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R E V I S TA B RAS I L E I RA
DE HISTÓRIA DA CIÊNCIA
A Revista Brasileira de História da Ciência (ISSN 1983-4713) é uma publicação semestral da Sociedade Brasileira
de História da Ciência (SBHC) voltada para a história da ciência e da tecnologia, e áreas correlatas.
The Revista Brasileira de História da Ciência, (ISSN 1983-4713) published two times a year by Sociedade Brasileira
de História da Ciência (SBHC), is dedicated to the history of science and technology, and correlated areas.
Ficha catalográfica preparada pela biblioteca do Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST)
Semestral
Continuação de: Revista da SBHC
Sumários em inglês e português
ISSN 1983-4713
ARTIGOS | Articles
09 Apresentação
Antonio Carlos Robert Moraes
Não é preciso ser um seguidor de Friedrich Ratzel para constatar que o Estado-nação – essa construção política
da “segunda” modernidade – se alimenta, sempre que possível, da expansão territorial para fortalecer sua unidade
interna e que os processos expansionistas jogaram um papel considerável na consolidação das identidades nacionais
modernas. Em face de tal constatação, uma particularidade histórica bem evidente da formação brasileira residiu na
possibilidade de os agentes estatais efetuarem esse movimento expansivo (sua territorialização) num espaço em sua
quase totalidade não submetido à soberania de outros estados. Essa possibilidade de uma “expansão para dentro”,
já expressa na autoqualificação como “império” (conforme a arguta indicação de Ilmar Mattos),1 fundamentou-se no
fato geográfico de o “território usado” do novo país não abarcar o conjunto de seu domínio territorial acatado pela
diplomacia ocidental. Isto é, o território colonial português na América do Sul, cujos contornos foram delineados no
“Mapa das Cortes”, no processo de elaboração do Tratado de Madri, em 1755, apresentava-se no cenário pós-colonial
como uma herança para o novo Estado: uma área de pretensão de soberania fundamentada na continuidade dinástica
e no conhecimento geográfico (mesmo que incerto em suas bordas, principalmente).2
A adoção do princípio do utis possidetis na delimitação das fronteiras brasileiras reforçou as práticas de reconheci-
mento do território, pois alargava a base da ideia de apropriação encaminhando-a também para o campo do levantamento
e da representação do espaço. No contexto após a Independência, a publicação do material das expedições da segunda
metade do século XVIII ganhava potência, assim como o incentivo à realização de novas viagens e à composição de
coleções dos variados aspectos dos meios naturais e das populações agora “brasileiras”. Aliavam-se a esse propósito a
necessidade de reconhecer os lugares aptos a certas explorações produtivas e a confecção de um inventário dos recursos
naturais disponíveis para diversas atividades. Pode-se considerar que uma ciência brasileira foi animada inicialmente por
tais objetivos de afirmação e desenvolvimento nacionais. Cabe salientar que o campo para tais práticas era extrema-
mente extenso, posto que o espaço do país encontrava-se, em sua maior parte, constituído de “fundos territoriais”, isto
é, de porções ainda não incorporadas de forma sistemática à economia nacional.3 Muito havia a levantar, a registrar e a
catalogar, sendo tais exercícios também um instrumento geopolítico de domínio e de propriedade estatais.
1 MATTOS, Ilmar R.Construtores e herdeiros. A trama dos interesses na construção da unidade política. In: JANCSÓ,István. (Org.) Independência: História e
Historiografia. São Paulo: Hucitec/Fapesp, 2005.
2 Ver: CINTRA, Jorge Pimentel. O Mapa das Cortes: perspectivas cartográficas. In: Anais do Museu Paulista, v. 17, número 2, 2009.
3 MORAES, Antonio Carlos R. Geografia Histórica do Brasil. São Paulo: Annablume, 2009.
4 ESCOLAR, Marcelo. Crítica do discurso geográfico. São Paulo: Hucitec, 1996.
5 Comunidades imaginadas. Reflexiones sobre el origen y la difusión del nacionalismo. México: Fondo de Cultura Econômica, 1993.
6 Como exemplo arquétipo, entre outros, ver: FIGUEIRÔA, Silvia F. M. Ciência e tecnologia no Brasil Imperial – Guilherme Schüch, Barão de Capanema (1824-
1908). Varia História, v. 21, n. 34, 2005.
7 Ver: HARDMAN, Francisco Foot. Trem Fantasma. A modernidade na selva. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
8 Ver, por exemplo: LANDER, Edgardo. (Org.) La Colonialidad del Saber: Eurocentrismo y ciências sociales. Buenos Aires: CLACSO, 2003.
9 TREECE, David. Exilados, aliados, rebeldes. O movimento indianista, a prática indigenista e o Estado-nação imperial. São Paulo: Nankin/Edusp, 2008.
10 SÁ, Magali R., O botânico e o mecenas: João Barbosa Rodrigues e a ciência no Brasil na segunda metade do século XIX. História, Ciência, Saúde.
Manguinhos, v. VIII (suplemento), 899-924, 2001.
[ Artigo recebido em 09/2010 | Aceito em 11/2010 ]
MAGALI ROMERO SÁ
Casa de Oswaldo Cruz | Fiocruz
RESUMO João Barbosa Rodrigues iniciou em 1878 uma série de debates públicos com o médico e naturalista
João Batista de Lacerda, mediado pela Academia de Medicina do Rio de Janeiro, sobre a origem do veneno
utilizado pelos índios amazônicos em suas flechas e seu provável antídoto. Utilizando-se de material trazido
da Amazônia pelos naturalistas viajantes do Museu Nacional, Lacerda atribuiu poderes curarizantes a uma
espécie botânica de menispermácea, contrariando a hipótese de Barbosa Rodrigues de que somente espécies
de estricnos eram as responsáveis pela toxidade do curare. Barbosa Rodrigues passou três anos em comissão
botânica do governo imperial na região amazônica onde adquiriu seus conhecimentos sobre o curare. Defendia,
como alguns viajantes dos séculos XVII e XVIII, que o cloreto de sódio era utilizado como antídoto do curare,
12 fato controverso no meio científico da época e não aceito por Batista de Lacerda. O presente trabalho resgata
os estudos sobre o curare, realizados por Barbosa Rodrigues, ressaltando o lado polêmico do naturalista e a
repercussão de seus experimentos entre os seus pares e na imprensa da época.
Palavras-chave Barbosa Rodrigues, controvérsias científicas, curare, Amazônia, Museu Nacional, João Batista
de Lacerda.
ABSTRACT João Barbosa Rodrigues initiated in 1878 a series of public debates with the physician João Batista de
Lacerda, intermediate by the Medical Academy of Rio de Janeiro, on the origin of the arrow and dart poisons used by
the Amazonian Indians and its probably antidote. Using material brought back from Amazonia by traveling naturalists
of Museu Nacional, Lacerda attributed curarizing powers to a botanical specie of Menispermaceae, in opposition to Bar-
bosa Rodrigues hipothese that only Strychnos species were responsible for the curare toxicity. Barbosa Rodrigues spent
three years in a botanical commission in the Amazon region financed by the Imperial government, where he acquire his
knowledge on curare. As XVII and XVIII travelers, he advocate that sodium chloride was used as an antidote to curare.
A polemic fact not accepted by scientists and João Batista de Lacerda. The present article brings to light the studies on
curare written by Barbosa Rodrigues emphasizing the polemic side of the Brazilian naturalist and the repercussion of
his experiments among his peers and the press at the time.
Keywords Barbosa Rodrigues, scientific controversy, curare, Amazônia, Museu Nacional, João Batista de Lacerda.
No início do século XX, o naturalista brasileiro João Barbosa Rodrigues publicou em Bruxelas o trabalho “L’uirarêry
ou Curare. Extraits et complément des notes d’um naturaliste Brésilien”. Nele, o botânico brasileiro expôs suas pesquisas
sobre o curare, iniciadas quando de sua primeira viagem ao vale do Amazonas, em 1873, e a disputa que manteve
com o médico e pesquisador do Museu Imperial de História Natural, João Batista de Lacerda, em fins do século XIX,
sobre o antídoto do curare.
O poderoso veneno dos indígenas da América do Sul gerou grande curiosidade nos primeiros exploradores que
chegaram à região do vale do Amazonas e Orenoco nos séculos XVI e XVII. Desconhecido dos europeus, o veneno de
ação paralisante, utilizado por algumas tribos indígenas nas pontas das flechas e dardos lançados pelas zarabatanas
para a caça, era fabricado em um ritual conduzido pelo curandeiro da tribo, com a utilização de diferentes tipos de lianas
e raízes em sua composição, o que levou a intensa especulação sobre que espécie seria responsável pela toxidade
do veneno. Um dos primeiros exploradores que entraram em contato com o curare e descreveu os seus efeitos foi o
espanhol Alonso Perez de Tolosa durante exploração do lago Maracaibo, na Venezuela, em 1548. Cristóbal Diatristán
de Acuña, padre jesuíta que acompanhou Pedro Teixeira em sua exploração do Amazonas em 1639, descreveu o
veneno no relato de sua viagem publicado em Madri, em 1641.1 Cronistas que nunca haviam viajado para o Novo
Mundo também relataram o veneno mortal dos índios, como o italiano Pietro d`Anghiera que, vivendo na Espanha
e utilizando-se de documentos e descrições pessoais dos exploradores que estiveram nas Américas, enviava cartas
para a Itália descrevendo o que ouvia. Essas cartas foram parcialmente publicadas em 1504, 1507-8, e todos os seus
escritos reunidos na obra De Orbe Novo. publicada em 1516, na qual descreve a técnica dos selvagens em usar arco
e flechas envenenadas2 (McIntyre, 1947, p. 5-6). 3
Lawrence Keymis, comandante da expedição de Walter Raleigh à Guiana em 1596, relacionou, em sua narrativa
de viagem, as ervas venenosas utilizadas pelos indígenas, e foi o primeiro a usar o termo “ourari”.4 O explorador francês
13
Charles Marie de La Condamine, em sua viagem pelo Amazonas em 1743, conseguiu dos índios ticunas flechas envene-
nadas, com as quais fez demonstrações em galinhas, ao chegar a Caiena, para o comandante da colônia, os oficiais e o
médico do rei. Repetiu a experiência para vários professores quando regressou à Europa, mais precisamente em Leiden,
na Holanda. La Condamine (1992 [1745], p. 121-122)5 descreveu o veneno como “um extrato produzido por meio de
fogo, do sumo de diversas plantas, e particularmente de certas lianas onde entravam mais de trinta espécies de ervas ou
raízes na preparação do veneno”, não especificando as espécies usadas. Outros viajantes, posteriormente, descreveriam,
com mais precisão, o preparo do curare e mesmo identificariam as plantas usadas no fabrico do veneno, como Alexander
von Humboldt e Aimé Bonpland. Humboldt, em sua Voyage aux régions équinoxiales du nouveau continent, publicada em
1816, relatou em detalhes a preparação do veneno, a qual presenciou quando em Esmeralda, no Orenoco.
Esta operação química, a qual o velho homem (índio) deu muita importância, nos parece ser extrema-
mente simples. A liana (bejuco) usada em Esmeralda para a preparação do veneno possui o mesmo
nome daquele usado nas florestas de Javita. É o bejuco de Mavacure, coletada em grande abundân-
cia a leste da missão, no banco esquerdo do Orenoco, além do rio Amaguaca, nas trilhas monta-
nhosas e rochosas de Guanaya e Yumariquin. Apesar do feixe de bejuco o qual nós encontramos na
cabana do índio estar inteiramente sem folhas, nós não tivemos dúvida de ser ele da mesma família
dos estricnos ((próximo ao Rouhamon de Aublet), o qual nós examinamos na floresta de Pimichin.
(Humboldt, in McIntyre, ibid., p. 28)
Durante o século XIX, o interesse científico pelo curare se intensificou, principalmente após os relatos de Humboldt
que, juntamente com Karl Friedrich Philip von Martius e os irmãos Richard e Robert Schomburgk, atribuíram a toxidade
do veneno às plantas do gênero Strychnos. Martius e Johann Baptist von Spix assistiram aos Juris, nas margens do rio
Japurá, prepararem o curare com a casca da Strychnos [castelneana], à qual juntavam a de cipós que denominavam
imene (Abuta imene), além de raiz de piperácea, Arthante geniculata, etc. Richard Schomburgk descreveu em detalhes
Na segunda metade do século XIX, naturalistas brasileiros tentaram determinar a composição botânica do curare.
Em 1872, João Barbosa Rodrigues chegou à Amazônia, comissionado pelo governo imperial, para fazer levantamento
das espécies de palmeiras da região. Durante os dois anos e meio que passou na região, o botânico brasileiro viven-
ciou inúmeras experiências que foram utilizadas durante toda a sua carreira. Acompanhado de um servo, Barbosa
percorreu o interior da região coletando espécimes de orquídeas e palmeiras. Aproveitava a sabedoria popular para
fazer anotações importantes quanto à utilização da flora local na medicina, na culinária e habitação, principalmente em
relação às palmeiras; fez coletas em sítios arqueológicos e geológicos e aprendeu com os indígenas a arte do curare.
Barbosa Rodrigues explorou, ainda, os rios Capim, Tapajós, Trombetas, Urubu e Jatapu, e Jamundá, tendo publicado o
resultado de sua exploração em cinco relatórios, entre 1875 e 1878. Barbosa Rodrigues aprendeu a feitura do curare
com uma índia miranha e constatou que os estricnos seriam responsáveis pela curarização e a morte (B. Rodrigues,
1903, p. 6-11).11
Alguns anos após Barbosa Rodrigues ter retornado ao Rio de Janeiro, em 1878, foram enviados ao vale do Ama-
zonas os naturalistas viajantes do Museu Imperial Carl August Wilhelm Schwacke12 e Clément Jobert, com o objetivo
de reunir coleção botânica para a instituição. Durante os meses que passaram na região, os dois naturalistas assistiram
à preparação do curare pelos índios ticunas, no alto Solimões, próximo às fronteiras do Peru, e identificaram as plantas
principais que entravam na composição do veneno: as denominadas pelos indígenas como “uirari” entravam em maiores
No dia seguinte à publicação do artigo de Lacerda, em 25 de agosto, ocorreu a primeira demonstração para comprovar
o valor do sal como neutralizador do curare. Realizada na casa de Barbosa Rodrigues, situada na Rua Haddock Lobo, n.
43, a sessão ocorreu na presença dos médicos Gama-Lobo, Fernando Francisco da Costa, Ferraz, Domingos José Freire,
Agostinho José de Souza-Lima, Joaquim Monteiro Caminhoá, Luís de Souza Lobo, João Baptista dos Santos, Samuel
Brandão de Souza-Barros, Henrique Carlos Feldhagem, Belfort e José Jeronymo de Azevedo Lima, Theodore Peckolt.14
Barbosa Rodrigues iniciou a demonstração utilizando uma flecha com curare fabricado pelos índios uaupes em uma
incisão feita num porquinho da índia, e, após alguns minutos, o animal já demonstrava sinais de paralisia, vindo a morrer.
A segunda experiência consistiu em aplicar uma injeção hipodérmica na cobaia e, em seguida, aplicar urina retirada
da bexiga da cobaia morta. Dezoito minutos depois, o animal se encontrava sem nenhum sintoma de envenenamento.
Admitindo como perfeitamente exatos os resultados das experiências de Cl. Bernard, Reynoso, Balbiant
e Jobert, que provam não ser o sal marinho nem um antídoto químico nem um antagonista do curare,
instituiu o dr. Lacerda Filho, com a cooperação do dr.Jobert, uma série de experiências no Museu Nacional
para se verificar aquele sal, assim como outras substâncias podem exercer alguma ação local sobre as
feridas envenenadas pelo curare. Dessas experiências concluíram o seguinte:
• que o sal marinho atuando sobre as fibras musculares lisas da pele e dos vasos que se distribuem no
tecido celular subcutâneo, retarda a absorção do curare;
• que de todos os meios que atuam localmente, o sal marinho é o mais infiel;
• que o alumen [sic] é um excelente meio local que dá muitos bons resultados enquanto o veneno não
tem entrado na circulação;
• que os resultados aparentemente brilhantes, obtidos em outras experiências com o sal marinho expli-
cam-se por um processo operatório defeituoso e absolutamente diferente daquele que se dá em condições
naturais e comuns.
Chegando a estas conclusões, baseadas em fatos numerosos, os drs. Lacerda Filho e Jobert dão desde já
por terminada esta questão de antidotismo do sal marinho.18
O médico Nuno de Andrade, que vinha acompanhando os experimentos de Barbosa Rodrigues, saiu em sua 17
defesa e publicou declaração, no Jornal do Commercio de 10-09-1878,19 de que as conclusões de Lacerda eram sem
fundamento e insustentáveis. Lacerda decidiu esclarecer em definitivo a questão do antídoto do curare e publicou no
jornal O Cruzeiro, e no Progresso Médico de 12 e 15 de setembro, longo artigo, no qual expôs que o cloreto de sódio era
uma antiga tradição indígena, propagada na Venezuela, Guianas e Brasil, e combatida por Claude Bernard, após sérias
e nobres experiências. Referindo-se indiretamente a Barbosa Rodrigues, dizia que “recentemente, essa crença tinha
um ardente defensor em um dos exploradores da região amazônica e que este havia realizado alguns experimentos
demonstrativos [com o sal] com aparente sucesso” (Lacerda, 1878. In: Barbosa Rodrigues, 1903).20 Expôs, então, em
detalhes, as experiências que realizou, descrevendo todos os efeitos fisiológicos produzidos pelo curare e a inocuidade
do sal, que tinha somente a propriedade de retardar a absorção do veneno. Concluiu que não havia ainda sido descoberto
o antídoto do curare como queria fazer acreditar Barbosa Rodrigues.
Desde a descoberta do curare, sempre houve grande interesse em se conhecer seu antídoto. O viajante italiano
Gonzalo Fernandez de Oviedo descreveu em seu relato de viagem, publicado em 1530, que, nas missões, asseguravam
aos viajantes europeus que eles não precisavam mais temer as flechas mergulhadas em curare, se tivessem um pouco
de sal em suas bocas.21
Para Condamine, era o açúcar que funcionava como antídoto. Humboldt, em seu diário de viagem, também dizia
que, nos bancos do Amazonas, a preferência era para o açúcar e que o sal não era conhecido pelos índios da floresta.
Descreveu que não havia cura para o curare fresco, bem concentrado, deixado por um longo período na ferida e entrando
livremente na circulação. Porém, relatou que, entre os [curares] específicos empregados nos bancos do Orenoco, o
antídoto mais celebrado era o muriato de soda [cloreto de sódio]. A ferida era esfregada com sal, e o produto também
era tomado internamente. Humbodt afirmava não estar completamente convencido da eficácia do sal e afirmava que os
experimentos efetuados pelos franceses Alire Raffeneau-Delille, botânico e médico, e François Magendie, fisiologista,
não comprovavam a sua eficácia.
No auge da discussão travada entre Rodrigues e Lacerda, chegou ao Rio de Janeiro, em meados de 1878, um
jovem fisiologista francês, Louis Couty, contratado para trabalhar na Escola Politécnica para lecionar Biologia Industrial.
18 Alguns meses após sua chegada ao Brasil, Couty entrou em contato com Batista de Lacerda e engajou-se nas pesquisas
sobre curare que estavam sendo realizadas no Museu Imperial. Clemente Jobert havia retornado para a França em
fins de 1878.24 O primeiro resultado da parceria entre Couty e Lacerda saiu publicado em 1879, no Comptes Rendus
de l´Academie des Sciences de Paris, no qual os pesquisadores expuseram as pesquisas que estavam desenvolvendo
para verificar se era nas Loganiaceae (Strychnos) ou nas Meniospermaceae (Anomospermum) que se encontrava o
princípio ativo do curare. As experiências que realizavam no Museu eram assistidas pelo imperador e outros membros
da comunidade científica da época com grande sucesso. Entusiasmado com os resultados que os pesquisadores vinham
obtendo, o imperador apoiou formalmente a criação do primeiro Laboratório de Fisiologia Experimental anexo ao Museu,
sendo instalado oficialmente em 1880.25
A teoria de Barbosa Rodrigues em relação ao antídoto, naquele momento, já se encontrava desacreditada.
A polêmica com Lacerda o levou a pedir um veredicto oficial da Academia Imperial de Medicina, entendendo que somente
ela teria competência para resolver a questão. Rodrigues confiava nos seus resultados e na resposta positiva que tinha
recebido dos membros da Academia após a realização de suas experiências. Porém, após alguns adiamentos, qual foi a
sua surpresa ao ler o resultado do veredicto da comissão nomeada pela Academia, publicado no Jornal do Commercio
de 03 de dezembro de 1878:26 após uma longa exposição de motivos, em que eles corroboravam indiretamente com
os argumentos expostos por Batista de Lacerda, os acadêmicos concluíram que o cloreto de sódio não era considerado
um neutralizador dos sintomas manifestados após o envenenamento pelo curare.
Indignado e frustrado, Barbosa Rodrigues compareceu à sessão extraordinária na Academia, de 03 de fevereiro
de 1879, e discorreu longamente defendendo a sua teoria.
Rodrigues entendia a decisão dos acadêmicos como uma defesa da ciência oficial, já que ele não tinha nenhuma
filiação institucional e não era médico de formação. Tentava descredenciar Batista de Lacerda em seus conhecimentos
etnográficos e botânicos, valendo-se da sua experiência na região amazônica com tribos indígenas e a flora da região.
Nacionalista, rejeitava a opinião dos pesquisadores estrangeiros como Jobert e Schwacke por entender que os mes-
Conclusão
O curare é um extrato vegetal, composto de uma, duas ou mais plantas, das quais só duas são verda-
deiramente ativas, uma delas pertence à tribo das Strychneas, família Loganiáceas, outra à família das
Menispermáceas.
Por mais variável que possa ser a composição deste veneno indígena, há de encontrar-se nele sempre
uma Strychnea ou uma menispermácea ou ambas reunidas, embora, conforme as regiões e as tribos, as
espécies botânicas empregadas, quer de uma quer de outra planta, sejam diferentes.
1 ACUÑA, Cristobal. Nuevo Descubrimiento del Gran Río de las Amazonas. Madrid: Imprenta Del Reyno, 1641.
2 Norman Bisset, em seu artigo sobre War and hunting poisons of the New World, expõe que muitas descrições feitas sobre os efeitos produzidos pelos
dardos usados pelos indígenas para combater os invasores não eram, em verdade, devido ao curare, mas sim a outro veneno, já que o curare era utilizado
pelas tribos da floresta para a caça, e não para a guerra. BISSET, Norman G. War and hunting poisons of the New World. Part 1. Notes on the early history
of curare. Journal of Ethnopharmacology, v. 36, n. 1, p. 1-26, 1992.
3 MC’INTYRE, A. R. Curare, its history, nature and clinical use. Chicago, Illinois: The University of Chicago Press, 1947.
4 KEYMIS, L. A relation of the Second Voyage to Guiana. Perfourmed and written in the yeare 1596. T. Dawson, London. 1596.
5 LA CONDAMINE, Charles-Marie . Viagem pelo Amazonas, 1735-1745. São Paulo- Rio de Janeiro: Edusp, Editora Nova Fronteira, 1992.
6 CASTELNAU, F. Expedição às regiões centrais da América do Sul. Coleção Reconquista do Brasil, v. 217. Belo Horizonte-Rio de Janeiro: Editora Itatiaia. 2000.
7 BRASIL, Oswaldo V.; CAMPOS, João S. Lacerda e a origem botânica do curare. In: João Batista de Lacerda. Comemoração do Centenário de Nascimento
(1846-1946). Museu Nacional, Publicações Avulsas, n. 6, p. 69-71, 1951.
20 8 Sobre a vinda dos professores franceses para a Colômbia, ver: Mariano Eduardo de Rivero y Ustariz (1798-1857) em http://www.pdvsa.com/lexico/
pioneros/mariano.htm.
9 BOUSSINGAULT, Jean-Baptiste; ROULIN, François Desire. Examen chimique du curare, poison des Indiens de l’Orénoqué. Annales de Chimie 39, p.24–37. 1828.
10 SÁ, Magali Romero. Paulo Carneiro e o curare: em busca do princípio ativo. In: MAIO, Marcos Chor. (Org.) Ciência, Política e Relações Internacionais. Rio
de Janeiro- Brasília: Editora Fiocruz, Unesco, 2004.
11 BARBOSA Rodrigues, João. L`Uiraêry ou curare. Extraits et Complément des notes d´un naturaliste brésilien. Bruxelles: Imprimerie Veuve Monnom,
1903.
12 Schwacke chegou ao Brasil, em 1873. Em 1874, foi contratado pelo Museu de História Natural como naturalista viajante. Em 1891, deixou o Museu e assumiu
a cátedra de Botânica na Escola de Farmácia de Outro Preto, onde permaneceu até sua aposentadoria. Voltou para a Alemanha, onde faleceu em 1904.
13 Brasil & Campos, 1951, p. 70.
14 Barbosa Rodrigues, 1903, p. 88.
15 Capanema era considerado o mecenas de Barbosa Rodrigues. Polemista tanto quanto Barbosa, Capanema não simpatizava com muitos pesquisadores
do Museu de História Natural e sempre apoiava Barbosa em todas as querelas que envolvessem os pesquisadores dessa instituição. Ver: SÁ, Magali
Romero. O botânico e o mecenas: João Barbosa Rodrigues e a ciência no Brasil na 2ª metade do século XIX. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v.
