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Resumo: A literatura de Jorge Amado traz uma série de personagens exurianos, Pedro
Archanjo, Quincas Berro D´água, Vadinho, a saltar ardentes e bêbados contra a repressão, o
recalque e o mal-estar da civilização. Riem um riso de liberdade em narrativas regadas a bom
humor, cachaça, noites de samba no candomblé e nos puteiros, e uma visão otimista do
mundo. Estudar estes personagens, nos leva a defender uma epistemologia exuriana, a qual
fortalece a qualidade das dúvidas, abre o pensamento para uma ecologia de saberes e para o
pensamento pós-abissal. Estamos então, longe do forte enquadramento conceitual da lógica
ocidental, branca, positivista, propondo uma epistemologia exuriana, rica em improvisos, que
dribla, gira em espiral como Exu-Òkòtó, e para todos os lados, irradiando energias e saberes.
A atualidade exige outras epistemologias para além do ditame Europeu, a qual deve estar
aberta ao vai e vem de conhecimentos que circulam, fecundam-se, retroalimentando-se na
vida, numa relação entre saber/conhecer que se dobra para atender aos objetivos e ampliar os
diálogos planetários e não o contrário. Nesta caminhada acompanharemos teóricos, a saber,
Boaventura de Souza Santos e Maria Paula Menezes (2013), Edgar Morin (2011), Kwame
Anthony Appiah (1997).
O baiano, apesar do apuro que, pouco a pouco, está também atingindo, ainda se
espoja no sumo de sua linguagem, ainda brinca em serviço, como se diz. E
felizmente o faz! Pois se é verdadeiro dizer que o estilo é o homem, temos que
Machado é mais estilo que homem e, Jorge Amado mais homem que estilo. E esta é,
em ultima instância, pelo menos a meu ver, a classe de escritores que realmente
fecundam a língua, que realmente libertam as personagens da sua própria teia
psicológica e as fazem saltar, vivas e ardentes para o lado de cá do livro (MORAES,
1972, p.177, grifos meus).
A palavra “apuro” tem a ver com o cuidado, a preocupação com a escrita, com certo
requinte vocabular e gramatical. A linguagem de Amado, segundo a ótica do poeta passava
por “apuro” e “brinca em serviço”. O conectivo “e” denota que Amado atende às expectativas
da crítica e, simultaneamente, transgride, provoca e contesta a dita alta cultura. Dá com uma
mão e retira com a outra. Faz vacilar um sistema de vigília gramatical porque apura a técnica
em sua arte, mas não a acomete ao domínio gramatiqueiro, não a domestica, mantém a
heterodoxia, qual seja, a subversão, “a compreensão de que, apesar de produzir uma obra
culturalmente dependente, pode-se dar o salto por cima das imitações e das sínteses
enciclopédicas etnocêntricas e contribuir com algo original” (SANTIAGO, 1982, p. 22).
Jorge Amado, materialista e ogã de candomblé, pintou seus personagens com a tinta
do paradoxo, fecundou-os com a humanidade e os colocou a viver a vida em ação, para além
do puritanismo, dos editos da tradição e da culpa, em uma palavra, escreveu a mestiçagem, ao
mesmo tempo o sim e o não.
Para além “do desejo de mostrar a gênese daquelas vidas esmagadas de cortiço”
(CÂNDIDO, 2008, p. 71), a literatura amadiana traz uma série de exus, a saltar ardentes e
bêbados contra a repressão, o recalque e o mal-estar da civilização, riem um riso de liberdade
em narrativas regadas a bom humor, cachaça, noites de samba no candomblé e nos puteiros, e
uma visão otimista do mundo, duramente dizendo o óbvio: “É mestiça a face do povo
brasileiro e é mestiça a sua cultura” (AMADO, 1969, p. 148).
Participante, agentiva, engajada, polêmica, a obra de Jorge Amado se confunde com
Exu, deus do duplo, do paradoxo, do híbrido. Trata-se de uma obra/escrita exuariana,
portanto, dupla, representando a filiação do autor à cultura popular mestiça, aos terreiros e
valorizando a arte de transitar entre universos sociais e culturas tão diferentes. Longe da ideia
de arte pela arte, da austeridade da narrativa que pretende retratar o real de modo distanciado
e realista, há gritos de revolta e gargalhadas de alegria, há gente, povo pulsando nas
narrativas.
Antonio Balduíno agora era livre na cidade religiosa da Bahia de Todos os Santos e
do pai-de-santo Jubiabá. Vivia a grande aventura da liberdade. Sua casa era a cidade
toda, seu emprego era corrê-la. O filho do morro pobre é hoje o dono da cidade
(AMADO, 1983, p. 64).
Tal alegria coaduna-se com uma cosmovisão negra, relacionada aos grupos banto,
iorubá ou nagô, explicitamente ligada a Exu (SODRÉ, 2006, p. 210). Confunde-se com uma
arkhé que põe o corpo – o cosmo, a região, a aldeia, a casa, a pessoa –, na ordem do Axé de
estar vivo.
