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92 | 2011
Número não temático
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Centro de Estudos Sociais da Universidade
de Coimbra
Electronic version
URL: http://rccs.revues.org/3970 Printed version
DOI: 10.4000/rccs.3970 Date of publication: 1 mars 2011
ISSN: 2182-7435 Number of pages: 51-73
ISSN: 0254-1106
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Adilson Gennari e Cristina Albuquerque, « Globalização, desemprego e (nova) pobreza: Estudo sobre
impactes nas sociedades portuguesa e brasileira », Revista Crítica de Ciências Sociais [Online],
92 | 2011, colocado online no dia 01 Novembro 2012, criado a 30 Setembro 2016. URL : http://
rccs.revues.org/3970 ; DOI : 10.4000/rccs.3970
ADILSON GENNARI
CRISTINA ALBUQUERQUE
Introdução
A globalização constitui‑se hoje como uma chave analítica incontornável
para a compreensão do conjunto de exigências, constrangimentos, poten‑
cialidades e transformações1 ocorridas, em diversos contextos, sobretudo
nas últimas décadas.
Muitos analistas tendem a conceber a globalização como um fenómeno
essencialmente económico, traduzido no incremento das trocas comerciais
internacionais e do fluxo de capitais, secundarizando, desse modo, as dimen‑
sões de interdependência a nível político, social, cultural e tecnológico que
1
Mudanças essas que evidenciam novas configurações do regime capitalista avançado, e do estatuto
do trabalho nas sociedades contemporâneas, a que Offe (1989) chama “capitalismo desorganizado”
e Sennet (2001) “capitalismo flexível”.
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3
O valor apresentado, no final de Março (2011), pelo Instituto Nacional de Estatística, de 8,6%,
foi corrigido na sequência do pedido de resgate financeiro à União Europeia e ao Fundo Mone‑
tário Internacional, para 9,1%, devido ao enquadramento de contratos envolvendo parcerias
público‑privadas (PPP).
4
Embora o desenvolvimento do sector das energias renováveis seja de salientar no contexto
português como um dos mais elevados da União Europeia.
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Genericamente, o ProUni é um programa federal focalizado que procura incluir estudantes
pobres e negros no ensino de nível superior com a oferta de bolsas integrais e parciais no ensino
superior privado. Já o programa Bolsa Família prevê a dotação de uma quantia em dinheiro (até
ao máximo de 200,00 reais) para famílias carentes com renda inferior à linha da pobreza, condi‑
cionada à manutenção dos filhos na escola pública e à regularidade na vacinação das crianças.
6
A centralidade deste debate decorre, desde logo, da importância assumida pelo trabalho assala‑
riado como mecanismo de integração e de reconhecimento social, e mesmo moral, no âmago dos
processos de coesão social. Como evidencia Schnapper (1998: 15), “se hoje devemos repensar o
estatuto do trabalho, devemos fazê‑lo sem negligenciar este elo original, que continua a ser fun‑
damental, entre o trabalho produtivo e a cidadania. O cidadão moderno adquire a sua dignidade
trabalhando”. Nesta perspectiva, reflectir sobre os fundamentos e dimensões do trabalho constitui
‑se como um ponto de partida incontornável para a determinação dos fins colectivos a efectivar,
sobre a relação entre os ditos fins e as opções económicas e sobre os papéis a desempenhar pelos
cidadãos. Em suma, sobre as bases de um (novo) contrato social, reinterpretado à luz dos atuais
dados económicos e políticos em sociedades globais.
7
O Relatório da OIT sobre Tendências Mundiais do Emprego (ILO, 2009) identifica 212 milhões
de desempregados no mundo (aumento sem precedentes de 34 milhões de pessoas por referência
a 2007 antes da crise global), destacando o aumento previsível de 3 milhões de desempregados,
só no contexto da União Europeia (UE), no ano de 2010 (a taxa de desemprego na UE em 2009
situar‑se‑ia, de acordo com o mesmo Relatório, em 8,4% contra 6% em 2008 e 5,7% em 2007).
