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Universidade Federal do Rio de Janeiro

Rubens Figueiredo e a (re)volta das engrenagens


por
Fábio Barbosa da Silva

Trabalho entregue ao s Profs. João


Camillo de Oliveira Penna e Paulo
Roberto Tonani como avaliação da
disciplina Território, polícia, literatura.

Universidade Federal do Ri o de Janeiro


Faculdade de Letras
2º Semestre de 2016
Rubens Figueiredo e a (re)volta das engrenagens.

“A hierarquia não perdoa – os dentes engatam e a roda gira. ”1


(Rubens Figueiredo)

1
FIGUEIREDO, Rubens. Barco a seco. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. P:129.
1. INTRODUÇÃO
A escrita de Rubens Figueiredo, a partir do romance Barco a Seco (2001),
adentra com mais ímpeto em questões sociais como a pobreza, violência e a opressão
sistêmica sofrida pela classe mais baixa da sociedade. Em seus dois primeiros livros de
contos, O livro dos Lobos (1994) e As palavras Secretas (1998), o autor procura
vislumbrar questões sociais, mas o tom de seus contos se enreda para um certo exotismo
com aspectos próximos ao realismo mágico.
Essa incursão na temática social tem como pedra de toque questões envolvendo
a pobreza. Este fator está presente em seus três livros mais recentes, o já citado Barco a
Seco, Contos de Pedro (2006) e Passageiro do Fim do Dia (2010). O assunto vai se
aprofundando no decorrer dos três livros. No primeiro, a origem pobre e conturbada do
protagonista Gaspar Dias e sua gana em escondê-la, após se tornar bem-sucedido no
ramo das artes, reverbera em uma certa eugenia para com a figura do Pintor Emilio
Vega. Gaspar Dias tenta reescrever a história do pintor a partir de uma historiografia,
proposta por ele, que retira todo o exotismo e vulgaridade veiculado a figura de Vega,
em um movimento espelhado com que faz com a história de sua vida. Em Contos de
Pedro nos são apresentados nove contos, onde apenas um (“A última palavra”) não
possui em seu centro o tema da pobreza, todos os outros apresentam personagens
incrustrados em sua classe social sem perspectiva de avanço, como o protagonista de “O
dente de ouro” um retirante do Nordeste que se torna o faz tudo de um condomínio, e
tem sua experiência de vida sugada até o ponto de se tornar uma engrenagem no sistema
do condomínio, até o momento que não consegue mais dar conta de seus trabalhos e é
enviado a sua terra natal na mesma condição miserável que veio. Passageiro do Fim do
Dia agudiza a análise da pobreza ao relatar a viagem de ônibus feita pelo protagonista
de uma área central até a periferia da cidade. Durante o percurso o narrador monta a
genealogia de um território favelziado, o Tirol, através das histórias dos moradores
deste local.
Conforme o autor avança no tema, suas personagens vão se tornando estáticas
como nota Marília de Araujo Barcellos: “É que o autor tece as relações familiares,
evidenciando a insignificância, a banalização da vida, a própria solidão e, por vezes,
deixando surgir situações insólitas que envolvem personagens imóveis como pedra. ”2.

2
BARCELLOS, Marília de Araujo ; CHIARELLI, S. . Contos de Pedro, a literatura de Rubens
Figueiredo e os universos da mesmice. In: Stefania Chiarelli; Giovanna Dealtry; Masé Lemos. (Org.).
É flagrante notar que essa imobilidade se apresenta mesmo com personagens em algum
tipo de função social ou trabalho, sendo assim as personagens adquirem a qualidade de
uma engrenagem, um objeto que sem encontra em um trabalho repetitivo, girando e se
desgastando no mesmo local.
Um mundo de engrenagens se aproxima da afirmação de Selvino J. Assmann: “
Um mundo em que tudo é necessário e nada é possível é um mundo sem sujeito, um
mundo sem liberdade, sem possibilidade de criação”3. Devido às imposições sociais os
protagonistas de Rubens Figueiredo estão inseridos nessa mecânica da impossibilidade,
por serem ou pobres, analfabetos, periféricos, crianças, e por isso oprimidos, estas
personagens estão presas a sua rotina em um movimento cíclico observado na maioria
dos textos do autor.
Como forma de rebelião a esse meio opressor, as personagens constroem uma
rota de fuga através da ressemantização das próprias formas que as oprimem, retirando
delas a subserviência ao regime do trabalho. Tal atitude vai de encontro ao conceito de
Profanação exemplificado pelo filósofo italiano Giorgio Agamben, sobre o conceito ele
diz:

A atividade que daí resulta torna-se dessa forma um puro meio, ou seja, uma
prática que, embora conserve tenazmente a sua natureza de meio, se
emancipou da sua relação com a uma finalidade, esqueceu alegremente o
seu objetivo, podendo agora exibir-se como tal, como meio sem fim. Assim,
a criação de um novo uso só é possível ao homem se ele desativar o velho
uso, tornando-o inoperante. 4.

