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Descolonizar a palavra: outros modos de ser e viver por meio dos ensinamentos de

uma professora Guarani Nhandewa


Daniel Ganzarolli Martins (PPGE/UFF)1
Ricardo Sant’Ana Felix dos Santos (PPGSD/UFF)2

Resumo
O presente artigo tem como ponto de partida os diálogos fecundos que ocorreram e estão a
ocorrer nas classes extracurriculares de língua guarani na Universidade Federal Fluminense,
em Niterói (RJ). Estas aulas são realizadas pela professora Sandra Benites, indígena Guarani
Nhandewa. Busca-se trazer uma reflexão acerca da importância da continuidade e expansão
desse tipo de espaço nas universidades, de forma que se propiciem experiências ancoradas
nos encontros e diálogos entre os indígenas e os jurua kuery (não indígenas). Argumenta-se
que a aprendizagem da língua guarani não é apenas útil para fins de investigação acadêmica
ou para uma comunicação direta com os indígenas dessa etnia, como também se constitui
numa experiência de aprendizado sobre o teko (modo de ser e viver) dos Guarani, das suas
diferentes formas de se pensar, por exemplo, a educação, o ambiente, o corpo, a
espiritualidade e a infância, tendo em vista um diálogo intercultural que não é unidirecional
ou prescritivo. Dessa forma, delineamos como esse curso de ensino de língua guarani abriu
e abre espaço para a descolonização da educação, do pensamento e da linguagem, nos seus
sentidos mais amplos.

Palavras-chave: educação intercultural, linguagem, decolonialidade.

Djawy dju! Mba’e pa pemombe’u?


Com as frases acima, nossa professora Sandra Benites (de nome Ara Rete, “força do
dia/céu” na sua língua guarani3) inicia sua aula numa manhã de sábado. Numa tradução ao
português, ela nos disse um simpático “Bom dia! O que vocês me contam?”. No decorrer da

1
É licenciado e bacharel em Ciências Biológicas pela Universidade Federal de Santa Catarina. Trabalhou como
professor de ciências da rede municipal de Florianópolis e é atualmente mestrando em Educação pela
Universidade Federal Fluminense. Atua como pesquisador nos campos da Educação Ambiental e dos Estudos
Culturais, tendo também experiência em Etnobiologia e Ecologia Humana.
2
É bacharel em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina, mestre em Sociologia Política pela mesma
universidade e atualmente doutorando em Sociologia e Direito na Universidade Federal Fluminense. Tem
experiência nas áreas de pensamento latino-americano e teoria crítica da cidadania, dos direitos humanos e da
democracia, com ênfase nos marcadores sociais de diferença. Possui especial interesse nas teorias decoloniais,
políticas de memória histórica e educação para/em direitos humanos.
3
É comum para os Guarani adotarem um nome “aportuguesado” para utilizarem junto à comunidade dos não
indígenas, sendo o outro, em guarani, para sua comunidade.
aula, a professora dialoga conosco ativamente. Aprendemos sobre os verbos amombe’u
(contar), ko’e (amanhecer), amohesakã (esclarecer) e porandu (perguntar), e suas
conjugações. A professora explica também as diferenças de nomeação que ocorrem de
acordo com o gênero do falante, dando o exemplo de que uma mãe ao falar “minha filha
chegou”, diria na língua guarani⁚ “Xe memby kunhãi oguãhe”. Já um pai, dado o seu gênero
masculino, modificaria sua fala sobre a filha para⁚ “Xe radjy oguãhe”.4
Num entremeio dessas explicações, Sandra nos apresenta um possível diálogo entre
o feminismo ocidental e a vivência da mulher indígena. Entretanto, ela explica que ao
dialogar com as mulheres guaranis ela não se utiliza do termo feminismo, palavra de origem
jurua5, mas de outras categorias da sua própria língua e cultura. Como, por exemplo, as
narrativas ancestrais que envolvem o sagrado da Nhandesy (nossa mãe). Em suas aulas há
espaço para trocas de experiências, para a política que se vive nos cotidianos dos diferentes
alunos da turma, assim como momentos para a indignação e o desabafo. Um saber-fazer
dialógico que é permeado de uma escuta atenta, tal como Sandra nos explicou que a cultura
guarani é atravessada.
Sandra foi nossa primeira professora indígena em mais de duas décadas de trajetória
por espaços formais de ensino, seja em escolas, seja em universidades. No segundo semestre
do ano de 2017 – tendo prosseguimento no primeiro semestre de 2018 – foi oferecido pelo
Programa de Línguas Estrangeiras Modernas (PROLEM) da Universidade Federal
Fluminense (UFF), em Niterói (RJ), o curso de língua Guarani, para o qual a professora
Sandra Benites ficou encarregada de lecionar/ministrar as aulas.
O curso surgiu como parte do projeto “Encontro de Saberes” no âmbito da UFF. Este
tem sua origem em 2009, no contexto da elaboração e implementação de políticas de
inclusão e ações afirmativas por diferentes universidades brasileiras desde o começo dos
anos 2000. Foi assim que se consolidou o Instituto de Inclusão no Ensino Superior e na
Pesquisa (INCTI, um dos Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia do Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq), sediado na Universidade
de Brasília (UnB), com financiamento do Ministério da Ciência Tecnologia e Inovação

