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TEORIA TRIDIMENSIONAL DO DIREITO,

SEGUNDO MIGUEL REALE

1. COMEÇANDO POR VILA BOA,


UM PEDAÇO DE BRASIL COLONIAL

Fundada em 1727 por Bartolomeu Bueno da Silva, o Anhanguera, com o


nome de Arraial de Sant'Ana e, mais tarde, 1739, tendo seu nome alterado para Vila
Boa de Goiás em Homenagem aos seus primitivos habitantes, os índios Goyanases, e
mais recentemente sendo chamada de Cidade de Goiás, ela‚ uma típica cidade
colonial, muito semelhante às cidades históricas mineiras, construída no auge do
ciclo do ouro, no século XVIII. Hoje, esta cidade, situada a 144 quilômetros de
Goiania, e que um dia já foi também capital da Província, conserva seu casario, suas
igrejas, museus e dois monumentos que nos chamam a atenção. Às margens do
pouco que restou do antes navegável Rio Vermelho, está a casa em estilo colonial da
poetisa Cora Coralina que, tendo sido reconhecida apenas no final de sua vida,
publicou, entre tantos, o livro Poema dos becos de Goiás e estórias mais, um retrato
da cidade e da grandeza de sua alma interiorana. No largo do Chafariz está o Museu
da Bandeiras que serviu, como era próprio dos tempos coloniais, para abrigar a
Câmara de Vereadores na parte superior, onde também eram feitos os julgamentos,
e a cadeia nos seus porões. Julgava no piso superior e jogava-se no porão para o
cumprimentos da penas, por crimes comuns ou por motivos políticos. Lá estão as
paredes grossas de cerca de um metro e meio, construídas, pelos escravos que
viriam a constituir a maioria dos seus "hóspedes".
A sensibilidade pelos lugares e pela história desse enorme Brasil nos
ajudará, sem dúvida, no conhecimento das nossas tradições, da nossa cultura e,
dentro da cultura, o nosso ordenamento jurídico. Nossas leis e instituições estão
inseridas na história e só no seu contexto poderão ser compreendidas em
profundidade.
Posso ter olhos e sentidos de turista que tira fotos, compra lembranças,
se delicia com sua culinária e vai embora. Posso ter olhos e ouvidos de brasileiro,
apaixonado por nossa terra, que é capaz de ouvir as vozes, sentimentos, alegrias e
sofrimentos do passado, presos entre as paredes daquelas velhas construções ou
espalhadas por suas belas praças.

Foi num passeio pela Cidade de Goiás, sobretudo numa visita ao museu
das Bandeiras, que eu pensei e criei esta história que agora apresento como uma
modesta contribuição para o conhecimento do Brasil e de nossas instituições
jurídicas, numa perspectiva filosófica.
Tem sido muito difícil nos cursos de filosofia jurídica dar uma explicação a
respeito da Teoria Tridimensional do Direito e das várias escolas que buscam os
fundamentos do ordenamento jurídico: o jusnaturalismo, o positivismo jurídico,
contratualismo, sociologismo, marxismo jurídico etc.

TEXTO DO PROF. JOÃO VIRGÍLIO TAGLIAVINI


www.virgilio.com.br
1

Este texto é uma tentativa de tornar mais suave esse caminho,


ganhando em comunicação, sem perder em seriedade. Para mim, as idéias sérias
podem ter roupagens agradáveis.
Na primeira parte, o texto se desenrola no museu das Bandeiras, em
situações de julgamento, condenação, conformidade ou revolta. E um pedacinho da
história da justiça no Brasil Colonial, a luz das mais importantes filosofias do direito.
Na segunda parte, eu faço um questionamento sobre três dimensões do
direito: fato, valor e norma, abrindo caminho para a compreensão da teoria
tridimensional.
Trata-se de uma primeira versão, escrita para uso de alunos da Faculdade de
Direito de São Carlos, que necessita de muitas correções e sugestões dos leitores.
Ficarei grato a todos aqueles que colaborarem comigo e com a filosofia do direito.

2. A TEORIA TRIDIMENSIONAL DO DIREITO EM VILA BOA, NO


BRASIL COLONIAL.

