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PONTO DE VISTA

Motrivivência Ano XXII, Nº 35, P. 202-233 Dez./2010


doi: 10.5007/2175-8042.2010v22n35p202

Tendo em vista a importân- O professor Ricardo Luiz


cia do prof. Ricardo Antunes para os Coltro Antunes doutorou-se em
estudos marxistas da sociologia do Sociologia (USP, 1986) e fez mes-
trabalho e o reconhecimento da sua trado em Ciência Política (IFCH-
vasta obra no Brasil e no exterior, a UNICAMP, 1980). Atualmente, é
Motrivivência tem a honra de apre- Professor Titular de Sociologia no
sentar, nessa sessão “Ponto de Vista”, Instituto de Filosofia e Ciências Hu-
uma entrevista antológica sobre o manas da UNICAMP e Pesquisador
tema da presente edição, “Educa- 1B do CNPq, já tendo sido Visiting
ção Física e o Mundo do Trabalho”. Research Fellow na Universidade
A entrevista concedida ao editor de SUSSEX, Inglaterra. Publicou,
Mauricio Roberto da Silva versa entre outros livros, o célebre “Adeus
sobre as questões atuais do Mundo ao Trabalho?”, que se encontra na
do Trabalho no Brasil e no exterior, sua 13ª edição pela editora Cor-
além da abordagem específica sobre tez, publicado também na Itália,
o Mundo do Trabalho no âmbito da Espanha, Argentina, Colômbia e
Educação Física, Esportes e Lazer. Venezuela.

A ontologia singularmente
humana do trabalho
(Entrevista de Ricardo Antunes, em fevereiro/2011)

Motrivivência: Ricardo, quais as Ricardo Antunes: Trabalho, edu-


dimensões ontológicas e epistemo- cação e formação humana são di-
lógicas que norteiam as relações mensões do ser social muito, muito
entre trabalho, educação e forma- aproximadas. E tratá-las no plano
ção humana? ontológico e no plano epistemológi-
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co nos obriga a fazer uma primeira é absolutamente vital, qual seja: “o


indicação, ainda que muito sintética. que diferencia o arquiteto da abelha,
Quando falamos no plano ontológi- é que o arquiteto já tem pré-ideado
co, naturalmente a nossa referência na sua consciência o prédio que
aqui é marxiana e também lukac- ele quer construir, o produto que
siana. Esta é uma dimensão que ele quer imprimir, em uma forma
remete à concretude do ser. Então, concreta e material”. A abelha não.
o trabalho na ontologia do ser social, A colméia é a mesma há milênios, já
ou numa dimensão ontológica, que os prédios são diferentes. É verdade,
é aquela dimensão estruturante que que os prédios pós-modernos caem,
o trabalho tem na conformação do muitas vezes são mal produzidos,
ser social, seja em sua gênese, no arquitetados e projetados. A colméia
salto do ser pré-humano para o ser em geral só cai quando ela é ataca-
humano, seja na processualidade da. Mas, é evidente que nós estamos
do mundo, na história concreta, tratando aqui da dimensão fundante
seja no vir-a-ser, na medida em que do ser social. Então, primeiro, não
o trabalho tem um papel por certo há trabalho para o ser humano
também transformador. sem o ato consciente de pergun-
tar: produzir o quê e para quem?
Motrivivência: Por isso você diz a Segundo, o trabalho não é um ato
centralidade do ser social. individual, mas sim um ato coleti-
Ricardo Antunes: Exatamente, o tra- vo. De tal modo que é no trabalho
balho é central na vida do ser social que o ser encontra os seus laços de
por múltiplas razões. Primeiro, o sociabilidade mais profundos. E este
homem se constituiu como ser hu- trabalho, se é um trabalho dotado de
mano social porque, diferentemen- uma dimensão humana ou social,
te do animal, ele pergunta. Eu tenho como dizia Marx, ele é um trabalho
que suprir a minha fome. E como criativo e emancipador.
eu vou suprir essa minha fome?
Caçando, pescando, coletando? Motrivivência: Quando está em jogo
O animal não pergunta. O animal a categoria trabalho, pode se dizer
supre a sua fome, claro, instintiva que formação humana e formação
e biologicamente, por sua natureza profissional são a mesma coisa?
biológica. O ser social não. O ho- Ricardo Antunes: Não no sentido
mem pergunta, o ser social, homem humano-social. Tomemos como
ou mulher, ele pergunta. Como é exemplo o trabalho de um artista
que posso fazer determinada coisa? que cria sem imperativos e cons-
Por isso é que o Marx tem aquela trangimentos de tipo nenhum. Va-
passagem seminal n’O Capital, que mos pensar abstratamente, claro.
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Desejo fazer uma obra de arte, Como se sabe, no capitalismo o tra-


como faziam os grandes literátos, balho é central porque cria valor, é
como o fizeram Goethe, Da Vinci, o trabalho que cria riqueza, e como
Michelangelo, Rodin. Claro que o trabalhador ou a trabalhadora
eles tinham seus constrangimentos, criam a riqueza? E quem se apropria
mas era antes de mais nada uma dessa riqueza, não são produtores
criação artística ou que teria sen- (trabalhadores), mas sim a classe
tido. É o trabalho que se confunde que detém os bens materiais e espi-
com o ato catártico da criação. rituais da dominação e do controle
Mas, o trabalho frequentemente material. É a classe dos proprie-
nas sociedades humanas é sofri- tários, a burguesia; e é evidente
mento, servidão, estranhamento, que esse é um trabalho reificado,
coisificação, reificação, alienação. alienado. Neste sentido, Marx faz
São múltiplas e muito assemelha- a síntese mais sublime do pensa-
mento grego, das tragédias gregas,
das as formas, digamos assim, que
do mito de Prometeu, passando por
alienam o ser social, o brutalizam
São Tomás de Aquino, chegando
ou o animalizam. Por isso que Marx
a Hegel e à dialética do senhor e
disse em 1844: “Se o trabalhador
do escravo. Depois de Marx com
pudesse fugiria do trabalho como Weber em sua Ética protestante e
se foge de uma peste”. É um traba- o espírito do capitalismo. Como
lhador – porque Marx sabe que o já mencionei, Marx fez a síntese
trabalhador da sociedade Inglesa mais extraordinária do trabalho. O
dos anos 1840 – trabalharia, se lhe trabalho é ao mesmo tempo criação
deixassem, 17, 18, 19 horas por dia, e servidão. O trabalho pode ser ao
isso há um século, no início da re- mesmo tempo ato de constituição
volução industrial; e foi necessária do ser tornado humano-social, e
muita luta para que só no início também um ato de desefetivação.
do século 19 a jornada de trabalho Esta máxima faz com que, então,
pudesse ser regulamentada, os sin- a centralidade do trabalho gire em
dicatos fossem criados. Então, para torno de algo muito complexo,
fechar esta questão. Um: o trabalho pois, ela contempla dimensões de
é central também porque ele é um positividade e de negatividade.
ato de sociabilidade decisivo. E Isto também cria problemas por-
dois: o trabalho é central no capita- que muitas pessoas acham – e só
lismo. Isso somente para dar umas pode achar isso quem desconhece
notas, porque eu tentei tratar disso o elementarmente o Marx – que Marx
mais longamente n’Os sentidos do só fala do trabalho! Pois Marx é o
trabalho e em outros livros que são mais habilidoso crítico do traba-
mais ou menos conhecidos. lho. Ele é o mais habilidoso crítico
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do trabalho alienado, reificado, decisiva porque é ela que, através


estranhado. O que o Marx projeta das abstrações razoáveis, poderá
é a possibilidade efetiva, no plano ou não apreender o ser social. Vou
ontológico, de um ser livre também dar um exemplo muito simples.
no trabalho. O exemplo é simples, a referên-
cia é extremamente complexa. A
Motrivivência: Você fez um belo obra O capital é um exercício
trajeto para explicar a questão da epistemológico decisivo de Marx
ontologia marxista do trabalho. numa perspectiva ontológica para
E sobre a relação entre ontologia entender a lógica do capital. Não
marxista e a epistemologia, o que foi o Marx que inventou a lógica
você teria a dizer? do capital, nenhuma tese do Marx
Ricardo Antunes: Veja bem, se no é a invenção “de”. Se o Marx foi o
plano ontológico o trabalho é, como primeiro a mostrar a teoria da mais
valia em toda a sua complexidade,
na história do ser humano, ele se
não é porque Marx inventou a teoria
apresenta na dimensão epistêmica
da mais-valia, é porque a teoria da
como capacidade reflexiva. Neste
mais-valia existia no mundo real.
sentido, nós temos de apreender o
E ele se fundamentou em David
trabalho como ele é e não como nós
Ricardo em Adam Smith. Marx
queremos. Em geral, a relação entre descortina, epistemologicamente, o
ontologia e epistemologia foi muito fundamento básico do capitalismo:
mal tratada pelo marxismo. Grande uma extração de mais-valia sobre
parte do marxismo ainda considera o trabalho. Então veja, o plano
a ontologia uma coisa do mundo epistemológico é imprescindível à
da metafísica. É evidente que uma compreensão, o mais plena possível
concepção tradicional de ontologia do plano ontológico. Nesse sentido,
é metafísica. E é evidente que o a ontologia é fundante, porque é o
Lukács foi quem teve o peso deci- ser como ele é. E a epistemologia é
sivo de mostrar, no século XX, que decisiva para a compreensão do ser
o Marx instaurava uma ontologia como ele é. Dou um exemplo, agora
materialista. O que é a dimensão menos abstrato: desde os anos 70 e
epistêmica? Ela só pode se fundar 80, na verdade já desde antes, espe-
no dado concreto. O Marx diz “o ser cialmente na Europa, mas também
é um ser e não um não ser”. Então, nos Estados Unidos, começou a ser
não é a dimensão epistemológica desenvolvida nas ciências sociais,
que funda o ser social. O que funda e nas ciências humanas latu sensu,
o ser social é a dimensão ontológi- uma tese equívoca do fim do tra-
ca. A dimensão epistemológica é balho, da irrelevância do trabalho.
206

