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G i o v a n n i A l v e s

O Duplo Negativo do Capital


Ensaio sobre a Crise do Capitalismo Global

1ª edição 2018
Bauru, SP

 5
Copyright© Projeto Editorial Praxis, 2018

Coordenador do Projeto Editorial Praxis


Prof. Dr. Giovanni Alves

Conselho Editorial
Prof. Dr. Giovanni Alves (UNESP) Prof. Dr. Ricardo Antunes (UNICAMP)
Prof. Dr. José Meneleu Neto (UECE) Prof. Dr. André Vizzaccaro-Amaral (UEL)
Profa. Dra. Vera Navarro (USP) Prof. Dr. Edilson Graciolli (UFU)

Capa
Giovanni Alves

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

A696d Alves, Giovanni.


O Duplo Negativo do Capital: Ensaio sobre a Crise do Capitalismo
Global / Giovanni Alves. — Bauru: Canal 6, 2018.
224 p. ; 23 cm. (Projeto Editorial Praxis)

ISBN 978-85-7917-479-7

1. 2. . 3. 4. I. Alves, Giovanni. II. Título

CDD 331

Projeto Editorial Praxis


Free Press is Underground Press
www.editorapraxis.com.br

Impresso no Brasil/Printed in Brazil


2018
Rua Machado de Assis, 10-35
Vl. América | CEP 17014-038 | Bauru, SP
Fone/fax (14) 3313-7968 | www.canal6.com.br
Sumário

Apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13
Incongruências da Valorização do Capital . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 18

Introdução. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23

Capítulo 1
A Grande Crise do Capitalismo Tardio (1973-1975). . . . . . . . . . . . . . . 31
A reestruturação capitalista rumo ao capitalismo global. . . . . . . . . . . . . . . 35
A natureza da crise de 1973-1975. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 39
A “acumulação primitiva” do capitalismo global . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 42
Contradições do capitalismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 54

Capitulo 2
Neoliberalismo e Capitalismo Global (1980-1991). . . . . . . . . . . . . . . . 59
O capitalismo global . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 62
Década de 1980: A longa transição para o capitalismo global . . . . . . . . . . . 66
O marco histórico do capitalismo global (1989-1991). . . . . . . . . . . . . . . . . . 69
O fim do delírio pós-moderno. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 73
A China e o mercado mundial . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 73
O Projeto do Euro e a “Quarta Revolução Industrial”. . . . . . . . . . . . . . . . . . 75
A geopolítica da periferia integrada (América Latina e Leste Europeu) . . 76
O capitalismo das bolhas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 76

Capitulo 3
Ascensão e Crise do Capitalismo Global (1991-2007) . . . . . . . . . . . . 81
O boom e a bolha (2001-2007) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 82
Crise de hegemonia financeira ou afirmação hegemonica
do capital financeiro?. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 88
A crise estrutural de lucratividade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 94
A particularidade da crise de 2007/2008. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 101
2009-2018: A longa depressão da economia mundial. . . . . . . . . . . . . . . . . . 103
Perspectivas (da crise) do capitalismo global. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 108

Capítulo 4
A Crise Estrutural do Capital - A Contribuição de
István Mészáros . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 113
O começo da nova fase histórica. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 117
A crise estrutural do capital em Mészáros. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 119
A crise estrutural do capital e as grandes confrontações sociais. . . . . . . . 121
A reestruturação capitalista e a nova etapa histórica do capital. . . . . . . . . 122
Uma nova produtividade do capital . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 124
Complexo industrial militar e a taxa de utilização
decrescente do valor de uso . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 126
A nova geopolítica do capitalismo global. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 133
Capitalismo global e Beyond Capital . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 134
Capital e capitalismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 136
Crises cíclicas do capitalismo e crise estrutural do capital . . . . . . . . . . . . 148

Capitulo 5
O Duplo Negativo do Capital. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 153
Capital como contradição viva. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 160
Capitalismo global e a disputa pelo Fundo Público. . . . . . . . . . . . . . . . . . . 161
Capitalismo do Estado de Bem-Estar Social e Fundo Público . . . . . . . . . . 164
Valor e Anti-Valor: o falso dilema. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 169
Capitalismo do Estado Neoliberal e Fundo Público . . . . . . . . . . . . . . . . . . 176
A Desmedida do Valor. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 178
A “negação” do capitalismo no interior do próprio capitalismo . . . . . . . . 189
Desmedida do Valor, Trabalho “Imaterial” e Trabalho Abstrato . . . . . . . 192
O Fardo do Capital. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 195
Formas derivadas de valor e barbárie social . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 198

Considerações Finais. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 201


Maquinofatura e Trabalho Ideológico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 201

Referências. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 207

Hieronymus Bosch e a crise do capital. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 213


À Ana Celeste Casulo
“A sociedade burguesa, com suas relações de produção
e de troca, o regime burguês de propriedade,
a sociedade burguesa moderna, que conjurou
gigantescos meios de produção e de troca,
assemelha-se ao feiticeiro que já não pode controlar
os poderes infernais que invocou”

Manifesto do Partido Comunista (1848)


Karl Marx e Friedrich Engels
“Em todos os sentidos, [a lei da queda da taxa de lucro] é a lei
mais importante da economia política moderna e a mais essencial
para compreender as relações mais complicadas. Do ponto de vista
histórico, é a lei mais importante [...] Para além de certo ponto, o de-
senvolvimento das forças produtivas devém um obstáculo para o ca-
pital; ou seja, a relação de capital devém um obstáculo para [o] desen-
volvimento das forças produtivas do trabalho. Ao atingir esse ponto,
o capital, i.e., o trabalho assalariado, entra na mesma relação com o
desenvolvimento da riqueza social e das forças produtivas que o sis-
tema das corporações, a servidão, a escravidão e, como grilhão, é ne-
cessariamente removido. A última figura servil que assume a atividade
humana, a do trabalho assalariado, de um lado, a do capital, de outro, é
com isso esfolada, e essa própria esfoladura é o resultado do modo de
produção correspondente ao capital; [...] A crescente inadequação do
desenvolvimento produtivo da sociedade às suas relações de produção
anteriores manifesta-se em contradições agudas, crises, crises, convul-
sões. A destruição violenta de capital, não por circunstâncias externas
a ele, mas como condição de sua autoconservação, é a forma mais
contundente em que o capital é aconselhado a se retirar e ceder espaço
a um estado superior de produção social”.

Grundrisse (1857-1858)
Karl Marx
Apresentaç ão

O livro “O Duplo Negativo do Capital: Ensaio sobre a Crise do Ca-


pitalismo Global” que apresentamos é produto de uma elaboração mais
cuidadosa sobre a natureza da crise do capital que procure servir de
base para o entendimento das mudanças estruturais do mundo social
do trabalho. Desde nosso primeiro livro “Trabalho e Mundialização do
Capital: A Nova Degradação do Trabalho na Era da Globalização”, pu-
blicado pela Editora Praxis em 1999, vinculamos as transformações do
“admirável novo mundo do trabalho” e a nova ofensiva do capital na
produção com as mudanças estruturais do capitalismo mundial. Num
primeiro momento, buscamos interpretar os fundamentos ontológicos
da reestruturação produtiva capitalista pelo movimento do “sujeito” ca-
pital. A seguir, identificávamos a nova etapa do capitalismo mundial
como sendo a era da globalização ou mundialização do capital, utili-
zando como principais referências as reflexões de François Chesnais (“A
mundialização do capital”) e David Harvey (“A condição pós-moder-
na”) e depois, Robert Brenner e István Mészáros. Não havia uma refle-
xão crítica mais densa sobre a crise do capitalismo global, nem muito
menos sobre a crise estrutural do capital. Na verdade, não se discutia a
teoria da crise capitalista, buscando apreender as mutações estruturais
do mundo do trabalho a partir da reflexão critica sobre a natureza da
crise do capital. Falávamos da mundialização do capital cujo marco his-
tórico foi a recessão de 1974-1975.
A adoção teórico-analítica da interpretação de François Chesnais re-
petiu-se no livro de 2001 intitulado “Dimensões da Globalização: O Ca-
pital e suas Contradições” (Editora Praxis) com um capítulo intitulado

Apresentação 13
“Globalização como Mundialização do Capital”. A idéia de lógica do ca-
pital era suficiente para interpretar o capital e suas contradições. O livro
indicava uma interpretação dialética da globalização como ideologia,
mundialização do capital e processo civilizatório humano-genérico.
Antes, no livro lançado em 2000, pela Boitempo editorial - “O Novo (e
Precário) Mundo do Trabalho”, não havia nenhum tratamento teórico
dos fundamentos estruturais do complexo da restruturação produtiva
cujo momento predominante era o toyotismo. Identificávamos apenas
o toyotismo com a acumulação flexível e a flexibilidade como-ser-
-precisamente-assim do capital. De modo breve, fazíamos referencia ao
toyotismo e capitalismo manipulatório na era da superprodução, sem
discutir o movimento essencial, da ofensiva do capital na produção.
Foi no livro “A Condição de Proletariedade: A Precariedade do Tra-
balho no Capitalismo Global”, de 2009, que começou a esboçar-se ele-
mentos de uma interpretação da crise do capital. Afirmamos que a etapa
do capitalismo global é marcada pela crise estrutural do capital. Deste
modo, desenvolvíamos a explicação do conceito de “crise estrutural do
capital” de István Mészáros e expúnhamos a nova temporalidade histó-
rica aberta pelo acúmulo de contradições capitalistas a partir de meados
da década de 1970. Não discutíamos a natureza da crise do capital, mas
indicávamos que o complexo de acumulação do capitalismo global era
constituído pela acumulação predominantemente financeirizada, acu-
mulação flexível e acumulação por espoliação. Era nítida a influência
teórica de David Harvey com o livro “A condição pós-moderna” e o “O
novo imperialismo”.
Em 2011, o livro “Trabalho e Subjetividade: O Espírito do Toyo-
tismo na Era do Capitalismo Manipulatório”, lançado pela Boitempo
Editorial, começamos fazendo referencia a crise do capital que atingiu
os países capitalistas centrais em meados da década de 1970, mas não
discute a natureza da crise e seus desdobramentos posteriores. Nova-
mente, adota-se os conceitos de acumulação flexível e acumulação por
espoliação, utilizados para explicar o espírito do toyotismo na era do
capitalismo manipulatório. A utilização acritica de conceitos de Fran-
çois Chesnais, David Harvey, István Meszaros, e inclusive Ernst Man-
del, Michel Aglietta e Georg Lukács, expunha o problema comum na

14 O Duplo Negativo do Capital


sociologia marxista de não abordar, de modo categórico, o problema
da natureza da crise do capital a partir da critica da economia política.
Ficávamos na interpretação impressionista da crise e lógica do capital
a partir do qual explicávamos as mutações estruturais do mundo do
trabalho.
Foi em 2013 no livro “Dimensões da Precarização do Trabalho: En-
saios de Sociologia do Trabalho”, publicado pelo Projeto Editorial Pra-
xis, e o capítulo 2 intitulado “Crise de Valorização e Desmedida do Ca-
pital: A Natureza da Crise Estrutural do Capital”, onde discutimos pela
primeira vez, uma explicação para a crise do capital fazendo referencia
à “profunda crise do capitalismo global em seu núcleo orgânico, a partir
da crise financeira de 2008”. Identificou-se a crise estrutural do capital
como crise de valorização e fez-se referência, numa nota de rodapé, ao
debate sobre a utilização da teoria clássica da teoria da “lei” tendencial
de queda da taxa média de lucro.
Em 2013 afirmamos: “Nossa hipótese é que é a vigência do movi-
mento contratendencial à queda da taxa média de lucros no plano do
sistema mundial do capital, dada pelo aumento da composição orgânica
do capital, que explica, pelo menos nos “trinta anos perversos” de ca-
pitalismo global (1980-2010), a fenomenologia do mundo do capital no
plano histórico-mundial: “globalização” como mundialização do capi-
tal, reestruturação produtiva do capital como precarização estrutural
do trabalho e financeirização da riqueza capitalista. Estas são efetiva-
mente contratendencias à queda da taxa média de lucros que caracteri-
zou a crise capitalista, pelo menos de 1973-1987”.
E logo adiante:
“Embora a “grande crise” de 1973-1975 possa ser considerada uma
crise de lucratividade, o mesmo não ocorreu, por exemplo, com os ciclos
de crises do capitalismo global (1986-1987, 1996-2001 e 2008-2011). Pelo
contrário, após a crise primordial de meados da década de 1970, a pri-
meira recessão mundial após a Segunda Guerra Mundial, impulsionou-
-se como movimento contratendencial à queda da taxa média de lucros
no plano do sistema mundial do capital os seguintes fenômenos sócio-
-históricos: (1) a mundialização do capital e abertura de novos merca-
dos capitalistas, (2) o complexo de reestruturação produtiva e a ofensiva

Apresentação 15
do capital na produção, instaurando a era de precarização estrutural
do trabalho e (3) financeirização da riqueza capitalista com a hegemo-
nia do capital financeiro. Esta profunda reestruturação capitalista que
caracterizou os “trinta anos perversos”, contribuiu no final da década
de 1980, para a recuperação relativa da taxa média de lucratividade das
corporações globais. “
Em 2013 procurávamos, pela primeira vez, expor o conceito de ca-
pitalismo global, considerado por nós como a nova temporalidade do
capital no interior da qual o ciclo de crises capitalistas assumiria nova
feição. Falávamos de “crise de valorização do capital” e não de “crise
estrutural de lucratividade”. Procurávamos explicar o conceito de “crise
estrutural do capital”, sem distingui-la do conceito de “crise de valori-
zação do capital”. Pela primeira vez, utilizávamos a explicação do au-
mento da composição orgânica do capital para explicar os movimentos
contratendenciais que compunham o capitalismo global – iniciado, de
acordo com a periodização histórica adotada, em 1980 (e não em 1989-
1991, como expomos neste livro). Desenvolvíamos uma dialética entre
“trabalho morto e trabalho vivo; e uma longa reflexão sobre as meta-
morfoses sobre o trabalho vivo.
No livro “Dimensões da Precarização do Trabalho: Ensaios de So-
ciologia do Trabalho”, apresentamos uma tese sobre a natureza da “crise
de valorização do capital”, que transcrevemos na íntegra, para ressaltar
sua originalidade no plano de desenvolvimento das ideias do autor so-
bre a crise do capital:
“Podemos dizer que, nos últimos trinta anos de capitalismo global
(1980-2010), cresceu indiscutivelmente o contingente de trabalhadores
assalariados em escala global. É o que salientamos como sendo a presen-
ça da condição de proletariedade universal e global. Entretanto, apesar
do crescimento da ‘classe’ do proletariado, ocorreu a redução relativa,
embora não absoluta, do contingente de trabalhadores assalariados pro-
dutivos empregados na produção de valor. Isto é, no conjunto da ‘classe’
dos trabalhadores assalariados em escala global, reduziu-se, em termos
relativos, a participação de operários e empregados inseridos na produ-
ção de valor, isto é, trabalhadores assalariados produtivos. Isto pode ser
explicado pela intensificação da concorrência capitalista no mercado

16 O Duplo Negativo do Capital


mundial e, por conseguinte, a aceleração das inovações tecnológico-or-
ganizacionais na produção de mercadorias com o aumento exponencial
da produtividade do trabalho que contribuíram para a redução relativa
da participação de trabalhadores assalariados produtivos no conjunto
do proletariado global”.
“Nesse sentido, cresceu, em termos absolutos, a extração de mais-
-valia ou a taxa de exploração da força de trabalho na grande indústria
capitalista. O desenvolvimento da precarização estrutural do trabalho
com a vigência plena da mais-valia relativa no bojo do crescimento
absoluto do contingente de trabalhadores assalariado produtivos (por
exemplo, as novas fronteiras de expansão industrial na China e Índia)
- mesmo que eles tenham se reduzido em termos proporcionais no con-
junto da ‘classe’ do proletariado global – levaram ao crescimento da
extração de mais-valia no interior do sistema produtor de mercadoria”.
“O crescimento em demasia da extração da mais-valia é que expli-
ca o crescimento do capital acumulado ou massa de capital-dinheiro
sedento de valorização. Entretanto, como explicamos acima, a crise de
valorização ou crise de formação do valor, isto é, crise de produção e
realização do valor, faz com que a massa de capital-dinheiro acumulada
pelas corporações monopolistas encontre cada vez menos possibilida-
de de rentabilidade adequada nas condições do capitalismo global. Por
isso, surgem contratendências históricas que permitem a constituição
de uma nova dinâmica de desenvolvimento do capitalismo histórico”.
“Esta contradição crucial do capitalismo global pode ser apreendida
de outro modo. Por exemplo, a produção de valor cresceu em termos
absolutos, mas reduziu-se em termos relativos, ou seja, ela está aquém
das necessidades sistêmicas cumulativas de valorização da massa de
capital-dinheiro acumulada pelas corporações industriais globais. Por
exemplo, uma massa ‘x’ de capital-dinheiro investido na produção, re-
quer uma extração ‘y’ de mais-valia. Ora, nas últimas décadas, ‘x’ cres-
ceu absoluta e relativamente; enquanto ‘y’ só cresceu absolutamente (o
que explica a interversão, no plano fenomênico, da mais-valia relativa
em mais-valia absoluta). O que significa que a extração de valor cresceu
numa progressão aritmética, enquanto as necessidades sistêmicas de
valorização da massa de capital-dinheiro cresceram numa progressão

Apresentação 17
geométrica, o que explica a vigência do “lucro fictício” como catego-
ria capaz de explicar a necessidade sistêmica irrealizada. Deste modo,
constituiu-se uma ‘fenda’ de instabilidade financeira de onde surgem
recorrentes ‘bolhas especulativas’ que marcam a dinâmica de acumula-
ção de valor fictício no capitalismo global”.
“Eis, portanto, um traço estrutural que irá marcar o capitalismo
mundial no século XXI, apesar das tentativas de regulação política por
meio das intervenções estatais cada vez mais incisivas (a explosão da
dívida pública nos países capitalistas centrais, depois da crise de 2008,
mostra que a crise de valorização tende, cada vez mais, a devorar como
o velho Moloch, o ‘fundo público’, parcela da massa de mais-valia social
capturada pelo Estado político, mas agora, re-apropriada pelo capital
privado para sanar sua crônica insensatez financeira.”

Incongruências da Valorização do Capital

Em 2016, no livro “A Tragédia de Prometeu: A Degradação da Pessoa


Humana-que-trabalha na Era do Capitalismo Manipulatório”, publica-
do pelo Projeto editorial Praxis, expomos na “Introdução”, intitulada “A
Grande Transformação”, uma versão ampliada das idéias expostas no
livro de 2013. Afirmamos a existência da “crise estrutural de valoriza-
ção do valor” ou “crise estrutural de valorização produtiva do capital”.
Dizíamos numa nota de rodapé:
“A crise estrutural de valorização do valor ou crise estrutural de valo-
rização produtiva do capital – em contraste com a valorização fictícia pre-
dominante no capitalismo neoliberal – é a crise de produção/realização
da mais-valia extraída com a exploração da força de trabalho. Ela origina-
-se da tendência histórica de aumento da composição orgânica do capital,

18 O Duplo Negativo do Capital


que é a relação entre trabalho morto (c) ou capital constante, e trabalho
vivo (v) ou capital variável, relação definida em termos de valor.”.
Utilizamos os seguintes subtítulos na longa “Introdução”: A era do
capital especulativo e parasitário; a crise de 2008/2009; a crise estrutu-
ral de valorização do valor e a era do capitalismo das bolhas financei-
ras. Salientamos como “principais contratendências históricas à “lei”
de queda da taxa média de lucros, dando fôlego irremediável ao capi-
talismo senil, evitando, deste modo, o colapso do capitalismo histórico
no plano do sistema mundial”: os novos mercados, Estado neoliberal,
Inovações financeiras, pós-modernismos e a precarização estrutural
do trabalho” (incluíamos, deste modo, as inovações financeiras como
movimento contratendencial – o que evitamos fazer neste novo livro).
A “Grande Transformação” a que o título da “Introdução” fazia re-
ferência era decorrente dos elementos da crise estrutural do capital: (1)
crise estrutural de valorização do valor (crescimento medíocre das eco-
nomias capitalistas); (2) crise do modo de desenvolvimento (a corrosão
do Estado de bem-estar) e (3) crise de civilização (deformação do sujeito
histórico de classe e o ocaso da era dos direitos sociais). Ao mesmo tem-
po, mais adiante, tratávamos do conceito de crise estrutural do capi-
tal, conceito de István Mészáros, mas interpretado por nós como sendo
constituído pela “crise estrutural de valorização de valor” e a “crise de
deformação do sujeito histórico de classe”. Enfim, não buscamos veri-
ficar o verdadeiro caráter heurístico do conceito meszariano de “crise
estrutural do capital”. Neste novo livro, adotamos o conceito de “cri-
se estrutural do capital” de modo crítico, procurando reconhecer seu
valor heurístico de acordo com o sentido dado pelo autor. Ao mesmo
tempo, substituímos o conceito de “crise de valorização do capital” pelo
conceito mais adequado de “crise estrutural de lucratividade”.
Enfim, a exposição acima do nosso percurso teórico-analítico so-
bre o entendimento da crise do capital (de 1999 a 2018) demonstra um
longo (e inacabado) aprendizado com erros e acertos sobre a natureza
crítica do tempo histórico do capitalismo tardio. Este pequeno (e di-
ruptivo) livro “O Duplo Negativo do Capital: Ensaio sobre a Crise do
Capitalismo Global” representa efetivamente uma parte importante do
nosso percurso intelectual teórico-crítico (e autocrítico). Nos últimos

Apresentação 19
anos, as leituras do rico debate marxista sobre a crise do capital a partir
de economistas nos EUA, Reino Unido, França e Alemanha (Michael
Roberts, Andrew Kliman, Anwar Shaik, David Harvey, Chris Arthur,
Paul Sweezy, Guglielmo Carchedi, Alfredo Saad Filho, Fred Moseley,
Gerard Duménil e Dominique Lévy, Micahel Husson, Chris Harman,
Helmut Reichhelt, Robert Kurz, entre outros), contribuíram para o fino
entendimento das contribuições de Karl Marx e Friedrich Engels para
a crítica da economia política, e por conseguinte, para a elaboração,
numa perspectiva dialético-histórico e materialista, da teoria da crise
capitalista.
Ficou claro que nosso longo percurso critico-intelectual buscando
o entendimento da crise do capital (em construção neste pequeno li-
vro, que alertamos ser apenas a 1ª. edição!), procuramos elaborar, num
patamar superior, a perspectiva totalizante do movimento concreto da
crise do capitalismo global. Colocamos como exigência metodológica
fundamental, uma exposição explicativa capaz de resgatar a lógica dia-
lética, histórico e materialista do movimento concreto do capitalismo
tardio, apreendendo-o, numa forma ainda inacabada, as contradições
essenciais e os movimentos da aparência e da contingencia histórica que
compõem o capitalismo global. Esta perspectiva teórico-analítica que
prima pelo rigor metodológico, deve nos permitir discutir mais adiante,
aquilo que efetivamente nos interessa como estudiosos do novo (e pre-
cário) mundo do trabalho: a nova precariedade do trabalho e as pers-
pectivas do processo civilizatório do capital no século XXI.

Marília, 1 de maio de 2018

20 O Duplo Negativo do Capital


Apresentação 21
Introduç ão

O capitalismo global como forma histórica no interior da qual ocor-


re o desenvolvimento do capital em sua fase de crise estrutural, articula,
em si e para si, um movimento que intitulamos “o duplo negativo do
capital”: crise estrutural de lucratividade e fenômeno da desmedida do
valor. Trata-se de elementos causais que afetam de “negação” a relação-
-capital historicamente constituída desde o surgimento das “mediações
de segunda ordem” do metabolismo social. Enquanto a crise estrutural
de lucratividade afeta a produção do valor econômico, o fenômeno da
desmedida do valor afirma contraditoriamente, as possibilidades con-
cretas de desenvolvimento do valor humano no interior do movimento
do capital como “contradição viva”.
A relação-capital surgiu com as “mediações de segunda ordem”
(Mészáros). O capital como sistema de controle estranhado do metabo-
lismo social constitui-se historicamente com o surgimento e desenvol-
vimento do modo de produção capitalista na Europa Ocidental. A partir
do século XVI, com a crise do modo de produção feudal, a descoberta
(e saque) do Novo Mundo e a expansão mercantil, nasceu a moderna
vida do capital. Ocorreu historicamente o “acoplamento estrutural”1

1 O conceito de “acoplamento estrutural” é apropriando cum grano salis da Teoria dos


Sistemas de Niklas Luhmann. O modo de produção capitalista , como meio, desempenhou
um papel muito importante para o desenvolvimento da relação-capital. Diz Luhmann:
“A Teoria dos Sistemas defronta-se com o problema de como estão reguladas as relações
entre sistema e meio; uma vez que principalmente na estratégia teórica, a distinção sis-
tema/meio faz referência ao fato de que o sistema já contém a forma meio. Em outras
palavras: nenhum sistema pode evoluir a partir de si mesmo. Em todo processo evolutivo,

Introdução 23
entre capital e modo de produção capitalista, impulsionando o desen-
volvimento das forças produtivas e a formação do mercado mundial.
Enfim, capital como modo estranhado de controle sociometabólico e
capitalismo como modo de produção da vida, passaram a identificar-
-se, embora a relação-capital fizesse parte de outros modos de produ-
ção pré-capitalista; e possa também fazer parte de modos de produção
pós-capitalistas.
O “acoplamento estrutural” entre a relação-capital e o novo modo
de produção capitalista alterou a dinâmica da acumulação de riqueza,
promovendo mudanças radicais no ecossistema humano. Fez com que a
abolição do capitalismo e o desenvolvimento do socialismo, só pudesse
ocorrer, na medida em que se negasse, não apenas o modo de produção,
em si e para si, mas também o sistema de metabolismo social baseado
na relação-capital (o que não ocorreu, por exemplo, com a experiência
soviética)..
O “duplo negativo do capital” expõe a necessidade histórica de ir
além do modo de produção e seu sistema de metabolismo social tendo
em vista as contradições fundamentais entre valor econômico (miséria
do presente) e valor humano (riqueza do possível) – parafraseando um
título de livro de André Gorz (“Misère du presente. Richesse du possi-
ble”, de 1997). Na verdade, trata-se de afirmar o processo civilizatório
enquanto afastamento das barreiras naturais sob pena da extinção da
Humanidade, (entendendo-se o capital como “segunda natureza” estra-
nhada). Na medida em que o capital se tornou sistema, impulsionado
pelo “acoplamento estrutural” entre a relação-capital e o modo capita-
lista de produção, o desenvolvimento do capitalismo enquanto capita-
lismo propriamente dito (o capitalismo industrial) desenvolveu de for-
ma historicamente inédita, a partir de meados do século XIX, as forças
produtivas do trabalho social. Ao desenvolver-se, o capital como modo
de acumulação de riqueza abstrata tornou-se “afetado de negação”, não

a autopoiesis do sistema se reproduz e pode sobreviver à reprodução divergente oferecida


pelas estruturas. É fácil entender que o meio desempenha um papel muito importante
nisso; sem contar que carece de sentido perguntar o que é mais importante, sistema ou
meio, já que é precisamente esta diferença que torna possível o sistema” [o grifo é nosso]
(Luhmann, 2009).

24 O Duplo Negativo do Capital


apenas devido às crises cíclicas do capitalismo, movidas na sua essência
pela queda da taxa de lucro, e manifestando-se historicamente na sua
aparência, pelas crises de superprodução/subconsumo e desproporcio-
nalidade; mas também devido à crise estrutural do capital, a crise das
“mediações de segunda ordem” (a relação-capital) a partir da última
metade do século XX.
A lógica dialética inscrita no movimento do “duplo negativo” do ca-
pital se manifesta não apenas por meio da “unidade contraditória” entre
crises cíclicas do capitalismo”, movida pela crise estrutural de lucrati-
vidade; e crise estrutural do capital como crise das “mediações de se-
gunda ordem” da relação homem-natureza; mas também pelo próprio
movimento do capital como “contradição viva” que, enquanto processo
de “desmedida do valor”, expõe elementos espectrais de possibilidades
concretas de desenvolvimento humano em virtude do novo conteúdo
material da produção de riqueza abstrata.
Neste novo ensaio sobre a crise do capitalismo global (em 1ª. edição),
colocamos os prolegômenos de uma pequena crítica às contribuições
recentes do marxismo sobre a crise do capital. O ensaio salienta a ne-
cessidade da lógica dialética, materialista e histórica, na apreensão das
novas condições de desenvolvimento do capitalismo global. Tornou-se
fundamental, num primeiro momento, organizar a periodização histó-
rica do capital em processo, distinguindo as etapas de desenvolvimento
do capitalismo tardio e os momentos de ascensão e crise do capitalismo
global. O entendimento do modo de aparecer histórico ou o desvelar-se
do movimento do capital em sua etapa de crise estrutural, torna-se ele-
mento crucial para a apreensão da essência da sua processualidade. Em
primeiro lugar, o movimento crítico esboçado nos ensaios meramente
introdutórios deste pequeno livro possui um duplo caráter:
Por um lado, o reconhecimento do valor teórico do debate marxista
sobre a teoria da crise, que, nas últimas décadas, aprimorando o mé-
todo lógico-dialético e o acumulo de dados empíricos (e estatísticos)
sobre as crises cíclicas do capital desde fins do século XIX, conseguiu ir
além do debate sobre os problemas da transformação de valor em preço
de produção ou ainda a discussão sobre a teoria do valor, atualizando

Introdução 25
com imaginação dialética, a validade heurística da crítica da economia
política de Karl Marx.
Por outro lado, a apreensão dos limites heurísticos das notáveis con-
tribuições de ilustres pensadores marxistas – alguns com ampla recep-
ção editorial no Brasil, tais como David Harvey e István Mészáros. O
caso de David Harvey é exemplar. É primoroso seu trabalho de divul-
gação da crítica da economia política de Karl Marx (foram publicados
no Brasil os livros “Limites do Capital”, de 2006; e “Para entender o Ca-
pital” em dois volumes (2010 e 2013). No entanto, em seu entendimento
de Marx, Harvey desprezou a importância da lei da queda da taxa de
lucro na explicação causal das crises capitalistas. Parece um detalhe,
mas não é. Para o velho Marx, a lei da queda tendencial da taxa de lucro
é a mais importante lei de crítica da economia política. Harvey adotou
uma teoria multicausal das crises.
Embora a lógica dialética afirme que o concreto é a síntese de múlti-
plas determinações, isso não quer dizer que as múltiplas determinações
representem múltiplas causas. Nas “múltiplas causas” é importante dis-
tinguir, por um lado, o “todo” das aparências e contingencias históricas
e, por outro lado, a processualidade essencial. Existe uma hierarquia on-
tológica nas determinações que constituem o real processual. Na crítica
da economia política, a lei da queda da taxa de lucro é a determina-
ção essencial para explicar as crises capitalistas, embora não se possa
desprezar o todo das aparências e das contingencias históricas (a lógica
dialética ressalta que a aparência é a forma de ser da essência). Des-
te modo, uma teoria multicausal não é a mesma coisa que uma teoria
dialética da crise capitalista. Portanto, o erro metodológico de David
Harvey se deveu à sua incapacidade em elaborar uma reconstrução da
lógica dialética em Marx, capaz de dar conta das relações entre essência,
aparência e contingencia histórica. O ecletismo metodológico decorrente
da desconsideração pela lógica dialética prejudicou muito o desenvol-
vimento da teoria marxista no século XX, principalmente a tradição
marxista na França e EUA (é curioso que, mesmo um marxista orto-
doxo como Ernest Mandel, tenha adotado uma explicação multicausal
das crises capitalistas, explicitando a fragilidade da lógica dialética num
economista de formação marxista-leninista).

26 O Duplo Negativo do Capital


A nossa crítica a István Mészáros, outro marxista com ampla re-
cepção editorial no Brasil, parte do princípio de que o filosofo hún-
garo não incorporou em sua volumosa abordagem crítica de “Beyond
Capital”, a perspectiva da crise estrutural do capital no sentido da crí-
tica da economia política. Ao adotar uma perspectiva conceitual da
crise, deixou de lado o movimento marxiano da crítica da economia
política capaz de apreender a natureza das crises cíclicas do capitalis-
mo como momento fundamental para a elaboração da própria teoria
da crise estrutural do capital.
Não desprezamos o valor heurística da contribuição de Mészáros
com o conceito de crise estrutural do capital como crise das mediações
de segunda ordem. Ela constitui efetivamente uma contribuição valiosa
para a crítica do capital no século XXI. Entretanto, ao tratar essencial-
mente da crise estrutural das instituições capitalistas, Mészáros se de-
tém na fenomenologia da aparência do sistema (embora a aparência seja
uma forma de ser da essência), isto é, o plano da circulação e trocas so-
ciais. Por isso, o filosofo húngaro explica a crise do capital pelo aumento
da taxa decrescente de utilização do valor de uso, categoria heurística da
ordem do consumo, deixando de lado, o rico debate da queda da taxa
de lucro como movimento tendencial do sistema na esfera da produção.
Na verdade, a perspectiva heurística da crise estrutural de lucrati-
vidade é o “nó górdio” do complexo de complexos da crise do modo de
produção capitalista. O movimento dialético da lei do valor (extinção e
expansão) põem contraditoriamente em movimento, contratendencias
que transtornam a sociedade burguesa nas suas mais diversas instan-
cias da vida social (trabalho, politica, consumo, tecnologia, psicologia).
Portanto, consideramos insuficiente apreender o movimento da crise
estrutural do capital apenas como crise das “mediações de segunda or-
dem” – embora não possamos despreza-las.
Ao mesmo tempo, criticamos os economistas marxistas que se de-
dicam a discutir a teoria da crise em Marx e explicar de modo causal,
a crise do modo de produção capitalista a partir da crítica da econo-
mia política, deixando de lado, a crítica do sociometabolismo do capital
como sistema estranhado de controle social. Deste modo, caem no ex-
tremo oposto à posição de Mészáros quando desprezam o tratamento

Introdução 27
histórico-dialético e materialista da crise estrutural do capital no sentido
de crise senil das mediações de segunda ordem por conta do seu “aco-
plamento estrutural” com a produção capitalista (modo capitalista de
produção de mercadorias). Uma notável exceção – embora muito proble-
mática no campo da crítica da economia política – foi a contribuição de
Paul Baran e Paul Sweezy quando, por exemplo, ao discutirem o capital
monopolista, discorrem sobre o “sistema irracional” do capital.
Finalmente, seria interessante, pelo menos nesta Introdução, uma
referência à linha de crítica do capital de Robert Kurz, filosofo radical
alemão que, de modo criativo e perspicaz, nas décadas de 1990 e 2000
salientou, como importante elemento conceitual do colapso da moder-
nização, a crise do valor e a crise do trabalho abstrato. Entretanto, o viés
de Kurz é não elaborar a reflexão da crise do trabalho abstrato na pers-
pectiva da crise estrutural do capital como metabolismo social radical-
mente contraditório. Eis o problema da necessidade de reconstrução da
lógica dialética na perspectiva do entendimento da afirmação marxiana
de que o capital é uma “contradição viva”. Na medida em que ocorreu o
“acoplamento estrutural” da relação-capital com o modo de produção
capitalista, a senilidade da dinâmica histórica e social do capitalismo
como modo de produção, levou consigo a própria relação-capital na
qual se baseia. O capitalismo como modo histórico de produção, di-
nâmico e voraz por natureza, expressa em si e para si, por meio das
mediações da forma-dinheiro e do mercado, a materialidade do valor
em movimento. Entretanto, o fetichismo do valor em movimento, que
se expressou na dinâmica do modo de produção capitalista senil (como
refletiu Robert Kurz), oculta em si e para si, o processo civilizatório, onde
a dialética do trabalho como categoria ontológica da espécie humana
tornou-se deveras relevante mesmo que apareça como civilização “ne-
gada”. Robert Kurz perdeu de vista a dialética histórico-materialista do
processo civilizatório do capital expressa, por exemplo, na dialética en-
tre valor de troca e valor de uso.
O processo civilizatório do capital ocorre no seio do modo de produ-
ção capitalista, conduzido pelas “mediações de segunda ordem” (dinhei-
ro, mercado mundial, concorrência e divisão hierárquica do trabalho).
Com o capitalismo como modo de produção, de forma radicalmente

28 O Duplo Negativo do Capital


contraditório, o processo civilizatório da espécie humana atingiu seu
auge histórico, ao mesmo tempo, que se defronta com a sua derrocada
irremediável, caso não consiga ir além da relação-capital e seu duplo
negativo acoplado estruturalmente ao modo de produção capitalista. É
o duplo negativo do capital em seu processo historicamente contraditó-
rio, que interverte as possibilidades emancipatórias do desenvolvimen-
to das forças produtivas do trabalho social.

Introdução 29
Capítulo 1

A Gr ande Crise do C apitalismo


Tardio (1973-1975)

A crise capitalista de 1973-1975, a primeira recessão global após a


Segunda Guerra Mundial (1939-1945), representou o marco histórico
significativo da nova dinâmica do capital no século XX, que aprofun-
dou a luta de classes, constituiu o complexo de reestruturação capita-
lista, e impulsionou a transição para a nova temporalidade histórica do
capitalismo global. Ela foi o salto qualitativamente novo do processo de
acumulação de contradições do capitalismo mundial constituido após
a Segunda Guerra Mundial (1939-1945): o “capitalismo fordista-keyne-
siano”, de acordo com David Harvey; a “idade de ouro do capitalismo”
(Marglin e Schor), “capital monopolista” (Baran e Sweezy) ou “capitalis-
mo monopolista de Estado” (Boccara); o “capitalismo tardio”, de acordo
com Ernest Mandel, ou ainda “neocapitalismo” (André Gorz).
No entanto, para caracterizar o capitalismo histórico que se de-
senvolveu após 1945, optamos por utilizar o termo de Ernest Mandel
(capitalismo tardio), visando salientar não apenas aspectos de ordem
cronológica, mas também de caráter conceitual (ou sintético) que ex-
põem mudanças estruturais na operação do capitalismo como modo
de produção internacional: o capitalismo do pós-guerra, os “trinta anos
dourados” (1945-1975) ou “the golden age of capitalism” (Marglin e
Schor, 1990) sofreu alterações qualitativamente novas que despertaram
profundas contradições objetivos no plano da produção e reprodução
do capital no mercado mundial que alteraram a dinâmica do valor, acu-
mulação e movimento tendencial de queda da taxa de lucro, fundamen-
to estrutural das crises capitalistas.

A Grande Crise do Capitalismo Tardio (1973-1975) 31


O movimento e as contradições inerentes do capital encontraram no
período histórico do capitalismo tardio, a expressão plena do seu desen-
volvimento. Foram as contradições objetivas e subjetivas da economia
e luta de classes do capitalismo tardio (1945-1973) que levaram à crise
de lucratividade de 1973-1975, a primeira grande crise do capitalismo
tardio. É a partir dela que iremos refletir sobre o novo tempo histórico
do capital que denominamos “capitalismo global”.
Desde a década de 1950, o sistema do capitalismo internacional (Mi-
chalet) expelia múltiplas contradições no centro dinâmico (e na perife-
ria em desenvolvimento) da acumulação do capital. Mandel expos no
seu livro clásico “O capitalismo tardio”, publicado em 1972, as mudan-
ças estruturais do capitalismo do pós-guerra. Ele salientou que no pós-
-guerra, ocorreu a melhoria radical nas condições para a valorização do
capital que resultou das derrotas históricas da classe tirabalhadora fren-
te ao fascismo e à guerra. Ao mesmo tempo, ocorreu o desenvolvimento
da Terceira Revolução Tecnológica. Para ele, o capitalismo foi uma nova
fase no desenvolvimento do capital, quando ocorreu “a redução do ciclo
vital do capital fíxo, a aceleração das inovações tecnológicas (geradoras
de rendas que se tomam a principal forma dos superlucros monopolis-
tas sob o capitalismo tardio), a absorção do capital excedente pelo rear-
mameno ininterrupto - o que Baran e Sweezy salientariam como mili-
tarismo e imperialismo; ou “complexo industrial-militar” (Mészáros).
O capitalismo tardio constituiu uma partícular inter-relaçao entre
capital excedente e mercado mundial — a concentração e centraliza-
ção internacionais do capital que deu origem à empresa multinacional,
a mais importante forma fenomênica do capital, e a troca desigual entre
nações produtoras de mercadorias a níveis diferentes de produtividade
média do trabalho, que domina o mercado mundial; e suas novas for-
mas e “soÍuções” para o problema da realizaçao. Disse Mandel em 1972:
“A inflação permanente ao ciclo econômico característico do capitalis-
mo tardío, [...] combina um ciclo industrial clássico a um ‘contraciclo’
de expansão do crédito e contração do crédito sob o signo da inflação”
(Mandel, 1982).
Existem no campo marxista, diversas interpretações sobre as causa-
lidades da crise capitalista de 1973-1975. Não nos interessaneste texto,

32 O Duplo Negativo do Capital


tratar do longo debate ocorrido nas últimas décadas entre economis-
tas marxistas, principalmente dos EUA, Reino Unido e França sobre.
Neste livro, adotamos a tese de que a crise capitalista de 1973-1975 foi
uma crise de lucratividade, explicação defendida por vários economis-
tas marxistas de renome, tais como Gerard Duménil e Dominique Lévy,
Robert Brenner, Andrew Kliman, Ernest Mandel, Anwar Shaik e Mi-
chael Roberts, entre outros. Entretanto, existem divergencias entre tais
autores sobre o que levou à crise de lucratividade do capitalismo tardio.
Por exemplo, tomando a economia dos EUA como referencia históri-
ca, por ser o centro dinâmico da economia mundial, Robert Brenner
identificou a queda da taxa de lucro das corporações norte-americanas
com o aumento da competição dos EUA no mercado mundial, dispu-
tando mercados com a Alemanha e o Japão reconstruidos; por outro
lado, Fred Moseley, o aumento no trabalho improdutivo; outros auores,
como Kliman e Roberts, indicam o aumento da composição orgânica
do capital, identificando o progresso técnico impulsionado pela III Re-
volução Tecnológica e o aumento do valor do capital constante (capital
fixo + capital circulante) como causa da queda da taxa de lucro; ou ain-
da o profit squeeze (a compressão salarial). Ernest Mandel expplicou a
crise do capitalismo tardio por um conjunto de causas. Enquanto isso,
por fora, Sweezy diverge de todos, explicando a crise, não pela queda
da lucratividade, mas pelo excesso de capacidade; e, mais tarde, Harvey
explicando-a pelo esgotamento do “fordismo”.
Embora a tendencia de queda da taxa média de lucro no centro dinâ-
mico do capitalismo mundial operassse desde a última metade da déca-
da de 1960, com a economia norte-americana desacelerando e vivendo
o fenomeno da estagflação, com o crescimento do desemprego e infla-
ção, foi a contingência geopolitica na primeira metade da década de 1970
que disparou o “gatilho” da recessão global, com o aumento do preço
do Petroleo por conta da guerra árabe-israelense. O aumento abrup-
to do preço do Petróleo em 1973/1975, promovido pela recém-criada
OPEP, pressionou ainda mais, para baixo, a lucratividade dos oligopó-
lios industriais e a conta corrente dos países capitalistas dependentes do
Petroleo, incluindo, por exemplo, o Brasil que teria o “fim do Milagre”
ocorrido no governo do Presidente General Emilio Garrastazu Médici.

A Grande Crise do Capitalismo Tardio (1973-1975) 33


O Presidente General Ernesto Geisel (1974-1978) assumiria o governo
com a “crise do Milagre”.
Como elementos de composição da crise capitalista, ainda no plano
da contingencia histórica, tivemos o aumento do gasto público norte-
-american com a escalada militar da Guerra do Vietnã e o aumento
do gasto com seguro-desempego e beneficios previdenciários numa
conjuntura de desaceleração da economia norte-americana. James
O´Connor salientou a crise fiscal (O´Connor, 1978). Como observou
David Harvey, “a forte deflação de 1973-1975 [por conta da recessão
mundial – G.A.] indicou que as finanças do Estado estavam muito além
dos recursos.” (Harvey, 1992).
Portanto, tivemos a queda da lucratividade como fundamento cru-
cial da crise capitalista, num cenário de aumento da capacidade exce-
dente inutilizavel das corporações industriais e profunda crise fiscal e de
legitimação do Estado capitalista (O´Connor, 1978; Habermas, 1980). O
fim dos acordos de Bretton Woods decretado por Richard Nixon em 15
de agosto de 1971 impulsionou a escalada da nova desordem financeira
mundial, a “desconstrução” do capitalismo organizado, sendo o marco
histórico da ruptura com a dinâmica capitalista fordista-keynesiana).
Para reagir à recessão global de meados da década de 1970, o go-
verno trabalhista no Reino Unido e o governo democrata nos EUA re-
correram às políticas expansionistas que expuseram mais ainda, a crise
fiscal, aumentando a inflação e o desemprego, criando o clima político
para a vitória do programa neoliberal de “saída da crise” com Ronald
Reagan, nos EUA, e Margareth Thatcher, no Reino Unido.
O fim de Bretton Woods não foi a causa da crise capitalista de 1973-
1975, mas efetivamente contribuiu para uma série de efeitos derivados
que iriam compor as novas determinações do capitalismo global nas
décadas seguintes. Por exemplo, deu um impulso significativo a espe-
culação massiva e a dominancia do capital financeiro, marcando a de-
terioração da “economia real”.
Sob o sistema de Bretton Woods havia controles estritos de capital
que protegiam a taxa de câmbio fixa, algo que, com o fim do acordo
de Bretton Woods, se tornou desnecessário, pois passaram a ocorrer
as taxas de câmbio flutuantes, aumentando os fluxos de capital que

34 O Duplo Negativo do Capital


começaram a deslocar-se pelo mundo a um ritmo cada vez mais verti-
ginoso, com o setor financeiro ganhando cada vez mais força político-
-institucional num cenário de desaceleração ou baixo crescimento do
PIB das economias capitalistas, ocasionado queda da taxa de lucrativi-
dade das corporações – pelo menos desde meados da década de 1960,
redução do investimento produtivo e financeirização da riqueza capi-
talista (o que explica porque o capitalismo global significou a queda ou
estabilidade dos salários relativos dos trabalhadores produtivos e au-
mentos significativos dos salários dos profissionais vinculados ao setor
financeiro).

A reestruturação capitalista rumo ao capitalismo global


Na última metade da década de 1970, e pelo menos, ao longo da
década de 1980, as corporações capitalistas sob o comando do capital
financeiro, promoveram um profundo processo de reestruturação do
capital, visando retomar o aumento da taxa de lucratividade (o que
ocorreria em fins da década de 1980). O complexo de reestruturações
capitalistas que marcou a década de 1980, o período histórico de transi-
ção para o capitalismo global, foi caracterizado pela:
1. reestruturação produtiva (de base tecnológico-organizacional,
incluindo a nova divisão organização do trabalho e modelo de
organização da grande empresa), de base salarial-contratual
(“flexibilização” da legislação trabalhista); e de base sociometa-
bolica (espírito do toyotismo e valores-fetiches do capital);
2. reestruturação política e geopolitica (politicas neoliberais, for-
talecimento das tecnocracias globais tais como FMI e Banco
Mundial, novas estratégias geopoliticas do bloco hegemonico
do capital (EUA, Japão e Europa Ocidental)

A partir daí, surgiram, primeiro nos paises capitalistas centrais e


depois, disseminando pelo capitalismo global, uma série de novas ex-
periencias nos dominios da vida social e cultural (o pos-modernismo)
e uma nova lógica do capitalismo tardio (Jameson). O ano de 1973 –
o marco histórico da primeira recessão global após a Segunda Guerra

A Grande Crise do Capitalismo Tardio (1973-1975) 35


Mundil, assinalou o inicio daquilo que David Harvey denominou “acu-
mulação flexivel (Harvey, 1992), base das mudanças culturais da “con-
dição pós-moderna” (estamos tratando disso do centro capitalista dei-
xando de lado a dinâmica da periferia capitalista).
Nossa hipótese é que, a crise capitalista de meados da década de
1970, nos projetou para o processo de transição histórica do capitalismo
global, nova etapa do capitalismo tardio que se consolidou efetivamente
na década de 1990. Portanto, a rigor, o marco histórico do capitalismo
global não foi 1980, mas sim, o período de 1989-1991. Na verdade, a
longa transição para o capitalismo global ocorreu de 1975-1989 com o
acirramento da nova ofensiva do capital por meio do processo reestru-
turativa indicado acima.
A década de 1970 caracterizou-se pelo aprofundamento da luta de
classes – sindical e política - nos paises capitalistas centrais. A crise
da social-democracia (Simon Clark) contribuiu para o avanço das for-
ças politicas da “nova direita” neoliberal consagrada pelas eleições de
Margareth Thatcher no Reino Unido (1979) e Ronald Reagan nos EUA
(1980). Este foi o marco histórico do começo da hegemonia financeira e
a reposição da nova hegemonia geopolitica dos EUA no cenário interna-
cional, depois do fiasco da sua investida na Indochina (Vietnã e Com-
boja) e, a seguir, importantes derrotas geopoliticas no Irã (a Revolução
Iraniana) e América Central (a Revolução Nicaraguense), ocorrridas
sob o governo democrata de Jimmy Carter.
A partir do aprofundamento da crise de lucratividade e a recessão
global de 1973-1975, começaram a operar efetivamente as tendências (e
contratendências) à queda da taxa media de lucros no plano do sistema
mundial. Instalou-se a nova ofensiva do capital caracterizada pelo com-
plexo de reestruturações da ordem burguesa mundial nas mais diversas
instâncias da vida social (produção, político, geopolítico, tecnológica e
ideológico-cultural) que nos projetou para a nova temporalidade histó-
rica do capital: a era do capitalismo global. Essa nova ofensiva do capital
se aprofundaria na década de 1980 contribuiu para a retomada da lucra-
tividade do capital monopolista no final da década - entretanto, muito
abaixo das taxas de lucratividade e crescimento do PIB verificadas na
golden age (os “anos dourados” do capitalismo tardio).

36 O Duplo Negativo do Capital


Tabela 1: Taxas de Crescimento do PIB per capita
1950-73 1973-2008 Pós-1973 como
(por cento) (porcentual) % do pré-1973.
Estados Unidos 2,4 1,8 74
Japão 7,8 2,0 25
Alemanha 4,9 1,6 32
Reino Unido 2,4 1,9 81
França 3,9 1,6 40
Itália 4,8 1,8 37
Canada 2,8 1,7 62
Espanha 5,4 2,7 50
Europa Ocidental 4,0 1,8 46
Europa Oriental 3,7 1,5 41
(ex-)URSS 3,3 0,8 23
América Latina e Caribe 2,6 1,2 49
Ásia 3,8 3,4 89
Africa 1,9 0,7 37
Mundo 2,9 1,8 62
Extraído de KLIMAN, 2012.