Agamben exemplifica seu conceito com a imagem de um gato caçando um novelo, o


felino continua utilizando seus instintos de caça que são intrínsecos a sua existência,
porém não os aplica em uma presa, mas a um novelo, seu instinto é profanado e no
lugar de contribuir para sua existência se torna uma operação lúdica. O mesmo exemplo
poderia ser dado a partir de Pedro “O dente de ouro”, primeiro conto de Contos de
Pedro, que após perder seu emprego que uma de suas funções era abrir portas, continua

Alguma prosa: ensaios sobre literatura brasileira contemporânea. Rio de Janeiro(RJ): 7Letras, 2007, v. , p.
156-166.
3
ASSMANN, Selvino J. Apresentação. In: Giorgio Agamben. Profanações. Trad: Selvino J. Asmann.
São Paulo: Boi Tempo, 2007. P. 8
4
AGAMBEN, Giorgio. Profanações. Trad: Selvino J. Asmann. São Paulo: Boi Tempo, 2007. P. 74
exercendo a mesma tarefa em uma igreja parcialmente abandonada, abrindo suas portas
para rebanho de cabras.

2. PEDROS
No livro Contos de Pedro o tema da exploração do trabalho é abordado na grande
maioria de seus contos, porém os que apresentam tons mais críticos sobre o tema são os
que envolvem crianças, nos contos “De forno a forno” e “Alegrias da carne”, e
retirantes, em “Dente de ouro” e “O nome que falta”. O grupo de personagens é
incumbido de seus trabalhos sem que haja uma possibilidade de escolha ou saída – as
crianças, que não podem dizer não aos seus familiares, e os retirantes, que não
conseguem dizer não a seus patrões, pois são assinalados pela pobreza e ignorância de
uma vida precária, e se agarram a qualquer oportunidade de subsistir na sociedade,
mesmo que essa oportunidade venha através da exploração de seu trabalho.
Em ambos os grupos de personagens há um esboço de rebelião contra a opressão
que lhes aplaca, porém de formas diferentes. As crianças, por não terem seu
comportamento guiado pelas demandas sociais, possuem a potencialidade de sua
rebeldia; enquanto os retirantes, já consumidos pela necessidade, se “rebelam” no
inconsciente através de comportamentos que os aproximam da loucura.
Do conjunto de personagens analisados Pedro de “O dente de ouro” é o mais
precário, já no terceiro parágrafo o narrador nos coloca a par dessa precariedade ao
dizer como Pedro conseguiu seu emprego: “Mas aconteceu de Pedro conseguir seu
emprego justamente por falta de virtudes”5. O protagonista que trabalha como faxineiro
e porteiro de um condomínio, é totalmente submisso às explorações que as pessoas que
o cercam lhe impõem, se assemelhando a figura de um animal adestrado, como nos
mostra o narrador ao descrever a reação de Pedro ao ser chamado a atenção:

Ele emudecia, encolhia-se um pouco, de certo de estar diante de uma


espécie de divindade, capaz de esmagá-lo com um dedo ou uma palavra
mais forte. Quando esse deus, na forma de um aspirador de pó ou de uma
moradora de voz estridente, enfim se aplacava diante de suas desculpas e
satisfações, Pedro se sentia satisfeito consigo mesmo. Por ter se livrado de

5
FIGUEIREDO, Rubens. Contos de Pedro. São Paulo: Companhia das letras, 2006. P. 9.
um perigo, é verdade. Mas sobre tudo por ter sido agradável a um poder tão
evidente. 6

