliza a fragmentação daquilo que não se separa, de simplificar o
que há de complexo em nossa realidade e com isso, deixando de buscar entendê-la.
Na busca pela compreensão das noções da multirreferencialidade, a ressignificação
desse olhar necessita acontecer, mas é importante sempre considerar o tempo de cada sujeito,
o tempo da maturação. Esse tempo vivido conforme Borba (2013) embasando-se em Ardoino
trata-se de um tempo que difere do tempo cronológico das coisas, este que insiste em lidar
com os sujeitos padronizando seus tempos de aprendizagens.
Como explicitado anteriormente, vínhamos caminhando, discutindo e dialogando
coletivamente sobre a noção multirreferencial na interface da pesquisa PIBIC, da disciplina
especial do mestrado e da construção dos nossos Trabalhos de Conclusão de Curso, e nesse
processo gradativamente compreendíamos que diferente de outras experiências formativas
que tivemos na academia e na educação escolar, a compreensão da multirreferencialidade não
precisava acontecer no tempo cronológico, exato, e mais do que isso, tínhamos o direito do
não saber.
Quando compreendemos a importância do não saber, abrimo-nos para uma
aprendizagem significativa que se distancia de uma formação superficial na qual, todos
precisam saber ao mesmo tempo. Essa tendência cartesiana tão comum em nosso cotidiano
escolar não faz sentido algum, pois se considerarmos as singularidades dos sujeitos
compreendemos que ninguém aprende ao mesmo tempo; ninguém precisa e nem sabe tudo; a
memorização de conceitos não nos leva a lugar nenhum; e a construção de sentido é um
processo subjetivo de cada indivíduo. Sendo assim, por que temos sempre que saber? Qual o
1675

sentido de darmos sempre as respostas e descartar os questionamentos? Que formação é essa


que padroniza saberes?
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Ao longo das aulas na disciplina passamos a compreender as noções da
multirreferencialidade e como consequência de nosso amadurecimento, embora ainda
limitado, foi inevitável não questionar nossa formação enquanto profissionais, mas
especialmente enquanto sujeitos, tendo em vista que a formação não deve se separar da vida.
Esta deve considerar o sujeito em sua inteireza: com aprendizagens, dilemas, desejos,
frustrações. Sobre essa formação que se embasa no Ser humano, (MACEDO, 2010) a define
enquanto:

[...] um fenômeno que se configura numa experiência profunda e ampliada


do Ser humano, que aprende interativamente, de forma significativa, imerso
numa cultura, numa sociedade, através das suas diversas e intencionadas
mediações (p. 21).

Nesse sentido, compreendendo a formação em sua completude foi que pouco a pouco,
a cada novo encontro coletivo, a cada texto discutido, a cada diálogo tecido na relação todos e
todos, ressignificamos nosso modo de enxergar a formação e consequentemente, como a
multirreferencialidade é prática, nossa postura foi sendo modificada.
Como estávamos em processo de formação inicial, a todo instante relacionávamos as
noções discutidas em nossas experiências as aulas da graduação, a escrita da monografia, e até
mesmo as ações de nossos professores, e passamos também, felizmente, a nos percebemos
nesse emaranhado de sentidos e construções. Quanto a essa percepção de si, Sérgio Borba
afirma que somente mediante uma formação em profundidade podemos exercitar esse “olhar-
se e olhar o outro enquanto sujeitos” (BORBA, 2013, p. 26).
A percepção de nós mesmas a partir da reflexão de nossa historicidade, de nossas
aprendizagens na vida, e até mesmo dos nossos momentos de desautorização no processo
vivido/sentido em formação foi crucial para mudarmos o nosso olhar e assumirmos uma nova
postura na formação: o que antes era naturalizado passa a ser questionado por nós; o natural
passou a incomodar e consequentemente passamos a ressignificar as aulas, os estágios
vivenciados, os momentos vividos/sentidos no dentrofora da universidade enquanto alunos,
mas especialmente sujeitos. Vale ressaltar que esse processo de percepção mais apurada do
vivenciado não é linear e, portanto, acontece sempre na perspectiva do devir, um vir a ser,
1676

uma busca incessante.


Neste sentido para o alcance da educação almejada por nós, que nega a ciência
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moderna e suas perspectivas de fragmentação e objetivação das coisas, torna-se importante

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uma ruptura epistemológica que só pode acontecer a partir do momento em que nos
percebemos e nos incluímos com nossa inteireza, tensões, conflitos, implicação, saberes e não
saberes nesse processo formativo, e não insistirmos em “olharmos de fora” (MACEDO,
BARBOSA e BORBA, 2012).
Assim, a partir da percepção de nós mesmas nesse processo complexo, subjetivo e
singular que se trata dessa construção de sentidos, notamos que a formação para a vida está
acontecendo, ou seja, ao contrário do que nos ensinaram a vida toda de “estudar para o
futuro”, o nosso futuro está sendo construído a todo instante vividosentido na formação, e para
isso, o tempo presente precisa ser valorizado, haja vista que por consequência dessa exagerada
valorização do futuro, costumamos “[...] não focarmos com a devida sensibilidade as nuances,
os ingredientes, a vida que ocorre no aqui e agora” (ibid, 2012, p. 70). Dessa maneira,
acreditamos que o diferencial da epistemologia multirreferencial no que tange a nossa
formação inicial, volta-se para essa necessidade de nos formarmos gente para atuarmos na
vida em nossa pluralidade singular e inteireza, e não em apenas numa instância dela.

Considerações finais

Somos sujeitos inconclusos e vivemos em constate processo de aprendizado e


mudanças proporcionadas pelas práticas vividas em nosso cotidiano. A itinerancia que
relatamos nesta construção se apresenta como um momento relevante e significativo em nossa
formação inicial enquanto futuros profissionais da educação, mas especialmente enquanto
sujeitos. Neste sentido, compreendemos que as leituras sobre a noção multirreferencial foram
imprescindíveis por nos permitir uma reeducação do olhar de nossas práticas cotidianas.
A partir dos encontros coletivos na disciplina vivenciada no Mestrado somado aos
nossos escritos e reflexões tecidas no Diário de Pesquisa, tivemos a oportunidade de
aprofundar nossos estudos com base na epistemologia multirreferencial, e mais do que isso,
praticarmos o exercício de olhar a nós mesmos enquanto sujeitos inconclusos e heterogêneos,
percebendo que nossa inteireza, antes desconsiderada e/ou negada, é de suma importância
para o nosso estar sendo. Assim, tantos os saberes quantos os não saberes; as alegrias e
1677

angústias; as “certezas” e inseguranças, tudo contribuiu e contribui na busca de um vir a ser,


de uma formação para/na vida.
Com isso, ousamos com este trabalho socializar o quanto nossa vivência na disciplina
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contribuiu para nosso amadurecimento formativo mediante nosso tempo vivido/sentido junto

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aos demais alunos. Não sabemos mensurar (se é que isso é possível) os frutos de cada
discussão, aula, encontro, pois sabemos que o processo de aprendizagem e maturidade
acontece num tempo singular para cada sujeito. Consequentemente, compreendemos que
muitos aprendizados construídos e fomentados nessas vivências serão suscitados durante um
tempo que não temos como prever.

Referências

BARBOSA, Joaquim Gonçalves. Multirreferencialidade nas ciências e na educação. São


Carlos: Editora da UFSCar, 1998.

BARBOSA, Joaquim Gonçalves; HESS, Remi. O diário de pesquisa: o estudante


universitário e o seu processo formativo. Brasília: Liber livro, 2010.

BORBA, Sergio da Costa. Complexidade e Multirreferencialidade na educação e na


formação docente. Maceió: EDUFAL, 2013.

MACEDO, Roberto Sidnei; BARBOSA, Joaquim Gonçalves; BORBA, Sérgio. Jacques


Ardoino e a Educação. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012.

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ISAÍAS CAMINHA: AS RECORDAÇÕES SOCIAIS DE UMA EDUCAÇÃO


SEGREGADORA NO BRASIL DO SÉCULO XX

Thâmara Soares de Moura (UERN)


Felícia Pinheiro Gomes (UERN)
Isac Noel Fernandes Suassuna (UERN)
Luciana Fernandes Nery (UERN)

Introdução

O Brasil do século XX, assim como o mundo, foi palco de inúmeras revoluções no
campo sociopolítico, científico, educacional e literário. Apesar do advento da República e
todos os ares democráticos que pairavam sobre o país, alguns princípios do “Brasil Imperial”
permaneciam fortes: as oligarquias políticas, apadrinhamentos em cargos públicos, a
valorização do bacharelismo, educação elitizada e tantos outros. A literatura, prenunciando os
primeiros raios modernistas, se tornou a principal arma denunciadora das enfermidades que
assolavam o meio social (LOPES, 2006).
Os representantes, conscientes de seu poderio ideológico na intervenção social,
debruçavam críticas ferrenhas às organizações sociais. Foi nesse contexto de transformações
que Lima Barreto se inseriu, sendo considerado por muitos críticos um dos maiores
precursores dos ideais modernos por seu caráter objetivo, realista e ácido em suas obras
(BOSI, 2015).
Assim, Recordações do Escrivão Isaías Caminha (BARRETO, 1909), não
diferentemente das demais obras, caracteriza-se por abordar de forma crítica e assistemática
as mazelas que assolavam a sociedade, ironizando a elite e todo o seu trabalho de segregação
social, visando a permanência hegemônica. Mediante esse pressuposto de exclusão e poder,
este trabalho justifica-se sob o prisma de que os elementos externos (sociais) exercem fortes
influências na construção da trama, refletindo claramente as ideologias escolares do século
passado.
Para tanto, utilizou-se como corpus central o romance de Lima Barreto citado
1679

anteriormente, tendo por objetivo investigar e analisar, sob a perspectiva da Análise do


Discurso francesa, os interdiscursos que constituem o caráter segregador e elitista nas práticas
educativas no Brasil do século XX. Propõe-se, assim, relacionar fragmentos-chave que
Página

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constroem todo o conflito principal a aspectos e ideologias sociais criticados pelo autor,
fazendo, posteriormente, um paralelo à Educação contemporânea.
Isto posto, três segmentos de leitura serão tomados no decorrer deste trabalho: 1) A
Análise do Discurso nas construções socioideológicas; 2) O engajamento educacional
brasileiro nos século XX e XXI; 3) A materialização da segregação social através da
Educação, embasando-se em autores como Bosi (2015), Lopes (2006), Fernandes (2005) e
Libâneo, Oliveira e Torchi (2012).
A partir das análises, constatou-se que as ideologias sociais do Brasil do século XX, de
modo geral, refletem diretamente na construção da trama em questão, principalmente no que
concerne ao caráter segregacionista da Educação do período, visando a manutenção das elites.
Partindo deste prisma segregador, e, fazendo um paralelo entre os dois períodos, percebeu-se
que as práticas educacionais do século XXI, apesar de ter sofrido diversas transformações
para moldar-se à era tecnológica e capitalista, ainda guarda, em sua essência, ideologias
segregacionistas, uma vez que exige formações rápidas e constantes de profissionais hábeis,
flexíveis e competitivos para o mercado de trabalho, mas não garantem formação de
qualidade e acesso igualitário à todos.

1 A Análise do Discurso nas construções socioideológicas

A análise do discurso é uma vertente da linguística que debruça seus estudos sob as
constituições discursivas presentes nas práticas sociais, levando em consideração as
influências que os agentes históricos, linguísticos e ideológicos exercem na construção dos
discursos e, consequentemente, dos sujeitos discursivos. Desta forma, a AD focaliza suas
análises em três áreas básicas: linguística, história e ideologia, perpassando pela psicologia
sob a teoria do sujeito e da “materialidade de uma certa memória social” (PÊCHEUX, 1999a
apud FERNANDES, 2005, p. 42).
Desta forma, pode-se conceituar o discurso como um elemento externo, mas
materializado através da língua e formado por um conjunto de ideologias (FERNANDES,
2005). “Os enunciados apreendidos em dada materialidade linguística explicitam que o
1680

discurso constitui-se da dispersão de acontecimentos e discursos outros, historicamente


marcados, que se transformam e modificam-se” (IBIDEM, 2005), porém, suas sigficatividade
é única e heterogênea em dado período e espaço social. Por isso, conforme Foucault, “todo
Página

discurso é marcado por enunciados que o antecedem e o sucedem, integrantes de outros

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discursos” (1995 apud FERNANDES, 2005, p. 37), permitindo, assim, constantes
transformações dos cenários históricossociais. Vale destacar, ainda, que, consoante com
Fernandes (2005, p.44), a linguagem pode ser construída sob atividades políticas de poder em
consequência à formação ideológica dos discursos, construindo relações inclusivas ou
exclusivas que refletem diretamente no âmbito societário, e vice-versa.
Pode-se, então, aproximar estas concepções à literatura, uma vez que esta também
materializa, através da escrita, as manifestações discursivas e, consequentemente, configura-
se como uma importante fonte de identificação dos acontecimentos sociohistóricos. Os textos
literários tratam-se, portanto, de enunciados que dialogam com outros textos discursivos
historicamente marcados (FERNANDES, 2005), abrindo, então, leques para se “trabalhar a
memória de um povo” (POSSENTI, 2001 apud FERNANDES, 2005, p.77). Desta forma:

Considerando o momento da enunciação e o texto produzido – enunciado,


materialidade linguística sob nossos olhos – os sujeitos autor e leitor(es) e o
sujeito discursivo encontram-se em momentos sócio-históricos bastante
diferentes, e os sentidos produzidos pela leitura decorrem da inscrição desses
sujeitos nesses diferentes momentos que dialogam (FERNANDES, 2005,
p.74).

Partindo desta necessidade de contextualizar o(s) leitor(es) mediante as condições de


produção da leitura em questão, o próximo tópico tratará dos acontecimentos educacionais no
século XX para um melhor entendimento sociohistórico ao qual o romance de Lima Barreto
se insere.

2 O engajamento educacional brasileiro nos século XX e XXI

No início do século XX o mundo passava por mudanças explosivas no âmbito social,


político, econômico, filosófico e, consequentemente, literário. A Revolução Industrial
modificava as relações comerciais. A Inglaterra, até então potência mundial, foi substituída
pelos EUA. O clima espiritual de paz, progresso e intelectualidade parisiense da Belle Époque
irradiava por todos os países, sendo finalizada apenas com a Primeira Guerra Mundial. O
Brasil, não obstante desta realidade, também passou por este período com características
1681

próprias.
Percebe-se, portanto, que ares democráticos e de progresso pairavam sobre o país: a
Página

passagem do Império para a República, as campanhas para erradicação de epidemias, o voto

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feminino. Foi nesse contexto de transformações que o pensamento, antes voltado ao “eu” das
profundezas psicológicas, voltam-se para as lástimas da realidade brasileira, dando voz de
representação às camadas menos favorecidas – período conhecido como instigador ao que
alguns anos mais tarde seria conhecido por Modernismo. Este período não é considerado uma
“escola literária”, mas as produções já prenunciam as rupturas de antigos ideais, como, por
exemplo, da linguagem acadêmica, e da preocupação política e social, denunciados através da
literatura. As obras que antecederam eram pouco inovadoras, inertes, sem características
próprias. Coube a alguns autores como Lima Barreto, Graça Aranha, Euclides da Cunha,
Alberto Torres, Monteiro Lobato, Oliveira Viana e Manoel Bonfim dar o pontapé inicial às
denúncias sociais, que mais tarde viriam a ser conhecidas como modernistas após a Semana
de Arte Moderna (BOSI, 2015).
A República Velha, apesar de possuir uma rica legislação educacional em torno do
ensino primário, continuou descentralizando o ensino primário após a Primeira Constituição
da República, em 1891, tornando-o precário nas diversas regiões do Brasil. Conforme esta
Constituição, o Governo mantinha um ensino primário, conhecido também como “escola de
primeiras letras” nos mesmos moldes do Império; e o secundário, em que a União tinha a
responsabilidade de manter o Colégio Pedro II e o Estado, tinha o dever apenas de manter
uma escola modelo em cada distrito, exigindo taxas, selos e contribuições. Deste modo, o
ensino era todo privatizado, controlando a entrada dos menos favorecidos. Mas é importante
ressaltar que a principal consequência à Republica foi o aumento do quadro burocrático,
constituindo-se este uma espécie de “salva-vidas” pra a permanência da hegemonia das elites,
uma vez que foram ameaçadas após o processo de transição Império/República. Em resposta,
o Governo tratou de restringir a alfabetização e o acesso através do controle do ensino
secundário, uma vez que estabelecia regulamentos de entrada e encarecia o acesso ao nível
superior. O sistema educacional, ao invés de ser um órgão includente, passa a ser, deste modo,
mais uma barreira para ingresso, culminando a sua elitização (LOPES, 2006).
As mudanças no âmbito educacional começaram a ocorrer apenas entre as décadas de
20 a 30, tendo em vista que até então o pensamento educacional eram feitos a partir (e apenas)
de reflexões sócio-políticas desenvolvidos por publicistas e literatos. “O debate entre
1682

intelectuais, de diferentes filiações teóricas, num período fértil em reformas educacionais, foi
intenso e o seu resultado aparece tanto na incipiente produção científica da época, quanto na
imprensa e na literatura” (LOPES, 2006, p. 1). Assim, Lima Barreto, como os anteriores
Página

autores pré-modernistas citados, concebia a literatura como um meio de manifestação e

ISBN: 978-85-7621-221-8
modificação, retratando crítica e assistematicamente a realidade política e social. Por este
motivo é fácil identificar a sua posição ideológica a partir de análises reflexivas na construção
de suas obras, e, neste foco em especial, sobre a educação escolar do período, ocupando-se ao
nível superior. A partir de sua visão positivista, definia as faculdades como difusoras da
“cultura desinteressada”, uma vez que ensino era uma fachada e objetivava apenas o poder, o
prestígio e a ocupação de cargos públicos (IBIDEM, 2006).
A partir da passagem do século XX para o XXI, com os crescentes avanços científicos
e tecnológicos propiciados pelos ideais capitalistas e da globalização, bem como a
consequente facilidade de informação e formação, a Educação enfrentou uma nova
reestruturação nas suas práticas, voltando-se à qualificação profissional e o professor/escola,
por sua vez, perdem cada vez mais o caráter “monopolizador do conhecimento” que perdurou
por muitos anos. As práticas escolares, desta forma, tendo que adaptar-se aos novos tempos e
exigências do mercado de trabalho, moldou-se à “produção” de conhecimentos e de
indivíduos competitivos, tendo, portanto, que formar um profissional digital, ágil e sem
resistência ao novo (LIBÂNEO; OLIVEIRA; TOSCHI, 2012).
A partir desse pressuposto, pode-se, então, retomar o olhar de Barreto, sempre à frente
de seu tempo, uma vez que defendia o desenvolvimento cientifico e a difusão da técnica ao
invés da cultura do bacharelismo, da reprodução generalizada e vaga dos “doutores”, bem
como a valorização da erudição, verbalização e desenvolvimento humanista (LOPES, 2006).
Desta forma, fundamentando-se nas postulações teóricas dos autores citados anteriormente,
será analisado no tópico a seguir o caráter segregador e elitista da Educação brasileira no
início do século XX presente no romance de Lima Barreto, Recordações do Escrivão Isaías
Caminha (1909).

3 A materialização da segregação social através da Educação

Publicada em 1909, Recordações do Escrivão Isaías Caminha revela em suas linhas


uma visão do autor acerca do momento em que vivia, retratando uma espécie de alter ego por
possuir muitos traços biográficos, uma vez que o próprio faz através do personagem principal
1683

uma caricatura de seus princípios em detrimento ao meio social. Por este motivo, caracteriza-
se como um romance crítico, tendo como tema central as desigualdades e hipocrisia dos
valores sociais brasileiros (BOSI, 2015).
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Isaías era um jovem mulato, nascido no interior e filho de um ex-padre de muito
conhecimento e uma jovem senhora humilde. Para realizar o sonho de tornar-se “doutor”,
desembarcou aos 18 anos no Rio de Janeiro almejando uma recomendação de emprego do
Deputado Castro, mas este recusou-lhe ajuda. Ao longo de sua estadia no Rio, vivenciou
várias situações de preconceito. Mesmo com tanta aptidão intelectual, percebeu que nunca
conseguiria o tão sonhado título, uma vez que apenas os mais ricos e influentes poderiam ter
acesso à educação. Conseguiu por intermédio do seu amigo jornalista Gregoróvitch apenas
uma emprego de contínuo no jornal O Globo, recém inaugurado na cidade. Lá, acomodou-se
e desistiu dos seus ideais joviais. Entregou-se a ambição e a vida boêmia. Após
premeditadamente conquistar a confiança e admiração do seu chefe Loberant, dono do O
Globo, foi promovido a repórter. Certo dia, refletindo sobre sua trajetória, retoma os seus
antigos sonhos e preceitos e compara-os a sua vida atual, amargurando-se. Concluiu que
deixar a redação era o melhor a se fazer. Voltou a sua terra natal para casar-se, perdendo os
dois filhos fruto deste casamento. Resolve, então, registrar as suas memórias produzindo um
livro, recebendo o mesmo título da referida obra.
Numa análise mais minuciosa, pode-se constatar o tom crítico de Lima Barreto no
decorrer da trama. Tratou nesta, em particular, as várias faces do preconceito culturalmente
enraizado de forma peculiar e estritamente ligada ao seu lado pessoal, sendo, até certo ponto,
considerado uma espécie de autobiografia, em que o próprio personagem reflete os seus
princípios, distanciando-se de seus traços apenas por que em determinado momento da
narrativa influencia-se pelo meio. Aborda nestas linhas tanto o preconceito racial,
socioeconômico, a elitização da escola, bem como a figura da mulher enquanto um objeto
secundário, as hipocrisias da vida religiosa, o jogo político e suas corrupções, o poder
influenciador dos publicitários e literatos na organização social, entre tantos outros (BOSI,
2015), materializando, através da literatura, a suas próprias ideologias em contraponto aos
discursos ideológicos latentes na memória social e difundidos ao longo do tempo
(FERNANDES, 2005). Mas, mediante a vastidão de pontos críticos abordados por Lima em
sua obra, será aqui afunilado nesta abordagem o prisma educacional, uma vez que este é o
elemento-chave gerador do conflito de toda a trama.
1684

Ao longo da leitura, prenuncia-se que Isaías, apesar de capaz em termos intelectuais e


obter boas notas no ensino secundário, por força maior do meio, não ascenderia socialmente
através dos estudos, uma vez que a própria sociedade detinha valores elitistas e segracionais, e
Página

esta era quem moldaria o seu próprio destino. Isaías detinha todas as características que a elite

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brasileira repudiava: “de cor”, família humilde e sem influências; o fato que agravaria mais a
sua imagem era o possível escândalo de que seu pai, tendo abdicado a vida eclesiástica, e,
apesar de muito amoroso, escondia a paternidade em público. Crescendo num ambiente
valorizador da educação, Isaías, com certo fascínio, toma a consciência de que através da
educação poderia alçar voos mais altos e, assim, chegar a posição social que almejava. Essa
espécie de encantamento pode ser ilustrado a partir de um trecho em que o personagem
descreve seu meio familiar e principalmente a admiração por seu pai, figura que aguçou sua
vontade de aprender:

O espetáculo do saber de meu pai, realçado pela ignorância de minha mãe e


de outros parentes dela, surgiu aos meus olhos de criança, como um
deslumbramento. Pareceu-me então que aquela sua faculdade de explicar
tudo, aquele seu desembaraço de linguagem, a sua capacidade de ler línguas
diversas e compreendê-las constituíam, não só uma razão de ser de
felicidade, de abundância e riqueza, mas também um título para o superior
respeito dos homens e para a superior consideração de toda a gente
(BARRETO, 1995, p. 1).

O pai, com sua inteligência e mania de explicar tudo, capaz de ler várias línguas e
compreendê-las, mostrava-lhe indiretamente não só a ideia de felicidade, mas também de
abundância e riqueza que somente a educação poderia propiciar, e isto se configuraria através
de um título de respeito e superioridade entre os homens e toda a sociedade: o de “doutor”.
No período da República Velha, mais precisamente na Primeira Constituição, a de 1891, só
tinham direito de frequentar as unidades escolares os filhos de ricos e poderosos,
principalmente no que concerne ao ensino secundário e superior, uma vez que eram cobradas
altas taxas; As mulheres, por sua vez, esquecidas em um segundo plano, não detinham esse
direito, principalmente quando se tratava de ascender socialmente e conquistar sua
independência (LOPES, 2006). Este ideário social é ilustrado de forma bem sucinta no
decorrer do enredo. A exemplo disso, pode-se citar a mãe de Isaías, espelhando a imagem
feminina na sociedade: uma mulher quieta, que vivia a sombra do marido e para o lar, sem
instrução escolar alguma; o seu pai, em contrapartida, representando a figura masculina,
ilustra perfeitamente o ideário da elite brasileira: sabedoria, inteligência, autoridade e
1685

domínio.
Essa dualidade formada em consequência às imagens da mãe e do pai, numa visão
mais ampla, materializa o preconceito para com as classes, consideradas pela elite, mais
Página

“ignorantes”, ressaltando mais uma vez que o conhecimento “superior” era a principal forma

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de poder e de impor essa estratificação social. Isaías, enquanto filho metafórico desta
sociedade, materializa-se como o produto das influências ideológicas do país, ou seja, seria
ele o representante da população brasileira cujos sonhos utópicos baseavam-se em fazer parte,
um dia, da elite, retomando as relações de poder que os discursos ideológicos operam na
sociedade (FENANDES, 2005). Estes pensamentos de censo comum, de prestígio e anulação
do preconceito quanto a cor da pele e principalmente quanto a condição social, pode ser
fundamentado também no trecho em que este decide ir para o Rio de Janeiro com intenção de
trabalhar por condições melhores e lutar pelo título de doutor através do estudo:

Ah! Seria doutor! Resgataria o pecado original do meu nascimento humilde,


amaciaria o suplício premente, cruciante e onímodo de minha cor... Nas
dobras do pergaminho da carta, traria presa a consideração de toda a gente.
Seguro do respeito à minha majestade de homem, andaria com ela mais
firme pela vida em fora. Não titubearia, não hesitaria, livremente poderia
falar, dizer bem alto os pensamentos que se estorciam no meu cérebro
(BARRETO, 1995, p. 6).

Dessa forma, Isaías pensava que se tornando doutor adquiriria prestígio e consideração
e não sofreria mais preconceito quanto a cor da sua pele e condição social. Também teria mais
oportunidade de falar o que pensa sem temer a nada. Naquela época, ser “doutor” não
significaria que o indivíduo possuía o grau acadêmico de doutorado, mas, sim, todos que
possuíssem um grau de escolaridade mais alto, fazendo parte da elite (LOPES, 2006). Essa
idealização era repudiada por Lima Barreto, como podemos perceber a partir deste fragmento
em uma de suas obras, Bagatelas (1956):

Essa birra do ‘doutor’ não é só minha, mas poucos têm a coragem de


manifestá-la. Ninguém se anima a dizer que êles não têm direito a tais
prerrogativas e isenções, porque a maioria dêles é de ignorantes. [...] São
quase sempre, além de medíocres intelectualmente, ignorantes como um
bororó de tudo o que fingiram estudar. Aquilo que os antigos chamavam
humanidades, em geral, êles ignoram completamente. Não são falhas, que
todos têm na sua instrução; são abismos hiantes que a dêles apresenta.
(BARRETO apud LOPES, 2006, p. 10).

Em outras palavras, muitos “doutores”, em termos de conhecimentos adquiridos, não


1686

faziam jus ao grau de escolaridade que ostentavam, ou seja, eram ainda assim “ignorantes”,
mas ganhavam renome por terem condições para comprarem tal título. O autor, neste
Página

fragmento, materializa criticamente no personagem principal todas as ilusões e privilégios

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consequentes ao título de doutor, quando refere-se aos privilégios tanto sociais quanto
econômicos que este lhe daria. Se tornando doutor teria privilégios e respeito. Seria da elite.
Num trecho em que Isaías, em certo momento da sua vida, compara os seus sonhos
utópicos a seu triste fim é nítida a reflexão de Lima Barreto acerca da educação como
semeadora da cultura da inutilidade (LOPES, 2006): “mentalmente comparei os meus
extraordinários inícios nos mistérios das letras e das ciências e os prognósticos dos meus
professores de então, com este meu triste e bastardo fim de escrivão de coletoria de uma
localidade esquecida” (BARRETO, 1995, p. 41). O ensino secundário, em tese, idealizou-se
com a intenção de preparar o aluno para as etapas posteriores, ou seja, era a porta de entrada
para o ensino superior, e, por esse modo, segundo Lima Barreto, ocorriam as corrupções e
falsificações visando a entrada nas Universidades (IBIDEM, 2006). Criticava avidamente a
forma de tratamento dessa etapa de ensino, uma vez que encontra-se aqui as dificuldades de
acesso mediante as inúmeras exigências, criticando até em uma passagem de sua obra Vida
Urbana (1956): “todos eles são instituições fechadas, requisitando para a matrícula de alunos
nos mesmos, exigências tais, que, se fôsse no tempo de Luís XV, Napoleão não se teria feito
na Escola Real de Brienne” (BARRETO apud LOPES, 2006, p. 3). Essa restrição já
configurava-se a primeira barreira para que a população de menor poder aquisitivo não tivesse
ingresso. O ensino primário, o único que permitia o livre acesso, visava, portanto, a formação
de eleitores. O personagem principal foi vítima desta espécie de “contenção educacional”.
Nestas linhas, sente-se o desgosto de Isaías mediante a influência direta do meio social sobre
seu destino, e que, mesmo tendo se destacado intelectualmente nos estudos e prestígio de seus
professores, nunca pôde chegar muito longe através deste caminho. Por não ser de uma
família influente e não possuir “contatos” da elite (os famosos apadrinhamentos) estagnou
seus sonhos iniciais. Se conseguiu algumas conquistas na vida, foi através de modos
desonestos.
Outro ponto abordado pelo autor, segundo Lopes (2006), é a precariedade de formação
dos professores e o ensino ocorrer sem direcionamento, tornando as escolas ambientes inúteis.
Lima Barreto defende que os ambientes escolares deveriam tratar de assuntos diretamente
ligados ao contexto social, à realidade dos alunos, formando, assim, cidadãos/profissionais
1687

capazes e críticos, assim como proposto nas teorias educativos atuais, consoante com
Libâneo, Oliveira e Torchi (2012). Em contrapartida, o que ocorria era um ensino altamente
desleixado, preocupado apenas com a ministração de conteúdos sem conexão com o contexto
Página

de progresso técnico-científico e social que ocorria no país (LOPES, 2006). Isso se refletia

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com mais força no contexto universitário: “[...] Cercam-me dois ou três bacharéis idiotas e um
médico mezinheiro, repletos de orgulho de suas cartas que sabe Deus como tiraram.
Claudicam na ortografia” (BARRETO, 1995, p. 39). Desta forma, destaca a inutilidade das
universidades, uma vez que, espelhando todo o ideário educacional desde os anos iniciais,
perpetuava o ensino vago.
Considerando, portanto, o ensino superior um dos piores, o próprio Lima Barreto
afirmou numa de suas crônicas, Freiras e Mafuás (1956), que:

O nosso ensino superior, com as suas escolas e faculdades, não é mais


destinado a formar técnicos de certas e determinadas profissões de que a
sociedade tem ‘precisão’. Os seus estabelecimentos são verdadeiras oficinas
de enobrecimento, para dar títulos, pergaminhos, – como o povo chama os
seus diplomas, o que lhes vai a calhar – aos bem nascidos ou pela fortuna ou
pela posição dos pais. Armados com as tais cartas, os jovens doutôres podem
se encher de várias prosápias e afastar concorrentes mais capazes
(BARRETO apud LOPES, 2006, p. 6).