Jogado num porão da cadeia de Vila Boa, preso por uma parede de um
metro e meio de espessura, grades reforçadas de ferro em cada parede por onde se
via o sol nascer quadrado, sal no chão para aumentar o sofrimento e tortura dos
condenados, num ambiente fétido‚ cujo cheiro vinha de um grande barril de fezes
depositado a um canto e que era removido a cada 15 dias, Oludamam, que tinha
sangue de rei de tribo africana, na sua tristeza mortal, pensava, consigo mesmo:

Por que estou aqui neste porão, por que vim para essa terra de sofrimento e
dor? Que fiz para merecer tamanho castigo? Eu fazia as leis, eu era a lei, mas não
era tão mau assim!
Oludamam estava ali, pagando por um crime que cometera há seis meses.
Ele reagira, ferindo o filho do senhor da casa grande que, além de usar sexualmente
sua filha pequena, a torturava por puro prazer. Oludamam não suportava mais tal
sofrimento. Por mais que a escravidão o tivera dobrado, corria nas suas veias o
sangue da nobreza africana. Ele chegou no momento em que sua filha estava sendo
espancada por não querer colaborar com um dos caprichos do sinhozinho.
Oludamam, negro forte, não se conteve e, à força libertou sua filhinha das mãos do
pequeno bárbaro. O garoto, mesmo sendo fisicamente bem inferior, por se enxergar
numa casta superior, tentou reagir, o que lhe custou vários arranhões e hematomas.
O senhor, para manter os escravos sob domínio, acusou o negro de muitos crimes
que seus próprios capatazes haviam praticado a seu mando e, num tribunal
composto por brancos, Oludamam foi condenado a passar muitos anos naquela
masmorra. O negro tinha o orgulho da coragem de ter reagido mas, ao mesmo
tempo, a tristeza absoluta da prisão que, certamente, não teria fim. Um dia ele seria
morto e diriam que tinha sido numa briga entre os presos. "Por que eu?",
2

perguntava para seus deuses, aqueles deuses que ele representara naquele paraíso
que era um lugar reservado pela natureza para a sobrevivência do seu povo. Um
verde exuberante, muita caça e aquela cachoeira de águas limpas que, além de
refrescar o calor, era o ponto de celebrações da história, dos deuses e da vida da
tribo. Rituais de vida e purificação, passavam todos por ali, por aquele rio.
Oludamam presidia tudo. Era chefe civil e sacerdote também. Muitas léguas de
sertão e o Atlântico separavam sua masmorra do paraíso perdido. Quando padre
Ignácio lia para eles a história da criação, Oludamam pensava no seu paraíso
perdido. Lágrimas rolavam de seus olhos, de saudades. Ao mesmo tempo, no olhar
brilhava a esperança de quem se vergara à escravidão mas não se quebrara no seu
orgulho de rei. Paraíso era também uma esperança. Entre a saudade e a esperança
estavam os brancos, católicos, catequizados pelo mesmo padre Ignácio das Dores.
"Das Dores" pensava o negro, sou eu. Ele vive comendo na mesa da Casa Grande.

Oludaman, certo dia, em conversa com Thomás Antônio, um líder


revolucionário, daqueles que seriam enforcados por traição à Coroa, lançou a
seguinte pergunta:
Há algum tempo, antes dessa desgraça me
acontecer, quando acompanhava o meu senhor à Casa da
Câmara, eu ouvi uma conversa que o Estado Civil teria
surgido para superar as precariedades do Estado de
Natureza, para garantir ao homem o gozo tranqüilo dos
seus direitos naturais. Se as normas surgem num contexto
cultural determinado, fruto da necessidade humana de
preservar a ordem para manter a paz e conseguir a
felicidade, por que as normas podem contrariar as leis
naturais? Eu não acho que “ser escravo” está de acordo
com as leis naturais!

Thomás Antônio:

Em primeiro lugar, fique bem claro o seguinte: há


muitas normas que contrariam, realmente, as leis
naturais, impedindo o homem de chegar à felicidade,
como essa que permite que você seja escravo. O que
diriam as mulheres, mesmo as livres, sobre essa
passagem da lei islâmica:
... desposai tantas mulheres quantas quiserdes:
duas ou três ou quatro. Contudo, se não puderdes manter
igualdade entre elas, então desposai uma só ou limitai-vos
às cativas que por direito possuis...1

1
Alcorão, 4ª Sura, 3.
3

Manoel, que passava por ali, fez sinal de satisfação e concordância plena
com o Alcorão. Thomás, sem percebê-lo, continuou:
E que diriam as esposas dos brancos sobre essa
outra passagem:
Aquelas de vossas mulheres que forem suspeitas
de adultério, chamai quatro testemunhas dos vossos
contra elas. Se as testemunhas testemunharem, confinai-
as então em vossas casas até que a morte as leve ou até
que Deus lhe indique um caminho.2