4
Tecnicamente, no caso da mãe ser a enunciadora, tanto faz se é “filha” ou “filho”, a palavra utilizada é a
mesma, tendo um significado literal de “algo colado em mim”. Já sendo o pai o enunciador, a flexão de gênero
é realizada (radjy, para “filha”, e ra’y, para “filho”), significando, literalmente, “minha carne”, “meu nervo”,
no primeiro caso, e “meu pedacinho”, para o segundo. Percebe-se como todos os termos indicam uma
relacionalidade corporal específica neste sistema que envolve a filiação e sua nominação; remetem à relação
do enunciado (e, por consequência, do referente “filho/filha”) com o corpo do falante.
5
Palavra em guarani que literalmente significa “boca com cabelo”, em referência à barba dos homens, porém
é utilizada de forma geral para designar os que não são indígenas.
(MCTI). A partir de então, foram planejadas ações de inclusão de saberes afro-brasileiros e
indígenas em diversas universidades públicas brasileiras, em nível de graduação e pós-
graduação. O projeto Encontro de Saberes possibilitou, por exemplo, trazer lideranças
indígenas, quilombolas, de povos de terreiro e de comunidades tradicionais para
compartilharem seus saberes e vivências no espaço universitário. De forma a atender a
legislação que obriga o Estado a implementar as políticas de ações afirmativas e garantir a
inclusão de conteúdos curriculares específicos até então não fomentados, os cursos de língua
Guarani e Yorubá começaram a ser oferecidos pelo PROLEM.
A professora Sandra Benites tem origem na aldeia Porto Lindo, no estado do Mato
Grosso do Sul. Entretanto, ao longo de sua vida ela viveu em distintas localidades pelo
Brasil, sendo que por sete anos lecionou para crianças e adolescentes guaranis numa escola
da aldeia Três Palmeiras, no município de Aracruz, no Espírito Santo. No ano de 2015, ela
se formou na licenciatura indígena pela UFSC e em 2018 obteve o título de mestre em
Antropologia Social pelo Museu Nacional, sendo que atualmente está no doutorado do
mesmo programa de pós-graduação.
A turma de língua guarani que se constituiu na UFF é diversa em termos de perfis de
estudantes, configurando trajetórias e interesses bem variados. Desde pessoas que trabalham
social e academicamente com indígenas, porém não necessariamente com os da etnia
guarani, como, por exemplo, os Mebêngôkre/Kayapó da região amazônica, até as que não
haviam tido contato com a temática até então. Alguns indivíduos da turma demonstraram
seu interesse pelas aulas por terem antepassados indígenas. É importante também destacar
uma redução de 75% do custo do curso em comparação com outras línguas oferecidas pelo
PROLEM, assim como a total gratuidade do mesmo para estudantes cotistas, de forma a
estimular a inscrição dos estudantes.
Ao demonstrarmos um entusiasmo com as aulas de língua guarani com amigos,
familiares e conhecidos, apesar de muitos demonstrarem interesse e curiosidade, também
houve aqueles que demonstraram perplexidade e, num caso específico, até desprezo.
Questionavam o porquê de se estudar a língua guarani. Qual seria sua “utilidade” em um
mundo “globalizado”? Não seria melhor dedicar tempo de estudo para línguas mais “úteis”
como inglês, francês, espanhol ou alemão? Línguas oriundas do continente Europeu e que
tradicionalmente teriam um valor e lugar “natural” numa instituição universitária, tendo-se
como lente uma perspectiva colonial e racista?
Sobre as (de)colonialidades que nos habitam