VIII (suplemento), p. 899-924, 2001.
16 O Cruzeiro de 02 de setembro de 1878. Ata da reunião de 01 de setembro de 1878 para realização das experiências de Barbosa Rodrigues sobre o
curare.
17 BARBOSA Rodrigues, João. L`Uiraêry ou curare. Extraits et Complément des notes d´un naturaliste brésilien. Bruxelles: Imprimerie Veuve Monnom, 1903,
p. 96.
18 Gazeta de Notícias de 09 de setembro de 1878. Declaração de Lacerda encerrando a questão por não ter Barbosa Rodrigues provado suas asserções.
19 Jornal do Commercio de 10 de setembro de 1878. Declaração do Dr. Nuno de Andrade de que as conclusões de Lacerda são sem fundamento e
insustentáveis.
20 O Cruzeiro de 12 de setembro de 1878. Artigo de João Batista de Lacerda sobre os pretensos antídotos do curare.
21 OVIEDO, Gonzalo Fernandez. Sommario della storia naturale delle Indie (La memoria). http://www.parodos.it/anapliromatica/bios/4.htm
22 LEE, Michael Radcliffe. Curare: the South American arrow poison. Journal Royal College of Physicians of Edinburgh, v. 35, p. 83–92, 2005.
23 BERNARD, Claude. New Experiments on the Woorara Poison. Lancet, v. I, p. 298–300, 1851.
24 Jobert, ao chegar de volta à França, apresentou, na sessão de 14 de dezembro de 1878 da Sociedade de Biologia de Paris, palestra sobre sua viagem à
Amazônia e a demonstração sobre a fabricação do curare, que teve a oportunidade de presenciar. Barbosa Rodrigues, indignado ao tomar conhecimento
21
REJAN R. GUEDES-BRUNI
Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro
MOACIR HAVERROTH
Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária | Centro de Pesquisa Agroflorestal do Acre
22
RESUMO João Barbosa Rodrigues (1842-1909) teve rica experiência entre diferentes sociedades. Fez estudos
e ilustrações detalhados de plantas e dos ambientes onde ocorriam. Aliando essas experiências às leituras, ex-
perimentos em laboratórios e trocas com seus pares, defendeu a hipótese de que as denominações das plantas
não eram fruto da união arbitrária de características, mas de uma lógica apoiada em observações aceitas e le-
gitimadas pelos nativos, que seguiam um método para classificação das plantas. O tema é detalhado em Mbáe
Kaá-Tapyiyetá Enoyndaua, obra aqui contextualizada. No cenário de afirmação de uma ciência brasileira, ele
defendia a importância da classificação botânica indígena, cujo entendimento só seria possível pela convivência
com os índios, com o entendimento da língua e conhecimentos botânicos.
ABSTRACT João Barbosa Rodrigues (1842-1909) had a very rich experience/background from different societies. He
prepared detailed papers and illustrations of plants and their habitats. Adding this experience to reading, lab work and
exchange with other scientists, Barbosa Rodrigues brought to light the hypothesis that plant names were not a simple
junction of their characteristics, but were products of a logical system based on observation, accepted by native Ame-
ricans. Thus, they followed a method for plant classification. This idea is detailed in Mbáe Kaá-Tapyiyetá Enoyndaua,
the work that the present paper puts into context. In the scenery of Brazilian science, he supported the native botanical
classification, and thought that it could only be understood through familiarity with the Indians and their language
and botanical knowledge.
João Barbosa Rodrigues (1842-1909), filho de comerciante português e mãe brasileira de ascendência indígena,
nasceu no Rio de Janeiro, então capital do Império. Porém, cedo se mudou para a cidade de Campanha, em Minas
Gerais, onde viveu até a década de 1850, retornando ao Rio de Janeiro para completar seus estudos. Trabalhou como
secretário e professor de Desenho no Colégio Pedro II, onde conviveu com o botânico Francisco Freire Alemão Cysneiros,
com o qual aprimorou sua capacidade de observação de estruturas vegetais e seus dons artísticos. Trabalhou ainda
como tenente da Guarda Nacional; administrador de uma fábrica de formicida; diretor do Museu do Amazonas e diretor
do Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Casou-se três vezes e teve 14 filhos. A última esposa, Constança Paca, desem-
penhou importante papel em sua trajetória como naturalista, já que, além de tê-lo acompanhado em muitas viagens,
também o auxiliou na elaboração de desenhos científicos.1 2 Teve atuação expressiva como cidadão e cientista no seu
tempo. Ainda muito jovem, acompanhou Freire Alemão em expedições às serranias do Rio de Janeiro; conviveu com
o médico sueco Anders Fredrik Regnell, que residia na cidade de Caldas, em Minas Gerais, que, além de clínico, era
coletor e colecionador de plantas; acompanhou o botânico sueco Salamon Eberhard Henschen, pelas serras de Minas
Gerais, em 1869, em busca de orquídeas.3 4
Em 1870, na capital do Império, apresentou uma obra tratando de orquídeas brasileiras, em três volumes, com
descrições em latim e francês. Até então, era reconhecido como professor de Desenho e não como cientista.5 A obra,
apoiada por Guilherme Schünc de Capanema (o barão de Capanema), que, além de cientista, era um colecionador
de orquídeas, gerou desconfiança sobre a sua competência na área.6 Um ano depois, apresentou ao imperador um
tratado sobre orquídeas do Brasil, afirmando ter sido incentivado em seu trabalho pelos botânicos Freire Alemão e frei
Custódio Alves Serrão, solicitando “proteção imperial e permissão para dedicar-lhe a obra”.7 Após muitas polêmicas,
houve aprovação de recursos para sua publicação, os quais, entretanto, nunca foram liberados.8
Sob o patrocínio do barão de Capanema, foi comissionado pelo governo brasileiro para explorar o vale do Rio
23
Amazonas, onde permaneceu por dois anos e meio (1872-1874), tendo, entre outros compromissos, o de complementar
os estudos sobre palmeiras realizados por Carl Friedrich von Martius. Para Barbosa Rodrigues, era uma oportunidade
para se firmar como naturalista. Nesse período, percorreu o baixo Amazonas e alguns de seus tributários, observando,
coletando e fazendo anotações sobre a utilização (o saber e o fazer) da flora local na medicina, na culinária e na habi-
tação, registrando também os nomes pelos quais as plantas eram conhecidas, dando especial atenção às palmeiras.
Além disso, colecionou artefatos indígenas, fósseis, fez anotações sobre as línguas locais e muito mais.9 O herbário do
Jardim Botânico do Rio de Janeiro tem em sua coleção de exsicatas, nove exemplares coletados por Barbosa Rodrigues
no estado do Pará e três no estado do Amazonas, em 1872 e 1873. Em sete desses espécimes, há anotações sobre
nomes comuns ou uso nas etiquetas das exsicatas (Figuras 1 e 2).
Em 1883, foi designado pelo governo imperial para dirigir o recém-criado Museu Botânico do Amazonas, em Manaus,
do qual foi diretor desde sua abertura até seu fechamento em 1890.10 Nesse período, também fez expedições, observando
saberes e fazeres das diferentes sociedades com as quais conviveu e os citou em muitos de seus trabalhos.
Com a proclamação da República, Barbosa Rodrigues foi nomeado, em 1892, diretor do Jardim Botânico do Rio
de Janeiro, cargo que ocupou até a sua morte, em 1909. Empenhou-se em elaborar um projeto integral para o Jardim
Botânico, contemplando o arboreto, estufas e viveiros, áreas para experimentos, laboratórios, biblioteca, herbário, escola
de Botânica, além de um museu botânico. Sabedor, inclusive pela própria vivência, da importância de expedições de
campo para a constituição de coleções representativas da flora brasileira, criou o cargo de naturalista viajante.11 Nesse
período, também, trabalhou nas suas anotações de viagens, desenhos e materiais herborizados, consolidando algumas
de suas mais importantes obras, entre as quais o Sertum Palmarum Brasiliensium, publicada em 1903, e Mbaé Kaá
– Tapyiyetá Enoyndaua (A Botânica – nomenclatura indígena), publicada em 1905, ambas imprescindíveis na compre-
ensão da classificação botânica indígena. A convivência com diferentes sociedades humanas, as suas anotações de
campo, os exemplares que colecionou bem como a sua experiência com a nomenclatura indígena das palmeiras foram
essenciais para a elaboração dessa última obra.12
Barbosa Rodrigues tinha evidências do uso, pelos indígenas, de um sistema etnotaxonômico com estrutura hie-
rárquica de táxons. Suas evidências estavam calcadas em informações recolhidas em suas viagens, quando procurou
acompanhar atividades do dia a dia das diferentes sociedades humanas com as quais teve contato, prática pouco
comum no fazer científico da época. Utilizando seus conhecimentos sobre taxonomia de palmeiras e outros grupos
de plantas, aliando-os ao que era apreendido do saber local, percorreu diferentes ambientes, reconhecendo-os como
imprescindíveis na compreensão da classificação botânica indígena. Analisava as plantas e os lugares onde ocorriam
levando em conta as divisões espaciais feitas pelos próprios indígenas. O esforço de compreensão e transmissão do
saber local perpassa por quase toda a obra do autor, tanto nas iconografias quanto nos textos escritos. Da preocupação
com o entendimento do vocabulário indígena resultaram diversas anotações, tanto em publicações quanto em etiquetas
de espécimes depositados em herbários. Passados mais de 100 anos, seus dois trabalhos acima referidos são ainda
citados em muitas publicações que tratam da etnotaxonomia de plantas. Um tema árduo e ainda pouco trabalhado.
Os espécimes que colecionou e as anotações que os acompanham foram tidos, entretanto, por muito tempo, como
perdidos. Dois exemplares foram encontrados por William Rodrigues no herbário do Instituto Nacional de Pesquisas da
Amazônia (INPA), e outro, por Gustavo Romero, na coleção do Museu Nacional, Rio de Janeiro.14
Na busca de maiores informações, revisitamos alguns herbários e/ou consultamos as bases de dados disponíveis
24
on line em busca das coletas de Barbosa Rodrigues e anotações de suas etiquetas. Partindo dessas informações, lo-
calizamos, no herbário do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, 34 exemplares coletados por ele (Quadro 1), em 14 dos
quais há anotações de pertencimento ao Herbário Gustavo Capanema ou à Comissão Capanema. Algumas informações
disponíveis nas etiquetas dos exemplares comprovam o empenho de Barbosa Rodrigues em retratar o saber local.
No Sertum Palmarum, já no prefácio, o autor declara que, para as subdivisões dos gêneros das palmeiras, utilizou
nomes indígenas empregados pelos nativos (não somente para designar as espécies, como para indicar grupamentos)
com o mesmo discernimento que os melhores botânicos. Declara, ainda, que o uso constante que os índios fazem das
palmeiras os tornam conhecedores dos caracteres que as distinguem. Sendo assim, eles dão um nome genérico a
certo número de espécies que reúne características comuns que expressam esse nome. Segundo Barbosa Rodrigues,
graças a essa nomenclatura, os brasileiros e os estrangeiros poderão conhecer mais facilmente as espécies, legitimando,
assim, o saber dos indígenas.
Nessa obra, antes das descrições botânicas das espécies, há uma parte denominada “Usage e emploi des
palmiers du Brésil”, na qual são descritas, para um grande número de táxons, as formas de uso associadas às partes
utilizadas do vegetal. Descreve, por exemplo, que as folhas podem ser usadas para cobrir habitações, fornecer fios para
confecção de redes e cestarias em geral; que os brotos servem como palmito, confecção de tipitis e fornecem cera
para fazer velas. Revela que, do caule, os índios fazem canoas e zarabatanas para lançar flechas mortais com curare;
os frutos servem de alimento, fornecem óleos, sabão, além da confecção de anéis, brincos, etc. Algumas espécies
têm raízes usadas como medicinais.
Nessa mesma obra, faz referência e descreve os nomes indígenas atribuídos às espécies. Estes foram, muitas
vezes, usados por Barbosa Rodrigues para designar os epítetos específicos, bem como para as seções e subseções de
gêneros por ele propostos. Por exemplo, para o gênero Astrocarium, percebeu que existiam naturalmente três divisões
(seções). As subseções foram designadas pelos nomes vulgares, tais como, Yauary, Chambira, Mumbaca, Mumbacuçu,
5229 Fabaceae Inga bullatorugosa Ducke AM, Itaituba (CC) 84 4.7.1872 Ingá
5013 Fabaceae Centrosema brasilianum (L) Benth. PA, Óbidos 253 19.11.1872 Flor rosa
11713 Fabaceae Derris spruceana (Benth.) Ducke PA, Óbidos 273 20.11.1872 Turiíva
10138 Ericaceae Agarista hispidula (DC.) Hook. ex Nied. MG, Caldas 11.1876 Cor de rosa
8717 Aquifoliaceae Ilex chamaedryfolia Reissek MG, Caldas (HBC) 372 11.1876 Congonha-miuda
Eryngium hemisphaericum Urb. Mathias
14411 Apiaceae MG, Caldas 396 11.1876
& Constance
4802 Asteraceae Baccharis brevifolia DC. MG, Poços de Caldas (HBC) 460 12.1876
26214 Piperaceae Piper regnellii (Miq.) C.DC MG, Caldas 484 12.1876
27
Figura 2 Etiquetas de exemplares coletados por Barbosa Rodrigues da coleção de exsicatas do herbário do Jardim Botânico do Rio de Janeiro.
Agradecimentos
À Rosangela S. Cunha, técnica do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, pelo prestimoso auxílio na busca das exsicatas
coletadas por Barbosa Rodrigues na extensa coleção do herbário; a Erika von Sohsten S. Medeiros e Isabel M. R. Oliveira pelo
auxílio no tratamento das imagens das exsicatas; a Flavio L. Peixoto e Dean Berck pela leitura do texto e versão do abstract.
1 SÁ, Magali Romero. O botânico e o mecenas: João Barbosa Rodrigues e a ciência no Brasil na segunda metade do século XIX. História, Ciências, Saúde
– Manguinhos. Rio de Janeiro, v. VIII (suplemento), p. 899-924, 2001.
2 Cf. ORMINDO, Paulo. Arte botânica em João Barbosa Rodrigues. In: Jardim Botânico do Rio de Janeiro – 1808-2008. Rio de Janeiro: Instituto de Pesquisas
Jardim Botânico do Rio de Janeiro, 2008, p. 57-65.
3 HOEHNE, Frederico Carlos. O Jardim Botânico de São Paulo. São Paulo: Secretaria da Agricultura de São Paulo, 1941.
4 MORI, Scott & FERREIRA, Flora Castano. A distinguished Brazilian botanist, João Barbosa Rodrigues (1842-1909). Brittonia, New York, v. 39, n. 1, p. 73-85,
1987.
5 SÁ, op. cit., 2001.
6 Cf. HOEHNE, op.cit., 1941; MORI & FERREIRA, op. cit., 1987; SÁ, op. cit., 2001.
7 Cf. SÁ., op.cit. 2001, citando carta de Barbosa Rodrigues ao imperador.
8 SPRUNGER, Samuel; CRIBB, Phillip & TOSCANO DE BRITO, Antonio. (Org.) João Barbosa Rodrigues Iiconographie des orchidées du Brésil. F. R. Verlag, Basle. 1996.
9 PEIXOTO, Ariane Luna; SILVA, Inês Machline & GUEDES-BRUNI, Rejan R. O saber sobre as plantas em sociedades humanas: o olhar de Barbosa Rodrigues.
In: ABSY, Maria Lúcia; MATOS, Francisca D.A. & AMARAL, Ieda L. (Org.) Diversidade Vegetal Brasileira: conhecimento, conservação e uso. 61º Congresso
30 Nacional de Botânica. Sociedade Botânica do Brasil. Manaus, 2010, p. 71-75.
10 CAMPOS PORTO, Joaquim. Histórico do Museu Botânico do Amazonas. Vellosia, 2. ed., Rio de Janeiro, 1891, p. 61-80.
11 Cf. OLIVEIRA, Ana Rosa. A Construção da paisagem. In: Jardim Botânico do Rio de Janeiro – 1808-2008. Rio de Janeiro. Instituto de Pesquisas Jardim
Botânico do Rio de Janeiro. 2008. p. 79-91. PEIXOTO, Ariane Luna & MORIN, Marli Pires. 2008. O Jardim Botânico construindo pontes de saberes. In:
Roberto Padilla & Nair P. Soares (Orgs.) Jardim Botânico do Rio de Janeiro 1808-2008. Rio de Janeiro: Artepadilla, p.132-151.
12 Cf. PEIXOTO, SILVA, & GUEDES-BRUNI, op. cit., 2010.
13 RODRIGUES, João Barbosa. Sertum Palmarum Brasiliensium. Relation des palmiers nouveaux du Brésil. Bruxelas. Imprimerie Veuve Monnom, 2 vols. [Fac-
símile Ed. Expressão e Cultura, 1989]. 1903.
14 Cf. CRIBB, Phillip & TOSCANO DE BRITO, Antônio. Introdução e história. In: SPRUNGER, Samuel, CRIBB, Phillip & TOSCANO DE BRITO, Antonio (Orgs.). João
Barbosa Rodrigues Iiconographie des orchidées du Brésil. F. R. Verlag. Basle. 1996.
15 RODRIGUES, João Barbosa. Mbaé Kaá – Tapyiyetá Enoyndaua ou A Botânica – Nomenclatura indígena. Memória apresentada ao 3º Congresso Scientífico
Latino Americano. Rio de Janeiro. Imprensa Nacional. 1905. 87 p. [+ errata 1 p.]
16 HAVERROTH, Moacir. Etnobotânica: Uma revisão teórica. Antropologia em Primeira Mão UFSC, Florianópolis. n. 20, p. 1-56. Disponível em <http://www.
cfh.ufsc.br/~nessi/Etnobotanica % 20.htm>. 1997. Acesso em 22.6.2010.
17 HAVERROTH, op.cit. 1997; HAVERROTH, Moacir. Etnobotânica, uso e classificação dos vegetais pelos Kaingang – Terra Indígena Xapecó. 1. ed. Recife:
NUPEEA/SBEE, 2007. 107 p.
18 BERLIN, Brent; BREEDLOVE, D.E. & RAVEN, Peter. Folk taxonomies and biological classification. Science n. 154, p. 273-275. 1966; BERLIN, Brent.,
BREEDLOVE, D.E. & RAVEN, Peter. Covert catgories and folk taxonomies. American Anthropologist v. 70, p. 290-299. 1968; BERLIN, Brent., BREEDLOVE,
D.E. & RAVEN, Peter. General Principles of classification and nomenclature in folk biology. American Anthropologist, n. 75, p. 214-42, 1973.
19 BERLIN, Brent. Ethnobiological classification: principles of categorization of plants and animals in traditional societies. Princeton, New Jersey, Princeton
University Press. 1992.
20 HAVERROTH, op.cit., 1997; HAVERROTH, op. cit., 2007.
21 POSEY, D. A. 1986. Etnoentomologia de tribos indígenas da Amazônia. In: Ribeiro, B. Suma Etnológica Brasileira. Petrópolis: Ed. Vozes, p. 251-271.
22 Cf. FERREIRA, Emmanoeala N., MOURÃO, José S., ROCHA, Pollyana D., NASCIMENTO, Douglas M., BEZERRA, Dandara M.M. Folk classification of the
crabs and swimming crabs (Crustácea – Brachyura) of the Mamanguape river estuary, Northeastern – Brasil. Jounal of Ethnobiology and Ethnomedicine v.5,
n. 22., 11p. (on line), agosto de 2009; COSTA NETO, Eraldo Medeiros & MARQUES, J.G.V. A etnotaxonômia de recursos ictiofaunísticos pelos pescadores
da comunidade de Siribinha, norte do estado da Bahia, Brasil. Biociências, v. 8, n. 2, p. 61-76. 2000; MOURÃO, José S Nordi N. Comparação entre as
taxonomias folk e científica para peixes do estuário do Rio Mamanguape, Paraíba – Brasil. Interciência, v. 27, n. 12, p. 664-668, 2002.
[ Artigo recebido em 03/2010 | Aceito em 07/2010 ]
RESUMO Trata este trabalho da vida e obra de um dos maiores naturalistas que o Brasil já teve. Natural do
Rio de Janeiro, onde nasceu e morreu, João Barbosa Rodrigues (1842-1909) foi um autodidata de grande cultura
eclética, especializou-se na taxonomia das Orchidaceae e Arecaceae, mas, também deu grandes contribuições
na área de Arqueologia, Zoologia, Antropologia, Geologia, Filologia e Etnologia indígena. Durante 18 anos, de-
dicou-se ao estudo da flora amazônica. Foi diretor do Museu Botânico do Amazonas, em Manaus, por sete anos
(1883-1890) e, por fim, destacado diretor do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, até o seu falecimento. Um dos
seus grandes méritos foi a pacificação dos terríveis índios crichanás do rio Jauaperi, Amazonas. Publicou dezenas
de trabalhos, entre eles, Sertum Palmarum Brasiliense, sua obra-prima, rica de ilustrações coloridas, feitas de seu
próprio punho no campo, incluindo os aspectos gerais das palmeiras em seu próprio habitat, e a Iconographie des
Orchidées du Brésil, cuja parte inédita das ilustrações em cores foi recentemente restaurada e publicada.
Palavras-chave biografia, João Barbosa Rodrigues, vale amazônico, naturalista, botânico, flora brasileira.
31
ABSTRACT The life and works of João Barbosa Rodrigues (1842-1909), one of the most famous Brazilian natural-
ists born and died in Rio de Janeiro, are remembered in this paper. He was a self-taught, vast eclectic culture, stood out
as specialist, mainly, in taxonomy of orchids and palms families. He also made important contributions to Brazilian
literature, archeology, geology, geography, zoology, and indigenous anthropology, ethnography and philology. During 18
years dedicated to the studies of Amazonian Flora, he published numerous articles dealing with the vast data obtained
during his expeditions in the extensive Amazon valley. A remarkable work in his life was to succeed in pacifying the
savage Crichanás Indians, of the Jauaperi River, Amazonas He was the single director of the Botanical Museum of
Amazonas (1883-1890), created specially for him by the Princess Isabel, and finally distinguished director (1890-1909)
of the Botanical Garden of Rio de Janeiro until 6 March 1909, when he died. He is remembered for the countless new
species and genera named by him, particularly of palms and orchids. He was author of dozens of important works such
as Sertum Palmarum Brasiliense, his masterpiece, rich in colorful illustrations made by his own wrist in field, including
the palm trees in their habitat and the Iconographie des Orchidées du Brésil
Keywords biography, João Barbosa Rodrigues, Amazon valley, naturalist, botanist, Brazilian flora.
Introdução
Comemorou-se no país o centenário da morte de João Barbosa Rodrigues, mais conhecido nos meios científicos
e culturais como Barbosa Rodrigues. Nasceu em 22 de junho de 1842, no Rio de Janeiro, e faleceu em sua terra natal,
em 6 de março de 1909, de septicemia, aos 66 anos de idade. Passou sua infância em Campanha (atual São Gonçalo
de Sapucaí, Minas Gerais).
Expedições na Amazônia
O barão de Capanema, amigo de infância e íntimo de D. Pedro II, conhecedor da potencialidade científica de seu
ex-discípulo e sabedor do interesse do governo imperial em encontrar alguém disposto a pesquisar a hileia, com o fim
não só de estudar a sua rica flora, mas também rever, atualizar e ampliar o conhecimento das palmeiras que haviam sido
motivo de publicação, antes, por naturalistas estrangeiros que estiveram na Amazônia – como Alfred Russel Wallace
(1848), Richard Spruce (1849) e, em particular, Carl. Friederich Philipp von Martius (1823-1850) –, apontou o nome de
Barbosa Rodrigues para essa importante missão.
Barbosa Rodrigues seguiu para a hileia, juntamente com sua família, em 16/01/1872, onde permaneceu por cerca
de três anos e meio (1872-1875). Percorreu os rios Capim, Jamundá, Tapajós, Trombetas, Urubu e Uatumã, deixando-
nos cinco importantes relatórios sob o título “Exploração e Estudo do Valle do Amazonas”,4 tratando de dados históri-
cos, geológicos, geográficos, botânicos, zoológicos, econômicos, etnográficos e sociológicos das regiões percorridas.
Ao regressar dessa viagem, com uma enorme bagagem de dados científicos recolhidos, criou gratuitamente algumas
Em 1882, por indicação do barão de Capanema e valiosa intermediação da princesa Isabel (Condessa D´Eu), foi
criado o Museu Botânico do Amazonas, em Manaus, pelo então presidente da Província do Amazonas, Dr. José Lustosa
da Cunha Paranaguá, em 18 de junho de 1883, tendo Barbosa Rodrigues tomado posse em 14/12/1883 como seu único
pesquisador e diretor até a sua extinção, sete anos após, com a Proclamação da República. A inauguração do Museu
se deu em 16/02/1884, num prédio provisório na Chácara do Cachangá, no igarapé da Cachoeirinha.