Essas teses epistemológicas, cons- é o indivíduo que nós queremos


truções epistêmicas, se mostraram educar? Como é que se educa? O
equívocas. Em pleno século XXI, processo de formação, de educação
na viragem de 2010 para 2011 o se restringe a escola formal ou é um
trabalho permanece e constitui, jun- processo que se inicia quando a
tamente com a questão ambiental, criança nasce e vai até seus últimos
digamos, duas das questões vitais dias de vida, porque educação é um
da humanidade. ato de aquisição de consciência.
Então veja, não é preciso ir longe.
Motrivivência: Então nesse sentido, Um trabalho que desumaniza,
só para gente encerrar esse primeiro uma educação que brutaliza para
bloco, de uma maneira mais sinté- o mercado e uma formação huma-
tica, então essa relação trabalho, na que desumaniza formam essa
educação e formação humana, se sociedade, digamos assim, com
a gente seguir essa dimensão tan- tantos traços de irracionalidade,
to ontológica do trabalho quanto de estranhamento e de alienação
epistemológica, então, são abso- que nós temos. Por que a gente
lutamente imbricadas. Não tem ligou a televisão ontem e viu que
como separar trabalho, educação e nos Estados Unidos um indivíduo
formação humana? matou 19 pessoas ou tentou matar
Ricardo Antunes: Claro que não. 19 pessoas? É porque ele é louco?
Trabalho é uma categoria vital da Ele é louco. E por que os “loucos”
produção. E a produção humana só – entre aspas – abundam na socie-
existe através da reprodução. Então dade? Porque nós vivemos numa
trabalho é produção. Educação e a sociedade enlouquecida. O traba-
formação são esferas decisivas da lho infelicita, ou porque o trabalho
reprodução sem o qual a produção é brutal, ou porque o trabalho é um
não se dá. fetiche, ou porque o trabalho é um
mito de enriquecimento que não
Motrivivência: Você pode voltar a existe, ou ainda porque o trabalho
discorrer, de maneira mais amiúde, não existe, existe o desemprego e
sobre a diferença entre formação a barbárie. A formação humana é
humana e formação profissional? para o indivíduo pensar só nele. É
Ricardo Antunes: Veja, o ato la- o ensino do privatismo. A educação
borativo do trabalho humano traz então é assim: educar para o mer-
consigo a necessidade de pensar cado! Mas nós já sabemos que o
uma educação e uma formação hu- mercado é um Frankstein sem alma.
mano-social de caráter vital. Qual Porque o Dr. Frankstein criou seu
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monstro, a sua criatura, e num dado É um mercado que exige formação


momento a criatura pergunta: “mas profissional para destruir a huma-
você me criou com as pernas de um, nidade. Não é verdade? O que é
a cabeça de outro e de onde vem a um gestor de recursos humanos
minha alma?” Alma no sentido ma- senão um indivíduo que vai extrair
terial, o espírito, o espírito humano, o máximo de um trabalhador de
aquilo que é a síntese do ser, não o uma trabalhadora, para no final
transcendente. “De onde veio a mi- do dia dizer: “você não fez meta-
nha alma. Você não pensou que eu de do que eu esperava. Amanhã
poderia querer ser um ser humano seu emprego não tá dado”. Então,
como os outros?” veja, a formação humana não
poderia ser vista em separado de
Motrivivência: Há no senso-comum uma formação profissional no
acadêmico da Educação Física e até sentido amplo do termo. Eu vou
em outras áreas do conhecimento, dar duas pistas. O Marx, quando
a idéia que confunde formação hu- falava do ensino politécnico, neste
mana com formação profissional. Há caso o Marx também não foi um
também uma crítica, por parte do especialista no tema da educação,
pensamento neoliberal nas universi- a gente não pode imaginar que o
dades que vai dizer que “toda forma- Marx disse sempre a última palavra
ção é humana” e, por isso, formação sobre tudo. O Marx foi um gênio
humana ou profissional são a mesma insuperável na crítica ao capital. E
coisa. Seria a formação humana uma quem tiver melhor que nos ofereça.
compreensão da ontologia marxista Até agora não conhecemos. Isto é
e a formação profissional ligada a uma obviedade. Até os economis-
lógica do mercado? tas burgueses de qualidade sabem
Ricardo Antunes: Fica claro para os disso. Mas, o Marx quando falava
nossos leitores que eu não sou um da educação politécnica pensava
especialista em educação, nem em numa educação que teria que ter,
Educação Física, sou um sociólogo mesmo voltada para uma inserção
do trabalho. Sendo assim, eu vou na atividade produtiva, um ensino
me aventurar a dizer aqui o que é poli, multi, homni e não unilateral.
comum com na importância social, As formações profissionais são, no
humanista e que eu penso a esse meu entender, uma imposição de
respeito. Essa disjuntiva, formação um mercado regido por uma razão
humana e formação profissional é instrumental que tem que qualificar
uma tragédia de uma sociedade o indivíduo para o mercado. Mas o
fundada numa razão instrumental. mercado não é o ente humanizador.
208

Qualquer pessoa com um razoável e passei um mês debatendo em


sentido de humanidade sabe que o longos seminários sobre as questões
mercado é em si e por si fonte de do trabalho. Eu estava intelectual-
desumanização. Não é por acaso mente muito incomodado porque
que hoje no mundo, uma parte im- vinha de dois estudos anteriores,
portante, 20 a 25% da população de alguma profundidade, a minha
humana mais miserável, não tem tese de mestrado, sobre consciência
sequer acesso ao mercado. Outros de classe do operariado brasileiro
20, 30% tem um acesso parcial e nos anos 20 e 30 e a consciência
só uma parcela muito minúscula e o papel das greves operárias
da população, que são as classes do ABC paulista de 1978, 79, 80
ricas e as classes médias altas, se – sobre aquelas greves históricas
beneficiam da riqueza material e que geraram a figura histórica do
espiritual criada. Lula. Esses dois estudos, e mais um
outro que fiz do começo dos anos
Motrivivência: Gostaria que você 90 chamando Novo sindicalismo
analisasse um pouco sobre a evo- no Brasil, me levaram a entender,
lução e os desdobramentos das nos anos 80, trabalho no Brasil,
transformações do mundo do tra- me obrigando assim a fazer uma
balho em seus diversos momentos análise mais global. E eu fui para
históricos, tendo como eixo de a Itália, voltei com essa idéia na
reflexão o acúmulo teórico da sua cabeça, cujo conteúdo resultou,
própria produção acadêmica, no- em 1994, na defesa da minha tese
meadamente, Adeus ao trabalho?, de docência intitulada Adeus ao
Os sentidos do trabalho, Infoprole- trabalho?. Esta tese se converteu em
tários e outras? livro em 1995 e neste procurei me
Ricardo Antunes: Vou tentar fazer concentrar na seguinte pergunta:
resumidamente. O Adeus ao tra- qual era a questão fundamental da
balho? nasceu no início dos anos formulação Adeus ao trabalho?
90. Em 89 eu fui à Itália, então Neste momento, estava lendo a lite-
minha primeira viagem a Europa. ratura da época, André Gorz, Claus
Até então eu conhecia a América Offe, Dominique Mèda, Jeremy
Latina. Quando eu fui à Itália, para Rifkin, Robert Kurz e Habermas –
uma atividade que equivaleria, na com todas as suas diferenças. O que
época, quase a um pós-doutorado, tentei indicar no meu livro é que
na Universidade de Bolonha, em todos eles, com muitas diferenças,
convênio com a Universidade de se constituíam, fundamentalmente,
John Hopkins (campus de Bolonha) em teóricos com visão eurocêntrica,
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afirmando que o trabalho perdera Motrivivência: Você quer dizer da


seu sentido estruturante. Eu dizia, atualidade do seu livro Adeus ao
primeiro, eles são eurocêntricos. trabalho?
Segundo, não é possível você Ricardo Antunes: É, as suas teses
falar do trabalho hoje sem olhar fundamentais se mostraram cla-
a Europa. Mas é impossível você ramente. A tendência dominante
falar do trabalho hoje sem olhar do trabalho nos últimos 20 anos
o sul do mundo. A Europa, como (não a única, eu vou tratar depois
disse Marx, é um pequeno canto do das outras) foi e continua sendo a
mundo, mas é um canto do mundo. precarização estrutural, por isso
É impossível você falar do trabalho que temos desempregos em níveis
sem olhar a China, sem olhar a Ín- brutais. Bastaria pegar os índices
dia, sem olhar a África, sem olhar de desemprego da OIT, mas se a
a América Latina, impossível E eu gente colocar a China e a Índia
nessa história toda, o desemprego,
fui olhar o continente europeu, o
a quantidade de gente hoje desem-
Japão e os Estados Unidos com os
pregada, e precarizada vai somar
olhos do sul do mundo.
muito mais próximo da casa de
Então, qual foi a primeira constata-
um bilhão de homens e mulheres
ção, digamos, entre várias, que fiz
desempregados e/ou precarizados
no Adeus ao trabalho?, na direção
e na informalidade.
contrária ao “fim do trabalho”? A Segundo a tese vital do Adeus ao
classe trabalhadora hoje é mais trabalho?, a informalidade não é um
complexificada, mais fragmentada, desvio de rota é a tendência. Hoje
complexa e mais hetegoneizada e até trabalhos de profissão, aqueles
ainda mais precarizada. Naquela trabalhos que estão no topo das tec-
época havia um conjunto de soci- nologias da informação, muitos deles
ólogos economicistas que diziam o são PJ (pessoas jurídicas), não têm
seguinte: com o avanço tecnológico mais relação de contrato de trabalho.
todo trabalho penoso vai desapare- Então, a informalidade, ela veio não
cer. Essa foi uma crítica dura que fiz como uma exceção no mundo do
nos meus escritos da época. Eu fico trabalho mas como uma tendência
contente, muito contente, eu não muito forte. Foi isso que eu tentei
posso negar isso, que em 2011 (eu mostrar no Adeus ao trabalho?. Co-
publiquei esse livro em 95, portanto mecei a trabalhar o livro Os sentidos
15 para 16 anos depois) esse livro do trabalho em 95 quando publiquei
teve 15 edições no Brasil e foi pu- o Adeus ao trabalho?. E trabalhei
blicado em sete países. nele em 96, 97, especialmente em
210

