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2016
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2016
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FICHA CATALOGRÁFICA
_________________________________
Prof. Dr. Lauri Emílio Wirth
Orientador e Presidente da Banca Examinadora
_________________________________
Prof. Dr. Helmut Renders
Coordenador do Programa de Pós-graduação
AGRADECIMENTOS
Agradeço, em primeiro lugar, a Deus, pelo dom da vida e por mais esta conquista.
Agradeço a CAPES,
pelo apoio financeiro da bolsa flexibilizada para o doutorado e da bolsa sanduíche para o
estágio na França, sem as quais não teria sido possível esta tese.
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“A razão por que hoje privilegiamos uma determinada forma de conhecimento nada tem
de científica. Trata-se apenas de um juízo de valor.”
Boaventura de Sousa Santos
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RESUMO
ABSTRACT
Studying the historical evolution and taking an overview of the religious education in Brazil,
we today face the problem of the exclusion of two different types of view on its treatment on
public schools: or should it exist the "confessional" religious teaching, or it shouldn't exist at
all. Overcoming the view of the laicity as an abstention when affirming that the religious, on its
own definition, doesn't concern us nor even the science, and admitting a laicity of intelligence
when we defend that is our duty or even the duty of science to understand it as a human and
social expression, the teaching of the religious phenomenon can overcome these two views
with the use of a strong epistemological basis for this area of knowledge, as fixed in our
Constitution. It guarantees the respect to the diversity and the cultural plurality of the brazilian
society and it contributes to the comprehension of the religious phenomenon as a "cultural
object". It is capable of support practices of a teaching of the religious phenomenon in a
secular education system, without prejudicing its laicity - on the contrary, it can actually go on
its behalf. The secular education focusing on the formation of a citizen cannot ignore the
existance of religions for its strong presence and for its role in a society. It is needed to
critically decrypt the religions representations and its practices in name of a more constructive
cohabitation between people and extract values from the religious traditions that can contribute
with the human life on its plenitude. This model of teaching the religion as an anthropological,
social and cultural phenomenon can even perform a specific role on what concerns the
knowledge of oneself (identity) and also on what regards the acceptation of the different
(alterity), pointing to the construction of ethic values and the notion of being a citizen. This
research is based on a great bibliographic raising data and interviews with specialists on
secularization, laicity and on religious teaching, all based on Régis Debray's proposal adopted
in France. It leads us to conclude that the teaching of the religious phenomenon in Brazil's
public schools is not only necessary, but indispensable if we want an education that contributes
to the formation of our students in a solidary living.
RESUMEN
LISTA DE SIGLAS
LISTA DE QUADROS
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ................................................................................................................. 16
INTRODUÇÃO
Tenho uma identificação pessoal com o tema do ensino religioso desde os tempos
da minha primeira graduação, em Filosofia, na Universidade Federal de Juiz de Fora.
Lecionei a disciplina de ensino religioso no Colégio Cristo Redentor, pertencente à
Sociedade do Verbo Divino (SVD), congregação religiosa católica, em Juiz de Fora. A
disciplina tinha o nome de Formação Humana e Cristã (FHC). Aliás, aprendi a dar aulas
lecionando esta disciplina. Até hoje ela se faz presente, com esta mesma denominação, nos
currículos do Colégio Cristo Redentor.
projeto que ora se apresenta como tese. Acredito que ela poderá dar uma grande
contribuição tanto ao debate acadêmico quanto a várias instituições e grupos envolvidos
nesta discussão, como escolas, sistemas de ensino e seus órgãos gestores, igrejas,
sindicatos, juristas, parlamentares e outros.
Mas o maior impulso para a minha pesquisa veio do estágio que realizei no
Groupe Sociétés, Religions, Laicités (GSRL), na École Pratique de Hautes Études
(EPHE), em Paris, entre janeiro e junho de 2015, com uma bolsa de estudos de doutorado
sanduiche da CAPES. Neste estágio no GSRL, entrei em contato direto com os maiores
especialistas nos estudos sobre laicidade como Jean-Baubérot, Jean-Paul Willaime,
Philippe Portier, este último meu co-orientador. Foi essencial ainda o contato com os
professores diretamente responsáveis pela condução dos programas de formação de
professores do ensino dos fatos religiosos no Instituto Europeu de Ciência das Religiões
(IESR), Isabelle de Saint-Martin e Philippe Gaudin. Assisti a várias conferências destes
professores e com eles realizei entrevistas, as quais foram bastante esclarecedoras para o
meu objeto de pesquisa. Além disso, o contato direto com outros pesquisadores do GSRL,
doutorandos e pós-doutorandos, através de seminários e ateliers frequentes, me foi bastante
útil. O acesso a muitas publicações sobre a minha temática de interesse em muito facilitou
a continuidade da pesquisa no exterior.
A partir deste eixo central, este trabalho tem como objetivos: 1) demonstrar a
evolução histórica do ensino religioso na escola pública do Brasil e suas perspectivas
atuais, no contexto de uma sociedade cada vez mais secularizada e no contexto de Estado
laico, frente à necessidade da compreensão da religião como ‘objeto de cultura’ e como
tradicional instrumento de dominação cultural, social e política; 2) discutir a construção
histórico-ideológica do conceito de Laicidade, com sua nova contextualização a partir dos
grandes deslocamentos no e do campo religioso que dão ao Estado na contemporaneidade
um papel mediador na preservação da cultura nacional, na superação de conflitos culturais
e religiosos, e na integração de ações promotoras do bem comum, buscando garantir a
liberdade e a igualdade em um clima de verdadeiro pluralismo para que cada homem e
cada mulher possa dar sentido à sua vida como melhor lhe parecer; 3) explicitar a função
epistemológica específica e autônoma do ensino do fenômeno religioso no currículo da
escola pública e laica do Brasil, e sua necessidade para um projeto político-pedagógico,
comprometido com a formação de sujeitos, crentes e não crentes, ao dar visibilidade e
crédito aos saberes silenciados pela racionalidade ocidental e às experiências humanas com
aquilo que os sujeitos religiosos denominam de transcendente; 4) esclarecer em que
medida a inclusão dos saberes religiosos no currículo escolar poderá cumprir uma função
específica, no conjunto das disciplinas, exatamente no que diz respeito a aceitação do
diferente (alteridade) para uma formação baseada na solidariedade, com a construção de
valores éticos e princípios de cidadania que possam apontar para um sentido último da vida
humana.
laicidade comprometida com a educação para a condição humana. Ela nos abre caminho
para uma perfeita compreensão de uma laicidade de inteligência para justificar o ensino
dos fatos religiosos na França, proposta por Debray mais de quinze anos depois. Já a obra
A Gramática do Tempo, de Boaventura de Sousa Santos, principalmente os capítulos 2 e 3,
será uma referência indispensável para compreendermos o processo de silenciamento das
experiências humanas com o considerado transcendente, pela ciência ocidental moderna
que, aliás, explica a emergência também da própria laicidade.
É justamente na França que esta discussão segue mais avançada. Veremos que
uma laicidade de desconhecimento do religioso já está totalmente ultrapassada não apenas
na França, mas em todo o Ocidente. Para esta investigação, utilizaremos um conjunto de
autores como Giacomo Marramao (1995; 1997), Fernando Catroga (1994; 2010), Roberto
Blancarte (2006), Demetrio Velasco (2006), Néstor da Costa (2006), Émile Poulat (2003;
2004), Philippe Portier (2010; 2011a; 2011b; 2011c; 2012), Jean-Paul Willaime (2008a;
2008b; 2011a; 2011b; 2012; 2014), Danièle Hervieu-Léger (1966; 1990; 1997; 2008),
Delumeau (2003), além de Baubérot (2005a; 2005b; 2011; 2012; 2015), dentre outros. Mas
faremos questão de situar concretamente esta discussão também no nosso contexto
nacional. Esta é uma temática que somente agora está dando seus primeiros passos
acadêmicos no Brasil, mas já possuímos uma produção suficiente e importante que nos
servirá de referência, vinda de Emerson Giumbelli (2002; 2004; 2009; 2011), Pedro Oro
(2007; 2011), Joanildo Burity (2001), Ricardo Mariano (2001; 2006; 2011; 2014),
Ranquetat Júnior (2008) e Elisa Rodrigues (2013; 2015), dentre outros. Um capítulo
dedicado à laicidade do Estado e, por consequência, do ensino público, se justifica neste
trabalho, à medida que no Brasil ela tem sido um fator recorrente para se exigir o
banimento dos conteúdos religiosos dos currículos como ameaça à democracia e à
liberdade de crença.
ensinar? Trataremos de responder estas questões no Capítulo III. Este é o capítulo central
da tese quando focaremos a probabilidade da nossa hipótese. Se ficar bem clara a
importância dos saberes e da experiência religiosos para a cultura, a sociedade e outras
dimensões constitutivas do humano, o ensino do religioso torna-se imprescindível no
ambiente escolar. Um conjunto de autores nos auxiliará nesta reflexão, de Mariátegui a
Boaventura de Souza Santos, passando por Morin, Ricoeur e Debray, cujo relatório de
2002 é uma peça fundamental para o nosso argumento. Mas duas obras foram
fundamentais para esta articulação entre laicidade, educação e religião: a) Enseigner les
faits religieux: quels enjeux, obra coletiva de Dominique Borne e Jean-Paul Willaime, com
prefácio de Règis Debray, publicado em 2007, e b) Vers une laicité d’intelligence?
L’enseignement des faits religieux comme politique publique d’éducation depuis les
années 1980, com prefácio de Philippe Portier e posfácio de Isabelle de Saint-Martin,
publicado em 2014.
uma formação que tenha a solidariedade como seu horizonte, mesmo sem inculcar
nenhuma moralidade específica. Uma série de autores vão nos auxiliar neste percurso, tais
como Philippe Perrenoud, Edgar Morin, Jung Mo Sung, Eulálio Figueira, Richard Rorty,
Jean-Paul Willaime, Danilo Streck e Joerg Rieger, dentre outros.
A utilidade do ensino religioso na formação dos estudantes é uma questão que
permanece inconclusa. Foi possível avançar nas suas perspectivas e desafios, mas uma
janela permanece aberta para futuras pesquisas, à medida que o religioso tende a consolidar
sua presença no espaço público com implicações sociais, culturais e, sobretudo, políticas
relevantes. De qualquer forma, podemos ter a segurança de que o conhecimento deve ser a
via para uma sociedade melhor, conhecimento que exija um compromisso ético com o
outro para o viver juntos. Conhecer para conviver!
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O ensino religioso, entendido como ensino de uma religião, apareceu muito antes
que as escolas e podemos dizer que ele tem a mesma idade que elas. Através dele se fazia a
transmissão das tradições, das crenças e dos valores para instruir as novas gerações sobre a
existência do mundo e do ser humano ou sobre a solução de seus problemas. O ancião, o
sábio e o feiticeiro eram os guardiães e transmissores destes conhecimentos e já podemos
encontrá-los nos rituais de ensino-aprendizagem das tradições mais antigas com o objetivo
de garantir a organização do grupo e do próprio mundo.
Mas este foi um longo processo. Como muito bem notou Marramao (1995, p.
160), “a supremacia do Ocidente foi criada a partir das margens.” Nesta mesma linha,
Jaspers (1951, p. 98) considera o período entre os anos 800 e 200 a.C. como aquele “que
lançou os fundamentos que permitiram a humanidade subsistir ainda hoje.” Neste período,
segundo ele, a maioria dos extraordinários acontecimentos que deram forma à humanidade,
tal como a conhecemos hoje, não ocorreu no Ocidente, mas sim no Oriente – China, Índia,
Pérsia, Palestina.2
1
Mesmo que a religião não seja o tema central de Boaventura de Sousa Santos e outros autores do
pensamento crítico, seus textos contribuem muito ao nos fornecer argumentos úteis para a crítica à razão
indolente que coloca hoje as experiências humanas com o transcendental como ignorância e como um saber
residual, inferior, local e improdutivo. Assim a religião se revela como mais um campo da ecologia dos
saberes trabalhada por Boaventura de Sousa Santos e outros autores. Iremos utilizá-los como referenciais
teóricos em diálogo com outros pensadores que tratam dos temas que abordaremos nesta tese, como
secularização e laicidade (e seus correlatos), epistemologia e objetivos do ensino dos fenômenos religiosos
no ambiente escolar.
2
O Ocidente se constrói a partir da Grécia e, como sabemos hoje, a antiguidade grega deve muito às suas
raízes africanas e asiáticas. A Grécia se desenvolveu a partir das margens, das fronteiras do Oriente. Por isso
o Ocidente nunca se transformou culturalmente de fato numa centralidade alternativa ao Oriente.
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entre fé e razão. A pedagogia cristã, com este compromisso de ensinar a tradição, teve para
isso necessariamente de fornecer também os instrumentos básicos da instrução da
linguagem e dos números. As sete artes liberais como a lógica (ou dialética), a gramática e
a retórica – o trivium -, e a aritmética (a teoria do número), a música (a aplicação da teoria
do número), a geometria (a teoria do espaço) e a astronomia (a aplicação da teoria do
espaço) – quadrivium -, tinham seu currículo originário na antiguidade clássica, foram
ensinadas por toda Idade Média.
Desde o final da Idade Média, Igreja e Estado vem se digladiando pelo controle do
ensino. As primeiras universidades foram resultado do constante desequilíbrio de forças
entre o papa e o imperador, entre a poderosa burocracia da cúria romana e os princípios
seculares que afirmavam a sua autonomia. Com destaque para as faculdades de direito,
tomando como exemplo a de Bolonha, que aceleraram as rupturas entre as instituições de
mando, na luta pelo monopólio da educação.
Foi se consolidando com o tempo uma divisão racional de tarefas entre as esferas
do político e do científico: a ciência moderna fornecia as bases para a constituição do
Estado Moderno e de suas instituições, enquanto o Estado fornecia as bases para o
desenvolvimento e reprodução das ciências e de suas instituições. Assim, para a razão
ocidental, a religião passou a ser alguma coisa do passado e para o poder político uma
instituição distinta do Estado.
3
Para Santos (2010), o não existente o é por cinco razões lógicas: porque é ignorante pelo critério único de
verdade da ciência moderna; porque é residual (ou primitivo, selvagem, pré-moderno, obsoleto,
subdesenvolvido) já que a história tem um só sentido, um sentido linear; porque é inferior de acordo com a
lógica da classificação social que torna esta inferioridade natural e insuperável; porque é local em
contraposição à lógica da escala dominante que é global e universal; porque é improdutiva em contraposição
à lógica produtivista do capitalismo.
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É aí que surge o ensino religioso como um problema. Dentro deste quadro geral
ditado pela modernidade é que ele constrói seus diversos modelos que temos hoje. O
Estado negociou com as igrejas a possibilidade de ver a religião como alguma coisa
superada e fora do sistema científico. A possibilidade de vê-la como um tema de estudo,
mesmo com todo o acúmulo teórico-metodológico já alcançado, não foi ainda capaz de
fornecer fundamentos para o ensino religioso escolar e, por isso, ele não se viabilizou
institucionalmente. Este é, em síntese, o panorama que temos hoje no Brasil.
30
A visão de que a escola deve ensinar uma religião aos seus alunos remonta, pois, à
época colonial. Um dos exemplos ainda presentes desta visão na nossa sociedade é a
insistência em tornar a escola pública um espaço de missão religiosa. As diversas visões
31
sobre o ensino religioso que temos hoje não surgem de simples opiniões, mas da história
desta disciplina na educação brasileira.
4
A expulsão definitiva dos mouros da área do Mediterrâneo neste momento vinha se ajustar com a
necessidade de encontrar um lugar para os ameríndios na ordem planetária e cristã da existência. Nesta nova
ordem não lhes cabia legalmente a escravidão. Daí a exportação para a América dos escravos africanos para
desempenhar as tarefas que os ameríndios – como vassalos cristãos de um rei cristão e servos de Deus – não
poderiam legalmente assumir.
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e público.5 Percebe-se que eram verdadeiras escolas públicas, mas com objetivo de
evangelizar, através de uma identificação nem sempre harmoniosa de interesses entre
Estado e Igreja, numa época de definições acerca de suas prerrogativas, como já pudemos
assinalar anteriormente.
5
Vários autores defendem que as escolas dos jesuítas tinham caráter público, porque eram mantidas pelos
dízimos, sendo estes tomados como parte do que lhes facultava o direito do padroado, ou seja, eram impostos
recolhidos pelo direito divino. Estes dízimos, porém, eram arrecadados e administrados pela Coroa. A décima
parte deles – chamada de redízima – era utilizada na obra de educação dos jesuítas. Ora, se eram verbas
públicas, era pública a educação oferecida, segundo aqueles autores.
6
Regalismo é a teoria ou sistema político que permitia aos monarcas interferir de diversas maneiras na
organização interna da Igreja.
7
Toda a obra educacional dos jesuítas baseava-se na Ratio Studiorum, um plano de estudos, verdadeira
sistematização da pedagogia jesuítica contendo 467 regras cobrindo todas as atividades dos agentes
diretamente ligados ao ensino. Tinha sua referência na filosofia de Aristóteles e na teologia de Tomás de
Aquino.
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como a dos beneditinos, carmelitas e franciscanos, que abriram escolas para a instrução
dos gentios e colonos e para a formação dos seus sacerdotes. É, pois, neste contexto
colonial que estão as raízes do pensamento que vê o ensino da religião como exigência de
evangelização para o bem dos homens e das mulheres.
Chegam entre nós, ainda que com algum atraso, e mesmo assim permeados por
diversos compromissos com a velha ordem, os primeiros lampejos da autonomia da razão.
Mas consequências teóricas e pedagógicas desse passo secularizante são enormes. Estava
sendo balizada, de forma radical para aquele contexto, a autonomia do poder secular para
instruir e formar homens e mulheres a seu serviço e para fins puramente finitos. A escola
foi o locus de seu primeiro impacto: a religião não saiu da escola, mas a escola e a religião
agora passaram ao controle direto do Estado.
8
Progressivamente, o Estado, então ainda monárquico, amplia o pequeno sistema educacional com a criação
de cursos de ensino superior (Medicina e Cirurgia). São criadas também a Academia Real Militar, a
Academia da Marinha e a Escola de Comércio, a Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios bem como a
Academia de Belas Artes. Não há, porém, significativa evolução no ensino para as camadas populares,
enquanto para as elites criam-se bibliotecas, imprensa, teatros, escolas especializadas, etc.
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artigo 179 postulava que a instrução primária fosse gratuita para todos os cidadãos. A ideia
de um sistema nacional de educação aparece de modo muito vago e ainda ficou prevista a
liberdade de ensino ou permissão para abrir escolas.
Esta lei fracassou totalmente em sua aplicação por motivos econômicos, técnicos
e políticos. Pelo método de ensino mútuo, que quase dispensava o professor, foram criadas
poucas escolas. Em 1832 elas não passavam de vinte em todo o Império, de acordo com
Lino Coutinho, Ministro do Império (AZEVEDO, 1958).
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O catolicismo continuava como religião oficial, mas ao longo desta última fase do
Império, nasceu a ideia do respeito à diversidade cultural e religiosa da população. Afinal,
9
A Questão Religiosa foi um conflito ocorrido no Brasil na década de 1870 que, tendo iniciado como um
enfrentamento entre a Igreja Católica Romana e a Maçonaria, evoluiu rapidamente para uma grave questão
de Estado. Suas causas mais remotas podem ser identificadas muito tempo antes, fundadas em divergências
irreconciliáveis entre o regime de padroado e o ultramontanismo católico, agravado pelo processo mais
recente da romanização da Igreja, após o Concílio Vaticano I. A questão acabou se centrando na atuação de
dois bispos, Dom Vital e Dom Macedo Costa, ardentes defensores da romanização do catolicismo, que
acabaram processados e presos pelo governo imperial, se bem que logo anistiados pelo imperador.
38
10
Em 1859, época em que as primeiras missões protestantes estrangeiras começavam a atuar no país de
maneira sistemática, um parecer oficial da Assembleia Nacional derrubou o argumento que tentava impugná-
las com a alegação de que faziam “propaganda de doutrinas contrárias à religião do Estado”. Dois anos
depois, um decreto permitia as atividades de grupos não católicos desde que não tentassem contra as leis do
Império.
39
DECRETA:
11
Nota-se que a primeira parte deste artigo é praticamente uma tradução da Primeira Emenda da Constituição
dos Estados Unidos da América.
40
Assim, a partir do decreto nº 119-A, várias esferas da vida social até então ligadas
à Igreja Católica se secularizam.12 Logo depois, a Constituição de 1891 institui o
casamento civil, a secularização dos cemitérios e o fim da subvenção estatal a qualquer
culto religioso (MARIANO, 2003).
12
Segundo Giumbelli (2002), A lei de Separação Igreja-Estado da França, de 1905 compreende sobretudo
disposições circunscritas e práticas centrada na regulamentação das Associations Cultuelles e no
estabelecimento de um regime de transição. A lei brasileira é basicamente uma lei de princípios, preocupada
em inaugurar um novo regime global entre Estado e religião. No entanto, é exatamente em suas raras
disposições práticas que se revelam os vínculos e as dependências com o passado.
41
única e consensual como religião de estado. No Brasil, pelo contrário, a separação teria
sido sistemática, eliminando-se completamente toda teologia de Estado, a ponto de
podermos nos considerar a nação ocidental mais adiantada neste quesito (GIUMBELLI,
2002, p.243). Todos, até os bispos católicos, a muito contragosto, admitiam que se tinha
inaugurado um regime radicalmente novo. Enfim, como afirma Giumbelli, “nossa
república parece ter isso mais republicana que a francesa, configurando aqui um processo
abrangente e concentrado de laicização” (GIUMBELLI, 2002, p. 243).
Se as leis de laicização eram boas, sua aplicação na prática era bastante duvidosa.
São constantes as reclamações e denúncias de grupos acatólicos dos abusos e mistificações
da Constituição, traduzidos na proteção escandalosa das autoridades ao culto católico. São
arrolados casos concretos que, anos mais tarde, reapareceriam nas denúncias de uma
conferência realizada no Centro Republicano Brasileiro. Diversos documentos de
lideranças católicas da época confirmam as regalias e proteção escancarada do oficialismo
aos interesses da Igreja Romana. Parece que em nosso regime de separação pululavam os
vínculos, compromissos, contatos, cumplicidade entre autoridades e aparatos estatais e
representantes e instituições católicas (GIUMBELLI, 2002, p.246).
O laicismo14 era uma das bandeiras dos positivistas e dos liberais. Fernando de
Azevedo afirma que:
13
Tal posicionamento dos constituintes de 1891 pelo caráter laico da educação pública era intencional, visto
tratar-se do rompimento de um dos liames com o padroado, já extinto pelo decreto nº 119-A do Governo
Provisório.
14
Os conceitos de laicidade e de laicismo ainda serão tratados com mais detalhes no capítulo seguinte. Por
ora, podemos entender laicismo como doutrina ou uma plataforma política que advoga a separação entre a
Igreja e o Estado ou, pelo menos, era assim entendida no contexto do novo regime de 1889.
42
Foi por este tipo de argumento que muitos estados reintroduziram, com o tempo, o
ensino da religião nas suas escolas, sendo o primeiro deles Sergipe em 1923. Seguiu-se
Minas Gerais que o reintroduziu em 1924 fora do horário escolar15. Este Estado acabou
introduzindo o próprio catecismo católico em 1928 nas escolas primárias e em 1929 o
ensino da religião na grade de horários nas escolas primárias, secundárias e normais.
“Isto porque existe uma diferença entre o Estado laicista e o Estado laico:
a primeira expressão assume a perspectiva do ateísmo e nega realmente a
presença do elemento transcendente, enquanto a segunda expressão
simplesmente afirma que o Estado não assume uma confissão religiosa,
mas permite a liberdade de seus cidadãos professarem suas crenças.
Portanto, ao Estado compete garantir a liberdade religiosa da população,
reflexão esta que está presente nos discursos de Rui Barbosa e também de
Mário de Lima.” (JUNQUEIRA, 2008, p. 25).
15
A Lei 1092/28, do governo de Minas, reintroduziu o ensino religioso nas escolas oficiais do Estado. Foi
resultado da forte pressão da Igreja neste estado contra as medidas laicizantes da federação, mas também
expressou o reconhecimento do prestígio e influência da Igreja neste Estado e principalmente da sua
importante contribuição na solução dos conflitos sociais.
44
ensino leigo era o mesmo que ateu e irreligioso, pois para os crentes de qualquer confissão,
16
a indiferença religiosa trazia profundos males à sociedade como um todo. Destacavam-
se, no começo da República, os pensadores católicos de tendência tradicionalista como
Eduardo Prado, Carlos de Laet, Felício dos Santos, Afonso Celso, Joaquim Nabuco, dentre
outros (MOOG, 1981). Esses pensadores criticavam duramente o laicismo do regime
republicano.
O partido católico afirmava em seu programa, em 1890: “supressão imediata nas
escolas públicas dos programas ateus e positivistas, e a reintegração e nova promulgação
de regulamentos mais conformes à fé dos cidadãos brasileiros” (TAMBARA, 1991, p.
495). Em 1914, o Centro Católico do Brasil defendia o ensino religioso nos
estabelecimentos públicos e a subvenção estatal às escolas particulares católicas
(TAMBARA, 1991). A Igreja continuava invocando assim, influência nas orientações
políticas do Brasil (LUSTOSA, 1992, p. 25-27).
16
A educação foi uma importante preocupação do episcopado e era vista como um caminho para se alcançar
a integralidade humana, considerada como fundamental para o desenvolvimento da família, através do
conhecimento moral e religioso.
17
Esta posição se inspirava no Direito Canônico da Igreja Católica e ficou claramente definida mais tarde
com a encíclica Divinis Illius Magistri, do papa Pio XI, em 31 de Dezembro de 1929.
45
Outro momento em que a questão do ensino da religião veio à tona foi nos debates
em torno da tentativa da reforma constitucional de 1925/1926. O ensino da religião acabou
não sendo reintroduzido nas escolas públicas em nível nacional, mas a militância católica
divulgou ardorosamente o fato de que ele já era realidade em seis estados da federação.
Andrade Bezerra, intelectual católico, escreveu, em 20 de setembro de 1925, sobre as
emendas Plínio Marques – que pretendiam introduzir cláusulas favoráveis ao ensino
religioso nas escolas públicas - nesta reforma constitucional. Andrade Bezerra defendia
que emendas de Plínio Marques não tinham como objetivo restabelecer a união entre Igreja
e Estado, mas permitir o ensino da religião da maioria dos brasileiros na escola pública
sem impô-lo como disciplina obrigatória; seria uma disciplina facultativa. Para Bezerra:
não tivesse seu espaço na escola pública através do ensino religioso. Além da simples
instrução, as crianças e adolescentes necessitavam da educação católica para formar sua
alma, sua personalidade de acordo com os princípios da religião cristã. A ausência do
ensino religioso nas escolas públicas era percebida pela intelligentsia católica, como um
instrumento de descristianização do povo brasileiro, como um produto do preconceito
laicista contra a religião católica.
Entre 1910 e 1930, a Igreja, sob a liderança do Cardeal Sebastião Leme, fez
enorme esforço para a retomada da influência direta da Igreja Católica sobre o Estado,
enfrentando forte reação dos positivistas e da Maçonaria. Foi nesta época que se organizou
a Liga Eleitoral Católica (JUNQUEIRA, 2007, p.20), mais tarde com forte presença nos
processos constituintes de 1934 e 1946. Ela orientava o voto católico para candidatos que
pudessem se comprometer com um programa político de seus interesses, dentre os quais, o
ensino da religião católica nas escolas públicas. Buscava-se a restauração católica na
sociedade brasileira.
18
No Governo Provisório (1930-1934) que se seguiu à Revolução, Francisco Campos assumiu a direção do
recém-criado Ministério da Educação e Saúde, credenciado pela reforma que promovera no ensino de Minas
Gerais, em que o ensino religioso era disciplina obrigatória nas escolas públicas. A justificativa do governo
mineiro era de que a religião impediria a rebeldia e levaria à obediência às leis e à ordem. Foi essa a mesma
47
justificativa do governo provisório de Vargas para o decreto que instituiu o ensino religioso em todo o país,
conforme o modelo mineiro.
48
Quanto à abrangência, definiu-se que ela seria ampla, mas com prioridade para o
ensino primário, já que a disciplina revestia-se de um caráter essencialmente catequético
para a faixa etária correspondente às crianças e adolescentes. Quanto ao formato da
facultatividade, todos eram matriculados, a menos que as famílias se manifestassem ao
contrário, constituindo-se esta norma, a nosso ver, em violação da expressão da vontade
individual, já que, ao contrário de termos a explicitação da vontade de matricular o filho,
tal desejo se manifesta pela solicitação da dispensa.
Uma questão crucial se coloca para as escolas com os alunos que solicitarem
dispensa das aulas de ensino religioso, se estas forem oferecidas dentro da grande de
horários, já que esta questão não ficou definida. Em nenhum documento aparece o que
fazer com estes alunos. Questão que permanece ainda hoje. Em relação à docência e à
relação com as autoridades religiosas, fica clara a interferência destas no âmbito escolar na
medida em que os professores de ensino religioso serão credenciados e descrendenciados
por elas e não pelo poder público, sendo eles professores ou não da escola.
Todas estas alterações a favor dos interesses da Igreja tinham uma clara intenção
política: visava o seu apoio ao novo governo que se impunha através de um movimento
armado e se encontrava ainda longe de alcançar uma sólida hegemonia política no seio da
sociedade. Entretanto esta dimensão política não esgota todo o significado deste ato. Existe
aqui uma clara dimensão ideológica. Ao identificar “formação moral” com a educação
49
religiosa e transferir para a Igreja a formação moral do cidadão, o Estado não apenas
responde às exigências dos educadores católicos, mas demonstra claramente sua concepção
autoritária ao estabelecer mecanismos para reforçar a disciplina e a autoridade. A
disciplina, nos dois sentidos, tomou o nome de ensino religioso, mas a concepção
continuou sendo de aulas de religião. Assim, o ensino religioso foi moeda de barganha
entre Vargas e a Igreja. Para muitos autores, como Junqueira, este projeto se inspirou na
aliança entre Mussolini e o Papa Pio XI, à época do Tratado de Latrão que criou o Estado
do Vaticano em 1929 (JUNQUEIRA, 2008, p. 26).
Outros grupos religiosos se aliaram aos laicistas. Exemplo disso foi a atuação do
deputado Guaraci Silveira19, representante das igrejas protestantes que combatia o ensino
religioso e defendia o ensino laico. A mesma situação se deu na França, onde os
protestantes e judeus opunham-se ao ensino religioso nas escolas públicas, apoiando a
causa laicista de uma escola pública laica, obrigatória e gratuita (CATROGA, 2010).
necessidade de preparar o país para acompanhar esse desenvolvimento. A educação era por
eles percebida como o elemento-chave para promover a remodelação desejada. Inspirados
nas ideias político-filosóficas de igualdade entre os homens e do direito de todos à
educação, esses intelectuais viam num sistema estatal de ensino público, livre e aberto, o
único meio efetivo de combate às desigualdades sociais do país. Para Junqueira, a
educação defendida pela Escola Nova era essencialmente:
Durante toda a década de 30, destacaram na defesa dos interesses da Igreja frente
o Estado Antônio Augusto de Lima e o padre jesuíta Leonel Franca, que teve sua proposta
sobre ensino religioso incorporado ao texto da Constituição de 1934, ao instituir o ensino
religioso com frequência facultativa e ministrado de acordo com os princípios da confissão
20
Ao ser lançado, em meio ao processo de reordenação política resultante da Revolução de 30, o Manifesto
dos Pioneiros da Educação Nova se tornou o marco inaugural do projeto de renovação educacional do país.
Além de constatar a desorganização do aparelho escolar, propunha que o Estado organizasse um plano geral
de educação e defendia a bandeira de uma escola única, pública, laica, obrigatória e gratuita. O movimento
reformador foi alvo da crítica forte e continuada da Igreja Católica, que naquela conjuntura era forte
concorrente do Estado na expectativa de educar a população, e tinha sob seu controle a propriedade e a
orientação de parcela expressiva das escolas da rede privada.
52
religiosa do aluno, manifestada pelos pais ou responsáveis e como disciplina dos horários
nas escolas públicas primárias, secundárias e normais.