A figura do animal domesticado como exemplo da brutalidade que o homem pode


produzir em seres para deixá-los submissos e funcionais é muita cara a Rubens
Figueiredo. Em Barco a seco o animal domesticado aparece como o cachorro de Inácio
Cabrera, o antagonista do romance, um cão totalmente silenciado, que, como diz a
personagem, “Faz mais de oito anos que não escuto esse cachorro latir”7. Um animal
que passou por um processo de castração de seus instintos através da opressão, e que
não mais diferencia a mão que afaga da que bate:

... quando a mão de Inácio baixou para aplicar uns tapinhas no pescoço do
animal, que se encolheu um pouco, ao contato do dono. No seu jeito de se
retrair, não reconheci a postura de quem recebe um afago. Vi, isto sim, o
instinto de um corpo que prevê e tenta absorver, por antecipação, a força e a
dor de um golpe. Vi no tremor dos músculos, a memória da lição de que não
há para onde fugir.8

Em seu outro romance, Passageiro do fim do dia, há outra alusão a esse tipo de
opressão, quando Darwin, em sua expedição relatada no livro, compara um escravo a
um animal doméstico, após seus movimentos terem sido confundidos pelo escravo
como uma agressão e o mesmo se colocar em uma posição defensiva:

O homem achou que Darwin estava furioso e que lhe queria dar um murro.
Encolheu-se, levantou um pouco os braços quase na altura do rosto e olhou-o
de lado, tolhido pelo medo. Na certa, tomou a posição em que as pancadas
doeriam menos – ele conhecia esses expedientes, era uma lição segura,
apreendida bem cedo na vida: se não havia como escapar do chicote, sempre
havia um jeito da chicotada doer um pouco menos.9

6
IBIDEM. P. 10.
7
FIGUEIREDO, Rubens. Barco a seco. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. P. 91.
8
IBIDEM. P. 91.
9
FIGUEIREDO, Rubens. Passageiro do fim do dia. São Paulo: Companhia das letras,2010. P. 66.
A partir dessa reação que presencia, Darwin chega à conclusão que “Haviam conduzido
o escravo a uma degradação maior do que a do mais insignificante dos animais
domésticos”10.
Pedro é um animal domesticado, e qualquer tentativa de produzir alguma
subjetividade ou relações que não sejam de exploração são rapidamente vetadas, como
seus pequenos versos que são motivo de risadas para outras pessoas ou o silenciamento
do seu cato no coral da igreja devido aos seus erros de pronúncia e sotaque. Pedro está
fadado a viver em sua cela no fundo do condomínio como um cão, apenas solto quando
necessário.
A partir do contato de Pedro com programas de TV que apresentam narrativas
fantásticas sobre outros planetas, alienígenas e arrebatamentos, ele passa a ter
comportamentos estranhos:

... cumprimentava alguns moradores com murmúrios, em que mastigava o


nome de cobras semidivinas de sua infância. Ou os chamava pelos nomes de
constelações, ou termos colhidos nas aulas de ciências do curso noturno. As
pessoas não entendiam suas palavras, mas notavam uma sofreguidão
estranha na sua presteza, se ressentiam da sua solicitude exagerada. Alguns
se alarmavam com a distância meio cega que percebiam no seu jeito de
olhar.11

Conforme sua lucidez se esvai o personagem começa a perder sua capacidade utilitária
para o condomínio, não faz mais seu trabalho de modo correto e as vezes dorme no
meio de suas tarefas. Não sendo mais útil, os moradores resolvem devolver Pedro a sua
terra natal.

Pedro chega a sua cidade de origem, que se encontra em pleno processo de


modernização, e não se adequando às demandas que mesma produz, ele se torna um
morador de rua. Pedro então passa por outro processo de animalização, deixando de ser
um animal doméstico para se tornar um animal de rua, a quem as pessoas observam e

10
IBIDEM. P. 66
11
FIGUEIREDO, Rubens. Contos de Pedro. São Paulo: Companhia das letras, 2006. P. 21.
ajudam com por pena: “as pessoas lhe dariam comida, ele dormiria no degrau na porta
da igreja, vestiria trapos, mijaria nos muros. ”12.
Corroído pela loucura Pedro então profana suas funções anteriores, ele se torna
porteiro da igreja que protegia quando criança, mas para agora para vilipendiá-la. Pedro
não abre a porta da igreja para pessoas, mas as cabras, as quais ele espantava na
infância, que vandalizam o local. O abrir e fechar das portas não é mais um ato
mecânico na engrenagem do trabalho, mas sim o início de um ritual de profanação que
ressiginifica a utilidade do local e da sua própria função de porteiro:

