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O filósofo inglês Herbert Hart escreveu no século passado (1949) um artigo ("The Adscription of
Responsability and Rights") desenvolvendo o tema que chamou de defeasibility. A expressão
ganhou no Brasil a tradução de derrotabilidade. Mas ainda não há no país quantidade expressiva
de obras tratando do assunto. Um dos poucos livros que o abordam, ainda que sinteticamente,
é de autoria do Juiz Federal Juliano Taveira Bernardes (Direito Constitucional, v. 16, Tomo I, Ed.
JusPodivm). Também o prof. Pedro Lenza, no seu Direito Constitucional Esquematizado (15ª
edição. Ed. Saraiva, p. 141-144), faz a abordagem do assunto.
Pois bem. O comentário que ora se passa a formatar tem como fonte, dada a profundidade do
estudo executado, a dissertação de Fernando Andreoni, no que citaremos os pontos que mais
interessam ao tema. Já no resumo do seu trabalho, o autor nos fornece um norte que bem
elucida o que estamos a enfrentar: "O conceito de derrotabilidade reside na possibilidade de
que a consequência da norma jurídica venha a ser derrotada, afastada, não-aplicada, em razão
da existência de um fato, interpretação ou circunstância com ela incompatível".
O Direito é produzido e aplicado a partir da linguagem. A lição kelseniana de que o Direito cria
suas próprias realidades deve ser entendida como uma criação mediante o uso da linguagem,
sem a qual os destinatários dos comandos normativos ficariam desorientados e o propósito
maior do Direito - regular as condutas intersubjetivas - estaria prejudicado. Desde os debates
políticos que originam o material legislado, da Assembléia Constituinte até a votação de uma
simples Lei ordinária, sempre haverá a presença da linguagem para intermediar toda e qualquer
"comunicação jurídica".
Após a positivação do Direito, ao aplicador caberá a missão de interpretá-lo, sem embargo dos
problemas que podem exsurgir nessa atividade, tais como a vagueza e ambiguidade do texto,
assim como outros fatores linguísticos, imiscuídos na pré-compreensão do intérprete, na forma
de convicções pessoais sobre o ordenamento jurídico e acerca do caso concreto. O direito
positivo não é criado a partir do nada, ex nihilo, mas decorre da linguagem, que é transformada
em nova linguagem mediante uma cadeia de sucessivas transformações, promovidas em leis,
sentenças, acórdãos, portarias etc.
Essa visão do Direito como linguagem franqueia aos juristas uma séria de mecanismos capazes
de auxiliar a investigação do fenômeno jurídico em seus pormenores, em virtude das subdivisões
existentes em sua estrutura. Tradicionalmente se distinguem três planos da linguagem: o plano
da sintaxe (sintático), cujo objeto constitui o estudo da estrutura formal da linguagem por meio
de análises lógico-linguísticas; o plano da semântica, que tem por objeto averiguar o sentido das
proposições; e o plano da pragmática, cuja finalidade é investigar o uso das preferências
linguísticas.
(...)
Entende-se por subsunção a inserção de uma idéia particular sob a hipótese de uma idéia geral,
procedimento que se vale do silogismo para permitir a "derivação lógica de um imperativo
concreto a partir de um imperativo abstracto", por exemplo, "todo o assassino deve ser punido
com prisão perpétua; M é assassino; logo M deve ser punido com prisão perpétua". CESAR
SERBENA destaca que "do ponto de vista dos fundamentos metodológicos da interpretação, a
subsunção não parece ser tão simples como aparenta. A relação das palavras com as coisas é
um problema clássico da filosofia e, na expressão de RUSSEL, é tão antigo quanto ARISTÓTELES."
A operação de subsunção foi muito desgastada pela doutrina, por meio de questionamentos
que também atacavam o formalismo no Direito e a logicização da norma jurídica. A subsunção,
para os críticos, não seria capaz de tratar da complexidade do fenômeno jurídico, mormente em
um panorama normativo de relacionamento entre regras e princípios. Neste contexto, o
reconhecimento de que os casos concretos não seriam necessariamente subsumíveis a uma
única previsão legal, pré-delineada, embasou o entendimento de que a subsunção não se
prestaria para representar a intelecção jurídica.
