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Clipe da Beyoncé e Jay-Z no Louvre: culto ao capitalismo ou representação de força

transformadora?

REVISTA PESSOA

2018-07-05

Em conversa por e-mail, a curadora e pesquisadora Pollyana Quintella, de 25 anos, e o escritor


e historiador da arte Rafael Cardoso, de 54 anos, reexaminam o debate em torno da indústria
do entretenimento e sua força simbólica a partir do clipe Apeshit dos The Carters.

Em 25 de junho de 2018 22:33, Pollyana Quintella escreveu:

Rafael, conversávamos sobre a recepção que o clipe de Beyoncé e Jay-Z teve na esfera mais
conservadora. O meu comentário, diante do texto de uma crítica para um jornal de ampla
circulação, era de que há uma certa elite finalmente desconfortável com uma reexaminação da
produção simbólica no presente. No clipe, o casal se coloca na frente de pinturas e esculturas
que definem as relações de poder e os padrões estéticos do ocidente, reivindicando o seu
lugar na narrativa histórica.

Por outro lado, não me parece ser nos jornais onde essa discussão acontece. Eu ouso dizer que
se há uma discussão pública acontecendo hoje no Brasil, ela se dá sobretudo na internet. Não
há grandes vozes, grandes formadores de opinião para ouvir, mas uma multiplicidade de
opiniões omitidas na rede, com velocidade e dispersão. Há quem diga que isso é o fim da
crítica (há quanto tempo se afirma isso mesmo?). Gosto de pensar que há sim muita porcaria,
mas há mais gente discutindo política, cultura, debatendo o que quer que seja, produzindo
resenhas,"fandoms" analisando conteúdos, tudo isso sem remuneração (penso sempre no
pessoal que legenda os filmes para download, é realmente admirável, rs). Acompanhamos
alguns usuários do Facebook como acompanhamos colunas de jornal. Na rede, todavia, há
mais descentralização - apesar das imposições algorítmicas. Acontece que a internet também
virou um campo de batalha. Os movimentos identitários (e aqui incluo o feminismo nisso, de
onde estou mais próxima), estão muitas vezes preocupados em "vencer batalhas", linchar,
expor, lacrar, como metodologias. Como a discussão acontece garantida por uma certa
proteção (estou protegida pelo ecrã de meu computador enquanto te escrevo esse e-mail), há
espaço para mais agressividade, embora os vomitaços virtuais tenham se transformado em
linchamentos físicos, reais - sabemos dos casos horríveis. Não sei até que ponto endosso a
estratégia do "cala a boca". Mas enfim, todo esse cenário abriu espaço pra que a política das
identidades chegasse com cada vez mais força na indústria do entretenimento. E não só nela,
lembro aqui que esse ano o MASP dedica seu programa de exposições às histórias e narrativas
afro-atlânticas. Há revisões importantes sendo feitas, com mais ou menos pressa e afobação
ou rigor e comprometimento.

Acho que concordamos, a partir da conversa que começamos no Facebook que a recusa pela
via conservadora não parece fértil, muito pelo contrário. Lembro aqui que a tal jornalista
criticava o clipe do casal americano dizendo que "O mau gosto atroz impera." Não dá pra levar
a sério esse resquício aristocrático que pretende, em 2018, pautar gosto enquanto se
esperneia. Não é isso que estamos discutindo, sem dúvida. Mas você chamou atenção para o
fato importante de que, do outro lado, quando há adesão absoluta, resta um pouco de "culto
capitalista à celebridade que vai nos salvar dos pecados do colonialismo". Adelaide Ivánova
também ressaltou o fato de que o casal representa uma elite conservadora, dona de terras,
militarista, heteronormativa etc. Primeiro me pergunto se um problema implica
necessariamente no outro, se andam todos juntos, se se anulam, se se reforçam... a tal
da Interseccionalidade. Depois, como não cair na tentação de incorporar as saídas da indústria
como "soluções", como você reparou. E, por fim, se há alguma redenção possível que não se
transforme em pura inversão hierárquica de poder.

O exercício da identidade brasileira, por exemplo, fica entre a elaboração crítica e a vitrine
turística, pensemos na Antropofagia, no Brasil Diarréia, na Tropicália, no Catiti Catiti, na
invenção de Aleijadinho, nos cartazes das companhias aéreas nos anos 1950, na Carmen
Miranda, quantos mais? Disse o que veio à cabeça. Um movimento reflexivo que vai e volta, se
dilui, se vende, depois retorna como autoironia, por aí vai. Abandonamos o mito da identidade
coesa original pela afirmação de sua auto ficção, auto designação. Por outro lado, os
movimentos recentes imprimem novamente a necessidade da "origem". É preciso estar
autorizado por determinado grupo pra produzir sentido, elaborar narrativa, um certo culto à
limpeza. Acabei elencando casos históricos, mas daria pra pensar casos bem recentes na arte
que têm refletido esse culto a uma nova origem no caso do Brasil.