O plano do Museu, esboçado por Barbosa Rodrigues, compreendia o estudo da flora sob os pontos de vista
taxonômico, biológico e econômico, a organização de um herbário representativo da flora regional, a confecção de um
catálogo para divulgação da flora amazônica, seus produtos e sua distribuição geográfica, e a criação de uma revista 33
em que se reuniriam todos os trabalhos de pesquisa da referida entidade. Além disso, estava prevista a criação de um
curso de Ciências, dividido em Agrimensura e Agricultura, cursos esses que, infelizmente, não chegaram a vingar por
razões escusas e falta de dotação orçamentária. Barbosa Rodrigues, durante a sua gestão à frente do referido Museu,
nunca foi bem-visto por alguns influentes políticos da Província. Alguns desses motivos encontram-se em Porto.8 Por
ter tido muitos obstáculos nesse período, não perdia a oportunidade de atacar pública e veementemente os opositores
que dificultavam seu trabalho. Segundo consta,9 Barbosa Rodrigues era de uma energia invulgar, impetuoso e rancoroso
com seus contendores, mas generoso e gentil com seus familiares e amigos. Os serviços de limpeza e manutenção do
Museu eram, em geral, executados pelos seus filhos e empregados – isto até 1885, quando o Museu logrou contratar
um servente para esse fim, segundo Campos Porto.10
Durante os sete anos de sua efêmera existência, o Museu foi transferido três vezes de sede, só encontrando
estabilidade quando passou para o Lyceu, hoje conhecido como Colégio Estadual D. Pedro II. Em Vellosia, Campos
Porto11 conta minuciosamente como era a nova e derradeira sede. Os recursos orçamentários eram, em geral, sempre
muito escassos para a manutenção da instituição e de seus funcionários, e a nomeação de um competente jornalista
(Joaquim Augusto de Campos Porto) como secretário só ocorreu em 1887, isto é, três anos antes da extinção do
Museu. Diante dessas razões, estava claro que fizeram tudo para que Barbosa Rodrigues deixasse a instituição. Não
conseguiram demiti-lo antes porque Barbosa Rodrigues tinha grande respaldo político da corte, tanto que, logo após o
fim da monarquia, ele foi sumariamente demitido e a instituição fechada.
Barbosa Rodrigues, no final do prólogo da 1ª edição, transcrita no volume 1 da 2ª edição de Vellosia,12 ponderava
que, mesmo dispondo de parcas dotações orçamentárias, o Museu, durante sua existência, não fraquejou um só
momento, mesmo diante dos percalços. Não admitia que a entidade tivesse de suspender suas atividades sob “pena
de incorrer num crime de leso-patriotismo que ele a si próprio não perdoaria, por isso não esmoreceu um só momento
até que deram o golpe de morte na instituição”.
Barbosa Rodrigues era um naturalista emérito, incansável e apaixonado pelo que fazia, e inteiramente dedicado
ao estudo e trabalho em tempo integral. Era dotado de uma curiosidade nata, espírito de aventura, metódico, meticu-
loso e corajoso. Durante suas excursões, segundo ele próprio mencionou numa de suas correspondências enviadas
ao botânico sueco, Anders Fredrick Regnel (1807-1884), para quem ele coletava material sob a promessa de uma boa
messe, “costumava coletar pela manhã até o meio dia, à tarde desenhava e à noite fazia as descrições”.13 Inúmeras
vezes demonstrou muita coragem. Não esmorecia mesmo diante de eventuais perigos: lugares tidos como perigosos
e doentios, presença de índios selvagens, rios encachoeirados, animais ferozes, etc. Uma de suas maiores bravuras
narradas por ele próprio14 foi quando se dispôs a pacificar os temíveis índios crichanás (Waimiri-Atroari, família Karib),
do rio Negro, Amazonas, arriscando a sua própria vida. Sá15 cita que o geólogo britânico Charles Brown, que o acom-
panhou nas suas excursões pelo rio Trombetas, no Pará, menciona que Barbosa Rodrigues “era dotado de uma energia
e ardor quase portentoso, quando começava a trabalhar. Era normalmente o primeiro a sair do barco e a se aproximar
do primeiro nativo que encontrasse. Sentado desconfortavelmente em um toco ou outro lugar conveniente, procedia
a anotar em sua caderneta tudo que ele conseguia obter de suas numerosas perguntas”.
No estudo das palmeiras e orquídeas, a cujas famílias ele dedicou a maior parte de sua existência, escreveu, em
francês, no Sertum palmarum,16 o seguinte:
Também, ao descrever17 algumas espécies novas, cultivadas no Jardim Botânico do Rio de Janeiro, assim se
34 expressou ao se manifestar orgulhosa e patrioticamente sobre o seu dedicado interesse pelo estudo botânico de nossa
flora: “Desejo que elas perpetuem a dedicação que tenho pela terra que me foi berço, à qual desinteressadamente
sacrifiquei os melhores dias de minha existência, tendo arriscado em muitas delas, até a própria vida”.
Homenagens especiais
A sua última esposa, D. Constança Eufrosina da Borba Paca (1844-1920), filha de um austríaco, capitão da guarda
da princesa Leopoldina, auxiliou-o bastante nas suas pesquisas pela Amazônia como fiel, dedicada e companheira nos
cansativos e arriscados trabalhos de campo, e colaboradora nas suas coletas e ilustrações botânicas. Segundo relato
de Stapf18 apud Mori,19 ela chegou a ajudar Barbosa Rodrigues na preparação das estampas de orquídeas brasileiras.
Como reconhecimento pela inestimável, valiosa e eficaz ajuda que sempre lhe prestou, criou o gênero Constantia
(Orchidaceae) em sua homenagem e, quando descreveu Bactris constanciae, Barbosa Rodrigues justificou em francês
a escolha do epíteto específico do seguinte modo:
Cette espèce, je l´ai dédiée à ma chère épouse Constança Barbosa Rodrigues, qui a tourjours été ma fidèle
compagne et qui m´aprêté son aide efficace dans tous mes travaux et dans mes dangereuses pérégrinations
par les forêts.
Le nome de l´espèce rappellera le courage, l´amour des découvertes scientifiques et l´héroïsme dont elle
a donné tant de preuves, notamment le 2 octobre 1873, lorsque notre pirogue coula à fond dans la rivière
Yatapu, entrainée par le tourbillon de la grande chute d´eau nommée Udidy et dans d´autres circonstances
lorsque, pendant la nuit, nous fûmes attaqués par um tigre dans la forêt oú nous avions nos hamacs près
de la Corredeira Picapáo, sur les rives de la même rivière.
Durante o centenário de seu nascimento, em 1942, diversos órgãos públicos se manifestaram, dentre eles a
Academia Amazonense de Letras, que lhe prestou uma grande e justa homenagem, tendo como orador oficial da en-
tidade o acadêmico Nunes Pereira,23 que versou sobre o tema “Um naturalista brasileiro na Amazônia”. Na ocasião, o
venerando e inesquecível acadêmico abordou sobre a brilhante passagem de Barbosa Rodrigues pela região Amazônica
e os resultados de suas importantes pesquisas para a ciência amazônica e brasileira.
A revista Rodriguésia, importante publicação do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, cujo nome o reverencia, 35
publicou, também na ocasião, alguns artigos celebrando o centenário de seu nascimento.
Redenção econômica
Carauta24 relata que Barbosa Rodrigues, ao regressar da Amazônia, em 1875, foi destituído de todas as suas
funções, inclusive de professor de Desenho do Colégio D. Pedro II. Desempregado, passou por momentos difíceis, só
contornados pelo barão de Capanema, que lhe deu ajuda financeira e o emprego de administrador de sua fábrica de
formicida, em Rodeio (Rio de Janeiro). Como o dinheiro era insuficiente para o sustento de sua numerosa família, sua
esposa, D. Constança, chegou a lavar roupa para fora para complementar as despesas de casa. Sua redenção veio
bem mais tarde, com a comercialização de um remédio indígena, que ele denominou de Pariquina, em homenagem aos
índios pariquis, que habitavam as margens do rio Jatapu, afluente do rio Uatumã, Amazonas. Esse remédio era obtido
de uma planta herbácea de nome indígena tangarakaá, também conhecido entre os civilizados por solidônia, pega-pinto
ou erva-tostão, cujo nome botânico é Boerhavia paniculata Rich (Nyctaginaceae). Como o próprio Barbosa Rodrigues
relata (1905), esse medicamento era usado pelos índios pariquis como um poderoso remédio contra os males do fígado.
O preparo e negociação desse remédio por ele solucionou de vez todos seus problemas financeiros e, com o lucro da
venda, pôde até comprar uma casa no Rio de Janeiro e custear parte de sua viagem à Europa, acompanhado de sua
extensa família, quando o governo brasileiro resolveu custear a impressão do Sertum Palmarum Brasiliense.
O remédio causou na época muito sucesso, especialmente depois que recebeu o aval do famoso sanitarista
patrício Oswaldo Cruz, que, numa carta dirigida a ele, mencionava que não só aprovava o medicamento como o estava
recomendando aos seus pacientes.25 O remédio foi comercializado até meado de 1930, quando a sua família resolveu
vender a patente.
Barbosa Rodrigues foi nomeado diretor do Jardim Botânico do Rio de Janeiro em 25/04/1890, assumindo suas
funções em 31/5/1890, cargo que ocupou com muita galhardia, proficiência e dedicação até sua morte, ocorrida em
06/03/1909. Sua nova missão não foi menos difícil. Encontrou o Jardim Botânico inteiramente desorganizado, necessi-
tando de uma reforma geral. Construiu prédios, estufas, aquário, enriqueceu o parque com novas espécies de plantas,
dando-lhe nova estrutura digna de todos os encômios. Encontrou o estabelecimento “sem arquivo, sem pessoal regular,
sem biblioteca e sem herbário. O grande parque mais parecia uma floresta. Tudo muito agradável à vista, mas cienti-
ficamente em estado deplorável”. Esses detalhes vêm descritos em seu Hortus fluminensis.26 Felizmente, conseguiu
implantar, com grande sucesso, no Jardim Botânico do Rio de Janeiro, grande parte do que não pôde concretizar no
Museu Botânico do Amazonas. O Jardim Botânico do Rio de hoje é um paradigma da ciência brasileira, respeitado e
mundialmente conhecido, graças, em grande parte, a sua competência de eficaz administrador. É, ainda hoje, consi-
derado um dos melhores diretores que o Jardim Botânico do Rio já teve.
À testa na direção do Jardim, com tanta tarefa a cumprir, esperava-se que ele estacionasse, cuidando apenas
da administração, de pôr em dia suas inúmeras anotações e experiências adquiridas durante longos anos de estudos
e trabalho de campo. Nada disso. Espírito irrequieto, dado a aventuras, impetuoso e incansável, sempre interessado
em adquirir novos conhecimentos sobre nossa flora, lançou-se ainda em novas aventuras por outras plagas, não só no
Brasil como Paraguai, Uruguai e Argentina, publicando sempre.
Produção científica
Durante os 18 anos das pesquisas de Barbosa Rodrigues na Amazônia, sua produção científica foi grande e bas-
tante diversificada. A relação encontra-se, especialmente, em Victorino Alves Sacramento Blake,35 Ignatius Urban,36
Hermann von Ihering,37 Anônimo,38 Carauta39 e outros.
Descreveu inúmeras plantas novas; pacificou, com grande risco de vida, a perigosa e soberana tribo indígena dos
crichanás (Amazonas); criou a revista Vellosia, cujo nome foi emprestado, segundo Barbosa Rodrigues,40 do nosso ilustre
naturalista patrício, frei José Mariano de Conceição Velloso (1742-1811), autor da esplêndida obra Flora Fluminensis,
com a seguinte justificativa: “Na falta de um mecenas, sirva o nome de um redivivo, e que as palmas que por ventura
colha, prestem para ornar o pedestal da sua glória”.41 Em Vellosia, são descritas 107 espécies, 4 variedades e 4 gêneros
novos, tanto medicinais como industriais, entre elas 51 espécies de diversas famílias (incluindo 4 gêneros novos), 21
palmeiras e 35 orquídeas (incluindo 1 gênero novo). No segundo volume,42 constam 25 estampas de plantas novas; os
estudos sobre Arqueologia e Paleontologia (os vestígios de uma necrópole dos primitivos habitantes da Amazônia); o
folclore ou mitologia da mesma região e os répteis fósseis do vale amazônico; Histórico e Descrição do Museu Botânico
- Catálogo da seção etnográfica e arqueológica; e Relação das tribos selvagens representadas na entidade.
Dentre os inúmeros trabalhos de interesse amazônico publicados por Barbosa Rodrigues, destacam-se: Enume-
ratio palmarum novarum, em dois volumes;43 Genera et species orchidearum novarum,44 em dois álbuns; Iconographie
37
des Orchidées de Brésil,45 obra iniciada em 1869, incluindo texto e ilustrações em cores de orquídeas baseadas em
observações de campo; O rio Yauapery. Pacificação dos crichanás,46 trabalho este em que conta em detalhes como
ocorreu a catequização dos temíveis índios do rio Negro, os riscos que correu sem receber remuneração alguma a
mais pelo trabalho. Sua missão, nesse caso, não era só catequizar os índios, mas também estudar os produtos na-
turais da região dominada por eles no rio Jauaperi. Numa das vezes em que esteve com os crichanás, segundo seu
relato na publicação acima mencionada, levou sua família e, nessa ocasião, as índias fizeram com que sua esposa,
D. Constança, amamentasse algumas de suas crianças, e ele permitiu que levassem sua filha de 3 anos para satis-
fazer a curiosidade dos indígenas, especialmente por ser loura. O risco dessa aproximação com os indígenas foi-lhe
muito útil. Não só descobriu inúmeras espécies novas de palmeiras locais e suas utilidades como pôde escrever uma
série de outros artigos, tais como: “O canto e a dança selvícola” e “Lendas, crenças e superstições”;47 “Vocabulário
indígena comparado para mostrar a adulteração das línguas” (1892);48 “Vocabulário indígena” (1893); “Exploração e
Estudo do Valle do Amazonas”;49 “As moléstias do fígado curadas pela Pariquyna” (1897); “O Muirakytan e os ídolos
simbólicos” (1889); “Poranduba amazonense” (1890); e “L´uiraêry ou curare. Extraits et compléments des notes
d´un naturaliste brésilien”.50
O Sertum Palmarum Brasiliensium,51 sua obra-prima, foi editado em dois grandes e pesados volumes, contendo
texto em francês e 174 magníficas estampas coloridas, feitas de seu próprio punho, mandado imprimir na Bélgica
pelo nosso Governo.
Algumas de suas publicações são muito pouco conhecidas, especialmente aquelas em que descreve novos táxons,
por terem sido efetuadas em revistas de pouca penetração como as revistas de Engenharia e de Horticultura, em que
estão descritas, por exemplo, Monostychosepalum monanthum Barb. Rodr. (Burmanniaceae) - Rev. de Horticultura, v.2, p.
184, fig. 82.1877; Esterhazya superba Barb. Rodr. (Scrophulariaceae) - Rev. de Engenharia, v. 5, p.145, est. A 1-7.1883;
e Epistephium spruceanum Barb. Rodr. (Orchidaceae) - ibid., v.3, nº 49, 1881) e alguns outros táxons.
Considerações finais
Barbosa Rodrigues como botânico foi surpreendente. Apesar da falta de bibliografia especializada, na época,
para consultar, e de coleções botânicas de referência ou coleções-tipo para consulta longe dos grandes centros de
pesquisa, mesmo assim, com grande esforço e muita dedicação, foi o primeiro brasileiro a se dedicar com maestria ao
estudo de grupos taxonômicos tão difíceis e complexos como as palmeiras e orquidáceas, e outras famílias botânicas
como as mirtáceas, por exemplo, e a dar uma grande contribuição para tornar a nossa rica e diversificada flora mais
bem conhecida mundialmente.
D. Pedro II, reconhecendo, no entanto, tempos depois, seus insofismáveis méritos como cientista de renome
internacional, estava prestes a lhe conceder o título de barão de Jauaperi, quando foi deposto.53
Não é novidade para muitos, mas é sempre bom lembrar que botânica não se faz apenas dentro de um laboratório.
É um trabalho de infantaria. Tem-se que estar, sempre que possível, à frente no campo, à cata de novidades ou de novas
fontes de informação sobre qualquer planta de modo geral, mesmo que isso implique grandes sacrifícios, desconfortos,
surpresas e riscos constantes. Felizmente, tudo isso Barbosa Rodrigues cumpriu com desenvoltura e muita dedicação;
portanto, como um profissional pertinaz, competente, inteligente, de vasta cultura eclética, corajoso, trabalhador e
estudioso. Será sempre lembrado como um exemplo para toda a juventude que está se iniciando na nobre e patriótica
profissão de naturalista no Brasil.
38
Ao findar este despretensioso artigo, gostaria de fazer minhas as palavras escritas por Barbosa Rodrigues no
prólogo da revista Vellosia, 1ª edição (1891):
A força moral de uma nação não se determina só pelo número de seus soldados ou de seus vasos de guerra, pelo
incremento de seu comércio ou de sua indústria, mas principalmente pelo grau a que têm atingido as ciências, as letras
e as artes. São estas que inventam o canhão, encouraçam as esquadras, impelem as locomotivas, fazem mover-se as
correntes elétricas, desvendam os mistérios das florestas e do solo e, tornando-os realidades, transformam-nos em
produtos que se derramam pelas fábricas e pelos mercados. É pela força intelectual, e não pela física, pois, que uma
nação progride, que campeia entre outras. Não bastam os arsenais, as fábricas, as alfândegas, é preciso que tudo se
mova pela força do gênio de seus filhos, que descobrem os materiais que dão movimento aos operários, às máquinas
e às pautas.
Agradecimentos
Agradeço ao prof. Olavo A. Guimarães da Universidade Federal do Paraná pela leitura do texto e correções.
1 BITTENCOURT, Agnello. Dicionário amazonense de biografias. Vultos do passado. Rio de Janeiro: Conquista, 1976.
2 SALGADO, Dilke de Barbosa Rodrigues. Barbosa Rodrigues, uma glória do Brasil. Rio de Janeiro: Ed. A Noite, 1945.
3 ORMINDO, Paulo. Arte Botânica do Rio de Janeiro. In: Jardim Botânico do Rio de Janeiro: 1808-2008. Instituto de Pesquisas do Jardim Botânico do Rio de
Janeiro. (Org.), Rio de Janeiro, 2008. p. 57-67.
4 RODRIGUES, João Barbosa. Exploração e estudo do Valle do Amazonas. Rio Tapajós.Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1875, p. 1-151; RODRIGUES,
João Barbosa. Exploração e estudo do Valle do Amazonas. Rio Capim. Relatório. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1875, p.1-52 e mapa; RODRIGUES,
João Barbosa. Exploração e estudo do Valle do Amazonas. Rio Trombetas. Relatório. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1875, p. 1-39 e planta do rio
Trombetas; RODRIGUES, João Barbosa. Exploração dos rios Urubu e Jatapu. Relatório. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1875, p.1-129 e mapas.
5 CARAUTA, Jorge Pedro Pereira. Biobibliografia de Barbosa Rodrigues. XXV Cong. Nac.Botânica, Mossoró, Rio Grande do Norte, 20 a 26 de janeiro, 1974,
p.361- 370.
6 SÁ, Magali Romero. O botânico e o mecenas: João Barbosa Rodrigues e a ciência no Brasil na segunda metade do século XIX. História, Ciências e Saúde
– Manguinhos, v. VIII (suplemento), p. 899-924, 2001.
7 SPRUNGER, Samuel; CRIBB, Phillip J. W.; BRITO, Toscano de. (Eds.). In: RODRIGUES, João Barbosa. Iconographie des orchidées du Brésil. The illustrations.
Friederich Reinhardt Verlag. Basileia: 1996, 540 p.
8 PORTO, Joaquim Augusto de Campos. Histórico do Museu Botânico do Amazonas. Contribuições do Museu Botânico do Amazonas. Vellosia, Rio de
Janeiro: Imprensa Nacional, 2 ed., p. 61- 80, 1892.
9 CARAUTA, 1974, op. cit.
10 PORTO, 1982, op. cit.
11 Idem.
12 RODRIGUES, João Barbosa. Descrição do Museu. Contribuições do Museu Botânico do Amazonas. Vellosia. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 2. ed.,
p.81- 124, 1892.
13 RODRIGUES, João Barbosa. Plantas novas cultivadas no Jardim Botânico do Rio de Janeiro, descriptas, classificadas e desenhadas. Rio de Janeiro, v. 1, n.1, 39
I-II, p. 1-38, t.9. 1891.
14 RODRIGUES, João Barbosa. O rio Jauapery. Pacificação dos Crichanás. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1885, 275 p.
15 SÁ, 2001, op. cit.
16 RODRIGUES, João Barbosa. Sertum palmarum brasiliense. Relation des palmiers nouveaux du Brésil découverts, décrits et dessinés d’aprês naturele.
Bruxelles, 1903, v.1, I-XXIX, p. 1-140, 91 t.
17 Idem, p.1-114, 83 t.
18 MORI, Sott A.; FERREIRA, Flora Castaño. A distinguished Brazilian botanist, João Barbosa Rodrigues (1842-1909). Brittonia, New York, v. 39, n.1, p. 73-85,
1987.
19 RODRIGUES, 1903, op. cit.
20 SALGADO, 1945, op. cit.
21 RODRIGUES, William Antônio. Cadeira 38. Na poltrona de Barbosa Rodrigues. Revista da Academia Amazonense de Letras, Manaus, 1970, ano L, nº 15, p.
238-251, 1970.
22 CARAUTA, 1974, op. cit.
23 PEREIRA, N. Um naturalista na Amazônia. Manaus: Imprensa Publica, 1942.
24 CARAUTA, 1974, op. cit.
25 SÁ, 2001, op. cit.
26 RODRIGUES, João Barbosa. Hortus fluminensis ou breve notícia sobre as plantas cultivadas no Jardim Botanico do Rio de Janeiro para servir de guia aos
visitantes. Rio de Janeiro. XXXVIII, p. 1-308. I-X, I-XI, I-XVIII, 13 t, 1895.
27 SÁ, 2001, op. cit.
28 CARAUTA, 1974, op. cit.
29 Segundo o botânico Cláudio Nicoletti (com. pess.), curador das Coleções Vivas do Jardim Botânico do Rio, parte da coleção-tipo das plantas descritas por
Barbosa Rodrigues antes de 1890 foi remetida por ele (Barbosa Rodrigues) para o Jardim Botânico de Coimbra.
30 PORTO, 1982, op. cit.
31 DUARTE, Durango. Manaus entre o passado e o presente. 1ª ed., Manaus: Mídia. Ponto Com. 2009. 280p + 14 anexos.
32 RODRIGUES, William Antônio. Descoberta de um tipo raro da coleção Barbosa Rodrigues. Anais do 31º Congresso Nacional de Botânica do Brasil, Ilhéus,
Bahia, 1980. p. 81.
RESUMO Este trabalho discute a visão de Barbosa Rodrigues sobre os sambaquis da Amazônia, a partir de um
artigo escrito oitenta anos depois pelo antropólogo Luiz de Castro Faria. Este recuperou aquele estudo de Barbosa
Rodrigues por ter identificado ali um traço de identidade entre ambos: os sambaquis como“restos humanos”eram
lugares de estudo da cultura social e não deviam ser destruídos. Comissionado pelo governo brasileiro, Barbosa
Rodrigues chegou à Amazônia em 1872, para realizar estudos naturalistas, dentre os quais os sambaquis. Esse
trabalho de Barbosa Rodrigues se insere nas pesquisas sobre a origem do homem americano que dominaram o
século XIX e foi um fio condutor da prática arqueológica brasileira até meados do século seguinte.
Palavras-chave Barbosa Rodrigues, Luiz de Castro Faria, sambaqui, história da arqueologia, história da etno-
logia, Amazônia.
41
ABSTRACT This work discusses the Barbosa Rodrigues vision on the Amazonian sambaquis from a paper written by
the Anthropologist Luiz de Castro Faria eighty years after, where he identified in the Barbosa Rodrigues study a common
trace between them: the sambaquis considered as “human rests” were places for studies of social culture and should not
be destroyed. Commisioned by the Brazilian Government, Barbosa Rodrigues arrived at the Amazonian in 1872 to carry
on naturalist studies, among them the sambaquis. This work can be inserted in the researches on the origin of American
Man, that dominated the end of XIXth Century and it was the guiding principles of the Brazilian archeological practice
until the midle of the next century.
Keywords Barbosa Rodrigues, Luiz de Castro Faria, kökknmödding, History of Archeology, History of Ethnology,
Amazonia.
O trabalho de Barbosa Rodrigues sobre os sambaquis na Amazônia, realizado nos anos 1870, se insere nas
pesquisas sobre a antiguidade do homem, as quais dominaram o século XIX. Comissionado pelo governo brasileiro,
Barbosa Rodrigues chegou à Amazônia, em 1872, com a missão de realizar explorações naturalistas no vale do Ama-
zonas, visando estimular os conhecimentos botânicos e completar o gênero Palmarum de Martius.2 Mas não descurou
das demais especialidades das ciências naturais e, dentre os seus trabalhos de campo, ganharam destaque, por sua
originalidade, aqueles realizados sobre os sambaquis.
Conforme sublinhou Luiz de Castro Faria, o estudo de Barbosa Rodrigues sobre os sambaquis é merecedor de toda
a atenção, pois ele possuía um conhecimento direto e profundo da região amazônica, era versado em arqueologia e
etnografia indígena e teve oportunidade de examinar pessoalmente diversas jazidas.3 Os trabalhos que publicou sobre
os sambaquis dizem respeito a duas jazidas de conchas: a da serra da Taperinha, no rio Aiaiá, e a do Pau Mulato, na
margem direita do Amazonas, próxima à borda do Lago Grande de Vila Franca, lago outrora denominado Tucumã e,
depois, das Campinas (o sítio denominado Pau Mulato era antigo leito do rio Amazonas).