(...)
3.1.1 Histórico
3. O conteúdo conceitual de um enunciado jurídico não pode ser precisado sem considerar-se o
contexto no qual é formulado. Outros enunciados do sistema podem permitir exceções na
norma por ele expressada.
5. Ao legislar, uma autoridade legislativa não pode considerar mais do que os casos normais,
mas sempre pode pensar em casos reais ou imaginários atípicos que mereçam uma solução
diferenciada. Por isso as obrigações e direitos consagrados em normas gerais devem ser
entendidos como sujeitos a exceções implícitas.
6. Por ser o uso primário dos conceitos jurídicos adscritivo e não descritivo (isto é que não
podem validar-se em função da informação física trazida em seu apoio), não se pode enquadrar
os fatos dentro do alcance dos conceitos jurídicos em termos de condições necessárias e
suficientes. Por isso um juiz, ao qualificar uma situação mediante um conceito jurídico, como
por exemplo o de "contrato", possui uma margem não eliminável de discricionariedade. Ele não
descreve o fato de que algo seja um contrato em função de certas características empíricas
identificáveis, mas adscreve a algo a qualidade de ser um contrato.
7. Qualquer norma jurídica pode restar derrotada em sua aplicação a um caso particular levado
ao conhecimento de um órgão jurisdicional, com fundamento no preceituado em uma norma
moral reconhecida por tal órgão, se este reputa injusta a solução normativa derivada do sistema
jurídico.
8. A norma geral que um órgão jurisdicional invoca como fundamento de validade da norma por
ele criada para a resolução de um caso, não somente serve para convalidar essa norma
individual efetivamente adotada, mas também toda uma classe de soluções igualmente válidas.
10. No ponto anterior se supõe informação completa. Todavia, nossa informação acerca da
realidade sempre incompleta. Quando formulamos juízos normativos a respeito de casos
particulares, somente podemos emitir juízos derrotáveis, pois uma maior informação poderia
derrotá-los.
11. Qualquer pretensão formulada perante um juiz, com base no disposto em uma norma geral,
pode ser derrotada pela parte contrária, se esta demonstrar que no caso em questão concorre
uma exceção que também encontra apoio em uma disposição do sistema.
Sem embargo da falta de univocidade do termo "derrotabilidade", é possível afirmar a existência
de um núcleo comum atribuído ao seu conceito, consistente na idéia segundo a qual a
consequência da norma jurídica pode ser derrotada, afastada, não-aplicada, em razão da
existência de um fato, interpretação ou circunstância com ela incompatível. Em termos
processuais (cfr., capítulo 5, infra), pode-se falar em fatos impeditivos, modificativos ou
extintivos capazes de infirmar a norma "prima facie", derrotando-a a fim de permitir a aplicação
de uma norma excepcional, diferente daquela prevista a priori a partir da literalidade textual.
Dessarte, esta lista demonstra uma série de hipóteses em que a norma jurídica pode ser
derrotada, normativa ou facticamente; não se trata, no entanto, de uma lista taxativa ou
cerrada, pois diante das plúrimas perspectivas do fenômeno jurídico, podem surgir novas
possibilidades de afastamento da solução prima facie."
Vale a pena mencionar, por oportuno, que essa teorização já vem sendo aplicada pela
jurisprudência para decidir - e ao que nos parece com muita pertinência - problemas concretos
particularmente surgidos na aplicação de regras jurídicas. Vejamos:
3. Quando se resolve uma antinomia em abstrato, considera-se a norma desprezada, para todas
as demais hipóteses em que norma se aplicaria porque: (a) inválida (em caso de conflito
hierárquico); ou (b) sem vigência (conflito cronológico); ou (c) ineficaz (conflito da
especialidade). Diferentemente, a resolução de uma antinomia em concreto não implica
qualquer juízo de invalidação da norma que se deixou de aplicar, a qual segue válida, vigente e
eficaz para se aplicar a outras situações.
4. Não bastasse, a decisão de mérito da ADIn 1.232/DF tampouco dispõe de efeitos vinculantes,
já que proferida antes da edição da Lei 9.868/99.
