Вы находитесь на странице: 1из 8

e-ISSN: 2526-8848

ThEMAtis v. 3, n. 2, p. 168-175, jul.-dez. 2017


http://dx.doi.org/10.15448/2526-8848.2017.2.28902

A unidade deslizante da obra Photomaton & Vox,


de Herberto Helder
A sliding unit of work Photomaton & Vox, by Herberto Helder

Roberto Bezerra de Menezes*


Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil

Resumo: O presente artigo aproveita a noção de unidade da obra para pensar a


produção de Herberto Helder, em especial Photomaton & Vox, livro híbrido feito
da experimentação de diversos gêneros. Importa-nos, portanto, pensar em que
medida alguns textos do conjunto nos ajudam a entender as ideias de fragmentação,
unidade, totalidade e continuidade para o caso em questão, partindo do conceito
de álbum para Roland Barthes.
Palavras-chave: unidade; obra; Herberto Helder.

Abstract: The present article takes advantage of the notion of unity of the work to
think about the production of Herberto Helder, in particular Photomaton & Vox,
hybrid book made from the experimentation of several genres. It is important,
therefore, to think to what extent some texts from the set help us to understand the
ideas of fragmentation, unity, wholeness and continuity for the case in question,
starting with the concept of album from Roland Barthes.
Keywords: unity; work; Herberto Helder.

O presente artigo tem como horizonte comentário de Gustavo Ribeiro: “[...] o


de reflexão a ideia de unidade da obra, livro parece desafiar qualquer classificação,
conceito que, aqui, é colocado em tensão não se deixando capturar pelo discurso
com a obra Photomaton & Vox, de Herberto crítico que quer aprisioná-lo em categorias
Helder, exemplo de hibridismo de gêneros: e conceitos estanques” (2009, p.  177).
o relato autobiográfico e o recurso ao diário, Essa instabilidade não permite ao leitor
a narrativa curta, o poema, o texto crítico, inferir uma ordem, uma unidade, não há
o ensaio experimental, o comentário, o possibilidade de leitura orientada pela
aforismo, textos dispersos de catálogos existência de um sumário, por exemplo.
de arte convivem sob o mesmo título, Cabe, portanto, ao leitor, fazer uso do livro
fazendo instáveis as lindes do texto literário seguindo a ordem das páginas, tendo em
e do texto crítico, ou, para recuperar o vista o imperativo da dobra no imaginário

* Doutorando em Estudos Literários na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). <robertobmenezes@gmail.com>

Este artigo está licenciado sob forma de uma licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional,
que permite uso irrestrito, distribuição e reprodução em qualquer meio, desde que a publicação
original seja corretamente citada. http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt_BR
Menezes, R. B. | A unidade deslizante da obra Photomaton & Vox, de Herberto Helder 169