Boaventura de Souza Santos (2010) narra a existência de um pensamento colonizador


que nos estrutura e que precisa ser exposto e problematizado. Os saberes posicionados ao
sul geográfico foram vistos como destoantes da racionalidade moderna e por isso vistos
como inferiores. Tal como apresentado no “Subpoema” de José Luis Mendonça (1997), o
sul é categorizado pelo prefixo “sub”: subdesenvolvido, subnutrido, subserviente e
pertencente a um submundo.
Uma diversidade de pensadores decoloniais e pós-coloniais buscam aprofundar essa
crítica quanto à colonialidade do saber, em especial acerca do que é ensinado e pesquisado
nas universidades. Matta (2014) discute isso e coloca como ainda somos colonizados em
termos epistemológicos, onde a Europa é vista como a origem de um “sujeito universal” e
sua hegemonia se impõe nas diversas produções culturais e no próprio pensar acadêmico. A
universidade se fundamentou historicamente nos pressupostos de que possui um
conhecimento privilegiado e separado dos saberes ditos “populares” e “tradicionais”,
incluindo nestes os pertencentes aos povos indígenas.
É curioso constatar que o latim, a língua que era falada cotidianamente na época dos
antigos romanos, tem seu ensino nas universidades brasileiras mais disseminado e
consolidado que o de língua guarani. Não se nega as contribuições que a língua latina teve
para a ciência e a cultura acadêmicas brasileiras, porém a língua guarani igualmente trouxe
contribuições ímpares para nossa sociedade e há uma dificuldade em ser reconhecida por
isso. Ademais, não haveria como considerar essa língua como “estrangeira” no Brasil, sendo
nativa destas terras e profundamente viva e falada nos cotidianos dos povos desta etnia. Cabe
ressaltar que a língua guarani, além de ser falada no Brasil, está também presente no
Paraguai, na Argentina, na Bolívia e no Uruguai.
Por um longo período da história do Brasil, uma variação do tupi-guarani era a língua
falada majoritariamente aqui, inclusive pelos colonizadores e jesuítas portugueses (BESSA-
FREIRE, 2008). Até a primeira metade do século XVIII a língua geral setentrional - ou
amazônica - e a língua geral meridional - ou paulista - eram as línguas francas,
respectivamente, no Norte e na região Centro-Sul. Somente com a imposição violenta da
coroa portuguesa, representada pela figura do Marquês de Pombal na segunda metade do
século XVIII, é que nos tornamos forçosamente, e de forma não-homogênea, uma nação
lusófona. Entretanto, uma infinidade de palavras e articulações linguísticas presentes em
nossos cotidianos são advindos de línguas indígenas, em especial do tupi-guarani. Palavras
como pitanga, caju, carioca ou expressões como o “nhenhenhém”. Uma enorme quantidade
de topônimos, tais como Itacoatiara, Guanabara, Icaraí ou Niterói.
Entretanto, ressaltamos que o contato com a língua guarani é algo mais profundo do
que aprender origens curiosas das palavras ou alguma finalidade utilitarista num campo de
pesquisa ou trabalho junto aos indígenas. Este artigo articula a ideia de que aprender a língua
guarani também envolve romper com os estereótipos colonizadores acerca destes povos e
desestabilizar nossas certezas sobre um modo único de falar, viver, ser e pensar. Possibilita,
dessa forma, que outras políticas, epistemologias e ontologias também habitem os espaços
educativos.