6. Recurso desprovido. Sentença confirmada. (Turma Recursal dos JEF's de Goiás, Recurso n.
200535007164388, Rel. Juiz Federal Juliano Taveira Bernardes, DJ de 31/01/2006)
Deste último julgado, sobreleva transcrever, pela sua pertinência, trecho do voto do Juiz Relator
do caso - exatamente o prof. Juliano Taveira Bernardes, acima apontado:
Assunto pouco enfrentado no direito brasileiro, o fenômeno da "derrotabilidade" tem a ver com
a inaplicação, total ou parcial, de certa regra jurídica, muito embora se confirme a exteriorização
dos pressupostos a partir dos quais se deveria normalmente aplicar a regra. Conforme ensina
PABLO NAVARRO, como o legislador não pode prever as infinitas circunstâncias que irão
aparecer no futuro, as regulações normativas estão abertas a exceções que "derrotam" a
qualificação jurídica inicialmente proposta pela autoridade normativa. Certo, algumas vezes,
essas exceções são expressamente introduzidas no contexto regulatório pelo próprio legislador,
mas, em outras ocasiões, tais exceções estão implícitas no ordenamento jurídico, razão por que
devem ser identificadas no momento da aplicação das normas. Assim, para HART, somente seria
possível enumerar as condições normais de aplicação dos conceitos jurídicos, razão por que
devem tais condições ser acompanhadas de uma cláusula aberta ("a menos que...").
Tal como explica HART no capítulo VII de seu famoso livro O conceito de direito, o direito possui
inegável "textura aberta", pois as regras têm "exceções insuscetíveis de afirmação exaustiva".
Os legisladores humanos não podem ter "conhecimento de todas as possíveis combinações de
circunstâncias que o futuro pode trazer". Logo, dessa incapacidade de antecipação normativa
deriva uma "relativa indeterminação de finalidade" do direito, sem que daí se possa extrair,
porém, uma ausência de vinculação ao comando das regras, pois uma "regra que termina com
a expressão 'a menos que...' é ainda uma regra."
Dito isso, sem discutir a abstrata compatibilidade constitucional da regra prevista no § 3º do art.
20 da Lei 8.742/93, objeto de decisão do STF na ADIn 1.232/DF, pode ocorrer que essa norma
apresente antinomia no caso concreto, em razão de algum princípio que se deve aplicar à
hipótese sub judice.
Mesmo uma regra cuja constitucionalidade tenha sido reconhecida pelo STF pode deixar de ser
aplicada concretamente, quando, consideradas todas as circunstâncias do caso (all things
considered), no lugar dela, deva preponderar a aplicação de regra de exceção (implícita ou
explícita) decorrente da concretização de princípio constitucional contraposto ao que lhe dá
fundamento.
Nesse rumo, - repito, mesmo sem questionar a constitucionalidade do dispositivo legal -, não há
como fugir da exegese segundo a qual o requisito econômico previsto no § 3º do art. 20 da Lei
8.742/93 não é absoluto. Embora tal regra represente a materialização do princípio
constitucional do economicamente possível, haverá situações em que, considerada todas as
circunstâncias do caso, prevalecerá a regra de exceção decorrente da concretização de
princípios constitucionais outros, tais como o da solidariedade e o da dignidade humana.
No caso, o núcleo familiar da Reclamante é composto só por duas pessoas, i.e., a própria
Reclamante e o esposo. A única fonte de renda é uma aposentadoria por invalidez deste último,
no valor de um salário mínimo.
Entretanto, embora o valor bruto da renda familiar per capita supere o limite do § 3º do art. 20
da Lei 8.742/93, não houve controvérsias quanto ao fato de que a mesma renda per capita resta
diminuída a patamar inferior a 1/4 do salário mínimo, acaso abatidos da base de cálculo os
gastos com medicamentos necessários à manutenção da pessoa assistida pela norma
constitucional.
"De fato, pelos receituários médicos colacionados aos autos, restou provado que a promovente
faz uso constante de medicamentos caros, os quais não são fornecidos pela rede pública de
saúde. Ressalte-se que, pela oitiva das testemunhas, evidenciou-se que o consorte desta é
pessoa doente e também necessita de remédios. Vê-se, pois, que a renda familiar, que é de
apenas um salário mínimo, encontra (sic) comprometida como despesas farmacêuticas." (Fl. 58).