do livro (MELOT, 2012) ou, ainda, em Poesia toda (1973 e emendada nos anos
modo aleatório, pois, como é preciso deixar de 1981, 1990 e 1996), Herberto Helder
claro, não existe uma progressão temática ou o poema contínuo: súmula (2001),
ou reflexiva que justifique a necessidade de Ou o poema contínuo (2004), A faca não
ordem para a leitura dos textos de Herberto corta o fogo: inédito e súmula (2008),
Helder ali agrupados. Nosso procedimento Ofício cantante – poesia completa (2009)
de reflexão passa pelo tensionamento das e Poemas completos (2014). Ao longo de
ideias de Roland Barthes, em especial a todas essas reordenações em suas recolhas,
ideia de álbum, e de uma demonstração com revisões, reescritas, decréscimos
das possiblidades textuais presentes em e acréscimos, o poeta acaba por fazer
Photomaton & Vox. colidir todos os planos de montagem
O caráter fragmentário de Photomaton feitos. O espaço da obra, então, é visto
& Vox não é exclusivo na produção do em expansão e retração, em movimento,
poeta português Herberto Helder. Sua obra portanto. Mas esse espaço só pode ser visto
poética, de acordo com o autor, é fruto de na relação com o tempo, com alternações
um processo contínuo que buscou reunir entre sincronia e diacronia, a depender
folhetos publicados ao longo dos anos. do propósito do leitor. Como disse Helder
A afirmativa do poeta, em sua famosa no texto “(memória, montagem)”: “tudo
autoentrevista, publicada primeiramente isto reproduz a relação pessoal com o
na revista Luzes de Galiza e aqui no Brasil espaço e o tempo, quero eu dizer: uma
na revista Inimigo Rumor, na qual diz ser montagem, uma noção narrativa própria”
um “autor de folhetos” (2001, p. 190) e (2006, p. 139). Ou ainda: “Não existe outra
que escreveu “apenas um poema, um metáfora que não seja o espaço; aquilo
poema em poemas” (2001, p. 192), é um a que chamam metáforas são linhas de
dos pontos de partida para se pensar o seu montagem narrativa, o decurso da alegoria,
projeto literário. o espetáculo.” (2006, p. 140).
Outro ponto interessante a se ressaltar A estratégia da recolha e da reescrita
é que, para Helder, a autoria passa pela é, portanto, um movimento obsessivo
operação de montagem, de combinatória do poeta em refazer esse todo, sempre
de imagens tecidas na memória (2006, pronto a ruir, com a aparição de um novo
p. 138-143, texto que constava em Cobra, folheto ou com a decisão do poeta de
obra esfacelada e em parte destruída). Esse suprimir, reescrever, acrescentar poemas
fluxo de imagens é articulado de modo a ao poema contínuo, essa espécie de
formar uma sintaxe toda feita de imagens. linha de montagem narrativa, como o
Ora, se pensarmos essas duas ideias em disse o poeta. Mesmo a última recolha
conjunto, veremos que a obra contínua publicada em vida, Poemas completos,
de Helder, não somente no nível de seus é, hoje, automaticamente incompleta, na
folhetos, é também parte dessa articulação medida em que temos, lançado em 2015
entre memória e montagem. e 2016, mais dois livros de Helder: Poemas
A este ponto talvez seja importante canhotos, livro póstumo do autor que teria,
acrescentar os projetos de recolhas segundo seu editor na Porto Editora, sido
empreendidos por Helder ao longo dos seus organizado ainda em vida, e Letra aberta,
84 anos de vida: Ofício cantante (1967), poemas escolhidos pela viúva Olga Lima

Porto Alegre, v. 3, n. 2, p. 168-175, jul.-dez. 2017


Menezes, R. B. | A unidade deslizante da obra Photomaton & Vox, de Herberto Helder 170

entre os que o poeta deixou manuscritos. Se o poema contínuo helderiano quanto


esses livros póstumos irão ser acrescentados Photomaton & Vox, a que retornaremos
a uma súmula posterior, não se sabe, mas mais à frente. Até que ponto as sucessivas
é certo que esse movimento de acréscimo recolhas podem se configurar como uma
não será mais feito pelo autor ele mesmo, tentativa de desestabilizar o mito coletivo
falecido a 23 de março de 2015. do livro, segundo os preceitos de unidade
Se o poeta decidiu assim nomear a e coerência? Se o livro é arquitetural
última súmula que pode fazer em vida, em e premeditado, as súmulas de Helder
que consta o seu poema feito de poemas, o também o são, ainda que nelas, uma após
poema contínuo agora poemas completos – outra, haja essa rasura do trabalho feito e a
plural, desunidos, finalizados –, essa atitude sua substituição para efeito de atualidade
também mostra o horizonte de totalidade do projeto do autor?
que obcecava o poeta, desejoso de cumprir Sem nos ater ao objetivo de encontrar
a servidão, o ofício cantante, para recuperar respostas para as perguntas que habitam a
o título da recolha anterior, a que nunca primeira parte desse texto, procuraremos,
conseguiu escapar. Essa ideia de totalidade mais objetivamente, retornar à discussão
também acompanha o título da primeira envolvendo o caso Photomaton & Vox,
recolha: Poesia toda, como acompanharia agora o relacionando à ideia de álbum,
o projeto de reunião de sua prosa: Prosa como propôs Barthes. Para isso, optamos
toda, o que nunca veio a acontecer. É certo por apresentar algumas ideias presentes
que Helder era um leitor de si mesmo. Para em textos diversos do volume, o que ajuda
ele, ler era sim refazer esse todo, sem deixar a entender não só as ideias de Helder a
de reconhecer que esse todo era fruto de propósito do que seja a escrita literária,
fragmentos, chamados folhetos, a que o mas dá a ver a multiplicidade de tipos
poeta continuamente impôs reordenações discursivos ali reunidos.
e montagens diversas. Photomaton & Vox, livro de Helder
A esse pensamento em torno da obra que apresenta cinco edições (1979, 1987,
de Herberto Helder talvez seja interessante 1995, 2006 e 2015), com emendas a cada
acrescentar as reflexões de Roland Barthes edição, e que traz em seu seio um grande
sobre A preparação do romance. Em sua número de gêneros dispares, pode ser
primeira prova: a escolha, a dúvida, Barthes associado à ideia de álbum, mas, por força
fala dessa atitude do escritor perante a da contingência, hoje é visto como livro em
escolha de uma imagem-guia a seguir, sua unidade fragmentária.
uma fantasmática forma no horizonte do Se está em questão falar de unidade,
desejo. Ainda que não seja aqui o caso da podemos partir de algumas linhas de força
escrituração de um romance, as atitudes de que estão presentes em diversos textos de
escolha e dúvida são sentidas no projeto Photomaton & Vox que dão ideias sobre
de Helder. Nessa primeira prova também o que é a escrita para o autor. “– Esta /
é importante a distinção empreendida por espécie de crime que é escrever uma frase
Barthes1 entre as formas fantasiadas livro e que seja” (2006, p. 8) é o que desencadeia
álbum, que podem nos por a pensar tanto a desordem que preside a montagem do
texto literário de Helder: “A minha força é
1 A distinção vem de Mallarmé, que praticava o álbum e o
condenava, segundo Barthes. a desordem” (2006, p. 8).

