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dominador era também impor as suas imagens, seus símbolos, suas crenças,
convertendo-o não só à sua religião, mas também e sobretudo, à sua forma de governo e
de domínio, estabelecendo-se assim o vínculo entre língua-conhecimento-poder. Na
"Carta a Luis de Santangel", Cristóvão Colombo nos da um exemplo deste vínculo: "E
tão logo cheguei às Índias, na primeira ilha que cheguei, capturei alguns deles para que
me informassem sobre o que havia naquelas partes, e assim foi como imediatamente nos
entendemos por língua ou sinais...” (Colón, Cristóbal. Textos e documentos completos:
relaciones, de viajes, cartas y memoriales. Madrid: Alianza, 1982: 139-146).1
Poderíamos dizer que a expansão imperialista coloca em cena uma tragédia que,
ainda que antiga, se universaliza, ganhando os contornos de um conflito mundial: o
confronto com "outro", com o diferente, e a conseqüente questão, não menos trágica, da
traduzibilidade. Uma questão que terá grandes implicações, especialmente para nós
latino-americanos, pois coloca em jogo a nossa identidade, já que as equivalências
encontradas pelo elemento colonizador estão longe de corresponder à nossa realidade,
impondo entre o original e o texto traduzido, um verdadeiro abismo. Na verdade, a
história vêm nos ensinando que diante do impasse da traduzibilidade, tanto nossos
antigos tradutores como os atuais, sucumbem às dificuldades encontradas, e ao invés de
traduzir, preferem ficcionalizar, criando o "outro" a partir de sua própria imagem e
semelhança, tal como tão bem o demonstrou O'Gorman em seu famoso estudo La
invención de América (O’Gorman, Edmundo La invención de América: investigación
acerca de la estructura histórica del Nuevo Mundo y del sentido de su devenir. Fondo de
Cultura, 1984).
A prática tradutória exige que o tradutor estabeleça entre ele e a própria
língua/cultura uma distância crítica, de modo que esta passe também a ser vista como
um idioma alheio, estrangeiro, implícito na pergunta, natural durante o processo de
tradução, mas totalmente estranha à linguagem cotidiana: "Como digo isso na minha
língua?" Ou seja, diante da língua/cultura estrangeira, o tradutor percebe, remetendo
aqui a Walter Benjamin, o caráter incompleto de todas as línguas (Benjamin, Walter. La
tarea del traductor. In: Textos clásicos de teoria de la traducción. Trad. H. P. Murena.
Madrid: Cátedra, 1994: 285-294), de modo que aquele sistema lingüístico que a
princípio lhe parecia perfeito, ou seja, a língua materna, revela-se, como as demais
linguagens, imperfeito.
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A tradução é nossa.
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contato entre o europeu e o negro africano. Uma pergunta se impõe: que equivalentes
usar para descrever uma imagem física, que absolutamente contraria a idéia do homem
segundo a mentalidade européia: branco, de traços finos, cabelo louro e liso, olhos
claros? Diante de uma diferença que parece intransponível, daquilo que a princípio
parece intraduzível, o conquistador europeu, em seu imediatismo, opta por criar uma
narrativa em torno deste novo personagem que surge em meio a uma história de
domínios e de expansão imperialista. Assim, o homem negro se vê enclausurado em
torno de idéias preconcebidas, que com o tempo foram cristalizando-se em estereótipos,
submetendo-o a uma das mais cruéis formas de escravidão, a discriminação
preconceituosa.
O sentimento de impotência advindo da impossibilidade da tradução leva o homem
branco a assumir uma atitude de defesa: com medo de se ver apropriado pelo texto
original, aproveita-se de sua superioridade bélica, e imediatamente apropria-se do
"outro". Arrogante, seu gesto se confunde com o gesto do plagiário, que realiza a sua
apropriação sem qualquer preocupação de caráter ético. (Lages, Susana Kampff. Walter
Benjamin: tradução e melancolia. São Paulo: EdUSP, 2002: 35-36).