O estudo dos montes de conchas, desde longa data, inquietava os estudiosos. Já no século XVI, Leonardo da Vinci
preocupou-se com esses montes e, observando-os, rejeitou o Leiscester Codex, que dizia que as conchas tinham sido
42 carregadas pelo Dilúvio, e afirmou, contrariando os neoplatônicos, que os fósseis eram constituídos de restos de organismos
antigos.4 Não cogitou, no entanto, a artificialidade desses montes. Os historiadores, hoje, são unânimes em afirmar que,
somente no século XIX, a ideia da artificialidade desses montes de conchas passou a ser aceita e deu base à construção
da Pré-História.
Para Claude Masset, a Pré-História nasceu em 1859, quando a Royal Society de Londres ultrapassou a congênere
francesa e reconheceu o trabalho de Boucher des Perthes.5 Desde os anos 1830, Boucher des Perthes afirmava que
existia o homem fóssil, contrariando o que dissera o reconhecido Cuvier, que havia negado essa existência. Na França,
esses estudos continuaram e, na segunda metade do século XIX, o abade Bourgeois, que estudara com Boucher des
Perthes, confirmou o que este dissera, com descobertas de sílex talhados em terrenos da era Terciária.6
Os estudos nas chamadas concheiras, os sambaquis, viriam confirmar a teoria de Boucher des Perthes. Foi na
Dinamarca, em 1837, que as pesquisas arqueológicas nos montes de conchas, sob a liderança de Worsaae, ganharam
relevo. Worsaae encontrou as concheiras de ostras a pequena distância da costa, rumo ao interior, e demonstrou que
continham vários artefatos pré-históricos, concluindo por sua origem artificial. Levando em consideração suas pesquisas,
a Real Academia de Ciências Dinamarquesa criou, em 1838, uma comissão encarregada de estudar as concheiras, com
o mesmo Worsaae à frente, juntamente com um biólogo, Steenstrup, e o geólogo J. S. Forchhamer. Em 1845, essa
comissão publicou um relatório dos estudos realizados, em seis volumes, mencionando os “restos de cozinha”. Ou seja,
concluiu que as concheiras eram de origem humana e definiu-lhes o padrão de acumulação. A comissão determinou,
ainda, o cenário paleoambiental (florestas de abetos e pinheiros, com uma pequena quantidade de carvalhos), demonstrou
que os únicos animais domesticados naquela época eram cães e que as concheiras eram ocupadas durante o outono,
o inverno e a primavera, jamais no verão.7 O único ponto de discordância entre os membros da comissão foi sobre a
idade das concheiras. Para Steenstrup, eram neolíticas, contemporâneas às tumbas megalíticas; para Worsaae, eram
anteriores, e ele estava correto.8 Esse trabalho correu mundo na época e a arqueologia da Dinamarca tornou-se modelo
para os demais países, inclusive para os estudos realizados no Brasil, particularmente os de Barbosa Rodrigues.
43
Ao introduzir Antiguidades do Amazonas, Barbosa Rodrigues fez um alerta sobre o “nosso” desconhecimento
daquelas relíquias guardadas pela Terra, alegando que tal ignorância se devia à falta de explorações especiais, o que,
por sua vez, levava ao desaparecimento e à destruição do material arqueológico, cuja consequência era a ignorância
dos costumes e usos dos indígenas. Fazia um apelo à necessidade de realização de trabalhos científicos no ambiente
natural e, ao mesmo tempo, deixava claro que a Arqueologia era uma forma de preservação da cultura, questão que
ainda hoje aflige os intelectuais e os especialistas que trabalham a memória cultural.
Bem mais tarde, possivelmente na década de 1950, o antropólogo Luiz de Castro Faria escreveu (num artigo que
não chegou a publicar) que os estudos de Barbosa Rodrigues sobre os sambaquis na Amazônia são de grande importância
pela peculiaridade de ter considerado o problema dos sambaquis ou sernambis numa região que não é marítima, e sim
fluvial, mostrando que aqueles montes de conchas podiam aparecer no interior, em margens de rios, e não somente
na costa oceânica, onde era comum estudá-los; e por ter sido um trabalho que representou uma indivisibilidade da
arqueologia brasileira, pois, embora não tivesse ligação direta com os das jazidas meridionais, mostrava que havia uma
sequência histórica nos estudos a respeito do tema. Uma indivisibilidade que chegou até o século XX e permitiu retomá-lo
como parte dos trabalhos que estavam sendo desenvolvidos no litoral sul do Brasil, na década de 1940, dentre os quais
os de Castro Faria.14 Na verdade, segundo Francisco Pelayo, a discussão sobre a existência e antiguidade do homem
fóssil durou até os anos 1940.15 Daí também a continuidade histórica que alcançaram os trabalhos de Barbosa Rodrigues
sobre Arqueologia associada à Etnografia. Nas últimas décadas do século XIX, os estudos arqueológicos, abordando
a questão da origem do homem, davam base à História, fundamentando o imaginário dos nascentes Estados-nação.
Ainda em 1968, Paulo Duarte acreditava que os sambaquis, especialmente os do Brasil, continham a história inteira
A arqueologia é uma ciência que apenas inicia. Somente penetrando nas profundezas da Terra chegareis a
descobertas verdadeiramente grandes. Nós estamos ainda na epiderme, não fizemos mais do que escavar
a superfície e tirar um pouco da poeira. (Boucher des Perthes)17
Bourgeois, discípulo de Boucher des Perthes, também foi citado por Barbosa Rodrigues, ao lado de Lyell, Dellaunay,
Büchner e outros, quando falou da antiguidade dos achados arqueológicos na Amazônia. Incluía ainda aí os trabalhos
de Lund, em Minas Gerais, realizados na década de 40 do século XIX.
A Dinamarca foi vista como país difusor da cultura dos povos nórdicos, que haviam dominado os mares num dado
momento da Antiguidade. Tal influência explicava os sambaquis e outros traços culturais. Explicou que os kjoekken (cozi-
nha) modings (restos) na Dinamarca, pesquisados
por volta de 1845, eram encontrados próximos ao
litoral; hoje, porém, têm sido encontrados longe
da costa, evidenciando o deslocamento do mar.
O capítulo dedicado aos sambaquis da
Amazônia começou pela afirmação de que os
montes de conchas que encontrara eram aná-
logos aos kökknmöddings da Dinamarca ou shell
44 mounds dos Estados Unidos. Da mesma forma,
concordava com o que dissera o seu colega
Guilherme Capanema sobre os sambaquis de
Santa Catarina, sublinhando que este dera a
conhecer ao mundo científico os kökknmöddings
brasileiros. Fazendo um histórico dos trabalhos
dinamarqueses, Barbosa Rodrigues explicou
ainda o significado que eles haviam dado aos
montes de conchas: “restos de cozinha” – com
o que também concordava. “Os depósitos de
conchas”, disse ele, “chamados sernambis ou
sambaquis são os kökknmöddingers, ou restos
de cozinha, dos dinamarqueses”.
Ele preferia usar a palavra sernambi, por ser do
vocabulário indígena. Segundo Barbosa Rodrigues,
os índios denominavam sernambi a todo monte de
conchas que encontravam, quer nas praias, quer
nas margens dos rios. Quanto à origem da palavra
sernambi, dizia ele, exprime o pensamento do
índio: significa restos da vazante (deriva-se de
seryc, vazante da maré, e sembyr, restos).
Na sua analogia com os trabalhos dos dina- Inscrições nas paredes das serras do Irerê e Aruchy, espalhadas em diferentes
marqueses, Barbosa Rodrigues considerou que os alturas dos montes de conchas.
Barbosa Rodrigues observou, ainda, que os moluscos encontrados nesses montes não eram daqueles de vida
social, como o berbigão, e que formavam montes quando ficavam em seco, em situação de emersão da costa do
oceano. As espécies que ele havia examinado viviam solitárias e só apareciam na vazante do rio, em muito pequena
escala. Esses montes eram artificiais e, pela quantidade encontrada, demonstravam que eram erguidos por tribos que
anualmente iam à pesca.
Segundo ele, as inscrições mostravam que os sernambis brasileiros eram “muito mais modernos do que os
kökknmöddings dinamarqueses”, mas, a semelhança nas práticas indicava que havia descendência. Os índios que for-
maram aqueles montes de conchas ou aterros sepulcrais e deixaram inscrições lapidares que se encontravam cravadas
nas rochas, eram imigrados do Norte. Concluiu, assim, que esses restos de cozinha perpetuavam o costume de um
povo que aí existiu ou viveu por longos anos, em época anticolombiana.
Não excluiu, portanto, a ideia de origem europeia dos índios brasileiros. Para ele, esses montes encontrados na
Amazônia, demonstravam essa origem europeia da antiga civilização indígena da região. Eles eram semelhantes aos já
encontrados nos Estados Unidos, anteriormente. Sublinhou ainda que: “Esses depósitos não se encontram no Peru, o que
mostra que os invasores do Amazonas não passaram por lá, ou lá se detiveram muito pouco (Terra dos Aymaras)”.
O primeiro sítio examinado por ele, o da serra da Taperinha, no Rio Aiaiá, era distante da margem do rio, na base
da serra, onde raríssimos eram os moluscos que se encontravam e onde, naquela ocasião, nem as maiores enchentes
atingiam o lugar. Conforme sublinhou Castro Faria, é importante atentar para as observações de Barbosa Rodrigues sobre
a situação do local, pois as conchas encontradas estavam todas em decomposição, promiscuamente, dispostas em
estratos separados por pequenas camadas horizontais de humus, indicando que o depósito foi feito em várias épocas:
“Diferentes depósitos ou montículos destes, existem espalhados, todos com a forma cônica, tendo a base do maior
mais de 25 metros de diâmetro. Cerrada vegetação os cobre, deixando transparecer aqui ou ali a sua superfície”.19
Conclusão
Em seu trabalho, Barbosa Rodrigues manifestou-se contra a maneira colonial de explorar a terra e seus habitan-
tes, o que, para ele, destruía a cultura, ou, pelo menos, a empobrecia. Considerava-a uma exploração predatória. Ao
apresentar a Memória sobre as minas de conchas e observar a destruição dos montes de conchas para produzir cal,
Barbosa Rodrigues afirmou ser aquela prática uma “cobiça da civilização”. Foi a mesma indignação que, mais tarde,
no século XX, impulsionou Castro Faria a lutar pela Lei de Preservação do Patrimônio Arqueológico Brasileiro diante da
1 Este trabalho é dedicado à memória de Luiz de Castro Faria e insere-se no Projeto História da Antropologia no Acervo Luiz de Castro Faria, sob minha
coordenação. No seu arquivo (Fundo CF, Arquivo de História da Ciência, Mast), foi encontrado um artigo inédito, intitulado “O trabalho de João Barbosa
Rodrigues” (s/d), em que ele discute exatamente as pesquisas de Barbosa Rodrigues nos sambaquis na Amazônia, artigo que inspirou o presente
trabalho.
2 SÁ, Magali R. O botânico e o mecenas: João Barbosa Rodrigues e a ciência no Brasil na segunda metade do século XIX. Revista História, Ciências e Saúde,
Manguinhos, v. VIII (suplemento), p. 899-924, 2001.
3 CASTRO FARIA, L. O trabalho de João Barbosa Rodrigues. Doc. Arquivo de História da Ciência, Mast, s/d. Escreveu ainda sobre os sambaquis: CASTRO
FARIA, L. A formulação do problema dos sambaquis. In: Antropologia – Escritos Exumados – Dimensões do conhecimento antropológico. V. 2. Niterói,
Rio de Janeiro, 2000, p. 187-194; CASTRO FARIA, L. O problema dos Sambaquis do Brasil: escavações recentes nos sítios de Cabeçuda (Laguna, Santa
Catarina). In: Antropologia – Escritos Exumados – Dimensões do conhecimento antropológico. V. 2. Niterói, Rio de Janeiro, 2000, p. 205-212.
4 JAY GOULD, Stephen. A montanha de moluscos de Leonardo da Vinci. São Paulo, Companhia das Letras, 2003, p. 39;
5 MASSET, Claude. Darwinisme et Prehistoire? TORT, Patrick. (Org.) Darwinisme et Société. Paris, PUF, 1992, p. 651-656. Para o autor, apesar de o lançamento,
em Londres, das ideias de Perthes coincidir com a publicação de A Origem das Espécies de Darwin, ambas as teorias eram paralelas e não dialogavam.
6 LOPEZ-PELAYO, F. ¿’Hombre Terciario’ o precursor humano?: Sílex, Transformismo y los orígenes de la humanidad. DOMINGUES, H. M. B.; SÁ, M. R.; PUIG-
SAMPER, Miguel Angel; RUIZ, Rosaura. (Org.) Darwinismo, meio ambiente, sociedade. Rio: Mast; São Paulo: Via Lettera, 2009, p. 161-176, 169.
7 TRIGGER, Bruce G. História do pensamento arqueológico. São Paulo: Odysseus Editora, 2004, p. 80.
8 Idem.
9 CASTRO FARIA, Luiz de. Virchow e os sambaquis brasileiros: um evolucionismo antidarwinista. DOMINGUES, Heloisa M. Bertol; SÁ, Magali R.; GLICK,
Thomas. (Org.) A recepção do darwinismo no Brasil. Rio: Ed. Fiocruz, 2003, p. 125-143. Luiz de CASTRO FARIA escreveu uma série de quatro trabalhos
sobre a formação da arqueologia no Brasil, dentre os quais a referência acima e três inéditos e inacabados que se encontram no seu arquivo, entre os quais
o citado “O trabalho de João Barbosa Rodrigues”. Segundo Tania Andrade Lima, em 1947, Castro Faria iniciou um trabalho de leitura crítica e de revisão
completa da bibliografia até então existente sobre sambaquis, para corrigir “generalizações descabidas e estereotipias comprometedoras” (LIMA, Tânia
Andrade L. Luiz de Castro Faria, também um arqueólogo. 2009. http//centrodememoria.cnpq.br/publicacoes3.html. Consulta 15/02/2011). Tais artigos,
certamente, constituem resultado de tais leituras.
10 Idem.
11 Em apêndice de seu Antiguidades do Amazonas, Barbosa Rodrigues diz: “ A ciência é cosmopolita, os seus obreiros são irmãos, do concurso de todos nasce
o progresso, por isso devemos trabalhar para que não vivamos sempre como filhos – família na ciência” (p. 71). Sobre a relação de Barbosa Rodrigues com
PAULO ORMINDO
ICHS/UFRRJ e ENBT/JBRJ
RESUMO Este artigo analisa a Arte Botânica, como forma de expressão artística e cientifica dentro das ciên-
cias naturais e da história da arte, exemplificado nos desenhos e aquarelas do botânico e ilustrador João Bar-
bosa Rodrigues. Para isto, é abordado alguns conceitos sobre a arte e ciência. A obra e a vida de João Barbosa
Rodrigues são aqui abordados na busca de um entendimento da importância e do esforço no fazer botânico
científico e artístico, em defesa, divulgação e registro do patrimônio ambiental da humanidade tão ameaçado
pelas barbáries da humanidade.
ABSTRACT This article analyzes the Botanical Art as a form of artistic expression and scientific research within the
natural sciences and art history, exemplified in the drawings and watercolors of the botanist and illustrator João Barbosa 51
Rodrigues. For this, we shall address some concepts on the art and science. The work and life of João Barbosa Rodrigues are
addressed in the search for an understanding of the importance and effort in making botanical scientific and artistic, in de-
fense, disclosure and registration of the environmental heritage of mankind as threatened by the barbarity of humanity.
Nascido na cidade do Rio de Janeiro em 22 de junho de 1842, João Barbosa Rodrigues era filho de um negociante
português com uma brasileira descendente de índios. Passou sua infância no Sul de Minas Gerais, em Campanha. Desde
cedo, teve muito contato com a natureza, fascinado pela exuberância e variedade das espécies da nossa flora. Retorna
ao Rio de Janeiro aos onze anos de idade para frequentar o colégio, tendo como mestre Francisco Freire Allemão de
Cisneiros (1797-1874), um talentoso artista e botânico, excelente influência para o jovem Barbosa Rodrigues.
Barbosa Rodrigues teve que lutar desde cedo por melhores oportunidades de educação. Encontrou muitos men-
tores no meio intelectual brasileiro da época e logo começou a expressar seus talentos como escritor aos onze anos,
ao publicar seus primeiros versos, e aos dezesseis, publica um livro de poesias, além de conduzir estudos nos campos
da Linguística, Etnologia, Zoologia e Botânica. Freire Allemão logo percebeu o talento de Barbosa Rodrigues com temas
relacionados à História Natural, levando-o a realizar suas primeiras excursões botânicas nos morros dos arredores do
Rio de Janeiro. Freire Allemão também introduziu o jovem a Guilherme Schuech, barão de Capanema (1824-1908),
que, além de botânico, era político e um dos muitos filhos ilegítimos do imperador Dom Pedro I. Tornaram-se grandes
amigos e dele Barbosa Rodrigues obteve muito apoio, homenageando-o com o gênero Capanemia.2
Terminou seus estudos em 1859, na Escola Central de Engenharia, embora tivesse a pretensão de frequentar a
Escola de Medicina. A morte repentina de seu pai fez com que abandonasse essa ideia em favor do posto de secretário
52
Figuras 1 e 1a Ilustrações de Barbosa Rodrigues que compõem o livro: “Sertum Palmarum brasiliensium”, Desmoncus paraensis Barb. Rodr.,
Scheelea corumbaensis Barb. Rodr., S. aniziitziana Barb. Rodr. e S. princips.Karst.
Infelizmente, além de dois espécimes, o primeiro descoberto por W.A. Rodrigues em 1980 e o segundo,
Cycnoches pentactylon Lindl., descoberto pelo Dr. Gustavo A. Romero no Museu Nacional do Rio de Janeiro
(Cat. Gen. No. 44757 Pará Col. J. Barbosa Rodrigues s.n. –IV- 1881, Det. Barb. Rodr.) não restam traços da
existência do Herbário.3
Foi, porém, uma grande sorte que ele tenha empenhado seu grande talento nas ilustrações das plantas que estu-
dou. As 325 pranchas originais de orquídeas e o livro in-fólio Sertum Palmarum Brasiliensium se encontram depositados
na Biblioteca João Barbosa Rodrigues, no Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro. 53
Em 25 de março de 1890, o naturalista Barbosa Rodrigues foi nomeado para dirigir o Jardim Botânico do Rio de
Janeiro, apresentando, em junho desse mesmo ano, as sugestões necessárias para o seu desenvolvimento. Relata
ao ministro da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, Francisco Glicério, as condições precárias em que a área se
encontrava, destacando:
(...) O local conhecido pelo nome de Jardim Botânico não é actualmente mais que um méro parque de recreio,
não se encontrando ahi a menor base para estudo, quando justamente esse estabelicimento não são creados
senão para escolas praticas de história natural, no ramo a que se destinam. Necessidades palpitantes se offe-
recem, pois, a quem, como eu, foi destinguido pelo governo com a honra de dirigir este estabelecimento.4
Assim, em 23 de junho de 1890, o general Manoel Deodoro da Fonseca, através do Decreto n. 518, determinou
reorganizar o Jardim Botânico, norteado pelos pensamentos progressistas do diretor J. Barbosa Rodrigues. Este
decreto estabelecia:
(...) “dois Herbários” – um destinado às plantas cultivadas no arboreto e outro à flora em geral, cada um
com seu respectivo registro, que representavam, na época, uma catalogação dessas plantas. Além disto,
o decreto determinava que esse acervo fosse constituído de plantas desidratadas, inclusive os frutos,
amostras de madeiras, fotografias e desenhos e ainda, uma coleção em álcool, tanto de frutos quanto de
outras partes da planta.5
Sendo assim, Barbosa Rodrigues estabeleceu, no Museu Botânico, o herbário e a biblioteca, que não existiam, e,
hoje, são os mais importantes do Brasil. Hoje, a biblioteca tem o nome de João Barbosa Rodrigues.
Barbosa Rodrigues, como cientista, fez uso da arte para representar seu objeto de estudo, preocupado com a
botânica sistemática, obtendo excelentes resultados estéticos. O valor das suas aquarelas vai além da arte, e, somado
ao da ciência, é inestimável, pois, em virtude de seu herbário ter sido destruído numa catástrofe natural, algumas de
suas pinturas tornaram-se iconotipos, ou seja, as ilustrações valem como referência científica – tipos nomenclaturais,
pois o material original das descrições se perderam, sendo os mesmos substituídos pelos desenhos, reconhecidos pelo
Código Internacional de Nomenclatura Botânica como Lectotipos.6
As ilustrações de orquídeas de João Barbosa Rodri-
gues, completadas no período de 1868-1885, estão entre
os mais importantes documentos sobre as orquídeas brasi-
leiras e, só em 1996, foram publicadas em toda sua íntegra.
A Icnographie des Orchidées du Brésil, publicada por Friedrich
Reinhard Verlag, Basileia, na Suíça (Figura 2), é composta por dois
volumes: um contém as ilustrações e as identificações atualiza-
das, com textos em quatro idiomas – português, inglês, francês
e alemão; o outro volume contém a introdução em francês e as
descrições originais de Barbosa Rodrigues em latim.
54
55
Figura 5 Oncindium crispum Lodd . Uns dos desenho de Barbosa Figura 6 Baptistonia echinata Barb.Rodr
Rodrigues, usado na “Flora Brasiliensis” por Von Martius.
(,,,) o objetivo que sempre quis alcançar é de reunir e apresentar num só volume todas as espécies brasileiras,
tanto as conhecidas como as novas, fornecendo a origem correta da maioria delas e descrevendo a riqueza
e variedade e o número de espécies desta bela e fascinante família no meu país.9
Ele já havia declarado, em 1877, que suas ilustrações seriam úteis tanto para profissionais como para amadores
da Botânica e horticultores, diz no Avant-Propos da Icnographie des orchidées du Brésil:
Cette Iconographie sera indispensable au savant, á l’amateur et au floriculteur; elle leur inspirera d’autant
plus de confiance qu’ils auront la certitude qu’elle a été fait d’aprés des orchidées vivantes, et non sur des
individus desséchés, conservés dans des herbiers, qui donnent très-fréquemment lieu á des erreurs soit
dans les descripitions, soit surtout dans les dessins. Autant que je l’ai pu, ces erreurs ont été corrigées.10
Rio de Janeiro, 20 Jullet 1877
J.B. Rodrigues
A qualidade técnica das ilustrações é espantosa, algumas cores se mantêm vibrantes, o desenho é superpreciso,
a aquarela é usada de maneira clara e, por vezes, ele usa o grafite para marcar alguns detalhes. Muitos desenhos estão
“inacabados”, têm partes só com o contorno linear, outras partes pintadas. Os desenhos de Barbosa Rodrigues são
feitos com extrema habilidade: ele realiza parte do trabalho em grafite e parte em aquarela, possivelmente por falta de
tempo ou simplesmente por não ver necessidade de pintar toda a planta. O resultado parece ser intencional. Barbosa
Rodrigues encontrou uma bela solução, que gera um contraste vibrante entre as duas técnicas – aquarela e grafite –,
com extraordinário efeito estético (Figura 7). Por vezes, as técnicas de grafite, aquarela e guache se misturam (Figura
8). Ele era habilidosamente meticuloso, extremamente organizado e seguro nas observações morfológicas das plantas
e nas composições. Não observei nenhum traço de borrão ou rasura em seus trabalhos (Figura 9).
As pranchas feitas por Barbosa Rodrigues podem conter mais de uma espécie representada, podendo chegar
até oito em alguns grupos, como Pleurotalis e Octomeria, devido ao pequeno porte, motivo pelo qual encontram-se
mais espécies descritas do que pranchas
(Figura 10). Entretanto, algumas espécies
já ocupam duas folhas para formar uma
prancha, em virtude de todas as plantas
58 terem sido desenhadas em tamanho
natural. Outras vezes, talvez tenha usado
o recurso de dobrar o ramo floral ou até
mesmo cortá-lo e desenhá-lo em partes
separadas – os detalhes se encontram
com escalas indicando o aumento. Todas
as ilustrações estão assinadas e datadas,
e, em muitos casos, ele fazia observações
que achasse pertinente. O tamanho das
pranchas é de 26 cm x 36 cm e, no caso
das pranchas duplas, de 52 cm x 36 cm.
As ilustrações associadas aos textos
representam uma importante fonte de
informação e registro de espécies que
podem estar ameaçadas ou até mesmo
extintas, sendo considerados o único
elemento sobrevivente do material de
Barbosa Rodrigues. Neles – ilustrações
e textos – vários nomes de orquídeas
brasileiras estão baseados e, além do
valor histórico, científico e artístico que
representam, dentro de suas infinitas pos- Figura 9 Psilochitus modestus Barb. Rodr. É visível a naturalidade das plantas Ilustradas
sibilidades, têm servido aos brasileiros em por Barbosa Rodrigues e o requinte em suas composições.
1 O presente artigo é desdobramento de minha dissertação de Mestrado, 2002 UFF, Instituto de Arte e Comunicação Social, Programa de Pós–graduação
em Ciência da Arte. “A Ilustração:sua importância na botânica e na arte” e foi apresentado no “Seminário Barbosa Rodrigues. Um naturalista brasileiro”,
realizado em outubro de 2009, na Escola Nacional de Botânica Tropical/JBRJ.
2 SPRUNGER, S.; CRIBB, P.J.W. e TOSCANO DE BRITO, A.L.V. (Orgs.), João Barbosa Rodrigues, Icnographie des Orchidées du Brésil. Basileia: Friedrich
Reinhard Verlag, 1996.