Formou-se aos poucos um rito comum, no qual, em vez de sacrifícios, se


prezava a digestão do que houvesse. Mas o ponto culminante, para ele, se
resumia em abrir e fechar a porta, receber e despedir-se das cabras. Um
ritual tão completo que poderia até dispensar a vinda mensal do padre, dia
em que a igreja, cheia de gente, ficava irreconhecível, imprestável.13

O outro retirante protagonista do conto “O nome que falta”, mesmo estando em


uma dinâmica de trabalho tão opressiva quanto a do personagem anterior, devido a
questões semelhantes de inadequação social, se apresenta de forma menos passiva para
com o meio que vive. Pedro trabalha no turno noturno durante mais de 12 horas fazendo
os serviços de limpeza, trabalho que começa no mesmo dia em que chega à cidade indo
direto da rodoviária para o local de serviço. Morador de uma favela onde os índices de
violência são altíssimos, a personagem nos é apresentada no texto sob o foco de uma
mira laser de alguma arma de fogo.
Dentro do ambiente de trabalho a passividade de ambos os Pedros é correlata,
mesmo após o trabalho exaustivo na churrascaria, que consome a lenha de seus braços e
pernas, e das sobras de carne queimada que é obrigado a comer no canto, Pedro não se
revolta com seu chefe, que diz está fazendo um favor para seu empregado, mas o
relógio com que o patrão usa para conferir o atraso dos afazeres, a sua reação,
totalmente fora de lugar, vai de encontro a um objeto inanimado e indiferente.
Contrária a essa inércia no trabalho, Pedro tenta quebrar o modo passivo que as
pessoas lidam com a morte no local em que vive. A violência acentuada banaliza as
mortes, que é tratada como algo trivial: “Adultos, adolescentes, crianças, magros,

12
IBIDEM. P. 28.
13
IBIDEM. P. 30.
gordos – os mortos se punham no caminho de Pedro. Já não passavam três dias sem
encontrar rombos de bala nas costas, no peito, na cabeça de um morto. ” 14. O processo
de produção de cadáveres é tão acelerado que se compara a produção de lixo, o
movimento de remoção dos mortos nos sacos do necrotério é análogo ao Pedro
retirando a sujeira da churrascaria nos sacos pretos:

(...)iguais àqueles em que, tantas vezes, perto de sua casa, metiam pessoas
mortas a tiro para carrega-las até um furgão.(...)
As pontas dos pés, os joelhos dobrados, o peso da cabeça: ele ás
vezes reconhecia também o desenho de um corpo humano dentro dos
sacos pretos. De outras vezes, porém, os sacos eram tão semelhantes aos
da churrascaria e os homens do furgão carregavam os sacos com tanto
esforço e com tanto desequilíbrio, tinham seus movimentos tão tolhidos
pelos becos estreitos e empoçados, que aos olhos de Pedro era impossível
as duas coisas não se unirem numa só.“15

Pedro não é indiferente a essa banalização, como podemos perceber no seguinte


trecho:

No lugar de onde Pedro tinha vindo, às vezes morriam pessoas de facão,


de foice e mesmo de tiro. A agressão, o sangue, nada disso era novidade.
Mas aqui ele via tudo se acelerar num tumulto diferente, num desatino que
se debatia e girava sem sair do lugar, que escavava e escavava no mesmo
ponto, apenas mais rápido e mais fundo a cada semana.16

Essa rebelião se materializa na pergunta “o que quer um morto”, quebrando a lógica


narrativa, único momento de discurso direto do conto, onde o pensamento (fala) do
personagem aparece em itálico sem intromissão do narrador – recurso este que será
usado pelo autor novamente em Passageiro do fim do dia.
A partir deste ponto Pedro ressiginifica a relação entre o corpo humano e o lixo.
Respondendo a sua pergunta com a seguinte constatação “ Um morto quer coisas para