Porto Alegre, v. 3, n. 2, p. 168-175, jul.-dez. 2017


Menezes, R. B. | A unidade deslizante da obra Photomaton & Vox, de Herberto Helder 171

Entretanto, essa espécie de crime do mundo, desencadeado a experiência


presidido por uma aparente desordem literária.
dá também espaço para os traços No fragmento “(carta do silêncio)”,
autobiográficos, já apontados por Gustavo Herberto Helder coloca em cena
Silveira Ribeiro (2009). Silveira toma as preocupações com a linguagem da expe-
ideias de Deleuze, em “A literatura e a riência literária de modo mais explícito.
vida”, para apontar em Photomaton & O poeta português admite pensar que
Vox a noção de vida escrita, fundada a poesia vem do silêncio, atravessa-o e
em “neutralidade”, “corporeidade e o nele se multiplica, em direção ao fim
permanente estado de metamorfose” mesmo que, sendo um por vir, só se pode
(RIBEIRO, 2009, p. 181). É o que se per- supor tratar da mesma matéria: silêncio,
cebe, por exemplo, no texto intitulado pois “tudo acaba onde começa” (2006,
“(photomaton)”, o primeiro em prosa, o p. 164). Por outro lado, o silêncio, neste
segundo após o poema de abertura, e que trecho, é também da ordem do silêncio
dá em parte nome ao volume: do corpo, como uma recusa eventual
que acomete os escritores. Hölderlin,
Mas vivi em África, longe de toda a
Nietzsche, Rimbaud, Trakl, Sá-Carneiro,
cartografia vertente, longe também da
intenção mitográfica euro-africana – e Crane, Plath, Celan e Lorde Chandos são
aconteceram-me alguns entremezes evocados pelas posições de recusa, seja de
sinistros e iluminantes. Vi leprosos, isolamento seja de suicídio, um silêncio
fui tocado por leprosos. Vi a guerra, a mais radical. A importância de Rimbaud
morte frontal, a minha morte – e vi os
para a experiência moderna, para Helder,
desertos. Vi-me a mim próprio subindo,
numa metamorfose exasperada, dos se deve a ele acreditar que “o silêncio é que
precipícios do pavor até às estritas deveria ter sido o ponto de partida para
regras da vida. E estava maduro para a experiência espiritual da modernidade”
ver tudo. Desejei então ser eu mesmo (HELDER, 2006, p. 126).
o mais obscuro dos enigmas vivos, e
aplicar as mãos na matéria primária da De modo irônico, mas didático, Helder
terra. Gostaria de ser um entrançador (2006, p. 126) procura relacionar a ex-
de tabaco (2006, p. 12). periência literária com o silencio quando
diz haver apenas duas possiblidades para a
A partir desse trecho, percebemos escrita, apresentar ou representar:
que a “matéria primária da terra” é não
só relacionável ao mais iminente discurso Levar a linguagem à carnificina, liqui-
autobiográfico, mas é também elemento dar-lhe as referências à realidade, acabar
com ela – e repor então o silêncio.
do mundo ali encenado, reaproveitado,
Fingir escolarmente que não aconteceu
deglutido em ação antropofágica. Essa
nada – e escrever poemas cheios
atitude de alimentação nas culturas de honestidades várias e pequenas
não eurocêntricas confere a Helder um digitações gramaticais, com piscadelas
notável lugar em Portugal, ainda afeito às de olho ao “real quotidiano”. Aqui, o
questões locais e circundantes. A atitude autor diz: desculpa, sr. dr., mas: merda!
Em outro fragmento, “(em volta de)”,
de proximidade ao “aplicar as mãos”
Helder começa evocando um discurso
demonstra bem o ideal helderiano de em primeira pessoa, aproximando-nos
metamorfose do sujeito com as matérias desse enunciador como se estivéssemos