97 e 98, quando passei um ano norte-americano. Os sentidos do


na Inglaterra, trabalhando na Uni- trabalho, então, é tematicamente
versidade de Sussex onde fiz meu uma continuidade do Adeus ao
pós-doutorado. Neste novo livro, trabalho?, mas ele é um outro
eu queria fazer um acerto de contas trabalho. Quem lê Os sentidos do
com um autor que eu pouco citei trabalho com atenção, vai perce-
no Adeus ao trabalho?, porque até ber que se trata de outro trabalho,
então eu não tinha feito um estudo considerando o fato de que ele tem,
mais apurado do seu texto mais digamos assim, uma preocupação
relevante até aquele momento para mais teórica que eu não poderia ter
o nosso tema de debate, que era o no Adeus ao trabalho?.O Adeus ao
Habermas. Repare que no Adeus ao trabalho? era uma primeira mirada
trabalho? eu não cito a “Teoria da sobre o mundo do trabalho e Os
Ação Comunicativa”. Eu cito outros sentidos do trabalho oferece um
textos do Habermas. Mas, eu dizia, outro desdobramento mais teórico,
a teoria da ação comunicativa ou a mais analítico.
teoria do agir comunicativo, merece
e vai me obrigar a fazer um estu- Motrivivência: Mas isso foi um salto
do mais sistemático. E uma parte qualitativo na sua produção?
importante de 97 eu passei lendo Ricardo Antunes: No Os sentidos
e relendo este autor para preparar do trabalho eu tive que enfrentar a
um debate, entre ele e a ontologia questão da teoria do valor, eu tive
do ser social, do Lukács. Ao mes- que enfrentar o debate da teoria da
mo tempo em que eu estava numa ação comunicativa com o Haber-
universidade de ponta da Inglaterra, mas, tive que fazer uma leitura livre
Sussex, que é a ponta sul da Ingla- e antidogmática do Lukács, que é
terra, que me remete para outra um autor vital para mim, mas sem
Europa, para França, para Itália, ser um lukacsiano dogmático. Exis-
para Portugal, para Espanha, mais tem alguns, cuja produção é, para
para o lado asiático, para o Japão. E dizer no mínimo, muito equívoca.
na Europa eu pude ler muito sobre O nosso desafio hoje não é uma
Ásia, Japão, China, um pouco sobre repetição dogmática de nenhum
a Índia, e muito sobre a Europa, es- autor, nem do mais geral de todos
pecialmente o caso Inglês, laborató- eles que é o Marx. O Marx tem um
rio do neoliberalismo, onde ele está diálogo com as filhas dele que é
sempre acompanhando também, lindo. As meninas perguntam: Pai,
com maior ou menor intensidade, o que você acha disso? Pai, o que
mas sempre acompanhando, o caso você acha daquilo? Pai, o seu poeta
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predileto? Pai, não sei o que? Pai, intersubjetividade, por exemplo a


o seu lema de vida? Sabe o que o arte, a política, a filosofia, a religião,
Marx responde para elas? “Duvidar as esferas mais típicas, digamos
de tudo”. O Marx, que é dogmático, assim, da intersubjetividade, a es-
duvidava das suas teorias. Então, fera do convencimento. Lukács vai
com Os sentidos do trabalho eu dizer, uma não se reduz a outra,
pude dizer qual a teoria do valor mas uma não tem uma ruptura
hoje. E tentei mostrar, com as mi- em relação a outra, é uma espécie
nhas limitações, que o Habermas de um prolongamento muito mais
tem uma enorme limitação. Ele sofisticado que tem continuidade
é eurocêntrico e a disjuntiva que e descontinuidade, mas não tem a
ele faz entre sistema e mundo da tesoura. E, neste sentido, Habermas
vida, que ele acha que é a grande passou a tesoura e, na hora que
construção epistemológica, não passou a tesoura ele perdeu. A teo-
tem, no nosso entender, base onto- ria da ação comunicativa teve seu
lógica. Então, o Habermas faz uma apogeu nos anos 90 no Brasil, neste
sofisticada construção epistemoló- sentido, pode-se dizer que somos os
gica e separa trabalho da esfera do papagaios, nós somos bons papa-
sistema com o mundo da vida, a gaios dos europeus. Nesta década
esfera da sociabilidade, a esfera da só se falava desta teoria. Bom, o
comunicação, da subjetividade, da que a teoria da ação comunicativa
intersubjetividade, como se fossem me ajudou a entender desta crise
dois mundos. E como ele sabe que que quase levou o capitalismo para
esses dois mundos não podem ser o poço, aliás para o poço levou,
separados ele vai dizer o sistema né? Mas, o poço também tem suas
recoloniza o mundo da vida. Mas muralhas e tem seus alicerces, que
afirmar a recolonização do mundo impedem que o poço baixe, que
da vida pelo sistema, ou seja, o acabe ainda mais profundo do que
mundo da vida sendo subjulgado ele está. No que o Habermas nos
pelo capitalismo, dizer que reco- ajudou a entender a crise de 2007,
loniza, é muito pouco. O Lukács, 2008, 2009?
ao contrário, vai dizer que, usando Habermas, no capítulo sobre Marx
uma outra terminologia, as posições e a colonização do mundo da vida,
teleológicas primárias, onde existe não faz nenhuma citação do Marx
a esfera do trabalho, e as posições original. Ele sempre está citando
teleológicas secundárias, onde algum comentador de Marx, é sem-
estão por excelência as dimensões pre segundo alguém, segundo os
mais próximas da interação, da alunos dele, segundo a equipe dele,
212

é sempre segundo alguém. Marx, do Marx é decisiva para entender


não aparece nos textos originais. o mundo contemporâneo.
Poxa, o Weber é sempre citado ali Assim, ao invés de dizer como Ha-
na fonte e o Marx é sempre segundo bermas que a teoria do valor perdeu
um outro autor. Não é que o Ha- relevância porque o trabalho não
bermas não conheça o Marx, não tem mais relevância; significa que
é isso que eu estou dizendo, mas este autor não entendeu uma ques-
é evidente que o Marx faz parte de tão decisiva: que há uma profunda
uma leitura do seu passado. E há interação entre trabalho e ciência.
uma entrevista, isso eu cito sempre, Habermas não foi capaz de enten-
eu precisaria um dia ter paciência der trabalho vivo e trabalho morto.
de buscar e eu vou lembrar de me- Disso eu tratei no Os sentidos do
mória uma coisa que eu li há pelo trabalho. Os sentidos pretendia
menos 20 anos atrás. Eu lembro de compreender, primeiro, o que é
ter lido no antigo “Caderno Mais” a teoria do valor hoje? Segundo,
uma entrevista concedida por Ha- como que o chamado trabalho
bermas à Bárbara Freitag, na qual imaterial, ou que o Marx chama n’O
ele diz mais ou menos assim: “sinto capital e também no Capítulo iné-
que agora para entender a crise dito de “ produção não-material” –
atual dos anos 90, eu teria que ter ela na época de Marx era marginal,
mais densidade na minha leitura da mas já existia – Marx cita inclusive
crítica da economia política com o exemplo do professor, do escritor,
base no Marx. Mas não tenho mais como importantes, comparando
vontade, nem ânimo nem vitalidade com o trabalho material, e como
para fazer isso”. Esta citação não que esse trabalho, digamos assim,
é literal, porque estou lembrando imaterial ou não material é parte
a leitura é o que ficou na minha constitutiva da teoria do valor hoje.
memória. As palavras podem ser Ele não nega a teoria do valor. Ele
outras, mas essa é a substância. é parte. Inclusive este talvez seja
Então, no Os sentidos do trabalho, o elemento que aparece no Adeus
para concluir, tentei trabalhar o ao trabalho?, mas eu retomo no Os
que é a teoria do valor hoje, qual é sentidos para mostrar como o toyo-
o peso da dimensão cognitiva, da tismo se diferencia do taylorismo
informação como parte do mundo essencialmente num ponto, ou o
da mercadoria. O que é a teoria do ponto mais importante. Se o taylo-
valor hoje comparada à teoria do rismo em certo sentido desprezava
valor-trabalho da época do Marx a dimensão cognitiva e subjetiva
e como a teoria do valor-trabalho do trabalho, o toyotismo vai fundar
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a apropriação do valor e do mais em 99, que foi, não posso deixar de


valor sobre a classe operária, sobre reconhecer, um livro que vem me
os trabalhadores e as trabalhadoras, dando muitas alegrias. Em 99 saiu
a partir não só da manualidade, da a primeira edição, em dezembro
fisicidade do seu trabalho, mas do de 2010 saiu a décima segunda
seu intelecto. E eu mostrei como isso edição brasileira. Saiu uma edição
é vital. E isto não estava no Adeus ao na Itália, uma edição na Espanha,
trabalho?, isto é vital para teoria do está sendo traduzido para o inglês
valor. Então é por isso que no debate e para o francês. Em 2005 eu pu-
na teoria do valor eu faço um excerto bliquei um pequeno livro chamado
sobre o diálogo crítico Habermas Caracol e sua concha, com vários
Lukács e tem uma parte que eu cha- ensaios posteriores ao Os sentidos
mei “A classe-que-vive-do-trabalho”. do trabalho, no qual eu desenvolvi
No Adeus ao trabalho? eu usei essa um pouco essa ideia da nova mor-
definição categorial, o que para mim fologia do trabalho, quem é a classe
é sinônimo de classe trabalhadora. do trabalho hoje, como entender
Mas sinalizando que a classe traba- que, digamos assim, o proletariado
lhadora hoje é, por certo, diferente industrial não desapareceu. Se nós
da classe trabalhadora do século formos à Volkswagen hoje, se nós
XIX, uma obviedade que só uma formos à Fiat do Brasil, se formos à
análise muito rústica não apreende. Volkswagen em Portugal, à Fiat na
Nós temos que entender quem é a Itália, à General Motors nos EUA,
classe trabalhadora hoje. Por que se ou à Toyota no Japão, às fábricas
aqueles autores que anteriormente automotivas desses países, vamos
me referi, de algum modo disseram ver trabalhadores e trabalhadoras
a classe trabalhadora não tem mais na planta. Claro que não são os
importância, que ela não conta mais, mesmos trabalhadores e trabalha-
nem numericamente. E eu tento de- doras no mesmo processo produ-
monstrar que ela é vital hoje. tivo na planta taylorista e fordista
de 25 anos atrás. Quem são esses
Motrivivência: E nesse sentido, o trabalhadores? Aí eu publiquei um
livro Infoproletários, por exemplo, livro Caracol e sua concha – que eu
como você o coloca sequência da não explico o título para provocar
sua produção acadêmica? o leitor. Mas aqui numa entrevista,
Ricardo Antunes: Eu citaria outros como esse livro já foi publicado, é
dois estudos junto com Infoproletá- óbvio que eu já posso explicar, por-
rios. Eu terminei o Adeus ao trabalho? que eu não explico o título na capa,
em 1995, Os sentidos do trabalho mas explico no texto. O Marx, num
214