Em compensação, em relação aos homens, diz o


seguinte:
Quando dois dentre vós cometerem um adultério,
castigai-os. Mas se se arrependerem e se emendarem,
deixai-os em paz. Deus é perdoador e clemente.3

O que significa tudo isso?, continuou Thomas. Pode haver contradição entre
as leis naturais e as normas, por muitos motivos, dentre os quais vou elencar alguns
mais importantes:
1. As leis naturais são universais, eternas e imutáveis. Mas a
natureza é como uma grande e complicada cartilha que nós
precisamos aprender a ler. A cartilha sempre esteve aí. Mas, quem
consegue lê-la integralmente? Nós vamos aprendendo a ler trechos
dessa cartilha, parte por parte. É assim que os homens vão
descobrindo as leis da física, da química etc e vão inventado novas
coisas. Mas, não dá para ler e descobrir tudo ao mesmo tempo. Há
uma evolução nessa descoberta. E essa evolução depende do
desenvolvimento da razão humana e do contexto histórico em que
vivem os homens. Até agora descobriu-se a importância da ordem, da
disciplina, da obediência. Agora estamos descobrindo o valor da
liberdade e da autonomia do indivíduo. No tempo em que vivemos,
você sabe que é perigoso falar em indivíduo, em sujeito. Mas nós
enfrentamos e corremos os riscos. E por tudo o que dissemos até
agora, podemos concluir que, muitas normas entram em contradição
com as leis naturais porque essas normas foram escritas há muito
tempo e só agora descobrimos a importância desses novos valores.
Há, portanto, uma defasagem entre norma e lei natural. Essa
defasagem precisa ser superada.

2. Pode ser também que a classe dominante de cada época


crie normas para defender só a sua felicidade em detrimento da
felicidade da maioria. Os brancos fizeram as normas que permitem a

2
Idem, 4ª Sura, 15.
3
Idem, 4ª Sura, 16.
4

escravidão dos negros! Os senhores feudais elaboravam as normas dos


feudos. Por isso, em alguns feudos, havia o direito da primeira noite.
O senhor tinha o direito de gozar a primeira noite com as noivas que
se casassem em seus domínios. Era uma norma para a felicidade dos
senhores e não dos noivos, obviamente. E diziam que era um "direito
natural".

3. Pode ser ainda erro de leitura e de interpretação da


cartilha da natureza ou da própria norma. Isso pode trazer
contradições e injustiças.

Eu poderia, caro Oludaman, continuar argumentando nessa


linha de raciocínio. Mas talvez isso já seja suficiente. As normas, às
vezes, se parecem com fósseis que se cristalizaram numa camada do
passado, enquanto os homens continuem vivos, as coisas continuem
acontecendo.

Oludaman estava inconformado com sua sorte (ou azar) e não havia
explicação nem na sociedade civil, nem no estado de natureza.

Você está aqui, continuava Thomas, porque esta é a nossa triste


realidade e não temos força para lutar contra ela. As leis dos homens são fruto desta
realidade histórica em que estamos vivendo. Eles são mais fortes, eles dominam,
fazem as leis. Nós somos fracos, obedecemos. Como se fosse a lei da selva. Este é
um fato e "contra fatos não há argumentos". As leis são feitas para manter uma
determinada ordem na sociedade, a ordem de quem domina. Eles precisam de
vocês, escravos, para garimpar o ouro que faz sua riqueza. O Senhor da Casa
Grande domina, seu filho domina. Resta-nos a resignação ou a resistência e os riscos
da resistências, os castigos e a morte.
Mas, um dia, a resistência poderá vencer. Nessa resistência estão
vocês negros, nós, brancos subalternos e os indígenas explorados também. Eles têm
o Estado e Igreja. Um faz a lei e o outro nos convence de que precisamos obedecer,
em nome de um certo deus.

Eu também tenho meus deuses, ia dizendo o negro...

Mas, os deuses dos que dominam são mais fortes e sempre têm
razão, continuou o companheiro. Este é o fato, esta é a realidade. Guerras de
homens, guerras de deuses... arrematou Thomas.