Apesar das mudanças estruturais do sistema mundial do capital, a


década de transição neoliberal (1980) e o capitalismo global (1989-2018),
não conseguiram efetivamente recuperar (desde a crise de 1973-1975),
as taxas de crescimento do PIB e taxas de lucratividade dos “trinta anos
dourados” do capitalismo do pós-guerra. Apesar do crescimento rela-
tivo da economia global do capitalismo nas décadas de 1980 e 1990, as
taxas de lucratividade permaneceram abaixo daquelas do período 1945-
1973 (vide acima a Tabela 1).
Analisando o Gráfico 1 abaixo, verificamos, de modo claro, com
destaque a partir de 1980, o movimento de decrescimento da taxa mé-
dia de lucros nos setores produtivos dos EUA, núcleo orgânico da dinâ-
mica do capitalismo global, pari passu ao crescimento da composição
orgânica do capital. Apesar das flagrantes oscilações para baixo e para
cima, a taxa média de lucros apresenta uma linha descendente – pelo

A Grande Crise do Capitalismo Tardio (1973-1975) 37


menos até 2010. Enquanto isso, a composição orgânica do capital cresce
de modo contínuo, pelo menos desde 1950, dando um salto significa-
tivo a partir de 2000, talvez devido o aprofundamento (intensivo e ex-
tensivo) da Quarta Revolução Industrial, a revolução informacional no
patamar superior.

Gráfico 1: Taxa Média de Lucro e Composição Orgânica do Capital


Setores produtivos (EUA), (1948-2009).

Taxa Média de Lucro. Composição Orgânica do Capital


Fonte: CARCHEDI, 2011.

Em síntese: a crise capitalista de 1973-1975, a crise do capitalismo


tardio, não se tratou de mais uma crise clássica de superprodução, que
caracterizou ininterruptamente a evolução histórica do capitalismo
moderno. Na verdade, ela representou a manifestação da crise estrutu-
ral de lucratividade, que constituiu a nova etapa do capitalismo tardio:
o capitalismo global, lançando as sociedades burguesas num estado de
barbárie social (crise de civilização). Deste modo, concordamos com
Andrew Kliman que observou que o “ponto de inflexão” da dinamica
capitalista do pós-guerra foi a década de 1970 com a crise capitalista de
1973-1975, e não a década de 1980, com o capital recuperando-se da cri-
se ocorrida na década passada. Pelo contrário, de acordo com ele, desde
a recessão global de 1973-1975, o capitalismo não recuperou mais suas
taxas de crescimento. (Kliman, 2012).

38 O Duplo Negativo do Capital


A natureza da crise de 1973-1975
A recessão global de 1973-1975 foi o marco histórico de inflexão do
capitalismo tardio para sua nova etapa histórica: o capitalismo global.
Como manifestação da crise de lucratividade, a recessão global de 1973-
1975 explicitou historicamente a crise de expansão mundial do sistema
capitalista como “contradição viva”. A correta identificação da crise im-
plica em determinar a nossa percepção de seus desdobramentos futu-
ros. Por isso, a ênfase na verdadeira caracterização da crise capitalista
de 1973-1975.
No “Manifesto Comunista” de 1848, apesar de Karl Marx e Friedri-
ch Engels não terem ainda uma percepção clara sobre a natureza das
crises capitalistas, eles constataram alguns elementos essenciais da ló-
gica histórica do capitalismo industrial, que se caracteriza pelos ciclos
de superprodução de mercadorias. Disseram eles: “[...] essa sociedade se
torna possuidora de civilização demais, de gêneros alimentícios demais,
de indústria e comércio demais. As forças produtivas à sua disposição
deixam de servir de estímulo às relações de propriedades burguesas;
elas se tornaram demasiado poderosas para tais relações que passam a
inibir.” (Marx e Engels, 1998).
Entretanto, as crises de superprodução são manifestações contin-
gentes da tendência constante à queda da taxa de lucros por conta do
aumento da composição orgânica do capital. Para compensar a queda
da taxa de lucros, os capitalistas buscam aumentar a massa de lucros
por meio da ampliação da produção e elevação da quantidade de mer-
cadorias fabricadas ocasionando a superprodução de mercadorias. É
inerente ao capitalismo industrial, a tendência de aumento da produ-
ção, o enorme crescimento da capacidade produtiva (ou aumento do
“excedente econômico”, como diriam Paul Baran e Paul Sweezy no livro
“Monopoly Capital”, de 1965).
Diante da crise estrutural de lucratividade por conta do persistente
aumento da composição orgânica do capital, as crises de superprodu-
ção tornam-se um elemento crucial na dinâmica capitalista. Por isso,
de acordo com a explicação marxista clássica que consta no Livro 3 de
“O capital”, o elemento fundamental explicativo da crise capitalista de

A Grande Crise do Capitalismo Tardio (1973-1975) 39


superprodução é a tendência de queda da taxa de lucro. Ela é a dimensão
essencial que explica o traço crucial de irracionalidade do modo capita-
lista de produção da vida (e da morte), a manifestação da superprodução
da massa de capital-dinheiro, que caracteriza os “trinta anos perversos”
de capitalismo global. Iremos salientar que a financeirização da riqueza
capitalista é a principal – embora não seja a única - “válvula de escape”
da crise crônica de superprodução do capital na era do capitalismo glo-
bal (por exemplo, István Mészáros salientou - pelo menos - duas princi-
pais “válvulas de escape” do capital diante da crônica (e rastejante) crise
de superprodução: a taxa de utilização decrescente do valor de uso e o
complexo industrial-militar) (Meszáros, 1995).
Com a transição (e consolidação) do capitalismo global na década
de 1980, o big bang financeiro, a desregulamentação das finanças, as
inovações financeiras impulsionaram a busca frenética pela valoriza-
ção fictícia da massa de capital-dinheiro, que, nas condições da crise
estrutural de lucratividade e crise crônica de superprodução, tornou-
-se, com a hegemonia do capital financeiro no bloco de poder do ca-
pital, um dimensão orgânica no interior da ordem burguesa senil. A
“autonomização” do capital financeiro e sua supremacia política, pro-
vocou mudanças das relações hegemônicas de propriedade burguesa,
não mais baseadas no capital produtivo, mas sim, lastreadas no capital
especulativo-parasitário (o que explica, por exemplo, a hegemonia das
políticas de financeirização do Estado neoliberal).
No livro “A teoria marxista das crises econômicas e as transforma-
ções do capitalismo” (de 1979), o sociólogo Manuel Castells, de modo
didático, escreveu:
“O descenso das taxas de lucros origina um excedente de capital,
porque o crescimento do capital acumulado, graças à crescente extração
de mais-valia, encontra cada vez menos possibilidades de investimentos
que conduzam a uma rentabilidade adequada. Disto reviva um descen-
so do investimento produtivo que provoca uma diminuição de emprego
e a consequente redução dos salários pagados pelo capital. Ao dimi-
nuir os salários, cai, paralelamente, a procura, provocando uma crise
na venda das mercadorias previamente armazenadas. Produz-se, assim,
uma crise de superprodução, já que a capacidade produtiva não pode

40 O Duplo Negativo do Capital


ser absorvida pela procura solvente existente, resultado das restrições à
procura derivada do descenso dos investimentos. A incapacidade para
realizar suas mercadorias faz com que o capital detenha sua produção,
generalizando-se a paralisação e a depressão dos mercados. Dado que a
produção capitalista somente está interessada na criação de valores de
uso na medida em que sejam o suporte de valores de troca, a economia
somente se reativará quando a paralisação em massa originar salários
muito baixos, quando a falência de muitas empresas tiver desvalorizado
o capital fixo e quando o Estado intervier ou se produzir um aconteci-
mento inesperado (uma guerra, por exemplo) que incremente substan-
cialmente os mercados e permita o investimento rentável de capital.”
(Castells, 1979) (o grifo é nosso).
Diante da crise estrutural de lucratividade e a manifestação crôni-
ca da superprodução da massa de capital-dinheiro, o sistema produtor
de mercadorias reagiu aprofundando o movimento reestruturativo do
capital. De certo modo, o capitalismo tardio do pós-guerra (1945-1975),
principalmente a partir de meados da década de 1960, continha mo-
vimentos estruturais, impulsionados pela concorrência mundial, que
aprofundaram as contradições da acumulação do capital e reforçaram
a tendência de queda da taxa de lucratividade. Por exemplo, o aumen-
to da composição orgânica devido a Terceira Revolução Tecnológica;
a “Guerra Fria”, o eurodólar e a financeirização do capital-dinheiro;
e o “complexo industrial-militar”, etc. Enfim, o capitalismo tardio do
pós-guerra e as contradições no plano do movimento estrutural e da
contingência política, continham, em si, os elementos de sua própria
“negação”. Com a crise do capitalismo tardio em meados da década de
1970, o capital monopolista impulsionou um longo processo de reestru-
turação capitalista, com a transição histórica para o capitalismo global
(1975-1989), elevando, deste modo, num patamar superior, as contradi-
ções do capital.
A crise estrutural de lucratividade fez da reestruturação capitalis-
ta, um movimento crônico da dinâmica do capital, visando constituir,
deste modo, a nova forma social no interior da qual o valor (em ex-
tinção/expansão) se desenvolve. Esta nova forma social é o capitalismo
global, a nova etapa do capitalismo tardio na fase de crise estrutural de

A Grande Crise do Capitalismo Tardio (1973-1975) 41


lucratividade (e crise crônica de superprodução da massa de capital-
-dinheiro) e desmedida do valor (István Mészáros caracterizou a nova
era do capitalismo tardio pela “crise estrutural do capital” considerando
o capital como sistema estranhado do metabolismo social – o que vere-
mos mais adiante).
Depois da década de transição neoliberal (1979-1989) e duas décadas
de afirmação do capitalismo global (1989-2008), presenciamos desde
2008, a crise da mundialização do capital como momento da afirmação
da nova forma social do capitalismo senil. Na verdade, desde 1991, te-
mos quase “trinta anos perversos” de capitalismo global no interior do
qual operam, de modo contraditório, tendências e contratendências à
queda da taxa média de lucros, causa estrutural da crise do modo capi-
talista de produção da vida social.

A “acumulação primitiva” do capitalismo global


A crise do capitalismo global, que se manifestou em sua forma “pré-
-histórica” nas crises financeiras da borda periférica do sistema na últi-
ma metade da década de 1990, atingindo os EUA no começo da década
de 2000, são manifestações aparentes da essência da nova forma social
de movimento do capital sob a hegemonia do capital financeiro: a crise
estrutural de lucratividade e o processo de desmedida do valor, deter-
minações essenciais que operam no desenvolvimento do capitalismo
global (o que denominamos de a dupla negação do capital). Na perspec-
tiva do capital, o movimento da crise de superprodução/subsconsumo,
com seu conteúdo de irracionalidade social é, em si e para si, o novo
modo de ser do sistema mundial produtor de mercadoria no interior
do qual se constituiu a forma social do capital adequada ao desenvolvi-
mento das suas “contradições vivas”.
Consideramos que a barbárie social é a forma social no interior da
qual o capital, em sua etapa de crise estrutural, desenvolve suas contra-
dições vivas (crise estrutural de lucratividade e desmedida do valor). É o
modo de reprodução social do duplo negativo do capital, caracterizado
em sua dimensão sociometabolica, pelo fenômeno do estranhamento,
isto é, a contradição entre o desenvolvimento das forças produtivas do

42 O Duplo Negativo do Capital


trabalho social ou desenvolvimento da capacidade humana e o desfi-
guramento, aviltamento e degradação da personalidade do homem
(Lukács, 2013).

Capitalismo global e crise estrutural de lucratividade


(movimentos da aparencia do sistema do capital em processo)

Novos mercados globais


[globalização]

Estado neoliberal
[captura do fundo público]

Financeirização da riqueza capitalista

Precarização estrutural do trabalho

Irracionalismo, pós-modernismo e barbárie social

Discrimanamos abaixo os movimentos histórico-estruturais


que levaram à constituição da nova ordem global a partir do seu
período histórico de “acumulação primitiva” (a década de 1980):

■■ 1. Novos mercados globais


A obsessão pela abertura de novos mercados, um dos traços carac-
terísticos do capitalismo global, é a tendência contrária à crise crônica
de superprodução e superacumulação, visando criar demanda efetiva
para as mercadorias armazenadas. Devido a contradição candente entre
o desenvolvimento das capacidades produtivas do sistema produtor de
mercadorias, em virtude das notáveis mudanças tecnológicas ocorridas,
pelo menos nos trinta anos de capitalismo global (revolução informá-
tica, robótica, automação e revolução informacional); e a incapacida-
de relativa para realizar o valor contidos em suas mercadorias devido
o nível de procura solvente existente, operou-se com maior vigor, o

A Grande Crise do Capitalismo Tardio (1973-1975) 43


movimento de afirmação e negação da produção (e realização) do valor
no plano do mercado global.
Por isso, criar novos mercados tornou-se tarefa crucial para o sis-
tema produtor de mercadorias e disseminaram-se novas estratégias de
criação de mercados, como, por exemplo, a (1) expansão do comércio
global a partir de 1990, com a inserção da China no mercado mundial e
o protagonismo dos novos mercados no Sudeste Asiático, Rússia e Leste
Europeu; (2) as políticas de abertura comercial vinculada à integração
regional dos mercados nacionais - por exemplo, União Europeia, Mer-
cosul, Acordo do Pacífico, etc; (3) a obsoletização planejada das mer-
cadorias (o que István Mészáros considerou como sendo o aumento da
taxa de utilização decrescente do valor de uso das mercadorias (Mészá-
ros, 2002); e (4) e a espoliação do fundo público com a privatização de
empresas públicas, programa neoliberal que visa abrir novos campos de
valorização para o capital.
A necessidade de criação de “novos mercados” por meio de múl-
tiplos dispositivos reais ou fictícios, colocou-se como necessidade do
capital em sua etapa de crise estrutural de lucratividade e desmedida do
valor, representando a manifestação da contradição entre o desenvolvi-
mento das capacidades produtivas do sistema produtor de mercadorias,
e a incapacidade relativa do capital realizar o “valor” contidos nas novas
mercadorias - não apenas devido o nível de procura solvente existen-
te, mas em virtude da incapacidade do capital para operar o trabalho
abstrato (o trabalho que produz valor) sobre a nova materialidade da
produção de mercadorias (a “maquinofatura”).

■■ 2. A financeirixação da riqueza capitalista


A constituição da hegemonia da fração rentistas-parasitárias do ca-
pital, ocorreu com as politicas de desregulamentação das finanças e o
boom de inovações financeiras ocorrida na década de 1980, ao lado da
persistência das tendências de superprodução/subconsumo e mesmo
das pressões sobre a taxa média de lucro por conta do aumento da com-
posição orgânica do capital devido o salto da produtividade do traba-
lho, tendo em vista a Terceira Revolução Industrial, a massa de capital-
-dinheiro acumulada pelas corporações industriais e pelos fundos de

44 O Duplo Negativo do Capital


pensões, seria canalizada, não para investimentos produtivos, mas sim
para alimentar a esfera de valorização do capital fictício.
A financeirização da riqueza capitalista alterou a estrutura de com-
posição da lucratividade das corporações industriais. A presença do
lucro fictício ocultou a crise de valorização do capital produtivo, ca-
racterística crucial da crise estrutural do capital. A financeirização da
riqueza capitalista, impulsionada pelo Estado neoliberal com a desregu-
lamentação e inovações de produtos financeira, produziu uma dinâmi-
ca persistente (e recorrente) de bolhas financeiras, terreno propicio para
as crises financeiras, que logo se transformaram em crises da economia
mundial, sendo a principal delas, a crise de 2008/2009. Mas o capitalis-
mo global caracterizou-se, desde o período histórico de constituição e
afirmação (o que denominamos de “acumulação primitiva”) por crises
financeiras (1986-1987, 1996-2001 e 2008-2011), manifestações no plano
da aparência da crise estrutural de lcrativdade persistente e crônica..
A partir da década de 1970, o padrão de acumulação predominante-
mente financeirizado constituiu-se por meio do processo complexo de
políticas feitas por governos neoliberais a serviço dos interesses do capi-
tal financeiro. De 1975 a 1980 ocorreu uma acirrada luta de classes que
teve como resultado a derrota politica das forças progressistas do tra-
balho organizado. A transição para o capitalismo global foi constituida
por um complexo de decisões politicas e econômicas, com elementos
de contingência histórica ao longo da década de 1980. No “núcleo orgâ-
nico” do sistema mundial do capital, Ronald Reagan (1980) e Margaret
Thatcher (1979) se comprometeram em desregulamentar as finanças e
permitir o comando do capital especulativo-parasitário sobre as politi-
cas macroeconômicas dos governos. De Reagan a Bush, e de Clinton e
Obama, o poder de Wall Street comandou o Departamento de Estado
norte-eamericano, provocando mudanças orgânicas da estrutura da
política interna dos EUA (por exemplo, o deslocamento do Partido De-
mocrata para a direita com Bill Clinton, ocupando o lugar tradicional
do Partido Republicano, que assume uma feição neofascista).
Deste modo, o capital financeiro constituiu um novo padrão de acu-
mulação do capital predominantemente financeirizado e o novo bloco
histórico de dominação capitalista neoliberal, provocou importantes

A Grande Crise do Capitalismo Tardio (1973-1975) 45


mutações sócio-políticas e culturais no plano dos territórios nacionais.
A prevalência sistêmica do capital financeiro foi uma construção po-
lítica do capital visando responder à crise estrutural de lucratividade
no contexto histórico da profunda crise de superprodução/subconsumo
manifestada em meados da década de 1970.
No plano da aparência do sistema, a desregulamentação financeira
e as inovações financeiras da década de 1980 e 1990, etapa histórica
de ascensão do capital financeiro, tornaram-se estratégias contrárias
à crise crônica de superprodução. Na medida em que a realização da
forma-mercadoria encontrou-se “interditada” pela crise estrutural de
superprodução/subconsumo, manifestação aparente da crise estrutural
de lucratividade, investiu-se na realização fictícia do valor, impondo-
-se com vigor, de modo complexo, e no plano dos circuitos financeiros
globais, a fórmula D-D’, contornando-se o termo intermédio M (onde D
é dinheiro, D´é mais dinheiro e M é Mercadoria). A estratégia de valori-
zação fictícia, baseada na macroestrutura neoliberal do sistema-mundo
do capital, visa não apenas contornar a paralisação e depressão dos mer-
cados, mas constituir um modo de valorização “excéntrico”, capaz de
superar, no plano da ficticidade, a crise estrutural de lucratividade, à
altura das necessidades da produção do capital em escala mundial.
Portanto, a crise estrutural de licratividade constituiu o capitalismo
rentista e parasitário ou “capitalismo-cassino”, que visa dar respostas às
necessidades estruturais de produção e realização de valor à altura da
massa de capital-dinheiro acumulado por conta da crescente extração
de mais-valia (absoluta e relativa) ocorrida no decorrer da década de
1980 com a precarização estrutural do trabalho (a era da “acumulação
primitiva” do capitalismo global). A nova etapa do capitalismo tardio (o
capitalismo global) representa a crise orgânica do sistema de produção
de valor efetivo. A acumulação demasiada de capital-dinheiro não en-
contra efetivamente, rentabilidade adequada nas condições históricas
do mercado mundial.
Em última instância, manifestou-se a crise estrutural da forma-
-mercadoria que, ao não conseguir realizar o mais-valor contida em
si, transtornou o metabolismo do sistema produtor de mercadoria,
hipertrofiando o sistema de crédito e as finanças enquanto elementos

46 O Duplo Negativo do Capital


compositivos do processo de reprodução do capital. O capital financei-
ro cria o “mundo fictício” do capital-dinheiro descolado da esfera da
produção de valor de uso, tornando-se demiurgo da ordem social da
ficticidade com uma psicología social à sua imagen e semelhança. Na
era do capital improdutivo (Ladislau Dowbor) caracterizada pela lógica
da reprodução hermafrodita da riqueza abstrata, disseminaram-se as
formas derivadas de valor.

■■ 3. O Estado neoliberal
O Estado neoliberal é produto da luta de classes que se desenvolveu
na conjuntura de transição para o capitalismo global. Na disputa políti-
ca da decada de 1970, as forças politicas e sociais comprometidas com o
projeto fordista-keynesiano, perderam para as forças politicas e sociais
sob a direção da alta finanças, comprometidas com o projeto neoliberal.
Incapazes de operarem a dinâmica de acumulação do capital no pata-
mar do Estado-nação, cada vez mais objetivamente integrado com o
mercado global (mundialização produtiva e mundialização financeira),
as forças sociais-democratas se renderam ao receituário ortodoxo, per-
dendo a batalha no campo eleitoral (e ideológico) para a plataforma ne-
oliberal com destaque para a vitória dos programas neoconservadores,
comandado pelos interesses das altas finanças no centro mais dinâmico
do capitalismo mundial - por exemplo, Margaret Thatcher na Inglaterra
(1979); e Ronald Reagan nos EUA (1980).
A politica neoliberal adotada a partir de 1980, inclusive por gover-
nos social-democratas como Felipe Gonzales, na Espanha (1982-1996)
e François Mitterrand (1981-1995), na França, visou desmontar efeti-
vamente o compromisso fordista-keynesiano instaurado no bojo do
território do Estado-nação e instaurar um novo compromisso neocon-
servador baseado no aprofundamento da mundialização produtiva e
principalmente, da mundialização financeira.
Ao aplicarem a politica neoliberal (desregulamentação financeira,
liberalização comercial e precarização do mercado de trabalho pelo au-
mento do desemprego visando destruir o poder sindical, que enrijecia
o valor do capital variável), a oligarquia politica, financeira e industrial
objetivou, primeiro, resgatar a lucratividade dos oligipolios industriais

A Grande Crise do Capitalismo Tardio (1973-1975) 47


(o que ocorreu, de certo modo, na última metade da década de 1980); e,
pari passu, dar todo poder à nova dinâmica capitalista comandada pelo
capital financeiro cuja obsessão persistente é equilibrar as finanças do
Estado em detrimento do gasto público com as necessidades sociais.
A resposta do capital em crise em seu “núcleo orgânico” levou a cons-
tituição do Estado neoliberal como a forma do Estado político do capital
na etapa histórica da crise crônica de lucratividade. A partir de 1980,
com os governos Ronald Reagan (1980-1988), tivemos a rearticulação da
hegemonia geopolítica dos EUA baseada no complexo industrial-militar
e no complexo especulativo-parasitário de financeirização da riqueza ca-
pitalista lastreado no poder do Dólar como moeda de referência global.
A desregulamentação financeira como política do Estado neoliberal im-
pulsionou o poder de Wall Street no sistema-mundo do capital.
A implementação do projeto neoliberal como novo poder político do
capital nas condições históricas de sua crise estrutural, originou-se efe-
tivamente com a eleição de Margareth Thatcher no Reino Unido em
1979 e depois, Ronald Reagan nos EUA em 1980. O neoconservadoris-
mo de Thatcher e Reagan promoveu a contra-revolução que percorreu a
década de 1980, reconstruindo o Estado político do capital como Estado
neoliberal. A adesão à programática neoliberal prosseguiria na década
de 1990 na Europa Ocidental (Alemanha e França), com a construção
da União Européia e a implantação da moeda única (o Euro).
Foi o Estado neoliberal, criador e criatura, verdadeiro demiurgo e
representação territorial do capital global, que promoveu a desregu-
lamentação financeira e operou a conexão do capital global predomi-
nantemente financeirizado com o bloco no poder nas formações ter-
ritorializadas de poder político do capital. É o Estado neoliberal como
organizador do bloco no poder sob direção hegemônica da fração rentis-
ta-parasitaria do capital, que fez o link da dominação do capital global
no âmbito dos Estados capitalistas, operando a acumulação por espo-
liação, capturando o fundo público, privatizando empresas públicas,
transferindo riquezas do trabalho para o capital financeiro, cortando
direitos sociais do mundo do trabalho por meio de políticas de flexibi-
lização laboral e aumentando a desigualdade social e concentração de
renda.

48 O Duplo Negativo do Capital


Ao combater o “anti-valor” por meio das políticas neoliberais de
“perversão” do fundo público, o Estado neoliberal contribui para a re-
posição da “linha de menor resistencia” do capital, operando contraten-
dências à queda da taxa média de lucros, alterando uma per-equação
da taxa média de lucro no plano do mercado mundial pelos oligopolios
financeiros e a taxa média de lucro das unidades nacionais do capital.2
Diz István Mészáros que o capital opera a “linha de menor resis-
tência”, quando “encontra um equivalente funcional capitalisticamente
mais viável ou fácil para o curso da ação, que suas próprias determi-
nações materiais iriam predicar de modo diferente (“diferente” signifi-
cando a expansão da produção correspondendo ao desenvolvimento da
“rica necessidade humana”, como descrita por Marx), ele está fadado a
optar por aquele que mais obviamente está de acordo “com sua configu-
ração estrutural em geral, mantendo o controle que já exerce, em vez de
perseguir alguma estratégia alternativa que pudesse exigir o afastamen-
to de práticas bem estabelecidas.” (Mészáros, 2002).
Deste modo, o movimento contratendencial à queda da taxa média
de lucro operado pelo Estado do Bem-Estar Social por meio do fundo
público era uma estratégia alternativa que, na ótica do capital, afastava-
-se de “práticas bem estabelecidas” de dominação burguesa. Por isso,
o Estado neoliberal é mais confiável para o movimento do capital em
sua etapa de crise estrutural de lucratividade, em sua estratégia con-
tratendencial, instaurando, no plano jurídico-legal, a superexploração
da força de trabalho. Portanto, aumentou-se a taxa de exploração em
cada país capitalista, equalizando-a no sentido descendente no plano do
sistema-mundo do capital. O Estado neoliberal demonstrou ser o ver-
dadeiro operador da ofensiva do capital global contra a civilização do
trabalho (iremos discutir a problemática do fundo público mais adiante
- no capítulo 5 deste livro).
Entretanto, depois de 2008, o Estado neoliberal deparou-se com
aquilo que constitui o nec plus ultra do Estado político do capital na

2 Por per-equação se entende um mecanismo de transferências de valor com o objetivo de


equilibrar os resultados económicos dos diferentes níveis de operação do capital (perequa-
ção significa o ato de distribuir ou tornar igual uma coisa entre várias pessoas ou entre
vários itens).

A Grande Crise do Capitalismo Tardio (1973-1975) 49


fase de sua crise estrutural: a crise de legitimidade, dando origem no
pólo hegemônico do sistema mundial, a formações políticas neofas-
cistas/nacionalista, que, num primeiro momento, se colocam contra o
programa neoliberal. Mas o Estado neoliberal autocrático é a variação
política do Estado neoliberal adequada à etapa histórica da crise do
capitalismo global.

■■ 4. A precarização estrutural do trabalho vivo


O complexo de reestruturação produtiva do capital possui como
traço crucial, a precarização estrutural do trabalho vivo. O conjunto
das inovações organizacionais e tecnológicas que ocorreram nos locais
de trabalho reestruturados, e o complexo de inovações sociometabóli-
cas que permearam a totalidade social, com a disseminação voraz das
ideologias do empreendimento capitalista e os valores-fetiches, utopias
e expectativas de mercado, contribuíram para a degradação da pessoa
humana-que-trabalha como sujeito de classe. O “espírito do toyotismo”,
que possui como nexo essencial a “captura” da subjetividade do traba-
lho vivo pelo capital, se disseminou pela totalidade social, contribuindo
para a desefetivação do sujeito histórico de classe (Alves, 2011).
A “nova precariedade salarial”, com a adoção da gestão toyotista aco-
plada às novas tecnologias informacionais; a flexibilização da jornada de
trabalho e as formas de remuneração flexível, ao lado dos novos modos
de contratação precária, com a predominância da terceirização e a do-
minância social da ideologia do empreendedorismo, representaram, em
si e para si, o movimento da precarização estrutural do trabalho vivo e
a desvalorização da força de trabalho como mercadoria. Na verdade, a
nova precariedade salarial cumpriu a função histórica de debilitar o tra-
balho vivo como sujeito coletivo de classe na luta social e política contra
o movimnento voraz do capital. Esta é a a materialidade da dessubjetiva-
ção de classe operada no mundo social do “toyotismo sistêmico”.
O processo histórico de precarização estrutural do trabalho, que ca-
racteriza o capitalismo global, é uma importante contratendência histó-
rica à queda da taxa média de lucro. Ele visa aumentar a taxa de explo-
ração da força de trabalho. Foi nesse sentido que I. Mészáros salientou
como sendo a vigência da lei tendencial de equalização descendente

50 O Duplo Negativo do Capital


da taxa de exploração em escala global (Mészáros, 2002). Entretanto,
o aumento da taxa mundial de exploração, só conseguirá reverter, em
termos relativos, o descenso da taxa média de lucro dos oligopólios fi-
nanceiros, se aumentar com maior velocidade que o aumento da com-
posição orgânica do capital.
À medida que se eleva historicamente a composição orgânica do ca-
pital, a taxa de lucro se torna progressivamente menos sensível a varia-
ções na taxa de mais-valia ou taxa de exploração (o que torna ineficaz a
estratégia de utilizar o aumento da taxa de exploração como contraten-
dencia à queda da taxa de lucro - no plano mundial). Embora a precari-
zação estrutural do trabalho seja condição necessária para se contrapor
às tendências de crise strutural de lucratividade, ela não é condição sufi-
ciente, na medida em que aumenta, de modo progressivo, a composição
orgânica do capital.
Além disso, o aumento da taxa de mais-valia ou taxa de exploração
é uma variável da luta de classe que se desenvolve nos territórios do
Estado-nação, contrapondo-se à tendência de (de)formação do sujeito
histórico de classe. É importante salientar que a precarização estrutural
do trabalho possui uma função sociometabólica: lastrear o sociometa-
bolismo da barbárie social como involucro da forma social do capitalis-
mo global em sua etapa de crise estrutural de lucratividade.

■■ 5. A plétora de contradições do capital, irracionalismo e pós-


modernismo
No plano do modo capitalista de produção da vida social, a irracio-
nalidade constitui um traço ideológico estrutural. Ela decorre do com-
plexo de contradições objetivas e subjetivas que constituem o modo de
produção da vida social. Deste modo, como materialidade concreta da
forma ideológica do irracionalismo na sociedade burguesa, podemos
salientar oito contradições estruturais do movimento do capital (David
Harvey salientou 17 contradições que caracterizam o capitalismo, que
ele organiza em três categorias: contradições fundamentais, contradi-
ções mutáveis e contradições perigosas (Harvey, 2016).
Apenas a título de introdução às considerações sobre a forma ide-
ológica do irracionalismo como ideologia dominante do capitalismo

A Grande Crise do Capitalismo Tardio (1973-1975) 51


como modo de produção e sociometabolismo estranhado na sua fase
de crise estrutural, iremos indicar oito contradições fundamentais: (1)
a contradição primordial entre valor de uso e valor de troca no seio
da forma-mercadoria; (2) a contradição da acumulação capitalista que
conduz à superprodução de mercadorias, ao mesmo tempo que corrói
a base da procura solvente (demanda efetiva); (3) a contradição entre a
ampliação das necessidades e carecimentos sociais e os limites estrutu-
rais da forma-mercadoria; (4) a contradição entre a produção cada vez
mais socializada e a apropriação privada cada vez mais concentrada;
(5) a contradição entre a crescente racionalização intra-empresa e o au-
mento da irracionalidade social; (6) a contradição entre a concorrên-
cia, que conduz ao aumento da produtividade do capital e aumento da
composição orgânica do capital, e ao mesmo, eleva a pressão pela queda
da taxa média de lucro; (7) a contradição entre o desenvolvimento da
forma material (a base técnica da produção social) e os limites da forma
social (o fenômeno da “desmedida do valor” que leva o capital a negar
seu fundamentos); e (8) a contradição entre o aumento das forças pro-
dutivas e da capacidade humana na redução das barreiras naturais e o
desenvolvimento da personalidade humana (o que Lukács denominou
“estranhamento”).
Portanto, a superprodução de mercadoria no mundo social do ca-
pital existe apenas em comparação com a procura solvente, mas não
em comparação com as necessidades reais da sociedade (contradição
2). A irracionalidade social que se dissemina pela sociedade burguesa
desenvolvida, é expressão da anarquia da produção capitalista de mer-
cadorias. Durante as crises capitalistas, as massas trabalhadoras sentem
uma privação particularmente aguda do mais essencial, suas necessida-
des são satisfeitas em condições piores do que em qualquer outra época.
Por exemplo, massas de milhões passam fome porque foi produzido de-
masiado trigo; pessoas padecem de frio porque se extraiu “demasiado
carvão. Enfim, os trabalhadores são privados dos meios de vida, preci-
samente porque produziram estes meios de vida em quantidade dema-
siada. Tal é a escandalosa contradição do modo de produção capitalista,
no qual, segundo as palavras do socialista utópico francês Fourier, “a
abundância torna-se fonte de indigência e privações”.

52 O Duplo Negativo do Capital


Nos modos de produção pre-capitalistas, as comoções da vida da
economia ocorriam frequentemente. Mas eram provocadas por cala-
midades naturais ou sociais: inundações, secas, guerras sangrentas ou
epidemias que devastavam as vezes, países inteiros, e condenavam as
populações a fome e ao perecimento. A distinção radical entre as como-
ções da vida social provocadas pelas crises nos modos de produção pre-
-capitalistas e as comoções sociais provocadas pelas crises capitalistas
reside em que naquelas, a fome e a miséria eram consequência do de-
senvolvimento insuficiente da produção e portanto, da escassez aguda
de produtos. Enquanto isso, no capitalismo, as comoçoes da vida social
são geradas pela superprodução de mercadorias, pelo “excesso” relativo
de mercadorias produzidas em relação à procura solvente (ou demanda
efetiva) capaz de dar lucro ao capitalista. Esta é a irracionalidade pri-
mordial da ordem social do modo de produção capitalista que permeia
as formas ideológicas na sociedade burguesa.
Desde que nasceu como modo capitalista de produção, a crise com
sua dimensão irracional, faz parte da acumulação de mais-valor. A pro-
dução e a circulação mercantil simples encerravam em termos lógico-
-ontológicos, a possibilidade das crises (a contradição 1, entre valor de
uso e valor de troca). Entretanto, as crises só se tornam inevitáveis no
capitalismo, quando a produção adquiriu um caráter cada vez mais so-
cial, isto é, enquanto que o produto do trabalho socializado de muitos
milhares e milhões de trabalhadores assalariados destinou-se a apropria-
ção privada dos capitalistas.
No plano da aparência, a contradição 4 é a contradição crucial do
sistema irracional do capital como modo de produção capitalista: a con-
tradição entre o caráter social da produção e a forma privada de apro-
priação capitalista dos resultados da produção cada vez mais socializa-
da. É esta contradição aparente que constitui o fundamento ontológico
das crises de superprodução/subconsumo da economia capitalista. Ela
ex-põe no plano da aparência, o movimento essencial da acumulação
do capital que é o aumento da taxa de lucro por meio da exploração da
força de trabalho na esfera de produção.
A lei geral da acumulação do capital afirma que, na medida em
que se desenvolve a concorrencia no mercado mundial, aumenta-se o

A Grande Crise do Capitalismo Tardio (1973-1975) 53


investimento em capital constante, em detrimento do investimento em
capital variável (aumento da produtividade do trabalho), expondo a
contradição 5. Deste modo, ocorre o aumento da superpopulação rela-
tiva do capital e aumenta-se a composição orgânica do capital, a relação
C/V, que tende a pressionar para baixo a taxa média de lucro, dando
origem às crises do modo de produção capitalista (contradição 6). As-
sim, o capital ao desenvolver-se como valor em processo, nega a si pró-
prio – inclusive no plano da forma-valor (contradição 7). No plano da
aparencia, a crise de lucratividade aparece como crise de superprodução
e subconsumo. No sistema irracional do capital, a inevitabilidade das
crises radica-se no próprio sistema de economia capitalista.

Contradições do capitalismo

Valor de uso – valor de troca

Superprodução – demanda efetiva

Necessidades sociais – forma-mercadoria

Produção social – apropriação privada

Racionalização intra-empresa – irracionalidade social

Concorrencia/Produtividade do Trabalho
Aumento da Composição Orgânica do Capital/Taxa de lucro

Processo civilizatório - Deformação da personalidade humana

Forma material (base técnica) – Forma social (forma-valor)

Mas são múltiplas as contradições do sistema irracional do modo ca-


pitalista de produção do capital. Com a contradição 5, ela se manifesta

54 O Duplo Negativo do Capital


como oposição entre a organização da produção nas empresas por sepa-
rado e a anarquia da produção no conjunto da sociedade. Deste modo,
em cada local de trabalho, a organização do trabalho e do processo de
produção subordinado à racionalidade instrumental da vontade do em-
presário ou gestor de produção, conduz à intensificação do processo de
racionalização que tem caracterizado o desenvolvimento da administra-
ção das empresas no século XX. Entretanto, na sociedade capitalista em
conjunto, como resultado do domínio da propriedade privada dos meios
de produção, reina a anarquia da produção, que exclui o desenvolvimen-
to planificado da economia do trabalho e da organziação da produção.
Por isso, são inevitavelmente violadas as condições complexas que se fa-
zem necessárias para a realização do produto social na reprodução am-
pliada capitalista. Estas violações se acumulam gradualmente enquanto
não irrompe a crise, momento em que o processo de realização chega a
um completo transtorno. A lógica do tayotismo é a expressão máxima da
racionalidade intra-empresa e a irracionalidade social.
A irracionalidade do modo de produção capilista expressou-se nas
formas ideológicas que se originam da lógica cultural da sociedade bur-
guesa. O desenvolvimento capitalista não é apenas um modo de acu-
mulação de capital como mais-valor, mas um modo de acumulação do
capital como “contradição viva”. Na medida em que se acumulam as
contradições do capital, que são muitas, a ofensiva do capital como sis-
tema de regulação sociometabólico no plano do mercado global, expli-
cita-se com a construção da macroestrutura ideológica e cultural capaz
de repor a hegemonia social do capital.
A ideologia do pós-modernismo foi considerada por Fredric Jameson
como sendo a ideologia do capitalismo tardio, possuindo uma homo-
logia estrutural, no plano do pensamento, com a dinâmica da valori-
zação fictícia descolada do mundo real. (a lógica da valorização fictia,
na medida em que é um movimento de deslocamento de contrdaições,
oculta, por exemplo, as contradições “primitivas” da forma-mercadoria
– entre valor de uso e valor de troca no interior da qual estão contidas
as possibilidades primordiais da crise do capital). Ao dissolver a refe-
rência à Razão histórica como uma garantia de possibilidade de com-
preensão do mundo por meio de esquemas totalizantes, a ideologia do

A Grande Crise do Capitalismo Tardio (1973-1975) 55


pós-modernismo celebrou o reino da indeterminação e do relativismo
cognitivo que paralisa a práxis sócio-histórica (Jameson, 1992). Desde
meados da década de 1970, a ideologia do pós-modernismo compu-
nha o movimento de reação ideológica e cultural à crise do capitalismo
mundial representada no projeto fordista-keynesiano de celebração da
alta modernidade. Por exemplo, em “O Pós-Moderno” (título original:
La Condition PostModerne), de 1979, François Lyotard caracterizou a
nova era histórica do capital em crise como sendo a “pós-modernidade”,
onde ocorreria a morte das “grandes narrativas” totalizantes, fundadas
na crença no progresso e nos ideais iluministas de igualdade, liberdade
e fraternidade (Lyotard, 1985).
O ethos do pós-modernismo percorreu a década de 1980 tornando-
-se a ideologia predominante da nova condição sociocultural e estética
prevalecente no auge do capitalismo global após a queda do Muro de
Berlim (1989), o colapso da União Soviética (1992) e a “crise das ideo-
logias” nas sociedades ocidentais no final do século XX. O pós-moder-
nismo como ideologia sociocultural desarmou o espírito humano para
a critica radical do mundo social do capital.

56 O Duplo Negativo do Capital


58 O Duplo Negativo do Capital
Capitulo 2

Neoliber alismo e C apitalismo


Global
(1980-1991)

Ao longo da década de 1980, presenciamos o processo de transição


histórica para o capitalismo global. Nesse período (1979-1989) tivemos
a afirmação do capitalismo neoliberal predominantemente financei-
rizado. A posteriori, podemos afirmar que, de 1979, com a eleição de
Thatcher no Reino Unido e logo a seguir, Reagan nos EUA, em 1980, até
1989, com a Queda do Muro de Berlim. Tivemos o período histórico de
transição para a afirmação é consolidação do capitalismo global. David
Harvey no livro “Condição Pós-moderna”, publicado originalmente em
1989, interroga-se sobre o caráter das transformações do capitalismo da
década de 1980, se elas seriam permanentes ou reparações temporárias.
Ao mesmo tempo, num ensaio de 1981, Istvan Mészáros escreveu sobre
as reestruturações da economia capitalista como indicando o período
de crise estrutural do capital. De qualquer modo, não estava claro, de
imediato, naquela época, a significação daquilo que David Harvey de-
nominou de “condição pós-moderna”.
Temos nos dedicado num primeiro momento a delinear com pre-
cisão uma nova periodização do desenvolvimento do capitalismo tar-
dio no plano mundial. A dinâmica do mercado mundial encontra seu
“núcleo orgânico” e “centro dinâmico” nos Estados Unidos da Amé-
rica, articulados com o Japão e a Europa Ocidental. Eles compõem o
capitalismo central, em contraposição aos países do capitalismo depen-
dente periférico, (entre eles o Brasil). Por isso, o foco analítico nos da-
dos de desenvolvimento das economias do capitalismo central. Apesar
da importância da China no mercado mundial a partir da década de

Neoliberalismo e Capitalismo Global (1980-1991) 59


2000, a importância da economia dos EUA ainda é deveras relevante
para a dinâmica do sistema mundial do capital. Deste modo, a periodi-
zação histórica do capitalismo global diz respeito à dinâmica histórica
do capitalismo central (com diferenças particulares quando buscamos
caracterizar a dinâmica histórica de países do capitalismo dependente
periférico – no caso do Brasil iremos tratar disso no volume 3 da trilo-
gia “A Precarização do Trabalho no Século XXI” intitulada “A miséria
brasileira e a tragédia do neodesenvolvimentismo”.
O período de 1975 a 1989, no núcleo orgânico do capitalismo
mundial (EUA, Europa Ocidental e Japão), é um período histórico
de acirramento da luta de classes, tendo em vista o desenlace das
contradições acumuladas pelo desenvolvimento do capitalismo tardio
(1945-1973). A idéia de transição, afirmação e consolidação utilizada por
nós para tratar do surgimento do capitalismo global como nova etapa
do capitalismo tardio, implica levar em consideração que o movimento
estrutural de desenvolvimento da acumulação do capital contém, em si
e para si, um processo de luta de classes bastante complexo que envolve
determinações político-jurídicas, geopolíticas e ideológico-culturais.
A crise de lucratividade no “coração do sistema” impôs a ofensiva
do capital na produção e nas mais diversas instâncias da vida social,
conforme tratado no capítulo anterior. O aprofundamento do proces-
so de reestruturação capitalista visou se contrapor à queda tendencial
da lucratividade que levou à recessão global de 1973-1975. A afirmação
politica, ideológica e geopolítica das forças neoliberais, hegemonizadas
pelos EUA, que atuaram com vigor na década de 1980, adquiriram seu
ápice na simbólica Queda do Muro de Berlim, na consecução do Con-
senso de Washington e no fim da URSS, expressando efetivamente as-
sim, a consolidação do capitalismo global. Enfim, as transformações
da economia política e vida social da década de 1980 não eram apenas
“reparos temporários”, mas sim mudanças permanentes da dinâmica
do capitalismo tardio na sua nova fase de desenvolvimento (a mundia-
lização do capital, título do livro de François Chesnais).
Ernest Mandel intitulou o capitalismo do pós-guerra como sendo
o “capitalismo tardio” (Mandel, 1982). Ele publicou seu classico estudo
sobre o capitalismo do pós-guerra em 1971. Nesse período de expansão

60 O Duplo Negativo do Capital


capitalista, ocorreram profundas mutações orgânicas na dinâmica
do sistema capitalista denominado por ele ”capitalismo tardio” (dé-
cada de 1950 e 1960), o capitalismo da ”alta modernidade”. Nesse
processo de desenvolvimento capitalista acumularam-se contradições e
incongruências que levaram à crise e recessão global de 1973-1975. Foi
a crise do capitalismo tardio em sua fase fordista-kynesiana, ou crise do
capitalismo social-democrata, que impulsionou o período de transição
histórica para a nova etapa do capitalismo tardio: o capitalismo global
(indicado acima).
Na década de 1970, autores como o economista Charles Albert-
Michalet caracterizaram o novo capitalismo que surgiu depois da
recessão global de 1973-1975 como “capitalismo mundial”, em contra-
posição ao capitalismo internacional das décadas passadas do século
XX. Mais tarde, François Chesnais caracterizou o novo capitalismo
como sendo o capitalismo da “mundialização do capital”. David Har-
vey em 1989 identificou a grande crise de 1973 como sendo o marco
do surgimento do novo regime de acumulação: a “acumulação flexível”
em contraposição a “acumulação fordista keynesiana” do capitalismo
do pós-guerra (os “trinta anos dourados” – 1945-1975). Entretanto, tan-
to Michalet, Harvey e Chesnais estavam apenas caracterizando o que
iria se afirmar plenamente, inclusive nas suas contradições, a partir da
década de 1990. Eles não caracterizaram - nem poderiam caracterizar
historicamente - a transição para o capitalismo global, mas delinearam
as linhas estruturantes, visíveis, da ofensiva neoliberal que, iniciada em
1980, afirmou-se e se consolidou politicamente a partir de 1989-1991.
Ao mesmo tempo, István Mészáros identificou a “grande crise”, pri-
meira recessão global após a Segunda Guerra Mundial - como sendo
manifestação da “crise estrutural do capital”, que para ele, começou
em fins da de cada de 1960. Na verdade, o acumulo de contradições
na dinâmica expansiva do capital no capitalismo do pós-guerra nos
projetou para uma nova temporalidade histórica (como veremos adian-
te, para Mészáros, o conceito de “crise estrutural do capital” não se
reduz a um momento histórico explosivo, mas a temporalidade de crise
de longa duração do capitalismo tardio - um longo depresso). Mészáros

Neoliberalismo e Capitalismo Global(1980-1991) 61


não delimita historicamente períodos no interior da nova era histórica
de crise do capital.
Eis os nomes: capitalismo mundial, mundialização do capital, regi-
me de acumulação flexível, crise estrutural do capital - caracterizações
que identificamos como sendo elementos compositivos da nova etapa
de desenvolvimento do capitalismo tardio: o capitalismo global. É a di-
nâmica histórica do capitalismo global, que se afirma e se consolida
a partir de 1991, expondo em si e para si, com clareza ímpar, o sen-
tido histórico da crise estrutural do capital, não apenas enquanto cri-
se da economia capitalista, mas crise estrutural do sociometabolismo.
Nos primordios do século XXI – o século da crise estrutural do capital,
ocorrendo um renascimento do marxismo crítico da economia política
e do metabolismo social da ordem burgusa hipertardia).

O capitalismo global
Por capitalismo global entendemos a nova forma histórica de ser do
capitalismo tardio, caracterizado por um complexo de determinações
conceituais, salientadas por vários autores que adjetivaram de modo uni-
lateral, o novo tempo histórico de crise do capital. Por exemplo, o capi-
talismo global é o capitalismo neoliberal (Gerard Duménil e Dominique
Lévy); o capitalismo flexível (Richard Sennet), o capitalismo cognitivo
(Maurizio Lazzarato e Antonio Negri), o capitalismo senil (Jorge Bein-
stein), o capitalismo zombie (Chris Harman), a sociedade em rede (Ma-
nuel Castells), a modernidade liquida (Zygmunt Bauman), etc.
Como determinações de fundo da nova forma histórica de ser do ca-
pitalismo tardio (Ernest Mandel), a partir da crise estrutural do capital
(István Mészáros), temos seu caráter radicalmente manipulatório (Ge-
org Lukács), predominantemente financeirizado (François Chesnais)
e lastreado em duas revoluções tecnológicas: a revolução informática
(Adam Schaff) e a revolução informacional (Jean Lojkine) - elementos
que compõem, dentre outros, a ante-sala da Quarta Revolução Indus-
trial (Klaus Schwab) que deve percorrer o século XXI.
Na sua caracterização sociológica propriamente dita, o capitalismo
global foi apreendido por Gilles Lipovetsky, um dos mais prolíficos

62 O Duplo Negativo do Capital


sociólogos do capitalismo global, como a “era do vazio” (1993); os “tem-
pos hipermodernos” (2004), a “sociedade da decepção” (2006); ou ain-
da, pela filosofia de Byung-Chul Han como a “sociedade do cansaço”
(2010) ou a “sociedade da transparência” (2012). Enfim, o complexo de
determinações sociológicas salientadas acima se desenvolveu, de modo
pleno, a partir da década de 1990 e começo do século XXI, marco histó-
rico de ascensão e crise do capitalismo global.
Para que possamos entender o capitalismo global como temporali-
dade histórica do capital em sua fase de crise estrutural - crise estrutu-
ral de lucratividade e desmedida do valor, precisamos incorporar suas
múltiplas determinações (essenciais e contingenciais), articulando-as
numa totalidade concreta em movimento.
No plano metodológico, podemos dizer que, o “todo concreto”
das determinações históricas, permeadas de contradições estruturais
(e estruturantes) da objetividade/ subjetividade social, delineadas por
Marx na sua crítica da economia política (lei do valor-trabalho, lei da
acumulação de capital e lei tendencial da queda da taxa de lucro)(Ro-
berts, 2018), articulam em si e para si, a dialética da essência/aparência
e a dialética da contingência/necessidade, expressando no plano lógico-
-ontológico, a vida da processualidade histórica.
O modo de ser do capitalismo global, como forma histórica de de-
senvolvimento das contradições do desenvolvimento do capitalismo
tardio, é resultado do processo de crise estrutural da lucratividade/des-
medida do valor, elementos da ordem da essencia/aparência e da ne-
cessidade; e o processo da luta de classes, nas mais diversas instâncias
da vida social, elemento da ordem da contingência histórica. É a síntese
dialética da essencia/aparencia e necessidade e contingência histórica
que constitui a verdade do ser em processo.

