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“Centauro” ou “da imanência à

transcendência”
Considerações sobre o homem e a política em
“O príncipe” de Maquiavel

Beclaute Oliveira Silva

Sumário
Introdução. 1. Visões do mundo e do ho-
mem. 2. A visão do mundo e do homem em
Maquiavel. 3. Amor ao mundo. 4. Olhar sobre a
política. 5. Objeto da política, segundo Maquia-
vel. 6. Método na política, segundo Maquiavel.
7. Maquiavel x seus opositores (opiniões confli-
tantes?). 8. Notas conclusivas.

“Eis alguém que ama verdadeiramente o mundo.”


Hannah Arendt (Notas sobre Política e o
Estado em Maquiavel).

Introdução
O pensamento político e filosófico
ocidental tem-se debruçado sobre o modo
como a sociedade deve gerir as relações
humanas seja no âmbito da família, seja no
âmbito da polis. Em ambas as estruturas,
encontram-se relações de poder.
O presente estudo, nesse contexto, pre-
tende analisar, a partir do pensamento de
Maquiavel, como as relações de poder se
dinamizam na sociedade.
A visão impactante que o pensador
florentino deu ao mundo novo que se
descortinava a partir da Renascença. Para
tanto, procurar-se-á fazer um cotejo entre
o clássico e a proposta lançada por Ma-
quiavel.
O caminho que se intenciona traçar,
Beclaute Oliveira Silva é Professor da FDA/ para demarcar as mudanças propostas por
UFAL. Doutorando em Direito (UFPE). Mestre Maquiavel, passa primeiro pela estipulação
em Direito (UFAL). das visões do mundo e do homem, ainda
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que sucintas, construídas pelo pensamento Nessa perspectiva, o mundo carrega
ocidental, nas perspectivas semita, greco- sobre si uma maldição. Essa visão de
romana e cristã. mundo antecede e serve de fundamento
Ademais, o abandono ao mundo e a para a visão cristã do mundo. Nele a ideia
sua reconquista são temas que deverão ser de mundo como maldição toma maior
apreciados para que se possa compreen- evidência, como se verá.
der a necessidade da nova ciência de que A visão ocidental greco-romana do
Maquiavel lança as bases, a política, como mundo toma outra vertente, como se passa
categoria autônoma, já que antes era capí- a expor, ainda que de forma sucinta.
tulo da ética.
Pretende-se, por fim, verificar qual o 1.2. O mundo e o homem na visão
objeto e qual o método que esse novo saber greco-romana
utilizará para reentronizar o homem no A deusa-terra, Gaya ou Geia, é a deusa-
mundo. mãe primordial. Ela que dá origem aos
titãs e, estes, aos deuses do Olimpo. A terra
1. Visões do mundo e do homem assim não é criação dos deuses. Preexiste
a eles.
Nessa visão de mundo, os deuses não
1.1. O mundo e o homem na visão judaica
são postos como modelos das virtudes.
A ideia que povoa a mística semítica é Como criaturas, são suscetíveis ao bem e
aquela de que o mundo é criado por Deus ao mal, assim como os homens.
como expressão de sua benevolência e po- Com relação à categoria homem, é rele-
der. Nele há a pureza. A negação do mundo vante para o mundo aquele que age para o
(imundo) implica impureza. bem da polis. Como vaticina Aristóteles, o
Esse mundo é dado ao homem como homem isolado, só, ou é uma besta ou é um
dádiva divina. Pode-se ler isso no livro deus. (Aristóteles, 2008, p. 57). O elogio
dos Salmos: “o céu é o céu do Senhor, mas ao homem isolado vai acontecer na Idade
a terra ele a deu aos filhos de Adão” (Sl Moderna, como salienta Baruch de Espi-
115, 16). nosa ao tratar da liberdade: “diz-se livre o
A titularidade do mundo dada ao que existe exclusivamente pela necessidade
homem por Deus conferiu a ele a autori- da sua natureza e por si só é determinado
dade para fazer ingressar a impureza na a agir” (Espinosa, 1991, p. 76).
perfeição, mediante a figura do pecado. Os homens se imortalizam por seus
A redenção do mundo e da humanidade feitos na polis e pela polis. O homem cresce
passa pela introdução de um salvador en- e se destaca à medida que o seu trabalho é
viado por Deus. capaz de engrandecer e de eternizar a polis.
A espera por uma redenção torna este Nas palavras de Aristóteles (2008, p. 53):
mundo desprezível. O que importa é a es- “Toda cidade é um tipo de associação,
pera pela redenção e pelo novo mundo. A e toda associação é estabelecida tendo
título de ilustração, o excerto do Livro de em vista algum bem (pois os homens