É por isso, aliás, que o parágrafo único do art. 34 do Estatuto do Idoso (Lei 10.741/2003) permite
abater da renda per capita do núcleo familiar o valor do benefício assistencial já concedido para
outro membro do grupo."
O mínimo que você precisa saber a
respeito da derrotabilidade das
regras (defeasibility)
Dr. Samuel Sales Fonteles
Promotor de Justiça
Muito se tem ouvido e pouco se tem lido a respeito da derrotabilidade das regras
(defeasibility). Com este breve ensaio inaugural, chamo a peito a tarefa de elucidar, de uma
vez por todas, o mínimo que o leitor precisa saber a respeito do tema. Para extrair o
essencial de um assunto tão árido, resumi um estudo científico que elaborei para ser
submetido à Revista do Ministério Público de Minas Gerais (De jure), com cerca de 20
laudas.
Primeiro, uma noção básica.
Quando aquilo que é descrito por uma norma jurídica acontece na prática, aciona-se um
gatilho que faz a lei disparar seus efeitos em um alvo: o caso concreto. No Direito Tributário,
a incidência da norma que instituiu a exação fiscal opera-se com a ocorrência do fato
gerador. No Direito Penal, a norma incriminadora incide para punir o agente que consuma o
delito nela tipificado. E assim por diante. Podemos concluir, então, que uma norma jurídica
incide no suporte fático quando a hipótese, abstratamente descrita no arquétipo legal,
ocorre no mundo fenomênico. Em termos mais simples, podemos sintetizar afirmando que
a norma irradia seus efeitos quando se configura sua hipótese de incidência.
A ideia acima pode ser expressa em uma equação lógica binária, a saber: “Se A, então B”.
Exemplificando, se o art. 121 do Código Penal descreve o ato de assassinar alguém, desde
que um indivíduo mate o outro (e ressalvadas as excludentes de ilicitude e dirimentes de
culpabilidade), a norma incidirá.
Porém, em um tom didático, é possível afirmar que a equação “Se A, então B” só será
verdadeira em condições normais de temperatura e pressão. Diante de casos anômalos, a
incidência da norma poderia se voltar contra o próprio espírito da lei ou mesmo resvalar em
uma injustiça. Por conseguinte, em nome da mens legis ou do ideal de justiça, o magistrado
sonega os efeitos de uma norma existente, válida e eficaz.
É hora de ilustrar.
Se uma esposa estipula que seu marido não deve mentir, a regra é clara: “fale a verdade”.
O espírito da regra (mens legis) é a sinceridade que deve prevalecer no relacionamento
conjugal. Suponhamos, no entanto, que a sinceridade do esposo possa frustrar a surpresa
de uma festa de aniversário planejada pelos colegas de trabalho. Para assegurar a nobre
emoção proporcionada pela surpresa da festividade, o cônjuge temporariamente omite a
verdade, chegando, inclusive, a mentir. Como se vê, a mens legis da sinceridade não foi
comprometida na sua essência, de modo que a hipótese configuraria uma legítima exceção.
A regra, então, passaria a ser enunciada da maneira a seguir: “fale a verdade, exceto se for
para me surpreender positivamente em uma festa de aniversário”. Porém, imaginemos que
essa mesma esposa, em um rompante de fúria, imediatamente após descobrir estar sendo
furtada pela empregada doméstica, se valha de uma vassoura e persiga implacavelmente a
sua funcionária. Ao perdê-la de vista, a mulher indaga ao marido para que direção a ladra
correu. O homem, preocupado com o descontrole de sua companheira, prefere dizer que
não viu. Minutos depois, quando a paz é restaurada, o marido explica que mentiu para
acalmar os ânimos da esposa. Mais uma vez, em tese, a hipótese pode configurar uma
exceção legítima ao dever genérico de falar a verdade. A regra inicial, então, se
transmudaria para “fale a verdade, exceto se for para me surpreender positivamente em
uma festa de aniversário ou me proteger da minha ausência de freios inibitórios”.
Certamente, com o passar dos anos, a regra original sofreria inúmeras mutações, para
comportar exceções cada vez mais específicas e inusitadas.