dado momento d’O capital, vai bancários, telemarketing, indústria


dizer assim, que “quando a manu- de tecidos, aqui da região de SC,
fatura separou o trabalho dos meios pelo núcleo de indústria têxtil
de produção, ele fez o mesmo que e de confecções que é forte por
separar o caracol da sua concha”. O aqui, e tantos outros setores que
caracol morre sem a sua concha. En- analisamos. Depois desse livro nós
tão o que é o caracol e sua concha? quisemos enfrentar uma tese, o Rui
É o trabalho e os meios de produ- Braga e eu, que é co-autor comigo
ção. Se nós não formos capazes de no Infoproletários. Existia uma tese
recuperar no século XXI um mundo desenvolvida por Manuel Castells
do trabalho criativo, onde o ser que e por outros, no nosso entender,
trabalha seja ele proprietário dos muito superficial, que dizia assim:
seus meios de produção, que terão os trabalhadores das tecnologias da
que ser coletivos e sociais, nós não informação, estes são os trabalha-
recuperaremos a vida do caracol dores bem sucedidos, felizes, que
que só é possível com sua concha. vivem bem, que estão no topo da
Daí a metáfora. Mas, é também classe trabalhadora. E nós fomos
nesse período, em que publico um ver que as condições de trabalho
livro chamado Riqueza e miséria do dos chamados trabalhadores das
trabalho no Brasil, que são quase tecnologias da informação, tem
600 páginas do trabalho coletivo frequentemente a aparência de um
do meu grupo de pesquisa. Por que, trabalho bem sucedido, mas tendo
depois de ficar duas décadas pra- os condicionantes de um trabalho
ticamente ou uma década e meia precarizado, informal, desprovido
olhando detalhadamente o mundo de direitos, fundado em metas e
do norte, o nosso grupo de pesquisa competências que levam até ao
na UNICAMP, meus orientandos suicídio. Como um exemplo disso,
de doutorado, pós-doutorado, pode-se lembrar dos vinte e cinco
mestrado e de graduação, resolve- trabalhadores que se suicidaram
mos nos dedicar aos estudos do na Telecon France. Isso aconteceu
mundo do trabalho no Brasil. Em nos últimos dois anos e meio, em
categorias das mais diferentes, dou função do processo de privatiza-
dois exemplos limite: dos cantores ção e da implantação do sistema
líricos, as formas de degradação do de metas da Telecon na França.
trabalho do cantor lírico, às formas Os suicídios no Japão existem há
de degradação do trabalho mais décadas, constituindo num dos
informal dos informais: os came- traços do capitalismo japonês. O
lôs. Nós estudamos metalúrgicos, karoshi japonês. Veja a filmografia,
Ano XXII, n° 35, dezembro/2010 215

nos últimos vinte anos ninguém destaque especial ao filme do Élio


mais falava de trabalho, os filmes Petri, A classe operária vai ao pa-
falavam de clima de trabalho. Os raíso, dos anos 60. Por que o tema
filmes falavam de tudo, menos de do trabalho voltou? A França tinha
trabalho. Se você pegar os filmes até o ano passado, segundo dados
mais importantes desses últimos não oficiais, uma estimativa – eu li
quatro anos na França são todos e estou lembrando de memória, de
sobre o trabalho. um artigo da Danièle Linhart, que é
uma socióloga francesa muito qua-
Motrivivência: Você pode enunciar lificada, que eu publiquei um livro
nomes de filmes que tratem das ma- dela na minha coleção “O mundo
zelas do mundo do trabalho? do trabalho”, pela Boitempo – de
Ricardo Antunes: Por exemplo, que são cerca 300 suicídios por ano
filme O corte, de Costa-Gravas, que decorrem do trabalho. O Chris-
no qual está em jogo um gerente tophe De Dejour tratou disso.
desempregado com 40 anos e que
não consegue mais trabalho. Motrivivência: Você está se re-
Há também o filme do argentino ferindo aos aportes teóricos que
que dessa nova geração argentina envolvem a problemática “Saúde,
– Marcelo Piñeyro –chama-se El trabalho e sofrimento”?
método. O filme conta a história so- Ricardo Antunes: Claro, a saúde
bre a disputa de cinco, seis ou sete corpórea e mental. Um indivíduo
jovens por um posto de trabalho. que é execrado pelos demais por-
Outra produção cinematográfica é que é improdutivo, porque é lento.
o clássico filme inglês do final dos Na nossa pesquisa sobre Riqueza e
anos 80, The Full Monty, lançado miséria do trabalho há depoimentos
entre nós com título Tudo ou nada. de jovens trabalhadores que dizem:
Neste, uns quatro ou cinco desem- na hora que nós temos que cortar al-
pregados ficam nus perante uma guém da nossa equipe, nossa célula
plateia de mulheres desesperadas de produção tem 7 ou 8 pessoas, já
para ver o show de quatro ou cinco teve filho que votou no corte do pai.
homens nus. É uma metáfora genial. Porque o pai tem 40 e poucos anos,
Eles não tinham mais emprego... Eu o filho tem 20 anos, quem é mais
citaria vários, há um conjunto imen- produtivo? É o menino que está ma-
so de outros filmes que certamente lhando lá, virilidade lascada. O cara
não vou lembrar agora. Uma coisa de 40 já não topa qualquer negócio.
é certa, a problemática do traba- Então na hora de cortar, bom, pai, é
lho continua a ser abordada, com em você que eu vou ter que votar.
216

Você imagina para um filho votar objetivo entender esses trabalhado-


por dados objetivos na demissão res das tecnologias da informação
do pai? Então, os adoecimentos, e das comunicações que Manuel
os sofrimentos, os estranhamentos, Castells e outros achavam que era o
os fetichismos. Nós pesquisamos máximo do trabalhador, quando na
também no Riqueza e miséria os verdade eles vivem as penúrias de
bancários. Quantos trabalhadores um proletário na era informacional.
do Banco do Brasil que com o PDV Por isso, chamamos Infoproletários.
(plano de demissão voluntária), Como é o subtítulo? A degrada-
buscaram suicídio. Numa cidade ção real do trabalho virtual. Por
do interior ser do Banco do Brasil exemplo, no telemarketing, há um
era status. A pessoa tinha a con- controle do chamado tempo médio
ta garantida, reconhecido como de operação, é o controle do tempo
“aquele não atrasa pagamento”. que a telefonista ou que o jovem,
Status de ser bancário do Banco
homem ou mulher, ficam no tele-
do Brasil. De repente o Banco do
fone respondendo. Se ele passa o
Brasil manda para ele uma carta
tempo médio ele sofre intervenção
“você foi escolhido”. Olha o nível
porque ele não está sendo produti-
de indigência que chegou o Banco
vo. Há a perda da voz, há doença,
do Brasil semi-privatizado, isso na
enfim, há agressão que muitas vezes
era Fernando Henrique Cardoso. E
essas tendências continuam. Você uma trabalhadora de telemarketing,
vai para esses bancos estatais que 70% desse conjunto é feminino,
tem uma pragmática semi-privatiza- recebe. Essas trabalhadoras sofrem
da. É uma tragédia. Nesse sentido de agressões, porque o consumidor
as mudanças são muito pequenas. que liga joga todo seu ódio, por
Veja o que dizia um documento vezes, justo contra a empresa priva-
de demissão do Banco do Brasil tizada, mas joga contra a coitada da
na época do Fernando Henrique trabalhadora que está lá. Tem que
Cardoso: você foi escolhido entre responder e não pode ser agressiva
os melhores para se candidatar ao com o consumidor, senão ela leva
plano de demissão voluntária. Você uma dupla penalização. O intento
pode admitir uma coisa dessas? de Infoproletários foi tentar mostrar
Quer dizer, você é candidato a que no século XXI o trabalho das
meter a sua cabeça no cadafalso. E tecnologias da informação também
esse é o teor do Riqueza e miséria. sofre os padecimentos que afetaram
O Infoproletário, como eu estava o mundo do trabalho brutalmente
dizendo, para fechar, tinha como nas últimas três décadas.
Ano XXII, n° 35, dezembro/2010 217

Motrivivência: Nos seus livros uma parte importante da classe


percebe-se que você usa sempre os trabalhadora, seja ela qualificada
termos devastação e destruição das ou não. Eu já entrevistei gerentes
forças produtivas. Neste sentido, que acham que cortar trabalho é
percebe-se que muitos dos colegas normal. Até um dia que eu entrevis-
das universidades que há um certo tei um gerente que estava três anos
exagero nestas expressões. Contu- desempregado. Não encontrava
do, parece que você usa para ca- mais emprego nenhum, porque ele
racterizar a categoria da exploração era considerado velho com 40 anos.
e da precarização da força humana Ele foi virar motorista de táxi. Com o
e do trabalho. Como é que você que sobrou do restinho, do pingadi-
argumenta isso? nho do fundo de garantia dele que
Ricardo Antunes: Vou dar um depois de três anos, ele comprou
exemplo. Eu morava na Inglaterra um taxi. Eu não vou contar para
em 1997, no ano em que trabalhei você o que depoimento que ele me
na universidade de lá, numa cidade deu que é magnífico, só resumir.
classe média alta. Cidade inglesa Ele diz: “eu estou voltando a ter
pequena, bem arrumadinha, cha- um táxi três anos depois porque eu
mada Lewes. E uma vez eu estava não suporto mais o desemprego”.
andando nessa cidade e pedi uma E ele era, pós-graduado em econo-
informação para um inglês: como mia pela Fundação Getúlio Vargas,
eu faço para ir em tal lugar. Ele diz: gerente de um banco público do
“você tem que ir por aqui. Mas, Rio de Janeiro que foi privatizado
não passe por esta rua porque aqui depois. Se isso não for devastação
moram os desempregados”. Daí subjetiva, é pior. Entende?
eu perguntei: “qual é o problema?”
“Ah, ali tem muitos assaltantes”. Motrivivência: Sim, mas os sub-
Então eu perguntaria para o leitor, contratados, os precarizados muitas
se você é considerado pela socie- vezes usam esse argumento, mesmo
dade, por estar desempregado, um no subemprego eles dizem que “é
potencial assaltante, é muito mais melhor trabalhar assim do que ficar
do que devastação, é muito mais desempregado”?
do que violência. Esse indivíduo é Ricardo Antunes: Claro. É isso que
segregado, ele é diferenciado da so- eu estou dizendo. Veja bem, dentro
ciedade porque está desempregado. do capitalismo, é você ser assala-
Ele está desempregado não porque riado do que desempregado. Mas,
ele é ineficaz. Ele está desempre- quando esses direitos começam a
gado porque o desemprego atinge ser dilapidados, você se torna um
218