3 SPRUNGER, S.; CRIBB, P.J.W. e TOSCANO DE BRITO, A.L.V. (Orgs.), João Barbosa Rodrigues, Icnographie des Orchidées du Brésil. Basileia: Friedrich
Reinhard Verlag, 1996.
4 MARQUETE, N. F. da S., CARVALHO, L. d’Á. F. de & BAUMGATZ, J. F. A.de. (Orgs.) O Herbário do Jardim botânico do Rio de Janeiro: Um expoente na história
da flora brasileira. Rio de Janeiro: Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro, 2001.
5 MARQUETE, N. F. da S., CARVALHO, L. d’Á. F. de & BAUMGATZ, J. F. A.de. (Orgs.) O Herbário do Jardim botânico do Rio de Janeiro: Um expoente na história
da flora brasileira. Rio de Janeiro: Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro, 2001.
6 GREUTER, W. International Code of Botanical Nomenclature. Königstein, Germany: Koeltz Scintifc Books, 1994.
7 a 11 SPRUNGER, S.; CRIBB, P.J.W. e TOSCANO DE BRITO, A.L.V. (Orgs.), João Barbosa Rodrigues, Icnographie des Orchidées du Brésil. Basileia: Friedrich
Reinhard Verlag, 1996.
12 SALGADO, Dilke de Barbosa Rodrigues. Barbosa Rodrigues uma gloria no Brasil, [1942]).
[ Artigo recebido em 07/2010 | Aceito em 10/2010 ]
RESUMO Este artigo propõe uma reflexão acerca da trajetória de construção e transformação do Museu Botânico
do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, concebido por João Barbosa Rodrigues, com o intuito de compreender
o processo de musealização dessa área especializada do conhecimento a partir de uma articulação no âmbito
institucional, social e epistêmico.
ABSTRACT This article proposes a reflection on the path of construction and transformation of Botanical Museum
belonging to the Botanical Garden of Rio de Janeiro, designed by João Barbosa Rodrigues, in order to understand the process
of musealization of that specialized area of knowledge from a joint in the institutional, social and epistemic scope.
60
Keywords Botanical Museum; musealization; vulgarization; information; exhibit.
A musealização de uma área do conhecimento pode ser estudada a partir das intenções e estratégias empreen-
didas na concepção e constituição do projeto museológico, que confere uma determinada organicidade significativa
ao todo.1
Ainda que elegendo um patrimônio material capaz de representá-la simbolicamente, a musealização é decorrência
de uma articulação no âmbito institucional, social e epistêmico. A proposta de analisar a “biografia”2 do Museu Botânico
do Jardim Botânico do Rio de Janeiro (JBRJ), concebido por João Barbosa Rodrigues, tem como objetivo apontar alguns
momentos de sua trajetória em que essa articulação não apenas propiciou o processo de musealização dessa área do
conhecimento, mas, sobretudo, definiu a sua matriz gnosiológica.
O Jardim Botânico constitui um “lugar” privilegiado para compreensão da institucionalização do campo disciplinar
da Botânica a partir de um processo de musealização que envolve não somente a formação de coleções ou o inter-
câmbio científico, mas, antes, um determinado olhar museológico, que recorta certo objeto de um contexto social,
político e cultural, e o insere numa rede institucionalizada de práticas culturais com a intenção de sua permanência e
comunicação. Assim, o Jardim e o Museu Botânico de Barbosa Rodrigues constituem uma “construção contextualmente
específica que guarda as marcas de uma contingência situacional, que não pode ser adequadamente entendida sem
uma análise da sua construção”.3
“São os jardins e os museus que classificam e determinam os vegetaes de seu paiz, e, só não o fazem
aquelles que não os possuem.”4
No Decreto nº 518 de 23 de junho de 1890, o regulamento proposto pelo então recém-nomeado diretor João
Barbosa Rodrigues estabelecia a missão, os objetivos e a estrutura do Jardim, realinhando-os com a Ciência Botânica,
ao mesmo tempo que delimitava as fronteiras e aplicações dessa especialidade.
O cunho científico da coleção e da instituição foi assegurado pela missão de estudo e classificação dos vegetais
por “methodos scientificos” e pela elaboração do catálogo geral, com a finalidade de realizar intercâmbios com institui-
ções congêneres no exterior.5 Ao definir como foco da coleção viva o cultivo de plantas úteis com emprego na Ciência,
Agricultura, Artes e Indústria, Barbosa Rodrigues apontou áreas de aplicação e interlocução da Ciência Botânica.6
Essa linha conceitual também nortearia a composição do acervo do Museu Botânico, que abrigaria um herbário
a ser formado pelas “plantas cultivadas no parque” e um pela “flora geral”, representados “por folhas, flores, fructos
seccos e em álcool e seus produtos”. A preocupação com a Agricultura7 e a Indústria Nacional teve seu reflexo na
inclusão no acervo de “instrumentos e apparelhos agrícolas e productos industriaes, tirados dos naturaes”. Algumas
máquinas8 e instrumentos eram remanescentes da gestão anterior: “Existindo no jardim grande numero de instrumentos
agrários, convem aproveitar os typos de todos elles e expo-los em salão próprio, entregando as duplicatas ao governo,
sempre deixando as que puderem servir às culturas”.9
Integraria ainda essa coleção amostras de “madeiras de lei”, algumas encontradas pelo naturalista “no lugar
denominado salitre” do Jardim Botânico.10 O acervo11 do Museu Botânico seria exposto nos salões do prédio do “antigo
museu industrial”,12 devidamente identificado, classificado e ordenado sob critérios taxonômicos em novos armários e
vitrines adquiridos em sua gestão. 61
A formação e a organização desse acervo precisariam de profissionais qualificados para realizar desde a coleta
até a ordenação do material. Para tal, o regulamento criou o cargo de naturalista-viajante, à semelhança do Museu
Nacional,13 com essas atribuições, além da responsabilidade pela “conservação do herbário e dos productos que
existirem no museu”.14
Determinado a configurar o Jardim como “lugar” da Botânica Brasileira, Barbosa Rodrigues estabeleceu requisitos
para nomeação ao cargo de diretor, em particular, a “qualidade de cidadão brasileiro” e a “capacidade profissional provada
por trabalhos botânicos que tenham sido aceitos por autoridades scientificas”.15 Seus esforços se direcionaram ainda
para a “vulgarização” da Botânica, com o intuito de despertar o interesse e promover o estudo botânico.
No regulamento de 1890, Barbosa Rodrigues não delimita as fronteiras entre Jardim e Museu Botânico; apenas
designa o segundo como “lugar” das coleções científicas e das exposições, nele anexando ainda a biblioteca, labora-
tório de análises orgânicas e observatório meteorológico. Provavelmente inspirado nos museus de história natural,16
os quais abrigavam em sua estrutura regimental as coleções científicas, estudo, ensino e vulgarização, o naturalista
concebeu um museu de caráter científico apoiado na coleção e no estudo, com uma vertente de instrução17 baseada
na exposição e nos recursos de visualização.
No regulamento de 1904, Barbosa Rodrigues propõe uma mudança regimental delimitando as fronteiras entre
Jardim e Museu, de maneira que ambos fossem complementares na consecução da missão institucional. Essa guinada
objetivava não somente a classificação e determinação dos “vegetaes de seu paiz”, conforme citado na epígrafe, mas
a afirmação da Ciência Botânica praticada no Brasil.
A transformação da concepção do Museu tem início no deslocamento do herbário, da biblioteca e do observatório
para o Jardim, que passaria também a abrigar uma escola botânica, o campo de experiências e viveiros, os refrige-
ratorios, os jardins, o laboratório e o arboretum.18 Esse deslocamento acompanha a tendência iniciada na Europa, no
Aspecto Social
O Jardim manteve vínculos sociais pautados em intercâmbios com algumas instituições científicas do país
e do exterior. Os intercâmbios nacionais foram realizados, na sua maioria, a partir de uma rede de colaboradores
64
Figura 1 O diretor do Museu Botânico João Barbosa Rodrigues em seu gabinete. (Acervo Museu do Meio Ambiente/JBRJ)
“Paiz que possue uma flora como a nossa, precisa dar elementos que formem botanicos para que se não
appareça o facto de serem nossas plantas conhecidas só por trabalhos de botanicos estrangeiros.”41
No século XIX, a consolidação da História Natural como ciência se deu sob a premissa da “purificação” dos objetos,
baseada na neutralidade dos procedimentos descritivos da natureza e no seu ordenamento segundo critérios lógicos
de classificação, então apoiados nos seus traços comuns. Naquele momento, o local de reunião destes “documentos”
passa a ser o das coleções, em especial, a dos herbários e jardins botânicos.42 Mudando a lógica do conhecimento
enciclopédico e extensivo característico do colecionismo, o museu moderno procura as leis universais que “regem a
regularidade da natureza” e, com isso, associa sua constituição a diferentes projetos intelectuais: “a ordem reinante
nas coleções deriva da ordem que se atribui à Natureza”.43
Nos jardins botânicos, assim como nos museus de história natural, o sistema de classificação do botânico Lineu,
de 1735, passou a ser o princípio que organizava os objetos, tanto na coleção quanto na exposição ao público. Os es-
paços institucionais se constituíram nos locais de celebração da ciência moderna e acompanharam o desenvolvimento
da produção do conhecimento na História Natural44 e de suas especializações.45
O Jardim Botânico do Rio de Janeiro, que, na sua criação, objetivava o desenvolvimento de técnicas de aclimatação
de espécies exóticas, aos poucos foi incorporando o papel da pesquisa em ciência, em particular na área da Botânica.
Ao assumir esse papel em 1890, Barbosa Rodrigues promoveu um alinhamento com as concepções de ciência e
coleção, então vigentes, reorganizando e classificando os acervos, redefinindo a informação científica disponibilizada
e requalificando o seu público.
A informação associada ao objeto tornou-se um “certificado” de procedência46 para seu ingresso na coleção e, somada
65
àquelas advindas da identificação, classificação e propriedades técnicas utilitárias, atuava no museu como instrumento
educativo de um público interessado no estudo e instrução científicos. Contudo, como afirmam Podgorny e Lopes,47 o
caráter útil da coleção não advinha da função pública, mas de sua origem certificada e de sua finalidade científica.
A classificação taxonômica determinou a organização das coleções e forneceu as bases da informação científica
apresentada no Museu. A coleção especializada seguia a “lógica intrínseca” de sua série natural específica, baseada
na organização por critérios morfológicos.48 Esse critério influenciou o uso de recursos de visualização nas exposições,
nos quais desenhos, modelos e fotografias possibilitavam observar detalhes da estrutura vegetal de difícil percepção
ao olhar humano, em particular, aquele não treinado.
No processo de configurar o Jardim Botânico como o “lugar” da Ciência Botânica, Barbosa Rodrigues sobrevalorizou
a atividade de lazer na sua análise da gestão anterior49 para, em seguida, propor criticamente a ruptura com este modelo
e o início de um direcionamento para a ciência e sua especialização. Assim, não se tratou de um “novo” caminho para
o Jardim, mas, antes, a adequação da instituição às concepções científicas vigentes, marcadas também pela trajetória
biográfica de seu diretor e pelas necessidades decorrentes de seu vínculo político-administrativo.
A criação de um museu, no panorama nacional, conforme análise de Maria Margareth Lopes, encontrava-se
favorecida pelo crescimento do número e da importância científica e social dos museus relacionados às Ciências
Naturais, em função da “consolidação de diferentes elites locais e de iniciativas científicas regionais”, do “surto de
desenvolvimento material do país” e da “valorização da ciência como prática concreta e como instituição social”. No
âmbito internacional, os museus ganhavam força com as mudanças das Ciências Naturais em direção à “expansão
de diferentes áreas disciplinares e instituições científicas e pelo incremento da especialização e profissionalização dos
técnicos e cientistas”.50
A conjuntura nacional e internacional do final do século XIX, associada à formação de uma grande rede de
intercâmbios científicos de museus de história natural e jardins botânicos, permite compreender tanto a proposta de
A musealização da Botânica
“Dicotomia entre pesquisa e ensino, traduzida pela separação de coleções de estudo e coleções de exposição;
(...) museus complexos ou museus especializados; maior ou menor valorização dos aspectos educativos
para amplos públicos, esses foram os aspectos específicos, locais, que assumiram as questões centrais em
que se debateram os museus em todo o mundo na transição do século.”53
Os museus se definem em função da sua matriz gnosiológica, que envolve não somente as teorias do conhecimento
e da aprendizagem,54 como também a de comunicação e informação, essenciais para a reflexão acerca da relação
ciência e público. Nos diferentes contextos históricos e sociais, tanto as áreas do conhecimento quanto as teorias
que compõem essa matriz sofreram variações em função dos paradigmas vigentes, das perspectivas dos profissionais
envolvidos e da interpretação e apropriação das práticas teórico-metodológicas.
A proposta do Museu Botânico pode ser analisada como uma abordagem sistemática tanto na representação
quanto na organização museológica, na medida em que a museografia evidencia a estrutura da Ciência Botânica e
os seus procedimentos na classificação da flora. Como uma construção de ordem cultural, as regras que operam a
construção do espaço museal são decorrentes da racionalidade da época, eminentemente taxionômica.
No âmbito da representação, prevaleceu uma relação de apropriação simbólica do representado que “implica
um movimento de tradução do outro para uma ordem e um sentido compatíveis com o mundo do sujeito que repre-
senta”, e nesse sentido, no Museu e Jardim Botânico, operou-se a encenação da “subordinação da natureza à ordem
sistemática da ciência”.55
1 PANESE, Francesco. O significado de mostrar objetos científicos em museus. In: Conferência do Cimuset no Brasil, 34, 2006, Rio de Janeiro. Anais... Rio de
Janeiro, 2006. CD-ROM.
2 Francesco Panese define biografia como a “trajetória de construção e transformação”. (PANESE, 2006)
69
3 KNORR-CETINA, K. The manufacture of knowledge: An essay on the Constructivist nature of sciencie. Pergamon press, 1981.
4 RODRIGUES, João Barbosa. Noticias sobre alguns jardins botânicos da Europa. Relatório apresentado ao exmo Sr. Ministro Lauro Muller. Ministro de Viação
e Obras Públicas. Rio: Imprensa Nacional, 1904, p.47.
5 BRASIL. Decreto 23 de junho de 1890. Reorganiza o Jardim Botânico. Lex: Decretos do Governo Provisório da República dos Estados Unidos do Brazil, Rio
de Janeiro: Imprensa Nacional, 1890, p. 1408.
6 Ibid., p. 1407.
7 O Jardim estava vinculado ao Ministério de Estado de Negócios, da Agricultura, Comércio e Obras Públicas.
8 João da Silveira Caldeira, membro da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional (Sain) evidencia a importância das máquinas agrícolas para o país:
“Enquanto a nação que tira os seus recursos da terra que a sustenta não chega ao estado da indústria, que podemos considerar como o terceiro período
do aperfeiçoamento social, e que constitui a verdadeira independência política, é de interesse desta nação introduzir todos os aperfeiçoamentos possíveis
nos diferentes ramos de indústria nacional por mais rara que ela seja, e principalmente na prática da agricultura e na preparação dos seus diversos produtos
a fim de possuir a vantagem de dar menos e receber mais ...”. LOPES, Maria Margareth. O Brasil descobre a pesquisa cientifica: os museus e as ciências
naturais no século XIX. São Paulo: Huitec, 1997, p.73.
9 RODRIGUES, João Barbosa. Exposição sobre o Estado de Necessidades do Jardim Botânico. 12 de junho de 1890. Publicado em 1893. Rio de Janeiro, p.11.
10 Ibid.
11 A composição desse acervo assemelha-se à do Museu Nacional, assim descrita por Lopes (1997, p.234): “... As plantas dessa seção estavam representadas
por suas folhas e órgãos reprodutores (...) frutos secos eram expostos nos armários, os carnudos imersos em álcool e as sementes conservadas em
frascos de vidros. A seção ainda possuía uma importante coleção de madeiras do Brasil, todas classificadas...”. LOPES, Maria Margareth. O Brasil descobre
a pesquisa cientifica: os museus e as ciências naturais no século XIX. São Paulo: Huitec, 1997, 369 p.
12 Em 1876, foi aprovada a construção do prédio do Museu Industrial, destinado a objetos dos três reinos da natureza. Em 1877, o museu, agora denominado
Museu Agrícola Industrial, é descrito com seis salões, compartimentos para estudo e um lugar próprio para biblioteca. Em 1888, o edifício destinado ao
museu passa por uma reforma e abriga “um laboratório analytico”, além do almoxarifado, guarda de coleções e outros serviços” (Brasil, 1888, p.48).
BRASIL. Ministério da Agricultura. Relatorio [do ano de 1888] apresentado ao Presidente da República dos Estados Unidos do Brazil... no anno de 1888. Rio
de Janeiro: Imprensa Nacional, 1888.
13 Desde 1875, o regulamento do Museu Nacional previa a inclusão formal de naturalistas viajantes no quadro de funcionários. LOPES, Maria Margareth.
O Brasil descobre a pesquisa cientifica: os museus e as ciências naturais no século XIX. São Paulo: Huitec, 1997, p.161.
14 BRASIL. Decreto 23 de junho de 1890. Reorganiza o Jardim Botânico. Lex: Decretos do Governo Provisório da República dos Estados Unidos do Brazil, Rio
de Janeiro: Imprensa Nacional, 1890, p.1408.
RESUMO O artigo analisa a reconfiguração dos museus brasileiros após a implantação da República, destacando
os ideais de “progresso” e a inserção dos museus nas agendas políticas de “instrução pública”, de “educação do
povo” e de “formação das almas”, tendo como base casos exemplares.
ABSTRACT The article makes an analysis of the reconfiguration of brazilian museums after the implement of the Re-
public, highlighting the ideas of “progress” and the insertion of museums on the political agendas of “public instruction”,
“people’s education” and “soul formation”, having as basis exemplary cases.
Considerações Iniciais
A relação entre museus e a consolidação dos conhecimentos sobre História Natural não foi, evidentemente, fenômeno
local. A noção de museu nas culturas ocidentais esteve ligada, desde o Renascimento até a criação dos primeiros estados
nacionais europeus, à ideia de civilização e de desenvolvimento das ciências. O impacto causado pelos primeiros Gabinetes
de Curiosidades, ainda no século XVI, foi tamanho, que acabou por influenciar hábitos e costumes. Prelados, cortesãos,
médicos, sábios, artistas, príncipes e monarcas estabeleceram a prática colecionista de maneira definitiva no mundo oci-
dental graças ao espírito humanista e sua busca pelos “vestígios do berço das civilizações”, criando o que se convencionou
chamar de “cultura da curiosidade”. Dentre os exemplos pioneiros, está o do italiano Paolo Giovio (1483/1552), médico por
formação, que publicou, em 1550, “Histórias de seu tempo” – biografias dos contemporâneos ilustres. Iniciou, em 1520,
uma coleção de retratos pintados, bustos e outros documentos. Entre 1537 e 1543, construiu, na cidade de Como (Itália),
uma residência especialmente destinada a abrigar o conjunto de suas coleções, chamada de Musaeum.
Outro caso paradigmático na história dos museus no mundo ocidental foi a criação do Ashmolean Museum,
em 24 de maio de 1683, na Universidade de Oxford, voltado ao aprimoramento dos conhecimentos dos estudantes,
especialmente no que tangia à História Natural.
Influenciado pelo ideário iluminista português do século XVIII, o vice-rei Luís de Vasconcelos (1779-1790) criou o
Gabinete de História Natural do Rio de Janeiro. Enquanto se construía a sede definitiva do Gabinete, um barracão foi
improvisado ao lado da futura construção e passou a abrigar animais “empalhados”, predominantemente aves, razão
pela qual a população passou a chamá-lo de Casa dos Pássaros. Coube a Francisco Xavier Cardoso Caldeira – Xavier
dos Pássaros – a responsabilidade de organizar a Casa, treinando aprendizes. O Museu foi extinto em 1813, logo após
o falecimento de Xavier, e suas coleções enviadas à Academia Real Militar.
74 O museu criado pelos revolucionários franceses foi o espaço dessa simultaneidade, que conciliava a continuidade
histórica através dos próprios artefatos colecionados pela realeza ou por representantes do Iluminismo com o “espírito”
da Revolução, oferecendo agora à população a fruição desse patrimônio ao criar uma instituição pública, não mais
restrita aos membros da corte, baseada nos mouseion da Antiguidade e do Renascimento.
Foi nesse contexto que os museus da recém-proclamada república brasileira buscaram inspiração, como instrumen-
tos de legitimação de um “patrimônio nativo”, ou seja, espaços consagrados à reunião dos fragmentos que constituem
o sentido da nacionalidade. Ao ser instalado o regime “para o povo” no Brasil, com referenciais norte-americanos e
europeus, um desafio se colocava: o de incorporar um maior contingente da população, que estava estruturada de
maneira excludente, com grande parte de analfabetos, a maioria descendente dos escravos recém-libertos e muitos
imigrantes que começavam a povoar grandes extensões territoriais do Sul do país. O regime republicano deveria aper-
feiçoar a velha sociedade imperial, instruindo-a, tornando-a apta ao progresso.
Mas é importante frisar que esses “novos” museus, como espaços de instrução e de recolhimento dos fragmentos
da nacionalidade, não foram bem-sucedidos em sua primeira fase, entre 1889 e a década de 1920, já que muitos não
superaram a mera intenção, não passando de seus decretos de criação, sem consequência prática. A consolidação
definitiva do projeto republicano de museus no Brasil vai se configurar a partir dos anos de 1920 e, especialmente,
após a Revolução de 30.
Para a análise da transição entre o período imperial e o início da República, vamos destacar o papel exercido
por alguns museus, considerados, aqui, exemplares, que cobrem um período de quase cem anos, desde a criação
Considerações finais
De uma forma geral, o que poderíamos chamar de um “caráter republicano” dos museus transformados ou criados
logo após 1889, estava centrado nos ideais de progresso e de instrução pública (de “educação do povo”) e na constru-
ção simbólica do novo regime, criado sem o clamor popular e carente de legitimidade. Esses valores se contrapunham
à tradição museológica, voltada à propagação dos conhecimentos de História Natural como caminho “civilizatório” e
de unidade territorial, projeto seguido com afinco pelo regime monárquico, que tinha na figura do imperador Pedro II
um dos seus mais importantes patrocinadores. Esses movimentos marcam uma decadência gradativa do interesse
centrado exclusivamente nas ciências naturais como objeto de criação de museus no Brasil, traduzindo-se, mesmo
nos dias atuais, numa escassa tradição dessa natureza em nosso país.
Mesmo nas instituições que continuaram concentradas nas coleções de História Natural, houve uma ruptura
no caráter enciclopédico e uma valorização das peculiaridades das províncias onde estavam instaladas, ou seja, uma
“territorialização” dos museus como um reflexo de um novo pacto federalista pós-republicano.
1 No momento da Proclamação da República, o Brasil contava com 13 museus em funcionamento. A exatidão desse número ainda depende de novas
pesquisas.
2 Sobre a transformação do Museu Paraense no período de transição entre o Império e a República, indico o consistente trabalho de Nelson Sanjad, fruto de
sua tese de doutorado no Programa de Pós-graduação em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz, publicado sob o título “A Coruja de
Minerva: o Museu Paraense entre o Império e a República (1866-1907)”, pelo Instituto Brasileiro de Museus, Museu Paraense Emilio Goeldi e a Fundação
Oswaldo Cruz, 2010.
3 A transformação do Museu Paulista (entre sua criação) e as comemorações do Centenário da Independência, com destaque para a atuação de Taunay, são
objeto central do livro de Ana Maria de Alencar Alves “O Ipiranga Apropriado: ciência, política e poder. O Museu Paulista – 1893-1922”, de grande ajuda
na presente reflexão.
4 SANJAD, Nelson. A Coruja de Minerva: o Museu Paraense entre o Império e a República (1866-1907). Brasília: Instituto Brasileiro de Museus; Belém:
Museu Paraense Emilio Goeldi; Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz, 2010, p.154.
5 Idem, p. 156.
6 Idem, p. 185.
7 KOSERITZ, Carl Von. Imagens do Brasil, São Paulo: Universidade de São Paulo, 1980. (...). p. 266.
8 ALVES, Ana Maria de Alencar. O Ipiranga apropriado: ciência, política e poder. O Museu Paulista – 1893-1922. São Paulo: Humanitas/FFFLCH/USP, 2001, p.
69.
9 Idem, p. 179.
10 BARATA, Mário. Origens dos museus históricos e de arte no Brasil. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, v. 147 (350), p. 22-30, jan/mar. Rio
de Janeiro, 1986.
11 ABREU, Regina Maria do Rego Monteiro de. Sangue, nobreza e política no tempo dos imortais: um estudo antropológico da coleção Miguel Calmon no
Museu Histórico Nacional. Dissertação (Mestrado) apresentada ao Programa de Pós-graduação em Antropologia Social da UFRJ, 1990, p. 75.