É fácil concluir que a vida pode apresentar infinitas hipóteses casuísticas que justificariam a
flexibilização de uma regra, que escapam da previsibilidade do legislador, mas nem por isso
são reputadas como injustas. Este é o fundamento da derrotabilidade das regras: a não
ser por meio de dons premonitórios, é impossível ao legislador antever todas as
hipóteses reais que justificariam fosse excepcionada a regra que pretende
elaborar. Juliano Taveira Bernardes assevera que “dessa incapacidade de antecipação
normativa derivam exceções implícitas em número diretamente proporcional ao das
múltiplas variáveis presentes nos diversos tipos de conduta que se pretende regular” (Aborto
de Feto Anencefálico e Derrotabilidade. Suplemento Direito e Justiça, Jornal Correio
Braziliense, 07.03.2005).
Repito para que fique claro. A derrotabilidade (ou superabilidade) de uma regra implica a
não incidência de uma norma existente, válida e eficaz, ou seja, embora tenha percorrido
todos os degraus da escada ponteana, não se sagra vitoriosa no caso que normatizou. Nisso
se distingue do controle de constitucionalidade, afinal, enquanto a sindicância de
constitucionalidade aquilata a validade das normas, a derrotabilidade trabalha com uma
norma válida, mas episodicamente afastada em nome do que é (ou parece ser) justo. É
como se a norma paramétrica migrasse da Constituição para a Justiça ou mesmo para
assegurar os fins que a norma se propõe a resguardar.
Feita esta breve explicação, passamos didaticamente aos aspectos relevantes para provas
de concursos públicos:
Conceito: por força da doutrina da derrotabilidade das regras (defeasibility), uma norma
pode alojar infinitas exceções implícitas e imprevisíveis que, em um dado caso concreto,
justificam seja episodicamente afastada, a pretexto de se fazer Justiça ou de assegurar os
seus fins, permanecendo íntegro o texto que alberga o seu comando. Na feliz síntese de
Carsten Bäcker, “derrotabilidade deve ser entendida como a capacidade de acomodar
exceções” (Regras, Princípios e Derrotabilidade. Revista Brasileira de Estudos Políticos.
Belo Horizonte, n.º 102, p. 60, jan./jun. 2011).
Origem: a paternidade da teoria da derrotabilidade das regras é atribuída a Hart, em seu
ensaio The Ascription of Responsability and Rights (1948). O jusfilósofo empregou a
expressão defeasibility, cuja tradução para o português é prejudicada pela inexistência de
um correspondente exato. Entre nós, o termo quer significar que a regra é superada,
temporariamente vencida, episodicamente derrotada. Vimos que, na Teoria Geral do Direito,
uma norma jurídica incide no suporte fático quando a hipótese abstratamente descrita no
arquétipo legal se verifica no mundo fenomênico. Porém, Hart defendeu em seu trabalho
que, ainda que isso venha a acontecer, exceções podem impedir a incidência da norma,
como se os enunciados normativos contivessem uma expressão imaginária “a menos que”.
Fundamento: a impossibilidade de o legislador antecipar-se cauisticamente, para apontar
todos as possibilidades que justificariam o afastamento da regra.
O que é derrotado e o que vem a triunfar?
Derrota-se a norma, jamais o texto que a abrigou. Tem prevalecido que normas regras são
derrotadas, mas isso não se afigura possível quando se trata de normas princípios. Em
sentido contrário, Humberto Ávila sustenta que as duas normas admitem derrota. O
aprofundamento escapa aos objetivos deste ensaio e é feito de maneira oportuna no
trabalho intitulado “O Dilema do Ministério Público diante da Derrotabilidade das Regras
(defeasibility)”. Por fim, o afastamento pontual é levado a efeito em nome dos fins
perseguidos pela norma ou a pretexto de fazer triunfar a Justiça.
É possível aplicar a derrotabilidade das regras no Brasil?
Trata-se de uma técnica contra legem, logo, não encontra amparo explícito no Direito. Com
uma sinceridade rara e sem maiores cerimônias, Cristiano Chaves de Farias arremata: “Sem
dúvida, a admissibilidade da derrotabilidade das regras, ainda que em caráter excepcional,
autoriza a prolação de uma decisão contra legem – sem eufemismo ou
puritanismo” (Derrotabilidade das Normas-Regras (legal defeseability) no Direito das
Famílias: Alvitrando Soluções para os Extreme Cases (Casos Extremos). Revista do
Ministério Público do Rio de Janeiro: MPRJ, n. 53, jul./set. 2014, p.45).