Neoliberalismo e Capitalismo Global(1980-1991) 63


Quadro 1
Cronologia histórica do Capitalismo global
(a era da crise estrutural do capital)

Transição e Formação
(1975-1989)

Ascensão e Desenvolvimento
(1989-2007)

Crise
(2008-...)

Apresentamos no Quadro 1 uma nova cronologia de desenvolvi-


mento da nova temporalidade histórica do capital em sua fase de crise
estrutural. Esta nova perspectiva histórica de desenvolvimento do capi-
talismo global é uma revisão crítica da periodização adotada em escritos
anteriores (Alves, 2013, 2014 e 2016). Nesses escritos situávamos como
marco histórico originário do capitalismo global, a eleição de Margareth
Thatcher no Reino Unido, em 1979, e a eleição de Ronald Reagan nos
EUA em 1980. Na verdade, entendíamos que tinha ocorrido uma curta
transição histórica para o capitalismo global, representada pelo período
de 1975-1980, caracterizado pela agudização da luta política e sindical
nos países capitalistas centrais. Não tínhamos apreendido o sentido da
década de 1980 como “transição histórica” para a nova forma de ser.
Pela velha perspectiva, teríamos em 2018, quase quarenta anos de
desenvolvimento do capitalismo global propriamente dito. A década
de 1990 representaria um mero prolongamento (e aprofundamento) da
programática neoliberal - não apenas no capitalismo central, mas na
sua borda periférica dependente (América Latina, Europa Oriental e
inclusive, Rússia).
Entretanto, com a nova perspectiva de periodização do capitalis-
mo global, colocamos a hipótese de que a transição histórica para o
capitalismo global se alongou pela década de 1980, década de disputas
político-ideológicas entre EUA e URSS, que se concluiu em 1989-1991,
com a Queda do Muro de Berlim, o Consenso de Washington e o fim

64 O Duplo Negativo do Capital


da URSS (metodologicamente, a legalidade do conceito de transição
implica uma insuficiência contingente no sentido do desenvolvimento
pleno das determinações essenciais da forma de ser da nova etapa do
capitalismo tardio: o capitalismo global).
Esses importantes fatos históricos (a Queda do Muro de Berlim, o
Consenso de Washington e o fim da URSS) podem ser considerados
efetivamente o marco histórico do capitalismo global como nova etapa
de desenvolvimento do capitalismo tardio, período histórica de mani-
festação plena do duplo negativo do capital: a crise estrutural de lucra-
tividade e a desmedida do valor. A explicitação do que consideramos
como capitalismo global ocorreu, não em 1980, mas sim, em1991, com o
fim da URSS. Ao invés do marco histórico do capitalismo global como
sistema hegemônico de desenvolvimento da mundialização do capital
ter sido, por exemplo, as eleições de Margareth Thatcher (1979) e Ro-
nald Reagan (1980), o verdadeiro marco histórico do capitalismo global
foi dado pelos acontecimentos históricos da Queda do Muro de Berlim,
o Consenso de Washington e o fim da URSS (1989/1991) (Eric Hobsba-
wn no livro “A era dos extremos” tinha intuído que o século XX acabara
nesta época de drásticas mudanças geopolíticas no mundo- poderíamos
incluir como movimento necessário de expansão do mercado mundial
do capital - do qual fazem parte o fim do Leste Europeu e da URSS e a
própria América Latina - a inclusão da China ocorrida efetivamente em
fins da década de 1990
O século XXI pode ser considerado o século do capitalismo global,
forma histórica no interior da qual se explicita a primeira etapa da crise
estrutural do capital que provavelmente deve percorrer o século XXI.
A partir da nova periodização histórica indicada acima, o capitalismo
global teria hoje (1918) quase trinta anos de desenvolvimento histórico
(1990-2020) – os “trinta anos perversos” (em contraposição, por exem-
plo, aos “trinta gloriosos” (1945-1975).

Neoliberalismo e Capitalismo Global(1980-1991) 65


Década de 1980: A longa transição para o capitalismo global
Fica a seguinte questão: se o capitalismo da década de 1980 não re-
presentou efetivamente o capitalismo global, o que representou a déca-
da de 1980 para o desenvolvimento do novo capitalismo?
Em primeiro lugar, a década de 1980 representou efetivamente a
década de transição, iniciada após a derrota da programática fordi-
sta-keynesiana em resposta a crise capitalista da metade da década de
1970. Foram colocados os “pilares” daquilo que consideramos a “tercei-
ra modernidade”. Obviamente, a contingência histórica não nos per-
mitiria apreender a natureza transicional (ou de formação) do sistema
hegemônico mundial do neoliberalismo, que só se consolidaria na dé-
cada de 1990.
A década de 1980 foi um período de intensa luta de classes -
principalmente no plano geopolítico. Embora Mészáros tenha perce-
bido de modo visionário, a nova virada da reestruturação da economia
capitalista no começo da década de 1980, obviamente algumas questões
fundamentais ainda não eram percebidas para a ave de Minerva. No
fim da década de 1980, David Harvey no livro “Condição Pós-moderna”
(1989), teorizou o sentido das transformações da condição pós-moderno
colocando a interrogação: reparos temporários ou transição do que ele
denomina acumulação fordista-keynesiana para a acumulação flexível.
A década de 1980 foi a década da pós-modernidade e seus sonhos
liberais, logo frustrados na década de 2000, quando o capitalismo glo-
bal se desenvolveu efetivamente. Mesmo um sociólogo burguês como
Gille Lipovetski, autor do clássico “A era do vazio” (1983), percebeu a
mudança da dinâmica do sistema quando assinalou a passagem do ciclo
pós-moderno para a era hipermoderna (um eufemismo para o capitalis-
mo global ou mundialização do capital em sua etapa superior com todas
as suas reverberações na esfera cultural).
Diz Lipovetski:
“ [...] a expressão pós-moderno era ambígua, desajeitada, para não
dizer vaga. Isso porque era evidentemente uma modernidade de novo
género a que tornava i e não uma simples superação daquela anterior.
Donde as reticências legítimas que se manifestaram a respeito do prefixo

66 O Duplo Negativo do Capital


pós. E acrescente-se isto: há vinte anos, o conceito de pós-moderno dava
oxigênio, sugeria o novo, uma bifurcação maior; hoje, entretanto, está
um tanto desusado. O ciclo pós-moderno se deu sob o signo da descom-
pressão cool do social; agora, porém, temos a sensação de que os tempos
voltam a endurecer-se, cobertos que estão de nuvens escuras. Tendo-se
vivido um breve momento de redução das pressões e imposições sociais,
eis que elas reaparecem em primeiro plano, nem que seja com novos tra-
ços. No momento em que triunfam a tecnologia genética, a globaliza-
ção liberal e os direitos humanos, o rótulo pós-moderno ganhou rugas,
tendo esgotado sua capacidade de exprimir o mundo que se anuncia.”
(Lipovetski, 2004)
Portanto, o discurso originário da pós-modernidade (“a descompres-
são cool do social” com seu individualismo narcísico discutido no livro
“A era do vazio”) assumiu nova forma ideológica na era do capitalismo
global. Da euforia pós-moderna passou-se à depressão hipermoderna:
“O pós de pós-moderno ainda dirigia o olhar para um passado
que se decretara morto: fazia pensar numa extinção sem determinar
o que nos tornávamos, como se se tratasse de preservar uma liberdade
nova, conquistada no rastro da dissolução dos enquadramentos sociais,
políticos e ideológicos. Donde seu sucesso. Essa época terminou.
Hipercapitalismo, hiperclasse, hiperpotência, hiperterrorismo,
hiperindividualismo, hipermercado, hipertexto - o que mais não é hiper
? O que mais não expõe uma modernidade elevada à potência superla-
tiva? Ao clima de epílogo segue-se uma sensação de fuga para adiante,
de modernização desenfreada, feita de mercantilização proliferativa,
de desregulamentação económica, de ímpeto técnico-científico, cujos
efeitos são tão carregados.de perigos quanto de promessãs. Tudo foi
muito rápido: a coruja de Minerva anunciava o nascimento do pós-
moderno no momento mesmo em que se esboçava a hipermodernização
do mundo” (Lipovetski, 2004).
No debate sociológico da década de 2000, não apenas Lipovetski, mas
Zygmunt Bauman abandonou o conceito de pós-modernidade, muito
utilizado pela intelligentsia acadêmica nas décadas de 1980 e 1990. O
novo capitalismo que se desnudou na década de 1990 foi denominado
“modernidade liquida” (Bauman) ou “tempos hipermodernos”

Neoliberalismo e Capitalismo Global(1980-1991) 67


(Lipovetski). A leitura de Bauman tornou-se uma referência para a lei-
tura sociológica do mundo do capitalismo global. Entretanto Bauman
permanecia vislumbrando as sombras da caverna.
Presenciamos na década de 1980 no núcleo orgânico do capitalismo
mundial, uma revolução cultural, que Frederic Jameson, num livro pu-
blicado em 1991, traduziu no termo pós-modernismo - lógica cultural
do capitalismo tardio na fase de crise estrutural do capital, pois o capi-
talismo tardio na sua primeira fase, o capitalismo do pós-guerra e de
expansão fordista-keynesiana, fez a revolução cultural do modernismo,
a ideologia cultural da segunda modernidade do capital.
O pós-modernismo como movimento cultural originou-se na déca-
da de 1970 e se desenvolveu, com variantes ideológicas, nas décadas de
1980. Teve impacto na esfera da cultura e criou um ethos hedonista de
consumo e individualismo. A cultura neoliberal tornou-se uma força
ideológico-cultural sobre a juventude, tendo a figura do yuppie como
sua personificação social, em contraposição ao hippie da década de
1960. No plano do pensamento, o pós-modernismo aboliu as Grandes
Narrativas e os conceitos totalizantes e totalizadores (como por exem-
plo, classe social) expressando a crise da Razão histórica. Como ofen-
siva ideológica do capital representou um processo de dessubjetivação
de classe que tornou-se o elemento ideológico da crise do socialismo
e das instituições de defesa da classe (partidos e sindicatos). A revo-
lução cultural do neoliberalismo oitocentista promoveu rupturas gera-
cionais e disseminou com mais profundidade nas décadas seguintes,
percepções identitárias que subvertiam a visão classista do mundo. As
mudanças culturais da “condição pôs-moderna” foram explicadas por
David Harvey (em 1989) pelas transformações político-econômica do
final do século XX com a passagem do regime de acumulação fordista-
keynesiana para a acumulação flexível.
Entretanto, o pós-modernismo, espírito do mundo que caracteri-
zou a euforia liberal da década de 1980, com seu ápice na Queda do
Muro de Berlim, perdeu seu vigor ideológico na medida em que o capi-
talismo global se afirmou e se consolidou , desencantando as promes-
sas de emancipação do indivíduo e expondo as contradições sociais da

68 O Duplo Negativo do Capital


mundialização neoliberal (o que explica a afirmação de Lipovestki: “os
tempos voltam a endurecer cobertos que estão com nuvens escuras”).

O marco histórico do capitalismo global (1989-1991)


O marco histórico de afirmação e consolidação do capitalismo glo-
bal foi 1989-1991. Podemos destacar como fenômenos políticos da con-
tingencia histórica que, depois da longa transição histórica iniciada em
1979-1980, com o capitalismo neoliberal, tornaram-se o marco histórico
do capitalismo global: a Queda do Muro de Berlim, o Consenso de Wa-
shington e o Fim da URSS. Trata-se dos eventos fundamentais (e fun-
dantes) do capitalismo global, marcando o auge do capitalismo neoli-
beral que consolidaram e sedimentaram a hegemonia financeira global.
O ano de 1989 foi um ano de grandes transformações mundiais que
autores, como Eric Hobsbawn, identificaram como o fim do curto sécu-
lo XX. Enquanto a Queda do Muro de Berlim e depois, o fim da URSS
integrou o Leste Europeu e a Rússia nos circuitos da mundialização do
capital, o Plano Blady3 e o Consenso de Washinton4 fizeram o mesmo

3 Em março de 1989, foi anunciado pelo secretário de tesouro dos EUA, Nicholas F. Brady,
um plano que pretendia renovar a dívida externa de países em desenvolvimento, mediante
a troca por bônus novos. Estes bônus contemplavam o abatimento dos encargos da dívida,
através da redução do seu principal ou pela redução nos juros. Além de emitir os bônus, os
países deveriam promover reformas liberais em seus mercados. Os bônus do plano Brady
ficaram conhecidos como bradies. O plano Brady levou ao fim a crise da dívida. A securi-
tização da dívida dos países devedores levou à flexibilização dessa dívida e permitiu que o
mercado pudesse conviver com o risco envolvido. Esse risco foi compartilhado por todos
os agentes que detinham os bradies. Além disso, o preço da dívida foi determinado pelas
condições econômicas e políticas dos países devedores. Dessa forma, nenhuma instituição
credora ficava exposta a um risco excessivo. Na ótica do capital, apesar da maioria dos
países beneficiados ainda serem grandes devedores, esta dívida hoje é gerenciável.
4 Consenso de Washington foi uma conjugação histórica das grandes medidas - que se
compõe de dez regras básicas - formulado em novembro de 1989 por economistas de ins-
tituições financeiras situadas em Washington D.C., como o FMI, o Banco Mundial e o
Departamento do Tesouro dos Estados Unidos, fundamentadas num texto do economista
John Williamson, do International Institute for Economy, e que se tornou a política oficial
do Fundo Monetário Internacional em 1990, quando passou a ser “receitado” para pro-
mover o “ajustamento macroeconômico” dos países em desenvolvimento que passavam
por dificuldades. As dez regras básicas do Consenso de Washington são disciplina fiscal,
redução dos gastos públicos, reforma tributária, juros de mercado, câmbio de mercado,

Neoliberalismo e Capitalismo Global(1980-1991) 69


com a América Latina, paralisada pela crise da dívida desde 1980. O
Plano Brody pressionou os países do Terceiro Mundo para renegociar
suas dívidas externas em troca da implantação de reformas neoliberais.
Eles teriam a renegociação das suas dívidas externas e o acesso ao mer-
cado de capitais no plano do mercado global, desde que aceitassem os
termos programáticos do Consenso de Washington, processo de cons-
trução do Estado neoliberal que se alongaria pela década de 1990.

Marcos históricos do capitalismo global (1989-1991)

Queda do Muro de Berlim

Consenso de Washington

Fim da URSS

Portanto, de 1980 a 1989 tivemos a constituição da macroestrutu-


ra neoliberal do sistema-mundo do capital ou bloco no poder de novo
tipo, com as tecnoburocracias globais (FMI, OMC e Banco Mundial)
exercendo o papel de organizar a dominação e hegemonia do capital
financeiro sobre as demais frações do capital (capital produtivo, capital
bancário e capital comercial) no plano do mercado global. Para Nicos
Poulantzas no livro “Poder Político e Classes Sociais”, em decorrência
da unidade própria do poder político e da autonomia relativa do Estado,
características estas especificas do Estado em uma formação social
dominada pelo modo de produção capitalista, “o bloco no poder consti-
tui uma unidade contraditória das classes ou frações dominantes, uni-
dade dominada pela classe ou fração hegemônica” (Poulantzas, 1986).
Esta unidade se dá porque a toda a burguesia interessa a manutenção
das condições de perpetuação do capitalismo, condições estas que

abertura comercial, investimento estrangeiro direto, com eliminação de restrições,


privatização das estatais, desregulamentação (afrouxamento das leis econômicas e
trabalhistas) e direito à propriedade intelectual.

70 O Duplo Negativo do Capital


o Estado garante assegurando a propriedade privada dos meios de
produção e a reprodução da força de trabalho como mercadoria. No
entanto, Poulantzas qualifica a unidade como contraditória pelo fato
desta não estar livre de cisões. Trata-se de uma unidade contraditória
porque os capitalistas, para além da sua unidade geral, estão distri-
buídos, de acordo com a posição particular que ocupam no processo de
produção num momento e num país determinados, em setores econô-
micos diferenciados que poderão se constituir em frações de classe per-
seguindo interesses específicos. Alguns elementos potenciais de divisão
da burguesia em frações de classe são: as fases do ciclo de reprodução
do capital (capital-dinheiro, capital produtivo, capital comercial), o
poderio econômico das empresas (grande capital, médio capital, capital
monopolista), as relações variadas das empresas com a economia
internacional (origem do capital, destino da produção para o mercado
interno ou para a exportação) (Boito Jr., 2002).
O bloco no poder do capital financeiro é um bloco no poder de novo
tipo pois opera na dimensão desterritorializada do mercado mundial
sob hegemonia do capital fiananceiro. Nesta nov espaço desterritoriali-
zado do mercado mundial não existe a materialidade do Estado capita-
lista propriamente dito, tal como ele se constituiu no âmbito territorial
do Estado-Nação. Apesar disso, a mundialização do capital (produtiva
e financeira) e o fortalecimento das tecnoburocracias globais constituí-
ram um tipo de “Estado mundial” do capital, cuja materialidade contra-
ditória e problemática, foi capaz de operar um bloco no poder de novo
tipo sob a direção hegemônica da fração do capital financeiro.
A legalidade histórico-ontológica do “Estado” mundial do capital é
efetivamente contraditória (e problemática) no sentido de possuir defei-
tos estruturais de controle dados pela dissonância entre o mandato tota-
lizador do Estado e sua capacidade de realização. Em suas reflexões, Ist-
ván Mészáros é claro nesse ponto. Diz ele: “o ´capital global’ é desprovido
de sua necessária formação de Estado, apesar do fato de o sistema do
capital afirmar o seu poder - em forma altamente contraditória — como
sistema global. É assim que ‘o Estado do sistema do capital’ demonstra
sua incapacidade de fechar a lógica objetiva da irrestringibilidade do
capital. Inúmeros Estados modernos foram constituídos sobre a base

Neoliberalismo e Capitalismo Global(1980-1991) 71


material do sistema do capital conforme ele historicamente se desenvol-
via, desde as primeiras formações capitalistas aos Estados coloniais, bo-
napartistas, burgueses-liberais, imperialistas, fascistas etc. Todas essas
categorias do Estado moderno pertencem à categoria de “Estados capi-
talistas”. Por outro lado, uma serie de Estados pós-capitalistas também
se constituiu — de forma um tanto alterada — sobre a base material-
mente persistente do capital, nas sociedades pós-revolucionárias desde
o Estado soviética até as chamadas ‘democracias populares’ [o grifo é
nosso] (Mèszáros, 2002).
O capitalismo global representa um “bloco histórico” do capital fi-
nanceiro que opera na estratosfera do sistema-mundo do capital. Este
bloco histórico, que transcende os limites territoriais do Estado-nação,
possui conexões orgânicas com o bloco no poder do capital nas unida-
des nacionais (o território do Estado-Nação em processo de desefetiva-
ção). O Estado neoliberal, constituído nos países capitalistas centrais
no decorrer da transição histórica para o capitalismo global na década
de 1980 (e para países como o Brasil, por exemplo, na década de 1990),
é a forma política do capital financeiro organizar sua dominação no
âmbito territorial das unidades nacionais, organizando no seu interior,
as alianças das frações de classe burguesa no bloco no poder sob a dire-
ção hegemônica da fração rentista-parasitária do capital.5
A dominância do capital financeiro diz respeito, não apenas à estru-
tura da economia e das forças materiais que organizam a dinâmica de
acumulação do capital nas condições da crise estrutural de lucratividade,
mas também diz respeito à superestrutura ideológica, jurídico-política

5 Para Gramsci, bloco histórico é o conceito que define a unidade entre estrutura e superes-
trutura, entre teoria e prática, entre forças materiais e ideologia. Trata-se de uma fórmula
teórica inovadora e sofisticada, que significou a superação do economicismo reducionista
no âmbito do marxismo. Gramsci rejeitou toda visão determinista e mecanicista entre es-
trutura e superestrutura: não existe uma estrutura que mova de modo unilateral o mundo
superestrutural das idéias, não há uma simples conexão de causa e efeito, mas um conjunto
de relações e reações recíprocas, que devem ser estudadas em seu concreto desenvolvi-
mento histórico. O marxista italiano considerou abstrata a distinção entre estrutura (as
relações sociais de produção) e superestrutura (as idéias, os costumes, os comportamentos
morais, a vontade humana) (Gramsci, 1984).

72 O Duplo Negativo do Capital


e cultural. Por isso o conceito de Estado neoliberal precisa apreendido
numa perspectiva ampliada (sociedade política + sociedade civil).

O fim do delírio pós-moderno


A queda do Muro de Berlim, a ultima euforia pós-moderna; o Con-
senso de Washington e o fim da URSS tornaram-se marco histórico do
capitalismo global. Entretanto, no decorrer da década de 1990, prosse-
guiram-se as articulações geopolíticas e geoeconomicas para consolidar
a nova hegemonia do capital financeiro no plano global (por exemplo,
a guerra dos Balcãs, a guerra do Iraque, a disputa por posições estraté-
gicas no Oriente Médio e a implementação de acordos comerciais com
o Nafta, União Europeia e Mercosul e o projeto irrealizado da Alca).
O sociólogo Gilles Lipovetski utilizou o termo “tempos hipermoder-
nos” para caracterizar os novos tempos de capitalismo global. Zygmunt
Bauman utilizaria a noção de “modernidade líquida”. Tratam-se de eufe-
mismos sociológicos para descrever dimensões contingentes do capitali-
smo global, forma histórica de posição/afirmação hegemônica do capital
financeiro. A velocidade-mundo é expressão da lógica da financeirizacao
com seu horizonte de curtíssimo prazo. Hartmund Rosa iria tratar da
aceleração social como traço dos novos tempos de hegemonia do ca-
pital financeiro. No período de euforia liberal (“fim da história”, diria
Fukuyama), a efusão capitalista tornou-se plena com a queda da URSS
em 1991 e a expansão da mundialização do capital para os países do
Leste Europeu, Rússia e mais tarde, China (com sua adesão à OMC em
2001). Portanto, se o marco histórico da afirmação e consolidação do ca-
pitalismo global foi 1989-1991, a conjuntura histórica de 1991-2001 pode
ser considerada de ascensão e crise do capitalismo global.

A China e o mercado mundial


O ápice do período histórico de ascensão do capitalismo global na
década de 2000 e inicio do século XXI, foi a entrada da República Popu-
lar da China na Organização Mundial do Comércio (OMC) e a adoção
do Euro pela União Européia. A entrada da China na OMC em 1999 foi

Neoliberalismo e Capitalismo Global(1980-1991) 73


um dos elementos geopolíticos (e geoeconômico) mais importante de
integração do mercado mundial, que só ocorreu depois de longas nego-
ciações, nas quais a China teve que satisfazer seus parceiros comerciais,
principalmente os Estados Unidos e a União Europeia, e convencê-los,
na época, de que estaria se esforçando para abrir a economia para a
competição internacional e crescendo em direção a uma economia de
livre mercado.
Um dos pontos-chave para a entrada chinesa na OMC foi o acor-
do comercial assinado entre Estados Unidos e China, em novembro
de 1999, aprovado com margem apertada pelo Congresso americano.
Mesmo antes de entrar em 2001, a China já começou a demonstrar seu
poder como membro da OMC em uma disputa comercial com o Japão.
Entretanto, com a entrada na OMC, a China se comprometeu a acabar
retirando as restrições ao mercado de capitais e melhorar o acesso a
produtos e empresas estrangeiras. A China também se comprometeu
na época, a reformar suas indústrias estatais. Para lidar com todas
essas promessas de mudanças, a China suspendeu as restrições de
movimento de pessoas, em vigor desde os tempos do planejamento
central do Partido Comunista. Empresas ocidentais tiveram liberdade
para entrar no país, mesmo em áreas sensíveis como telefonia celular,
seguros e bancos.
O acesso da China na OMC garantiu que o capital estrangeiro, se-
dento de lucratividade, entrasse de forma abundante, tornando a Chi-
na, na época, ainda mais competitiva como exportador para os países
industrializados alimentando o crescimento econômico do país (o que
explica o boom chinês na década de 2000). A China ultrapassou o Japão
como o maior exportador para os Estados Unidos. Aos mesmo tem-
po, os consumidores chineses tiveram um acesso maior aos produtos
ocidentais.
Entretanto, pouco mais de quinze anos depois, e depois da crise
do capitalismo global, iniciada com a recessão global de 2008/2009, o
otimismo de integração plena da China frustrou as autoridades nor-
te-americanacas e dos países capitalistas ocidentais. Em fins de 2017,
o governo Donald Trump confirmou ter recusado o pedido da Chi-
na para ser considerada uma economia de mercado na Organização

74 O Duplo Negativo do Capital


Mundial de Comércio (OMC). No documento legal de 41 páginas apre-
sentado à OMC, o representante comercial americano, Robert Lightizer,
defendeu seu direito a considerar a China como uma economia “não
de mercado”, ou seja, guiada pelo Estado, enquanto decide como vai li-
dar com a enxurrada de importações baratas do gigante industrial e, ao
mesmo tempo, proteger a indústria doméstica. União Europeia e Japão,
entre outros, também rejeitaram a solicitação chinesa junto à OMC.
O reconhecimento era esperado até 2016, quando a China completou
15 anos no grupo. A posição dos Estados Unidos foi apresentada com
apoio da UE em uma disputa da OMC com a China sobre esse tema.

O Projeto do Euro e a “Quarta Revolução Industrial”


Ao lado da ascensão da China no mercado mundial com sua entrada
na OMC, o começo do século XXI foi marcado pelas articulações ge-
opoliticas no interior do bloco hegemonico do capitalismo neoliberal.
Tivemos a implantação da moeda única européia (o Euro) em 1999. A
idéia da União Européia como projeto capitalista de hegemonia do capi-
tal franco-alemão, consolidou-se com a anexação da Alemanha Oriental
pela Alemanha Ocidental, logo após o fim do Leste Europeu, criando
no interior do território europeu um “espaço vital” de acumulação de
capital capaz de servir de ponte do Ocidente (EUA e Europa Ocidental) e
Oriente (Rússia e China). O conservador Helmut Kohl e socialista Fran-
çis Miterrand tornaram-se os “demiurgos” do novo projeto hegemonco
do capitalismo europeu diante da nova era do capitalismo global.
Na década de 1990 tivemos o impulso para a expansão da nova base
tecnológica informacional em rede (Internet), robótica e automação,
Inteligência Artificial, bioengenharia e nanotecnologia - os pilares da
“Quarta Revolução Industrial”, termo criado na Alemanha na década
de 2000 sob a euforia da nova economia do Euro, onde a Alemanha tor-
nou-se o carro-chefe da locomotiva do capital financeiro europeu (ao
lado da França). De fato, a década de 1990, como marco histórico do ca-
pitalismo global foi uma década de euforia midiática do capital predo-
minantemente financeirizado que operou importantes transformações
economicas e geoeconômicas, politicas e geopolíticas, tecnológicas,

Neoliberalismo e Capitalismo Global(1980-1991) 75


culturais e financeiras, deste modo, o mundo do capital em sua nova
etapa de crise estrutural.

A geopolítica da periferia integrada (América Latina e Leste


Europeu)
As novas mutações desde 1989-1999 como, por exemplo, o Plano
Brady e Consenso de Washington e ofensiva política do neoliberalis-
mo contribuíram para a integração da América Latina, Europa Orien-
tal e Rússia no circuito global do capital. Implantou-se o Nafta, a área
de livre-comércio entre EUA, Canadá e México; e aprofundou-se a
integração monetária da União Europeia com o Euro, sob a hegemonia
franco-alemã (o Euro seria implantado em 2000 concorrendo com o
dólar nos mercados de moeda, sendo efetivamente uma ameaça à hege-
monia estadunidense). Na verdade, a sanha do capitalismo global como
forma histórica do duplo negativo do capital operava os movimentos
tendenciais/contratendenciais à queda da taxa de lucro no plano do sis-
tema mundial. Como salientamos no capítulo anterior, a procura por
novos mercados e a financeirizacao da riqueza capitalista, ao lado da
precarização estrutural do trabalho por meio de reformas trabalhistas e
reformas da previdência, tornaram-se elementos cruciais da nova ofen-
siva do capital.
A integração de mercados nacionais cria novos mercados. Por isso o
movimento de aprofundamento dos acordos regionais monetários e co-
merciais, como o Nafta e o Euro. No caso do Nafta significou a afirma-
ção hegemônica dos EUA sobre a América do Norte e no caso do Euro, a
afirmação hegemônica da Alemanha/França sobre a Europa Ocidental
e alguns países da Europa Oriental.

O capitalismo das bolhas


No período de 1991-2001, além da euforia de ascensão do capita-
lismo global, com a entrada da China e a adoção do Euro na União
Européia, o capitalismo global expunha seu “calcanhar de Aquiles”. O
sistema global do capital expunha seu caráter de volatilidade sistêmica

76 O Duplo Negativo do Capital


com a crise financeira do México às vésperas da implantação do Nafta e
as crises financeiras da Ásia, Russia e Brasil, atingindo em 2001 a “nova
economia” dos EUA. Em 1987, ocorreu a primeira crise financeiro do
capitalismo neoliberal com impactos irrecuperáveis na economia japo-
nesa. Enfim, os estouros das bolhas financeiras tornaram-se elemen-
tos recorrentes do capitalismo global expondo a natureza instável do
capitalismo tardio em sua fase de crise estrutural. Na medida em que
ascendeu historicamente, o capitalismo global como capitalismo neoli-
beral expós sua dimensão de insustentabilidade nas condições da crise
estrutural de lucratividade e desmedida do valor.
Portanto, durante o período histórico de afirmação do capitalismo
global na década de 1990, principalmente, a partir da metade da década
gloriosa, tivemos os primórdios do desencanto com a nova dinâmica
global do capital: o rastro de crises financeiras na borda periférica do
centro orgânico do capital financeiro. O capitalismo neoliberal se expli-
citaria como “capitalismo das bolhas” com as crises financeiras tornan-
do-se recorrentes (1996-2001 e 2008-2009).
As crises financeiras provocaram terromotos politicos na geopo-
litica do capitalismo global (por exemplo, América Latina na década
de 2000) e novas dinâmicas geopoliticas mundiais (China, Rússia e
Índia). Na América Latina, logo no início da década de 2000, tivemos
a crise das experiências neoliberais na América Latina, elo estratégico
importante da hegemonia dos EUA. Dez anos depois de experiencias
pós-neoliberais e neodesenvolvimentistas e a recessão global que
nasceu no seio do capitalismo neoliberal, China e Rússia se deslocam
geopoliticamente. Em meados da década de 2000, a Rússia de Vladimir
Putin, se aproximou da China e da Índia, indicando um novo modelo
de desenvolvimento do capital no seio do capitalismo global (sob hege-
monia financeira anglo-saxão) em crise.
Entretanto, na década de 2010, com a crise do capitalismo global, os
EUA, núcleo dinâmico e centro orgânico do capital financeiro operou
sua reação geopolítica (o Império Contra Ataca!). A longa decedência
do capitalismo neoliberal será caracterizada por um insana (e com-
plexa) disputa geopolitica no interior do bloco hegemonico do capital
no plano mundial, disputas geopoliticas do século XXI (EUA e União

Neoliberalismo e Capitalismo Global(1980-1991) 77


Européia versus Rússia e China) que ameaçam a sobrevivência da Hu-
manidade tal nós a conhecemos.
Esta foi breve a ascensão histórica do capitalismo global enquanto
capitalismo neoliberal (1989-2007), na medida em que a nova etapa do
capitalismo tardio ocorre num cenário de crise estrutural de lucrativi-
dade/desmedida do valor e crise estrutural do capital. Do mesmo modo,
podemos afirmar que será longa a queda histórica do capitalismo neo-
liberal predominantemente financeirizado sob hegemonia dos EUA e
União Européia. O marco histórico da crise do capitalismo global foi
a Grande Recessão de 2008/2009 que conduziu a economia capitalista
global à sua terceira longa depressão: a terceira longa depressão da his-
tória do capitalismo mundial.

78 O Duplo Negativo do Capital


Capitulo 3

A scensão e Crise do C apitalismo


Global (1991-2007)

A nova dinâmica do capitalismo global impulsionada e consolidada


na década de 1990 ocorre sob as condições históricas do duplo negativo
do capital. No período de 1991-2007 temos a ascensão e crise do capi-
talismo global. Com as crises financeiras ocorridas de 1996-2001, ini-
ciando na periferia do sistema global - Sudeste da Ásia, Rússia e Brasil e
atingindo em 2001 os EUA, o capitalismo global desvela a sua natureza
de vulnerabilidades sistêmica tem em vista ser a forma histórica no in-
terior da qual se desenvolve o movimento tendencial/contratendencial
da crise estrutural de lucratividade e a crise estrutural do capital como
sistema de controle estranhado do metabolismo social (Meszaros). Na
verdade, a contradição suprema do capital manifesta-se no fato históri-
ca da formação, desenvolvimento e crise do capitalismo global ser ele-
mento compositivo da crise estrutural do capital que Meszaros identifi-
cou nos fins da década de 1960.
A ascensão e crise do capitalismo global é o processo de afirma-
ção/negação da hegemonia dos EUA no mercado mundial iniciada logo
depois da Segunda Guerra Mundial. Como centro dinâmico e núcleo
orgânico do sistema mundial do capital, os EUA contém em si as con-
tradições acumuladas do desenvolvimento do capitalismo tardio. É a
partir dele que se dissemina o movimento tendencial/contratendencial
à queda da taxa de lucratividade.
Entretanto, podemos considerar a ascensão da China no começo do
século XXI um elemento do movimento teendencial/contratendencial
global do capital à queda estrutural da taxa de.lucratividade, embora de
modo excêntrico, tendo em vista que opera a reprodução do capital mas
coloca bloqueios á plena efetivação da lei do valor por meio do comando

Ascensão e Crise do Capitalismo Global (1991-2007) 81


Estado (uma versão asiática pós-capitalista da modernização ocorrida
na golden age do capitalismo central ocidental no pós-guerra).
A mudança de protagonismo hegemônico do sistema-mundo do
capitalismo internacional, pelo menos desde o século XVI, implicou,
algumas vezes, em processos disruptivos, tais como guerras. Por exem-
plo, a decadência do imperialismo inglês acelerou-se com as Guerras
Mundiais do século XX, criando condições históricas e geopolíticas
para a ascensão do imperialismo norte-americano (Arrighi, 1994). A
questão é saber se o “imperialismo” chinês, ultimo fôlego do sistema do
capital, conseguirá afirmar-se no século XXI como alternativa à longa
decadência do império norte-americano, sem um confronto geopolíti-
co, comercial e militar.

O boom e a bolha (2001-2007)


A crise financeira de 2001 nos EUA com o estouro da bolha da nova
economia ocorreu - provavelmente planejado para tal - sob o impacto
do atentado terrorista de 11 de setembro de 2001. A contingência his-
tórica realizou a afirmação da tendência de queda da lucratividade, es-
tourando a bolha financeira iniciada em fins da década de 1990 (um
movimento histórico similar ocorreu em 1973-1975 com o choque do
Petróleo, por conta da guerra árabe-israelense, provocando a recessão
global do capitalismo tardio, importante ponto de inflexão de desenvol-
vimento do sistema, como analisamos no capítulo 1).
Entretanto, diante da conjunção de descida conjuntural do ciclo da
economia norte-americana, verificada no final do governo Clinton (a
crise da economia norte-americana de começo da década de 2000 que
levou a derrota de Clinton e a vitória de Bush em 2000) e os atenta-
dos terroristas as Torres-gêmeas do World Trade Center, meses após a
posse do novo presidente republicano, sob os influxos dos protestos do
movimento anti-globalizacao, iniciados em Seattle desde 1996, o FED
(“Federal Reserve”, o banco central norte-americano) reagiu de imedia-
to para evitar que o ciclo de desaceleração se transformasse numa nova
recessão global expondo, num patamar mais profundo, a crise estrutu-
ral do capital.

82 O Duplo Negativo do Capital


Como salientamos, desde 1973-1975, a economia do capitalismo
mundial mostrou-se frágil diante do movimento tendencial/contraten-
dencial de queda da taxa de lucratividade e desmedida do valor, expon-
do a crise estrutural do capital. A transição histórica para o capitalis-
mo global e seu desenvolvimento ascendente na década de 1990, com a
predominância da hegemonia do capital financeiro, significou apenas a
constituição da forma histórica no interior da qual o capital desenvolve
suas candentes contradições expressas no duplo negativo do capital.
Como política contracíclica, o FED reduziu de forma drástica a taxa
de juros, ao mesmo tempo que aprofundou a desregulamentação do
sistema financeiro permitindo o surgimento da bolha imobiliária que
iria estourar em 2007. Incentivou-se o consumo da classe média assa-
lariada e a especulação financeira com os novos produtos do capital
fictício como derivativos e “hedges” e CDOs (“Collateralized debt Obli-
gations”). As famílias se endividaram aproveitando o surto de crédito,
hipotecando suas residências para acessar ao admirável mundo novo
das mercadorias. Apenas com o endividamento famílias de trabalha-
dores precarizados na sua capacidade aquisitiva poderiam consumir,
dando demanda efetiva para o movimento contracíclico da economia
norte-americana.
A onda de crédito fácil expandiu-se para a União Europeia, afluindo
para os países da Zona Euro, principalmente do Sul pobre fascinados
pela incorporação ao novo projeto europeu sob a afluência do consu-
mismo. Ao mesmo tempo, os países capitalistas da periferia dependen-
te, produtores de commodities aproveitaram o aumento dos preços do
petróleo e commodities por conta das altíssimas taxas de crescimen-
to da China, recém-admitida na OMC, para implementar projetos de
desenvolvimento - no caso da América do Sul, a falência do modelo
neoliberal oriundos do Consenso de Washington e adotados na década
de 1990, levou ao surgimento de governos de esquerda que adotaram
projetos políticos pôs-neoliberais ou neodesenvolvimentistas. As condi-
ções favoráveis do mercado mundial indicadas acima, favoreceram tais
governos no período de 2002-2007.
Entretanto, o fascínio do capitalismo-cassino no período histórico
de começo do século XXI, ocultou profundas contradições oriundas do

Ascensão e Crise do Capitalismo Global (1991-2007) 83


“duplo negativo” do capital. Aliás, como ressaltaram alguns analistas
marxistas de 2001-2006 (Anwar Shaik e Robert Brenner, entre outros),
os pilares do boom da economia norte-americana eram frágeis e uma
profunda crise financeira seria iminente. Os indicadores de lucrativi-
dade e produtividade indicavam sérios riscos. A bolha imobiliária, que
se disseminou não apenas pelos EUA mas pela União Europeia e Japão,
demonstrando o profundo entrelaçamento global do capital financeiro,
tornou-se insustentável.
Na verdade, a crise de 2007-2008 expôs, mais uma vez, os funda-
mentos do capitalismo neoliberal predominantemente financeirizacao,
sustentáculos do capitalismo global: volátil e instável por conta, não da
desregulamentação financeira e corrupção das agências reguladoras
ocorridas nos governos sob o domínio de Wall Street (como apontam,
por exemplo, os neokeynesianos de esquerda), mas sim, devido a base
do capitalismo global carcomida pelo “duplo negativo” do capital (a cri-
se estrutural de lucratividade e a desmedida do valor).
Diferentemente das crises financeiras do Sudeste Asiático, Rússia e
Brasil (1996-1999), a crise financeira de 2007-2008, ocorreu no núcleo
orgânico e centro dinâmico do capitalismo central, desvelando no seu
impacto voraz na economia dos EUA, União Europeia e Japão, suas raizes
para além da esfera financeira. O epicentro foi nas finanças, mas perce-
beu-se que ela apenas desvelou a crise estrutural de lucratividade, que tem
caracterizado o capitalismo tardio desde a recessão global de 1973-1975.
The Big Recession nos anos de 2007-2008 nos núcleo orgânico do capita-
lismo global (EUA, União Européia e Japão), transformou-se numa longa
depressão – a terceira longa depressão do capitalismo mundial.
Inaugurou-se efetivamente em 2007, a crise do capitalismo global,
cujos efeitos retardados ocorreriam na década de 2010 nos países capi-
talistas periféricos dependentes mais desenvolvidos. Por conta de políti-
cas anti-cíclicas em 2008-2009, tais países, como o Brasil, conseguiram
relativamente “driblar” a crise da subprime que atingiu, num primeiro
momento, o centro capitalista mais desenvolvido, exigindo dos gover-
nos - que salvaram financeiramente o sistema bancário, abatido pelo
estouro da bolha financeira - a adoção de políticas de austeridade neo-
liberal - principalmente caso da União Europeia.

84 O Duplo Negativo do Capital


A crise do capitalismo global em seu “núcleo orgânico” (EUA, União
Europeia e Japão), a partir do crase financeiro de 2007/2009, e seu des-
dobramento sistêmico na primeira metade da década de 2010 nos pa-
íses capitalistas dependentes mais desenvolvidos, entre eles o Brasil,
demonstrou, com vigor, a natureza instável do capitalismo global pre-
dominantemente financeirizado. Tratou-se da crise de desenvolvimento
capitalista só comparável àquela que ocorreu em 1929 (tal como aquela,
a profunda recessão deu origem a uma longa depressão da economia
capitalista no interior da qual estamos inseridos).
A crise do subprime foi uma crise financeira desencadeada em 24
de julho de 2007, a partir da queda do índice Dow Jones motivada pela
concessão de empréstimos hipotecários de alto risco (em inglês: subpri-
me loan ou subprime mortgage), prática que arrastou vários bancos para
uma situação de insolvência, repercutindo fortemente sobre as bolsas de
valores de todo o mundo. A crise do subprime foi imediatamente perce-
bida como a mais grave crise financeira desde 1929, com possibilidade
de se transformar em uma crise sistêmica, entendida como uma inter-
rupção da cadeia de pagamentos da economia global, e que tenderia a
atingir, de maneira generalizada, todos os setores econômicos.
Ela pode ser considerada como um prenúncio da crise econômica
de 2008. As famílias americanas já vinham se endividando ao longo
dos anos 1990. A partir de 1995, o mercado imobiliário nos EUA
voltou a se expandir, assim como o endividamento - através de crédi-
to ao consumidor e hipotecas. Com a crise de 2000-2001 do mercado
de ações, o mercado imobiliário ganhou estímulos e se expandiu mais
vigorosamente. As famílias, já endividadas, elevaram a contratação
de empréstimos, fazendo novas hipotecas e adquirindo novas linhas
de crédito. A partir de 2003, com a intensificação da valorização dos
imóveis e o esgotamento dos clientes tradicionais, o crédito foi facilitado
para as famílias e indivíduos sem histórico de crédito ou com histórico
ruim, sem emprego e sem renda.
Os subprimes incluíam desde empréstimos hipotecários até cartões
de crédito e aluguel de carros, e eram concedidos, nos Estados Unidos,
a clientes sem comprovação de renda e com mau histórico de crédito
(eram os chamados clientes “ninja”, do acrônimo, em inglês, no income,

Ascensão e Crise do Capitalismo Global (1991-2007) 85


no job, no assets: sem renda, sem emprego, sem patrimônio). Essas dívi-
das só eram honradas, mediante sucessivas “rolagens”, o que foi possível
enquanto o preço dos imóveis permaneceu em alta. Essa valorização
contínua dos imóveis permitia aos mutuários obter novos empréstimos,
sempre maiores, para liquidar os anteriores, em atraso, dando o mesmo
imóvel como garantia. As taxas de juros eram pós-fixadas, isto é,
determinadas no momento do pagamento das dívidas.
Quando os juros dispararam nos Estados Unidos, com a consequen-
te queda do preço dos imóveis, houve inadimplência em massa. A queda
nos preços de imóveis, a partir de 2006, arrastou vários bancos para
uma situação de insolvência, repercutindo fortemente sobre as bolsas
de valores de todo o mundo. Como os empréstimos subprime eram di-
ficilmente liquidáveis, isso é, não geravam nenhum fluxo de caixa para
os bancos que os concediam, esses bancos arquitetaram uma estratégia
de securitização desses créditos.
Para diluir o risco dessas operações duvidosas, os bancos americanos
credores juntaram-nas aos milhares, e transformaram a massa daí resul-
tante em derivativos negociáveis no mercado financeiro internacional,
cujo valor era cinco vezes superior ao das dívidas originais. Assim,
criaram-se títulos negociáveis cujo lastro eram esses “créditos podres”.
Foi a venda e compra, em enormes quantidades, desses títulos lastrea-
dos em hipotecas subprime que provocou o alastramento da crise, ori-
ginada nos Estados Unidos, para os principais bancos do mundo. Tais
papéis, lastreados em quase nada, obtiveram o aval das agências inter-
nacionais de classificação de risco - de renome até então inquestionável
-, que deram a eles a sua chancela máxima - AAA - normalmente dada
a títulos tão sólidos quanto os do Tesouro dos EUA, tornando-os muito
mais confiáveis do que os títulos do governo brasileiro, por exemplo.
Com essa benevolente classificação de risco, tanto os investidores,
como os fundos de investimento e os bancos passaram a disputar
a aquisição desses títulos, no mundo todo, e esses títulos passaram a
servir como garantia para a tomada de novos empréstimos bilionários,
alavancados na base de 20 para 1. A partir do 18 de julho de 2007, a
crise do crédito hipotecário provocou uma crise de confiança geral no
sistema financeiro e falta de liquidez bancária, ou seja, falta de dinheiro

86 O Duplo Negativo do Capital


disponível para saque imediato pelos correntistas dos bancos. Mesmo
os bancos que não trabalhavam com os chamados “créditos podres” fo-
ram atingidos. O banco britânico Northern Rock, por exemplo, não ti-
nha hipoteca-lixo em seus livros, mas adotava uma estratégia arriscada
- tomar dinheiro emprestado no curto prazo (a cada três meses) às ins-
tituições financeiras, para emprestá-lo no longo prazo (em média, vinte
anos), aos compradores de imóveis. Repentinamente, as instituições fi-
nanceiras deixaram de emprestar dinheiro ao Northern Rock, que, as-
sim, no início de 2007, acabou por se tornar o primeiro banco britânico
a sofrer intervenção governamental, desde 1860. Na sequência, temendo
que a crise tocasse a esfera da economia real, os Bancos Centrais foram
conduzidos a injetar liquidez no mercado interbancário, para evitar o
efeito dominó, com a quebra de outros bancos, em cadeia, e que a crise
se ampliasse em escala mundial.
A profunda crise da economia mundial ocorrida a partir da crise
do subprime no “núcleo orgânico” do sistema mundial do capital glo-
bal, demonstrou a capacidade hegemônica do capital financeiro em ar-
ticular, de imediato, uma saída política para a crise financeira global.
Os Bancos Centrais dos EUA e da União Européia gastaram trilhões
de dólares no salvamento dos bancos debilitados pelo estouro da bolha
especulativa do subprime (o sistema financeiro dos EUA foi pratica-
mente estatizado, e o governo tornou-se sócio das instituições). Os go-
vernos anunciaram pacotes de bilhões de dólares, que incluíam ajuda
a empresas privadas, disponibilização de crédito para investidores e
consumidores, cortes de impostos e investimentos em infra-estrutura.
No total, as ações planejadas até novembro de 2008 somaram mais de 5
trilhões de dólares.
A sangria do fundo público nos EUA e União Européia devido a
crise financeira de 2008 foi imensa, prosseguindo depois no decorrer
da década de 2010. Por exemplo, nos EUA, o plano de ajuda ao sistema
financeiro, anunciado pelo governo Bush em 2008, ultrapassou a US$
2,6 trilhão; e a Europa, assolada ainda por um endividamento eleva-
do, aumentou o seu intervencionismo para tentar conter a crise ban-
cária e fiscal. Só na Inglaterra, em 2008, o pacote de nacionalização
de instituições e ajuda ao setor bancário chegava a US$ 1 trilhão. A

Ascensão e Crise do Capitalismo Global (1991-2007) 87


Alemanha não ficou atrás. Na maior intervenção desde a queda do Muro
de Berlim, o governo alemão anunciou uma ajuda recorde a bancos, de
500 bilhões de euros.
Quatro anos depois, diante do calote da Grécia, houve outra onda
de socorro, em 2012. Quatro instituições financeiras gregas recebe-
ram mais de US$ 22 bilhões. Na Espanha, outros quatro bancos foram
socorridos com uma injeção de capital de US$ 48 bilhões. No começo
da década de 2010, o capital financeiro hegemônico implementou pro-
gramas de austeridade neoliberal, tanto na União Européia, quanto na
América do Sul, visando repassar para os trabalhadores e trabalhadoras
o preço da crise do orçamento público (por exemplo, nos EUA, a dívida
pública subiu cerca de 20% em relação ao PIB).

