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e os olhares

sobre a cultura
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Sébastien Darbon
Sylvia Caiuby Novaes
Etienne Samain
Sylvain Maresca
Gilles Boétsch & Jean-Noèl Ferrié
Amarildo Camicel
Cláudia T. Magni & Mauro Bruschi
Armando Martins de Barros
O etnólogo e suas imagens

Sébastien Darbon*

Resumo Abstract Résumé


Ao situar-se voluntariamente à The author purposely takes a En se situant volontairement à
contracorrente de um consenso standpoint which is contrary to the contre-courant d'un consensus
amplamente estabelecido no que diz widely accepted consensus relating to largement établi quant à 1'importance
respeito à im portância do aporte da the importance of the contribution of de 1'apport de 1'image à la
imagem no conhecimento images to anthropological connaissance anthropologique, cet
antropológico, esse artigo chama a understanding. However, this article article attire 1'attention sur les limites
atenção sobre os linútes. dedal underlines the limits of this de cet apport en examinant les
aporte, examinando as questões do contribution by questioning the questions du réalisme de 1'image, du
realismo da imagem, do-sentido e.da realism of the image, the meaning sens et de Tinterprétation, et. enfin de
interpretação e, finalmente, da and interpretation, and finally the la relation entre 1'image et le texte.
relação entre a imagem e o texto. relationship between image and text.

‘ Etnólogo, pesquisador do CNRS, trabalha no âmbito do Laboratoire d'Ethnologie Mé-


diterranéenne et Comparative (Aix-en-Provence). Seus recentes trabalhos apontam pan
alguns fenômenos contemporâneos no domínio do lúdico e do esportivo ("majorettes"
praticantes do rúgbi a XV no sul-oeste da França...). É fundador da revista Xoana — Image
et Sciences Sodales, de que é o redator-chefe. Ensina na Universidadeo tema "Antropologi;
da Imagem".
as suas práticas cotidianas, os pesquisadores valorizam de bom grado uma
atitude crítica que — se supõe — exercem não somente com relação ao seu
objeto de estudo, mas também vai de encontro aos seus próprios hábitos
mentais, acossando notadamente a preguiça intelectual que, disfarça-
damente, se insinua nas suas análises sob a forma de estereótipos ou de
"evidências". Pelo menos, far-lhes-emos crédito dessa intenção. Em com­
pensação, não me parece que essa vigilância seja empregada, de forma tão
eficaz, quando se penetra no mundo da imagem. Tudo se passa então como
se a extraordinária banalização da utilização das imagens no mundo con­
temporâneo — à qual corresponde uma não menor banalização de seu uso
nas práticas de pesquisa em ciências sociais e humanas — se conjugasse
com as qualidades que a elas se atribui — poder de evocação, realismo,
precisão-. — para criar um campo de investigação à parte, que responde­
ría a critérios autônomos de cientificidade. Reconhecer-se-á que os etnólogos
foram, desse ponto de vista, vanguardistas, chegando até a fundar uma
nova "disciplina" à qual deram um nome (a "antropologia visual") que
deveremos, um belo dia, abandonar, tão portador está de ambigüidades e
de .confusões.
É assim que uma literatura, hoje abundante, e às vezes de excelente quali­
dade, foi dedicada, faz mais de vinte anos, à edificação e à consolidação de
um conjunto de práticas de pesquisa que tomam a imagem como ferra­
menta, sendo que o cinema ficou, no caso, com a parte mais importante.
Reconhecemos que as preocupações metodológicas não estiveram sempre
ausentes dessas reflexões. Mas a impressão que decorre é a de uma gran­
de atenção a aspectos formais ou práticos (como evitar a profilmia, que
lugar dar ao comentário ou ao autocomentário, como estruturar uma nar­
ração etc.), em detrimento de considerações situadas a montante e que
mobilizam disciplinas como a filosofia, a lingüística, a semiologia, a histó­
ria da arte... Finalmente, o que é uma imagem? O que significa o realismo?
Como tratar os problemas do sentido da imagem e de sua interpretação?
De que "fala" a imagem, de que "linguagem" se trata? Que estatuto lhe
dar em relação ao discurso sábio. Essas interrogações, é verdade, são mui­
to pouco originais. Contudo, reexaminá-las enquanto questões prévias a
nossas práticas de pesquisa, talvez não seja inútil. Que fique bem claro:
minha intenção, de forma nenhuma, é a de renunciar à utilização da ima­
gem num processo de pesquisa em ciências sociais (no nosso caso, na
etnologia): trata-se simplesmente de insistir sobre algumas limitações im­
portantes de tal utilização e de mostrar que se a imagem pode representar,
em determinadas condições, um instrumento de grande poder na nossa
disciplina, encobre, também, perigos consideráveis se não associarmos ao
seu uso um certo número de precauções.
102
C etnólogo e suas imagens 103