14
IBIDEM. P. 84.
15
IBIDEM. P. 88.
16
IBIDEM. P 85.
se distrair. Quer sair do saco plástico preto, abafado e escuro. ” 17
. Pedro resgata esses
cadáveres dos sacos na figura de objetos quebrados, sem utilidade, mesmo as coisas que
funcionam como as luzes de natal, não deveriam estar acessas naquela época do ano.
Em um processo de valoração duplo, corpo deixa de se tornar lixo e o lixo passa a se
tornar corpo, a partir dessa equação Pedro consegue prestar homenagem a seus mortos.
Ambos personagens analisados conseguem produzir uma subjetividade que foge
do regime opressor, com comportamentos análogos aos de seus empregos, um continua
porteiro e outro catando lixo, mas que são desligados de seu valor útil, pois não são
mais regidos pela necessidade imposta pelo trabalho, mas pelo desequilíbrio da psique
de ambos.
Diferentes desses personagens submissos, as crianças que, de certa maneira,
também estão inclusas em um sistema de trabalho exaustivo, burlam os afazeres por
consciência própria, como os jovens ainda não estão totalmente absortos pela
necessidade de trabalhos imposta pelo meio social, seus trabalhos são favores aos
familiares, pois não recebem por isso. Eles conseguem vandalizar a estrutura de seus
afazeres com uma insubordinação que não diz não, mas que trata o trabalho com
indiferença.
A protagonista do micro conto “Alegrias da carne” não é nomeada, é chamada
apenas de menina, e é incumbida de fazer o churrasco na festa de família. Ela trabalha a
contra gosto devido a sua repulsa à manipulação de carne: “O problema para a menina,
não é tanto a fumaceira na cara, mas pegar um a um os pedaços e enfiar nos espetos”18.
Sua lida com o churrasco é motivo de gozação pelos familiares, exceto por um tio
bêbado que a defende.
O clímax do conto acontece quando o tio bêbado se acidenta colocando a mão na
grelha do churrasco. A menina totalmente indiferente ao acontecimento, deixa a pele do
tio assar junto com as outras carnes, como forma de se rebelar contra seus familiares. E
de forma irônica profere a última frase do conto: “Alguém quer mais carne? Está
sobrando.”19
Pedro de “De forno a forno”, jovem filho de uma família de classe média baixa,
possui uma rotina circular diária que se resume a ir ao colégio, retornar e fazer a
entregas das encomendas de empadas da pequena loja de seus pais.

17
IBIDEM. P 95.
18
IBIDEM. P 188.
19
IBIDEM. P. 190.
Pedro percebe esse ciclo e entendo o quão nocivo isto pode ser:

E, de fato, para Pedro aqueles dias não admitiam, por nada neste mundo,
manter-se separados uns dos outros. Em vez de passarem, em vez de cada
dia ceder seu lugar ao dia seguinte, eles se depositavam uns dentro dos
outros, misturavam-se, gota a gota, em uma única poça, cada vez maior e
mais funda. Era mais do que um sinal – era uma certeza. Porque, cedo ou
tarde, tinha de chegar essa hora. A hora em que o mundo espalhado das
coisas se junta, se levanta com todo seu peso e barra o caminho. A hora em
que as pontas dos pés, debaixo da água, procuram o fundo para se apoiar e
não mais o encontram.20

Pedro então usa o incômodo com forma de quebrar o ciclo, seus incômodos e os que ele
causa aos outros. O protagonista se incomoda, mas não de forma indiferente como a do
fluxo de passantes, com o morador de rua encostado na parede de sua escola. Seu olhar
traz à tona a figura do mendigo, que é invisível no meio do fluxo, mas não sem o
desconforto do detalhismo na descrição da ferida purulenta na perna do mesmo. Pedro
tem uma relação de animosidade com o ensino, se recusando a estudar em determinadas
matérias por causa dos professores, e propositalmente tira notas ruins causando
problemas entre seus pais.
A iconoclastia de Pedro é demonstrada através da relação metonímica entre ele e
os micos que invadem a escola e bagunçam o local. Os micos destroem e desorganizam
os documentos e matérias do colégio, e as cenas de estrago são observadas pelos alunos
na manhã seguinte. Pedro então veicula um significado àquilo e o vincula com algo
próximo a sua vida:

... aos olhos de Pedro, aquela destruição rebentou com algo que já estava
latente desde sempre na ordem alfabética e na classificação numérica dos
arquivos e das estantes. O pior é que, mesmo restrita ao espaço de uma
sala, a devastação se apresentava a ele, agora, como a razão de ser de toda
organização, e mesmo de toda obediência.

20
IBIDEM. P. 39.
Assim também, os micos e a loucura deles não pareceram, aos olhos
de Pedro, pertencer a uma esfera de vida totalmente alheia a sua.21.