Crise de hegemonia financeira ou afirmação hegemonica do


capital financeiro?
Para os economistas marxistas Gérard Duménil e Dominique Lévy,
tal como a crise de 1929, a crise de 2008/2009 foi uma crise de hegemonia
financeira, sendo distinta, por exemplo, das crises de 1890 e 1973/1975,
considerada por eles, crise de lucratividade. Dizem eles:
“A taxa de lucro é uma importante variável na análise das crises
estruturais. As crises das décadas de 1890 e de 1970 foram o resultado
da tendência de queda de lucros. Reciprocamente, a Grande Depressão
e a crise do neoliberalismo não estão ligadas à tendência de queda da
taxa de lucros. Nos dois casos a queda da taxa de lucro estava passando
por um lento processo de recuperação. Nem uma tendência de alta, nem
a de queda da taxa de lucro, podem ser consideradas um determinante
da crise atual. Isso, é claro, não significa que, sob certos aspectos, a taxa
de lucro não seja relevante nesta analise. A Grande Depressão e a crise
atual têm em comum o fato de cada uma delas ter marcado o fim de um
período de hegemonia financeira. ”
E prosseguem:
“A Grande Depressão pode ser denominada de ‘a crise da primeira
hegemonia financeira’. Essa denominação expressa diretamente seus
aspectos em comum com a crise do neoliberalismo, ele próprio ‘a crise

88 O Duplo Negativo do Capital


da segunda hegemonia financeira’. Ambas foram consequência do exer-
cício da hegemonia, a expressão irrestrita das exigências das classes al-
tas que forçaram os mecanismos econômicos até os limites da susten-
tabilidade, extrapolando-os por fim” [os grifos são nossos] (Duménil e
Lévy, 2014).
Como observamos acima, Gérard Duménil e Pierre Lévy, despreza-
ram, de certo modo, como nexo explicativo, o movimento tendencial da
queda da taxa de lucro para explicar a crise de 2008/2009. Dizem eles:
“Nem uma tendência de alta, nem a de queda da taxa de lucro podem
ser consideradas um determinante da crise atual. ”
Existe um problema metodológico na discussão sobre os determi-
nantes da crise do capitalismo global. Na medida em se desenvolve
como contradição viva, o capital exige, cada vez mais, uma perspectiva
dialética mais elaborada para apreender as “determinações determina-
das’ da crise do capital em sua etapa de crise estrutural. Afinar as fer-
ramentas metodológicas torna-se crucial, principalmente redundando
uma perspectiva dialética do movimento do capital. Por isso foi impor-
tante o esforço filosófico de Ruy Fausto de reconstruir a lógica dialética
em Marx para pensar, não apenas a exposição de “O Capital”, mas o
movimento de suas categorias de produção, distribuição, circulação e
consumo - Livros 1 e 2 - o movimento das categorias no processo global
do capital e a teoria da crise capitalista,
Por isso, a dificuldade de Dumenil e Levy em tratar de um proces-
so contraditório - radicalmente dialético - que opera nos fundamentos
do sistema do capital, com o movimento da taxa de lucro sendo - e,
ao mesmo tempo, não sendo – um determinante da crise atual. Como
salientamos, o duplo negativo do capital opera no desenvolvimento
contraditório do sistema capitalista mundial. O movimento tendencial/
contratendencial que impulsiona a forma histórica do capitalismo glo-
bal faz com que tenhamos a necessidade da lógica dialética concreta
para a explicação da crise de 2008/2009. É o que tentaremos fazer.
No calor da “crise do neoliberalismo” de 2008/2009, Duménil e Lévy
proclamaram o fim do período de hegemonia financeira. Naquela época
– em 2011, época da publicação da 1ª. Edição do livro “The crisis of neo-
liberalism” - diziam eles: “Uma questão fundamental é se a história vai

Ascensão e Crise do Capitalismo Global (1991-2007) 89


se repetir, se a crise atual vai disparar a entrada numa nova fase. Com as
cautelas usuais relativas ao caráter imprevisível aos desenvolvimentos
futuros, a resposta dada aqui é positiva” (Duménil e Lévy, 2014). Presos
na imediaticidade histórica, os dois marxistas franceses não perderam
que os desenvolvimentos futuros da crise financeira levaram à recom-
posição da hegemonia das “classes altas”, demonstrando, diferentemen-
te da crise de 1929, o enraizamento do capital financeiro no sistema ins-
titucional-politico e ideológico do capitalismo global, capaz de preservar
as posições daquilo que Dumeníl e Lévy chamam de “classes altas”.
Ao mesmo tempo, ao afirmarem que a crise de 2008-2009 foi um
crise de hegemonia financeira, e não uma crise de lucratividade, Du-
menil e Lévy, de certo modo, desprezaram o caráter profundo da cri-
se do capital enraizada no movimento contrário da crise estrutural da
lucratividade e desmedida do valor (o duplo negativo do capital), ten-
dências que operam nos fundamentos do sistema, pelo menos desde
fins da década de 1960. Na verdade, a crise financeira foi apenas uma
expressão aparente do movimento essencial do capital em sua fase de
crise estrutural. Na perspectiva dialética, a aparência não pode ser des-
prezada, pois ela é uma forma de ser da essência. Na forma histórica do
capitalismo global profundamente financeirização, o “duplo negativo”
do capital se manifesta por meio das crises financeiras enraizadas na
dinâmica produtiva do modo de produção da vida social.
No período de transição histórica para o capitalismo global (1980-
1989) e na sua etapa de afirmação e consolidação a partir da década de
1990, o capital financeiro se constituiu como sistema-mundo institu-
cionalizado da nova ordem do capitalismo neoliberal, operando a seu
modo, o movimento contratendencial à queda da taxa média de lucros,
por meio da financeirização da riqueza capitalista, capaz de dar vazão
à sanha da massa de capital-dinheiro sedenta de valorização (lucros
retidos das corporações industrial acumulados na fase de recuperação
relativa da lucratividade em fins da década de 1980 e a massa de capital-
-dinheiro dos fundos de pensões) (Chesnais, 1995).
Ao mesmo tempo, o Estado neoliberal, a nova forma do Estado po-
lítico do capital em sua etapa de crise estrutural, por meio de suas polí-
ticas de flexibilização da legislação trabalhista, reforma previdenciária

90 O Duplo Negativo do Capital


e programas de privatização, aumentou taxa de exploração e a “cap-
tura” do fundo público. Como observou I. Mészáros, ocorreu, com
o acirramento da concorrência, impôs-se, como movimento
contratendencial do capital, a tendência de equalização decrescente das
taxas médias de exploração da força de trabalho, provocada principal-
mente pela integração da China e do Leste Europeu no mercado mun-
dial na década de 1990 Carcanholo e Sabadini, 2015).
Por que o capital financeiro não foi esterilizado e o neoliberalismo
não teve a sua derrocada, apesar da profunda crise financeira de 2007-
2008 no núcleo orgânico do capitalismo global?
Diferentemente da crise de 1929, existe hoje um “regime institucio-
nal internacional” do capital financeiro (Chesnais, 2001) comandados
pelos “oligopólios financeiros” que deram suporte à mundialização
produtiva e mundialização financeira ao lado das tecnoburocracias
mundiais (OMC, FMI e Banco Mundial). Assim, o capital financeiro
encontra-se hoje, pelo menos a partir de 1990, enraizado no sistema
institucional-político (e ideológico) do capitalismo global.
De fato, com o capitalismo tardio dos “trinta anos dourados” e prin-
cipalmente com a nova etapa histórica do capitalismo global em resposta
á recessão global de 1973-1975, ocorreram mudanças qualitativamente
novas não apenas na dinâmica da acumulação capitalista mas na na-
tureza da própria contingência política com o rearranjo das frações de
classe do bloco histórico do poder do capital. A hegemonia consolidada
da fração rentista-parasitaria, como nunca se viu na história do capi-
talismo, fez com que tivéssemos efetivamente diferenças significativas
no modo de resposta às duas crises capitalistas (1929 e a de 2008-2009).
O enraizamento do capital financeiro no sistema institucional-po-
litico (e ideológico) do capitalismo global originou-se historicamente
da afirmação e consolidação da lógica da financeirização da riqueza
capitalista como movimento contratendencial à queda da taxa média
de lucros das corporações globais, crise de lucratividade que levou à
primeira recessão mundial após a II Guerra Mundial ocorrida em me-
ados da década de 1970 (Mandel, 1990). No plano da contingência his-
tórica (isto é, a luta de classes), a vitória das forças políticas neoliberais
nos países capitalistas centrais (por exemplo, Inglaterra com Margaret

Ascensão e Crise do Capitalismo Global (1991-2007) 91


Thatcher, em 1979; e EUA com Ronald Reagan em 1980), promoveram
efetivamente a recomposição de poder no seio do bloco histórico do
capital, dando poder político-institucional (e cultural) ao capital finan-
ceiro em detrimento das demais frações do capital em geral (capital
produtivo e capital comercial). Foi o capital financeiro que operou o
processo de reestruturação capitalista que nos conduziu a afirmação e
consolidação do capitalismo global.
Na década de 1980, impulsionada pela financeirização da riqueza
capitalista, o capital especulativo e parasitário passou a comandar as
demais frações do capital (capital produtivo, capital bancário e capital
comercial), constituindo deste modo, a sua hegemonia financeira. Pode-
-se dizer que a fusão das frações do capital sob o comando do capital
financeiro por meio das holdings capitalistas, foi um modo de aumentar
a capacidade de pulsão sobre a mais-valia social total (as holdings desig-
nam uma forma de sociedade criada com o objetivo de administrar um
grupo de empresas ou conglomerado. A holding administra e possui a
maioria das ações ou cotas das empresas componentes de um determi-
nado grupo).
Portanto, o desenvolvimento da conjuntura pós-crise 2008/2009
desmentiu Duménil e Lévy: a crise de 2008/2009 não se tratou efetiva-
mente de uma crise de hegemonia financeira. Pelo contrário, a profunda
crise da economia mundial ocorrida a partir da crise do subprime no
“núcleo orgânico” do sistema mundial do capital global, demonstrou a
capacidade hegemônica do capital especulativo-parasitário em articu-
lar, de imediato, uma saída política para a crise financeira global.
Em 1929, o capital financeiro não conseguiu impor sua agenda polí-
tica de saída para a crise da economia mundial. Pelo contrário, a crise de
hegemonia financeira ocorrida em 1929 abriu espaço para a nova hege-
monia do capital produtivo, fração do capital que, nas condições da luta
de classes da década de 1930 e no pós-guerra, lastreou o compromisso
fordista-keynesiano. Portanto, a crise financeira de 2008/2009
demonstrou a notável capacidade hegemônica do capital especulativo-
parasitário em indicar a “saída” política para a crise de acordo com
seus interesses de classe: primeiro, sugando recursos do Fundo Público
para salvar bancos e empresas; e depois, adotando políticas neoliberais

92 O Duplo Negativo do Capital


visando socializar os prejuízos e equilibrar o orçamento público às
custas dos direitos trabalhistas, previdenciário e sociais do mundo do
trabalho, repondo, deste modo, num patamar superior, suas condições
de dominação política e social.
Como observou Karl Marx, “o capital é trabalho morto, que apenas
se reanima, à maneira dos vampiros, chupando trabalho vivo; e que
vive tanto mais quanto mais trabalho vivo chupa.” (Marx, 1996). O
capital financeiro, expressão suprema do fetiche-capital, incorporou
em si, enquanto capital, a necessidade de chupar trabalho vivo. A cada
crise financeira, o capital especulativo-parasitário, para se reanimar,
à maneira dos vampiros, chupa trabalho vivo cristalizado no fundo
público como anti-valor (como diria Francisco de Oliveira). Marx
alertou: o capital vive tanto mais quanto mais trabalho vivo chupa. A
crise financeira de 2008/2009 fez com que o capital especulativo e pa-
rasitário chupasse mais de 5 trilhões de dólares do fundo público dos
países capitalistas centrais.
Deste modo, o grande assalto ao Fundo Público que presenciamos
desde a crise financeira de 2007/2008 é produto da necessidade de o
capital financeiro reanimar-se e demonstrar sua força hegemônica ele-
vando o patamar de barbárie histórica (a barbárie social). A voracidade
da ofensiva neoliberal na década de 2010 explica-se, por um lado, pelo
caráter ressentido do capital financeiro hegemônico em repor as con-
dições de acumulação do capital predominantemente financeirizado;
e por outro lado, pelo reordenamento da hegemonia dos EUA nos pó-
los de influência norte-americana (União Européia e América do Sul)
tendo em vista as novas condições de enfrentamento geopolítico com
Rússia e China.

A crise estrutural de lucratividade


O big crash financeiro de 2007/2008 e a depressão da economia glo-
bal na década de 2010 confirmam a evidência histórica da crise estrutu-
ral de lucratividade, cuja manifestação aparente é crise crônica persisten-
te de superprodução/subconsumo que caracteriza, em maior ou menor
medida, o capitalismo tardio desde a recessão global de 1973/1975. Nos

Ascensão e Crise do Capitalismo Global (1991-2007) 93


quase “trinta anos perversos” do capitalismo global (1990-2020), a taxa
média de lucro no mercado mundial tem passado por uma lenta recupe-
ração desde a reestruturação capitalista ocorrida após a recessão global
de 1973-1975. Entretanto, Carcanholo e Sabatini (2015) salientam que
a lenta recuperação da taxa de lucro dos oligopólios mundiais diz mais
respeito aos “lucros fictícios” do que a efetiva recuperação da lucrativi-
dade das corporações industriais.
Embora a crise de 2008/2009 não tenha como causa aparente a crise
de lucratividade (como a crise de 1973/1975), a acumulação predomi-
nantemente financeirizada que caracteriza o capitalismo global, expõe
sub-repticiamente, dificuldades na recuperação efetiva da taxa de lu-
cros dos oligopólios mundial desde a recessão de 1973-1975. Na verda-
de, embora a causa aparente da crise de 2008/2009 tenha sido financeira
(big crash financeiro), a causa essencial pode ser considerada a crise es-
trutural de lucratividade que persegue o capitalismo tardio desde re-
cessa global de 1973-1975 (a aparencia é uma forma de ser da essencia).
O debate no campo marxista sobre a natureza da crise capitalista
opõe aqueles que consideram múltiplas as causas da crise capitalista,
àqueles que salientam, como causa essencial, à queda da taxa média de
lucros, a explicação clássica que consta no volume 3 de “O Capital”. En-
tretanto, alguns marxistas consideram que Marx não nos legou uma
teoria das crises, por isso não consideram válida a explicação causal que
consta no Livro 3, atribuída a Engels, o organizados dos volumes 2 e 3
de “O Capital”.
Por outro lado, mesmo os autores que explicam a crise capitalista
pela queda da lucratividade como causa essencial, e a superprodução/
subconsumo como causas contingentes, divergem sobre o que causa à
queda da taxa de lucros. Entretanto, de acordo com a teoria da crise, que
consta no livro 3, a causa essencial da queda tendencial da lucratividade
é a pressão exercida pelo aumento histórico da composição orgânica do
capital. A teoria da crise capitalista que defendemos implica em consi-
derar a distinção metodológica entre causa essencial e causas aparentes.
O método dialético opera com a distinção categorial entre aparência e
essência, ou ainda, liberdade e necessidade (liberdade como elemento
contingência dos sujeitos que fazem a história, mas sob determinadas

94 O Duplo Negativo do Capital


condições). Deste modo, Marx na sua obra-prima incompleta (“O ca-
pital: Crítica da Economia Política”), procurou apreender a lei geral -
diríamos essencial - da acumulação capitalista; e, no livro 3, a lei das
crises capitalistas. Entretanto, na perspectiva dialética, não devemos
desprezar as manifestações aparentes e o movimento da contingência
histórica no sentido de que as leis históricas são leis tendenciais. Por
isso, o movimento de afirmação da essência se desenvolve no interior
do processo de explicitação contratendencial6.
Por exemplo, a superprodução da massa de capital-dinheiro que
Marx e Engels apreenderam em 1848 como principal manifestação da
crise capitalista (como crise de superprodução) representa no plano his-
tórico, o movimento contingência da crise de lucratividade. Do mesmo
modo, as crises de subconsumo, outro lado das crises de superprodu-
ção, decorrem, em última instância, da crise de lucratividade do sistema
capitalista. Inclusive, outro elemento da crise capitalista, a crise de des-
proporção, podem se remeter a causa essencial da queda da taxa de lu-
cro. Entretanto, não se deve desprezar as manifestações contingenciais
da crise capitalista, pois de acordo com a dialética, a aparência é uma
forma de ser da essência. O modo de manifestação aparente operado
pelas contingências históricas, desvela o movimento essencial da taxa
de lucratividade, cerne essencial da acumulação capitalista.
Para se contrapor à tendência histórica de queda da taxa de lu-
cro, o movimento de produção de valor e reprodução ampliada do
capital produtivo, pelo menos desde a recessão global de 1973-1975,
foi impulsionado pelos variados instrumentos de elevação da taxa de

6 Não nos interessa tratar aqui da controvérsia marxista sobre a teoria da “lei” tendencial
de queda da taxa média de lucro proposta por Marx. Indicamos alguns importantes –
a maioria de lingua inglesa - para discutir esta candente questão: Michael A. Lebowitz
(“Marx´s falling rate of profit: a dialetical view”, The Canadian Journal of Economics.
9, 1976, p.248-9); Anwar Shaik (Valor, Acumulación y crisis – Ensayos de economia po-
lítica, Buenos Aires: ediciones ryr, 2006); Manuel Castells (A teoria marxista das crises
econômicas e as transformações do capitalismo, Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1979);
Chris Harman (Zombie Capitalism – Global crisis and the relevance of Marx, Chicago:
Bookmarks publication, 2009), Guglielmo Carchedi (Behind the Crisis - Marx’s Dialectics
of Value and Knowledge, Brill, 2011); Michael Roberts (The Long Depression: How it
Happened Why It Happened, And What Happens Next, Haymarkets book, 2016); Stephen
Cullenber, The Falling Rate of Profit: Recasting the Marxian Debate, Pluto Press, 1994).

Ascensão e Crise do Capitalismo Global (1991-2007) 95


exploração da força de trabalho que atuou, ao lado do crescimento do
comércio global, como obstáculo à lei da tendência (e contratendencias)
à queda da taxa de lucros. Entretanto, apesar do crescimento da massa
de mais-valia (s), produzida na era da precarização estrutural do tra-
balho (Mészáros), a relação entre o valor investido (c/v) e a mais-valia
obtida (e), tendeu a ser cada vez menos favorável para o capital pro-
dutivo. A crise crônica de superprodução/subconsumo manifestou no
plano da aparência a manifestação das dificuldades de elevar a taxa de
lucratividade.
No Livro III de “O Capital”, Marx compôs a fórmula para o cálculo
da composição orgânica do capital como sendo c/v. Marx concluiu
que o aumento da composição orgânica do capital (Q) conduz ao
decrescimento, a longo prazo, da taxa média de lucro. Eis a tese clássica
contida como explicação essencial da crise capitalista - embora cada
crise capitalista se manifeste de modo diferenciado devido o movimen-
to da aparência e contingência histórica (a rigor podemos distinguir
aparência e contingência) (Marx, 2017).
Primeiro, Marx observou que a taxa de lucro é calculada como p’ =
s/c+v, onde “s” é a massa de mais-valia, “c” é o capital constante e “v”,
o capital variável. Depois, divide ambos os termos (s/c+v) por v, para
encontrar as funções da taxa de lucro; isto é, ele conclui que p’ (taxa
de lucro) é função direta de e (a taxa de mais-valia) e função inversa de
c/v (composição orgânica do capital); isto é, para um nível determinado
de e, p’ variará em função da evolução de c/v; ou ainda, quanto maior
seja Q, maior será o descenso de p’. Apesar do crescimento da massa de
mais-valia (s) produzida pelo capitalismo, em virtude da precarização
estrutural do trabalho, a relação entre o valor investido (c/v) e a mais-
valia obtida (e) será cada vez menos favorável para o capitalista (a
fórmula da taxa de mais-valia (e) é s/v, onde “s” é a massa de mais-valia
e “v” é o capital variável).
Vejamos a seguinte passagem do Livro III de “O Capital” de Karl
Marx:
“A mesma quantidade de força de trabalho tornada disponível por
um capital variável de volume de valor dado, mobiliza – elabora, con-
some produtivamente –, em consequência dos métodos de produção

96 O Duplo Negativo do Capital


peculiares que se desenvolvem no interior da produção capitalista, uma
massa sempre crescente de meios de trabalho, maquinaria e capital fixo
de todo tipo, matérias‑primas e materiais auxiliares, no mesmo inter-
valo de tempo e, por conseguinte, também um capital constante de
volume de valor sempre crescente. Essa diminuição relativa crescente
do capital variável em relação ao capital constante […] é idêntica ao
aumento progressivo da composição orgânica do capital social em sua
média. E, do mesmo modo, não é mais que outro modo de expressar
o desenvolvimento progressivo da força produtiva social do trabalho”
(Marx, 2017)
Essa é a formulação básica de economia marxista que iremos
apenas relembrar àqueles que dominam a explicação de Marx para a
acumulação capitalista7. A grande contribuição de Karl Marx e Friedri-
ch Engels foi esclarecer os mecanismos (e a natureza) da acumulação
capitalista com seus complexos de contradições no plano da produ-
ção, circulação, distribuição e consumo e no plano da própria repro-
dução da força de trabalho como mercadoria, a única capaz de criar
valor. A explicação de Michael Robert baseia-se na lei do valor em seu
movimento contraditório.
Assim, a “lei” de crescimento da composição orgânica do capital de-
sempenha um papel vital na explicação marxista das crises capitalistas.
O que Marx está dizendo ao formular o aumento da composição orgâni-
ca do capital é que a proporção de trabalho “morto” (capital constante)
para trabalho “vivo” (capital variável) tende historicamente a aumentar
como resultado do desenvolvimento progressivo da produtividade
do trabalhador ou o aumento do capital constante tecnicamente
necessário por hora decorrente do progresso técnico (o que verificamos
historicamente no decorrer do século XX). Marx nos diz que, com

7 Para os iniciantes que tem interesse numa boa leitura comentada de “O Capital” de Karl
Marx, recomendamos os livros publicados pela Boitempo editorial de David Harvey (em-
bora o próprio Harvey não concorde com a eficácia explicativa da lei da queda da taxa
de lucros para as crises capitalistas). Os livros de introdução à obra-prima de Karl Marx
seriam “Os limites do capital” e os livros “Para entender O capital, livro I” e Para entender
“O capital, livros II e III”. A magistral obra inacabada “O capital: crítica da economia polí-
tica”, de Karl Marx tornou-se, mais do que nunca, no século XXI, o ponto de partida para
desvelarmos o sentido do nosso tempo histórico.

Ascensão e Crise do Capitalismo Global (1991-2007) 97


o aumento da composição orgânica do capital, temos a tendência
decrescente da taxa de lucro (a razão íntima do próprio movimento de
acumulação do capital). Eis a explicação clássica das crises capitalistas.
No “Manifesto Comunista”, Karl Marx e Friedrich Engels observa-
ram em 1848, com argúcia crítica, que “A burguesia não pode existir sem
revolucionar incessantemente os instrumentos de produção, por conse-
guinte, as relações de produção e, com isso, todas as relações sociais.”
(São Paulo, Boitempo, 1999) O desenvolvimento progressivo da produ-
tividade social do trabalhador é uma tendência candente inelutável do
desenvolvimento capitalista. O século XX, o século das revoluções tec-
nológicas, demonstrou à exaustão como verdade empírica a constatação
de Marx e Engels. A sacada genial de Marx foi que “essa contínua dimi-
nuição relativa do capital variável vis-à-vis o constante”, o aumento da
composição orgânica do capital, leva, como tendência estrutural, à queda
da taxa média de lucro. Enfim, o século XX demonstrou que, quando o
capitalismo se expande e acumula capital, há uma tendência histórica
para a lucratividade cair. Eis o enunciado fundamental (e fundante) da
lógica da acumulação capitalista em sua íntima natureza contraditória.
Remetemos os leitores à Parte Terceira do Livro 3 de “O capital”,
intitulada “Lei: tendência a cair da taxa de lucro”, onde Marx expõe
seu argumento, sem deixar de tratar também (e isso é muito importan-
te) dos elementos contrários à lei e das contradições da lei tendencial à
queda da taxa de lucros.
Este não é o momento para expor em detalhes como Marx chega
à fórmula da taxa de lucro como sendo uma função entre a taxa de
mais-valia e a composição orgânica do capital + 1 (l = m/(c+v) +1).
Portanto, a taxa de lucro é diretamente proporcional à taxa de mais-
valia e inversamente proporcional a (c+v) + 1 (composição orgânica
do capital mais um). A elevação da composição orgânica do capital faz
declinar a taxa de lucro, a menos que, em contrapartida, a taxa de mais-
valia aumente suficientemente para poder contrabalançar o primeiro
efeito (a determinação da luta de classes entre o capital e o trabalho). Na
verdade, a tendência implica, de modo contraditório, um complexo de
contratendencias que visam restabelecer o nível da lucratividade capaz
de permitir um novo patamar de acumulação de capital.

98 O Duplo Negativo do Capital


Karl Marx em “O capital” referiu-se particularmente aos seguintes
fatores contra-restantes: a elevação da taxa de exploração do trabalho, a
redução do salário abaixo do valor da força de trabalho, isto é, a níveis
insuficientes para garantir a restauração da força de trabalho segundo
os padrões de vida historicamente estabelecidos; a desvalorização da
força de trabalho, o barateamento de elementos do capital constante,
o excedente relativo da população e o comércio exterior. A principal
contratendência utilizada pelos capitalistas, de modo imediato, é o
aumento da taxa de mais-valia ou taxa de exploração por meio, por
exemplo, o aumento da extração da mais-valia relativa.
Portanto, há uma contradição candente no sistema capitalista entre,
elevar a produtividade do trabalho através de mais investimento em tec-
nologia, e a sustentabilidade da lucratividade. Como vimos acima, isto
pode ser ultrapassado por algum tempo, pela intensificação da explora-
ção da força de trabalho, como ocorre hoje no capitalismo global, com a
síntese entre mais-valia absoluta e mais-valia relativa, (a gestão toyotista
acoplada a novas tecnologias organizacionais), a precarização dos
contratos de trabalho e a expansão do comércio mundial (globalização).
Estes são elementos contra-restantes à queda da taxa da lucratividade
que, por exemplo, operaram com vigor nas décadas de 1980 e 1990,
visando reverter a baixa lucratividade que levou a recessão global de
1973-1975.
Entretanto, à medida que se eleva a composição orgânica do capital,
a taxa de lucro se torna progressivamente menos sensível a variações na
taxa de mais-valia. Assim, não apenas uma elevada composição orgâ-
nica do capital origina um possível lucro menor, como, ademais, torna
as variações na taxa de mais-valia menos eficiente como estratégia para
sustentar a taxa de lucro num certo patamar.
Portanto, se houver, de fato, uma elevação secular na composição or-
gânica do capital, então, ainda que a taxa de mais-valia também se eleve,
torna-se cada vez menos provável que isso possa compensar – por si
só – o efeito declinante da elevação da composição orgânica do capital.
É, pois, perfeitamente lógico admitir que as elevações na composição
orgânica do capital devem atuar como um obstáculo significativo ao
processo de valorização do capital (o Gráfico 2 abaixo demonstra a

Ascensão e Crise do Capitalismo Global (1991-2007) 99


tendência histórica de queda da taxa de lucro no core das economias
capitalistas avançadas).

Taxa de Lucro nas Economias Capitalistas Centrais

Fonte: E. Maito Apud ROBERTS, Michael. The Long Depression)

Embora a lucratividade nas economias capitalistas centrais tenha se


recuperado nas décadas de 1980 e 1990 com o surgimento do capitalis-
mo global, a recuperação não atingiu de forma alguma os patamares
dos “trinta anos dourados” do capitalismo (1945-1975) (vide Gráfico 1).
Na verdade, desde o fim da década de 1990, a lei tendencial de queda da
taxa de lucro começou a operar outra vez, criando as condições para a
Grande Recessão de 2008-2009 e a longa depressão do século XXI onde
estamos inseridos.
Na era do capitalismo global, um dos principais movimentos de des-
locamento de contradições – e não movimento contratendencial à crise
estrutural da taxa média de lucro, tem sido a financeirização da riqueza
capitalista, que a partir do big bang financeiro ocorrido na década de
1980, provocou a estupenda expansão dos mecanismos especulativos
responsáveis pela produção de uma forma diferenciada de riqueza
fictícia de natureza especulativa-parasitária, resultante de operações
que se desenvolvem numa dimensão distinta da especulação tradicional
(é o que Carcanholo e Sabadini denominaram de lucros fictícios).
No período de transição histórica para o capitalismo global com o big
bang da desregulamentação financeira, disseminaram-se inovações em
produtos financeiros visando a absorção da massa de capital-dinheiro à

100 O Duplo Negativo do Capital


disposição da valorização do valor (a superprodução do capital-dinhei-
ro). Ao lado da superprodução de capital-dinheiro, operou a tendencia
de subconsumo, tendo em vista a precarização salarial e queda do salá-
rio real dos trabalhadores. Para se contrapor a isso, incrementou-se os
mecanismos de créditos para financiar o consumo das famílias. Portan-
to, a crise crônica de subconsumo reforçada pela precarização estrutu-
ral do trabalho, incrementaram os mecanismos de crédito e valorização
financeira, criando a rentabilidade espúria proveniente do domínio da
especulação parasitária sob o comando do capital financeiro, operando
no plano do mercado global.
A queda de lucratividade por meio do enorme boom de crédito e
inovações financeiras visando especular com o capital fictício e manter
os lucros altíssimos da burguesia rentista-parasitária, ocorreu num ce-
nário de crise estrutural da lucratividade. Não podemos considerar a
financeirização da riqueza captalista um movimento contratendnecial
à crise estrutural de lucratividade. A especulação financeira não cria
valor efetivo e a crise de valorização do capital com a queda da lucrati-
vidade contribuiu para a ocorrência do crash de 2008 nos EUA, disse-
minando-se de imediato pela Europa e Japão.

A particularidade da crise de 2007/2008


Na era de ascensão do capitalismo global (1991-2007), a lenta recu-
peração da lucratividade e a qualidade da recuperação lastreado em lu-
cros fictícios, determinaram o aprofundamento da superprodução da
massa de capital-dinheiro à serviço da valorização fictícia tête-à-tête
a valorização produtiva. Diferentemente de 1929, a “crise financeira”
de 2008 assumiu proporções qualitativamente novas. Ela foi a crise do
capitalismo global, forma histórica no interior da qual se desenvolve o
capitalismo predominantemente financeirizado, manifestação aparente
do deslocamentos de contradições do capital em sua fase de crise estru-
tural. A crise financeira oculta a profunda crise estrutural de lucrativi-
dade do capital, cuja causalidade essencial é o aumento hist´porico da
composição orgânica do capital.

Ascensão e Crise do Capitalismo Global (1991-2007) 101


Mas o “crash” financeiro de 2007/2008 possuiu caracteristicas qua-
litativamente novas, muito diferente daquele de 1929. A desregulamen-
tação financeira fez com que o capitalismo global tivesse um longo his-
tórico de crises financeiras (1987, 1994-1998 e 2001) que não abalaram
a hegemonia do capital especulativo-parasitário, mas, pelo contrário,
contribuíram para o enraizamento do capital financeiro no sistema
institucional-político e ideológico do capitalismo global. Portanto, a
hegemonia do capital financeiro no plano político-institucional e ide-
ológico, consolidou-se com as derrotas sucessivas das forças políticas
do trabalho desde meados da década de 1970 nos países capitalistas
centrais. As políticas neoliberais e a ofensiva do capital na produção
(reestruturação produtiva) debilitaram efetivamente a classe social do
proletariado, impulsionando a precarização estrutural do trabalho
Como se construiu a hegemonia do capital financeiro?
O capital promoveu nas décadas de 1980 e 1990 uma verdadeira re-
volução cultural de cariz neoconservador, elevando à enésima potência
o poder da ideologia, com a disseminação sutil e silenciosa dos valores-
-fetiche, utopias e expectativas de mercado e a celebração do novo (e ad-
mirável) mundo do globalismo. The last but not the least, com a Queda
do Muro de Berlim (1989), Consenso de Washington e a extinção da
URSS (1993), consumou-se, no plano político, o longo “transformismo”
da social-democracia em social-liberalismo, ao mesmo tempo que ocor-
reu o débacle dos partidos comunistas, colocando, deste modo, imen-
sas dificuldades no plano da resistência política e ideológica das forças
sociais do trabalho à ofensiva das forças da globalização neoliberal. As
barreiras políticas e sociais à hegemonia financeira tornaram-se apa-
rentemente limitadas na eficácia de ir além dos parâmetros do capita-
lismo neoliberal como sistema mundial.
A luta de classes como contingencia histórica é um elemento
crucial para explicar a consolidação (e os impasses) da hegemonia da
fração rentista-parasitária do capital em cada unidade intranacional
do mercado mundial. Ao contrário de 1929, o capital financeiro criou
nos “trinta anos perversos” de capitalismo neoliberal (1980-2010) um
sistema político-institucional e ideológico à sua imagem e semelhança,
principalmente por conta da crise do sujeito histórico do proletariado.

102 O Duplo Negativo do Capital


No começo da década de 2000, aprofundou-se na América Latina,
a crise do modelo neoliberal adotado, no caso do Brasil, por exemplo,
no começo da década anterior. A crise do neoliberalismo propiciou na
década de 2000 o surgimento de experiências pós-neoliberais e neo-
desenvolvimentistas na América do Sul (Venezuela, Equador, Bolívia,
Brasil, Uruguai e Argentina). Entretanto, a profunda crise financeira de
2008/2009 no núcleo orgânico do sistema mundial do capital provocou
“fendas” na estrutura hegemônica do capitalismo neoliberal no plano
mundial, obrigando o capital especulativo-parasitário comandado pelo
Império neoliberal (EUA) a recompor-se hegemonicamente.
A dinâmica cumulativa, reativa e reacionária da crise financeira de
2008/2009, descrita acima, expuseram na primeira metade da década de
2010, a voracidade do ajuste neoliberal na União Européia e os limites
das experiências pós-neoliberais e neodesenvolvimentistas na América
do Sul. A nova ofensiva neoliberal que presenciamos na década de 2010
visa repor e afirmar a hegemonia das frações rentistas-parasitárias do
capital no plano mundial e promover um reposicionamento geopolítico
do Império neoliberal diante dos novos pólos de disputa entre modelos
de desenvolvimento do capital no século XXI (China e Rússia).

2009-2018: A longa depressão da economia mundial


O capitalismo global que se expandiu e ascendeu na década de 1990
teve, com a big recession em 2007/2008, uma queda maior e mais pro-
funda em compraação com as crises financeiras ocorridos em 1987 e
1996-2000, que foram debacles financeiros provocados pela instabili-
dade sistêmica do capitalismo predominantemente financeirizado em
ascensão (crises de crescimento do capitalismo global). Entretanto, o
big crash financeiro de 2008 não se tratou apenas de uma mera crise
financeira global ou recessão da economia, como as demais que ocorre-
ram nos “trinta anos perversos” de capitalismo global (1980-2010), mas
o início daquilo que podemos denominar a longa depressão do século
XXI. Ela atingiu, num primeiro momento, os países capitalistas cen-
trais, o núcleo dinâmico e o centro orgânico do capitalismo neoliberal
- o que a distingue do crash financeiro de 1997-1980.

Ascensão e Crise do Capitalismo Global (1991-2007) 103


O economista Michael Roberts (2016), defendeu a tese de que a eco-
nomia capitalista global permanece desde 2008 numa profunda crise
incapaz de recuperar, não apenas as taxas de crescimento dos países
da OCDE anteriores à recessão global de 1973-1975, mas, inclusive, as
taxas de crescimento das economias capitalistas centrais anteriores à
Grande Recessão de 2008. A profunda recessão da economia brasileira
(2015-2017) foi parte do cenário da longa depressão do capitalismo glo-
bal no século XXI.
Uma depressão na economia capitalista global não significa que ela
não cresça, mas sim, que as taxas de recuperação da atividade são tão
frágeis, comparadas com aquelas do período anterior à Grande Reces-
são, que as economias podem desacelerar e voltar a cair numa recessão.
É o que tem se verificado desde 2008 nas economias do capitalismo
central. Podemos, por exemplo, dizer de modo esquemático que uma
recessão e a retomada do crescimento assumem a forma da letra V,
como ocorreu, por exemplo, na recessão global de 1974-1975 nos países
da OCDE; ou talvez a forma da letra U; ou ainda a letra W no sentido
de termos um “duplo mergulho” na recessão, como ocorreu na recessão
de 1980-1982.
Entretanto, uma depressão não pode ser comparada a uma recessão
clássica, no sentido de que a profunda queda do crescimento da
economia, que ocorre numa depressão, como ocorreu com o big crash
de 2008 nos países capitalistas centrais, não assume a forma da letra
V, isto é, uma queda e logo depois uma retomada no mesmo patamar
de crescimento anterior. Pelo contrário, após a Grande Recessão, como
ocorreu em 2008, pode-se verificar retomadas e crescimento frágeis das
economias capitalistas.
Nos últimos oito anos, após o big crash de 2008, o crescimento das
economias capitalistas centrais não foi restaurada ao mesmo patamar
anterior, mas se mantém rebaixado, ou na melhor das hipóteses, insus-
tentável, se compararmos com as taxas de crescimento anteriores (os
EUA estão a sair-se ligeiramente melhor do que União Europeia e Ja-
pão, crescendo, de 2009-2014, cerca de 2%, quando costumava ser na
média de 3,5% e por vez mais, na era dourada do capitalismo fordista-
-keynesiano). Conforme o Gráfico 1, verificamos que a partir de 2014

104 O Duplo Negativo do Capital


percebe-se uma ligeira inflexão na curva de crescimento, demonstrando
a fragilidade da retomada da economia norte-americana após a Grande
Recessão de 2008.

Crescimento do PIB dos EUA (2014-2017)

(Fonte: http://pt.tradingeconomics.com/united-states/gdp-growth. Acesso em:


20/01/2017)

Um importante detalhe: mesmo as taxas de crescimento das econo-


mias capitalistas centrais durante a era neoliberal (de 1982 a 2007), não
tiveram o mesmo patamar de crescimento ocorrido, por exemplo, na
era dourada do capitalismo fordista-keynesiano (1945-1975). Enfim, a
era neoliberal continha em si, as causalidades complexas da longa de-
pressão do século XXI.
O capitalismo industrial teve historicamente 3 longas depressões: a
longa depressão de fins do século XIX (1873-1898), a longa depressão
da metade do século XX (1929-1940) e a longa depressão do século XXI
(2008-?). Cada crise capitalista e suas longas depressões possuem um
complexo histórico de causalidades particulares que não discutiremos
aqui. Entretanto, como demonstrou Michael Roberts, todas possuem
como causa essencial a queda da taxa de lucro provocada pelo aumen-
to da composição orgânica do capital. Esta é a tendência histórica do
capitalismo como demonstrou Karl Marx no Livro III de “O capital”.
Esta é a chave heurística capaz de explicar o desenvolvimento e as crises
do capitalismo industrial.

Ascensão e Crise do Capitalismo Global (1991-2007) 105


Em seu livro, Michael Roberts nos fornece uma série de argumentos
histórico-empíricos para demonstrar a validade da explicação marxista
clássica para as crises capitalistas baseada na queda da taxa de lucro,
apesar das controvérsias candentes entre os próprios marxistas sobre
uma teoria das crises em Marx. .
Desde a Grande Recessão de 2008-2009 nos países capitalis-
tas centrais (EUA, União Européia e Japão), recessão superior àquela
ocorrida de 1973-1975, tem havida – sem sucesso – a mobilização de
contratendências do capital para resgatar o patamar de lucratividade.
Enquanto o capital não restabelecer um novo patamar de lucratividade,
persistirão os ciclos de recessão e crescimento frágil e insustentável, apre-
sentando taxas inferiores àquelas que existiam antes da Grande Recessão
que deu origem à longa depressão. Aliás, desde a recessão global de 1973-
1975, a taxa de lucratividade nos países capitalistas centrais tem caído,
apesar da recuperação relativa da lucratividade ocorrida de 1982-1997,
por conta da mobilização de contratendências como salientamos acima,
com destaque para a reestruturação produtiva, precarização estrutural
do trabalho e globalização.
A ofensiva neoliberal e a mundialização do capital, com a desloca-
lização produtiva para países de baixos salários e a mundialização fi-
nanceira, aceleraram de forma extrema, a precarização do trabalho nos
países do capitalismo central. Foi a degradação das condições salariais
(a flexibilização laboral) e o aumento do desemprego em massa, que
resgatou a taxa de lucratividade, depois da recessão global de 1973-1975.
Entretanto, mesmo na recuperação de 1982-1997, a taxa da lucrativida-
de ficou abaixo daquela da era dourado do capitalismo fordista-keyne-
siano. De acordo com Andrew Kliman (2012), as economias capitalis-
tas centrais nunca se recuperaram efetivamente da recessão global de
1973-1975, pois não ocorreu, naquele momento, a “destruição de valor
de capital”, como deveria ter ocorrido, caso as economias capitalistas
quisessem criar as bases efetivas para um novo patamar de lucrativida-
de (como diria David Harvey no livro “Os limites do capital”, uma vez
realizada a necessária desvalorização, a superacumulação é eliminada e
a acumulação pode renovar o seu curso, com frequência em uma nova
base social e tecnológica). Portanto, após a recessão global de 1973-1975

106 O Duplo Negativo do Capital


não ocorreu a necessária destruição de capital que propiciasse a seguir,
uma nova acumulação de capital e um novo patamar de lucratividade
(no começo da década de 1980 (Ernest Mandel tinha observado isso
com respeito à recessão global de 1973-1975) . Portanto, para Kliman, o
big crash de 2008 é o desdobramento do novo capitalismo que começa
o seu movimento concreto problemático em meados da década de 1970.
É a criação de lucro que torna possível o investimento produtivo. Por
isso, mesmo com a recuperação nas décadas de 1980 e 1990 da taxa de
lucratividade, num patamar inferior àquele do pós-guerra, percebeu-se
nas primeiras décadas do capitalismo global (1982-1997), um declínio
na taxa de acumulação de capital (investimento produtivo) e por conse-
guinte, queda do emprego e renda do trabalho, aumento da especulação
financeira, aumento inédito da desigualdade social e crescente endivi-
damento das famílias e empresas.

Taxa de Lucro nos EUA

(Fonte: BEA, Apud ROBERTS, Michael. The Long Depression.)

O gráfico acima demonstra a hipótese de Andrew Kliman: após


a crise de lucratividade ocorrida na recessão global de 1973-1975, o
capitalismo nos EUA, a economia mais dinâmica do sistema mundial
do capital, não conseguiu recuperar a mesma taxa de lucratividade da
era dourada do capitalismo fordista-keynesiano do pós-guerra (Golden
age-high), apesar da retomada neoliberal (neo-liberal recovery) ocorrida

Ascensão e Crise do Capitalismo Global (1991-2007) 107


de 1982-1997. A partir de 2006, a taxa de lucratividade voltou a cair,
prenunciado a Grande Recessão de 2008.
Portanto, entendemos a Grande Recessão de 2008 e a longa depres-
são do século XXI que se seguiu a ela, como sendo o resultado do desen-
volvimento das contradições orgânicas no core do capitalismo global.

Perspectivas (da crise) do capitalismo global


As contratendencias à crise do capitalismo fordismo-keynesianismo
em meados da década de 1970, como a mundialização do capital (pro-
dutiva e financeira) e o constituição do capitalismo global, caracteriza-
dos pelas politicas neoliberais e a precarização estrutural do trabalho
num cenário de elevação histórica da composição orgânica do capital,
propiciaram as condições do boom de capital fictício da década de 2000
(a retomada da economia dos EUA após a crise de 2001, produziu uma
bolha especulativa que, com a queda da taxa de lucros em 2006, levou ao
big crash de 2008). Na verdade, a retomada neoliberal da lucratividade,
iniciada no começo da década de 1980, demonstrou folego curto, com
a queda da taxa de lucratividade nos EUA em 1997. Na verdade, a crise
recessiva de 2000 – que deu oportunidade histórica para os atentados
terroristas de 11 de setembro de 2001 nos EUA - antecipou o desastre
que seria muito maior, oito anos depois.
Nas experiências históricas anteriores de longas depressões, o capi-
talismo só conseguiu superar a inércia rebaixada da lucratividade, com
uma ampla desvalorização de capital e novas bases sociais e tecnológi-
cas propiciadas pelas revoluções industriais; um novo surto de expan-
são capitalista (imperialismo) e guerras mundiais. Por exemplo, a longa
depressão de fins do século XIX deu origem à Segunda Revolução In-
dustrial e ao imperialismo – que levaria o mundo para a Primeira Guer-
ra Mundial. A longa depressão de 1929 conseguiu ser superada apenas
com a Segunda Guerra Mundial e a expansão americanista no pós-
-guerra, constituindo o capitalismo fordista-keynesiano. Perguntemos:
o que irá contribuir para a saída da longa depressão do século XXI?
Como cada crise capitalista é única por conta do mvimento da con-
tingência histórica – embora tenha processualidades essenciais e modos

108 O Duplo Negativo do Capital


de aparecer que são imanentes a cada uma delas. O que podemos é es-
pecular sobre as tendências de desenvolvimento histórico que apontem
para possibilidades de constituição do novo mundo do capital no século
XXI (a era da barbárie social).
Caso não ocorra a revolução social mundial capaz de superar o capi-
talismo como modo de produção e sistema sociometabolico de reprodu-
ção humana (o que é deveras improvável), devem operar efetivamente
no século XXI – e isso ocorre desde 2007/2008, pelo menos - as contra-
tendencias à queda da lucratividade e os movumentos de deslocamentos
de contradições do capital visando superar a longa depressão do século
XXI, projetando o capitalismo global para um novo patamar histórico
de contradições sociais (politicas e geopolíticas). A terceira longa de-
pressão da economia mundial deve nos projetar no decorrer do século
XXI, para uma nova dinâmica global do capital. Mas estamos no reino
da contingência histórica. A tarefa do cientista social é dar sentido à
cena histórica. Podemos especular – no bom sentido dialético – e apre-
sentar hipóteses que clarifiquem o processo de desenvolvimento histó-
rico no qual estamos inseridos.
Talvez a década de 2020 represente a transição histórica para o novo
(e senilizado) capitalismo global que elevará, numa escala inédita, as
contradições oriundos da crise estrutural do capital. Após trinta anos
de desenvolvimento e crise do capitalismo global, a big recession de
2007/2008 pode representar o mesmo que a recessão global de 1973-
1975, com a década de 2020 representando no plano da longo durée do
capitalismo tardio, o que representou a década de 1980. Entretanto,
nada pode garantir que assim ocorra. Trata-se apenas de hipóteses, pois
os “acidentes” desempenham um papel importante no curso do desen-
volvimento histórico do capitalismo.
Depois de “trinta anos” de desenvolvimento e crise do capitalismo
global (1990-2020) podemos apreender hoje, devido o adequado distan-
ciamento histórico, os traços estruturais significativos do novo capita-
lismo do século XXI, o dito “tempos hipermodernos”. Trata-se do novo
capitalismo senil que deixa muito distante o capitalismo fordista-key-
nesiano do pós-guerra, o capitaismo do Estado de Bem-Estar Social.
Ao invés de ficarmos aprisionados na tradição das gerações mortas,

Ascensão e Crise do Capitalismo Global (1991-2007) 109


devemos vislumbrar as novas condições da luta de classes no novo
patamar da crise estrutural do capital postas pelo novo capitalismo
senil e pelo movimento do sistema do capital que deve surgir da crise
do capitalismo global no século XXI.
O periodo de ascensão e crise do capitalismo global (os “trinta anos
perversos”) foram tempos de mudança históricas drásticas só compará-
veis àquelas ocorridas com a Primeira Revolução Industrial na virada
do século XVIII para o século XIX na Europa Ocidental. Tivemos
transformações estruturais que ainda prosseguem na economia global,
provocando mudanas diruptivas na base tecnológica de produção da
vida social, na estrutura de dominação política e morfologia social do
mundo do trabalho e na sua representação sindical e social de classe, na
cultura e sociabilidade burguesa e na psicologia das massas e formas de
estranhamento social
O movimento histórico de mudanças sociais, culturais e politicas
operadas pelas revoluções tecnológicas do capitalismo global, com des-
taque a revolução informacional e das redes sociais, a robotização, a bio-
tecnologia e nanotecnologia e a inteligencia artificial provocam numa
escala inédita historicamente, a aceleração social no seio da conforma-
ção do novo e precário mundo do trabalho. Preve-se o impulsionamen-
to numa escala inaudita do movimento de tendencia/contratendencia à
crise estrutural da lucratividade e o movimento complexo de desloca-
mento das contradições do capital. O duplo negativo do capital – a crise
estrutural da lucratividade e o fenomeno da dsmedida do valor - devem
ser a base material para o desenvolcimento da nova crise do capitalismo
e da crise estrutural do capital.
A crise do capitalismo global deve operar um movimento de “fuga
para frente” do capital. A lógica do valor se expande ao operar a integra-
ção (e interdependência) da economia global num movimento contra-
tendencial sincronizado à queda da lucratividade global (o que indica a
necessidade da integração do comércio mundial e reformas trabalhistas
em cada país capitalista, corroendo diretos trabalhistas e equalizando
para baixo, a taxa diferencial de exploração da força de trabalho). Ao
mesmo tempo, no plano da circulação e consumo, exacerba a obsoles-
cência planejada de mercadorias (aquilo que Mészáros denominou de

110 O Duplo Negativo do Capital


queda da taxa de utilização do valor de uso) e impulsiona a catastrofe
do ecossistema humano e natural. Mas ao se expandir, o moviment do
valor e sua ultima fase (como desmedida), corroi os próprios fundamen-
tos de valorização real.
Do ponto de vista do metabolismo social, desenvolve-se de modo
ampliado, como fenômeno histórico ampliado, a barbárie social decor-
rentes do aprofundamento do “estranhamento” no sentido lukácsiano
do termo. A inundação do metabolismo social pelas formas derivadas
de valor – formas ideológicas do capital – indica a crise da forma cons-
titutiva do valor. No plano político, esgota-se a democracia política re-
presentativa, originando em escala ampliada, a agudização de conflitos
sociais entre esfera pública sitiada e os interesses privados da oligarquia
financeira – interna e externa.
No plano geopolítico, a decadência histórica do capitalismo neolibe-
ral, que percorrerá provavelmente o século XXI, e o surgimento da nova
forma histórica do capital na Ásia, com destaque para a China, indica
possibilidades de desenvolvimento contraditório do fetiche do valor na
sua forma pós-capitalista como Estado político do capital.