Na jurisprudência brasileira, é raríssimo um julgado que aluda à derrotabilidade das
regras. Um dos poucos Tribunais que expressamente fez menção ao fenômeno foi o
Tribunal Regional Federal da 1ª Região, embora a aplicação do instituto tenha sido levada
a efeito de maneira desvirtuada e em uma certa confusão com o controle de
constitucionalidade. Transcreve-se a ementa do único julgado que consta da pesquisa no
sistema unificado da Justiça Federal (sem grifo no original):
EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. TRANSFERÊNCIA DE ESTUDANTE DEPENDENTE DE
EMPREGADO DE SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA. INEXISTÊNCIA, NO LOCAL DE
DESTINO, DE INSTITUIÇÃO CONGÊNERE. “DERROTABILIDADE” DA VEDAÇÃO
CONTIDA NO ARTIGO 99 DA LEI 8.112/90. APLICAÇÃO DA PARTE FINAL DA SÚMULA
43 DESTA CORTE. 1. A alegação de que à vista do disposto no artigo 173, § 1º, II, da
Constituição, os empregados de sociedade de economia mista e de empresas públicas que
exploram atividade econômica não poderiam ser equiparados, para o fim da transferência
deles e de seus dependentes, não tem, com a devida vênia, forte relevância jurídica, uma
vez que o objetivo da norma constitucional não é restringir os direitos dos empregados
daquelas pessoas jurídicas, mas sim não permitir que elas possam competir com as
empresas privadas, usufruindo vantagens não aplicáveis a estas. 2. Por outro lado, o
disposto na parte final da súmula 43 da jurisprudência predominante desta Corte (“A
transferência compulsória para instituição de ensino congênere a que se refere o art. 99 da
Lei 8.112/90, somente poderá ser efetivada de estabelecimento público para público ou de
privado para privado, salvo a inexistência, no local de destino, de instituição de ensino da
mesma natureza”) não atenta contra a decisão do Plenário da Suprema Corte que, ao julgar
a ADI 3324/DF, relator Ministro MARCO AURÉLIO (Carta Magna, art. 102, § 2º), uma vez
que nesse caso (inexistência no local de destino de instituição da mesma natureza), a
vedação em causa é “derrotável”, porquanto o legislador, ao editar o dispositivo em
referência, não considerou essa circunstância em sua formulação normativa, de
forma que o princípio do direito constitucional à educação (Carta Magna, art.205), bem
como o de que as normas restritivas devem ser interpretadas restritivamente
“derrotam” a vedação contida no referido dispositivo legal. 3. Embargos de declaração
não providos. (EDAMS 00055488020014013500, Juiz Federal Leão Aparecido Alves
(CONV.), DJe 18/04/2005)
No que atine ao STF e ao STJ, ambos já derrotaram normas sob todos os pretextos, mas
ainda não empregaram a terminologia da derrotabilidade (defeasibility). O Excelso Pretório
se valeu dessa metodologia, por exemplo, na ADIn 3689/PA.
O maior obstáculo à derrotabilidade das regras é a dificuldade de discernir o que é uma
exceção implícita e aquilo que deve ser considerado como um silêncio eloquente por parte
do legislador. O erro por parte do julgador implica uma ferida na democracia.
Quando o assunto é derrotabilidade das regras, não se pode conhecer aquém disto.
O que é derrotabilidade das
normas jurídicas?
Dirley da Cunha Júnior ,
Ultimamente vem-se falando muito da teoria
da derrotabilidade das normas jurídicas.
Deve-se ao autor inglês Herbert Hart o conceito
de derrotabilidade (defeasibility), sustentado no famoso
artigo The Ascription of Responsability and Rights, que
publicou em 1948.
A derrotabilidade da norma jurídica significa a possibilidade, no
caso concreto, de uma norma ser afastada ou ter sua aplicação
negada, sempre que uma exceção relevante se apresente, ainda
que a norma tenha preenchido seus requisitos necessários e
suficientes para que seja válida e aplicável.