O poder da palavra para os Guarani

A língua guarani está situada na família linguística Tupi-Guarani, e esta, por sua vez,
localizada dentro do tronco linguístico Tupi. Dentro da língua guarani há variações na fala e
escrita de acordo com os diferentes subgrupos da etnia Guarani, dentre eles os Mbyá,
Nhandewa e Kaiowá. Pela fala de nossa professora Sandra, não há única forma de se escrever
as palavras em guarani, e provavelmente o ideal não seria padronizá-la, apesar das supostas
vantagens da criação de uma língua uniformizada para a criação e distribuição de materiais
didáticos. Sandra colocava como a imposição forçada de uma única forma de se falar e de
se escrever poderia se constituir numa violência a essas diferenças regionais e locais, que
também necessitam ser contempladas.
Pela Lei de Diretrizes e Bases (Lei nº 9394/96) houve avanços legais com relação ao
reconhecimento constitucional dado aos povos indígenas ao direito culturalmente
diferenciado à educação bilíngue, à recuperação de suas memórias históricas e à reafirmação
de suas identidades étnicas. Com a complementação prescrita pela Lei nº 11.645/08, a
história e cultura indígenas devem ser ensinadas tanto para povos indígenas quanto não
indígenas. Entretanto, diferentemente de países latino-americanos como a Bolívia ou o
Paraguai, as línguas indígenas do Brasil não são consideradas oficiais em âmbito nacional.
No Paraguai, o guarani é também uma língua institucional ensinada nas escolas do país,
sendo que a maior parte da população fala o jopara, que é uma mescla das línguas castelhana
e guarani.
A palavra e a fala têm um significado espiritual para os povos indígenas Guarani
(BENITES, 2015). Benites coloca que a palavra Nhe’ẽ tem um significado aproximado a
“um fundamento da pessoa Guarani” ou um “espírito-nome”. Como ela acrescenta, ao falar
sobre o Nhe’ẽ:
Estranhamos não apenas algumas traduções feitas pelos jurua kuery, mas
também a frieza do registro escrito. Quando os xamõi kuery nos falam
sobre o nhe’ẽ eles se emocionam. Porque nhe’ẽ está ligado ao sentimento,
ao nosso py’a. Xamõi kuery oendu opy’are - eles sentem com o coração.
Não há palavras que exprimem e que traduzem esse sentimento, essa
emoção. Não se trata apenas de traduzir, para o português, o espanhol ou
qualquer outra língua, nhe’ẽ como “palavra-alma”. Isso seria, além de um
equívoco, simplificar demasiado o conhecimento, o fundamento da vida,
da pessoa Guarani. Quando escrevemos, colocamos no papel nhe’ẽ, parece
que é uma simples palavra, mas não é. Quando pronunciamos nhe’ẽ,
estamos nos referindo a todo o nosso pensamento, conhecimento, nos
conectamos com o nosso mundo espiritual. (BENITES, 2015, p. 12)

O modo de ser dos Guarani traz uma relação muito atenta com a fala e a escuta. Como
Sandra nos explicou, o verbo hendu, escutar, não é somente ouvir um determinado som. É
um sentir, uma escuta profundamente consciente e presente. O ato de gritar ou interromper
o outro não são bem vistos, sendo que o ideal de masculinidade dos homens guarani é o que
realiza uma escuta atenta, que sabe o momento certo de exercer sua fala. É também a
expectativa social de um homem que é paciente e tolerante. Da mesma forma há uma relação
cultural diferente das mulheres com a fala, onde a chamada “fofoca” tem um outro
significado, muito mais positivo do que na cultura jurua, de forma que é ela que fortalece os
laços entre as mulheres indígenas guaranis.
Algo que nos provocou impacto no decorrer das aulas de língua guarani foi o
confronto com o que é intraduzível e indecifrável. O que até certo ponto podemos nos
aproximar de uma percepção ocidentalizada acionada pelo português brasileiro, mas que não
se acomoda e escapa. Há também palavras que são sagradas e não poderiam nunca ser
compartilhadas com os jurua, tal como Sandra nos explicou. De fato, a convivência com o
mistério é algo que a sociedade jurua tem muita dificuldade de reconhecer e se relacionar.