Mediante a crescente necessidade burocrática, as universidades ganharam um papel de


maior destaque. No entanto, o que era para profissionalizar, qualificar, tornou-se mais uma
barreira para que a elite, que podia bancar todos os altos custos cobrados pelo Governo,
garantissem os títulos de “doutores” a seus descendentes e perpetuassem essa espécie de
elitização hereditária. Retomando o fragmento, o autor materializa em cada amigo do
personagem as características que tanto criticava, satirizando claramente a má formação e a
corrupção que ocorriam no meio acadêmico. Essa profissionalização, ocorrendo de forma
vaga e desinteressada, oportunizou o estabelecimento do carreirismo, ou seja, empregos
públicos eram disponibilizados a partir de apadrinhamentos, muitas vezes por questões
políticas (LOPES, 2006).
Tendo o capitalismo, a ciência e as inovações tecnológicas assumindo um papel muito
mais destacados na sociedade a partir do final do século XX e início do XXI, os centros
educacionais, bem como as práticas escolares tiveram que se reestruturar para suprir as
exigências constantes de profissionais qualificados, ágeis e concorrentes para o mercado de
trabalho – tendo em vista que o (LIBÂNEO; OLIVEIRA; TORCHI, 2012) –, porém, as
1688

escolas as públicas, que garantem o acesso à educação de forma “democrática”, não dispõe
ainda de um ensino de qualidade se comparado às particulares (principalmente nas séries
fundamentais e médio), que possibilite a concorrência equitativa para o ingresso nas
Página

universidades e, consequentemente, no mercado de trabalho.

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Considerações finais

O romance Recordações do Escrivão Isaías Caminha, de Lima Barreto, traz em suas


linhas o caráter segregador e elitista da Educação brasileira a partir da instalação da República
sob a perspectiva ideológica do autor, tendo em vista que as influências dos agentes sociais na
construção da trama é acentuada. A investigação de tais aspectos dentro da obra conseguiu se
concretizar a partir de várias passagens do próprio enredo, considerando os autores e
estudiosos escolhidos para dar embasamento à análise.
Desta forma, comprovou-se que as escolas eram, de fato, centros dificultadores do
acesso ao ensino. A educação no Brasil do século XIX configurou-se numa espécie de
barreira de contenção, uma vez que servia apenas para a manutenção ostentação dos títulos
sociais das elites, confirmando, portanto, que todo o conflito se dá em consequência ao
contexto educacional do período. Dividindo a sociedade entre “doutores” na camada superior
e “eleitores” na inferior, os mais poderosos mantinham sua “dinastia”. Por este motivo,
Barreto criticou ferrenhamente o modelo de ensino descontextualizado, sem interação com as
mudanças do contexto social, com a função básica de reproduzir a cultura da inutilidade, e
defendendo, portanto, o ensino voltado para a realidade (técnico) que fosse muito além do
status social.
Apesar das inúmeras transformações ocorridas no campo educacional no século XXI
relacionadas a teorias, metodologias e democratização do acesso, e, fazendo um paralelo à
Educação vigente no período de produção do romance em questão, o ensino ainda conserva,
em sua essência, ideologias de segregação. Apesar de instituir políticas democráticas que
visam a inclusão, contraditoriamente, ainda não oportunizam aos indivíduos com menor poder
aquisitivo uma educação de qualidade se equiparada ao rigor e estrutura das escolas privadas.
As consequências transparecem no baixo nível de concorrência dos candidatos provenientes
de instituições públicas tanto em vestibulares, concursos e/ou demais situações sociais.
Mediante o exposto, torna-se evidente que o Lima Barreto, estando à frente do seu
tempo, teceu em suas obras análises de caráter sociológico, contribuindo, assim, para futuras
reflexões não só no meio educacional, mas também para as questões sociais como um todo.
1689

Fazendo este paralelo temporal, suas críticas são bastante aplicáveis ao contexto social
brasileiro, ainda hoje. Por este motivo, esta estudo não deve findar-se apenas neste prisma de
análise, tendo em vista a riqueza de possibilidades que a obra oferece.
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Referências

BARRETO, Lima. Recordações do Escrivão Isaías Caminha. São Paulo: Ática, 1995.122p.

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 2015.

FERNANDES, Cleudemar Alves. Análise do discurso: reflexões introdutórias. Goiânia:


Trilhas urbanas, 2005.

LIBÂNEO, José Carlos; OLIVEIRA, João Ferreira de; TOSCHI, Mirza Seabra. Educação
escolar: políticas, estrutura e organização. São Paulo: Cortez, 2012.

LOPES, Silvana Fernandes. A educação escolar na Primeira República: a perspectiva de


Lima Barreto. Disponível em:
<http://www.histedbr.fe.unicamp.br/navegando/artigos_pdf/Silvana_Lopes_artigo.pdf>.
Acesso em: 25 jul.2017.

1690
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ISBN: 978-85-7621-221-8
PÔSTER

DORA DOS CAPITÃES DA AREIA, A DORA DO BRASIL

Wellerson Batista de Lima (UERN)278


Larissa Cristina Viana Lopes (UERN/UFRN)279

Introdução

Este artigo objetiva fazer uma análise da personagem Dora na obra Capitães da
Areia, de Jorge Amado, assim como evidenciar sua importância de figura transformadora
dentro do enredo e sua relação com o grupo de meninos abandonados que formam a gangue
cujo nome denomina a obra aqui estudada. Intentamos, pois, explorar os acontecimentos que
se sucedem e que moldam a personagem, trazendo, por conseguinte, nossa visão acerca de sua
personalidade.
Com vistas ao estilo de Jorge Amado, que se volta aos marginais através dos quais
tenta pintar um retrato do povo brasileiro cheio de garra, traçaremos o perfil da personagem
mencionada considerando os artifícios utilizados pelo autor para compor Dora dentro de um
romance protagonizado por ladrões.
Nossa discussão se inicia com a perspectiva das formulações teórico/analíticas de
Belline (2008), Bosi (1994) e Castello (2009) a respeito da obra do escritor Jorge Amado,
elucidando suas relações com questões sociais locais e nacionais. Estas discussões constituem
a primeira parte deste artigo, respectivamente; na segunda parte, faremos um estudo da
personagem Dora, a fim de entendemos como sua figura é desenhada ao longo da narrativa e
de que maneira exerceu e/ou sofreu influência na convivência com os ladrões conhecidos
como os capitães da areia.

Jorge Amado entre histórias e personagens de um Brasil colorido

A figura de Jorge Amado está intrinsicamente ligada a sua literatura, aos seus
personagens, a maneira como via seu país e, principalmente, como o retratava em suas
1691

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Graduando em Letras/Português e bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência –
PIBID, no Campus Avançado de Patu – CAP, na Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN.
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Doutoranda em Literatura Comparada pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem – PPGEL
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– na Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN; professora do Departamento de Letras do Campus
Avançado de Patu – CAP, na Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN.

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produções. Castello (2009) diz que não há nenhum escritor com a imagem mais ligada ao
Brasil quanto este, que sempre visa o lado autêntico da cultura do povo brasileiro, os aspectos
extrovertido e feliz deste.
O escritor baiano representa o país com suas dificuldades e seus problemas: “A cada
lançamento, não é só a literatura de Jorge Amado que se dissemina — é uma imagem do
Brasil que ela carrega e difunde” (CASTELLO, 2009, p. 18). Trata-se de uma obra a qual
construiu uma imagem do Brasil com sua miscigenação de raças e culturas, marcado pela luta
e vontade de vencer de um povo.
A ideia de Jorge Amado, desde o início de sua produção, é apreender, captar as
identidades e culturas brasileiras em suas particularidades. Para isso, recorre ainda às raízes
populares, à realidade e aos tipos sociais cuja popularidade constitui cenas também típicas.
Daí seus personagens serem emblemas de condições, valores e desejos de uma classe, sendo
estes os fatores que ordenam as identidades dos personagens de psicologia simples, contudo
reveladora da nação (ALBUQUERQUE JÙNIOR, 2011).
Jorge Amado compôs uma imagem do brasileiro carregada de otimismo, porquanto,
apesar de tantas mazelas, constitui, de contínuo, a figuração de um povo capaz de sorrir.
Depois deste escritor é impossível pensar no Brasil sem a sensualidade e a fibra de sua gente,
um país com negros e brancos, ricos e pobres, cheio de cores e de culturas, tornando-se a obra
amadiana uma espécie de quadro colorido e vivo que seus habitantes ajudaram a pintar ao
longo da história do país. A vasta obra espalhou esse quadro difundindo tal imagem ao redor
do mundo através dos seus romances e personagens marcantes.
Bosi (1994) nos traz a concepção de um romancista voltado para os marginais, os
pescadores e as pessoas simples de sua terra, enxergando-os com certo afeto e destacando a
coragem de suas atitudes, quase sempre imprevisíveis. Desta maneira, demostra um claro
interesse nesses exemplos de atitudes, que sempre encontrou com mais intensidade nas
pessoas marginalizadas pela sociedade.
Para o crítico, o sucesso de Amado com o público se deve ao fato de que delineava
uma literatura facilmente comunicável, dando ao leitor “Tipos ‘folclóricos’ em vez de
pessoas, descuidado formal a pretexto de oralidade...” (1994, p. 406), falando sobre sua terra,
1692

desde o proletariado baiano em Cacau (1933) e Suor (1934), até uma narrativa mais lírica e
sentimental envolta de rixas e amores marinheiros em Mar Morto (1936), Jubiabá (1935), e
Capitães da Areia (1937).
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Pensando no caráter temático de sua obra, é importante que observemos o autor não
só pela perspectiva geral de sua escrita, mas a construção e relevância das personagens
inseridas nos romances. Por isso, é fundamental que passeemos um pouco em sua produção
romanesca para que compreendamos, de modo abrangente, como tais traços se desenham por
entre enredos e personagens.
O país do Carnaval (1931) marca o início da produção do escritor numa abordagem
da identidade brasileira em sua face carnavalizada (ALBUQUERQUE JÙNIOR, 2011)
através da história de Paulo Rigger, filho de fazendeiro e educado na França, chegando à
Bahia com a majestosa prostituta Julie, não sabendo que ela o trairia em terras baianas.
De um modo geral, este romance aponta para uma classe que, embora jovem, não
tem perspectivas e anda em desassossego à procura de uma nova direção para a vida
descoberta como supérflua.
Belline (2008) enfatiza sobre a importância da mulher logo nos primeiros romances
do escritor, exemplificando a personagem Lívia de Mar Morto (1936), que, sob a ótica de
Guma, um mestre saveiro, ganha contornos de deusa, pela maneira como sua beleza é
descrita, comparando-a com o mar, sendo, para Belline (2008), característica do autor baiano
demostrar simpatia por suas personagens através do modo de narrar.
Em 1937, publica o livro Capitães da areia. “O romance reafirma as qualidades que
Jorge Amado atribui aos filhos de nosso país — coragem, capacidade de extrair força da
adversidade, imaginação vigorosa” (CASTELLO 2009, p. 14). Características estas presentes
em seus romances e nas personalidades de seus personagens, sinônimos de luta e
perseverança.
Assim são os capitães da areia, meninos órfãos, abandonados ou fugitivos da própria
família, que se uniram em um trapiche, vivendo a marginalização social e cometendo furtos
como a principal atividade que move um grupo de ladrões mirins, por entre os quais chega
Dora, a aspirante à “Rosa Palmeirão”. Neste contexto, a totalidade urbana de Salvador é pano
de fundo para delinear identidades brasileiras diante da vida dos “largados” à própria sorte.
Características da sua obra estão intrinsicamente ligadas ao modo de como trata suas
personagens, do ambiente onde estão inseridas e em quais situações se deparam na narrativa.
1693

Seja como Ester em Terras do sem-fim (1943), casada com o homem mais poderoso da região
do cacau, vendo-se aprisionada naquele ambiente isolado da fazenda; ou como uma de suas
mais famosas personagens, Gabriela, de Gabriela, cravo e canela (1958), que alimenta ânsia
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de liberdade e age conforme sua vontade.

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São vistos em Ester a sua inadequação ao ambiente e seu inconformismo unido ao
desejo de liberdade, o que torna a situação angustiante. Já com Gabriela temos uma
personagem que toma a rédea de sua situação, tendo em vista que, mesmo encantando vários
homens poderosos, não se submete ao casamento em troca do prazer com seu amante, Nacib.
Ocorre, para Belline (2008), uma valorização do sentimento em detrimento do interesse
material, outro fator recorrente nestas e em outras obras.
Ainda elencando sobre o processo de criação do autor, temos em Tieta do Agreste
(1977) uma personagem que, depois de muitos anos após ter sido expulsa pelo pai, regressa a
sua cidade como uma mulher generosa e rica, a qual acaba conquistando a simpatia das
pessoas que antes a ojerizavam: “Tieta opõe-se ao ambiente: quando jovem, seu
comportamento livre escandalizara a cidade; agora, envolvendo-se no cotidiano local, ela se
desilude” (BELLINE 2008, p. 35). A Tieta jovem e livre escandalizava a cidade de Santana
do Agreste, todavia, quando ressurge escondendo sua verdadeira face, a de dona de bordel, é
bem recebida por todos, pois se utiliza de uma aparência bem vista pela sociedade fingida.
Em Dona Flor e seus dois maridos (1966), a protagonista se vê diante dos dois
amores opostos até encontrar o equilíbrio de conviver e usufruir do marido vivo e do marido
morto, porquanto, mesmo tentando resistir a este desejo, atende-o, deixando de lado os
exames de consciência. Quando a professora de culinária “cede” ao seu bel-prazer, alcança o
comedimento representado pelos últimos e famosos acontecimentos da narrativa: Flor
andando na rua entre os dois maridos, sendo que o falecido somente ela conseguia ver.
Uma mulher consumando dois amores em plena Bahia da primeira metade do século
XX rompe e/ou aniquila valores convencionais sociais direcionados às jovens senhoras
educadas para a pureza hipócrita constituidora de máscaras. Assim foram Gariela, Tieta, Flor
e tantas mais figuras femininas criadas coloridamente por Jorge Amado.
Desta forma, o escritor baiano sempre se aproximou, em sua literatura, de certos
tipos de personagens que são menosprezadas, denegridas, vulgarizadas, que viviam à margem
da sociedade. Eis um escritor que produzia ficção sobre putas e malandros e trouxe à tona o
abandono dos desfavorecidos, oferecendo-nos o virtuosismo e heterogeneidade de suas vidas.
Escreveu sobre um país com sua gente colorida.
1694

É diante deste apanhado ideológico de estilos e temáticas amadianas que este


trabalho passa a analisar Dora dos Capitães da areia. Interessamo-nos por traçar seu perfil,
compreender o desenho da personagem no enredo construído, evidenciar características do
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autor na construção dela, bem como características da identidade brasileira apontadas pelo
baiano na perspectiva geral de suas obras, comentadas anteriormente.

Dora também é um(a) capitã(o) da areia

O romance Capitães da areia (1937), de Jorge Amado, é ambientado na cidade de


Salvador, na Bahia, tendo como foco a vida de meninos abandonados que vivem em um
trapiche e cometem furtos não só para a sobrevivência do grupo, mas para satisfazerem seus
pequenos desejos de posse. Entretanto, os “oficiais” cidadãos soteropolitanos não sabem que
se trata de um grupo organizado cujo princípio é a justiça entre os irmãos e amigos que são.
A trama é protagonizada por Pedro Bala, líder do grupo, e seus companheiros,
Professor, Gato, Sem Pernas, Volta-Seca, Pirulito, Boa-vida, entre outros, com personalidades
distintas, mas que lutam pelo mesmo interesse: o bem do grupo. O que é perceptível já de
início é a grande união dos meninos que, juntos, continuem-se companheiros e família, tendo
como lar a cidade da Bahia.
Além dos capitães da areia, outras personagens também chamam bastante atenção,
como a figura central a que este artigo se propõe estudar, a personagem Dora. Logo no início,
o narrador nos mostra toda sua beleza e seu ar de maturidade através de sua descrição física e
dos cuidados com a mãe: “Mas Dora tinha treze para quatorze anos, os seios já haviam
começado a surgir sob o vestido, parecia uma mulherzinha, muito séria, a buscar remédio para
a mãe, a tratar dela” (AMADO, 1982, p.143), características que mais tarde chamariam a
atenção dos capitães da areia.
Depois que toda a cidade sofre com uma epidemia de varíola, Dora perde o pai e a
mãe por causa da doença e se torna mais uma órfã na cidade junto com seu irmão, Zé Fuinha.
Ambos estão perdidos e sem amparo: “Corriam lágrimas pelo seu rosto, mas enquanto o
caixão descia ela pensava era em Zé Fuinha, que pedia o que comer” (AMADO, 1982, p.144).
Ela já sabia que a partir daquele momento teria de cuidar e alimentar seu irmão. A Dora
adolescente cresceria de um dia para o outro, de filha para mãe, de irmã para cuidadora.
Dora pensa no irmão e em toda a dificuldade que os espera, sua preocupação está
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voltada para tentar encontrar alguma maneira de conseguir alimento, o que mostra sua
capacidade de reação, sua força e confirma sua maturidade. No entanto, o novo cotidiano a
castiga com a fome e a falta de esperança: “Dora tinha vontade de chorar, de se deixar cair na
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rua, sob o sol, e não fazer movimentos. Uma saudade dos pais a invadiu. Mas reagiu contra
tudo e continuou”. (AMADO, 1982, p. 147).
Vão-se aparecendo os sinais de coragem da personagem que, apesar de todos os
problemas pessoais e sociais enfrentados, não se permite abater ou desanimar, pois carrega
uma marca de sua luta, a de reagir e continuar, como o forte e insistente brasileiro. Por dentro,
o desejo era de se entregar à situação de desamparo, por fora, uma reação contra isso.
Nas andanças pelas ruas da cidade com seu irmão, Dora encontra algumas crianças
em situação equivalente a sua, eram João Grande e Professor, dos capitães da areia, que logo
pensaram numa solução para a nova órfã:

– A gente leva ela pro trapiche...


– Uma menina... O que é que Bala vai dizer?
– Tá chorando – disse o magrelo em voz muito baixa (AMADO, 1982, p.
149).

Os meninos tiveram compaixão dela e a convidaram para ir com eles ao trapiche,


explicitando a humanidade dos ladrões e o reconhecimento da necessidade dos irmãos.
Contudo, a boa vontade dos dois capitães não seria suficiente para controlar a chegada de uma
menina ao bando.
A chegada ao trapiche foi receosa pela reação dos outros membros do grupo, os
mesmos que derrubavam as mulatas no areal e possuíam seus corpos:

Boa-vida estava diante deles. Sem-pernas vinha coxeando, e os outros logo


atrás, os olhos estirados para Dora. Boa-vida falou:
– Quem é essa lasca?
Professor se adiantou:
– Tava com fome. Ela e o irmão. A bexiga matou o pai e mãe...
Boa-vida deu um riso largo. Empinou o corpo:
– É um peixão...
Sem-pernas riu seu riso burlão, apontou os outros:
– Tá tudo como urubu em cima da carniça...
Dora se chegou para junto de Zé Fuinha, que acordara e tremia de medo.
Uma voz disse entre os meninos:
– Professor, tu tá pensando que a comida é só pra tu e pra João Grande?
Deixa pra nós também...
Outro Gritou:
– Já tou com o ferro em brasa... (AMADO, 1982, p. 150).
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“Comida”. Foi essa a primeira impressão e expressão dos meninos ao verem Dora
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como um objeto sexual para satisfazer seus desejos. Como ficaram tentados pela visão de seu

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corpo, queriam possuí-la a todo custo. João Grande e Professor saíram em defesa de Dora, o
que causou uma confusão no grupo, até que o líder Pedro Bala chega e, a princípio, não vê
problema no ato do grupo. Porém, João Grande continua defendendo Dora: “Eu sempre tive
contigo, Bala. Sou teu amigo, mas ela é uma menina, fui eu e Professor que trouxe ela...”
(AMADO, 1982, p. 152).
Dora, nesta passagem, é causadora de tumulto e também de sentimentos vários entre
os garotos, da compaixão ao desejo sexual. João Grande e Professor se viam na situação dela,
a de uma criança órfã, sem um lar e sem perspectivas, na situação de abandono que os
próprios capitães viviam, trazendo à consciência de Pedro Bala a condição de Dora. Esta,
muito além de mulher, de “peixão” e de “comida”, era como um deles.
Vemos aí a humanidade confirmada na personalidade de dois dos capitães.
Humanidade esta despertada pela personagem Dora, que eles conheceram sendo conduzida
pelo instinto de sobrevivência e responsabilidade sobre o irmão mais novo.
O argumento consciente de João Grande e o Professor acabam por mudar a imagem
de Dora diante de Pedro Bala, o qual cede e garante que ninguém a tocará, evidenciando uma
mudança de comportamento através do reconhecimento de instinto e luta por sobrevivência, a
grande semelhança que aproxima Dora dos meninos.
Ela, como uma menina-mulher, responsável já pelo irmão, surpreende os meninos ao
cuidar dos feridos após a confusão:

Ela saiu do seu canto, arrancou um pedaço da fralda, começou a curar a


ferida do Professor. Depois marchou para onde estava Boa-vida (que se
encolheu todo), molhou a ferida do malandro, botou um pano em cima. Todo
o temor, todo o cansaço tinham desaparecido. Porque confiava em Pedro
Bala (AMADO, 1982, p. 153).

Dora, aquela menina tomada pelo temor, reagiu com carinho e zelo ao mal que
sofreu, cuidando dos garotos que tentaram abusá-la, o que confirma sua capacidade de reação
já mencionada anteriormente. O medo foi abolido também porque logo reconheceu a
constituição de Bala como liderança em virtude da obediência dos demais.
O olhar de todos diante dela começa a se modificar por causa de sua ação cuidadosa,
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porque receberam um cuidado que era raro na vida de malandros. Pela primeira vez, seus
corações, tomados pela indiferença à sociedade excludente, são contemplados pelo afeto e
gestos de compaixão, concretizados na figura de uma também abandonada, contudo, com o
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diferencial de ser mulher e já experienciar um pouco da maternidade ao ficar só no mundo
com Zé Fuinha.
Todos passam a procurá-la, desta vez, para receber seus cuidados, encantados pela
forma com que os trata e a atenção que lhes dá. Já não é mais a menina com a qual queriam
satisfazer desejos sexuais, como faziam com as mulatas no areal. Ela, com o tempo,
distinguiu-se das outras mulatas por se tornar o símbolo do aconchego e da cautela. Dora
agora os tratava como filhos, eles a tratavam como mãe:

Os cabelos loiros dela tocam no ombro de Gato. Mas ele não tem outro
desejo senão que ela continue sendo a ser sua mãezinha. Sua felicidade
naquele momento é quase absurda. É como se não houvesse existido toda a
sua vida depois da morte da sua mãe. É como se tivesse se conservado uma
criança igual a todas. Por que nessa noite sua mãe voltou (AMADO, 1982, p.
155-156).

Na vida de Gato, por exemplo, Dora faz diferença a ponto de levá-lo a sentimentos
esquecidos e a volta à infância, tão cedo abortada. Foi dentro desta perspectiva de
comportamento que a personagem passou a ser vista, abordada e quista pela nova família.
Todos eles passaram a ver em Dora a chance de ter essa experiência, de se sentirem
amados: “Você é a mãezinha da gente, agora...” (AMADO, 1982, p.156). As palavras de Gato
resumem o sentimento de todos, pois ela se tornou mãe de quase todos: “Eles todos
gargalhavam junto com Dora, e a olhavam como amor. Como crianças olham a mãe amada”
(AMADO, 1982, p. 157), tendo em vista que a alegria que sentiam era imensa, já que naquele
momento todo o abandono e a dor da vida desprezada estavam anestesiados. Dora, sua mãe,
estava com eles. Ela trouxe o carinho materno e aboliu a solidão familiar, assim como Bala
lhe tirou o temor de viver entre eles.
Dora em si era uma presença mágica entre os capitães da areia, seu cuidado e sua
maneira de interação para com os outros chamaram atenção dos meninos, mas também sua
forma de reagir contra as adversidades, evidenciando a capacidade de demostrar força e não
desâmino. Essas ações ganham significado para os meninos ao passo que a veem como uma
figura admirável.
Volta-Seca reconhece essa força ao compará-la com sua mãe, uma sertaneja forte e
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valente: “Tu também é valente... Sabe? Minha mãe era um mulherão destas grandes... Não era
mais menina também, podia ser sua avó... Mas tu parece com ela...” (AMADO, 1982, p. 157).
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O personagem encontra em Dora não só uma mãe, mas sim sua própria mãe, o “mulherão”
destemido, e, por isso, pronto para encarar dificuldades.
Este olhar e este sentimento estão também no Professor: “Professor apertou os olhos
e viu também, em lugar de Dora, uma sertaneja forte, defendendo seu pedaço de terra contra
os coronéis... E o sorriso era o mesmo sorriso de orgulho de mãe para filho” (AMADO, 1982,
p.158).
Ao passo que os meninos reconheciam a figura materna em Dora, ela também os
reconhecia como filhos, como pessoas que precisavam do seu zelo, do seu afago, da sua
presença modificadora no ambiente hostil do trapiche. E mais que isso, ela era altiva quanto
ao caráter, ações e perspectiva de grupo dos seus “filhinhos”, elucidando uma relação de
reciprocidade entre as óticas das personagens (ela vista como mãe por eles, eles vistos como
filhos por ela).
Eleita a mãe que os entendia, Dora se fez um “lugar” onde procuravam e
encontravam o afeto que as ruas e a vida de órfãos lhes obscureciam, um colo feminino em
que eram acolhidos como filhos e não como ameaças. Entretanto, a configuração de mãe não
atingia de todo a Pedro Bala, para quem ela era mais que isso:

– Tu devia ir embora... – respondeu Bala.


Ela não disse nada, mas ficou triste. Professor então falou.
– Não, Bala. É como uma mãe... Como uma mãe, sim. Pra todos...
Repetia:
– É como uma mãe... Como uma mãe...
Pedro Bala olhou os dois. Suspendeu o boné, sentou na areia.
Mas Dora o olhava com carinho. Para ele era tudo: esposa, irmã e mãe.
(AMADO, 1982, p. 160).

Dora conquistou sua permanência no grupo através de suas ações, na sua chegada era
uma tentação aos olhos dos meninos e sua estadia no trapiche seria sinônimo de desastre.
Entretanto, ela se transforma na mãe dos meninos, tornando-se respeitada e amada por todos.
Não foi somente assim que tudo funcionou nos pensamentos de Pedro Bala, que a via
principalmente também como esposa, ou seja, Dora preenchia as lacunas – esposa, irmã, mãe
–, enchia o trapiche, a vida dos jovens ladrões e, mais ainda, a do líder.
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Além disso, ela pretende ser um dos capitães da areia. Trajando-se como um, ela
surge na frente de Pedro Bala usando roupas de meninos e sugere sua participação nas ações
do grupo, surpreendendo a todos:
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– Tu quer dizer...
Ela o olhava calma, esperando que ele concluísse a frase.
–... que vai andar com a gente pela rua, batendo coisas...
– Isso mesmo – sua voz estava cheia de resolução
– Tu endoidou...
– Não sei por quê.
– Tu não tá vendo que tu não pode? Que isso não é coisa pra menina. Isso é
coisa pra homem.
– Como se vocês fosse tudo uns homão. É tudo uns menino.
Pedro Bala procurou o que responder:
– Mas a gente veste calça, não é saia...
– Eu também – e mostra as calças. (AMADO, 1982, p. 162).

A altivez da personagem salta aos olhos na firmeza de suas decisões mesmo que
estas se chocassem com o pensamento do grupo. Decisões que antes se constituíam perante a
consciência da responsabilidade de estar desamparada e diante do irmão mais novo. Esta
consciência agora entende que ela não apenas o console ou conforte na figura de mãe, mas
que é parte integrante e igual de um grupo justo, dentro do qual não queria ser inerte. Apesar
da preocupação, todos a admiravam por suas atitudes, por vencer o medo e demostrar
coragem.
Como uma personagem de múltiplas facetas – mãe, irmã, esposa – Dora modificava
os capitães da areia, por causa de seus muitos atributos. Uma mãe para alguns, justamente
pelos seus cuidados e atenção, uma mulher para Pedro Bala, em quem despertava outro
atributo, o de noiva:

Para os menores é como uma mãezinha, igual a uma mãezinha. Cuida deles.
Para os mais velhos é como uma irmã que diz palavras boas e brinca
inocentemente com eles e com eles passa os perigos da vida aventurosa que
levam. Mas nenhum sabe que para Pedro Bala é a noiva. (AMADO, 1982, p.
166).

Igual a uma noiva, exatamente igual a uma noiva, pensava Pedro Bala.
(AMADO, 1982, p. 167).

Dora difundia nos meninos múltiplas visões, despertando muitos sentimentos, com
uma singularidade presente, obtida em situações particulares, tratando-os com afago,
demostrando capacidade de alento e audácia, acordando admiração nos capitães. O sentimento
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de companheirismo cresce em direções diferentes do sentido materno, pois, como noiva, com
Bala ela andaria lado a lado, o que a confirma como um(a) capitã(o) da areia.
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Suas características de valentia e intrepidez fugiam do que convencionalmente se
atribuía às meninas e isto o grupo reconhecia facilmente: “Ainda demoraram muito
conversando, comentando. Falavam na coragem de Dora, que brigava igual a um menino,
‘igual a um homem’, dizia João Grande” (AMADO, 1982, p. 167).
Um fato importante para a compreensão do significado dessas faces que a
personagem assume diante dos meninos é a prisão de Pedro Bala e o envio de Dora a um
orfanato. Depois que Bala consegue a fuga do reformatório, o Professor, com ajuda dos
demais, elabora um plano para resgatá-la, e ela volta ao trapiche doente, com uma febre muito
alta:

Os capitães da areia olham mãezinha Dora, a irmãzinha Dora, Dora noiva,


Professor vê Dora sua amada. Os capitães da areia olham em silêncio. A
mãe-de-santo Don’Aninha reza oração forte, para a febre, que consome
Dora, desaparecer.
Os capitães da areia olham em silêncio sua mãe, irmã e noiva. Mal a
recuperam, a febre a derrubou (AMADO, 1982, p. 188).