Para se limitar ao trabalho do etnólogo, observar-se-á evidentemente


que sua captação da imagem no quadro de suas pesquisas não se limita
aos documentos que ele-mesmo produz por ocasião de sua presença no
campo: pode também aplicar-se à análise das imagens produzidas por
outros. Sem dúvida, os problemas metodológicos a serem resolvidos
não serão os mesmos num caso e no outro. Mas são aspectos que não
pretendo desenvolver aqui, situando-me voluntariamente numa situa­
ção anterior a essas. Mais precisamente, gostaria de abordar esses pro­
blemas a partir de um pequeno número de noções que permitem reen­
contrar o essencial das dimensões que estão em jogo — a saber o realis­
mo, o sentido (ou a interpretação), e a relação da imagem com o texto. Claro
que parecerá, rapidamente, que existe uma interpenetração bastante
freqüente entre essas noções, mas a distinção que faço tem simples­
mente como finalidade dar uma aparência de estruturação a um dis­
curso que, caso contrário e vista a complexidade do assunto em pauta,
correria o risco de parecer confuso.

Realismo
À primeira vista, o que há de mais realista senão uma fotografia? De fato,
a fotografia, em função de suas próprias características, leva ao mundo
da cópia, da marca — o que os semiólogos da comunicação chamam de
modo analógico ou icônico dos signos visuais, em oposição ao modo co­
dificado ou convencional. Uma foto é uma cópia da realidade, e se tende-
ria a dizer facilmente: uma cópia fiel. Pois, com efeito, contrariamente à
pintura em particular, uma foto nasce a partir de um conjunto de proces­
sos mecânicos ou físico-químicos (a luz penetra através de uma objetiva,
respeitando as leis da refração, impressionando depois os cristais de pra­
ta de uma película). Alguns utilizam até o termo "fotônico" em referência
aos fótons, às partículas de luz. Encontramo-nos, com isto, no pleno mun­
do da física e da química, isto é, no meio de processos naturais que o
fotógrafo se contenta em domesticar — mas para o essencial, basta apoiar
sobre um disparador, e a realidade se imprime diante de você, indiscu­
tivelmente reproduzida. Existiria, por assim dizer, um processo causai,
imediato, automático, mecânico e natural que, por ocasião da produção
da imagem, asseguraria nos objetos uma presença peculiar. Certos au­
tores iriam até falar de simulacro: a imagem fotográfica faria ver o objeto
ele-mesmo — tal como foi.
Poderiamos julgar que se trata neste caso da caricatura de uma atitude
mental que os próprios pesquisadores denunciam unanimente e sem ape­
lo. Parece-me, no entanto, que se faz necessário voltar a isso sempre, tão
insidioso permanece o caráter de "evidência" que se prende a certas re­
presentações iconográficas. Falando-se de reprodução, sugerimos a idéia
de semelhança, mas essa semelhança não está de modo algum garantida.
Uma imagem fotográfica é algo eminentemente fabricado, e, essa fabrica­
ção, assenta-se sobre convenções relativas à representação: representa
somente algo que se assemelha às cenas no momento em que são fotografadas.
Assim sendo, o suposto realismo fotográfico é algo do qual temos dificul­
dade de nos despreender, e que produz seus efeitos de modo suficiente­
mente pernicioso. Evidentemente, se utilizamos a fotografia como ama­
dores, para recolher lembranças, é pouco importante. Mas, ao contrário,
se a fotografia faz parte de um dispositivo de pesquisa etnológica, deve-se
ser mais exigente e mais rigoroso.
Quais seriam, então, as razões de pôr em dúvida, por princípio e a priori, a