Outros modos de ser no mundo: o teko

No decorrer das suas aulas de língua guarani, Sandra também nos narra muito acerca
da cultura e dos hábitos de seu povo, incluindo um conceito fundamental para os Guarani: o
teko. O teko teria uma tradução aproximada ao modo de ser ou de viver, que é múltiplo.
Sandra nos colocou inclusive como cada indivíduo tem o seu teko, de forma que não há como
homogeneizar os indígenas. Por isso, classificações muitas vezes utilizadas em museus ou
exposições, como “arte guarani”, são vistas como imprecisas por ela, porque cada indivíduo
indígena terá sua própria forma de criar sua arte. Se o teko representa o modo plural de ser,
o tekoha ou tekoa é o lugar do coletivo onde se constrói esse modo de ser, que incluiria de
acordo com Benites a “mata, animais, cachoeiras e fontes de água, mel, terra para fazermos
nossas roças” (2015, p.9).
No que se compõe a cultura e as epistemes do povo indígena Guarani? Ambas não
são categorias paradas no tempo, mas sim dinâmicas e produzidas a partir de circunstâncias
temporais e espaciais. Apesar da imagem clichê de que o indígena vive em áreas rurais e
isoladas, atualmente uma percentagem considerável de 36,2% da população indígena vive
em áreas urbanas (IBGE, 2010). Usar celular, televisão ou computador não torna alguém
menos indígena, em especial ao considerarmos a cultura na sua historicidade, como um
fenômeno em permanente processo de transmutação. Os saberes e tecnologias da cultura dita
“branca” são na realidade provenientes das mais distintas e plurais culturas, muitas delas não
europeias.
Como educadores que somos, as aulas de Sandra nos deram um repertório valioso
para se pensar a educação de outras formas, tendo em vista a apreciação destes outros tekos
ou modos de ser. (BENITES, 2015). Ela coloca, ainda, que a educação guarani está muito
próxima da sensibilidade e afetividade. Há também uma relação íntima da educação com o
corpo, o movimento, os mitos e o ambiente. Os rios, matas e seus habitantes não humanos
também são participantes ativos na educação do jovem guarani.
Bastos Lopes (2017) sinaliza uma forte presença do sagrado na educação guarani, de
forma que esses aspectos que não são físicos ou visíveis têm uma centralidade nas suas
cosmologias, porém costumam ser ignorados nas políticas interculturais. Como a autora
acrescenta, após trazer a narrativa de um dos seus interlocutores Guarani: “Esses exemplos
de segredo e mundos invisíveis mostram que podemos estender nosso território
epistemológico a mais perspectivas, em oposição, a qualquer consistência que se fixe
originária ou inflexível” (p. 114, 2017).
Sandra nos afirmou que a educação dos Guarani atua fortemente através da
comunicação verbal, do exemplo e do convívio no meio social, e busca não se pautar em
violências físicas, recompensas e punições, em consoante com o afirmado por Meliá (2010).
Consiste numa forma diferente de se pensar a educação, que não busca ser tão disciplinadora
e controladora como comumente encontramos entre os jurua kuery (MELIÁ, 2010;
BENITES, 2016). Entretanto, isso não significa que conselhos não sejam dados, pelo
contrário, há um esforço coletivo para que regras sociais vigorem e sejam respeitadas.
Durante as aulas de língua guarani, não houve a realização de provas como “teste” a
nossos conhecimentos “acumulados”. Como a professora nos explicou, por que impor a
homogeneização de aprendizagens se somos diversos e aprendemos de formas diversas? Não
há como avaliar o outro que eu não conheço. Poderíamos, no máximo, avaliar um contexto
ou situação que levaria a um determinado resultado.
O ensino dos Guarani para com suas crianças também foi algo que nos impressionou
no decorrer das narrativas de Sandra. Os cuidados e ritos que são seguidos pelos pais no
período da gravidez são considerados importantíssimos para o desenvolvimento da
personalidade da futura criança (MELIÁ, 2010; BENITES, 2015). Há um enorme cuidado
com as palavras que são dirigidas aos jovens.
A relação com o corpo também é um aspecto fundamental da cultura guarani. Sandra
nos explica que há um estranhamento seu ao deparar, por exemplo, a um corpo separado em
partes num livro didático. O corpo é uma totalidade e também possuidor de um sagrado, de
forma que esse seu apontamento demonstra o quanto a cultura e sociedade jurua vê o corpo
de forma fragmentada e dissecada, ao invés de compreender ele como um todo integrado.
A dança do Xondaro, realizada por “meninos, meninas e jovens” (MENDES, 2006,
p.75) guaranis, é um exemplo dessa relação entre corpo e sagrado. Como Sandra nos contou,
são capazes de dançar por horas com ânimo e entusiasmo. Ela nos repassou um vídeo-
documentário sobre a dança do Xondaro6, de forma que a linguagem audiovisual e as
ferramentas tecnológicas são importantes para a divulgação da sua cultura, para termos
acesso a algumas dimensões de suas práticas, organização social, língua, etc.
Sandra também nos apresentou um grande desafio enfrentado pelas mulheres
guaranis em espaços que afirmam prezar a interculturalidade, como, por exemplo, a
universidade. No período menstrual, as mulheres normalmente devem ter um momento de
reclusão, de forma a viver este período com repouso e respeito ao seu corpo. Entretanto, as
exigências da cultura jurua apregoam que as mulheres devem estar sempre disponíveis e
presentes nos seus compromissos sociais, seja no mundo do trabalho e/ou do ensino, mesmo
neste período que demanda cuidados especiais à mulher Guarani. Esta sua narrativa
demonstrou alguns dos desafios e limites das políticas interculturais.
Algo particularmente interessante que aprendemos com Sandra foi a perspectiva
guarani sobre os sentimentos. Como a professora coloca, a palavra py’a teria um sentido