O leitor poder estar estranhando a erudição dessa conversa. Thomas


Antônio era branco, português e já alimentava idéias liberais e revolucionárias. Ele
era um preso político que deveria estar no outro compartimento, daqueles presos
5

que tinham o direito de tomar sol uma vez por semana. Mas estava cumprindo um
castigo no compartimento dos presos comuns, regado a sal e sofrimento.
Final de março, próximo ao dia da Páscoa, padre Ignácio cumpria a
desobriga anual, pregando, ouvindo confissões e rezando missa para os presos. Era
momento certo para catequizá-los e confortá-los.

Jesus sofreu muito nas mãos dos homens, foi dizendo o padre.
Foi despido, carregou o lenho do seu suplício, foi açoitado, pregado e morto na cruz
por causa de nossos pecados. Se ele, que era santo sofreu calado, vocês que são
pecadores devem aproveitar o sofrimento pela expiação dos pecados para não irem
parar nos infernos, onde haverá choro e ranger de dentes.
O sofrimento de vocês é pequeno diante do sofrimento de Cristo,
porque, além de tudo, ele sofria muito por causa da ingratidão dos homens que ele
amava tanto. Quem repara hoje os seus pecados com paciência e resignação, estará
juntando méritos para ganhar o céu. Vocês estão aqui, cumprindo uma pena imposta
pelas autoridades que são os representantes de Deus na terra.
Todo poder emana de Deus e em seu nome é exercido. Se não tivéssemos
as leis, o mundo seria um caos de misérias e pecados, como Sodoma e Gomorra.
Mas, Sodoma e Gomorra foram castigadas, não ficando pedra sobre pedra. Por isso,
precisamos preservar a lei que se baseia na moral e nos ensinamentos dos
evangelhos... Se perdermos os valores da vida em sociedade, se abandonarmos os
valores pregados pela Igreja Católica, esse será o fim de nossa sociedade, da ordem
e da paz. Não se revoltem. Cada um tem um plano traçado por Deus. É preciso
aprender a cumprir a vontade de Deus.

Depois da pregação, cada preso era conduzido por dois guardas até um
confessionário improvisado, onde contava seus pecados ao representante de Deus
que, após lhe dar uma penitência, o absolvia, em nome do Pai...
Oludamam e seu companheiro que já estava na outra cela, pensavam,
cada um por si:

Esse é o deus dos brancos que dominam. O padre Ignácio vem


falar de sofrimento e de cruz para nós? E ainda ousa ouvir pecados (que pecados?) e
dar penitência! Mais penitência do que nossos sofrimentos!? Estes são valores
importantes para eles: manter a gente em ordem na miséria para que eles tenham
paz na fartura! Esse padre defende uma lei que chama de "lei natural" que serve
para a defesa da vida e da liberdade, além da igualdade que aqui não existem, pois
há senhores e escravos. Eu estou achando que esta história de "lei natural" pode
servir a qualquer interesse ideológico: depende de quem domina para dizer o que é
"direito natural".

Era o dia de julgamento, no andar de cima, onde ficava a Câmara, que


fazia leis e julgava os homens. Fazia-se silêncio em baixo para se poder ouvir as
6

histórias do provável futuro companheiro de masmorra. João Manoel Joaquim Lins


Albuquerque Pereira de Souza, juiz daquele tribunal profere sua sentença:

Este homem desrespeitou a lei vigente em nossa sociedade, lei


sabiamente feita por aqueles que se preocupam com a ordem e a tranqüilidade
social. Ele deu abrigo e escondeu um pequeno escravo (9 anos), filho de negros
fujões que buscaram refúgio num desses malditos quilombos. Isso é contra a lei. Lei
não se questiona, cumpre-se. Lei é lei e ponto. Não podemos transigir com a
violação da menor lei, pois não há lei sem importância. Como numa represa, se
deixarmos passar um pouquinho de água pelas fendas da barragem, logo a violência
da água terá levado toda a barragem embora. Toda lei deve ser respeitada, porque é
lei. Nós defendemos o império da lei e sua severa aplicação para que a sociedade
não se sinta ameaçada por aqueles desordeiros que querem provocar o caos, não
importa se você acredita ou não nos seus fundamentos, na sua legitimidade. Se é
esta lei que está em vigor, devemos obedecê-la ou enfrentar o castigo e a prisão.
São regras que mantém a coesão de nossa sociedade...