Ascensão e Crise do Capitalismo Global (1991-2007) 111


Capítulo 4

A Crise Estrutur al do C apital


A Contribuiç ão de Ist ván Mész áros

Vamos apresentar uma elaboração da compreensão de “crise estru-


tural do capital” em István Mészáros, salientando sua particularidade
heurística com respeito a outras abordagens marxistas que visam ex-
plicar a nova crise do capitalismo tardio. A teoria da crise em Meszáros
não se restringe a explicar a crise do tempo histórico da modernidade
a partir de uma série de causalidades vinculadas à crise do modo de
produção capitalista tais como como a superprodução, o subconsumo,
a desproporção intersetorial, ou ainda a queda da taxa de lucro – nem
pela soma de todas essas chamadas “causas”.
Na verdade, Mészáros não desprezou as causalidades estruturais das
crises do capitalismo. Ao invés disso, procurou apreende-las a partir
da crise estrutural do modo de controle sociometabólico, o que o levou
a ressaltar, por exemplo, a distinção de entre capital e capitalismo. Por
isso, a crise do capitalismo global representa não apenas uma crise de
superprodução ou crise de subsumo, ou ainda crise estrutural de lucra-
tividade, como os economistas marxistas procuram caracterizar exaus-
tivamente. Meszáros salienta uma outra crise mais profunda do nosso
tempo histórico: a crise das mediações de segunda ordem ou a crise es-
trutural do capital.
A partir da distinção entre mediações de primeira ordem e segunda
ordem, Mészáros construiu um conceito de capital como sistema de con-
trole sociometabólico que se distingue do conceito de capitalismo como
modo de produção. Para ele, a crise estrutural do sistema do capital
não se restringe a ser uma crise estrutural do capitalismo regido por
contradições do modo capitalista de produção de mercadorias. Trata-se

A Crise Estrutural do Capital 113


de uma nova abordagem do desafio e fardo do tempo histórico – como
disse ele no título de um dos seus livros, publicado em 2007.
A “crise estrutural do capital” em Mészáros implica um novo modo
de interpretar a crise do processo civilizatório para além de “O Capi-
tal: Crítica da Economia Política” de Karl Marx. O sentido dialético do
“para além” implica considera-lo como resultado de um movimento crí-
tico que apreende a natureza do capital a partir de sua forma histórica
mais desenvolvida: a produção capitalista. O “acoplamento estrutural”
entre capitalismo e capital exigiu que aquilo que Meszáros se propôs a
fazer (uma ontologia social dialética de fundamentação objetiva sobre
o capital) partisse efetivamente da crítica da produção capitalista como
modo histórico de produção do capital mais desenvolvido.
István Mészáros construiu seu arcabouço teórico a partir do Marx
dos “Manuscritos Econômico-filosóficos”, “Ideologia Alemã”, Grund-
risse e o Livro 1 de “O Capital”. Entretanto, o filosofo húngaro conside-
rou problemático o Livro 2 (e inclusive o Livro 3) de “O Capital”, volu-
mes organizados por Friedrich Engels a partir dos manuscritos do velho
Marx. Ele salientou sua insatisfação pela solução marxiana do problema
dos esquemas de reprodução (e circulação social) do capital e ressaltou
que Marx desprezou o problema do consumo de massa, considerado
por ele a problemática crucial da reprodução ampliada do capital (o
que levou alguns comentadores de Mészáros a considerar que ele se
aproximou da tese do subconsumo de Rosa Luxemburgo sobre a crise e
suas críticas sobre o esquema de reprodução do capital em Marx).
Entretanto, a discussão relevante não é se Mészáros tornou-se adepto
(ou não) da teoria do subconsumo. De certo modo, ele se apropriou
de elementos da teoria do subconsumo ao salientar, por exemplo, a
importância do consumo ampliado como “válvula de escape”; ou ainda,
tratar com destaque, dos “mecanismos de deslocamento de contradi-
ções” como fundamentais para a dinâmica auto-expansiva do capital.
Entretanto, o importante é que o filosofo húngaro situou os elemen-
tos da crise da produção capitalista na perspectiva ontológica da “crise
do capital”, conseguindo, de certo modo, ir além da teoria da “crise do
capitalismo” desenvolvida pelo marxismo no século XX (por isso a im-
portância da sua distinção entre “capital” e “capitalismo”).

114 O Duplo Negativo do Capital


Mészáros posicionou-se numa perspectiva histórica-ontológica que
está na raiz do próprio pensamento marxiano. O filósofo hungaro pro-
curou desvendar os elementos (e mecanismos) da natureza auto-expan-
siva (e incontrolável) do capital como sistema estranhado de controle
do metabolismo social baseada na produção (e consumo) destrutivo no
plano do mercado mundial. Para isso são importantes para Mészáros,
por exemplo, os conceitos de taxa de utilização decrescente e preca-
rização estrutural do trabalho (como expressão da taxa de utilização
decrescente do próprio trabalho vivo).
Mészáros deu importância ao desvendamento das válvulas de es-
capes que o capital utiliza em seu processo incontrolável. Desde o seu
início histórico, o capital enfrenta a ameaça de ativação de seus limites
estruturais (o que explica a sua incontrolabilidade vinculada a sua ex-
pansividade visceral). A expansão e a multiplicação de seu poder em
escala global é sintoma supremo da suas válvula de escape. Do capita-
lismo concorrencial, característica do capital, por exemplo, no Segundo
Império na França (1852-1870), para o capitalismo monopolista, carac-
terizado por um sistema de imperialismos, o moderno capital deu início
a uma nova fase no mercado mundial. Em sua análise, Mészáros não
desprezou a “colonização externa” com o seu modo de funcionamento
nas colónias e nos territórios neocoloniais “independentes” (as articu-
lações internacionais do capital e o imperialismo propriamente dito),
mas ressaltou a intensificação incansável do domínio interno do capital
– a “colonização interna”. Assim, ao invés de perscrutar o imperialismo
como “mercado externo” para o capital, Mészáros se deteve em analisar
a importância da “colonização interna” com o crescimento do consumo
nas áreas metropolitanas. Disse ele:
“E, com relação ao seu desenvolvimento interno, a nova fase trouxe
com ela o que pode ser chamada uma ‘colonização interna’ de seu pró-
prio mundo ‘metropolitano’, por meio da extensão e da intensificação da
‘dupla exploração’ dos trabalhadores: como produtores e como consu-
midores. Em contraste com o seu modo de funcionamento nas colônias
e nos territórios neocoloniais ‘independentes’, nas áreas “metropoli-
tanas o crescimento do consumo - a serviço da auto-reprodução am-
pliada do capital adquiriu um significado cada vez maior. Desse modo,

A Contribuição de István Mészáros 115


no plano interno, a nova fase foi marcada por uma transição radical
de um consumo limitado para um ‘consumo maciçamente ampliado
e administrado’, com implicações de largo alcance e consequências
dolorosamente reais para o desenvolvimento do movimento da classe
trabalhadora.” (Mészáros, 2002)
A extensão e a intensificação da “dupla exploração” dos trabalha-
dores como produtores e como consumidores contribuiu para o apro-
fundamento da reificação (Lukács) e do fetichismo da mercadoria no
mundo do capital. Não interessava a Mészáros discutir os limites do
processo de acumulação do capital, que na perspectiva da teoria do
subconsumo, decorriam da insuficiência de demanda efetiva no capi-
talismo central (o que colocava a necessidade do imperialismo como
“mercado externo” para os capitalistas), mas sim tratar dos impactos
sociometabólicos – principalmente no desenvolvimento da classe tra-
balhadora - do crescimento do consumo nas “áreas metropolitanas”
caracterizadas por um “consumo maciçamente ampliado e administra-
do”. Assim, Mészáros resgatou as raízes do que o último Lukács deno-
minou “capitalismo manipulatório”8.

8 Martin Nicolaus, o tradutor da Primeira Edição dos “Grundrisse”, de Karl Marx, pu-
blicado nos EUA em 1973, no ensaio “Proletariado y Clase Media en Marx: Coreografia
hegeliana y dialectica capitalista”” expos a “revolução teórica” da descoberta marxiana do
conceito de mais-valia relativa, capaz de explicar como o capitalismo desenvolvido seria
capaz de manter (e incrementar) a acumulação de capital, mesmo elevando o salário real
da classe trabalhadora – isto é, a capacidade de consumo das massas trabalhadoras,. apri-
sionando-as, deste modo, com “grilhões dourados” ao fetichismo da mercadoria. Marx
rompe com a teoria de pauperização absoluta do rpoletariado. Nos Grundrisse, Marx
nega a pauperização absoluta do proletariado quando afirma que “A ordem capitalista
não estará madura para a revolução até que a classe trabalhadora não tenha conseguido
aumentar seu nível de consumo acima do nível de mera subsistência física e incluir o des-
frute do trabalho excedente como uma necessidade geral”; ou ainda, quando na “Teoria da
Mais-Valia” ele diz, na frente de Malthus que “É uma ideia ridícula que o excedente tem
que ser consumido apenas pelos empregados e não pode ser consumido pelos próprios
trabalhadores produtivos”. A nova teoria dos salários em Marx faz com que ele reconheça
o valor e limites do sindicalismo (Alves, 2003), acreditando que os sindicatos ou organiza-
ções de trabalhadores tinham a capacidade de se opor à “lei do bronze”, mas estava ciente
de sua limitação em face dos meios de capital (maquinário, crise, desemprego, exército
de reserva). Os sindicatos podem servir como um freio ocasional e temporário, mas não
um impedimento real, porque, afinal de contas, a pauperização relativa prosseguia, o que
signifucava que o rpoletariado não deveria se esforçar muito ou dar demasiada impor-

116 O Duplo Negativo do Capital


Iremos adotar nesse capítulo uma abordagem do desafio e o fardo
do tempo histórico (título do último grande livro de István Mészáros)
que articula organicamente, por um lado, a crise estrutural do sistema do
capital, crise de civilização ou crise das “mediações de segunda ordem”;
com a crise do modo de produção capitalista nas condições históricas do
capitalismo global.
A partir do século XVI, com a moderna vida do capital, ocorreu o
acoplamento estrutural do capital com o modo de produção capitalista
– apesar da “distinção” ontológica entre capital e capitalismo feita por
Mészáros. Na medida em que o capital se tornou sistema mundial, ex-
pandiu-se o modo de produção capitalista, constituindo a civilização do
capital (ou “ocidentalização” do mundo). Com o capitalismo industrial,
a constituição do mercado mundial e a ampliação global da produção
capitalista de mercadorias, passaram a ocorrer crises cíclicas do capita-
lismo, expondo os limites estruturais da acumulação do capital como
“sujeito automático” de valorização. No interior do desenvolvimento do
modo global de produção capitalista, com o acumulo de suas contra-
dições sociometabólicas, surgiu o que Mészáros salienta como sendo a
“crise estrutural do capital” ou crise das mediações de segunda ordem.

O começo da nova fase histórica


No início da década de 1970, István Mészáros observou que havia
uma “crise estrutural geral das instituições capitalistas” (Mészáros,
1970) ou “crise estrutural global do capitalismo atual” (Mészáros, 1971).

tância às escaramuças e confrontos sindicais. Marx acreditou, assim, num progressivo


declínio e proletarização da pequena burguesia de produção, sem prever outra evolução
do mesmo na indústria e na burocracia industrial (gerentes, empregados, técnicos e ad-
ministradores). Ele tratou da “aristocracia operária”, mas não previu a gentrificação de
amplas camadas da classe trabalhadora. Como observou Nicolaus, na “História Crítica
da Teoria da Mais-valia”, Marx admite o crescimento da classe média, entretanto aponta a
artificialidade do fenômeno social, posto que ela se sustenta com rendas que pesam sobre
a classe trabalhadora. Segundo ele, a “classe média” não contribuem para a produção, ape-
nas absorvem mais-valia. É por isso que – como veremos – István Mészáros critica Marx
quando salienta seu desprezo pelas possibilidades de ampliação da esfera de consumo no
capitalismo desenvolvido por meio da ampliação das “camadas médias” do proletariado
(gerentes, empregados, técnicos e administradores imbuidos do ethos do consumismo).

A Contribuição de István Mészáros 117


Naquela época ele conseguiu apreender que o sistema mundial do capital
estava operando um novo movimento histórico que explicitaria seus
limites estruturais e a natureza essencial do capital como metabolismo
social estranhado do processo civilizatório.
No final da década de 1960, vislumbravam-se os primeiros indica-
dores de crise da economia capitalista no “núcleo dinâmico” do capi-
talismo mundial. Na verdade, desde 1965, o “capitalismo organizado”
começou a ser abalado por vulnerabilidades internas decorrentes das
contradições do modo de desenvolvimento e expansão do capitalismo
do pós-1945. Diferentemente daqueles que proclamavam que o
“capitalismo organizado” tinha conseguido superar as crises e integrar
a classe operária (na época, por exemplo, ele criticou Herbert Marcu-
se e Lucien Goldman que salientavam a “integração” do proletariado
na sociedade industrial), Mészáros salientou que, pelo contrário, o
capitalismo conhecia uma “nova tempestade”, só que as crises diferen-
temente de 1929, seria caracterizada por um longo depresso.
Por isso, naquele começo da década de 1970, Mészáros começou a
apreender os primeiros sintomas da crise estrutural no plano das gran-
des confrontações sociais. A “estagflação” da economia dos países ca-
pitalistas centrais, o aumento da taxa de desemprego combinado com
inflação (aumento contínuo de preços), provocavam profunda inquieta-
ção social. As perspectivas de Mészáros, expressas no ensaio intitulado
“A necessidade do controle social” (de 1971), foram bastante contun-
dentes (os leitores de Mészáros deixam de lado, muitas vezes, a datação
dos escritos do filósofo hungaro, como se isso não fosse importante na
leitura de teóricos sociais).
Mais tarde, em 1983, no artigo “Política radical e transição para o
socialismo: Reflexão sobre o Centenário de Marx” (depois incluído na
Parte 4, Capítulo 4 de “Beyond Capital”, em 1995), Mészáros salientou
que, “ [...]ainda que não se possa localizar o começo da nova fase
histórica da necessária ofensiva socialista em torno de alguma data ou
evento preciso, podemos, no entanto, identificar três grandes confronta-
ções sociais, que dramaticamente assinalaram a irrupção da crise estru-
tural do capital em torno dos fins dos anos sessenta” (Mészáros, 1990) [o
grifo é nosso]

118 O Duplo Negativo do Capital


Podemos dizer que István Mészáros não vinculou diretamente a ir-
rupção da crise estrutural do capital com a recessão global (1973-1975),
mas sim às “grandes confrontações sociais” em torno dos fins dos anos
sessenta. Elas sim, representavam a expressão das contradições estrutu-
rais do sistema do capital.
Portanto, a análise de Mészáros da “crise estrutural do capital” par-
tia da exposição das contradições históricas de classe, descritivas na
imanência contraditória das categorias a partir do qual se expõe o con-
ceito de crise. A compreensão da crise estrutural do capital, ao invés de
vincular-se a explicações causais, decorria da compreensão do próprio
conceito de capital e da luta de classes que está implícita em tal conceito
(por isso, a relevancia da distinção entre capital e capitalismo, capaz de
salientar heuristicamente o conceito de capital e sua crise estrutural).

A crise estrutural do capital em Mészáros


Na exposição de István Mészáros sobre o começo da nova fase
histórica de crise estrutural do sistema do capital (e a necessária
ofensiva socialista), não existe um tratamento analítico, ou mesmo re-
ferências diretas, às causalidades estruturais da crise capitalista que, em
1973, transformou-se na primeira recessão global do capitalismo do
pós-guerra (numa nota de rodapé do ensaio “A necessidade do controle
social”, de 1971, numa polêmica com W.W. Rostow, Mészáros faz breve
referência à “taxa decrescente de lucro a longo prazo”).
A abordagem da crise do capital em Mészáros, era diferente da
abordagem de Marx - embora mantendo um nexo essencial com
esta (Bevilaqua, 2011). Assim, apesar de estar próximo das teses de
subconsumo, com base no debate da reprodução a partir de Rosdolsky
com Rosa Luxemburg, Mészáros pareceu evitar os termos da ideia da
teoria da crise causal do capital, aproximando-se da hipótese de teoria
conceitual (Antunes e Benoit, 2009), que afirma que as crises do capi-
talismo não são impulsionadas por nenhuma causa especial – como a
renovação periódica do capital fixo, a superprodução, o subconsumo, a
desproporção intersetorial, ou ainda a queda da taxa de lucro – nem pela
soma de todas essas chamadas “causas”. A crises em Marx, de acordo

A Contribuição de István Mészáros 119


com a hipótese de teoria conceitual da crise do capital, são impulsiona-
das pelo próprio movimento dialético da acumulação capitalista, isto é,
pelas contradições históricas de classe.
Nessa perspectiva, a compreensão das crises é inseparável da
compreensão do conceito de capital e da luta de classes que está implíci-
ta em tal conceito (Antunes e Benoit, 2009). Entretanto, diríamos me-
lhor, em Mészáros não se tratou de mera hipótese de teoria conceitual
do capital, mas sim, de uma perspectiva sócio-ontológica oriunda da
centralidade heuristica da teoria do estranhamento de Marx9. Por isso,
Mészáros toma como principais referências históricas do começo da
crise estrutural do capital em fins dos anos sessenta do século XX, as
três grandes confrontações sociais naquilo que elas expressam de contra-
dições históricas da classe, que expõem os limites estruturais do capital
como sistema de metabolismo social.
Como salientou, com perspicácia, Bevilaqua, a análise de Mészáros
sobre a crise do capital apoiou-se mais nos “Grundrísse” e menos em “O
Capital”. Para o filósofo hungaro, Marx foi incapaz de levar “O Capital”
a uma conclusão satisfatória, “apesar de todos os anos de heroicos es-
forços despendidos”. Para Mészáros, a “pedra no sapato” do velho Marx
foi o sentimento de desconforto com o tratamento dado ao problema da
reprodução e circulação do capital social (a Seção 3 do Volume 2 de “O
Capital”).
De acordo com Mészáros (citando o próprio Friedrich Engels no
“Prefácio” do Volume 2 de “O Capital”), Marx parecia bastante insa-
tisfeito com o manuscrito da Seção 3, observando que ele “necessitava
de uma profunda revisão” (Mészáros, 2011). Por isso, a insatisfação de
Mészáros com a conclusão dada por Marx (e Engels) à teoria da crise do
capitalismo nos volumes 2 e 3 de “O Capital”, fizeram com que o filosofo

9 No livro “A condição de proletariedade” (Alves, 2008), eu expus uma disjunção mera-


mente heurística da teoria marxiana entre teoria da exploração e teoria do estranhamento.
Enquanto a teoria da exploração explica a dinâmica de acumulação da riqueza capitalista
pelo desvelamento dos mecanismos do modo de produção, a teoria do estranhamento
aborda o metabolismo social instaurado com a vigência da propriedade privada e divisão
hierárquica do trabalho (as “mediações de segunda ordem”, diria Mészáros), constituindo
a condição existencial de proletariedade e a formação (necessária e contingente) da classe
social do proletariado.

120 O Duplo Negativo do Capital


hungaro sustentase a hipótese de uma teoria conceitual da crise do ca-
pital, fundada na contradição da gênese histórica de separação entre a
parte orgânica e inorgánica, que compõe as relações metabólicas entre
os indivíduos sociais e a natureza pela “mediação de segunda ordem”
do sistema do capital, bem como dos indivíduos sociais em si mesmos,
expressa na relação capital-trabalho assalariado (ou trabalho objetiva-
do e trabalho vivo, ou ainda, trabalho excedente e trabalho necessário)
(Bevilaqua, 2011). Entretanto, Mészáros não chegou, por exemplo, ao
extremo de Simon Clark (2008) de afirmar que Marx não tinha uma te-
oria da crise. Existia em Mészáros, a noção do ciclo económico (por isso
a distinção entre crises cíclicas e crise estrutural). No entanto, Mészáros
considerou como problemática em Marx, a teorização sobre o consumo
e o problema da reprodução social (o que fez aproximar-se, de certo
modo, dos teóricos marxistas norte-americanos Baran e Sweezy – o que
trataremos mais adiante).

A crise estrutural do capital e as grandes confrontações sociais


A recessão global da economia capitalista no período de 1973-1975,
teve como “gatilho” a crise do petróleo em 1973. David Harvey disse
que, “de modo mais geral, o período de 1965 a 1973 tornou-se cada vez
mais evidente a incapacidade do fordismo e do keynesianismo de conter
as contradições inerentes ao capitalismo” (Harvey, 1992). Em protes-
to pelo apoio prestado pelos Estados Unidos a Israel durante a Guerra
do Yom Kippur, os países árabes organizados na OPEP aumentaram
o preço do petróleo em mais de 400%. Em março de 1974, os preços
nominais tinham subido de 3 para 12 dólares por barril (a preços atuais,
de 14 a 58). O aumento drástico dos preços do petróleo fez desabar a
taxa de lucratividade que, desde meados da década de 1960, estava em
declínio. Em torno dos fins dos anos sessenta, as economias capitalistas
centrais, com destaque para os EUA, estavam num torpor da estagflação
(estagnação da produção de bens e alta inflação de preços), acirrando
naquela época, a luta de classes nos países de maior organização sindical
e política do proletariado.

A Contribuição de István Mészáros 121


Entretanto, ao invés de ressaltar as contradições da economia capi-
talista no pós-guerra e discutir a “grande crise” de 1973-1975 a partir da
queda da taxa média de lucro, que se verificava desde a última metade
da década de 1960, István Mészáros salientou, como manifestações cru-
ciais da crise estrutural do capital, as confrontações sociais que expu-
nha a profunda crise do sistema mundial capitalista. Ele destacou, por
exemplo, a (1) Guerra do Vietnã (as relações de exploração dos países
capitalistas metropolitanos com os subdesenvolvidos); (2) o Maio de
1968 (os problemas e contradições dos países capitalistas centrais); e (3)
a repressão na Tchecoslováquia e Polônia (as confrontações nos países
pós-capitalistas ou países do “socialismo real”).
Enfim, no ensaio de 1983 (“Política radical e transição para o
socialismo: Reflexão sobre o Centenário de Marx”), o filosofo húngaro
salientou a “ação de várias forças e tendências poderosas que, na sua
inter-relação, definem a crise estrutural que se aprofunda.”, demar-
cando três áreas de contradições “que se multiplicam perigosamente,
resultando numa verdadeira crise estrutural”. Portanto, não existiu na
análise de Mészáros, nenhuma referência enfática às causalidades es-
truturais salientadas por Marx em “O Capital” como, por exemplo, a
superprodução, o subconsumo, a desproporção intersetorial, ou princi-
palmente, a tendência à queda da taxa de lucro, que Marx considerou “a
mais importante lei da economia política” (Marx, 2017).
Entretanto, apesar de Mészáros não ter feito um tratamento analítico
da economia capitalista no sentido de abordar a crise estrutural como
tendo um fundamento na própria dinâmica da acumulação do capital
no capitalismo tardio (como Mandel fez em 1972 no livro “O capitalis-
mo tardio”), o filosofo hungaro reconheceu (em 1983) que, a recessão
capitalista mundial de 1973-1975 colocou para os países capitalistas
centrais a necessidade da “reestruturação da economia”.

A reestruturação capitalista e a nova etapa histórica do capital


No ensaio “Política radical e transição para o socialismo” de 1983,
Mészáros definiu, de modo visionário, as três dimensões principais
da reestruturação da economia operadas pelo capitalismo neoliberal,

122 O Duplo Negativo do Capital


verdadeiro demiurgo da transição para a nova etapa histórica do capi-
talismo global.
Primeiro, Mészáros observou a necessidade do capital gerar um
novo tipo de produtividade; depois, salientou a premência para o capital
construir alternativas viáveis ao complexo industrial-militar; e terceiro,
a instituição de uma nova relação de poder e domínio com o Terceiro
Mundo. Estas eram - no começo da década de 1980 - de acordo com
Mészáros, as tarefas históricas que o capitalismo neoliberal teria que
resolver para operar o “deslocamento” de suas contradições estruturais
diante da ativação dos seus limites absolutos.
Dito e feito – como vimos, a partir do capitalismo global, a nova
etapa histórica iniciada em 1989-1991, aprofundou-se a “reestruturação
da economia” na perspectiva da nova hegemonia do capitalismo finan-
ceirizado, o modo do capital operar seus limites estruturais no plano
da valorização – com predominância do capital fictício – e no plano da
reprodução social – com a barbárie social.
Na perspectiva de Mészáros, a “reestruturação da economia”
significava efetivamente uma reestruturação político-social; ou seja,
“reestruturar a economia significa igualmente reestruturar a sociedade
como um todo [...]”. Ele salientou a auto-determinação radical da
política no processo de respostas à crise estrutural do capital (a própria
definição econômica do que necessita ser feito implica a iniciativa polí-
tica). Entretanto, logo a seguir, ele reconheceu que o “momento” da po-
lítica era limitado estritamente pela natureza da crise em questão – não
se trata de mera crise da economia capitalista, mas sim, crise estrutural
do capital como sistema de controle do metabolismo social. Enfim, ne-
nhuma conquista econômica imediata pode oferecer uma saída; e o que
se deve atentar é que a crise estrutural do capital, colocou a necessidade
de reestruturação radical da própria política. Por isso, disse ele, a neces-
sidade de uma política radical e a atualidade da ofensiva socialista.
Como vimos no capítulo 1 e 2 deste livro, no período histórico de
transição para o capitalismo global (1980-1991), a ofensiva do capital
foi voraz. Numa retrospectiva, verificou-se que o capital reestruturou
não apenas a economia, com a implementação de políticas neoliberais
a partir de ascensão de governos neoconservadores ou governos

A Contribuição de István Mészáros 123


socialistas rendidos à programática neoliberal (Thatcher, no Reino
Unido; Reagan, nos EUA; ou ainda, Mitterrand, na França e Felipe
Gonzales, na Espanha); mas o capital reestruturou a sociedade como
um todo, principalmente no plano ideológico-cultural (a ideologia do
pós-modernismo e o ethos consumista); e no plano geopolítico (o Plano
Brady e o Consenso de Washington representou uma nova relação de
poder e domínio com o Terceiro Mundo).
No começo da década de 1980, a década de ofensiva neoliberal,
Mészáros soube delinear as necessidades do sistema do capital de
acordo com sua crise estrutural. Na medida em que não se efetivou a
política radical e a ofensiva socialista, a partir da reestruturação radical
da política, coube ao capital global implementar, de fato, a reestrutura-
ção da economia e da sociedade como um todo. Os acontecimentos cru-
ciais de 1989-1991, tornaram-se marcos históricos que impulsionaram
a efetividade plena do capitalismo globa – a nova etapa do capitalismo
tardio em sua etapa de crise estruturall.
Eis as linhas estruturantes do nova era histórica do capital que
Meszáros em 1983 considerou como estando por vir:

Uma nova produtividade do capital


István Mészáros conseguiu apreender a necessidade do novo capita-
lismo disseminar, no plano tecnológico-organizacional e principalmen-
te, no plano sociometabólico (ideológico-espiritual), as bases materiais
para a geração de uma nova produtividade adequada à nova dinâmica
da “produção destrutiva” do capital (foi por isso que constitui-se o que
denominamos de maquinofatura – a terciera forma de produção do ca-
pital - e disseminou-se a ideologia orgânica do toyotismo, “espírito” da
nova produção do capital (Alves, 2000, 2013). A produção da manipu-
lação do capital (produção como totalidade social) contribuiu para o
fenomeno da “dessubjetivação de classe”, a “captura” da subjetividade e
o modo de vida just-in-time (Alves, 2011, 2014)
No período de desenvolvimento da primeira etapa do capitalismo
tardio, os “trinta anos dourados” do capitalismo fordista-keynesiano, o
capital teve habilidade em ativar imensos recursos humanos e materiais,

124 O Duplo Negativo do Capital


anteriormente reprimidos ou latentes, em seus propósitos de auto-
-expansão, ampliando significativamente e intensificando as áreas de
atividade produtiva em todo mundo, tanto pelo crescimento da força de
trabalho assalariado, quanto pela sua produtividade relativa. Enquanto
incrementou-se o processo de auto-expansão do capital produtivo no
pós-guerra (década de 1950 e 1960), não hava problemas da economia
que o capital não pudesse, em princípio, superar (o que explica as ilu-
sões do “capitalismo organizado” da “golden age”, com a proclamação
em fins da década de 1950, do “fim das crises capitalistas”).
Entretanto, como observou Mészáros, a “produtividade” crescente
do capital industrial começou a chocar-se com as necessidades sociais
de ampliação (ou mesmo estabilidade) da força de trabalho como tra-
balho vivo. Em fins da década de 1960, marco histórico do início da
crise estrutural do capital, explicitam-se os primeiros sinais de crise das
economias capitalistas por conta da queda da lucratividade: ampliou-se
o desemprego de massa nas condições de elevação inflacionária. Disse
Mészáros:
“O que está em jogo não é realmente a eficiência do capital, que
pode ser aperfeiçoada por uma maior ou menor realocação drástica
dos recursos económicos, mas, ao contrário, a verdadeira natureza da
sua produtividade: uma produtividade que necessariamente defina a sí
mesma através do imperativo da sua implacável auto-expansão alienada
como produtividade destrutiva, que sem cerimónia destrói tudo que
aconteça estar em seu caminho.” [o grifo é nosso]
A idéia de “nova produtividade do capital” significava construir uma
nova base hegemônica para a organização laboral de produção do capital,
capaz de permitir o domínio do imperativo produtivista. Nesse caso, as
implicações da “reestruturação sociometabólico” não podem ser conside-
radas desprezíveis: a “nova organização da escassez”, no plano psicosso-
cial, significou a intensificação da “colonização” da subjetividade do tra-
balho vivo (mente e corpo), uma nova economia psiquica do capital (Alves
e Casulo, 2017), ou mais ainda, a apropriação do complexo do self pessoal
pelas parâmetros das determinações internas do capital, principalmente a
sua “produtividade” devastadora. Ao mesmo tempo, a nova produtivida-
de do capital implicou agregar no movimento de auto-expansão alienada,

A Contribuição de István Mészáros 125


a “dimensão financeira aventureira (e a sua contrapartida quixotesca, na
forma do monetarismo)” (Mészáros). Deste modo, podemos dizer que, o
filósofo hungaro desvelou indicios da afinidade orgânica entre toyotismo
sistêmico e financeirização da riqueza capitalista.

Complexo industrial-militar e a taxa de utilização decrescente


do valor de uso
Ao salientar no ensaio “Política radical e transição para o socialis-
mo” de 1983, a necessidade do capital em sua reestruturação da eco-
nomia, “construir alternativas viáveis ao complexo industrial-militar”,
Meszáros previu que a lógica da produção destrutiva do capital, inscrita
no complexo industrial-militar com a multiplicação de sua demanda
dissipadora, não era mais sustentável. Ela legitimava-se pelos “resíduo
tecnológico” do desenvolvimento militar e seus alardeados benefícios
sobre a indústria de consumo (a própria Internet dizia-se foi criada
como ferramenta militar). Além disso, enfatizava-se como autojusti-
ficativa ideológico-económica dos gastos militares a capacidade deles
estimularem o desenvolvimento da economia em vários setores pela sua
enorme demanda no uso - a princípio aparentemente ilimitado - de re-
cursos materiais e humanos. Entretanto, apesar da “insustentabilidade
da produção destrutiva” no plano civilizatório, o capitalismo global
acirrou a transferência de recursos de uso socialmente produtivo para o
uso do complexo militar-industrial utiloizando-se a nova ideologia da
“guerra civil permanente”, operando politico-ideologicamente na déca-
da de 1990, a passagem da “guerra fria” (EUA versus União Soviética)
para a “guerra civil prolongada” (o combate ao narcotráfico e ao terro-
rismo) e os conflitos regionais de “baixa intensidade” nas regiões estra-
tégicas no novo xadrez da geopolítica internacional. Portanto, ao invés
de definhar-se com o fim da URSS e o fim da “guerra fria” em 1991, o
complexo industrial-militar, pelo contrário, intensificou-se e expandiu-
-se com os novos conflitos conduzidos na Europa Oriental, Oriente Mé-
dio, Ásia e África. Além disso, verificou-se a guerra civil permanente de
“combate” ao narcotráfico e terrorismo islâmico.

126 O Duplo Negativo do Capital


Na Introdução à edição brasileira de “A crise estrutural do capital”
(2009), Ricardo Antunes, interpretando Meszáros, observou que a
lógica destrutiva do capital em sua fase de crise estrutural decorre da
própria crise na realização do valor (no livro “Adeus ao trabalho de
1995, Antunes salientou que a verdadeira crise do trabalho é a crise do
trabalho abstrato). Embora Mészáros não explore a natureza da crise
estrutural de realização do valor, pode-se dizer que ela, de acordo com
Antunes, faz acentuar a lógica da produção destrutiva do capital que
tem no complexo industrial-militar – e não apenas nele - sua expressão
histórica suprema. Diz Antunes:
“Isso porque o capital não considera valor de uso (que remete a esfera
das necessidades) e valor de troca (esfera de valorização do valor) de for-
ma separada, mas, ao contrário, subordinando radicalmente o primeiro
ao segundo. O que significa, acrescenta o autor, que uma mercadoria
pode variar de um extremo a outro, isto é, desde ter seu valor de uso re-
alizado imediatamente ou, no outro extremo, jamais ser utilizada, sem
deixar de ter a sua utilidade essencial para o capital” (Antunes, 2009).
É obvio que a lógica do modo de produção capitalista desde sempre
caracterizou-se pela subordinação do valor de uso ao valor de troca. Esta
é a lógica suprema da produção capitalista de mercadorias. Entretanto,
com a crise estrutural do capital, que Meszáros, na interpretação de
Antunes, considera uma nova forma de ser da crise - uma crise (estru-
tural?) na própria realização do valor (crise de subconsumo?) - ocorreu
uma mudança qualitativamente nova na dinâmica capitalista, fazendo
com que, a tendência decrescente de utilização do valor de uso reduzisse
drasticamente o tempo de vida útil das mercadorias - condição sine qua
non do funcionamento do processo de valorização do valor em seu ciclo
reprodutivo.
Assim, com a crise estrutural do capital, o consumo tornou-se des-
truição. Do mesmo modo que, a longo prazo, o monopólio tende a pre-
valecer sobre a concorrência, à medida que o sistema do capital progride
historicamente em direção a seus derradeiros limites estruturais, a
produção destrutiva tende a prevalecer sobre a “destruição criativa”
(Schumpeter); a própria ideia de consumo produtivo para o capital
interverte-se em consumo destrutivo. O capital senil não se importa

A Contribuição de István Mészáros 127


se a mercadoria vendida será de fato consumida ou atirada no lixo (“O
sistema do capital não consegue diferenciar [...] o crescimento de uma
criança do crescimento de um câncer”). Diz Antunes que a produção
destrutiva se converteu num dos principais mecanismos pelos quais o
capital vem realizando seu processo de acumulação, subordinando o
seu valor de uso aos imperativos do valor de troca.” (Antunes, 2009).
Mészáros desenvolveu a sua teoria da taxa de utilização decrescente
expondo-a nos capítulos 15 e 16 da parte 3 de “Beyond Capital”. Ao fazer
referência ao complexo industrial-militar Mészáros expos o elemento mais
explicito do aumento da taxa de utilização decrescente do valor de uso
no capitalismo. Na medida em que para o capital, consumo e destruição
são equivalentes no que tange à “realização do valor da mercadoria”, a
mercadoria tem seu valor realizado quando é vendida, ainda que seja
vendida como semimercadoria inacabada. O capital não se importa se a
mercadoria vendida será de fato consumida ou atirada no lixo.
Por isso, de acordo com István Mészáros, na era da crise estrutural
do capital, temos a produção do desperdício generalizado. Esse desperdí-
cio ou produção destrutiva diz respeito não apenas a bens e serviços, mas
a instalações e maquinaria e a própria força de trabalho. Deste modo,
a produção destrutiva implica não apenas o ethos do consumismo,
ou o dano ambiental ou mesmo a degradação da alimentação, as o
desemprego estrutural e a própria precariedade do trabalho vivo.
Foram os economistas marxistas norte-americanos Paul Baran e
Paul Sweezy no livro clássico “Monoply capital: An essay on american
economic and social order” (de 1966), os primeiros teóricos a ressaltar
o movimento do capital na obsolescência programada das mercadorias,
um dos elementos da produção do desperdicio generalizado – inclusive
com impactos ecológicos (no seu ensaio “A necesidade do controle so-
cial”, de 1971, Meszáros tem uma precursora reflexão intitulada “Capi-
talismo e destruição ecológica”). O crescimento do poder das empresas
monopolistas, com o desenvolvimento do capitalismo monopolista e
a centralização e concentração do capital, influenciarem o mercado –
e portanto o consumo (incluindo as relações de trabalho, as relações
sociais culturais, politicas, psicológicas, etc). Vale observar que, o último
capítulo do livro “Capital monopolista”, de Baran e Sweezy, intitulou-se

128 O Duplo Negativo do Capital


“O sistema irracional”. Acreditamos que Mészáros incorporou a per-
cepção analítica de Baran e Sweezy sobre o capitalismo monopolista.
Os economistas marxistas norte-americanos compartilhavam uma
linha básica de análise sobre a reprodução capitalista que reavivava a teo-
ria do subconsumo como uma explicação das crises do sistema capitalis-
ta. Para eles, a crise capitalista decorria do fato de que “o excedente (po-
tencial) se amplia mais rapidamente do que a habilidade do sistema em
absorve-lo”. Assim, a capacidade produtiva do capital ultrapassará a de-
manda efetiva e o sistema deparar-se-á com o hiato de demanda ou com o
problema de realização (fica a dúvida: por que os monopólios persistiriam
em superexpandir a capacidade produtiva face à insuficiente demanda?).
Portanto, podemos supor que Mészáros tendeu a explicar o aumento da
taxa de utilização decrescente pela ótica do subconsumo (problema de
realização), e não pela teoria marxista da queda da taxa de lucro (embora
o próprio Mészáros en passant tenha observado a existência na crise de
lucratividade em torno dos fins da década de 1960
Entretanto, podemos supor que Mészáros detém-se na crítica do
consumo (valor de uso) porque lhe interessa fazer a crítica do capital
como metabolismo social, e não discutir propriamente a dinâmica da
acumulação capitalista na perspectiva do desvendamento da produção
(e reprodução) do mais-valor - objetivo crucial de Marx na sua crítica
da economia política (“O Capital”). Por isso, a elaboração da explicação
da crise estrutural do capital, não na ótica da queda da taxa de lucro,
mas sim do aumento da taxa de utilização decrescente do valor de uso,
produção destrutiva e desperdício generalizado como “linha de menor
resistência” do próprio movimento reprodutivo do capital.
O aumento da taxa de uso decrescente no capitalismo representa,
de acordo com Mészáros, uma contradição insana (ou irracional) do
capital na etapa histórica do capitalismo tardio. O capital renegou os
avanços conquistados com relação a produtividade, isto é, o desenvolvi-
mento das forças produtivas do trabalho que propiciou, como capacida-
de humana, a apropriação do tempo disponível e a ampliação do círculo
do consumo. Por exemplo, diante das inovações tecnológicas que fazem
aumentar o excedente, o capital monopolista frustra as possibilidades
de desenvolvimento civilizatório, intervertendo-as em desperdício

A Contribuição de István Mészáros 129


generalizado e alienação social. Disse ele: “O capitalismo avançado ten-
de a impor à humanidade o mais perverso tipo de existência imedia-
tista, totalmente destituída de qualquer justificativa em relação com as
limitações das forças produtivas e das potencialidades da humanidade
acumuladas no curso da história.” (Mészáros, 1989)
Mészáros explica a lógica da produção destrutiva pela adoção do
movimento da “linha de menor resistência do capital”. Na medida em
que o capital é um sistema autopoiético10, sendo esta a própria natureza
do fetiche-capital constituído no decorrer do desenvolvimento do modo
capitalista de produção de mercadorias, a sua reprodução sociometabó-
lica exige uma linha de ação adequada – mais viável ou fácil - à predi-
cação de suas determinações materiais e a sua configuração estrutural
global, mantendo, deste modo, o controle que já exerce. Por isso, o sistema
obstaculiza possibilidade concretas de desenvolvimento humano postas
pela própria evolução do capitalismo (com o desenvolvimento das forças
produtivas, inovações tecnológicas capazes de aumentar o excedente11
e a redução das barreiras naturas), evitando perseguir assim, alguma
estratégia alternativa que necessitaria “o abando no de práticas bem

10 Autopoiese ou autopoiesis (do grego auto “próprio”, poiesis “criação”) é um termo cria-
do na década de 1970 pelos biólogos e filósofos chilenos Francisco Varela e Humberto
Maturana para designar a capacidade dos seres vivos de produzirem a si próprios.”
11 Paul Baran e Paul Sweezy no livro “Capital Monopolista” consideram o problema cru-
cial do capitalismo monopolista a absorção do excedente que cresce na medida em que
se acirra a concorrência entre as grandes empresas. Antonio Carlos de Moraes observa
que, “tem-se então, como característica do capitalismo monopolista em que predominam
estruturas oligopolistas de mercado, dois movimentos que convergem para insuflar os
lucros e garantir, portanto, um comportamento crescente para o excedente: de um lado
observam-se condições favoráveis na determinação dos preços consubstanciada no poder
de monopólio das grandes empresas e na política de concorrência que não se centra em
uma guerra de preços; de outro, motivações imanentes postas pela concorrência fustigam
as empresas na busca pela redução dos custos. O reconhecimento desses elementos levam
Baran e Sweezy a substituírem ‘a lei do lucro decrescente pela do excedente crescente’
(Baran e Sweezy, 1966). Ernest Mandel observa que, ao utilizar o conceito de excedente,
Sweezy renegam a teoria do valor-trabalho de Marx. Diz ele: “A insistência de Baran e
Sweezy sobre a subida contínua do “excedente” está baseada num argumento muito sim-
ples. Sob o capitalismo monopolista, os custos baixam, os preços ascendem ao mesmo
tempo em que os lucros, logo o excedente, deve aumentar. Mas, aqui, ainda outra vez, o
fato de efetuar os cálculos sobre preços em vez de proceder à análise em valor, obscurece
os problemas macroeconómicos em discussão”.

130 O Duplo Negativo do Capital


estabelecidas” (Mészáros, 2002). Por isso, Meszáros explica, de modo
original, a lógica do consumo como desperdicio generalizado: diante
da necessidade sistêmica do capitalismo em expandir o círculo do con-
sumo no interior da circulação, tal como fez previamente o círculo pro-
dutivo, o capital opera um “equivalente funcional preferível”: a acelera-
ção da velocidade de circulação (o aumento do número de transações)
dentro do próprio círculo de consumo já dado, ao invés de “embarcar
na aventura mais complicada e arriscada de alargar o próprio círculo”.
É isto que explica porque Mészáros proclama a falência das políticas
de reforma social do sistema do capital. Não seria possível compatibilizar
capitalismo monopolista e bem-estar social tendo em vista a ação da “li-
nha de menor resistência” do capital: adotar uma ação reformista seria
aceitar uma tarefa difícil nada fácil – principalmente, diríamos nós, nas
condições históricas da crise estrutural da lucratividade. Diz Mészáros:
“Primeiro, porque a expansão do círculo de consumo traz con-
sigo a difícil tarefa econômica de estabelecer uma malha comercial
mais elaborada, que se estenda por áreas anteriormente não alcançad-
as e inseguras. E, em segundo lugar, porque a operação de um círculo
de consumo ampliado envolve uma mudança, de modo nenhum
desprezível, do padrão de distribuição prevalecente, com todas as suas
complicações ideológicas e políticas”. (Mészáros, 2002, p. 680).
Para o filosofo hungaro, o “equivalente funcional” à expansão do cír-
culo de consumo, é a aceleração da velocidade de circulação, o aumento
do número de transações dentro do próprio círculo de consumo, ao in-
vés de “embarcar na aventura mais complicada e arriscada de alargar o
próprio círculo”. Eis a lógica perversa que explica a taxa de utilização
decrescente do valor de uso e o fortalecimento sistêmico do complexo
industrial-militar, a representação-mor da produção destrutiva, ao lado
por exemplo, da destruição ecológica – incluindo a destruição (corpo e
mente ou a subjetividade) da pessoa humana-que-trabalha).12

12 Como observou Polese (2016), pode-se dizer que Karl Marx nos “Grundrisse” tinha ciên-
cia da existência desse “equivalente funcional” – que à época certamente ainda não era o
“preferido” – pois afirmou: “Uma condição da produção baseada no capital é a produção
de um círculo sempre ampliado da circulação, seja o círculo diretamente ampliado ou
sejam criados nele mais pontos como pontos de produção.” (Marx, 2011) Entretanto, sa-

A Contribuição de István Mészáros 131


Ao lado da ação de “linha de menor resistência” com o aumento
da velocidade de circulação, o capital na sua etapa de crise estrutural,
opera a “fusão” entre mais-valia absoluta e mais-valia relativa. É outro
modo de ser do capital operando a ação de “linha de menor resistência”.
A “fusão” entre mais-valia absoluta e mais-valia relativa não se trata
de priorizar a “selvagem” mais-valia absoluta no lugar da “eficiente”
mais-valia relativa. A “opção” pela mais-valia absoluta tornou-se uma
obsessiva “linha de menor resistência” - contraditoriamente operando
nas condições históricas do protagonismo da mais-valia relativa (aliás,
é o protagonismo da mais-valia relativa e o aumento da composição
orgânica do capital que pressionam pela queda da taxa de lucratividade)
não devido a insuficiente produção de mais-valor, tendo em vista que
a operação da mais-valia absoluta ocorreria no interior da supremacia
da mais-valia relativa, mas em virtude da explicitação histórica das po-
tencialidades contraditórias contidas no desenvolvimento da nova base
tecnológica do capitalismo.
Portanto, para Mészáros o capital articularia na circulação, produ-
ção e consumo a lógica de ação da “linha de menor resistência”. A ação
da “linha de menor resistência” implicaria, por exemplo, a reposição do
arcaico no interior do moderno – por exemplo, a reprodução de modos
de exploração e espoliação historicamente superados pelo processo ci-
vilizatório do capital (por exemplo, a escravidão). Diante da ativação de
seus limites absolutos, o capital transtorna a temporalidade histórica,
explicitando seu movimento retroativo. Talvez possamos dizer que o
movimento de retroação temporal do capital implica também a exa-
cerbação/extinção da lei do valor (Alves, 2018). Ao atingir seu limite

lientou Polese que, parece haver uma diferença qualitativa entre ‘mais pontos de produção’
e ‘maior velocidade de circulação’, já que não há uma correspondência direta entre esses
dois movimentos: ‘mais pontos de produção’ está mais relacionado ao capital em ascen-
são histórica e ampliação do domínio geográfico do planeta, novos mercados a criar e
expansão territorial do sistema. ‘Maior velocidade de circulação’, por sua vez, traz em si a
possibilidade de ocorrer com o capital já tendo saturado seu domínio geográfico planetário,
pois remete a um mesmo mercado de produção/consumo dotado de maior velocidade de
giro do capital. Além disso, diferentemente do que ocorre na segunda, da primeira não
podemos desdobrar - como necessidade - o aumento e predomínio da taxa de utilização
decrescente e suas consequências benéficas para o aumento da velocidade de giro do capi-
tal” [o grifo é nosso] (Polese, 2016).

132 O Duplo Negativo do Capital


estrutural como sistema de metabolismo social, o capital se reencontra
com suas formas arcaicas num outro patamar de desenvolvimento civi-
lizatório no limiar da barbárie social.
Mészáros supõe que, caso a ação da “linha de menor resistência”
torne-se incapaz de atender aos requisitos de desenvolvimento capita-
lista, o capital como sistema, explicita outro mecanismo de reprodução
autopoiética do capital (expressão nossa) - isto é, cursos alternativos de
modo a deslocar as contradições recentes. Ao delinear movimento de
ação lastreados na “linha de menor resistencia do capital” e cursos al-
ternativos de modo a deslocar as contradições, Meszáros expõe uma
verdadeira ontologia histórica do movimento do capital como causa sui.

A nova geopolítica do capitalismo global


Ao salientar no ensaio “Política radical e transição para o socialis-
mo” de 1983 como terceiro requisito de nova reestruturação da econo-
mia, a nstituição de uma nova relação de poder com o Terceiro Mundo,
Meszáros previu a nova geopolitica do capitalismo global que originou-
-se da política do Consenso de Washington em 1989 e o Plano Brady
– além da ampliação do Terceiro Mundo após a Queda do Muro de Ber-
lim e o fim da URSS, incluindo o Leste Europeu e a Rússia no mercado
mundial e depois, como acontecimento histórico notável, a entrada da
China na OMC.
De fato, com o capitalismo global ocorreu uma revolução geopolíti-
ca que permitiu a constituição do capital social total como capitalismo
global a partir da década de 1990, com o capitalismo global sendo ape-
nas a nova forma de desenvolvimento mundial do capital em sua etapa
de crise estrutural, quando seus limites estruturais foram ativados.
A reestruturação capitalista ocorrida a partir da recessão global de
1973-1975 criou uma nova divisão internacional do trabalho. A nova
industrialização do “Terceiro Mundo” (Brasil, Irã, Coréia do Sul, Egi-
to, etc) desde a década de 1950, fortaleceu a subordinação dos proje-
tos de desenvolvimento nacional às exigências e interesses do capital
mundial. Como observou Meszaros, o processo de industrialização do
Terceiro Mundo “nunca teve o sentido de satisfazer as necessidades da

A Contribuição de István Mészáros 133


população faminta e socialmente carente dos países envolvidos, mas a de
prover escoadouros irrestritos para a exportação de capitais e gerar nos
primeiros tempos níveis inimagináveis de superlucro, sob a ideologia
da modernização e a eliminação do ‘subdesenvolvimento’” (Mesza-
ros, 1983). Entretanto, na dialética de desenvolvimento do capitalismo
mundial, diz Mészáros, “o capital ocidental tornou-se muito mais de-
pendente no ‘Terceiro Mundo’ - de matérias-primas, energia, mercados
de capital e superlucros ávidamente repatriados - do que o contrario”
(Mészáros, 1983). Por isso, a nova etapa do capitalismo tardio (o capi-
talismo global) exigiu, como elemento fundamental, o aprofundamento
de integração do Terceiro Mundo à dinâmica de acumulação do capi-
talismo central, diriamos nós, principalmente nas condições da crise
estrutural de lucratividade com o capital ativando como movimento
contratendencial à queda da taxa média de juros, a desvalorização do
capital circulante (matérias-primas, commodities, etc).

Capitalismo global e Beyond Capital


Em 1995, István Mészáros lançou sua volumosa obra “Beyond
capital” (Merlin Press, London/Monthly Review Press, New York). O
filosófo húngaro apresentou a organização sistêmica de suas várias
reflexões sobre a crise estrutural do capital, em desenvolvimento há
mais de duas décadas – pelo menos desde 1970 com o livro “Marx’ the-
ory of alienation” onde ele faz referência à “crise estrutural geral das
instituições capitalistas” (naquela época, o filosofo húngaro ainda não
diferenciava capitalismo de capital. Portanto, ele fez referência á crise
estrutural do capitalismo).
O volumoso livro “Beyond Capital” foi traduzido para o português
em 2000 pela Boitempo editorial. No Brasil, em 1987, a Editora En-
saio, sob a coordenação de José Chasin publicou o primeiro livro de
Mészáros no Brasil: “A necessidade do controle social (originalmente
publicado pela Merlin Press/London em 1971). O pequeno livro seria
republicado na Parte 4 de “Beyond Capital”, ao lado de outros ensaios
em que Mészáros elaborou, pelo menos desde 1971, sua interpretação
da crise capitalista que se explicava nos acontecimentos históricos de

134 O Duplo Negativo do Capital


fins da década de 1960. No importante livro “A teoria da alienação em
Marx” (publicado em 1970), Mészáros fazia referência a “crise estru-
tural geral das instituições capitalistas”. Em 1971, o filosofo húngaro
começou a organizar sua interpretação da crise estrutural observando
a intensificação da taxa de exploração, a destruição ecológica e a crise
de dominação (Mészáros faz rápida referencia a taxa diferencial de
exploração).
Em 1989, a Editora Ensaio publicaria no Brasil o pequeno livro “Pro-
dução destrutiva e Estado capitalista” (relançado mais tarde – em 1996
– como uma edição revista e ampliada (ele comporia os capítulos 15 e 16
de Beyond Capital). Nestes ensaios, Mészáros expos a suas ideias sobre
a taxa de utilização decrescente, a linha de menor resistência do capital,
a produção destrutiva e o significado do complexo industrial-militar.
Depois da imensa obra Beyond Capital (994 páginas na edição inglesa e
1102 na edição brasileira de 2002), Mészáros continuou elaborando na
década de 2000 suas reflexões críticas sobre a crise estrutural do capital
com destaque nos livros “O fardo e o tempo histórico” (2007) e “A mon-
tanha que devemos conquistar” (2015).
O livro “Para Além do capital”, foi lançado em 1995, o ano que po-
demos considerar como sendo marco histórico de afirmação do capita-
lismo global. Em “Beyond Capital”, Meszáros salientou o caráter estru-
tural da crise do capital – e não apenas do crise do capitalismo (alguns
autores, como, por exemplo, Immanuel Wallenstein faziam referência à
“crise estrutural do capitalismo”, identificando meramente capital com
capitalismo).
A distinção de Mészáros entre “capitalismo” e “capital”, possuía uma
importante função heurística na critica `s experiencias revolucionarias
do século XX. Assim, no século XX tivemos, por exemplo, as experien-
cias pós-capitalistas da URSS e de países do Leste europeu. Na medida
em que tais experiencias pós-capitalistas não conseguiram, por uma
série de contingencias históricas, romper com o capital como sistema
de controle sociometabólico, fracassaram no intuito de construir uma
nova civilização do trabalho emancipado. Enfim, conseguiram ir além
do capitalismo, mas não ir além do capital.