O ensino religioso passou, a partir de 1934, a ser facultativo para o aluno e com
oferta obrigatória pela escola. Observa-se aqui a primeira vez que se estabelece um
dispositivo legal semelhante ao que diz a Constituição de 1988. Mas há aqui uma diferença
a ser destacada. A “frequência” é que é facultativa e não a “matrícula” que seria a
expressão clara da não obrigatoriedade. Alguns autores. Mas é possível interpretar esta
clausula como uma forma de burlar a facultatividade por parte do aluno, já que outras
obrigações, como as avaliações, poderiam dele ser cobradas, mesmo com a dispensa às
aulas.
Nas suas primeiras versões, este projeto de Lei Orgânica do Ensino Secundário
não tornava o ensino religioso como matéria obrigatória. Lideranças católicas reagiram
fortemente. Entre elas, Pe. Leonel Franca e Alceu Amoroso Lima que chegou a dizer que
não era possível deixar opcional esta disciplina por fazer parte da formação das novas
gerações. A versão final levou em conta esta preocupação e por isso, previu que o ensino
da religião constituiria parte integrante da educação da adolescência. Assim, os
estabelecimentos de ensino secundário poderiam incluí-lo nos estudos do primeiro e do
secundo ciclos, sendo o programa de religião e seu regime didático fixado pela autoridade
eclesiástica.
princípios gerais do Estado laico, com a separação entre Igreja e Estado e, ao mesmo
tempo, garantia plena liberdade de consciência e de culto. Vejamos estes dispositivos no
próprio texto da Constituição de 1946.
Esta foi uma fase de profundas transformações no Brasil, com a transição de uma
sociedade agrária para uma sociedade urbano-industrial, forte êxodo rural, de uma
sociedade homogênea para uma sociedade pluralista e diversificada em todos os sentidos.
De certa forma, a Constituição de 1946 refletiu aquelas transformações.
Ainda no processo constituinte de 46, surgiu, mais uma vez, a polêmica sobre a
presença ou não do ensino religioso na escola pública, tanto que membros da comissão de
Educação na Constituinte chegaram a afirmar que esta disciplina era um constrangimento
no cotidiano escolar (JUNQUEIRA, 2008, p. 27). A Liga Eleitoral Católica (LEC) fez forte
pressão pela inclusão do ensino religioso na grade de horários. Houve uma primeira
proposta de colocá-lo fora do horário das aulas e sem ônus para o Estado, o que foi aceito
pela LEC, com a justificativa de que sempre fora ministrado gratuitamente e seria
interessante que assim permanecesse (JUNQUEIRA, 2008, p.28).
filhos nas aulas de ensino religioso (cf. Fávero, 1996, p. 164-175). Ao final, o texto sobre o
ensino religioso ficou com a redação seguinte:
fossem integrados ao sistema social. Uma formação conteudista com base em informações,
princípios e leis estabelecidos de forma lógica por técnicos e especialistas do governo.
Com isso, aumentou o número de disciplinas obrigatórias do núcleo comum, mas o ensino
religioso permaneceu facultativo para os alunos. Disciplinas da área de Humanas de cunho
crítico como a Filosofia e a Sociologia, praticamente desapareceram do currículo escolar.
21
Não há como negar que todo este movimento, orientado pela cúpula da Igreja Católica, mas com forte
participação de suas bases leigas, foi diretamente influenciado por alguns grupos ligados à Teologia da
Libertação.
58
22
É importante lembrar aqui que, para Tillich, a dimensão religiosa pode ser dotada de outras formas de dar
significado à vida, formas não-teológicas, apreendidas da cultura. Isso é importante porque ao empregar
fenômeno religioso e dimensão religiosa referindo-se ao ser humano, por exemplo, nos textos do FONAPER,
não se observa cuidado rigoroso com os pressupostos conceituais que estão por trás dessas expressões. E, por
conta disso, popularizou-se uma forma de emprega-las que soa um tanto essencialista.
59
23
A CNBB, continuou atuante na discussão sobre o ensino religioso através do SNER (Secretariado Nacional
do Ensino Religioso) e do GRERE (Grupo de Reflexão Nacional sobre o Ensino Religioso), que mobilizava
os grupos de professores através dos Encontros Nacionais de Ensino Religioso (ENERs). O documento nº 49
da Coleção Estudos da CNBB, de 1987, traz novas posições que passaram a considerar o ensino religioso não
tanto a partir das denominações religiosas, como doutrinação, mas antes como um componente escolar e
como elemento de educação. É possível perceber aí uma certa mudança de ótica vinda da própria cúpula da
60
Não são poucas as vozes que àquela época se levantaram contra a introdução do
ensino religioso na escola pública. Muitas arguiram e continuam denunciando a própria
inconstitucionalidade do artigo 210, como, por exemplo, Romualdo Portella Oliveira, ao
afirmar:
Igreja Católica. Para maior aprofundamento nesta questão, ver RUEDELL, Pedro. Educação Religiosa:
fundamentação antropológico-cultural da religião segundo Paul Tillich. São Paulo: Paulinas, 2007, pp 29-30.
61
Percebe-se, com toda clareza, que na visão dos seus críticos o ensino religioso
continua a ser visto como o ensino de uma religião, o que não deixa de se ter razão se
focalizamos alguns sistemas de ensino que adotam abertamente o ensino religioso
confessional, como o do estado do Rio de Janeiro. Estes mesmos críticos apontam ainda o
pagamento dos professores desta disciplina como a mais explícita forma de se ferir o
dispositivo constitucional que veda o estabelecimento, o patrocínio e a subvenção pelo
Estado de cultos religiosos ou igrejas, se este ensino for considerado de caráter
confessional. Por outro lado, tem razão boa parte desta crítica quando a própria
Constituição e a LDB ainda permanecem distantes de um ensino religioso como área de
conhecimento, dando vazão a diversos outros modelos confessionais e interconfessionais,
que além de excludentes em relação a outros cultos de tradição africana e indígena, ferem
dispositivos garantidores da liberdade religiosa.
Desta forma, oito anos após Constituição, foi sancionada a terceira e atual LDB,
Lei nº 9.394, denominada também Lei Darcy Ribeiro24. Ela passava a orientar os sistemas
de ensino de todo o país e pretendia favorecer a diversidade nacional e a pluralidade
cultural brasileira. Implicou uma nova compreensão para a educação nacional, com
princípios e fins mais amplos (JUNQUEIRA, 2007, p.36).
24
De acordo com Dalton José Alves (2002), a lei aprovada é o cumprimento de um programa tornando-se um
marco simbólico de uma guinada neoconservadora da educação no Brasil na década de 90, nos moldes do
ideário neoliberal. Esse programa começou a ser implementado no Brasil de forma mais sistemática e
incisiva no governo de Collor e de Fernando Henrique Cardoso; ainda assim, a lei permanece ambígua
porque conceitua, mas não assegura o próprio cumprimento.
63
25
Entre estes grupos, podemos citar a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), a Associação de
Professores de Ensino Religioso do Distrito Federal (ASPER), o FONAPER, o Conselho Nacional das
Igrejas Cristãs (CONIC), a Associação de Educação Católica (AEC), dentre outros.
64
claro das confissões cristãs e com uma nebulosa proposta de educação para valores e
cidadania.
Em abril de 1996, a 34ª Assembleia Geral dos Bispos do Brasil, reunida em Itaici
(SP), dedicou um tempo específico para refletir sobre o ensino religioso. Ela encaminhou,
a seguir, um documento assinado primeiramente pela Presidência da CNBB, e depois por
todos os bispos, a todos os deputados e deputadas federais, solicitando apoio e atenção ao
artigo sobre o ensino religioso na futura LDB, no sentido de se garantir a remuneração aos
professores desta disciplina, pois este era, sabidamente, o principal ponto de controvérsia.
A mobilização nacional se intensificou com a atuação dos participantes do 11º Encontro
Nacional de Ensino Religioso (11º ENER), promovido pela CNBB, em agosto de 1996.
Mas a redação final dada pelo Senado à LDB de 1996 frustrou as expectativas dos
defensores do ensino religioso na escola pública, ao estabelecer que esta disciplina seria
ministrada “sem ônus para os cofres públicos”, sendo que seus professores deveriam
trabalhar de forma voluntária ou financiados pelas instituições religiosas:
“Art. 33 [...]
Parágrafo 5º - Aos alunos que não optarem pelo ensino religioso será
assegurada atividade alternativa que desenvolva os valores éticos, o
sentimento de justiça, a solidariedade humana, o respeito à lei e o amor à
liberdade.”(MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E DESPORTO, LEI DAS
DIRETRIZES E BASES DA EDUCAÇÃO NACIONAL – LEI 9.394/96
20 DEZEMBRO 1996).
65
2007, p. 32-35). Partia-se do pressuposto de que todo ser humano possui uma dimensão
religiosa em seu ser e isso seria o bastante para justificar a inclusão do ensino religioso na
escola pública.
Por isso, a autora denuncia o lobby de entidades ligadas à Igreja Católica que
resultou na introdução do ensino religioso na Constituição de 1988 e, principalmente, o
26
lobby do Fórum Nacional Permanente do Ensino Religioso (FONAPER) na sua
regulamentação pela LDB em 1996 e, no ano seguinte, na sua modificação que resultaria
na remuneração dos professores.
26
O Fórum Nacional Permanente do Ensino Religioso (FONAPER) foi fundado em 26 de setembro de 1995,
em Florianópolis, por ensejo da comemoração dos 25 anos do Conselho de Igrejas para a Educação Religiosa
(CIER) em Santa Catarina. Denomina-se uma associação civil de direito privado, sem vínculo confessional e
que congrega pessoas físicas e jurídicas identificadas com o ensino religioso. Cabe destacar que as
coordenações do Fórum, desde a sua fundação, sempre foram marcadas pela forte vinculação religiosa de
seus membros, a maioria ligada às Igrejas Católica, Luterana, Metodista e de outros segmentos cristãos.
Durante quase 20 anos de existência, o FONAPER vem buscando acompanhar e subsidiar os professores de
ensino religioso, organizando encontros, seminários e cursos, publicando textos e atuando junto a organismos
oficiais de ensino.
67
O FONAPER teve papel decisivo nesse momento. Agindo como uma forte
organização em defesa dos interesses dos professores de ensino religioso, ela passou a
colocar não apenas a questão mais imediata, a remuneração paga pelo Estado.
Rapidamente, ela percebeu, diante dos embates travados, a necessidade de se começar,
também e urgentemente, a discutir a grave questão da formação dos professores, se
quisesse continuar defendendo a compreensão do ensino religioso como um componente
70
27
Os Parâmetros curriculares nacionais para o ensino religioso que norteiam atualmente boa parte dos
projetos de ensino religioso no Brasil foram elaborados pelo próprio FONAPER e, diferentemente dos PCNs
de outras disciplinas, não são de elaboração dos órgãos oficiais de educação do país. Esta é uma das críticas
mais severas de diversos grupos laicos que apontam no currículo das escolas públicas no Brasil uma área
com inexplicável autonomia em relação à política geral de educação do Brasil.
71
Como foi entendida esta nova versão da lei pelos defensores do ensino religioso
na escola pública? Exatamente como uma conquista da sociedade civil organizada e que
prima pela diversidade cultural e religiosa, princípio democrático presente em vários outros
pontos da própria Constituição.28 A partir de agora, para os defensores do ensino religioso,
este independe do credo religioso dos alunos e respeita todos eles: “A nova redação do art.
28
Os grupos religiosos que advogam o ensino religioso nas escolas públicas o concebem como algo positivo,
cujo objetivo é educar a dimensão religiosa do ser humano, transmitindo às novas gerações valores de fundo
religioso para formar um bom cidadão, homens e mulheres virtuosos. Percebem o religioso como uma
manifestação cultural, como algo sempre presente nas sociedades humanas, que precisa ser estudado e
compreendido. Entendem a religião como um conjunto de princípios morais necessários à manutenção da
sociedade. Não aceitam uma moral laica, autônoma e desvinculada da religião. O que subjaz a esse debate é,
por um lado, a defesa de uma ordem social e, em especial, do espaço e dos poderes públicos, completamente
secularizada, laica, por parte dos grupos secularistas; e, por outro lado, a reivindicação, por parte de
organizações religiosas, de uma presença mais efetiva do religioso na vida pública, principalmente na
educação – área estratégica – na medida em que está vinculada à formação das novas gerações e à
transmissão da cultura, do conhecimento e de padrões éticos.
72
33 focaliza o ensino religioso como disciplina escolar, entendendo-o como uma área de
conhecimento, com a finalidade de reler e compreender o fenômeno religioso, colocando-o
como objeto da disciplina.” (JUNQUEIRA, 2007, p.45). Ou, como quer Ruedell,
“deduzimos que sua fundamentação e seu conteúdo não se referem mais, de forma
preferencial, ao saber teológico, mas sim, ao saber antropológico e às expressões culturais
portadoras de religiosidade.” (RUEDELL, 2007, p.34). Entretanto, em uma sociedade
marcada por um grande predomínio das igrejas cristãs, quase um monopólio, há de se
indagar como esta nova perspectiva de tratamento da religião acontece no chão da escola.
As relações de poder, neste caso, continuam a definir muitas questões, e, na ausência de
uma clara base epistemológica para esta disciplina, é possível admitir que pouca coisa
tenha mudado.
Mas não é possível ter o entendimento de que a lei, neste momento, passou a
considerar o ensino religioso explicitamente como uma área de conhecimento. Se assim
fosse, não haveria porque a matrícula ser facultativa pela Constituição ou, pelo menos se
percebe, uma contradição entre o que diz a Constituição e a LDB. Esta advertência faz
sentido enquanto o ensino religioso tiver caráter confessional. A afirmação de que o ensino
religioso é parte da formação básica do cidadão é pouco esclarecedora do papel que ele
pode ter para ateus e agnósticos. A previsão expressa do respeito à diversidade cultural do
Brasil, vedadas quaisquer formas de proselitismo, supõe ainda uma possibilidade contrária
que não teria razão de ser para uma área de conhecimento, colocada em posição de
igualdade ao lado de outras no currículo escolar. Quando a lei afirma que os sistemas de
ensino ouvirão entidade civil, constituída pelas diferentes denominações religiosas, para a
definição dos conteúdos do ensino religioso, abre-se uma porta para a interferência das
confessionalidades sobre uma disciplina da qual se espera ser a aplicação didática de uma
determinada ciência.
Vê-se que foi feito um enorme esforço no sentido de levar o ensino religioso para
ser entendido e aceito como área de conhecimento, mas é como se este esforço tivesse
ficado pelo meio do caminho. É o próprio Ruedell que afirma: “Esta acepção de ensino
religioso [inaugurada pela nova redação do art. 33 da LDB] está ainda em processo de ser
devidamente compreendida e de receber a correspondente aplicação.” (RUEDELL, 2007,
p. 35). E nós acrescentaríamos: pode ter sido inaugurada uma nova concepção, mas a
Constituição e a LDB ainda ficam a dever um texto mais claro e definitivo sobre o ensino
73
Por tudo isso, não faltaram críticas a este desfecho de uma verdadeira luta política
em torno do art. 33 da LDB:
“Mas antes de qualquer outra coisa, quero deixar claro que não busco
travar aqui alguma ‘guerra santa’ contra o ensino da religião, menos
ainda contra a liberdade de culto, princípios esses que fazem parte do
ideário democrático. O que não faz parte deste ideário é a existência de
práticas religiosas na escola pública, nem o ensino da religião (qualquer
religião), já que esta é uma questão de esfera privada.” (CUNHA, 2009,
p. 344-345).
Outro ponto que gerou à época muitas discussões foi se o ensino religioso se
inseria ou não dentro das 800 horas do calendário anual. O Parecer 12/97 do CNE/CEB
tenta esclarecer a questão:
7 O panorama atual
29
O FONAPER, através de inúmeros congressos e seminários nacionais, com a participação de professores
universitários e especialistas da área de Ciências da Religião, chegou a elaborar as Diretrizes Curriculares dos
Cursos Superiores na Área de Ensino Religioso que vêm sendo aplicadas, sobretudo, nos cursos de
especialização em diversas instituições de ensino superior. Nesta perspectiva, foram definidas cinco áreas de
conhecimento: fundamentos epistemológicos do ensino religioso; culturas e tradições religiosas; teologias;
textos sagrados, orais e escritos, e ethos.
76
grandes vertentes para esta discussão: 1ª) os que não admitem, em hipótese alguma, o
ensino religioso na escola pública, escudados na defesa da laicidade do Estado; 2ª) os que
advogam o ensino religioso claramente confessional, utilizando as brechas originadas da
ambiguidade e das contradições da própria lei, que prevê, como já vimos, a matrícula
facultativa, a religião como parte da formação básica do cidadão e um órgão colegiado
integrado pelas confissões religiosas que será ouvido na definição de conteúdos a serem
ministrados; 3ª) os que admitem o ensino religioso na escola pública como área de
conhecimento do fenômeno religioso, privilegiando a escolarização e não os interesses das
confissões religiosas, como uma aplicação didática da(s) Ciência(s) da Religião.
mutuamente, ao ponto da discussão ser levada às barras dos tribunais: ou existe o ensino
religioso confessional ou não existe nenhum tipo de ensino religioso nas escolas públicas.
Ainda não foram julgadas pelo Supremo Tribunal Federal duas Ações Diretas de
Inconstitucionalidade (ADIs) sobre o ensino religioso na Escola Pública: a ADI 4439,
focada na questão do Acordo Brasil-Vaticano, já aprovado pelo Congresso (que tem força
constitucional)30 e a ADI 3268 contra a Lei 3.459/2000 do Estado do Rio de Janeiro que,
na prática, instituiu o ensino religioso confessional nas escolas públicas desse estado. Mas
cabe ao STF julgar a inconstitucionalidade das leis e interpretar a Constituição, nunca
revogar um dispositivo da Constituição.
30
O Acordo Brasil-Vaticano provocou a reação imediata da bancada evangélica. Na noite de 17 de agosto de
2009, o Congresso Nacional aprovou a chamada Lei Geral das Religiões, estendendo o acordo católico, com
alguns retoques, a todos os grupos religiosos. Se, de um lado, esta lei cria a relação jurídica privilegiada do
Estado com a Igreja Católica em relação às outras religiões, por outro lado, escancara ainda mais a violação
do dispositivo legal que veda as relações de dependência ou aliança do Estado com as Igrejas.
31
Participaram desta audiência as seguintes entidades civis e instituições públicas: 1) Conselho Nacional de
Secretários de Educação – CONSED (Eduardo Deschamps); 2) Confederação Nacional dos Trabalhadores
em Educação – CNTE (Roberto Franklin de Leão); 3) Confederação Israelita do Brasil – CONIB (Roseli
Fischmann); 4) Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB (Antonio Carlos Biscaia); 5) Convenção
Batista Brasileira – CBB (Vanderlei Batista Marins); 6) Federação Espírita Brasileira – FEB (Alvaro
Chrispino); 7) Federação das Associações Muçulmanas do Brasil – FAMBRAS (Ali Zoghbi); 8) Federação
Nacional do Culto Afro-Brasileiro - FENACAB em conjunto com Federação de Umbanda e Candomblé de
Brasília e Entorno (Antônio Gomes da Costa Neto); 9) Igreja Assembleia de Deus - Ministério de Belém
(Abiezer Apolinário da Silva); 10) Convenção Nacional das Assembleias de Deus - Ministério de Madureira
(Bispo Manoel Ferreira); 11) Liga Humanista Secular do Brasil – LIHS (Thiago Gomes Viana); 12)
Sociedade Budista do Brasil – SBB (João Nery Rafael); 13) Ação Educativa Assessoria, Pesquisa e
Informação (Salomão Barros Ximenes); 14) AMICUS DH – Grupo de Atividade de Cultura e Extensão da
Faculdade de Direito da USP (Virgílio Afonso da Silva); 15) Anis – Instituto de Bioética, Direitos Humanos
e Gênero (Debora Diniz); 16) ANAJUBI - Associação Nacional de Advogados e Juristas Brasil-Israel (Carlos
Roberto Schlesinger); 17) Arquidiocese do Rio de Janeiro (Luiz Felipe de Seixas Corrêa); 18) ASSINTEC -
Associação Inter- Religiosa de Educação e Cultura (Elói Correa dos Santos); 19) Associação Nacional dos
Programas de Pós-Graduação e Pesquisa em Teologia e Ciências da Religião – ANPTECRE (Wilhelm
78
Seja qual for a decisão do (STF) Supremo Tribunal Federal ao final deste
processo, a previsão constitucional do ensino religioso será mantida, a não ser que ela seja
revogada por emenda do Congresso Nacional, o que, no momento, está totalmente fora de
cogitação. Mas o STF pode julgar o ensino religioso na Escola Pública como constitucional
e estabelecer aditivos, ou seja, normas e limites para o seu funcionamento.
Wachholz); 20) Centro de Raja Yoga Brahma Kumaris (Cleunice Matos Rehem); 21) Clínica de Direitos
Fundamentais da Faculdade de Direito da UERJ (Daniel Sarmento); 22) Deputado Marco Feliciano
(Deputado Federal, membro da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, da Comissão de Direitos
Humanos e Minorias e da Frente Parlamentar Evangélica); 23) Comissão Permanente de Combate às
Discriminações e Preconceitos de Cor, Raça, Etnia, Religiões e Procedência Nacional (Carlos Minc
Baumfeld); 24) Comitê Nacional de Respeito à Diversidade Religiosa da Secretaria de Direitos Humanos da
Presidência da República (Gilbraz Aragão); 25) Conectas Direitos Humanos (Oscar Vilhena Vieira); 26)
Conselho Nacional de Educação do Ministério da Educação (Luiz Roberto Alves); 27) Fórum Nacional
Permanente do Ensino Religioso – FONAPER (Leonel Piovezana); 28) Frente Parlamentar Mista Permanente
em Defesa da Família (Senador Magno Malta); 29) Igreja Universal do Reino de Deus (Renato Gugliano
Herani);
30) Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB (Gilberto Garcia); 31) Observatório da Laicidade na
Educação, em conjunto com o Centro de Estudos Educação & Sociedade (Luiz Antônio Cunha).
79
Vários críticos do ensino religioso nas escolas públicas têm focado sua análise nas
visões de mundo que esta disciplina pode passar para crianças e adolescentes e que seriam
extremamente danosos à sua formação como cidadãos e cidadãs livres, conscientes e
responsáveis. Tomemos como exemplo o contexto de um dos movimentos sociais, onde
esta questão é das mais sensíveis: os movimentos feministas. Aqui é bastante dura esta
crítica à posição das igrejas em relação aos direitos sexuais reprodutivos das mulheres
(como o aborto, por exemplo) e à homossexualidade, consideradas por elas como práticas
de sentido contrário à natureza e à normalidade, e que informaria os conteúdos do ensino
religioso repassados pelos professores em sala de aula.
Mas que panorama geral podemos descrever sobre o ensino religioso nas escolas
públicas atualmente no Brasil? Além daqueles estados da federação, que adotam
explicitamente o ensino confessional, nos demais o ensino religioso apresenta muitas
variantes, indo do inter-confessional ao ensino religioso como área de conhecimento.
Levantamento realizado por Débora Diniz (2008, p.6) que interpretou diversos documentos
legais e regulamentações, encontrou os seguintes modelos:
João Décio Passos (2007) em sua obra Ensino Religioso: construção de uma
proposta, aponta a existência de três modalidades de ensino religioso seguidos atualmente
pelos diversos sistemas de ensino do Brasil. São eles:
Frederido Pieper Pires (2015) faz algumas observações sobre cada um deles:
Existem também certas nuances entre estes modelos, o que dificulta muitas vezes
uma classificação mais rigorosa. Por outro lado, em anos mais recentes, foi possível
perceber uma clara tendência de evolução da maioria deles para o ensino religioso como
84
Mais recentemente, dois documentos oficiais dos órgãos federais de educação não
deixaram dúvida ao considerarem o ensino religioso como um componente curricular,
reforçando a sua visão como área de conhecimento. O primeiro foi o Parecer nº 7/2010 da
Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação, aprovado em 7 de abril
de 201032, e o segundo, a Resolução nº 4 do mesmo Conselho33, aprovada em 13 de julho
do mesmo ano. Ambos os documentos tratam das Novas Diretrizes Curriculares Nacionais
Gerais para a Educação Básica. Na base nacional comum, o ensino religioso é o VI e
último dos componentes curriculares elencados, ao lado da Língua Portuguesa; da
Matemática; do conhecimento do mundo físico, natural, da realidade social e política,
especialmente do Brasil, incluindo-se o estudo da História e Cultura Afro-Brasileira e
Indígena; da Arte em suas diferentes formas de expressão, incluindo-se a música e da
Educação Física.
32
Resolução CNE 07, 2010, art. 14: O currículo da base nacional comum do Ensino Fundamental deve
abranger, obrigatoriamente, conforme o art. 26 da Lei nº 9.394/96, o estudo da Língua Portuguesa e da
Matemática, o conhecimento do mundo físico e natural e da realidade social e política, especialmente a do
Brasil, bem como o ensino da Arte, a Educação Física e o Ensino Religioso. Art. 15 Os componentes
curriculares obrigatórios do Ensino Fundamental serão assim organizados em relação às áreas de
conhecimento: I – Linguagens: a) Língua Portuguesa; b) Língua Materna, para populações indígenas; c)
Língua Estrangeira moderna; d) Arte; e e) Educação Física; II – Matemática; III – Ciências da Natureza; IV –
Ciências Humanas: a) História; b) Geografia; V – Ensino Religioso.
33
Art. 14. A base nacional comum na Educação Básica constitui-se de conhecimentos, saberes e valores
produzidos culturalmente, expressos nas políticas públicas e gerados nas instituições produtoras do
conhecimento científico e tecnológico; no mundo do trabalho; no desenvolvimento das linguagens; nas
atividades desportivas e corporais; na produção artística; nas formas diversas de exercício da cidadania; e nos
movimentos sociais. § 1º Integram a base nacional comum nacional: a) a Língua Portuguesa; b) a
Matemática; c) o conhecimento do mundo físico, natural, da realidade social e política, especialmente do
Brasil, incluindo-se o estudo da História e das Culturas Afro-Brasileira e Indígena, d) a Arte, em suas
diferentes formas de expressão, incluindo-se a música; e) a Educação Física; f) o Ensino Religioso.
85
34
Dentre estes autores, destacamos Roseli Fischmannn, da Universidade Metodista de São Paulo (UMESP),
Sueli Carneiro, da USP, Luiz Antonio Cunha, da Universidade Federal Fluminense (UFF), Débora Dibniz, da
Universidade de Brasília, Maria Amelia Schmidt Dickie, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC),
Janayna Lui, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, dentre outros.
35
Ao participar dos congressos, simpósios e seminários promovidos nos últimos cinco anos pela SOTER,
ANPTECRE, ABHR, pude perceber claramente que nuca se fazia presente o debate a partir do antagonismo
maior entre os contrários a qualquer modalidade de ensino religioso na escola pública e os favoráveis ao
ensino religioso como área de conhecimento, melhor entendido como ensino do fenômeno religioso.
86
que, talvez, possa ser explicado pelo pressuposto do silêncio/fala ausente da religião no
âmbito acadêmico. Existe, na verdade, um diálogo de surdos. Uma vertente procede como
se a outra não existisse.
Observei sempre a presença apenas do segundo grupo, o que se explica possivelmente por se tratar de
encontros de teólogos e cientistas da religião e não de outras áreas científicas da Academia.
87
Como vimos no Capítulo1, o ensino religioso nas escolas públicas no Brasil está
previsto na Constituição Federal de 1988, no §1º do Art. 210:
Vimos, pois que a Constituição Federal de 1988 prevê o ensino religioso como um
princípio geral, sendo de oferta obrigatória pelas escolas públicas de ensino fundamental,
inclusive como disciplina com horários previstos na grade curricular, mas de matrícula
facultativa por parte da família do aluno e da aluna. De saída, já se percebe, pela própria
Constituição, que o fato de ser de matrícula facultativa expressa um caráter diferenciado
desta disciplina no conjunto das demais. Não é difícil perceber que este caráter
diferenciado está diretamente relacionado com a questão da liberdade religiosa e da
laicidade do Estado que têm dispositivos previstos em vários outros artigos da
Constituição, como a separação entre Estado e cultos religiosos ou igrejas (art. 19), a
dignidade da pessoa humana (art. 1º, 3º e 4º), a igualdade de todos perante a lei (art. 5º) e o
88
Ao longo da nossa história nacional, como já foi visto no Capítulo I, esta área de
estudo esteve quase sempre sob o controle da Igreja Católica, enquanto instituição religiosa
hegemônica. Seguiu, pois, parâmetros catequéticos, teológicos e pedagógicos ditados pela
Igreja. Foi um modelo que evoluiu depois da LDB para o que podemos denominar de
interconfessional, levando em conta as diferenças religiosas existentes no interior das
escolas, sendo adotado durante algum tempo pelo FONAPER. Também nesse caso, esta
linha parece não ter conseguido justificar-se epistemologicamente como área de
conhecimento perante as demais, superar politicamente a linha de tolerância às diferenças
e, pedagogicamente, construir uma metodologia capaz de incluir a diversidade de
experiências religiosas e até mesmo não-religiosas.
confissões religiosas, não poderá, a rigor, sair desse âmbito, mesmo quando se tornar
disciplina escolar. É o que parece estabelecer a mesma LDB, no parágrafo 2º do mesmo
artigo 1º:
que supere este impasse em nome da autonomia dos estudos de religião e da própria
educação em relação às confessionalidades? É necessário, em primeiro lugar, aprofundar o
debate conceitual sobre a laicidade do Estado, sob o ponto de vista de sua construção
histórica e diante dos importantes deslocamentos verificados recentemente no campo
religioso em todo mundo em nossos dias e, em particular, no Brasil. É o que trataremos
neste capítulo, pois acreditamos que a discussão do Estado laico frente ao ensino religioso
na escola pública é a porta de entrada do problema.
De saída, percebe-se que existe uma grande confusão na utilização dos conceitos
de secularização e laicidade. O senso comum e boa parte dos estudiosos tratam ambos
como termos sinônimos que supostamente fariam referência a um mesmo fenômeno social
e histórico. Também nas traduções, nos deparamos com esta confusão. Mas secularização e
laicidade são processos sociais distintos, conceitos heterogêneos, mesmo com sua
ocorrência no contexto da modernidade e se relacionando fundamentalmente com a
autonomização das diversas esferas da vida social do controle e tutela da religião.
36
Não é por acaso que John Locke (1632-1704) é considerado por muitos como sendo responsável por lançar
as primeiras ideias matrizes do que viria a ser conhecido mais tarde como laicidade com a sua obra Letter
concerning on Tolerance de 1689, e também ser o primeiro fundador da Epistemologia com a sua obra An
Essay Concerning Human Understanding de 1690.
92
37
Nesse sentido, público e privado não são esferas completamente distintas, mas lugares pelos quais a
sociedade se move, compõe discursos, se articula e se rearticula. A relação que se estabelece é, portanto, de
mutualidade. Arendt (2007, p. 55-56) propôs que a esfera pública se desenvolveu com a admissão das
atividades e da economia doméstica à esfera pública que caracteriza certa tendência ao crescimento e à
absorção das esferas do político e do privado, bem como a da intimidade. Um crescimento notado no
movimento das sociedades modernas em deslocar a vida privada para essa esfera pública. Ainda voltaremos a
esta questão mais adiante. Ver Rodrigues, 2013, p.160-165.
93
494, consolida por séculos a “diarquia hierárquica” formada pelas esferas espiritual e
temporal, passando pela “luta das investiduras” na Baixa Idade Média e chegando até as
guerras confessionais na Europa no século XVII. Estas se encerraram em 1648 com a Paz
de Westphalia, criando uma nova situação que inverteu, definitivamente, a lógica daquele
processo, “destruindo o ideal universalista da república cristã fundado no plurissecular
conúbio entre Céu e Terra [...] A Igreja perde o seu papel de custódio essencial do poder
político, enquanto este último se vê livre das responsabilidades inerentes diretamente à
esfera religiosa” (MARRAMAO, 1997, p.21).