Fico pensando como assumir o lugar da heterogeneidade sem com isso anular o jogo desigual
de forças, como fazê-lo, com o cuidado para não cair em certas armadilhas, como confundir
imagens de potência com imagens de poder (como define o Didi-Huberman), ou "imagens de
ordem", como vi outro dia a Leila Danzinger dizer.

Um beijo! Obrigada pela interlocução. (Desculpe, acabou ficando longo... rs)

Encontrei na internet essa observação interessante sobre o clipe:

"Outro quadro que merece a sua atenção é o Portrait of a Black Woman (Negress) (1800), de
Marie-Guillemine Benoist, uma das poucas obras feitas por uma mulher presentes no Museu
do Louvre. Além de ser a única do período histórico que retrata uma mulher negra sem ser
escrava ou subjugada de alguma forma. Seu simbolismo aparece nas cenas em que Beyoncé
veste uma roupa toda Versace e na cena das duas dançarinas na frente do retrato de Juliette
Récamier."
Em 26 de junho de 2018 09:40, Rafael Cardoso escreveu:

Bom dia, Pollyana (você prefere ser chamada assim? Ou Polly? Me diz...)

Primeiramente, fico feliz com sua interlocução. Não precisa pedir desculpas pelo tamanho da
mensagem. Ainda sou do tempo em que um artigo de dez páginas era considerado um texto
curto. Você, ao contrário, pertence à geração que prefacia um post de três parágrafos com
o disclaimer: 'textão'. É esse rasgo entre concepções de leitura e reflexão que eu gostaria de
preencher por meio do nosso diálogo.

Sim, acho que concordamos no essencial. Senão, nem estaríamos tendo essa conversa. O
artigo da Sheila Leirner no Estadão causou arrepios em ambos. Não se trata de uma jornalista
qualquer. Não conheço a Sheila, mas sei que ela é uma crítica e curadora pensante. Dirigiu
duas Bienais de SP. Não sou de reverenciar as fichas corridas de currículos e títulos, até porque
sei como isso nem sempre corresponde ao valor intelectual; mas se trata de alguém que é (ou
foi) comprometida com o devir da arte contemporânea. Por isso, a reatividade da posição dela
me causou um incômodo ainda mais profundo. Não consigo apenas descartar o que ela diz
como conservadorismo de alguém que não entendeu nada. Preciso entender porque ela não
entendeu e, assim, identificar se perdura também em mim algum resquício desse discurso
preconceituoso de criticar o "mau gosto atroz". Devo assumir, de cara, que enxergo Beyoncé e
Jay-Z com um enorme pé atrás, não por representarem o mau gosto, mas por não
corresponderem ao meu gosto (que eles e outros podem até considerar atroz). Vamos, então,
ao assunto.