Em silêncio apreensivo eles a olhavam, com uma preocupação estampada no rosto,


temiam que Dora partisse. A doença da mãezinha, da irmãzinha símbolo de amor e bravura,
de aconchego e cuidado, representava uma verdadeira ameaça. Tudo que fora construído com
a nova família estava a ponto de esfacelar e o mundo que Dora trouxera ao sujo trapiche
estava contornado de toda esperança que tinham os capitães na cura da menina.
Neste momento, os sentimentos de filhos e de amores escondidos, como o do
Professor, misturam-se diante da preocupação causada pela ameaça de perda do bem mais
precioso que os capitães “adquiriram” sem roubar: o “menino” Dora, o capitão Dora, a
mãezinha, irmãzinha, noiva, esposa.
Onde estava a menina que corria como um deles, mostrando força, afeto e coragem?
“Mas os capitães da areia temem que isso aconteça. Então ficariam novamente sem mãe, sem
irmã, sem noiva” (AMADO, 1982, p. 189). Observavam temerosos o “elemento” que unia a
todos eles ser consumido pela febre e a possível volta da lacuna no coração e no trapiche dos
capitães da areia.
Dora pede para que eles fiquem juntos. Pedro toma sua noiva para si, agora ela é
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consumadamente sua esposa, mulher do líder e a mãe de todos os capitães da areia. De sua
morte decorre a maior perda dos ladrões.
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Na madrugada, Pedro põe a mão na testa de Dora. Fria. Não tem mais pulso,
o coração não bate mais. O seu grito atravessa o trapiche, desperta os
meninos. João Grande a olha de olhos abertos. Diz a Pedro Bala:
– Tu não devia ter feito...
– Foi ela que quis – explica e sai para não arrebentar de soluços.
Professor se chega, fica olhando. Não tem coragem de tocar no corpo dela.
Mas sente que para ele a vida do trapiche acabou, não lhe resta mais nada
que fazer ali. Pirulito entra com o Padre José Pedro. O padre pega no pulso
de Dora, bota a mão na testa:
– Está morta. (AMADO, 1982, p.190).

Dora os deixa para se tornar uma estrela no céu da Bahia, a menina que corria entre
eles como um verdadeiro capitão da areia, vestindo calças, mostrando que podia ser como
eles, que “Lutava como um homem” na sua beleza de múltiplas faces, muito além do físico de
jovem mulher.
Ela representava algo mais do que ser um deles, curou aqueles corações marcados
pelo abandono, consolidou a tríade de mãe, irmã e esposa através de seu jeito peculiar
transformador. Valentia e audácia constituem a personalidade de uma adolescente que cedo se
fez mulher, que de menina se fez madura, que de desamparada se fez protetora.
Dora aprendeu com os capitães da areia que a cidade não era sua inimiga, mesmo
sem ninguém para cuidar daquelas crianças que se tornaram homens pela vida, como ela se
tornou mulher pelas circunstâncias. Eles tornaram a cidade sua aliada e a amavam como
amam a liberdade. Ela aprendeu isso com seus filhos e o medo acabou por se esvair perante a
resistência e a coragem que fizeram dela o(a) capitã(o) da areia de maior poder transformador
dentro do romance.

Conclusão

Em face da discussão sobre a obra de Jorge Amado e sua relação com o Brasil
refletida em sua literatura (CASTELLO, 2009), assim como elementos característicos na sua
obra (BOSI, 1994; ALBUQUERUQE JÚNIOR, 2011) e suas diversas personagens que
elucidavam os pensamentos do autor a respeito da sociedade brasileira (BELLINE, 2008),
teceremos algumas considerações sobre a personagem Dora, cuja análise foi o foco deste
1702

artigo.
A obra Capitães da areia alude ao ideal de coragem e força de menores abandonados
Página

e repelidos dos direitos sociais. Neste contexto, órfã e sem perspectivas, a Dora sem

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esperanças, perdida na imensa cidade que a desprezava na sua condição, depara-se com os
ladrões mirins. Dois fatores, a partir disto, precisam ser considerados: 1) ela encontra refúgio
em um trapiche com crianças de situação equivalente a sua; 2) ela se faz/constitui refúgio para
eles, por meio do qual se torna uma Dora de múltiplas facetas, com seu afeto maternal na
conquista de meninos que veem nela uma figura terna, desconhecida por eles até então. Desta
maneira, é como se ela representasse um “lugar” onde os ladrões localizavam o oposto do
desprezo das ruas.
Para os capitães da areia, Dora foi uma figura amável e transformadora, que
conseguia minimizar a dor da vida sem esperança. Ela é o exemplo, dentre muitas
personagens de Jorge Amado, que reagia ao ambiente opressor com fibra e perseverança. A
Dora de Jorge Amado é também a Dora do Brasil.

Referências

ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz. A invenção do Nordeste e outras artes. São


Paulo: Cortez, 2011.

AMADO, Jorge. Capitães da areia. Rio de Janeiro: Record, 1982.

______. Cacau. Rio de Janeiro: Record, 2000.

______. Dona Flor e seus dois maridos. Rio de Janeiro: Record, 1982.

______. Mar Morto. Círculo do Livro: São Paulo, 1987.

______. Jubiabá. Rio de Janeiro: ed. Record,1982.

______. No país do carnaval. Rio de Janeiro: Record, 1982.

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1704
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PÔSTER

ANALISE LITERÁRIA DO CONTO “TIGRELA” DE LYGIA FAGUNDES TELLES

Zita Holanda de Paiva (UERN)


Girlene Costa (UERN)
Janiele Suyane de Lima (UERN)

Considerações iniciais

Na atual conjuntura de ordem social que estamos inseridos, nos deparamos com uma
forte economia capitalista, que para conseguir seus objetivos (Lucro) segrega e aliena as
pessoas, os tornando cada vez menos humanos. É nesse mundo de metamorfose, em que o
ritmo dos processos vitais é ditado pela correria demasiada, que surge a estratificação social,
separando as pessoas por níveis e/ou classes.
A pós-modernidade surgiu com o intuito de trazer para a sociedade mudanças que
propusessem melhoria de vida entre os cidadãos de modo financeiro até melhoria de
conhecimento constatado em livros literários, exemplo assim, veremos nos escritos da autora
Lygia Fagundes Telles, onde a pós-modernidade está visível a cada palavra utilizada pela
autora, a fantasia, o novo na sociedade, a busca pela magia e o imaginário ganham sempre
destaque em suas escrituras, modelo disso é o folclore defendido definitivamente pela autora
que foi umas das maiores e mais importante representante do movimento pós-modernista.
Assim as pessoas assumem direto ou indiretamente, e na maioria das vezes sem ter
opções, suas identidades. Identidades estas que lhe são atribuídas, empurradas por uma
sociedade egoísta e preconceituosa, que mediante as relações de alteridade, que é uma das
características principais da sociedade moderna, constituem as características principais do
atual aparato social.

O tipo de incerteza, de obscuros medos e premonições em relação ao futuro


que assombram os homens e mulheres no ambiente fluído e em perpétua
transformação em que as regras do jogo mudam no meio da partida sem
qualquer aviso ou padrão legível, não une os sofredores: antes os divide e os
separa (BAUMAN, 2003, p. 48).
1705

É nesta ótica de transformações e influências a que a vida das pessoas estão sujeitas,
tendo sempre um foco maior para os a questão de identidade, alteridade e diferença, que
Página

analisaremos o conto “Tigrela” da escritora Lygia Fagundes Telles.

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Esse trabalho tem como objetivo apresentar uma análise literária do conto “Tigrela” da
escritora Lygia Fagundes Telles, onde vem tratar a respeito da ficção e da ambiguidade, que
nos leva a perceber o quanto a sociedade está dividida em questões de valores.
O trabalho apresenta inicialmente com a Introdução, composta por um breve relato de
como se deu a pós-modernidade em questão relacionada a escritora Lygia Fagundes Telles,
tendo uma grande importância dentro dessa temática bastante criticada pelas mudanças
ocorridas na época, em seguida temos um embasamento teórico principal fonte onde é
possível constatar os teóricos que nos foram fonte de informação, ou seja, uma porta de
conhecimento para o desenvolvimento desse trabalho acerca do assunto ora abordado, e por
último faz a análise do conto, no qual será possível relatar detalhadamente a nossa visão em
relação ao conto, ou seja, material a ser analisado e por fim temos uma breve e
importantíssima conclusão, onde é solicitado todo o engajamento do corpus aqui pautado.

Aporte teórico

Nas palavras de Raul Castagnino, o conto não se refere só a um acontecimento, não


tem obrigações com a realidade; no conto o real e ficção não têm limites precisos, “Um relato,
copia-se, um conto, inventa-se” (CASTAGNINO apud GOTLIB, 2004, p.12), pois em um
relato carece expor o real, algo que aconteceu na realidade, enquanto o conto não há
importância de averiguar se é verdade ou falsidade, já que nele a realidade e ficção misturam-
se, porque o que existe não é o real, e sim uma ficção (na maioria das vezes). É a arte de
inventar, um modo de se proporcionar algo em uma realidade fantasiosa é a presença de uma
ficção que já existe há um grau de proximidade ou afastamento do real.
Segundo Bosi (1975, p.7) “[…] o conto cumpre a seu modo o destino da ficção
contemporânea, posto entre as exigências da narração realista, os apelos da fantasia e as
seduções do jogo verbal, ele tem assumido formas de surpreendente variedade”. Ou seja, o
conto é um texto, um gênero em prosa, uma narrativa curta, tendo um poder de provocar um
efeito individual no leitor, influenciando a ler o que foi dito e o que não dito, provocando
certo estímulo e emoção. O conto gera articulações, não só por simular episódios humanos,
1706

mas por ser resumido e breve. Diante da redução com as palavras é que deixa transparecer a
agilidade que esse tipo de gênero é submetido, tendo uma complexidade com algo que não foi
dito. A partir dessa pressuposição, o conto é um gênero visto como uma narrativa que simula
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a atualidade, principalmente por seu livre-arbítrio de expressão e uma comunicação eficácia,
pois é esse tipo de gênero que vem desafiando tanto o leitor, quanto o escritor.
Silva (1998) diz que em alguns contos de Lygia Fagundes Telles podemos perceber
uma característica forte de temporalidade e atemporalidade que a literatura aborda:

[...] a ficção de Lygia Fagundes Telles insere-se no domínio do mítico, e


percebemos em suas narrativas os anseios, as frustrações, os temores e as
esperanças que assaltam a mente do homem, tudo expresso pela tessitura
enigmática da linguagem simbólica. O paraíso e a queda, a morte e a
ressurreição, todas as grandes antíteses e contradições da alma humana
tomam forma nas tramas criadas pela ficcionista. Sua obra apresenta
homogeneidade, seu mundo em seus contornos. Repetem-se personagens,
situações, cenários e gestos (SILVA apud CADERNOS. 1998, p. 116).

A ficção é um dos temas que fazem parte do dia-a-dia do homem moderno com uma
pitada de mistério nas obras da escritra, tendo como os contos por ser tomados como o centro
da temática dentro de toda a produção da escritora, Nestes, outro tema recorrente é o da
metamorfose, tratado em Lygia Fagundes Telles no estudo de Vera Maria Tietzmann Silva
(1985). E no conto a ser analisado é plausível identificar o comparecimento dessas temáticas.
A autora assegura que:

O tema da metamorfose apresenta-se aos olhos do leitor como um dado que


suscita estranhamento, certo mal-estar. Destituído da possibilidade de
antecipar os acontecimentos, à medida que prossegue na leitura, o leitor, face
ao insólito da metamorfose, sente-se transportado à outra dimensão do real,
onde tudo é possível. O verdadeiro cede lugar ao verossímil e a ficção é
aceita pelo que ela é (SILVA, 1985, p. 21).

Diante das discussões de ambiguidade nos contos de Lygia Fagundes Telles, é


possível considerar a ficção (chamada de Literatura Fantástica) como uma das características
mais importantes presente nesse gênero literário. Segundo Tzvetan Todorov (2008), a
perplexidade fantástica e a ambiguidade que a narrativa provocada no leitor pode permanecer
até o fim da obra.
Pois, o fantástico tem proximidade com mais dois gêneros literário: sendo o estranho e
o maravilhoso. Segundo Tzvetan Todorov, o gênero estranho provoca no leitor um efeito
1707

parecido com o fantástico; um acontecimento inexplicável, inquietate que pode ser ilustrado
pela razão. No entanto, o gênero estranho está relacionado com um acontecimento, mas
Página

principalmente com a discrição das reações dos personagens que coloca a razão em dúvida. Já

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no gênero maravilhoso os acontecimentos estão relacionados com o sobrenatural, que não
causa espanto nem nos personagens, nem nos leitores. “o maravilhoso [...] se caracterizará
pela existência exclusiva de fatos sobrenaturais, sem implicar a reação que provoquem nas
personagens” (TODOROV, 2008, p. 53).

Análise dos dados

A escritora Lygia Fagundes Talles apresenta o conto Tigrela, extraído do livro “Mistério
dos Ratos” (1981) na forma de uma narrativa testemunha, onde o narrador presencia e
participa ativamente do que estar sendo narrado. O conto explora dois gêneros literários, o
fantástico e o feminino, existindo uma forte dominância do primeiro. O fantástico estar
relacionado ao que estar incerto, subjetivo, surreal. “O fantástico é a hesitação experimentada
por um ser que só conhece as leis naturais, em face de um acontecimento aparentemente
sobrenatural” (TODOROV, 2010, p. 31).
É dentro desse ambiente imaginário e incerto que a narradora conhece Romana, que
junto com um tigre asiática, constituem os protagonistas principais desta narrativa.

Encontrei Romana por acaso, estava bêbada [...]. Duas vezes apertou minha
mão, eu preciso de você, disse. Mas logo em seguida já não precisava mais,
e esse medo virava indiferença, quase desprezo [...]. Contou-me que se
separou do quinto marido e vivia com um pequeno tigre num apartamento de
cobertura (TELLES, 1981, p. 93).

Em Tigrela tudo é muito confuso, começando pelo próprio nome concedido ao conto.
Aparentemente Telles usou os termos “tigres” e “ela” para dar pitada feminista na estória,
além de identificar a personagem do tigre que mora com Romana, e aos poucos, devido o
contexto que ela foi crescendo (em um apartamento humano) foi se humanizando,
desenvolvendo características e sentimentos que são típicos de pessoas.
“[...] gostava de uísque e só comia legumes, ervas frescas e leite com mel [...]. Tigrela
gostava de joias e de bach, sim bach, insistia sempre nas mesmas músicas, particularmente A
Paixão segundo São Mateus” (TELLES, 1981, p. 94).
1708

É difícil encontrarmos uma identidade para os personagens, uma vez que dispomos de
uma situação ambígua e confusa em que Romana relata para a narradora que mora com
Página

Tigrela, um animal com traços humanos. Um fato muito difícil de acontecer, se


considerarmos a cultura das pessoas que moram na cidade, principalmente dentro de um
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apartamento. Temos bem evidente é uma falta de identidade das personagens. Se por um lado
já citamos que o tigre possui traços de um humano, TELLES deixa claro também em algumas
partes do conto que a própria Romana busca equipara-se as qualidades de um felino, se
animalizando.

“Colheu com a ponta dos dedos uma lâmina de gelo que derretia no fundo do
copo. Trincou-a nos dentes e o som me fez lembrar de que antigamente
costumava morder sorvetes” (TELLES, 1981, p. 93-94).

Uma leitura atenta proporciona ainda formarmos uma concepção enfática de uma figura
feminina muito infeliz. Não conseguiu sucesso em seus relacionamentos conjugais, sofre com
a falta de um amor verdadeiro, que nas maiorias das vezes foi ofuscado pelo ciúme exagerado,
isto leva Romana a procurar viver em um mundo restrito, abstendo-se de atos normais da
sociedade, o que nos leva a entender que em certos pontos ela é uma pessoa depressiva.

“E os vizinhos? Perguntei. Romana endureceu o dedo que mexia o gelo. Não


tinha vizinho, um apartamento por andar num edifício altíssimo, todo
branco, estilo mediterrâneo, Você precisa ver como Tigrela combina com o
apartamento” (TELLES, 1981, p. 93).

Não é apenas de hoje que a identidade de um ser é vista como um fator de divisão
social. A sociedade, principalmente a capitalista, inclui e exclui pessoas em camadas e classes
há muito tempo, não dando a elas geralmente a opção de seguir e escolher suas próprias
identidades, ela mesma atribui identidades as pessoas. E essa classificação é geralmente
baseada nas relações de alteridade a que estão sujeitas as pessoas na convivência social.
Em Tigrela existe uma presença forte da questão da alteridade, onde vivenciamos uma
constante e intensa mudança de hábitos e comportamentos de seus personagens principais em
que ora um humano assume e desenvolve características animais, ora um animal adota
características típicas de humanos. E são essas fortes relações de alteridade que impactam e
acarretam nas diretamente na vida de Romana, fazendo com que ela seja uma mulher de vida
conturbada e confusa.
Julga-se importante ressaltar ainda que a vida confusa e melancólica de Romana
1709

contrasta com sua vida social. Analisando os elementos espaciais do conto, notamos que ela
possui certa estabilidade financeira, já que são relatados ambientes e peças de luxo na
Página

conjuntura do conto.

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“E Romana sorriu quando lembrou do bicho dando cambalhadas, rolando
pelos móveis até pular no lustre e ficar lá se balançando (...). Depois ficou
deprimida e na depressão se exalta, quase arrasou com o jardim, rasgou meu
chambre, quebrou as coisas” (TELLES, 1981, p. 93).

Assim, diante dessa situação, temos que Romana mesmo estando inserida em um
contexto que lhe proporcionou uma condição econômica e financeira satisfatória, o que em
suma, lhe proporcionaria uma vida estável, de conforto e tranquila, acaba influenciando-se
pelos dogmas impostos pela sociedade, fato que exerce forte influência na vida da
personagem, os levando a ter uma vida totalmente conturbada e confusa.
Por fim, TELLES termina seu conto, assim como o iniciou, de forma bastante confusa,
deixando brechas para mais de uma interpretação para o desfecho do enredo. Nessa parte
Romana relata que a relação com Tigrela estar muito desgastada, e que o animal estar com um
comportamento muito estranho, violento, devido ela estar buscando uma reconciliação com
seu ex-marido Yasbec. Isso provoca ciúmes em Tigrela.

Imagine que ela passou dois dias sem comer, intrigada, prosseguiu Romana.
Agora falava devagar, a voz pesada, uma palavra depois da outra com os
pequenos cálculos se ajustando nos espaços vazios. Dois dias sem comer,
arrastando pela casa o colar e a soberba. Estranhei, Yasbeck tinha ficado de
telefonar e não telefonou, mandou um bilhete, O que aconteceu com seu
telefone que está mudo? Fui ver e então encontrei o fio completamente
moído, as marcas dos dentes em toda a extensão do plástico. Não disse nada
mas senti que ela me observava por aquelas suas fendas que atravessam
vidro, parede. Acho que naquele dia mesmo descobriu o que eu estava
pensando, ficamos desconfiadas mas ainda assim, está me entendendo?
Tinha tanto fervor (TELLES, 1981, p. 96).

Como solução ao problema de relacionamento com Tigrela, Romana planeja induzi-lo


ao suicídio, embora o conto não deixe claro que realmente o suicídio tenha ocorrido. Em
partes da trama Romana dissera que Tigrela não podia beber muito, pois isso o deixaria
estranha e dava vontade de suicidar-se, por isso ela fechava as saídas, e tinha todos os
cuidados para que isso não acontecesse.
1710

“Mandei fazer uma grade de aço em toda a volta da mureta, se quiser, ela
trepa fácil nessa grade, é claro. Mas já sei que só tenta o suicídio na
bebedeira e então basta fechar a porta que dá para o terraço” (TELLES,
1981, p. 94).
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Concebemos então que o cuidado que Romana tinha inicialmente já não existia mais,
pois não era mais interessante para ela continuar com essa relação, e que ao invés de prevenir
e evitar que o suicídio de Tigrela acontecesse, ela acaba contribuindo para que isso venha
ocorrer.

“O que mais eu poderia fazer? Deve ter acordado às onze horas, é a hora que
costuma acordar, gosta da noite. Ao invés de leite, enchi sua tigela de uísque
e apaguei as luzes, no desespero enxerga melhor no escuro e hoje estava
desesperada porque ouviu minha conversa, pensa que estou com ele agora. A
porta do terraço está aberta, essa porta também ficou aberta outras noites e
não aconteceu, mas nunca se sabe, é tão imprevisível, acrescentou com voz
sumida. Limpou o sal dos dedos no guardanapo de papel. Já vou indo. Volto
tremendo para o apartamento porque nunca sei se o porteiro vem ou não me
avisar que de algum terraço se atirou uma jovem nua, com um colar de
âmbar enrolado no pescoço” (TELLES, 1981, p. 96).

Ênfase deve ser dada ao fato de Romana citar no final que volta temerosa para casa
esperando uma notícia que uma jovem pode ter se jogado do terraço. O que leva-nos também
a uma possível interpretação que Tigrela era uma mulher, e que romana vivera uma relação
homossexual, após o fracasso de viver cinco casamentos com homens.
O conto aqui estudado possui forte ligação com a pós-modernidade pelo fato de estar
ligado ao imaginário, ou seja, a coisas fictícias, vemos no corpus em análise que o animal
presente no conto tem características humanas, em nossa realidade vemos o quanto isso é
imaginário, uma vez que é impossível ou quase impossível um ser não humano com
características bem próximas a nos indivíduos.
Em Tigrela a pós-modernidade é tão visível a ponto de nos fazer enxergar que seja La
qual for o assunto em pauta todos os dias surgirão novas mudanças, novos costumes e até
mesmo novas culturas, é assim que a autora meche com nossa imaginação, em seu conto nos
deixa em aberto que a partir de tigrela podemos dar uma nova continuidade, podemos fazer
mudanças e quem sabe construir um outro final, só que dessa vez com a nossa visão de pós
modernidade.

Conclusão
1711

O trabalho aqui exposto nos foi de suma importância fazendo-nos inserir em uma
Página

perspectiva de indagação. A sua relação com a pós-modernidade é cabível a nos humanos

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quando nos inserimos ou queremos inserir a sociedade através dos livros em um mundo
imaginário, antes a imaginação não possuía o poder de transformar coisas em escritos, tudo
era verossímil, graças a pós-modernidade os escritos ganham um mundo onde tudo é possível,
na mostra lugares que mesmo não sendo verdadeiros transformam-se em escrituras
superimportantes para o nosso desenvolvimento enquanto pesquisadores.
A divisão de classes foi uma das principais características que marcaram a primeira
Revolução Industrial que ocorreu na Europa do século XVIII e XIX. Como broto e campo
fértil para o capitalismo, esta revolução deixou como marca principal a construção do que
podemos chamar de duas identidades de classes, a burguesia, classe detentora dos bens e
capitais, e o proletariado, representada pelos operários que trabalham para os capitalistas. No
entanto, ao mesmo tempo em que deu origem as identidades coletivas, burguesia e
proletariado, digamos assim, este marco histórico ofuscou o surgimento das identidades
individuais.
Assim, com a expansão da revolução e crescimento capitalista, ocorreu o aumento das
desigualdades sociais, uma vez que a concentração de renda foi se tornando cada vez maior.
Este acúmulo de poder gerou a estratificação da sociedade em grupos, que se distinguem por
conduta, costume, valores, etc, e interferem diretamente na vida das pessoas em sociedade.
Esta nova construção de identidades, no entanto, não é fixa e muito menos escolhida,
principalmente para aqueles de menor poder aquisitivo. Elas são impostas abruptamente pela
sociedade preconceituosa e excludente.
Trazendo esta realidade para o conto “Tigrela”, da escritora Lygia Fagundes Talles
não podemos afirmar que a personagem protagonista, Romana, tenha sido excluída e agregue
a classe dos menos favorecidos, já que são citadas peças, ambiente e lugares de luxo. Mesmo
assim não temos como ratificar que ela tenha assumido uma identidade definida, uma vez que
ela apresenta um comportamento bastante oscilante entre o real e o surreal. Ora apresenta-se
normal, confusa, com quadro depressivo e até mesmo com sinais e hábitos relacionados ao
tigre, animal que morava com ela. Na verdade, temos aqui bem claro, é uma falta de
identidade, que é a todo o momento, modificada pelas relações de alteridade que o conto nos
proporciona.
1712
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1713
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PÔSTER

DISCURSOS E PRÁTICAS DOS “PROTESTANTES LEIGOS” NA DITADURA


MILITAR BRASILEIRA: ANÁLISE DA RESISTÊNCIA DESSES SUJEITOS A
PARTIR DOS REGISTROS DA CNV (BRASIL)

Julysson Charles Pereira Souza (UERN/GEDUERN)


Francisco Paulo da Silva (UERN/GEDUERN)

A Ditadura Militar no Brasil

A Ditadura Militar no Brasil teve início com o golpe militar de 1964 e se estendeu até
o ano de 1985, marcando um dos períodos mais conturbados da história política do País.
Após terem conseguido depor o Presidente da República João Goulart, os militares
assumiram o comando político do Brasil e estabeleceram um governo totalitário. Durante este
período de sucessivos governos militares, cinco presidentes passaram pelo governo brasileiro:
João Castelo Branco, Arthur da Costa e Silva, Emílio Garrastazu Médici, Ernesto Geisel e
João Baptista Figueiredo.
Para estabelecer um governo autoritário e nacionalista, os militares utilizaram
mecanismos jurídicos para dar legitimidade às ações políticas contrárias à Constituição de
1946 e aos direitos humanos. Substituíram a Constituição de 1946 pela constituição de 1967;
dissolveram o Congresso Nacional; criaram o Código de Processo Penal Militar que
autorizava a polícia militar e o exército brasileiro a prenderem suspeitos inimigos do Estado,
sem qualquer rescisão judicial. Como medida que marca o endurecimento da ditadura
colocaram em vigor Atos Institucionais como o Ato Institucional n°5, de 13 de setembro de
1968, que vigorou até 1978, desencadeando uma série de ações arbitrárias e dando poder ao
governo para punir, inclusive através da tortura, os inimigos do regime militar.

Escancarada, a ditadura firmou-se. A tortura foi o seu instrumento extremo


de coerção e o extermínio, o último recurso da repressão política que o Ato
Institucional n° 5 libertou das amarras da legalidade. A ditadura
envergonhada foi substituída por um regime a um só tempo anárquico nos
quartéis e violento nas prisões. Foram os Anos de Chumbo (GASPARI,
2002, p. 13).
1714

Os militares torturavam, prendiam e matavam dentro de uma “legalidade” criada por


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eles mesmos, para se manterem no governo do Brasil. Vemos, assim, um período que foi

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marcado pela supressão dos direitos civis e pelas graves violações aos direitos humanos,
manifestados na conduta coercitiva do Estado autoritário. Para os golpistas, todos aqueles que
fossem oposicionistas, esquerdista, comunistas ou que demonstrassem apoio ao governo
populista, deveriam ser exterminados a qualquer custo. Esta perseguição gerou censuras,
prisões, torturas físicas e psicológicas, mortes e desaparecimentos de milhares de pessoas.
Para alcançar seus fins, os militares criaram vários mecanismos de informações, como
o Serviço Nacional de Informação e o Departamento de Ordem Política e Social. Eles
sondavam toda a população a fim de livrar-se de qualquer ameaça ao regime. As mais
diversas instituições da sociedade foram alvo da busca implacável do governo militar,
inclusive as igrejas protestantes.

Justiça de Transição e a Comissão Nacional da Verdade

A Justiça de Transição é um instrumento político utilizado para trazer uma resposta


concreta, contundente, às violações aos direitos humanos praticadas por governos totalitários e
ditatoriais. Trata-se de um enfrentamento ao legado de violência em massa, praticado por
governos autoritários, no passado.
Assim como outros países da América Latina, que vivenciaram a transição de um
cenário autoritário para a construção de uma (re)democratização, o Brasil teve que instaurar a
Justiça de Transição, a fim de atingir os seguintes objetivos: 1) - promoção da reparação às
vítimas; 2) - fornecimento da verdade e construção da memória; 3) - regularização das funções
da justiça e restabelecimento da igualdade perante a lei; 4) - reforma das instituições
perpetradoras de violações os direitos humanos (ABRÃO; TORELLY; 2010).
Nesse conjunto de mecanismos judiciais e não judiciais da Justiça de Transição, surge
a Comissão Nacional da Verdade (CNV), criada em 2011 através da Lei n° 12.528/2011 e
instituída em 16 de maio de 2012. O artigo primeiro da referida Lei, revela a intenção do
governo que instituiu a CNV:

A PRESIDENTA DA REPÚBLICA: Faço saber que o Congresso Nacional


decreta e eu sanciono a seguinte Lei:
1715

Art. 1o É criada, no âmbito da Casa Civil da Presidência da República, a


Comissão Nacional da Verdade, com a finalidade de examinar e esclarecer as
graves violações de direitos humanos praticadas no período fixado no art. 8 o
do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, a fim de efetivar o
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direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional.
(LEI Nº 12.528/ 2011).

A sociedade brasileira muito sofreu com o governo autoritário e genocida dos


militares. Por isso, a necessidade do Estado brasileiro se reconciliar com a sociedade. É essa
reconciliação nacional que interessa aos governos pós-ditadura e a todos aqueles que viram
seus direitos violados pela ditadura.. Mas, para que haja a reconciliação será preciso produzir a
verdade histórica que se configura como uma questão de governo, uma questão de política
pública para o avanço da democracia e uma política de vida, no sentido que se configura como
relacionada aos direitos humanos. Para assim se configurar, a CNV realizou o trabalho de
reconhecer as graves violações aos direitos humanos praticados pelo governo militar, dando
condições de produção das falas das vítimas. Trata-se de voltar ao passado histórico e
(re)construir uma verdade por meio dos testemunhos das vítimas.