Indignado, o artista latino-americano, herdeiro de uma ficção forjada sob o chicote
do conquistador, condena o plágio e reapropria-se do original, colocando em prática
uma autotradução, que longe de anular as diferenças, as revela como parte de si mesmo,
deixando que o original transpareça no texto traduzido, que por sua vez, deve ser lido
como tal. É na fluidez da prática tradutória que a identidade latino-americana ganha
forma, renovando-se e ganhando novos contornos ao atravessar as diferentes fronteiras
que a conformam. Entre elas, existe uma que desenha um território sob a forma de um
lagarto, nas palavras do poeta: "um grande lagarto verde,/ com olhos de pedra e água"
(Guillén, Nicolas. Summa Poética. Madrid: Cátedra, 1990: 161)2.
Refiro-me ao poeta Nicolás Guillén, que como muitos escritores latino-americanos,
dedicou sua arte à tradução de sua cultura, das heranças e desafios do povo cubano,
indo-afro-europeu. Dissolvendo as fronteiras impostas pela apropriações imperialistas,
Guillén vai desconstruindo, de verso em verso, a narrativa monológica e fechada, que
aprisionou e subjugou o negro, revelando-a como plágio, devolvendo-a aos seus
verdadeiros sujeitos e autores, restituindo-lhes o original.
Podemos dizer que a tradução empreendida pelo poeta cubano se realiza em pelo
menos dois níveis, já que uma das estratégias que encontra para traduzir o discurso
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A tradução é nossa.
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Ao fazer do son uma das principais representações da cultura negra, o poeta cubano
manifesta também uma de suas expressões mais características: a dança. Ao dançar para
os seus orixás, o povo iorubá estabelece a comunicação entre o profano e o sagrado, em
rituais nos quais o corpo se une ao não-corpo (Paz, Octavio. Conjunciones y
disyunciones. Barcelona: Seix Barral, 1991), e se traduzem mutuamente em busca de
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“Sabeis meu outro sobrenome, aquele que me vêm/daquela terra enorme, o sobrenome/sangrento e
capturado, que passou sobre o mar? (...) O escondestes, crendo/que eu ia abaixar os olhos de
vergonha./Gracias!/Os los agradezco!/Gentiles gentes, thank you!/Merci!/Merci bien!/ Merci beaucoup!”
A tradução é nossa.
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uma linguagem que dê sentido à uma vida de sofrimento e de dor. Como elemento
mediador entre o mundo terreno e o divino está o atabaque, cujo som reproduz o ritmo
cósmico, para que então o corpo possa materializar os seus movimentos.
Segundo Octavio Paz, os homens são o diálogo entre o "signo corpo" e o "signo
não-corpo" (Paz, Octavio, 1991: 77); é na forma como coloca em cena este diálogo, que
cada cultura fala de si mesma. Nesse sentido, uma das maneiras de analisar o confronto
entre o homem branco e o negro seria através do modo como cada um desses elementos
traduz este diálogo. Enquanto o Ocidente cristão vê no flagelo um caminho de
espiritualização do corpo, nos rituais de origem africana este processo se dá por meio da
entrega do corpo ao espírito da música e da dança. Para tanto, é necessário que este
mesmo corpo esteja protegido de qualquer tipo de corrupção, seja ela moral ou física.
Assim, estamos diante de duas formas opostas de diálogo: na primeira, o corpo deve ser
desprezado em favor do não-corpo; enquanto na segunda, o corpo é fundamental para
que o não-corpo se manifeste e se materialize.
Michel Foucault, ao mesmo tempo que corrobora com os estudos de Octavio Paz,
desvenda a própria estrutura sobre a qual se assenta o palco do referido diálogo. Em As
palavras e as coisas (Foucault, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das
ciências humanas. Trad. Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 1990), este
arqueólogo do pensamento nos fala que o drama de toda a história da cultura reside na
tentativa de reduzir a alteridade em nome da tranqüilidade ideológica do Mesmo. A fim
de estabelecer a ordem, a cultura ocidental e cristã empenha-se então em reprimir o
outro, utilizando-se de estratégias que vão desde as formas mais declaradas e óbvias até
as mais imperceptíveis e sub-reptícias manifestações de poder.