Assisti ao clipe 'Apeshit' dos The Carters. Achei menos ruim do que esperava. Tirando a música
e a coreografia, que não me dizem nada, de resto achei bem bom. Produção impecável, como
convém à indústria audiovisual de alto nível. Parabéns ao produtor, Natan Schottenfels, ao
diretor, Ricky Saiz, e a todo o resto da equipe. Compete a quem lida com crítica cultural, como
nós, combater o discurso preguiçoso, e ingênuo, de que astros do entretenimento como
Beyoncé ou Katy Perry ou Dua Lipa "fazem" um vídeo. Elas fazem a parte delas, possivelmente
o principal (ou não), mas o produto é trabalho coletivo. Indústria cultural, no sentido
consagrado por Adorno e Horkheimer. Mas, não vamos nos precipitar. Antes, quero falar mais
sobre o vídeo. Como alguém treinado em história da arte, fiquei bem impressionado com as
escolhas e sequenciamento de obras do Louvre. Houve um pensamento sofisticado ali, de
quem tem conhecimento de causa, na montagem do discurso imagético. Pode ser preconceito
meu, mas vou presumir que essas escolhas não foram feitas pelo casal de protagonistas. Ao
contrário do discurso imagético, relativamente ponderado, a letra da música deixa muito a
desejar. Basicamente, ostentação de poder e dinheiro, com referências a carros Lamborghini,
relógios Patek e roupas Alexander Wang. "We livin' lavish," entoa Beyoncé, e folgo em saber
que o casal se diz grato por isso. Só posso imaginar, e invejar, porque o dinheiro que ganho
pelo meu muito trabalho mal dá para manter o padrão de classe média. Se formos generosos
com a Sheila Leirner, podemos concluir que o que ela condena como "mau gosto atroz"
corresponde à repugnância por essa ostentação de riqueza. Afinal, desde que o capitalismo
surgiu, a função social de quem tem dinheiro há mais tempo é patrulhar a ascensão de quem
ganhou muito há pouco. E a função social do ‘novo rico’ é tentar se impor por todos os meios,
especialmente pelo poder de compra. Nesse sentido, a escolha do Louvre como cenário para o
clipe é a cartada maior. Com os rios de dinheiro de que dispõem, Beyoncé e Jay-Z puderam
adquirir mais essa grife para sua coleção.
Daí, parto para uma segunda questão que tem menos a ver com a intenção dos criadores e
mais com a recepção do produto. Alguns analistas de internet acorreram para saudar o clipe
como um manifesto identitário sobre a exclusão de corpos negros da história da arte
ocidental. Como profissional que exerce humildemente, na parte que me toca, uma militância
em prol dessa revisão arte-histórica e da inclusão de imagens e vozes representativas da
negritude, só posso dizer: menos. Na vasta discussão sobre museus europeus e saqueio
colonial, o Louvre está longe de ser o alvo mais interessante, especialmente no momento atual
em que o presidente francês resolveu tomar a dianteira nas políticas de repatriação. Se fosse
por isso, teria sido mais pertinente posar em frente ao bronzes do Benin no Museu Britânico
ou no Museu Etnológico de Berlim, que estão no meio da briga atual. Independentemente
disso, não fica claro para mim de que modo a imagem das dançarinas de Beyoncé deitadas nos
degraus diante da Vitória de Samotrácia ou rebolando diante da Consagração de Napoleão, de
Louis David, sirva para incluir questões de afrodescendência no paradigma cultural da arte
erudita. Há várias maneiras de entrar no Louvre: pagando ingresso, alugando para uma
filmagem ou conquistando o espaço pelo trabalho artístico. Nesse sentido, preferiria ver uma
exposição do americano Kerry James Marshall, do ganaense El Anatsui ou do brasileiro Ayrson
Heráclito por lá. A meu ver, isso mexe mais com estruturas de poder do que um clipe que só
reforça o prestígio de ambas as marcas em jogo.

Ambas as marcas sim, porque precisamos ver isso pelo lado do Louvre. Vivemos um momento
de comercialização inédita do meio artístico, com representantes do mercado de arte e do
mercado financeiro dando as cartas como nunca antes. Se o Louvre é uma grife que o casal
Carter pode vestir, eles também são excelentes garotos-propaganda para o museu,
atualmente em processo de expansão para além do circuito Europa/Estados Unidos por meio
de sua filial em Abu Dhabi. Na concorrência por petrodólares e os lucros derivados de
derivativos e hedge funds – que ninguém despreza em momentos de crise, nem os mais
antigos dos ‘velhos ricos’ – o clipe de ‘Apeshit’ é uma peça de marketing que dinheiro nenhum
podia pagar. O Louvre é pop. O Louvre é hype. O Louvre é o objeto de desejo de quem já tem
todos os outros. Venha você também para o Louvre, de preferência pagando sua inclusão a
peso de ouro. Entra aí a discussão propriamente de Adorno & Horkheimer sobre os limites
entre arte erudita e indústria cultural. Sem querer repetir o erro de Adorno – que, ao
desprezar o jazz, rejeitou o que talvez seja uma das expressões artísticas mais eruditas do
século 20 – vou apostar minhas fichas aqui na hipótese de que Beyoncé e Jay-Z estão longe de
representar um trabalho musical de primeira grandeza. Não digo nem em comparação com
Charlie Parker ou John Coltrane, o que seria covardia e desvio do assunto, mas mesmo em
termos dos padrões de uma música pop americana e negra que inclui expoentes como Marvin
Gaye, Funkadelic, Stevie Wonder, Prince, N.W.A. ou Public Enemy.

Será que é irremediavelmente conservador defender a existência de níveis de qualidade