semelhança entre uma foto e o que ela representa?
1. Primeiro, por um certo número de razões práticas que são bastante
conhecidas. Sabemos quão as escolhas operadas sobre os aspectos os mais
mecânicos, ou os mais físico-químicos, como a objetiva, a película, as mo­
dalidades de revelação e de tiragem, por exemplo, têm conseqüências ime­
diatamente sensíveis sobre a reprodução da "realidade" que se constrói
através de uma foto. Os que praticam um pouco a fotografia sabem, pelo
fato de terem de trabalhar em condições de luminosidade fraca, que deve­
rão utilizar uma película hipersensível, o que dará mais granulação na
prova, uma fineza menor da imagem, contornos mais desfocados, contras­
tes modificados, com relação ao que se teria obtido se se tivesse utilizado
uma película menos sensível. Decidiriamos, desta vez, fotografar com uma
objetiva grande angular? Obteríamos uma deformação do sujeito com li­
nhas de fuga acentuadas em relação ao que o olho vê normalmente,
distorção essa qxie poderá ainda aumentar se tomarmos um angulo de
visão de cima para baixo ou de baixo para cima. Porventura, temos esco­
lhido uma teleobjetiva. Sendo fraca a profundidade de campo desse tipo
de objetiva, somente aparecerá nítido o sujeito sobre o qual concentramos
o foco e, o que se encontra na frente ou atrás se tomará desfocado: no caso,
abstrai-se o sujeito daquilo que o circunda. Utilizar-se-á, por acaso, uma
revelação dê filme muito rápida, provocando granulação ou contrastes em
função da maior ou menor temperatura do banho de revelação ou, ao
contrário, um processo mais lento e produtos adaptados que permitem
obter uma maior fineza na gama dos cinzas? Utilizaremos, eventualmente,
um papel duro na tiragem, a fim de se obter um aumento dos contrastes e
praticamente nenhum tom cinza intermediário, dirimindo desse modo os
detalhes? Etc. etc... Nesse nível bem elementar e limitando-nos aqui ape­
nas à fotografia, as possibilidades de encenação já são inúmeras. A tudo
isso, acrescenta-se, evidentemente, a diversidade infinita dos modos de se
tratar o assunto: o enquadramento, evidentemente (o que está dentro do
campo e o que está fora do campo, o ângulo da tomada, a posição do
sujeito dentro do campo central ou deslocada), mas, também, oformato do
negativo (uma escolha estreitamente vinculada à maneabilidade do ma­
terial e, conseqüeri temente, ao tipo de foto que se pode tirar), a luz (com
essa questão central- devemos submeter-nos à natureza, isto é, contentar-
nos com a luz tal como está ou, ao contrário, modificar as condições de ilu­
minação, recorrendo a projetores ou flashes?), ou, ainda, a atitude do fotó­
grafo em relação ao seu sujeito (tratando-se de uma pessoa ou de um conjun­
to de pessoas, será que pedirá permissão antes de fotografar ou roubará a
foto? Será que fará uma encenação ou fotografará as pessoas tais como
são? Será que as personagens deverão permanecer imóveis ou poderão
mexer-se?) etc. Aliás, é exatamente a questão que levanta Bourdieu (1965),
falando dos diversos modos de aproximação da fotografia em função das
classes sociais e em função da época. Pode-se, com efeito, notar diferenças
muito importantes no que diz respeito às convenções de enquadramento e
de tomada entre a fotografia popular, a foto amadora ou o documento de
imprensa feito por profissionais; e, no decorrer do tempo, a evolução das
ferramentas provocou, igualmente, evoluções nesse domínio.
O etrtóiogc e suas imagens 105