"Lei, ora lei", murmurava baixinho Thomas Antônio de sua prisão,


antecipando um famoso político brasileiro que viria quase 200 anos depois.
Veio mais um preso, rolando escadaria abaixo para se somar aos
outros condenados pela lei.
Thomas Antônio foi enforcado, por alta traição. Oludamam morreu alguns
dias depois da Páscoa, "numa briga interna"... Sua filhinha continuava sendo
explorada pelo sinhozinho.
A abolição da escravatura viria 100 anos depois, quando os negros já
não seriam tão interessantes. Novos fatos acabaram mudando os valores e as
normas. A lei áurea foi assinada. Viva princesa Isabel ou viva o mercado
internacional? Por via das dúvidas, viva Zumbi, viva Oludamam!
7

3. FATOS, VALORES E NORMAS:


TEORIA TRIDIMENSIONAL DO DIREITO

Fatos, valores e normas, uma relação difícil na compreensão do direito.


Tenta-se responder à famosa pergunta em relação ao dever-ser.
"Por que deve-ser assim?", perguntam todos aqueles que recebem uma
ordem qualquer. Ou, a pergunta feita pelo homem do povo, com seu senso comum:
Por que devo obedecer?

Porque os fatos impõem! Trata-se de um determinismo histórico?


Porque os valores exigem! É um determinismo axiológico?
Porque é uma imposição da norma! É um normativismo abstrato?
Qual, portanto, é o fundamento do dever-ser?

O fundamento é
• um valor absoluto?
• a norma?
• por ser um fato, algo que se me impõe, por si, através de instituições
sociais?

Há visões unilaterais, reducionistas e há possibilidade de integração entre as


três dimensões:

1. Os fatos são importantes.

Enquanto o Brasil necessitava de mão-de-obra de forma intensiva mesmo


desqualificada, a escravidão servia aos seus interesses no plantio de cana de açúcar,
na mineração do ouro ou nos cafezais. O Brasil era um grande exportador desses
produtos que tinham grande aceitação no mercado internacional. Com a revolução
industrial e o desenvolvimento do capitalismo, ampliou-se a necessidade de se
desenvolver um mercado interno, consumidor dos produtos do mesmo capitalismo.
Além de estar desqualificada para os serviços das industrias e de apresentar baixa
produtividade na lavoura, a mão-de-obra escrava não era assalariada e, portanto,
não poderia ser consumidora. O escravo passou a ser um mau negócio para o Brasil.
Este fato, de natureza econômica e cultural, provocou mudança nos valores:
intelectuais e políticos se transformaram em humanistas, defendendo a liberdade, a
igualdade e a vida de todos os homens, independente de sua raça. Restava mudar a
lei. E ela foi mudada, definitivamente em 13 de maio de 1888, com a assinatura da
Lei Áurea. Foram, portanto os fatos que mudaram valores, provocando, juntos, a
alteração das normas. Iniciou-se, a partir daí um novo ordenamento jurídico no
Brasil, onde um homem não poderia mais ser prisioneiro e escravo de outro homem.
Esta explicação pode ser chamada de sociologismo jurídico pois se busca
fundamento das leis na estrutura da própria sociedade. A norma é explicada pela
cultura aí existente.
8

Dependendo da ótica, pode-se chamar também de marxismo jurídico,


pois para Karl Marx e Engels, é a existência material que produz a consciência do
homem. O homem pensa conforme ele vive ou ganha a vida. De acordo com o
materialismo histórico desses autores, a superestrutura (filosofia, artes, idéias
religião, direito etc.) é expressão da infra-estrutura (o modo de produção). Se o
modo de produção é escravista, as idéias e, portanto, também a lei tem uma
dimensão que sustenta a escravidão. Se o modo de produção é capitalista, as leis
seguem o espírito liberal que é o fundamento do capitalismo, por pregar a liberdade,
igualdade, livre iniciativa, tolerância etc.
Saindo do Brasil, uma outra comparação pode nos ajudar a
compreender melhor essa linha do pensamento jurídico. Dentro da mesma corrente
de pensamento, poderíamos dizer que o nacionalismo exacerbado que provocou o
surgimento de uma ideologia totalitária é fruto de um fato: a humilhação que a
Alemanha sofreu pelos acordos impostos depois da primeira grande guerra. Hitler
soube canalizar essa insatisfação gerando um estado totalitário. Um fato histórico-
econômico-político-social produziu um valor chamado nacionalismo que gerou uma
nova norma, um novo ordenamento jurídico, o totalitarismo.
Além disso, direito é fato, no sentido que só aquilo que é eficaz torna-se
direito de verdade.

