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Raysner de Paula
Outubro de 2017
Clareia.
Olha só ele...
Quantas vezes os seus olhos já se encontraram com outros olhos, assim, cheios de
espanto, como agora estão os de Trumaré?
Na boca, os dentes também se rebatem – como quem bate o queixo de frio – e aí pode
ser que qualquer palavra que nasça já surja assim, mastiga-dita.
(...)
E esse cantarolado vai ganhado força, vai ganhando o espaço, abraçando as paredes,
escorregando todo pra dentro da gente...
Talvez...
Se esse nosso encontro com Trumaré tivesse acontecido num tempo antes desse
tempo de agora...
Antes daquele ronco, do estrondo, antes daquele clarão, antes de tanta fuga nas
pernas, bem antes da guerra...
Talvez...
Trumaré poderia estar agora diante de nós mostrando como aprendeu a engolir um
pedaço da noite para depois arrotar um tanto de breu.
O vento sopra.
TRUMARÉ – Escuta!
(...)
(...)
TRUMARÉ – Como no começo de tudo! O tempo estava adormecido. Por isso, nada
já era sendo o que seria. Mergulhado num breu.
Ainda escuro.
TRUMARÉ – Foi um arrepio! No meio do breu. E a brisa viu que o arrepio era bom
e soprou outra vez.
(...)
TRUMARÉ – O tempo começou a se contorcer, a se enroscar, a rir.
(...)
(...)
(...)
TRUMARÉ – E o nada de nada ventou-se pra longe feito roupa avoada desprendida
do varal.
(...)
(...)
(...)
TRUMARÉ– Está vendo aquela árvore ali? Olha só o tamanho dela! Vive de fazer
cócegas na barriga do céu! Foi em cima dela que escutei o vento assoprar essa
história. Lá em cima, escuto também o guincho do gavião e gosto! Do tintilar da
gota de chuva riscando o ar antes de espatifar aqui embaixo, gosto também! Escuto
a noite chegando, escuto sabiá chamando chuva, escuto a folha desistindo do galho,
e eu gosto. Eu gosto de ficar bem lá em cima – onde as galhas enchem de cócegas a
barriga do céu.
(...)
TRUMARÉ – Pra subir tão lá no alto tive de aprender da natureza da onça
suçuarana. Do jeito que o bicho chega lá no topo sem a gente terminar de piscar!
Fui ensinado por ela, numa noite de lua cheia.
(SONS DA MATA)
(...)
TRUMARÉ – Um dia, a noite voltava pra casa: no caminho, dei de cara com ela, no
meio da mata, sem nenhum prévio aviso.
(...)
(...)
(...)
TRUMARÉ – Quando fui ver já estava de cara com ela. Vi o brilho da lua refletido
no focinho do bicho. Engoli uma golada de fôlego.
(...)
(...)
TRUMARÉ – O meu coração parecia querer rasgar o meu peito até parecendo ter
vontade de ser meu primeiro pedaço devorado pela onça.
(...)
(...)
TRUMARÉ – Mas só que entoquei bem escondido esse pensamento nas minha
cachola e não me debulhei lamento nenhum na frente da onça! Ela lá me
encarando, esperando só eu piscar e eu não piscava. Me temperei com bravura e
brio minhas todas carnezinhas. Estava pronto pra teimar minha vida até...
(...)
(...)
(...)
(...)
TRUMARÉ – Ela veio vindo até mim, farejou tudo que era eu. Fiquei uma pedra!
(...)
(...)
No espaço, ele desenhará com o corpo todo o seu remelexo diante da onça: seu jeito
de se afastar aos pouquinhos do de perto da boca dela, seu jeito de olhar com respeito
dentro dos olhos da onça, de sentir o seu bafo quente...
A rã pulou no lago. A jararaca quase se deu um nó. O jacaré parecia uma pedra.
A lua não quis nem ver. Se escondeu atrás da primeira nuvem que viu.
(...)
(...)
(...)
(...)
(...)
TRUMARÉ – Aos poucos comecei a rir também, aliviado, por aqueles dentes não
estarem me transformando em mil Trumarés em pedaço.
(...)
TRUMARÉ – Estava sem apetite a onça naquele dia! Queria mais uma companhia...
Vê se eu podia negar?
(SOM DA CHUVA)
(...)
Seria como se ele dançasse uma coreografia lenta, silenciosa. Veríamos não mais um
puro Trumaré, mas esse outro ser imaginário, dançando uma onça num corpo de
homem escalando uma árvore.
(...)
(...)
TRUMARÉ – O meu pai com a gente não mais estava. Findou-se no dia que eu nasci.
TRUMARÉ – (a mãe e a parteira mostradas porTrumaré) Ai, ai, ai, ai, ai! Força,
mulher! E tiro ela de onde? Respira bem fundo! Um monte de ar! Ai, ai, ai, ai! Esse
ar todo parado, vento quase nenhum, e esse menino? Se perdeu no caminho? Cadê
o seu pai que logo não vem? Cadê você menino? Nasce daí... Ai, ai, ai, ai...