Devemos, assim, admitir que existem usos sociais da fotografia e que


a fotografia não se resume à impressão objetiva, mecânica, produzida
por um fluxo de luz sobre uma placa sensível. Na obra acima referida,
Bourdieu diz que, sendo assim, a fotografia fixa somente um aspecto do
real que "é, sempre e somente, o resultado de uma seleção arbitrária e,
em decorrência, uma transcrição: entre todas as qualidades de um objeto,
somente são fixadas as qualidades visuais que se oferecem no instante e a
partir de um ponto de vista único" (Bourdieu, 1965, p. 108).
Não é, assim, um acontecimento ou uma coisa que uma imagem fotográ­
fica dá a ver, e sim uma maneira de vê-los. É, no sentido filosófico da pala­
vra, uma visão das coisas. Na sua obra Langages de Vart, Nelson Goodman
acrescenta um argumento a essa tese: "Tara fazer uma imagem fiel, co­
piem o objeto tal como é tantas vezes quantas possível'. Essa recomen­
dação simplista me deconcerta; pois o objeto na minha frente é um ho­
mem, um enxame dé átomos, uma organização de células, um violonista,
um amigo, um louco, e muitas outras coisas. Se o objèto tal como é, não é
nenhuma dessas coisas, o que pode, ainda, vir a ser? Se todas são manei­
ras de ser, então, nenhuma é a maneira de ser do objeto. Não posso copiá-
las todas ao mesmo tempo; e mais próximo estaria de conseguir, menos o
resultado seria umàimagem realista". E um pouco mais adiante: "A teo­
ria da representação-cópia é, dessa maneira, condènada nas origens pela
sua incapacidade em especificar o que está para ser copiado" (Goodman,
1990, p. 36-7). ' f : H§
2. Em segundo lugar, e para acabar provisoriamente com o problema do
realismo, lembrarei que a noção de realismo é essencialmente cultural.
Daremos, assim, um grande passo à frente na direção do abandono das
últimas escórias da noção de representação-cópiá, se refletirmos sobre a
historicidade e sobre a relatividade dessa categoria de julgamento pecu­
liar que é o sentimento realista. Anoção de cópia ou de cópia-conforme é,
com efeito, um dado convencional, e as categorias de percepção de uma
cópia não são categorias objetivas. f§j§|
Conhece-se a concepção da imitação e do real que Platão tinha, no século
IV a.C., notadamente por seu famoso exemplo dòs três leitos e dos três
níveis (República, Livro X). Lembro-o brevemente: existem três espécies
de leitos: o que existe "na natureza das coisas, e do qual podemos dizer,
penso, que Deus é o autor" (de certa maneira, a idéia de leito); o que
constrói o marceneiro, que é um leito particular; e o criado pelo pintor.
Ora, para Platão, só o primeiro leito é real e o pintor não faz outra coisa a
não ser imitar a obra do marceneiro, a qual é, ela mesma, aparência. O
pintor encontra-se, dessa maneira, afastado dá "verdade" por três de­
graus. O que imita o pintor, é a aparência e nãò a realidade. O imitador
não tem nenhum conhecimento válido daquilo que imita. Se Platão tives­
se conhecido a fotografia ou o cinema, é claro que, de bom grado, as teria
colocado no saco onde já se encontrava a pintura.
Mais próximo de nós, no século 19, outras concepções do realismo encon­
tram-se com o naturalismo na literatura, ou com o realismo acadêmico na
pintura. Conhece-se a crítica que delas fizeram, na época, os primeiros
teóricos do marxismo, acusando-as de reproduzir a falsa consciência bur­
guesa e de dar ênfase demais aos determinismos naturais das desigual­
dades sociais. Contra essas ilusões realistas, a estética marxista pretendia
106 Sébastien Darbon

que a expressão artística é sempre apenas um reflexo da realidade mate­


rial e que uma arte autêntica tinha de ser um testemunho das relações
sociais já identificadas pela análise marxista. Seja qual for o valor estético
que se dê ao famoso "realismo socialista", o que fica interessante subli­
nhar aqui é o fato de que esse fenômeno histórico demonstra até que pon­
to o sentimento realista, que se reconhece nas convenções de representa­
ção, expressa, uma relação aos valores morais.
Goodman expressava essa dimensão histórica da seguinte maneira: "O
realismo é relativo, determinado pelo sistema de representações que serve
como norma para uma cultura ou para uma dada pessoa num dado mo­
mento. Consideram-se artificiais ou sumários os sistemas recentes, mais
antigos ou alheios. Para um egípcio da quinta dinastia, a maneira conve­
niente para representar algo não é a mesma que a de um japonês do século
18; e nenhuma das duas valerá para um inglês do começo do século 20.
Cada um deles teria, numa certa medida, de aprender a ler uma imagem
num dos dois outros estilos. Essa relatividade fica ocultada pela nossa
tendência de esquecer de precisar o quadro de referência, quando se trata
do nosso". E um pouco mais adiante: "Em resumo, a representação realis­
ta não repousa sobre a imitação, a ilusão ou a informação, e sim, sobre a
imposição" (Goodman, 1990, p. 62-3).