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Esta situação é actualmente tanto mais grave quanto a UE se confronta com a necessidade de
equilíbrio das finanças públicas e de controlo da dívida em diversos países, nomeadamente Portugal,
Espanha, Irlanda e Grécia, condicionando, entre outros aspectos, a amplitude e a preservação de
apoios sociais e a consequente centralidade em mecanismos de governabilidade e de estabilização
financeira.
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2010 2011
Ano 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009
Dez. Abril
Portugal 4,1 5,1 6,4 6,7 7,7 7,8 8,1 7,7 9,6 11,2 12,6
UE 8,5 8,9 9,0 9,1 8,9 8,2 7,1 7,0 8,9 9,5 9,4
9
Taxa de desemprego calculada de acordo com uma nova forma de cálculo do número de
desempregados através de questionários telefónicos e da utilização de novas tecnologias. No
cenário de manutenção do processo de cálculo anterior estima‑se que a taxa se situaria em 11,4%
(INE, 2011). Entretanto, os últimos números divulgados pelo Eurostat, referentes a Abril de 2011
(Newsrelease Euroindicators, seasonally adjusted unemployment rates, Abril 2011), situam a
referida taxa já em 12,6%.
10
De acordo com os dados do 1.º trimestre de 2011 (INE, 2011), o número de desempregados de
longa duração (ou seja, à procura de emprego há 12 ou mais meses) correspondia a 53% (dos quais
29,3% procuravam emprego há mais de dois anos) da população desempregada total.
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Ano 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010
Fonte: Eurostat, EU LFS (Employees with a contract of limited duration, annual average), 2010.
11
“The concepts of ‘temporary employment’ and ‘work contract of limited duration’ (…) describe
situations which, in different institutional contexts, may be considered similar. Employees with a
limited duration job/contract are employees whose main job will terminate either after a period
fixed in advance, or after a period not known in advance, but nevertheless defined by objective
criteria, such as the completion of an assignment or the period of absence of an employee temporarily
replaced. The following belong to these categories: Persons with seasonal employment, persons
engaged by an agency or employment exchange and hired to a third party to perform a specific
task (unless there is a written work contract of unlimited duration with the agency or employment
exchange), and persons with specific training contracts”. http://epp.eurostat.ec.europa.eu/portal/
page/portal/employment_unemployment_lfs/methodology/definitions/. Consultado em Abril 2011.
12
De acordo com o Relatório da Comissão Europeia Employment in Europe 2010, são os jovens
(15‑24 anos) o grupo proporcionalmente mais afectado pela contracção do emprego com o
surgimento da crise internacional (decréscimo de 11,4%). Verificam‑se igualmente grandes taxas
de emprego temporário nesta população: em 2008, 40% dos empregados europeus com idades
compreendidas entre os 15 e os 24 anos possuía uma vinculação temporária. Dados divulgados pelo
INE (2010) sublinham também que é entre a população jovem portuguesa com formação superior
que os contratos a termo e os recibos verdes mais têm crescido (cerca de 129% na última década).
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a lógica da condição salarial não foi inteiramente assimilada, nem as políticas pas‑
sivas, longe dos níveis atingidos na generalidade dos parceiros europeus, cobrem
as necessidades sociais decorrentes da perda do emprego. De facto, a estruturação
do mercado de trabalho nunca generalizou a relação salarial relativamente estável
como forma dominante de uso do trabalho, tal como aconteceu nos países centrais.
De acordo com Gonçalves e Thomaz (2002: 4), o sector informal “estaria ocupando ‘as franjas
13
Ano 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010
Taxa de desemprego 12,6 12,3 11,4 9,8 9,9 9,3 7,8 8,1 6,7
14
Grau de informalidade (%): uma das três diferentes definições do grau de informalidade
oferecidas no Ipeadata com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) do IBGE,
esta taxa corresponde ao resultado da seguinte divisão: (empregados sem carteira + trabalhadores
por conta própria) / (trabalhadores protegidos + empregados sem carteira + trabalhadores por
conta própria). Elaboração: Disoc/Ipea. Actualizado em: 16/02/2011. http://www.ipeadata.gov.
br/Default.aspx. Acesso em Junho 2011.