precarizado, terceirizado, informa- três dólares por dia e; o que é isso,


lizado. Ainda assim, para o tercei- senão uma brutalidade? Eu estava
rizado, é melhor ser terceirizado há uns dois meses no Nordeste,
do que desempregado. E para o depois de fazer uma palestra – vou
desempregado, qualquer emprego é dar este exemplo – fui para uma
melhor do que o desemprego. Mas, praia descansar (eu ia pegar o vôo
são formas de devastação, entende? à noite). Sentei na praia e pedi lá a
É porque o trabalhador se apóia minha água de côco. E do meu lado,
na questão da empregabilidade. O há três, quatro metros, tinha um
termo empregabilidade expressa casal, eles pediram uma coca-cola,
o quê? Trata-se de pura ideologia. batata frita acho que um frapê com
Esse termo quer dizer que você está sorvete de chocolate. Quando eles
desempregado porque você não se saíram, veio uma pessoa da popula-
qualificou, o que é uma mentira. O ção local pobre, viu a comida deles
que tem que ficar claro para o nosso e comeu o resto de batata frita, o
leitor é o seguinte: o sistema capi- resto da coca-cola. Sabe, aquela
talista, a nossa população mundial pessoa comia aquilo como se fosse
hoje, tem entre 4 a 5 bilhões, que a única refeição do dia. Se isso não
compreende a população econo- for devastação social... Ao mesmo
micamente ativa, disponível para tempo que eu lia hoje na Folha de
o trabalho. O capitalismo não tem São Paulo, que a burguesia de de-
condições de incorporar em condi- linquentes de Jurerê gasta 10, 20,
ções dignas metade disso. Não tem 30 mil por dia em champanhe e em
condições. Por que uma empresa quitutes. Que dizer, isto é devasta-
A para concorrer com a empresa B ção social ou não? Os super-ricos,
tem que ser mais produtiva que a digamos assim, cuja boçalidade não
B. Nós temos de 500 a 600 trans- chegou no nível da indigência. A
nacionais no mundo, e uma é mais boçalidade cultural dessa burgue-
produtiva que a outra se ela é mais sia, o seu capital cultural. Ao mes-
enxuta e mais econômica que a mo tempo em que eles têm capital
outra. E as empresas consideram tra- material alto, eles tem um capital
balho os custos, cortam o trabalho, cultural que está ao nível do esgo-
desempregam os trabalhadores. to, entende? Isto é devastação. E se
Então, nós temos que entender é a eu não faço a crítica dura, quem
tragédia social, é uma devastação vai fazer? Para fazer a crítica dura
social. Você ter hoje, digamos um você tem que ter coragem, você tem
bilhão de pessoas ou dois bilhões que ter independência. Um jovem
de pessoas que recebem entre dois, muitas vezes não consegue fazer
Ano XXII, n° 35, dezembro/2010 219

porque o jovem ainda depende, a expressão política do consumo


não é? Eu não dependo. Eu nunca destrutivo, como a praia aqui de
dependi para fazer minhas pesqui- Jurerê Internacional. O Collor é a
sas de nenhuma empresa privada, expressão política da degradação
de nenhum financiamento privado. material da burguesia que vive o
O Robert Kurz é um autor que eu seu frenesi diário, gastando 60 mil
gosto muito, eu polemizo muito reais, enquanto o vizinho, da Ta-
com ele, ele diz que nosso papel pera, não ganha isso em 12 anos.
hoje no mínimo é fazer a crítica ra- Entendeu? É isto. Este foi o Collor.
dical e, nós temos que fazer a crítica Devastou, liberou tudo e iniciou
radical. Não quer dizer que todos a destruição dos direitos. Porém,
os empregos vivenciam a condição o Collor é a irracionalidade bur-
de devastação, eu estou pegando guesa. O seu sucessor não conta,
uma tendência social. Isto é muito Itamar é vice, tampou o buraco. O
importante. seu sucessor é Fernando Henrique.
Ele pensou: vou fazer a política
Motrivivência: Seguindo esse racio- econômica de Collor sem a sua
cínio, eu não sei se você poderia delinquência política. O Fernando
abordar um pouco as chamadas Henrique foi a irracionalidade bur-
políticas públicas ditas de emprego guesa do privatismo do neolibera-
ou políticas públicas para o trabalho lismo no Brasil. A tal ponto que eu
dos últimos governos. Gostaríamos estava na Inglaterra em 1997 para
que você pudesse fazer uma breve 98 e li o editorial do The Economist
análise a respeito dessas políticas, dizendo que era muito importante
enfatizando o que se passou nos que o Fernando Henrique fosse
governos de Itamar, Collor, Sarney, reeleito em 98, porque ele tinha
FHC e Lula. feito em quatro anos o que a Mar-
Ricardo Antunes: Eu vou fazer um gareth Tatcher tinha levado três
flash de cada um porque senão é anos para fazer na Inglaterra. Isso
muita coisa. Sarney foi o último fala por si só. Quando o Lula subiu
suspiro do desenvolvimentismo, um para desmontar o neoliberalismo e
fracasso completo. Ele era o último a política econômica do Fernando
suspiro do PMDB que se julgava Henrique, PSDB e DEM – os demo-
desenvolvimentista na época em cratas eram de uma ironia grotesca,
que começa aqui o florescimento os DEM são antigos PFL, e o PFL é
do neoliberalismo. Collor, a este a antiga ARENA. Eles representam
deve-se a devastação completa. a direita do pior naipe. Essa direita
Um indivíduo, o pior, aquele, é pesada é a direita civil brava. Tem
220

a direita civil, digamos assim, que trabalhou na Universidade Federal


fica no esgoto, são os partidos, es- sabe do que eu estou falando. Eu
ses pequenos, e tem a direita esta lembro que os primeiros anos do
que joga pesado, e tem bons repre- governo Lula houve um aumento
sentantes aqui em Santa Catarina: de 0,01%, quer dizer é obrigado
capital financeiro, saqueador, ultra a dar aumento de salário, eu vou
elitista, que passa longe dos pobres dar um aumento simbólico, 0,01%
porque ele não está acostumado só para dizer que dei. Então, quem
com o cheiro dos pobres. Esse foi o trabalhou na Universidade Federal
Fernando Henrique. Por isso a po- lembra que era preciso fazer greve,
pulação, depois, acabou por eleger isso e aquilo. Sobre o Lula, bastaria
a Dilma em 2010, não porque acha dizer que sua primeira medida foi
que a Dilma vai fazer um grande taxar os aposentados, incentivar os
governo, porque Dilma versus o fundos privados de pensão, fazer
tucanato privatista, é melhor ficar aquelas reformas que o Fernando
o arroz com feijão sofrível do que Henrique não fez, aumentar o supe-
a comida sofisticada que só eles rávit primário e limpar os terrenos.
comem. Então, Fernando Henrique O primeiro governo do Lula foi uma
foi uma política social restritiva, que tragédia completa. E terminou o
no máximo se parecia, como diz na governo Lula com o mensalão de
Folha de São Paulo há 20 dias atrás 2005. O mensalão não foi uma
num artigo, com a esmola que a conquista, um movimento da di-
classe média dá para os pobres no reita, não foi. O Lula só não caiu
final da missa de domingo. em 2005/2006, porque nenhuma
grande burguesia é louca de de-
Motrivivência: Mas, e o primeiro mitir um presidente que é popular
e o segundo mandatos do Lula, o e que mantém uma economia em
que representaram para a classe um nível de estabilidade magistral.
trabalhadora? O Lula disse, várias vezes no seu
Ricardo Antunes: O Lula sobe governo, e a única coisa que eu
em 2002, nós vamos perder dois concordo de tudo isso, a única que
minutos com o Lula, não vale a eu assinaria em baixo, foi o fato de
pena mais que dois minutos tam- dizer “que nunca ninguém ganhou
bém. Muita perda de tempo. Dois tanto dinheiro no meu governo
minutos com o Lula, não mais. quanto os bancos”. Ele cansou de
O primeiro governo foi uma pura falar isso. Se você puxar na impren-
continuidade, mais intensa, do go- sa, no google, você vai ver quantas
verno Fernando Henrique. Quem vezes ele disse isso. Ele deve ter
Ano XXII, n° 35, dezembro/2010 221

falado centenas de vezes. Ele tem nenhum centavo do grande capital,


razão. Isto basta para quem é de mexendo na fatia dos assalariados
esquerda. Um governante que se ele fez com que uma parcela mais
vangloria de ter dado os mais altos pauperizada e miserabilizada rece-
níveis de lucro para os bancos no besse as migalhas da Bolsa Família,
Brasil. Eu tenho que ser breve aqui, que é puro assistencialismo.
mas só um paralelo do governo Lula
e a burguesia. Nunca a burguesia Motrivivência: Está se referindo ao
ganhou tanto dinheiro do Brasil chamado Neoliberalismo social?
quanto na ditadura, com uma di- Ricardo Antunes: Para ser mais
ferença, isto é importante dizer, rigoroso, é o que o Guiddens se-
Lula nunca foi ditatorial. Eu estou guido pelo David Miliband, que
falando em paralelo com a ditadura é o filho do velho Ralph Miliband
no plano dos níveis da acumulação. inglês, chamaram, na Inglaterra nos
O Lula tem uma sacada genial. O anos 97/98, de “social liberalismo”,
Lula sabe. Ele é por excelência uma que, aliás, ambos propugnaram
variante de um bonapartismo, eu e defendiam. Um misto da social
não tenho tempo de explicar aqui, democracia com os fundamentos
é o homem da conciliação. O Lula do neoliberalismo. E é evidente.
quer o país do capital e do trabalho No governo do Fernando Henrique
integrado. Então o Lula diz: “eu qual era o aumento no salário mí-
garanti os primeiros quatro anos, nimo? Irrisório! O Lula, no segundo
desse bolo aqui, tudo isso aqui ficou momento, no segundo governo,
para vocês. E esse aqui ficou para os aumentou um pouco mais. O salá-
pobres. Para os miseráveis. Isso foi o rio mínimo brasileiro é indecente
primeiro mandato. O segundo man- hoje. Nós estamos vendo agora, o
dato, sem a base que o Lula teve no governo está batendo o pé nos R$
primeiro, porque a base dele, ele 540,00, quando podia dar muito
odiou no primeiro mandato. Você mais. Acabou a campanha, agora
lembra como o Lula foi eleito em voltou o modus operandi anterior.
2006 com o Alckmim? No segundo Mas é evidente que os argumentos
turno. A população falou, você vai do salário mínimo irrisórios do
ganhar do Alckimim porque ele é o governo Lula, comparados aos do
privatista, é o homem da Opus Day. Fernando Henrique, parecem subs-
Esse não dá. Mas o Lula teve que tanciais. Está dando para entender?
suar a camisa. E o segundo man- E os pobres, eles percebem. E o Lula
dato o Lula fez, e isso é importante tem um traço que é genial. O Lula
dizer, uma alquimia: sem tocar em vai entrar para história do século
222