12 SANJAD, op. cit., p. 374.
13 ALVES, op. cit., p. 187.
[ Artigo recebido em 10/2010 | Aceito em 12/2010 ]
VITTORIO PANE
Club Alpino Italiano, Sezione de Giaveno, Itália
RESUMO Em 1886, o botânico João Barbosa Rodrigues comunicou, no Jornal do Comércio do Rio de Janeiro,
ter encontrado um peixe dipnoico, enviando-o ao zoólogo Enrico Hillyer Giglioli, do Real Museu Zoológico,
Florença, Itália. Acreditando tratar-se de uma espécie nova, designou-a Lepidosiren giglioliana, em homenagem
a Giglioli. O objetivo deste artigo é discutir a origem e razão da relação de amizade entre os dois pesquisadores,
certamente resultante do interesse de ambos pela Antropologia e a Etnografia, o que levou à indicação de Barbosa
Rodrigues para membro honorário da Sociedade Italiana de Antropologia e Etnografia, como reconhecimento
pelos seus trabalhos em prol da antropologia brasileira.
Palavras-chave: Lepidosiren giglioliana, João Barbosa Rodrigues, Enrico Hillyer Giglioli.
ABSTRACT In 1886 the botanist João Barbosa Rodrigues announced in the Jornal do Comércio from Rio de Janeiro
he had found a dipnoic fish, later sent to the zoologist Enrico Hillyer Giglioli at the Real Museo Zoologico, Florence,
Italy. The discovery was believed to be a new species and was named Lepidosiren giglioliana after Giglioli. This
paper aims at investigating the origins and reasons behind the friendship between the two researchers. They defini-
tely stem from their interest in anthropology and ethnography, ultimately contributing to the nomination of Barbosa
Rodrigues as the Honorary member of the Italian Society of Anthropology and Ethnography, due to his work in favor
of the Brazilian Anthropology.
O estabelecimento de correspondência entre naturalistas com interesses comuns nos diversos campos da
ciência não é fato novo, remontando principalmente aos idos do Renascimento. Com a descoberta do Novo Mundo e
a possibilidade de conhecimento de novos elementos naturais, tais interesses se acentuaram com a organização de
expedições que poderiam levar para o Velho Mundo as novidades faunísticas, florísticas e antropológicas oferecidas
pela exploração das terras “virgens e selvagens” situadas no Ocidente. Grandes coleções assim se formavam, vindo a
compor os acervos e exposições de inúmeros gabinetes e museus na Europa, aumentando cada vez mais o interesse
científico pelo Novo Mundo. No Brasil, com a organização, a partir do século XIX, de instituições ligadas ao estudo das
ciências naturais, como o Museu Nacional, a constituição de um corpo próprio de pesquisadores brasileiros à frente das
instituições e a realização de expedições de cunho naturalista e antropológico sob as expensas do governo imperial,
acentuou-se a permuta de ideias e exemplares entre os naturalistas brasileiros e os das instituições científicas europeias.
Como exemplo dessa “troca” entre naturalistas do Velho e do Novo Mundo na segunda metade do século XIX, tem-se
a relação que se estabeleceu entre o naturalista e botânico João Barbosa Rodrigues e o zoólogo e antropólogo Enrico
Hillyer Giglioli, a qual, ao que tudo indica, resultou num forte sentimento de amizade entre ambos.
No período de 1876 a 1886, os dois naturalistas devem ter mantido uma constante correspondência em que
tratariam de assuntos antropológicos, tema afim a ambos, com a possível remessa, da parte de Barbosa Rodrigues, de
objetos etnográficos produzidos pelos índios brasileiros. Tal relação de amizade certamente perdurou até o falecimento
de Barbosa Rodrigues, em março de 1909, e ficou evidenciada quando Barbosa Rodrigues decidiu, em 1886, homenagear
Giglioli com a adoção de seu nome para designar uma possível espécie nova de peixe dipnoico da região do Amazonas,
conhecido, na ocasião, pela raridade de exemplares. Apesar das inúmeras dificuldades de se conseguirem os elementos
originais da correspondência trocada entre os dois amigos, tida como perdida na sua quase totalidade, a análise de textos
publicados em jornais e periódicos permite traçar hipóteses sobre a origem e a continuidade da relação entre os dois
naturalistas, compondo uma história da profunda amizade estabelecida entre ambos, objetivo primordial deste artigo. 81
Os personagens
Para se entender a relação que se estabeleceu entre Barbosa Rodrigues e Enrico Giglioli, é necessário ressaltar,
através de uma breve biografia, os pontos comuns da vida dos dois naturalistas, bem como de dois outros personagens
a eles relacionados.
De família mineira, João Barbosa Rodrigues (1842-1909) nasceu no Rio de Janeiro e logo se mudou para Minas
Gerais, onde viveu os primeiros anos de sua infância. Após seu retorno à cidade natal, na década de 60, Barbosa Ro-
drigues ingressou na Escola Central, atual Escola Politécnica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde
se formou engenheiro em 1869. Estabelecendo-se na cidade, complementou sua formação no Instituto Comercial do
Rio de Janeiro, onde conheceu Guilherme Schüch de Capanema (1824-1908), o barão de Capanema, o qual, além do
interesse pela Botânica, ocupou o cargo de geólogo no Museu Nacional e tornou-se seu grande amigo e mentor. Graças
a Capanema, Barbosa Rodrigues ocupou o cargo de secretário do Instituto Comercial e, posteriormente, os cargos de
secretário e professor de Desenho no Colégio Pedro II, até ser dispensado pelo imperador por considerá-lo partidário
dos ideais republicanos.1
Entre os anos de 1872 e 1875, Barbosa Rodrigues, “sob o patrocínio do barão de Capanema, foi comissionado pelo
governo brasileiro para explorar o vale do rio Amazonas”,2 atividade que resultou na publicação de cinco importantes
relatórios ainda em 1875, “cujas edições foram esgotadas em poucos meses”.3 Barbosa Rodrigues continuou suas
pesquisas e, apesar de seus trabalhos já serem conhecidos tanto no âmbito nacional como internacional, foi a partir da
década de 1880 que se consolidou no meio científico brasileiro, assumindo sucessivamente os cargos de diretor do extinto
84
Figura 2 (A) Foto do exemplar de Lepidosiren “giglioliana” enviado por Barbosa Rodrigues a Giglioli em 1886 e registrado no acervo do Museu de
História Natural, Seção de Zoologia “La Specola”, da Universidade de Florença, sob o número M.2670, e (B) detalhe da etiqueta de identificação
(Fotografia cedida pela Dra. Marta Poggesi).
Em 1876, quando participava, junto com Paolo Mantegaza, da direção da Sociedade Italiana de Antropologia
e de Etnologia, Giglioli recebeu de Lopes Netto exemplares dos relatórios elaborados por Barbosa Rodrigues sobre a
antropologia da Amazônia. Com grande interesse na antropologia sul-americana e reconhecendo o inestimável valor
dos relatórios publicados por Barbosa Rodrigues, Giglioli preparou uma resenha dos mesmos e as apresentou na reunião
da sociedade, realizada em 20 de dezembro do mesmo ano. Na ocasião, junto com Mantegaza, propôs a indicação de
Barbosa Rodrigues como membro honorário da sociedade, sendo aprovado pelos seus membros. Em 1877, no primeiro
número do ano do Arquivo de Antropologia e Etnologia da sociedade, publicou as resenhas referentes a cada um dos
relatórios e grandes elogios ao trabalho de Barbosa Rodrigues, com quem certamente já vinha se correspondendo
desde o ano anterior.15
Após a indicação do nome de Barbosa Rodrigues, dois outros brasileiros foram indicados para a sociedade italiana.
Na 44ª reunião, realizada em 26 de fevereiro de 1877, Giglioli e Mantegaza propuseram o nome de Pedro de Alcântara,
D. Pedro II, imperador do Brasil, o qual se encontrava presente à sessão, sendo eleito sócio honorário por aclamação.16
Na reunião seguinte, realizada em 20 de março do mesmo ano, Giglioli e Mantegaza propuseram então o nome de
Lopes Netto, o qual também foi eleito sócio honorário da sociedade.17 A partir de 1877, a sociedade antropológica
italiana passara a contar, então, em seu quadro de sócios, os nomes de três brasileiros e um italiano, cujas vidas, de
uma forma ou de outra, estavam interligadas.
Após a indicação de seu nome para a sociedade antropológica italiana, Barbosa Rodrigues certamente passou a
manter permanente correspondência com Giglioli, a quem se referiu como “amigo” ao lhe prestar uma justa homenagem.
Vivendo em Manaus, na década de 80, quando ocupava o cargo de diretor do Museu Botânico, Barbosa Rodrigues
tinha, além do conhecimento botânico para dirigir a instituição, também interesse por outros componentes da natureza
amazônica, incluindo os faunísticos. Ciente da raridade de exemplares de peixes como a piramboia, então classificada
pelos zoólogos como Lepidosiren paradoxa, e da existência de somente dois espécimens até então conhecidos, Barbosa
Rodrigues ficou exultante ante a visão de um terceiro exemplar da espécie que lhe chegava às mãos, “vivo e perfeito”.
Em 1886, encaminhou o exemplar ao Real Museu Zoológico de Florença para, por intermédio de seu “amigo Henrique
Giglioli”, ser estudado por seus especialistas. Desconfiado de que se tratava de uma nova espécie de peixe dipnoico,
propôs a denominação de Lepidosiren Giglioliana em homenagem a Giglioli, ficando a sugestão registrada em artigo
publicado no Jornal do Comércio do Rio de Janeiro.18
A correspondência que Barbosa Rodrigues mantinha com Giglioli tinha, muito certamente, outros interesses bem
além da fauna regional amazônica. Criado para estudar principalmente a flora da região amazônica, o Museu Botânico
“voltava-se também para o estudo da ‘indústria indígena’, ficando encarregado de ‘conservar uma seção etnográfica’”,19
contendo fotografias, desenhos e objetos para estudos antropológicos. No seu acervo, em 1885, a seção etnográfica
chegou a contar com “1.103 objetos de coleções variadas de 60 tribos do vale amazônico”20 e as trocas ou permutas
eram permitidas, no caso de ocorrência de triplicatas.21 Acredita-se, assim, que a etnografia deveria ser o tema central
das cartas trocadas entre os dois naturalistas.22 Apesar dessa ligação com a temática etnográfica, por ser Giglioli um
renomado zoólogo italiano, Barbosa Rodrigues decidiu homenageá-lo com a nova espécie de peixe que, na época, era
de raríssima ocorrência.
Giglioli não tardou a responder à homenagem do “amigo”. Em 1887, publicou uma nota na revista Nature sobre
85
o exemplar recebido, o qual pessoalmente dedicou-se a analisar. Na nota, destaca ter recebido “from my friend Dr. J.
Barbosa Rodriguez, the learned and energitc Director of the Museu Botânico do Amazonas” 23 o espécimen de Lepido-
siren, destacando, assim, o sentimento de amizade e respeito estabelecido entre ambos. Por outro lado, seus estudos
concluem pela manutenção da designação específica já conhecida (L. paradoxa), embora ressalte a importância da
captura do novo exemplar. Quanto à designação Giglioliana, esta teve como destino o rol das designações sinonímicas
estabelecidas pela taxonomia zoológica. Ao contrário das cartas não localizadas, o exemplar enviado por Barbosa
Rodrigues a Giglioli continua no acervo do antigo Real Museu Zoológico, atualmente Museu de História Natural, Seção
de Zoologia “La Specola”, da Universidade de Florença.
Considerações finais
Diversos textos discorrendo sobre a vida e obra de Barbosa Rodrigues foram publicados desde a segunda década
do século XX, como os artigos de Hermann von Ihering,24 W. Duarte de Barros,25 Adir Guimarães,26 Magali Romero Sá27
e a obra de Dilke de Barbosa Rodrigues Salgado.28 Embora os relatórios de Barbora Rodrigues sobre a antropologia e
etnografia da região amazônica sejam conhecidos e comentados por diversos autores, é quase inexpressiva a menção
de sua participação em sociedades estrangeiras, particularmente em uma sociedade antropológica italiana, fato bre-
vemente referenciado por Dilke Salgado29 e cuja história procurou-se resgatar.
Não se pode deixar de ressaltar a importância do papel de Lopes Netto na ligação entre a obra de Barbosa Rodrigues
e a sociedade italiana. Provavelmente ciente do interesse de Giglioli pela etnografia sul-americana, foi o responsável
por lhe enviar os relatórios de Barbosa Rodrigues. Por sua vez, reconhecendo o valor dos textos, Giglioli apresentou-os
aos membros da sociedade, propondo sua inclusão nos quadros da instituição como sócio honorário, tendo-o feito
87
João Barbosa Rodrigues, a naturalist between the empire and the Republic
ALDA HEIZER
Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro
RESUMO O artigo aborda aspectos da biografia de João Barbosa Rodrigues, naturalista e ex-diretor do Jardim
Botânico do Rio de Janeiro, e aponta possibilidades de reflexão sobre os usos posteriores que fizeram sobre a
sua atuação na passagem do império para a república, no Brasil.
Palavras-chave naturalista; biografia; exposição.
ABSTRACT The article approaches aspects of João Barbosa Rodrigues biography, naturalist and ex-director of the Rio
de Janeiro’s Botanical Garden of and aims possibilities of reflection about what was written about the naturalist and the
subsequent uses that have been made about his role in the passage of the empire for the republic, in Brazil.
88 Keywords naturalist; biographie; exposition.
“Tal foi a nossa Exposição Nacional de 1908, notável e brilhantíssima e, pelo que nella exibiu, reveladora
de grande adeantamento de nossas industrias e artes, patenteando como nunca conseguira, a immensa
opulencia de nossas riquezas naturaes, a grande capacidade de nossa agricultura e, de um modo geral,
a importância econômica deste vasto e riquissimo paiz, que no decurso de um seculo, após a abertura de
seus portos ao livre commercio das nações, tanto se desenvolveu e progrediu, offerecendo ainda, e cada
vez mais, á actividade do capital e do trabalho, sob as garantias de um regimen livre e de uma legislação
liberal, as vantagens dos maiores benefícios”.2
Em 2007, com vistas a uma publicação a ser lançada3 durante as comemorações do bicentenário do Jardim
Botânico do Rio de Janeiro, elaborei um artigo sobre João Barbosa Rodrigues e a Exposição Nacional de 1908.4
Naquele momento, procurei trabalhar duas frentes que me permitiram compreender melhor o lugar do Jardim
Botânico do Rio de Janeiro num evento que pretendia comemorar os cem anos da “Abertura dos Portos” e fazer um
balanço da história do Brasil desde a chegada da corte portuguesa, em 1808.5
Privilegiei, por um lado, compreender o projeto da Exposição num bairro que surgia naquele momento, as regras
de convivência que o evento se lhe impunha numa cidade que passara anos antes por um processo de “reformas físicas
e morais”, para usar um termo recorrente na época.6
Procurei também analisar, ainda que timidamente, a história institucional contada por Barbosa Rodrigues, a qual
está impressa no álbum comemorativo7 dos cem anos da instituição, elaborado para a referida Exposição – ressalva
A Exposição Nacional de 1908, bem como outras exposições da mesma natureza, aconteceu em data escolhida
para comemorar algum evento histórico. Assim, a Exposição de Filadélfia de 1876 foi concebida para comemorar os
cem anos da independência dos EUA; a Exposição de Paris de 1889 foi concebida para comemorar o centenário da
Revolução Francesa de 1789. A de 1908 foi concebida para comemorar os cem anos da Abertura dos Portos, ato do
príncipe regente de Portugal D. João ao chegar ao Brasil, em 1808.
A historiadora Margarida de Souza Neves, autora de um artigo10 que inaugurou, na década de 1980, os estu-
dos sobre tais eventos, chamou a atenção, em recente publicação, para o que Caio Prado Jr. já assinalara antes.
Em seu “roteiro para a historiografia do II Reinado (1840-1889)”, o político e historiador brasileiro já indicava que
os catálogos de exposições, entre outras publicações (podemos certamente incluir os relatórios e resultados de
expedições, de congressos...), deveriam ser considerados como fontes da maior importância para os estudos sobre 89
o Segundo Reinado.
De fato, como destaca Neves,11 somente nos anos de 1980 os estudiosos brasileiros deram ouvidos a Caio Prado Jr.,
e um número considerável de pesquisadores de diferentes formações se debruçou sobre a temática das exposições.
O Brasil participou de exposições durante a segunda metade do século XIX na Europa, nos Estados Unidos e na
América do Sul.
Mesmo na Exposição de 1889, que comemorava a liberdade, a igualdade e a fraternidade, a monarquia se
apresentou, em meio a divergências internas, como um império nos trópicos, segundo seus organizadores, civilizado
e regenerado, dado que, um ano antes, abolira a escravidão.12
Conhecidos como “lições das coisas”, o visitante podia percorrer tais eventos, sempre monumentais, de forma
contemplativa ou por meio da interação com o que era exposto.
As exposições obedeciam a divisões internas em vários níveis: os países se apresentavam em pavilhões; dentro
destes, havia a exposição de objetos escolhidos como representativos, ou em pavilhões temáticos, como o do café
do Brasil, em Filadélfia; o da ótica em 1900, em Paris; e o das máquinas, em 1908, no Rio de Janeiro, para citar
alguns exemplos.13
A Exposição Nacional de1908 se apresentou como a concretização da relação íntima entre uma visão otimista
do progresso e a referência a um estágio de civilização sempre prestes a conquistar.
A inauguração da Exposição sofreu dois adiamentos devido ao atraso das obras (alargamento da avenida
principal e construção de um caminho pelo mar através de um porto) e à demora das remessas das peças dos
estados, o que impediu, inclusive, que algumas seções fossem abertas no dia. E também o evento da morte do rei
de Portugal, D. Carlos.
O naturalista e a exposição
Para organizar a exposição, foi instalada uma comissão formada por um presidente, um secretário-geral, três
vice-presidentes e 36 membros.
Em 1907, ou seja, com um ano de antecedência, foi nomeada pelo governo uma comissão organizadora da Ex-
posição Nacional. Um dos comissários foi o botânico João Barbosa Rodrigues, ao lado de Rodolpho Bernadelli, Orville
Derby, Júlio Benedito Ottoni, André Gustavo Paulo de Frontin, dentre outros. As associações, sociedades e institutos
se fizeram representar por delegados especiais.
90
Para facilitar a visita à exposição, seus organizadores previram livros especiais. Podemos citar o guia oficial com
roteiro para os visitantes, o boletim de estatística e dados oficiais; catálogos dos produtos, notícias econômicas, me-
mórias históricas, estudos, álbuns, diagramas, mapas, anúncios.
Como memória do evento foram produzidos um relatório, atas dos congressos científicos que aconteciam no
interior das exposições e um catálogo geral.
Dentre esse material produzido, interessou-me, em particular, a relação das plantas que seriam expostas pelo
JBRJ por João Barbosa Rodrigues. Mais do que uma listagem do que seria exposto, havia uma advertência ao leitor
sobre a precariedade com que a instituição se apresentava.
Assim, no início do folheto, Barbosa Rodrigues diz – para lembrar, os visitantes da exposição poderiam “conhecer”
o jardim através desse material – que o Jardim não estava preparado para a exposição devido a dois fatores: o tempo
curto e o período escolhido, ou seja, a riqueza vegetal que possuía e sua beleza não poderiam ser ali apresentadas por
ser uma época inapropriada.
O naturalista advertia que, para preparar a apresentação das plantas, seria necessário tempo e não apenas poucos
meses. Isso mostra que Barbosa Rodrigues se preocupava com a adequada participação da instituição no evento.
No entanto, ao consultar o livro de ofícios expedidos pelo mesmo naturalista, em 1907,14 é possível constatar
que ele emitira ao Ministério da Justiça a confirmação da participação do Jardim Botânico e o início dos trabalhos
preparatórios para o evento, além da preparação de grande número de plantas, solicitação de adubo animal, vagões
da Estrada de Ferro Central do Brasil, bem como prestação de contas e um ofício sobre o pessoal empregado para
trabalhar especialmente para a exposição.
Da análise das correspondências estabelecidas com outros diretores de instituições de dentro e de fora do país,
constata-se que Barbosa Rodrigues já havia exposto os limites de atuação em que se encontrava tanto no museu de
“O governo organisou o Jardim botânico e o Museu Nacional e adaptou esses estabelecimentos scientifi-
cos as funções praticas que devem preencher, de accordo com os serviços dependentes desse ministerio,
e com o objetivo de desenvolver o estudo da flora, da nossa fauna e das riquezas mineraes abundantes
no território nacional.”
Herman von Ihering critica a fala do presidente da República, chegando a dizer que, para experiências de agricul-
tura, o governo teria outras opções, outros locais mais apropriados.
Diante do exposto, talvez seja possível sugerir algumas possibilidades de reflexão:
Barbosa foi um homem de seu tempo17 e precisa ser compreendido na sua relação com o governo imperial bem
como com os acontecimentos dos primeiros anos da República.18
Barbosa dirigiu o Museu Botânico de Manaus a convite da princesa Isabel, organizou expedição com o apoio do
imperador, assumiu no governo republicano o Jardim Botânico do Rio de Janeiro e implementou modificações; parti-
cipou de congresso (1905, no Rio de Janeiro) e exposições, criticando e enviando material. Um dos exemplos é como
Barbosa organizou a participação do Jardim na Exposição de 1908.
Por certo, suas críticas a como o Jardim estaria num evento que se propunha a apresentar os cem anos de Brasil
não se deteve à advertência da relação de plantas, até porque, desde o ano anterior, Barbosa, em ofício citado, solicitou e
prestou contas ao governo. A apresentação do Jardim na Exposição de 1908 não foi improvisada, e os senões de Barbosa
podem refletir uma tensão entre como ele atuava frente ao Jardim e os novos interesses do governo que se instalara.
A mudança do Governo no Brasil foi a desmoralização na administração e ciência; o colega o julga possí-
vel que o Museu Nacional do Rio de Janeiro com o seu orçamento de 80 contos por ano provavelmente o
melhor dotado na América do Sul agora não possui um único naturalista! (...). No ano passado foi idéia
me nomear [diretor da seção zoológica], mas eu não quis. Ao contrário fizeram um rescrito declarando que
os naturalistas morando fora têm de mudar-se para o Rio (...). O colega sabe bem que Muller, Goeldi e eu
somos agora os únicos zoólogos em todo o vasto país do Brasil. Não o valia de pagar-nos o pequeníssimo
ordenado que recebemos para que continuemos nas nossas investigações e respeitados no mundo científico
e representando bem a ciência natural do Brasil? 20
Senhor,
Ante vossa Magestade Imperial venho
acabrunhado pelo desgosto profundo que
me causou a traiçoeira sedição militar beijar
reverente a destra de vossa Magestade e
aprofundar os meus protestos de amor
e fidelidade.
Se assim procedo é por não poder pessoalmente
93
o fazer, ficando vossa magestade certo que tem
em mim um amigo grato e leal que se for preciso
por Vossa Magestade ou por Vossa Augusta filha
derramará o seu sangue.
É com lágrimas nos olhos que digo à Vossa
magestade que sou aqui o único Monarchista,
que à face descoberta e em publico diz
abertamente, porque todos aqueles que se
dizem amigos do trono abdusiram à república,
com a sua assignatura e censuraram o meu
procedimento.
Peço à Vossa Magestade que apresente à sua
Magestade a Imperatriz, à essa Santa, os meus
respeitosos cumprimentos e os votos que faço
pela sua preciosa saúde.
Beijando respeitoso as mãos
de Vossa Magestade.
Sou de Vossa Magestade,
João Barbosa Rodrigues
1 O presente artigo é desdobramento de minha apresentação no “Seminário Barbosa Rodrigues. Um naturalista brasileiro”, na mesa intitulada “Naturalistas,
Expedições e Congressos”, realizado em outubro de 2009, na Escola Nacional de Botânica Tropical/JBRJ.
2 Relatório apresentado ao presidente da República dos Estados Unidos do Brasil pelo ministro de Estado da Indústria, Viação e Obras Públicas Miguel
Calmon Du Pin de Almeida. V.1. Anno 1909.
3 HEIZER, Alda. O Jardim Botânico de João Barbosa Rodrigues na Exposição Nacional de 1908. Revista de História e Estudos Culturais (Fênix), v. 4, ano IV, n. 3
(jul-ago-set), 2007. É possível identificar outras referências ao envolvimento de João Barbosa Rodrigues e a participação do Brasil nas grandes exposições
do século XIX, como, por exemplo, o catálogo de produtos enviados para a Exposição de Berlim pela província do Amazonas e organizado por João Barbosa
Rodrigues. Typographia do Jornal do Amazonas A. B. Bugalho, 1886 (Biblioteca do JBRJ).
4 O tema das exposições provinciais, nacionais e internacionais tem sido estudado, e os resultados desses estudos apresentados em relatórios, artigos,
livros, dissertações e teses de Doutorado no Brasil, especialmente da década de 1980 para cá.
5 HEIZER, Alda. A Exposição Nacional de 1908: entre comemorações. Revista do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro. Edição 200 anos da chegada da
Família Real. Rio de Janeiro: Editora Garamond, 2008, p. 14-24.
6 Refiro-me às reformas por que passou a cidade do Rio de Janeiro durante a gestão do prefeito Pereira Passos nos primeiros anos da República.
7 RODRIGUES, João Barbosa. O Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Uma lembrança do 1º Centenário (1808-1908). Rio de Janeiro. Officinas da “Renascença”
& E. Beviláqua, 1908.
8 RODRIGUES, João Barbosa. Hortus Fluminensis. Notícias sobre as plantas cultivadas no Jardim Botânico do Rio de Janeiro para servir de guia aos visitantes.
Rio de Janeiro: Typ. Leuzinger, 1894.
10 RODRIGUES, João Barbosa. Relação das plantas expostas pelo Jardim Botânico do Rio de Janeiro por João Barbosa Rodrigues na Exposição Nacional de
1908. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1908.