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talvez as figuras mais representativas do que se chama «nova pobreza» são os traba‑
lhadores qualificados expulsos do seu trabalho devido às reconversões industriais e às
alterações tecnológicas; alguns pequenos empresários, comerciantes, artesãos e profis‑
sionais sem possibilidade de adaptação; pessoas, especialmente mulheres, que tendo
responsabilidades familiares não podem obter trabalho ou que o perdem; pessoas que
se endividam para além das suas posses. Não se trata de indivíduos inconformistas
como no caso anterior; ou inaptos para o trabalho e sem relações sociais; são, sim,
pessoas com dificuldades relacionadas com o emprego e com os seus rendimentos.
melhor forma às pressões globais, coloca hoje o país face a uma situação
de grave crise social.
Um estudo recente sobre pobreza e desemprego na região centro de
Portugal, (Hespanha, 2007: 20) afirma que, embora o desemprego, o “mau
emprego”,15 a pobreza e a exclusão social “não se sobreponham necessaria‑
mente, a verdade é que podem encontrar‑se, tocar‑se, cruzar‑se. As fronteiras
entre elas não são estanques. Ao contrário, são porosas e, através de redes
complexas de interdependências, permitem múltiplos pontos de contacto”.
A pressão exercida sobre os mais vulneráveis (os pobres, os idosos, os
menos qualificados, os jovens, as mulheres, os deficientes, os imigrantes),
as inversões em percursos de integração socioeconómica decorrentes de
“ajustamentos” no mercado de trabalho (encerramento de empresas, des‑
localizações, despedimentos, desregulamentação de direitos laborais), os
baixos salários16 e as restrições em termos de apoios sociais (com critérios
cada vez mais selectivo e pouco adaptados às novas situações, mais perenes
e complexas), remetem para situações de pobreza (muitas vezes velada e
gerida em silêncios tácitos) grupos cada vez mais alargados e heterogéneos
de populações, quer anteriormente inseridas socioprofissionalmente, quer
trabalhadores com baixos salários e muitas vezes desprotegidos socialmente.
A nova pobreza está assim intimamente associada às mudanças potencia‑
das pelo novo padrão de produção no quadro da globalização capitalista,
atingindo também a classe trabalhadora activa via mudanças no perfil do
mercado de trabalho. As primeiras grandes reestruturações industriais e a
diminuição consequente do poder de compra dos indivíduos e das famílias
atingidas pelo desemprego, a invisibilidade e falta de protecção inerente ao
sector informal e a inadequação ou ausência de “capital cultural e simbólico”
julgado pertinente face às exigências globais, também têm fortes impactes
nas novas formas de pobreza.
Os estudos de avaliação dos impactes do Rendimento Mínimo Garantido
(Comissão Nacional do Rendimento Mínimo, 2002) no combate à pobreza e
exclusão social em Portugal destacavam já a relação entre o perfil do desem‑
pregado de longa duração e a pobreza.17 As causalidades identificadas foram,
15
Conceito que agrega todas as formas de trabalho de carácter atípico, mal remunerado, geralmente
de curta duração e sem perspectivas de progressão em termos pessoais e de carreira.
16
De acordo com dados do Eurostat (Fevereiro de 2011), o salário mínimo bruto (485 euros) e
o salário médio bruto (1247 euros) português situa‑se a meio da tabela em comparação com os
valores da zona euro. As desigualdades salariais são, no entanto, muito acentuadas no contexto
português (Rodrigues, 2011).