Isaías: “pois eu vou criar novos céus, e uma sempre agem visando a algo que
nova terra; o passado já não será lembrado, consideram ser um bem); por conse-
já não volverá ao espírito, mas será expe- guinte, a sociedade política (polis), a
rimentada a alegria e a felicidade eterna mais alta de todas as associações, a
daquilo que vou criar” (Is 65, 17-18). que abarca todas as outras, tem em
Fica evidente que o futuro é o que im- vista a maior vantagem possível, o
porta e a história apenas uma lembrança bem mais alto dentre todos”.
dos erros e da promessa de redenção. Noutros termos, o homem é, na polis.
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1.3. A visão do mundo e do homem Da mesma forma, a solução construída
no cristianismo pelo cristianismo não serve, pois pressupõe
um homem alheio, indiferente ao mundo.
O cristianismo se coloca como coroação
Faz da vida na terra um ritual de passagem,
do judaísmo. Nele, o denominado Antigo
uma maldição, antessala do reino celeste.
Testamento se realiza e se plenifica (Hb
Apegar-se ao terreno implica danação.
10, 1-18).
O homem apto a ultimar o mister
O mundo, criado e decaído, não mais
desejado por Maquiavel tem de ser ne-
pode ser objeto de desejo dos homens in- cessariamente envolvido com o mundo.
sertos no cristianismo. Eles passam a ansiar Só com esse envolvimento seria possível
pela pátria celeste que lhes fora prometida. impregnar o mundo com a marca da atu-
O homem cristão fora extraído do mundo. ação humana.
Nas palavras de Cristo: “eles não são do A maneira greco-romana de ver o mun-
mundo, como também Eu não sou do do tem um problema. Apesar de pressupor
mundo” (Jo 17, 16). a atuação humana, já que o progresso do
O total descaso com o mundo faz com homem implica o da polis, a relação se põe
que o cristão seja um pária para o mundo sob pautas rígidas da ética, que deve ser
em que está inserto. buscada pelo homem público. A política
Nesse contexto, melhor odiar o mundo e faz parte da ética, já que esta tem por fim
tudo o que o liga a ele, salvando sua alma, realizar o bem comum e não é possível
a se imiscuir no mundo, que é impuro e o bem fora dos padrões éticos, segundo
desprezado por Cristo, que o venceu (Jo 16, concepção aristotélica. Tanto que, ao lado
33). O desprezo pelo mundo fica evidente dos governos politicamente (eticamente)
em Paulo, que afirma: “nós, porém, somos “perfeitos”, existem suas degenerações:
cidadãos dos céus” (Fl 3, 20). democracia x demagogia, por exemplo.
Dada a forma como a ideologia cristã Para Maquiavel, entretanto, o fim da
se manifesta, não há espaço para os atos política é a conquista e/ou a manutenção
tendentes a manter ou estabelecer o poder do poder (Maquiavel, 1995, p. 113).
político. Este passa a ser transitório e ins- Por essa razão, afirma: “não se importe
trumento na mão do divino para realizar a o príncipe, ainda, de incorrer na infâmia
glória que estaria por vir. daqueles vícios sem os quais dificilmente
possa salvar o Estado” (Idem, p. 102).
2. A visão do mundo e do Nesse contexto um novo homem se faz
homem em Maquiavel necessário. Nenhum dos modelos anterio-
res pode satisfazer as necessidades que a
O modelo judaico de mundo não servia história impõe.
para Maquiavel, pois a espera de solução Na realidade, o homem que consegue
messiânica retirava do homem o poder de se impor na história é, na realidade, em
intervir na história. Sua obra, pelo contrário, regra, uma degeneração e não um ideal de
toma a atuação humana como propulsora perfeição humana, nos moldes clássicos.
da história, tanto que utilizará essa catego- O que prevalece na condução da polis ou
ria como método para explicar o novo ramo da res publica, normalmente, são os “discí-
de conhecimento, livre das amarras éticas pulos” do centauro Quíron1, aptos a usar a
tradicionais, hoje denominada política. Não
usa a história como a lembrança dos erros 1
Quíron era um centauro – meio homem e meio
cavalo – filho de Cronos com a ninfa Filira. A forma
pretéritos e da promessa da redenção que híbrida decorre do fato de Cronos ter coabitado com
vem dos céus, mas a coloca como instru- Filira sob a forma de cavalo. Quíron foi adotado por
mento de mudança. Apolo, que o educou. Sua cultura e habilidade com