11 NEVES, Margarida de Souza. As vitrines do progresso. O Brasil nas Exposições Internacionais. Rio de Janeiro: PUC-Rio/CNPq/Finep, 1986.
12 NEVES, Margarida de Souza. A ‘machina’ e o indígena: o Império do Brasil e a Exposição Internacional de 1862. In: HEIZER, Alda e VIDEIRA, Antonio
Augusto. (Orgs.) Ciência, civilização e império nos trópicos. Rio de Janeiro: Access, 2001, p.173-206.
13 HEIZER, Alda. Entre mudanças e permanências. Le Brésil em 1889 e o Bolletim Commemorativo da Exposição Nacional de 1908. In: ALMEIDA, Marta de;
VERGARA, Rezende Moema. (Orgs.) Ciência, história e historiografia. Rio de Janeiro: Mast; São Paulo: Via Lettera, 2008, p. 293-303.
94 14 HEIZER, Alda. Observar o Céu e medir a Terra. Instrumentos científicos e a Exposição de Paris de 1889. Tese de Doutorado em Ensino e História das
Ciências. IG/Unicamp, Campinas, 2005. Em minha tese, dedico parte do primeiro capítulo aos autores brasileiros que escreveram sobre exposições na
segunda metade do século XIX.
15 A autora agradece à bibliotecária Rosana Simões a indicação do seguinte documento: Livro de Ofícios de Barbosa Rodrigues. Ofícios 2125; 2126; 2132,
2146; 2160; 2253, 2259; 2260 (transcrição por Tania Maura N. Riccieri). Biblioteca João Barbosa Rodrigues/JBRJ/MMA.
16 IHERING, Hermann von. João Barbosa Rodrigues. Revista do Museu Paulista, v. VIII. São Paulo: Typhographia do Diario Official, 1910.
17 BEDIAGA, Begonha. Jardim Botânico do Rio de Janeiro e as Ciências Agrárias. Revista Ciência e Cultura. SBPC, n.1, Ano 62, p. 28-31, 2010; CAPILÉ,
Bruno. A mais santa das causas: a Revista Agrícola do Imperial Instituto Fluminense de Agricultura (1869-1891). Dissertação de Mestrado em História das
Ciências das Técnicas e Epistemologia do Instituto de Química da Universidade Federal do Rio de Janeiro (HCTE/UFRJ), Rio de Janeiro, 2010; MARTINS,
Maria Fernanda Vieira. O Imperial Instituto Fluminense de Agricultura: Elites, política e reforma agrícola (1860-1897). Dissertação de Mestrado em História
do Curso de Pós-graduação em História da Universidade Federal Fluminense, Niterói, 1995; ARAÚJO, Nilton de Almeida. A Escola Agrícola de São Bento
das Lages e a institucionalização da agronomia no Brasil (1877-1930). Dissertação de Mestrado em Filosofia e História das Ciências. Universidade Federal
da Bahia, Salvador, 2006; ARAÚJO, Nilton de Almeida Pioneirismo e hegemonia: a construção da agronomia como campo científico na Bahia (1832-1911).
Tese de Doutorado do Curso de Pós-graduação em História da Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2010.
18 MELLO, Leitão C. A Biologia no Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional. Coleção Brasiliana, v. 99, 1937; RODRIGUES, Barbosa. Vultos do Brasil.
Revista Brasileira de Geografia, n. 1, ano IV, p. 253, 1942; GUIMARÃES, Barbosa Rodrigues. Resenha Bibliográfica. Rodriguesia, v.27, p. 191-212, 1952;
ROMERO SÁ, Magali. O botânico e o mecenas: João Barbosa Rodrigues e a ciência no Brasil na segunda metade do século XIX. História, Ciências, Saúde
- Manguinhos, v.VIII (suplemento), p. 899-924, 2001; Dicionário Histórico-Biográfico das Ciências da Saúde no Brasil (1832-1930). Casa de Oswaldo Cruz/
Fiocruz. Disponível em: http://www.dichistoriasaude.coc.fiocruz.br
19 MATTOS, Ilmar R. Do Império à República. Estudos Históricos, v. 2, n. 4, p. 161-296, Rio de Janeiro, 1986.
20 VIDEIRA, Antonio Augusto. Anotações para uma biografia de Guido Beck. In: ALMEIDA, Marta de; VERGARA, M. Rezende. (Orgs.) Ciência, história e
historiografia. Rio de Janeiro: Mast; São Paulo: Via Lettera, 2008, p. 115-12; FIGUEIRÔA, Silvia Fernanda de Mendonça. Para pensar a vida de nossos cientistas
tropicais.In: HEIZER, Alda; VIDEIRA, Antônio Augusto. (Orgs.) Ciência, civilização e império nos trópicos. Rio de Janeiro: Access, 2001, p. 225-234.
21 IHERING, Hermann Von. Apud LOPES, Maria Margaret; FIGUEIRÔA, Silvia Fernanda de Mendonça. A criação do Museu Paulista na correspondência de
Hermann Von Ihering (1850-1930). Anais do Museu Paulista, v. 10-11, n. 11. São Paulo, 2002-2003, p. 31; 23-36.
22 Carta de João Barbosa Rodrigues ao imperador D. Pedro II. Maço 201- Doc. 9225. Arquivo da Casa Imperial do Brasil / Museu Imperial de Petrópolis.Outras cartas
podem ser analisadas e se encontram no Museu Imperial de Petrópolis, abordando a solicitação do botânico para que o Jardim Botânico fosse contemplado
com a biblioteca do imperador, como também a carta ao imperador pedindo autorização para lhe dedicar sua obra sobre orquídeas do Brasil. Agradeço aos
colegas do Museu Imperial a indicação das cartas de João Barbosa Rodrigues ao imperador D. Pedro II que se encontram na referida instituição.
23 SALLES, Ricardo. Joaquim Nabuco. Um pensador do império. Rio de Janeiro: Topbooks, 2002.
[ Artigo recebido em 09/2010 | Aceito em 11/2010 ]
DOMINICHI MIRANDA DE SÁ
Casa de Oswaldo Cruz | Fiocruz
95
RESUMO Em 1909, foi implementado o Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio pela República brasileira.
Muitas instituições científicas, entre museus, jardins botânicos e comissões de exploração, foram encarregadas,
por esta pasta, do inventário sistemático da natureza da fronteira noroeste do território nacional. A região – que,
no século XIX, começava a ser sistematicamente conhecida e chamada de “Amazônia” – era fortemente asso-
ciada à prodigalidade, exuberância e generosidade dos seus recursos naturais. Para torná-la domínio político
efetivo, o Estado brasileiro patrocinou, entre 1907 e 1931, séries de expedições de conhecimento de sua fauna,
flora e populações, e dois de seus atores principais foram a Comissão Rondon e o Jardim Botânico do Rio de
Janeiro. Essas instituições organizaram viagens e enviaram à Amazônia séries de naturalistas e profissionais de
formação técnico-científica. Essas viagens, seus objetivos, personagens e principais resultados serão analisados
neste artigo.
Palavras-chave Amazônia; natureza; viagens científicas; Comissão Rondon; Jardim Botânico do Rio de Janeiro.
ABSTRACT Brazilian Ministry of Agriculture, Industry and Trade was implemented in 1909. Many of scientific
institutions, including museums, botanical gardens and operating committees, were charged by this Ministry to perform
the systematic inventory of the nature of country’s northwest border. The region in the nineteenth century began to be
systematically known and called the “Amazon”. It was strongly related to the exuberance and generosity of its natural
resources. Between 1907 and 1931 the Rondon Commission and the Rio de Janeiro’s Botanical Garden organized scien-
tific expeditions and sent to the Amazon naturalists and technical professionals. These expeditions explored Amazon’s
fauna, flora and human populations, in an attempt to become it an effective political domain. These voyages, their goals,
protagonists and principal results will be presented in this article.
Keywords Amazon; nature; scientific expeditions; the Rondon Commission, the Rio de Janeiro’s Botanical Garden.
Inúmeras são as referências a indicar que o termo “Amazônia” foi usado e consagrado como designação de toda
uma região associada à prodigalidade e à generosidade da natureza em um livro publicado, pela primeira vez, em 1883.
Seu título era O País das Amazonas, e seu autor, um barão, o de Santa-Anna Nery (1848-1901). Sua primeira versão
foi financiada pela Assembleia Legislativa Provincial do Amazonas, mas o livro foi impresso e reimpresso em francês,
por editoras de Paris, em 1885 e 1890. Divulgada, desde a sua primeira impressão, em jornais locais, como o Diário de
Notícias, apenas em 1901 trechos da obra foram editados em português, no Álbum do Estado do Amazonas.1
Le Pays des Amazones, L‘El-dorado, Les Terres a Caoutchouc, seu título original, foi concebido como propaganda
para atrair, sobretudo, imigrantes estrangeiros. Na conversão da província do Amazonas em Amazônia, Nery, nascido
em rica e importante família de Belém e homem de letras formado na Europa, apoiava-se largamente em cronistas e
eclesiásticos, e, sobretudo, em viajantes e naturalistas como La Condamine, Humboldt, Wallace, Agassiz, Spix e Mar-
tius, os quais, do seu ponto de vista, tinham ilustrado, nos seus escritos, extensão, quantidade, riqueza e qualidades
privilegiadas e ilimitadas dos solos, vegetação e águas amazônicos.
Nery tinha, no entanto, forte ressalva aos estudiosos que citava, pois teriam priorizado a descrição de fenômenos
particulares e considerado como isolados os reinos da natureza e as populações humanas da região. A Amazônia, no
seu dizer, confirmaria o destino de “terra da promissão”, apontado pelos cronistas e naturalistas, se povoada em favor
do incremento da agricultura e da mineração; se desmentidas as ideias negativas sobre os pretensos malefícios do
clima quente;2 se floresta e matérias-primas exploráveis da região fossem utilizados “racionalmente” e em detrimento
do investimento exclusivo na extração da borracha; mas, sobretudo, se os seus elementos naturais fossem conhecidos
em conjunto, em sua “harmoniosa unidade”.3 O eixo unificador das imagens que construía e reproduzia sobre a região
– terras virgens e vastas, inexploradas e desconhecidas, ricas e de baixa ocupação – parecia ser, na verdade, o apro-
veitamento humano dos seus recursos. Não inventava a admiração com a exuberância, tampouco o utilitarismo nas
96
leituras da natureza,4 mas elevava-os à categoria máxima de publicidade e polo de atração e ocupação. A segui-lo, a
Amazônia seria uma paisagem única: desde “celeiro” à “farmácia central do mundo inteiro”.5
A despeito de ter sido considerado e de se apresentar, ele próprio, como o grande sistematizador e propagandista
da Amazônia como região singular, Nery seguia chave de leitura da própria produção científica dos naturalistas que
citava e à qual dizia se opor: o tratamento da diversidade espacial, ou seja, o entendimento de cada conjunto regional
como particular na “interação entre os vários elementos da natureza e da vida humana”.6 Tratava-se de nova tendência
de representação da natureza brasílica, que vinha sendo verificada desde o final do século XVIII e que seria mesmo
adensada no século XIX7 – a da percepção da variedade de territórios e sistemas naturais, com distintas modalidades e
potenciais de exploração econômica, que deveriam ser conhecidos em suas diferenças. Dito de outro modo, a natureza
seria um “conjunto de conjuntos”.8 Para nomear um desses conjuntos, visto na ocasião como exemplarmente rico e
complexo do ponto de vista dos seus recursos naturais específicos, Nery empregava o nome “Amazônia”,9 e convocava
a política monárquica tanto para empreender a sua colonização quanto para empregar os cientistas da ocasião no seu
estudo sistemático.
Seu apelo não era novo, sequer único entre homens de estado e de ideias no período imperial,10 mas apenas a
República brasileira, nos primeiros anos do século XX, financiaria uma política regular de conhecimento científico da
diversidade natural e regional brasileiras.11 A Amazônia, ou a fronteira noroeste do Brasil, tornou-se, em particular,
objeto frequente e privilegiado de estudos e pesquisas de séries de instituições científicas estatais, entre museus,
jardins botânicos e comissões de exploração, sobretudo após a criação e a implementação do Ministério da Agricultura,
Indústria e Comércio (Maic, 1906-1909).12 Tratava-se de iniciativa de inventário sistemático da natureza da região, vista
na ocasião como rica e variada, e de tentativa de conversão de ‘fundos territoriais’13 (em região de frente de expansão
e disputas internacionais de limites) em “territórios usados”, ou em domínio político efetivo.14 Mais especificamente,
o Estado brasileiro patrocinou séries de expedições de conhecimento de sua fauna, flora e populações, que tiveram
Nas últimas décadas do século XX, a historiografia brasileira que toma a ciência como objeto vem sendo caracterizada
por sua aproximação com a História Social, pela crescente ampliação da demarcação temporal de suas pesquisas, pela
diversificação de suas temáticas, pela problematização conceitual da noção “instituição científica” e pela investigação
das relações entre Estado e ciência, sobretudo nos séculos XIX e XX.15 Sobre este último tópico em particular, os es-
tudos têm salientado que essa aliança, nesse período, tinha como objetivos principais a “civilização” e a modernização
do país sob a rubrica geral da “integração nacional”.16 “Integrar”, na ocasião, significava, basicamente, ocupar e povoar
os espaços vazios, sobretudo os do interior do território, tornando-os produtivos.17 E para a incorporação dos espaços
afastados do interior, o próprio Estado brasileiro, na virada do século XIX para o XX, além de primordialmente promover
construção e obras de infraestrutura de transportes e comunicação, como estradas de ferro e expansão de linhas telegrá-
ficas, organizou viagens científicas, que constituíram, elas também, projetos oficiais de modernização e exploração das
potencialidades econômicas do território brasileiro. As origens desse projeto podem ser localizadas no Império, por meio,
por exemplo, das atividades da Comissão Científica de Exploração (1856), da Comissão Geológica Imperial (1875) e da
Comissão Geográfica e Geológica de São Paulo (1886),18 mas, durante a República, iniciativas semelhantes não apenas
97
se intensificaram como ganharam nova expressão. “Incorporação” e “conhecimento científico” do território – aliança que
incluía, não raras vezes, levantamentos nosológicos e atividades de combate a doenças nos sítios a serem ocupados e
povoados – passaram a ser aspectos absolutamente indissociáveis nessas viagens de exploração.19
Essas iniciativas estavam subordinadas à Secretaria dos Negócios da Agricultura, Comércio e Obras Públicas do
Ministério da Indústria, Viação e Obras Públicas, dirigido pelo engenheiro Miguel Calmon du Pin e Almeida entre 1906
e 1909. Nesse período, inexistia um Ministério da Agricultura; o Macop, criado em 1860, foi extinto com a República,
em 1891. Esta Secretaria, na ocasião, representava os interesses da antiga pasta, a qual, durante o Império, vocalizou
a aliança entre “progresso nacional”, “progresso das ciências naturais”, sobretudo da Botânica com seus estudos apli-
cados sobre plantas e sementes, e “progresso da agricultura”.20 Essas comissões e viagens de exploração deveriam
realizar estudos sobre as populações e as riquezas naturais das regiões percorridas.
As atividades de cunho científico de comissões ligadas ao Ministério da Viação só fizeram crescer quando passa-
ram a estar atreladas ao Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio (Maic), (re)criado em 1906, mas efetivamente
implementado em 1909, a partir da antiga Secretaria dos Negócios da Agricultura, Comércio e Obras Públicas do
Ministério da Viação.21 Elas passaram a estar oficialmente encarregadas dos trabalhos de levantamento topográfico,
reconhecimento, medição, identificação de caminhos e demarcação de terras nas quais seriam instalados centros agrí-
colas e suas lavouras. Nesse período, o levantamento científico do território, por meio do estudo de climas, incidência
de doenças, rios, plantas, animais e capacidade das terras para agricultura, mineração ou pecuária, era indissociável
dos projetos de diversificação produtiva, de modernização da agricultura, construção de caminhos para o escoamento
da produção e fixação de mão-de-obra no interior, das quais se encarregavam todos os diferentes órgãos do Maic na
ocasião, segundo o decreto 7.727 de 09/12/1909, que regulamentou a reorganização da pasta.22 Tratava-se de ênfase
em ciência aplicada, ou seja, era absolutamente imperativa a necessidade de pôr a natureza (entendida como recurso
natural) a serviço do homem.23
98
A Comissão Rondon na fronteira amazônica
A partir do ano de 1907, vastas regiões da fronteira noroeste do Brasil passaram a ser atravessadas por um grupo
de oficiais e praças do exército brasileiro que cumpriam a missão de nelas estender fios telegráficos.28
Compunham uma comissão cujo objetivo era ligar ao Rio de Janeiro os territórios do Amazonas, do Acre (região
cedida ao Brasil pela Bolívia em tratado de 1903), do Alto Purus e do Alto Juruá, na fronteira com o Peru, por intermédio
da capital do Mato Grosso. Os pontos extremos da linha-tronco seriam Cuiabá, Santo Antônio do Madeira, ponto inicial
da construção da Estrada de Ferro Madeira Mamoré, e Manaus, na região amazônica.29 Era composta basicamente
por militares, entre oficiais, inspetores e seus auxiliares, dois médicos, dois farmacêuticos e um fotógrafo, além de
dezenas de praças para a execução dos trabalhos pesados. Somavam-se a eles guarda-fios e telegrafistas civis do
Ministério da Viação, e totalizavam, assim, de três a seis centenas de homens a formar a Comissão de Linhas Telegrá-
ficas Estratégicas de Mato Grosso ao Amazonas (CLTEMTA) – também conhecida como Comissão Rondon, por ter sido
chefiada pelo então coronel Cândido Mariano da Silva Rondon (1865-1958).30 No orçamento da Comissão, previa-se
ainda a contratação dos “praticantes regionais”, ou seja, de civis, habitantes das regiões percorridas, inclusive índios,
que funcionariam como guias, remadores de canoas e auxiliares nos serviços de derrubada da mata e instalação dos
postes telegráficos.31
Os membros da Comissão, nas suas diferentes viagens, assim que chegavam às localidades destinadas à inte-
gração telegráfica, seguiam rígidas etapas de trabalho: reconhecimento preliminar do terreno por meio de medições,
demarcações e determinações dos azimutes para a confecção de mapas, organização de acampamentos e plantas,
escolha dos pontos de passagem da linha telegráfica, abertura da picada com derrubada da mata, nivelamento das
picadas em caso de terrenos acidentados, definição dos locais dos postes telegráficos e projeção das diretrizes das
linhas, extração de madeira para confecção desses postes, abertura dos buracos nos quais esses mesmos postes
102 Os primeiros jardins botânicos do mundo surgiram na Europa, no século XVI, com o intuito de estudar as plantas
medicinais, e formaram as primeiras coleções de plantas para fins científicos.60 Ao longo do tempo e nos mais diferentes
contextos locais, novas funções foram sendo acrescentadas a essas instituições, como, por exemplo, os estudos de
Botânica aplicados à agricultura e à exploração de recursos naturais. A importância dos jardins botânicos enquanto pontos
turísticos e locais destinados ao lazer das populações, e o papel fundamental que exercem atualmente na conservação
de espécies, também são atribuições que foram dadas a essas instituições no decorrer de sua história.
O Jardim Botânico do Rio de Janeiro (JBRJ) – a exemplo de outros congêneres estabelecidos no país, como o
Jardim Botânico do Grão-Pará, fundado em 1796, na cidade de Belém – foi criado em 1808, com o objetivo de desen-
volver experiências de aclimatação com espécies vegetais de interesse agrícola e comercial.61 As primeiras instituições
botânicas da colônia (Jardim Botânico do Rio de Janeiro, Jardim de Belém e de Pernambuco) visavam aclimatar as
chamadas plantas exóticas, incluindo aqui as especiarias das Índias orientais. Nessa época, o valor científico atribuído
aos produtos da flora estava associado ao caráter “útil” que estes representavam.
Em 1824, frei Leandro do Sacramento, doutor em Ciências Naturais pela Universidade de Coimbra e professor
de Botânica da Academia Médico-Cirúrgica do Rio de Janeiro, foi nomeado como primeiro diretor da instituição, que,
desde 1819, estivera anexada ao Museu Real, atual Museu Nacional. Frei Leandro, além da aclimatação de plantas,
realizou pesquisas, experimentações, catalogação, classificação e introdução de novas espécies.62
Em 17 de agosto de 1861, foi assinado um contrato entre o Governo Imperial e o Imperial Instituto Fluminense
de Agricultura, determinando que a administração do Jardim Botânico passasse para o referido instituto, o qual visava
viabilizar medidas úteis para o progresso da agricultura e buscava, por intermédio da aplicação dos conhecimentos
científicos, racionalizar a exploração da terra e da natureza. A direção do Imperial Instituto Fluminense de Agricultura
tinha o interesse em fundar no Jardim Botânico um estabelecimento agrícola, denominado Asilo Agrícola da Fazenda
Normal, que serviria de escola prática e modelo às fazendas de cultura de especiarias. Por volta de 1874, abrigava
um laboratório para análises químicas agrícolas, viveiros de plantas, cultura de bicho-da-seda, oficinas de serralheria e
Sob o nome “Amazônia”, conhece-se, hoje, a região definida pela bacia do rio Amazonas, coberta por uma floresta
tropical que se estende por nove países sul-americanos: Brasil, Peru, Colômbia, Venezuela, Bolívia, Guiana, Suriname,
Guiana Francesa e Equador. Quase 50% de toda a Amazônia (precisamente 49,29% da região) encontra-se em território
brasileiro e é formada por 10 ecossistemas distribuídos por 23 ecorregiões, abrangendo os estados do Acre, Amapá,
Amazonas, Pará, Rondônia, Roraima, e partes dos estados do Tocantins, Mato Grosso e Maranhão.73
O superlativo relacionado ao mundo natural parece ser o recurso linguístico mais comum para descrevê-la e defini-
la até os dias de hoje: maior bacia hidrográfica e maior floresta tropical do mundo; uma das maiores faunas aquáticas
e o bioma terrestre biologicamente mais rico da Terra. Não bastasse ser constituída por megabiodiversidade, é tão
somente a maior de todo o planeta. As pesquisas científicas em Ecologia, Biologia, desenvolvimento sustentável, Direito
Ambiental, História Ambiental e Antropologia, dentre outros ramos do conhecimento, o reforçam.74
Cronistas, viajantes e naturalistas que percorreram a região desde o século XVI, contribuíram para a construção
dessa interpretação da grandiosidade e dela avulta certa vertente que polariza, de um lado, um cenário natural, à mar-
gem da história, único e grandioso, e, de outro, o homem intruso – imagens que, no Brasil, os escritos de Euclides da
Cunha mais expressam e representam.75
No Brasil, esse imaginário conviveu com outra vertente, expressa em séries de projetos políticos (sobretudo
no período republicano) marcados pelo empenho constante na conversão do cenário natural em recursos nacionais.
Pesquisas recentes demonstram, inclusive, que a projeção dessa conversão remonta ao século XVIII e que, mesmo
então, já se concebiam também a exploração e o aproveitamento racionais dos seus elementos naturais.76 Seu auge,
no Brasil, foi a passagem do século XIX ao XX, e premissas básicas desse investimento sobre a natureza amazônica
eram o otimismo e a convicção na ação transformadora do homem. Como procuramos demonstrar no recorte proposto
106 neste artigo, esse investimento expressou-se como fiador científico do empreendimento e máxima metáfora publicista
em O País das Amazonas de Nery, mas também em projetos políticos – em parte, representados pelas viagens de
exploração científica, patrocinadas pelo Maic, dentre as quais se destacam aquelas realizadas pela Comissão Rondon
e pelo Jardim Botânico do Rio de Janeiro.
Desse modo, filiadas, neste artigo, à historiografia das ciências, a qual se ocupa do exame da história das ativi-
dades científicas que acompanharam obras de construção de infraestrutura de comunicações e transporte em estados
nacionais, conferimos atenção às condições históricas por meio das quais os caminhos e as comunicações em contextos
nacionais promoveram, e mesmo demandaram o trabalho de campo de cientistas e naturalistas de diferentes áreas do
saber.77 Nesse sentido, propomos a análise das expedições realizadas por duas instituições científicas brasileiras das
primeiras décadas do século XX, a Comissão Rondon e o JBRJ, como iniciativas indissociáveis do processo de moder-
nização do Estado. Eram viagens de exploração do território nacional que visavam a esboçar um inventário científico
das riquezas naturais do país, no caso, um esquadrinhamento da natureza amazônica.
Se o seu intuito de “integrar”, como domínio político, a porção noroeste do país não foi efetivamente alcançado
à época, ou se, hoje, ele foi reconfigurado em função das novas atitudes, sensibilidades e pautas de relacionamento
com o mundo natural, os levantamentos científicos promovidos pela Comissão Rondon e pelo Jardim Botânico foram
decisivos para a valorização do trabalho dos naturalistas brasileiros e ampliaram o conhecimento sobre extensas áreas
do interior do país. Como salientou o naturalista Miranda Ribeiro, em texto publicado na revista Kosmos, de 1908, a
Comissão Rondon, por exemplo, eliminou inúmeras inscrições de “Desconhecido” dos mapas nacionais. Sua intenção
era transformar a fronteira noroeste, ou o País das Amazonas, em Brasil. No entanto, ajuda notável também forneceram,
para a criação e a consolidação da “Amazônia”: objeto de ciência, imaginação, turismo, disputas políticas internacionais,
curiosidade e temário central dos debates sobre uso sustentável de recursos naturais e preservação ecossistêmica
no mundo inteiro.