Porto Alegre, v. 3, n. 2, p. 168-175, jul.-dez. 2017


Menezes, R. B. | A unidade deslizante da obra Photomaton & Vox, de Herberto Helder 172

a ter com o próprio autor que assina a instável e maleável. Vale lembrar, aqui, do
capa. Nesse início, temos a impressão procedimento de memória e montagem
que se trata de uma narrativa com
que Helder admite fazer uso.
veleidades autobiográficas. O que,
veremos, o próprio texto irá refutar.
O enunciador, então, diz: “Vou dizer Na infância havia uma casa onde eu
como foi: aluguei uma casa. Só tinha andara assim, por corredores e quartos.
uma cama para pôr lá dentro, mais Como direi? Escrevendo, descobrira que
nada. Bom. Alguns livros e um gira- cada facto ocorrido hoje correspondia
discos. Sim.” (2006, p. 64). a outro ocorrido na infância. Mas isto
era outra coisa. Verifiquei por exemplo
Ora, parece-nos que ali estamos a que, ao escrever sobre o passado, eu
escutar o narrar de um fato cotidiano, o atraiçoava, revelando-o apenas como
visão presente. Assim, a experiência é
ordinário. Porém, veremos que, em um
mantida como hipótese de investigação
afirmar e refutar de ideias, a linguagem de que acolhe sempre a dúvida, ou dela se
Herberto Helder sempre comportará em alimenta. (2006, p. 65)
seu seio o simbólico como desmedida.
Como de certo, o fato é apenas descul- A infância que Herberto Helder in-
pa para o enunciador começar a escrever. tentaria recordar através do contato com
E ele escreve exatamente o que estava a casa vazia, com paredes silenciosas,
acontecendo, como se fosse um diário do é a experiência que comporta em si a
presente tornando-se passado, um tempo dúvida, refutando a possibilidade da
tornado objeto a perder-se de sua origem, verdade certa, pois “a memória tem a sua
em um repetir de movimentos e inércias, parte de esquecimento” (2006, p. 34), é
ações e pensamentos deste ser: “Comecei “improvável” (2006, p. 66). Os fatos do
então a escrever aquilo mesmo.” (2006, hoje corresponderiam a fatos da infância,
p. 64-65). E na tentativa de escrever o numa repetição circular, mas, logo a frente
presente, viu-se tomado pelo passado, pois declara: “As relações entre as diversas
“A escrita foi-me conduzindo a outro tempo, partes desta realidade descontínua são
um tempo simétrico.” (2006, p. 65). Não fica esquivas, móveis, ambíguas.” (2006, p. 65).
evidente, pelo termo utilizado, se se trata Recorre, então, “à parábola, à alegoria, à
de fato do passado, mas, como podemos metáfora” (2006, p. 65), tornando-se pelo
pensar, o “tempo simétrico” e o que logo que nunca poderá ser, ou seja, instauran-
após ele chama de “matéria cristalográfica do-se enquanto discurso mais próximo do
do tempo” são uma possível referência a teor literário e artístico que científico, ser
um tempo regular, sem a instabilidade que constituído de fluídos oblíquos.
parece saltar do discurso que enuncia um A “escrita circular” não remete somente
presente na narrativa, como um cristal que a um retorno ao ponto de partida, como
conserva certa transparência, mas com se pode pensar em princípio. A maior
resvalar difusos de energias e imagens. implicação, de acordo com Helder, resulta
O passado, nesse sentido, não seria uma na insolubilidade, “porque nenhuma
correspondência com o presente nem solução é possível, por nunca se poder
com os fatos do passado em si, mas uma provar a hipótese de verdade da coisa
nova instância edificada pela imperfeição escrita” (2006, p. 65). Temos, então, uma
do retorno feito no presente, também escrita que se desdobra sobre si mesma,