A Contribuição de István Mészáros 135


No século XXI vivemos a longa decadência histórica do capitalismo
liberal-democrático sob hegemonia dos EUA. Após o colapso das
experiencias pós-capitalistas da URSS e Leste Europeu (1989-1991) e
o surgimento do capitalismo global presenciamos o que Robert Kurz
denominou de “colapso da modernização”. Entretanto, no século XXI,
o capital se reconstituiu territorialmente na China e no Sudeste Asiá-
tico projetando suas candentes contradições para além do capitalismo
neoliberal, com uma nova formação social do capital comandada pelo
Estado, quiça uma experiencia “pós-capitalista” na era da crise estrutu-
ral do capital.
Como observou Mészáros, o capital é capaz de construir formas mu-
tantes de seu sociometabolismo – para além do capitalismo tal como
nós o conhecemos. Na verdade, em suas últimas reflexões, Meszáros
se debruçou sobre os imperativos corretivos do capital e o Estado. A
crítica do comando do Estado reforçaria a perspectiva de salientar a
necessidade histórica de ir além do capital, e não apenas superrar o ca-
pitalismo senil.
Ao não distinguir “capitalismo” e “capital”, reduzindo capital ao sis-
tema produtor de mercadorias, Robert Kurz reduziu o colapso de mo-
dernização à prevista crise do capitalismo global com epicentro nos pa-
íses capitalistas centrais (EUA, Japão e União Européia). Ele não levou
em consideração a capacidade de recomposição geopolítica do sistema
mundial do capital por meio do novo pólo de modernização na Ásia –
nesse caso, teríamos uma “modernização catastrófica” na medida em
que ocorre nas condições de crise estrutural do capital incapaz de repor
historicamente as promessas civilizatórias).

Capital e capitalismo
Uma característica fundamental (e fundante) do capital é a sua in-
controlabilidade. Desde 1848, Marx e Engels no “Manifesto Comuni-
sta”, caracterizaram como ineditismo histórico da produção do capital
na era moderna, a sua capacidade de revolucionar constantemente as
condições da existência social. Nenhum outro

136 O Duplo Negativo do Capital


É importância para compreendermos a tese de Mészáros sobre a in-
controlabilidade do capital e suas implicações para a reprodução social,
que explicitemos seu conceito de capital e o modo como ele concebe o
funcionamento do sistema orgânica do capital. Para ele, há uma distin-
ção fundamental entre capital e capitalismo: por exemplo, as experiên-
cias revolucionárias que marcaram o século XX, seriam evidências de
que a permanência do capital é totalmente possível em sociedades pós-
capitalistas, em cujos processos de constituição, as características defi-
nidoras do capitalismo tenham sido largamente alteradas. Como tam-
bém, se nos voltarmos aos séculos que antecederam a efetiva dominação
mundial do capital sobre todas as atividades humanas, podemos encon-
trar formas primitivas de capital — por exemplo, o capital usurário e o
capital comercial, já existentes desde a Antiguidade.
Apoiando-se nos “Grundrisse”, de Karl Marx, Mészáros reconstitui
o longo processo histórico de transformação das formas incipientes de
capital (capital usurário e capital comercial) nas formas do capital do-
minante de hoje. Ele salienta que “o capital não é uma simples relação,
mas um processo, em cujos vários momentos sempre é capital.” Em todo
processo histórico-social, cada um dos momentos do capital se apresen-
ta de forma variada, de acordo com as características das fases que mar-
cam sua origem, desenvolvimento e maturidade plena. É esse processo
histórico-social de progressiva constituição moderna do capital – que
no Ocidente ocorreu desde o século XVI com o modo de produção ca-
pitalista - que nos indica a sua natureza e o grau de controle que passará
a exercer na produção social. (como observou Marx, a moderna história
de vida do capital inaugurou-se no século XVI com o comércio mundial
e mercado mundial).
Foi no Ocidente europeu que se inaugurou a moderna vida do capi-
tal no século XVI. A moderna história de vida do capital surgiu com o
modo de produção capitalista. Entretanto, não podemos deixar de re-
conhecer que, no século XVI (ou antes dele), noutras partes do mundo
(como, por exemplo, América pré-colombiana, África, Índia, Japão e
China), o capital como sistema de mediações de segunda ordem, assu-
miu variadas formas primitivas, arcaicas e pré-modernas (os modos de
produção pré-capitalistas).

A Contribuição de István Mészáros 137


Nas civilizações pré-capitalistas, o capital como categoria histórica
efetiva, tal como se constituiu no Ocidente moderno, não estava plena-
mente posto, não se tornando, ele mesmo, fundamento da produção,
embora tenha sido elemento compositivo contingencial do processo
de reprodução social. Para Marx, o “capital comercial é apenas capital
circulante, e capital circulante é a primeira forma de capital; na qual ele
ainda não se tornou de modo algum o fundamento da produção. Uma
forma mais desenvolvida é capital dinheiro, e juro dinheiro, usura, cuja
aparência independente pertence do mesmo modo a um estágio ante-
rior.” (Marx, 2012)
Portanto, antes de assumir sua forma capitalista enquanto modo de
produção, “todos os aspectos da forma plenamente desenvolvida do ca-
pital - incluindo a mercantilização da força de trabalho, que é o passo
mais importante para alcançar a forma mais desenvolvida, a capitalista
[e ainda o capital comercial e capital-usurário, etc – G.A.]– aparece-
ram em algum momento na história há muito tempo, antes da fase
capitalista, em alguns casos, até milênios antes.” (Marx, 2012).
Entretanto, ao assumir sua forma capitalista, o capital torna-se pro-
gressivamente um sistema de controle estranhado do metabolismo so-
cial (o que não existia nas formas pré-capitalistas, onde o mercado e o
dinheiro não organizavam a reprodução social, embora fizessem parte
dela. Portanto, o capital moderno é a verdadeira invenção do Ocidente
(não é a toa que Karl Marx intitulou sua obra-prima de “O Capital”).
A idéia de Mészáros de distinguir capital e capitalismo, o leva a
afirmar que, enquanto capital, ele mantenha, em todas as suas fases,
desde a mais primitiva até a pós-capitalista, a sua natureza mais pro-
funda. Isso não quer dizer, para nosso autor, que o capital seja uma
categoria a-histórica. Pelo contrário, a “invariabilidade do capital” se
refere a sua natureza e às suas determinações mais essenciais, mas não
ao modo e às formas de existência adotadas historicamente.
É com a moderna vida do capital que ele se tornou o momento
predominante do processo civilizatório. Mészáros citou Marx - “A
natureza do capital permanece a mesma, tanto em sua forma desenvolvida
como na subdesenvolvida” - para demonstrar que a permanência da
natureza mais profunda do capital não implica na a-historicidade ou

138 O Duplo Negativo do Capital


que o capital “possa fugir das restrições e limites da história, inclusive
à delimitação histórica de seu período de vida”. Diz Mészáros: “O papel
socialmente dominante do capital em toda a história moderna é óbvio.
No entanto, é necessário explicar como é possível que, sob certas con-
dições, uma dada ‹natureza› (a natureza do capital) se desdobre e se
realize de acordo com sua natureza objetiva, com suas potencialidades
e limitações inerentes seguindo suas próprias leis internas de
desenvolvimento (apesar até dos antagonismos mais violentos com
as pessoas negativamente afetadas por seu modo de funcionamento),
desde a forma subdesenvolvida até a forma da maturidade “ (113/184).
A profunda historicidade do capital corresponde ao quadro de uma
ontologia social dialética de fundamentação objetiva, que não deve ser
confundida com as tradicionais variedades teológicas ou metafisicas da
ontologia.
Em “Para Além do Capital”, Mészáros nos indicou como seria uma
ontologia social histórica e dialética baseada na distinção entre media-
ção de primeira ordem e mediação de segunda ordem.
Para Mészáros, o capital seria uma mediação de segunda ordem
historicamente determinada. Num síntese bem elaborada da concepção
sócio-ontológica de István Meszáros, Ricardo Antunes, no capítulo 1 de
seu livro “Os sentidos do trabalho” (1999), nos apresentou o sistema de
metabolismo social do capital e suas mediações. Trata-se de uma expo-
sição pioneira das ideias meszarianas publicadas no “Beyond Capital”
(1995), que chegaria ao Brasil apenas em 2002. Antunes observou:
“O sistema de metabolismo social do capital nasceu como resultado
da divisão social que operou a subordinação estrutural do trabalho ao
capital. Não sendo consequência de nenhuma determinação ontológica
inalterável, esse sistema de metabolismo social é, segundo Mészáros, o
resultado de um processo historicamente constituído, onde prevalece a
divisão social hierárquica que subsume o trabalho ao capital.” (Antunes,
1999) [o grifo é nosso]
O homem como ser social, e o próprio devir humano dos homens,
evoluiu mediados entre si, e combinados dentro de uma totalida-
de social estruturada, por mediações primárias básicas ou sistema de

A Contribuição de István Mészáros 139


mediações de primeira ordem que constituíram o sistema de produção e
troca estabelecido.
Na verdade, o homem que trabalha, ou seja, o animal tornado ho-
mem através do trabalho (Lukács), não poderia constituir-se como ser
social, caso não produzisse suas condições de vida, isto é, produzisse os
meios que se preserva suas funções vitais de reprodução (individual e
societal). Como observou Marx e Engels, “o primeiro pressuposto de
toda existência humana e, portanto, de toda a história, é que os homens
devem estar em condições de viver para poder ‘fazer história’.” E mais
adiante: “O primeiro ato histórico é, portanto, a produção dos meios
que permitem a satisfação destas necessidades, a produção da própria
vida material [...]” (Marx e Engels, 1987).
Assim, o primeiro ato histórico, indispensável há milhares e milhares
de anos e indispensável hoje e sempre, é a produção (e reprodução) da
vida material (para viver, dizem Marx e Engels, “é preciso antes de tudo
comer, beber, ter habitação, vestir-se e algumas coisas mais.” [o grifo é
nosso]). A espécie humana é parte da natureza devendo realizar suas
necessidades elementares por meio do constante intercâmbio com a
própria natureza da qual ele é parte. Ao contrário dos animais, cujo in-
tercâmbio com a natureza é sem mediações, regulados por um compor-
tamento instintivo diretamente pela natureza (por mais complexo que
esse comportamento instintivo possa ser, o intercâmbio entre o animal
e a natureza, ocorre sem mediações), os indivíduos da espécie humana,
para sobreviverem, baseiam seu intercâmbio com a natureza num siste-
ma de mediações de primeira ordem. Portanto, o trabalho como sistema
de produção e intercambio com a natureza, que permite a satisfação das
funções necessárias básicas do homem como animal social, constitui o
sistema de mediações de primeira ordem (mediações primárias básicas).
István Mészáros procurou estabelecer os elementos para uma
ontologia histórico-materialista dialética do capital, discriminando as
funções vitais das mediações primárias entre o homem e a natureza:
1. A regulação da atividade biológica reprodutiva em conjugação
com os recursos existentes;
2. A regulação do processo de intercambio comunitário com a
natureza (o trabalho) e modo de produção social da vida, capaz

140 O Duplo Negativo do Capital


de produzir os valores de uso, os instrumentos de trabalho,
os empreendimentos produtivos e o conhecimento para a
satisfação das necessidades humanas;
3. A constituição de um sistema de trocas compatível com as
necessidades humanas e sociais requeridas naquele estágio
de desenvolvimento civilizatório, historicamente mutáveis e
visando otimizar os recursos naturais e produtivos existentes;
4. A organização, coordenação e controle da multiplicidade de
atividades humanas (materiais e culturais), visando o atendi-
mento de um sistema de reprodução social cada vez mais com-
plexo. Na medida em que evoluiu a espécie humana, tornou-se
indispensáveis para a produção da vida social, não apenas a sa-
tisfação das necessidades primárias do homem como ser animal
(alimentar-se, beber, vestir-se e morar), mas o que Marx e Engels
salientaram como sendo “algumas coisas a mais” (por exemplo,
a produção simbólica e a criação artística, filosófica e religiosa).
5. A alocação racional dos recursos materiais e humanos disponív-
eis, lutando contra as formas de escassez, por meio da utilização
viável (e sustentável) dos meios de produção. em sintonia com os
níveis de produtividade e os limites materiais existentes;
6. A constituição e organização de normas societais designados
para a totalidade da comunidade, em conjunção com as demais
funções de mediação primárias.

Portanto, as mediações primárias do homem com a natureza,


indispensáveis para a sobrevivência dos indivíduos da espécie humana
e o desenvolvimento da autoprodução e reprodução societal, implicam
a regulação societal da atividade reprodutiva biológica; a regulação do
trabalho e modo de produção da vida material; a constituição de um
sistema de trocas; a organização, coordenação e controle da múltiplas
atividades societais (incluindo as culturais), a luta contra a escassez por
meio da alocação racional de recursos e a constituição e organização
de um sistema de normas e regulamentos designados para toda a
comunidade humana.

A Contribuição de István Mészáros 141


De acordo com Mészáros – e isso é importante - nenhum dos impe-
rativos de mediação primária do ser social com a natureza, necessitam
da constituição de hierarquias estruturais de dominação e subordi-
nação que configuram o sistema de metabolismo social das mediações
de segunda ordem. Assim, a rigor, o capital surgiria com a consti-
tuição da divisão hierárquica do trabalho ou hierarquias estruturais
de dominação e subordinação. Na medida em que se constituiu um
sistema de mediações de segunda ordem baseados em hierarquias es-
truturais de dominação e subordinação, ele sobredeterminou as me-
diações primárias de primeira ordem.
Portanto, podemos dizer que, o capital para Mészáros corresponde
essencialmente à divisão hierárquica de trabalho, uma estrutura de do-
minação e subordinação que configurou o sistema de metabolismo social
das mediações de segunda ordem, sobredeterminando e deformando os
imperativos de mediação primários do ser social.

Mediações Primárias do Homem com a Natureza


(mediações de primeira ordem)

Regulação da Atividade Biológico-Reprodutiva

Trabalho
(Modo de Produção da Vida Material)

Sistema de Trocas Humanas e Sociais

Organização, Coordenação e Controle das Atividades Humanas


(Produção Simbólica, Criação Artistica, Filosófica e Religiosa)

Luta contra a Escassez


(Alocação Racional dos Recursos Materiais e Humanos)

Constituição e Organização de Normas Societais

O advento da “segunda ordem de mediações” correspondeu a um


período específico da história humana, que de acordo com Mészáros,

142 O Duplo Negativo do Capital


acabou por afetar profundamente a funcionalidade das mediações de
primeira ordem ao introduzir elementos estranhados, alienantes e feti-
chizantes de controle sociometabólico.
Na “Ideologia Alemã” de Karl Marx e Friedrich Engels (1847),
os dois pensadores e revolucionários alemães atribuem à divisão do
trabalho – e deve-se entende-la como sendo a divisão hierárquica do
trabalho ou divisão entre atividade material e atividade espiritual (o
surgimento dos ideólogos ou sacerdotes, por exemplo) - que deu ori-
gem a hierarquias estruturais de dominação e subordinação baseada
na extração de sobretrabalho de camponeses. Esta divisão do trabalho
deu origem às contradições históricas e sociais que iriam caracterizar o
processo civilizatório.
István Mészáros utilizou-se do método dialético de Marx que diz
que, é “o mais desenvolvido que explica o menos desenvolvido”. Por
isso, a descrição do sistema sociometabólico do capital é feita de acordo
com seu modo de produção mais desenvolvido (o capitalismo). Ao des-
crever o sistema de mediações de segunda ordem, Mészáros descreveu o
capital tal como ele se apresenta na moderna vida do capital, com o valor
de uso e as necessidades humanas estão completamente subordinadas à
reprodução do valor de troca - no interesse da auto-realização expansiva
do capital (a produção do capital, descrita por Marx no volume 1 de “O
Capital”, diz respeito à vida moderna do capital quando ele se apre-
senta mais desenvolvido, o que não ocorria nas organizações societais
pré-capitalista).
Meszaros chegou a observar que a auto-realização expansiva do ca-
pital “tem sido o traço mais notável do sistema do capital desde a sua
origem”. Na verdade, deve-se salientar que este traço caracteristico per-
tence efetivamente ao capital em sua forma histórica moderna e não ao
capital em sua forma histórica arcaica pré-capitalista. Foi com o modo
de produção capitalista que se separou efetivamente valor de uso e valor
de troca e a produção do capital converteu-se em propósito da humani-
dade, subordinando o valor de uso ao valor de troca.
Foi só com a civilização do capital nascida a partir do século XVI
– a vida moderna do capital – que constituiu-se o sistema do capital
com suas mediações de segunda ordem, mediações historicamente

A Contribuição de István Mészáros 143


determinadas de controle e estruturas institucionais, subordinando es-
tritamente todas as funções reprodutivas sociais – das relações de gê-
neros familiares à produção material, incluindo a criação artística – ao
imperativo absoluto da expansão “expandir constantemente o valor de
troca, ao qual todos os demais - desde as mais básicas e mais íntimas ne-
cessidades dos indivíduos até as mais variadas atividades de produção,
materiais e culturais, - devem estar estritamente subordinados”.
Essa característica de auto-realização expansiva do capital constituiu-
se num dos principais segredos do êxito dinâmico destas mediações
de segunda ordem em sua forma histórica moderna, uma vez que as
limitações das necessidades não podiam se constituir em obstáculos
para a expansão reprodutiva do capital. Diz Meszáros: “Naturalmente, a
organização e a divisão do trabalho eram fundamentalmente diferentes
nas sociedades onde o valor de uso e as necessidades exerciam uma
função reguladora básica.” Assim, a presença do valor de uso e as
necessidades nas sociedades pré-capitalistas constituíam obstáculos
para a plena expansão do capital como mediação de segunda ordem.
Nas sociedades pré-capitalistas, o capital existia em sua forma histo-
ricamente arcaica, demarcando, é claro, explorados e exploradores, tra-
balho material e trabalho intelectual, mas não exercendo a função regu-
ladora exclusiva básica na ordem societal. Na verdade, não se constituía
como sistema de metabolismo social, embora existisse como complexo
de mediações historicamente determinadas de controle e estruturas
institucionais, subordinando estritamente todas as funções reproduti-
vas sociais à divisão do trabalho.
Desde a sua origem histórica há milhares de anos, o capital
constituiu-se como estrutura de mando vertical, que instaurou uma
divisão hierárquica do trabalho capaz de viabilizar o novo sistema de
metabolismo social baseado nas classes sociais, Estado e ideologia,
voltado, deste modo, para a necessidade da contínua, sistemática e
crescente extração de sobretrabalho das classes exploradas e oprimidas,
no qual o trabalho deve subsumir-se realmente ao capital. Entretanto, a
natureza do sobretrabalho assumiu formas históricas (renda fundiária,
corvéia ou mais-valia – no caso do modo de produção capitalismo).

144 O Duplo Negativo do Capital


É com o modo de produção capitalista que o capital constituiu-se
como categoria histórica efetiva [wirklichkeit, em alemão], com a plena
posição (e vigência) das “mediações de segunda ordem” na vida moder-
na do capital, sendo caracterizadas pelos seguintes elementos:
1. A separação e alienação entre o trabalhador e os meios de
produção;
2. A imposição das condições objetivadas e alienadas de produção
da vida social sobre os trabalhadores, como um poder separado
que exerce o mando sobre eles;
3. A persona do capital como um valor “egoísta”, com sua “subjeti-
vidade” e “pseudopersonalidade” usurpadas pelo sistema, sendo
personas voltada para o atendimento dos imperativos expansio-
nistas do capital;
4. A equivalente persona do trabalho, isto é, a personificação dos
trabalhadores assalariados como trabalho (força de trabalho),
destinado a estabelecer em si e para si, urna relação de dependên-
cia com o capital historicamente dominante; essa personificação
reduz a identidade do sujeito da força de trabalho (como merca-
doria) a suas funções produtivas fragmentárias.

A relação-capital
(Capital, Trabalho e Estado)
(mediações de segunda ordem entre o Homem e a Natureza)

Alienação
A Separação entre os Trabalhador e os Meios de Produção

Estado e Divisão Hierárquica do Trabalho

Personas do Capital

Personas do Trabalho
(Trabalhadores Assalariados como Força de Trabalho)

Assim, cada um dos modos de “mediação de primeira ordem” do


sociometabolimso homem-natureza é alterado e subordinado aos

A Contribuição de István Mészáros 145


imperativos de reprodução do capital como metabolismo social estra-
nhado. As funções produtivas e de controle do processo de trabalho
social são, por exemplo, radicalmente separadas entre aqueles que pro-
duzem e aqueles que controlam. Tendo o capital se constituído como o
mais poderoso e abrangente sistema de metabolismo social, o sistema
de mediação de segunda ordem da moderna vida do capital, tem um
núcleo constitutivo formado pelo tripé capital, trabalho e Estado. De
acordo com Mészáros, estas três dimensões fundamentais do sistema
são materialmente inter-relacionadas, tornando-se impossível su-
perá-las sem a eliminação do conjunto dos elementos que compreende
esse sistema. Não basta eliminar um ou até mesmo dois de seus pólos13.
Diz Meszáros: “Dada a inseparabilidade das três dimensões do
sistema do capital. que são completamente articuladas - capital,
trabalho e Estado - e inconcebível emancipar o trabalho sem simulta-
neamente superar o capital e também o Estado. Isso porque, parado-
xalmente, o material fundamental que sustenta o pilar do capital não é
o Estado, mas o trabalho. em sua contínua dependência estrutural do
capital (...). Enquanto as funções controladoras vitais do metabolismo
social não forem efetivamente tomadas e autonomamente exercidas
pelos produtores associados, ,mas permanecerem sob a autoridade de
um controle pessoal separado (isto é, o novo tipo de personificação do
capital), o trabalho como tal continuará reproduzindo o poder do capital
sobre si mesmo” mantendo e ampliando materialmente a regência da
riqueza alienada sobre a sociedade” (Mészáros, 2003)
Portanto, segundo o filosofo húngaro, não sendo uma coisa – em-
bora seja uma entidade material - e nem um mecanismo que possa
ser racionalmente controlável, o capital constitui urna poderosíssima

13 Na livro “Meszáros e a incontrolabilidade do capital”, Maria Cristina Paniago observou, a


partir de Mészáros, que a experiência soviética e seu desfecho histórico em 1991, demons-
trou corno foi impossível destruir o Estado (e também o capital) mantendo-se o sistema
de metabolismo social do trabalho alienado e heterodeterminado. O que se presenciou
naquela experiência histórica foi, ao contrário, a enorme hipertrofia estatal, uma vez que,
tanto a URSS, quanto os demais países pós-capitalistas, mantiveram os elementos básicos
constitutivos da divisão social hierárquica do trabalho. A “expropriação dos expropria-
dores”, a eliminação “juridicopolítica” da propriedade, realizada pelo sistema soviético,
“deixou intacto o edifício do sistema de capital” (Paniago, 2012).

146 O Duplo Negativo do Capital


estrutura totalizante de organização e controle do metabolismo socie-
tal, a qual todos, principalmente os seres humanos, devem se adaptar.
Esse sistema mantém domínio e primazia sobre a totalidade dos seres
sociais, sendo que suas mais profundas determinações estão orientadas
para a expansão e impelidas pela acumulação.
Enquanto nas formas societais anteriores ao capital – nas aglo-
merações humanas do “comunismo primitivo” na pré-história - “no
que concerne á relação entre produção material e seu controle, as
formas de metabolismo social se caracterizavam por um alto grau de
autossuficiência”, com o desenvolvimento do sistema do capital, - di-
riamos nós, principalmente quando este “acoplou-se” estruturalmente
ao modo de produção capitalista - o capital como metbaolimso social
tornou-se expansionista e totalizante, alterando profundamente o siste-
ma de metabolismo societal. E essa nova característica “fez com que o
sistema do capital se tornasse mais dinâmico que a sorna do conjunto
de todos os sistemas anteriores de controle do metabolismo social” –
ressaltamos nós, tendo em vista o “acoplamento estrutural” entre ca-
pital e capitalismo. A vida moderna do capital ou o capital como siste-
ma estruturalmente acoplado à auto-valorização do valor, demonstra
ser um sistema que não tem limites para a sua expansão (por exemplo,
ao contrário dos modos de organização societal anteriores, que busca-
vam em alguma medida o atendimento das necessidades sociais). Des-
te modo, o sistema de metabolismo social da vida moderna do capital
configurou-se corno um sistema, em última instância, ontologicamente
incontroláve1. (Paniago, 2012).
Compreender a dialética objetiva do capital na perspectiva dialé-
tico-materialista, histórica e transhistóricamente, implica, de acordo
com a análise de Mészáros, em conceber o processo de constituição
da forma capitalista do capital como resultado de um longo processo
cumulativo, não uniforme, de suas “formas de dominação historica-
mente precedentes”, tais como família, o controle do processo de traba-
lho, as instituições de intercâmbio, as formas políticas de. dominação,
etc, as quais se “fundiram num novo sistema poderoso e coerente”. Me-
todologicamente, temos aqui algo decisivo: trata-se de explicar o capital
pelo seu processo histórico-genético cum grano salis, isto é, respeitando

A Contribuição de István Mészáros 147


suas particularidades sócio-históricas e culturais, e evitando a ideo-
logia apolético burguesa de que “a dominação em si [seria] ‘natural’ e
insuperável.”.

Crises cíclicas do capitalismo e crise estrutural do capital


O modo de produção capitalista propriamente capitalista, o capi-
talismo industrial, se expandiu e se renovou desde meados do século
XIX por meio de crises cíclicas. István Mészáros observou que a no-
vidade que experimentamos é que a crise do capital que atinge nosso
tempo histórico é fundamentalmente uma crise estrutural e não me-
ramente uma crise cíclica. O capitalismo global como forma histórica
de desenvolvimento tardio do capital é um sistema mundial imerso em
profundas contradições sociais que não serão resolvidas apenas com a
superação do modo capitalista de produção da vida social, mas apenas
com a superação do capital como mediações de segunda ordem.
Na etapa de crise estrutural do capital expõem-se problemas crucias
do desenvolvimento humano, com a destruição ecológica, dennciado
´por Meszáros no ensaio “A necessidade do controle social”, de 1971. A
destruição ecológica pode ser caracterizada pela degradação da biosfera
(litosfera, hidrosfera, atmosfera e noosfera).
A biosfera ou ecosfera é o conjunto dos ecossistemas existentes no
planeta Terra, com todas as partes do planeta Terra onde existe (ou pode
existir) vida, abrangendo regiões da litosfera (crosta terrestre), hidrosfe-
ra (a esfera de todas as águas do planeta, os quais formam uma camada
descontínua sobre a superfície da Terra); atmosfera; e da noosfera ou
antroposfera (conceito teórico-científico do teólogo Teilhard de Char-
din e Vladimir Verdansky, que diz respeito à parte da biosfera mais in-
fluenciada pelo universo do pensamento humano, pela atividade men-
tal consciente).
Deste modo, a crise estrutural do capital é uma crise de civilização.
Não apenas a crise de civilização do capitalismo como modo de produ-
ção, mas a crise de civilização do capital que se expressa na degradação
do metabolismo social homem-natureza (a natureza humana, com o
cataclismo social, representado pela crescente massa de trabalhadores

148 O Duplo Negativo do Capital


precários e desempregados sem perspectivas de futuro digno, vítimas
do adoecimento físico e mental; e natureza natural, com o cataclismo da
biosfera devido o aquecimento global e a deriva climática).
A crise estrutural do capital como “terremoto histórico” historica-
mente inédito no processo civilizatório, abriu “fendas” sociais, políti-
cas e geopolíticas no sistema mundial do capital, expondo, de modo
candente, as contradições orgânicas da mundialização neoliberal. Pela
sua importância na caracterização do conceito de crise estrutural do
capital, reproduzimos abaixo, na íntegra, a formulação de Mészários.
Disse ele:
“A novidade histórica da crise de hoje torna-se manifesta em qua-
tro aspectos principais: (1) seu caráter é universal, em lugar de restrito
a uma esfera particular (por exemplo, financeira ou comercial, ou afe-
tando este ou aquele ramo particular de produção, aplicando-se a este
e não àquele tipo de trabalho com sua gama específica de habilidades
e graus de produtividade etc. (2) seu alcance é verdadeiramente global
(no sentido mais literal e ameaçador do termo), em lugar de limitado a
um conjunto particular de países (como foram todas as principais cri-
ses no passado); (3) sua escala de tempo é extensa, contínua, se preferir,
permanente, em lugar de limitada e cíclica, como foram todas as crises
anteriores do capital; (4) em contraste com as erupções e os colapsos
mais espetaculares e dramáticos do passado, seu modo de se desdobrar
poderia ser chamado de rastejante, desde que acrescentemos a ressalva
de que nem sequer as convulsões mais veementes ou violentas pode-
riam ser excluídas no que se refere ao futuro: a saber, quando a com-
plexa maquinaria agora ativamente empenhada na “administração da
crise” e no “deslocamento” mais ou menos temporário das crescentes
contradições perder sua energia. Seria extremamente tolo negar que tal
maquinaria existe e é poderosa, nem se deveria excluir ou minimizar a
capacidade do capital de somar novos instrumentos ao seu já vasto ar-
senal de autodefesa contínua. Não obstante, o fato de que a maquinaria
existente esteja sendo posta em jogo com freqüência crescente e com
eficácia decrescente é uma medida apropriada da severidade da crise
estrutural que se aprofunda”. (Mészáros, 2002)

A Contribuição de István Mészáros 149


Caracteristicas da crise estrutural do capital

Universalidade

Globalidade

temporalidade extensa

modo rastejante

Apesar de estar em crise estrutural, o capital se expande como modo


capitalista de produção de mercadorias. Esta é a lógica contraditória da
forma-valor por meio da dialética do colapso/exacerbação (a forma-va-
lor se expande extensiva e intensivamente na medida em que colapsa ).
Perguntemos: o que distingue historicamente o colapso da civilização
do capital acoplada estruturalmente ao modo capitalista de produção
vida social, do colapso de outras formas imperiais civilizacionais, tal
como, por exemplo, o Império Romano?
A decadencia histórica do Império Romano, que durou séculos,
ocorreu por meio da sua contração, fracionamento e invasão pelos bár-
baros do Norte. Enquanto isso, muito diferentemente, o colapso da ci-
vilização capitalista (o Ocidente), como materialidade histórica tardia
do sociometabolismo do capital, caracteriza-se pela expansividade (ex-
tensa e intensa) e proliferação universal das forma-valor “afetadas de
negação”, em formas constitutivas ou derivadas (Meszáros salientou a
expansividade e incontrolabilidade como traços significativos do capital
como sistema orgânico).
Deste modo, no século XXI, presenciamos a expansão do metabo-
lismo do capital implicado estruturalmente com a forma-valor (mesmo
“afetadas de negação”), não apenas pela manifestação do capitalismo
manipulatório, mas, por exemplo, com o surgimento do “modelo
chinês”, onde o Estado comanda a economia – um modo de “negação”
da forma-valor no interior do movimento do capital (consideramos a
China um novo modelo de acumulação de capital para além do capita-
lismo neoliberal).
É a característica histórica inédita da civilização do capital, impli-
cada estruturalmente com a expansividade da forma-valor, que faz com

150 O Duplo Negativo do Capital


que o capitalismo neoliberal sob hegemonia dos EUA e seus aliados es-
tratégicos, exacerbe suas contradições internas, não apenas no plano
extensivo, mas intensivo, com a disseminação das formas derivadas de
valor. Ao mesmo tempo, na medida em que aumentam as contradições
do sistema mundial do capital no século XXI, com o confronto comer-
cial, político (e militar) entre o pólo imperial decadente dos EUA versus
o pólo imperial ascendente da China/Rússia/Índia pelo controle geo-
politico do sistema mundial do capital, abre-se efetivamente a possi-
bilidade concreta do “colapso” do processo civilizatório e a extinção da
Humanidade tal como nós a conhecemos, caso a resolução dos impasses
geopoliticos no interior do bloco histórico do poder do capital seja re-
solvido por meios militares. Em suas últimas reflexões, o historiador
marxista E.P. Thompson adotouna década de 1980 o termo “modo de
produção exterminista” para caracterizar o capitalismo tardio à sombra
do conflito nuclear (Thompson, 1982). Deste modo, com o irracionalis-
mo da corrida armamentista no século XXI realizar-se-ia o sentido lite-
ral daquilo que István Mészáros salientou como o caráter de produção
destrutiva (e autodestrutiva) do capital.

A Contribuição de István Mészáros 151


152 O Duplo Negativo do Capital
Capitulo 5

O Duplo Negativo do C apital

Em fins da década de 1980, depois de uma década de capitalismo ne-


oliberal em transição histórica para o capitalismo global, ocorreu a re-
tomada da lucratividade dos oligopólios industrias que comandavam a
economia mundial. Entretanto, o aumento da lucratividade ficou abaixo
do patamar ocorrido nos “trinta anos dourados” do capitalismo fordista-
-keynesiano. Apesar da reestruturação produtiva do capital e da reestru-
turação da economia capitalista nos países capitalistas centrais, a crise
estrutural de lucratividade persistia. Os lucros cresceram, mas não num
patamar capaz de incentivar o aumento do investimento produtivo.
A superprodução da massa de capital-dinheiro fez com que a maior
parte fosse canalizado para a esfera das finanças. Apesar do aumen-
to da taxa de exploração, por conta do impulso à precarização estru-
tural do trabalho, traço constitutivo do capitalismo global, persistia a
pressão exercida pelo aumento da composição orgânica do capital, im-
pulsionada por duas importantes revoluções tecnológicas no limiar da
IV Revolução Industrial: a (1) revolução informática e a (2) revolução
informacional.
Desde o pós-guerra (1945), o capitalismo tardio, por conta do aumen-
to da concorrência no mercado mundial, incrementou inovações tecno-
lógicas e organizacionais, impulsionando na esfera produtiva, o aumento
do investimento em capital constante em detrimento do investimento em
capital variável, levando ao aumento da composição orgânica do capital.
A Terceira Revolução Industrial, salientada por Ernst Mandel no seu li-
vro clássico “O capitalismo tardio”, impulsionou, após a recessão global

O Duplo Negativo do Capital 153


de 1973-1975, um salto qualitativamente novo de mudanças tecnológicas
com efeitos significativos na base técnica da produção de valor, e inclusive
na esfera do trabalho concreto (por exemplo, a maior presença do dito
“trabalho imaterial” na composição técnica do capital). Portanto, após
a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) – e estamos tratando das eco-
nomias capitalistas que constituem o “centro orgânico” da produção do
capital – ocorreu crescente pressão pela queda da taxa média de lucros
por conta do notável progresso técnico no setor oligopolista da economia
e o aumento da composição orgânica do capital.
O gráfico 1 nos mostra a perspectiva histórica da evolução da lucra-
tividade nos países capitalistas centrais desde 1855. É visivel a queda
histórica da lucratividade do capital cai desde 1945, o período do capi-
talismo tardio, embora tenha se estabilizado de 1946 a 1960. A partir de
1960, observamos novamente o movimento de queda da lucratividade,
aprofundada em 1973. Ela prossegue caindo até 1980. A partir daí, com
o capitalismo neoliberal, em transição para o capitalismo global, a taxa
de lucros se estabiliza num patamar rebaixado, tendo um leve cresci-
mento até 2000, quando cai devido a crise da Nasdaq (“new economy”).
Devido aos incentivos da política monetária do “Federal Reserve” nos
EUA para combater a crise de 2001, tivemos a recuperação da lucrativi-
dade do capital de 2002 a 2007, dando origem à bolha especulativa que,
ao estourar em 2007, provocou a queda abrupta da lucratividade para
um patamar mais rebaixado.

Gráfico 1: Taxa de lucratividade nos países capitalistas centrais (1855-2009)

“Anos dourados” do capitalismo Era do capitalismo


fordista-keynesiano neoliberal

Fonte: Roberts, 2016

154 O Duplo Negativo do Capital


No Gráfico 2, que nos apresenta também o movimento de que-
da histórica da lucrativdade nos paises caítalistas centrais, perce-
bemos com mais detalhes, três notáveis inflexões de queda da taxa
de lucros: em 1946 (em relação à alta da lucratividade no decorrer
da Segunda Guerra Mundial (1939-1945); em 1973 e em 2008. A
dinâmica descendente da taxa de lucros após a Segunda Guerra
Mundial (1945) pode ser explicada pela pressão estrutural do au-
mento da composição orgânica do capital devido, em primeiro
lugar, à expansão da Segunda Revolução Industrial no imediato
pós-guerra; e, depois, o impulsionamento da Terceira Revolução
Industrial na década de 1970, a partir da qual ocorreram duas im-
portantes revoluções tecnológicas (a revolução informática e revo-
lução informacional). Portanto, foi o notável progresso técnico e
o aumento da composição orgânica do capital que caracterizou o
capitalismo tardio que explica, apesar dos movimentos contraten-
denciais, a queda histórica da lucratividade.

Gráfico 2: Trajetória da Taxa de Lucro no Países Capitalistas Centrais


(1870-2008)

Fonte: Duménil e Lévy (2014)

No interior da afirmação da tendência de queda da taxa mé-


dia de lucro constituiu-se, pelo menos desde o pós-Segunda Guera
Mundial (1945), movimentos contratendenciais à queda histórica da

O Duplo Negativo do Capital 155


lucratividade. O capitalismo tardio é a forma histórica no interior da
qual se constituiu tais movimentos contratendenciais, tais como, no pe-
ríodo de 1945-1975, a expansão dos mercados capitalistas, o complexo
industrial-militar, a desvalorização do capital constante pela aceleração
de rotação do capital fixo e capital circulante; e a o Estado de Bem-Estar
Social que, via fundo público, desvalorizou o capital variável por meio
do salário indireto.
De 1946 a 1960, as economias capitalistas centrais tiveram um perí-
odo de expansão sustentável do capital, com a hegemonia norte-ameri-
cana no mercado mundial no interior do qual operavam os movimentos
contratendenciais. Entretanto, o movimento do capital é contraditório:
a concorencia capitalista afirmou no mercado mundial, a lei do valor,
com o aumento da cmposição orgânica do capital pressionando para
baixo a lucratividade:
Por um lado, os oligopólios industriais utilizaram-se do fundo pú-
blico como importante elemento contratendencial à queda da taxa de
lucratividade, enquanto os capitais competitivos, sem acesso ao fundo
público, recorreram à utilização do trabalho precário (no caso dos EUA,
negros e imigrantes)
Por outro lado, de modo contraditório, o fundo público foi utiliza-
do para financiar o progresso técnico via complexo industrial-militar,
contribuindo deste modo, para o aumento da composição orgânica do
capital.
Ao mesmo tempo, o Estado de Bem-Estar Social sedimentou no pla-
no da luta de classes, um novo patamar de enfrentamento social, que,
nas condições de tendencia historica de queda da lucratividade, tornou-
-se explosivo. Assim, apesar do Estado de Bem-Estar e a utilização do
fundo público terem operados como um importante elemento contra-
tendencial à queda da lucratividade na primeira etapa do capitalismo
tardio, sua constituição histórica (o compromisso fordista) desafiou a
“linha de menor resistência” do capital (Meszaros).
As contradições sociais do capitalismo fordista-keynesiano se mani-
festaram com vigor na década de 1960, quando a queda da lucrativida-
de começou a explicitar-se, principalmente na última metada dos anos
1960. As contingencias historicas da luta de classes impulsionraam o

156 O Duplo Negativo do Capital


sistema mundial do capitalismo a um novo patamar de desenvolvimento
com a recessão global de 1973-1975. Tivemos um complexo de reestru-
turação capitalista que articulou movimentos contratendenciais à crise
histórica de lucratividade (a reestruturação produtiva do capital com a
desvalorização do capital variável, a desvalorização “problemática” do
capital constante, a expansão dos mercados capitalistas) e, ao mesmo
tempo, o deslocamentos de contradições operados pelo Estado neoliberal
no interior da ordem do capital em sua fase de crise estrutural.
A financeirização da riqueza capitalista não é um movimento con-
tratendencial à crise estrutural de lucratividade do capital, mas sim,
um movimento de deslocamento de contradições operando a “linha de
menor resistência” do capital: ela desloca a luta de classes, no plano po-
lítica, para a luta contra frações rentistas-parasitárias, ao invés da luta
contra o modo de produção capitalista; além disso, o próprio capital
financeiro oculta o movimento de exploração, ressaltar como elemento
“essencial” do sistema, a espoliação financeira.
Entretanto, além do movimento de deslocamento de contradições
do capital, que não pode ser desprezado no plano da aparencia (e da
contingencia histórica) do sistema do capital, operou-se mudanças es-
truturais na composição do lucro capitalista, com a presença cada vez
mais decisiva, do “lucro fictício” derivado do movimento de fuga do
capital-dinheiro acumulado com o aumento da taxa de exploração,
para os mercados financeiros (Gomes, 2015). Vários autores salientam a
seu modo, o fenômeno da financeirizacao do capital como importante
elemento para explicar o movimento de crise do capitalismo global.
Com o capitalismo neoliberal, a “corrosão” do Estado de Bem-Estar
Social operou movimentos contratendenciais e operações de desloca-
mentos de contradições. Por exemplo, o capitalismo neoliberal compro-
meteu-se, por um lado, com politicas de desvalorização do capital va-
riável, respeitando a “linha de menor resistencia” do capital – assim, ao
invés de ampliar o salário indireto e elementos de Anti-valor na ordem
do capital, como ocorreu com o Estado de Bem-Estar Social (o com-
promisso político-histórico do Estado de Bem-Estar Social tornou-se
inadequado para o capital), o movimento do capital social total, diante
da crise estrutural de lucratividade, capturou o fundo público para as

O Duplo Negativo do Capital 157


politicas de precarização estrutural do trabalho, desvalorizando efe-
tivamente o capital variável (desemprego em massa, enfraquecimento
sindical e formas precárias de trabalho). Ao mesmo tempo, como vimos
acima, o capitalismo neoliberal operou mecanismos de deslocamentos
de contradições com a utilização das finanças para enfrentar a crise da
forma-mercadoria.

Formas de operação do capital


(etapa histórica da crise estrutural do capital)

“linha de menor resistencia do capital”

movimentos contratendenciais
aumento da taxa de exploração
(mais-valia relativa + mais-valia absoluta)
novos mercados
desvalorização do capital constante
(novo imperialismo)
(complexo industrial-militar)

Estado neoliberal
Fundo Público

deslocamentos de contradições
financeirização do capital
acumulação por espoliação
barbarie social

Diante da crise estrutural de lucratividade e da crise estrutural do


capital, podemos discriminar dois modos de operações do capital como
“sujeito automático” do processo de valorização e modo estranhado
de controle do metabolismo social: (1) movimentos contratendenciais à
crise estrutural de lucratividade e os (2) deslocamentos de contradições
diante da crise estrutural do capital.
Os movimentos contratendenciais à queda da taxa de lucro operam no
plano do movimento de acumulação do capital produtivo e da produção

158 O Duplo Negativo do Capital


de valor – no limite da crise do valor devido a sua desmedida. Podemos
salientar, num primeiro lugar, o aumento da taxa de exploração, que se
utiliza de um complexo de mecanismos – sob o capitalismo global des-
tacamos a “fusão” entre mais-valia relativa e mais-valia absoluta; a des-
valorização do capital constante pelo taxa de utilização decrescente do
valor de uso, aceleração do progresso técnico, novo imperialismo com a
predação de recursos estratégicos que compõem o capital circulante; e
depois, a abertura de novos mercados, impulsionado pela concorrência,
seja internamente (obsolescencia planejada) ou externamente (globali-
zação). Por exemplo, o complexo industrial-militar tornou-se elemento
estrutural da dinâmica de desvalorização do capital-mercadoria e in-
clusive, capital constante, na etapa de crise estrutural de lucratividade.
Os movimentos de deslocamentos de contradições do capital, não
operam no plano da lei do valor, mas contribuem para a reprodução
do capital como sistema de metabolismo social. Destacamos acima, a
financeirização da riqueza capitalista como um importante movimento
de deslocamento de contradições no sentido que opera a crise da forma-
-mercadoria e oculta a produção do valor pelo “fetiche do capital-di-
nheiro”. Ao deslocar contradições, o capital não as suprime, mas, pelo
contrário, as eleva a um patamar superior. O processo civilizatório da
sociedade do emprego paga um alto preço à lógica da financeirização da
riqueza capitalista construida pelo capitalismo neoliberal.
O predomijio do capital financeiro realiza contingencialmente, a
afirmação do fetiche da mercadoria intrínseca ao próprio modo capi-
talista de produção da vida social. Ele se origina como fração do capital
do próprio desenvolvimento das contradições estruturais da acumula-
ção de valor. O Estado neoliberal, forma política do capital financei-
ro, ao pôr-se à serviço do capital financeiro, compõe-se politicamente
com mecanismos contratendencias à crise estrutural de lucratividade,
operando o aumento da taxa de exploração e o aumento do consumo
por meio de mecanismos bancários e financeiros (existe uma afinidade
sistêmica entre toyotismo como novo produtivismo e financerização da
riqueza capitalista).

O Duplo Negativo do Capital 159


Capital como contradição viva
No plano da essencia do sistema, a utilização da desvalorização
do capital variável como mecanismo contratendencial de maior
eficácia para reduzir a composição orgânica do capital, possuía
uma condição sine qua non: a desvalorização do capital constante
(capital fixo + capital circulante) deveria ocorrer numa velocidade
igual ou maior que a desvalorização do capital variável em termos
de valor (na equação abaixo, C é a composição orgânica do capital,
medida em termos de valor).

capital constante
C= ____________________ (em termos de valor)

capital variável

Mas, foi o que não ocorreu: apesar do impulsionamento das revo-


luções tecnológicas na nova etapa do capitalismo tardio em transição
histórica para o capitalismo global e o limiar da Quarta Revolução Tec-
nológica no começo do século XXI, o capital constante não conseguiu
se desvalorizar numa velocidade igual ou superior à desvalorização do
capital variável. O aumento histórico da composição orgânica do capital
pressionou para baixo a taxa média de lucro das corporações indus-
triais, ou pelo menos impediu que ela aumentasse apesar do crescimen-
to da taxa de exploração num patamar inédito do capitalismo tardio.
A título de hipóteses explicamos as dificuldades de desvalorização
do capital constante utilziando um argumento oriundo da lógica da
desmedida do valor (o que veremos logo adiante):
1. Na etapa de crise estrutural da lucratividade e crise estrutural
do capital, o movimento de desvalorização do capital constan-
te tornou-se a variável decisiva no desenvolvimento contraten-
dencial à queda da taxa média de lucro. A “taxa de utilização
decrescente” (Meszaros), elemento da autoreproducao destru-
tiva do capital, precisa generalizar-se pelos departamentos de
meios de produção e não apenas pelo departamento de bens de

160 O Duplo Negativo do Capital


consumo; eis a funcionalidade do complexo industrial-militar
(Andrew Kliman observou que foi a falta da “destruição de ca-
pital” que impediu a retomada da taxa de lucratividade depois
da recessão global de 1973-1975) (Kliman, 2011).
2. A quase-inércia do movimento de desvalorização do capital
constante, além das dificuldades do movimento de desvaloriza-
ção do capital constante no departamento de meios de produção
e da ausência da destruição de capital, pode ser explicada pelo
fenômeno da desmedida do valor e pela natureza do progresso
técnico, cada vez mais permeado pelo trabalho imaterial, for-
ma material de trabalho concreto mais recalcitrante à operação
do trabalho abstrato. Portanto, a profunda desvalorização do
capital variável ocorrida nas décadas neoliberais (1980-...) não
foi suficiente para promover por si só, a retomada da lucrati-
vidade com taxas iguais ou superiores àquela da era dourada
do capitalismo fordista-keynesiano (1945-1975); e à altura das
expectativas de realização adequada à massa de capital-dinheiro
acumulada na década de 1980. Assim, foi necessário que a
desvalorização do capital constante ocorresse numa velocidade
superior – o que não ocorreu.