O corpo negro ao ousar atravessar as fronteiras que separam o sagrado do profano
subverte a ordem e coloca em cena a alteridade, devendo portanto, ser castigado,
subjugado e reduzido ao reino do Mesmo. No entanto, ao sujeitar o corpo negro, o
homem branco não consegue submeter o espírito, que encontrará no sincretismo
religioso uma forma de sobrevivência, que apesar de fechar a ferida não consegue
disfarçar a cicatriz. Assim, em "La canción del bongó" (Guillén, Nicolás, 1990: 77-79),
vemos a presença de Espanha e de África, cada qual representada por suas respectivas
imagens religiosas: Santa Bárbara e Xangô; uma convivência até hoje pouco tolerada
pelo mundo ocidental, ameaçadora do monolingüismo falso e forjado pelos sucessivos
imperialismos pelos quais passou a nossa história. Traduzindo-o para a linguagem
poética, espaço por excelência da alteridade, Guillén escreve:
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Em sua obra, este poeta dá voz a um corpo marcado pelas cicatrizes da escravidão,
um desenho imperfeito que desconstrói a pintura aparentemente una e perfeita do
Ocidente cristão. Entre estas cicatrizes está a auto-imagem muitas vezes negativa que o
negro tem de si mesmo, a qual o poeta enfrenta revelando-a como plágio, como o
resultado de uma apropriação ilegítima, empreendida pelo conquistador. Assim, a fim de
resgatar-lhe um de seus textos originais, Guillén começa por cantar o corpo cubano,
mostrando o valor de suas formas e de seus movimentos, a beleza de poder ver-se
novamente como tal, em todas as suas heranças, sejam elas africanas ou espanholas,
como podemos observar abaixo no poema intitulado "Mulata" (Guillén, Nicolas, 1990:
66)
Ya yo me enteré mulata,
mulata ya sé que dice
que yo tengo la narice
como nudo de corbata.
Y fíjate que tú
no ere tan adelantá,
porque tu boca e bien grande,
y tu pasa, colorá5.
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“Nesta terra, mulata/de africano e espanhol/(Santa Bárbara de um lado,/do outro Xangô)/sempre falta
algum avô,/quando não sobra algum Don,/e há títulos de Castilha/com parentes de Bondó...” A tradução é
nossa.
5
“Eu já sei mulata,/mulata já sei que diz/que eu tenho o nariz/como um nó de gravata./E olha que você/
não é tão diferente,/porque tua boca é bem grande,/e teu cabelo duro, colorido”. A tradução é nossa.
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Como a mulher mulata, o poeta também coloca a mulher branca cubana diante do
espelho, já que a cor de sua pele pode de alguma forma enganá-la quanto à sua
verdadeira origem. No poema "El abuelo" (Guillén, Nicolás, 1990: 96), lemos:
correspondia à si mesmo deveria ser interpretado como bárbaro. Sentido este que o
orientará na escolha e seleção dos significados, com os quais passará a designar a
América, a designar-nos.
Assim, falar sobre esta tradução é também falar sobre tudo o que ela silencia, é
encenar o drama da alteridade, revelando o "outro" como parte do "eu", buscando neste
caminho oblíquo uma forma de complementá-los, conferindo novos sentidos a uma
realidade marcada por uma profunda ferida: o jugo do Mesmo sobre a multiplicidade.
Segundo nossa leitura, é exatamente esse o trabalho que Nicolás Guillén realiza através
da linguagem poética: traduzir a tradução dos povos colonizadores que passaram por
seu país, lendo em suas palavras o silêncio, do qual se alimentará a sua poesia.
Antes de dar continuidade à nossa análise, gostaríamos de discorrer um pouco sobre
o conceito de "bárbaro". Em seu rigoroso estudo sobre as lutas imperialistas no Mundo
Ocidental, Leopoldo Zea nos fala sobre a origem de dito conceito: "... bárbaro, palavra
onomatopéica que o latim traduz como 'balbus', ou seja, aquele que balbucia,
gagueja..."8 Para o homem grego, bárbaro é aquele que não sabe falar a sua língua, é o
não grego, o estrangeiro, aquele que vive à margem do mundo e da cultura helênicos, e
como tais, considerados selvagens e incultos. Grego: encarnação de um mundo
civilizado, a única língua digna de ser objeto de tradução, e a partir da qual, as demais
línguas e culturas devem ser traduzidas, ou melhor, domesticadas segundo as visões,
crenças e expectativas do povo dominante. Assim aconteceu com o grego em relação
aos demais povos, mas também com o romano, e logo, com o europeu.