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lei (razão) – método dos homens – e a força senvolve estabelecendo as condições para a
– método dos animais – para estabelecer realização e determinação do poder.
ou manter o poder. Ambas são violências: O amante do mundo não pode ser um
a primeira simbólica, a outra efetiva. A devoto preocupado em salvar sua alma.
lei deve ser utilizada inicialmente, mas a Estes são, na visão de Arendt (2008), “maus
segunda não deve ser descartada, já que para o mundo”. Tais indivíduos podem
pode ser necessária. Como relata Maquia- até iniciar um movimento político apto a
vel (1995, p. 111, grifo nosso): tomar o poder, mas sua indiferença com
“Deveis pois saber que há duas o mundo os levará, necessariamente, para
maneiras de combater: uma, com a o abandono das técnicas aptas a manter o
lei, outra, com a força. A primeira é poder, como o caso de Savonarola2, con-
própria do homem; a segunda, dos temporâneo de Maquiavel.
animais. Como, porém, a primeira A unificação da Itália, o grande desejo
muitas vezes não seja suficiente, con- de Maquiavel, não poderia ser ultimada
vém recorrer à segunda. É portanto com alguém mergulhado em ideais cristãos,
necessário a um príncipe saber bem usar pois estes têm o mundo como efêmero, algo
o animal e o homem. Isso foi ensinado que não permanece, desprezível, logo não
aos príncipes de maneira velada vale a pena investir energia, trabalho.
pelos historiadores antigos, os quais É interessante notar que Maquiavel não
contam que Aquiles e muitos outros é ateu, já que não nega a divindade. No
príncipes da Antiguidade foram en- entanto, sua atitude promove um total rom-
tregues à tutela do centauro Quíron pimento entre a política e a religião, antes
para que este os educasse, não sig- reunidas pelos laços da ética clássica. Ele
nificando outra coisa o fato de ter-se estabelece as bases para uma política laica,
como preceptor um ser meio animal, arrancando-a do seio da ética e da religião,
meio homem, senão que a um príncipe formulando um novo modelo.
é necessário usar uma e outra natureza, Para isso desenha um novo homem,
pois uma sem a outra não subsiste”. apto a atuar dentro dessa nova categoria.
O novo homem de Maquiavel é um Não só. Redime o mundo. Recoloca-o
Centauro, herdeiro de Quíron! como objeto do desejo desse novo homem,
que atua com base nessa nova forma de
3. Amor ao mundo visualizar a dinâmica do poder. Para além
dos gregos, Maquiavel transforma em vir-
O mundo só pode ser objeto de amor tude condutas tidas historicamente como
por aquele que não desistiu dele e que vícios, degeneração. Reabilita o Centauro!
nele encontra o local apto para realizar sua Assim, Maquiavel acaba por ser o gran-
eternização. O mundo é perene. O homem, de amante do mundo. Assume como huma-
efêmero. Apenas no mundo o homem po- no aquilo que lhe fora dado: o mundo e a
de-se realizar, perenizar-se. Como salienta sua humanidade plena (razão e força). Com
Arendt (2008), ao falar da atitude em face relação ao mundo, conforme anteriormente
da política, “os antigos poderiam tornar-se citado no canto dos Salmos (Sl 115, 16), não
imortais somente ao juntar algo ao mundo, o toma como puro ou impuro, mas como
que continua após a morte”. apto a ser conquistado.
Essa realização, no caso de Maquiavel,
dá-se no Estado. É lá que a política se de-
2
Clérigo inicialmente dominicano, depois monge
agostiniano, que instalou a República em Florença,
no final do século XV. Em seu governo, Maquiavel
a caça, as armas, as artes e a medicina o notabilizou, iniciou suas atividades na chancelaria de Florença. É
tanto que passou a ser preceptor de heróis gregos o precursor do protestantismo. Foi preso e morto por
como: Aquiles, Asclépio, Jasão, Hércules etc. edito do Papa Alexandre VI, em 1497.