2. Os valores são importantes

Pode-se olhar a realidade jurídica por outra dimensão, fácil de ser


percebida entre os povos primitivos. Toda sua vida social e suas relações são
organizadas a partir de suas crenças e tradições. Os valores são tradicionais, passam
de geração em geração, e não podem ser desrespeitados, sob o risco de destruir a
coesão social.
Antes de ser NORMA, o direito foi vivido como fato e como fado a que o
homem atribuía a força inexorável e misteriosa dos enlaces cósmicos...

O direito enquanto FATO foi eclipsado pelo direito enquanto SENTIMENTO


DO JUSTO (o homem, ao tomar consciência de si, alienou-se a poderes superiores)
O Ser Humano, em primeiro lugar, reverenciou a deusa JUSTIÇA.

"Têmis e Diké foram, entre os gregos, as


personificações do sentido ideal que governa de maneira
obrigatória o comportamento social. Poderíamos dizer,
com as devidas cautelas, que, de início, por usa origem
mítica, a ordem humana - na qual se englobava o Direito-
é sentida ou percebida como algo que deve ser. O
problema do dever ser impôs-se na primeira intuição do
homem sobre a regularidade ou pressão das forças
sociais."4
4
REALE, 502.
9

O direito é algo percebido como dirigido a um ideal, à divindade.


A primeira intuição do direito, portanto, foi em termos de JUSTIÇA: termos
axiológicos.
O homem que cumpre a lei não faz outra coisa senão respeitar um enlace
que é de natureza divina.
Um dos textos mais antigos que nos revelam essa percepção da justiça
enquanto imperativo divino é este trecho da Antígona, de Sófocles (494-406 aC.):

Polinice, morto numa batalha, acusado de traição à pátria, não pode ser
sepultado, por ordem de seu tio, o rei Creonte. Antígona, ao ser surpreendida,
quando enterrava o corpo de seu irmão, tendo sido condenada, por desobediência,
dirigiu-se ao tirano, dizendo-lhe: Eu desobedeci suas determinações porque não foi
Júpiter que as promulgou; e a Justiça, a deusa que habita com as divindades
subterrâneas, jamais estabeleceu tal decreto entre os humanos; nem eu creio que
teu édito tenha força bastante para conferir a um mortal o poder de infringir as leis
divinas, que nunca foram escritas, mas são irrevogáveis; não existem a partir de
ontem, ou de hoje; são eternas, sim! e ninguém sabe desde quando vigoraram...

Origem da palavra Justiça: unir, ligar, Júpiter... o ius expressou uma ligação
propiciatória sob a proteção divina. (505)
O direito foi sentido primeiro como COMANDO, IMPERATIVO (valor), para
depois ser sentido como relação objetiva entre fenômenos (fato).

Para os jusnaturalistas, as normas devem ser expressões de direitos


naturais, ditados por Deus ou inscritos na própria natureza humana (direito a vida, a
liberdade, a integridade física etc.) podendo ser revelados ou descobertos pela razão
humana. Neste caso, os valores ditam os rumos das normas e de toda sociedade.
Um exemplo clássico da importância dos valores nos destinos de uma
sociedade é o livro de Max Weber Ética protestante e espírito do capitalismo, onde,
num diálogo com o marxismo, o autor procura justificar o grande desenvolvimento
da racionalidade capitalista americana, apelando para os princípios da ética
calvinista, desposados pela grande maioria dos colonizadores daquele território. Uma
ética que propunha trabalho árduo e frugalidade só poderia promover o crescimento
da produção e da poupança que são combustíveis do capitalismo.
Os idealistas pensam que uma boa pregação seria capaz de converter
corações e, com isso, mudar a realidade. Para eles, a realidade está nos valores.
No tribunal de Nuremberg os jusnaturalistas pediam a condenação dos
criminosos, em nome de princípios e valores humanitários, considerados universais,
como vimos atrás.
Como argumentavam os positivistas? Primeiro vamos saber o que é
positivismo jurídico.