(...)
(...)
(...)
TRUMARÉ – (imitando a sua mãe)Nasce menino! Escorre de mim! Seu pai logo já
vem e quer tanto te ver. Que tempo parado!
(...)
TRUMARÉ – Minha mãe ainda não sabia: o barco do meu pai não tinha voltado do
mar. A maré revirada. Tudo virado.
(...)
(...)
(...)
(...)
(...)
(...)
TRUMARÉ – (imitando o pai) Nasce logo, menino! Tem dó da sua mãe! Não
emperra o caminho!
(...)
TRUMARÉ – Veio até mim e começou a me sacudir. Mas foi? Foi não. Era a minha
mãe.
(...)
(...)
TRUMARÉ –(queixoso) Eu não queria acordar, queria mais ver meu pai.
(anunciando, enfático, decidido) Era o meu pai? Disso não sei. Só sei que bufei o
acordar tão-tão cedo!
(...)
TRUMARÉ – Minha mãe ficou que nem a senhora, assim (uma mulher da plateia)
do mesmo jeito que estava, só escutando...Comecei a inventar formas... Tanto
pedaço de chão sem nada plantado! Vou aproveitar um tanto assim pra
investirnumnovo cultivo!
(...)
TRUMARÉ –O que vou plantar?
(...)
(...)
(...)
TRUMARÉ – Vento!
(...)
(...)
(...)
TRUMARÉ –(como se fosse sua mãe)Nisso, minha mãe: Não quero saber de
tempestade nenhuma colhida aos montes/aqui/ perto de casa/ é de jeito nenhum.
Pode ir tirando o seu cavalinho da chuva...
(...)
TRUMARÉ – (como se fosse a sua mãe) Nem pensar que quero minha roupa no
varal todo dia enxovalhada com esse seu aguaceiro todo! Apruma o juízo, Trumaré.
(...)
(...)
(...)
TRUMARÉ – E não é que fui achando tempo perdido por todo caminho. Pus tudo
num cesto. Chegou o domingo – corri para a feira – olha o tempo perdido! Quem
compra? Quem quer? Num estalo de tempo, tudo vendido. Quem que não quer um
bocado de tempo em pleno domingo?
(...)
Antes daquele clarão, antes de tanta fuga nas pernas, bem antes da guerra...
E cada pessoa oferecia uma pequena porção de música que estivesse consigo naquela
hora...
Antes de o dia acabar aqueles sons diferentes brincavam de ser música, de ser um só
corpo, de cantar aquela gente...
E cantava...
E era.
Um breu.
Clareia.
(...)
(...)
(...)
(...)
TRUMARÉ – Foi o que eu fiz! E era pai, e era mãe, era irmão, avó, irmã, avô. Tudo
fazendo também! Gente daqui e acolá, os que moravam mais perto e os que
moravam distante, tudo gente que eu sabia o nome, tudo correndo, pra longe bem
longe. Se escondendo da guerra. A minha mãe...
(...)
(...)
(...)
TRUMARÉ – A invasão.
(...)
TRUMARÉ – Vinha marchando. Vinha raivosa. Gritava pra gente “existir mais
inútil”.
(...)
(...)
(...)
TRUMARÉ – Fogo que tantas vezes havia aquecido nossos existires, o nosso
alimento, clareado nossos passos no meio do breu.
(ESCUTAMOS O FOGO)
TRUMARÉ – Desatinei vendo aquilo! Pus mais fuga nas pernas e fugi bem muito.
Corri muito chão, cortei madrugada, nem olhei para trás. De tanta fuga, debaixo
dos meus pés já não tinha terra, era tudo mar...
(...)
E como seria?
(TEMPO)
(TEMPO)
TRUMARÉ – E cheguei aqui. Diante de vocês. Com a minha estória que é também a
estória da minha gente. A minha voz. Nesse lugar... Que parece seguro. Diante de
vocês...
(...)
(...)
TRUMARÉ – Alguém me disse uma vez: não perde nunca a chance de semear
estória onde o olho enxergar um coração fértil...
(...)
Trumaré, então, imagina: pode transformar o aparente “nada” do palco num lugar
como se fosse aquele onde vivia a sua gente. Pode convidar os presentes para recriar
os momentos que ele vivia com o seu povo. Pode, inclusive, inventar outros também.
Não por pensar que essas pessoas sejam sua gente, mas essa é uma forma dele e sua
estória seguirem existindo, aqui e agora, e quanto mais dela, ao longo do tempo,
puder ser falar. Essa feitura dura o tempo possível até que o vento sopre mais forte e
espalhe de novo as pessoas que agora carregam consigo, de alguma forma, Trumaré
e sua gente para mais longe da guerra.
07 out 2017.