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E o homem, ser-no-mundo, pode trans- da ética, que teve em Aristóteles um dos
cender, ao modo dos heróis treinados pelo grandes difusores, como já assinalado. Para
mítico Centauro Quiron. Ele transcende essa concepção, o governo da polis, objeto
quando assume sua condição humana. da política, deveria ter por pauta o bem
A transcendência está na plenificação da (Aristóteles, 2008, p. 53).
imanência, não sendo algo que vem de Partindo da ótica clássica, a virtude de-
fora, mas que flui do homem que assume veria ser o guia para a conduta. Ademais,
sua condição de protagonista na condução numa perspectiva cristã, a virtude não pode
de sua história. ser uma categoria subjetiva, guardada no
Nesse contexto, uma nova forma de coração do homem como luz interior, mas
explicar o poder e sua forma de manuten- algo que se possa manifestar exteriormente
ção necessita ser construída. Uma nova sob a forma de obras. Tome-se, por exem-
perspectiva para a política, diante de uma plo, a fé, uma das virtudes teologais (I Cor
nova ética, a da utilidade. Aqui, tudo o que 13, 13), que, ao não se manifestar em obras,
é útil para a conquista e/ou manutenção do é morta (Tg 2, 14). Neste passo, a virtude é
poder é virtuosamente louvável. para o outro. Manifesta-se concretamente.
Assim, é necessário construir um mode- É na comunidade que a virtude e o seu con-
lo que explique o homem não apenas sob trário têm existência. Isso já está presente
a perspectiva da razão, mas também pela nos gregos.
ótica da força. Este modelo explicativo é a Outro ponto que se deve levar em con-
política, a partir dos contornos estabeleci- sideração é que o poder, nesta concepção,
dos por Maquiavel. não é o fim da política, mas um meio. O
fim é o bem comum. Noutros termos, o
4. Olhar sobre a política exercício do poder é o meio para realizar
o bem comum.
O pensamento de Maquiavel sobre a Saliente-se que para Aristóteles o poder
política é intrigante e tem causado inúme- (potência) é o ato em estado latente. É o
ras reflexões desde sua formulação inicial. vir-a-ser. O poder ainda não é, pode ser
Já se denominou o aludido pensador de (Aristóteles, 1998, p. 158-159). Se o ato
bufão, demônio, ardiloso, maléfico. Seu é virtuoso, sua forma latente, em potência,
nome deu origem a um adjetivo de cunho não pode ser um vício. Assim, a governança
pejorativo notoriamente conhecido: ma- virtuosa decorre de um poder virtuoso.
quiavélico. Atualmente é considerado por Dessa forma, o poder que venha a gerar
diversos autores como gênio. Opiniões tão como ato, conduta avaliada como vício, não
díspares o tornam um dos pensadores mais pode ser, em substância, bom. O vício, em
fascinantes da modernidade. ato, decorre do vício, em potência. Assim,
Os seus opositores afirmam que ele teve esse tipo de conduta foge do objeto da po-
por fim corromper os preceitos da moral lítica, que visa o bem. Não há bem no vício,
clássica e cristã, como assinala Frederico nessa concepção.
da Prússia em o Anti-maquiavel (Frede- Todo poder que usado tenha por fim a
rico da Prússia, 2009). Tomando essa produção de conduta viciada não gera o
premissa, passa-se a analisar o que o seu bem, mas o degenera, corrompe-o. O po-
pensamento tem de inovador. der corrompido é rechaçado pela política
clássica, que visa o bem comum.
4.1. Premissas e justificação dos
Nessa linha de argumento, tem-se que
opositores de Maquiavel
a categoria poder acaba não sendo central
A aversão a Maquiavel tem por lastro na análise da política. Possui caráter secun-
a construção grega de política, capítulo dário, já que o bem comum é a sua tônica.