XX como o novo Getúlio. O Lula disso! Embora muitos deles sub-


fala para os pobres. O Lula elabo- jetivamente odeiem o Lula. Por
rou uma arquitetura política que que eles odeiam o Lula? Porque
governa para os ricos e fala para os o Lula ainda tem a cara de um
pobres. O Getúlio fazia isso muito ex-proletário. E a burguesia brasi-
bem, com uma diferença, o Getú- leira, digamos assim, a desfaçatez
lio vinha das classes dominantes, de classe em nossa sociedade tem
era um estancieiro dos pampas. tanta intensidade que ela se assusta
O Lula fala para os pobres e eu já com um indivíduo que tem a cara
chamei isso em alguns artigos que de operário. Entendeu? Ela se as-
eu escrevi sobre ele na Folha de sunta, ela não gosta, ela sabe que
São Paulo, Jornal do Brasil, aliás, ele é um servo dela, mas ela prefe-
eu vou republicá-los, ele é uma ria um servo da sua classe. Houve
variante pícara. Na literatura, a um banqueiro que disse em 2006
literatura picaresca é aquela que – e a Folha de São Paulo publicou
não importa, a cada dia você tem isso, sem dar o nome dele – que
uma história nova. Não importa que “o nosso melhor servidor hoje é
ela seja pura invenção, puramente aquele que foi nosso escravo”,
inverídica. O Lula cada semana tem então se referindo ao Lula.
uma fala para os pobres e é quando
ele envolve os pobres. E ele, esse é Motrivivência: Então, mas nesse
um traço importante, foi o mais im- sentido para a gente ir mais ou me-
portante líder sindical de operário nos encerrando, tem essa questão
da história do país. O Lula não foi da cara sindical do Lula e os rumos,
um mito criado, um mito de areia. as tensões e as contradições do
O Lula criou-se nas lutas sociais, e sindicalismo e diante disso as evi-
o Lula realizou uma coisa que as dências do mundo do trabalho hoje
classes dominantes há décadas, na que são na verdade caudatárias de
verdade há séculos, fazem nesse toda essa experiência sindicalista do
país, que é a possibilidade do self Lula. Quer dizer, como você vê, não
made man, que é a possibilidade de dá para prever o futuro, mas isso já
você, se for lutador, se for brioso, é real, esse sindicalismo que está
se for trabalhador, você chega no que o Lula fez toda as manobras sin-
topo. Então, Lula é um mito. A sua dicais de centrais sindicais, como,
principal conquista é inegável no por exemplo, a CUT, etc. Neste
país do capital e do trabalho. Bom, sentido, concretamente, quais as
por que a grande burguesia está consequências disso para o mundo
satisfeita com o Lula? Por causa do trabalho?
Ano XXII, n° 35, dezembro/2010 223

Ricardo Antunes: Quero dizer o se- de direita, que era, em tese, aliado
guinte: nós criamos três ferramentas a ele, mas o elitismo não permitia
do trabalho muito importantes no ao PSDB dar espaço aos sindicatos.
Brasil nas últimas três décadas: o PT O Lula não. Ele, como eu disse há
em 80, a CUT em 83 e o MST em pouco, foi no passado o mais impor-
84. As duas primeiras foram com- tante sindicalista. Eu disse essa frase
pletamente destruídas no governo e já escrevi isso, o Lula foi o mais
Lula. O PT hoje é uma espécie de importante líder sindical da história
PMDB do século XXI. Isto é o que do século XX no Brasil. Não é uma
o Marx chamava de um partido frase pequena para quem conhece
da ordem que faz qualquer negó- movimento operário ou sindicalis-
cio, qualquer negócio e qualquer mo. É uma frase relevante, e ele foi!
negociata para ficar no poder. Isto dá ao Lula a capacidade que
Bastaria dizer, hoje, para não falar ele teve de revitalizar o getulismo.
de eleição retrasada, até a última Eu dou só um exemplo. O Getúlio
eleição e a eleição passada, que o tinha criado um imposto sindical
Sarney está do lado de Lula, que com o qual um sindicado pode
Jader Barbalho está do lado do Lula. existir sem base, porque dinheiro
Quer dizer, uma parte importante ele vai ter. Esse imposto sindical na
da velha e mais carcomida direita época do Getúlio ia para os sindi-
apoia o Lula. A outra parte apoia catos, para as federações e para as
o Serra ou apoia o Alckimim, quer confederações? O que o Lula fez há
dizer a direita está nos dois campos. dois anos atrás além dos sindicatos,
Um conhecido banqueiro disse na das federações e das confedera-
eleição passada que com o Lula ou ções, o imposto sindical passou a
com o Serra, está tudo garantido, ser recurso vital para as centrais
porque os interesses são os mesmos sindicais. Este foi o caminho da
a economia é a mesma. servidão drástica, esse foi o final
do caminho da servidão voluntária
Motrivivência: E os sindicatos tam- das centrais sindicais ao Estado. E o
bém... estatismo é o caminho da servidão.
Ricardo Antunes: Pois é, os sin- Quando uma central abandona a
dicatos também, porém com uma sua autonomia para ir atrás de verba
diferença. O PSDB, por nunca ter pública, está no colo do governo.
tido nenhuma relação com os sin- O Lula pôs duas centrais que não
dicatos, sempre tratou os sindicatos passavam na mesma rua, no mesmo
com desprezo, mesmo o sindicato ministério.
224

Motrivivência: Com o discurso da no lulismo é impossível. Assim, de


conciliação e do consenso? acordo com as lutas do ANDES con-
Ricardo Antunes: Claro. E com tra o capital, é impossível estar no
benefícios muito poderosos para a governo Lula. É impossível ser base
burocracia sindical. Porque a buro- do apoio do governo Lula, é impos-
cracia sindical era um elemento im- sível conviver com o Lula se não
portante de sustentação do governo aceitar o domínio, o mandonismo
Lula. Você sabe que há centenas de do chefe. O Lula tem uma aparência
dirigentes sindicais que hoje estão democrática. O seu governo não
nos aparelhos de Estado, nos minis- irá para história como um governo
térios, nas secretarias. O Menegueli ditatorial, ele nunca foi. Mas, o Lula
está em um desses canais, está feliz é mandonista. Quem é do esquema
da vida lá, com um salário alto, do Lula está garantido. Então, por
tantos outros conselhos das estatais, isso, essa campanha sistemática
da Petrobras, até no conselho das contra o Conlutas, contra a Inter-
grandes empresas estatais privati- sindical, contra o ANDES, contra
zadas. Então veja, o governo Lula os sindicatos que são críticos do
teve uma capacidade de fortalecer governo. Além disso, os sindicatos
as cúpulas sindicais, enfraquecer a lulistas contam com a burocracia
base operária e de trabalhadores sindical e com um volume imenso
do sindicalismo, em seu benefício. de imposto sindical que vai para as
Basta citar um exemplo que todos centrais. Uma central pode sobrevi-
nós conhecemos: os professores ver só com imposto sindical. Quem
universitários e todo o processo deu de presente isso para? E olha a
de destruição que o governo vem tragédia da história: a CUT –e eu
fazendo há anos com a ANDES. estava no congresso de fundação da
Independente de dificuldades que a CUT – a CUT nasceu dizendo re-
ANDES possa ter tido na sua histó- pudiar o imposto sindical em 1983.
ria, isso é óbvio, nenhum sindicato A CUT em 2011 aceita de muito
passa por uma década, duas déca- bom grado e bate palmas para o
das sem erros. A destruição que o presidente que estendeu o imposto
governo Lula vem sistematicamente sindical para todas as centrais sin-
fazendo para destroçar o ANDES, dicais, com exceção da Conlutas
porque o ANDES não aceitou ser que não aceita. A Intersindical não
cooptado pelos recursos materiais é uma central, mas um movimento
e ideológicos do lulismo; porque o de oposição sindical de base, que
ANDES ainda tem na sua história também é contrário ao imposto
uma vontade de autonomia que sindical. Portanto, a única central,
Ano XXII, n° 35, dezembro/2010 225