38
A teologia dialética ou “teologia da crise” (Barth, Gogarten e outros) também promoveu uma crescente
relação entre religião e cultura, um crescente historicizar-se e mundanizar-se da religiosidade. Assim, por um
lado, a secularização é teologicamente legitimada como função de compreensão da autonomia do mundo
moderno profano, emancipado do equívoco da “civilização cristã”; por outro, a liberação do mundo, que
assim pode voltar a ser apenas mundo, torna-se ao mesmo tempo liberação da fé em relação ao mundo,
verdadeiro resgate da religião em relação à prisão do mundo.
96
39
Os principais autores que, a partir de então, passaram a ser referências nesta discussão foram Talcott
Parsons, Thomas Luckmann, Peter Berger, Bryan Wilson, David Martin, Robert Bellah, Richard Fenn, N.
Luhmann e Karel Dobbelaere.
40
Em toda a sua argumentação, Pierucci recorre ao conceito weberiano de secularização que necessariamente
invade o terreno da conceituação de legitimidade, do tratamento teórico dos problemas da legitimação da
autoridade no Estado moderno. Também não se pode discutir a legitimidade do Estado moderno e
constitucional e da própria democracia sem esbarrar no tema da secularização. Mas a experiência de várias
sociedades muçulmanas com o secularismo é uma experiência com o autoritarismo político. Isto significa que
o valor democrático atribuído ao secularismo deve ser relativizado e contextualizado (SANTOS, 2014).
97
ou ainda:
Olivier Bobineau e Sébastien Tank-Storper, (2011), nos traz uma síntese muito
interessante do processo de secularização entendido nos seus cinco aspectos principais:
41
A palavra “secularização” é oriunda do latim clássico – saeculum -, significando “século”; porém poderia
significar também “idade”, “época”. Com o tempo foi adquirindo outros significados como “mundo”, “vida
mundana”, “espírito do mundo”.
99
hegeliano: uma energia que se opunha a algo que tinha a intenção de destruir. Mas destruir
o quê? Morin nos responde:
Para Santos (2014), nos anos mais recentes, vários autores vêm questionando o
secularismo pela sua incapacidade de dar conta da ‘plurivocidade do ser’, para usar uma
expressão de William Connolly (1999), ou seja, de evitar que outras crenças para além da
crença secularista se expressem na esfera pública. Este debate, reconhecido ou não,
segundo Santos (2014), tem sido sustentado pela crescente visibilidade do ‘outro’ dentro
do ocidente, no contexto de uma transição paradigmática vivida pelo nosso tempo.
Então, podemos afirmar que a partir do Estado, tivemos também uma crença, um
dogma ou uma ideologia secularista. Ela embasou fortemente a luta dos defensores da
escola laica na França a partir de 1870.
“Eu quero, com todo o desejo da minha alma, não só a separação das
igrejas em relação ao Estado, mas que se separem as escolas da Igreja.
Isto é para mim uma necessidade política, e eu acrescentaria, também de
ordem social”. (cf. PEISER, 1995).
Mas para Santos (2014), de uma perspectiva não cristã e não ocidental, o
secularismo é tão constitutivo do Cristianismo quanto a própria religião cristã. O
secularismo e a religião cristã fizeram parte do mesmo pacote colonial: “Foram também
parceiros próximos na imposição da monocultura do conhecimento científico ocidental,
através do qual foram suprimidos os conhecimentos indígenas, locais, camponeses e outros
conhecimentos rivais, não ocidentais” (SANTOS, 2014, p.100). Como ainda veremos,
outros autores comungam com esta tese de Santos:
Outro conceito, criado por Max Weber, que muitas vezes é confundido com
secularização, é o conceito de desencantamento do mundo42. Eles possuem significados
diferentes, mesmo que pareça apenas uma sutileza. Desencantamento não foi um termo
cunhado por Weber, nem adotado ipsis litteris do poeta Shiller, como muitos afirmam, e
sim por ele adaptado a partir de um sintagma similar que expressava a ideia de um
“mecanismo desdivinizado do mundo”. Conforme Pierucci:
Por isso, este conceito de desencantamento do mundo43 deve ser entendido como
“desmagificação” do mundo, ou seja, a perda do sentido mágico do mundo a partir da luta
secular da religião eticizada, racionalizada contra a magia. Este processo transcorreu em
um longo período marcado pela racionalização religiosa por que passou a religiosidade
ocidental em virtude da hegemonia cultural alcançada por essa forma de religião ética e
desencantadora que é o judeo-cristianismo.
42
O termo “desencantamento do mundo” possui grande poder de sugestividade, possui inúmeras
possibilidades de metaforização. Ele é propenso à diluição dos seus contornos lógicos e, ao mesmo tempo, ao
adensamento filosófico de seus conteúdos no trabalho de reflexão sobre os grandes dilemas existenciais
postos pelo processo de racionalização especificamente ocidental (PIERUCCI, 2013, p.45).
43
Philippe Gaudin traz uma discussão muito interessante da ideia de desencantamento do mundo a partir das
obras de Michel Gauchet Le désenchantement du monde, (GALLIMARD,1985), Um monde désenchanté
(ÉDITIONS DE L’ATELIER, 2004) e seu livro de entrevistas com Luc Ferry, Le religieux après la religion
(GRASSET, 2004), traduzido para o português como Depois da Religião. Ver GAUDIN, Philippe. Vers une
laicité d’intelligence? L’enseignement des faits religieux comme politique publique d’éducation depuis les
années 1980. Aix-en-Provence: Presses Universitaires d’Aix-Marseille, 2014, p. 37-55. Para Gaudin,
Gauchet não fala de forma alguma no desaparecimento puro e simples da religião, mas sim claramente de sua
recomposição em um modo profano, no sentido de que ela permanece possível como opção individual, mas
não determina mais a organização coletiva nem a estruturação do espaço social (p. 38).
104
profeta Elias (1 REIS, 18, 36-40). Para Weber, os profetas44 de Israel foram os primeiros
desencantadores do mundo, conjugados com o pensamento científico grego, dois fatores
originariamente constitutivos do racionalismo ocidental. 45
Para Santos (2010), no entanto, este processo de desmagificação foi muito mais
profundo e radical. Este mundo mágico e sedutor de Weber, que Santos localiza no
Oriente, foi a verdadeira matriz fundadora e totalizante do Ocidente, chamado por ele de
‘parte trânsfuga’ (SANTOS, 2010). Como já foi dito no Capítulo I, “a supremacia do
Ocidente foi criada a partir das margens” (MARRAMAO, 1995, p.160) O Ocidente se
construiu a partir da Grécia e, como sabemos hoje, a antiguidade grega deve muito às suas
raízes africanas e asiáticas.
44
Weber faz decisiva diferenciação entre sacerdote e profeta e neste identifica o lugar original da dinâmica
secularizante. O sacerdote é porta-voz legitimado da salvação, a serviço de uma tradição sagrada; já o profeta
atua exclusivamente pelos seus dons pessoais e carismáticos, com base em doutrinas, revelações e
imperativos divinos.
45
Nesta mesma linha, Karl Jaspers considera o período entre os anos 800 e 200 a.C. que ele chama de
período axial como aquele “que lançou os fundamentos que permitiram a humanidade subsistir ainda hoje.”
(JASPERS, 1951, p.98). Podemos balizar este período exatamente entre a atividade dos profetas de Israel e a
definição da filosofia grega.
46
Uma longa tradição intelectual e filosófica que vai de Hegel a Weber, passando por Feuerbach e Nietsche,
situa a origem da secularização no próprio universo religioso, mais precisamente na história do cristianismo,
como já foi dito.
105
paradoxalmente, é o que explica a razão de sua força no mundo. Foi com esta concepção
truncada da totalidade oriental, exatamente porque truncada, que o Ocidente se firmou
autoritariamente como totalidade a partir do final da Idade Média e impôs a sua
homogeneidade sobre as partes que o compõem (SANTOS, 2010). O Ocidente, consciente
de sua excentricidade relativa àquela matriz, aproveitou dela apenas o que pôde favorecer a
expansão do capitalismo através de um processo reducionista: a multiplicidade dos mundos
(terreno e extraterreno) foi reduzida ao mundo terreno e a multiplicidade dos tempos
(passados, presentes, futuros, cíclicos, lineares, simultâneos) foi reduzida ao tempo linear.
47
Max Weber concebeu a separação entre religião e política como um elemento do processo de diferenciação
entre os valores culturais e a formação das instituições. O desencantamento do mundo possibilitou a
dessacralização do direito e instituiu o estado laico como referência da ordem jurídica. Esta conjunção de
fatores viabilizou a retirada do Estado dos assuntos da religião ao mesmo tempo em que impôs à religião a
neutralidade em assuntos de Estado. A desarticulação entre a religião e o Direito consolidou o moderno
estado de Direito de forma definitiva como laico.
106
Nesse sentido:
48
Casanova fez uma revisão crítica de sua tese, publicada em 2008 sob o título Public Religions Revisited.
49
Uma das diferenciações mais importantes para a compreensão da ordem social moderna, para além da
separação entre Igreja e Estado, é a distinção entre a esfera pública do Estado e a esfera privada da sociedade.
É neste sentido que a religião se torna uma questão privada: ela é excluída da esfera do Estado.
107
50
Dentre outros podemos citar Bryan Wilson, Rodney Stark, David Martin e Karel Dobbelaere.
51
Como exemplos destas manifestações e formações eclesiais, paraeclesiais e não-eclesiais que vem surgindo
e proliferando a partir da década de 1970, nas sociedades mais modernas do ocidente, Pierucci cita a
recuperação da imagem do papado, o impacto televisivo dos televangélicos de forte viés fundamentalista ou
tradicionalista e o próprio fundamentalismo islâmico com suas repúblicas teocráticas.
52
Para Pierucci, o termo pós-secularização apareceu pela primeira vez na Itália em 1990 no livro de Luigi
Berzano, Differenziazzone e religione negli anni 80, quando este autor identifica na pós-modernidade,
entendida como crise globalizada da modernidade, o momento ideal para a reformulação das teorias
sociológicas da religião, uma vez que elas seriam majoritariamente tributárias do doutrinarismo da teoria
weberiana da secularização. Para uma sociedade dita pós-secular, muitos autores, como Berzano, pretendem
uma sociologia da religião pós-weberiana.
53
O texto foi publicado em francês, com o título La revanche du sacré dans la culture profane, na Le besoin
religieux (Recontres Internationales de Genève), Neuchâtel, La Baconnière, em 1974, e foi traduzido e
publicado na revista Religião e Sociedade em 1997.
108
Santos (2014) chama a atenção ainda para a emergência das teologias políticas nas
décadas de 1970 e 1980, tanto as conservadoras quanto as progressistas, em relação ao
processo de secularização já em curso. Para ele, as teologias políticas partem da separação
entre a esfera pública e a esfera privada para reclamar a presença maior ou menor da
religião na esfera pública. Elas postulam que a dignidade humana consiste em cumprir a
vontade de Deus, um mandato que não pode se circunscrever somente à esfera privada. A
exigência da religião como elemento constitutivo da vida pública é um elemento que tem
ganhado relevância nas últimas décadas em todo o mundo. De uma forma mais ou menos
radical, todas as teologias políticas têm questionado a distinção moderna entre o público e
o privado e reivindicam a intervenção da religião na esfera pública.
fazem aprofundar este processo. Eles não têm consequências reais para outras instituições,
para a estrutura do poder político, para as leis e para os controles tecnológicos.
A escolha desses serviços religiosos é livre e não é direcionada mais por nenhuma
instituição religiosa. E estas escolhas não têm consequência relevante para as instituições
sociais dominantes, para a dinâmica do poder político, para os processos tecno-
econômicos, para a administração pública e a condução dos negócios (PIERUCCI, 1997).
Weber é claro quando diz que o nosso mundo é marcado pelo desencantamento,
ou seja, os valores últimos e mais sublimes se retiraram da vida pública e se refugiaram ou
no reino transcendente da vida mística ou na fraternidade das relações humanas diretas e
pessoais. A racionalização secularizante causa ou explica a vitalidade do sagrado na esfera
privada. Definitivamente, secularização não significa o fim da religião.
“[...] Weber jamais previu o fim das religiões, como alguns apressados de
seus intérpretes foram logo afirmando. Ele sempre foi metateoricamente
avesso a previsões fechadas com pretensão monológica no formato
teleológico-hegeliano tipo filosofia da história. Para Weber, a
secularização é a saída da religião da esfera pública e seu decorrente
refúgio na esfera privada, talvez até com o seu revigoramento
individual.” (PIERUCCI, 2000, p.113).
Falar do fim das religiões supõe várias coisas. Para Vicent Delecroix (2006), a
filosofia tem de se confrontar com a época contemporânea em que o fenômeno religioso
tem tomado várias formas determinadas que não são as de séculos atrás.54 O problema
então se coloca na pertinência dos paradigmas para pensar no que se costuma chamar de
“fim da religião”, paradigmas que possuem longa gênese histórica e pode ter se originado
em contextos sócio-históricos bem diferente dos de hoje.
Algumas perguntas se colocam então: a ideia de “fim da religião” não seria uma
ideia obsoleta? De qual ou religiões está se falando? Não estamos esquecendo de que o
conceito de religião é um conceito iminentemente ocidental? O que, de fato, desaparece?
Delecroix nos alerta:
54
Para Vicent Delecroix (2006) também no campo da filosofia, são precisamente as formas de sobrevivência
ou a fenomenalidade do religioso, na era da decadência da religião, o que mais interessa. A propósito, o
termo sobrevivência é inadequado para a religião, não se trata de um resíduo histórico, mas seguramente de
um fenômeno novo.
111
Pelo menos, este estado de coisas a obriga a precisar melhor seu campo de
investigação ou relativizar o seu alcance, quer dizer, o alcance do conceito do “fim da
religião” que parece (ou pode?) ser útil na hora de pensar a modernidade e o lugar da
religião na modernidade55. Para Giumbelli, “[...] de todo modo, parecemos estar longe do
horizonte que se associava ao modelo consolidado na modernidade, o horizonte do ‘fim da
religião’. Se muito se pode discutir acerca do estatuto e do significado do ‘religioso’ atual,
é difícil negar que a atualidade está repleta de ‘religião’” (GIUMBELLI, 2004, p. 48).
Por outro lado, a mobilização recente dos NMRs não significa, de modo algum, o
fim do processo de secularização. Antes, pelo contrário, ajuda-o, acelera-o. Para Pierucci,
secularização tem de ser vista como desenraizamento dos indivíduos e é isso que significa
a dessacralização da cultura: “Hoje, mobilizar religiosamente um indivíduo significa fazê-
lo duvidar da sua tradição religiosa. É uma espécie de variação do cogito cartesiano,
entendido como corajosa recusa da cultura circundante e herdada” (PIERUCCI, 1997,
p.114).
55
Se muitas vezes se viu na religião a fonte de uma moralidade socialmente útil, foi para nela encontrar um
apoio e um sustento para uma ordem cujos fundamentos estavam em outro lugar. Ou seja, mesmo a liberdade
religiosa deriva de um ideal de conceber a sociedade sem religião. É isso que torna inerentemente ambígua a
convivência entre modernidade e religião. Podemos dizer que segue esta linha alguns grupos declaradamente
agnósticos e ateus que chegam a admitir o ensino religioso na escola pública, sem definir muito bem o que
ele seja.
112
Já outros autores, como Montero (2006), a partir de uma análise que privilegia a
presença dos cultos africanos desde o período colonial, chegam a afirmar, em face das
disputas históricas que marcaram as distinções entre o religioso e o mágico no Brasil, que a
ideia weberiana de ‘secularização’ é insuficiente para explicar a construção no espaço
público entre nós:
Trata-se de um diálogo bastante profundo entre Marcel Gauchet e Luc Ferry sobre a nova
realidade deste campo, após o duplo processo da saída da religião e da individualização do
crer (termos cunhados pelo próprio Marcel Gauchet). De início, há sem dúvida uma
diferença entre esses autores na definição do que seja o religioso. Para Gauchet, trata-se da
heteronomia estruturante da sociedade e, por consequência, do indivíduo. Para Ferry, trata-
se muito mais de uma aspiração ao absoluto, de uma busca de sentido, de uma interrogação
sobre a vida e sobre a morte. Como se o sentido que Luc Ferry dá à religião
correspondesse mais ao que Marcel Gauchet chama de o religioso após a religião
(GAUDIN, 2014, p.52).
Blancarte (2006) registra que o termo latino laicus não passou diretamente para as
línguas anglo-saxônicas. Mas a questão conceitual aqui não se resume a uma dificuldade
linguística, há uma questão cultural envolvida no termo Estado laico, no contexto europeu,
onde laicidade é entendida como algo que tem a ver com a França e não corresponde a
outros países. 56 O termo aparece na França na década de 1870, mas somente em 1887, em
seu Novo Dicionário de Pedagogia e Instrução Primária, Ferdinand Buisson assinalou o
surgimento do substantivo laicidade.57 Até então, o termo não existia como substantivo,
mas como um adjetivo sempre ligado a outro substantivo: Estado laico, Escola laica, Moral
laica, etc. Buisson apresentava no verbete ‘laicidade’, a justificativa para essa criação:
“Esta palavra é nova e, mesmo que formada corretamente, não é ainda de uso geral. No
entanto, o neologismo é necessário, não havendo nenhum outro termo que permita
exprimir sem perífrase a mesma ideia na sua amplitude” (BUISSON, 1911).
56
Catroga (2013) nos esclarece que hoje, quando se quer traduzir, para o inglês, expressões como laicisme e
laicization é comum recorrer-se a derivados de “século”, e não de “laico”, prova de que a terminologia
esgrimida na guerra religiosa à francesa acabou por não ter sucesso nos países de cultura anglo-saxônica.
57
Na verdade, o substantivo “laicidade” é um neologismo que apareceu em 1871, em um artigo sobre
educação no jornal La Patrie, antes de ser tomado por Buisson em seu Dicionário. O adjetivo “laico” foi, no
entanto, comumente usado durante o Segundo Império, sendo popularizado por Edgar Quinet e Jean Mace,
fundador da Liga de Educação em 1866 (PORTIER, Seminaire national “Enseigner les faits religieux dans
ume école laique”, Paris, 21 et 22 juillet 2011).
115
58
Em ciências sociais nunca se deve esquecer que é imprescindível a referência histórica, geográfica e
cultural nas experiências históricas coletivamente construídas, assim como dos termos que dão conta delas.
59
Nesta perspectiva, existe a tendência em ver a doutrina de Gelásio uma espécie de arquétipo da separação
entre o Estado e a Igreja, que se transformaria no objetivo medular da cultura política laica em seu apogeu no
século XIX. Esta reconstrução genealógica é privilegiada por aqueles que redefinem o laicismo como
reivindicação da autonomia recíproca das diversas esferas da atividade humana (Abbagnano, 1998) e
excluem por isso de suas características a distinção e a contraposição com a religião.
116
Marsílio de Pádua (1275-1343) foi além de Guilherme de Ocham. Com sua tese
sobre a necessidade não somente de uma autonomia completa do Estado, mas também do
predomínio deste sobre a Igreja, ele sustentava a ideia do Estado como sociedade perfeita e
suficiente por si mesma, até ao ponto de fazê-la depender do Direito Natural (ABAIGAR,
2001, p.16).
Percebe-se que laicidade é uma noção que possui caráter negativo, restritivo. Em
linhas gerais, pode ser compreendida como a exclusão ou ausência da religião da esfera
pública, implicando a neutralidade do Estado em matéria religiosa. Esta neutralidade
apresenta dois sentidos diferentes, o primeiro já foi destacado: exclusão da religião do
Estado e da esfera pública. Pode-se falar, então, de neutralidade-exclusão. Foi neste
sentido que sempre se argumentou contra a inclusão do ensino religioso nos currículos das
escolas públicas. Em um segundo sentido refere-se à imparcialidade do Estado com
respeito às religiões, o que resulta na necessidade do Estado em tratar com igualdade as
religiões. Trata-se neste caso da neutralidade-imparcialidade (BARBIER, 2005 apud
RANQUETAT, 2008, p. 63-64).
Baubérot (2005) sintetiza bem a questão, quando afirma que só se pode falar em
laicidade quando o poder político não é mais legitimado pelo sagrado e quando não há a
dominação da religião sobre o Estado e a sociedade, implicando a autonomia do Estado,
dos poderes e das instituições públicas em relação às autoridades religiosas e a dissociação
da lei civil das normas religiosas.
Para reforçar o exemplo colocado acima, vejamos os casos dos EUA e da França.
Enquanto no primeiro, o processo de laicização ocorreu de forma quase pacífica e
rapidamente com a separação entre o Estado e as igrejas na primeira emenda de 1791, no
segundo, o processo foi progressivo, tortuoso e conflitivo.
Para uma compreensão maior das diferenças entre os casos americano e francês,
vejamos o que diz Casanova (2011) a respeito. Ele fala em duas dinâmicas de
secularização. A primeira dinâmica diz respeito ao processo que levou a vida religiosa de
perfeição de dentro dos monastérios para o mundo secular, possibilitando a qualquer
pessoa tornar-se “um monge asceta secular” ou um cristão no saeculum. Dessa forma, as
fronteiras entre religioso e secular foram borradas e o dualismo superado pela constituição
do religioso secular e do secular religioso. Esse movimento de reforma foi iniciado por
grupos cristãos medievais e radicalizado pela Reforma Protestante, que tem no calvinismo
anglo-saxão e, particularmente, nos EUA, a sua expressão mais paradigmática. A segunda
dinâmica de secularização tomou a forma da laicização e buscou emancipar todas as
esferas do controle clérigo-eclesiástico. Diferente da forma protestante, na laicização do
mundo católico, tomando o caso francês como exemplar, “as fronteiras são empurradas
para as margens, visando conter, privatizar e marginalizar tudo o que for religioso,
enquanto o exclui de qualquer presença visível na esfera pública secular” (CASANOVA,
2011, p. 56-57).
60
A liberdade de consciência e a do direito à privacidade são, segundo Casanova (2011), os direitos
fundadores e legitimadores do Estado liberal moderno.
61
Poulat (2004) chama a atenção para o fato de que a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão
(1789), documento fundamental da Revolução Francesa, tem no seu preâmbulo: “Na presença e sob os
auspícios do Ser Supremo”. Percebe-se que no próprio nascedouro da laicidade não se negava a existência e
os favores de Deus. Mas este importante documento apresenta os primeiros princípios do indício de laicidade
ao declarar no seu art. X: Ninguém deve ser incomodado devido às suas opiniões, mesmo religiosas, contanto
que sua manifestação não perturbe a ordem pública estabelecida em lei; e, no seu art. XI: A livre
comunicação dos pensamentos e das opiniões é um dos direitos mais importantes do homem, todo cidadão
pode falar, escrever e imprimir livremente, salvo quando tiver que responder pelo abuso dessa liberdade,
nos casos previstos em lei.
120
grupos clericais, religiosos, e grupos laicistas, anti-clericais. Segundo ele, a lógica que
prevaleceu nos países católicos, onde havia a hegemonia da Igreja Católica, é uma lógica
de laicização, “o poder político foi mobilizado para subtrair, completa ou parcialmente, as
pessoas e as diferentes esferas da atividade social da influência da Igreja” (CHAMPION,
1999, p. 8). Desta forma, a religião foi relegada à esfera privada. Nos países protestantes,
não se configurou a oposição entre dois campos irredutíveis, o religioso contra o laicista, a
emancipação da religião ocorreu segundo uma lógica de secularização, de forma menos
conflitiva que a lógica de laicização. A Igreja Protestante, em suas diversas ramificações,
se torna subordinada ao Estado. Nestes países, a Igreja não é uma potência em
concorrência com o Estado, tal como é a Igreja Católica, mas uma instituição ligada ao
Estado, assumindo responsabilidades particulares (CHAMPION, 1999).
Ou para Baubérot, ela pode corresponder a “um arranjo do político no qual a liberdade de
consciência se encontra, em conformidade com uma vontade de igual justiça para todos,
garantida por um Estado neutro em relação a diferentes concepções da vida ideal que
coexistem na sociedade” (2012, p.80). Esta definição está composta por quatro elementos;
Primeiro, a liberdade de consciência e a igualdade entre convicções religiosas e filosóficas;
segundo, a neutralidade estatal e a autonomia do político, atingidas seja por uma separação
declarada entre Estado e igrejas, seja por outras medidas mais graduais.
Nisto consiste o domínio da laïcité, uma esfera sociopolítica livre dos símbolos
religiosos e do controle clerical. Esse foi o caminho tomado pela França, países latinos,
católicos, embora as expressões de laicidade sejam diversas no interior de cada um deles.
Essa especificidade serve como a “metáfora básica para todas narrativas de subtração da
121
modernidade secular, que tendem a entender o secular como meramente o espaço deixado
para trás quando essa realidade mundana é livre da religião” (CASANOVA, 2011, p. 57).
Há que se enfatizar mais uma vez que laicidade e secularização são termos que
não se referem a idênticos processos históricos e sociais. Segundo Catroga (2010),
observam-se em diversos países europeus, sociedades altamente secularizadas como a
Inglaterra e a Dinamarca, onde as práticas, os comportamentos religiosos estão em franco
declínio, mas que, entretanto não são Estados laicos. O historiador português ainda aponta
para a existência de uma semi-laicidade em países como Alemanha, Bélgica e Holanda,
que são Estados não confessionais, mas que apoiam e subsidiam as religiões, e uma quase
laicidade em países como Portugal, Espanha e Itália. Nestes países, o Estado é laico
juridicamente, mas celebrou diversos tratados concordatários que acabaram por privilegiar
o grupo religioso majoritário. Estas últimas são sociedades altamente religiosas, portanto
não secularizadas ou menos secularizadas, porém o Estado, do ponto de vista jurídico e
constitucional, é laico.
O caso brasileiro se assemelha com o que ocorreu com os países do sul da Europa
de influência católica, configurando-se uma ‘quase laicidade’ (CATROGA, 2010) ou uma
‘laicidade de reconhecimento’ (RODRIGUES, 2013), pois, ao longo da história brasileira,
mesmo com a separação formal entre o poder político e a organização religiosa majoritária,
sempre houve compromissos e cumplicidades entre governantes e instituições católicas
(GIUMBELLI, 2002, p.246).
É justamente por isso que o tratamento dado ao ensino religioso nos diferentes
currículos nacionais apresenta uma variedade tão grande. Pois sua admissão ou não, ou o
seu grau de admissão, seus conteúdos e seus objetivos, tudo isso decorre de todo um
processo histórico e social, por vezes determinante. Como este processo é dinâmico e não
linear, podemos observar grandes alterações neste debate acadêmico na atualidade, como
ainda veremos. Mas, antes de avançarmos nesta direção, aprofundemos ainda os graus
diferenciados de entendimento do próprio conceito de laicidade.
Laicidade e laicismo
122
Kant (2011) centra sua ética no imperativo categórico em agir por pura
consciência do dever, exigindo implicitamente um marco de convivência social de
permissões e liberdades. É o que justamente ele reivindica em seu Tratado sobre a Paz
Perpétua, escrita em 1795. Trata-se de uma moral muito exigente,
Mas vão aparecendo, ao longo do século XIX, diferentes formas de laicidade anti-
religiosa no âmbito do positivismo francês. Este é o caso de Auguste Comte (1798-1857),
que cunhou a ideia de progresso da humanidade e que compreende, em sua visão, a
religião como um obstáculo a ser superado por esse progresso. Aí encontramos
historicamente a origem do laicismo. Ainda hoje certos grupos têm como sinal daquele
progresso o desprezo pela religião. No contexto desta filosofia do Modernismo que
considera o progresso científico, técnico e cultural como um desenvolvimento inexorável
da humanidade, não podemos esquecer que esta foi a ideologia de uma burguesia poderosa
e hegemônica, que estava deslocando rapidamente a Igreja do controle do pensamento
ocidental (ABAIGAR, 2001).
Catroga (2010) lembra que laicidade, laicismo e outros termos correlatos sempre
tiveram um sentido de luta, de oposição ao eclesial e ao religioso. São expressões que se
impuseram historicamente como instrumentos de tensão, resistência e luta contra a
influência do clero e da Igreja Católica, e nas suas versões mais radicais, contra a própria
religião.
Estado. Para este liberalismo clássico, a religião ocupa uma função subordinada, sendo a
esfera política autônoma e independente em relação àquela. As outras esferas da vida
social, como a educação, também devem ser autônomas e livres da influência religiosa,
devem estar a serviço dos valores cívicos e seculares e não devem fazer qualquer
referência ao religioso. A religião é concebida como algo reservado ao foro íntimo de cada
indivíduo.
De fato, a virtude da laicidade está no pluralismo, ela destrói esta ideia que a
identifica com o monopolismo. No âmbito do disfarce da laicidade emergiu muitas vezes
uma nova doutrina dogmática, alegando apenas ser a ciência que detém as leis da história e
da sociedade, e isto é na verdade um novo monopólio (MORIN, 1985). É impossível a
laicidade se expressar como uma simples neutralidade, pois ela se revela também como
uma visão de mundo, um conjunto de crenças. Segundo Catroga, o projeto laicizador tem
na escola e no ensino um dos seus vetores principais:
A encíclica Quanta Cura (1864), do papa Pio IX, e seu famoso Syllabus dos “80
erros do nosso tempo” condenam o racionalismo, o liberalismo e especificamente o
laicismo. Acompanhando o processo de romanização da Igreja, o Catolicismo se
radicalizou e reforçou suas posturas tradicionalistas:
De qualquer forma, a distinção entre estes dois conceitos continua até hoje
bastante polêmica. Vários autores chegam a afirmar que esta distinção é de interesse das
igrejas, principalmente da Igreja Católica onde ela continua hegemônica, com o objetivo de
defender privilégios e preservar sua presença no âmbito público sob a proteção de um
conceito de laicidade que aceite esses privilégios e essa presença.
Desse modo:
Enfim, para certos autores como Gasda (2015), a laicidade seria uma
predisposição para o laicismo, ou melhor, a condição para a convivência de todas as
pessoas em sua natureza primordial de pessoas. Trata-se mais de um processo, um método
para se alcançar um grande objetivo da humanidade: fraternidade em torno do gênero
humano, nada mais.
(séculos XVI e XVII), a priorização de pertença nacional levou, com o Edito de Nantes de
1598, a uma instável convivência e tolerância62. Depois, a unificação nacional, realizada
pela monarquia absolutista, empreendeu um projeto de inclusão excludente e sacralizado,
com a revogação daquele edito por Luís XIV.
62
A tolerância e a liberdade de consciência, pilares de um nascente espírito laico, aparecem no Edito de
Nantes, em 1598, pela primeira vez, de forma provisória e imperfeita.
63
Galicanismo foi uma doutrina religiosa e política que sustentou a organização de uma Igreja Católica da
França autônoma em relação ao papa. Mesmo reconhecendo o papa com uma primazia de honra e de
jurisdição, ele contestava sua onipotência, em benefício dos concílios gerais da Igreja e dos soberanos dos
seus Estados.
64
Os jansenistas eram adeptos de uma doutrina religiosa inspirada nas ideias do bispo de Ypres, Cornelius
Jansen. Como movimento teve caráter dogmático, moral e disciplinar, que assumiu também
contornos políticos, que se desenvolveu principalmente na França e na Bélgica, nos séculos XVII e XVIII, no
seio da Igreja Católica e cujas teorias acabaram por ser consideradas heréticas pela mesma, em 16 de Outubro
1656, através da bula Ad sacram subscrita pelo Papa Alexandre VII. Defende uma interpretação das teorias
de Santo Agostinho sobre a predestinação contra as teses tomistas do racionalismo aristotélico e do livre
arbítrio.
129
65
Ultramontanismo, do latim ultramontanus, que significa "além das montanhas", especificamente para além
dos Alpes por parte de quem está na França ou na Alemanha, refere-se à doutrina política católica que busca
em Roma a sua principal referência. Este movimento surgiu na França na primeira metade do século XIX.
Ele reforça e defende o poder e as prerrogativas do papa em matéria de disciplinae fé. Destacaram-se como
líderes deste pensamento Joseph de Maistre, Louis Veuillot, Lamennais e Emmanuel d'Alzon, dentre
outros. Este movimento católico pretendia fazer frente ao Galicanismo.
66
A Guerra das Duas Franças é uma expressão cunhada por Émile Poulat na sua obra Liberté, laicité: la
guerre des deux France et le príncipe de la modernité, Paris: Ed. Du Cerf, 1988.