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O centro está no bem comum. Ou seja, os tado, já que visava o bem, no caso, o bem
fins não justificam os meios. comum. Era mera especialidade. A partir
É sob essas premissas que opositores desse momento, a política passa a ter vida
de Maquiavel, como Frederico da Prússia, própria, autonomia.
veem a política. É com Maquiavel que esse saber passa a
possuir tanto objeto próprio como método.
4.2. Perspectiva de Maquiavel acerca Como o objeto: o poder de governar a polis.
da moralidade na política Como método: a história.
A abordagem construída por Maquiavel
toma a moral clássica como categoria rele- 5. Objeto da política, segundo Maquiavel
vante para a vida humana, entretanto, ele
não a coloca como determinante para a po- Com relação ao objeto se evidencia a in-
lítica. Isso porque, em Maquiavel, a política dependência com relação à moral, visto que
não tem como objeto central o bem comum, os atos de governança da polis podem não
mas a manutenção do poder da polis. Nesse ser condicionados pelas pautas da moral
sentido, transcreve-se o seguinte excerto: clássica e/ou cristã, cujo fim é o bem.
“Sei que todos hão de reconhecer Entretanto, há virtude nessa nova forma
que seria coisa muito de louvar o de política. A virtude consiste na qualidade
encontrar num príncipe, das quali- da conduta apta a manter o poder e, via de
dades acima enumeradas, as que são consequência, o controle da polis.
tidas como boas. Como, porém, não Essa nova virtude possibilita ao gover-
é possível possuí-las nem evitá-las nante o uso indiscriminado daquilo que a
inteiramente, dada a natureza da con- ética clássica denomina de virtude ou de
dição humana, que o não consente, é vício.
necessário ao príncipe ser tão prudente, Ela, entretanto, tem um limite: a pru-
que possa fugir aos vícios que lhe fariam dência, a virtude do sábio. Esta vem a ser a
perder o governo e acautelar-se, se pos- virtude distintiva do governante, segundo
sível, quanto aos que não oferecem Platão (1997, p. 130). Tal virtude funciona
tal perigo. Não conseguindo, entretan- como técnica para se avaliar que decisão
to, fazer isso, pode, sem atormentar-se tomar, sempre lembrando que todo ato
deixar que as coisas sigam o seu curso” decisório é um ato voltado para o futuro.
(Maquiavel, 1995, p. 102, grifo Entretanto, a visão de Maquiavel não é
nosso). nada platônica, pois a capacidade de discer-
Sob esse aspecto, o governante deve nir não toma por pauta a distinção entre o
estar acima da moral e ser capaz de utilizar bem e o mal, entre o joio e o trigo, em uma
sem parcimônia virtudes e vícios aptos a visão cristã (Mt 13, 24-30), mas a distinção
salvar a governança. entre o útil ou o inútil para a manutenção
A ocorrência do bem comum é circuns- do poder. Aqui o pragmatismo se manifesta
tancial, logo não é necessária. Não é sequer de forma determinante.
meta, finalidade. Se ele vier, excelente! Uma conduta útil politicamente pode ser
Nesse novo enfoque se cria nova cen- eticamente reprovável (Maquiavel, 1995,
tralidade: do bem comum para o poder. O p. 102). Como adverte Maquiavel (1995, p.
que era meio torna-se fim. 102), a prática de conduta eticamente boa
A mudança de papéis não foi um simples pode levar o príncipe à ruína, como também
giro, mas total mudança de perspectiva. a prática de conduta eticamente má pode
A política neste caso passou a ter objeto levá-lo à segurança e bem-estar.
próprio. Antes, sob o prisma clássico, a A escolha da medida a ser tomada é
política era capítulo da ética, como já salien- aquela apta para conservar o poder, seja,