O sentido e a interpretação
Diante de uma imagem, como fazemos para "fazê-la vomitar", para tirar
dela o sentido? Por cuidado pedagógico, vou recorrer, aqui, a uma distin­
ção — um pouco arbitrária, clássica, no entanto, entre os semiólogos da
comunicação — entre as noções de emissão e de recepção. Mas, faz-se
necessário bem observar que, num certo nível da análise, elas se reunifi-
cam por meio das noções de sentido e de interpretação.
Para abordar esse aspecto, partirei de uma anedota. Há alguns anos, num
colóquio, uma eminente especialista em sociologia da arte punha de lado
os relatórios de pesquisa dos sociólogos, que achava terrivelmente chatos.
Quanto a essa atitude, parece-me que só poderiamos dar-lhe razão. Mas
ela recheava sua crítica de um comentário, aparentemente anódino e bem-
vindo, que merece nossa atenção. Dizia em essência: vale mais uma foto
de Robert Doisneau que um relatório chato, pois a gente aprende muito
mais.
Creio que se deva cuidar muito desse tipo de proposições, que me parece
encobrir numerosos perigos e, sobretudo, um absoluto desconhecimento
daquilo que chamamos a "linguagem" da imagem com relação à lingua­
gem de que se utiliza o discurso científico, digamos, no caso, o discurso
etnológico. É necessário investir ainda e sempre, até diria cada vez mais,
no fato de que uma imagem, quer seja fixa, quer animada, não é um discurso
científico. Para dizer as coisas de maneira um tanto provocadora, diria que
uma imagem não nos fala do mundo: falar do mundo, só a linguagem
articulada pode fazê-lo. Uma imagem não possui um sentido, que lhe seja
inerente, pois o sentido de uma imagem se constrói. Vamos fazer, logo,
uma série de distinções importantes, para evitar qualquer ambiguidade.
Vimos que, no nível do emissor, a imagem, longe de nos dar uma visão
4
O etnólogo e suas imagens 107

unívoca do que seria a realidade, pode, no entanto, propor múltiplas di­


mensões dessa realidade, eventualmente contraditórias, em função da
subjetividade do fotógrafo, do contexto, de condicionamentos sociais ou
técnicos etc. Mas, do lado do receptor, por que não seria a mesma coisa
que estaria acontecendo? O receptor, ele também, tem sua própria subje­
tividade, sua história pessoal e suas grades de leitura; ele percebe a ima­
gem num ambiente e num contexto suscetíveis de colorir sua percepção.
Sobre esse tema, foi provavelmente Ernst Gombrich quem escreveu as
páginas mais pertinentes e mais convincentes. Apresenta a questão, no
capítulo de sua Ecologia das Imagens, intitulado "A imagem visual", com
algumas frases muito claras: "Se se considerar a comunicação do ponto
de vista privilegiado da linguagem, há de se perguntar, primeiro, quais
funções, entre aquelas, pode assumir a imagem visual. Vamos ver, logo,
que a imagem visual é sem igual quanto a sua capacidade de despertar,
que sua utilização para fins expressivos é problemática e que, reduzida a
si mesma, a possibilidade de igualar a função enunciativa da linguagem
lhe faz radicalmente falta". Um pouco mais longe: "A imagem não é o
equivalente do enunciado" (Gombrich, 1983, p. 325).
Para concretizar essa afirmação, Gombrich propõe um pequeno teste ins­
trutivo. Apresenta a legenda de um abecedário para crianças, represen­
tando um gato sobre um capacho. A legenda é a seguinte: "o gato está
sentado sobre o capacho". Legenda perfeitamente compreensível — não
obstante o fato de que a imagem não seja a tradução desse enunciado
lingüístico. Com efeito, não existe, na "linguagem" da imagem, o equiva­
lente dos artigos definidos que, na legenda, designam o fato de que se
trata de um gato particular e de um capacho particular; a legenda poderia
, ter sido —- o que seria bem diferente — "um gato está sentado sobre o
'<capacho", isto é, utilizar o artigo indefinido. Em seguida, Gombrich nos
I sugere imaginar que a imagem nos chegou sem legenda. A essa imagem,
poden-se-ia, então, fazer corresponder uma infinidade de enunciados: "é
um gato visto de costas", "não é um elefante sobre o capacho", e poder-
se-ia acrescentar: "é um gato gordo", "esse gato tem um pêlo magnífico",
"esse gato espera que alguém lhe dê comida" etc. Evidentemente, pode-
se complicar mais ainda, escrevendo no abecedário: "o gato se sentou
sobre o capacho", "o gato tem costume de sentar-se sobre o capacho", "o
gato senta-se raramente sobre o capacho" etc.
Em exergo ao mesmo capítulo de A Ecologia das Imagens, Gombrich in­
seriu essas duas frases: "A significação de uma imagem permanece gran­
demente tributária da experiência e do saber que a pessoa que a contem­
pla, adquiriu anteriormente. Neste tocante, a imagem visual não é uma
x simples representação da 'realidade', e sim um sistema simbólico". Cada:
) indivíduo, em função de sua cultura e de sua história pessoal, incorporou;
j modos de representação e potencialidades de leitura da imagem que lhe l
I são próprios. Daí, os riscos consideráveis de anacronismo perceptivo que \
j espreitam nossas interpretações. Poder-se-ia oferecer numerosos exem- t
j pios históricos, mas limitar-me-ei a lembrar um único, bastante célebre, j
\posto em relevo por Paul Veyne e que diz respeito à Coluna Trajana: /
/ tomando como ponto de partida a ausência de lisibilidade dos relevos \
: dessa coluna, cuja maioria se encontra numa altura demasiadamente ~
I alta para que possam ser vistos, Veyne deduzia que a coluna não tinha
t como propósito comunicar um relato — contrariando o que muitos histo-
Sébastíen Darbon