Importante notar que Pedro é comparado com um animal selvagem, ainda de posse de
seus instintos, diferente dos animais domesticas atribuídos à outras personagens. Pedro
é um bicho selvagem “que marca seu território com urina”22
O desleixo com o trabalho é outra marca de sua rebeldia. Pedro esconde as
gorjetas que ganha dos clientes, dinheiro que poderia apaziguar o ânimo dos pais,
extravia uma empadinha da encomenda para agradar uma menina, que acaba se
tornando sua namorada e com ela tem uma relação sexual na cozinha da lanchonete. Ao
ser incumbido pelo pai de fazer uma limpeza na lanchonete durante o final de semana,
Pedro convence a menina de visitá-lo e antes de qualquer menção ao trabalho os dois
começam a fazer sexo. A narração do ato segue uma normalidade até o momento em
que Pedro se recorda do morador de rua e sua mente focaliza na ferida em sua perna.
Nesse ponto o corpo da menina se metamorfoseia na dita perna e Pedro penetra sua
ferida. O protagonista profana o local de trabalho com prazer e inoperância, o total
inverso do sistema que regia a lanchonete, nem que seja apenas no momento do ato. A
obsessão do trabalho dos pais é redimida no gozo de Pedro, que produz “empadas muito
melhores do que as que sua mãe fazia”23. A profanação deixa sua marca no chão da
cozinha, uma mancha negra comparável a deixada pelos mendigos na parede da escola,
marca da inoperosidade que Pedro deve superar para engrenar no ritmo de trabalho
requerido pela sociedade: “E veio o pressentimento de que, toda vez que ele passasse
naquele ponto da loja, durante os dias e os anos de muito trabalho que o aguardavam no
futuro, seus pés também evitariam pisar ali.”24
Os quatro personagens estudados conseguem transgredir o sistema maquínico de
existência, mas não conseguem de forma plena, pois ou a transgressão é inconsciente
como a dos retirantes ou é momentânea como a dos jovens. A pedra que contesta o
automatismo das engrenagens é lapidada no romance posterior a Contos de Pedro, o
Passageiro do fim do dia. O protagonista se aproxima dos protagonistas do livro de
contos, seu nome também é Pedro, e faz parte da classe média baixa da sociedade.
Pedro parece o passo à frente de seu homônimo de “De forno a forno”, agora adulto, a

21
IBIDEM. P. 37.
22
IBIDEM. P. 39.
23
IBIDEM. P. 53.
24
IBIDEM. P. 53.
relação problemática com o ensino (Pedro larga a faculdade pública de direito) é
semelhante, mas a aproximação mais aguda a ser feita entre ambos é o poder de
observação. O jovem é aquele que no tumulto enxerga o morador de rua e sua ferida, o
adulto potencializa essa característica ao observar inúmeras pessoas e suas marcas
durante sua viagem. A visão de Pedro é fator constitutivo do romance, pois grande parte
da narrativa se dá a partir do que é observado pelo protagonista.
O romance é narrado durante a viagem de Pedro, que vai do centro até a periferia
da cidade, sendo o eixo temático divido em duas partes: o relato da viagem e seus contra
tempos, e a reconstrução de experiências de Pedro e de outras personagens, através da
memória. Pedro é alçado à condição de cavalo do narrador devido a seu comportamento
distraído em face à realidade. Pedro se comporta de forma diferente das pessoas a seu
redor, ele se encontra em uma espécie de anestesia social, como explicita a abertura do
romance: “Não ver, não entender e até não sentir. E tudo isso sem chegar a ser um idiota
e muito menos um louco aos olhos das pessoas.”25. Não que Pedro seja um alienado às
questões sociais, mas sim as demandas sociais, como o trabalho e a escalada social. Os
comportamentos de Pedro não se dão a partir de um paradigma que se encaixe em uma
sociedade utilitarista. O personagem abandona a faculdade pública de Direito, após seis
anos, para vender livros na calçada; a viagem que Pedro depreende durante a narrativa,
diferente das outras pessoas no ônibus, não faz parte de sua necessidade diária, ele não
está retornando para casa depois de um dia trabalho “Ao contrário dos outros
passageiros e apesar de estar cansado, ele não tinha pressa. Não tinha hora para
chegar.”26, o personagem vai de encontro a sua namorada, um ato que poderia ser
suspenso a qualquer momento devido a insalubridade da locomoção, pois a favela está
em confronto, mas que Pedro continua até o fim. É a partir dessa figura despreocupada
que as várias histórias que tecem o livro podem surgir. Como contra ponto afirmativo da
distração de Pedro como a força que move a narração, temos o olhar interessado e
instintivo de seu amigo Júlio, que conversa com as pessoas e as inquire sobre sua
história, mas que não poderia as contar por não ter com eles qualquer relação de
pertença: “Também por isso sentia-se em certos momentos o observador de uma
civilização alheia, um antropólogo amador que trabalho a distância(...)”27.