Estes Exus-personagens amadianos tem a ver com a manifestação de força ou
Vontade, seriamente “irresponsável”, dizendo sim à Vida intensa e afirmativa, num
acolhimento incondicional e trágico, numa regência de alegria, dizendo sim à vontade de
potência, em que o afeto e a pulsão, o desejo das gentes, seus sonhos, seus contra sonhos, a
experiência simbólica do mundo, os interesses do gozo e a realização de expansão, são
colocados em primeiro plano.
Antônio Balduíno personagem de Jubiabá (AMADO, 1983, p. 35) ouvindo as
histórias do pai-de-santo entendeu que há carreiras previamente designadas para os filhos dos
morros. Duas ao menos: a malandragem, desordem, ladroagem e/ou a escravidão das fábricas
do campo, ofício dos proletários. Por que apenas duas formas de existir? Em que implica esta
dicotomia? Por que reduzir a vida a apenas duas formas de ser?
Sabe-se que o trabalho não criativo, mecânico, irmão da “escravidão das fabricas”,
reprime potencialidades, agride os impulsos da libido e seu caráter criativo (MARCUSE,
2013, p.42). Não afirmo que se deva entregar à libido em busca do prazer absoluto. Isto
também se demonstraria equivocado. Mas, é fato que nossa sociedade foi-se erguendo e a
infelicidade, com ela, a assombrar a vida humana por meio de interdições, a assegurar a
sobrevivência.
Paradoxos à parte, compete saber, até que ponto, não implica em desintegração do
humano e em que pesa estarem os recalcados e agredidos, agora mesmo gritando por direito à
vida.
Certa feita, num pequeno navio do Ita, indo do Rio para Aracaju. Era uma jovem
estudante de enfermagem, em luta contra a família que a queria no interior da casa-
grande em Sergipe, esperando marido conveniente. “Prefiro morrer”, dizia ela,
punhos cerrados, os olhos brilhantes (AMADO, 1972a, p. 32).
Pelo jeito, aquela ia ser noite memorável, inesquecível. Quincas Berro Dágua estava
num dos seus melhores dias. Um entusiasmo incomum apossara-se da turma,
sentiam-se donos daquela noite fantástica, quando a lua cheia envolvia o mistério da
cidade da Bahia. Na ladeira do Pelourinho casais escondiam-se nos portais
centenários, gatos miavam nos telhados, violões gemiam serenatas. Era uma noite de
encantamento, toques de atabaques ressoavam ao longe, o Pelourinho parecia um
cenário fantasmagórico (AMADO, 1964, p56).
Penas as mais variadas, para verdugo nenhum botar defeito. Deixar de ir com os tios
ao cinema, ficar trancada no quarto na hora da novela de televisão, dos programas
do Chico Anísio e Jô Soares, proibição de frequentar casas de colegas, não fazer a
visita semanal à tia Gildete, ficar sem sobremesa, rezar o rosário de joelhos e em voz
alta (...) A lista dos pecados mortais estabelecida por tia Adalgisa, bem maior que a
do catecismo, assegurava serventia à taca de couro. Presente do padre José Antonio
ao saber que a cara diocesana decidira criar a sobrinha órfã: vai lhe ser de utilidade,
não tenha escrúpulo em utilizá-la, corrigir quem prevarica não é pecado, não ofende
a Deus, é de seu agrado. Está na Bíblia, mi hija: punir com firmeza é uma das
maneiras de demonstrar misericórdia (AMADO, 1988, p. 79).
Considerações Finais
A um mais velho, a um sábio se toma a benção. Por ter escrito o amor contra a guerra,
a amizade contra o egoísmo, em histórias ancoradas na complexa e contraditória condição
humana, padebolizadas pelo cotidiano das gentes, fertilizadas pelo hálito dos ancestrais e
pelas gargalhadas de Exu, Mo jùbá, Jorge Amado, Mo jùbá.
Sobre o romancista, diz-se que, certo dia, foi à cidade paraibana de Campina Grande
receber uma homenagem. Os convidados já se haviam sentado para o jantar, quando entra no
salão a “senhora” Jurema Batista, uma famosa prostituta da região. Mostrando-se espirituoso
e algo galante, o mestre de cerimônias, procede ao diálogo:
Longe de ser uma divindade homogênea, o Exu de Amado, resulta de uma legião de
movimentos contraditórios expressos nos corpos de Berro D´Água, Vadinho, Dona Flor,
Pedro Archanjo: morre tantas vezes quanto queira – morto, vive; morto é sagrado porque
revela a continuidade do ser: “a vítima morre enquanto os assistentes participam de um
elemento que sua morte revela” (BATAILLE, 2013, p. 45); discursa e escreve livros em favor
da mestiçagem e dos terreiros; retorna do além para namorar; decide não decidir.
Onde reside esta legião de movimentos, dionisíaca e hedonista, criativa e erótica,
abrindo-se em mil possibilidades? Na casa sem casa, no deserto do deserto, na travessa Zumbi
dos Palmares onde se fazem sambas formidáveis batendo os dedos na mesa, na Literatura e
nos mitos de Amado, encruzilhados no Corpo/corpus de Exu. Neste imaginado lugar, lugar do
imaginário, controverso e móvel, deposito o ebó de minhas palavras, em solene padê que
solicita axé.