* -■.
riadores acreditavam até então —, e sim que se devia, simplesmente, ver
nela a expressão emblemática ou simbólica de uma potência, de uma ma­
jestade (Veyne, 1988).
Se tudo o que acabei de dizer até aqui é verdadeiro, então, decorre des­
ses dados algo muito pouco valorizador no que diz respeito a alguns dos
princípios que fundam a semiologia da comunicação. Esta considera, com
efeito, que é absolutamente necessário distinguir, de um lado, o modo
analógico ou icônico dentro do qual as imagens entretêm uma relação di­
reta com seu significado ou com seu referente (por exemplo, um retrato,
uma marca fotográfica); de outro lado, o modo codificado ou convencio­
nal, no qual a relação das imagens com o seu significado depende de uma
convenção (por exemplo, uma contramão, um logotipo de uma empresa).
Ora, acabamos de ver que não existe ícone no sentido estrito da palavra e
que uma imagem que se considere como sendo fiel ao seu objeto, no me­
lhor dos casos, só pode ser uma abstração desse objeto ou da cópia dele,
isto é, a expressão de uma convenção de representação. Ao inverso dos
semiólogos da comunicação, devemos, assim, afirmar que não existe dife­
rença de natureza entre os ícones e as imagens convencionais de um obje­
to. Além disso, se é verdadeiro o fato de que uma imagem não tem sentido
em si, tampouco existe essa auto-suficiência semiológica dós códigos
iconográficos, já que, apenas, se pode isolar numa imagem ou numa série
de imagens, códigos discretos e "fracos" que, em nenhum caso, podem
impor e controlar por si sós o porvir-sentido da imagem. Uma imagem
nunca nos diz algo sobre o mundo (ou, o que torna a ser a mesma coisa,
dele, diz demais); ela não pode afirmar qualquer proposição que seja, tal
propriedade pertencendo somente à linguagem articulada. Ou ainda, se se
preferir, uma imagem, quer seja ela fixa ou animada, não é um discurso
científico. .« ;
Dito isso, existem muitas significações a serem extraídas das imagens. Se
não fosse o caso, não falaríamos delas. Para Jean-Claude Passeron, essa
condição a priori do funcionamento de um pacto iconográfico conduz o
espectador de uma imagem a "fazer como se ela afirmasse alguma coisa, a
prestar-lhe — como se fosse algo evidente — uma asserção implícita, cuja
formulação guia a identificação e a decupagem dos enunciados icônicos
pertinentes que realiza no conjunto indefinido das enunciações potenciais
de uma imagem" (Passeron, 1987). É a ausência de estruturação rígida da
imagem que cria essa "falta de comunicação"; falta essa que se pode cons­
tatar facilmente por exemplo quando se pede a várias pessoas comenta­
rem a mesma imagem, o que toma caduca a noção semiológica de código.
Para evitar qualquer mal-entendido, devo fazer, aqui, uma pequena afir­
mação. Essa relatividade no decorrer da recepção da imagem — evidente­
mente lastimável no campo da pesquisa científica — é, pelo contrário, par­
te integrante do dispositivo artístico. Quando se faz fotografia artística, ou
pintura, não representa incômodo — até isso faz parte do próprio jogo —
o fato de o receptor atribuir todas as significações que quer naquilo que
está vendo: mergulhamos, nesse momento, no domínio da subjetividade e
da sensibilidade, não no do discurso racional. Poder-se-ia retrucar que, em
etnologia, o problema da "verdade" do discurso não é, ele também, muito
simples, uma vez que uma proposição permanece verdadeira até que seja
substituída por uma outra que parece mais aceitável; na medida em que,
O etnólogo e suas imagens