6
Link do documentário “Xondaro Mbaraete - A força do Xondaro” no site do Youtube, acessado no dia
01/06/2018: https://www.youtube.com/watch?v=4FbUVwDwp9U&pbjreload=10
mais aproximado a de sentimento. Seria equivalente ao coração numa perspectiva mais
eurocêntrica, mas que, para os Guarani, de acordo com Sandra, remete mais diretamente ao
estômago e à região abdominal. Existem, dessa forma, diferentes tipos de py’a. Um deles é
o py’a rasy ou raxy, que é próximo ao sentimento de amor, apesar da tradução literal estar
mais próxima a uma dor na barriga. Há também o py’a kangy (sentimento frágil), py’a
mbaraete (sentimento forte), py’a tarowa (sentimento perdido, confuso), dentre muitos
outros. A profundidade e pluralidade de formas para se nomear os sentimentos, os quais
muitos tinham difícil tradução ao português, provocou-nos uma grande admiração pela
língua guarani e sua relação complexa com aspectos emocionais e sensíveis.

O voo da Popo dju em sua infinita beleza

Uma das atividades que Sandra fez conosco no curso de língua guarani foi
semelhante à que havia feito com suas kyringue kuery (crianças pequenas) no seu período
como professora de uma escola indígena Guarani. Esta envolveu a leitura do poema da popo
dju, a borboleta amarela, com o posterior desenho de nossa própria borboleta e a construção
de frases relacionadas em língua guarani. Com essa dinâmica, ela nos trouxe uma bela
metáfora sobre as pluralidades de pessoas (ou de borboletas) e a importância de um bom
conviver com esses diferentes modos de ser. Através de ações pedagógicas como essa
podemos experimentar um exercício de alteridade, provocar-nos deslocamentos que
questionam e instigam nossas sensibilidades.
Quando uma língua indígena não é ensinada e tampouco falada, com ela se perde um
universo de representações e significados muitas vezes intransponíveis para outro tipo de
linguagem. É importante a presença na universidade de uma educação que combata os
epistemicídios, silenciosos, mas tão trágicos quanto o genocídio perpetrado historicamente
pelo Estado brasileiro contra as populações indígenas. Esta educação se constrói
cotidianamente no diálogo, num encontro que se abre autenticamente ao outro. Talvez assim
poderemos desfazer muitas das presunçosas verdades que a colonialidade nos inculcou.
Reforçamos a necessidade de que os saberes indígenas, africanos e afro-brasileiros
se intensifiquem e se disseminem nas universidades e escolas, acompanhando a entrada
crescente destes sujeitos sistematicamente excluídos dos espaços acadêmicos e da produção
científica. Individualidades que possam estar na condição de sujeitos do conhecimento,
como intelectuais e pesquisadores, e não meramente objetos de conhecimento ou de
pesquisa. Suas presenças desestabilizam as estruturas racistas e colonizadoras com as quais
foram assentadas as universidades no Brasil.
Agradecemos imensamente a nossa generosa professora Sandra Benites, ao curso de
Educação Descolonizadora da CAP-UERJ, pelas indagações e aprendizagens, e às
contribuições da professora Viviana Gelado, coordenadora pedagógica do PROLEM. Que
iniciativas como os cursos de línguas Guarani e Yorubá se perpetuem na UFF, assim como
o curso de Educação Descolonizadora na UERJ, expandindo-se também propostas
semelhantes em outras universidades e instituições educativas.

Referências Bibliográficas
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diferença e cosmologia entre os povos Mbyá (Guarani) do Rio de Janeiro. Cadernos
CIMEAC. Minas Gerais, v. 7, n. 2, 2017, p. 1-17.
BENITES, Sandra. Trabalho de Conclusão de Curso pelo curso de Licenciaturas Indígenas
da Universidade Federal de Santa Catarina. Nhe’ẽ, reko porã rã: nhemboea oexakarẽ
Fundamento da pessoa guarani, nosso bem-estar futuro (educação tradicional): o olhar
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BESSA-FREIRE, José Ribamar. Nheengatu: a outra língua brasileira. In: LIMA, Ivana
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SANTOS, Boaventura de Souza. Descolonizar el saber, reinventar el poder. Montevideo:
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