relativa na produção artística? Será que essa discussão toda não passa de uma forma
sorrateira de desautorizar o discurso de empoderamento de Beyoncé e Jay-Z? Pode até ser.
Ninguém é isento. Mas, quem sou eu para tanto? O poder deles é real. O clipe já foi visualizado
mais de 40 milhões de vezes no Youtube. Se algumas milhares de pessoas lerem um texto
meu, fico nas nuvens. A validade da minha posição depende da força dos meus argumentos
para convencer você. Precisamos discutir melhor a contraposição entre potência e poder, que
você propõe seguindo Didi-Huberman. Tenho por mim que a ostentação do casal Carter no
Louvre não é emancipatória para ninguém, nem mesmo para eles. Antes, ela reafirma de
modo profundo o status quo: as relações de poder, fama, dinheiro, desigualdade e racismo
existentes sob o capitalismo moderno. No caso, o casal de celebridades negras pode ingressar
sim no Louvre e fazer ali o que bem entender (dentro dos limites da civilidade celebrada em
contrato, claro) contanto que pague caro por isso e se comporte comme il faut. Críticos mais
perspicazes do que eu já comentaram o contraste entre a foto que Beyoncé e Jay-Z fizeram
como turistas comuns diante da Mona Lisa, tempos atrás, e a pose de realeza com qual se
postam à frente do quadro no clipe. Para abafarem no Louvre, os americanos precisam se
fazer mais realistas do que o rei, bancar atitude de nobreza e empáfia – por ironia suprema,
dentro do museu que teve sua origem na decapitação de um rei e na tomada do poder pelo
povo. A pesada corrente de ouro maciço pendurada do pescoço de Jay-Z não deixa de ser uma
corrente, mesmo assim. Ele pode ser o rei da congada, mas continua a ser escravo do sistema.

Daí, questiono se o triunfo pelo dinheiro é capaz de redimir qualquer um de nós das relações
perversas de exploração mútua em prol da geração de ainda maior riqueza. Quanto mais ricos
ficamos como sociedade, mais degradados também. Isso não é uma constatação abstrata, mas
um fato concreto do antropoceno. Longe de ser emancipatória, a encenação de Beyoncé e Jay-
Z reforça de modo deprimente o quanto estamos presos a um modo de pensar insustentável.
Confrontados com alguns dos maiores tesouros que a cultura humana foi capaz de produzir,
nossa reação não deveria ser de querer possuí-los, mas antes de querer nos aproximar de
espírito que os gerou. Os próprios Beyoncé e Jay-Z dão um pequeno sinal de reconhecerem
isso quando, ao final de seis minutos de imposturas e exibicionismo, eles se voltam para
contemplar a Mona Lisa. Outros representantes da afrodescendência das Américas – Frantz
Fanon, James Baldwin, Aimé Césaire – souberam encetar relações ricas e duradouras com as
culturas europeias, Desafiaram a matriz colonizadora e a transformaram irremediavelmente.
Pela reflexão e pela arte. A celebridade vendida pelo sistema capitalista não é capaz de nos
redimir dos pecados do colonialismo. Só a liberdade, igualdade e fraternidade. Viva a
revolução!

Beijos,
Rafael

Em 27 de junho de 2018 04:27, Pollyana Quintella escreveu:

Polly, prefiro Polly! :)


Que legal você começar identificando que o casal não corresponde ao seu gosto e que a
música e a coreografia não te dizem nada. Está sendo um exercício divertido conversar sobre
isso com você, porque nenhum de nós tem grande intimidade com a cultura pop, embora eu a
tenha consumido muito durante a adolescência. De algum modo, somos duas pessoas – com
as devidas diferenças geracionais – deslocadas de seus habituais critérios de análise, mas
diante de uma produção que também nos reivindica. No entanto, quando toca Beyoncé na
noite, eu danço, rsrs.

Eu devo começar discordando sobre a recusa absoluta diante da “ostentação”. Lembro da


Rosana Pinheiro Machado fazendo uma “etnografia do rolezinho”, em 2012, quando os jovens
da periferia de São Paulo iam aos shoppings exibindo marcas e provocando medo e
insegurança na classe média que temia ser assaltada. Na pesquisa de campo de Rosana, a
relação com as marcas e o consumo era um processo de afirmação social, a busca por uma
visibilidade que não existia para tal grupo. Ela disse que “a roupa tentava resolver uma
profunda tensão da visibilidade de sua existência.” Claro que isso revela uma vitória violenta
do capitalismo, o que levará ao seu ponto. Mas esse tópico não é novo, né? Mesmo as pinturas
do Louvre, que aparecem no clipe, as etiquetas e códigos de vestimenta cumprem papel
fundamental. Eu lembro que na minha adolescência na Zona Oeste do Rio, estudando em
colégio de classe média, eu achava que precisava de certo tênis também. Se a gente quisesse ir
mais longe, chegava no Emanuele Coccia, na Vida Sensível, afirmando que, condenados a
produzir imagens, fazemos do ato de se vestir algo fundamental. Vestir-se, maquiar-se,
decorar-se como modos de, simultaneamente, emitir traços singulares mas também traços do
mundo. Tudo sobre ser visto.