também, possam co-existir, num mesmo momento, interpretações con­


traditórias em tomo de um mesmo fenômeno. Conclui-se que os critérios
de aceitabilidade fundamentam-se em princípio — mesmo que nos si­
tuando fora do quadro das disciplinas chamadas "duras" — num conjun­
to de categorias, de conceitos, de referências teóricas e metodológicas,
cujo objetivo é precisamente manter afastada a subjetividade.

O texto e a imagem
A primeira idéia sobre a qual gostaria de insistir aqui diz respeito ao fato
de que texto e imagem não podem ser considerados do mesmo nível
hierárquico: a imagem deve ser subordinada ao texto. Isso decorre dire­
tamente daquilo que dizia relativamente ao sentido: se uma imagem não i
tem sentido em si, que lhe seja inerente, se o sentido de uma imagem :
está, sempre, para ser construído por meio do discurso, a imagem, então,
é apenas um suporte para o discurso. Mas que tipo de suporte? Que ar- i
ticulação prever entre um e outro?
Um excelente exemplo de trabalho fotográfico de grande qualidade, mui­
to bem integrado à démarche antropológica, nos é dado pelo que Gregory
Bateson e Margaret Mead realizaram em Bali. De uma maneira extrema­
mente sistemática, Bateson produziu, no local, uns 25.000 clichês, quando
Mead anotava todos os pormenores do contexto dessas tomadas. Além
da maneira — seguramente exemplar — com que a imagem era concebi-,
da como instrumento estreitamente integrado a uma problemática, gos­
taria, no momento, de realçar uma dimensão metodológica. Essas foto­
grafias vêm sistematicamente acompanhadas de dois tipos de comentá­
rios: uma contextualização e um início de interpretação de um lado, uma
descrição sistemática do que se vê na foto, de outro lado. Em suma, uma
espécie de redundância. Em outras palavras, Bateson considera que, de
um simples ponto de vista descritivo, a fotografia não basta. De fato,
toma-se totalmente imprescindível para nossa compreensão que Bateson
— que estava no campo e que tomou a fotografia — nos diga por exem­
plo: "uma mocinha segura o cachorrinho quando a outra dispõe as pedras
sobre o chão para fazer uma cama ou um túmulo" etc.
Para se convencer disso, basta tentar reconstruir a legenda a partir da foto
(e constatar, assim, as diferenças com a legenda de Bateson, os contra-
sensos mesmos que introduzimos nela). Pode-se fazer, também, o teste
que consiste em olhar primeiro o texto, mascarando as fotos — esse texto
é preciso, mas abstrato, seco, muito pouco evocador —, depois, fazer o
contrário e olhar as fotografias mascarando o texto — as fotos são ,
evocadoras, mas abrem a uma multiplicidade de sentidos, tornam possí­
veis numerosas interpretações.
f A segunda observação é que uma descrição pura não existe. Toda descri-
j ção, quer seja ela de uma realidade ou de uma imagem, já é uma interpre-
[_J:ação. O que me pode garantir que a interpretação de tal imagem será
correta? A seriedade esperada do etnólogo, talvez, mas mais precisamente
o conhecimento que ele tem das condições nas quais foi realizada essa
imagem. No caso de Bateson, não somente ele estava presente no campo
mas foi ele mesmo quem tirou as fotografias: ele domina ao mesmo tempo
o conhecimento do contexto e a intenção que presidiu à tomada. Isso, evi- /
Sébastien Darbon

