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Abstract: The present article takes advantage of the notion of unity of the work to
think about the production of Herberto Helder, in particular Photomaton & Vox,
hybrid book made from the experimentation of several genres. It is important,
therefore, to think to what extent some texts from the set help us to understand the
ideas of fragmentation, unity, wholeness and continuity for the case in question,
starting with the concept of album from Roland Barthes.
Keywords: unity; work; Herberto Helder.
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Menezes, R. B. | A unidade deslizante da obra Photomaton & Vox, de Herberto Helder 169
do livro (MELOT, 2012) ou, ainda, em Poesia toda (1973 e emendada nos anos
modo aleatório, pois, como é preciso deixar de 1981, 1990 e 1996), Herberto Helder
claro, não existe uma progressão temática ou o poema contínuo: súmula (2001),
ou reflexiva que justifique a necessidade de Ou o poema contínuo (2004), A faca não
ordem para a leitura dos textos de Herberto corta o fogo: inédito e súmula (2008),
Helder ali agrupados. Nosso procedimento Ofício cantante – poesia completa (2009)
de reflexão passa pelo tensionamento das e Poemas completos (2014). Ao longo de
ideias de Roland Barthes, em especial a todas essas reordenações em suas recolhas,
ideia de álbum, e de uma demonstração com revisões, reescritas, decréscimos
das possiblidades textuais presentes em e acréscimos, o poeta acaba por fazer
Photomaton & Vox. colidir todos os planos de montagem
O caráter fragmentário de Photomaton feitos. O espaço da obra, então, é visto
& Vox não é exclusivo na produção do em expansão e retração, em movimento,
poeta português Herberto Helder. Sua obra portanto. Mas esse espaço só pode ser visto
poética, de acordo com o autor, é fruto de na relação com o tempo, com alternações
um processo contínuo que buscou reunir entre sincronia e diacronia, a depender
folhetos publicados ao longo dos anos. do propósito do leitor. Como disse Helder
A afirmativa do poeta, em sua famosa no texto “(memória, montagem)”: “tudo
autoentrevista, publicada primeiramente isto reproduz a relação pessoal com o
na revista Luzes de Galiza e aqui no Brasil espaço e o tempo, quero eu dizer: uma
na revista Inimigo Rumor, na qual diz ser montagem, uma noção narrativa própria”
um “autor de folhetos” (2001, p. 190) e (2006, p. 139). Ou ainda: “Não existe outra
que escreveu “apenas um poema, um metáfora que não seja o espaço; aquilo
poema em poemas” (2001, p. 192), é um a que chamam metáforas são linhas de
dos pontos de partida para se pensar o seu montagem narrativa, o decurso da alegoria,
projeto literário. o espetáculo.” (2006, p. 140).
Outro ponto interessante a se ressaltar A estratégia da recolha e da reescrita
é que, para Helder, a autoria passa pela é, portanto, um movimento obsessivo
operação de montagem, de combinatória do poeta em refazer esse todo, sempre
de imagens tecidas na memória (2006, pronto a ruir, com a aparição de um novo
p. 138-143, texto que constava em Cobra, folheto ou com a decisão do poeta de
obra esfacelada e em parte destruída). Esse suprimir, reescrever, acrescentar poemas
fluxo de imagens é articulado de modo a ao poema contínuo, essa espécie de
formar uma sintaxe toda feita de imagens. linha de montagem narrativa, como o
Ora, se pensarmos essas duas ideias em disse o poeta. Mesmo a última recolha
conjunto, veremos que a obra contínua publicada em vida, Poemas completos,
de Helder, não somente no nível de seus é, hoje, automaticamente incompleta, na
folhetos, é também parte dessa articulação medida em que temos, lançado em 2015
entre memória e montagem. e 2016, mais dois livros de Helder: Poemas
A este ponto talvez seja importante canhotos, livro póstumo do autor que teria,
acrescentar os projetos de recolhas segundo seu editor na Porto Editora, sido
empreendidos por Helder ao longo dos seus organizado ainda em vida, e Letra aberta,
84 anos de vida: Ofício cantante (1967), poemas escolhidos pela viúva Olga Lima
a ter com o próprio autor que assina a instável e maleável. Vale lembrar, aqui, do
capa. Nesse início, temos a impressão procedimento de memória e montagem
que se trata de uma narrativa com
que Helder admite fazer uso.
veleidades autobiográficas. O que,
veremos, o próprio texto irá refutar.
O enunciador, então, diz: “Vou dizer Na infância havia uma casa onde eu
como foi: aluguei uma casa. Só tinha andara assim, por corredores e quartos.
uma cama para pôr lá dentro, mais Como direi? Escrevendo, descobrira que
nada. Bom. Alguns livros e um gira- cada facto ocorrido hoje correspondia
discos. Sim.” (2006, p. 64). a outro ocorrido na infância. Mas isto
era outra coisa. Verifiquei por exemplo
Ora, parece-nos que ali estamos a que, ao escrever sobre o passado, eu
escutar o narrar de um fato cotidiano, o atraiçoava, revelando-o apenas como
visão presente. Assim, a experiência é
ordinário. Porém, veremos que, em um
mantida como hipótese de investigação
afirmar e refutar de ideias, a linguagem de que acolhe sempre a dúvida, ou dela se
Herberto Helder sempre comportará em alimenta. (2006, p. 65)
seu seio o simbólico como desmedida.
Como de certo, o fato é apenas descul- A infância que Herberto Helder in-
pa para o enunciador começar a escrever. tentaria recordar através do contato com
E ele escreve exatamente o que estava a casa vazia, com paredes silenciosas,
acontecendo, como se fosse um diário do é a experiência que comporta em si a
presente tornando-se passado, um tempo dúvida, refutando a possibilidade da
tornado objeto a perder-se de sua origem, verdade certa, pois “a memória tem a sua
em um repetir de movimentos e inércias, parte de esquecimento” (2006, p. 34), é
ações e pensamentos deste ser: “Comecei “improvável” (2006, p. 66). Os fatos do
então a escrever aquilo mesmo.” (2006, hoje corresponderiam a fatos da infância,
p. 64-65). E na tentativa de escrever o numa repetição circular, mas, logo a frente
presente, viu-se tomado pelo passado, pois declara: “As relações entre as diversas
“A escrita foi-me conduzindo a outro tempo, partes desta realidade descontínua são
um tempo simétrico.” (2006, p. 65). Não fica esquivas, móveis, ambíguas.” (2006, p. 65).
evidente, pelo termo utilizado, se se trata Recorre, então, “à parábola, à alegoria, à
de fato do passado, mas, como podemos metáfora” (2006, p. 65), tornando-se pelo
pensar, o “tempo simétrico” e o que logo que nunca poderá ser, ou seja, instauran-
após ele chama de “matéria cristalográfica do-se enquanto discurso mais próximo do
do tempo” são uma possível referência a teor literário e artístico que científico, ser
um tempo regular, sem a instabilidade que constituído de fluídos oblíquos.
parece saltar do discurso que enuncia um A “escrita circular” não remete somente
presente na narrativa, como um cristal que a um retorno ao ponto de partida, como
conserva certa transparência, mas com se pode pensar em princípio. A maior
resvalar difusos de energias e imagens. implicação, de acordo com Helder, resulta
O passado, nesse sentido, não seria uma na insolubilidade, “porque nenhuma
correspondência com o presente nem solução é possível, por nunca se poder
com os fatos do passado em si, mas uma provar a hipótese de verdade da coisa
nova instância edificada pela imperfeição escrita” (2006, p. 65). Temos, então, uma
do retorno feito no presente, também escrita que se desdobra sobre si mesma,