17
O estudo conduzido por Bruto da Costa e colaboradores, de 1995 a 2000, evidencia que cerca
de metade das famílias portuguesas vive numa situação vulnerável à pobreza, mais grave que uma
situação de “risco de pobreza”, uma vez que a pobreza foi de facto vivenciada em pelo menos um
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ano. A identificação das situações de pobreza centrou‑se no nível de rendimentos anuais, pelo que
não se trata de uma ocorrência momentânea, nem tão pouco marginal na sociedade portuguesa.
É antes um problema social extenso e persistente (Costa, 2008: 185).
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a sociedade que se forja no Brasil depois da abolição carrega no seu âmago duas ques‑
tões mal resolvidas do século anterior: as relações agrárias arbitradas pelo patriciado
rural, mediante a lei de Terras (1850), profundamente restritiva ao desenvolvimento
da chamada agricultura familiar; e uma lei de libertação dos escravos que nada regula
sobre as condições de inserção dos ex‑escravos na economia e na sociedade pós
‑abolição. […] Tal sociedade de grandes proprietários de terra e de poucos homens
assimilados ao chamado mercado de trabalho inaugurou o século XX impregnada
pela desigualdade de oportunidades e pelas condições de reprodução humana impos‑
tas à esmagadora maioria dos agricultores não proprietários e trabalhadores urbanos
não inseridos na economia mercantil da época.
Considerações finais
A necessária análise substancial das efectivas condições de vida e de trabalho
das populações, que a mera dimensão estatística tende a ocultar, parece‑nos
pois crucial para uma reflexão profunda sobre os reais impactes dos modelos
económicos vigentes na produção de lógicas (profundas e mais ou menos con‑
sentidas e disseminadas) de ocultação e/ou de reprodução de desigualdades.
O caso português e o caso brasileiro evidenciam os dois lados da moeda
desta reflexão. O caso português, elucidativo da profunda desagregação
social e económica decorrente de processos globais de aglutinação, de
retóricas economicistas e de incapacidade de afirmação à escala mundial,
e mesmo europeia; o caso brasileiro, elucidativo do “milagre económico”,
estatisticamente comprovado, porém ainda não substancial e plenamente
consolidado num prisma de desenvolvimento multidimensional.
Na verdade, os dados referentes ao contexto brasileiro comprovam a
importância do crescimento do emprego, acompanhado de regulação esta‑
tal das formas “selvagens de terceirização” e informalidade (Pochmann
et al., 2007: 6). A tendência de diminuição das taxas de desemprego e de
precarização do trabalho, a par de um crescimento económico (em termos
gerais) regular e de uma maior aposta na educação e na investigação cien‑
tífica, permitem caracterizar o Brasil contemporâneo como um dos países
que melhor se tem adaptado aos desafios globais. Apesar de manter fortes
índices de pobreza e de desigualdade, a par de um mercado de emprego
ainda largamente desestruturado (que ocupa aproximadamente 40% da
população economicamente activa), as tendências de melhoria, sobretudo
ao longo da última década, são inequívocas e permitem afirmar que a
“precarização e a informalização não são tendências inexoráveis, mas que
podem ser controladas a partir de políticas orientadas para o crescimento
da economia e, em particular, do sector industrial” (Leite, 2009: 26).
Portugal, por seu turno, encontra‑se em trajectória descendente em
termos de desenvolvimento económico, como confirmam diversos indica‑
dores. O desemprego aumenta a par do incremento do trabalho precário,
condicionando, de forma negativa, as vivências concretas de largas centenas
de pessoas, com perfis e trajectória de vida diferenciadas. A promoção do
emprego e a afirmação do país no contexto global constituem‑se neste con‑
texto como condições incontornáveis para a minimização dos processos de
precarização laboral e social de largos extractos populacionais.
A nova pobreza tende a constituir‑se como dimensão estruturante das
sociedades globais e, em grande medida, produto dos impactes produzidos
no mercado de trabalho. Os desafios que a este nível se colocam não são
muito diferentes nos dois contextos considerados.
70 | Adilson Gennari e Cristina Albuquerque
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