pequeninha, que tem a coerência fundada no trabalho auto-determi-


ideológica de repudiar o imposto nado, autônomo e livre, fundado
sindical e não aceitá-lo é a Conlu- em um tempo disponível. Você
tas, porque sabe que a cotização de imagina com as belezas naturais
trabalhador tem que ser autônoma que nós temos, com as riquezas
e independente. naturais que nós temos, com as
riquezas materiais acumuladas;
Motrivivência: Há resistências como o nosso trabalho poderia ser
possíveis no Brasil, diante da co- livre, autônomo, auto-determinado
optação das centrais sindicais pelo embasado no tempo disponível,
governo Lula e agora de Dilma na não para o mercado, mas para as
relação capital e trabalho? Há uma necessidades humanas na socie-
luz no fundo túnel, tanto em nível dade. Então, eu sou daqueles que
nacional quanto internacional, em defende, há uma crise no trabalho
termos de resistência ao capital em abstrato, acho que nós somos contra
crise, consequentemente, da crise o trabalho abstrato. O problema é
do trabalho abstrato, que devasta a que o capitalismo não é contra, ele
subjetividade do trabalhador; que se funda no trabalho abstrato. Bom,
engendra a destruição dos direitos a luz no final do túnel é evidente. É
do trabalhador, através da precariza- muito importante aqui, na história
ção do mundo do trabalho? Há luz dos últimos trinta anos, pois, ora o
no fim do túnel? Com essas centrais Brasil esteve no fluxo da história,
sindicais cooptadas e nas mãos do ora no contra-fluxo. Por exemplo,
governo, é possível encontrar saídas nos anos 80 quando a Europa
de resistência em nível nacional e viveu uma crise no sindicalismo
internacional? profunda, o Brasil viveu talvez a sua
Ricardo Antunes: Primeiro há um década sindical mais forte de todo o
breve entrave teórico, só para deixar século XX. Nos anos 80 nós tivemos
bem esclarecido. A crise do traba- quatro greves gerais volumosas.
lho abstrato para nós não é ruim, é O nascimento da central sindical
boa. Porque nós, na única tradição mais importante de outras, as mais
do Marx, o Marx era um crítico altas taxas de greve do mundo nós
radical do trabalho abstrato. Se um tivemos em 80 quando a Europa
dia o trabalho abstrato deixar de ter e os Estados Unidos estavam na
vigência, uma das possibilidades sua mais profunda crise sindical. A
é de que ele desapareceu porque vitória do Lula em 2002 era pra ser
ganhou plenitude do trabalho a vitória, digo no latu senso, digo
concreto. Estaria numa sociedade o que foi dito anteriormente, para
226

a grande maioria era visto como a da civilização ocidental, pudesse


vitória da esquerda. Hoje ele é, evi- em 2010 viver uma crise profun-
dente, o primeiro a reconhecer que da. Quem podia imaginar que na
não fez um governo de esquerda. França poria até três milhões e meio
Fez sim, um governo para todos, de pessoas nas ruas em passeatas e
o capital e o trabalho emanados manifestações ao longo de sema-
para tornar o Brasil uma potência. nas, três milhões e meio. Quem
O Lula sonha com uma potência podia imaginar que a Espanha faria
energética, petróleo aquecendo e uma greve geral, que Portugal faria
fervilhando o mundo e destruindo o mesmo, que na Inglaterra os jo-
o ambiente. Ele sonha com o país vens saíssem para quebrar. Outro
do Etanol, aquecendo e torrando o dia quase invadiram o palácio de
mundo e o processo de torrefação Buckinghan na Inglaterra.
acelerado. Assim, o Brasil pode ir
chegando no quintal, da quinta dos Motrivivência: E os movimentos de
quintais para quinta economia do resistência anteriores nos anos 90 e
mundo, para poder fazer parte de início do ano 2000, Seattle, Buenos
um mundo destrutivo. É isso. Então Aires e outras cidades do mundo?
é dando migalhas para os pobres, Ricardo Antunes: Estou dando mui-
essa é a diferença que as classes tos exemplos para não voltar em
dominantes não tem migalha. Para Seattle em 97, para não voltar na
o Lula tem, e se a migalha puder ser criação do exército zapatista em 94,
bem feitinha, bem temperadinha, para não voltar na criação do MST e
melhor. Esse é o traço positivo do nas lutas heróicas do MST nos anos
Lula, “as migalhas” tem que ser 90. Para não lembrar que, nos anos
bem temperadas, porque o pobre 2000, 2001, a Argentina, depois seis
merece, digamos, o angu do pobre presidentes da república em quinze,
merece ter o traço do chefe, no sen- vinte dias, criou dois movimentos
tido da cozinha, a marca do chefe. muito importantes: os piqueteiros,
E o chefe é o Lula. Então, melhora manifestações de massa libertários
no tempero... Muito bem, agora se e mais de duzentas fábricas ocupa-
você olhar para o mundo, existem das que eles chamam lá de fábricas
dois laboratórios de transformações recuperadas. Eu conheci quatro
sociais em curso no mundo hoje. A fábricas recuperadas na Argentina.
América Latina e a Ásia. E você tem Eu tive o prazer de lançar dois dos
a Europa pegando fogo em função meus livros, o Adiós ao trabajo? e
da crise européia. A Grécia, quem Los sentidos del trabajo em duas
podia imaginar que a Grécia, berço fábricas recuperadas na Argentina.
Ano XXII, n° 35, dezembro/2010 227

O que é fábrica recuperada? São tesco! Eu não sei se você conhece


fábricas que à nossa maneira cha- aquele episódio, todos conhecem
mamos de fábricas ocupadas pelos aquele episódio, quando ele foi
trabalhadores. Os patrões foram deposto e os golpistas diziam que
embora, eles ocuparam e dizem: ele tinha renunciado, um milhão
vamos cooperativizar e socializar. de pessoas cercaram o palácio de
Vamos fazer uma cooperativa e Mira Flores na Venezuela e diziam:
vamos produzir e, é claro, com as se ele renunciou, que nos diga que
dificuldades porque você produz aí renunciou. Mas, ele não renunciou.
para o mercado, o inimigo está na Ele sofreu um golpe e a constituição
porta. Mas, você pelo menos mostra bolivariana diz assim: o presidente
que é possível ter uma produção só sai assim, assim e assado, golpe
sem patrão interno. São duzentas não! E começava a balançar, um
fábricas. Você vai para Bolívia e milhão de pessoas balançar no
vê, tem um levante indígena e palácio. Por que o povo pobre foi
camponês que colocou um índio na lá, um milhão de pessoas, sem
presidência da república da Bolívia. obrigação, não tinha um partido
Eu não vou discutir agora com você chavista, não tinha sindicatos. Foi
os avanços e limites do governo espontâneo, porque a população
Morales, poderia fazer isso em um pobre percebe aquele que defende
outro momento, mas é um índio os seus. Acabou de sair um dado da,
que está, e com uma diferença, não eu não lembro se é da OEA ou da
é um índio com a cabeça do oligar- ONU, bem simples, reconhecendo
ca, porque daí você poderia dizer: o país da América Latina que nos
mas o Lula não é um metalúrgico? últimos sete, oito anos mais dimi-
Sim, o Lula é um metalúrgico com nuiu a desigualdade social. Foi a
a cabeça do Eicke Batista. Você está Venezuela. Entende?
entendendo a diferença? O Lula é
um metalúrgico que hoje sonha Motrivivência: Então, há, clara-
em ser o Obama. Em poder ser mente, uma luz no fundo do túnel
não sei o que da ONU. Entendeu? iluminando o mundo?
O duro é você ser o Chavez, por Ricardo Antunes: Mas sem dúvida.
exemplo, é um militar de base que E não é o Chavez nem o Morales. O
foi eleito em 99, e de lá para cá ele que eu estou chamando a atenção
só aumentou a sua relação com as é o seguinte: eu fui na Venezuela
classes trabalhadoras. E por que a já duas, três vezes. Tem um pro-
mídia brasileira odeia o Chaves? Por cesso de auto-organização popular
que ele é grotesco? Ele não é gro- na Venezuela. Tem um processo
228

de auto-organização na Bolívia. a China caísse de produção, de cres-


Tem um processo de organização cimento de 12% ao ano foi para 7%
popular na Argentina. Tem um ao ano. Um desinformado vai dizer,
processo de organização popular. mas 7% ao ano é um crescimento
No Brasil houve um processo nesse altíssimo. Na China 5% menos são
momento contrário. Se nos anos milhões de pessoas desempregadas.
80 nós estávamos na frente das Entre os meses de dezembro, janei-
lutas latino-americanas, nos anos ro e fevereiro de 2008 para 2009, lá
2000 nós estamos na retaguarda, se demitiu, em dois meses e meio,
porque nós elegemos um presi- três meses, vinte e seis milhões
dente de esquerda, as bases po- de ex-operários, ex-trabalhadores
pulares pensaram “agora tudo iria rurais que estavam trabalhando na
mudar” e substancialmente nada cidade, vinte e seis milhões numa
mudou. Substancialmente, a estru- cidade. Então veja, essas lutas
tura agrária brasileira é perversa, a sociais têm força. E essas lutas so-
consideração fundiária se mantém. ciais mostram um caráter tenso do
Em nenhum momento o governo mundo. Em síntese: há uma nova
Lula taxou o grande capital. Ao morfologia do trabalho. Essa nova
contrário. No córtex da crise, qual morfologia do trabalho gera uma
foi o receituário do governo dado? nova morfologia dos organismos
Diminuir a tributação da indústria de representação do trabalho e uma
automobilística, da indústria de nova morfologia das lutas sociais.
linha branca, da indústria de cons- É necessário compreender essas
trução civil e pisar no acelerador da lutas, as potencialidades que elas
produção. Então o grande capital têm. Quando os índios da América
está felicíssimo com o Lula, porque Latina e dos Andes lutam contra a
o capital sonha com lucro e com privatização da água. É uma luta
fim de tributos ou redução. É muito nossa ou não? Quando os índios
diferente de Morales. Se você vai dos Andes lutam contra a Vale do
para China, até 2005, tinham cinco Rio Doce que vai desertificar os
mil conflitos na China por ano. Pois solos da Amazônia e da Amazônia
bem, nos últimos cinco anos esses hispânica, da América hispânica
níveis de conflito chegaram a 80 mil, ou Amazônia – e não somente da
90 mil conflitos por ano. A China Amazônia mais outros solos. Por
hoje é um país, digamos assim, claro exemplo, no Chile e do norte da
que quando você fecha uma fábrica Argentina, quando elas vão deser-
na China por causa da crise, a crise tificar e as populações dizem que
fez com que no primeiro momento não aceitam o destroçamento do
Ano XXII, n° 35, dezembro/2010 229