Comissão Nacional da Verdade: Memória e Verdade

No processo de construção da redemocratização brasileira, no período pós-ditadura, a


CNV buscou realizar um trabalho de memória do passado aliado à verdade histórica, como
forma de fazer justiça às vítimas do regime militar. A instauração da Comissão Nacional da
Verdade, visava não apenas o reconhecimento dos atores políticos que sofreram direta ou
indiretamente a violência do Estado, mas apontava também para um dever de justiça, uma
reparação, uma restituição material e uma reconciliação. A proposta era resolver os problemas
do passado e acabar com as injustiças históricas responsáveis, ainda hoje, por uma série de
traumas e práticas de injustiça inaceitáveis em uma democracia em (re)construção.
O trabalho de memória é nesse contexto um “dever de memória” e um dever de
praticar a “justa memória”. Ricouer (2007, p. 101) sugere que o “dever de memória” coloca
como imperativo para o historiador “o dever de fazer justiça, pela lembrança, a um outro que
não o si” a fim de tirar lições das experiências passadas e render homenagem àqueles que não
estão mais entre nós. (RICOEUR, 2007, p. 101). O “dever de memória” representa o desafio
de uma “justa memória” ligada a um presente específico. Segundo Ricoeur, “somos todos
1716

devedores de parte do que somos aos que nos precederam” e essa dívida não se limita a
guardar o rastro material dos fatos acabados, mas envolve também o “sentimento de dever a
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outros” (2007, p. 101). Dentre esses outros com quem estamos endividados, “uma prioridade
moral cabe às vítimas” (RICOEUR, 2007, p. 102).
No campo da Análise do Discurso, a memória é intrínseca à produção de efeitos de
sentido, sendo condição do funcionamento discursivo que se constitui como um corpo-sócio-
histórico-cultural (FERNANDES, 2008). Assim, os discursos inscrevem uma memória
coletiva na qual os sujeitos estão inscritos e que que se materializa em diferentes gêneros. No
caso da CNV, uma das formas de materialização da memória foi o testemunho das vítimas.
O que a CNV deixa entrever com isso é que uma memória foi manipulada, silenciada e
era preciso fazê-la aparecer, considerando o novo desenho de Estado que configurava a
redemocratização do país. Desse modo, percebe-se que a produção da memória tem
correlação com a produção do saber e relações de força numa época. O que a CNV propõe é a
criação de uma memória que é concebida numa esfera coletiva e social, sendo responsável
pela produção necessária das condições do funcionamento dos discursos. Assim, não se trata
de uma memória individual, num sentido psicologista, “mas nos sentidos entrecruzados da
memória mítica, da memória social inscrita em práticas, e da memória construída do
historiador” (PÊCHEUX, 2010, p. 50).
Pêcheux também pensa esta memória social entrelaçada em embates ideológicos. Se
por um lado, há a tentativa de estabilizar os discursos hegemônicos, por outro, há forças que
objetivam perturbar o já-dito. Desse modo, esta estabilização torna-se “sempre suscetível de
ruir sob o peso do acontecimento discursivo novo, que vem perturbar a memória”
(PÊCHEUX, 2010, p. 52).
Numa sociedade, portanto, os discursos marcam os embates que a memória põe em
evidência. A CNV marca esse embate no jogo da memória, quando se propõe realizar à
construção de uma verdade histórica. Pode ser observado que a constituição da CNV mostra
um momento de busca de afirmação e consolidação dos espaços de poder, pois um dos
principais objetivos da produção dos enunciados do seu Relatório Final é a construção de uma
verdade histórica sobre o que realmente aconteceu na ditadura militar no Brasil.
Aqui, pensamos o sujeito enquanto “um lugar ou uma posição que varia muito
segundo o tipo e conforme o limiar do enunciado” (CARVALHO, 2008, p. 20). Em outras
1717

palavras, depreende-se indivíduos que ocupam posições distintas e assim assujeitam-se a


algum tipo de ordem ou à sua própria identidade (FOUCAULT, 1995, p.235). isso marca a
heterogeneidade discursiva que integram os discursos.
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ISBN: 978-85-7621-221-8
Na conjuntura política do Brasil durante a ditadura militar, é possível identificar
distintas posições-sujeitos dos indivíduos envolvidos. Os interesses não eram os mesmos,
visto que os militares exerciam o controle de forma autoritária e repressora, massacrando a
frente de resistência da minoria esquerdista, inclusive os protestantes que decidiram assumir
posição de oposição em relação ao governo e a formação discursiva protestante, sendo assim
taxados de “protestantes leigos”.

“Protestantes leigos” e a resistência à Ditadura Militar

Em seus últimos estudos, Michel Foucault analisou os diferentes modos de


subjetivação e a resistência dos sujeitos, relacionanado-a aos cuidadados de si: Sobre isso
pontua:

Eu chamaria de subjetivação o processo pelo qual se obtém a constituição de


um sujeito, mais precisamente de uma subjetividade, que evidentemente não
passa de uma das possibilidades dadas de organização de uma consciência de
si (FOUCAULT,2010, p. 262).

Enquanto nos modos de objetivação, os sujeitos são constituídos a partir das


imposições do que devem ser, fazer e pensar; nos modos de subjetivação os sujeitos se
constituem numa identidade que lhe seja própria. Nesse processo, os sujeitos forjam outras
formas de criação da própria vida, se inventam. É o que esse filósofo chama de “artes da
existência”:

Estas devem ser entendidas como as práticas racionais e voluntárias pelas


quais os homens não apenas determinam para si mesmos, regras de conduta,
como também buscam transformar-se, modificar-se em seu ser singular, e
fazer de sua vida uma obra que seja portadora de certos valores estéticos e
que corresponda a certos critérios de estilo (FOUCAULT, 2010, p. 198).

Partindo dessa afirmação, podemos pensar nas possibilidades que o sujeito encontra de
viver, ser e resistir aos discursos e às práticas hegemônicas. Estamos falando de uma
subjetividade que possibilita o surgimento das resistências. Por meio dela, o sujeito
1718

desenvolve mecanismos que possibilitam pensar e agir diferentemente, o que o leva à


contestação dos valores hegemônicos. Os sujeitos se recriam, opondo-se às objetivações
Página

dadas que tentam produzir identidades cristalizadas:

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No período da ditadura militar, os protestantes, em sua grande maioria, influenciados
por suas lideranças, posicionaram-se a favor do regime autoritário dos militares, como
descreve a CNV:

A postura oficial das igrejas protestantes diante do golpe militar de 1964, por
meio de suas lideranças, pode ser classificada, de modo geral, como de
apoio, sendo este imediato, da parte de presbiterianos e batistas, ou
cauteloso, da parte de metodistas, episcopais e luteranos (CNV, 2014, 177).

Os sujeitos que se opunham à orientação de suas igrejas ficaram conhecidos por


“protestante leigos”. A própria CNV reconhecia esse grupo protestante formados por
“clérigos” e “leigos”:

A oposição com resistência existiu entre protestantes, mas não de forma


oficial; foi assumida por lideranças clérigas e leigas, indivíduos e grupos
vinculados ao movimento ecumênico e/ou que tinham, no seu histórico, na
formação teológica que levava uma prática de engajamento social de
compromisso com a justiça. Muitos ingressaram em organizações de
oposição à ditadura, atuaram até mesmo na clandestinidade e pagaram o
preço por esse compromisso (CNV, 2014, p. 177).

Como ressalta a CNV (2014), os protestantes com engajamento social, especialmente,


aqueles vinculados ao movimento ecumênico, eram identificados pelos agentes do sistema
como inimigos da nação. Protestantes e o movimento ecumênico estiveram sob constante
investigação das agências de inteligência, com base na compreensão de que tinham poder de
disseminação de ideias contrárias à Doutrina de Segurança Nacional. O depoimento que segue
é demonstrativo de como eram tratados àqueles que se opunha ao regime, configurando as
graves violações aos direitos humanos, praticadas pelo Estado:

Fiquei nua no pau de arara, levei choque na vagina. Recebi muita ameaça de que iriam me estuprar,
não chegaram a cumprir. Os primeiros três dias foram mais fortes. Nos outros dias, a gente ouvia os
gritos, as ameaças... você vê o chão todo sujo de sangue... nos amordaçavam para não gritarmos
quando levávamos o choque. Levei vários tapas no rosto. O capitão Gaeta depois foi lá embaixo na
minha cela dizer que tinha batido na gente porque a gente estava tendo ataque histérico. Ainda vinha
se justificar. “Vocês não eram tão quentes assim na esquerda? Mesmo assim a gente teve que ser
violento, porque vocês estavam tendo ataque histérico, começava a gritar”. E isso foi o que mais me
1719

ofendeu... claro... ser pendurada, ser obrigada a ficar nua, levar choque na vagina, tudo isto é muito
humilhante, mas dizer que foi porque a gente tinha uma crise histérica, é uma coisa para te ofender
como mulher (CNV, 2014, p. 183).
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O depoimento acima foi prestado à CVC por Ana Maria Ramos Estevão, membro da
Igreja Metodista em Vila Nova Cachoeirinha, em São Paulo, ex-aluna de Teologia do
Instituto Metodista, líder de jovens metodistas que se tornou integrante da Aliança de
Libertação Nacional (ALN). Segundo a CNV (2014), ela foi presa por três vezes (junho de
1970, junho de 1972 e agosto de 1973; tendo sido encaminhada para o Presídio Tiradentes,
num total de nove meses). Julgada e absolvida. Na primeira prisão, pela Oban, foi torturada
por 15 dias.

Considerações para efeito de fim

Desse modo, podemos pensar esses sujeitos “protestantes leigos”, que diante das
formações discursivas hegemônicas - os códigos de saber -, buscaram outras formas de sentir,
ver e pensar o momento conturbado, vivenciado pela sociedade brasileira na ditadura militar,
como sujeitos de resistência por desenvolverem uma relação consigo e com sua formação
discursiva que os colocavam na posição de luta pela transformação social e de si mesmos, não
se deixando objetivarem-se à política imposta por suas igrejas e pela ditadura.
Como assevera a CNV, as igrejas cristãs deixaram marcas na memória da ditadura
militar brasileira. Seja pelo apoio das cúpulas e de algumas lideranças, clérigas e leigas, por
meio de apoio explícito, cauteloso, pelo silêncio e pela omissão, seja pela resistência de
lideranças, clérigas e leigas, na oposição ao regime, na defesa dos direitos humanos e na
solidariedade com vítimas e suas famílias .No caso da participação dos protestantes, esses
foram, motivados predominantemente pela inserção no movimento ecumênico no Brasil e no
exterior e também construíram uma base teológica e prática que tornou possível a militância
contra o regime de exceção. O Estado brasileiro esteve atento a esta postura e não isentou
esses cristãos de perseguições, considerando-os inimigos da segurança nacional. Daí as graves
violações dos direitos humanos que lhes foram impostas, na forma de prisão arbitrária,
tortura, expulsões e banimentos, que levaram vários deles ao desaparecimento forçado e à
morte.
Com relação às violações praticadas contra os cristãos, a CNV afirma que à medida
1720

que se tenta tirar conclusões dos dados apresentados em seu relatório, gera-se a noção de que
parece um processo sem fim. Os relatos, seus desdobramentos e nuances revelam que o
sofrimento provocado pelas ações da ditadura militar, em nome da “segurança nacional”, é
Página

muito maior do que se pode expressar em palavras. Por isso também se reconhece que os

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dados sobre as graves violações de direitos perpetradas contra as pessoas das igrejas, clérigas
e leigas, lideranças ou simples fiéis, não foram esgotados no trabalho da Comissão e
neccessitam de mais investigação.

Referências

ABRÃO, Paulo; TORELLY, Marcelo D. Justiça de Transição no Brasil: a dimensão da


reparação. In: Repressão e Memória Política no Contexto Ibero-Brasileiro: estudos sobre
Brasil, Guatemala, Moçambique, Peru e Portugal. - Brasília: Ministério da Justiça, Comissão
de Anistia;Portugal: Universidade de Coimbra, Centro de Estudos Sociais, 2010.

BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Violações de direitos humanos nas Igrejas Cristãs.
In:. Relatório da Comissão Nacional da Verdade. Brasília: CNV, 2014. v. 2, cap. 4. p. 156-
200.

CARVALHO, Ana Maria. A noção de sujeito em Michel Foucault. In: SILVA, Francisco
Paulo. Travessias do sentido e outras questões de linguagem. Mossoró: Queima-Bucha,
2008.

FERNANDES, Cleudemar Alves. Análise do discurso: reflexões introdutórias. São Carlos:


Claraluz, 2008.

FOUCAULT, Michel.. O retorno da moral. In: FOUCAULT, Michel. Ditos e escritos: ética,
sexualidade, política. Organização e seleção de textos Manoel Barros de Motta. Tradução de
Elisa Monteiro e Inês Autran Dourado Barbosa. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2004.

GASPARI, Elio. A ditadura escancarada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

LEVY, Tatiana Salem. O fora como o (não-) espaço da literatura. In: BRUNO, Mário &
QUEIROZ, André & CHRIST, Isabelle. Pensar de outra maneira a partir de Claudio
Ulpiano. Rio de Janeiro: Pazulin, 2007.

PÊCHEUX, M. O papel da memória. In: ACHARD, P. et al. Papel da memória. Tradução de


José Horta Nunes. 3. ed. Campinas: Pontes, 2010.
1721
Página

ISBN: 978-85-7621-221-8
PÔSTER

VIOLAÇÃO AOS DIREITOS DOS POVOS INDÍGENAS NA DITADURA MILITAR


BRASILEIRA: DO REGISTRO DE PRISÕES E TORTURAS ÀS POLÍTICAS DE
REPARAÇÃO APONTADAS PELA CNV

Ramon Bezerra Pereira (UERN/GEDUERN)280


Francisco Paulo da Silva (UERN/GEDUERN)

1. Discurso, memória e produção de sentidos no contexto da CNV

Para Pêcheux (1999) todo discurso constitui-se e é fruto de um processo de condições


de produções históricos-sociais alimentado ideologicamente por seus sujeitos enunciativos. A
Análise do Discurso parte, para análise do objeto discurso, da materialidade da linguagem
para análise de seus efeitos de sentido. Considera que “a ideologia materializa-se no discurso
que, por sua vez, é materializado pela linguagem em forma de texto; e/ou pela linguagem não
verbal, em forma de imagens (FERNANDES, 2008, p. 15). Numa vertente Foucaultiana, todo
discurso se produz considerando a relação do saber com o poder que tencionam as práticas
discursivas de uma dada sociedade. Nesse sentido, o discurso inscreve em seu fio relações
históricas e sociais e as posições sujeitos que se marcam no confronto discursivo que
envolvem sujeitos historicamente situados. Nessa perspectiva, o discurso é tomado como uma
prática social, historicamente determinada, que constitui os sujeitos e os objetos. (Cf.
Gregolin, 2000).
Considerando a prática do testemunho como um dos mecanismos utilizados pela CNV,
percebemos que este gênero possibilita a inscrição do discurso das vítimas silenciadas pela
ditadura que são convocadas para dizer uma verdade que só pode aparecer nas condições
democráticas que possibilitaram o trabalho da Comissão. .É nos testemunhos da CNV que
identificamos os sujeitos enunciativos e a partir dos relatos testemunhais dos povos indígenas,
percebemos uma perspectiva em que as vítimas dos graves crimes da violação dos direitos
humanos trazem à tona uma verdade que até pouco anos era desconhecida, ou até mesmo
silenciada. O índio aqui (enquanto individuo) é um ser assujeitado, justamente por estar numa
conjuntura social que determina todo o dizer, a linguagem, o discurso, de um sujeito. Sendo
1722

280
Aluno do curso de História, da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). Membro do Grupo
Página

de Estudos do Discurso da Universidade Estadual do Rio Grande do Norte (GEDUERN).

ISBN: 978-85-7621-221-8
assim, os relatos/testemunhos da CNV são uma voz dos povos que foram oprimidos durante
décadas e que agora tem uma oportunidade de contar sua própria história..
Os testemunhos da CNV foram colhidos pelo grupo de estudos indígenas, grupo este
formado pela CNV para a produção de um texto temático. A metodologia utilizada pelo grupo
foi a história oral, e fazendo um paralelo entre memória e história oral podemos perceber que:

Ao privilegiar a análise dos excluídos, dos marginalizados e das minorias, a


história oral ressaltou a importância de memórias subterrâneas que, como
parte integrante das culturas minoritárias e dominadas, se opõem à
"Memória oficial", no caso a memória nacional. Num primeiro momento,
essa abordagem faz da empatia com os grupos dominados estudados uma
regra metodológica e reabilita a periferia e a marginalidade.
(POLLAK,1987, p. 17).

É dessa forma que a transformação dos testemunhos em documentação histórica


ressalta em um importante passo, o resgate de uma memória, que de certa maneira estava
silenciada pelo Status Quo. Os povos indígenas são vistos agora como protagonistas e agentes
sociais da história.

2 Discursos e práticas de violações aos povos indígenas na ditadura militar

Os índios não podem impedir a passagem do progresso [...] dentro de 10 a 20


anos não haverá mais índios no Brasil. (Ministro Rangel Reis, janeiro de
1976 (CNV, 2014, p. 245).

É com estas palavras que a autoridade máxima, o chefe do Ministério da Agricultura


se referia aos povos indígenas e assinalava o índio como inimigo do desenvolvimento da
nação, um empecilho. Os povos indígenas, estes verdadeiros donos da América, foram e ainda
são perseguidos e dizimados com o aval do Estado. Na colonização do Brasil, Dom João VI
institui a “Guerra Santa281” que produziu uma onda de genocídios em aldeias indígenas, tudo
em troca de suas terras e em nome de Deus. Getúlio Vargas com a sua política
desenvolvimentista denominada de “Macha para o Oeste” possibilitou uma guerra entre o

281
1723

Nas Terras de Vera Cruz, o conceito de guerra justa será empregado para justificar a captura, aprisionamento e
escravização dos indígenas, sobretudo durante a ocupação da Amazônia desde o séc. XVI ao XVII. A concepção
de guerra justa obedeceu à uma “ideologia expansionista”, os critérios variaram, assim como variou a legislação
– em permanente tensão entre o que ditava a Metrópole e o que era praticado na América Portuguesa – ora
adotando critérios que, desde que modificados, poderiam anular os resultados de uma missão de resgate anterior.
Página

(Cf. DOMINGUES,2000).

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fazendeiros e os indígenas, conflito este que quase apagou da memória os traços culturais e
físicos de algumas etnias indígenas. Na Ditadura Militar a administração da máquina pública
instituiu uma nova política de desenvolvimento arquitetada no “Plano de Integração
Nacional” que intensificou a perseguição aos indígenas, com a finalidade de construir grandes
obras que invadiram propriedades indígenas e cujas ações resultaram na morte de milhares de
indígenas.
O recorte histórico acima é uma breve explanação sobre a perseguição que Estado
brasileiro fez aos povos indígenas. Neste trabalho analisamos os discursos e as práticas de
violação aos direitos dos povos indígenas na Ditadura Militar (1964-1985). Essa política de
perseguição aos povos indígenas está bem representada neste trecho do Relatório CNV:

A violência contra índios tutelados era praticada de forma brutal e pública


nos postos e delegacias dos municípios, com o objetivo de humilhar o preso
e também de atingir os demais indígenas da localidade, intimidando tanto os
que presenciavam os fatos, como os que ouviam falar das agressões.
Inúmeros relatos apontam que essa violência do Estado está longe de ser
difusa e casual, pois, com sua aplicação sistemática, molda-se uma cultura
de repressão para subjugar os índios atingidos e silenciar a luta por seus
direitos frente à política desenvolvimentista do Estado brasileiro à época.
(CNV, 2014, p. 239).

A política desenvolvimentista propunha a integração dos povos indígenas e revelou ser


persecutória para tais povos. Na citação acima, ver-se que o pensamento do Estado era
extremamente intolerante ao “modo de ser” dos índios, a tal ponto que usaram por meio da
força de seus aparelhos repressores, o regime de aculturação de um povo oprimido, querendo
assim pôr fim a seus traços culturais e submetendo-os a adotarem a cultura hegemônica,
característica que os conquistadores europeus do século XVI utilizaram bem na colonização.
O relato do ancião Oredes krenak, colhido pelo grupo de trabalho indígena da CNV
também é significativo das práticas de violação aos direitos dos povos indígenas:

Bater era normal para eles. Se o índio tentava se justificar por alguma
acusação, batiam com cassetete grande, depois jogavam na prisão. Não
podiam nem perguntar por que estavam sendo punidos. Também batiam de
chicote. Algemavam o preso dentro da cadeia e ele não podia falar,
1724

argumentar. Ameaçavam com arma. Os mais antigos contam que quando


matavam um índio, jogavam no rio Doce e diziam pros parentes que tinha
ido viajar.
Quando estavam muito debilitados, jogavam no hospital. A gente não sabia
Página

se estavam mesmo no hospital ou se foram massacrados ou morreram de


fome, sede. A gente não via morrer aqui, era quando estavam no hospital.

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Até a década de 1980 nosso povo sofreu bastante com os militares. (CNV,
2014, p. 239).

O depoimento de Oredes Krenak refere-se ao modo como os indígenas eram tratados


dentro das intermediações do reformatório Krenak. Vale salientar que esse tratamento não se
restringia somente a etnia Krenak, mas sim a várias outras etnias de todos os postos indígenas.
No contexto do Plano de Integração Nacional do Regime Militar, especialmente na
construção da Rodovia Transamazônica, obra de gigantescas proporções que liga o Norte ao
Nordeste, intensificam-se a agressão aos povos indígenas. Para que as obras pudessem
acontecer teriam que desapropriar certos territórios que estavam no trecho da rodovia. Nessa
ação, um exemplo de violação posto em prática pelo governo militar é a invasão das terras da
etnia dos Parakanã. A FUNAI junto aos grupos econômicos monta uma estratégia: a atração,
o contato e as tentativas de “pacificação”. Plano este que levaram a cinco transferências
compulsórias do povo Parakanã entre 1971 e 1977, além da morte de 118 indígenas, o
equivalente a 59% da população original, por epidemias trazidas pelas frentes da FUNAI. O
depoimento abaixo é significativo dessa política de ataques a vida dos povos indígenas:

Estou cansado de ser um coveiro de índios... Não pretendo contribuir para o


enriquecimento de grupos econômicos à custa da extinção de culturas
primitivas.
– Antônio Cotrim, sertanista da Funai, ao se demitir (1972). (CNV, 2014, p.
223).

Os ataques aos direitos dos povos indígenas eram tão fortes que o sertanista Antônio
Cotrim se recusou a continuar a contribuir com a política de extinção e esbulhos de territórios
nativos ao qual o Estado insistia em combater.

3.O Reformatório Agrícola Indígena Krenak e o Tribunal Russel

Em 1969 ocupava o ministério do Interior o general Costa Cavalcanti e a presidência


da FUNAI o general Bandeira de Melo, ambos responsáveis pela política indigenista que o
Estado brasileiro vinha adotado desde do tempo do instinto Serviço de Proteção ao Índio
1725

(SPI) em 1967. Esse período marca a política de endurecimento da ditadura e aprofundamento


de práticas de violação. Nessa linha de endurecimento, o governo resolve criar uma cadeia
Página

oficial para povos indígenas. A prisão é construída no Posto Indígena Guido Marlière

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(PIGM), hoje denominado Área Indígena Krenak. Sua localização dá-se mais especificamente
na cidade de Resplendor (Minas Gerais). Sobre a administração da Ajudância Minas-Bahia
(AJMB) e sobre liderança do Capitão Pinheiro, militar ligado à Polícia Militar de Minas
Gerais, o reformatório que tinha caráter de prisão indígena, funcionou por quatro anos, cerca
de 121 índios, de 23 etnias diferentes foram presos.

Entretanto, diferente da Guarda Rural Indígena, o reformatório não teve sua


criação publicada em jornais ou vinculadas em uma portaria, nem o início de
seu funcionamento foi transformado num evento público como foi a primeira
formatura dos guardas rurais, com direito a cerimonia e publicidade sobre os
esforços que o novo órgão tutelar realizava em prol dos índios. O
funcionamento do reformatório e a própria recuperação lá executada,
passava pela manutenção do sigilo de suas atividades. O caráter confidencial
aparece em várias recomendações do chefe da AJMB para que os
funcionários do Posto Indígena Guido Marlière mantivessem os índios
confinados e os Krenak sem contato com o restante da população local
(CORRÊA, 2003, p. 135).

Um ano depois do AI-5282 e dois anos após o arquivamento da Comissão Parlamentar


Inquérito (CPI), de 1967, que produziu o Relatório Figueiredo283 o Estado brasileiro se viu
apto e encorajado a fazer funcionar uma instituição de privação de liberdade para povos
indígenas. O Reformatório Krenak que não reconhecia os índios como cidadãos brasileiros.
Em muitas das políticas indigenistas o Estado procurou formas e medidas de tornar dócil e
aculturar os índios a fim de se apropriar de suas terras e de suas riquezas naturais advindas de
seu rico solo.
O pesquisador José Gabriel Silveira Corrêa em seu estudo “A ordem a se preservar”
relata que duas instituições que foram responsáveis por administrar a prisão: A Ajudância
Minas-Bahia (AJMB) e a Guarda Rural Indígena (GRIN)284:

282
O Ato institucional número cinco (AI-5) foi um decreto do presidente Arthur da Costa e Silva criado em
1968, tal decreto dava a autorização ao Regime Militar de cassar mandatos políticos, intervir nos estados e
municípios, suspender os direitos políticos, decretar recesso do Congresso Nacional, censurar os meios de
comunicação e divulgação e suspender o Habeas Corpus, foi o mais cruel dos AI´s.
283
O Relatório Figueiredo, encomendado pelo Ministério do Interior no ano de 1967, evidenciou torturas, maus
tratos, prisões abusivas, apropriação forçada de trabalho indígena e saque de riquezas de territórios indígenas por
funcionários de diversos níveis do SPI. (Cf. RODRÍGUES; PRADO, 2016),
1726

284
Em 1969, é criada a Guarda Rural Indígena (GRIN), que recruta índios ao longo, sobretudo, do Araguaia e do
Tocantins, além de Minas Gerais, para atuarem como força de polícia nas áreas indígenas. A princípio festejada,
a GRIN foi acusada em um inquérito proveniente da Chefia da Divisão de Segurança e Informações do
Ministério do Interior de arbitrariedades, espancamentos, e abusos de toda a sorte. O escândalo derrubou o
presidente da Funai, mas a GRIN permaneceu ativa, ainda que de forma discreta, até o final dos anos 1970. (Cf.
Página

FREITAS, 2011).

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Nestes quase quatros anos de funcionamento do reformatório e do posto
indígena, as instituições que “deveriam” cuidar, respectivamente, da
reeducação dos índios delinquentes e da assistência dos Krenak, estiveram
sob uma única orientação e administração. Isto está claro nos documentos
internos do posto, onde as duas instâncias administrativas tem a única
denominação de Posto Indígena Guido Marlrière/Krenak, que também
aparece em jornais, só que com o nome de Centro de Treinamento e
Recuperação Krenak (CRTK).” (CORRÊA, 2000B, p. 129).

A Comissão Nacional da Verdade (Brasil) através de seu texto temático 5 intitulado


“Violações de direitos humanos dos povos indígenas” deixa claro em suas conclusões que
ainda não tem respostas para as várias perguntas que indagam sobre o que aconteceu no
Reformatório Krenak, mas com base na documentação reunida reconhece que o reformatório
assume um caráter de “Campo de concentração” e de “Prisão domiciliar” e recomenda que o
Estado brasileiro anistie não somente a população Krenak, mas também os outros povos de
outras etnias. Incentiva a pesquisadores não somente do governo, mas todos, a aprofundarem
suas investigações sobre o reformatório, a fim de trazer à tona as várias formas de torturas e
perseguições aos povos indígenas que foram utilizados nas repartições órgão.
O Tribunal Internacional de Crimes de Guerra foi um tribunal criado pelos filósofos
Bertrand Russell e Jean-Paul Sartre com a finalidade de investigar os graves crimes cometidos
pelo Estado contra o povo. A primeira sessão do Tribunal ocorreu entre 1966 e 1967, foram
abordados os crimes de guerra internacionais mais especificamente na guerra do Vietnã, tendo
inclusive o Tribunal Russell condenado os EUA pelas atrocidades cometidas. Na segunda
sessão do Tribunal a finalidade era reunir denúncias de crimes cometidos nas ditaduras da
América Latina e provas, as reuniões foram organizados em vários lugares da Europa,
reuniões estas realizada no período de 1974-1976. “Campo de Concentração” e “Prisão
Domiciliar” estas são as palavras de descrição que apareceram nos relatos das denúncias no
Tribunal Russell II que aconteceu entre 1974-1976, e novamente na sua IV sessão na cidade
de Roterdã em 1980 que julgaram os casos Waimiri Atroari, Yanomami, Nambikwara e
Kaingang de Manguerinha, tendo o Brasil sido condenado (Cf. CNV, 2014).
Apresentamos a seguir uma parte da denúncia que foi enviada em documento a sessão
1727

do Tribunal Russell, na qual aparece as características e os indícios do até então suspeito


reformatório que pelas suas características de violência passou a ser tratado como “Campo de
Concentração” e “Prisão domiciliar para índios”:
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Com relação aos índios, o clima é de terror. Contrariando seus Estatutos e
atentando contra os direitos humanos, a Funai criou uma prisão para os
índios em Crenaque, no município de Governador Valadares, Minas Gerais.
Na gestão de Bandeira de Melo a prisão tem sido muito usada. Segundo
palavras do sertanista Antônio Cotrim Soares, jamais contestadas pela Funai,
Crenaque “é um campo de concentração” para onde são enviados os índios
revoltados com o sistema explorador e opressivo da Funai. A prisão é
dirigida por um oficial da PM de Minas Gerais, comandando um
destacamento de seis soldados. Os índios presos são obrigados a um regime
de trabalho forçado de oito horas diárias. São colocados em prisões
celulares, isolados uns dos outros. E recebem espancamentos e torturas.
Cotrim conta o caso do índio Oscar Guarani, de Mato Grosso, que ao entrar
na prisão pesava 90 quilos e de lá saiu pesando 60, além de apresentar
marcas de sevícias no corpo (CNV, 2014, p. 238).

Foi nesta sessão que o Tribunal recebeu várias denúncias de órgãos de proteção
indígena e de instituições religiosas que atuaram, e ainda atuam, lutando pelos direitos do
povos indígenas de terem sua terra e serem reconhecidos como cidadãos brasileiros.

4 CNV e políticas de reparação aos povos indígenas

No dia 10 de Dezembro de 2014, o dia mundial da comemoração dos Direitos


Humanos é entregue o Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade à presidente Dilma
Rousseff. Um dia após a cerimônia de entrega do relatório da CNV à Presidente da República
e acontece na Câmara dos Deputados o ato “AI-5 Nunca Mais”: Ato de Encerramento do Ano
da Democracia, do Direito à Memória e à Justiça, na Câmara dos Deputados que reuniu a
Senadora, Presidenta da Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado
e o presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados, Assis
do Couto (PT-PR).
Em seu pronunciamento, a Senadora defendeu que “...A verdade e a memória são
essenciais para que o Estado brasileiro e as demais organizações do Estado possam daqui pra
frente continuar fazendo seu trabalho, para que de fato a justiça seja feita...”285. A partir desta
fala, nota-se que há por parte dos representante do poder legislativo um papel de cobrança
junto ao Estado no que tange as questões de reparação aos povos atingidos pelo Regime
Militar.
1728

285
Sen Ana Rita defende implementação de Recomendações da CNV. ESGÁRIO, Ana Rita. Youtube. 11
dez.2014. 5 min01s. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=8dGdHvbOmcE. Acesso em: 18
Página

ago. 2017.

ISBN: 978-85-7621-221-8
A CNV Brasil, em seu texto temático número 5 recomenda ao Estado brasileiro 13
medidas de reparação aos povos indígenas pelas graves violações aos direitos humanos de tais
povos. As propostas são tomadas como sendo uma possibilidade do próprio Estado, enquanto
instituição, reparar estes cidadãos garantindo-os também a sua integridade física, moral e
étnica. Compreendendo isso, a Comissão da Verdade apresenta 13 recomendações para que o
Estado implemente a reparação política aos povos indígenas: (CNV, 2014, p. 247-248).

-Pedido público de desculpas do Estado brasileiro aos povos indígenas pelo


esbulho das terras indígenas e pelas demais graves violações de direitos
humanos ocorridas sob sua responsabilidade direta ou indireta no período
investigado, visando a instauração de um marco inicial de um processo
reparatório amplo e de caráter coletivo a esses povos.

- Reconhecimento, pelos demais mecanismos e instâncias de justiça


transicional do Estado brasileiro, de que a perseguição aos povos indígenas
visando a colonização de suas terras durante o período investigado
constituiu-se como crime de motivação política, por incidir sobre o próprio
modo de ser indígena.

- Instalação de uma Comissão Nacional Indígena da Verdade, exclusiva para


o estudo das graves violações de direitos humanos contra os povos
indígenas, visando aprofundar os casos não detalhados no presente estudo.

- Promoção de campanhas nacionais de informação à população sobre a


importância do respeito aos direitos dos povos indígenas garantidos pela
Constituição e sobre as graves violações de direitos ocorridas no período de
investigação da CNV, considerando que a desinformação da população
brasileira facilita a perpetuação das violações descritas no presente relatório.