130
particulares e de não admitir na instrução pública o ensino de nenhum culto religioso. Mas
será Jules Ferry (1832-1896), considerado o principal fundador da escola laica francesa,
que a partir de 1879 envidará todos os esforços para arrancar as crianças e a juventude da
influência da Igreja. Como Ministro da Instrução Pública e de Belas Artes, ele nomeou
protestantes liberais, como Ferdinand Buisson, Félix Pécaut, Jules Steig, dentre outros,
para colocar essa escola laica em funcionamento. Ferry vai propor uma moral laica, ou
independente das Igrejas, possibilidade por ele considerada viável e extremamente
necessária.
Jules Ferry instituiu a educação pública gratuita e obrigatória, bem como o ensino
religioso como sendo restrito à esfera privada, devendo ocorrer em dias de folga da escola.
As políticas de Ferry em favor de uma escola laica sofreram severas represálias por parte
da Igreja Católica, predominante no controle das instituições de ensino. Ele foi acusado de
ser antirreligioso, a que se contrapunha dizendo: “Não sou contra a religião, mas contra os
clérigos que procuram dominar o ensino” (WEREBE, 2004, p.192).
A partir de 1880, o Estado laico francês radicaliza suas posições: os crucifixos são
retirados das salas de aula, os programas de ensino passam a ter caráter laico e todos os
professores tornam-se leigos. Contudo, essas medidas não foram suficientes para suprimir
o ensino privado e confessional neste país (ORO, 2007, 84-85), sobretudo porque, como
afirma Jean-Paul Willaime:
“O Estado é laico, a sociedade não. A sociedade permanece mais ou
menos secularizada, mais ou menos impregnada por uma cultura religiosa
majoritária e por culturas religiosas minoritárias que marcaram sua
história e sua relação com o mundo”. (WILLAIME, 2011b, p.317).
A separação entre Igreja e Estado, com a ruptura unilateral do Estado francês com
a Concordata de 1804 e o rompimento de relações com o papado será um ponto sem
retorno. Passou-se da anterior distinção de domínio para a subtração e substituição. Eram
duas visões incompatíveis em vários campos, que ficou conhecida popularmente como as
duas Franças, mas é bom lembrar que nunca esteve em questão a crença em Deus nem o
direito à existência das Igrejas.
Blancarte nos alerta que a noção de laicidade aparece na França em 1870, mas ela
já existe muito antes disso em outras sociedades. O México é um exemplo. É preciso assim
isolar o caso francês como método para a sua compreensão. Para ele,
Mas, pelo menos, é bom enfatizar, como já foi aqui demonstrado, que uma
laicidade no ensino público já existia na França durante a III República, portanto, antes da
separação Igreja-Estado em 1905.
Pode-se, então, constatar que não se requer um regime de separação para que haja
elementos de laicidade. Blancarte, então, propôs aquela definição inicial de que já falamos:
“a laicidade é um regime social de convivência, cujas instituições políticas estão
legitimadas principalmente pela soberania popular e não por elementos religiosos”
(BLANCARTE, 2006, p. 33). Em suma, a laicidade francesa tenta articular três princípios:
1) unidade republicana, 2) respeito ao pluralismo das tradições filosóficas e religiosas, 3)
liberdade de consciência. Mas o consenso sobre eles não evita o debate, sua interpretação e
alcance, como ocorre ainda hoje. 67
Mas quando passamos a falar de um Estado laico? Este Estado laico pode ter a ver
ou não com separação, pode ter a ver ou não com tolerância religiosa. O próprio caso
67
A laicidade estadunidense, por sua vez, é expressão da secularização da vida social, entendida como
emancipação e diferenciação estrutural das esferas seculares (política, economia, ciência) diante da esfera
religiosa. Isso nada tem a ver com a privatização da religião e sua falta de significado para a vida pública.
Não há aqui um laicismo secularista e adversário da religião, como na França.
132
francês mostra que pode haver um regime de cultos públicos reconhecidos sem haver
laicidade neste momento. Então, qual é o ponto de ruptura? Voltemos a Blancarte:
68
Na América Latina, a laicidade surgiu não como resultado do pluralismo religioso, mas produto de uma
determinação política para construir formas de legitimação diversas. Isto explica porque a laicidade se
converte em luta política e anticlericalismo, mas originalmente não é bem assim, ou pode ser diferente no
percurso de um determinado processo histórico.
69
Existe uma forma de sacralidade da laicidade; daí se fala que é necessário laicizar a laicidade. Por quê? O
Estado laico vem carregando muitas formas de sacralidade e é necessário que se laicize sua própria
sacralidade.
133
70
São os casos do recente Acordo Brasil-Vaticano em 2008, a santificação popular de Hugo Chaves após a
sua morte na Venezuela e a utilização de rituais sagrados por Evo Morales na Bolívia, só para ficar em alguns
exemplos. “As instituições políticas que, em seu conjunto, configuram o Estado, voltam-se cada vez mais à
religião como elemento de legitimação e integração social, apesar de ser evidente que esta não pode ser mais
um fator de unidade nacional, nem muito menos a expressão de soberania. Curiosamente, a ameaça à
laicidade não vem das igrejas, mas do próprio Estado que recorre, crescentemente nos últimos anos, às
organizações religiosas, em busca de legitimidade, sem ter clareza do que está provocando”. (BLANCARTE,
2000, p.13-14).
134
Mas esta forma francesa não é a única para se entender a laicidade, nem sequer
reflete exatamente o que foi a laicidade na história da França. Aqui realmente os processos
se confundem. A laicidade tem a ver não somente com formas jurídicas e políticas de
organizar as relações entre religião e sociedade, ou entre Igrejas e Estado, mas, sobretudo,
com formas de pensar e viver a liberdade e a fé, o pluralismo e a convivência. Poulat, por
exemplo, afirma que o coração da nossa laicidade não está no Estado, mas sim na
consciência. Para ele a laicidade é inseparável da liberdade de consciência (POULAT,
2004).
Para Portier (2008) fica também muito claro que o modelo de laicidade francês
representa uma exceção até mesmo em relação ao resto Europa. No que se refere aos regimes
de separação Igreja/Estado, diferentemente do que ocorreu em certos países europeus em que a
igreja persiste como instituição regulada pelos Estados ou em regime de cooperação com o
Estado72, a separação na França ocorreu como uma separação rígida que não admite o
reconhecimento do fato religioso. Conforme essa concepção de laicidade, o regime se
caracteriza pela exterioridade, contrária ao confessionalismo. O Estado não tem controle sobre
a religião e rejeita a diferença no tratamento das religiões. As religiões passam a ter total
autonomia de funcionamento.
71
É bastante sintomático o título do último livro de Jean Baubérot: Las 7 laicités françaises, publicado em
2015.
72
Alemanha, Áustria, Bélgica e Holanda adotaram um regime de separação identificado como de separação
flexível em que a distinção Estado/religião não exclui um sistema de cooperação entre instituições religiosas e
o Estado. O Estado se mostra “benevolente para com as instituições eclesiásticas, às quais concede às vezes,
com base em um dispositivo de tipo concordatário ou ao menos em acordos contratuais – por exemplo, na
Itália, na Áustria e na Alemanha –, uma dimensão propriamente pública” (PORTIER, 2011a, p.15-16).
135
fato religioso, permite a todos os cidadãos que expressem suas crenças e convicções
religiosas (pluralismo) e exige das confissões que exerçam direitos e deveres. Na
Comunidade Europeia verifica-se uma tendência à desconfessionalização.
Já ouvimos falar que a laicidade está em crise. Por tudo o que foi dito aqui sobre a
laicidade, com certeza trata-se de uma afirmação pelo menos inadequada, mas que está
presente nos meios acadêmicos e na mídia. Os grandes deslocamentos no campo religioso
nos últimos trinta ou quarenta anos afetaram as relações entre política e religião no
Ocidente e, por conseguinte, impactaram também o Estado laico. Nas sociedades que
seguem mais de perto o paradigma francês, estes impactos são mais visíveis. Aqueles
deslocamentos refletem, antes de tudo, uma crise profunda da sociedade ocidental e,
porque não dizer, da sua própria civilização, e não apenas uma crise das relações dos
grupos religiosos com o Estado.
Na própria França a questão religiosa sempre foi uma questão séria da agenda
política da sociedade. A República organizou historicamente a coexistência das diferentes
confissões religiosas segundo o modelo católico tradicional. Confrontado com a
desinstitucionalização e enfraquecimento das grandes religiões, com a desprivatização da
religião mais recente, com o surgimento de novas crenças, com a proliferação das seitas e
dos comunitarismos, o Estado perde seus interlocutores institucionais habituais. A questão
do véu das estudantes muçulmanas nas escolas francesas na década de 90 acendeu a luz
vermelha, recolocando a discussão sobre a laicidade novamente na ordem do dia. Os
atentados de janeiro de 2015, que provocaram uma coesão social jamais vista em torno da
defesa da liberdade de expressão, descredibilizando outras questões, econômicas, sociais e
políticas de fundo, e mesmo os mais recentes, de novembro do mesmo ano, mostram uma
face cruenta desta agenda na França. Diante disso o binômio educação/laicidade voltou
com força aos programas oficiais de educação moral e cívica nas escolas públicas do país,
a partir do momento que muitos estudantes se recusaram a guardar um minuto de silêncio
em memória das vítimas do Charlie Hebdo. Mais uma vez, a escola pública está no centro
dos debates, como sempre esteve nesse país desde o final do século XIX.
Mas, afinal, que crise é esta, se assim podemos dizer? Onde estão suas raízes
sociológicas?
Este pode ser considerado um documento balizador para uma compreensão mais
profunda da crise da laicidade republicana. Vinte personalidades renomadas fizeram parte
desta comissão, dentre as quais Alain Touraine, Jean Baubérot, Régis Debray e Gilles
Kepel, que promoveram, em seis meses de trabalho, muitas conferências, audiências e
debates. À comissão foi solicitado um conjunto de sugestões que servissem para orientar o
Poder Executivo no tratamento das relações entre o Estado e as religiões.
73
A lei 228, de 15 de março de 2004, que passou avigorar a partir de 01 de setembro do mesmo ano, impôs a
laicidade absoluta nas escolas e liceus públicos do país, ao determinar que ficava proibido o porte ostensivo
de sinais pelos alunos e alunas que mostrassem uma certa imposição de aderência religiosa sobre os demais.
O espaço público, no caso as escolas públicas, não poderia estar vinculado a quaisquer símbolos religiosos
oriundos daqueles que o ocupam. Ao analisar a lei francesa, a Corte Europeia de Direitos Humanos se
manifestou favorável à norma em 2008, argumentando que a limitação no exercício da liberdade religiosa
pode ser necessária, às vezes, para uma sociedade democrática. Entretanto, ao jugar os crucifixos nas escolas
italianas, a mesma Corte se manifestou favorável a sua manutenção e exibição. Assim, conclui-se, que para
Corte o traje islâmico não se compreende como identidade cultural, mas a cruz cristã sim.
74
O comunitarismo é visto no relatório como uma ameaça e duas definições resumem o ideal a ser trilhado
frente o problema: a coexistência e a convivência em um território de indivíduos que não compartilham as
mesmas convicções versus a justaposição de um mosaico de comunidades fechadas sobre elas mesmas e
mutuamente exclusivistas. Mesmo explicitando uma realidade francesa, podemos considera-lo também como
um dos fatores explicativos de ações de intolerância e discriminação entre grupos religiosos e espirituais no
Brasil.
138
75
Em relação, por exemplo, ao uso de signos religiosos pelos estudantes nas escolas, este relatório referendou
uma decisão da Assembleia Nacional que proibiu o uso daqueles signos de forma ostensiva, o que tem
provocado reações e críticas principalmente de grupos islâmicos.
139
Esse relatório nos impele a aceitar a crescente afirmação do pluralismo social que,
por sua vez, torna cada vez mais aguda a complexidade do real, nos obrigando a esclarecer
e mesmo rever boa parte das nossas teorias, entre elas as da secularização das nossas
sociedades e, portanto, os discursos sobre o significado e o alcance da laicidade
republicana. Esta está historicamente vinculada a um conceito de autonomia
excessivamente individualista (à identidade tudo, à alteridade nada) e a um Estado-nação
excessivamente centralista e uniformizador, hoje não mais aceitável.
Para adiante, importa muito mais cultivar a identidade como expressão de uma
diferença e de uma forma particular de ser valiosa por si mesma e de se relacionar que não
se pode compartilhar com os demais a não ser somente com aqueles com quem eu quero,
porque isso é precisamente o que dá identidade. A esfera pública tende a ser mais um
biombo amplificador das identidades originais e irredutíveis e perde a sua capacidade
socializadora e emancipadora dos indivíduos. O sagrado social tem patente civil e privada,
enquanto o Estado e a esfera pública se reduzem a um papel instrumental, importante
porquanto seja imprescindível para garantir a coexistência num mundo cada vez mais
plural e diverso.
desafio que deve ser enfrentado não com polêmica, mas com diálogo: deve perseguir uma
maioridade responsável para cada ser humano diante dos poderes e ideologias liberticidas
e, por outro, garantir a liberdade e a igualdade num clima de verdadeiro pluralismo para
que cada ser humano possa dar sentido à sua vida como melhor lhe pareça.
Ninguém pode agora pretender impor o sentido de sua vida a ninguém, nem o
Estado com o seu laicismo de combate (o indivíduo como o santo laico da cidadania
roussoniana), nem a Igreja com sua ortodoxia salvadora (em busca da sociedade perfeita)
estão legitimados para intervir nos processos de socialização dos indivíduos. “A laicidade
pública não é tudo a Cesar e nada a Deus, mas tudo à consciência e a liberdade dos
homens chamados a viver juntos, apesar de tudo o que os separa, os opõe e os divide”
(POULAT, 2003, p.16).
Se a laicidade é, como temos falado, por um lado, uma expressão singular dos
processos de secularização das sociedades modernas que se traduzem em uma forma
concreta de entender e organizar as relações entre a sociedade e a religião, ou entre o
Estado e as Igrejas, e, por outro, como acabamos de ver, é um espaço de liberdade pública,
aberta a todos e a cada um, quaisquer que sejam suas convicções e crenças que nos obriga
a passar do paradigma dos poderes ao paradigma das liberdades públicas, o desafio
principal é o sentido último da secularização de um lado, e, de outro, os limites do
exercício das liberdades públicas.
liberdades religiosas e das liberdades públicas para que não se instrumentalizem de forma
perversa a ponto de serem penalizadas por critérios democráticos.
Pablo Silveira (2006, p. 48-49) acredita que a questão da laicidade gira em torno
deste problema. Qualquer indivíduo tem o direito de ter as práticas religiosas que considere
as mais adequadas ou não ter nenhuma, como também o direito de recrutar outras pessoas
para as suas crenças. Estes direitos religiosos individuais se equiparam ao conjunto de
direitos reconhecidos para todos. O indivíduo, em nome destes seus direitos, poderá violar
direitos de outro indivíduo e será penalizado por isso. Mas o que é uma religião e uma
crença religiosa? A resposta disso em muitos países pode ser difícil. Qual a distinção entre
seita e religião? Isso é extremamente polêmico. Muitas denúncias de discriminação têm a
ver com as respostas a estas perguntas. Colocar o centro da liberdade religiosa nos
indivíduos nos poupa de vários problemas acima, nos permite respeitar uma esfera de
liberdades que é extremamente importante, nos impede de ter um Estado que avassale estas
liberdades e não compromete o Estado com nenhuma religião estabelecida.
76
Esta razão totalitária que Santos (2002) chama de proléptica, pois não se aplica a pensar o futuro porque
julga que sabe tudo sobre ele e o concebe como uma superação linear, automática e infinita do presente,
formulou a planificação da história que dominou os debates sobre idealismo e materialismo dialéticos, sobre
historicismo e pragmatismo. A partir dos anos 70 e 80, ela começa a ser contestada, sobretudo, com as teorias
143
Esse duplo movimento indica que as crenças não são simplesmente relegadas à
esfera privada dos indivíduos e que a pluralidade abarca ainda os direitos dos não-crentes.
Isto se deve ao que Portier (2011b, p.36) denominou desconfessionalização e
reassociação. A desconfessionalização remete-nos à discussão sobre a desregulação da
crença e o processo de desinstitucionalização das religiões operado na pós-modernidade
com as religiões perdendo a força institucional/normativa sobre os fieis. As famílias
confessionais passam por profundo abalo que resulta na perda de poder das instituições e
na consequente recomposição sob novas formas de religiosidade (Hervieu-Lèger, 1996,
p.15-16). Já a reassociação aponta o esforço desses fieis em formular novas formas de
vivência da religião por meio do agrupamento e da reunião em multidões que partilham fé
da complexidade e as teorias do caos. A razão proléptica que se assentava na ideia linear do progresso, viu-
se, então, confrontada, com as ideias de entropia e catástrofe, embora deste confronto não tenha resultado até
agora nenhuma alternativa.
144
Este novo papel público do fato religioso admite a inserção da religião no espaço
público e sua contribuição à coesão social, engajando-se na ideia de coletivo integrado ao
projeto comum do Estado, sem negar os enraizamentos regionais, culturais, étnicos.
“Articula assim o uno ao múltiplo, a igualdade com a diferença” (RODRIGUES, 2013,
p.159).
77
Este pensamento de Habermas pode ser encontrado em O futuro da natureza humana: a caminho de uma
eugenia liberal?, publicado em 2004, e Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos, publicado em
2007.
145
dos estilos de vida pela integração dos cidadãos nos marcos de uma cultura constitucional
compartilhada (HABERMAS, 2007).
Nessa linha de raciocínio, que busca refletir sobre a relação entre religião e Estado
secular/laico e o lugar das religiões na esfera pública das sociedades modernas,
compreende-se a afirmação de Habermas de que os secularizados não devem negar
78
potencial de verdade a visões de mundo religiosas. Trata-se, portanto, de refletir que
assim como o modelo de laicidade tem passado por mudanças devidas às transformações
socioculturais, frente a esse quadro também as religiões se recompõem e esses processos
79
são mútuos e interdependentes. Ao atualizarmos, então, o debate sobre a laicidade para
os nossos dias, é necessário repensar as grandes transformações sociais e culturais,
particularmente as religiosas dos últimos 30 anos em todo o mundo, o que tem levado a
mudanças na construção de conceitos como público, estatal e privado.
A diversidade, outrora combatida, hoje assume um valor que vale a pena desejar,
um valor de construção coletiva da convivência, mas sem abandonar os sinais de
identidade e as formas de viver que as pessoas querem para as suas vidas. Combinam bem
agora a promoção da liberdade e a autonomia do ser humano. Cabe às ciências sociais
78
Folha de São Paulo, São Paulo, domingo, 24 de abril de 2005.
79
Também os paradigmas de esfera pública e privada necessitam ser redimensionados para se compreender
o lugar que a religião ocupa, transitando muitas vezes entre as fronteiras borradas pela pós-modernidade.
146
Ela não está falando do “retorno do religioso” ou da “revanche divina”, mas são
fenômenos que, pelo contrário, trazem à luz o caráter paradoxal da modernidade do ponto
de vista da crença. De um lado, a perda do controle das crenças e práticas pelas instituições
religiosas; por outro, a própria modernidade secularizada, geradora de utopia e opacidade,
cria condições favoráveis à expansão da crença. Com uma preocupação semelhante à de
Pierucci, ela afirma que compete a uma sociologia da modernidade religiosa compreender
como a modernidade continua a solapar a credibilidade de todos os sistemas religiosos e o
movimento pelo qual, ao mesmo tempo, ela faz surgir novas formas de crença. 80
80
Exemplo disso é o crescimento dos sem religião, dos “evangélicos não praticantes” e/ou dos evangélicos
sem pertença” no Brasil, de acordo com os dados do censo de 2010.
147
Assim, para fazer frente a esta profunda crise, Velasco (2006) defende que as
Igrejas devem assumir como horizonte hermenêutico de seu exercício dos direitos públicos
o dos direitos fundamentais, tal como os interpreta a lógica da democracia, em consonância
com o conceito de liberdade republicana, assumida pelo Estado na perspectiva da
liberdade como não dominação. Para ele:
Roberto Cipriani (2006) sintetiza bem toda esta discussão afirmando que:
No campo da política, esta questão tem maior visibilidade. Não adianta muito
dizer da necessidade de desmontar a secular tentação do uso da religião como instrumento
de divisão ideológica e política nem reivindicar novas formas de multiculturalismo que
coloquem o poder a serviço dos direitos humanos ou subtraiam os direitos humanos do
arbítrio das maiorias. De qualquer forma, isso ainda compromete a política com a religião.
E o modelo tradicional de laicidade à francesa pouco tem a dizer para estas novas
realidades. E é novamente Debray, ao defender o ensino do fenômeno religioso nas escolas
públicas da França, que afirma:
Comum em muitos países, essa mútua legitimação da ação social do Estado e dos
grupos religiosos constituir um elemento novo no contexto francês e na de vários outros
países também. Não é um processo pacífico, principalmente quando se colocam questões
relacionadas aos direitos reprodutivos e à homossexualidade. Porém não se trata mais de
uma relação apenas entre a Igreja Católica e o Estado. São movimentos de tensão que se
observam no seio da própria sociedade. No caso brasileiro, não vislumbramos, em curto
149
em termos da gramática de conduta que prescreve liberdade e igualdade para todos. Para
Michael Walzer, “a separação entre igrejas e Estado, fundamental para assegurar o
caráter político do pluralismo, não requer que a religião seja relegada à esfera privada e
que os símbolos religiosos devam ser excluídos da esfera pública” (WALZER apud
BURITY, 2001, p. 36-37). O que está realmente em questão na separação entre igrejas e
Estado é a separação entre religião e poder estatal. Mouffe ainda arremata, "na medida em
que atuem nos limites constitucionais, não há nenhuma razão por que os grupos religiosos
não devam poder intervir na arena política para debaterem a favor de ou contra certas
causas" (MOUFFE, apud BURITY, 2001, p, 37). E ainda: "certamente, em países onde a
religião é central na constituição das identidades pessoais, seria anti-democrático proibir
certas questões que são importantes para os crentes de entrarem na agenda democrática"
(MOUFFE, apud BURITY, 2001, p. 38). Naturalmente, a formulação de Mouffe não
resolve todos os problemas. A visibilidade pública da questão da identidade - no nosso
caso, das identidades religiosas - num contexto pluralista traz consigo uma série de
dificuldades a equacionar. Embora possamos concordar que, ao final, a solução
será política, pressuporá o conflito e manterá a divisão (isto é, a não-totalização das
soluções alcançadas em relação ao conjunto das demandas ou das formas de identificação
existentes na sociedade), os desafios concretos podem representar enormes obstáculos para
o avanço do pluralismo.
Hoje, para a maioria das pessoas, a palavra laicidade não tem mais aquele sentido
polêmico do passado. Para Delumeau:
“A laicidade não pode ser vista como uma ‘boa’ doutrina se opondo a
uma doutrina má: ela carrega em si, se levada a sério, a destruição do
doutrinarismo. Eu não quero dizer com isso que ele implica na destruição
de crenças a partir de um ceticismo generalizado. A laicidade, do meu
ponto de vista, foi baseada no princípio de que as várias ideias expressas
nele, ao nível da escola, nunca deveriam ter um caráter doutrinário. Foi
uma ideia complementar; pelo menos em termos de educação, a partir da
ideia da república e democracia que significa regra do jogo pluralista.”
(MORIN, 1985).
político e pode ser encontrada não apenas nos meios acadêmicos, mas em vários outros
segmentos da sociedade, em alguns partidos de esquerda ou em tendências deles,
sindicatos e em alguns movimentos sociais, dentre os quais principalmente os grupos
feministas, os de reivindicação dos direitos dos homossexuais e os de defesa e promoção
da cultura africana ou afro-brasileira. Podemos observar que muita coisa que se escreve e
se publica no Brasil neste sentido tem um caráter mais reativo do que propositivo, diante
do avanço de tendências religiosas fundamentalistas e outros movimentos mais
conservadoras na esfera pública. Boa parte desta produção tem sido feita mais no fragor
dos embates sociais e políticos da contemporaneidade nacional, deixando de se referenciar
em autores consagrados, principalmente europeus, que tem se debruçado sobre esta
questão há décadas. Giumbelli, falando da ‘liberdade religiosa’ e da ‘liberdade de culto’
em discussões jurídicas mais específicas no Brasil, faz as seguintes considerações:
81
Mas Giumbelli (2002) chama a atenção para a década de 1970 que foi um importante período de produção
acadêmica sobre as relações entre política e religião no Brasil. São dessa época uma série de trabalhos, vários
escritos por estrangeiros, cujas análises nos legaram não só abordagens, mas também temas concentrados na
temática da política na da Igreja Católica e seu papel na construção de uma sociedade democrática.
Ressaltamos a relação desta produção com o desenvolvimento da Teologia da Libertação no contexto da
Ditadura Militar.
154
ensinados somente nas comunidades morais, ficando alheia às escolas públicas” (DINIZ,
2010, p.19).
Esta relação dualista e excludente entre o público e o privado tem sido utilizada
com frequência por aqueles que são contrários a qualquer tipo de ensino religioso na escola
pública. Para eles, o destino da religião seria a esfera doméstica/privada, como se as
fronteiras entre uma esfera e outra fossem inflexíveis82. Neste sentido, é impensável, por
exemplo, imaginar a esfera privada fora da relação com a esfera pública, ou, melhor ainda,
da esfera pública fora da relação com a esfera estatal. Nenhuma destas partes poderia ter
vida própria, fora da sua relação dualista e dicotômica. Esta concepção é criticada por
Santos (2010) que a considera bem própria da racionalidade ocidental que acaba
promovendo uma compreensão do mundo parcial e seletiva. Para ele, há necessidade de
pensar os termos das dicotomias fora das articulações e relações de poder que os unem
como primeiro passo para se os libertar dessas relações, e para revelar outras relações
alternativas que têm estado ofuscadas pelas dicotomias hegemônicas.
Santos (2014) ressalta que a distinção entre o espaço público e o espaço privado e
o confinamento da religião a este último é hoje um elemento central do imaginário político
de raiz ocidental, tanto no plano da regulação social como da emancipação social. Mas
82
Ver Rodrigues, 2012, p.165-169.
83
Segundo as teologias progressistas cristãs, a separação do espaço público e privado funcionou sempre
como uma forma de domesticar ou neutralizar o potencial emancipador da religião, um processo que contou
com a cumplicidade e mesmo com a participação ativa das teologias conservadoras. Ver Santos, 2014, p. 47-
54.
155
tudo aponta hoje para uma configuração do religioso que opera uma lógica de
deslocamento de fronteiras e ressignificação das práticas (BURITY, 2001). A
desconstrução da fronteira público/privado é o resultado de processos que em muitos casos
não estavam previstos e nem mesmo tinham como objetivo alcançá-la. Processos onde a
resistência, a insatisfação ou a frustração/desilusão face às formas concretas assumidas
pela modernização encontraram no espaço e na linguagem da religião uma de suas
superfícies de inscrição, embora aqui seja preciso especificar contextualmente qual
(definição ou forma institucional de) religião. Na opinião de Burity, “não há nem
apagamento da fronteira nem uma mera inversão da posição hegemônica. Há
um deslocamento da mesma” (BURITY, 2001, p.32).
No plano teórico, a partir dos anos 70, foi possível separar a secularização de suas
origens ideológicas na crítica da religião pelo Iluminismo, diferenciando-a como uma
teoria autônoma em relação ás esferas religiosa e privada, e separando-a da linha de
raciocínio que levava ao fim da religião. Nos anos 80, percebeu-se que a perda de suas
funções sociais não supunha necessariamente a sua privatização (COSTA, 2006).
Montero (2006, p. 49) lembra Habermas, quando este aponta que, a partir do
século XVIII, emerge uma outra distinção entre as esferas pública e privada da sociedade,
representada pela esfera das pessoas privadas reunidas em um público, a esfera pública
burguesa ou sociedade civil, que tem como consequência mais expressiva a interiorização
da família no espaço privado. Ainda que, segundo Habermas, a sociedade de massas tenha
fragilizado os fundamentos da esfera pública, turvando as distinções entre o público e o
156
No Brasil, o processo que levou à separação entre Estado e Igreja alocou a religião
na sociedade civil, e não na esfera privada (MONTERO, 2006). É possível arrolar os mais
diversos exemplos históricos para demonstrar que a emergência de estados laicos não tem
como decorrência necessária e mecânica a privatização da religião na esfera doméstica.
Não é fácil resolver esta ideia moderna de privatização religiosa e reconhecer, ao mesmo
tempo, as dimensões comunitárias e sociais que todo fenômeno religioso evidentemente
comporta.
Muitos autores chamam ainda a nossa atenção para o caso particular dos países da
América Latina, cujas trajetórias históricas configurariam sociedade e culturas detentoras
de uma outra lógica, de um outro tipo de modernidade, em que a religião e as
religiosidades continuariam a retirar a sua energia na sociedade, ao lado de outras
instâncias mobilizadoras e instituintes do social (PARKER, 1996; CORTEN, 2001;
SANCHIS, 2003), contribuindo para a coesão social e interagindo com o político.
Aprofundando a compreensão que se pode ter das expressões ‘todos são iguais’,
‘direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança, à propriedade’ presentes em nossa
Constituição, percebe-se de pronto que são revestidas de princípios filosóficos ligados ao
processo histórico que alicerça a doutrina liberal. Essas influências foram determinantes
para o processo de formação do Estado brasileiro. Mas entre a laïcité conquistada pela
França iluminista em 1789 e a construção da Constituição Brasileira em 1988, passaram-se
pelo menos dois séculos, tempo em que a laicidade à francesa conheceu importantes
ressignificações, como já vimos, e a formação secular do Estado brasileiro procedeu
segundo peculiaridades específicas de nossa história, bem diferentes do modelo conflitivo
francês, pelo menos neste aspecto específico (RODRIGUES, 2013).
separação poderia ser considerada flexível porque reconhece o fato religioso84. O esforço
dos laicistas em combater o fato religioso, nesse sentido, inscreve-se no antigo
comportamento de combate ao interesse católico de hegemonia (MIRANDA, 2011), seja
da moral privada ou da educação pública. Rodrigues (2013) afirma que se trata de uma
interpretação positivista da Constituição de 1988 aquele sentido de laicidade/laico em sua
acepção de regime de separação rígida, desprezando o passado histórico e os
deslocamentos do religioso na sociedade brasileira. Para ela:
84
O reconhecimento do fato religioso pelo Estado Brasileiro pode ser ilustrado em ações sociais
desenvolvidas por denominações religiosas junto com o Estado e dos crucifixos e santos expostos nas
repartições públicas, mesmo que possamos discutir o grau deste reconhecimento.
159
85
Estes documentos utilizados por Giumbelli são: a Lei 3459/00, promulgado pelo então governador Antony
Garotinho que adotou o ensino religioso confessional no Estado do Rio de Janeiro; o segundo foi o projeto de
lei apresentado pelo deputado carioca Carlos Minc, aprovado pela Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro
em 2003, mas que acabou vetado pela governadora Rosinha Garotinho; o terceiro foi um documento
produzido por uma equipe de professores do Departamento de Pós-graduação em História da Universidade
Estadual de Campinas - UNICAMP, solicitado por uma equipe especial da Secretaria de Estado da Educação
de São Paulo criada em 1995 (governo Mário Covas) para regulamentar o Ensino Religioso nas escolas
públicas paulistas; e o último documento, de 2004, é de autoria de Roseli Fischmann que, como representante
da Universidade de São Paulo - USP, havia participado dessa comissão de 1995.
160
acredita que as relações entre Estado, sociedade e religião oferecem um campo precioso
para esta análise. Talvez seja a França o país que viva mais fortemente o paradoxo da
separação contida na noção da laicidade: separar significa distinguir, e distinguir significa
produzir os termos produzidos na relação. Assim, para ele não há nada de casual que a
mesma lei que consolida a separação entre Estado e igrejas na França tenha se dedicado à
criação da associação do culto, uma figura jurídica nova para abrigar as instituições
especificamente religiosas. No Brasil, pelo contrário, houve a separação entre Estado e
Igreja, mas sem a contrapartida da definição desse espaço propriamente religioso. Até hoje,
em termos jurídicos e com exceção de algumas regras fiscais, não há característica ou
exigência que distinga as instituições religiosas de outras ‘associações sem fins lucrativos’.
Para Giumbelli:
mantem este quadro sujeito a contínuas avaliações. Nada está consumado e os dilemas são
e ainda serão muitos.