Porto Alegre, v. 3, n. 2, p. 168-175, jul.-dez. 2017


Menezes, R. B. | A unidade deslizante da obra Photomaton & Vox, de Herberto Helder 173

em movimentos de experimentação, um um tipo discursivo já posto em ata, mas que


fazer no ser e um ser no fazer, texto fechado reordena, por meio da ironia, o seu uso e
e, ao mesmo tempo, aberto. Helder nos o seu propósito primeiro: serve de entrada
explica: “Fechado sobre si”, um retorno para a exposição, mas também serve de
ao mesmo com possibilidades outras, e barreira para ela. Ou ainda o “(action-
aberto “porque as possibilidades dessa writing)” (2006, p. 80-82), em que se tem
consideração se mostravam praticamente um conteúdo reflexivo a pensar a própria
sem número” (2006, p. 65-66). escrita que se escreve na leitura, como a
No fragmento “(nota para não escre- substituir um poema possível, mas articulado
ver)”, Helder articula elementos dos textos em cortes próximos aos cortes poemáticos:
anteriormente citados, como o silêncio, um poema e um não-poema, uma forma e
a solidão, o esquecimento do mundo e a um conteúdo em desarrumação:
morte como elementos que, na escrita, tem
Desejaria que este escrito fosse um puro
conexão com a energia espiritual e com a teorema poético de violência, e as suas
metamorfose interior: personagens:
a) a minha mão estendida como uma
Se o conhecimento é uma forma de arma viva;
escrita, mesmo sem palavras, uma b) as vozes;
respiração calada, a narrativa que o c) certos silêncios;
silêncio faz de si mesmo, então não se d) luzes;
deve escrever, nem mesmo admitindo – ou então:
que fazê-lo seria o reconhecimento a) a noite que entra na claridade, ou
do conhecimento. Pode escrever-se o dia como um movimento ríspido,
acerca do silêncio, porque é um modo uma precipitação no meio do escuro;
de alcança-lo, embora impertinente. b) a enxuta matéria do mundo;
Pode também escrever-se por asfixia, c) o corpo luzente;
porque essa não é maneira de morrer. d) sangue a escorrer por toda a parte:
Pode ainda escrever-se por ilusão na leveza, na força, no sono – a re-
criminal: às vezes imagina-se que uma pentina beleza do sangue em volta
palavra conseguirá atingir mortalmente da raiz, o seu poder (2006, p. 80-81).
o mundo. A alegria de um assassinato
enorme é legítima, se embebeda o
espírito libertando-o da melancolia da Outro momento de estranhamento em
fraternidade universal. Mas se apesar de Photomaton & Vox é o texto “(o humor em
tudo se escrever, escreva-se então para quotidiano negro)”. Nesse texto, Helder faz
estar só. A escrita afasta concretamente uso de episódios rápidos e irônicos, com
o mundo. Não é o melhor método, mas
é um (2006, p. 78). referências ao humor negro e ao cotidiano
em parte ordinário, em parte inusitado.
Por outro lado, há em Photomaton & Alguns exemplos: “Foi posto à venda
Vox textos que, se não fogem a esse caráter o primeiro número de uma revista de
ensaístico e metaliterário, são frutos de cultura e intervenção cujas folhas, tratadas
práticas outras, como o texto de catálogo: com uma substância química especial, se
“(este escrito pode ser utilizado como ironia inflamam e consomem em contacto com
ao modelo crítico vigente / o modelo possui o ar.” (2006, p. 86). E mais: “Um jovem
meia dúzia de variantes / pretexto: uma espancou um tubarão dando-lhe pontapés
exposição de escultura)” (2006, p. 69-74). na boca. Apesar de muito maltratado, o
É o tipo de texto helderiano que faz uso de tubarão conseguiu escapar.” (2006, p. 89).