dentemente, representa o estatuto ideal para a interpretação, e uma situa­


ção muito mais favorável que a do historiador que trabalha com documen­
tos antigos. Resta, no entanto, que devemos ainda confiar no etnólogo!
Em terceiro lugar, penso que se deva sempre ter em mente, quando se en­
contre diante de uma imagem a propósito da qual se apresente uma inter­
pretação, que as palavras utilizadas para descrevê-la representam menos
essa imagem que o qüèliepensa dela depois de tê-ía visto. MicKaêTBãXandall,
falando da pintura niTSúirõürã~Fo"nnas da íhtenção, escreve: "Numa descri-
/ção, trata-se mais de uma representação daquilo que se pensa a propósito
de um quadro, do que de uma representação desse quadro" (Baxandall,
1991, p. 27). Ou ainda: "[...] um quadro não é uma representação da subs­
tância — ou da Natureza como se dizia desde a Renascença — e, sim, uma
representação de um ato de percepção dessa substância" (Ibid., p. 160).
Enfim, se falei muito da imagem fixa e nunca da imagem animada, é por­
que — parece-me — os problemas qugevoquei, ou o modo como os enca­
rei, podem aplicar-se tanto a uma como a outra. Os trabalhos de Christian
Metz sobre o cinema e, notadamente, sobre a significação no cinema, vão
totalmente na mesma direção. Escrevia ele, por exemplo — e poder-se-
iam multiplicar as referências: "A língua contém palavras (e lexemas), a
linguagem cinematográfica não tem, nele, nenhum 'patamar' semiótico
que corresponda a ele; é uma linguagem sem léxico (sem vocabulário), se
se entender com isso uma lista não infinita de elementos fixos" (Metz,
1968). Todavia, existe talvez, nos chamados cinema e vídeo etnológicos,
uma exacerbação desses problemas. Primeiro, como mostrou excelente­
mente Jean-Pierre Olivier de Sardan, a distinção geralmente feita entre
documentário e filme etnológico permanece amplamente artificial. Os úni­
cos critérios que permitem estabelecer a diferença são da ordem do "esti­
lo" — o estilo etnográfico caracterizando-se por duas propriedades espe­
cíficas que são a emiciàade (a restituição das representações indígenas) e a
descritivida.de (a observação fina dos comportamentos, práticas e interações)
(Olivier de Sardan, 1994, p. 51-64). Em seguida, cinema e vídeo colocam
em cena relações particularmente ambíguas entre imagem e texto. São nu­
merosos, com efeito, os realizadores de "filmes etnológicos" que conside­
ram, com razão provavelmente, que a imagem deve ser privilegiada, re­
duzindo ou suprimindo, então, comentários ou incrustações sobre a ima­
gem. A informação etnográfica e as interpretações etnológicas daquilo que
está dado para ver, apagam-se, no caso, em proveito da sensibilidade e da
emoção. Ao inverso, alguns realizadores, provavelmente frustrados pelo
fato de a imagem não chegar por si própria a produzir o equivalente de
um discurso científico, sobrecarregam a película com explicações sonoras
ou visuais. Se é pouco provável que a etnologia lucre com esse tipo de
realização (levando em conta, notadamente, o fato de que o desenrolar da
imagem impõe seu próprio ritmo, muitas vezes incompatível com o ritmo
do discurso), é certo, desta vez, que o cinema acaba perdendo muito: para
dizê-lo claramente, esses filmes são a tal ponto indigestos que se consti­
tuem numa negação daquilo que faz a especificidade e o interesse da "lin­
guagem" cinematográfica. Assim sendo, o filme etnológico continua osci­
lando entre essas duas exigências contraditórias, nunca simultaneamente
satisfeitas: dar a sentir e dar a entender.
O etnólogo e suas imagens

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Tradução do original francês por Etienne Samain.

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