solo para tirar minério, para acabar sindicato vertical, de uma empresa
com aqueles buracos. É uma luta vertical. A empresa modelo do
nossa ou não? A esquerda não pode século XX se horizontalizou, ela se
mais pensar somente que a nossa terceirizou, se externalizou, de tal
luta é a greve. E agora tem muitos modo que a Benetton, ou qualquer
dizendo, a greve acabou. Besteira. empresa hoje, a Nike, estão espar-
Basta olhar. O Brasil tem altas taxas ramadas. Qual a capacidade que
de greve ainda hoje. É que muitas os sindicatos terão desse horizon-
delas são por salários, por conquis- talizar, de compreender essa nova
tas econômicas, como no mundo classe trabalhadora e de aceitar os
hoje a Europa tem greve uma atrás desafios, de perceber quais são as
da outra. Nós temos que entender questões vitais? Eu nunca disse nos
essa nova morfologia do trabalho e meus estudos que o sindicato iria
perceber que elas são a temperatura desaparecer. Mas, eles podem ser
de lutas sociais. Último ponto: há como a CUT é hoje, uma central
quinze anos atrás se eu dissesse sindical burocrática e estatal ou
que o socialismo é uma alternati- como a Força Sindical que, aqui,
va, o pessoal dizia: ih, esse cara é não vamos perder tempo com ela.
antigo. Pois hoje a América Latina
ou a Bolívia fala em socialismo. E Motrivivência: Como você avalia
quando a Venezuela fala em socia- a relevância do tema “mundo do
lismo, países asiáticos? É evidente trabalho” para os intelectuais que
que não será o socialismo do século atuam na Educação Física, Esportes
XX. O socialismo de tipo soviético, e Lazer, quer seja nas universidades,
esse é parte do passado. O que é quer seja nas escolas, academias,
um sistema de novo tipo, porque a clubes, empresas etc.?
questão do trabalho, a questão am- Ricardo Antunes: Eu diria o seguin-
biental, a questão da propriedade a te: de algum modo, essas questões
questão da propriedade intelectual, que nós tratamos aqui estão visce-
a questão dos transgênicos, essas ralmente presentes em todas as ma-
são as questões vitais. Eu tenho dito, nifestações de vida, de produção e
nos meus trabalhos mais recentes, de reprodução no ser social. Então,
que a esquerda e as lutas sociais o que deveríamos fazer, por exem-
ou são capazes de descortinar as plo, em primeiro lugar é perguntar
questões vitais ou não são. Então, “que Educação Física nós quere-
você me perguntava do sindicato mos”? A do corpo sarado, do jovem
como exemplo, para finalizar. O que hoje está se qualificando para
sindicato fordista e taylorista era um amanhã eliminar um concorrente
230

no seu trabalho ou nós queremos um mercado promissor e intocável,


uma Educação Física onde a dimen- no qual os futuros professores de
são corpórea seja um traço da sua Educação Física poderão trabalhar
dimensão humano societal. Qual? nas empresas (ginástica laboral),
Nós queremos um profissional de nas academias, clubes etc. De ou-
Educação Física que seja, digamos tro lado, para aqueles oriundos da
assim, alguém fundado numa razão licenciatura, resta-lhes os salários
instrumental, para prestar trabalho de miséria da redes municipal e
nas academias de musculação das estadual, destinados aos efetivos
classes médias e classes abastadas e aos precarizados (ACT’s). No
desvairadas do culto da beleza fundo, tanto bacharelado, quanto
estético-formal do corpo, ou nós licenciatura estão no mesmo barco
queremos uma Educação Física que da exploração. Sendo assim, per-
perceba que a dimensão do corpo é guntamos: Como você analisa esta
parte fundamental do ser social. O particularidade da área?
ser social é corpo e espírito, espírito Ricardo Antunes: Este exemplo
no sentido materialista do termo, é uma versão triste do nível de
por suposto. Eu estou falando aqui subordinação de um projeto de
sempre a um modo Saramago. A educação a algo que eu chamava
alma é aquilo que nós temos e que anteriormente de razão instrumen-
comanda nosso corpo e é nesse tal. Essa disjuntiva entre bachare-
sentido que eu estou usando, como lado e licenciatura nesses termos
Marx falava, da dimensão também é inaceitável. Por que o mercado
espiritual do ser. A sua dimensão, tem que ter prevalência em re-
não é, digamos assim, irracional, lação à educação e a escola? O
afetiva. Então eu diria que a proble- Gramsci tem uma passagem de um
mática que fere e como uma fenda de seus estudos de juventude que
que rescinde o mundo do trabalho, ele diz: a escola não pode ser uma
cinde a Educação Física. pequena incubadora de demônios,
uniliteralmente formados para um
Motrivivência: É isso mesmo! Cinde mercado destrutivo eu acrescenta-
a Educação Física! Isso é importante ria. Não pode! Na minha opinião,
ressaltar, porque na Educação Físi- um projeto de Educação Física só
ca há, por parte dos capitalistas de pode ser concebido na dimensão e
plantão do sistema CONFEF/CREF, integralidade do indivíduo; afinal
um fetiche ao “Deus mercado”. ele tem um papel decisivo enquanto
Neste sentido há, de um lado, o pri- um ser tornado humano-societal. Eu
vilegiamento do bacharelado como acho muito importante a resistência
Ano XXII, n° 35, dezembro/2010 231

das escolas de Educação Física das mados. A nossa educação tem que
universidades que não aceitam essa ser omnilateral, multilateral. E aí o
subjugação à razão instrumental sentido humano-societal decisivo é
do “educador físico”, formado para definido pelo mercado ou fora dele?
atuar nas olimpíadas, nas empresas, É uma questão elementar. Vital,
enfim no mercado. Porque a velha decisiva e elementar. O mercado é
olimpíada, a das origens, dos gregos profundamente destrutivo porque
até aonde eu consigo acompanhar ele é excludente. Porque a maioria
não tinham um mercado, não tinha esmagadora da população não tem
Nike, não tinha Olimpikus, quer recursos para viver um vigésimo das
dizer, o esporte lá na sua concepção vantagens do mercado. Vive do seu
original era um momento catártico; fetiche que faz com que, em última
envolvia uma disputa que não era instância, porque os pobres na sua
fator de vida e de morte, nem de criminalidade, jovens dos nossos
dinheiro! Era uma disputa, diga- morros de Santa Catarina e de Flo-
mos assim, como um momento no rianópolis, do Rio, de São Paulo –
verdadeiro exercício de um tempo São Paulo não são os morros, não é
livre e não de um tempo que hoje uma cidade com muitas montanhas,
não é livre, porque ele é totalmen- são as nossas favelas. Por que os
te voltado mesmo para um tempo jovens quando roubam os filhos de
de não-trabalho, que é um tempo classe média, a primeira coisa que
subordinado a uma lógica que é o eles pegam são os seus tênis? Eles
consumo. Então, é evidente que, veem o fetiche da Nike, da Olim-
como tantas outras profissões, eu pikus, do que for na televisão, e só
penso, sem ter muitos elementos os meninos das classes médias altas,
para analisar, que não posso con- das classes ricas é que tem o tênis.
cordar que o privilegiamento seja Mas o pobre, por que não pode ter
da educação instrumental e que acesso aquilo? Se o pai do pobre já
seja secundarizada a educação morreu, porque foi executado na
essencial. Não posso aceitar isso, favela, se a mãe tem que vender o
nem nas ciências sociais, nem nas seu corpo fora para sobreviver e não
ciências médicas, nem nas ciências pode educar, como que um filho
biológicas e muito menos na Edu- de uma família pobre, destroçada
cação Física, nas escolas de Edu- vai poder fazer para ter um tênis
cação em geral. Por isso a idéia do iluminado? É esta tragédia que nós
Gramsci: nós não somos celeiros, temos que entender. Ela nos leva
incubadoras, ele usa essa expressão, em última instância ao papel crucial
de monstros uniliteralmente for- da educação. E a Educação Física é
232

parte desse processo de educação. capitalistas do CONFEF-CREF e, é


Quer dizer, aí entra um desafio: claro, contra a regulamentação da
qual a capacidade que nós teremos profissão (MNCR). Encerramos nos-
de reinventar? Eu vejo, talvez para sa entrevista, reconhecendo as suas
indicar de modo otimista, um modo contribuições no âmbito da sociolo-
positivo, não otimista, um modo gia do trabalho, no sentido de trazer
positivo, eu acho que em 2011 nós para o debate as problemáticas do
estamos em condição muito melhor mundo do trabalho no Brasil e no
do que estávamos em 1990. Em mundo, que poderão nos ajudar a
1990, o fim do muro de Berlim, era enxergar a luz no fundo do túnel...
como se tudo tivesse caído. Hoje, Muito Obrigado Ricardo!
o capitalismo é o responsável pelas Ricardo Antunes: Eu me somo
suas mazelas. E se a gente fosse aqui inteiramente a esse movimento,
começar uma entrevista falando de a luta dos profissionais, trabalha-
outras mazelas, bom a gente não dores, educadores da Educação
pararia nunca, porque é evidente, Física é uma luta humano-societal.
o capitalismo é uma máquina, é um É parte de um combate em defesa
moinho satânico. Para fazer uma da humanidade contra as tantas
referência a essa tese, um moinho formas de destrutividade que nós só
satânico produtor, cotidiana e indicamos aqui e, de algum modo,
diuturnamente, de destruitividade contra a tendência da visão pós-
humano-societal. moderna de que uma coisa não tem
nada a ver com a outra. Um pouco
Motrivivência: Nós editores da dos dilemas da Educação Física são
Motrivivência, agradecemos pelas também os dilemas que marcam as
suas contribuições e reflexões. A nossas outras atividades porque,
entrevista aconteceu num clima digamos assim, seus elementos
muito bom, agradável e de muito totalizantes transcendem a Educa-
conhecimento sobre as questões ção Física, transcendem a univer-
pungentes do mundo do trabalho. sidade. Tem a ver com os dilemas
Além disso, foi importante tocar humano-societais. Nós estamos no
no assunto das diretrizes curricula- século XXI e somos obrigados a
res, colocando em cena a divisão pensar que sociedade queremos.
entre bacharelado e licenciatura. Essa sociedade do século XXI, não
Esta entrevista nos dá fôlego para vai ser igual a do século XIX, nem
engrossar a massa de intelectuais a do século XVIII, nem a do século
críticos que lêem essa revista, além XX. Somos obrigados a pensar que
dos movimentos na luta contra os sociedade queremos, que educação
Ano XXII, n° 35, dezembro/2010 233

queremos, que Educação Física


queremos, que ciências humanas
nós queremos, que trabalho nós
queremos. Então, para mim foi
um momento também de bastante
felicidade. Eu espero continuar
esse diálogo que venho tendo, já
há muitos anos, com os meus cole-
gas, com os meus companheiros e
companheiras da Educação Física.
Muito obrigado também!

Contato: rantunes@unicamp.br

N.E.: A entrevista foi transcrita literal-


mente e revisada pelo Prof. Ricardo
Antunes. De comun acordo com a
editoria, ele aoptou manter o tom co-
loquial decorrente da conversa.

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