25
FIGUEIREDO, Rubens. Passageiro do fim do dia. São Paulo: Companhia das letras,2010. P. 9.
26
IBIDEM. P. 26.
27
IBIDEM. P. 77.
Como em Contos de Pedro o trabalho é figura principal na representação do
sistema opressor em que as classes mais pobres estão inseridas. No romance os
personagens são marcados fisicamente pelo trabalho, como Rosane, namorada de Pedro,
que possui sequelas no pulso devido ao trabalho repetitivo em uma fábrica de copinhos
de guaraná, ou seu pai que adquire feridas por causa da lida com cimento na área da
construção civil. Os únicos personagens trabalhadores que não apresentam qualquer
moléstia são os da classe alta, representados pelos juízes que frequentam o sebo de
Pedro. E esse trabalho que deixa marcas não representa qualquer possibilidade de
ascensão social, como exemplificado pelo pai de Rosane, que antes de ser acometido
pelas feridas, participou de parte das construções de condomínios e shoppings e não
possui acesso a esses lugares. A imobilidade social, tema central do livro refletida na
penosa viagem de ônibus que não chega a seu destino, é modus operandi das relações
sociais vigentes, seja ela no macro, como visto na construção do território da favela
Tirol, onde mora Rosane, onde não há qualquer possibilidade de saída da precariedade
em décadas de existência, ou no micro, com pessoas impossibilitadas de alcançar novos
horizontes. Território, ônibus, pessoas – engrenagens que se movem sem sair do lugar.
Pedro mais uma vez é o ponto fora da curva, o único personagem pobre que consegue
algum tipo de ascendência, deixa de vender livros na calçada e consegue abrir seu
próprio negócio de livros, o que acontece não por seu mérito, mas por acidente. Pedro
só consegue esse avanço a partir da indenização que recebe do estado após ser pisoteado
por um cavalo e ter seu tornozelo seriamente lesionado.
Pedro, ao contrário dos outros, recusa o discurso de Darwin, seu interlocutor na
narrativa. Pedro não se adapta, não tenta subir na escala na evolutiva, sabe da falsa
segurança que a mesma proporciona – um dia a vespa vence a aranha no outro a aranha
vence a vespa. Pedro, como Darwin, coleta histórias de adaptação, lutas, vitórias e
derrotas, mas, diferente do cientista, não consegue promulgar uma teoria da evolução
social. Suas histórias apresentam a imobilidade, pessoas presas a suas classes, pedras,
que, como Pedro, precisam se descobrir pedras e com sua inoperância travar as
engrenagens.
BIBLIOGRAFIA:

BARCELLOS, Marília de Araujo ; CHIARELLI, S. . Contos de Pedro, a literatura de


Rubens Figueiredo e os universos da mesmice. In: Stefania Chiarelli; Giovanna Dealtry;
Masé Lemos. (Org.). Alguma prosa: ensaios sobre literatura brasileira contemporânea.
Rio de Janeiro(RJ): 7Letras, 2007, v. , p. 156-166.
AGAMBEN, Giorgio. Profanações. Trad: Selvino J. Asmann. São Paulo: Boi Tempo,
2007.
PATROCÍNIO, Paulo Roberto Tonani do. Passageiro do fim do dia, de Rubens
Figueiredo: um olhar sobre o naturalismo. In: DEALTRY, Giovanna; VIDAL, Paloma;
CHIARELLI, Stefania (Org.). (Org.). O futuro pelo retrovisor: inquietações da literatura
brasileira contemporânea.. 1ed.Rio de Janeiro: Rocco, 2013, v. , p. 100-122.
FIGUEIREDO, Rubens. Barco a seco. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
FIGUEIREDO, Rubens. Contos de Pedro. São Paulo: Companhia das letras, 2006.
FIGUEIREDO, Rubens. Passageiro do fim do dia. São Paulo: Companhia das letras,
2010.

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