Capitalismo global e a disputa pelo Fundo Público


O capitalismo global é a forma histórica no interior da qual se de-
senvolve o movimento tendencial/contratendencial à crise estrutural
da lucratividade do capital e os movimentos de deslocamentos de con-
tradições do capital. A financeirizacao da riqueza capitalista é o mais
importante mecanismo de deslocamento de contradições do capital,
assumindo a função crucial na absorção da superprodução da massa de
capital-dinheiro oriunda dos lucros retidos das corporações industriais
e dos fundos de pensão.
O fortalecimento do capital financeiro no bloco no poder do ca-
pital, operado pela Estado neoliberal, representou a “colonização” do
Estado-nação pela oligarquia financeira global. Portanto, com o ca-
pitalismo global consolidou-se, no plano da contingência histórica, a

O Duplo Negativo do Capital 161


hegemonia do capital financeiro, construindo-se o que poderiamos de-
nominar de sistema-mundo do capitalismo global predominantemente
financeirizado.
O espaço “desterritorializado” das finanças globais “colonizou” os
Estados-nação, que se tornaram províncias do sistema do capitalismo
global, por meio da imposição de políticas neoliberais, operadas no
plano político-ideológico pelas tecnoburocracias globais (FMI, Banco
Mundial, OMC, OCDE). Promoveu-se as operação sincronizado de
desvalorização do capital variável, o desmonte dos direitos sociais, tra-
balhistas e previdenciarios como movimentos contratendenciais à crise
estrutural de lucratividade.
Nas condições históricas da necessidade do aumento da taxa de
exploração, por conta da crise estrutural de lucratividade, colocou-se
como prioridade política do capital, a guerra contra direitos do mundo
do trabalho. Como observou Francisco de Oliveira, “[...] é no campo
dos direitos, do conflito pelos direitos, da negação dos direitos, que se
plasma o totalitarismo neoliberal” (Oliveira, 1998)
Com o capitalismo global, o capital financeiro, a fração hegemônica
do capital na época da sua crise estrutural, fração capaz de promover o
deslocamento das contradições estruturais do capital, operou efetiva-
mente a “implosão” dos territórios do Estado-nação como base material
de regulação do trabalho (eis o sentido da globalização neoliberal). A
constituição do capitalismo global promoveu um salto qualitativamen-
te novo na ofensiva do capital no plano mundial. Ele impôs a agenda
global de precarização salarial adequada à nova dinâmica do sistema-
mundo do capital financeiro: expansão das modalidades flexíveis (ou
precárias) de contratação salarial (a metamorfose da forma-salário”) e a
implosão da categoria de “jornada do trabalho”. Portanto, disseminou-
-se a nova precariedade salarial (Alves, 2014; 2016)).
Na arquitetura do deslocamento das contradições originárias da
crise estrutural de lucratividade e da crise estrutural do capital, o ins-
trumento da dívida pública tornou-se o canal privilegiado utilizado
pelos oligopólios financeiros globais para operarem a sucção das rique-
zas produzidas pelas massas trabalhadoras, executando, deste modo, a

162 O Duplo Negativo do Capital


predação do fundo público em detrimento do Estado de bem-estar so-
cial. Em 1994, François Chesnais observou:
“Para a classe operária e as massas trabalhadoras, o que o capital
tende a restaurar é o regime do ‘tacão de ferro’, como o chamava Jack
London. A ascensão do capital financeiro foi seguida pelo ressurgimen-
to de formas agressivas e brutais de procurar aumentar a produtividade
do capital em nível microeconômico, a começar pela produtividade do
trabalho. Tal aumento baseia-se no recurso combinado às modalida-
des clássicas de apropriação da mais-valia, tanto absoluta como relati-
va, utilizadas sem nenhuma preocupação com as consequências sobre
o nível de emprego, ou seja, o aumento brutal do desemprego, ou com
os mecanismos viciosos da conjuntura ditada pelas altas taxas de ju-
ros. Todas as virtudes atribuídas ao ‘toyotismo’ estão dirigidas a obter a
máxima intensidade do trabalho e o máximo rendimento de uma mão-
-de-obra totalmente flexível, à qual se volta a contestar, cada vez mais o
direito de organização síndícal.” (Chesnais, 1996).
O capitalismo global, como forma histórica predominantemente fi-
nanceirizada do capitalismo monopolista, organiza-se em dois setores
de produção (e distribuição) de mais-valia que se superpõem-se e se en-
trelaçam, de varias maneiras, mantendo suas características distintas:
O setor dos capitais competitivos, onde a produtividade é baixa e o
crescimento da produção depende menos do capital investido e do pro-
gresso técnico do que da expansão do emprego. A produção é de peque-
na escala e os mercados são locais ou regionais. As empresas competiti-
vas dedicam-se principalmente a serviços e distribuição, empregando a
maioria da força de trabalho.
O setor oligopolista, onde a produtividade é alta, o crescimento da
produção depende menos da expansão do emprego do que do cresci-
mento da produtividade do capital e do progresso técnico. A produção é
de larga escala e os mercados são nacionais ou internacionais. Há duas
amplas camadas de trabalhadores assalariados no setor monopolista: os
trabalhadores manuais (“blue-collar”) e os trabalhadores administra-
tivos ou burocráticos (“white-collar”). É nas empresas do setor oligo-
polista onde surgiram os sindicatos mais organizados e com poder de
barganha sindical.

O Duplo Negativo do Capital 163


Esta é a distribuição das empresas capitalistas responsáveis pela
produção do capital, incluindo setores produtivos propriamente ditos e
setores improdutivos interiores à produção do capital (finanças, distri-
buição e comércio) (O´Connor, 1977).
Esta arquitetura do capitalismo monopolista herdada do capitalis-
mo tardio, com a organização em holding, tornou-se funcional para a
espoliação financeira como movimento de deslocamento das contradi-
ções do capital em sua etapa de crise estrutural de lucratividade. Para
isso, desenvolveram-se no interior da arquitetura do capital monopolis-
ta descrita acima, mercado abertos de capitais que aproximam ou inte-
gram bancos e indústrias, movimento de operação da sucção financei-
ra de mais-valor dos capitais competitivos para o capital monopolista
e disputa da distribuição da massa de mais-valor no interior do setor
oligopolista.
Ao mesmo tempo, visando compor outro movimento de desloca-
mento das contradições, ao lado da financeirizacao da riqueza capi-
talista, incentiva-se e aprofunda-se o consumo de massa por meio da
aproximação das instituições bancárias e financeiras no fornecimento
de crédito pessoal.

Capitalismo do Estado de Bem-Estar Social e Fundo Público


Foi o setor oligopolista com acesso ao fundo público que sustentou o
compromisso fordista (1946-1973), sendo o receptáculo dos direitos do
Welfare State; o segundo, o setor dos capitais competitivo, caracterizou-
-se historicamente pela precariedade salarial, onde os trabalhadores as-
salariados são mal-remunerados e sem garantia de emprego e escassa
organização sindical. Como observou Harvey: “A negociação fordista
de salários estava confinada a certos setores da economia e a certas na-
ções-Estados em que o crescimento estável da demanda podia ser acom-
panhado por investimentos de larga escala na tecnologia de produção
de massa. Outros setores de produção de alto risco ainda dependiam
de baixos salários e de fraca garantia de emprego. E mesmo os setores
fordistas podiam recorrer a setores não-fordistas de subcontratação.”
(Harvey, 1992)

164 O Duplo Negativo do Capital


O modo de organização do fundo público com o capitalismo do Es-
tado de bem-Estar Social, dissolveu-se a tendencia a formação de uma
única taxa média de lucro, para dar lugar, no mínimo, a duas taxas mé-
dias: a do setor oligopolista e a do setor concorrencial primitivo: “[...] o
fundo público é decisivo na formação da taxa média de lucro do setor
oligopolista, e pelo negativo, pela sua ausência, na manutenção de ca-
pitais e capitalistas no circuito do setor concorrencial primitivo.” (Oli-
veira, 1998). Portanto, nas condições históricas da primeira etapa do
capitalismo tardio, o fundo público tornou-se decisivo para a formação
da taxa média de lucro do capital em geral. Passava pelo fundo público
a per-equação 14 entre a taxa de lucro do setor oligopolista e a taxa de
lucro do setor dos capitais competitivos.
Com o capoitalismo global, ao mesmo tempo que capturou o fun-
do púbico, o capital financeiro operou a sucção de valor do setor dos
capitais competitivos. Deste modo, constituiram-se as cadeias de valor
que, no plano do mercado mundial, operam a per-equação das taxas de
lucro, antes efetivada pelo fundo público.
Para Francisco de Oliveira, a noção de fundo público, diz respeito a
“recursos geralmente estatais que, no capitalismo contemporâneo, - a
rigor, desde a adoção e formulação generalizadas das políticas anticí-
clicas -, fundem-se aos recursos privados para sustentar, e não apenas
reprimir, as tendencias depressivas, a expansão do capital.” (Oliveira,
1998). Embora a reprodução do capital oligopolista requisite de forma
estrutural o fundo público, diz Francisco de Oliveira que ele não é parte
do mecanismo de autorreprodução do capital, porque é essencialmente
político. Foram as políticas keynesianas e a relevância das organizações
de trabalhadores, sindicatos e partidos de classe (a esfera pública), na
vigência mais abrangente do Estado de bem-estar social, que deram ori-
gem ao fundo público capitalista. Diz ele: “[...] o fundo público é agora
um ex-ante das condições de reprodução de cada capital particular e das
condições de vida, em lugar de seu caráter ex-post, típico do capitalismo
concorrencial. Ele é a referência pressuposta principal, que no jargão de
hoje sinaliza as possibilidades de reprodução. Ele existe ‘em abstrato’

14 Ato de distribuir ou tornar igual a taxa de lucro entre os múltiplos capitais.

O Duplo Negativo do Capital 165


antes de existir de fato: essa ‘revolução copernicana’ foi antecipada por
Keynes, ainda que a teorização de Keynes se dirigisse à conjuntura.”
E arremata: “A per-equação da formação da taxa de lucro passa pelo
fundo público, o que o torna um componente estrutural insubstituivel.”
(Oliveira, 1998). Esta era a lógica do capitalismo do Estado de Bem-
-Estar Social desenvolvido na primeira etapa do capitalismo tardio por
conta do “compromisso fordista” (David Harvey).
Enquanto o capitalismo tardio cresceu sob a hegemonia norte-
-americana, a lógica dialética do Estado de Bem-Estar Social (Welfare
State) foi adequada à reprodução do capital, na medida em que a crise
estrutural de lucratividade não tinha se manifestado, e as contradições
do capital ainda não tinham explicitado enquanto contradições do me-
tabolismo social. Durante a golden age do capitalismo tardio, o Estado
de Bem-Estar Social foi a forma político-estatal de operação do movi-
mento contratendencial à queda da lucratividade nas condições históri-
cas da contingência da luta de classes no plano político e geopolítico (o
“compromisso fordista” e a “Guerra Fria” entre EUA e URSS).
Ao analisar a era do capitalismo do Welfare State nos EUA, James
O´Connor destacou a constituição do “Estado previdenciario-militar”,
caracterizado pela articulação das despesas sociais de produção e os
gastos imperiais dos EUA, como expressão da utilização do fundo pú-
blico como elemento estruturante da primeira etapa do capitalismo
tardio (O´Connor, 1977; Behring, 1998). Na verdade, no âmago do Es-
tado de Bem-Estar Social dos EUA, operava o “Warfare State”, com o
complexo industrial-militar atuando como elemento contratendencial
à pressão exercida pelo aumento da composição orgânica do capital no
rebaixamento da taxa média de lucro.
No interior da primeira etapa histórica do capitalismo tardio (o
capitalismo do Estado de Bem-Estar Social) operavam movimentos
contraditórios na dinâmica da produção (e reprodução) do valor por
conta da contingencia histórica – que não pode ser desprezada logica-
mente na forma do aparecer da essencia. Por exemplo, de acordo com
Francisco de Oliveira, ocorreram, por conta dos movimentos contra-
tendenciais operados pelo Estado de Bem-Estar Social (“the golden
age”), desdobramentos inusitados no plano da operação da lei do valor.

166 O Duplo Negativo do Capital


Constituiram-se o anti-valor e as antimercadorias, efetivando-se a ten-
dencia à des-mercantilização da força de trabalho pelo fato de que, os
componentes de sua reprodução representados pelo salário indireto
tornaram-se antimercadorias sociais. Diz Oliveira: “[..] isto representou
uma certa liomogeneização do mercado e do preço da força de trabalho,
levando à autonomização do capital constante [...].”(Oliveira, 1998).
Foi no seio do movimento contratendencial à queda da lucrativida-
de, ocorridos na peimeira etapa do capitalismo tardio, que se consti-
tuiu a “autonomização do capital constante”, um elemento estrutural da
nova dinâmica do capitalismo tardio. Após a Segunda Guerra Mundial,
tivemos a expansão da produção fordista pelo mercado mundial, repre-
sentando a universalização da grande indústria (foi nesse período histó-
rico que, por exemplo, o Brasil desenvolveu sua industrialização pesada
de feição hipertardia em fins da década de 1950). A “autonomização do
capital constante” não nasceu com o capitalismo do Welfare State, mas
foi no pós-Segunda Guerra Mundial que assumiu uma dimensão plena,
sendo ela intrínseca ao processo de constituição das forças capitalistas
de produção e a consequente dominação dos elementos subjetivos do
processo de trabalho pelos elementos objetivos consubstanciados no
sistema de maquinaria. Deste modo, ocorreu a “autonomização” da es-
trutura técnica do capital, que expressou a redução drástica do tempo
de trabalho socialmente necessário e a produção continuada da mais-
-valia relativa – no limite operou-se o femnomeno da “desmedida do
valor” (ver adiante).
Nas condições históricas da primeira etapa de desenvolvimento do
capitalismo tardio, ocorreu o “salto mortal” da produtividade do tra-
balho, como denomina Francisco de Oliveira (Oliveira, 2005): “O pro-
gresso técnico passa a fazer parte das virtudes do sujeito-capital e como
tal só pode se exprimir enquanto arma de combate dos capitais indivi-
duais.” (Beluzzo 1987). O resultado do “salto mortal” de produtividade
do trabalho provocado pela “autonomização” do capital constante, foi
o aumento crônico da composição orgânica do capital, que pressionou
a lucratividade, pelo menos desde a última metade da década de 1960.
Como dissemos, não foi o capitalismo tardio com a expansão for-
dista-taylorista do capitalismo do pós-guerra, quando se difundiu o

O Duplo Negativo do Capital 167


sistema de maquinaria com a industrialização da periferia capitalista
pari pasu à reconstrução da indústria na Alemanha e Japão na déca-
da de 1960, que “inventou” o aumento da produtividade do trabalho.
Esta tendencia histórica caracteriza o capitalismo do século XX desde o
surgimento do capitalismo monopolista no interior da primeira longa
depressão da economia mundial em fins do século XIX (1873-1895).
Durante a primeira etapa do capitalismo tardio caracterizado pela
presença do “Welfare State” (e do “Warfare State” com o complexo in-
dustrial-militar) desenvolveu-se a “autonomização do capital constan-
te” e a tendencia à desmercantilização da força de trabalho, com o salá-
rio real tendo no salário indireto um componente nada desprezível. De
acordo com Francisco de Oliveira, tal movimento contraditório do ca-
pital fez com que a reprodução do capital se desvinculasse das “amarras
da dialética” em que as inovações técnicas se davam, sobretudo, como
reação aos aumentos de salários diretos reais. Oliveira destaca na pri-
meira etapa histórica de desenvolvimento do capitalismo tardio, aquilo
que iremos salientar adiante como a desmedida do valor. As inovação
técnica, ao se desparametrizar do salário real total, teve um impulso
sem paralelo, impulsionando mais ainda, o aumento da composição or-
gânica do capital que, levaria à crise estrutural da lucratividade (como
salientamos, de 1946 para 2010, o capitalismo mundial não só expandiu
a Segunda Revolução Industrial, mas alavancou a Terceira Revolução
Industrial, criando as bases no começo do século XXI, para a Quarta
Revolução Industrial – um verdadeiro surto de inovações tecnológicas
em pouco mais de 60 anos!). Diz Francisco de Oliveira: “ [...] o capital se
move agora numa relação em que o preço da força de trabalho é indife-
rente do ponto de vista das inovações técnicas e o parâmetro pelo qual
se mede a valorização do capital é um mix, em que o fundo público não
entra como valor.” [o grifo é nosso] (Oliveira, 1997).

Valor e Anti-Valor: o falso dilema


Alguns autores - por exemplo, Behring (2008) e Salvador (2010) –
discordam que o fundo público não seja um elemento de valor. Para
eles, não existe o Anti-valor proposto por Francisco de Oliveira.

168 O Duplo Negativo do Capital


Entretanto, o fundo público, tal como se constituiu na primeira etapa
histórica do capitalismo tardio (com o capitalismo do Estado de Bem-
-Estar Social), entrava como valor e, ao mesmo tempo, como Anti-valor.
O fundo público enquanto categoria histórico-politica, representa uma
unidade contraditória, sendo a condensação plena da luta de classe nas
condições do capitalismo tardio – inclusuive do capitalismo do Estado
neiliberal15.
Durante a temporalidade histórica do “Welfare State”, pelo menos
até 1975, no países do capitalismo central, o fundo público era um ente
“excêntrico” que funcionou como movimento contratendencial à queda
histórica da lucratividade (com o “Warfare State”) e como mecanismo
de deslocamento de contradições, no plano historico-político (com o
“Welfare State”). O excentrismo do fundo público (valor e Anti-valor)
condensou a luta de classes naquele período.
Entretanto, com o declínio do Estado de Bem-Estar Social enquanto
projeto político de reprodução do capital, a partir da recessão global de
1973-1975, colocou-se a necessidade da substituição do “Welfare Sta-
te” pelo “Neoliberal State”, o que ocorreu na década de 1980, rumo ao
capitalismo global, quando o fundo público foi capturado pelo capital
financeiro (o que não significa que o fundo público tenha deixado de
condensar a luta de classes - pelo contrário, a dominância dos elementos
de valor do fundo público, sobre os elementos de Anti-valor, represen-
tam a plena condensação da perda de poder político-sindical do Traba-
lho diante do Capital).
Portanto, a ofensiva neoliberal foi a afirmação necessária da lógica
dialética do capital em fase de crise estrutural de lucratividade. Embora

15 Existe uma concepção de Estado em Francisco de Oliveira que se aproxima daquela do


último Poulantzas (em “O Estado, o Poder, o Socialismo”), onde o Estado possui uma au-
tonomia relativa e se apresenta como a condensação de uma relação de forças entre classes
e frações de classe que se materializa em seu aparato. Deste modo, a rigor, o fundo público
não é um fundo estatal strictu sensu. Os recursos monetários do fundo público não po-
dem ser meramente identificados com o valor (é “uma quantidade de moeda que não se
põe como valor” – diz ele). Por isso, Oliveira afirma que o fundo público não é capital.
Entretanto, o que define o fundo público como capital ou antivalor é a relação de forças
entre classes e entre frações de classe. Mesmo que o fundo público atue como capital, como
ocorre no Estado neoliberal, não significa que em si, ele atue meramente como movimento
contratendencial à queda da taxa de lucro.

O Duplo Negativo do Capital 169


imbuído da contingência política e histórica, o Estado neoliberal bus-
cou operar, na “linha de menor resistência” do capital, a necessidade de
contrarestar-se à queda histórica da lucratividade.
No Estado de Bem-Estar Social, o fundo público financiou o comple-
xo industrial-militar e, ao mesmo tempo, o salário indireto, constituindo
efetivamente um elemento de reprodução do valor “afetado de negação”,
pois, a desmercantilização da força de trabalho era uma tendência efeti-
va (o que explica o caráter “excêntrico” do Estado de Bem-Estar Social).
O fundo público durante o Estado de Bem-Estar Social, não represen-
tou plenamente, em si, um elemento contratendencial à queda da taxa de
lucro. Devido seu caráter excêntrico de ser a representação da dialética
histórica de valor e Anti-valor, naquele momento histórico, utilizou-se
do fundo público, tanto para a reprodução do capital, quanto para a re-
produção do trabalho vivo e força de trabalho. Mas com a manifestação
da crise estrutural de lucratividade e a crise estrutural do capital, o fun-
do público deixou de ser elemento contratendencial adequado, no plano
político-estatal, à “linha de menor resistência” do capital.
No seio do Estado de Bem-Estar Social constituiram-se contra-
dições insolúveis que o Estado neoliberal visou contrarestar ou des-
locar. Como verdadeiro “aprendiz de feiticeiro”, o fundo público do
“Welfare”/”Warfare State” precisou ser recomposto politicamente dian-
te da crise estrutural do capital e a manifestação da crise estrutural de
lucratividade.
O capitalismo tardio tornou imprescindivel o fundo público para a
reprodução do capital. Na medda em que se “[desatou] o capital de suas
determinações autovalorizáveis”, ocoreu “um agigantamento das força
produtivas de tal forma que o lucro capitalista [tornou-se] absolutamen-
te insuficiente para dar forma, concretizar, as novas possibilidades de
progresso técnicas abertas.” (Oliveira, 1985). Por isso, a recomposição do
fundo público na direção da reprodução do capital tornou-se uma ne-
cessidade estrutural. Parcelas crescentes da riqueza pública em geral, a
alocação de uma parcela do fundo público, é canalizada para a reprodu-
ção do capital por meio do reforçamento da força produtiva do trabalho
e do aumento da taxa de exploração pela via da mais-valia relativa. Deste

170 O Duplo Negativo do Capital


modo, como o próprio Francisco de Oliveira reconhece, o fundo público
torna-se o financiador e articulador do “capital em geral”.
O capitalismo do “Welfare State” caracterizou-se pela mudanças es-
truturais nas condições de reprodução do capital e da força de trabalho
por meio da presença do fundo público. Reconhecemos que a questão
do fundo público é uma questão crucial que devemos considerar na
interpretação da crise do capital em sua forma estrutural, na medida
do “autonomização” do capital constante impulsionado pelo progresso
técnico. Mas, a rigor, o fundo público não deixou de representar a con-
densação da luta política e social no plano estatal, que alterou-se com o
capitalismo do Estado neoliberal.
Na verdade, o fundo público tornou-se imprescindivel para o Estado
neoliberal na medida em que ele financia o “capital em geral”, ou seja,
a reprodução do capital propriamente dito, e desloca contradições no
plano da crise estrutural do capital como metabolismo social estranha-
do. Não se trata mais da valorização do valor per se. É a necessidade,
por exemplo, da reprodução do capital em setores que, por sua própria
lógica, talvez não tivessem capacidade de reproduzir-se que coloca a
necessidade estrutural do fundo público no capitalismo tardio. Ele pró-
prio tornou possivel o “agigantamento das forças produtivas” do capital
(vide complexo industrial-militar 16). Ao mesmo tempo, o fundo públi-
co fez com que o capital (os oligopólios industriais) tivessem necessi-
dade crescente de si para reproduzir-se, tendo em vista a insuficiência
do lucro capitalista para faze-lo no cenário de aumento da composição
técnica do capital e queda tendencial da taxa média de lucro.

16 Complexo militar-industrial (em inglês: “Military-industrial complex”) é um conceito nor-


malmente usado para se referir ao relacionamento político entre as forças armadas de um
governo nacional e a indústria, o setor oligopólico da economia, a fim de obter para o setor
privado a aprovação política para pesquisa, desenvolvimento e produção, assim como o
apoio para treinos militares, armas, equipamentos e instalações com a defesa nacional e
a segurança política. O termo é na maioria das vezes utilizado para se referir aos Estados
Unidos, onde se popularizou após o seu uso pelo presidente Dwight D. Eisenhower, em
seu discurso de despedida, embora o termo seja aplicável a qualquer país com uma infra
-estrutura de desenvolvimento similar. Disse Eisenhower em 6 de fevereiro de 1961: “The
conjunction of an immense military establishment and a large arms industry is new in the
American experience”.

O Duplo Negativo do Capital 171


Com a primeira crise do capitalismo tardio, o Estado neoliberal con-
seguiu operar movimentos contratendenciais e deslocamentos de con-
tradições que o Estado de Bem-Estar demonstrou ser incapaz de operar:
primeiro, o aumento da taxa de exploração por meio da remercantiliza-
ção da força de exploração; segundo, a captura do fundo público em sua
densidade politica para a reprodução do capital; e depois, a ampliação
dos mecanismos de financeirizacao da riqueza capitalista.
Tivemeos outras implicações dos “desdobramentos inusitados” do
capitalismo do Welfare State no calculo da composição orgânica do ca-
pital expresso na equação c/v, onde c é o capital constante e v o capital
variável (em termos de valor). Ao tratar disso, Francisco de Oliveira
diz que, tanto o capital constante não pode ser uma soma dos capitais
particulares, pois aí existe uma oposição operada pelo fundo público
para viabilizar a acumulação de cada capital em particular; como o ca-
pital variável não pode ser calculado sem se considerar o salário indireto
como uma força oposta ao salário direto. Eis o “nó górdio” criado pelo
Estado de Bem-Estar Social enquanto Estado político do capital, que o
Estado neoliberal buscou desatar. A captura do fundo público pelo ca-
pital tornou-se crucial para viabilizar a acumulação de cada capital em
particular (o que salientamos acima); e reduzir, na medida da necessi-
dade de aumento da taxa de exploração, o salário indireto, não mais - na
lógica política do Estado neoliberal - uma força oposta ao salário direto,
mas meramente funcional à superexploração da força de trabalho.
Assim, o fundo público tornou-se elemento estruturante do capi-
talismo tardio, cumprindo funções de elemento contratendencial e de
deslocamento de contradições que não se alteraram com o capitalismo
do Estado neoliberal. Com o capitalismo neoliberal, o capital repôs, com
a financeirização da riqueza capitalista, tanto as equações do circuito
do capital-dinheiro, quanto as equações do capital-mercadoria, além de
mudanças na equação geral do produto que alteram os nós criados - na
lógica dialética do capital - pela caráter do Estado de Bem-Estar Social.
Francisco de Oliveira descreveu as mudanças das equações do ca-
pital-mercadoria e da equação geral do produto ocorrida com o Estado
de Bem-Estar Social. A longa citação torna-se importante para expor
um movimento de organização do capital que constituiu-se enquanto

172 O Duplo Negativo do Capital


construção político com o capitalismo do Welfare State. Entretanto, de-
vemos entender a nova etapa do capitalismo tardio como capitalismo
do Estado neoliberal em transição histórica para o capitalismo global,
como o processo de desmonte do “modo de produção social-democra-
ta” (na acepção equivocada de Francisco de Oliveira). Disse ele:
“A equação original de Marx é a de D-M-D› no que se refere ao circuito
do capital-dinheiro. O fundo público funcionando como pressuposto
geral de cada capital em particular transforma essa equação em anti-
D-D-M-D›(-D), sendo que o último termo volta a repor-se no início da
equação como anti-D, isto é, uma quantidade de moeda que não se põe
como valor. O último termo é uma quantidade de moeda que tem como
oposição interna a fração do fundo público presente nos resultados da
produção social, que se expressa em moeda mas não é dinheiro. Do
ponto de vista do circuito da mercadoria a equação original de Marx era
a de M-D-M, e o fundo público como estrutura imbricante transforma a
equação para anti-M-M-D-M› (anti-M), na qual os dois primeiros termos
significam as antimercadorias e as mercadorias propriamente ditas,
e os dois últimos significam a produção de mercadorias e a produção
de antimercadorias. No fundo, a segunda equação fica subsumida
na primeira. As consequências teóricas dessa transformação vão se
expressar na composição do capital e na taxa de exploração. A compo-
sição do produto, na equação C+V+M, sofre a seguinte transformação:
-C+C+V (-V)+M, na qual a taxa de mais-valia se reduz pela presença, na
equação, das antimercadorias sociais que funcionam como um ersatz
[substituto] do capita variável. Isto quer dizer que na equação geral do
produto, a taxa de mais-valia cai, enquanto na equação de cada capital
em particular ela pode, e geralmente deve, se elevar” (Oliveira, 1997)
Entretanto, com o Estado neoliberal, operou-se a inversão no pla-
no das anti-mercadorias. No fundo, repõem-se o circuito da mercado-
ria visando alterar a composição do capital e a taxa de exploração. É a
inversão política que reconfigura o que se caracterizou originalmente
como “mudança estrutural”. Ao aumentar a taxa de mais-valia ou taxa
de exploração, com a captura do fundo público, reconstituiu-se no pla-
no da composição do produto, o capital variável, que dispensou par-
cialmente – é claro - o ersatz das antimercadorias, embora o problema,

O Duplo Negativo do Capital 173


como salientamos acima, não esteja na velocidade do aumento da taxa
de exploração, mas sim, na velocidade da desvalorização do capital
constante. Na verdade, o aumento da taxa de mais-valia social colocou
em relevo, a disputa pela distribuição da mais-valia entre as frações de
capital. Portanto, a captura do fundo público foi operado pelo capi-
tal financeiro visando se apropriar do acréscimo de mais-valia social
dado pela desmercantilização da força de trabalho. Embora a captura
do fundo público tenha aumentado socialmente a taxa de exploração,
na equação de capitais particulares ela pode, e geralmente deve, cair,
devido a expropriação financeira (o que explica de certo modo, a queda
do investimento produtivo e o aumento da concentração de renda e de-
sigualdade social no capitalismo neoliberal).
Na medida em que se incorporou à lógica política da financeirizacao
da riqueza capitalista, o fundo público capturado pelo capital finan-
ceiro, contraditoriamente, não atua, como elemento contratendencial
à queda da taxa de lucro. A re-mercantilizacao da força de trabalho,
embora represente aumento da taxa de exploração, operou mais o des-
locamento de contradições no seio do Estado neoliberal do que o movi-
mento contrarestante à tendência de queda da lucratividade (a discus-
são do fundo público tornou-se elemento de disputa entre frações do
capital pela mais-valia social. Por exemplo, ela se manifesta no interior
do capitalismo global de modo candente entre forças neoliberais e for-
ças neodesenvolvimentistas).
Com o capitalismo neoliberal, a captura do fundo público pelo gran-
de capital aumentou indiscutivelmente a base social global de explora-
ção na medida em que ampliou a re-mercantilização da força de traba-
lho, operando o movimento inverso daquele ocorrido no capitalismo do
“Welfare State”, quando a crescente participação do salário indireto no
salário total provocou a retração da base social global da exploração. Ao
mesmo tempo, a captura do fundo público com o capitalismo neolibe-
ral, explicitou a plena efetividade da tendencia a queda da taxa de lucro,
na medida em que o fundo público tornou-se imprescindível como via-
bilizador da concretização das oportunidades de expansão, em face da
insuficiência do lucro frente ao avassalador progresso técnico, mesmo
com a ampliação da base social de exploração. Entretanto, como vimos

174 O Duplo Negativo do Capital


acima, diante da crise estrutural de lucratividade e a desmedida do va-
lor fizeram com que frações do capital financeiro utilizasssem o fundo
público, por meio do mecanismo da dívida pública, para a financeiriza-
ção da riquea capitalista (o que significa que, com o capitalismo global,
o funso público opera não apenas como elemento contratendncial á cris
estrutural de lucratividade, mas também como elemento de desloca-
mento de contradições por meio da valorização ficticia do capital).
No começo da década de 1970, com a recessão global da economia
capitalista, explicitou-se a tendencia de queda da taxa média de lucros,
provocada não apenas pela pressão do aumento da composição orgâni-
ca do capital devido o aprofundamento do progresso técnico, mas tam-
bém pela retração da base social global de exploração devido o Estado
de Bem-Estar Social com suas antimercadorias sociais (os salários in-
diretos constituídos pelos bens e serviços sociais públicos). A natureza
ambivalente do fundo público permitiu ao capital oligopolista converte-
-lo por meio das políticas neoliberais, de receptáculo do anti-valor para
instancia estrutural (e insuprimivel) da reprodução do capital no auge
da grande indústria e do progresso técnico – e da desmedida do valor
(financeirização da riqueza capitalista).
Na medida em que é capturado pelo capital financeiro, o fundo pú-
blico pode (1) alimentar a lógica da financeirizacao da riqueza capitalis-
ta; ou ainda, (2) operar como Anti-valor e Antimercadoria, na medida
em que defronta-se com candentes contradições no plano da reprodu-
ção das condições de existência do trabalho vivo; ou (3) ser utilizado
para o aumento da produtividade tecnológica ou social - nesse último
caso, contribuindo indiretamente, para o movimento contratendencial
à queda da taxa de lucro.
Diz Francisco de Oliveira: “A tarefa da esfera pública é, pois, a de
criar medidas, tendo como pressupostos as diversas necessidades da
produção social, em todos os sentidos. Não é mais a valorização do
valor per se; é a necessidade, por exemplo, da reprodução do capital em
setores que, por sua própria lógica, talvez não tivessem capacidade de
reproduzir-se. Necessidades que podem ser de vários tipos, como já foi
citado anteriormente: desenvolvimento científico e tecnológico, defesa
nacional, são das mais comuns, ou, tal como nos oferece hoje o exemplo

O Duplo Negativo do Capital 175


da luta contra a Aids, necessidades sociais em escala mais ampla que
não podem depender unicamente da autocapacidade de nenhum capital
especial. Na área da reprodução da força de trabalho, tais necessidades
também se impõem: não se trata agora de prover educação apenas para
transformar a população em força de trabalho; são necessidades que
são definidas aprioristicamente como relevantes em si mesmas; que
elas terminem servindo, direta ou indiretamente, para o aumento da
produtividade não dissolve o fato principal, que é o de que, agora, aquele
aumento da produtividade que pode ser seu resultado, não é mais seu
pressuposto” (Oliveira, 1998).

Capitalismo do Estado Neoliberal e Fundo Público


No decorrer dos “trinta anos dourados” do capitalismo tardio em
sua fase fordista-keynesiano (1945-1975), as contradições do capital as-
sumiram dimensões cruciais quando a mundialização produtiva e fi-
nanceira abateram a capacidade fiscal do fundo publico. Deste modo,
ocorreu a crescente incompatibilidade entre o padrão de financiamen-
to público e a internacionalização produtiva e financeira que corroeu o
capitalismo do Welfare State, ocasionando a deterioração das receitas
fiscais e parafiscais, levando ao déficit público.
A crise do capitalismo do “Welfare State” criou as condições políti-
cas para a vitória do programa neoliberal de combate à profunda crise
capitalista nos países centrais. Assim, foi nos Estados Unidos e Inglater-
ra, onde a internacionalização produtiva e financeira foi mais acabada,
que emergiu a resposta neoliberal à crise fiscal por meio da constituição
do Estado neoliberal, que representou politicamente a captura do fundo
público para a reprodução do capital em detrimento da reprodução da
força de trabalho.
As reformas neoliberais fizeram repactuar o fundo público, com a
manutenção dele apenas como pressuposto para o capital; e a precariza-
ção salarial assumiu um novo patamar histórico por meio da reconsti-
tuição da base social global de exploração com a redução do Antivalor,
e o aumento da taxa de exploração.

176 O Duplo Negativo do Capital


Com a crise do capitalismo do “Welfare State” tivemos a re-mer-
cantilização da força de trabalho nos países capitalistas centrais, am-
pliando-se virtualmente a base social da exploração. Entretanto, como
salientamos acima, a captura do fundo público pelos oligopólios indus-
triais não significa direcionar os recursos “capturados” exclusivamen-
te para a reprodução do capital no sentido de contratendencia à crise
estrutural de lucratividade, mas para o mercado financeiro, tendo em
vista que as expectativas de valorização fictícia são maiores do que as
expectativas da valorização produtiva, debilitadas pela tendência per-
sistente de queda da taxa média de lucros e a desmedida do valor (a crise
de superprodução/subconsumo são manifestações aparentes da crise
estrutural de lucratividade – embora como salientamos, a aparencia é
uma forma de ser da essencia).
Os recursos do fundo público alimentam a financeirização da rique-
za capitalista, principalmente pelo mecanismo da dívida pública. Ao
mesmo tempo, a parcela do fundo público capturado pelos oligopólios
industriais contribui para a pesquisa e o desenvolvimento, impulsio-
nando ainda mais, o agigantamento das forças produtivas do capital, e –
contraditoriamente - o aumento progressivo da composição orgânica do
capital e, por conseguinte, a queda tendencial da lucratividade. Enfim,
com o capitalismo global, vemos o incremento do movimento do “capi-
tal em geral” que nega peremptoriamente seus pr óprios fundamentos
(a produção de valor).
A captura do fundo público representa um dos elementos cruciais de
precarização estrutural do trabalho vivo (precarização das condições
de existência social do trabalho vivo). As politicas neoliberais represen-
tam o predominio do movimento de espoliação espoliação que contri-
bui para a degradação das condições de existência social do trabalho
vivo, embora não represente diretamente per se, aumento da taxa de
exploração da força de trabalho. Ao promoveram a captura do fundo
público, o capital opera a “desarticulação da alteridade” que é a condi-
ção primordial para a regulação social e institucional do fundo públi-
co, corroendo as instituições de defesa (contra a exploração) do mundo
do trabalho. É o que explica o profundo esvaziamento da democracia
pelo neoliberalismo e a crise de legitimidade (o filósofo teuto-coreano

O Duplo Negativo do Capital 177


Byung-Chul Han observou que “o desaparecimento da alteridade” sig-
nifica que vivemos numa época pobre de negatividades) (Han, 2015).
O que a direita neoliberal propõe não é apenas o desmantelamento
da função do fundo público como Anti-valor, mas sim “a destruição da
regulação institucional com a supressão das alteridades entre os sujeitos
socio-economico-politicos” (Oliveira, 1997). A direita neoliberal criti-
cou a ultrafiscalidade do Estado de Bem-Estar social, mas o que está
em jogo na aparência da ultrafiscalidade é que, o capitalismo tardio
desatou, por um lado, uma série de carecimentos sociais que colocam a
necessidade do fundo público para a sua satisfação sob pena de inviabi-
lizar a reprodução social; e, por outro lado, devido o agigantamento das
forças produtivas do trabalho e a presença do “duplo negativo” do capi-
tal (crise estrutural da lucratividade e desmedida do valor), a acumula-
ção do capital não pode ocorrer financiada apenas pelo lucro, exigindo
e puncionando parcelas crescentes do fundo público para a reprodução
do capital. O limite do capital é o próprio capital como relação social de
produção da vida. A profunda concentração oligopólica do capitalismo
global representou a necessidade de reprodução do capital num pata-
mar elevado de progresso técnico e desmedida do valor.

A Desmedida do Valor
Enquanto Marx expõe pela ótica de “O Capital - Crítica da Economia
Política” (1867), o movimento contraditório da lei tendencial de queda
da taxa média de lucro, por outro lado, nos Grundrisse der Kritik der
politischen Ökonomie (em português: “Elementos fundamentais para a
crítica da economia política”, conhecido simplesmente como Grundris-
se) (1858), Marx salientou outra dimensão da maior presença do traba-
lho morto (capital fixo) sobre o trabalho vivo: a desmedida do valor. Ire-
mos considerar como movimento do dupla negativo da relação-capital,
por um lado, a tendência estrutural de queda da lucratividade, que ca-
racteriza o capitalismo global, tendo em vista o aumento da composição
orgânica do capital, que pressiona a taxa média de lucro das corporações
industriais; e por outro lado, o fenômeno da “desmedida de valor”, que
iremos descrever – de modo introdutório - logo abaixo.

178 O Duplo Negativo do Capital


O que interessa ressaltar no fenômeno da “desmedida do valor” é a
dimensão “prometeica” do sentido da desmedida – isto é, a explicitação
do capital como “contradição em processo”, que, ao mesmo tempo que
afirma a si próprio, cria as possibilidades concretas para a sua própria
negação como relação de valor e portanto, expõe as bases materiais da
emancipação humana.
O duplo negativo do capital é resultado do movimento do valor em
processo – a explicitação da lei tendencial da queda da taxa média de
lucro provocada pelo aumento histórico da composição orgânica do ca-
pital. Estamos diante de um fenômeno histórico que caracteriza o capi-
talismo monopolista do século XX e que decorre das leis da con-
corrência capitalista, mesmo na condição do capital monopolista. Na
ânsia de reduzir os custos de produção visando ocupar novos mercados,
nas condições históricas da crise crônica de superprodução/subconsu-
mo, a concorrência entre os múltiplos capitais, exacerbada no plano
do sistema global, faz as empresas reduzirem investimentos em capital
variável e aumentarem investimento em capital constante (apesar dos
movimentos contratendenciais à queda da lucratividade que percorre
o capitalismo do século XX – como vimos acima - impõe-se hoje, mais
do que nunca, a lógica historicamente concreta do aumento do trabalho
morto em detrimento do trabalho vivo - a mercadoria-força de trabalho,
única mercadoria capaz de produzir mais-valor).
Mas o aumento histórico da composição orgânica do capital, no sen-
tido de aumento do capital constante, principalmente do componente
do capital fixo (máquinas e equipamentos, por exemplo), expressa o
“salto mortal” do aumento da produtividade do trabalho decorrente do
desenvolvimento da grande indústria e hoje, com o capitalismo global,
da “pós-grande indústria”, que cria as bases materiais para a terceira
forma de produção do capital (a maquinofatura)17. O aumento da com-
posição orgânica do capital expressa o aumento das “forças produtivas
da sociedade” (Marx).
Com o capitalismo global exacerbou-se efetivamente a principal con-
tradição do modo de produção capitalista, exposta por Karl Marx em 1859

17 Vide as “Considerações Finais” para o conceito de maquinofatura.

O Duplo Negativo do Capital 179


– portanto, há cerca de 160 anos! -, isto é, a contradição entre as forças
produtivas da sociedade e as relações de produção capitalista. Diz Marx:
“De formas evolutivas das forças produtivas, que eram, essas relações con-
vertem-se em seus entraves. Abre-se então, uma era de revolução social”.18
O fenômeno da “desmedida de valor” é resultado da característica
essencial do capitalismo tardio, pois expressa o acumulo das mais den-
sas contradições do capital. Ela é a decorrência lógico-ontológica da
evolução do capital como “sujeito automático” da modernização históri-
ca. A explicação marxiana da desmedida do capital parte do princípio
de que, “quanto maior é a força produtiva do trabalho, menor é o tempo
de trabalho requerido para a produção de um artigo, menor a massa de
trabalho nele cristalizada e menor seu valor” (Marx, 1996).
Portanto, de acordo com a teoria do valor-trabalho de Marx, a gran-
deza de valor de uma mercadoria varia na razão direta da quantidade

18 Nesta passagem do “Prefácio” ao seu primeiro livro de crítica da economia políti-


ca - “Contribuição à Crítica da Economia Política”, de 1858, Karl Marx nos deixa
preciosos elementos metodológicos que iriam fundamentar o materialismo históri-
co. Prossegue ele: “A transformação que se produziu na base económica transtorna
mais ou menos, lenta ou rapidamente, toda a colossal superestrutura. Quando se
consideram tais transformações, convém distinguir, sempre, a transformação ma-
terial das condições económicas de produção — que podem ser verificadas, fiel-
mente, com a ajuda das ciências físicas e naturais — e as formas jurídicas, políticas,
religiosas, artísticas ou filosóficas, em resumo, as formas ideológicas, sob as quais os
homens adquirem consciência desse conflito e o levam até ao fim. Do mesmo modo
que não se julga o indivíduo pela ideia que de si mesmo faz, tampouco se pode jul-
gar uma tal época de abalos pela consciência que ela tem de si mesma. Ê preciso, ao
contrário, explicar esta consciência pelas contradições da vida material, pelo conflito
que existe entre as forças produtivas sociais e as relações de produção. Uma socie-
dade jamais desaparece antes que estejam desenvolvidas todas as forças produtivas
que possa conter, e as relações de produção novas e superiores não tomam jamais
seu lugar antes que as condições materiais de existência dessas relações tenham sido
incubadas no próprio seio da velha sociedade. É preciso, ao contrário, explicar esta
consciência pelas contradições da vida material, pelo conflito que existe entre as
forças produtivas sociais e as relações de produção. Uma sociedade jamais desapa-
rece antes que estejam desenvolvidas todas as forças produtivas que possa conter, e
as relações de produção novas e superiores não tomam jamais seu lugar antes que as
condições materiais de existência dessas relações tenham sido incubadas no próprio
seio da velha sociedade. Eis por que a humanidade não se propõe nunca senão os
problemas que ela pode resolver, pois, aprofundando a análise, ver-se-á, sempre, que
o próprio problema só se apresenta quando as condições materiais para resolvê-lo
existem ou estão em vias de existir.” (Marx, 1983).

180 O Duplo Negativo do Capital


de trabalho que nela é realizada e na razão inversa da força produtiva
desse trabalho. Assim, a desmedida do valor possui como base material
a redução progressiva da grandeza de valor cristalizada numa merca-
doria por conta do aumento da força produtiva do trabalho. O “salto
mortal” da força produtiva do trabalho no capitalismo tardio alavancou
o fenômeno da desmedida do valor, produzindo o que denominamos de
expansão/negação do valor (Alves, 2018).
O capitalismo tardio se caracterizou, de modo inédito na história
humana, pela ocorrência de duas revoluções industriais em pouco mais
de cinquenta anos de desenvolvimento capitalista: a Terceira Revolução
Industrial e a Quarta Revolução Industrial. Elas promoveram signifi-
cativas mudanças tecnológicas que impulsionaram o aumento da força
produtiva do trabalho e a redução do tempo de trabalho necessário
para a produção das mercadorias com impactos decisivos na formação
do valor. Essa mutação orgânica da base técnica do sistema produtor
de mercadorias, o aumento do capital fixo na produção de valor e, por
conseguinte, a redução do capital variável, ou ainda a maior presença
do trabalho morto em detrimento da redução – em termos relativos,
mas não absolutos – do trabalho vivo na esfera de produção do valor,
teve impactos históricos na composição orgânica do capital, levando à
operação de movimentos contratendenciais à queda da taxa média de
lucros (o que verificamos com a crise do capitalismo tardio).
Deste modo, o primeiro elemento do fenomeno da “desmedida do
valor” é a redução do quantum de trabalho utilizado como fator decisi-
vo da produção de riqueza. Até a grande indústria, a massa de tempo de
trabalho, o quantum de trabalho vivo, é o elemento decisivo na produ-
ção da riqueza – o valor econômico. Com o fenomeno da desmedida do
valor, tempo de trabalho deixará de ser a “medida do movimento”. Diz
Marx nos Grundrisse:

“(...) Mas à medida em que a grande indústria se desenvol-


ve, a criação da riqueza efetiva se torna menos dependente
do tempo de trabalho e do quantum de trabalho utilizado,
do que da força dos agentes (Agentien, agentes materiais
- GA) que são postos em movimento durante o tempo de
trabalho (...)” (Marx, 2013)

O Duplo Negativo do Capital 181


Extraindo as consequencias lógico-dialéticas dos extratos escritos
por Marx nos “Grundrisse”, Ruy Fausto observa que, nesse caso, a “va-
lorização” não é mais a cristalização de um tempo posto. Ela se dá no
tempo, mas o tempo volta à sua imediatidade. Enfim, a “valorização” se
liberta do tempo de trabalho, mas com isto ela não será mais valoriza-
ção. E volta a citar Marx, prosseguindo a passagem acima:

“(...) [agentes] os quais, eles próprios - sua poderosa efeti-


vidade [powerful effectiveness] por sua vez não tem mais
nenhuma relação com o tempo de trabalho imediato que
custa a sua produção, mas [a criação da riqueza efetiva,
R.F.] depende antes da situação geral da ciência, do pro-
gresso da tecnologia, ou da utilização da ciência na produ-
ção” (Marx, 2013).

O fenomeno da “desmedida do valor” representa uma possibilidade


concreta do desenvolvimento do capital no interior do modo de pro-
dução capitalista, que se põe como pressuposto negado nas condições
históricas do capitalismo tardio.
Enquanto, por um lado, o aumento da força produtiva do trabalho
conduz ao aumento da composição orgânica do capital, pressionando
historicamente a queda da taxa média de lucro e levando à crise estrutu-
ral da lucratividade; por outro lado, ela leva ao fenomeno da desmedida
do valor, último desenvolvimento da relação de valor, que se caracteriza
pela drástica redução do quantum de trabalho vivo, a massa de tempo
do trabalho, utilizado como fator decisivo da produção de riqueza.
O fenomeno da desmedida do valor não significa a “extinção” do
desenvovlimento da relação de valor – pelo contrário, ela representa a
última etapa de desenvolvimneto da relação-valor lastreada na relação-
-capital. Expõe-se dialeticamente o fenomeno do colapso/exacerbação
do valor como relação social (Alves, 2018). A miséria do presente (a exa-
cerbação das formas derivadas de valor) se contrasta com o movimento
da riqueza do possivel (o “colapso” da relação-valor) como possibilidade
concreta. Existe um candente conflito potencial entre o valor qualita-
tivo medido pelo tempo de trabalho, (trabalho abstrato cristalizado)
e o valor que passa a ser quantitativo, com a riquea efetiva não sendo

182 O Duplo Negativo do Capital


mais valor, mas “valor negado”. Ao se libertar do tempo de trabalho,
a “valorização” não será mais valorização. Diz Fausto: “Temos assim
um “poder” que escapa do tempo como medida” (vamos interrogar com
Marx: quais formas ideológicas no século XX sob as quais “os homens
adquirem consciência desse conflito e o levam até o fim”?).
Marx prossegue nos dizendo nos “Grundrisse”:

“(...) a riqueza efetiva se manifesta antes - e isto a grande


indústria revela - numa desproporção monstruosa entre o
tempo de trabalho empregado e o seu produto, assim como
na desproporção qualitativa entre o trabalho reduzido a
uma pura abstração e o poder (Gewalt) do processo de pro-
dução que que vigia” (Marx, 2013).

Nesse vislumbramento dialético das possibilidades concretas do últi-


mo desenvolvimento da relação-valor (maravilhosa especulação dialé-
tica!), Marx quis nos dizer que a riqueza efetiva não é mais proporcional
ao tempo de trabalho. Há entre a riqueza econômica e a riqueza efetiva
uma “desproporção qualitativa”. Diz Fausto: “Um elemento tem um
peso ‘maior’ do que o outro, sem que este ‘maior’ possa ser medido pelo
tempo, ou medido em geral. O processo de trabalho é agora essencial-
mente processo de produção” (Fausto, 1989). Eis o sentido do feomeno
da desmedida do valor.
A contradição em processo desvelada por Marx nos “Grundrisse”,
entre a produção do valor econômico (como movimento da aparência
do sistema que expressa um modo de ser da essencia – a acumulação de
capital); e a sua própria “negação” como possibilidade concreta, mani-
festa pela “desproporção qualitativa” entre “o trabalho reduzido a uma
pura abstração e o poder do processo de produção que vigia” conduz a
profundas implicações para o mundo social do trabalho vivo e para a
própria reprodução do capital. Não nos interessa tratar neste momento,
por exemplo, das mudanças inscritas na “maquinofatura” como nova
forma de produção do capital. Ela representa a última forma social da
produção do capital como produção do “valor negado”. O capital encon-
tra seus próprios limites: a relação-capital.