- Inclusão da temática das “graves violações de direitos humanos ocorridas


contra os povos indígenas entre 1946-1988” no currículo oficial da rede de
ensino, conforme o que determina a Lei no 11.645/2008.

- Criação de fundos específicos de fomento à pesquisa e difusão amplas das


graves violações de direitos humanos cometidas contra povos indígenas, por
órgãos públicos e privados de apoio à pesquisa ou difusão cultural e
educativa, incluindo-se investigações acadêmicas e obras de caráter cultural,
como documentários, livros etc.

- Reunião e sistematização, no Arquivo Nacional, de toda a documentação


pertinente à apuração das graves violações de direitos humanos cometidas
contra os povos indígenas no período investigado pela CNV, visando ampla
divulgação ao público.
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- Reconhecimento pela Comissão de Anistia, enquanto “atos de exceção”


e/ou enquanto “punição por transferência de localidade”, motivados por fins
exclusivamente políticos, nos termos do artigo 2º, itens 1 e 2, da Lei no
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10.559/2002, da perseguição a grupos indígenas para colonização de seus


territórios durante o período de abrangência da referida lei, visando abrir

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espaço para a apuração detalhada de cada um dos casos no âmbito da
Comissão, a exemplo do julgamento que anistiou 14 Aikewara-Suruí.

- Criação de grupo de trabalho no âmbito do Ministério da Justiça para


organizar a instrução de processos de anistia e reparação aos indígenas
atingidos por atos de exceção, com especial atenção para os casos do
Reformatório Krenak e da Guarda Rural Indígena, bem como aos demais
casos citados neste relatório.

- Proposição de medidas legislativas para alteração da Lei no 10.559/2002,


de modo a contemplar formas de anistia e reparação coletiva aos povos
indígenas.

- Fortalecimento das políticas públicas de atenção à saúde dos povos


indígenas, no âmbito do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena do
Sistema Único de Saúde (Sasi-SUS), enquanto um mecanismo de reparação
coletiva.

- Regularização e desintrusão das terras indígenas como a mais fundamental


forma de reparação coletiva pelas graves violações sofridas pelos povos
indígenas no período investigado pela CNV, sobretudo considerando-se os
casos de esbulho e subtração territorial aqui relatados, assim como o
determinado na Constituição de 1988.

- Recuperação ambiental das terras indígenas esbulhadas e degradadas como


forma de reparação coletiva pelas graves violações decorrentes da não
observação dos direitos indígenas na implementação de projetos de
colonização e grandes empreendimentos realizados entre 1946 e 1988.

Neste aspecto, é importante trazemos a Justiça de Transição para a luz da discussão,


um dos elementos que a integra são as medidas de reparações aos povos que foram vítimas da
violência contra os direitos humanos, entendemos que a Comissão Nacional da Verdade traz
uma série de recomendações que o Estado deve adotar, recomendações estas que devem ser
tomadas como medidas de reparação para com os povos indígenas vítimas dos ataques aos
direitos humanos, para que assim se realize políticas de vida e se estabeleça a reconciliação,
assegurando a construção da democracia e do Estado de direito.

5 Considerações para efeito de fim

A ideia de Justiça de Transição não é somente uma ideia de uma série de mecanismos,
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de políticas públicas e de ações que visam a reparação pelos graves crimes de violação aos
direitos humanos. Ela precisa de ações concretas por parte do Estado para que a verdade não
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caia no esquecimento, deixando brechas para que os resquícios da Ditadura Militar volte a

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pairar sobre a sociedade. A Justiça de Transição deve ser entendida aqui como a série de
mecanismos que envolvem políticas públicas e ações de reparações como sendo uma prática
permanente do Estado para com esses povos, possibilitando a construção de uma democracia
que é o pilar central do Estado de Direito.
Essa tarefa não cabe somente ao Estado, é preciso que haja uma forte reivindicação
social para que a justiça seja feita. No caso dos povos indígenas, estes devem tomar as
recomendações da CNV como uma pauta permanente de reivindicações pela luta dos seus
direitos. O primeiro passo é o Estado deve assumir sua culpa, pedir perdão e iniciar a
reparação. .
As recomendações da CNV devem ser adotas, configuradas e praticadas como sendo
políticas de vida, de preservação da vida e da valorização dos direitos e da cidadania dos
povos indígenas.

Referências

BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório: textos temáticos / Comissão Nacional


da Verdade. – Brasília: CNV, 2014. 416 p. – (Relatório da Comissão Nacional da Verdade; v.
2).

CORRÊA, José Gabriel Silveira. A proteção que faltava: o reformatório indígena krenak e a
administração estatal dos índios. Arquivos do museu nacional. Rio de janeiro, v. 61, n. 2,
p.129-146, abr./jun.2003.

DOMINGUES, Ângela. Os conceitos de guerra justa e resgate e os ameríndios do norte do


Brasil. In: Brasil: colonização e escravidão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.

FERNANDES, Cleudemar Alves. Análise do discurso: reflexões introdutórias. São Carlos:


Editora Claraluz, 2008.

Gregolin, Maria do Rosário. Análise do discurso e mídia: a (re)produção de identidades. In:


Comunicação, mídia e consumo. São Paulo, v. 4, n. 11, p. 11-25, nov., 2007.

M. Pollak, "Pour un inventaire", Cahiers de l'IHTP, n. 4 (Questions à l'histoire orale), Paris,


1987.

PÊCHEUX, Michel. Papel da memória. In: ACHARD, P. et al. (Org.) Papel da memória.
Tradução e introdução José Horta Nunes. Campinas: Pontes, 1999.
1731

RODRÍGUES, Marcela Paz Carrasco; PRADO, Felipe Sousa. A questão indígena nas
ditaduras civil-militares na América do Sul: um estudo comparativo entre o povo Krenak
Página

(Brasil) e o povo Mapuche (Chile). In: II Simpósio Internacional Pensar e Repensar a


América Latina. PROLAM(ECA-USP) Anais... São Paulo v.1, p. 01-16, 2016.

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PÔSTER

A CONSTRUÇÃO DA IMAGEM MASCULINA NAS CAPAS DA REVISTA MEN’S


HEALTH: UMA ANÁLISE DISCURSIVA

Fábio Dantas da Silva (UERN)


Ana Maria de Carvalho (UERN)

1 Introdução

As revistas se manifestam como poderosos veículos para a transmissão de


informações, da cultura e de discursos das mais diversas formações ideológicas, que fazem
significar e ressignificar os discursos, destacando-se como significativos construtores de
subjetividades.
Dessa forma, seguindo o pensamento de Malysse (1998), as revistas se configuram
como espaços de fantasias coletivas referentes às identidades corporais, uma vez que
funcionam como catálogos dos diferentes modelos estéticos e guias práticos de conduta,
sendo, portanto, fontes de divulgação do ideal do sujeito contemporâneo.
Trata-se, pois, de um suporte midiático, cujo papel de produzir discursos
estereotipados de gêneros, influencia nas opiniões de leitores, tanto na produção de sentido
como na posição sujeito. Assim, foi escolhido como objeto de estudo capas da Men’s Health
por ser uma revista direcionada ao público masculino de maior circulação, tanto em termos
nacionais como internacionais.
Para nortear este trabalho traçamos as seguintes questões de pesquisa: Como se dá a
construção da imagem masculina nas capas da Men’s Health? Que efeitos de sentido são
produzidos nos enunciados verbais e imagéticos das capas dessa revista, em relação ao corpo
masculino? Assim, este trabalho abrange uma análise discursiva, objetivando detectar na
materialidade linguística e imagética das capas da Men’s Health a construção da imagem
masculina e verificar os efeitos de sentido produzidos sobre o corpo desse sujeito masculino.
Em se tratando dos procedimentos analíticos dos dados esta pesquisa se insere na
perspectiva da Análise do Discurso de orientação francesa (AD), uma abordagem de estudo
transdisciplinar que comporta conceitos que auxiliam na interpretação e compreensão de
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discursos, no que diz respeito às produções sociais de sentido produzidas por sujeitos, através
da materialização da linguagem (GREGOLIN, 2003a). Nessa direção, pauta-se em autores
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como Orlandi (2001), Gregolin (2003), Fernandes (2007), Foucault (2004), Ortega (2003),
entre outros.

2 Conceitos operacionais

Da Análise do Discurso são vários os conceitos que podemos utilizar para análise de
um corpus. Escolhemos alguns, os quais funcionarão como dispositivos para dar conta da
análise aqui pretendida, elencados nos itens a seguir.

2.1 Discurso, efeito de sentido e formação discursiva

O objeto discurso - de que trata a AD, é visto como o espaço onde se cruzam língua e
história. Assim, deve ser pensado em seu processo histórico-social de constituição
(FERNANDES, 2007). O discurso, para Fernandes (2007), não é a linguagem em si, mas
precisa dela para a existência material e/ou real. Conforme o autor, o discurso não é a língua,
nem a fala, nem um texto, pois embora precise de elementos linguísticos para que se tenha
uma existência material, necessita também de elementos exteriores como a História, o social.
Nessa direção, o discurso encontra-se no social e envolve questões de natureza não
somente linguística, ou seja, refere-se a aspectos sociais e ideológicos impregnados nas
palavras quando elas são proferidas. Assim, na sua materialidade, o discurso revela a
articulação do linguístico – que é da ordem da estrutura, com a exterioridade – que é da ordem
sócio-ideológica. E uma vez que sofre a ação do social e da História, ele não é fixo, mas,
como coloca Orlandi (2001, p. 15), “o discurso é assim palavra em movimento, prática de
linguagem: com o estudo do discurso observa-se o homem falando”.
O discurso enquanto prática ou ação social define-se como ”efeitos de sentidos entre
locutores” (ORLANDI, 2001, p. 21). Assim, ele tem sua regularidade e seu funcionamento
“que é possível apreender se não opomos o social e o histórico, o sistema e a realização, o
subjetivo ao objetivo, o processo ao produto” (ORLANDI, 2001, p. 22).
Notamos, então, que esses efeitos de sentido, de certo modo, é algo singular, ou seja,
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os significados irão sofrer variações de acordo com o contexto sócio-histórico de cada sujeito.
O sentido do que é dito é, pois, determinado pelas condições de produção desse dizer, ou
como coloca Fernandes (2007), os sentidos são produzidos em decorrência da ideologia dos
Página

sujeitos em questão, da forma como compreendem a realidade política e social na qual estão

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inseridos; ou seja, os sentidos do que é dito dependem do tempo e do espaço de onde são
produzidos e das posições sujeitos envolvidos na interlocução.
Nesses termos, o sentido não é algo dado, que nasce com as palavras. De acordo com
Fernandes (2007, p. 26), o sentido “é um efeito de sentido da enunciação entre A e B, é o
efeito da enunciação do enunciado”. Dessa maneira, uma mesma palavra acaba tendo vários
sentidos, vai depender do espaço socioideológico dos sujeitos que a utilizam. Esses sentidos e
os efeitos causados por eles são formados a partir de uma formação discursiva.
Por formação discursiva (FD) se entende:

ao que se pode dizer somente em determinada época e espaço social, ao que


tem lugar e realização a partir de condições de produção específicas,
historicamente definidas; trata-se da possibilidade de explicitar como cada
enunciado tem o seu lugar e sua regra de aparição, e como as estratégias que
o engendram derivam de um mesmo jogo de relações, como um dizer tem
espaço em um lugar e em uma época especifica (FERNANDES, 2007, p.
64).

Ou seja, são formações surgidas de discursos anteriores, que são transformados,


trazendo com eles marcas históricas. Assim, toda FD apresenta, no seu interior, diferentes
discursos, ao que nessa perspectiva, denomina-se de interdiscurso.
.
2.2 Interdiscurso e memória discursiva

Para Orlandi (2001, p. 33), o interdiscurso “é todo o conjunto de formulações feitas e


já esquecidas que determinam o que dizemos”. Assim, para que as palavras tenham sentido é
necessário que elas já façam sentido. Para a autora, o interdiscurso “significa justamente a
relação do discurso com uma multiplicidade de discursos, isto é, “ele é um conjunto não
discernível, não representável, de discursos que sustentam a possibilidade mesma do dizer,
sua memória” (ORLANDI, 2001, p. 80).
O interdiscurso, da mesma forma que a formação discursiva, traz em seus enunciados
palavras que já foram ditas anteriormente. Configura-se como um entrelaçamento de
diferentes discursos, provenientes de diferentes momentos na história e de diferentes lugares
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sociais. Vejamos como Fernandes (2007, p. 65-66) o define:


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Presença de diferentes discursos, oriundos de diferentes momentos na


história e de diferentes lugares sociais, entrelaçados no interior de uma

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formação discursiva. Diferentes discursos entrecruzados constitutivos de
uma formação discursiva dada; de um complexo com dominante (Grifos do
autor).

Assim, aquilo que é dito no agora, em um determinado lugar, são palavras já ditas por
outros, anteriormente. Conforme Orlandi (2001, p. 32), “As palavras não são só nossas. Elas
significam pela história e pela língua. O que é dito em outro lugar também significa nas
‘nossas’ palavras”.
Nessa perspectiva, o interdiscurso é o que chamamos de memória discursiva: “o saber
discursivo que torna possível todo dizer e que retorna sob a forma de pré-construído, o já-dito
que está na base do dizível, sustentando cada tomada da palavra” (ORLANDI, 2001, p. 31). A
memória discursiva representam justamente os enunciados que formam o interdiscurso.
Podemos inferir que um é produto do outro e assim constroem os enunciados em diferentes
lugares e em determinada época. Para Fernandes (2007, p. 65), a memória discursiva é:

Espaço de memória como condição do funcionamento discursivo constitui


um corpo sócio-histórico-cultural. [...] Trata-se de acontecimentos exteriores
e anteriores ao texto, e de uma interdiscursividade, refletindo materialidades
que intervêm na sua construção.

Dessa maneira, tanto o interdiscurso como a memória discursiva são discursos


retomados de outras pessoas e que ao serem reutilizados se transformam em novos
enunciados e com novos sentidos.
A noção de memória discursiva, segundo Fernandes (2007, p. 59), “não se refere a
lembranças que temos do passado, a recordações que um indivíduo tem do que já passou”.
Assim, notamos que não podemos caracterizar a memória discursiva como meras lembranças
uma vez vividas pelo sujeito.
De acordo com o autor:

[…] Os discursos exprimem uma memória coletiva na qual os sujeitos estão


inscritos. É uma memória coletiva, até mesmo porque a existência de
diferentes tipos de discursos implica a existência de diferentes grupos
sociais. Um discurso engloba a coletividade dos sujeitos que compartilham
aspectos socioculturais e ideológicos, e mantém em contraposição a outros
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discursos (FERNANDES, 2007, p. 59-60).

Disso se deduz que há uma relação entre o já-dito e o que se está dizendo, ou nos
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modos dessa perspectiva discursiva, entre o interdiscurso (constituição do sentido) e o

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intradiscurso (formulação, representado na cadeia sintática). Isso por que, “todo dizer, na
realidade, se encontra na confluência dos dois eixos: o da memória (constituição) e o da
atualidade (formulação). E é desse jogo que tiram seus sentidos” (ORLANDI, 2001, p. 33).
Inferimos, pois, que todo discurso surge na relação com outros: configurados nos
dizeres presentes e dizeres que se alojam na memória. E o que define o trabalho do analista do
discurso: na observação das condições de produção de um discurso e verificação do
funcionamento da memória, o analista deve remeter o dizer a uma FD dada para compreender
o sentido do que ali está dito.

2.3 Corpo, bioascese e constituição de bioidentidade

O corpo aqui é concebido como sendo algo construído discursivamente, sob efeitos
das relações de saber/poder que nele se inscreve pelas posições que esse assume no interior
das práticas discursivas. Ou seja, não se trata do corpo de carne e osso, “mas a relação que se
estabelece entre sua própria materialidade e sua maneira de estar no mundo corporal, fazendo
emergir um sujeito [...], cuja forma é marcada pela dispersão e pela pluralidade” (MILANEZ
apud VIANA, 2010, p. 19).
Conforme Castilho (2006, p. 86), o corpo, nos diferentes períodos da história da
humanidade, foi o alvo de especulações das mais diferentes ordens: “desde o seu
funcionamento maquínico à obsolescência com a qual ele é reconstruído no mundo
contemporâneo”. Assim, as variadas maneias de fabricar ou reconstruir o corpo estão
relacionados aos procedimentos de ordem estética e de embelezamento, o que torna pertinente
a motivação de aumentar os significados expressos pelo corpo por meio da mídia.
Para a autora, ao longo dos tempos os seres humanos tentam, insistentemente, se
reconstruir, utilizando inúmeros procedimentos estéticos diretamente inter-relacionados com a
própria mídia. Isso ocorre pelo fato de que as mídias exercem um forte poder de influência
nas pessoas. Ou seja, serve como uma motivação na construção do embelezamento do corpo,
seja quais forem as transformações as quais se buscam.
Sant’Anna (2014) defende que a beleza é objeto de desejo que funciona como um
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instrumento de poder. Assim, para se conseguir um corpo belo, muitas pessoas se submetem
aos mais variados procedimentos: atividades físicas, dietas, consumo de medicamentos, uso
de cosméticos, cirurgias etc.
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Tais procedimentos são denominados por Ortega (2003) de bioasceses. Essas
bioasceses, fundadas e fortalecidas pelos discursos da medicina e da ciência, são executadas
com fins estéticos e de saúde, para se obter um corpo perfeito, aquele idealizado socialmente,
como também para manter a saúde do corpo. Com a prática da bioascese o que se pretende
atingir não é a prudência, bondade, conhecimento de si ou superação de si, como ocorria com
os gregos antigos, nas práticas ascéticas, mas sim a multiplicação do prazer, a força ou
potência física, para sentir-se bem fisicamente e com uma boa aparência. O ser humano, na
contemporaneidade, tem um excessivo culto ao corpo que leva a dar ênfase a procedimentos
de cuidados corporais, médicos, higiênicos e estéticos, o que Ortega (2003) designa como
bioidentidades ou identidade somática.
Dessa maneira, no mundo atual, surge nova forma de sociabilidade, a
biossociabilidade, definida por Ortega (2003, p. 63) como “uma forma de sociabilidade
apolítica, construída por grupos de interesses privados [...] segundo critérios de saúde,
performances corporais, doenças específicas, longevidade etc.”.
Acredita-se que cada vez mais o ser humano está mergulhado em um discurso de que
para ser aceito tem que se modificar. Então, busca, incansavelmente, encontrar no campo da
medicina, do tecnológico e do embelezamento (através de medicamentos, cosméticos ou
atividades físicas) mudanças estéticas, na tentativa de conseguir a sua própria aceitação e a da
sociedade.
Entretanto, o indivíduo fica no dilema, pois a conquista de um corpo perfeito de
acordo com o discurso de que a perfeição é algo inatingível, o ser humano produz de forma
inconsciente uma negação ao seu próprio corpo, buscando de forma incansável atingir o
patamar de beleza tão desejada. Essa ideologia narcisista leva o ser humano a excluir aquele
que não se encaixa no padrão idealizado. De acordo com Ortega (2003, p. 65),

Os estereótipos atuais contra os gordos, idosos e outras figuras que fogem do


padrão do corpo ideal têm o mesmo efeito estigmatizante e excludente. A
obsessão pelo corpo bronzeado, malhado, sarado e siliconado faz aumentar o
preconceito e dificulta o confronto com o fracasso de não atingir esse ideal,
como testemunham anorexias, bulimias, distimias e depressões. Essa fixação
produz e reforça as doenças debilitantes.
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O ser humano tem uma verdadeira obsessão pelo corpo perfeito e, para atingir essa
“perfeição” é capaz de perder até mesmo a sua saúde, ou pôr em risco a própria vida. “A
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ideologia da saúde e do corpo perfeito nos leva a contemplar as doenças que retorcem a figura
humana como sinônimo de fracasso pessoal” (FOUCAULT apud ORTEGA, 2003, p. 65).

3 Análise do corpus

Antes de fazer a análise, propriamente dita, das capas selecionadas da revista Men’s
Health, é interessante considerar o que aponta Scalzo (apud SENA e RODRIGUES, 2013):
que as capas de revista configuram-se como uma das principais propagandas da revista e de
fundamental importância para sua divulgação e consumo. Na opinião do autor,

Uma boa revista precisa de uma capa que a ajude a conquistar leitores e os convença
a levá-la para casa, ela é feita para vender revista e por isso, precisa ser o resumo
irresistível de cada edição, uma espécie de vitrine para o deleite e consumo do leitor.
[...] Uma boa imagem é sempre importante e ela será sempre o primeiro elemento
que prenderá a atenção do leitor. As chamadas devem ser claras e diretas. A
chamada da capa e a imagem deve se complementar, passando uma imagem coesa e
coerente. O estilo da capa deve ser uma espécie de “marca registrada” da publicação.
(SCALZO apud SENA e RODRIGUES, 2013, p. 9).

As capas da revista Men’s Health seguem o mesmo padrão, servindo de vitrine para o
consumo do leitor. Apresentam-se da seguinte forma: com título da revista no topo da capa,
em cor vermelha; com uma imagem masculina central, geralmente de uma pessoa famosa,
como artista ou esportista; com muitas chamadas para as matérias da revista; e, na maioria das
capas, com uma imagem de uma mulher, geralmente na parte superior, na lateral direita, ou no
final, na lateral esquerda.
Vejamos as capas a seguir.
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Figura 1

Men’s Health, janeiro, 2017


Fonte: <http://www.menshealth.com.pt/Inicio/artigo/-probioticos->.

Como se trata da edição do mês de janeiro, a Men’s Health traz como principal
destaque “ANO NOVO, CORPO NOVO”, que produz um certo efeito de sentido: o ano muda
e com ele o sentido para o corpo do homem também, uma vez que este deve passar por
transformações, no sentido de melhorias físicas. Essa ideia de mudança corporal é reiterada ao
pedir que perca 5 kg em apenas um mês, como se observa na chamada: “PERCA 5 KG Até
Fevereiro”; ao indicar treinos fáceis para recuperar a forma, na chamada “Recupere a Forma.
Treinos fáceis para principiante”; na indicação de uma dieta, apontando o que comer, inscrito
na chamada “De magro a forte - Coma isto!”; e ainda com a referência, no final da capa, de
um guia completo para ter mais músculo e menos gordura.
Pelo que se observa, há todo um conjunto de técnicas indicado pela revista, no sentido
de delinear um perfil masculino na contemporaneidade. Com esse propósito, a revista faz
circular sentidos para este sujeito, cujas dicas são fundamentadas em postulados da ciência ou
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no saber de especialistas de áreas do conhecimento relacionadas às matérias. Sugere, portanto,


“técnicas e instrumentos para fabricação de um sujeito negociado socialmente pelo desejo de
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ser ou de vir a ser” (VIANA, 2010, p. 167-168), impondo e apontando modos de cuidar de si -
do corpo, do emocional, da vida -, modos de ser.
Nesses termos, essas práticas se encaminham na construção de estereótipos, de um
corpo que atende ao modelo idealizado socialmente: saudável, “sarado”, musculoso, dando
um tom de um sujeito muito másculo, viril e potente. São, portanto, práticas de bioasceses
exercidas sobre e para o corpo, construindo, assim, bioidentidades (ORTEGA, 2003).
Outra preocupação que se inscreve nas linhas discursivas dessa capa e que está em
consonância com o modelo ideal do homem contemporâneo é ter uma aparência jovial, de um
rosto sem rugas, como podemos detectar na chamada “Fim às rugas”. Usando as palavras de
Sant’Anna (2014, p. 188), “o antigo medo de envelhecer continua atual, mais incontornável
talvez agora, quando a expectativa de vida é maior e aquela dos prazeres corporais não cessa
de aumentar”.

Figura 2

Men’s Health, fevereiro, 2017.


Fonte: <http://osreformados.com/index.php?topic=197305.0>.

Nessa edição de fevereiro, a Men’s Health segue a mesma linha, na preocupação de


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apresentar o modelo ideal de masculinidade. Nessa edição, destaca-se em letras garrafais o


tema que a revista investe para chamar a atenção de seus leitores: “PERCA A BARRIGA”.
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Essa forma imperativa é seguida dos enunciados “Consiga-o sem dieta... e em 15 minutos por

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dia!”. Com isso, observamos que o discurso pretende mostrar que perder “barriga” pode ser
uma coisa fácil e rápida, o que representa o desejo dos leitores: de tornar sua barriga, como se
costuma dizer, “um tanquinho”, de forma rápida e sem sacrifícios. Se junta a esse discurso
outra chamada “Ganhe músculo – 40 exercícios para fazer em casa”, dialogando, dessa forma,
com a representação masculina, de um homem jovem, super musculoso e de barriga
“trincada”, anunciando como perdeu “17 kg”. Tal discursividade pode fornecer ao leitor a
crença de que é possível se obter um corpo assim.
Dessa forma, o que os discursos veiculados na Men‟s Health oferecem, assim como
qualquer outro texto midiático, não é o real, mas, como aponta Gregolin (2003b, p. 97), “uma
construção que permite ao leitor produzir formas simbólicas de representação da sua relação
com a realidade concreta”. Nesses termos, a revista participa da construção do imaginário de
seus leitores. Ela expõe, indica e estipula os estereótipos a seguir.
Percebemos que a revista se pauta de um discurso científico, seja do campo medicinal,
endocrinológico ou nutricional, para anunciar sua “verdade”, como podemos verificar nas
chamadas: “Alerta Saúde! Tem estes sinais no corpo?”; “Os melhores e piores alimentos para
homem...”.
Tal evocação é tomada de quem tem poder e autoridade para tanto – do saber médico,
que instalado na ordem do discurso, denotará “uma verdade”, ou no dizer de Foucault “uma
vontade de verdade”, projetando-se como indicações corretas ou recomendações plausíveis no
curso das atividades masculinas, na busca de subjetivar-se.
Também nessa capa se inscreve o discurso do campo da moda, cuja chamada alerta
para que se “vista melhor”. Para tanto, são oferecidas 98 ideias. Há, pois, uma preocupação
com a forma de se vestir, propondo, assim, um novo estilo que, agregado a outras estéticas –
de corpo, de vida, pode produzir uma representação ideal de masculinidade contemporânea.
Além desses apelos há aqueles ligados à sexualidade, como podemos verificar na
imagem de uma mulher, na lateral inferior da capa, com venda nos olhos e vestida apenas
com roupas íntimas, seguida do enunciado em destaque: “Mais sexo, menos monotonia”,
ensinando o leitor como seduzir a parceira. Constitui-se, pois, em um guia, com técnicas de
sedução, capaz dele conseguir fazer, na relação sexual, “Tudo que ela quer e nunca lhe
1741

contou”.
Ressaltamos, assim, com base em Foucault (2004), que a subjetividade é derivada dos
saberes instituídos em um dado momento histórico: a cada novo saber surgido operam-se
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mudanças nos modos de constituição do sujeito, uma vez que os indivíduos tornam-se

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subjugados a ele. O saber torna-se, assim, possibilidade do aparecimento de novas
subjetividades. Nessa direção, o discurso, seja este da medicina ou do campo da moda, ou da
sexualidade, “ao se constituir, então, como um conjunto de saberes, com padrões, idealizações
e prescrições, possui um inevitável caráter normatizador” (CABEDA, 2004, p. 152), o que
significa que esse discurso se institui como um discurso de autoridade, que pautado no saber,
dita as regras, estipula os moldes e engendra formas ou padrões a serem seguidos.

Figura 3

Men’s Health, março, 2017


Fonte: <http://breakingdad.pt/desafio-mens-health/>.

Na imagem 3, a revista Men’s Health destaca a seguinte chamada, que de certo modo,
atrai a atenção do leitor: “MUDE O CORPO!”, anunciando, para isso, o ganho de “volume
muscular” e a diminuição da “barriga”. Tais evocações surte um efeito de sentido: de que as
transformações que desejamos fazer no nosso corpo são possíveis, basta ver o antes e o
depois, conforme imagens estampadas de um apresentador de TV que conseguiu, em apenas 3
meses, perder 11 kg e ganhar 4 kg de massa muscular. Esses resultados são visíveis na nova
forma do apresentador: bem mais magro e esbelto, porém musculoso, mais jovial e com uma
1742

barriga “tanquinho”.
O corpo idealizado e propagado culturalmente parece se apresentar para o público
Página

leitor sob características que a própria Men‟s Health reconhece como sendo da ordem do

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desejo desse sujeito/leitor, como meta a ser atingida. Isso, nitidamente aparece nas palavras de
Angelica Banhara, Diretora de Redação da revista, ao argumentar:

Nosso leitor é o cara que se cuida, que pratica atividade física e se preocupa
com a alimentação. E quer saber mais: de pesquisas de ponta às soluções e
dicas para colocar em prática hoje. Ele vê nossas sugestões – simples,
práticas – como uma alavanca real para transformar sua vida. Ou seja, sua
modernidade está no fato de que ele acredita no que diz nosso slogan: viver
melhor é fácil!286

Os discursos veiculados na revista fazem parte da formação discursiva de uma nova


ordem que se instaura na contemporaneidade: a da biossociabilidade, como vimos em Ortega
(2003), cujo teor foca-se no corpo, na beleza, na saúde e que tem como suporte o saber
médico e tecnológico de nossa época. Isso pode ser verificado nos enunciados a seguir: “Não
fique careca! - 5 truques científicos que funcionam”.
Conforme Sant’Anna (2014), a calvície representa um problema estético importante,
capaz de inquietar homens de todos os tipos, e de diferentes épocas, mesmo aqueles
considerados pouco afinados com as modernices da época. Assim, esses truques científicos se
portam como discurso de autoridade, que induz o leitor a praticá-los, para não se tornarem
carecas.
Preocupada com a estética masculina a revista ainda anuncia: “Fast food que
emagrece”; “looks de primavera”; “Cosméticos para homens” e “Novos cortes de cabelos”.
Tudo isso em prol da construção de um novo homem: daquele que deve cuidar da
alimentação, da pele, dos cabelos, do visual e atingir ao padrão de masculinidade idealizado
socialmente.
Outro discurso recorrente é o da sexualidade, como podemos ver no entrecruzamento
da imagem da mulher, vestida sensualmente (na parte superior, na lateral direita), com o
verbal: “Sexy, elegante e tão sensual”. Embora não seja o discurso principal, a Men‟s Health
traz a temática que é tão peculiar ao homem, comungando, assim, com esse imaginário
masculino, marcado pelo erotismo e pelo fetiche sexual.
1743
Página

286
Disponível em: <http://www.publiabrilonline.com.br/marcas/men-s-health/plataformas/revista-impressa>.

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Figura 4

Men’s Health, Julho 2017.


Fonte: <http://www.altopapelaria.pt/?todos=Mens%20Health>

Na edição do mês de julho a revista traz uma imagem com mais um homem com o
corpo perfeito segundo o que é dito como perfeito, de acordo com a ideologia do mundo
contemporâneo. Trata-se, pois, de um homem másculo, viril, jovial, de corpo atlético,
musculoso e saudável.
O enunciado em destaque “TENHA UM CORPO ASSIM! – Consiga-o ainda este
verão” busca estabelecer a negociação entre a revista e o sujeito/leitor, esse sujeito que
manifesta desejos quanto a uma forma de corpo ideal, legitimando, assim, certos saberes aos
quais os sujeitos buscam em prol de si mesmos e de seu corpo. A imagem reforça esse
aparente desejo de se querer ter um corpo como o que se apresenta, afinal, é um corpo
malhado, elástico, forte, atlético e bonito.
Dessa forma, esses discursos ganham espaço na revista, por convergir para as políticas
do corpo belo, do corpo a ser bem cuidado com o propósito de uma boa aparência, de uma
pele saudável, ou seja, de uma estética que segue as linhas de um imaginário que se estabelece
1744

nos tempos atuais.