Nessa linha, eu não seria tão dura com o casal milionário. É claro que como ícones pop eles já
aparecem o suficiente, não precisam conquistar visibilidade alguma, mas 42.894.675 já viram o
clipe, enquanto eu te escrevo. Bem, não resolve o problema de classe, raça, ou coisa assim,
não reinventa horizontes, não revoluciona, mas guarda potência representativa. Talvez uma
espécie de meio do caminho. Eu não vou negar, dando um exemplo pessoal, que senti um
certo desafogo ao ver o clipe com a já icônica bunda com celulites da Anitta. Não gosto dela,
mas aquela bunda me fez bem (não acredito que escrevi essa frase, hahaha!). Verdadeira ou
falsa, ouso dizer que ela fez mais pelo feminismo do que muito textão na internet, porque
controversamente ocupa um lugar de poder, influência, construção de paradigma, querendo a
gente ou não.

Não acho que o Louvre seja um alvo menos interessante dentre os museus sangrentos. Acho
que cabe pensar que o clipe é feito para um público não especializado, que consome cultura
pop com velocidade e que provavelmente mal conhece a discussão sobre repatriações. O
Louvre é o templo da arte ocidental, ao menos no senso comum. Isso parece bastar. Também
penso que, quando os dançarinos aparecem na frente das obras, eles reivindicam o lugar
da afrodescendência antes de tudo através da presença de seus corpos, mais do que
apresentar soluções substituíveis no formato de obras, como esperamos. O próprio clipe é o
produto, na verdade. E há quem discuta isso seriamente, dentro do repertório da linguagem
pop, algo que não conseguimos fazer aqui. Mas, se lá nos anos 1970, Antonio Manuel
apresentou o trabalho “o corpo é a obra”, naquela altura discutindo questões bem mais
caducas, como a permanência de “categorias” nos salões, e a defesa da ação performática
(ainda que mais), penso que esses corpos são obras porque chamam para si a atenção do que
representam, dentro da sua intenção – com o risco, é claro, de se limitarem a isso.

Quando você cita o nome dos artistas que preferiria ver lá, talvez esteja usando outros
critérios de análise que não os da cultura pop. Não que eu os detenha – a não ser como
millennial, rs – mas acho que o clipe deve ser encarado dentro da linguagem dele. Esperar
substituí-lo por Ayrson Heráclito não parece resolver. Mas sim, eu devo concordar que quem
mais parece estar ganhando com isso é o Louvre, essa grande empresa.

Mas acho que chegamos aqui num ponto fundamental. Tudo o que contra-argumentei foi na
defesa de que o casal tem e deve ter legitimidade para ocupar e produzir “imagens de poder”,
e não me parece medíocre. Mas volto ao meu e-mail anterior, quando falava da complexidade
desse poder assumido pelos movimentos identitários, muitas vezes caindo em lugares
absolutos, dogmáticos e arrogantes. Concordo que discutir “imagens de potência” nos leva a
um lugar mais impreciso, nebuloso, arriscado, embora eu não ache que a saída vá ser avaliar
os níveis de “qualidade relativa na produção artística”, como você disse. Talvez aqui a
diferença seja mesmo geracional. Não sei se acreditamos mais nisso, não nesses termos (no
fundo, falo só por mim mesma).

Não sustentaremos esse modelo de riqueza, é um fato. Mas, enquanto os paradigmas são
esses, acharemos que a apropriação que as minorias fazem disso é menor ou, digamos, menos
autorizada? E que isso tem se dado sobretudo a partir da produção simbólica, artística, a partir
de um outro corpo, uma outra educação que desloque nossos parâmetros de interpretação,
olhar, recepção. É aquele dilema: de um lado, confiamos que outros modelos epistemológicos
nos salvem de nosso próprio drama (já era assim com os modernos primitivistas, não?), de
outro, enquanto o drama não cessa e a revolução não vem, reclamamos quando os oprimidos
assumem nossos dispêndios como padrão. Resta saber do que o pop será capaz quando
incorporar Fanon, Baldwin e Césaire. Pelo visto, a solução não está nem totalmente lá, nem
cá.

Boa noite!
Polly.

Em 28 de junho de 2018 07:46, Rafael Cardoso escreveu:

Querida Polly,

Agradeço a resposta. Estou gostando da brincadeira também. É rara a oportunidade de


dialogar com alguém, de igual para igual, sem a interposição de relações de poder. Você não é
minha editora, eu não sou seu professor. Nenhum dos dois é chefe de ninguém. Quase não
nos conhecemos, o que remove ainda a camada de compadrio e ação entre amigos que
normalmente reveste as trocas de ideias em público no Brasil. Enfim, precisamos agradecer à
Mirna Queiroz por alcovitar esse encontro. Resta ver o que vai resultar dessa conversa. Isso
vira produto, matéria, ou fica apenas entre nós?