3. As normas são importantes.


10

Lei é lei. Os positivistas dizem que os valores são subjetivos,


ideológicos e relativos. Segundo eles, não se poderia conseguir um equilíbrio e uma
paz permanente em bases ideológicas, pois os valores podem ter fundamentações
ideológicas. Isso permitiria a cada um julgar conforme seus princípios, abrindo
caminho para o arbítrio. A estrutura da sociedade só estaria garantida, portanto, no
respeito incondicional às normas que estão postas para a obediência de todos. O
estado de direito é um estado de respeito ao direito que está posto (positum) à
obediência de todos5

Se fatos, valores e normas são importantes, como temos visto até aqui,
como conciliar essas três dimensões sem cair em reducionismos ou em visões
parciais que destróem a totalidade?

Uma tentativa de responder a esta questão é o estudo da teoria


tridimensional do direito de Miguel Reale, que veremos, a seguir.

4. UMA SÍNTESE DA TEORIA TRIDIMENSIONAL DE MIGUEL REALE

Para Reale, O DIREITO só pode ser entendido na perspectiva da


tridimensionalidade. Mas, há uma tridimensionalidade
1. reducionista: considera as três dimensões, sob o jugo de uma delas,
através de concepções unilaterais.
2. genérica ou abstrata que pode se manifestar em forma de
justaposição: considera importante o estudo das três dimensões, sem integração
entre elas.
Segundo Reale, alguns entendem que a tarefa do JUSFILÓSOFO seria a de
realizar uma síntese final das análises feitas separadamente pelos especialistas que
estudam o Direito como
• fato (sociólogos, etnólogos, psicólogos e historiadores do direito)
• valor (axiólogos e politicólogos do direito)
• norma (juristas e lógicos do direito)

Se eu ficar preso à lei, não posso entender a dinamicidade do direito. Afinal,


"Uma ordem social estabelecida contém sempre certa dose de justiça, mas também
ela se encontra praticamente em conflito com uma dose nova de justiça ainda não
incorporada" (527)
O direito é dinâmico porque o sentido de justiça se dá em "tensão"
permanente. O estudante de direito deve ser formado para a sensibilidade do "ainda

5
No processo de ensino-aprendizagem do Direito, um professor positivista está mais preocupado com a
"regula iuris" (a medida do direito= lei) do que com a "ratio iuris" (a razão do direito, seu fundamento). O
filósofo indaga a "ratio" que fundamenta a "regula".
11

não", que ajuda a superar a mesmice das soluções pré-fabricadas, como manual de
receitas extraídas da legislação em vigor.
Essa dinâmica só pode ser percebida se levarmos em conta as outras
dimensões do direito que são valor e fato.
Para entender tridimensionalidade do direito, é preciso entender a relação
entre valor, fim e dever-ser.

O axiológico se manifesta em teleológico, fundando o deontológico.


O fim (teleológico) é determinado com base no valor (axiológico).
Para se atingir o fim é preciso escolher meios adequados, que se
transformam em dever-ser (deontológico)

A descoberta e escolha de valores tem uma carga emocional, afetiva, mas a


escolha dos meios adequados envolve a dimensão racional, pois se trata de
adequação de meios a fins, causas e efeitos.

Tudo isso se dá numa situação cultural determinada e quem escolhe sofre as


limitações da vida cotidiana (ideologias, conflitos de interesses, de grupos etc).

Os valores constituem a dimensão essencial do espírito humano em sua


universalidade. Quando obedece aos valores, portanto, o homem está, no fundo,
obedecendo a si mesmo, à humanitas revelada no fluir da experiência histórica.
(549) - Talvez esta seja uma boa passagem de superação da dicotomia positivismo X
jusnaturalismo, pois evita o relativismo e subjetivismo e o objetivismo empiricista.

Para Reale, o direito é, ao mesmo tempo, UNO e MULTÍPLICE. "Essa


exigência de unidade, sem perda de vista da tridimensionalidade do Direito, é
essencial. (534)

Para compreender melhor o esquema da Teoria Tridimensional do Direito,


vamos observar o quadro abaixo:
12

5. ESQUEMA DA TEORIA TRIDIMENSIONAL DO DIREITO


SEGUNDO MIGUEL REALE

Elementos Nota Concepções Objeto de estudo


constitutivos dominante unilaterais da:
reducionistas
6
Fato Eficácia Sociologismo História,
fato social ou jurídico sociologia e
histórico etnologia do direito

Valor Fundamento7 Moralismo Filosofia do direito


valor do justo Jurídico (deontologia jurídica) e Tridimensionalidade
Política do Direito genérica