O discurso da sexualidade novamente se materializa. Como podemos observar, há uma
imagem de uma mulher sensual que se inscreve na parte superior, na lateral direita da capa,
Página

seguida da expressão “Férias com muuuito sexo”. Pela própria forma como se apresenta esse

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advérbio muito, já se notifica a intensidade da prática sexual. Isso remete à insaciabilidade do
sujeito masculino para com o ato sexual, denotando a demonstração de sua virilidade.
Assim, a escultura da corporalidade masculina, além do campo imagético, se
manifesta nos mais variados enunciados, principalmente naqueles que prometem efeitos
imediatos na estética como os exercícios físicos para perder peso, ganhar músculo e secar
barriga, nas dietas e técnicas de emagrecimento, entre tantos outros.

4 Considerações finais

Levando em consideração ao que foi analisado, podemos afirmar que a Men’s Health
enquanto veículo midiático desempenha o papel de mediação entre seus leitores e a realidade,
participando fortemente da construção de um imaginário social o qual se expressa por
ideologias e utopias (GREGOLIN, 2003b), que se materializam em formas verbais e
imagéticas. Tais materialidades funcionam como “vontades de verdade”, como um saber que
gera poder e, por sua vez, subjetividades.
Portanto, destaca-se, na materialidade analisada, um corpo masculino que atende ao
modelo idealizado socialmente: jovial, forte, saudável e belo, sempre musculoso e de barriga
“trincada”, dando um tom de um sujeito muito másculo, viril e potente. O corpo é, pois, o
ponto central na construção da subjetivação masculina, a base de toda atividade bioascética,
conforme atestado por Ortega (2003).
Assim, as imagens masculinas refletidas nas capas de Men‟s Health, juntamente com
o discurso da cientificidade como argumento de sustentação dos dizeres que ali se instauram
são capazes de funcionar como modelos ideais a seguir, como padrões estéticos para seu
leitor, na reconstrução de seu corpo e na produção de sua subjetividade.

Referências

CABEDA, Sonia T. Lisboa. A ilusão do corpo perfeito: o discurso médico na mídia. In:
STREY, Marlene N.; CABEDA, Sonia T. Lisboa e PREHN, Denise R. (orgs.). Gênero e
cultura: questões contemporâneas. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004.
1745

CASTILHO, Kathia. Interrelações da mídia, do design do corpo e do design da moda. In:


GARCIA, Wilton (Org.). Corpo e subjetividade: estudos contemporâneos. São Paulo:
Factash Editora, 2006, p. 86-96.
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ISBN: 978-85-7621-221-8
GREGOLIN, Maria do Rosário. Análise do discurso: lugar de enfrentamentos teóricos. In:
FERNANDES, Cleudemar Alves e SANTOS, João Bôsco Cabral dos (orgs.). Teorias
Linguísticas: problemáticas contemporâneas. Uberlândia: EDJFU, 2003a, p. 21-34.

______. O acontecimento discursivo na mídia: metáfora de uma breve história do tempo. In:
______ (Org.). Discurso e mídia: a cultura do espetáculo. São Carlos: Clara Luz, 2003b, p.
95-110.

FERNANDES, Cleudemar. A Análise do Discurso: reflexões introdutórias. 2. ed. São


Carlos: Claraluz, 2007.

FOUCAULT, Michel. Ética, Sexualidade, Política. Ditos e Escritos V. Rio de Janeiro:


Forense Universitária, 2004.

MALYSSE, S. Em busca do corpo ideal. In: Sexualidades: gênero e sexualidade. Rio de


Janeiro: Instituto de Medicina Social (UFRJ), v. 7 n. 8, p. 12-17, abr./1998.

ORTEGA, Francisco. Práticas de ascese corporal e constituição de bioidentidades. Cadernos


Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 11 n. 1, p. 59-77, 2003.

SANT’ANNA, Denise Bernuzzi. História da beleza no Brasil. São Paulo: Contexto,


2014.

SENA, Melly Fatima Goes; RODRIGUES, Marlon Leal. Representação discursiva das capas
da Men's Health. Revista AVEPALAVRA, ed. 14, 2º sem. 2013. Disponível em:
<http://www2.unemat.br/avepalavra/EDICOES/14/artigos/mellysena.pdf>. Acesso em: 20 jul.
2017.

VIANA, José Gevildo. O corpo em revista: mídia, corpo masculino e modos de


subjetivação. 2010. 248f. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade do Estado do Rio
Grande do Norte, 2010.

1746
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PÔSTER

MULHER E SEDUÇÃO NO DISCURSO PUBLICITÁRIO: OS EFEITOS DE


SENTIDO DAS PROPAGANDAS DE LINGERIE

Maria do Socorro do Nascimento Silva (UERN)


Ana Maria de Carvalho (UERN)

1 Considerações iniciais

Este trabalho analisa a produção dos efeitos de sentido em propagandas de lingerie


mostradas em revistas femininas, publicadas nos anos de 1991 e apenas uma mais recente, no
ano de 2011. Então, foram selecionadas quatro propagandas com diferentes marcas de
lingeries. Essas propagandas, aqui consideradas como práticas discursivas, foram analisadas à
luz dos dispositivos teóricos da Análise do Discurso de linha francesa, tomando como
referências Orlandi (2001), Gregolin (1995; 2003) e Fernandes (2007).
Então, este estudo partiu de questionamentos como estes: que estereótipo de mulher é
produzido pelas propagandas de lingerie? Que efeitos de sentido são produzidos sobre a
mulher, nesses textos publicitários? Que regularidades discursivas demarcam a ligação de
mulher e sedução em propagandas de diferentes marcas de lingerie? Para responder esses
questionamentos, traçamos como objetivo geral: analisar discursivamente propagandas de
diferentes marcas de lingerie veiculadas em revistas.
Esse trabalho consiste em uma investigação de abordagem qualitativa, de traços
interpretativistas, já que os resultados desta pesquisa não se dá por meio de métodos
estatísticos e sim de métodos investigativos, cuja preocupação maior é com a interpretação do
fenômeno.

2 Dispositivos teóricos

A Análise do Discurso de orientação francesa (AD), na sua origem, a partir de


Pêcheux, é construída com teorias advindas de diferentes áreas do conhecimento, instituindo-
se, pois, em uma perspectiva transdisciplinar, dialogando com outras áreas do saber para dar
1747

conta do seu objeto, o discurso. Dessa forma, muitos são os conceitos com os quais o analista
do discurso opera para dar conta de um corpus. Aqui elegemos alguns, na expectativa de
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analisar os dados aqui empreendidos. São eles: discurso e sentido; formação discursiva,
interdiscurso e memória; ideologia e sujeito discursivo.

2.1 Discurso, sentido e formação discursiva

Para muitos, a palavra discurso faz referência aos pronunciamentos políticos, a um


texto com uma boa estrutura, construído com recursos estilísticos bem rebuscados, entre
outras situações utilizadas nos contextos sociais. No entanto, o discurso do qual é tratado
nesta perspectiva, vai muito além de pronunciamentos, argumentações a tentar convencer
alguém sobre algo, rompendo, pois, com essas concepções advindas do senso comum, sendo
objeto de uma disciplina específica dotada de método de análise.
De acordo com Fernandes (2007, p. 18),

discurso, não é língua, nem texto, nem fala, mas que necessita de elementos
linguísticos para ter uma existência material. Com isso, dizemos que o
discurso implica uma exterioridade à língua, encontra-se no social e envolve
questões de natureza não estreitamente linguística. Referimo-nos a aspectos
sociais e ideológicos impregnados nas palavras quando elas são
pronunciadas.

Ou seja, o discurso ocorre quando interligamos a língua com a História. Na


perspectiva da AD, o discurso é tomado como um conjunto de elementos que está além do
texto, exterior à língua, ao sujeito, à fala e que se encontra no social e é historicamente
produzido. Dessa maneira, o discurso revela a articulação do linguístico – que é da ordem da
estrutura, com a exterioridade – que é da ordem sócio-ideológica; é visto, pois, como o espaço
onde se cruzam língua e História. Ou melhor, o discurso é tomado como processo em que se
articulam uma materialidade linguística e uma materialidade histórica (sócio-ideológica)
(GREGOLIN, 2003).
A palavra discurso, no seu sentido etimológico, traz a ideia de curso, de percurso, de
movimento. Como coloca Orlandi (2001, p. 15), “O discurso é assim a palavra em
movimento, prática de linguagem: com o estudo do discurso observa-se o homem falando”.
De acordo com Fernandes (2007), para interpretar um discurso é preciso considerar as
1748

condições histórico-sociais de produção que envolvem esse discurso. Assim, integrante da


noção de discurso encontra-se a noção de sentido.
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O sentido daquilo que é dito ou proferido depende do tempo e do local onde o dizer foi
produzido e de como os sujeitos envolvidos na interlocução se posicionam. Para Fernandes
(2007, p. 19),

O sentido é um efeito de sentido da enunciação entre A e B, é o efeito da


enunciação do enunciado. Isto, considerando que A e B representam
diferentes sujeitos em interlocução, inscritos em espaços socioideológicos
específicos.

Dessa forma, o sentido não deve ser entendido como algo dado, imanente, ou seja, não
nasce com a palavra, mas é determinado pela História e pelo social. Sendo assim, uma palavra
pode ter vários sentidos; isso vai depender do espaço socioideológico em que foi produzida,
isto é, de acordo com o campo social em que o sujeito tem convivência.
Esses sentidos e os efeitos causados por eles são formados a partir de uma formação
discursiva, a qual se define “como aquilo que numa formação ideológica dada – ou seja, a
partir de uma posição dada em uma conjuntura sócio-histórica dada – determina o que pode e
deve ser dito” (ORLANDI, 2001, p. 43). Ou seja, são formações que surgem de discursos
anteriores, que são transformados, trazendo com eles marcas históricas. Nesses termos, toda
formação discursiva apresenta, no seu interior, diferentes discursos, ao que nessa perspectiva,
denomina-se de interdiscurso.

2.2 Interdiscurso e memória discursiva

Decorre do processo de interação a formação de diferentes discursos que integram os


processos de formação e transformação sociais próprios à existência do homem na história.
Trata-se, pois, do interdiscurso, um conceito que segundo Fernandes (2007, p. 65) indica a
“presença de diferentes discursos, oriundos de diferentes momentos na história e de diferentes
lugares sociais, entrelaçados no interior de uma formação discursiva”.
O interdiscurso representa, conforme Orlandi (2001), todo o conjunto de formulações
construídas e já esquecidas que determinam o que dizemos; é aquilo que fala antes ou em
outro lugar e retorna sob a forma do já-dito, sustentando cada tomada de palavra. Podemos,
1749

assim, afirmar que os discursos são atravessados de palavras alheias, estando sempre fazendo
uso do que já foi dito em nossos enunciados.
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O interdiscurso está estritamente ligado à memória discursiva, uma vez que a memória
também faz parte das condições de formação do discurso. Dessa forma, a memória é chamada
por Orlandi (2001) de interdiscurso.
Fernandes (2007, p. 65) sintetiza o conceito de memória discursiva:

espaço de memória como condição do funcionamento discursivo constitui


um corpo-sócio-histórico-cultural. Os discursos exprimem uma memória
coletiva na qual os sujeitos estão inscritos. Trata-se de acontecimentos
exteriores e anteriores ao texto, e de uma interdiscursividade, refletindo
materialidades que intervêm na sua construção.

A memória discursiva não se refere a uma memória individual, representando as


recordações do passado ou a lembranças que vivemos. Mas se refere a uma memória social
coletiva, que remete a acontecimentos sociais distintos, ocorridos em diferentes momentos.
Nas palavras de Fernandes (2007, p. 60) a memória discursiva se trata de uma
memória coletiva: “até mesmo porque a existência de diferentes tipos de discurso implica a
existência de diferentes grupos sociais”. Para o autor, um discurso absorve a coletividade dos
sujeitos que compartilham aspectos culturais e ideológicos e mantém-se em contraposição a
outros discursos.
Assim, esse espaço de memória como condição do funcionamento do discurso, como
aponta Fernandes (2007), constitui um corpo sócio-histórico-cultural, no qual os sujeitos estão
inscritos.

2.3 Ideologia e sujeito discursivo

Althusser, ao fazer a releitura do materialismo histórico, discorda do conceito de


ideologia empregado por Marx, cujo sentido estava associado à “falsa consciência”, ou seja,
para Marx, a ideologia seria uma construção imaginária, não real. Já para Althusser, a
ideologia se constitui como a forma pela qual os homens vivem as relações imaginárias com
suas condições materiais, reais de existência (GREGOLIN, 2003). Ou seja, o ser humano cria
formas simbólicas de representação da sua relação com a realidade concreta. A ideologia se
1750

materializa nos atos concretos e tem por função constituir indivíduos em sujeito.
Conforme Gregolin (1995, p. 17),
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[…] A "ideologia" é um conjunto de representações dominantes em uma
determinada classe dentro da sociedade. Como existem várias classes, várias
ideologias estão permanentemente em confronto na sociedade. A ideologia é,
pois, a visão de mundo de determinada classe, a maneira como ela representa
a ordem social. Assim, a linguagem é determinada em última instância pela
ideologia, pois não há uma relação direta entre as representações e a língua.

Percebemos, assim, que a ideologia demarca a confrontação de classes em uma


sociedade; e uma vez que a sociedade é formada por várias classes, teremos diferentes
formações ideológicas. Segundo Fernandes (2007, p. 24), a “ideologia é imprescindível para a
noção do discurso, não apenas imprescindível, é inerente ao discurso”. É, portanto, a
ideologia que marca as diferentes posições dos sujeitos no meio social, caracterizando seus
embates, seus confrontos.
Nesses termos, o sujeito na AD não é visto de modo individual, mas é o resultado da
relação existente entre história e ideologia. É concebido como aquele construído na inter-
relação social, ou seja, aquele que se constitui em uma coletividade no meio social e
ideológico, em um dado momento da história. Trata-se, pois, de um sujeito que não é dono de
seu dizer nem é fonte do sentido, mas aquele que faz parte de uma conjuntura sócio-histórica
(FERNANDES, 2007). Melhor explicando, a noção de sujeito não se refere a uma
individualidade, a uma pessoa, ou a um dado a priori, mas de um sujeito que se constitui entre
o “eu” e o “outro”; como coloca Fernandes (2007, p. 31), que resulta “de uma ligação da
ideologia, inscrita histórico-socialmente, com o inconsciente, que dá vazão à manifestação do
desejo”.
Nas palavras de Orlandi (2001, p. 49), o sujeito discursivo é:

materialmente dividido desde sua constituição: ele é sujeito de e é sujeito a.


Ele é sujeito à língua e à história, pois para se constituir, para (se) produzir
sentidos ele é afetado por elas. Ele é assim determinado, pois se não sofrer
os efeitos do simbólico, ou seja, se não se submeter à língua e à história ele
não se constitui, ele não fala, não produz sentido.

Assim, o sujeito que se constitui nessa relação com o outro não pode ser homogêneo,
mas, da mesma forma como o discurso, apresenta-se como heterogêneo. Isto é, o sujeito
1751

discursivo é plural e está inserido em um meio sócio-histórico-ideológico, cuja voz dá


abertura a outras vozes.
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3 Análise do corpus

Dando início à análise do corpus, apresentamos, a seguir, uma propaganda da Darling


veiculada na revista Nova, em setembro de 1991, tendo como título: Você já viu um homem
alucinado? Calcinhas e Soutiens Darling deixam todo mundo doido.
Imagem 1

Produto: Coleção Paradise; Anunciante: Darling; Agência: admpitliuk


Veículo: Nova; Data: Setembro de 1991

O anúncio publicitário mostra a imagem de uma mulher sensual, totalmente sedutora


com a feição provocadora, com um olhar atraente e convidativo à prática do ato sexual. Sendo
assim, a mulher expressa atitude e ousadia ao está com as duas alças do soutien levantadas
para a parte de fora como se fosse retirá-lo.
O enunciado já começa com uma pergunta: Você já viu um homem alucinado? Essa
pergunta instiga o consumidor a estimular o imaginário de como seria esse homem alucinado,
que alucinações esse homem teria ao ver a mulher vestida com essa lingerie? Se ela ficaria no
1752

controle da situação já que uma pessoa alucinada não tem controle do que ver, do que ouve,
do sente ou até mesmo do que faz. Então, a curiosidade para ver um homem alucinado faz
com que o público tenha interesse em consumir o produto. O Subtítulo já dar a resposta, pois
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vai direto ao ponto sobre o que faz com que um homem fique alucinado, que são as calcinhas
e soutiens da marca “Darling”.
O efeito de sentido que a imagem reproduz é a de que a mulher sabe o que faz, é
experiente, em matéria de sexo, sedutora. As peças íntimas femininas que se instituem como
fetiches para muitos homens, na cena apresentada, denota ao desnudamento que antecede à
atividade sexual.
Assim, a posição sujeito que sustenta a propaganda acima provém da formação
discursiva em que a mulher além de ser objeto erótico, ela também é sujeito que exerce sobre
o homem seu poder de sedução, que o deixa desestabilizado, situação esta marcada pela
palavra “alucinado”. Por meio da sexualidade ela faz do homem um objeto com o qual pode
dispor e dominar

Imagem 2

/fotos/19910901_
/fotos/19910901_

Produto: Lingerie; Anunciante: DelRio, a lingerie que faz acontecer.


Agência: Lage & Magy; Veículo: Nova; Data: Setembro de 1991

Essa segunda propaganda, também veiculada na revista Nova, em setembro de 1991,


só que tendo como marca a DelRio. A cena reproduz um casal feliz, na cama, aparentando que
há pouco acabara de despertar.
O casal mostra-se está em sintonia. Ambos estão sorridentes, demonstrando um estado
1753

de felicidade. A imagem da mulher expressa sensualidade, feminilidade: vestida apenas com


peças íntimas as quais são brancas e rendadas, encontra-se deitada de lado, meio que de costas
Página

para o parceiro, apoiada em um travesseiro e com a mão na cabeça, meio que fazendo um

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charme. A imagem sensual da mulher é composta para produzir um efeito de sentido sedutor.
Assim, esta cena que se inscreve na propaganda da DelRio se junta à materialidade linguística
e provoca um certo efeito de sentido: para a prática do sexo não tem hora certa. Isso não é
estabelecido se é ao acordar, ou antes de adormecer. Pelo visto, o casal praticou sexo antes,
pois o próprio enunciado evoca isso: “Vai que ao acordar exista um clima no ar… vai que não
tenha hora certa para recomeçar…”
Também os enunciados “Vai acontecer? Vai de DelRio” expressam a vontade de
arriscar/vamos ver no que vai dar/senão tentar não vou saber se vai acontecer, tanto é que o
anunciante nomeia a DelRio como a lingerie que faz acontecer. Ou seja, insinua a mulher usar
a marca DelRio, pois a deixa mais sensual, investindo, dessa forma, na possibilidade de
acontecer novamente a relação sexual.
Nesses termos, podemos inferir que a posição de sujeito ocupada pelos idealizadores
da propaganda está ligada a uma formação discursiva em que a imagem que se tem da mulher
está ligada à carne, ao sexo, ao prazer. Registra-se, pois, um imaginário de mulher como
objeto erótico.

Imagem 3

1754

Produto: Lingerie; Anunciante: Hope, puro algodão, pura tentação; Agência: Agnelo Pacheco
Veículo: Nova; Data: Maio de 1997.
Página

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O enunciado da terceira ilustração diz que: “Como mulher, eu aconselho Hope para
aproximar os homens”. Isso nos faz pensar que só a mulher sabe como aproximar o homem e
é usada a palavra “aconselho” como se ela estivesse dando um direcionamento de como fazer
o certo, de que ela tem experiência, pois conselho só parte de alguém que já vivenciou um
determinado acontecimento.
O texto publicitário acima é sustentado pela posição de sujeito em que a mulher deve
seduzir o homem através do objeto de fetiche: peças íntimas, no caso, Hope, ou seja, ela deve
usar a referida lingerie com o objetivo de atrair e conquistar os homens. Dessa forma, a
mulher, desde que use Hope, é aí marcada como ímã que tem o poder de aproximar os
homens, de atraí-los.
Na peça publicitária presentifica uma prática social de gênero em que a mulher seduz
o homem e que, na área sexual, ela pode dominá-lo. No jogo erótico, insinuado no anúncio, a
mulher exerce poderes aos quais o homem subordina-se. O erótico é o objeto corpo vestido de
lingerie, que passa a determinar desejos e comportamentos.

Imagem 4

/fotos/19970501_
O Ministério da Sedução adverte: usar Duloren causa dependência química no coração, você pode se apaixonar’
(primeira campanha publicitária produzida em parceria com as redes sociais, - julho 2011).
1755

É válido ressaltar que esse anúncio publicitário é mais recente que os anteriores, pois
foi lançado em julho de 2011 e nele é perceptível os traços de diferença da lingerie e até
Página

mesmo da mulher. Primeiro, podemos ver que a lingerie é de cor escura, sendo que todas as

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outras eram brancas, o soutien tem bojo, o corpo das modelos anteriores eram sempre com
uma pouse voltada para lateral, já esta modelo se mostra de frente, só que com o olhar fixo
para o lado.
A cena apresentada pela Duloren é de uma mulher atraente: jovem, bonita, com um corpo
escultural, e usa uma lingerie escura, provocante, que realça seus dotes físicos naturais de forma
sedutora. Por trás dessa mulher pode ser visto batimentos cardíacos, assim deixando a entender que a
lingerie terá como alvo o coração do homem, que vendo uma mulher atraente vestida com uma
Duloren, baterá forte, pelo sentimento que será despertado.

O enunciado que se inscreve na propaganda - “O Ministério da Sedução adverte: usar


Duloren causa dependência química no coração, você pode se apaixonar” - nos faz lembrar o
recado/alerta, veiculado nas carteiras de cigarro, que o Ministério da Saúde passa para a
população. Estabelece aí a presença do interdiscurso, aquilo que fala antes ou em outro lugar e
retorna, sob a forma do já-dito. Para tanto, é acionada a memória discursiva, que, como
assinala Orlandi (2001, p. 31), torna possível todo dizer e retorna sob forma de pré-construído
o já dito que está na base do dizível sustentando cada tomada de palavra”.

4 Considerações finais

Entendemos que o gênero discursivo aqui em questão tem como objetivo a venda de
produtos, a partir de então focar em um público e fazer transparecer em seu imaginário a
necessidade de consumir tal produto, por meio de imagens e enunciados. Os anúncios
publicitários trazem consigo um jogo de argumentação implícita, que mexe com o imaginário,
em que não se ver apenas o produto, mas também o que está sendo passado por meio dos
enunciados, fazendo com que o consumidor seja manipulado e usufrua do produto com o
intuito de satisfazer seu desejo.
Dessa forma, os textos publicitários funcionam como um lugar de sentido no qual a
linguagem, verbal e imagética, torna-se significativa por meio de um trabalho de interpretação
e dos efeitos de sentidos construídos pelo leitor e consumidor.
As propagandas de lingerie têm como alvo consumidor o público feminino e é
1756

fundamentado nisso que são desenvolvidas. Assim, com o propósito de mexer com o
imaginário das mulheres, a propaganda faz uso da figura feminina da forma mais sensual e
Página

sedutora possível, mostrando uma mulher com domínio e poder de sedução.

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Dessa forma, a partir das quatro peças aqui analisadas, concluímos que a imagem
feminina estampada nesses anúncios é vista como objeto sexual, sendo assim, um estereótipo
feminino é produzido: a mulher é exposta como objeto de consumo, sendo mostrada apenas
como símbolo sexual de sedução e prazer, cujo corpo é deixado à mostra e visto como
produto a ser consumido.

Referências

FERNANDES, Cleudemar. A Análise do Discurso: reflexões introdutórias. 2. ed. São Carlos:


Claraluz, 2007.

GREGOLIN, Maria do Rosário. Análise do discurso: conceitos e aplicações. In: Alfa. São
Paulo, v. 39, p. 13-21, 1995.

GREGOLIN, Maria do Rosário Valencise. Análise do discurso: lugar de enfrentamentos


teóricos. In: FERNANDES, Cleudemar Alves e SANTOS, João Bôsco Cabral dos (orgs.).
Teorias Linguísticas: problemáticas contemporâneas. Uberlândia: EDJFU, 2003, p. 21-34.

ORLANDI, Eni P. Análise de Discurso: princípios e procedimentos. 4. ed. Campinas, SP:


Pontes, 2001.

1757
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ISBN: 978-85-7621-221-8
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O ENSINO DA ESCRITA NA LÍNGUA INGLESA UTILIZANDO O GÊNERO


TEXTUAL CHAT

Everton Moura dos Santos (EEGDR/CAPES)


Antonio Tássio Ferreira de Oliveira (UERN/CAPES)
Carlos Emerson de Souza Santos (UERN/CAPES)

1 Introdução

Neste trabalho utilizamos o gênero chat como proposta de atividades aplicando


sequência didática. Acreditamos que a utilização do gênero chat traz um novo significado a
linguagem escrita, pois através dele utilizamos as tecnologias móveis com programas de bate-
papo via internet como WhatsApp, Telegram, Snapchat, Viber, Facebook Messenger, entre
outros aplicativos de comunicação que pessoas de várias partes do mundo utilizam para
interagir com outras pessoas, esses chats podem ser utilizados como fonte de ampla
aprendizagem, aperfeiçoamento, compreensão e escrita de um idioma alvo, no nosso caso a
língua inglesa. Com essa proposta, esperou-se que a aula com o uso do gênero digital no
ensino/aprendizagem pudesse incentivar o desenvolvimento de aspectos linguísticos na língua
estrangeira, ao mesmo tempo em que forme cidadãos capazes de atuar nas mais diversas
práticas sociais.

2 Sequência didática

Apesar de que o ensino através dos gêneros textuais tem facilitado a vida dos
professores e melhorado a qualidade de suas aulas, trabalhar a habilidade de escrita ainda é
um obstáculo que precisa ser vencido, principalmente em instituições públicas escolares. Mas
para Joaquim Dolz, Michèle Noverraz e Bernard Schneuwly (2001) é possível sim ensinar a
escrever textos nas escolas, através da criação de contextos de produção precisos. Para essa
criação de contextos de produção precisos, o método que esses autores defendem é a
sequência didática, que é definida como “um conjunto de atividades escolares organizadas, de
1758

maneira sistemática, em torno de um gênero textual oral ou escrito” (DOLZ; NOVERRAZ;


SCHNEUWLY, 2001, p. 97). Como podemos ver na figura 1, os autores fizeram um
esquema para exemplificar a sequência didática de forma mais clara.
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FIGURS 1 – esquema da sequência didática (DOLZ; NOVERRAZ; SCHNEUWLY,
2001, p. 98).

2.1 Aula

Participaram da atividade vinte e cinco alunos. Foram necessárias quatro aulas para
aplicação, uma para apresentação da proposta e primeira produção, duas para apresentação
dos módulos e uma aula para produção final. Na primeira aula, foi feito uma apresentação da
proposta, nesta aula, foi apresentado indiretamente algumas características do gênero para
despertar o conhecimento de mundo dos alunos sobre Chat. Logo após, foi revisado com os
alunos as características do gênero em questão mais a fundo, como: Ampliação do repertório
sobre o gênero em estudo, por meio da leitura e análise de textos do gênero chat e com suas
peculiaridades, por exemplo, Linguagem informal, Abreviações, emojis, e etc.

2.2 Apresentação da Situação

De acordo com o conhecimento obtido na primeira aula e o conhecimento do alunos


sobre o gênero, os estudantes tiveram que elaborar uma conversação no WhatsApp partindo da
situação a seguir: Um blog pediu à um colega da sua sala de aula uma resenha sobre uma série
atual de sucesso e você ajudará seu colega na indicação e descrição dessa série. Para isso, a
conversa acontecera no aplicativo WhatsApp.
1759

2.3 Primeira Produção


Página

Na primeira produção, os alunos colocaram seus conhecimentos em prática,

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elaborando uma conversa em uma folha que foi entregue em sala de aula com a situação
apresentada anteriormente. Essa primeira produção foi feita em sala de aula, no final da
produção, recebemos e depois corrigimos os textos dos alunos para podermos trabalhar os
módulos de acordo com as dificuldades encontrada nas correções. Dois exemplos da primeira
produção desta atividade, de alunos não identificados, pode ser encontrado no (Anexo A e B).

2.4 Módulo

De acordo com o esquema da sequência didática de (DOLZ; NOVERRAZ;


SCHNEUWLY, 2001) vista na figura 1, após a primeira produção, foi elaborado os módulos
a partir da correção dos textos dos alunos, esses módulos foram feitos em forma de mini-
aulas. Feita a correção, conseguimos perceber bastante dificuldade dos alunos em formular
pergunta e em vocabulário típico do gênero, então decidimos dividir esta sequência didática
em dois módulos. O primeiro módulo foi aplicado na segunda aula, nós trabalhamos as
Questions Words (Who, When, What, Why, Which, Where, How). Neste módulo,
exemplificamos todas as Questions Words e em seguida aplicamos uma atividade para melhor
fixação do conteúdo e sanar quaisquer outras dúvidas. Já o segundo módulo, realizado na
terceira aula, elaboramos de acordo com a dificuldade dos alunos em diferenciar e utilizar a
linguagem formal e informal na língua inglesa. Então mostramos vários exemplos de
conversas informais/formais em inglês e mais vocabulários. E para terminar a segunda mini-
aula, fizemos mais uma atividade para os alunos para sabermos se eles conseguiram entender
melhor o conteúdo da aula.

2.5 Produção Final

A produção final foi realizada no quarto encontro, os alunos colocaram em prática


mais uma vez o que eles já tinham conhecimento e o que eles aprenderam de acordo com as
mini-aulas apresentadas. Os alunos receberam a primeira produção com correções e sugestões
de melhorias, e com o uso do aplicativo fizeram a produção final. Abaixo, podemos ver um
1760

exemplo da produção textual de uma conversa entre dois alunos.


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1761

2.6 Atividade Complementar

No final da aula aplicada, foi criado um grupo com todos os alunos da turma, para
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que eles pudessem pôr em prática no seu dia a dia o que foi ensinado com o gênero chat.

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3 Conclusão

Como podemos observar no exemplo acima, os alunos fizeram uso de linguagem


informal como foi ensinado nos módulos da sequência didática, como: as abreviações, emojis
fotos e etc. então para nós, que desenvolvemos este trabalho, foi bastante gratificante saber
que pode ensinar gêneros em sala de aula e unir as novas tecnologias ao nosso favor. Pois o
presente artigo objetivou a caracterização do gênero chat através do aplicativo WhatsApp.
Para que esse exercício investigativo se tornasse possível, foi necessária a construção de um
corte teórico que amparasse a perspectiva do trabalho com os gêneros textuais (BAKHTIN,
2003) e com o uso de sequência didática (DOLZ; NOVERRAZ; SCHNEUWLY, 2004).
Escolhemos utilizar o WhatsApp na aplicação do gênero devido a sua relevância e
popularidade entre usuários de dispositivos móveis. Acreditamos que o trabalho com gêneros
por meio do aplicativo pôde potencializar as práticas de ensino de uma segunda língua e, ao
mesmo tempo, preparar os alunos frente às novas formas de significação que as tecnologias
digitais móveis favorecem.