Não sou tão estranho à cultura pop quanto você alega ser, talvez por falsa modéstia. Em
outros tempos (o século passado, literalmente), trabalhei como DJ e escrevi letras de músicas.
Aprendi cedo como funciona a indústria cultural e como ela mastiga e cospe fora as boas
intenções. Por isso, mantenho minha recusa diante da ostentação e do discurso do
consumismo como empoderamento. Entendo o argumento sobre a 'etnografia do rolezinho'
que você cita, embora não tenha lido o trabalho da Rosana Pinheiro Machado. Tenho simpatia
e solidariedade pelo que fizeram aqueles jovens em SP quando 'invadiram' os shoppings e se
fizeram visíveis assim. Um ato de emancipação, dos bons. Mas, o que havia de propriamente
transgressor naquela ação era que eles desmascaravam o preconceito ao fazerem
transparecer que o passeio deles era visto como 'invasão' pelos donos do pedaço. Adentrar o
lugar do consumo era uma tática para confrontar o apartheid brasileiro, equivalente à ação de
Rosa Parks quando se sentou na parte da frente do ônibus. Beyoncé e Jay-Z não invadiram o
Louvre, nem transgrediram regras escritas ou não-escritas. Conforme argumentei, a presença
deles ali era mais do que benquista pela empresa Louvre. Teria sido um milhão de vezes mais
interessante se houvesse qualquer aspecto de desobediência civil ou confronto institucional
no trabalho deles. Se eles tivessem que entrar em conflito com seguranças, em vez de
empregá-los. Tenho por mim que a ação dos rolezinhos era específica a um contexto brasileiro
de periferia, e talvez a um momento. Ela não teria o mesmo sentido transplantada para outros
contextos, necessariamente, e nem deve ser invocada para justificar o que celebridades
multimilionárias fazem para alavancar seu marketing pessoal.

Continuo sem entender de que modo as dançarinas no Louvre reivindicam o lugar da


afrodescendência no panorama da cultura europeia erudita. Se você puder explicar isso para
mim, fico agradecido. O corpo ali não é a arte. São apenas corpos padronizados repetindo
poses e trejeitos previsíveis, vistos em mil outros clipes, diante do museu como cenário. Há um
quê de 'bárbaros nos portões de Roma' que o clipe sabe explorar muito bem. Um frissonzinho
de iconoclasmo que seria contestador, de fato, se a ação não viesse tão lindamente
embrulhada em relações de mercado e marketing. Além do mais, o enunciado de que 'o corpo
é a arte' só faz sentido dentro da compreensão histórica de toda uma tradição. As obras de
Antônio Manuel, entre tantos outros, dialogam com um legado incorporado em profundidade
por artistas e críticos. Elas se apartam de um paradigma específico por meio de ações
estratégicas dirigidas aos conceitos e linguagens que o estruturam. Para dialogar, é preciso
falar a mesma língua. No clipe 'Apeshit', enxergo ao contrário a falta de comunicação. Duas
linguagens diferentes sendo faladas ao mesmo tempo, uma por cima da outra, sem que haja
uma tentativa de compreensão verdadeira. A justaposição de imagens cria um simulacro do
diálogo, muito bem feito, com padrões altíssimos de produção, mas essencialmente vazio de
sentido. A produção quer vender o clipe como crítica cultural e identitária. Mas, a meu ver, a
mensagem final é de aceitar docilmente a ordem das coisas. O moral da história é que o
dinheiro pode tudo, inclusive calar as críticas à comercialização da arte. O sucesso estrondoso
do clipe justifica seu discurso e desqualifica quem disser o contrário.

Vejo tudo isso como a 'vitória violenta do capitalismo', como você formulou tão bem. O
comércio do Louvre como 'templo da arte ocidental', feito para vender mais produtos e
colocar mais dinheiro no bolso de quem sustenta essa visão de mundo. Não vejo possibilidade
dessa cultura pop americana assimilar as críticas de Fanon, Baldwin, Césaire, sem esvaziá-las
totalmente. Não há saída pelo consumismo.

Beijos,

Rafael

Em sáb, 30 de jun de 2018 às 15:50, Pollyana Quintella escreveu:

Querido,

dias corridos por aqui por conta da exposição do Tunga que abre hoje.

Logo volto!

Um beijo,

Em 30 de junho de 2018 18:14, Rafael Cardoso escreveu:

Obrigado pela mensagem! Não tem pressa nenhuma.


Bjs!

Em seg, 2 de jul de 2018 às 20:34, Pollyana Quintella escreveu:

De volta! Depois de alguma correria e do jogo do Brasil, rs.