1 Coelho, Anna Carolina de Abreu. O País das Amazonas: o imaginário da natureza amazônica na propaganda para imigração no século XIX, História e-
historia, 2008, disponível em http://www.historiaehistoria.com.br/materia.cfm?tb=artigos&id=55#_ftnref10; Godim, Neide. A invenção da Amazônia.
São Paulo, Marco Zero, 1994.
2 Sobre o tema, consultar, por exemplo, o capitulo VIII, “Inventing Tropicality”, de Arnold, David. The problem of nature: environment, culture and European
expansion. Oxford: Blackwell, 1996; e Stepan, Nancy L. Picturing Tropical Nature. London: Reaktion Books, 2001.
3 A propósito, em seu livro, Nery comentava: “La plupart des auteurs qui ont composé des livres sur l‘Amazonie se trouvent dans ce cas. Le savant n‘enregistre
que certaines particularités de la flore ou de la faune; le géographe ne relève que des données topographiques; le trafiquant n‘est attentif qu‘aux phénomènes
de la production; l‘homme de lettres se contente d‘exploiter le pittoresque en vue de ses descriptions. Aucun d‘eux n‘étudie le pays dans son entier, dans son
harmonieuse unité”. NERY, Frederico Santa-Anna. O País das Amazonas. São Paulo: Edusp, 1981, p. XIV.
4 Arnold, David. The problem of nature: environment, culture and European expansion. Op. cit.; 1996.
5 NERY, Frederico Santa-Anna. O País das Amazonas. Op. cit.; 1981, p. 113,120,128.
6 Pádua, José Augusto. Natureza e Sociedade no Brasil Monárquico. In: GRINBERG, Keila; SALLES, Ricardo. (Org.) O Brasil Imperial. Rio de Janeiro: Civili-
zação Brasileira, 2009, v. III, p. 316.
7 Idem; KURY, Lorelai. Viajantes-naturalistas no Brasil oitocentista: experiência, relato e imagem. História, Ciências, Saúde-Manguinhos, v. VIII, Suplemento,
p. 863-880, 2001. Sobre a importância das distintas correntes intelectuais que conformaram esta nova interpretação da natureza, entre iluministas,
românticos e fisiocratas, ver Pádua, José Augusto. Natureza e Sociedade no Brasil Monárquico. Op. cit.; 2009.
8 Pádua, José Augusto. Natureza e Sociedade no Brasil Monárquico. Op. cit.; 2009, p. 317. Sobre o tema, com destaque para a importância crucial de
Humboldt neste debate, por sua formulação da “geografia das plantas”, sua perspectiva da distribuição variada da vida no planeta, da ideia da especial
pujança do mundo natural nos climas quentes e a importância da excursão científica para o conhecimento dos espaços naturais, ver, dentre outros,
Dettelbach, Michael. Global physics and aesthetic empire: Humboldt’s physical portrait of the tropics. In: MILLER, D. P.; REILL, P. H. (Org.) Visions of
empire: voyages, botany, and representations of nature. Cambridge, Cambridge University Press, 1996.
9 Sobre a história da ideia e da imagem da natureza amazônica, ver também: PADUA, José Augusto. Arrastados por uma cega avareza: as origens da crítica
107
à destruição dos recursos naturais amazônicos. Ciência & Ambiente, Amazônia: recursos naturais e história, n. 31, p. 133-146, 2005; e COSTA, Kelerson
Semerene. Homens e natureza na Amazônia brasileira: dimensões (1616-1920). Tese de Doutorado - Universidade de Brasília, Brasília, 2002.
10 KURY, Lorelai. Explorar o Brasil: o Império, as Ciências e a Nação. In:KURY, Lorelai. (Org.) Comissão Científica do Império. Rio de Janeiro: Andrea Jakobsson
Estúdio, 2009, p. 19-49.
11 RIBEIRO, Rafael Winter. A invenção da diversidade: construção do Estado e diversificação territorial no Brasil (1889-1930). Tese de Doutorado - Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Programa de Pós- graduação em Geografia, Rio de Janeiro, 2005.
12 Idem.
13 Sobre a discussão da conversão dos “fundos territoriais” – frentes de expansão e áreas de potenciais riquezas de seus recursos naturais – em “territórios
usados”, ver MORAES, Antonio Carlos Robert. Território, região e formação colonial. Apontamentos em torno da geografia histórica da independência brasileira.
Ciência & Ambiente, Santa Maria, v. 33, p. 9-16; e Pádua, José Augusto. Natureza e Sociedade no Brasil Monárquico. Op. cit.; 2009, p. 329-330.
14 Sobre as disputas de fronteiras e os debates sobre limites internacionais na região amazônica da ocasião, ver SANJAD, Nelson. Ciência e política na fronteira
amazônica: Emílio Goeldi e o Contestado Franco-Brasileiro (1895-1900). In: 11o. Seminário Nacional de História da Ciência e Tecnologia, 2008, Niterói. Rio de
Janeiro: Sociedade Brasileira de História da Ciência, 2010; VERGARA, Moema. Ciências, fronteiras e nação: comissões mistas de demarcação dos limites
territoriais entre Brasil e Bolívia, 1895-1901. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 5, p. 345-361, 2010.
15 DANTES, Maria Amélia M. Introdução. In: Espaços da ciência no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, 2001.
16 LIMA, Nísia Trindade. Um sertão chamado Brasil. Rio de Janeiro: Revan/Iuperj, 1999.
17 MACIEL, Laura Antunes. A nação por um fio: caminhos, práticas e imagens da Comissão Rondon. São Paulo: Educ; Fapesp, 1998.
18 FIGUEIRÔA, Silvia. As ciências geológicas no Brasil: uma história social e institucional, 1875-1934. São Paulo: Hucitec. 1997.
19 Schweickardt, Júlio César; LIMA, Nísia Trindade. Os cientistas brasileiros visitam a Amazônia: as viagens científicas de Oswaldo Cruz e Carlos Chagas
(1910-1913). História, Ciências, Saúde-Manguinhos, v. 14, p. 15, 2007.
20 DOMINGUES, Heloisa Maria Bertol. Ciência, um caso de política: as relações entre as ciências naturais e agricultura no Brasil Império. Tese (Doutorado)
- Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1995.
21 MENDONÇA, Sonia. R. de. O ruralismo brasileiro. São Paulo: Hucitec. 1997; RIBEIRO, Rafael Winter. A invenção da diversidade. Op. cit., 2005; BHERING,
Marcos Jungman. Positivismo e modernização: políticas e institutos científicos de agricultura no Brasil (1909-1935). Dissertação (Mestrado) - Programa de
Pós-graduação em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, Rio de Janeiro. 2008.
22 RIBEIRO, Rafael Winter. A invenção da diversidade. Op. cit., 2005; p. 73-74.
23 DOMINGUES, Heloisa Maria Bertol. Ciência, um caso de política. Op. cit., 1995; RIBEIRO, Rafael Winter. A invenção da diversidade. Op. cit., 2005; SÁ,
Dominichi Miranda de; LIMA, Nísia Trindade. No rastro do desconhecido. Revista de História da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, v. 11, p. 18 - 23, 23
ago., 2006.
International meetings and the Barbosa Rodrigues role on the 1905 event
RESUMO Este trabalho tem por objetivo analisar a atuação e contribuição científica de João Barbosa Rodrigues
para a 3ª Reunião do Congresso Scientifico Latino-Americano, realizada na cidade do Rio de Janeiro, em 1905.
Além de destacar o papel dos congressos científicos, mostra que ciência e relações diplomáticas se mesclam
na história desse evento. Conclui que Barbosa Rodrigues foi o principal organizador do Congresso de 1905 e
que seus dois trabalhos publicados nos anais são relevantes para a Botânica, História da Ciência e do Meio
Ambiente. As advertências feitas ao governo e especialistas no trabalho “A diminuição das águas no Brasil”
permanecem muito atuais.
110 Palavras-chave João Barbosa Rodrigues; evento científico internacional; Reunião do Congresso Scientifico
Latino-Americano, 3. (Rio de Janeiro, 1905); história do meio ambiente.
ABSTRACT This paper aims to analyze the performance and scientific contributions of João Barbosa Rodrigues for
the 3th Meeting of the Latin American Scientific Congress, held in Rio de Janeiro in 1905. Beyond to detail the role of
scientific conferences, it shows that science and foreign affairs combine in the history of this congress. It concludes that
Barbosa Rodrigues was the main organizer of the conference of 1905 and that his two papers published in the proceedings
are relevant to Botany, History of Science and the Environment. The warnings given to the government and specialists
about the decline of water in Brazil remain very current.
Keywords João Barbosa Rodrigues; international scientific conference; Meeting of the Latin American Scientific Con-
gress, 3. (Rio de Janeiro, 1905); history of the environment.
Introdução
As reuniões nacionais, como a Assembleia de Naturalistas e Físicos, realizada em Leipsig desde 1822, de-
ram origem aos congressos científicos internacionais, que começaram a ser realizados na década de 1860. Nos
primórdios, os organizadores imprimiam aos encontros o caráter de acontecimentos internacionais apenas devido
à presença de um convidado estrangeiro. É o caso dos congressos de Astronomia que, em 1865, já se autodeno-
A participação de congressos científicos nacionais e internacionais é considerada uma das etapas fundamentais
para o progresso da ciência. Depois de concluído o trabalho, é de praxe apresentar e discutir os resultados com colegas
em evento da área, bem como publicar a comunicação e o artigo completo em periódico de circulação internacional. Mas
nem sempre a qualidade dos trabalhos corresponde às expectativas da maioria dos participantes ou, inversamente, muitas
vezes as intervenções dos participantes não estão à altura da coerência e complexidade das questões em debate.
A cerimônia de abertura é a ocasião solene em que o conhecimento científico é utilizado no discurso de projeção
do potencial do país escolhido para sediar o congresso. Por isso, autoridades do mundo da política e da ciência se
colocam lado a lado. Outras festividades que ocorrem no transcorrer do evento, têm por fim demonstrar aos participan-
tes estrangeiros a valorização da cultura erudita e o respeito às tradições culturais da nação. Os congressos sempre
foram acontecimentos em que os participantes vivenciam bons momentos oferecidos pelos banquetes, discursos e
mundanidades. Isso pode ser facilmente comprovado numa rápida leitura do programa de quaisquer congressos inter-
nacionais, inclusive os das áreas tecnológicas consideradas mais herméticas. Independentemente da área, do local e
de quando os congressos foram realizados, as ocasiões para o convívio social são importantes para as apresentações
e reencontros, que podem resultar em colaborações e parcerias.
Como comprova a programação da 3ª Reunião do Congresso Scientifico Latino-Americano, o ritual de celebração
da ciência se assemelha aos eventos atuais. Afora a maior especialização e rigor na seleção dos trabalhos, está cada
vez mais claro que o território da ciência é um campo social como qualquer outro, com estratégias e mecanismos de
disputas característicos de grupos e indivíduos.
A participação em congressos internacionais faz parte da política de Estado, uma vez que pode interferir no prestígio
dos países dos participantes. O número de participantes por país é um indicador histórico do grau de desenvolvimento da
ciência, enquanto que a distribuição geográfica dos congressos indica a reputação cultural da cidade escolhida e a importância 113
da comunidade científica local. Disputas nas associações promotoras ou entre grupos da mesma área precedem a escolha
do país para a sede de um evento internacional. Os membros do comitê científico e do comitê executivo se revestem de
poder, podendo obter vantagens na carreira e dividendos, principalmente quando estão em cena interesses de indústrias.
A vida científica nacional é também diretamente afetada, criando um novo lugar de representação ou acirrando a luta entre
instituições tradicionais e emergentes, entre grupos de pesquisa concorrentes e entre pesquisadores.
Nas notícias publicadas na imprensa e nas informações contidas na coleção dos relatórios da 3ª Reunião do Con-
gresso Scientifico Latino-Americano, independentemente do jornal e do organizador do volume dos anais, sobressaem
o caráter de celebração das aplicações da ciência, o culto das letras e o esforço político de criar uma aliança latino-
americana com a finalidade explícita de enfrentar problemas comuns e de integração regional. Diante disso, deve-se
conferir ao evento uma duplicidade de caráter: científico e político.
Os participantes do Congresso de 1905 tiveram uma extensa agenda social, ocasiões para a “confraternização
científica” e para a “confraternização entre as nações irmãs”, e sessões para apresentação de trabalhos, cujas questões
deveriam preencher os seguintes requisitos: interessar “à comunhão das nações latinas” ou ser de interesse de mais
de “uma ou mais dessas nações”. As questões foram determinadas pela Comissão Diretora, a partir das questões pro-
postas pelas subcomissões, e submetidas à aprovação da sessão plenária depois de votadas nas respectivas sessões.
Dessa maneira, o debate contemplaria pontos considerados essenciais pela Comissão Diretora, tais como: a procura do
método mais eficaz para a confecção de um mapa geral dos países latino-americanos; o estudo das fontes de energia
hidráulica na América meridional, com objetivo de produzir energia elétrica; estudo das causas do desaparecimento do
volume das águas e dos mananciais no Brasil;8 a conservação das matas e seu controle; projetos de ligação possível
das bacias de navegação dos rios da Prata, Amazonas e Orinoco; traçado de grandes vias férreas latino-americanas;
progresso e desenvolvimento das ciências médicas e cirúrgicas; questões relativas à criminologia; principais famílias
linguísticas da América Latina.9
As resoluções votadas na sessão plenária foram orientadas pelo questionário elaborado pelas subcomissões nas
conclusões de trabalhos apresentados e nos debates travados nas sessões científicas. Uma leitura preliminar dos doze
volumes do Relatorio Geral permite afirmar: em nenhum dos países da América Latina a ciência havia conseguido se
116
Comissão Diretora do 30 Congresso Scientifico Latino-Americano, 1905. Sentado à esquerda: Barbosa Rodrigues
A proposta de instituir uma reunião científica permanente na América Latina, tal como ocorria em países europeus,
partiu da Sociedad Científica Argentina. Nenhum brasileiro participou da 1ª Reunião do Congresso Scientifico Latino-
Americano (Buenos Aires, 10-20 de abril de 1898), mas João Barbosa Rodrigues (diretor do Jardim Botânico), Manoel
Victorino Pereira (médico), Alfredo Lisboa (engenheiro), Manoel Álvaro de Souza Sá (jurista) e Domingos Sergio de
Carvalho (engenheiro agrônomo, professor do Museu Nacional) compareceram à 2ª Reunião do Congresso Scientifico
Latino-Americano (Montevidéu, 20-31 de março de 1901). O grupo foi organizado no âmbito do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro, pelo marquês de Paranaguá,15 e recebeu do governo federal recursos para a viagem. Quando o
Rio de Janeiro foi escolhido para sediar a terceira reunião, todos passaram a integrar a Comissão Organizadora, depois
denominada Comissão Diretora.
Os trabalhos dessa comissão tiveram início no IHGB, em julho de 1901, mas se tornaram regulares a partir de 5
de abril de 1902, quando a Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro ganhou o status de sede da 3ª Reunião. Naquele
ano, ocorreram quatorze reuniões, e as atas foram publicadas no 1o Boletim dos Trabalhos Preparatórios.16 Os esforços
se concentraram na elaboração do regulamento e esboço da programação, na divulgação (circulares, boletins e fichas de
inscrição) e nas articulações visando garantir o auxílio do governo federal. Barbosa Rodrigues participou intensamente,
sempre fazendo ponderações que evidenciavam sua experiência em pesquisa e preocupação com o rigor científico.
Ficou estabelecido que haveria dez comissões científicas, denominadas subcomissões: Matemática Pura e
Aplicada; Ciências Físicas; Ciências Naturais; Engenharia; Ciências Médicas e Cirúrgicas; Medicina Pública; Ciências
Antropológicas; Ciências Jurídicas e Sociais; Ciências Pedagógicas; Agronomia e Zootecnia. Procurou-se manter a
estrutura organizacional do congresso de Montevidéu, considerado um êxito. Coube às comissões científicas: propor
questões para orientar os trabalhos a serem apresentados nas sessões; sugerir outros nomes para dividir as tarefas;
receber e classificar as dissertações, relatórios e comunicações sobre os temas afins enviados às mesmas; organizar
117
as atividades científicas e instalar as sessões até a eleição da Mesa definitiva de cada área; coordenar a publicação
do relatório final com os trabalhos selecionados.
Em 26 de novembro de 1902, Barbosa Rodrigues passou a integrar a Comissão Diretora, que substituiu a Co-
missão Organizadora. Até o congresso, outras 42 reuniões plenárias se realizaram na Sociedade de Geografia do Rio
de Janeiro ou na Escola Politécnica. As atas registravam as presenças e as justificativas das faltas, assim como as
propostas apresentadas e decisões, as quais o Jornal do Commercio transcrevia na íntegra para os leitores. Em 1904,
a Comissão Diretora se dedicou fundamentalmente a examinar os resultados do trabalho das comissões científicas,
a infraestrutura e apoio financeiro para realização do evento, o registro de participantes, os trabalhos inscritos e as
indicações para presidentes e membros honorários. Três meses antes do início do Congresso, devido às dificuldades
enfrentadas pela Comissão Diretora para executar as últimas tarefas,17 as atividades passaram a ser supervisionadas
por uma Comissão Executiva sob a presidência do próprio marquês de Paranaguá. Era menor do que a Comissão
Diretora, mas integrada por aqueles que estavam mais comprometidos com a realização do evento: Antonio de Paula
Freitas, Deodato Cesino Villela dos Santos, Manoel Álvaro de Souza Sá Vianna, Carlos Seild, José Américo dos Santos,
Alfredo Lisboa e o incansável João Barbosa Rodrigues. Seu empenho fora tal, que Constança Barbosa Rodrigues, sua
mulher, foi aclamada presidente honorária da 3ª Reunião do Congresso Scientifico Latino-Americano. A homenagem
era inusitada naquela época, diante do papel reservado na sociedade para as mulheres. A sugestão partiu do médico
argentino Manoel Otero Acevedo.
Em contraste com o dinamismo demonstrado na posição de diretor do Jardim Botânico, participante e repre-
sentante brasileiro no 2º Congresso, e membro das comissões organizadoras, diretora e executiva da 3ª Reunião do
Congresso Scientifico Latino-Americano, Barbosa Rodrigues não teve uma atuação científica compatível durante o
evento. Depois de vencida a proposta de agrupar as sessões de Engenharia, Matemática, Ciências Físicas e Ciências
Naturais, ele deveria apresentar trabalho nas sessões de Ciências Físicas e Naturais que foram realizadas em conjunto.
“Structure et formation de la tige des palmiers” foi publicado no tomo IIIA do Relatorio Geral, em francês, consi-
derada a língua da civilização.r Trata-se de um trabalho clássico de Botânica, o qual o autor inicia com uma descrição
“poética” do estipe da palmeira e um histórico das descrições do espécime. Em seguida, reporta-se à controvérsia
sobre a estrutura do estipe, lembrando que botânicos europeus se equivocaram na descrição de exemplares nativos
118 na África pelo fato de as palmeiras não resistirem a longas viagens. Discorre também sobre a reprodução e raízes das
palmeiras para explicar, de maneira pormenorizada, como se dá o desenvolvimento do estipe. Por meio de desenhos,
trata dos detalhes dos ramos e dos feixes de fibras. Um relato de experiência pessoal encerra o trabalho.
“A diminuição das águas no Brasil”, trabalho de mais de 160 páginas que Barbosa Rodrigues planejou apresentar
no 3º Congresso de 1905, foi publicado no tomo IIIA do Relatorio Geral, impresso em 1909.s Bem fundamentado e de
leitura agradável, é interessante observar que a estrutura da apresentação se assemelha às exigências dos trabalhos
acadêmicos. O autor destaca no prólogo a motivação do estudo, as hipóteses do trabalho, a finalidade e as questões
orientadoras. Isto é, chama atenção para a seca, diferenciando as alterações do índice pluviométrico do fenômeno
das secas que periodicamente assola algumas regiões do país, atribuindo o problema à diminuição dos mananciais.
A tese é de que uma revolução geológica no país, ligada uma revolução meteorológica, ou produzindo-a, resulta no
ressecamento da crosta terrestre e, consequentemente, ocasiona a diminuição das chuvas e trovoadas, a falta de
água e doenças. Baseia-se nas modificações que observou no volume dos rios da bacia Amazônica durante os anos
em que lá viveu, nas viagens pelas fronteiras até o Mato Grosso e em numerosos dados extraídos de documentos
oficiais, jornais, artigos, etc. Adverte o governo para a necessidade de entender a questão, a fim de ser evitada uma
calamidade, inclusive para as futuras gerações.
O trabalho está dividido em seis partes. Na primeira, faz um “Histórico das derrubadas e dos mananciais”t do Rio
de Janeiro, enfatizando os aspectos da relação aumento da população/consumo de água desde a época de Villegaignon
até recentes administrações. Apresenta diversos dados em quadros demonstrativos sobre o volume de água dos ma-
nanciais da cidade. A segunda parte, “Florestas e queimadas”,21 é particularmente interessante para a compreensão das
ideias do autor. Questiona a relação entre desmatamento e seca; enfatiza que as florestas são grandes consumidoras
de água e, mais uma vez, enfatiza que o problema se deve ao fato de a água não infiltrar no solo. Nesse item, é um
crítico severo das queimadas, por gerarem calor, além de fumaça, fuligem e cinzas.
Ao serem comparadas as características do primeiro evento latino-americano realizado no Rio de Janeiro com
as dos eventos recentes organizados pelas associações internacionais de pesquisadores, algumas generalizações a
respeito dos congressos científicos podem ser feitas, inclusive da história da ciência. Enquanto a especialização e a
profissionalização substituíram a multiplicidade de temas e a profusão de participantes com interesses muito distintos,
muitas áreas mantêm a tradição de organizar um grande congresso internacional a cada quadriênio, na cidade eleita
na reunião anterior, em que é também escolhida a futura comissão organizadora. Algumas instituições de pesquisa
igualmente conseguiram firmar a tradição de organizar colóquios regulares, sempre na mesma cidade, para os quais
atraem a participação de importantes pesquisadores estrangeiros. Em ambas, a ocasião é propícia para os organiza-
dores e os convidados especiais acumularem capital científico, tal como Barbosa Rodrigues conseguiu amealhar na 2ª
Reunião do Congresso Scientifico Latino-Americano (Montevidéu) e reproduzir na 3ª Reunião do Congresso Scientifico
Latino-Americano (Rio de Janeiro).
O ritual científico e a forma de organização permanecem praticamente inalterados, muito embora esteja mais
rarefeita a presença de representantes do Estado e sejam mais restritas as solenidades para projeção do potencial do
país anfitrião. Se, na transição para o século XX, a produção de conhecimento nos países da América Latina e Caribe
se encontrava em um patamar muito distante da Europa, onde o desenvolvimento do capitalismo havia promovido
profundas mudanças econômicas e sociais, trazendo com elas a crença no valor da ciência e da tecnologia, a distância
encurtou. O apoio do Estado, por intermédio de agências de fomento, contribuiu para aumentar de maneira surpreen-
dente o número de congressos, de pesquisadores e o que mais importa: a produção científica. A ciência, vista como
parte da cultura nacional, tornou-se um eficiente instrumento de política externa e de propaganda dos países, tal como
o barão do Rio Branco experimentou diretamente em 1905.
A leitura do Relatorio Geral da Terceira Reunião do Congresso Scientifico Latino-Americano26 estimula a reflexão
120 sobre o desenvolvimento da ciência e da tecnologia ao longo de um século de história, notadamente ao observar as
permanências e as mudanças. O documento testemunha como a ciência era produzida, aplicada e considerada na so-
ciedade brasileira do início do século XX. Inscritas na historicidade das condições de produção, transmissão e recepção
do conhecimento científico no Brasil e na América Latina, as informações contidas nos doze volumes dos anais deixam
evidentes a marca de celebração e o esforço político para enfrentar problemas comuns e de integração regional, o que
permite conferir ao evento uma duplicidade de caráter: científico e político.
Um exemplo da atualidade de temas abordados em 1905 é a contribuição de Barbosa Rodrigues sobre a diminui-
ção da água no Brasil. Mas, enquanto ele defendia a necessidade de preservação de uma faixa de mata ciliar de 200
metros, para proteger o solo e evitar a diminuição das chuvas e mananciais, o Ministério do Meio Ambiente, ainda hoje,
enfrenta resistências para fixar a largura mínima de 30 metros, apesar de várias evidências científicas que comprovam
a redução vertiginosa do volume de água potável na Terra. As advertências do botânico ao governo do presidente da
República Francisco de Paula Rodrigues Alves continuam ignoradas pelas autoridades e maioria da população, inclusive
do Rio de Janeiro e arredores.
1 Questões centrais sobre o evento de 1905 foram desenvolvidas anteriormente em: ANDRADE, Ana M. Ribeiro de. O Congresso sob muitos ângulos. In:
ANDRADE, Ana M. Ribeiro de. (Org.) A Terceira Reunião do Congresso Scientifico Latino-Americano: ciência e política. Brasília/ Rio de Janeiro: CGEE/
MAST, 2002, p. 21-57. [Inclui CD-ROM.] ; ANDRADE, Ana M. Ribeiro de; SUPPO, Hugo Rogélio. O significado do Congresso. In: ANDRADE, Ana M. Ribeiro
de. (Org.) A Terceira Reunião do Congresso Scientifico Latino-Americano: ciência e política. Brasília/ Rio de Janeiro: CGEE/ MAST, 2002, p. 59-126. [Inclui
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