Porto Alegre, v. 3, n. 2, p. 168-175, jul.-dez. 2017


Menezes, R. B. | A unidade deslizante da obra Photomaton & Vox, de Herberto Helder 174

E ainda: “Um homem de 30 anos encontra- São diversos os exemplos de fragmentos


se em estado de coma, após haver tentado que fazem direta menção a livros de Helder,
suicidar-se comendo um sanduíche de pão o que nos lembra do projeto de Livro de
com lâminas de barbear.” (2006, p. 90). Mallarmé, do qual “resta um manuscrito
Várias são as situações de autoflagelação e de 200 folhas, que não são o Livro, mas
de morte, como em: pensamentos sobre o Livro” (BARTHES,
2005, p. 117). Assim, ainda que dispersos
Um indivíduo andava com uma e passíveis de descolamento do todo, esses
pequena ferida no polegar da mão
textos orbitam no cosmoshelder, cabendo
esquerda. Dizia que aquilo o maçava.
Hoje, entrou numa taberna, pediu uma ao leitor perceber os feixes de energia que
faca bem afiada e, com dois golpes interligam todos esses discursos produzidos
certeiros, cortou o dedo. Depois, com pelo poeta português. Costurar, montar:
a maior naturalidade, pegou no polegar operações também de leitura, não exclusivas
sangrento, aproximou-se da porta e
da escrita. Helder costurou a dobra do livro,
deitou-o fora (2006, p. 91).
mas resta ao leitor costurar os textos, para
além da relação no dado livro, em conjunto
Em “(carta a uma instituição requerendo
com o todo mais amplo, disperso. Assim,
uma bolsa)” (2006, p. 103-108), Helder faz
podemos inferir que Photomaton & Vox só
uso do gênero epistolar para, em atitude
apresenta traços de totalidade pelo gesto
negativada, requerer uma bolsa não pelo
extratextual, do alinhamento dos textos sob
mérito acadêmico, mas pela inadequação à
o mesmo título, da costura da dobra, do
institucionalização de seu discurso. Critica
gesto do autor de montagem.
a Academia e se coloca como louco:
Se “o livro é um mito coletivo”
Enquanto nós, os loucos, nos alimen- (BARTHES, 2005, p. 115), como apontou
tamos de apenas intransigência, emo- Barthes, é preciso ressaltar que a noção
ções truculentas, cândida violência de de álbum não é tão transparente no seio
ideias, e vivemos da luminosidade da da sociedade. De acordo com Barthes,
própria cabeça, os senhores, tão irre-
futavelmente sentados à mesa antro- o álbum não deveria ser visto como algo
pófaga, devoram o, por assim dizer, menor, mas parte de uma visão inessencial
nosso corpo literal. (2006, p. 105). de mundo, bem condizente com o estatuto
dito pós-moderno. A obra como objeto,
Eis, pois, alguns exemplos de textos uma totalidade material (BARTHES, 2005,
que compõem não somente o volume, mas p. 105) não é aqui questão, visto que
que denunciam a história constitutiva de esse ponto depende mais da costura e da
Photomaton & Vox, que aponta para o caráter dobra, atitudes feitas pelo poeta, mas que
circunstancial em que a obra foi concebida não se sustentam como único argumento.
e reconcebida. Ainda que reunidos sob o Talvez seja necessário aqui expor os
mesmo título, os textos ali presentes são critérios de Barthes, a partir de Mallarmé,
pequenas mônodas que funcionaram para a delimitação mínima do que seja
desarticuladas do todo que é o livro, ainda o álbum. Dois são os critérios que fazem
que se liguem pelo discurso autoremissivo o álbum: o circunstancial e o rapsódico.
de caráter metatextual, com intensidades Circunstancial porque percebe-se uma
diferentes a depender do texto em causa. “ausência de estrutura: conjunto factício