Você trabalhou como DJ! Que uau! Hahaha. Realmente não estou distante da cultura pop,
acho que me referia mais como campo de saber. Bem, eu estavaestou tentando não reduzir o
clipe a um mero exercício de marketing pessoal, assim parece sobrar pouco para discutir.
Apesar do consenso sobre o peso do capitalismo em tudo isso, gostaria de imaginar, esboçar,
especular sobre o que respinga para fora disso, uma vez que esses jogos de poder tem tantos
vetores dentro de si. Resta perguntar a homens e mulheres negros o que ícones pop negros
tem despertado subjetivamente, se despertam mais confiança ou o que quer que seja. Acho
que parte dessa discussão pode ser medida com pesquisa, consulta e trabalho de campo.
Medir os graus de artisticidade do clipe realmente não me interessa muito.

Mas você não acha que tende a radicalizar a dicotomia quando diz que não há possibilidade da
cultura pop assimilar os críticos que citamos? Ou quando você fala que uma obra está em
outro contexto porque “dialoga com um legado incorporado em profundidade por artistas e
críticos”. Isso não reforça uma divisão conservadora? Onde se localiza propriamente a tal da
“profundidade” ou o completo "esvaziamento"? Talvez seja bom lembrar que as obras de arte
sofisticadas, dentro da pesquisa de linguagem que você citou, estão também dentro de um
perverso jogo capitalista. Agem segundo outro repertório, mas também são um alento para o
capitalismo. Aliás, a arte contemporânea parece ensinar um tanto de flexibilidade de sentido
para o capital, não? Tem muita sujeira aí escondida atrás de sofisticação, não só na arte
contemporânea, claro. Nesse caso a contradição vale?

Eu tendo a desconfiar da ideia de uma “compreensão verdadeira”, principalmente nesses


casos. O próprio Adorno fala de uma espécie de “necessidade produzida” pela indústria
cultural. De todo modo, acho o pessimismo adorniano, esse da indústria cultural, um pouco
velho. Não acho que Beyoncé e Jay-Z são redentores de qualquer coisa, mas se a indústria pop
tem incorporado as pautas, tanto melhor. Nossos artistas, autores, pensadores queridos
também enfrentam o dilema da comunicação. Continuo achando que há lições a serem
aprendidas dos dois lados.

(Acho que temos que publicar sim! Podemos mandar pra Mirna e ver como ela sugere editar.
Por mim, manter o formato e-mail parece divertido, hehe).

Obrigada!
Beijos!

Em 2 de julho de 2018 17:29, Rafael Cardoso escreveu:

Querida Polly,
O jogo foi bom, e os dias estão cada vez mais corridos. Por isso, vou correr para responder
você antes que o assunto esfrie de todo. Afinal, o assunto 'Apeshit' já é tão semana passada
que saiu até na Frieze! rsrs

Aproveitando o clima de Copa do Mundo, devo dizer que seus tiros foram todos bem no alvo.
Sim, claro, claríssimo, resta perguntar a pessoas negras se os corpos do clipe propiciaram, em
algum nível, um senso de inclusão no empreendimento elitista, colonialista, machista,
narcisista e ufanista que corresponde ao senso comum sobre História da Arte. Se nós, os
historiadores da arte, ainda não fomos capazes de desmontar esse castelo no ar, esse Louvre
mítico que tanto seduz as pessoas como símbolo de luxo e refinamento, então que seja dada a
vez para que outros o façam. Sinto uma dorzinha ao escrever essa última frase. Há trinta anos,
estamos tentando coletivamente (nós que herdamos a 'nova história da arte', nos anos 1980 e
1990), escrever outras histórias, que abarquem questões de raça, classe e gênero, que militem
para uma compreensão diferente da arte e sua história. Fomos bem sucedidos em muita coisa,
tanto que a produção do clipe soube instrumentalizar bem os discursos que foram gerados por
nós. (Poderia contar isso como triunfo, mas o triunfalismo não é do meu feitio.) No final das
contas, parece que o bacilo é resistente ao remédio. Sim, sim, sim... tem muita sujeira por trás
dessa sofisticação.