Reflexo desta mesma incapacidade de dialogar com o "outro", o estrangeiro,
Aristóteles nos falará de uma humanidade, na qual uns nasceram para mandar e outros
para obedecer; a estes últimos se referia como indivíduos dotados de uma razão
imprecisa, que os destinava à marginalização e à barbárie, entre os quais se contavam os
escravos, as mulheres e as crianças9.
No imaginário do mundo ocidental moderno, os chamados escravos têm cor: o
negro, ainda que não possamos deixar de mencionar o amarelo, cujo extermínio nos
leva, especialmente a nós, brasileiros, a esquecê-la; talvez também pelas profundas
marcas culturais deixadas pelas tribos africanas que aqui chegaram, que hoje já fazem
parte de nosso cotidiano, de nossa cultura, nossa música, nossas danças, nossas
religiões, nossa comida, nossa vida. Uma presença que se multiplica quando nos
8
ZEA, Leopoldo. Discurso desde la marginación y la barbarie. 2 ed. México: Fondo de Cultura, 1992, p.
23. A tradução e nossa.
9
Ibid. p. 28.
11
este, por sua vez, era a forma através da qual se imporia o segundo axioma da Doutrina
Monroe, que implicava no alinhamento automático dos países da região e do continente
com os EUA11. Em Mi patria es dulce por fuera...12, o poeta nos fala de uma Cuba
amargurada, cuja aparente beleza esconde em seu centro uma história de opressão,
submissão e dor:
Mi patria es dulce por fuera,
y muy amarga por dentro;
mi patria es dulce por fuera,
con su verde primavera,
con su verde primavera,
y un sol de hiel en el centro.
(...)
Hoy yanqui, ayer española,
sí, señor,
la tierra que nos tocó,
siempre el pobre la encontró
si hoy yanqui, ayer española,
¡cómo no!
¡Qué sola la tierra sola,
la tierra que nos tocó!
11
SADER, Emir. Cuba: um socialismo em construção. Rio de Janeiro: Vozes, 2001, p. 19.
12
GUILLÉN, N. (1990) p. 136-9.
13
"Tengo"13, Guillén canta o Novo Homem cubano, dono de si e de sua pátria, agora tão
doce por fora quanto por dentro:
Cuando me veo y toco,
yo, Juan sin Nada no más ayer,
y hoy Juan con Todo,
y hoy con todo,
vuelvo los ojos, miro,
me veo y toco
y me pregunto cómo ha podido ser.
o que o obriga a redefinir suas diretrizes políticas e econômicas: no âmbito externo, por
exemplo, volta-se para o turismo, fechando contratos com países como Espanha,
Canadá e Japão; enquanto que internamente, permite a abertura de pequenos negócios
na área de serviços, desde que permaneçam como pequenas empresas, sem
possibilidade de contratar funcionários, oferecendo também ao cubano a possibilidade
de trabalhar diretamente na área do dólar ou vendendo produtos e serviços para os
turistas. O fato é que esta pequena abertura estabelecerá algo novo na sociedade cubana:
as diferenças sociais14. Se até então a melhoria da economia se refletia no benefício de
todos, agora ela passará a estar condicionada pela produtividade de cada trabalhador,
rompendo com a coesão interna que no passado foi fundamental para que se
estabelecesse a revolução, e que hoje ausente, imprime um sentimento de melancolia e
frustração no povo cubano, no qual as perdas passam a ser sentidas com mais
intensidade que os ganhos.
Morto em 1989, Nicolás Guillén não chegou a vivenciar o contexto acima referido,
deixando-nos, assim, uma poesia acima de tudo revolucionária, de recuperação e resgate
das raízes do povo cubano, em cuja história destaca a força, a coragem, a união, e por
conseguinte, a vitória.
14
SADER, E. (2001) p.103.