Além da laicidade do Estado, que tratamos no capítulo anterior, outra questão que
permanece como um entrave para o ensino do religioso na escola pública do Brasil é a
fragilidade da base epistemológica desta disciplina. Não há como negar que este problema
está diretamente relacionado à discussão da própria laicidade do Estado. Este trabalho não
tem a pretensão de elaborar essa base epistemológica para o ensino religioso, mas sim
argumentar no sentido da sua necessidade, se se quer adequá-lo com claras finalidades
pedagógicas.
língua que define seu espaço [...] oculta o processo propriamente político” (BOURDIEU,
2008, p.31) que leva o grupo de falantes a aceitarem tal língua como sendo a oficial. A
língua oficial é apenas tornada legítima em consonância com as condições
socioeconômicas que permitem tal legitimação – apenas em virtude de um mercado
linguístico.
“Não há poder sem saber, não existe verdade fora ou sem poder. Cada
sociedade tem seu regime de verdade, sua política geral de verdade; isto
é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros;
os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados
verdadeiros dos falsos, a maneira como se sancionou uns e outros; as
técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da
verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona
como verdadeiro”. (FOUCAULT, 2008, p.12).
O currículo escolar não deveria incluir nenhum saber que não fosse relevante para
a comunidade atendida e para sociedade em geral. Com isto todos estão de acordo. Neste
sentido, qualquer área de conhecimento deveria reunir um consenso mínimo da própria
sociedade para ser pertinente e justificar a sua presença no ambiente escolar. No caso do
ensino religioso, por exemplo, é imprescindível, que, antes mesmo de sua função
pedagógica, fique bem clara a importância dos saberes e da experiência religiosos para a
cultura, a sociedade e outras dimensões constitutivas do humano. E ainda mais se tratando
de um conhecimento cuja designação é geralmente carregada de sentido, inserida num
contexto político, social e cultural repleto de tensões, como pudemos perceber em
Bourdieu (2008) quando trata do sentido das palavras, e em Foucault (2008), quando fala
dos regimes de verdade.
164
Toda ciência é ensinada nas escolas com finalidades pedagógicas e não deixa de
ter crenças embutidas em seus programas. É impossível não tê-las. Por outro lado, existe
hoje um consenso de que a educação não pode ser uma reprodução de princípios e métodos
neutros, mas sim, de valores a serem assimilados pelos educandos e educandas. A
educação do intelecto e da vontade, na verdade, do ser humano em sua completude, funda-
se numa teleologia - que tipo de pessoa e de sociedade que se quer e que se deve construir.
E este é um objetivo de toda a educação. A composição curricular é o meio a ser percorrido
para tal finalidade.
Dentro deste quadro geral da educação para a formação do ser humano, o que está
em jogo é o lugar da escolarização do conhecimento do religioso. Qual é a utilidade deste
conhecimento para uma sociedade secularizada? Essa parece ser a questão, quase sempre
imperceptível, que está por trás de toda a discussão em torno da Constituição, da LDB e da
própria laicidade do Estado, como pudemos ver no Capítulo I.
Mariátegui não se opõe à razão e à ciência, mas insiste em que elas “não podem satisfazer
toda a necessidade de infinito que existe no homem.” (LOWY, 2005, p. 106). Este autor,
representativo de uma tradição marxista não ortodoxa, é insuspeito ao chamar a atenção
para o fenômeno religioso de uma sociedade que sofreu tremendamente o impacto do
colonialismo europeu, que tinha ainda justamente na religião um dos seus alicerces mais
poderosos, e por isso, a necessidade de vê-lo como objeto de pesquisa científica e dos
estudos acadêmicos. E nós acrescentaríamos: e por que não também nos bancos escolares?
Sua tese tem foco na cultura andina, mas a análise que faz, a partir da subalternidade
desses povos frente à expansão colonial-capitalista da cultura ocidental, é exemplar para
toda a humanidade e se coloca como referência muito importante para os estudos de
religião como um campo da ecologia dos saberes sugerido por Boaventura de Sousa
Santos, dentre outros.
Outro autor marxista muito próximo das conceituações do pensador peruano foi o
jovem Gramsci, que, em um artigo sobre Charles Péguy, escrito em 1916, rende
homenagem ao "sentimento místico religioso do socialismo [...] que tudo invade e nos leva
muito além das polêmicas ordinárias e miseráveis dos pequenos políticos vulgarmente
materialistas” (GRAMSCI, 1916, p. 33-34).86 A palavra ‘mística’, tão utilizada por
Mariátegui e também por Gramsci, é claramente de origem religiosa, apresentando aqui,
porém, um significado mais amplo, ao sinalizar a dimensão espiritual e ética do próprio
86
Provavelmente, Mariátegui não conhecia este trabalho do jovem Gramsci. As afinidades entre Mariátegui e
Gramsci podem ser esclarecidas pela leitura do capítulo "Gramsci e Mariátegui" no livro de Francis Guibal y
Alfonso Ibañez, Mariátegui Hoy, Lima, Tarea, 1987, p.133-145.
166
Já a religião, como instituição, encontra-se, por outro lado, no centro das atenções
do capítulo ‘O fator religioso’ dos 7 Ensaios de interpretação da realidade peruana
(1929). Nele, Mariátegui se afasta das reflexões místicas dos ensaios publicados nos anos
1924-1926, passando a estudar a religião do ponto de vista científico-social, isto é,
histórico, sociológico e antropológico. Mesmo assim, na introdução do capítulo, ele se
mostra preocupado em evitar toda conceituação reducionista dos fenômenos religiosos,
distanciando-se de uma crítica liberal ou iluminista sobre o assim chamado ‘obscurantismo
clerical’:
fenômeno que expressa uma forte marca identitária da cultura, Mariátegui dá uma
contribuição extraordinária aos estudos de religião.87
De qualquer forma, o tema é bastante controverso, tanto nas análises na área das
Ciências Sociais realizadas na comunidade internacional quanto latino-americana e
brasileira. No Brasil, por exemplo, os autores divergem quanto ao lugar ocupado pela
religião na sociedade e cultura nacionais (ORO & URETA, p. 2007). De um lado, diversos
autores defendem que a religião possui uma importância fundamental na cultura e na
conduta ética e quotidiana da sociedade, apesar do avanço da modernidade. Nesta linha,
87
Esta contribuição de Marátegui e do jovem Gramsci pode ser recepcionada até mesmo para o nosso debate
sobre o ensino do religioso. Estes autores utilizam a dimensão religiosa e a fé a partir de seu traço teleológico
de compromisso com uma causa emancipadora e como uma disposição heróica que deposita a vida em favor
de alguma coisa. A carga semântica tende ao compromisso ético de uma conduta dotada de um espírito
inclinado para algo, inclusive a religião. Um pouco na direção de um ensino do religioso preferencialmente
referido não mais ao saber teológico, mas sim ao saber antropológico e às expressões culturais portadores de
religiosidade. E aqui já um pouco distante do lastro semântico vinculado aos textos do FONAPER, logo após
a aprovação da LDB em 1996/1997, antes de o ensino do religioso ser defendido abertamente como área de
conhecimento.
168
Gilberto Velho afirma que “o domínio do ‘sobrenatural’ aparece como fundamental para
compreender o sistema de representações da sociedade brasileira ou do sistema cultural
propriamente dito” (VELHO, 1994, p.31). Emerson Giumbelli defende a opinião de que o
Brasil seria um país pouco aplicado [em relação à laicidade francesa] “[...] uma vez que
tendo abraçado o mesmo modelo [adotado pela França] jamais deixara de ser um ‘país
religioso’” (GIUMBELLI, 2002, p.54). Joanildo Burity (2000) alerta que nos últimos anos
ocorreu o aprofundamento da experiência religiosa como algo pessoal, individual, íntimo, e
simultaneamente uma desprivatização ou publicização do religioso como força social e
política. José Jorge de Carvalho destaca que se assiste hoje no Brasil “uma luta para
ampliar a dimensão religiosa do espaço público e não por laicizá-lo”. (CARVALHO, 1999,
p.6).
Mas diversos outros autores sustentam, como já vimos no Capítulo II, não
somente para o caso brasileiro, o persistente declínio da religião, como faz Pierucci
(1997a): “a secularização é irrefreável e irreversível” (PIERUCCI, 1997a, p.259), e “[...] o
pouco que sobrou para a religião na moderna civilização ocidental [foi para] a esfera
privada, íntima, e olhe lá" (PIERUCCI, 1997b, p. 103). Nesta mesma linha, temos a
posição de Prandi que afirma:
Ari Pedro Oro e Marcela Ureta (2007), chamam nossa atenção para uma posição
mais nuançada de outros autores. Assim, para Alexandre Brasil Fonseca, “somente nos
últimos anos do século XX temos uma situação mais próxima de efetiva liberdade
individual para as escolhas religiosas” (FONSECA, 2002, p.70). Eles citam ainda o próprio
Giumbelli para quem:
88
Em seu significado original, o símbolo consistiu em um pedaço de madeira cortada em dois bastões.
Quando duas tribos se cruzavam, elas verificavam se a ponta que tinham cada um deles podia ou não ser
encaixada à outra. Se ambas as extremidades dos bastões se encaixassem, isso significava que as duas tribos
tinham a mesma origem. Elas, então, se reconheciam como aliadas. Entretanto se verificassem que não era
esse o caso, então elas se estranhavam uma à outra e tudo poderia acontecer, inclusive a guerra.
170
que coloca a razão em primeiro lugar. Ela é, de repente, envolvida pelas estruturas
simbólicas que ela desconhece, que ela não pode decifrar. Ela não conhece a relação
dialética do conflito. E esta recusa de uma inteligência simbólica não é neutra: um
processo de objetivação exige enfrentar, como dizia Max Weber, os fatos desagradáveis, o
que implica uma autoanálise, um desafio.
Este debate que opõe a ciência ocidental à religião e que está intrinsecamente
ligado à discussão da laicidade, como já vimos, possui no Brasil contemporâneo alguns
desdobramentos interessantes. As duas vertentes acadêmicas que reconhecem a laicidade
do Estado brasileiro e não admitem o ensino religioso confessional na escola pública tem
dificuldades de diálogo e este é um dos fatores que tem aberto grande espaço para a
172
Ainda se pode perceber aquela posição de que o religioso não pode estudar a
religião pela exigência de uma neutralidade científica. Lembremos aqui de uma discussão
ainda comum nos meios acadêmicos em torno do estudo das religiões, mas que nós
podemos, de certa forma, levar também para os meios escolares. Trata-se da proposta de
alguns estudiosos da necessidade de certo “ateísmo metodológico” para se garantir a
neutralidade do estudo da religião do ponto de vista científico, afastando-se qualquer tipo
de contágio/contaminação religiosa, em paralelo com o argumento de que a religião deve
estar ausente da escola pública, pois, também pelas mesmas razões, a religião não caberia
num ambiente de estudo de disciplinas científicas.89 Em vez de neutralidade científica
preferimos distanciamento do objeto de estudo por parte do pesquisador ou do estudante
em relação a qualquer área do conhecimento. Não cabe aqui levantar uma discussão em
torno deste tema já bastante enfocado nos meios acadêmicos, considerando esta uma
questão já praticamente superada.
89
Um dos primeiros autores que defendem esta tese é o italiano Giulio Giorello com a sua obra Senza Dio
(Sem Deus). Uma crítica a esta posição pode ser encontrada em Sem Deus: a crítica ao ateísmo
metodológico, de Vittorio Possenti, publicada no jornal Avvenire, em 05/10/2010. Uma tradução feita por
Moisés Sbardelotto pode ser encontrada no sítio eletrônico do Instituto Humanitas Unisinos, acessível em
<http://www.ihu.unisinos.br/noticias/noticias-arquivadas/37103-sem-deus-a-critica-ao-ateismo-
metodologico > acessado em 10/10/2015.
173
“a laicidade de uma escola da Nação deve ser mais rica [...] que a
laicidade que vem do Estado. Porque a vida cultural de um povo não é
laica por abstenção, mas pela fermentação de correntes culturais diversas
e contrárias; não por incompetência, mas por expansão; esta laicidade de
vida e não de morte é a realidade mesma da consciência moderna que é
uma encruzilhada percorrida de influências e não um lugar deserto. Sendo
a laicidade do Estado negativa, por natureza, uma laicidade de exclusão, a
laicidade da escola deve ser inclusiva”. (RICOEUR, 1954, p.10).
Segundo o autor, a escola ocupa uma posição intermediária entre o Estado, como
serviço público, e a Nação que entende como a sociedade civil que a investe com uma das
funções mais importantes: a educação. E porque a escola participa também da sociedade
civil, há “uma obrigação de compor com a pluralidade das opiniões próprias das
sociedades modernas” (RICOEUR, 1995, p.196). Para cumprir esta obrigação, Ricoeur
distingue dois aspectos: um aspecto de informação e um aspecto de educação para o
debate. Eis como ele argumentava em 1995 o aspecto de informação:
fiel ao princípio de que a escola deveria ser aberta à diversidade da sociedade, não somente
no seu conteúdo de ensino, mas também na gestão da vida escolar. Nesta conferência de
1954, Ricoeur convidava os presentes a olharem mais além, para ver o que se fazia
principalmente em outros países da Europa e nos Estados Unidos (WILLAIME, 2014).
Frente a toda esta discussão sobre a laicidade da escola pública, vamos direto
agora ao tema que lhe deu origem: a religião. Observamos que, se a religião é uma das
falas ausentes (ou silenciadas) no discurso acadêmico, na escola também o é, sem nunca
ter sido. A religião não saiu em nenhum momento e não sairá da escola, porque ela nunca
esteve ausente e nunca estará completamente fora da história da fomação da sociedade e do
Estado brasileiro. É de reconhecimento geral que todos os envolvidos no processo docente
transmitam, conscientemente ou não, ideias, valores e princípios, inclusive de cunho
religioso ou anti-religioso, aos educandos e educandas, em todas as disciplinas. Afinal, se
a ciência não é neutra, a educação também não o é. E os regimes de verdade também se
manifestam, e se manifestam principalmente na esfera da educação.
Muitos admitem o estudo da religião dentro do sistema cultural como uma história
das religiões, como é a modalidade adotada pelo sistema estadual de ensino do Estado de
São Paulo, que nunca foi, de fato implementada. Mas perguntamos: por que não a
sociologia das religiões? A antropologia das religiões? A psicologia das religiões? Mas,
Mircea Eliade já alertava para a especificidade do fenômeno religioso, considerando o que
os sujeitos religiosos consideram como sagrado90, e que ultrapassa todas as abordagens
particulares:
90
Para a questão do sagrado tratado na(s) Ciência(s) da(s) Religião (ões), ver o interessante artigo de Frank
Usark publicado na Revista Estudos de Religião (REVER) da PUC/SP, n. 4, 2004, disponível no site dessa
revista.
177
Aquiles da modalidade de ensino religioso que deseja vê-lo como área de conhecimento no
Brasil. Não temos a pretensão de formular aqui esta base epistemológica, mas demonstrar a
sua necessidade se quer justificá-lo como área de conhecimento no contexto de uma
sociedade secularizada e de um Estado e de uma escola laicos.
coisa de verificável possa ser dita sobre o religioso? Não há dúvida de que hoje a discussão
deve ser levada definitivamente para uma nova fronteira, a fronteira do epistêmico:
Os estudos sobre o fenômeno religioso têm recebido atenção por parte de várias
disciplinas que se ocupam das expressões humanas. A presença da religião no espaço
acadêmico e nos círculos constituídos por pensadores que, há algumas décadas, vem
colocando o debate acerca da dimensão religiosa e reclamando o direito de reconhecimento
deste ao lugar de ciência, não se questiona mais. Dito de outra forma,
sua nomenclatura, que pretenda abordar, a partir de uma compreensão científica, a natureza
e a manifestação do fenômeno religioso. Figueira (2008) traça uma linha de argumentação,
que julgamos muito interessante, a partir do pensamento que Santiago Zabala expõe na
Introdução do livro O Futuro da Religião, solidariedade, caridade e ironia, na verdade um
diálogo entre Gianni Vattimo e Richard Rorty.
Para Figueira (2008), podemos então afirmar que é compreensível alguém dizer
que possui uma religião e que por ela orienta sua vida. É nela – na religião – que o crente
expressa suas mais profundas convicções de que vale a pena viver e que este viver tem um
sentido. Religião não se fixa apenas em uma ilusão – assumindo a ideia de ilusão no seu
sentido mais originário como Nietzsche a cunhou – mas ela produz sentido e praticidade na
vida e nas relações do seu fiel seguidor, apresentando-se então como uma fonte não apenas
de projeção, mas também de justificação do seu cotidiano e de suas ações.
É por aí que Zabala introduz o grande tema que nutre toda a conversa sobre
religião nos círculos de nossas sociedades cosmopolitas da atualidade: o problema acerca
da existência de Deus, do Sagrado, do Divino, seja qual for o título que lhe dê, e de como
este assume uma forte presença nas relações humanas. Para Figueira (2008), isto significa
assumir que a existência de Deus tem um peso na história da humanidade, pelo menos na
história da humanidade que compõe nossa gênese cultural do Ocidente. Até mesmo o
180
esforço da crítica religiosa, mesmo a mais radical como a nietzschiana, não foi capaz de
abolir o debate sobre Deus. O melhor a se fazer, então, é considerar a existência de Deus
com toda a sua influência histórica.
Assim, Figueira (2008) propõe uma disciplina curricular na regularidade das salas
de aula das escolas públicas com o objetivo de produzir um leque mais alargado de
testemunhos, ou como diz Rorty (1992), maior número de audiências, do que poderíamos
ter de outra forma e algum entendimento sobre a evolução e as questões históricas, boas ou
más, das várias formas de crenças religiosas existentes no mundo. Esta disciplina deveria
tomar como objeto de seu trabalho a experiência religiosa produzida pelos homens e
mulheres no intuito de interpretar o mundo. Deste modo, ele entende que:
civilizacional como a nossa ou o seu significado mais profundo para o ser humano que
vive esta crise.
A educação para a condição humana tem como principal objetivo situar o ser
humano na sua realidade, naquilo que o condiciona, conferindo-lhe sua humanidade:
Esta racionalidade não preenche e não satisfaz “toda a necessidade de infinito que
existe no homem”, como dizia Mariátegui (cf. LOWY, 2005). O ser humano não consegue
viver só de racionalidade, afirma Morin (1985). Ele carece também do imaginário, do
simbólico. Para ele, a racionalidade deve ser entendida como um pensamento que se quer
consistente e coerente, mas não pode se fechar sobre o mundo e digeri-lo. O pensamento
racional é um pensamento que deve dialogar com a realidade, e não engoli-la. Não
podemos colocar o mundo sob a lógica e sob a razão; a racionalidade deve se abrir em um
diálogo com aquilo que no mundo é irracionalizável. Para Morin (1985) o pensamento
complexo não nega as formas simplistas de pensamento, nega sua reificação. O legado
deve ser integrado, mas também ultrapassado.
91
Em contraste com a primazia relegada ao saber científico, o século XX viu surgir as duas viradas
epistemológicas que prepararam o caminho de superação do racionalismo moderno, de que o pensamento
complexo de Edgar Morin é um dos grandes expoentes. A primeira virada amadureceu nos anos 30, no
terreno da física e da matemática com a teoria da relatividade de Einstein, a física quântica e o princípio de
indeterminação de Heisenberg; a segunda configurou-se a partir da década de 50 no campo da filosofia, a
partir da publicação da obra de Edmund Husserl (1859-1938), A crise das ciências europeias.
184
crítica cada vez mais radical da irredutibilidade dos saberes do mundo vital às linguagens
científicas e à sua pretensa superioridade. É neste contexto que, a partir dos anos 70, a
Epistemologia tende a superar toda forma de dicotomia, típica da modernidade ocidental.
Um novo paradigma começa a se impor superando aquelas radicais distinções:
natureza/cultura, natural/artificial, mente/matéria, subjetivo/objetivo, animal/ser humano
(COSTELLA & OLIVEIRA, 2010). É neste contexto que Edgar Morin elabora as suas
intuições do pensamento complexo.
Para Morin (1985; 2011), o primeiro desafio é ir além das aparências, e enfrentar
o desafio da complexidade. A complexidade surge como um desafio, com a incerteza, a
confusão. O grande problema é tentar formular um pensamento capaz de trabalhar com a
incerteza. Como a palavra complexus - tecido em conjunto - a complexidade é um
emaranhado de coisas, um verdadeiro nó de que não podemos desatar o fio. A
complexidade vai na contramão da nossa concepção da inteligibilidade, especialmente
como faz o pensamento cartesiano. Por isso, para Morin o ser humano é homo complexus.
Mas o que é este homo complexus? O que é a complexidade humana?
92
Por positivismo lógico ou neopositivismo se entende a teoria formulada inicialmente pelo Círculo de Viena
a partir de 1922 atingindo seu auge nos anos 30 do século passado. O positivismo lógico defendia uma
filosofia antimetafísica, estreitamente ligada às ciências da natureza, à lógica e à matemática, exclusivamente
185
Morin propõe uma nova epistemologia para a aprendizagem escolar com base no
“aprender a aprender, aprender a fazer, aprender a conviver e aprender a ser” (MORIN,
2001). Esta proposta poderá superar o paradigma cartesiano e considerar a uno-diversidade
do ser humano e o desenvolvimento de uma consciência lúcida nesse sentido como pilares
fundamentais para uma educação para a condição humana (COSTA, 2005). O aprender a
aprender e o aprender a fazer se ajustam perfeitamente aos objetivos de uma educação
laica que busca a autonomia dos sujeitos. O aprender a ser e o aprender a conviver
buscam respetivamente, a valorização da identidade e da alteridade dos sujeitos, na
perspectiva de uma sociedade secular, mas que seja autêntica e solidária, como veremos no
próximo capítulo.
com base no empirismo. Ele exalta primazia do saber científico: “Sobre aquilo que não se pode falar, deve-se
calar”, afirmara o primeiro Wittgestein (1889-1951), membro do Círculo de Viena.
93
A visão holográfica do pensamento complexo abre nova perspectiva aos educadores. Não se trata somente
de inverter o foco do binário parte-todo, mas de acrescentar o movimento de religação ao conjunto
desmontado, à totalidade fragmentada “trata-se de atuar em duas direções opostas: contexto e unidade
simples (todo e parte), estabelecendo a interligação dinâmica” (SANTOS, 2008, p.73).
186
tempo, são dependentes de nossas mentes e de nossa cultura” (MORIN, 2002, p.53-54). A
proposta é a de que a separação, advinda desta autonomia, não seja uma oposição, e sim
que se conceba essa autonomia em um espaço comum, na perspectiva de um trabalho de
tradução94 proposto por Santos (2010). Este trabalho de tradução permite criar
inteligibilidade recíproca entre as experiências do mundo, inclusive as religiosas, tanto as
disponíveis como as possíveis, presentes e futuras. Ele procura desconstruir e reconstruir,
captar a relação hegemônica entre as experiências e o que nelas está para além desta
relação. “E neste duplo movimento, que as experiências sociais se oferecem a relações de
inteligibilidade recíproca que não redundem na canibalização de uma por outras”
(SANTOS, 2010, p. 124).
Morin (2000) afirma que os saberes sobre os mitos seculares e as religiões seriam
orientados para o destino mítico-religioso do ser humano. De fato, as religiões, mitos e
ideologias devem ser considerados em sua ascendência sobre as mentes humanas, e não
mais como ‘superestruturas’, constituindo uma nova disciplina. Ela teria um objetivo todo
especial, ou seja, sistematizar as contribuições feitas por outras disciplinas e desenvolver
temas e experiências que precisam de uma atenção especial.
Para Jung Mo Sung, não há uma formação para a cidadania em nossos dias sem a
compreensão adequada dos mitos que norteiam os valores do grupo social a que pertencem
alunos e alunas, e sem o respeito pelos mitos e valores de outros grupos étnicos ou
culturais. Nesse sentido, é importante destacar que o estudo dos mitos seculares e do
fenômeno religioso é, sem dúvida, uma parte importante daquilo que Morin chama de
noologia (SUNG, 1996, p. 155).
Morin (2000) afirma que essa alvissareira disciplina, a noologia está ainda por ser
construída ou, diríamos nós, os trabalhos dessa área, que já existem, continuam muitas
vezes imperceptíveis, precisam ser mais conhecidos e desenvolvidos, pois padecem
também de um silenciamento nada casual. Cabe bem aqui a aplicação da sociologia das
ausências, proposta por Santos (2010), ou seja, transformar as ausências em presenças a
94
O princípio da incompletude de todos os saberes, considerados científicos ou não, é a condição da
possibilidade de diálogo e debate epistemológicos entre diferentes formas de conhecimento. Para isso, o
trabalho de tradução é o procedimento que permite criar inteligibilidade recíproca entre as experiências e
saberes do mundo, tanto os disponíveis quanto os possíveis. A ideia e a sensação da carência e da
incompletude criam a motivação para o trabalho de tradução, que, para prosperar, tem de ser o cruzamento de
motivações convergentes originadas de diferentes culturas ou saberes.
187
partir dos fragmentos da experiência social não socializados pela totalidade metonímica.
Vale dizer, o objeto impossível do conhecimento da religião como possível na realidade das
nossas salas de aula.
95
Santos (2010) ainda denuncia a razão ocidental como indolente, pois se ela recusa a se exercer ao pensar
que nada pode fazer contra uma necessidade que está fora dela e nem sente mesmo necessidade de exercer-se
porque se considera totalmente livre e, por conseguinte, livre de demonstrar a sua própria liberdade. Ela
ainda se afirma como exaustiva, exclusiva e completa, mesmo sendo apenas uma das lógicas de racionalidade
existentes no mundo e seja apenas dominante nos estratos da compreensão do mundo constituídos ou
influenciados pela modernidade ocidental. Ao contrário desta racionalidade assim totalitária, Santos (2010)
propõe outra racionalidade que ele vai chamar de racionalidade ou razão cosmopolita.
96
Na visão de Santos (2010) esta totalidade estabelece uma espécie de ordem já que o todo tem absoluta
primazia sobre as partes que o compõem, existindo assim somente uma lógica que governa o todo e as partes.
Entre o todo e as partes existe uma homogeneidade, sendo a dicotomia a forma mais acabada de totalidade
combinando a simetria – horizontal que esconde a vertical – com a hierarquia entre as partes.
97
Por colonialidade do poder, Mignolo (2003) entende a invisibilidade das formas de conhecimento
anteriores ao projeto moderno, contando com o totalitarismo epistêmico teológico e científico. Neste mesmo
sentido, Quijano (2005) defende que esse empreendimento foi possível na América a partir da ideia de raça
que outorgou legitimidade às relações de dominação impostas pela conquista, ou seja, uma suposta estrutura
biológica que situava uns em situação natural de inferioridade em relação aos outros.
188
98
Célio Turino utiliza uma expressão semelhante na sua obra Ponto de Cultura: o Brasil de baixo para cima
(Garibaldi, 2009). Ele fala da necessidade de desesconder uma multidão de saberes espalhados pelo mundo
que fazem seu trabalho à margem das diversas hegemonias constituídas - econômicas, sociais, políticas,
culturais e religiosas. Para ele, por exemplo, existe um Brasil que quer ser “des-silenciado”, quer ser visto e
se fazer ouvir.
99
A ignorância é apenas uma forma de desqualificação quando o que está sendo aprendido é mais valioso do
que o que está sendo esquecido. A prudência, que subjaz à ecologia de saberes, se baseia em aprender novos,
diferentes e estranhos saberes sem necessariamente ter de se esquecer dos anteriores e os próprios.
189
da ação”, o que significa que o conhecimento é dinâmico, mas também sofre o fenômeno
do “reducionismo”, como ocorreu, por exemplo, com a pedagogia libertadora, que se
transformou em “método Paulo Freire”, omitindo sua fundamentação e sendo preenchida
com conceitos da pedagogia tradicional, que é o senso comum (SANTOS, 2008, p.71-83).
Por tudo isso é imperioso que o estudo da complexidade humana seja uma das
vocações da educação do século XXI, e para isso é necessária e urgente que esta religação
dos saberes seja colocada na ordem do dia das nossas sociedades (MORIN, 2001).
Segundo Morin, “o ensino pode tentar, eficientemente, promover a convergência das
ciências naturais, das ciências humanas, da cultura da humanidade e da Filosofia para a
condição humana” (MORIN, 2002, p.46).
Este novo horizonte epistemológico, que aceita e exige a pluralidade de saberes, abre
a possibilidade e a necessidade do estudo dos saberes e das experiências religiosas, a partir do
momento em que estas entraram fortemente na agenda do mundo globalizado, constituindo um
dos seus componentes sociológicos mais importantes da atualidade. Enquanto na modernidade,
a religião foi jogada na esfera privada das escolhas pessoais, como já vimos, “na pós-
modernidade, ela passou a ocupar um lugar cada vez mais presente na esfera pública,
exatamente ali onde as estruturas políticas da sociedade civil são convocadas a renegociar e
gerir os princípios e os valores da convivência humana” (COSTELLA & OLIVEIRA, 2010, p.
4).
Esta nova epistemologia proposta por Morin em que “só devemos crer em crenças
que comportem a dúvida no seu próprio princípio” (MORIN, 1986, p.277), coloca em
xeque não apenas aquele ensino religioso que se resume a ser defensor de verdades ou
certezas absolutas, mas também diversas outras posturas educacionais que ainda estão
presas ao raciocínio cartesiano como, por exemplo, quaisquer tipos de concepções
fundamentalistas sobre o mundo, a sociedade, o ser humano e a própria religião.
190
E é bom lembrar que hoje vai se imponto cada vez mais uma visão de religião que
não seja uma verdade absoluta. Diversos teólogos, como Paul Tillich, defendem ser parte
da essência da fé a possibilidade da dúvida; em caso oposto, qualquer crença se tornaria
demoníaca e idólatra. Juan Luis Segundo, um dos maiores teólogos latino-americanos do
século XX, vai nesta mesma direção quando discute a busca por um sentido da vida como
um ato de fé, uma verdadeira aposta: “A fé é entendida aqui em uma dimensão
antropológica [...], não é algo dogmático, não é sinônimo de certeza, muito pelo contrário,
ela constitui um componente indispensável – uma dimensão – de toda existência humana”
(SEGUNDO, 1985, p.31).
Mais uma vez queremos reafirmar aqui que não se pode separar o estudo do
fenômeno religioso do princípio da laicidade. Eles se implicam mútua e necessariamente.
Mesmo que ainda estejamos no limiar de um novo paradigma epistemológico, o
conhecimento noosférico integrado ao projeto de uma religação dos saberes exige uma visão
da laicidade nos novos termos colocados no Capítulo II, e esta, por sua vez, exige o
conhecimento cada vez mais aberto, amplo e cosmopolita na perspectiva defendida por Santos
(2010). É neste sentido que Debray chega a afirmar que:
“a laicidade não é uma escolha espiritual entre outras, mas é aquilo que
torna possível a coexistência [das pessoas], pois tudo aquilo que é comum
de direito a todos os homens deve prevalecer sobre tudo aquilo que os
separa de fato. A faculdade de aceder à globalidade da experiência
humana [...] implica [...] no estudo dos sistemas das crenças existentes.”
(DEBRAY, 2015, p.39).
191
Por outro lado, o ensino do religioso necessário aos novos parâmetros da educação
colocados por Morin para o século XXI e perfeitamente integrado a uma nova perspectiva
da laicidade já descrita aqui por vários autores, não pode descartar nem silenciar as esferas
particulares da experiência humana, mesmo não assumindo um caráter catequético e
proselitista. Costella e Oliveira, tecendo uma crítica bastante subliminar, no interessante
artigo a que estamos fazendo referência, depois de ressaltarem positivamente diversas
considerações de Regis Debray sobre o ensino do religioso nas escolas públicas da França,
chegam a afirmar que:
Em primeiro lugar, não podemos debitar somente a Debray esta noção de fato
religioso e nem imaginar que ela se deteve apenas no seu relatório. Uma enorme produção
intelectual tem se desenvolvido na França desde aquela época, avançando
consideravelmente na amplitude do que se deve considerar como fatos religiosos, pari
passu com novas abordagens e propostas sobre a laicidade pública, dentro e fora da
academia, como já foi visto no Capítulo II. O aprofundamento deste conceito tem
envolvido não somente a academia, mas cada vez mais também a esfera pública,
administrativa e educacional. A sua escolha não foi casual, nem obedeceu simplesmente a
uma preferência pelo método das ciências empíricas, como veremos a seguir. Ela abarca
192
também a experiência religiosa dos crentes e reconhece o seu âmbito próprio na condição
humana. Nas palavras de Borne e Willaime,
“Eu posso ver nesta crítica de cientificismo [do ensino dos fatos
religiosos] um desejo de colocar a religião fora da investigação científica.