Referências

ARAÚJO, J. C. A organização constelar do gênero chat. Anais do XX Jornada Nacional de


Estudos Lingüísticos. João Pessoa: Idéia, 2004.

BARBOSA-PAIVA, C. L. Uso do chat na sala de aula de língua espanhola: uma proposta a


partir da análise do gênero. In: SOTO, U.; MAYRINK, M.; GREGOLIN, I. (Org.).
Linguagem, Educação e Virtualidade: experiências e reflexões. São Paulo: Cultura
Acadêmica (Editora UNESP), 2009. p. 225-240.

BRASIL. Ministério da Educação, Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Parâmetros


Curriculares Nacionais: códigos e suas tecnologias. Língua estrangeira moderna. Brasília:
MEC, 1999. p. 49-63.

BROWN, H. Teaching by principles: an interactive approach to language pedagogy. London:


Pearson Education, 1994.

DOLZ, Joaquim; NOVERRAZ, Michele; SCHNEUWLY, Bernard. Sequências didáticas para


o oral e a escrita: apresentação de um procedimento. In: DOLZ, Joaquim; SCHNEUWLY,
1762

Bernard e colaboradores Gêneros orais e escritos na escola. Campinas: Mercado de Letras,


2004. p. 95-128.
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ANEXOS

Anexo A – Exemplo de uma primeira produção feita por dois alunos

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Anexo B – Exemplo de uma primeira produção feita por dois alunos

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O ENSINO DA ESCRITA NA LÍNGUA INGLESA UTILIZANDO O GÊNERO


TEXTUAL CURRICULUM VITAE

Larissa Kália Fernandes Costa (UERN/CAPES)


Maria Idalina Mesquita de Morais (CEIPEV/CAPES)

Introdução

Marcuschi (2003; 2008) afirma que é impossível pensar em comunicação a não ser por
gêneros textuais. Partindo desse pressuposto, podemos afirmar que como a comunicação se dá
através de gêneros textuais, é fundamental que o professor em sala de aula trabalhe e auxilie o
aluno na prática do uso dos gêneros textuais, pelo fato de serem textos presentes no cotidiano
do aluno tornando-os assim textos autênticos. Segundo Brown (1994), Um texto autêntico é
um material escrito, de qualquer natureza, veiculado socialmente, para satisfazer um
propósito. São exemplos de textos autênticos artigos de jornal, revistas, poemas, capítulos de
telenovela, propagandas, embalagens, recibo de cartão de crédito, menu de restaurantes, bulas
de remédio, catálogos, filmes, vídeos, música etc. O uso de textos autênticos, ou seja,
originais, proporciona um aprendizado mais efetivo, colocando o aluno no contexto em que o
texto está inserido, esse tipo de texto impulsiona o aprendizado do aluno, deixando-o mais
motivado, proporcionando um conhecimento extra para ele, valorizando seu conhecimento
prévio.
Neste trabalho utilizaremos o gênero textual Curriculum vitae para desenvolver a
escrita do aluno com atividades propostas através de uma sequência didática que é “um
conjunto de atividades escolares organizadas, de maneira sistemática, em torno de um gênero
textual oral ou escrito” (SCHNEUWLY e DOLZ, 2004, p. 97).
A atividade foi aplicada em uma turma do 2º ano do Ensino médio do Centro de
Educação Integrada Professor Eliseu Viana, como resultado do trabalho desenvolvido por
alunos do Projeto Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID/CAPES) e do
subprojeto de Língua Inglesa.
O objetivo desse trabalho é que os alunos (re) conheçam e produzam o gênero textual
1765

Curriculum Vitae, podendo assim compreender e ter a oportunidade de estudar o tipo de


vocabulário utilizado no gênero. Para isso, primeiro faremos uma aula de pré-leitura. Nesse
Página

momento ocorrerá à verificação do conhecimento prévio do aluno sobre o gênero e

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apresentação do gênero, bem como sua composição. Em um segundo momento, faremos uma
aula de leitura com interpretação de textos e o estudo do vocabulário mais utilizado no
Curriculum Vitae. E por último, uma aula de escrita onde apresentaremos a situação e
iniciaremos a etapa de primeira produção do Curriculum Vitae. Em seguida aplicou – se os
módulos necessários para que ocorresse uma produção final com êxito. Pretendemos também,
verificar como se dá, e como é possível, o ensino da escrita utilizando o gênero textual
Curriculum vitae.

1 Gêneros textuais e o ensino em sala de aula

Koch e Elias (2014) defende a ideia segundo a qual os indivíduos desenvolvem uma
competência metagenérica que lhes possibilita interagir de forma conveniente, na medida em
que se envolvem nas diversas práticas sociais. Portanto, os gêneros textuais estão fortemente
ligados ao nosso cotidiano, cabendo assim o estudo e o uso em sala de aula, já que nesse
âmbito o aluno utiliza o gênero para se comunicar e também para que ocorra a própria aula, já
que nesse contexto é necessário o uso dos gêneros, como por exemplo a produção de um
resumo, uma resenha, a interpretação de uma tirinha, a realização de uma palestra, entre
outros.
Devido às inúmeras práticas sociais existentes, temos diferentes gêneros textuais que
são produzidos através de modelos. Escritores produzem textos com base em “modelos”
construídos socialmente, razão pela qual, de um modo geral, não temos dificuldade de
produzir, por exemplo, um bilhete ou um e-mail, já que se trata de gêneros textuais bastante
comuns em nossa comunicação diária, os modelos são abstrações de situações de que
participamos e do modo de nos comportamos linguisticamente. Também os modelos são
constituídos e desconstituídos ao longo de nossa existência em decorrência de inúmeras
práticas sociais de que participamos.
É muito importante que o professor trabalhe os diversos tipos e gêneros que fazem
parte do cotidiano do aluno, para que eles possam compreender que o texto é construído
diariamente nos momentos de comunicação tanto escrito quanto oralmente, e não apenas as
1766

formas com a qual a escola vem trabalhando (narração, dissertação etc).


Trabalhar os gêneros textuais em sala de aula aproxima o aluno do seu cotidiano e isso
proporciona condições melhores para a aprendizagem, devido o uso contínuo do gênero fora
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da sala de aula. Também facilita o domínio sobre os gêneros e contribui de maneira
significante para a prática da escrita.
É importante conhecermos os diferentes gêneros textuais que circulam em nosso
contexto social, porém não se faz necessário produzir todos, visto que são muitos, pois são
inúmeras nossas práticas sociais.
Sendo assim, os gêneros textuais não devem ser trabalhados de maneira isolada, o
aluno não precisa memorizar todos os gêneros textuais. Pelo contrário, deve ocorrer de
maneira contextualizada, trazendo uma reflexão para o aluno para que o aluno compreenda
em que situação o gênero será lido e em qual contexto o texto foi escrito, com qual finalidade
o texto foi escrito.
O professor precisa atuar como mediador, levando o aluno a compreender o sentido do
texto, seu propósito comunicativo, dando oportunidade para o aluno de escrever também para
outros leitores e não apenas para o professor.
A esfera social dos alunos é determinante para o estudo dos gêneros em sala de aula,
pois é interessante o estudo dos gêneros que os alunos mais utilizam ou que irão precisar
produzir em um futuro próximo, como o curriculum por exemplo, já que a maioria irá precisar
produzir para inserir-se no mercado de trabalho.

A escola é tomada como autêntico lugar de comunicação e as situações


escolares como ocasiões de produção/recepção de textos. Os alunos
encontram- se, assim, em múltiplas situações em que a escrita se torna
possível, em que ela é necessária. Mais ainda: o funcionamento da escola pode
ser transformado de tal maneira que as ocasiões de produção de textos se
multiplicam: na classe, entre alunos; entre classes de uma mesma escola; entre
escolas. Isto produz, forçosamente, gêneros novos, uma forma toda nova de
comunicação que produz as formas lingüísticas que a possibilitam. Freinet é,
sem dúvida, quem foi mais longe nesta via que encara com seriedade a escola
como autêntico lugar de produção e utilização de textos (SCHNEUWLY;
DOLZ, 1997).

Bernard Schneuwly e Joaquim Dolz trás a ideia de que a escola é o lugar adequado
para que ocorra as ocasiões linguísticas, como a produção e a recepção de textos. Pois o aluno
encontra um leque de situações de escrita possíveis.
1767

Para facilitar o trabalho do professor com os gêneros textuais, devem-se utilizar as


sequências didáticas. Segundo Schneuwly e Dolz (2004), a sequência didática é considerada
um conjunto de atividades didáticas, que são organizadas de maneira sistemática que envolve
Página

um gênero textual tendo como objetivo facilitar ao aluno o domínio desse gênero, fazendo

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com que ele possa escrever e falar de uma forma mais adequada em uma situação
comunicativa. As sequências didáticas (SD) são atividades ordenadas, ligadas entre si, e por
meio delas o professor pode explorar diferentes práticas escritas, incluindo módulos e
correções antes da produção final. Observando assim a progressão do aluno, oportunizando-o
a correção de seus erros juntamente com uma reescrita, garantindo o alcance do objetivo, que
é a produção final.
A utilização da sequência didática como instrumento de ensino garante ao aluno uma
preparação antes da produção final, já que a uso dessa estratégia se dá por etapas, em que
primeiro se conhece o gênero, suas partes, composição, função e esfera social de
comunicação, para só então, ser feita a proposta de interpretação do texto recorrente do
gênero e a realização de sua primeira produção.
A utilização das sequências didáticas contribui muito para a aprendizagem dos alunos,
pois eles podem integrar o conhecimento adquirido em sala de aula às suas práticas
comunicativas do seu cotidiano.

2 Metodologia

Primeiramente realizamos uma aula de pré-leitura, em que verificou – se que o


conhecimento prévio dos alunos sobre o gênero textual curriculum vitae. Em seguida
perguntamos em que esfera comunicativa geralmente esse gênero circula, quem são os
interlocutores desse gênero e qual suporte rotineiramente é usado para sua divulgação. Então
o professor fez alguns questionamentos para que esse conhecimento prévio fosse ativado. A
maioria dos alunos disseram que nunca tinham produzido o gênero, mas que sabiam que, em
um futuro próximo, iriam precisar produzir, pois gostariam de começar a trabalhar e se
mostraram motivados para a realização das atividades que iriam ser propostas. Só então
utilizando um equipamento de Datashow, mostramos o gênero, iniciando a aula de leitura. A
partir daí começamos a observar as partes que o compõem, o que cada parte deve conter e
quais informações devem ser colocadas em cada parte. Então, discutimos a descrição do
gênero bem como suas características.
1768

Para a aula de leitura, escolhemos cinco currículos que estavam disponíveis na


internet, em Língua Inglesa, e distribuímos para que eles observassem e trocassem
informações entre si. Só então foi feita a interpretação dos currículos, observando os perfis
Página

dos candidatos e quais os vocábulos mais comuns em todos os currículos disponíveis em sala.

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Essa aula foi, também, fundamental para destacar a importância do uso e a função do
currículo em nosso cotidiano e sobre as vantagens de ter e produzir um bom currículo, pois é
através dele que o interlocutor se conecta com o mercado de trabalho da nossa sociedade e
com a carreira profissional escolhida. Esse entendimento gerou a criação de uma situação real
de comunicação e preparou – os para a atividade de escrita que era produzir seu próprio
currículo.

3 Aula de escrita através da sequência didática

Após as etapas vistas anteriormente e de todo o passo a passo de como escrever o


currículo, os alunos foram introduzidos em uma situação real de trabalho: a professora criou
uma empresa estrangeira que oferecia vagas para alguns cargos. A partir de um anúncio
disponível em um jornal, o aluno imaginaria que estava desempregado, mas era qualificado
para assumir o cargo. Os currículos deveriam ser produzidos em língua inglesa, e o aluno
escolheria o cargo no quadro disponível colocando sua qualificação de acordo com a vaga
pretendida. A atividade foi desenvolvida individualmente e o professor auxiliou os alunos em
todo o processo de escrita. Nesse momento os alunos poderiam consultar os modelos
impressos entregues em sala de aula, como também dicionários de língua inglesa para retirar
as eventuais dúvidas com relação a vocabulário. Ao final da produção, o professor recolheu os
trabalhos para que assim pudesse corrigir e verificar quais os erros mais frequentes, para, só
então, produzir os módulos de escrita com o objetivo de revisar o conteúdo que os alunos
mais erraram antes de sugerir a produção final.
Durante a correção da primeira produção de escrita observou - se que os principais
erros ocorreram na escrita dos endereços, já que em língua inglesa o endereço é escrito de
maneira diferente (inversa) com relação à escrita do endereço em língua portuguesa.
Apareceram divergências também, quanto a escrita das profissões, pois eles escolheram
cargos que não lhes foram ofertados no quadro “Há vagas” do jornal fictício, ignorando a
indicação de que o cargo pretendido deveria estar de acordo com o os cargos oferecidos.
Levando em conta essa dificuldade, elaboramos dois módulos referentes a esses
1769

assuntos, trouxemos para a sala de aula, na aula seguinte, junto com as produções corrigidas.
Os módulos tinham o objetivo de trabalhar esses erros frequentes.
Na aula seguinte, depois de aplicarmos os módulos e tirarmos as dúvidas, entregamos
Página

para os alunos à primeira produção para que eles observassem quais foram os erros, que

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estavam enumerados e descritos em cada atividade. Os alunos foram orientados a corrigir os
erros e fazer a produção final.

4 Resultados

Todos os alunos participaram efetivamente das atividades desenvolvidas por meio da


sequência didática. A produção final teve êxito, pois todos corrigiram os erros selecionados.
Acreditamos que a utilização do gênero Curriculum Vitae em sala de aula trouxe
uma visão mais ampla da linguagem escrita fora do contexto da sala de aula, e comumente
usada no cotidiano do aluno, levando-o a refletir sobre a necessidade de aperfeiçoar,
compreender e aprender a escrita no idioma alvo, a língua inglesa.

Considerações finais

Ao término deste trabalho concluímos que a utilização de sequências didáticas


utilizando os gêneros textuais no ensino da escrita geram bons resultados, pois o aluno fica
motivado pelo fato de o texto ser autêntico e fazer parte do seu cotidiano, ressaltando ainda
que a maioria deles irá produzir seu próprio currículo durante sua vida profissional. Através
dessa atividade, tivemos a oportunidade de trabalhar tópicos gramaticais e tirar dúvidas sobre
vocabulário existente no gênero.

Referências

BEATO-CANATO, Ana Paula Marques; CRISTOVÃO, Vera Lúcia Lopes. Proposta de


avaliação de sequências didáticas com foco na escrita. In.: BARROS, E. M. D. de e RIOS-
REGISTRO, E. S. Experiências com sequências didáticas de gêneros textuais – parte 2.
Campinas: Pontes, 2014, p. 203-233.

DOLZ, Joaquim; NOVERRAZ, Michèle; SCHNEUWLY, Bernard. Sequências didáticas para


o oral e a escrita: Apresentação de um procedimento. In: DOLZ, Joaquim; SCHNEUWLY,
Bernard e colaboradores. Gêneros orais e escritos na escola. Organização e tradução de
ROJO, Roxane; CORDEIRO, Glaís Sales. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2004. p. 95-
1770

128.

KOCH, Ingedore Villaça; ELIAS, Vanda Maria. Escrita e práticas comunicativas. In: Ler e
escrever: estratégias de produção textual. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2014, p. 53- 62.
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ISBN: 978-85-7621-221-8
MARCUSCHI, L. A. Gêneros textuais: definição e funcionalidade. In: DIONISIO, A. P.;
MACHADO, A. R.; BEZERRA, M. A. (Org.) Gêneros textuais & ensino. 2. ed. Rio de
Janeiro: Lucerna, 2003, p. 19-36.

_____. Gêneros textuais: definição e funcionalidade. In: DIONISIO, A. P.; MACHADO, A.


R.; BEZERRA, M. A. (Org.) Gêneros textuais & ensino. 2. ed. Rio de Janeiro: Lucerna,
2003, p. 19-36.

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TRABALHANDO SEQUÊNCIA DIDÁTICA ATRAVÉS DE GÊNERO TEXTUAL:


ANÚNCIO PUBLICITÁRIO NO CENTRO DE EDUCAÇÃO INTEGRADA
PROFESSOR ELISEU VIANA

Paloma Luana da Silva Delfino (UERN/CAPES)


Maria Idalina Mesquita de Morais (CEIPEV/CAPES)
Adriana Morais Jales (UERN/CAPES)

Considerações iniciais

O ensino de Língua Inglesa em escolas públicas tem passado por muitas melhorias.
Uma das justificativas é a atenção ao estudo dos gêneros textuais/ discursivos em sala de aula,
já que segundo os PCN, o ensino deve ser pautado em textos com função comunicativa
(Antunes, 2009). Através das disposições de que a comunicação humana se realiza por meio
de textos concretos que se manifestam em diversos gêneros textuais, entende-se a necessidade
de que o ensino de línguas esteja ancorado no estudo destes em diversas situações
comunicativas. Torna-se imprescindível que a escola favoreça um ensino pautado no
desenvolvimento das quatro habilidades linguísticas (ouvir, falar, ler e escrever).
Com bases na teoria dos gêneros e na corrente de estudo do Interacionismo
Sociodiscursivo de Bronckart (2009 apud RIOS-REGISTRO, 2014, p. 261) este artigo tem
por propósito trabalhar o gênero textual/discursivo anúncio publicitário através de sequência
didática no segundo ano do Ensino Médio no Centro de Educação Integrada Professor Eliseu
Viana (CEIPEV). A proposta de trabalhar a produção escrita através desse gênero surgiu
durante as discussões do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência
(PIBID/CAPES), subprojeto Língua Inglesa.
O presente trabalho encontra-se estruturado a partir de uma fundamentação teórica em
que expomos as teorias em que nos baseamos, tanto com relação ao gênero, como sobre
aspectos voltados para a sequência didática de Dolz et. al. (2004). Segue da apresentação da
metodologia, de como o trabalho foi realizado, dos resultados e discussões, momento em que
consideramos alguns dos aspectos percebidos a partir do resultado de nosso estudo e
1772

finalizamos com as considerações finais.


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1 Fundamentação teórica

O estudo dos gêneros textuais/ discursivos se torna cada vez mais difundido na
academia, considerando que a manifestação da língua se dá através destes, é perfeitamente
compreensivo a necessidade de fomento a pesquisas na área. A concepção de gêneros
segundo os autores Bakhtin (2003), Marcuschi (2008), Antunes (2009) e Koch e Elias (2012),
ressalta a função destes no meio social, partindo de sua definição. Para Bakhtin (2003) o uso
da língua realiza os gêneros, e sejam estes escritos ou orais, servem à comunicação.
Segundo Antunes (2009), as disposições dos Parâmetros Curriculares Nacionais
(PCNs) enfatizam a necessidade dos textos serem trabalhados de forma mais contextualizada
nas escolas, uma vez que a comunicação se dá através destes. Antunes defende que os textos
são amplos, cada um com função comunicativa, estrutura, e se dão por meios dos gêneros
textuais que abrangem o linguístico e o social. Bakhtin (2003, p. 262) exprime que os gêneros
discursivos são “tipos relativamente estáveis de enunciados”, que possuem uma forma, mas
que na realização não ocorrem sempre do mesmo modo, já que cada pessoa possui um estilo e
o transfere para o gênero. De acordo com Koch e Elias (2012, p. 101) os gêneros são “práticas
sociocomunicativas”, e que, portanto, variam com o passar do tempo. Ressaltam ainda a
competência metagenérica que as pessoas possuem, capacidade que permite a adaptação a
diferentes situações comunicativas (KOCH & ELIAS, 2014).
Para Marcuschi (2008), os gêneros são textos materializados com função, propósito e
estilo. O autor defende que “toda manifestação verbal se dá sempre por meio de textos
realizados em algum gênero” (MARCUSCHI, 2008, p. 154), o que permite inferir que a
comunicação é regida pelos gêneros discursivos/ textuais. Considerando que, por serem
manifestações sócio-históricas, os gêneros sempre acompanharão o desenvolvimento da
sociedade, e esta fará uso dos gêneros devido à necessidade de se comunicar. Marcuschi
(2003, p. 20) ressalta que os gêneros não são apenas estruturas linguísticas, com uma forma
que permeia todos os existentes, pois, estes “caracterizam-se muito mais por suas funções
comunicativas, cognitivas e institucionais do que por suas peculiaridades linguísticas e
estruturais”.
1773

Tendo por base que os gêneros se manifestam tanto na escrita como na oralidade, faz-
se importante que tais aspectos sejam trabalhados no meio escolar. A escrita é uma atividade
de interação, o que implica a existência de uma relação entre sujeitos, o escritor e o leitor
Página

(ANTUNES, 2003). Considerando a vertente de estudos do Interacionismo Sociodiscursivo

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(ISD), em que Schneuwly e Dolz fundamentam seus estudos (STUTZ et. al., 2014), percebe-
se a necessidade de adaptar os gêneros textuais aos objetivos da escola, uma vez que estes não
possuem por função primeira o ensino, mas sim, a comunicação.
Schneuwly e Dolz (2004) trazem uma proposta que permita o desenvolvimento da
habilidade escrita através de atividades sequenciadas, seria a sequência didática. Essa tem por
finalidade principal propiciar ao aluno um melhor domínio do gênero estudado. A sequência
didática é esquematizada com a apresentação da situação, produção inicial, módulos e por
fim, tem-se a produção final. (ver figura 1).

A apresentação da situação é o momento que o professor expõe de forma detalhada a


tarefa que os alunos terão que realizar, ressaltando os aspectos inerentes ao gênero, como
particularidades linguísticas e função comunicativa. Na produção inicial solicita-se que os
alunos elaborem uma primeira versão do gênero, momento em que poderão colocar em
prática aquilo que foi estudado durante a apresentação da situação. A partir desta primeira
versão, o professor pode analisar se houve equívocos relacionados à estrutura ou a aspectos
gramaticais.
Após a correção da primeira produção, se houver necessidade, o professor elabora os
módulos, atividades diversas que possibilitam aos alunos exercitarem e relembrarem os
pontos em que mais tiveram dificuldade. Na produção final, o aluno colocará em prática as
noções aprendidas sobre o gênero desde a produção inicial. O processo de escrita é bastante
enriquecedor, pois os alunos podem perceber que “o conhecimento é construído
progressivamente em práticas comunicativas e culturais situadas” (BEATO-CANATO et al.,
1774

2014, p. 216).
Desta forma, percebe-que que o ensino de línguas deve ser voltado para o
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desenvolvimento da comunicação, e que por se manifestarem através dos gêneros discursivos/

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textuais, se faz altamente necessário o emprego de atividades que possibilitem aos alunos
desenvolverem suas competências comunicativas. Rios Registro (2014, p. 264), salienta que
“é por meio da apropriação do gênero que os indivíduos agem com linguagem. Assim, a
sequência didática é um importante meio de introduzir um estudo estruturado, sequencial que
permite ao aluno entender sua construção e importância, uma vez que a produção escrita de
textos legítimos é um processo bastante complexo, daí a necessidade de trabalhá-los de forma
gradativa para que se consiga uma evolução favorável.

2 Metodologia

A proposta de trabalhar sequência didática através do gênero anúncio publicitário


surgiu com o propósito de aprimorar o desenvolvimento da habilidade escrita em inglês.
Tendo por base o modelo de sequência didática proposta por Schneuwly e Dolz (2004), foi
trabalhado a apresentação da situação; a primeira produção; os módulos, que nesse caso foram
dois; e a produção final respectivamente. A aplicação desta sequência se deu em uma turma
do 2º série do ensino médio no Centro de Educação Integrada Professor Eliseu Viana
(CEIPEV), no decorrer de quatro aulas, de cinquenta minutos cada.
Com o intuito de apresentar o gênero, foram inicialmente exibidos, com auxílio de um
projetor de mídia, alguns exemplos de anúncios em língua inglesa durante uma aula de leitura
para que o aluno pudesse ter um primeiro contato e assim se familiarizar com o gênero (figura
2). Com o objetivo de avaliar a percepção do aluno quanto à forma, estrutura, função e as
características do gênero e para que seus conhecimentos prévios fossem avaliados foram
feitas às seguintes perguntas: O que está sendo anunciado? Quais cores compõem o anúncio?
Você consegue entender o contexto?
1775
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Fonte: http://www.welikeviral.com/files/2014/09/Funny-Billboard-3.jpg

Após o estudo do gênero, foi pedido aos alunos que desenvolvessem anúncios
publicitários, os quais deveriam ter como objetivo a divulgação de um novo negócio em sua
cidade, bairro ou rua. Após a primeira escrita, com a identificação dos desvios relativos à
estrutura e elaboração de frases, houve a correção através da elaboração de módulos, a
proposta de reescrita e, ao final da sequência, os textos dos alunos foram encaminhados para
publicação em mídias digitais e divulgação nos murais da escola. A partir da criação da
situação permitiu-se que o aluno tivesse clareza do quê, para quê, e para quem escrever, tendo
a oportunidade de dialogar diretamente com seu público alvo, assim como ressalta Marcuschi
(2003) ao dizer que “a criação de situações com contextos que permitam reproduzir em
grandes linhas e no detalhe a situação concreta de produção textual”.

3 Resultados e discussões

Após a correção da primeira produção, notou-se que os alunos não conseguiram


entender a estrutura pela qual o gênero anúncio publicitário se manifesta, pois alguns alunos
não inseriram imagens em suas produções, por exemplo. Outro equívoco cometido foi a falta
do uso de verbos no modo imperativo que são predominantes no gênero, sendo utilizados pelo
anunciante como ferramenta para persuadir o comprador.
Fez-se necessário, a aplicação de dois módulos, com intuito de trabalhar os desvios
1776

encontrados nas correções. Um, com ênfase no estudo da estrutura do anúncio publicitário, e
outro, voltado para o exercício do uso do modo imperativo. Em seguida, foi realizada a
Página

produção final (figura 3 e 4), momento em que se deu o processo de refacção da produção

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inicial, pois, como enfatizado Lopes-Rossi (2006), a reescrita é uma importante etapa no
processo de aprendizagem. É necessário que os alunos entendam que escrever é um processo
que demanda tempo para sua realização e que quanto mais praticada, melhor se torna. Apesar
da sequência didática trazer o termo produção final, entende-se que a escrita nunca pode ser
acabada, esta é apenas considerada satisfatória para um determinado objetivo.

Fonte: Produção escrita de alunos do 2º ano do Ensino Médio, 2017.

Durante essa última etapa, percebeu-se que os alunos tiveram uma atenção maior
quanto à correção dos pontos que foram destacados nas produções anteriores. Houve alguns
casos em que o aluno não completou o processo da sequência, por motivo de falta às aulas,
mas pode-se dizer que a atividade com gênero anúncio publicitário foi bastante satisfatória,
pois teve a participação e o empenho da maioria dos alunos.

Considerações finais

Este trabalho teve como principal objetivo desenvolver a habilidade de escrita em


língua inglesa por meio do gênero textual/discursivo anúncio publicitário, tendo como base a
proposta de sequência didática de Schneuwly & Dolz. Essa proposta de trabalhar a produção
escrita através desse gênero surge das discussões do Programa Institucional de Bolsa de
Iniciação à Docência (PIBID/CAPES), subprojeto Língua Inglesa.
Compreende-se que, a comunicação se dá por meio de gêneros e que a sua escolha,
1777

segundo Bakhtin (2003), evoca a vontade discursiva do falante, por isso, é necessário que o
professor traga para sala de aula os propósitos comunicativos dos gêneros, atrelados às
Página

práticas discursivas, motivando o aluno às práticas de escrita diante do uso real da língua.

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Por fim, nota-se que trabalhar com os gêneros discursivos/ textuais no ensino de
língua inglesa, ainda representa um grande desafio quando voltados ao trabalho ativo em sala
de aula, principalmente na escola pública onde vemos a grande falta de recursos e
desmotivação dos alunos ao aprendizado de uma língua estrangeira. No entanto, pôde-se
constatar através dessa experiência, que é possível trabalhar a língua inglesa de forma ativa,
motivando o aluno ao uso da língua, para que assim este perceba que pode sim desenvolver
habilidades linguísticas em outro idioma e usá-lo para a comunicação.

Referências

ANTUNES, Maria Irandé Costa Morais. Aula de português: encontro e interação. São Paulo:
Parábola Editorial, 2003.

______. Língua, texto e ensino: outra escola possível. São Paulo: Parábola Editorial, 2009.

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

BEATO-CANATO, Ana Paula Marques; CRISTOVÃO, Vera Lúcia Lopes. Proposta de


avaliação de sequências didáticas com foco na escrita. In.: BARROS, E. M. D. de e RIOS-
REGISTRO, E. S. Experiências com sequências didáticas de gêneros textuais – Parte 2.
Campinas: Pontes, 2014, p. 203-233.

DOLZ, Joaquim; NOVERRAZ, Michèle; SCHNEUWLY, Bernard. Sequências didáticas para


o oral e a escrita: Apresentação de um procedimento. In: DOLZ, Joaquim; SCHNEUWLY,
Bernard e colaboradores. Gêneros orais e escritos na escola. Organização e tradução de
ROJO, Roxane; CORDEIRO, Glaís Sales. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2004. p. 95-
128.

KOCH, Ingedore Villaça; ELIAS, Vanda Maria. Escrita e práticas comunicativas. In: Ler e
escrever: estratégias de produção textual. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2014, p. 53- 62.

______. Ler e compreender: os sentidos do texto. 3. ed. São Paulo: Contexto, 2012.

LOPES-ROSSI, Maria Aparecida Garcia. Gêneros discursivos no ensino de leitura e produção


de textos. In: KARWOSKI, A.M.; GAYDECZKA, B.; BRITO, K. S. (Orgs.). Gêneros
textuais: reflexões e ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2006, p.73-84.

MARCUSCHI, L. A. Gêneros textuais: definição e funcionalidade. In: DIONISIO, A. P.;


MACHADO, A. R.; BEZERRA, M. A. (Org.) Gêneros textuais & ensino. 2. ed. Rio de
1778

Janeiro: Lucerna, 2003, p. 19-36.

______. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São Paulo: Parábola


Editorial, 2008, p. 146 - 224.
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RIOS-REGISTRO, E. S. A sequência didática na formação inicial: o gênero literário em foco.
In.: BARROS, E. M. D. de e RIOS- REGISTRO, E. S. Experiências com sequências
didáticas de gêneros textuais – Parte 2. Campinas: Pontes, 2014, p. 261-278.

STUTZ, Lídia; LANFERDINI, Priscila Azevedo da Fonseca; SOUZA, Josiane Silva de.
Trabalho de parceria entre a Universidade e a escola: uma experiência de intervenção de
ensino mediada pela proposta de elaboração de sequências didáticas. In.: BARROS, E. M. D.
de e RIOS-REGISTRO, E. S. Experiências com sequências didáticas de gêneros textuais –
Parte 2. Campinas: Pontes, 2014, p. 157-179.