O Duplo Negativo do Capital 183


O “poder” que escapa do tempo como medida, altera a relação entre
tempo de trabalho-tempo de vida como tempo disponivel (valor huma-
no). Na maquinofatura, as novas máquinas capitalstas, expressões da
força produtiva da sociedade, contém a possibilidade concreta do ho-
mem se relacionar como guardião e regulador do próprio processo de
produção. Entretanto, a relação-capital cristalizada nas relações de pro-
dução capitalistas, como observou o velho Marx, entravam a manifes-
tação da riqueza efetiva.
Deste modo, a título meramente introdutório, apreendermos a na-
tureza da desmedida do valor como sendo a mudança qualitativamente
nova que altera – no plano das possibilidades concretas do sistema - a
medida do valor como fundamento do valor-trabalho. Com o fenomeno
da desmedida do valor, a “valorização” se liberta do tempo de trabalho
que deixará de ser a “medida do movimento” – com isto ela não será
mais valorização (o valor humano escapou do tempo como medida do
valor econômico).
Noutra passagem dos Grundrisse, Karl Marx, discutindo o capital
fixo e desenvolvimento das forças produtivas da sociedade, expressou,
de modo sintético, o que comentamos acima. Diz ele:
“Consequentemente, quanto mais desenvolvido o capital, quanto
mais trabalho excedente criou, tanto mais extraordinariamente tem de
desenvolver a força produtiva do trabalho para valorizar-se em propor-
ção ínfima, i.e., para agregar mais-valor - porque o seu limite continua
sendo a proporção entre a fração da jornada que expressa o trabalho
necessário e a jornada de trabalho total. O capital pode se mover uni-
camente no interior dessas fronteiras. Quanto menor é a fração que
corresponde ao trabalho necessário, quanto maior o trabalho excedente,
tanto menos pode qualquer aumento da força produtiva reduzir
sensivelmente o trabalho necessário, uma vez que o denominador
cresceu enormemente. A autovalorização do capital devém mais difícil
à proporção que ele já está valorizado. O aumento das forças produtiva
deviria indiferente para o capital; inclusive a valorização, porque suas
proporções teriam se tornado mínimas; e o capital teria deixado de
ser capital. Se o trabalho necessário fosse 1/1000 e a força produtiva
triplicasse, o trabalho necessário só cairia 1/3000 ou o trabalho

184 O Duplo Negativo do Capital


excedente só teria crescido 2/3000. No entanto, isso não ocorre porque
cresceu o salário ou a participação do trabalho no produto, mas porque
o salário já caiu muito, considerado em relação ao produto do trabalho
ou à jornada de trabalho vivo. (O trabalho objetivado no trabalhador
manifesta-se aqui como fração de sua própria jornada de trabalho vivo,
pois essa fração é a mesma proporção que há entre o trabalho objetivado
que o trabalhador recebe do capital como salário e a sua jornada de
trabalho inteira)” (Marx, 2013).
Deste modo, Marx ressaltou que o capital se move no interior do
continuum de tempo da jornada de trabalho, tendo por um lado, a fra-
ção da jornada que expressa o [tempo de] trabalho necessário e, por
outro lado, a fração da jornada de trabalho total. Eis os dois elementos
cruciais para o movimento do capital como “sujeito automático” da au-
to-valorização do valor: (1) o tempo de trabalho socialmente necessário
para a produção de uma mercadoria e o (2) o tempo da jornada inteira
de trabalho.
Entretanto, com o aumento da força produtiva do trabalho por conta
de alterações na base técnica do sistema de exploração da força de traba-
lho, propiciado pelas revoluções industriais, ocorreu a redução do tem-
po de trabalho socialmente necessário para a produção das mercadorias.
As alterações na base técnica do sistema produtor de mercadorias
podem ocorrer, não apenas pela introdução de novas tecnologias de
produção – por exemplo, máquinas – mas também pela adoção de no-
vos métodos de organização do trabalho vivo (gestão) que contribuem
para administrar a intensificação do trabalho (o estresse da força física
e espiritual do trabalho vivo).
A redução do tempo de trabalho socialmente necessário provocou a
redução da massa de trabalho cristalizada nas mercadorias; e por con-
seguinte, reduziu seu valor. Ao mesmo tempo, ao reduzir-se o tempo de
trabalho necessário, mantendo o tempo da jornada inteira de trabalho,
ampliou-se o tempo de trabalho excedente ou tempo de trabalho não-
-pago (mais-valia relativa).
É a obsessão do capital extrair mais-valor nas condições históricas
da concorrencia capitalista, que faz com que o capital impulsione as ino-
vações tecnológicas capazes de reduzir o tempo de trabalho socialmente

O Duplo Negativo do Capital 185


necessário para a produção das mercadorias, mesmo mantendo o limite
político e histórico-moral da jornada de trabalho. Entretanto, como sa-
lientamos acima, o capital como “contradição viva”, ao reduzir o tem-
po de trabalho socialmente necessário e aumentar o tempo de trabalho
não-pago (ou o mais-valor relativo), provoca a redução do valor crista-
lizado nas mercadorias (a teoria do valor-trabalho afirma que o capital
constante não produz valor – ele apenas o transfere, sendo por isso que
Marx o denominou de capital constante. Só o capital variável é capaz de
produzir mais-valor).
Portanto, Marx expos a contradição radical do capital: quanto mais
incorpora máquinas na produção, mais ele precisa incorpora-las “para
valorizar-se em proporção ínfima”. Por conta da lei da concorrência
capitalista, existe quase uma pulsão recorrente para reduzir o tempo
de trabalho socialmente necessário e, por conseguinte, criar trabalho
excedente, ao mesmo tempo que, o movimento voraz do capital reduz a
base material da própria valorização do valor. Diz ele: “Quanto mais de-
senvolvido o capital, quanto mais trabalho excedente criou, tanto mais
extraordinariamente tem de desenvolver a força produtiva do trabalho
para valorizar-se em proporção ínfima. ”
Eis a tragédia do capital – diz Marx: “A autovalorização do capital
devém mais difícil à proporção que ele já está valorizado.” Nesse sentido,
Marx vislumbrou a desmedida do valor como limite do capital autova-
lorizado contraditoriamente. Ele afirmaria logo a seguir: “O aumento
das forças produtiva deviria indiferente para o capital; inclusive a valo-
rização, porque suas proporções teriam se tornado mínimas; e o capital
teria deixado de ser capital.” (Marx, 2013). Assim, no limite, o aumento
da força produtiva torna-se incapaz de impulsionar a valorização do
capital, tornando-se indiferente para ele mesmo. Pelo contrário - diante
do aumento histórico da composição orgânica do capital, temos a crise
estrutural de lucratividade. Na medida em que o valor do produto-mer-
cadoria se reduziu a uma proporção ínfima de si, tendo em vista a redu-
ção exponencial do trabalho socialmente necessário para produzi-la, o
progresso técnico se descolou ou tornou-se indiferente para a autovalo-
rização do capital. Mesmo sendo indiferente a si, o desenvolvimento das
forças produtivas do capital prossegue irremediavelmente como uma

186 O Duplo Negativo do Capital


pulsão obsessiva do capital como processo em contradição, que opõe o
processo tecnológico à totalidade viva do trabalho.
Marx observou – e vale a pena repetir: “O aumento das forças pro-
dutiva deviria indiferente para o capital; inclusive a valorização, porque
suas proporções teriam se tornado mínimas; e o capital teria deixado de
ser capital.” [o grifo é nosso].
Portanto, a indiferença do processo tecnológico à valorização do
valor acusa a desmedida do valor provocada pelo aumento das forças
produtivas do capital e a redução quase-infinita do trabalho socialmente
necessário na produção das mercadorias. A transformação do processo
de produção do simples processo de trabalho em um processo científico
(Marx, 2013) ou processo de produção do capital, com o capital fixo
subsumindo o trabalho vivo, continha o para-si da “negação da nega-
ção” do capital como processo de valorização.

O “duplo negativo” do capital

Aumento da composição orgânica do capital


a pressão da “lei” tendencial de queda da taxa média de lucro
(mercado mundial)
A crise estrutural de lucratividade

Desmedida do valor
(“negação” do capital no interior do capitalismo)

Noutra passagem dos Grundrisse, Marx expõe a mesma lógica da


desmedida do valor, que faz com que, dialeticamente, o capital deixe
de ser capital no sentido do capital como processo de valorização do
valor propriamente dito, à mercê da crise estrutural de lucratividade. O
capitalismo tardio expõe o movimento do capital “afetado de negação”:
“Na mesma medida em que o tempo de trabalho – o simples quan-
tum de trabalho – é posto pelo capital como único elemento determi-
nante de valor, desaparece o trabalho imediato e sua quantidade como
o princípio determinante da produção – a criação de valores de uso –,

O Duplo Negativo do Capital 187


e é reduzido tanto quantitativamente a uma proporção insignificante,
quanto qualitativamente como um momento ainda indispensável, mas
subalterno frente ao trabalho científico geral, à aplicação tecnológica
das ciências naturais, de um lado, bem como [à] força produtiva geral
resultante da articulação social na produção total – que aparece como
dom natural do trabalho social (embora seja um produto histórico).
O capital trabalha, assim, pela sua própria dissolução como a forma
dominante da produção.”(Marx, 2013) [o grifo é nosso]
O movimento do capital na sua ânsia de substituir trabalho vivo por
trabalho morto, capital variável por capital fixo, faz “desaparecer” o pro-
cesso de trabalho e o trabalho imediato e sua quantidade como o princí-
pio determinante da produção. O processo de trabalho como processo
de valorização se interverte em processo científico – expressão de Marx
– ou processo tecnológico na medida em que o processo de produção do
capital torna-se processo de tecnologização da ciência aplicada à produ-
ção de mercadorias. O processo cientifico de produção de mercadorias
é um processo problemático para o modo de produção do capital, na
medida em que o tempo de trabalho, único elemento determinante de
valor, se reduz a uma “proporção insignificante”. Como diz ele, o traba-
lho é “um momento ainda indispensável, mas subalterno frente ao tra-
balho científico geral, à aplicação tecnológica das ciências naturais, de
um lado, bem como [à] força produtiva geral resultante da articulação
social na produção total – que aparece como dom natural do trabalho
social (embora seja um produto histórico). Não se trata de dispensar
absolutamente o trabalho vivo, mas torna-lo efetivamente subalterno
ao arcabouço tecnológico do capital, produto histórico da força social
de produção do capital social total.
Na medida em que o tempo de trabalho, único elemento determi-
nante de valor, “desaparece”, o capital deixa de ser capital ou, noutras
palavras, “o capital trabalha, assim, pela sua própria dissolução como
a forma dominante da produção” (Marx, 2013). Estamos na plenitude
da lógica dialética, com a desmedida de valor provocando o “desapare-
cimento” do tempo de trabalho como quantum ou medida da riqueza.
O movimento dialético do ser do capital, que existe somente no devir,
conduz da qualidade à quantidade e, logo após, à medida que, na lógica

188 O Duplo Negativo do Capital


hegeliana, é “a verdade da qualidade e da quantidade, unidade na qual
toda mudança quantitativa indica simultaneamente uma mudança
qualitativa” (Hegel, 1995).
No plano material, ocorrem mudanças qualitativas no movimen-
to da essência do capital que fazem com que a indiferença da medida
chegue ao seu limite – “e, por sua transgressão através de um mais ou
um menos suplementar, as coisas deixem de ser o que eram. ” (Hegel,
1995). A lógica da dialética hegeliana expõe o “para além do capital” no
plano lógico-ontológico da essência do ser: “Essa determinação-progr-
essiva é, a um tempo, um pôr-para-fora [Heraussetzen] e portanto um
desdobrar-se do conceito em si essente; e, ao mesmo tempo, o adentrar-
-se em si [Insichgehen] do ser, um aprofundar-se do ser em si mesmo.”
(Hegel, 1995).

A “negação” do capitalismo no interior do próprio capitalismo


O movimento do capital-que-deixa-de-ser-capital – no plano da
inadequação do conteúdo material - ou, noutras palavras, o movimen-
to do capital que trabalha pela sua própria dissolução como a forma
dominante da produção, é o movimento do capital no interior do seu
duplo negativo: crise estrutural de lucratividade e desmedida do valor.
Trata-se da “negação” do capitalismo no interior do capitalismo, como
capitalismo “negado” (Fausto, 1987).
Como observou Ruy Fausto, a contradição do capital que se assinala
aqui, com o fenômeno da desmedida do valor, não é a que se analisa em
“O Capital”, ou, se se quiser, ela não é considerada no mesmo grau, e por
isso muda de caráter. Diz ele:
“Em ‘O Capital’, a contradição consiste em que o desenvolvimen-
to do sistema (desenvolvimento que só pode se fazer pela substituição
crescente da força de trabalho pela maquinaria), ao aumentar a compo-
sição orgânica c/v, tem como resultado, já que a mais-valia vem de v (e
supostas certas condições), a redução da taxa de lucro Pl/C. O sistema
iria à ruina, porque a sua finalidade é acumular mais-valia, e se a taxa
de lucro for muito baixa cai o estímulo (objetivo e subjetivo) para que a
acumulação prossiga” (Fausto, 1989).

O Duplo Negativo do Capital 189


Entretanto, “Os ‘Grundrisse’ nos põem diante do mesmo movi-
mento, só que eles consideram não os efeitos formais imediatos de uma
mecanização crescente, mas os efeitos materiais anunciando revoluções
formais, de uma mecanização que deu origem a uma transfiguração
da relação da ciência para com a produção. Estamos, assim, diante de
uma verdadeira transformação - como vimos, o termo se encontra no
texto - do processo produtivo, de uma mutação tecnológica, e os efeitos
formais considerados não atingem apenas o nível, que é afinal, feno-
mênico, da taxa de lucro, mas os ‘fundamentos’ do sistema. A mutação
tecnológica não produz contradições internas no sistema, ela provoca
a explosão de suas bases. O resultado é a relação do que é a ‘verdadeira
riqueza’.” (Fausto, 1989).
Assim, no plano da materialidade histórica, o capitalismo global é o
capitalismo tardio na etapa de crise estrutural do capital que, no plano
do ser (e da sua essência) é um “capitalismo negado” no sentido de que
operam em seu interior a crise estrutural da lucratividade e a desmedi-
da do valor (o duplo negativo do capital).
O capitalismo global é a nova etapa do capitalismo tardio em que o
movimento das leis tendenciais da acumulação de capital operam no in-
terior da “negação” (ou suprassunção) de sua determinação-progressiva
(o tempo de trabalho como único elemento determinante de valor). A
lógica dialética do movimento do capital explicita-se radicalmente. Na
era da desmedida do valor, o movimento do capital “negado” significa,
por um lado, (1) um “pôr-para-fora” – diria Hegel: “um desdobra-se do
conceito em si essente” (Hegel, 1999), ou seja, um desdobrar-se do capi-
tal em seus elementos essenciais mesmo que opere no plano do “capital
que deixou de ser capital”. Apesar da desmedida de valor, o aumento da
composição orgânica do capital (em valor) põe para fora movimentos
contratendenciais históricos à queda da taxa média de lucros.

190 O Duplo Negativo do Capital


O complexo do “duplo negativo” do capital

“pôr-para-fora” [Heraussetzen] “adentrar-se em si” [Insichgehen]

Processo de produção do capital como “negação” do tempo de trabalho, ele-


processo tecnológico mento determinante do valor

Aumento da composição orgânica do A desmedida do valor e o movimento


capital e seus movimentos contraten- da negação [suprassunção] do capital
denciais à queda da taxa média de lucro como capital.

[Autocentramento Exótico]
Financeirização da riqueza capitalista

A “desparametrização” do conceito do capital em si, com seus ele-


mentos essenciais, medidos em termos de valor (por exemplo, composi-
ção orgânica do capital, jornada de trabalho, salário, etc), não significa
sua invalidação ontológica na determinação do devir da forma do ser
do capital. Pelo contrário, o “passar para outra” do capital mantém
operando, sob a forma exótica, o conceito em si essente do capital (isto
é, o capital em seus elementos essenciais). Por exemplo, consideramos a
financeirização da riqueza capitalista como uma forma exótica que des-
loca as contradições do sistema diante à crise estrutural de lucratividade
(o “pôr-para-fora” representa o ex-otismo do capitalismo global).
Por outro lado, na era da desmedida do valor, na perspectiva da lógi-
ca dialética, o movimento do capital “negado” significa (2) o “adentrar-
-se em si” do ser” – ou como diria Hegel, “um aprofundar-se do ser em si
mesmo” (Hegel, 1999), ou seja, o capital em sua etapa de crise estrutural,
não é apenas ex-ótico, mas autocentrado em si mesmo como movimento
de valorização do valor – hoje, “negado” – mas posto-para-fora como
capital fictício. A dominância do capital especulativo-parasitário é a

O Duplo Negativo do Capital 191


forma histórica do capital “aprofundado em si mesmo”, explicitando na
totalidade de ser suas determinações estranhadas.

Desmedida do Valor, Trabalho “Imaterial” e Trabalho Abstrato


Com o capitalismo global, tendo em vista os novos territórios de pro-
dução do capital abertos com a deslocalização industrial, a nova divisão
internacional do trabalho e a mundialização produtiva, o trabaho vivo
como força de trabalho, fonte de mais-valor, cresceu, em termos absolutos,
aumentando exponencialmente, o capital variável na composição orgâni-
ca do capital e indiscutivelmente a massa de mais-valia no plano global
(por exemplo, a inserção do Sudeste Asiático, Leste Europeu, Rússia e
China no circuito de produção industrial do capital global).
Ao mesmo tempo, aumentou o capital constante - principalmente
seu componente de capital fixo (máquinas, edifícios, matéria-prima,
etc.). O capitalismo global impulsionou a concorrência capitalista
obrigando cada unidade de capital a tentar superar seu rival, intro-
duzindo meios de produção tecnologicamente mais avançados que
lhes permita reduzir os custos de produção. No plano da lógica do
valor, as corporações monopolistas eliminam setores atrasados que
possuem uma composição orgânica baixa com o objetivo de substituí-
los por outros com composição orgânica mais elevada - o que significa
que, embora tenha crescido em termos absolutos, o capital variável, o
aumento do capital constante foi maior, fazendo crescer a composição
orgânica do capital em termos relativos (o que explica a pressão
histórica sobre a taxa média de lucro). Assim, os oligopólios globais
promoveram um rápido crescimento dos investimentos em capital
constante.
Apenas as grandes empresas têm a capacidade financeira de acelerar
o processo de obsolescência do capital fixo, acelerando, deste modo, a
taxa de rotação do capital constante. Nas condições das novas revolu-
ções tecnológicas do capitalismo global, o desenvolvimento das forças
produtivas do capital implicou investimentos diretos (e indiretos) cada
vez mais caros, visando reduzir o valor contido no trabalho morto por
conta do aumento da produtividade do trabalho no setor I (o setor de

192 O Duplo Negativo do Capital


bens de produção). A desvalorização do capital constante contribuiria
para a queda da composição orgânica do capital.
Entretanto, a natureza do novo capital constante (capital fixo + ca-
pital circulante), as novas máquinas complexas e os novos materiais,
que surgiram com as revoluções tecnológicas, permeados de trabalho
imaterial recalcitrante à medida do valor, “transfiguram” efetivamen-
te o cálculo da produtividade do trabalho no setor I, tendo em vista o
fenômeno da desmedida do valor, tornando mais lento, a redução do
valor contido no trabalho morto.
Portanto, apesar do aumento da aceleração da taxa de rotação do
capital constante por conta das inovações tecnológicas e obsolescência
planejada dos meios de produção, o descenso do valor das novas
máquinas e dos novos materiais (capital constante) tornou-se mais
lento do que o descenso do valor da força de trabalho (capital variável),
impedindo a queda mais acelerada da composição orgânica do capital
num cenário histórico de aumento persistente dela por conta da maior
presença do trabalho morto no arcabouço produtivo.
Por isso, acelerou-se a desvalorização da força de trabalho e do tra-
balho vivo (o que explica a tendência histórica à precarização estrutural
do trabalho na era do capitalismo global com o crescimento do
desemprego em massa e a nova precariedade salarial). Ao mesmo tem-
po, a queda do valor da força de trabalho (v) que ocorre por meio da pre-
carização estrutural do trabalho encontrou um limite histórico-moral,
dado pela luta de classes e a correlação de forças entre capital e trabalho.
É importante salientar outra contradição que dilacera o movimento
contratendencial à queda da taxa média de lucro nas condições do capi-
talismo global: os limites do aumento da taxa de exploração são dados
não apenas pela luta de classes e a correlação de forças entre capital e
trabalho, mas também pelas condições histórico-morais de exploração
do trabalho vivo no capitalismo do século XXI.
Para que se possa deter efetivamente, em termos relativos, a ten-
dência de descenso da taxa média de lucro por conta do aumento da
composição orgânica do capital, a taxa de exploração deve aumentar
com maior rapidez que a composição orgânica do capital. Na verdade,
à medida que se eleva a composição orgânica do capital, a taxa de

O Duplo Negativo do Capital 193


lucro se torna progressivamente menos sensível a variações na taxa de
mais-valia.
Embora a precarização estrutural do trabalho seja condição
necessária para se contrapor às tendências criticas de formação (pro-
dução/realização) do valor, não é condição suficiente, tendo em vista
que se deve levar em consideração a elevação tendencial da composição
orgânica do capital nas condições históricas de profundas mudanças
técnicas na produção de mercadorias.
Nesse caso, a lenta redução do valor contido no trabalho morto (a
desvalorização do capital constante), opera o complexo de contradições
que impede a redução da composição orgânica do capital, tornando
inercial a tendência de queda da taxa média de lucro (o que explica a
financeirização da riqueza capitalista e o predomínio do lucro fictício
na composição da lucratividade capitalista).
No processo de acumulação do capital no plano do mercado global,
a vigência da determinação tendencial do aumento relativo da composi-
ção orgânica do capital em termos de valor, pressiona efetivamente para
baixo, a taxa média de lucro no plano do mercado global. Entretanto,
na dimensão do movimento histórico, é importante observar que, toda
determinação tendencial implica um complexo de contratendências
históricas que possuem a mesma legalidade ontológica da determinação
tendencial propriamente dita.
As tendências contrárias à queda da taxa média de lucros, como ob-
servou Manuel Castells, “não são meros fatores de demora dentro do
necessário e inexorável processo de destruição catastrófica da economia
capitalista” (Castells, 1979). Pelo contrário, as determinações tendenciais
ao aumento da composição orgânica do capital e ao descenso da taxa
média de lucro e suas contratendências históricas, compõem a “totali-
dade concreta” do capitalismo global, a nova etapa do capitalismo tardio
da crise estrutural do capital. A crise estrutural de lucratividade nas
condições históricas do capitalismo global, não significa objetivamente
o colapso do modo de produção capitalista, mas sim, a constituição
de uma nova dinâmica de desenvolvimento do capital: o capitalismo
global predominantemente financeirizado.

194 O Duplo Negativo do Capital


O Fardo do Capital
O movimento do capital compõe-se de determinações essenciais que
se articulam contraditoriamente com contratendências e elementos his-
tóricos contingenciais. Esta é a dialética da história humana. Estamos
diante da processualidade do real composto pela essência, aparência
e contingência histórica. A dialética histórico-materialista nos impede
de reduzir determinações essenciais a “leis” históricas inexoráveis que
agem de forma mecânica e determinística às costas dos sujeitos humano-
sociais. No movimento da dialética histórico-materialista, ao lado das
circunstâncias objetivas, legadas e transmitidas pelo passado no plano
da aparência, e das determinações essenciais das causalidades essen-
ciais dadas pela dinâmica da acumulação de capital, existem as con-
tingências históricas, verdadeiros “acidentes” intrínsecos ao curso geral
do desenvolvimento histórico. Como observou Marx a Kugelmann,
“a história mundial seria na verdade muito fácil de fazer-se se a luta
fosse empreendida apenas nas condições nas quais as possibilidades
fossem infalivelmente favoráveis. ” E prossegue: “Seria, por outro
lado, coisa muito mística se os “acidentes” não desempenhassem papel
algum. Esses acidentes mesmos caem naturalmente no curso geral do
desenvolvimento e são compensados outra vez por novos acidentes. Mas
a aceleração e a demora são muito dependentes de tais “acidentes”, que
incluem o “acidente” do caráter daqueles que de início ficam à frente do
movimento” (Marx, 1986).
Por exemplo, a (de)formação do sujeito histórico de classe por conta
do aumento do poder da manipulação do capital e da barbárie social é,
por um lado, elemento contingencial inscrito no movimento histórico-
-concreto do capitalismo global; e, por outro lado, no plano da aparên-
cia, opera como “contratendência” histórica efetiva à crise de lucrativi-
dade na medida em que, ao debilitar a capacidade do sujeito histórico
de classe pôr conscientemente obstáculos ao aumento da taxa de ex-
ploração, contribui para a dominação do capital. Enquanto elemento
contingencial que opera no plano da aparência do sistema, não abole a
vigência histórica da determinação essencial, mas altera em seu modo

O Duplo Negativo do Capital 195


do aparecer (a aparência é uma forma de ser da essência), a efetividade
da “lei” geral.
As duas dimensões do duplo negativo do capital - por um lado, (1)
crise estrutural de lucratividade/desmedida do valor; e por outro lado,
(2) a crise de formação (ou deformação) do sujeito histórico de classe,
como unidade contraditória do movimento do capital em sua fase de
crise estrutural, “alargam” a temporalidade histórica de crise de civili-
zação, constituindo o que podemos considerar o fardo do capital. Deste
modo, perpetua-se ad nauseam, a dominação do capital, que adquire na
etapa histórica da crise estrutural, a forma de barbárie social.
A barbárie social é expressão da corrosão das possibilidades
históricas de “negação da negação” pelo sujeito histórico de classe. O
alongamento da temporalidade histórica da crise estrutural do capi-
tal, como unidade contraditória do capital em processo, deve-se à exa-
cerbação da produção do valor - na medida em que ela é “negada”. A
exacerbação das formas derivadas de valor põe imensos desafios para a
formação da consciência de classe necessária, corroendo e debilitando a
capacidade histórica do movimento do proletariado como classe em-si
e para-si, em dar resposta efetiva, no plano histórico-mundial, às novas
condições objetivas da luta de classes no capitalismo global.
De forma sintética, apresentamos (como provocação heuristica) a
natureza contraditória do fardo do tempo histórico do capital:
Existem profundas transformações na materialidade concreta do
movimento histórico do valor e do trabalho abstrato. Por exemplo, por
um lado, mudanças estruturais no denominador da equação da com-
posição orgânica do capital (o capital variável), que devido o “salto
mortal” da produtividade do trabalho, decresceu em termos de valor,
implodindo seus parâmetros materiais: jornada de trabalho e forma-
-salário. Este é o fenomêno da “desmedida do valor”. A desvalorização
da força de trabalho como mercadoria tende a encontrar seus limites
intransponiveis na condição histórico-moral do capitalismo como pro-
cesso civilizatório e na própria luta de classes, abrindo uma profunda
crise de legitimação do Estado político do capital. Por outro lado, o nu-
merador da equação da composição orgânica do capital (o capital cons-
tante) incorpora, em si e para si, uma transfiguração da forma material

196 O Duplo Negativo do Capital


(trabalho imaterial desmedido) a partir do qual opera o trabalho abstra-
to, que provoca a quase-inércia de sua desvalorização.
Enquanto isso, no plano da aparência, nas condições históricas
da crise estrutural de lucratividade, o movimento da superprodução/
subconsumo “desanimam” o investimento produtivo, impulsionando
formas ficticias de valorização do capital, que contraditoriamente não
resolvem – mas, pelo contrário, agravam – as dimensões da crise estru-
tural da lucratividade. Assim, no interior do movimento de crise estru-
tural de lucratividade, existe um problema de realização que bloqueia a
reprodução do capital: “As condições macroeconómicas que determi-
nam o equilíbrio de forças entre capital e trabalho impedem a realiza-
ção de todo o ganho de capital produzido no mundo” (Chesnais, 2016)
Este movimento no plano da essencia e aparencia do desenvolvi-
mento da forma-valor, expandem a nova precariedade salarial e a pre-
carização das condições existenciais do trabalho vivo, com a degradação
da reprodução social e exacerbação da manipulação social. Entretanto,
a precarização das condições existenciais do trabalho vivo se apresenta
não apenas devido a captura do fundo público pelo capital financeiro,
mas pelo próprio sociometabolismo do capital que, com o capitalismo
global, expande o modo de vida “just-in time” e o fenomeno da “vida
reduzida” (eis a materialidade histórica da barbarie social!). Ao lado do
desenvolvimento exacerbado das forças produtivas do trabalho, ocorre
contraditoriamente a expansão silenciosa de carecimentos radicais do
trabalho vivo. A apropriação privada da riqueza humana socialmente
produzida e a manipulação extrema do self pessoal visando a proble-
mática reprodução da ordem burguesa senil configuram as misérias do
fardo histórico do capital.

Formas derivadas de valor e barbárie social


Na era do capitalismo manipulatório e com a vigência da “captu-
ra” da subjetividade do trabalho, com a disseminação do espirito do
toyotismo e dos sonhos, expectativas de mercado e valores-fetiches do
capital (Alves, 2011), instaurou-se a crise de (de)formação do sujeito
histórico de classe. Este é um dos aspectos de degradação da pessoa

O Duplo Negativo do Capital 197


humana-que-trabalha. A materialidade do salto histórico do estranha-
mento social no século XXI deve-se à disseminação intensa e ampliada
de formas derivadas de valor na sociedade burguesa tardia, com o feti-
chismo da mercadoria e as múltiplas formas de fetichismo social im-
pregnando as relações humano-sociais e colocando, deste modo, obstá-
culos efetivos à formação da consciência de classe necessária e, portanto,
à formação da classe social do proletariado.
Em nossas reflexões críticas, temos distinguido formas constitutivas
e formas derivadas do valor. Na ótica da teoria da exploração de Karl
Marx, a categoria de “trabalho abstrato” é uma categoria pertinente ao
trabalho produtor de valor ou trabalho produtivo, sendo, deste modo, a
“forma constitutivas” do valor. É o trabalho abstrato que produz valor,
sendo assim, trabalho produtivo no sentido marxiano, elemento cons-
titutivo da forma-valor.
Entretanto, na medida em que se desenvolve o modo de produção
capitalista, a forma-valor se dissemina por instâncias da totalidade viva
do trabalho não-produtivo (ou improdutivo). Por exemplo, o trabalho
no comércio e inclusive, na administração pública são exemplos de
trabalhos improdutivos interiores e exteriores à produção do capital,
respectivamente. Nesse caso, “trabalho abstrato” e “exploração” (entre
aspas) aparecem como “formas derivadas” do valor nas instâncias do
trabalho “improdutivo” interior ou exterior à produção do capital. Tal
como o fetichismo da mercadoria se dissemina na totalidade social,
impregnando as relações sociais para além da troca de mercadorias, o
trabalho abstrato impregnou o labor social na esfera do trabalho impro-
dutivo. Enfim, a lógica do trabalho abstrato penetrou as mais amplas e
profundas instâncias da vida social.
Por exemplo, o fenômeno social da “vida reduzida” (Alves, 2014) é
resultado da disseminação das formas derivadas de valor por meio de
valores-fetiches operando as relações sociais. A “exploração” e o “estra-
nhamento” tornam-se elementos compositivos derivados das relações
sociais humanas intervertidas em relações sociais instrumentais. As for-
mas derivadas de valor são formas ideológicas do capital.
As “formas derivadas” do valor, no plano da produção do valor pro-
priamente dito, são formas fictícias, no sentido de que não contribuem

198 O Duplo Negativo do Capital


efetivamente para a valorização do capital. Portanto, não operam movi-
mentos contratendenciais à crise estrutural de lucratividade, mas ape-
nas deslocam contradições no interior do sistema. Por isso, no plano
da reprodução social (e hegemonia) do capital e enquanto expressão do
capitalismo manipulatório e do poder da ideologia, contribuem para a
deformação do sujeito histórico de classe.
Na virada para o século XXI, a vigência plena da grande indústria,
com a predominância da mais-valia relativa, instaurou um campo am-
pliado, intenso e extenso de “contradições vivas” no interior do sistema
mundial produtor de mercadorias. Por exemplo, na medida em que a
categoria de “trabalho abstrato” adquiriu intensidade e amplitude no
interior do movimento do capital, ela disseminou-se, não apenas como
forma constitutiva do valor, mas também, e principalmente, como “for-
ma derivada” do valor. O salto histórico do trabalho abstrato expressa
a contradição viva do capital em sua etapa de crise estrutural, tendo
em vista que a lógica do valor, que constituiu a formação social capita-
lista, tornou-se “afetada de negação” no interior do movimento de sua
afirmação plena, transtornando, em si e para si, o sistema produtor de
mercadoria.
A crítica da economia política se manifestou, no plano prático-
sensível, com a crise estrutural do capital (universal, global, extensa
e rastejante), expondo, na dimensão do valor, os limites da relação-
capital. Por exemplo, a afirmação da “ficticidade” do valor como ca-
pital especulativo-parasitário, é uma das representações materiais da
dominância das formas derivadas de valor na dinâmica do capital.
Existe um movimento dialético de desefetivação persistente do valor no
interior do movimento de afirmação plena (e contraditória) do valor
como modus operandi do metabolismo social do capital. Eis o sentido
espectral da “crise do valor” ou crise de valorização produtiva exposta
no bojo da crise estrutural do capital.

O Duplo Negativo do Capital 199


Crise Estrutural do Capital

Crise estrutural de lucratividade/desmedida do valor


(“duplo negativo” do capital)

Processo de (de)formação do sujeito histórico de classe


(dessubjetivação de classe)

Entretanto, mesmo imbuído de “ficticidade”, o trabalho abstrato


que impregna o labor improdutivo na totalidade social, tem, no plano
da existência humana das individualidades pessoais de classe, a mes-
ma eficácia ontológica das formas constitutivas do valor. A distinção
“formas constitutivas do valor”, vinculadas às instâncias produtivas do
capital; e “formas derivadas do valor”, compondo o trabalho improduti-
vo (interior e exterior) à produção do capital, é uma distinção relevante
apenas para entendermos a dinâmica da acumulação do capital, sendo
irrelevante para aferirmos a dinâmica da vida social, a materialidade
efetiva da formação do sujeito histórico de classe e a luta de classe.
Por exemplo, o trabalhador público na era do capitalismo global,
está imerso naquilo que denominamos de “condição de proletariedade”;
e embora não produza valor, é “explorado” pelo capital e afetado pelo
trabalho abstrato como forma derivada de valor, sendo, portanto, capaz
de desenvolver, cum grano salis, a consciência de classe necessária, tanto
quanto o operário industrial, explorado e subsumido à lógica primordial
do trabalho abstrato produtor de valor. Deste modo, o capitalismo
global como capitalismo manipulatório nas condições da vigência plena
do fetichismo da mercadoria, expõe a contradição crucial entre, por um
lado, a universalização da condição de proletariedade e, por outro lado,
a obstaculização efetiva da consciência de classe de homens e mulheres
que vivem da venda de sua força de trabalho.

200 O Duplo Negativo do Capital


Consider ações Finais

Maquinofatura e Trabalho Ideológico


No decorre do capitalismo global constituiu-se um novo patamar do
processo civilizatório do capital. A “unidade contraditória” entre civi-
lização e barbarie social explicitou no seu movimento histórico, novas
formas de ser da precarização do trabalho a partir da nova forma de
produção do capital (a maquinofatura) e, com o surgimento das socie-
dade dos serviços, a disseminação da nova matéria da forma concreta
do trabalho humano (o trabalho ideológico). Eis a dialética entre forma
social e conteúdo material da produção do capital que encontra seu li-
mite estrutural: o capital como sistema de controle estranhado do me-
tablismo social.
À título de considerações finais, vamos explicar o significado
da categoria de maquinoatura e trabalho ideológico, elementos
fundamentais para entendemros a radicalidade da “contradição viva”
que constitui a relação-capital no século XXI. Estas considerações fi-
nais são a “ponte teórica” para o próximo livro onde desenvolveremos
de modo ampliado, as reflexões sobre a nova precariedade salarial do
capital e seus impactos sociometabolicos no século XXI.
A maquinofatura instaurou novas determinações concretas da pre-
carização estrutural do trabalho vivo. A constituição da maquinofa-
tura nas condições históricas da crise estrutural do capital como crise
estrutural de valorização do valor, transformou efetivamente os termos
e os modos de ser da precarização do trabalho vivo. Como nova forma
de produção do capital, produto do desenvolvimento da manufatura e

Considerações Finais 201


da grande indústria, a maquinofarura surgiu como determinação da
base técnica do sistema de produção de mercadorias implicando irre-
mediavelmente na constituição da nova relação homem x natureza. A
técnica como tecnologia, ou ainda, a tecnologia como forma social da
técnica, é uma mediação necessária do metabolismo social.
No caso da sociedade capitalista, a base técnica do sistema produ-
tor de mercadoria adquiriu, por exemplo, determinadas formas sociais,
caracterizadas por Marx como sendo manufatura e a grande indústria
(Marx, 1996). Podemos considerá-las formas sociais ou formas socio-
metabólicas no interior das quais se desenvolve a produção do capital.
Manufatura e grande indústria são categorias sociais que implicam um
determinado modo de controle sociometabólico que emergiu com a civi-
lização moderna do capital.
Diz Marx, logo no início do capítulo 13 do livro I de “O Capital”: “O
revolucionamento do modo de produção toma, na manufatura, como
ponto de partida a força de trabalho; na grande indústria, o meio de
trabalho” (Marx, 1996). Nesta pequena e interessante passagem, Marx
salientou os “pontos de partida” dos revolucionamentos do modo de
produção capitalista. Trata-se de uma colocação ontológica da forma
de ser da produção social do capital. Como Marx e Engels salientaram
anteriormente, “a burguesia não pode existir sem revolucionar inces-
santemente os instrumentos de produção, por conseguinte, as relações
de produção e, com isso, todas as relações sociais. ” (Marx e Engels,
1998). Ao constituir a cooperação e a divisão manufatureira do traba-
lho, a manufatura revolucionou a força de trabalho; a grande indústria,
ao instaurar o sistema de máquinas, revolucionou o meio de trabalho.
Nossa hipótese fundamental é que, a maquinofatura, síntese lógica (e
ontológica) da manufatura e grande indústria, ao constituir a nova base
técnica informática/informacional da produção social, revolucionou a
relação força de trabalho e meio de trabalho, instaurando a gestão como
nexo essencial da produção do capital e revolucionando a relação ho-
mem-máquina. A maquinofatura, a nova transformação técnica da pro-
dução da vida social no século XXI, alterou as condições da dominação
da forma-capital e o controle do metabolismo social.

202 O Duplo Negativo do Capital


Desde a manufatura e grande indústria, o revolucionamento do
modo de produção implicou o revolucionamento do modo de vida,
isto é, o revolucionamento de todas as relações sociais (o Marx de 1844
diria: o revolucionamento da “vida do gênero” [Gattungsleben] na sua
forma abstrata e alienada; ou ainda: “A vida mesma aparece só como
meio de vida” – eis o verdadeiro sentido do trabalho assalariado cons-
tituído no bojo do desenvolvimento da manufatura e grande indústria)
(Marx, 2004). Portanto, o ponto de partida da maquinofatura não é o
revolucionamento da força de trabalho (como na manufatura), nem o
revolucionamento da técnica (como na grande indústria), mas sim, o
revolucionamento do homem-e-da-técnica, ou o revolucionamento da
própria relação homem-técnica.
Com a maquinofatura constituiu-se a gestão como forma ideológica
da produção do capital nas condições da rede informacional (Goulejac,
2007). Enquanto nova forma tecnológica de produção do capital,
baseada na rede informacional, a maquinofatura colocou a necessidade
da gestão como veículo da “captura” da subjetividade do trabalho vivo,
nexo essencial do toyotismo como inovação organizacional do capita-
lismo flexível (Alves, 2011).
Na medida em que se disseminou o “espírito do toyotismo” por
meio das instancias da reprodução social, loci do processo de subjeti-
vação social, a produção do capital tornou-se efetivamente totalidade
social, constituindo assim, o modo de vida just-in-time com seu socio-
metabolismo estranhado e com seus carecimentos radicais. Em síntese:
toda forma de produção do capital (manufatura, grande indústria ou
maquinofatura) implica, como pressuposto da base técnica, uma deter-
minada forma organizacional do trabalho ou gestão; e um determinado
modo de vida adequado para a reprodução social (isso ocorre tanto na
manufatura, quanto na grande indústria e maquinofatura).
A maquinofatura, que se constituiu a partir da nova base técnica (a
tecnologia informacional), põe, como pressuposto efetivo, a “captura”
da subjetividade da pessoa humana por meio do espírito do toyotismo,
implicando, de modo intensivo e extensivo, o processo de reprodução
social do trabalho vivo. Deste modo, com o surgimento da maquinofa-
tura, alterou-se os termos do estranhamento social, dado pela relação

Considerações Finais 203


tempo de vida/tempo de trabalho e pela constituição de um novo modo
de vida: o “modo de vida just-in-time”.
Em termos ontometodológicos, “pressuposto” quer dizer “determi-
nação”, mas não “determinismo”, o que significa que, a relação entre
maquinofatura e novas formas de estranhamento social decorrentes da
precarização das condições sociais de existência do trabalho vivo (ou
precarização existencial) e precarização do homem-que-trabalha (ou
pessoa-que-trabalha), não implica em determinismo tecnológico, tendo
em vista que a maquinofatura é apenas a forma sociometabólica da nova
base técnica - no caso, a rede informacional, oferecendo um campo de
possibilidades contraditórias (como diria, Lojkine, 1995), desenvolvidas
(ou não) pelo capital como mediação da forma social historicamente
determinada.
Deste modo, não é a base técnica que produz estranhamento social,
mas sim a forma-capital e as relações sociais de produção capitalista que
fazem com que a base técnica informacional da maquinofatura encontre
na gestão toyotista, a forma organizacional adequada da produção social.
A rigor, maquinofatura não implica necessariamente gestão toyotista
e modo de vida just-in-time. Não é a forma técnica da produção do
capital, constituída pelas novas maquinas informacionais em rede, que
nos faz adoecer, mas sim, as relações sociais de poder do capital como
movimento de autovalorização do valor, relações sociais estranhadas
que se materializam na organização do trabalho.
Uma sociedade humana emancipada de produtores auto-organizados,
onde os sujeitos humanos se re-apropriam das condições objetivas e sub-
jetivas da produção social (condições de trabalho e gestão), a base técni-
ca das novas máquinas informacionais contribuiria efetivamente para o
desenvolvimento de novas virtualidades humanas, explicitando um novo
modo de organização do trabalho e um novo modo de vida. Nesse caso, a
maquinofatura contribuiria não para a alienação humana, mas para a ex-
plicitação da nova humanidade plenamente desenvolvida, tendo em vista
a afirmação da rede informacional (o ciberespaço) como base material
pressuposta do em-si da genericidade humana (Alves, 1999).

204 O Duplo Negativo do Capital


Quadro 1: Formas de Produção do Capital

Manufatura Força de Trabalho (Homem)

Grande Indústria Meio de Trabalho (Técnica)

Maquinofatura Homem + Técnica = GESTÃO

Com a “sociedade de serviços” disseminou-se o novo contéudo ma-


terial da forma social do trabalho abstrato: o trabalho ideológico, enten-
dido como sendo um modo de trabalho humano concreto que implica
a ação comunicativa sobre outros homens (e inclusive sobre si mesmo).
Por exemplo, as profissões de educadores, assistentes sociais, cuidado-
res, médicos, juízes, vendedores, psicólogos, analistas simbólicos, etc,
são atividades laborais onde se exerce a ação ideológica sobre outros
homens e sobre si mesmo. O complexo vivo do trabalho ideológico sur-
giu do próprio desenvolvimento do processo civilizatório do capital,
caracterizando hoje, não apenas os serviços de controle e apoio à re-
produção social, mas as atividades preparatórias, e inclusive, atividades
diretas da produção social.
O trabalho ideológico impregna a materialidade imaterial da ma-
quinofatura, tendo em vista que a nova forma de produção do capital
instaurou um novo modo de subsunção do trabalho ao capital. É o que
Ruy Fausto salientou como sendo a “pós-grande indústria”, conceito ho-
mologo ao conceito de maquinofatura e que se caracteriza pela subsun-
ção formal-intelectual ou espiritual do trabalho ao capital em contraste,
por exemplo, com a subsunção formal (manufatura) e subsunção real
(grande indústria) (Fausto, 1988). Por exemplo, o trabalho ideológico
permeia a organização do trabalho industrial sob a gestão toyotista. O
kan-ban e a autonomação são dispositivos ideológicos que operam ações
comunicativas nas equipes de trabalho da fábrica toyotista. A gestão

Considerações Finais 205


toyotista como prática mediativa da nova forma de produção do capital
(a maquinofatura), é essencialmente trabalho ideológico, possuindo
sentido estranhado, na medida em que implica a racionalização de
meios visando a obtenção de fins estranhos às necessidades sociais e
carecimentos radicais dos sujeitos humanos-que-trabalham.
Como tipo de trabalho humano concreto nas condições do modo de
produção capitalista, o trabalho ideológico incorporou a forma social
do trabalho abstrato, tornando-se assim, trabalho ideológico com im-
plicação estranhada. A implicação estranhada do trabalho ideológico
encontrou na gestão, o “veículo” da alienação/ estranhamento. Por
exemplo, a gestão como “doença social” (como diria Vincent de Gou-
lejac), possui efetivamente um sentido ideológico que estressa o sujeito-
-que-colabora. Deste modo, existe uma unidade orgânica entre ma-
quinofatura como nova forma de produção do capital, e a vigência do
trabalho ideológico com implicação estranhada.
Na medida em que as profissões caracterizadas pelo trabalho ide-
ológico têm uma característica fundamental (elas envolvem, extensa e
intensamente, a subjetividade das pessoas-que-trabalham), o trabalho
ideológico com implicação estranhada, possui uma alta carga de estres-
samento, que, nas condições da precarização existencial, faz aumentar
o risco de adoecimento laboral (precarização do homem-que-trabalha).

206 O Duplo Negativo do Capital


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Referências 211
Hieronymus Bosch e a
crise do capital

As pinturas que utilizamos para ilustrar a capa e o interior do li-


vro “O Duplo Negativo do Capital” são pinturas do início do século
XVI, quando começa a moderna vida do capital. Elas são de Hierony-
mus Bosch e intitulam-se: “Inferno”, o volante da direita do tríptico “O
Jardim das Delicias (pintado em 1504), feita por Hieronymus Bosch; e
“Cristo no Limbo”, de um seguidor de Hieronimus Bosch (pintada em
1545, cerca de trinta anos depois da morte do mestre holandês). Em-
bora a pintura “Cristo no Limbo” não seja de Hieronymus Bosch, ela
expressa um estilo religioso e alegórico inspirado no mestre holandês.
Nos 60 anos após sua morte, Bosch foi amplamente forjado, copiado e
reproduzido na versão impressa, com apenas alguns de seus imitadores,
mais notavelmente Pieter Bruegel, o Velho, sendo originais por direito

Hieronymus Bosch e a crise do capital 213


próprio. Bosch continuou a influenciar pintores holandeses e flamen-
gos por mais um século antes de desaparecer de vista por séculos – os
séculos de expansão do capitalismo comercial e ascensão do capita-
lismo industrial (séculos VII, XVIII e XIX), sendo ressuscitado pelos
surrealistas no século XX, o século de desenvolvimento do capitalismo
monopolista e da barbárie social.
Hieronymus Bosch, nasceu por volta de 1450 na cidade de s-Her-
togenbosch (Holanda) e faleceu em 9 de agosto de 1516 – na mesma
cidade. Ele tornou-se um pintor e desenhista holandês, um mestre da
renascença holandesa, canonizado por seu estilo de painéis religiosos e
alegóricos, povoadas de criaturas grotescas e cenas de pesadelo. Bosch
criou um estilo estético na pintura e no desenho capaz de expressar o
Zeitgeist do alvorecer do moderno do mundo do capital. O pintor e de-
senhista holandês viveu no tempo de transição do feudalismo para o ca-
pitalismo comercial. Ao mesmo tempo, no início do século XVI, com as
Grandes Navegações, os espanhóis ocupavam o Novo Mundo promo-
vendo o genocídio de milhões de aborígines das Américas em nome da
civilização cristã do capital mercantil. Portanto, Bosch viveu os medos
profundos da alma humana num contexto de crise (e nascimento) de
civilização. O simbolismo cristão de sua pintura reflete os tormentos e a
crise intima do homem medieval. Bosch não representa propriamente o
humanismo renascentista. Pelo contrário, nas suas pinturas e desenhos
manifesta-se o espírito do homem atormentado pela crise espiritual da
época, que provocou uma generalizada angústia em relação ao Além,
antes neutralizada pelo vigor de uma fé que começava a declinar.

214 O Duplo Negativo do Capital


Na pintura “Cristo no Limbo”, vemos Cristo através de um portão
em uma cidadela à esquerda. Seu cajado cruzado é erguido e ele é cer-
cado por uma luz amarela. O inferno é povoado por seres humanos
e monstros nus. Os membros humanos cortados estão suspensos em
diferentes lugares por toda a paisagem. Mais figuras nuas estão sendo
expelidas da boca de um grande monstro atarracado, perto do topo da
imagem; no canto superior direito está um inferno escaldante.

Hieronymus Bosch e a crise do capital 215


Tríptico “O Jardim das
Delicias”, com o painel central
(“O Jardim das Delicias”),
o volante esquerdo (O Paraiso
Terreno) e o volante direito
(O Inferno).

Na pintura “Inferno” (volante direita do tríptico “O Jardim das Deli-


cias” acima), percebemos o Inferno como a crueldade, o refinamento na
aplicação da dor a seres humanos. Podemos dizer que é a representação
simbólica do verdadeiro Inferno do Capital, destilado nas fantasias ale-
góricas de Hieronimus Bosch. O mestre holandês não fará nada mais
que testemunhar essa crueldade com total realismo, transpondo-a para

216 O Duplo Negativo do Capital


uma linguagem alucinada, na qual a animalidade do verdugo se traduz
em caras de ratos, garras de aves ou caudas de reptéis.
Nos reencontramos no século XXI, diante da barbárie social, com
os medos e tormentos da alma humana – obviamente, não os medos e
tormentos medievais tardios sobre o fim do mundo, o fogo do inferno
e a danação, afinal não possuímos mais as roupagens do simbolismo
cristãs do fim do medievalismo. Entretanto, tal como Bosch, vivemos
numa era de transição e crise de civilização, com o declínio histórico (e
alucinadas contradições) do modo de produção capitalista. Como ob-
servou Marx, o capital é a “contradição viva”, pois, na mesma medida
que põe historicamente as possibilidades concretas do Paraíso Terreno,
tendo em vista o admirável desenvolvimento das forças produtivas do
trabalho social, nos atormenta com a perversidade refinada do Inferno
do sistema de exploração e espoliação do capital diante da crise do ca-
pitalismo global.

Hieronymus Bosch e a crise do capital 217

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