[...] Se dissermos que a religião vai além da ciência, isso é válido para
todas as realidades humanas. A sexualidade, por exemplo, vai além da
investigação científica, bom, mas a escola não pode ensinar o amor como
um sentimento... Ela será necessária para ensinar Anatomia, o que
podemos saber sobre a sexualidade, contracepção, etc. Existe uma
distância entre a formação científica e, depois dela, aquilo que todo ser
humano vive e sente, os sentimentos, as emoções, etc. Então, por que
insistir nesta distância para a religião? O ensino [do religioso] não se
destina a substituir a experiência pessoal. Destina-se a dar conhecimento.
Bom, mas ele não pode substituir a experiência religiosa que é pessoal.
Na verdade, houve um tempo em que a ciência realmente talvez fosse
extremamente racionalista. Mas hoje, por exemplo, precisamente os
avanços da antropologia, a abordagem antropológica (do religioso) não é
uma abordagem tão racionalista, é uma abordagem, até pelo contrário,
mais compreensível em comparação com os fenômenos que estuda. Eu
entendo que essa crítica se refere a um estágio da ciência já um pouco
ultrapassado e não ao estágio da ciência atual. A abordagem científica
atual me parece mais ampla do que na era do grande racionalismo.
Entrevista concedida para o autor em 21/05/2015. (BAUBÉROT).
Willaime aprofunda este debate, deixando claro que o estudo racional e científico
do fenômeno religioso não esgota toda a riqueza humana que ele contém:
“Durkheim compreendeu isso muito bem, ao dizer que não deve existir
abordagem intelectualista sobre fenômenos religiosos, é preciso ter uma
abordagem sensata como um fato social e cultural. Isso se traduz pelas
maneiras de conceber a vida e a morte, a alegria, a felicidade e a
infelicidade, o sofrimento. É uma formatação simbólica da existência.
Depois, há representações, há práticas, ritos. Representações e ritos que
fazem sentido para pessoas de qualquer religião, para os fiéis, católicos,
muçulmanos, budistas, e no Brasil o candomblé e os cultos tradicionais,
quando isso faz sentido para as pessoas. Se o intelectual racionalista vem
dizendo ‘mas é simplesmente... estas pessoas são alienadas, são
supersticiosas’, esta é uma abordagem insuficiente. É preciso
compreender que estas pessoas podem ser perfeitamente racionais e, ao
mesmo tempo, ter representações que as ajudam a viver, que as ajudem a
conceber a vida, a conceber a morte, a dar sentido ao sofrimento, e
enchendo algumas das várias funções antropológicas e sociológicas.”
Entrevista concedida para o autor em 24/06/2015. (WILLAIME).
política de laicidade. Debray tem uma afirmação muito direta neste sentido: “ensino do
religioso não é ensino religioso” (DEBRAY, 2015,p. 23).
É necessário lembrar que toda esta elaboração é fruto de uma longa experiência
histórica nacional francesa e se desenvolve em um contexto social e político muito
particular que tem a laicidade como pedra angular da República, com certeza bem diferente
do de outras sociedades, como a do Brasil. Mas nem por isso deixa de dar a sua
contribuição para a discussão desta mesma agenda em outras sociedades.
100
De fato, este relatório é apenas uma pequena parte de um relatório bem mais amplo que englobava toda a
arquitetura do saber – ciências da natureza e ciências humanas e sociais inclusive – e como ensinar na escola
do século XXI. Uma subcomissão trabalhou especialmente a questão da história das religiões, considerada
uma das lacunas no ensino de história. Esta comissão foi composta por personalidades que representavam
diferentes visões religiosas e acadêmicas como Jean Baubérot, Jean Chélini, Bernard Phan, Henri Ourman e
Michel Sot, além do próprio Philippe Joutard (GAUDIN, 2014, p.65).
197
geopolíticas contemporâneas. Ele propunha que o ensino da história das religiões deveria
ser inserido como um tema transversal nas disciplinas de História, Geografia e da
Educação Cívica, sem se criar uma disciplina separada, mas com o objetivo de mostrar:
101
Neste colóquio, na opinião de Philippe Gaudin (2014, p.79), Joutard, de maneira realista, prudente e
pragmática, define claramente o que seria possível e o que não seria possível na França naquele momento em
relação ao ensino dos fatos religiosos. A posição de Jean Baubérot, a favor da criação de uma disciplina
específica, foi minoritária e não foi aprovada. Em decorrência deste colóquio e de seu relatório, algumas
iniciativas concretas já nasciam pouco tempo depois, como a do inspetor geral Jean Carpentier que chegou a
organizar cursos de verão sobre este tema, sob a égide do Ministério da Educação Nacional, antes de criar em
1998 a Associação Religiões, Laicidade, Cidadania (ARELC). Esta entidade foi basicamente composta por
educadores e desenvolveu uma linha de reflexão e ação que permitiu pouco a pouco implementar o ensino
dos fatos religiosos na escola laica francesa. De certa forma, ela preparou o caminho para o que viria a seguir
ao Relatório Debray. Ela foi dissolvida em 2010, quando seus integrantes chegaram à conclusão de que já
haviam cumprido seu papel nesta questão.
198
no lugar e nas modalidades da religião na escola (PINTO, 2012). Estes autores afirmavam
a necessidade da escola laica levar para o seu interior a transmissão de uma cultura
religiosa múltipla, centrada na objetividade do conhecimento das crenças, existentes na
sociedade nacional e fora dela, tomando contato com os seus acontecimentos fundantes,
seus ritos, textos, teologias e prescrições e, fundamentalmente, tendo a noção de que cada
uma destas crenças é um sistema de verdade para quem nele crê.
No final dos anos 90, Philippe Meirieu era encarregado de estudar uma reforma
geral do ensino secundário na França. O seu relatório final foi entregue em 1999 e, no seu
item 3, sobre a Cultura Comum, ele realçava a necessidade de se avançar para um ensino
das religiões que fosse neutro e laico. A 14 de fevereiro de 2002, como já vimos, Régis
Debray entregava ao Ministro da Educação francês, Jack Lang, um relatório que levaria
este a implementar uma série de medidas em torno do ensino dos fenômenos religiosos nas
escolas públicas da França. Este texto foi o grande catalizador de todo um conjunto de
102
reflexões, iniciativas e relatórios anteriores. Isabelle de Saint-Martin, atual diretora do
IESR, o confirma:
102
Apenas destacamos aqui alguns momentos significativos da construção histórica da política de ensino dos
fenômenos religiosos na França. Para uma visão mais completa, desde a década de 1980, ver GAUDIN,
Philippe. Vers une laicité d’intelligence? L’enseignement des faits religieux comme politique publique
d’education depuis les années 1980. Aix-em-Provence: Presses Universitaires d’Aix-Marseille, 2014.
199
“Há muitos anos, os professores têm diante deles uma maioria de alunos
que não receberam nenhuma formação religiosa, são cada vez mais sem
religião, nem os provenientes de famílias cristãs, mesmo os alunos que
são de origem muçulmana ou de outras religiões. Houve assim uma
mudança considerável do público da escola, a escola pública é composta
hoje de um público bem diferente, mudou muito entre os anos 50 e os
anos 2000. E isso explica também esta incultura religiosa crescente dos
alunos”. Entrevista concedida para o autor em 01/04/2015.
(WILLAIME).
103
Três departamentos franceses - Haut-Rhin, Bas-Rhin e Moselle – adotam o ensino religioso confessional e
isto tem uma razão histórica importante. Esses departamentos não eram franceses, mas alemães entre 1871 e
1918. Por isso, a famosa lei de Separação das Igrejas e do Estado de 1905 não foi ali adotada. O regime de
cultos anterior foi, portanto, mantido e mesmo confirmado pela lei de 01/06/1924. A portaria de 15/09/1944
relativa ao restabelecimento da legalidade republicana nos departamentos de Alsácia-Mosela manteve no seu
artigo 3 “a legislação em vigor na data de 16 de junho de 1940”. Uma decisão do Conselho de Estado de 6 de
abril de 2002 esclarece que a manutenção desta legislação especial procedia da vontade do legislador e que a
constitucionalização do princípio da laicidade não tinha por efeito a revogação implicitamente os dispositivos
da lei de 01/06/1924. As pesquisas de opinião mostram também que as populações afetadas permanecem
majoritariamente a favor desta situação particular. Isto significa concretamente que os ministros dos quatro
cultos (católico, protestante, luterano e israelita) são remunerados pelo Estado, que existe um ensino religioso
correspondente aos quatro cultos nos estabelecimentos públicos de ensino, e que os cultos em geral (e não
somente os quatro mencionados acima) podem receber subvenções públicas.
200
104
No momento de transição que vivemos, Boaventura de Sousa Santos afirma que a ampliação do mundo e
a dilatação do presente têm de começar com a investigação que demonstre que o que não existe é, na
verdade, ativamente produzido como não existente. É o que ele chama de sociologia das ausências. Depois,
haverá necessidade de se substituir o vazio do futuro ditado pelo tempo linear por um futuro de
possibilidades plurais e concretas, ao mesmo tempo utópicas e realistas. É o que ele chama de sociologia das
emergências. E finalmente, faz-se necesário a utilização de uma ecologia dos saberes que poderá substituir a
monocultura do saber e do rigor científico, sendo ela mesma um conjunto de epistemologias que partem da
possibilidade da diversidade e da globalização contra-hegemônicas e pretendem contribuir para as
credibilizar e as fortalecer.
202
Para enfrentarmos este desequilíbrio entre o espaço e o tempo, que Debray chama
de “duas âncoras fundamentais em qualquer estado de civilização” (2015, p. 17), urge
desesconder e evidenciar as genealogias e as razões que podem nos explicar as realidades
mais chocantes do nosso tempo. Como compreender o 11 de Setembro de 2001 ou o 7 de
janeiro de 2015 sem nos voltar às diversas facções do Islã e até mesmo aos avatares do
monoteísmo? Como compreender o desmembramento da antiga Iugoslávia sem retornar às
antigas divisões religiosas na região balcânica? Como compreender o jazz e a obra do
pastor Martin Luther King sem falar do protestantismo e da Bíblia?
transcendente e o imanente, entre a verdadeira religião e as falsas. Alguns vão dizer que
não podemos compreender a religião sem a crença, sem a fé, não podemos abordar a
religião como um fato social e cultural qualquer. Como separar a análise dos fatos das
interpretações que lhes dão sentido? É possível reduzir a uma rapsódia de observações
exteriores e frias um compromisso que seja parte integrante da própria pessoa humana? Em
uma comparação feita pelo próprio Debray, “o mesmo seria reduzir a música a uma
sequência de notas num papel pautado ou pedir a um cego para falar de cores...”
(DEBRAY, 2015, p. 23).
105
Um exemplo disso citado por Willaime é ilustrativo: “Alguns dizem: não se pode dizer na escola laica
‘Cristo ressuscitou’. É preciso dizer: ‘Os cristãos pensam que Cristo ressuscitou.’ Não endossar uma crença
está correto, mas também não deixar transparecer nenhuma opinião neste sentido. É preferível dizer: ‘os
cristãos acreditam na ressurreição de Cristo, os muçulmanos acreditam nisso, os judeus naquilo, etc. Mas é
necessário fazer uma clara distinção entre saber e crença.” Entrevista concedida para o autor em 01/04/2015.
(WILLAIME).
106
Baubérot insiste na diferenciação entre o saber e o crer: “O conhecimento não deve ser um substituto para
crença, pois esta é um ato pessoal e uma escolha pessoal; é obrigação dos professores deixar isso bem claro,
em última análise, que o conhecimento não vai substituir as escolhas pessoais e experiências pessoais (no
campo religioso)”. Entrevista concedida para o autor em 21/05/2015. (BAUBÉROT).
205
pessoais. Dar a conhecer uma realidade ou uma doutrina é uma coisa, promover uma
norma ou um ideal é outra.
Mas a política oficial da França de não se criar uma disciplina específica e tratar
do religioso como tema transversal em disciplinas da área de humanidades não teve apoio
unânime. Jean Baubérot, considerado o fundador da sociologia da laicidade e ainda hoje
um dos mais influentes pensadores nesta área, defende desde 1991 uma posição contrária.
Diz ele: “Indagado sobre o problema em termos de uma disciplina específica, eu colocava
107
Trata-se aqui de uma política pública adotada pela França, entendida na sua maneira clássica, ou seja, um
conjunto de expertises que buscam identificar um problema coletivo, um conjunto de decisões e de ações que
buscam implementar uma solução deste problema, quer eles sejam colocados por atores individuais,
institucionais ou sociais, e a avaliação de sua eficácia.
108
“No IERS, nós montamos formações continuadas sobre os fatos religiosos para a escola, porque é a escola
pública que interessa. Elas não são obrigatórias para os professores. São formações que os professores podem
requisitar à Reitoria. Então, organizamos essas formações que são propostas em associação com a Reitoria,
com a Direção de Ensino Escolar. Convidamos pesquisadores, professores da Universidade para falar sobre
os fatos religiosos, filosofia, sociologia, história das religiões, laicidade, etc. E podemos organizar isso por
toda a França. Não somente em Paris. Não há uma exigência para os professores de disciplinas de
humanidades para fazer esses cursos antes de começar sua carreira de professor. Vai depender do percurso
[...] um professor de história, por exemplo, em seu percurso universitário, não aprendeu necessariamente todo
o programa de história que vai abordar, mas se tiver que trabalhar (com conteúdos deste programa
relacionados aos fatos religiosos), ele pode fazer um curso que organizamos (para se complementar e se
atualizar). Pode ainda olhar nossos dossiês na internet, porém vai ter de cumprir o programa.” Entrevista
concedida para o autor em 28/05/2015. (ISABELLE DE SAINT-MARTIN, DIRETORA DO IERS).
206
em 1991 que ela era necessária menos para aumentar o conteúdo da cultura religiosa do
que para enfrentar um problema cultural fundamental”. Entrevista concedida para o autor
em 21/05/2015. (BAUBÉROT).
ciências da religião na escola pública. Para ele, uma disciplina específica, além de
vantagens intelectuais, seria todo um sistema de ensino e suas finalidades que se
encontrariam regenerados por uma antropologia do crer onde se aprende a dialética da
subjetividade e da objetivação e onde se aprende também a viver no pluralismo cultural e
religioso, o que é um imperativo das democracias contemporâneas (GAUDIN, 2014, p.80).
Estas considerações de Baubérot constam de uma conferência que ele fez em uma
assembleia da União Racionalista, em 2005, e na preparação deste texto, ele releu um
artigo que havia publicado em 1991 na revista Panoramique e um outro publicado no Le
Monde Debates em dezembro de 1992. Sua posição basicamente permanece a mesma
ainda hoje:
109
Baubérot afirma - sempre fui muitas vezes perguntado do que eu entendia por ‘estruturas simbólicas’,
prova de que, apesar de Mauss, Dumezil, Febvre, Levi-Strauss, Vernant e outros (para citar apenas
professores da EPHE), na verdade, uma seção inteira do conhecimento antropológico e sociológico
permanece desconhecido e que se trata menos de um pseudo-analfabetismo dos alunos do que um
analfabetismo social.
208
“Eu ainda acho que uma disciplina teria sido melhor. Embora, é verdade
que é necessária uma formação transdisciplinar (quanto à temática da
religião) para os professores de diversas disciplinas. A religião é algo
muito complexo para os professores e [para tratar deste tema em sala de
aula] precisam ser treinados. [...] Eu acho que foi uma opção mais
política diante dos fatos que vinham ocorrendo desde o que foi chamado
na época o primeiro affair do véu que ocorreu em 1989 em Creteil, na
época do governo Lionel Jospin.” Entrevista concedida para o autor em
21/05/2015. (BAUBÉROT).
Mas esta escolha se explica também pelo fato de que não era viável se criar uma
nova disciplina, sobrecarregando os programas de ensino, e criar um novo corpo de
professores especializados. E sem dúvida, foi uma opção para não suscitar resistências e
210
desconfianças da parte dos grupos laicistas e dos grupos religiosos, como afirma Debray
(2015).
De qualquer forma, já existe uma definição muito consolidada no sistema
educacional francês de que não se deve criar uma disciplina específica de ensino dos fatos
religiosos. Afirma Debray:
Percebe-se que a disposição firme de não se criar uma disciplina própria para
atender uma demanda sentida e refletida profundamente por diversos atores da área de
educação na França tem muitos pontos de contato com as dificuldades de se implantar
efetivamente o ensino religioso como disciplina no Brasil, de acordo com a Constituição
Federal e a LDB. Na grande maioria das escolas públicas do Brasil, o ensino religioso
também não passa de um lugar decorativo e um horário à margem. Em outra intervenção
muito interessante, afirma Debray:
Parece até que Debray conhece bem a realidade do ensino religioso no Brasil tanto
quanto o da França. Em alguns dos nossos sistemas de ensino, particularmente no do
Estado do Rio de Janeiro, o credenciamento de professores de ensino religioso passa pelas
autoridades confessionais. No Brasil, já existe até certo lobby para se exigir para os
professores de ensino religioso a formação em Teologia. Entretanto não é esta a proposta
dos que defendem o ensino do religioso no currículo como área de conhecimento. Tanto na
França quanto no Brasil, dá-se atualmente enorme importância à formação dos docentes e
que esta seja feita na área das Ciências da Religião.
211
Neste sentido, vem de Wolfgang Gruen a defesa das Ciências da Religião como
base de formação dos docentes de ensino religioso:
110
Cada vez mais, vários estados brasileiros reconhecem que o professor habilitado para o ensino religioso
nas escolas públicas é o egresso dos cursos de Ciência(s) da(s) Religião(ões). Podemos citar o exemplo do
Estado de Minas de Gerais. O Decreto nº 44138 de 27/10/2005, no seu Art. 5º, diz que o exercício da
docência do ensino religioso na rede pública estadual de ensino deve contar, preferencialmente, com
profissional que possua “I - conclusão de curso superior de licenciatura plena em ensino religioso, ciências da
religião ou educação religiosa”. Paralelamente a isso, observa-se uma ampliação no número de licenciaturas
em Ciência(s) da(s) Religião(ões) no Brasil com ênfase em Ensino Religioso. Atualmente, funcionam cerca
de quinze licenciaturas em todo o território nacional. No entanto, esse número deverá apresentar sensível
crescimento em breve, considerando o número de instituições (privadas e públicas) que manifestaram
interesse no oferecimento do curso.
212
diversos programas três áreas em que a Ciência da Religião deve desempenhar um papel
como “disciplina de referência” ou como sua aplicação didática:
desapaixonar e até banalizar o assunto, sem lhe retirar, pelo contrário, a sua dignidade
intrínseca.
111
Para Debray, é urgente que se organize em rede o arquipélago nacional das diversas ilhas das Ciências das
Religiões. E podemos dizer que este arquipélago já existe tanto na França quanto no Brasil; que se destravem
as rupturas já apontadas para permitir que essa rede possa ultrapassar os muros acadêmicos e se proporcione
a todos os professores desta área uma formação profissional de qualidade.
214
112
A École pratique des hautes études (EPHE), criada em 1868 por um decreto do Ministro da Instrução
Pública da França, Victor Duruy, é um grande estabelecimento de ensino superior, atualmente ligado ao
Ministério do Ensino Superior da França. Ele está instalado em diferentes universidades, institutos e centros
de pesquisa de Paris, principalmente, mas também nas cidades de Montpellier, Bordeaux, Marseille, Lyon,
Grenoble e Dijon.
215
fixando o final do ano letivo como período de supressão. No início do ano letivo, 1º de
setembro, estas escolas já deveriam estar fechadas (DOMINGOS, 2008, p.162).
Mais de um século depois, a atual política francesa de ensino dos fatos religiosos
na escola pública tenta resgatar aqueles ensinamentos de Ferdinand Buisson. Em um
rápido giro em torno da situação atual dessa política, Isabelle de Saint-Martin afirma:
“Que a verdade de dois mais dois ser igual a quatro é uma verdade
científica e matemática. É uma verdade experimental, racionalmente
hipotética ou dedutiva, mas a verdade de um poema, a verdade artística, é
um outro regime de verdade. Portanto levá-los a compreender que em
relação a um belo texto literário, como em relação à Bíblia ou ao Corão,
são textos, mas não são verdades de ordem científica. Para alguns, isso
leva a verdades sobre a condição humana, sobre a vida, sobre a morte,
mas é um outro regime de verdade. Portanto, é bom levar os alunos a
distinguirem entre saber e crer, entre regime de verdade científica,
religiosa, artística. Levá-los a compreender que há diferentes abordagens,
diferentes regimes de verdade”. Entrevista concedida para o autor em
01/04/2015. (WILLAIME).
Mas Willaime insiste em chamar a atenção para que o ensino dos fatos religiosos
se afaste de todo o essencialismo e que sejam abordados também como construções
históricas. Considerar que o cristianismo, o judaísmo, o Islã são uma lista variável de
crenças, práticas, que as religiões têm uma história, e que existe uma história da construção
dos textos sagrados:
Para marcar os dez anos do Relatório Debray, a Direção Geral do Ensino Escolar
da França realizou nos dias 21 e 22 de março de 2011, em parceria com o IESR, um
seminário nacional para fazer uma espécie de balanço da nova política de ensino dos fatos
religiosos.113 Coube a Debray a abertura deste seminário, quando fez uma rápida avaliação:
“Hoje, dez anos depois, a questão não é saber se é legítimo ensinar fatos
religiosos na escola pública. Este ponto foi superado. A questão é como
fazer e como fazer melhor. Então, se você fizer um balanço, e percorrer
as disciplinas, deu certo. O corpo docente aceitou. E eu diria que esta é a
abordagem laica e científica para a questão religiosa, o objetivo não é
falar de todos os fatos religiosos, mas falar de forma inteligente, bem
informada e distanciada. Problemas, sim, existem muitos. Eu diria que o
principal deles é a presença da religião na formação da base do
conhecimento. Isso se tornou óbvio. Em seguida, a necessidade de melhor
treinamento para os professores e para as escolas. O fato religioso foi
ensinado, ouso dizer, do primário ao secundário. E, finalmente, eu diria, a
formação continuada de professores liderada pelo IESR, tem sido muito
consistente e completa.” (SÉMINAIRE NATIONAL “ENSEIGNER LES
FAITS RELIGIEUX DANS UNE ÉCOLE LAÏQUE”, 21 ET 22
MARS/2011). (DEBRAY).
113
É possível encontrar os textos das diversas participações neste seminário em
<http://eduscol.education.fr/cid56291/seminaire-dgesco-2011.html>.
218
De qualquer forma, esta política pública da França ainda é bastante nova para se
tecer uma avaliação completa e conclusiva. Para Willaime (2014), não se pode dizer que
ela foi até aqui um sucesso total e que não teve suas limitações. Para ele, há muitas críticas
a fazer. É possível, nas perspectivas já colocadas, fazer muito mais e muito melhor, mas
seria até injusto subestimar a evolução notória que a escola pública laica francesa conheceu
nestes últimos anos. Nas palavras de Willaime, os recentes episódios que abalaram a
França no início de 2015 só vieram reforçar esta política pública na área de educação:
Alguns poderão dizer que esta é uma discussão superada. Mas certos
acontecimentos estão nos mostrando que não é uma discussão apenas do passado, inclusive
no âmbito do ensino público. A liberdade, uma vez conquistada, sempre corre perigo. Um
princípio deve, a cada época, ser colocado em prática, ao mesmo tempo de acordo com as
suas exigências intrínsecas e também na singularidade do seu contexto histórico,
requerendo de todos os cidadãos reflexão e ação. É por isso que a laicidade vale como um
princípio e deve nortear necessariamente o ensino dos fenômenos religiosos na escola
pública: “O exercício da razão, ligado indissoluvelmente ao exercício da liberdade, é longo
e difícil, mas de capital importância para a escola laica” (MENASSEYRE, 2003, p. 43). 114
114
Christiane Menasseyre, no Seminário Nacional Interdisciplinar, organizado em Paris entre 5 e 7 de
novembro de 2002, chega a ensaiar algumas propostas concretas para uma maior atenção dos professores em
relação ao aspecto laico dos fatos religiosos: estar sempre vigilantes com as palavras e os conceitos; associar
ao saber histórico sobre os fatos religioso não somente o aspecto sociológico, mas também o filosófico; não
negligenciar uma reflexão que relacione a laicidade e a escola, em todos os momentos da vida escolar.
221
religiosa” (DELUMEAU, 2003, p.36). Pois é sempre e muito melhor conhecer do que
ignorar. Desta maneira, é possível encarar de frente a questão do ensino dos fatos
religiosos, como veremos a seguir.
culturas. Tudo isso significa contribuir para desarmar os diversos integrismos, que
têm em comum esta dissuasão intelectual que muito encontramos por aí: é preciso
pertencer a uma cultura para poder falar dela. É, precisamente, neste sentido e
sem excluir nenhuma das confissões de fé, que se pode avançar em direção à
laicidade.
É preciso voltar às fontes, não de uma laicidade que se tornou arrependida, mas
antes refeita, reanimada, muito segura de si mesma e dos seus próprios valores (DEBRAY,
2015). A base estável dos seus postulados filosóficos, felizmente, não impede que a sua
atuação seja evolutiva e sempre inovadora. Consciente das dificuldades enfrentadas até
aqui, nada melhor do que estar preparado para as vindouras. “E isso recomenda uma
abstenção deliberada e motivada, procedente tanto de um respeito pelas crenças íntimas
como pelas divisões que poderão suscitar nos alunos” (DEBRAY, 2002).
E Debray conclui o seu pensamento com uma fórmula que vai se tornando
clássica neste tema, e por isso vale a pena repetir:
A intelectualidade francesa possui uma consciência muito forte de que seu país
tem a abordagem mais avançada nesta questão. Preferimos dizer da sua singularidade. O
México e a Turquia desenvolveram projetos bem semelhantes antes mesmo que a França.
Querer submeter outros países ao projeto francês de ensino dos fatos religiosos é cometer
grave erro político além de um anacronismo histórico e sociológico. Uma coisa é se
garantir um princípio de direito universal, ou seja, o direito ao conhecimento o mais
cosmopolita possível e que inclua os saberes, as crenças e os fazeres religiosos. Outra coisa
é a sua aplicação em cada sociedade nacional, de acordo com a sua história, com seu
contexto sócio-político, com a maturidade para ver a religião como importante ou não para
223
a sua formação cultural.115 Não existe um modelo. Mas pode existir um diálogo
interessante entre projetos e propostas que sejam bastante conscientes das suas diferenças.
116
115
Para Jean-Paul Willeime, diferentemente da França, o mais comum na Europa é encontrarmos o curso de
ensino religioso através de uma disciplina específica, de diferentes formas e denominações. Na Espanha,
onde se trata de fato de uma catequese, é feito, por professores escolhidos pela administração pública, mas a
partir de uma lista de candidatos apresentados pelas autoridades da Igreja Católica, e tornou-se facultativa.
Na Irlanda, onde a Constituição faz homenagem à Santíssima Trindade, e na Grécia, onde a Igreja Ortodoxa é
unida ao Estado, este ensino religioso é de tipo confessional e obrigatório. Em Portugal, apesar do princípio
estabelecido de neutralidade, foi até agora, assegurado nas escolas públicas pela Igreja Católica. Na
Dinamarca, onde a Igreja Luterana é a Igreja nacional, não há catequese, mas, em todos os níveis das escolas
públicas, há um curso não obrigatório de conhecimento do cristianismo, filosofia de vida e educação para a
cidadania. Na Alemanha, onde varia segundo os Estados da Federação, o ensino religioso cristão faz parte
dos programas oficiais, muitas vezes sob o controle das Igrejas, e as notas obtidas em religião contam para a
aprovação. Na Bélgica, as escolas públicas permitem uma escolha entre um curso de religião ou um curso de
moral não confessional. Na Inglaterra, a rede pública oferece um curso optativo de Educação Religiosa e, na
Suíça, de Cultura Religiosa (Cf. WILLAIME. Le défi de l’enseignement des faits religieux à l’école:
réponses européennes et québécoises, Introduction, p. 7-27). Vê-se, pois, a grande variedade de títulos para a
disciplina bem como do tratamento dos seus conteúdos.
116
Como exemplo deste diálogo, destacamos o que ocorre atualmente entre as políticas da França e do
Quebec. Aqui, a elaboração dos programas de ensino de “ética e cultura religiosa” é feita em um vasto
processo colaborativo de consulta que incluem pareceres de diversas comunidades religiosas, mas a redação
final fica sob a responsabilidade dos professores e de especialistas das universidades. A abordagem cultural
do religioso, de acordo com Mireille Estivalèzes, tal como é desenvolvida nos programas e nos manuais,
“não aborda as religiões como vestígios do passado, mas ao contrário, como realidades culturais vivas e de
sistemas de sentido que se desdobram em universos sócio-culturais precisos que continuam a alimentar a
busca de respostas para as grandes questões existenciais.” (ESTIVALÈZES, 2014, p. 197).
224
117
Este seminário foi organizado no contexto de um Programa Piloto Nacional pela Direção Geral do Ensino
Secundário da França. As atas deste seminário foram publicadas em junho de 2003 pela Academia de
Versalhes na coleção Les Actes de Desco com o título O Ensino do fato Religioso. Este seminário foi
concebido como prolongamento do Relatório Debray e uma das suas finalidades práticas foi o de colocar em
contato pesquisadores, notadamente os da Vª Seção da EPHE, professores e inspetores do ensino público.
Podemos afirmar que este foi um colóquio fundador do ensino do fato religioso na França. Estamos
utilizando várias citações dos participantes deste seminário neste trabalho.
225
e o escopo do fenômeno religioso para se chegar às suas diversas dimensões, muito mais
amplas do que simples fatos palpáveis, demonstráveis e mensuráveis (BORNE &
WILLAIME, 2007, p. 15-16).
118
Escusado dizer que se for imposta uma moral ou um proselitismo difuso através do ensino dos fatos
religiosos, estes seriam facilmente negados como área de conhecimento no contexto escolar. Na tradição
francesa, é óbvio que o ensino do fato religioso não pode ser uma moral, como se poderia imaginar se aquela
área de conhecimento fosse chamada de ensino religioso.
226
“não existe de fato uma coisa chamada religião, existem sim fenômenos
religiosos mais ou menos agregados a sistemas que são chamados de
religiões e que tem uma existência histórica definida nos grupos de
homens e tempos determinados”. (MAUSS, 1968, p. 93).
Por que Debray prefere falar de fatos? Por que ele privilegia o plural? Como
chamar aquilo do que se propõe a falar, os fenômenos religiosos, fazendo justiça aos
múltiplos aspectos destes fenômenos e sem os mutilar? Verificamos que, se não há uma
definição científica incontestável do religioso, existem atualizações em perspectivas
disciplinares e socioculturais diversas de um fenômeno com múltiplas facetas. É
impossível imaginar a possibilidade de encontrar um conceito de religião adaptado a todas
119
Na Universidade e na pesquisa internacional, podemos dizer que a História das Religiões tem buscado
mais recentemente não restringir o campo das suas investigações e ampliar os seus questionamentos.
227
Não podemos ignorar mais que a definição mesma do que é uma religião
representa questões sociopolíticas tanto quanto religiosas naquela abordagem histórica e
sociológica onde ela não entra diretamente. E por que isso? Porque esta abordagem
constata que em todas as épocas há intensos debates sobre as delimitações deste fenômeno.
Por isso é necessário ser cuidadoso com as distinções entre religião/superstição,
religião/magia, igrejas/seitas. Elas têm uma história e todo estudioso dos fenômenos
religiosos sabe que as relações entre ortodoxia/heterodoxia, religião legítima/religião
ilegítima, religião institucional/religião/desinstitucionalizada fazem parte do campo a ser
analisado. Um ensino do religioso pluridisciplinar e laico não vai tomar partido entre as
ortodoxias e as heresias. Ele vai além, na sua preocupação em apreender os fenômenos
religiosos como expressões vivas e dinâmicas que, como todos os fenômenos sociais, são
atravessadas por debates e conflitos o tempo todo.