-cada dimensão
Norma Vigência8 Normativismo Ciência do Direito percebida
ordenadora da abstrato ou Jurisprudência isoladamente ou
conduta integrada de
forma muito
Tridimensionalidad abstrata-
e
específica

6
O que torna uma norma jurídica socialmente existente?
7
Que é que torna eticamente legítima a obrigatoriedade do Direito?
8
Que é que condiciona logicamente a validade das regras jurídicas?
13

-três dimensões
percebidas de
forma integrada
concretamente-
14

6. A COLOCAÇÃO DE UM PROBLEMA:

"A QUESTÃO DA MORADIA"

O momento de legislar tem significado próprio enquanto alberga sempre um


sentido de "dever-ser" ao qual é inerente uma opção entre diversas vias possíveis.

A Norma se produz em relação a fatos referidos a valores.

O FATO: o fato é complexo, resultado de um conjunto de circunstâncias,


jogo de pressões, conseqüências etc. Como amparar inquilinos, sem ofensa ao
direito dos proprietários? Como estimular a queda dos valores dos aluguéis,
estimulando, ao mesmo tempo, maior oferta de imóveis? Deve-se levar em
consideração o êxodo rural em massa, o crescimento desordenado das cidades, as
questões sanitárias, de promiscuidade e de violência. É preciso garantir direitos
adquiridos e proporcionar saídas adequadas para a situação.
E quem deve fazer a escolha, está imerso na "vida cotidiana", sujeito a
aplausos ou repúdio, amor ou ódio, em conseqüência de sua decisão.

O VALOR: há uma complexidade de valores que condicionam o ato de


escolha de determinado grupo de regras jurídicas ou de uma única regra. Há um
complexo de fins ou valorações, uma série de motivos ideológicos, conflitos de
interesses de grupos, com cosmovisões diversas, a interferirem na escolha da norma
a ser imposta.
A NORMA: com a interferência do Poder, uma das proposições normativas se
transformará em norma, com a garantia de que será observada, mediante uma
sanção para aquele que a desobedecer. A escolha não é mecânica: mesmos valores
podem levar a escolhas de normas (dever-ser jurídico) em contradição.

Isso tudo pode ser representado graficamente:

V P
COMPLEXO
AXIOLÓGICO:: PROPOSIÇÕES
VALORES NORMATIVAS

F
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V = valor
F= Fato (complexo fático)
P= Poder
N= Norma

A gênese da norma pode ser comparada à imagem de um raio luminoso


(impulsos, exigências axiológicas, valores) que, incidindo sobre um prisma (o
multifacetado domínio dos fatos sociais, econômicos, técnicos etc.), se refrata em
um leque de "normas possíveis", uma das quais apenas se converterá em "norma
jurídica", dada a interferência do Poder. (553)

Para nossa discussão na tese, poderíamos aprofundar a dimensão da


interferência do Poder. Para Reale, o Poder pode ser estatal, costumeiro, jurisdicional
ou negocial. Nós perguntamos, onde está concentrado esse Poder, no momento da
escolha de uma Norma que deverá se impor à obediência: na figura do soberano,
numa visão absolutista; no chefe ou no partido único, numa visão totalitária; no
legislativo, numa visão democrática... E mesmo, dentro de uma democracia, o Poder
maior está nas mãos do executivo, do próprio legislativo, do judiciário ou mesmo do
povo organizado? Penso que aqui abre-se caminho, inclusive, para o direito
alternativo.

Para Reale,
cada modelo jurídico, considerado de per si, corresponde a um momento
de integração de certos fatos segundo valores determinados, representando uma
solução temporária (momentânea ou duradoura) de uma tensão dialética entre fatos
e valores, solução essa estatuída e objetivada pela interferência decisória do Poder
em dado momento da experiência social.

7. QUESTIONAMENTOS

1. A teoria tridimensional do direito deixa um espaço aberto para se


pensar a evolução do direito?
2. É possível pensar o direito alternativo, a partir da teoria
tridimensional do direito? Como se poderia justificar o direito
alternativo a partir dessa teoria?
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3. Agora você já está mais habilitado a definir alguns termos. Dê a sua


definição para:
3.1. Jusnaturalismo
3.2. Positivismo jurídico
3.3. Teoria tridimensional do direito
3.4. Dimensão axiológica do direito
3.5. Validade e vigência em direito
4. A filosofia do direito pode influenciar a decisão de um juiz?

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