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para os padrões clássicos, eticamente boa balizam a visão de Maquiavel e de seus
ou ruim. Aqui, os fins justificam os meios. opositores acerca da política. Mas qual
Assim, não cabe à ética clássica fixar a a correta? Essa pergunta terá a seguinte
pauta da política, segundo Maquiavel, pois resposta: as duas. Cada uma, em sua pers-
esta não deve mais obediência àquela, já que pectiva, respeitado o ponto de partida, está
não funciona como sua condicionante. correta. Ambas respondem a visões distin-
tas da política. Como visto, enquanto uma
6. Método na política, tem o bem comum como objeto da política, a
outra toma o poder e a sua manutenção como
segundo Maquiavel
o objeto desse saber.
Como já afirmado, o método da política A visão distinta de objeto levará os
é a história, seja ela recente ou antiga. Ela partidários da política clássica a analisá-la
vem a ser o instrumento para compreender como ciência ideal. Algo que deveria ser,
a arte de governar. no plano perfeito. Por sua vez, a análise
Nesse sentido, a lição expressa de Ma- de Maquiavel preocupa-se com o que é, no
quiavel (1995, p. 99): mundo dos homens.
“Agora, quanto ao exercício do espí- O problema se dá quando se utiliza uma
rito deve o príncipe ler a história, e concepção de política para aferir a perfeição
nela considerar as ações dos grandes ou não de outra visão de política. Foi o que
homens, ver como se conduziram nas Frederico da Prússia fez: usou seu padrão
guerras, examinar as causas das suas greco-romano-cristão de política para julgar
vitórias e derrotas, a fim de poder uma nova visão do fenômeno. Realmente,
evitar estas e alcançar aquelas”. sob o padrão clássico, as construções teó-
No decorrer de sua obra, procura de- ricas de Maquiavel são degeneração. Com
monstrar historicamente o acerto de suas isso, a assertiva de que Maquiavel tenha
construções. corrompido a política seria perfeita se ele
A história servirá de caminho para se tivesse utilizado o padrão clássico para
verificar os acertos e os erros nas práticas de fundar sua teoria. Não o fez!
governança. É pela análise da história que a Qual o erro dos opositores de Maquia-
ciência política indicará as melhores soluções vel? Responde-se: o erro está na forma
para os problemas atinentes à manutenção como a crítica foi veiculada. A boa crítica
do poder em um determinado Estado. é aquela que, partindo das premissas elei-
Nesse diapasão, os acontecimentos his- tas pelo sistema a ser criticado, verifica
tóricos serão catalogados não sob o prisma sua consistência e sua coerência. Noutros
do ético e não-ético, mas sob o prisma do termos, a boa crítica deve-se dar de forma
útil ou inútil para o fim a que se destinam, intrassistêmica. Ambos os personagens
ou seja, a manutenção do poder político. estão a falar de política, mas a política
A análise do passado não pode descurar referida por Frederico da Prússia não é a
do presente e do meio em que o governante mesma categoria tratada por Maquiavel.
está inserido. Por essa razão, cabe ao gover- Semanticamente, são distintas.
nante ser prudente ao utilizar a conduta Como a política tratada por Maquiavel
apta a mantê-lo no poder. tem premissas distintas da política defen-
dida por seus críticos, afirmações como a
de Frederico da Prússia caem em um vazio
7. Maquiavel x seus opositores
semântico. Assim, por não se referir à po-
(opiniões conflitantes?)
lítica clássica, Maquiavel não a destrói ou
Até o momento o objeto da discussão a corrompe. Na realidade, Maquiavel cria
foi expor de forma sucinta as ideias que uma nova ciência, desatrelando a política

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da ética, como restou demonstrado, além do poder político com base em um novo
de libertá-la do rígido padrão moral cristão, método, a história. Essa preocupação não
que nada mais é que uma reescritura da era o centro da análise clássica da política
moralidade greco-romana. que tinha por objeto o bem comum, sendo
A nova ciência delineada a partir da um capítulo da ética.
construção de Maquiavel tem que ver com Além disso, as categorias da moral não
o surgimento do novo mundo e do novo foram fustigadas. Pelo contrário, foram até
homem, que começa a se delinear no final enaltecidas (Maquiavel, 1995, p. 102).
da Idade Média e tem sua coroação na Entretanto, em uma análise da história hu-
modernidade. mana e não dos deuses (se é que esta existe,
uma vez que Deus existe além do tempo),
percebeu-se que a prática das virtudes
8. Notas conclusivas
clássicas muitas vezes se mostrou ineficaz
A determinação do homem em buscar para a manutenção do poder.
no mundo sua realização acaba por de- Nesse diapasão, se a política tem por
marcar uma visão nitidamente humanista objeto o poder e a sua manutenção, o uso
desenvolvida por Maquiavel. Ele coloca das virtudes clássicas só será enaltecido
no homem as chaves para sua própria quando elas forem capazes de conservar o
realização. poder. Quando não, dispensa-se a virtude
A reabilitação do mundo só se torna e utiliza-se o seu contrário. Cabe à política
possível a partir da construção de um novo conferir ao governante os meios aptos a
homem. Este é capaz de, no ambiente polí- conservar o poder.
tico, usar a razão ou a força para conquistar A virtude que norteia a arte da gover-
ou para manter o governo. Como salienta nança é a prudência, mas não nos moldes
Maquiavel (1995, p. 112): “a parábola desse clássicos. Ela é quem ditará, mediante
professor semi-humano, semi-animal, ad- análise da história e da realidade social,
verte que um príncipe deve saber usar as qual o melhor meio para atingir e para
duas naturezas, e que qualquer uma delas, conservar o objetivo da política, o poder.
sem a outra, não é duradoura”. Este meio pode ser virtuoso (nos moldes
Esse novo homem não é um super- clássicos) ou não. O importante é que seja
homem, mas um indivíduo apto a realizar útil para o fim a que se destina. Essa é uma
suas potencialidades no exercício e conser- vertente pragmática da política, como saber
vação do poder. autônomo.
Nesse contexto, tem-se que apenas mer- Em nenhum momento Maquiavel ata-
gulhado no mundo é possível ao homem cou os preceitos morais. Não fez elogio
transcender. Transcendência na imanência. ao vício. Não montou um sistema para
Isso se dá porque a perenização do homem a moral, mas para a política, como saber
não ocorre por interferência divina, no autônomo. Apenas verificou e demonstrou
plano astral, como produto do abandono que a política, nos moldes que construiu,
ao mundo, mas como atitude voltada para não está subordinada aos rígidos padrões
o mundo, assumindo-o como seu e apto a da moral cristã. A política não cabe nas
ser moldado segundo a força e a razão do quadras da moral clássica. É uma ciência
novo homem, o Centauro. para os que amam o mundo.
Para tanto, fez-se mister construir uma O ataque à moral cristã, entretanto, foi
nova ciência, cujo objeto é o poder. Ele não indireto, pois, com as construções de Ma-
corrompeu a política, como afirmam seus quiavel, demonstrou-se que aquela não era
opositores. Na realidade, construiu um capaz de dar resposta às práticas políticas,
novo modelo apto a explicar o fenômeno máxime do poder, que, nas Idades Média