Pode ser que meu apego à profundidade reforce uma divisão conservadora. Já não sei mais, às
vezes, onde ficam os limites entre o conservador e o progressista. Numa época em que jovens
votam na extrema-direita... Só sei que sinto uma perda quando vejo questões de tamanha
complexidade e delicadeza reduzidas ao que, para mim, parece um enunciado banal e
simplista. O X do problema é esse: Beyoncé e Jay-Z representam, aos meus olhos, um projeto
conservador. Conservador não, careta mesmo. A ascensão pela riqueza. A ostentação do luxo.
A humilhação dos adversários e/ou oponentes pelo poder. A imposição de novos valores que
apenas reforçam a normatividade. Tendo a radicalizar a dicotomia? Sempre. É um dos meus
poucos defeitos. ;-) Há anos, luto contra ele. Peço que você (e quem vier a nos ler) não me
julgue com o mesmo radicalismo com que julgo a celebridade. Não sou um apologista do
pessimismo cultural. Ao contrário, quem me conhece sabe que naquela outra dicotomia entre
Benjamin e Adorno, sempre fui benjaminiano. Com uma boa dose de Brecht para escapar do
dualismo. E uma pitada de Lenny Bruce, para quebrar a rigidez.

Para não dizer que capitulei em todos os pontos do debate - o que seria uma atitude pouco
respeitosa com uma adversária da sua competência - vou só terminar contestando sua
afirmativa de que há lições a serem aprendidas dos dois lados. Desconfio um pouco desse
caminho do meio. A sabedoria confuciana tem seus limites. Minha crítica ao consumismo
capitalista pode estar ultrapassada, mas não arredo pé dela. Não se pode servir a dois
senhores. Ou o clipe é emancipatório ou não é. Ou você mata e morre pelo Lamborghini e o
Patek, ou você ama a ideia de arte para todos que deu origem ao Louvre. Não o Louvre
empresa, que faz parte da jogada de marketing do casal Carter, e muito menos o Louvre como
marcador de distinção social, très chic, que atrai turistas do mundo todo para admirarem
boquiabertos ideias enganosas de prestígio e luxo franceses. Antes, me refiro ao Louvre
revolucionário, aquele que foi fundado em 1793 para franquear a todos o acesso àquilo que
sempre havia sido reservado para poucos. Para quem estuda a história dos museus, o Louvre é
símbolo daquilo que foi arrancado dos poderosos para passar a pertencer a todos nós. Mas,
mesmo sendo de todos, continua a ser algo precioso, pelo qual temos o dever de zelar. Aquilo
que está contido ali é especial e digno de ser reverenciado. Como alguém que ama arte e
história, não posso fingir que penso o contrário.
Deixo com você a última palavra, se você quiser usá-la. Depois, vamos mandar isso logo para a
Mirna. Já está enorme, e vai dar um trabalho danado para editar. Mais uma vez, agradeço a
interlocução. Tem sido um privilégio, e espero que a conversa continue em outras instâncias.

Beijos,

Rafael

Em seg, 2 de jul de 2018 às 22:44, Pollyana Quintella escreveu:

Rafael, querido,

obrigada por essa troca! Acho que é isso, também já contribui no que me cabia.

Muito bom conversar contigo, por quem eu já tinha admiração.

É uma discussão difícil, cheia de juízes, autoridades, pegadinhas.

Admiro sua elegância e educação. Pra mim foi ótimo!

Você dando ok, encaminhamos esses e-mails pra Mirna ou você quer editar algo antes?

Um beijo,

Em 2 de julho de 2018 17:55 Rafael Cardoso escreveu:

Pode encaminhar. Adorei conversar com você. Faz tempo que não trocava assim. Aprendi
muito.

Beijos!!!

Pollyana Quintella é curadora e pesquisadora. Formou-se em História da Arte pela UFRJ e


é mestre em Arte e Cultura Contemporânea pela UERJ, com pesquisa sobre o crítico Mário
Pedrosa. Atuou como pesquisadora na Casa França-Brasil, coeditora da revista USINA e
colunista do jornal Agulha. Passou pelo Museu de Arte do Rio e pelo Museu da Chácara do
Céu. Curou e cocurou exposições na Casa França-Brasil, no CCJF, no Centro Cultural Calouste
Gulbekian, n’A MESA, no espaço SARACURA, na Red Bull Station e no Centro Cultural Hélio
Oiticica. Leciona história da arte brasileira em cursos livres no Rio e em São Paulo.

Rafael Cardoso é escritor e historiador da arte, PhD pelo Courtauld Institute of Art (Londres).
Seu livro mais recente é O Remanescente, publicado em 2016 pela Companhia das Letras e
traduzido para alemão (S. Fischer) e holandês (Nieuw Amsterdam). É autor de mais três livros
de ficção e co-roteirista do longa-metragem Maresia (dir. Marcos Guttmann, 2016). É também
autor de diversos livros sobre história da arte e do design no Brasil, incluindo Design para um
mundo complexo (Cosac Naify, 2012). Atua ainda como curador independente, responsável,
entre outras, pelas exposições Do Valongo à Favela: Imaginário e periferia (Museu de Arte do
Rio, 2014). E colaborador do Instituto de Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
mora atualmente em Berlim. Fotografado por Patricia Breves.

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