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PÔSTER

O GÊNERO TEXTUAL CONVITE NA ESCRITA DA LÍNGUA INGLESA POR


MEIO DE SEQUÊNCIA DIDÁTICA: UMA EXPERIÊNCIA NO ENSINO MÉDIO

Sonaylli Thaise Souza Cortez (UERN/CAPES)


Márcio Simão do Nascimento Mendes (EEARCP/CAPES)

Introdução

O presente artigo tem como propósito apresentar a experiência realizada a partir do


uso da proposta de ensino da escrita em língua inglesa através do uso de uma sequência
didática, um conjunto de atividades organizadas sistematicamente em torno do gênero textual
convite. Foi possível realizar esse trabalho através da parceria que existe entre a universidade
e as escolas públicas por meio do PIBID. A efetivação desse trabalho aconteceu numa turma
de 2º ano do Ensino Médio em uma escola pública em localizada na cidade de Mossoró-RN.
Essa proposta de ensino visa melhorar a aprendizagem dos alunos, em especial na habilidade
da escrita em inglês e ao mesmo tempo busca também ajudar o professor a realizar atividades
mais eficazes.
A utilização dos gêneros textuais no ensino de línguas tem trazido resultados
positivos, muitos professores e autores defendem e incentivam o uso dos gêneros textuais na
sala de aula como uma inovadora forma tanto de estudar quanto de ensinar a língua.
Marcuschi (2003; 2008) argumenta que trabalhar com gêneros é uma extraordinária maneira
de se trabalhar com a língua em seus mais diversos usos. Seguindo este mesmo pensamento,
outra autora, Antunes (2002), acredita que as atividades organizadas em torno de gêneros
textuais, além de ampliar a competência do uso dos gêneros textuais para os alunos,
proporcionam o uso real da língua.
A partir de estudos realizados através do Programa institucional de bolsas de iniciação
à docência- PIBID de letras inglês da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte –
UERN, sobre gêneros textuais no ensino de línguas, mais precisamente no ensino de inglês,
foi desenvolvido uma proposta de ensino da escrita da língua inglesa utilizando um gênero
textual, o convite. O gênero textual convite é um gênero muito popular, bastante conhecido e
1780

utilizado pelas diversas classes de pessoas. Devido a sua popularidade e também seu uso
bastante objetivo, apostamos no uso desse gênero para auxiliar na aprendizagem da língua
Página

inglesa, principalmente na habilidade da escrita, que é o nosso foco.

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1 Referêncial teórico

1.1 O uso dos gêneros textuais e de sequências didáticas para o ensino de línguas

Ao longo de nossas vidas, diariamente, estamos expostos a uma imensa quantidade de


situações comunicacionais. Nós nos comunicamos de diversos modos, seja de forma oral ou
escrita. O ser humano possui uma constante necessidade de comunicação e de interação e é
justamente a partir do propósito de se comunicar com outro, diante dessa necessidade que
surgem os gêneros textuais.
Gêneros do discurso ou gêneros textuais de acordo Marcuschi (2003; 2008) são
fenômenos históricos vinculados a nossa vida cultural e social que contribuem para organizar
e estabilizar nossas atividades comunicativas. Eles se caracterizam como eventos textuais
maleáveis e dinâmicos que surgem de acordo com as necessidades e atividades socioculturais.
Trata-se de entidades sócio-comunicativas, que contornam qualquer situação comunicativa,
aliás, nossa comunicação se dá por meio de textos, que se materializam sempre em gêneros
textuais.
Os gêneros textuais são tipos de enunciados relativamente estáveis, como define
Bakhtin (2003) realizados em situações de comunicação culturalmente já estabelecidas. Eles
são usados de acordo com a necessidade do autor e também de acordo com objetivo dele.
Neste trabalho, os gêneros foram usados no âmbito escolar, com o objetivo de além de fazer
com que o aluno domine o gênero, exercite a habilidade da escrita em inglês. Pois, como
veremos a seguir nos próximos parágrafos, o uso dos gêneros textuais na sala contribui
positivamente tanto no ensino e na aprendizagem.
O uso dos gêneros textuais na sala de aula traz uma perspectiva bastante positiva para
o ensino. Muitos autores recomendam apostar nos utilização dos gêneros na escola e na
realidade, o uso de gêneros não é tão atual algo novo, eles já vem sendo usado há bastante
tempo só que a recomendação atual é que reconheçamos eles de uma maneira diferente. Os
gêneros já são usados na escola, porém é preciso que vejamos eles como mais que uma forma
de comunicação e possamos compreende-los como um objeto de ensino, que auxilia na
1781

aprendizagem. Segundo Schneuwly e Dolz (2004), na missão de ensinar a ler e escrever os


gêneros sempre estiveram presentes, o que mudou é a visão do gênero apenas como um
instrumento de comunicação. Atualmente o gênero é reconhecido como objeto de ensino e de
Página

aprendizagem e sendo usado justamente como objeto de ensino e aprendizagem no âmbito

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escolar, proporciona ao aluno o domínio do gênero nas práticas de linguagem para que ele
possa responder às exigências comunicativas quando assim for necessário.
Marcuschi (2003) considera o trabalho com os gêneros textuais na escola como
promissor. Ele acredita que os gêneros são modelos comunicativos que geram expectativas e
compreensão mútua. Uma excelente forma de estudar e exercitar a produção textual e a língua
em seu uso real e autêntico, já que o aluno tem a oportunidade de produzir textos inteiros ao
contrário de enunciados soltos.
A partir dos vários aspectos positivos encontrados nos estudos realizados sobre os
gêneros textuais, gêneros na sala de aula e também sobre a habilidade da escrita, tivemos a
iniciativa de realizar também uma experiência com os gêneros textuais na sala de aula da
observação do PIBID. Após diversas reuniões tratando sobre esse assunto, trabalhar a
habilidade da escrita em inglês através da utilização do gênero convite por meio de sequência
didática.

1.2 O gênero textual convite

O gênero textual que escolhemos pra trabalhar em inglês na sala de aula foi o Convite.
O convite é um gênero textual bastante utilizado e conhecido. Sua principal função é de gerar
uma comunicação entre sujeito que está convidado e o que está sendo convidado, sobre um
determinado evento que virá a acontecer.
O convite é um gênero que além de popular, também é muito necessário. Na tarefa de
convidar pessoas para algum evento, seria muito difícil convidar pessoa por pessoa
explicando todas as informações necessárias para chegar ao evento, seria algo cansativo e
talvez até ineficaz, pois provavelmente as pessoas não conseguiriam decorar todas as
informações até a data do evento chegar. Então, o gênero convite tem justamente esse papel,
informar sobre o evento e conter todas as informações necessárias (data, local, horário, etc.)
para que o convidado possa conseguir chegar até o evento e a comunicação entre ele e o
anfitrião seja concluída.
1782
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1.3 Sequência didática

Sequência Didática ou SD é um conjunto de atividades sistematizadas, organizadas


para ensinar um conteúdo por etapas e módulos, passo a passo para que o aluno evolua até
conseguir dominar o conteúdo. Vejamos na figura 1 o esquema de uma sequência didática:

Figura 1

Esquema da sequência didática (DOLZ; NOVERRAZ; SCHNEUWLY, 2004, p. 98)

No nosso trabalho foi elaborada uma a sequência didática para ensinar o gênero
textual convite. Então, na nossa experiência a SD tem o seguinte objetivo: “Uma sequencia
didática tem, precisamente, a finalidade de ajudar o aluno a dominar melhor um gênero de
texto, permitindo lhe, assim, escrever ou falar de uma maneira mais adequada numa dada
situação de comunicação” (DOLZ; NOVERRAZ; SCHNEUWLY, 2004, p. 97). Isto é,
através das atividades passo a passo o aluno tem a oportunidade de aprender e desenvolver
algo que antes ele não dominava, nesse caso, o uso dessa SD traz oportunidade dos alunos
desenvolverem novas práticas de linguagens através do gênero convite em inglês.

2 Metodologia

Esse trabalho foi realizado primeiramente através de uma pesquisa bibliográfico,


que de acordo com Gil (2002) é o tipo de pesquisa baseada em material bibliográfico já
existente, como livros, artigos, etc. Fizemos uma pesquisa bibliográfica a cerca dos gêneros
1783

textuais, dos gêneros textuais no ensino e também da habilidade da escrita. Também


estudamos sobre as sequências didáticas e sobre as experiências a partir do uso de SD com
gêneros. Tivemos como referência principalmente as teorias de Antunes (2003), Marcuschi
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(2003) e Schneuwly e Dolz (2004).

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A partir dos estudos, foi escolhido o gênero convite para ser trabalhado em sala de
aula. O convite foi trabalhado por meio de sequência didática, elaboramos um conjunto de
atividades organizadas sistematicamente em torno do gênero. Essas atividades foram
executadas passo a passo, gradativamente, objetivando que os alunos dominassem o gênero
textual proposto em língua inglesa. A execução dessa atividade levou dois dias e quatro aulas
para ser concluída.

3 Análise e resultados

A sequência didática com o gênero textual convite teve inicio a partir da pré-leitura do
conteúdo a ser trabalhado. Essa atividade pré-leitura foi realizada para ativar o conhecimento
prévio dos alunos e assim prepara-los para o que viria pela frente. Seguido o esquema da SD,
o gênero foi introduzido. Para que os alunos pudessem ampliar seus conhecimentos, foi
exibido um slide em data show, apresentando detalhadamente toda a estrutura, a função e as
particularidades do convite. Foi explicado também algumas diferenças que existem de
português em inglês no convite para que eles não se confundissem, eles precisavam se atentar
a organização do endereço e de data em inglês, que é um pouco diferente do português, assim
como outras diferenças também pois essa atividade seria realizada totalmente em inglês.
Logo após a exibição do slide, foi apresentada a situação. Os alunos deveriam produzir
um convite para algum evento que eles gostariam de realizar. Os alunos formaram duplas,
alguns preferiram fazer individualmente. Foi entregue um modelo de convite em inglês para
que os alunos pudessem ter como base e assim e realizar a primeira produção do convite. 33
alunos realizaram a primeira produção, 15 duplas e 3 alunos individuais. Essa aula sobre o
gênero e a primeira produção durou duas aulas.
Os convites foram recolhidos e fizemos as correções, 3 duplas e um aluno individual
conseguiram realizar a primeira produção sem erros. Quantos ao resto da turma, as correções
foram apontadas por meio de numeração. Os erros dos alunos foram enumerados para que
eles pudessem ver e corrigir. Seguindo o esquema da SD, foi observado quais foram os erros
mais recorrentes entre os alunos, para então realizar os módulos que tem o propósito de
1784

trabalhar os erros e os problemas encontrados na primeira produção, para que sejam


superados (SCHNEUWLY E DOLZ, 2OO4).
Foi observado que os erros mais frequentes estavam relacionados à data e o endereço
Página

em inglês, os demais erros eram pequenas particularidades que podiam ser corrigidas

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individualmente com ajuda do professor. Então no segundo e ultimo dia de atividade, em mais
duas aulas foi feito, um módulo trabalhando datas e endereços em inglês, esse módulo foi
composto foi um slide no data show e um exercício. Os outros erros menos comuns nós
explicamos individualmente como se resolvia. Após isso os alunos realizaram a produção
final.
Depois dos módulos e das orientações individuais, os resultados da produção final
foram bastante positivos. Apesar de 1 dupla e 1 aluno individual não terem refeito o convite,
os outros 30 alunos completaram a proposta, antederam as correções e conseguiram produzir
o convite corretamente, sem erros.
Com a conclusão da proposta de ensino, após a produção final, constatamos que o
resultado da proposta foi bastante satisfatório, levando em conta que a maior parte dos alunos
conseguiu realizar o que foi proposto em pouco tempo. Foi uma grande evolução que houve
desde a primeira produção, através do módulo trabalhado e das orientações individuais eles
atenderam as correções apontadas e em apenas 4 aulas produziram os convites, completando a
proposta de ensino.
Através dessa proposta, esses alunos tiveram a oportunidade de dominar
gradativamente o gênero textual convite em inglês, podendo utilizar em uma futura ocasião e
além de exercitar a habilidade da escrita em inglês.

Conclusão

Nosso trabalho teve como meta apresentar uma experiência realizada em uma sala de
aula de uma escola pública nas aulas de língua inglesa por meio de uma sequência didática,
seguindo o modelo de Schneuwly e Dolz (2004). Nesta proposta, organizamos atividades com
o gênero convite e, a partir disso, pudemos observar que os alunos foram capazes de produzir
o texto orientado sem muita dificuldade, apesar de ser em língua estrangeira.
Com a realização dessa proposta de ensino, foi possível concluir que o uso gêneros
textuais no ensino de línguas trazem resultados positivos e que é muito produtivo trabalhar
com os gêneros textuais na sala de aula. Concluímos também que é apesar dos desafios
1785

existentes no ensino de LI nas escolas públicas, possível realizar atividades eficazes


envolvendo a habilidade da escrita do inglês quando se busca maneiras alternativas e quando
se planeja e se organiza de forma adequada à sua realidade de ensino.
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referências

ANTUNES, Maria Irandé Costa Morais. Textualidade e gêneros textuais: referência para o
ensino de línguas. In:______. (Org.). Aula de português: encontro & interação. São Paulo:
Parábola Editorial, 2003. p. 39-105.

_____. Língua, gêneros textuais e ensino. PERSPECTIVA, Florianópolis, v. 20, n.0.1, p.


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DOLZ, Joaquim; NOVERRAZ, Michele; SCHNEUWLY, Bernard. Sequências didáticas para


o oral e a escrita: apresentação de um procedimento. In: DOLZ, Joaquim; SCHNEUWLY,
Bernard e colaboradores. Gêneros orais e escritos na escola. Trad. E Org. de Roxane Rojo e
Glaís Sales Cordeiro. Campinas, SP: Mercado das Letras, 2004.

GIL, ANTONIO CARLOS. Como elaborar projetos de pesquisa. 4. ed. São Paulo: Atlas,
2002.

MARCUSCHI, Luiz Antônio. Gêneros Textuais: definição e funcionalidade. In: DIONÍSIO,


Ângela P.; MACHADO, Anna R.; BEZERRA, Maria A. (Org.) Gêneros Textuais e Ensino.
2. ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2003.

_____. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São Paulo: Parábola Editorial,
2008.

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PÔSTER

O USO DOS GÊNEROS TEXTUAIS/DISCURSIVOS NAS AULAS DE LÍNGUA


INGLESA DO ENSINO MÉDIO

Vanessa Raíssa Benevides Oliveira (UERN)


Adriana Morais Jales (UERN)

Introdução

Esse trabalho é uma continuação e aperfeiçoamento do que temos feito no Programa


Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID/CAPES), Subprojeto Letras Inglês,
Campus Central da UERN. O propósito desse trabalho não é criticar o trabalho de a ou b, e
sim, identificar de que forma os gêneros textuais estão sendo orientados em sala de aula no
que se diz respeito ao ensino das quatro habilidades (ler, escrever, ouvir e falar) nas aulas de
língua inglesa. Para isso, partimos então da problemática: Como são orientados os gêneros
textuais/discursivos no ensino das quatro habilidades nas aulas de língua inglesa do Ensino
Médio de uma escola pública? A partir desse questionamento, desenvolvemos algumas
questões de pesquisa que são: Os gêneros textuais estão sendo utilizados como ferramenta de
ensino nas aulas de língua inglesa? Com que frequência? Quais gêneros são utilizados com
mais frequência? Qual a finalidade de trabalhar esses gêneros em sala de aula? Há
dificuldades para trabalhar essas quatro habilidades em sala de aula? Se sim, quais?
Mostrar como os gêneros textuais/discursivos são trabalhados em sala de aula no
ensino das quatro habilidades de língua inglesa é importante para percebermos se os métodos
utilizados realmente funcionam de forma positiva e para que possamos refletir no que
podemos melhorar para que as aulas de língua inglesa sejam cada vez mais produtivas e não
se resumam ao estudo de gramática e memorização de regras. E também para que quem ainda
não faz uso dessa ferramenta de ensino, possa perceber que o ensino de línguas através dos
gêneros é a forma mais eficaz de trabalhar essas quatro habilidades.
Para realização dessa pesquisa, traçamos alguns objetivos, sendo eles: (a) identificar se
há o uso dos gêneros textuais nas aulas de Língua Inglesa no Ensino Médio e com que
frequência; (b) mostrar os gêneros que são utilizados com mais frequência pelo professor nas
1787

aulas; (c) mostrar se há dificuldades enfrentadas pelo professor para trabalhar as habilidades
de ler, escrever, ouvir e falar através dos gêneros; e (d) verificar a finalidade do uso desses
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gêneros.

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A pesquisa foi realizada por meio de observações em aulas de Língua Inglesa no
Ensino Médio de uma Escola Pública de Ensino. Nesta pesquisa, o professor foi o participante
principal a ser observado, pois foi nele e em suas aulas que conseguimos respostas para
nossos questionamentos. O professor respondeu um questionário elaborado por mim e minha
orientadora, e então pudemos fazer comparações entre suas respostas e suas aulas.

1 Embasamento teórico: gêneros textuais/discursivos

Abordamos neste tópico estudos sobre os gêneros textuais/discursivos e sua


aplicabilidade ao ensino de línguas. Autores como Bakhtin (2003), Marcuschi (2003) entre
outros foram basilares em nossa investigação.
Bakhtin (2003) define os gêneros do discurso como tipos relativamente estáveis de
enunciados. Para o autor, é impossível se comunicar verbalmente a não ser por um gênero,
assim como é impossível se comunicar verbalmente a não ser por algum texto. Ele ainda
afirma que os gêneros do discurso organizam o nosso discurso quase da mesma forma que o
organizam as formas gramaticais. Para ele, os gêneros do discurso são bem mais mutáveis que
as formas da língua, pois para o falante eles têm significado normativo, não são criado pelo
falante, e sim dado a ele.
Esta visão corrobora com os estudos de Marcuschi (2003). O autor afirma que os
gêneros textuais são fenômenos históricos, profundamente vinculados à vida cultural e social.
Para o autor, não há nenhuma forma de se comunicar se não for através de um gênero.
Segundo ele, os gêneros contribuem para ordenar e estabilizar as atividades comunicativas do
dia-a-dia. Os gêneros textuais estão presentes em todas as nossas práticas comunicativas,
mesmo que não sejamos conscientes disso. Marcuschi (2008, p. 134) diz que “quando
dominamos um gênero textual, não dominamos uma forma linguística e sim uma forma de
realizar linguisticamente objetivos específicos em situações sociais particulares”.

1.1 Gêneros textuais/discursivos e ensino de línguas


1788

As proposições de Antunes (2002) consideram os gêneros textuais de extrema


importância para o ensino de línguas. Para ela, os gêneros de textos são classes de exemplares
concretos de texto e menciona que
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Em síntese, mesmo conhecendo as dificuldades de chegar a classificações
mais precisas e consistentes, vale tomar os gêneros como referência para o
ensino da língua, e, consequentemente, para o desenvolvimento de
competências em fala, em escuta, em leitura e em escrita dos fatos verbais
com que interagimos socialmente (ANTUNES, 2009, p. 57).

Antunes (2002) acredita que se as atividades, sejam elas no Ensino Fundamental ou no


Médio, em cada unidade de cada série, deveriam ser elaboradas tendo em base um gênero
textual para ser o objetivo central nos momentos de fala, escrita, leitura e análise e
sistematização da linguística em sala de aula. Com isso, ao final do ano, o aluno teria
produzido e adquirido conhecimento de pelo menos oito gêneros diferentes, não ficariam
presos a um ou dois gêneros durante todo o ano.
Com o passar dos anos e com novas tecnologias, os gêneros textuais vão se
modificando e uma variedade de novos gêneros textuais vai surgindo, sejam eles orais,
escritos, digitais entre outros, uma infinidade de gêneros que não conseguimos listar. E é cada
vez mais utilizado em salas de aula com um único intuito: melhorar o ensino de línguas. Koch
e Elias (2010) falam desses novos gêneros e das mudanças com o passar dos tempos quando
afirmam que os gêneros “são dinâmicos e sofrem variações na sua constituição, que, em
muitas ocasiões, resultam em outros gêneros, novos gêneros” (KOCH e ELIAS, 2010, p.101).
Os PCN (Parâmetros Curriculares Nacionais) sugerem que o trabalho com textos seja
feito através de gêneros textuais, orais ou escritos. Mas para Marcuschi (2008), esses mesmos
parâmetros que sugerem o uso de gêneros textuais no trabalho com textos, têm dificuldades
em selecionar os gêneros adequados para se trabalhar, isso se deve a grande variedade de
gêneros textuais existentes.
Marcuschi (2008, p. 209) esclarece sua posição em relação aos PCN:

Consideram-se apenas os gêneros com realização linguística mais formal e


não os mais praticados nas atividades linguísticas cotidianas. Isso não seria
ruim se houvesse atenção para um maior número de casos e situações. Além
disso, falta noção da gradação de que se fala em outras partes dos PCN.
Também é curioso que se tomem gêneros diversos para tratar a produção e
compreensão.
1789

Partindo desse ponto de vista, o autor acha que muitas melhoras ainda precisam ser
feitas no que se diz respeito ao ensino de gêneros textuais. Não é o simples fato de trabalhar
com um gênero que vai resolver todos os problemas enfrentados e melhorar o ensino, mas sim
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como trabalhar esse gênero, como ensiná-lo. E também que sejam ensinados gêneros do
convívio social dos alunos.
Segundo Schneuwly e Dolz (2004), “Do ponto de vista do uso e da aprendizagem, o
gênero pode, assim, ser considerado um megainstrumento que fornece um suporte para a
atividade nas situações de comunicação e uma referência para os aprendizes” (SCHNEUWLY
e DOLZ, 2004, p. 75). Seguindo esse ponto de vista dos autores, o estudo de gêneros de texto
na escola como objetos de ensino e aprendizagem, cria condições para a construção de
conhecimentos linguístico-discursivos necessários para as práticas de linguagem em sala de
aula.
Koch e Elias (2014, p. 54) afirmam que “todos nós, falantes/ouvintes,
escritores/leitores, construímos, ao longo de nossa existência, uma competência metagenérica,
que diz respeito ao conhecimento de gêneros textuais, sua caracterização e função”. E é essa
competência que nos faz escolher adequadamente o que produzir textualmente nas situações
comunicativas em que estamos participando, como afirma o autor. Ainda seguindo essa linha
de raciocínio, as autoras acrescentam que

Ainda, é essa competência que possibilita aos sujeitos de uma interação não
só de diferenciar os diversos gêneros, isto é, saber se estão diante de um
horóscopo, um bilhete, um diário ou de uma anedota, um poema, um
telegrama, uma aula, uma conversa telefônica, etc., como também identificar
as práticas sociais que os solicitam (KOCH e ELIAS, 2014, p. 55).

As autoras acrescentam que além dessa competência de sabermos diferenciar um


gênero de outro e também de identificar as práticas sociais, somos também capazes de
reconhecer se o texto é de caráter narrativo, expositivo e/ou argumentativo. Koch e Elias
(2014) acreditam que todas as nossas produções, sejam elas orais ou escritas, se baseiam em
formas-padrão relativamente estáveis de estruturação de um todo a que denominamos gênero.

2 Metodologia e análise de dados

Nossa pesquisa foi realizada em uma Escola Estadual do município de Mossoró-RN.


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Em um período de três semanas, foram observadas seis aulas, duas por semana, no mesmo
dia, cada uma com 50 minutos de duração, em uma turma do 2ª ano do Ensino Médio com
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aproximadamente 35 alunos de faixa etária entre 15 e 17 anos.

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O nosso foco nas observações foi o professor e a forma como suas aulas eram
ministradas. Antes do início das observações, o professor respondeu a um questionário para
que pudéssemos fazer uma comparação de suas respostas com suas aulas.
Durante as observações, fizemos anotações de tudo aquilo o que julgamos importante
para nossa pesquisa e não interferíamos nas aulas, ficávamos apenas observando e anotando
os pontos importantes.

2.1 Análise de dados

Partindo de um ponto de vista geral, depois de concluída a pesquisa, percebemos que


precisaríamos de mais tempo de observação dentro da sala de aula, pois alguns pontos de
nossa pesquisa não foram definidos por falta de dados. Nessas três semanas de observação, o
professor realizou atividades diferentes, porém não houve nenhuma atividade voltada para as
habilidades que eram de nosso interesse, ou que pudéssemos identificar alguns pontos que
traçamos importantes para nosso projeto. De qualquer forma, vamos fazer aqui a análise das
aulas observadas, mostrando nossas críticas com o apoio teórico. Nossa análise será feita
respondendo à nossas questões de pesquisa destacadas no início desse trabalho.
No que se diz respeito ao uso dos gêneros textuais/discursivos como ferramenta de
ensino, pudemos identificar que sim, há o uso dos gêneros nas aulas de língua inglesa na
maioria das vezes. Porém, acreditamos que esse uso foi feito de forma inconsciente, ou seja, o
professor utilizou um ou dois gêneros durante o período de observação, mas em nenhum
momento ele trabalhou o gênero em si, explicando para seus alunos as definições e
funcionalidades de tal gênero. E como já falamos anteriormente, seguindo o pensamento de
Marcuschi (2003), um maior conhecimento do funcionamento dos gêneros textuais é
importante tanto para a produção quanto para a compreensão. Dessa forma, não é apenas
escolher um determinado gênero e levar pra sala de aula e estudar a gramática predominante
no texto, é estudar esse gênero com o aluno, explicar suas características e funções, o porquê
de estar trabalhando esse gênero. Os alunos precisam estar conscientes de que estão estudando
determinado gênero, suas formas composicionais, em que ocasiões poderão usá-lo e para quê.
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Dessa forma, podemos afirmar que os gêneros estão sendo usados sim, nas aulas de língua
inglesa, afinal, todo texto se caracteriza em um gênero, e os textos estão sempre sendo usado
nas aulas de línguas. Porém, o gênero não está sendo explorado na forma que acreditamos ser
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a mais relevante.

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Outro ponto de nossa pesquisa diz respeito aos gêneros que são utilizados com mais
frequência pelo professor. Durante o período de observação, um gênero teve destaque por ter
sido trabalhado em duas aulas seguidas, que foi a letra de música. Outro gênero também que
apareceu durante a observação de nossa pesquisa foi o artigo. Porém, os autores do livro
didático utilizado pelo professor orientavam vários outros gêneros textuais/discursivos e ele
os utilizava nas aulas. Dentre esses gêneros, podemos destacar: tirinhas, entrevistas, cartas, e-
mail e etc. Ao nosso ponto de vista, teria sido mais produtivo e mais relevante para os alunos
se o professor tivesse escolhido apenas um gênero e tivesse feito um estudo do mesmo, e
então realizar atividades acerca desse gênero. Dizemos isso com base em Antunes (2002) que
acredita que o ideal seria o professor, seja ele no Ensino Fundamental ou no Ensino Médio,
trabalhar um gênero em cada unidade. A autora propõe um gênero por unidade porque há
muito o que se ensinar sobre um gênero e se o professor for fazê-lo corretamente, levaria
muito mais que duas aulas semanais.
Outra questão de pesquisa foi em relação a finalidade de trabalhar esses gêneros que
aparecem com mais frequência. No que pudemos observar durante as aulas, esse objetivo não
ficou claro. Uma vez que nem os alunos nem o professor estavam estudando o gênero em si,
havia o uso do gênero mas com apenas o intuito de utilizar o texto escrito e responder as
questões acerca do texto. O gênero em si, não foi exaltado em momento algum.
No que diz respeito as dificuldades enfrentadas pelo professor para o ensino das quatro
habilidades, pudemos identificar que sim, existem dificuldades que o professor enfrenta para
trabalhar as quatro habilidades. Não é novidade que a grande quantidade de alunos por sala é
um dos principais problemas que o professor enfrenta na Rede Pública de Ensino, se não o
maior deles, não só o professor de Língua Inglesa, mas de todas as áreas. A falta de recursos
também vem a ser um grande atraso para as aulas. Presenciamos isso em uma das aulas que
observamos, quando o professor deveria fazer uma atividade de escuta com os alunos, mas,
teve que ler em voz alta por falta do equipamento de som. Com base nessas três semanas de
observação, podemos dizer que o professor tem dificuldades de trabalhar as quatro
habilidades por igual. Dizemos isso porque em nosso período de observação, o professor não
trabalhou nenhuma dessas quatro habilidades a fundo para que pudéssemos identificar as
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possíveis dificuldades. Sendo assim, nossa reposta para essa questão ficou incerta. Sabemos
que há dificuldades com base em outras experiências em sala de aula, mas nas observações
para essa pesquisa, não podemos listar essas dificuldades ao certo por falta de dados.
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Conclusão

De modo geral, os gêneros estão sendo utilizados nas aulas de língua inglesa em
escolas públicas, porém, as quatro habilidades, ler, escrever, ouvir e falar estão recebendo
pouca ou nenhuma atenção nas aulas e os gêneros estão apenas presentes nas aulas, mas não
são estudados. Ou seja, o professor faz uso do gêneros, mas ele não trabalha as características
do mesmo com os alunos, não faz um estudo acerca do gênero, o que é aconselhável por
nossos autores diversas vezes citados durante nosso estudo.
Esta pesquisa nos permitiu vivenciar um pouco da realidade das nossas escolas
públicas, realidade essa que precisa ser observada de perto, pois precisamos saber as
dificuldades que os profissionais da educação enfrentam, ainda mais porque seremos um deles
futuramente. Apesar de não ter alcançado todos os objetivos traçados, acreditamos que com
essa pesquisa, deixamos algo de produtivo para essa área de estudo, quem sabe até a porta de
entrada para um outro estudo, um estudo mais aprofundado e mais detalhado.

Referências

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teóricas e implicações pedagógicas. Perspectiva, Florianópolis, v. 20, n. 1, p. 65-76, jan.
2002. Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/perspectiva/article/view/10369>.
Acesso em: 07 mar. 2017 às 09:05.

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BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais: Ensino Médio. Brasília: MEC, 2000

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003
CRESWELL, John W. Projeto de Pesquisa: métodos qualitativo, quantitativo e misto: cap
10: Procedimentos Qualitativos. 2. ed. Porto Alegre: Artmed, 2007.

DOLZ, Joaquim; NOVERRAZ, Michele; SCHNEUWLY, Bernard. Sequências didáticas para


o oral e a escrita: apresentação de um procedimento. In: DOLZ, Joaquim; SCHNEUWLY,
Bernard e colaboradores. Gêneros orais e escritos na escola. Trad. e org. de Roxane Rojo e
Glaís Sales Cordeiro. Campinas, SP: Mercado das Letras, 2004.
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GIL, Antonio Carlos. Como delinear uma pesquisa bibliográfica? In: GIL, Antonio Carlos.
Como elaborar projetos de pesquisa. 4. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2002.
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3 ed. São Paulo: Contexto, 2010

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KOCH, Ingedore Villaça & ELIAS, Vanda Maria. Ler e escrever: estratégias de produção
textual. 2 ed. São Paulo: Contexto, 2014
MARCUSCHI, Luiz Antonio. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São
Paulo: Parábola, 2008
MARCUSCHI, Luiz Antonio. Gêneros textuais: definição e funcionalidade. In: DIONISIO,
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