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e Moderna, decorria de Deus, pelo menos política não serve. Por essa razão, a asser-
no Ocidente. Aqui o problema. Se o poder tiva de Hannah Arendt (2008) ecoa como
emana do Deus cristão, sua conservação um elogio a um dos grandes pensadores
deveria ter por pauta a moralidade cristã. da modernidade. De fato, Maquiavel ver-
A negativa de Maquiavel quanto ao uso dadeiramente amou o mundo.
da moralidade clássica na política acaba
por colocar em xeque a origem divina do
poder, concepção então vigente, já que se Referências
fazem necessárias condutas qualificadas
como más para manter o poder que veio de ARENDT, Hannah. Notas sobre Política e o Estado em
Deus cristão, que é bom. Noutros termos, Maquiavel. Disponível em: <http://www.scielo.br/
o bem se servindo do mal. É de perceber o scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102- 64452002
000100015&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 3 maio
quão difícil é aceitar tal constatação, máxi-
2008.
me em um mundo que era dominado pelo
determinismo religioso. ARISTÓTELES. Política. Tradução Pedro Constantin
Tolens. 4. ed. São Paulo: Martin Claret, 2008.
Por essa razão, a concepção de Maquia-
vel não atinge a moral diretamente, mas a ______. Metafísica. Tradução Francisco Larroyo. 13. ed.
religião e o modelo de mundo até então México: Porrúa, 1998.
vigente. BÍBLIA SAGRADA. Tradução dos originais mediante
Repise-se. Malgrado o que ficou assen- versão dos Monges de Maredsous (Bélgica) pelo Cen-
tado no parágrafo anterior, demonstrou-se tro Bíblico. 57. ed. São Paulo: Ave Maria, 1987.
o equívoco dos opositores de Maquiavel, já ESPINOSA, Baruch de. Ética. Tradução Marilena de
que ele não corrompeu a política nem teve Souza et al. 5. ed. São Paulo: Nova Cultura, 1991.
em mira destruir os preceitos da moral (Coleção Os Pensadores).
cristã. Na realidade, construiu um novo FREDERICO DA PRÚSSIA. O anti-maquiavel. Disponí-
modelo de política livre dos ditames da vel em: <http://maltez.info/biografia/Obras/frede-
rico%20II%201739.pdf>. Acesso em:19 fev. 2009.
moral greco-romano-cristã. Mais. Maquia-
vel construiu uma ciência apta a explicar a MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe. Tradução Antonio
política para aqueles que são do mundo e D’Elia. São Paulo: Cultrix, 1995.
desejam moldá-lo. Para aqueles que tomam PLATÃO. República. Tradução Enrico Corvisieri. São
o mundo como ritual de passagem, essa Paulo: Nova Cultural, 1997.

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