Como fatos históricos, os fatos religiosos são também fatos sociais. A expressão é
cara para Émile Durkheim que, na sua preocupação de tornar precisas as singularidades
epistemológicas e metodológicas de uma disciplina nascente, a sociologia, quis insistir na
objetividade do social, o chamando de fato que possuía uma existência própria,
independente das manifestações individuais. Marcel Mauss falou de fato social total para
sublinhar que certos fatos sociais colocam em movimento a totalidade da sociedade e de
suas instituições e tinham a natureza “ao mesmo tempo jurídica, econômica, religiosa e
mesmo estética e morfológica” (MAUSS, 1950, p. 274).
228
120
Borne & Willaime lembram que desde a sua fundação por Danièle Hervieu-Léger em 1993, o laboratório
de Ciências Sociais da Religião na École des hautes études en sciences sociales - Centre national de la
recherche scientifique (EHESS-CNRS) é significativamente chamado de Centro de Estudos Interdisciplinares
dos Fatos Religiosos (CEIFR).
121
Religião vem do verbo latino religare (re-ligare). Religar tanto pode ser um novo liame entre um sujeito e
um objeto, um sujeito e outro sujeito, como também entre um objeto e outro objeto. Obviamente, o religar
supõe ou um momento originário sem a dualidade sujeito/objeto ou um elo primário (ligar) que, uma vez
desfeito, admite uma nova ligação (re-ligar). Lembrando da narrativa de Abel e Caim em Gênesis e do relato
mítico grego de Chronos. À fraternidade originária se segue o fratricídio e daí a busca dos múltiplos
caminhos de recuperação da irmandade perdida. Também o jusnaturalismo, na versão hobbesiana, rechaça a
ideia de um ser humano naturalmente social, como queriam os clássicos e os medievos, e defende o homo
homini lupus. Busca-se um novo elo de ligação entre os humanos, iguais entre si. A estes caminhos de
religação, muitos nomes foram dados, daí nascendo também múltiplas maneiras de religações, civis, laicas ou
sacrais. Entre outras denominações pode-se citar a via de reconstrução racional da vida social e política pelo
pacto ou contrato racionais, a fraternidade universal realizada, a humanidade altruísta, o reino da liberdade, a
justiça na igualdade, o abraço do lobo com a ovelha nos novos céus e nas novas terras, a paz perpétua e
também a ligação do homem com a divindade.
229
Com base nesta propriedade que tem todo fenômeno religioso de ser comum a um
grupo de homens, Marcel Mauss afirma que:
Já o fato religioso como um fato material quer dizer que o religioso se relaciona,
não somente aos homens, mas também aos textos, às imagens, às canções, às práticas, às
construções e aos objetos. É alguma coisa no campo do arqueológico, literário, artístico,
cultural que se deixa ver. O estudo destes traços e destas obras, como demonstrou Isabelle
de Saint-Martin (2014) é também fundamental para a apreensão pluridisciplinar dos fatos
religiosos.
Por último, temos o fato religioso como fato experimental e sensível na escala
individual e coletiva. Esquecer que as representações e as práticas religiosas são
experimentadas por milhões de pessoas que veem nelas, em diferentes graus, uma
dimensão essencial de suas vidas, seria mesmo um grave erro epistemológico. O religioso
experimental e sensível se refere ao fato de que estes esquemas simbólicos da condição
humana são fenômenos religiosos ao nível das sensibilidades. Como as identificações
nacionais, linguísticas, culturais ou étnicas, as identificações religiosas tanto podem expor
as paixões, gerar fanatismos e conflitos como também compromissos altruístas e
mediações pacíficas e desejáveis. A História pretérita e atual está aí para nos demonstrar
vários exemplos dos dois lados.
“O estudo dos fatos religiosos é por isso também o estudo dos místicos e
das espiritualidades, o estudo dos sentimentos religiosos. Assim como é
experimental e sensível, o religioso motiva a agir em tal ou tal sentido. O
religioso, mais ou menos intensamente, induz a comportamentos,
estrutura as condutas de vida, incluindo, como bem mostrou Max Weber,
até mesmo o campo econômico.” (BORNE & WILLAIME, 2007, p. 45-
46).
231
Mas é preciso deixar bem claro que o estudo dos fatos religiosos não pode se
reduzir ao estudo das inter-relações entre religiões e sociedade, entre a religião e economia,
religião e política, religião e educação, religião e saúde, por exemplo. Seria, a nosso ver,
uma visão reducionista. Ele não se reduz a isso, mesmo que o estudo das relações entre o
religioso e as outras esferas de ações humanas faça incontestavelmente parte de suas
especificações:
122
É interessante perceber como na França existem os extremos harmônicos. Sendo um Estado laico e tendo
uma lei específica sobre a interdição ao uso dos sinais religiosos na escola, é também o Estado que prevê a
liberação de um dia da semana para que os pais possam enviar os filhos à catequese, caso o desejem; que
propicia meios para que os alunos possam realizar seus cultos, durante os estágios escolares, quando viajam
ou ficam longe da família; que fornece uma segunda opção de cardápio, quando a carne prevista é de animal
interditado em certas religiões (caso da carne de porco pelos muçulmanos e judeus); que propõe carne de
peixe às sextas-feiras nos cardápios escolares - tradição judaico-cristã de abstinência de carne vermelha neste
dia da semana. A França é o país onde se comemora o dia de «Todos os Santos», sendo o 1º de novembro
feriado nacional, enquanto no Brasil, são os mortos - dia 2 de novembro - que nos garantem o feriado; onde o
Ramadã muçulmano é respeitado e o abate do cordeiro é fiscalizado por religiosos em abatedouros
232
De fato, não há do ponto de vista das ciências humanas, nenhum domínio que
possa ser subtraído da pesquisa. Mas há um dever de objetividade, de distanciamento e de
apreensão cientificamente válido do objeto, deontologia que pressupõe respeitar este objeto
na sua complexidade e suas especificidades, incluindo assim, no fato que concerne aos
homens e às mulheres que, participando ativamente de seu tempo, encontrem sentido em
tal ou tal identificação religiosa. Se a abordagem dos fatos religiosos pelas ciências
humanas, para a objetivação sócio-histórica que ela representa, tem incontestáveis efeitos
críticos com relação a toda percepção a-histórica das religiões, ela não constitui para
muitos uma crítica da religião, quer dizer uma invalidação filosófica e uma desqualificação
social e cultural destas maneiras de colocar em formas simbólicas a sua existência.
autorizados e controlados pelos órgãos sanitários; país considerado «a filha primogênita da Igreja Católica» e
país onde se encontra uma das maiores comunidades ecumênicas do mundo: Taizé; uma sociedade
extremamente secularizada, mas com maior número de santos católicos e lugares de peregrinação (Lourdes,
Lisieux, Paray-le-Monial, etc.); país laico, profundamente marcado pela religiosidade, de extremos
harmônicos, em busca de um respeito e uma tolerância somente possível através de uma ruptura de alguns
tabus, dentre eles aquele de que «religião não se discute». (cf DOMINGOS, Maria de Franceschi Neto.
Escola e laicidade: o modelo francês. In INTERAÇÕES – cultura e comunidade. Uberlândia: Faculdade
Católica de Uberlândia, 2008, p. 164-165).
233
O fato religioso, em todos os seus aspectos, pode ser entendido tanto como um
programa que consiste em falar de um modo não religioso do religioso, quanto em
reconhecer a consistência de seu objeto, ou seja, sem reduzi-lo ao que ele não é:
123
Michel Despland chegou a listar quarenta definições de religião, desde suas origens greco-latinas até o
final do século XVIII. Já foram identificadas por outros pesquisadores cerca de trinta e uma definições de
religiosidade e quarenta definições de espiritualidade nas publicações em ciências sociais publicadas de um
século para cá.
124
Conforme o país, a abordagem científica do religioso foi marcada por um tropismo particular. Assim é
frequente sublinhar o contraste entre a origem das religiões pelos textos na Alemanha, onde a história das
religiões foi fortemente marcada pela filologia, e a origem das religiões pelos ritos e costumes na Grã-
Bretanha, onde se mais desenvolveu a antropologia.
235
Desde seu início, na virada do século do século XIX para o XX, a sociologia se
interroga sobre o futuro do religioso nas sociedades modernas ocidentais. Isso porque as
sociedades europeias mudaram profundamente a partir das revoluções políticas,
econômicas, científicas, sociais e culturais, e assim, se impôs um estudo sistemático do
funcionamento das sociedades. Foi central este desejo de identificar os contornos da nova
maneira de viver em sociedade que implicavam todas essas mudanças sobre o futuro da
religião. Longe de ser um aspecto marginal dos pensadores clássicos da sociologia, a
sociologia das religiões foi, ao contrário, uma dimensão essencial do seu trabalho, o que se
verifica particularmente com Émile Durkheim e Max Weber. Dado o papel central jogado
pelas representações e pelas práticas religiosas na vida das sociedades, a emergência das
sociedades modernas significava uma reorganização profunda do lugar e do papel do
religioso, até mesmo sua perda inevitável de influência, como vimos no Capítulo II. As
abordagens sociológicas puderam pouco a pouco esclarecer uma maneira específica de
abordar os fenômenos religiosos, isto é, uma maneira particular de os constituir como fatos
sociais, objetos de observação e análise.
aspecto contrário, ou seja, a religião como fator de desintegração social, a religião como
vetor de reação e protesto. Ela pode também ser a expressão de uma luta ativa contra o
status quo e gerar atitudes de retirada do mundo, seja coletivamente através da construção
de sociedades alternativas, seja individualmente através da mística, por exemplo. 125
“O fiel que fala com seu Deus não é apenas um ser humano que vê as
novas verdades que o não-crente ignora; é um homem que pode mais. Ele
sente em si mais força, seja para enfrentar as dificuldades da existência,
seja para as superar. É como se elevasse acima das misérias humanas
porque se estivesse acima da sua condição de homem; ele acredita estar
salvo do mal, sob qualquer forma, seja qual for a maneira que ele concebe
o mal. O primeiro artigo de toda fé é a crença na salvação pela fé.”
(DURKHEIM, 1989, p.75).
125
Durkheim não diferencia, neste caso, a sociedade religiosa em relação à sociedade civil. Mas esta
limitação da abordagem durkheimiana é também o seu diferencial. Com efeito, são numerosos os exemplos
onde a religião é um elemento importante de afirmação de identidade coletiva, como ocorre com o Islã xiita
no Irã, como o Catolicismo na Polônia, a Igreja Ortodoxa na Grécia, o Luteranismo na Suécia e vários outros.
237
Além disso, é por demais conhecido o estudo de Weber sobre as diversas formas
do poder religioso. Ele elaborou uma tipologia de autoridades religiosas a partir do
reconhecimento das diferentes formas de legitimação do poder na vida social (racional-
legal, tradicional ou carismática).126 No domínio religioso, estes três modos de legitimação
do poder definem os tipos ideais do sacerdote, do feiticeiro e do profeta. Esta tipologia de
formas de autoridade religiosa deve ser utilizada, naturalmente, com cuidado, mas seu
poder heurístico é grande e numerosos sociólogos da religião fazem referência a ele.
Outra contribuição de Weber foi a sua teoria dos tipos de formação das
comunidades religiosas, ao distinguir a igreja de uma seita como dois modos de existência
social da religião. A primeira constitui uma empresa burocratizada de salvação aberta a
todos e onde se exerce a autoridade da função de sacerdote: ele está em simbiose estreita
com a sociedade englobante. A segunda, como uma forma de associação voluntária de
126
A legitimação racional-legal do poder corresponde à autoridade administrativa, uma autoridade impessoal
que responde pela credibilidade e pela validade dos regulamentos e das funções. O poder tradicional se
baseia no crédito da validade do costume, na legitimidade da transmissão tradicional das funções (por
exemplo, a função hereditária). Quanto à autoridade carismática, ela é o tipo de poder pessoal porque sua
legitimidade se baseia na aura reconhecida de um determinado indivíduo.
238
crentes em ruptura mais ou menos marcada com o ambiente social; no interior de uma tal
associação prevalece uma autoridade religiosa de tipo carismático. Assim, quem nasce
membro de uma igreja pode tornar-se membro de uma seita por uma decisão voluntária.
127
Podemos concluir que Émile Durkheim e Max Weber são dois modos de
apreensão dos fatos religiosos que nos mostram que, mesmo no interior de uma disciplina,
a construção do objeto de estudo e a escolha dos ângulos de análise podem ser diferentes.
Para eles falar de fatos religiosos não esvazia a necessária elaboração de seu objeto de
estudo: nunca é um fato simplesmente dado, ele possibilita diversas perspectivas de estudo
e de análise, a partir dos materiais que constituem os fatos coletivos, os traços culturais, as
realidades simbólicas e sensíveis através das quais aparecem os fenômenos religiosos.
Podemos considerar que outra grande lição destes sociólogos clássicos é que o
estudo dos fatos religiosos foi uma contribuição importante para a análise da sociedade no
seu conjunto. Se pôde acreditar, logo após a II Guerra, que a religião constituía um
fenômeno social em vias de desaparecer, como se mais modernidade significasse
obrigatoriamente menos religião, os fatos estão mostrando justamente o contrário, como
colocamos no Capítulo II. Se a secularização, particularmente nas sociedades ocidentais, se
manifesta por uma queda sensível do poder social de enquadramento e de influência das
instituições religiosas, se esta secularização é incontestavelmente traduzida por uma queda
bastante sensível das diversas práticas religiosas, concluí-se que a modernidade
contemporânea não está menos religiosa, mas tem outra religião. As maneiras de ser
religioso, de se referir a uma verdade considerada transcendental e de vivê-la socialmente
evoluem no contexto das mudanças sociais globais. Estudar os fatos religiosos é também
sair das filosofias lineares da história prevendo um destino desconhecido para o religioso,
tendo cuidado para o fato de que o religioso também muda e que ele se inscreve como um
fenômeno dentre outros na evolução global das sociedades.
A noção do fato religioso ressaltada por Debray e por outros que o seguiram, se
não é uma definição simples e unívoca, pode ser considerada proveitosa, sobretudo para o
ensino. Não somente porque, como eles ressaltam, é preferível escolher o adjetivo
127
Igreja ou seita são, na abordagem de Weber, dois tipos ideais, ou seja, dois modelos elaborados pela
pesquisa e que não existem em estado puro na realidade, mas que são polos úteis de referência para o estudo
da realidade empírica.
239
O ensino dos fatos religiosos na escola laica, portanto, não procede de uma
ruptura fundamental da concepção da laicidade na França e no Brasil. Certamente, ele vem
da maturação da laicidade e de uma evolução de sua prática, ou ainda do aparecimento de
uma nova configuração ideológica em torno do seu núcleo filosófico e jurídico.
Ensinar os fatos religiosos na escola pública não é apenas um olhar dentre outros,
que permite explicar o mundo para os alunos, mas também, dentre outros, uma caminhada
que lhes permite compreendê-lo e, sobretudo, pensá-lo. É, pois, uma caminhada
pedagógica que conjuga complexidade e totalidade e que passa, prioritariamente pelas
narrativas, pelos textos e pelas obras. Esta caminhada é sempre ocasião de se passar da
forma ao sentido e perceber que o religioso, assim também como o artístico, vai sempre
além de qualquer abordagem que dele se possa fazer (BORNE, 2003). O religioso não se
restringe ao patrimonial, ele está firme no mundo presente.
inteligência, como Jean-Paul Willaime, Jean Baubérot, Philippe Gaudin e Isabelle de Saint-
Martin, fazem qualquer referência a Morin e a Boaventura. Também na questão da política
pública do ensino dos fatos religiosos na França, que só se entende a partir daquela nova
perspectiva de laicidade compartilhada por Morin e Boaventura, estes teriam muito a dizer,
mas eles permanecem impermeáveis nos meios acadêmicos franceses. Arriscamos em
dizer que são, até certo ponto, desconhecidos.
Tenho muitas vezes dado o exemplo de Chomsky e Piaget, que são duas
grandes mentes, mas não incluem nem um nem o outro o que o outro está
dizendo. Eles não entendem que o problema não é discutir os fatos, mas a
necessidade urgente de comunicar as estruturas de pensamento. Nós
somos (ainda) bárbaros nessa área.” (MORIN, 1985).
243
Decidir o que deve ser ensinado e para que se ensinar dentro de uma sala de aula é
tarefa bastante complexa, pois estamos definindo os rumos que a sociedade deve tomar.
Não se trata de um ato gratuito e sem repercussões. Mesmo com toda a crise que estamos
vivendo na educação, a escola ainda é um locus decisivo para o futuro de crianças e
adolescentes. Mesmo sendo consensual a necessidade da educação escolar como
constitutiva e constituinte do nosso tempo e da nossa sociedade, ainda assim o debate
acerca do que ensinar e para que se ensinar constitui-se um desafio impar para a sociedade,
o Estado e, principalmente, para os educadores. Não podemos esquecer que o debate sobre
o educar e sobre o ensinar passa pelo debate sobre a existência humana e pela discussão da
falta de humanidade do nosso tempo. A escola é historicamente um espaço privilegiado de
aprendizagem, mas esta aprendizagem não se situa apenas no universo cognitivo e técnico
da instrução. É consensual que a escola tem uma função comprometida com a formação de
valores. Um projeto político-pedagógico deve garantir esta função.
Nada melhor para isso do que iniciarmos pela própria inteligência como a base ou
a condição para o conhecimento. Podemos ter a inteligência do mundo que nos cerca
(ciências naturais) ou mesmo do espaço em que vivemos (geografia) ou aquela do nosso
passado (história). Mas o que nós entendemos por ‘inteligência’? Não existem várias
formas de alcançá-la? Fala-se de ter uma inteligência dos fenômenos religiosos, ou seja, da
244
Todos concordam também que, com a inteligência assim conceituada, não é fácil
ter um acesso esclarecido e informado, por exemplo, do conjunto das obras de arte que
constituem nosso patrimônio cultural brasileiro. Lembremos-nos das obras de Oscar
Niemeyer em Brasília ou dos profetas do Aleijadinho em Congonhas. Em relação às
religiões, mais difícil ainda. Mas desde o instante que tomamos consciência do aspecto de
intimidade que cerca a arte e a religião, é todo um mundo que se abre diante de nós. Não
apenas do ponto de vista da quantidade do que existe para se conhecer, mas também do
ponto de vista do tipo de inteligência e de cultura que isso requer. Neste sentido, as
religiões, até mais do que as artes, são tentativas de explicação do mundo e que se
tornaram progressivamente obsoletas pelo progresso científico e tecnológico para grande
parte da sociedade ocidental.
Não há dúvida de que a religião, como fato social total, esteja duramente
confrontada com o progresso das ciências e das técnicas a ponto de ter de revisar
radicalmente seu discurso sobre a ordem da natureza e reformar profundamente suas
promessas de salvação. A certeza de se atingir o infinito era antes a promessa dos discursos
religiosos. Agora, desaparece a noção de limites da condição humana. Surge a noção de ser
humano como um ser ilimitado. Com isso surge a ideia de que podemos realizar todos os
nossos desejos; e mais do que isso, a noção de que temos a obrigação de lutar para que
todos os nossos desejos sejam realizados (SUNG, 2006, p. 25). A modernidade prometeu o
progresso até o infinito, sem limites para a inteligência humana e a razão. O homem passou
a ser o seu próprio infinito (MORIN & KERN, 2001).
Purgadas cada vez mais daquelas funções, que a ciência e a técnica assumem cada
vez melhor, as religiões vêm se impondo naquilo que elas possuem de irredutíveis:
interpretar o mundo em vez de dominá-lo ou mais exatamente, “interpretar o mundo para o
homem e o homem para o mundo”, como afirma Gaudin (2014a).
apenas verbal). Assim a religião, por exemplo, se exprime através do orar e do louvar em
vez do analisar e do esquematizar. A linguagem da ciência por excelência desde o século
XVII é a da matemática. É a linguagem cartesiana. Esta linguagem formal é universal pela
univocidade de seus signos e pelos seus códigos de rigorosa correspondência entre
significantes e significados.
Existe outra forma de linguagem que não se pode nunca codificar, porque ela fala
através de símbolos. Uma linguagem simbólica fala por signos nos quais a relação entre
significante e significado tem um motivo especial e diferente do usual para se expressar.
Toma-se a balança para significar a justiça e o leão para significar a força. Podemos
compreender essas relações naturalmente. É como se o mundo entregasse espontaneamente
o inteligível para o ser humano, este ser sensível e inteligente, que então, o percebe e o
compreende.
Mas o negro simboliza o luto em nossa cultura tanto quanto o branco em outras
culturas. O leão simboliza a força tanto quanto a águia nas mesmas culturas. Dupla
confusão, portanto, porque vários significantes podem indicar um mesmo significado e
vários significados podem ser contidos no mesmo significante. Vê-se que a confusão do
símbolo se amplia ainda mais pela cultura e pelo seu poder natural de acrescentar os
códigos que ele precisa apreender. A cruz simboliza tanto o suplício e a morte, quanto a
vitória sobre a morte. Assim precisamos saber como os romanos condenavam à morte os
criminosos e como os cristãos viam na cruz de Jesus a porta estreita para a ressurreição do
Cristo.
Ela deve também se abrir para o fato de que há várias inteligências possíveis. A
própria palavra inteligência nos remete, além disso, a dois significados fundamentais: seu
sentido intelectual e seu sentido relacional. Ter a inteligência de um fenômeno quer dizer
que eu sou capaz de apreendê-lo o mais adequadamente possível; estamos aqui na ordem
246
do saber. Se eu digo que eu vivo uma boa inteligência com meus vizinhos, não se trata de
uma questão de conhecimento. Trata-se, antes, de boas relações com eles. A função da
escola é certamente de desenvolver a aptidão para o saber, mas também as capacidades
relacionais. O cidadão responsável deve saber como barrar as falsas ideias ou passar pelo
crivo da crítica o que se tenta acreditar ingenuamente, mas também, como seres humanos,
e mais ainda como cidadãos e cidadãs, devem ser capazes de habitar o mundo e conviver
com os outros. A escola é encarregada desta dupla inteligência.
Vamos buscar mais uma vez em Edgar Morin algumas pistas para o
esclarecimento desta questão. A forma de conhecimento que articula diversas perspectivas
e ciências no estudo de realidades concretas é o paradigma da complexidade. Mais do que
isso, ela estrutura o próprio pensamento de tal forma que procura sempre perceber a
interdependência entre fatos e pessoas que parecem, à primeira vista, independentes ou
247
sem relação uns com os outros. É uma forma de pensar que reconhece que a realidade é
‘tecida’ por tramas complexas e, portanto, acredita que pensamentos analíticos que
privilegiam o separar e o dividir são importantes, mas não suficientes.
128
A especialização científica, fruto da fragmentação e da separação entre os saberes, passou a ser
reproduzida também na escola. Assim, a solidariedade foi excluída do âmbito escolar como algo talvez
restrito à educação familiar ou às religiões.
248
“Forte não é aquele que não tem dores, não sente nenhuma
insegurança ou medo, mas sim aquele que tem forças para
reconhecer e ter sensibilidade para as suas dores, e que, por isso, é
capaz de sentir as dores dos outros. Sentindo as dores dos outros, é
capaz de sentir a sua dor. Não dá para separar isso, porque eu sei
quem eu sou por meios das relações com outras pessoas.” (SUNG,
2002, p. 71).
a religião que professamos, distanciando-se dela como algo que possa ser observado de
fora, uma verdadeira tomada de consciência de nossas crenças mais profundas. Partimos,
pois, da nossa identidade cultural e religiosa.
décadas, a estrutura da educação escolar não consegue se adaptar a esta situação. Sua tarefa
permanece a de passar um estoque de conhecimentos já filtrados e reconhecidos. Os meios
de comunicação e as redes sociais, pelo contrário, fazem surgir o novo, o inesperado, o que
requer elucidação. Elucidar a notícia fica por conta dos comentaristas e dos editorialistas,
não dos professores.
Por outro lado, os métodos de ensino não devem se opor a este reconhecimento do
outro. Percebe-se, então, que esta postura não se restringe a uma disciplina ou a um
professor. Ela é necessária para toda a escola. Os professores que matam a curiosidade ou
o espírito crítico dos seus alunos e alunas, em vez de ajudá-los, podem ser extremamente
prejudiciais para eles. Esquecendo que funcionam como modelos, com esta sua atitude
arriscam-se a enfraquecer por toda a vida nos alunos e alunas a capacidade de abertura à
alteridade e de enfrentar as inevitáveis tensões entre pessoas, grupos e nações. O confronto
de ideias através do diálogo e da troca de argumentos é um dos instrumentos
indispensáveis à educação do século XXI, bem de acordo com a tese de uma laicidade
positiva de confrontação, defendida por Paul Ricoeur (1954). Para ele, como já dissemos, é
preciso preparar os alunos para serem bons debatedores; é preciso iniciá-los na
problemática pluralista das sociedades contemporâneas, na mesma linha de argumento de
Jung Mo Sung:
251
O que podemos fazer para melhorar esta situação? A experiência prova que, para
reduzir o risco, não basta pôr em contato e em comunicação membros de grupos diferentes
(através de escolas comuns a várias etnias ou religiões, por exemplo). Se no seu espaço
comum estes diferentes grupos já entram em competição ou se o seu estatuto é desigual,
um contato deste tipo pode, pelo contrário, agravar ainda mais as tensões latentes e
degenerar em conflitos. Pelo contrário, se este contato se fizer num contexto igualitário, e
252
que se diagnosticou, o que tem provocado ainda hoje debates incandescentes sobre este
próprio diagnóstico.
Sem dúvida, devemos começar por explicar que diagnóstico é este, mais
comumente aceito. Diversos fatores surgiram na França na década de 1980, período
durante o qual a escola se abriu para um maior número de alunos e alunas e quando a
questão de uma sociedade multicultural tornou-se um ponto central, em particular por
causa do processo migratório. 129
Devemos acrescentar que esses fenômenos ocorreram tendo como pano de fundo
o colapso das grandes narrativas ideológicas. Além disso, todo este tensionamento faz até
hoje com que seja muito delicada a gestão do pluralismo cultural e religioso, gestão que,
por outras diversas razões, também se torna cada vez mais delicada em todo o mundo. 130
Tanto lá como alhures, a escola procurava um novo sentido para a sua missão já que o
mundo em que ela estava imersa mudara drasticamente. No Brasil, este período
corresponde ao processo de redemocratização, tão rico pela discussão dos direitos civis,
sociais e políticos, incluindo a esfera da educação, que desembocou na Constituinte de 88 e
na LDB em 96.
Neste sentido, esta questão social, cultural e religiosa, de uma maneira muito
complexa, foi sem dúvida a razão determinante de uma tomada de consciência e a primeira
justificativa que foi dada para esta proposta de se promover um ensino dos fatos religiosos
na França. Mas quando a questão religiosa apareceu explicitamente e não apenas como
uma questão cultural, quando se colocou a questão de se ensinar a história das religiões no
Relatório Joutard, por exemplo, a questão social do vivre ensemble – o viver juntos - foi
bem recebida, mas apenas como uma filigrana no conjunto do projeto, mesmo sendo a sua
força-motriz, na opinião de Gaudin (2014a). É falso afirmar que no início houve uma
129
Não nos esqueçamos de que este período coincidiu também com os grandes deslocamentos e impactos do
religioso na sociedade mundial que passaram a questionar se o religioso deveria continuar estritamente
encerrado na esfera privada. Foi também neste contexto que a Epistemologia tendeu a superar toda forma de
dicotomia, típica da modernidade ocidental, como vimos no capítulo anterior.
130
A Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural (UNESCO, 2002) no artigo 1º declara que: “A
cultura adquire formas diversas através do tempo e do espaço. Essa diversidade se manifesta na originalidade
e na pluralidade de identidades que caracterizam os grupos e as sociedades que compõem a humanidade.
Fonte de intercâmbios, de inovação e de criatividade, a diversidade cultural é, para o gênero humano, tão
necessária como a diversidade biológica para a natureza. Nesse sentido, constitui o patrimônio comum da
humanidade e deve ser reconhecida e consolidada em benefício das gerações presentes e futuras. Assim,
pode-se afirmar que a diversidade cultural é uma característica essencial da humanidade, pois contém os
aspectos que mais marcam um povo e que revelam sua identidade; por isso deve ser conhecida, estudada,
preservada como riqueza da humanidade.”
254
“Como resposta a esta falta de cultura sobre o mundo das religiões, aliada
ainda a uma nova necessidade cívica de equacionar o novo mundo do
terrorismo e dos fundamentalismos religiosos, a religião na sala de aula
revela-se cada vez mais como uma realidade que necessita de um amplo
debate que responda e corresponda a alguns dos desafios mais prementes
do nosso mundo.” (FIGUEIRA, 2008, p.144).
131
Entrevista de Philippe Gaudin com o autor em 22/05/2015.
132
Entrevista de Jean-Paul Willaime com o autor em 01/05/2015.
255
São perguntas que sempre aparecem quando se discute na França como lidar com a
incultura da juventude? como já vimos no capítulo anterior. 133
Sobre esta questão, Jean-Paul Willaime (2014) possui uma opinião diferente. Ele
afirma que o tema da incultura religiosa foi efetivamente pouco a pouco substituído pelo
do ‘viver juntos’ e que isto corresponde a uma evolução que a sociologia coloca em
evidência na sociedade, quer dizer, de uma lógica de desaparecimento das identidades
religiosas a uma lógica da reivindicação de um direito de se ter uma religião qualquer.
133
Percebemos que estas questões se colocam também no Brasil de forma inevitável para aquelas escolas que
insistem, antes de mais nada, em preencher as lacunas do conhecimento, o que é típico de uma educação
conteudista e técnica que supervaloriza a instrução em detrimento da formação.
134
Reduzir o estudo dos fatos religiosos ao seu aspecto patrimonial pode trazer uma série de problemas. Isto
pode ser percebido na falta de continuidade nos programas. O Islã, por exemplo, corre o risco em ser
considerado em suas origens, e nada se falar da sua continuidade e evolução. Com frequência, se passa das
suas origens diretamente para os problemas de integrismo, comunitarismo e fanatismo religiosos de alguns de
seus grupos. Há o perigo de reduzir a religião à sua origem mais ou menos mítica ou histórica, e fazê-la
reaparecer quando se trata de violência e massacres. Esta seria uma visão bastante limitada e falsa.
135
Entrevista de Jean-Paul Willaime com o autor em 01/05/2015.
256
Mas esta defesa do ensino do fenômeno religioso para o ‘viver juntos’ não é
exclusiva dos franceses. Danilo R. Streck, em interessante artigo publicado em 1998,
partindo de um conceito aberto de ecumenismo, numa visão mais cultural que apenas
religiosa, defende a escolarização do fenômeno religioso como instrumento fundamental
para o reconhecimento da diversidade e de afirmação do respeito para com o outro. Este
respeito seria mais que tolerância, seria, na verdade, a aceitação do diferente, “na esperança
de contribuir para uma educação que ajude as pessoas a sentirem o mundo como sua casa
(oikos) comum, em constante processo de construção para que todos e todas nela tenham
lugar” (STRECK, 1998, p. 39).
136
É em 1982 que as Editions du Cerf decidem lançar a edição de um dicionário cultural da Bíblia que sairá
alguns anos mais tarde, quando François Boespflug foi o organizador da coleção nesta editora. Este trabalho
terá um grande sucesso (11 versões estrangeiras), e ainda mais interessante por se tratar de uma coedição com
Nathan, que é um editor tradicional nos meios educacionais, em um tema, cujas lacunas eles percebiam a
necessidade de preencher nesta mesma época.
257
diversos fundamentalismos137, religiosos ou não. Teixeira (2007) acrescenta ainda que ele
é também necessário para o “aperfeiçoamento do olhar e da escuta do mundo e da
alteridade e o respeito à sua dignidade, a percepção da riqueza e do valor de um mundo
plural e diversificado e a recuperação da força espiritual das religiões.” (TEIXEIRA;
SENA, 2007, p.75-76).
137
Existem fortes correlações existentes entre a “volta do diabo” promovida por alguns grupos
fundamentalistas e as diversas modalidades de demonização do outro através das quais se expressa em outras
formas, não mais racionais, mas socialmente mais perigosas, o sentimento de não se ter nenhuma
responsabilidade pessoal no mundo como ele é, nenhuma capacidade de agir sobre o seu futuro (a culpa é do
diabo...).