Porto Alegre, v. 3, n. 2, p. 168-175, jul.-dez. 2017


Menezes, R. B. | A unidade deslizante da obra Photomaton & Vox, de Herberto Helder 175

de elementos cuja ordem, a presença ou de uma verdade no mundo” (BARTHES,


a ausência são arbitrárias → Uma folha 2005, p. 131).
de álbum se desloca ou se acrescenta se- Se o livro é também entendido como
gundo o acaso; procedimento absoluta- “homólogo ao mundo” (BARTHES, 2005,
mente contrário ao do Livro” (BARTHES, p. 130), então o poema contínuo de
2005, p. 123); rapsódico porque é a “Ideia Helder, em sua ambição de totalidade,
do Costurado, Montado, Patch-Work” pode ser entendido como essa busca de
(BARTHES, 2005, p. 124). parelhamento ao mundo, algo que, como
Diante disso, podemos nos colocar no- vimos, não se faz notório em Photomaton &
vas questões: Photomaton & Vox é um álbum Vox. Mas se, como o disse Barthes, o Livro
somente se o leitor tiver consciência de sua volta a ser Álbum, se a ruína é o futuro
ausência de eixo estrutural? Em sua quarta do monumento, o Álbum é o futuro do
e última edição, com a ordem de fato posta Livro; se o que resta do Livro é a citação,
e imutável pelo autor, pode ser considerado o fragmento e o leitor despedaça o Livro,
livro apenas pela sua dada estrutura física então pode-se dizer que Helder joga com
e material, pela ausência de possibilidade o leitor na medida em que experimenta
vindoura da mão do autor a embaralhar a tensão entre fragmento e totalidade em
os textos? O que há internamente que suas obras. Assim, nos competiu pensar
pode boicotar essa ideia de livro enquanto esses movimentos empreendidos ao longo
unidade discursiva progressiva? Se para a de sua produção poética e fazer notar
condição de livro é necessário haver certa essas tensões que parecem ter muito mais
cadência, como recupera Barthes a partir contribuído que prejudicado a imagem
da distinção da música de Schöenberg e que se tem do poeta e de sua obra, hoje,
Cage, então Photomaton & Vox, pela sua em Portugal e em parte do mundo.
atonalidade, pela falta de cadência e de
centro, pode ser considerado um álbum, Referências
ainda que transformado em livro físico pelas
BARTHES, Roland. A preparação do romance.
circunstâncias. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo:
Ao autor coube escolher não somente as Martins Fontes, 2005. Vol. 2: A obra como
vontade.
formas livro ou álbum, mas também abraçar
HELDER, Herberto. Photomaton & Vox. 4. ed.
as implicações que tais escolhas contém. Lisboa: Assírio & Alvim, 2006.
Perguntamo-nos, então, se Herberto Helder ______. "Entrevista". In: Inimigo Rumor, n. 11. Rio
escolheu uma forma ou outra, visto que ao de Janeiro: 7letras, 2º semestre de 2001.
longo de nossa discussão apontamos haver MELOT, Michel. Livro. Tradução de Marisa Midori
um descompasso entre a dobra que o torna Deaecto e Valéria Guimarães. Cotia: Ateliê
Editorial, 2012.
livro e a ausência de centro e de progressão
RIBEIRO, Gustavo Silveira. “Os paradoxos da
que o aproxima do álbum. Ainda que se escrita autobiográfica em Photomaton & Vox de
considere a condição de livro de Photomaton Herberto Helder”. Revista Interdisciplinar, ano IV,
v. 8, p. 177-182, 2009. Disponível em: <http://
& Vox, é preciso talvez entender sobre o viés www.seer.ufs.br/index.php/interdisciplinar/article/
de Cage, citado por Barthes, que a dispersão view/1196/1034>.
tem sua parte de glória e que o livro tende a
se movimentar para a desorganização,
Recebido: 9 de maio de 2017.
sendo o rapsódico parte desse “apelo Aceite: 15 de novembro de 2017.

Porto Alegre, v. 3, n. 2, p. 168-175, jul.-dez. 2017

Вам также может понравиться