258
Estas recomendações não são válidas apenas para os países europeus. Elas podem
ser encaradas como uma contribuição significativa para a gestão do pluralismo cultural e
religioso em todo o mundo, inclusive no Brasil. A promoção do ensino do fenômeno
religioso deve fazer parte da avaliação de um pluralismo na educação escolar: nas nossas
sociedades cada vez mais diversificadas, cultural e religiosamente, é necessário que a
escola eduque para o pluralismo, o que significa não apenas compreender melhor a
diversidade das expressões culturais e religiosas, mas também desenvolver habilidades
para se mover em sociedades pluralistas. Para isso o Conselho da Europa chegou a
confeccionar um manual para as escolas, intitulado Diversidade religiosa e educação
intercultural: um livro de referência para as escolas.
“As tradições culturais, quer sejam elas ‘da maioria’ ou ‘da minoria’ não
podem prevalecer sobre os princípios e valores, como foi expresso na
Convenção Europeia dos Direitos Humanos e em outros instrumentos do
Conselho da Europa sobre os direitos civis e políticos, sociais,
econômicos e culturais, em particular que a igualdade entre os sexos
constitui uma questão prévia inegociável no diálogo intercultural”.
Livro Branco sobre o diálogo intercultural, 2008, seção 3.2, insiste também no
fato de que:
Em um sentido mais profundo, a escola tem diante de si uma difícil tarefa: ensinar
a competência para o discernimento entre todos os mitos contemporâneos. E discernimento
significa ação ou capacidade de discernir, destreza para entender algo, perspicácia, aptidão
ou capacidade de entender certas circunstâncias conseguindo distinguir uma realidade e o
seu contrário, habilidade para compreender algo com sensatez e clareza, designação de
juízo, entendimento, critério e conhecimento. Não há como fugir da compreensão de que
tudo isso possui uma função pedagógica, papel de qualquer aprendizagem, papel da escola.
Quando falamos de competência, um dos pilares contemporâneos da educação, estamos
nos referindo, inclusive, à competência para o discernimento entre os mitos do nosso
mundo, entre tudo o que nos humaniza e tudo o que nos desumaniza, na concepção mesma
de Levinas (2006; 2015).
Mas, afinal, qual pode ou deve ser um sentido último da vida? Devemos
reconhecer que nenhum tipo de conhecimento e nenhuma corrente científica têm condição
de dizê-lo nem nenhum determinado sentido da vida pode ser imposto. Assim, o melhor
caminho da escola é “ajudar os alunos e as alunas a adquirirem ou construírem
conhecimentos que lhes possibilitem o discernimento entre os diversos sentidos da vida”
(SUNG, 2006, p.136-137).
138
Um sentido da vida além dela mesma nos leva à criação de ídolos – criações humanas elevadas à categoria
do absoluto. Horkhemeir diz que “qualquer ser limitado e a humanidade é limitada – que se considera como o
último, o mais elevado, o único – se converte em um ídolo faminto de sacrifícios sanguinários, e que tem,
ademais, a capacidade demoníaca de mudar a identidade e de admitir nas coisas um sentido distinto”
(HORKHEMEIR, 1976, p.68 in SUNG, 2006, p.140).
262
Devemos superar a ilusão de que a educação não precisa tratar do sentido de vida,
daí porque a necessidade de discernimento dos mitos contemporâneos (SUNG, 2006).
Viver com um sentido de vida necessita de uma educação para a solidariedade,
principalmente para com as maiores vítimas da idolatria dos nossos dias, os mais
necessitados, os excluídos (SUNG, 1994). A educação para a solidariedade seria o
caminho para “reencantar a vida”, ou seja, dar-lhe um sentido último, alcançar aquela
situação em que se conclui que a vida vale a pena ser vivida, independentemente de
qualquer crença religiosa, como afirma Sung (2006).
Nos momentos em que as sociedades passam por crises e por convulsões, em que
as instituições entram em ruptura conjuntamente com padrões de comportamentos
tradicionalmente tidos como desejáveis, esses momentos devem ser vistos em sua
contingencialidade e não atribuídos a uma essencialidade criada na teoria das ideias inatas,
segundo as quais as pessoas já nascem com verdades absolutas, eternas e com a própria
noção de Deus.
Continuamos a pensar que homens e mulheres fazem o que fazem, assumem como
justos ou injustos seus comportamentos ou os comportamentos dos outros porque, como
pensava Kant, seguem uma ordem moral já impressa em sua essencialidade. Este sistema
de moralidade se fundaria na perspectiva de que esta componente humana central e
universal se resume na Razão, que, por sua vez se apresenta então como uma faculdade
que seria a fonte das nossas obrigações morais (FIGUEIRA, 2008). Percebe-se por aí como
a razão totalitária do Ocidente tem suas implicações no nosso comportamento moral do
cotidiano.
Contudo, não podemos negar que não se deva procurar uma saída diante destes
momentos de convulsão e de ruptura, pois “queremos algo que se encontre para lá da
história e das instituições. E o que poderá haver, a não ser a solidariedade humana, o nosso
conhecimento da humanidade do outro que nos é comum?” (RORTY, 1992, p. 236). E
indo além deste conhecimento, o seu próprio reconhecimento ou compartilhamento dessa
mesma humanidade? Ninguém é solidário sozinho. A solidariedade é um fato social.
265
Afinal, por que e para que trazer o religioso para dentro da sala de aula? Afinal, o
que tem o conhecimento do religioso a ver com a solidariedade? Figueira (2008) nos
sugere como resposta uma proposta pragmática. Para ele, trata-se de assumir o debate
sobre o foco da pertinência do estudo sobre o objeto – na medida em que ele reclama um
estudo – e não de como o estudo será feito, isto é, que conhecimento se faz necessário de
modo que o fenômeno religioso seja observado, perscrutado e analisado de dentro dela,
sem que se caia nas garras do reducionismo ou, no que não seria menos danoso, nas garras
do fundacionismo, como tanto já se argumentou aqui.
Por tudo o que já dissemos até aqui, a justificativa de uma disciplina do ensino do
fenômeno religioso no currículo escolar, como ocorre no Brasil, não se deve a argumentos
do tipo: porque nos ensinará a sermos mais responsáveis, mais cidadãos ou mais
respeitadores das regras morais. Uma disciplina como o ensino do fenômeno religioso na
266
assim, é um fato possível de ser estudado na escola, mas, além disso, também “é um
imperativo ético, como um valor e uma exigência ética” (MORIN, 2001, p.39). Existem
práticas que traduzem esse valor em atos concretos: partilhar, ajudar, acompanhar, apoiar,
aceitar, integrar, proteger, cuidar, preocupar-se, etc. Nem essas práticas, nem os valores
que a elas subjazem surgem naturalmente no desenvolvimento do ser humano. A
solidariedade é uma construção social e cultural, uma conquista frágil da civilização
(PERRENOUD, 2003, p. 2). Seria ingênuo, na situação em que se encontram o nosso
planeta e as relações sociais, acreditar que a solidariedade nascerá espontaneamente da
compreensão coletiva. Se ela se desenvolver, será em favor de lutas por mais democracia,
mais igualdade, mais respeito aos direitos humanos e às diferenças, etc. Então, existe
claramente um viés político nesta questão da solidariedade.
139
Numa sociedade pluralista como a nossa, para evitar a absolutização de algo humano, é preciso relativizar
estas experiências e narrativas provenientes das mais diversas tradições e pessoas, religiosas e não.
Relativização que não significa a diminuição do seu valor, mas sim a necessária contextualização histórico-
geográfico-sócio-cultural (SUNG, 2006, p. 150-151).
268
O debate da religião e os estudos dela e sobre ela, na sala de aula, nos levarão a
mapear os caminhos que constroem a inumanidade – como dizia Lavinas (2006; 2015) –,
ou no dizer de Rorty (1992) os que nos fazem mais cruéis. Assim, religião não é para que
nos tornemos mais dignos, mas menos inumanos ou menos cruéis, pois por ela
perceberemos nossas contingências o que nos afastará de considerar que algumas
afirmações serão mais humanas do que outras. O estudo do religioso deve, assim, se abrir
para a discussão sobre as práticas da discriminação étnica e religiosa, tratar de identidade,
autonomia, alteridade, tradições, valores, símbolos, indivíduos e coletividades,
singularidades e pluralidades. É tratar também de fronteiras, traduções, relações intra e
inter-grupos, inclusões e exclusões.
O objetivo do ensino do fenômeno religioso não deve ser formar cidadãos nem
mais conscientes nem tão pouco mais responsáveis. Tratar do fenômeno religioso em sala
de aula significa enfrentar as grandes questões que afetam a forma como homens e
mulheres em nossa sociedade constroem suas razões efetivas para viver e ‘viver juntos’.
Discutir o religioso significa assumir a necessidade de perceber que a vida não está
comprometida apenas com necessidade de se construir modos de coesão social. Vai muito
além disso. Lembrando mais uma vez da afirmação de Debray: “a religião é uma dimensão
identitária e coletiva profundamente inscrita na carne das sociedades, diz respeito à raiz
pesada das mentalidades e não apenas à história das ideias” (DEBRAY, 2004, p.152).
140
Libertando o discurso sobre Deus in Estudos de Religião, Ano XXII, n. 34, 84-104, jan/jun. 2008.
270
Rieger (2008) nos lembra que o impulso inicial para a opção preferencial pelos
pobres da Teologia da Libertação141 foi teológico. Mas, em seguida, ele coloca duas
questões que nos interessam mais de perto: que diferença fazem Teologia e Religião a este
respeito? Não seria qualquer referência sincera às margens ou ao subalterno suficiente para
resistir ao colonialismo/neocolonialismo e levar os estudos pós-coloniais ao próximo
passo? E nós acrescentaríamos: indo além da Teologia da Libertação, contextualizada,
como sabemos na América Latina, que importância libertadora teria o estudo da(s) religião
(ões) não apenas para o homem e a mulher da América Latina, mas para o homem e a
mulher no contexto de qualquer situação existencial, em qualquer lugar do mundo que
esteja à margem ou nas fronteiras, para utilizarmos uma terminologia própria dos estudos
subalternos?
Para ele existem pelo menos duas respostas a estas perguntas. Uma da perspectiva
do estudo da religião, mais amplamente concebida e que diz respeito ao nosso tema, e a
outra mais especificamente desde a perspectiva da teologia. Na perspectiva do estudo do
religioso, sabemos que todos os impérios coloniais modernos foram justificados
religiosamente. Por este motivo, o estudo crítico da religião é crucial para investigações
pós-coloniais. E mais: nesta história o cristianismo precisa ser especialmente escrutinado.
Rieger (2008) afirma que Walter Mignolo foi muito feliz quando apontou que o
cristianismo se tornou o primeiro desenho global do sistema mundial moderno/colonial,
depois da bem-sucedida expulsão dos judeus e árabes da Espanha e da conquista das
Américas. Para Rieger:
141
É interessante observar que John Beverly considera os estudos subalternos como a manifestação secular
da opção pelos pobres da teologia da libertação.
271
Muitas pessoas nas margens de nosso atual império levantam questões religiosas e
são motivadas por elas – um fato que em algum grau é reconhecido também nos Subaltern
Studies Groups. Em muitos lugares – e podemos citar a África do Sul, a América Latina,
certas regiões na Ásia e até mesmo os Estados Unidos –, comunidades de fé têm se
envolvido em resistir a estruturas coloniais, conduzindo as suas vidas de modo alternativo.
Rieger conclui que “enquanto a história do colonialismo olha o cristianismo mais de perto,
a história da resistência exige um horizonte religioso muito mais amplo, que inclui
interesse por outras religiões e diálogo inter-religioso” (RIEGER, 2008, p.101).
Muito já se falou no Brasil que o ensino religioso era necessário para se transmitir
e inculcar valores éticos e de cidadania nos alunos e alunas das nossas escolas. Logo após a
aprovação da LDB em 1996, foi esta a concepção de ensino religioso que avançou, de certa
forma impulsionada pelo FONAPER. Mas a proposta do ensino do fenômeno religioso,
como área de conhecimento no currículo escolar da escola pública e laica, não está
subordinada a uma determinada moral que certamente terá uma correlação com alguma
filosofia ou religião. A aprendizagem do fenômeno religioso não supõe a assimilação, de
forma direta, de valores éticos e morais. Ela pode ter um significado moral na formação
dos estudantes, se for percebido como fato da cultura e, como tal, constitutivo da
272
É também na França que esta discussão se encontra mais avançada. Temos ali
toda uma longa tradição histórica de uma educação cívica e de um ensino laico da moral,
desde a saída da religião do ensino público em 1882. Ainda hoje o ensino laico da moral
está na agenda política do país e provoca acessas discussões em torno da política
142
educacional a ser adotada. A referência à França nesta relação entre o ensino laico da
moral com o ensino dos fatos religiosos é necessária para o caso do Brasil, já que entre nós
o ensino religioso tradicionalmente foi entendido como um ensino de uma religião
portadora de determinada moral para a sociedade.
142
A lei Jules Ferry, de 28 de março de 1882, substituiu a disciplina ‘Instrução Moral e Religiosa’ dos
regimes precedentes (Lei Guizot, de 28/07/1833, e Lei Falloux, de 15/03/1850) de pela ‘Educação Moral e
Cívica’, deixando a educação religiosa no encargo das famílias que poderão dispor para isso de um dia da
semana, além do domingo, para retirar seus filhos das escolas e levá-los ao culto ou a outra atividade
religiosa. Esta prerrogativa das famílias ainda permanece na França. A Instrução Moral e Cívica desaparece
da França em 1968 e reaparece como Educação Cívica em 1985.
273
O regime republicano que levou esta geração ao poder na França no final dos anos
1870, tem um discurso totalmente diferente dos períodos anteriores. Nada ficou da união
napoleônica da moralidade e da religião positiva. Jules Ferry, certamente, repete várias
vezes, inclusive em sua famosa Carta aos Professores de 17 de Novembro de 1883, que a
República permanece com uma forte neutralidade religiosa:
“Então, fale com o seu aluno com força e autoridade, como uma verdade
indiscutível, um preceito da moral comum a todos, mas com o maior
cuidado, pois você pode tocar em um sentimento religioso que não deve
ser julgado” (FERRY apud PORTIER, 2011).
Uma conclusão se tira desta reflexão. É somente o Estado que poderia incutir uma
moral coletiva. Como se observa Jules Ferry em 1879: “O Estado é responsável pela
educação, a fim de manter uma determinada moral de Estado, alguma doutrina do Estado,
indispensável à sua conservação”. (FERRY apud PORTIER, 2011).
143
Mas essa dissociação também procede de um julgamento histórico: a Igreja Católica, com a qual Jean-
Étienne-Marie Portalis imaginava poder contar para consolidar a sociedade revolucionária, tem, ao longo do
século XIX, e mesmo através de alianças com regimes da ordem, perseverado na sua intransigência, a ponto
de se tornar impensável, a construção da “cidade dos espíritos emancipados” na expressão de Gambetta. A
partir da década de 1870, tornou-se impossível qualquer tipo de cooperação com ela.
144
Esta lei institucionalizava várias propostas do Relatório “Por um Ensino laico da moral”, solicitado em
2012 pelo ministro Peillon a Alain Bergounioux, Inspetor Geral da Educação Nacional e professor associado
ao Instituto de Estudos Políticos de Paris, Laurence Loeffel, professor de Ciências da Educação na
Universidade Charlles de Gaulle-Lille-3 e Rémy Schwartz, Conselheiro de Estado e professor associado na
Universidade de Paris.
274
É importante esclarecer ainda que foram também razões políticas que levaram o
governo francês a implementar um novo modelo do ensino laico da moral, deixado
praticamente de lado desde 1968. Basta lembrar do manifesto de um dos sindicatos de
diretores de escolas que denunciava em 2013 o fracasso da educação na França,
evidenciado pela evasão escolar de vários jovens que partiam para o engajamento nos
grupos terroristas do Oriente Médio. Aquele documento ressaltava a necessidade de um
projeto de educação e, especificamente, de uma política de ensino de moral e civismo que
conscientizasse os jovens quanto ao perigo do integrismo e do comunitarismo religiosos.
145
Estes valores fundamentais da República ficam explícitos no próprio texto da lei: o respeito mútuo, a
liberdade e a qualidade de vida em comum.
275
mencionado aqui. Percebe-se que, na proposta oficial, o ensino laico dos fatos religiosos e
o ensino laico da moral e civismo, apesar de terem a laicidade como sua base comum, são
políticas claramente independentes. Mas isso não impede toda uma discussão sobre a
transversalidade dessas políticas.
O ensino laico da moral é colocado como uma cultura que deve ser construída na
consciência e na práxis da vida de crianças e adolescentes.146 Assim, a cultura moral é
formada por uma cultura da sensibilidade, por uma cultura do direito e do dever, por uma
cultura de julgamento, por uma cultura de compromisso. Estas culturas devem se
relacionar diretamente com a disposição do ‘viver juntos’, formada pelos princípios de
autonomia, de disciplina, de coexistência das liberdades, enfim, da comunidade de
cidadãos. Elas devem se relacionar também com três categorias de valores que devem ser
promovidos: autonomia e liberdade; disciplina, comunidade e solidariedade; emancipação
pelo diálogo, espírito crítico e busca da verdade (SAINT-MARTIN & GAUDIN, 2014,
p.10). Analisando a evolução histórica do ensino laico da moral na França, Alain
Bergounioux (2006) observa que se passou de um saber nacional para valores de um viver
juntos.
Toda esta discussão se situa em outro contexto social, cultural e político diferente
do Brasil, mas alguns de seus pontos muito podem contribuir para o nosso caso particular.
A existência de uma área de conhecimento, não necessariamente uma disciplina específica,
de moral e civismo, como na França, ainda provoca entre nós arrepios nada saudosos da
ditadura militar e da sua política educacional.147 Como vimos, ela já possui na França uma
tradição e é bem recepcionada pela grande maioria da população.
O que queremos discutir aqui é exatamente a relação entre o ensino laico da moral
e o ensino laico dos fatos religiosos. Percebe-se, de saída, que a laicidade da escola é a
base comum destas duas políticas públicas de educação da França. Frente a isso é que têm
146
Quer se trate da moral ou dos fatos religiosos, a escola deve se preocupar em dar aos alunos e alunas, tão
marcados por diferenças e desigualdades, um referencial comum e uma base comum de conhecimentos, de
competências e de cultura. A Charte de la laicité á l’école, no seu artigo 7, também expressa esta
preocupação: “A Laicidade deve assegurar aos estudantes o acesso a uma cultura comum e compartilhada”.
147
A própria Igreja Católica sempre levanta a questão de quem tem a legitimidade para ensinar valores. O
Estado é o fórum mais legítimo para ensinar valores? Mas outros setores da sociedade também fazem este
questionamento. Há quem defenda que esta seja uma tarefa unicamente da família. De qualquer forma, na
Alemanha, após a experiência dos totalitarismos, segundo Willaime (2015), os alemães ainda desconfiam até
hoje das pretensões filosóficas do Estado. Porque eles experimentaram os totalitarismos nazista e comunista,
a tentativa do Estado de querer impor um conceito de vida para todos.
276
Ao mesmo tempo, a escola pública laica não pode, sendo uma instituição estatal e
nacional, ensinar uma moral particular, de uma filosofia ou de uma religião particular.
Então, há o desafio de se reconhecer que na sociedade atual há uma pluralidade de
concepções morais. Ou, como alguns filósofos dizem, existem diferentes concepções do
bem viver, diferentes concepções, por exemplo, para a dignidade do homem e da mulher,
para a questão de gênero.
Assim não se espera que a escola pública laica ensine uma concepção particular
para desqualificar outras concepções. Ao mesmo tempo, ela deve educar para um ethos
cívico e para um ethos democrático, um ethos dos direitos humanos. Porque estes são
277
pilares normativos das sociedades democráticas. Seria o que as escolas públicas laicas
poderiam e deveriam ensinar, mas é preciso reconhecer que há diferentes formas de
legitimar, por exemplo, os direitos humanos, a partir de um ponto de vista secular, ou a
partir de um ponto de vista religioso ou filosófico-não religioso.
148
Esta alteração já aparece no relatório “Por um Ensino laico da moral”, resultado do trabalho de Alain
Bergounioux, Inspetor Geral da Educação Nacional e professor associado ao Instituto de Estudos Políticos de
Paris, Laurence Loeffel, professor de Ciências da Educação na Universidade Charlles de Gaulle-Lille-3, e
Rémy Schwartz, Conselheiro de Estado e professor associado na Universidade de Paris. Este relatório foi
solicitado pelo ministro Peillon em 2012 e serviu de subsídio para o projeto de Lei nº 595/2013. Este relatório
afirma que não é possível ensinar uma concepção de bem único em uma sociedade democrática e pluralista
como a da atualidade, muito diferente da França nos anos 1880. Reafirma também a necessidade de fugir de
todo o relativismo através do ensino de valores comuns.
278
Outra delicada questão é que não está ainda realmente resolvida na França é a
formação de professores para a prática deste ensino laico da moral. De fato, este ensino da
moral passa muito pela prática, pelo aprendizado em sala de aula. Isso não tem como ser
uma teoria, o ensino da moral não é escrever na lousa: ‘você tem que amar seu próximo’,
‘é preciso respeitar o seu colega’. Em vez disso, na prática, inclusive em sala de aula, é
preciso ensinar aos alunos, por exemplo: ‘escute seu colega’, ‘seu amigo fala, ele também
fala; ele tem o direito de desenvolver os seus pontos de vista.’ É o que podemos chamar de
uma educação para a cidadania nas sociedades pluralistas. Este é um elemento fundamental
da educação nas escolas públicas em sociedades pluralistas: a educação para o pluralismo.
149
Aprender que o colega é diferente não é um problema, mas uma riqueza. Então o
professor precisa ensinar a diferença e para ensiná-la, para que os estudantes se acostumem
com a diferença cultural, isso deve ser apreendido na vida diária, em sala de aula.
Outro ponto muito importante é que as escolas públicas não façam como se
fossem a única instância de socialização moral. Este é também o importante papel dos pais,
das famílias, das associações, dos grupos religiosos, e até mesmo das associações
desportivas, pois através do desporto, inclusive, aprendemos regras éticas, o respeito pela
regra do jogo, o respeito ao outro. O respeito pelo outro no jogo passa pelo respeito às
regras. Portanto, há uma virtude moral do esporte em particular, tanto do esporte coletivo
quanto do esporte individual.
149
Entrevista de Jean-Paul Willaime com o autor em 24/06/2015.
279
famílias, das associações, dos grupos religiosos e não religiosos na educação social,
cultural, ética dos indivíduos. 150
Gaudin lembra que “o famoso ‘viver juntos’ é o ponto de encontro entre a moral e
o ensino dos fatos religiosos, para um projeto de sociedade que faça sentido, mesmo se não
150
Entrevista de Jean-Paul Willaime com o autor em 24/06/2015.
151
Entrevista de Jean-Paul Willaime com o autor em 24/06/2015.
152
Entrevista de Jean-Paul Willaime com o autor em 24/06/2015.
280
quisermos vê-lo como tal, por não sabermos o que pensar exatamente sobre isso.”
(GAUDIN, 2014a, p. 298). Para aquelas correntes mais laicistas, a moral laica serve como
uma solução completa para todos os problemas do ‘viver juntos’. Este é um bom exemplo
do que Ricoeur (1954) chamava de laicidade de abstenção, mesmo que a escola, a
princípio, não desconheça a sociedade onde ela se insere.
Gaudin (2014b) aponta uma verdadeira diferença, para não dizer um mal
entendido, entre a natureza do ensino do fenômeno religioso e certo tipo de demanda social
que não se incomoda com sutilezas e que afirma que a religião vai levar, pelo menos, um
pouco de moral para a escola. O ensino do fenômeno religioso não deixa de ter, no entanto,
um evidente significado moral, sem impor uma determinada moral.153 Vejamos.
Ensinar o fenômeno religioso, seja como um tema transversal, seja como área de
conhecimento ou mesmo uma disciplina, é antes de tudo, educar e melhor instruir. Todo o
Capítulo III foi dedicado a esta questão. Aquele significado moral não é, portanto, uma
lista de boas ou más ações, obrigações e proibições, que também seria impossível
estabelecer ao estudar o fenômeno religioso. Pelo contrário, seu escopo é proporcionar a
conscientização, com exemplos concretos, do fato de que a vida humana na sociedade
nunca é apenas uma vida biológica simplesmente, mas sempre procura se construir de uma
forma simbólica e ética, a se representar por narrativas, rituais e obras de arte,
preocupações com as origens do mundo, com as principais etapas da vida, com um destino
para o além, etc.
Isso não significa que não haja nenhuma construção simbólica e ética fora das
religiões, mas é certo que elas são deste ponto de vista, uma reserva de sentido
considerável e de grande repercussão na sociedade. Por outro lado, o fato de se estudar os
fatos religiosos em uma óptica ‘científica’ tem um efeito crítico sobre uma certa maneira
de crer e querer impor suas crenças fora de todo contexto democrático e, portanto, fora de
qualquer contexto laico para entrar em um questionamento moral.
153
O ensino dos fatos religiosos através das disciplinas da área de Humanidades na França requer abordagens
tão diferentes que impede a manipulação simplista com objetivos externos predeterminados. Mas não
podemos descartar nenhum dos lados nesta questão do significado moral deste programa.
281
absurdas, mas pode se manifestar tanto na altura de suas construções teológicas, quanto na
profundidade de suas raízes antropológicas e sociais a tal ponto que a leitura de muitos
eventos seculares pode ser feita como ressurgências recompostas do religioso, como já foi
falado aqui. A reflexão moral, tensionada entre o conhecimento necessário do ser humano
como ele é e o postulado de como ele deveria ser, não pode abrir mão de tais recursos
proporcionados pelo estudo do fenômeno religioso como aplicação didática da(s) ciência(s)
da(s) religião(ões). Se a ciência é, por si mesma, uma atividade social, como afirma
Boaventura de Sousa Santos (2010), o ensino do fenômeno religioso na escola pública se
justifica diretamente do ponto de vista da educação que é também, por si mesma, um
ensino de valores comuns e de uma cidadania partilhada.
282
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No caso do Brasil, vimos que o tradicional ensino religioso traz uma pesada carga
ideológica herdada dos tempos da colônia como catequese e ensino de uma religião em
particular, no caso a Católica, cuja hegemonia só recentemente vem sendo abalada. Sua
maior ou menor inserção no sistema escolar e a forma desta inserção evoluíram a partir das
grandes transformações da sociedade brasileira na direção de uma secularização cada vez
maior e a consequente constituição de um Estado laico com a República. Mais
recentemente, os grandes deslocamentos do religioso, com destaque, no nosso caso, do
crescimento das religiões pentecostais e neopentecostais com todos os seus
desdobramentos, colocaram a religião na urgência de uma agenda política nacional.
Nesse sentido, acreditamos ter demonstrado com segurança que a laicidade, como
vem sendo colocada atualmente pela maior parte dos acadêmicos e pesquisadores franceses
sobre o tema, é o pressuposto indispensável para a ampliação do conhecimento na
perspectiva mesma da ecologia dos saberes, entre eles os saberes religiosos. Trata-se de
uma referência complexa para esta relação laicidade-conhecimento-religião, a que
conceitos já conhecidos vêm trazer agora, com o nosso trabalho, contribuições ímpares. É
o caso, por exemplo, da noção da separação flexível entre o Estado e as religiões
desenvolvida por Jean-Paul Willaime e Philippe Portier na mesma linha da laicidade
compartilhada de Habermas. É o caso também da laicidade positiva de confrontação, já
colocada por Paul Ricoeur em 1954. De toda esta reflexão, pudemos concluir que a
laicidade é um pressuposto fundamental para se pensar o ensino do fenômeno religioso não
apenas na França, mas também no Brasil.
para uma sociedade secularizada como a nossa e em um espaço público tão importante
para a formação das consciências como a escola pública.
Esta não é a finalidade de uma disciplina específica, mas de todas as disciplinas, de todo o
currículo, com base no projeto político-pedagógico da escola pública.
Os argumentos de base jurídica atentam para a lógica da lei, cuja letra explicita
como um valor irrevogável a laicidade do Estado. Cabe ao Estado não se pronunciar em
matéria de fé religiosa, privilegiando uma crença em prejuízo de outras. Assim, na
qualidade de laica, a escola pública não deve manifestar-se em favor de crenças
específicas. Deriva desse entendimento a inconstitucionalidade de qualquer forma de
ensino religioso de caráter doutrinário e confessional. O que está em jogo no julgamento
das ADIs não é determinar como inconstitucional o que “aí está”, mas determinar como
inconstitucional toda forma de ensino religioso que seja confessional, interconfessional
e/ou ecumênica. Esse é o espírito da lei. Para nós está muito claro que não se trata de
declarar não constitucional o ensino religioso, mas as formas de tematizar a religião em
sala de aula que não atentem para esse componente curricular como lugar para a
construção de um conhecimento de especificidade histórica, social e cultural que constitui
identidades, etnicidades e grupos sociais que compõem a sociedade civil brasileira. As
religiões, portanto, como culturas, como linguagem, como arte, como conjunto de crenças,
como sentido, como formas de ordenamento individual e coletivo, que se expressam por
meio de narrativas míticas, textos, rituais, códigos de usos e condutas.
O que ocorre é que essas leis no Brasil tiveram sua origem na década de 30 do
século passado, exatamente para agradar os católicos, historicamente os principais
286
interessados nessa matéria. Por isso, o ensino religioso reconhecido como disciplina em
horários normais, mas de maneira facultativa, para que não se deixasse de atender os
laicistas do movimento da Escola Nova. Naquele momento, não interessava ao Estado
tomar um dos lados e resolver esta disputa política. Interessava mais manter os dois lados
sob relativo controle, de acordo com o Estado de compromisso criado por Vargas após a
Revolução de 30.
Não podemos prever o desfecho do julgamento das ADIs no STF, mas algumas
indicações do Ministro Barroso apontam para a afirmação da constitucionalidade do ensino
religioso, talvez com o estabelecimento de normas e limites para o seu funcionamento, e
julgando como inconstitucional as modalidades que não o considerem como área de
conhecimento, com respaldo científico.
Não é somente o ensino religioso que permite uma certa invasão de noções
derivadas de crenças privadas na esfera pública. As grandes transformações que incidem
sobre as sociedades pós-modernas estão desconstruindo, na atualidade, como vimos, os
conceitos de secularização e secularismo, laicidade e laicismo, já que é patente a
precariedade de suas definições clássicas. As noções também de público e privado estão
despertando cada vez mais a atenção de educadores e juristas. Na França, esta discussão já
vai avançada, mas no Brasil ainda está engatinhando. Religiosos e religiosas carregam
288
pública francesa do ensino dos fatos religiosos pode dar uma contribuição importante para
o caso brasileiro.
Se a escola quiser educar para reduzir a nossa inumanidade, como quer Levinas
ou, conforme Morin, se ela quiser educar para a condição humana, e esta é a sua principal
função, temos de mostrar aos alunos e às alunas a interdependência entre os seres humanos
como um fato e lhes ajudar a ter experiências de aprendizagem e de vida que lhes
permitam não apenas conhecer, mas também reconhecer existencialmente este fato. Como
pudemos demonstrar, são exemplares as contribuições de um conjunto de autores como
Perremoud, Rorty, Hugo Asmann, Jung Mo Sung e Eulálio Figueira em consonância com a
proposta do ensino do religioso tendo como pressuposta a própria laicidade do Estado e a
secularização da sociedade.
educadores e gestores escolares que ainda têm diante de si uma tarefa árdua e complexa de
tratar a religião em sala de aula. Ainda é possível continuarmos falando de ensino
religioso? Como as palavras descrevem e prescrevem, lembremos aqui uma última vez de
Bourdieu, acreditamos que não! Mesmo com a denominação desta disciplina como ensino
religioso na Constituição Brasileira de 1988, na LDB e em tantas outras regulamentações
do sistema de ensino, há de se procurar, de alguma forma, o seu transcurso para o ensino
do religioso se quisermos consolidar entre nós esta área de conhecimento como necessária,
urgente e indispensável nos currículos escolares, parte integrante de uma educação para o
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