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Caminhos para a

igualdade de gênero
entre indígenas
e quilombolas

Miriam Nobre, Neuza Tito e Sonia Coelho


Morna Macleod e Ana María Rodríguez
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Caminhos para a igualdade de gênero entre indigenas e quilombolas

Publicação da SOF Sempreviva Organização Feminista

Organização: Miriam Nobre, Neuza Tito, Sonia Coelho


Edição e preparação de textos: Morissawa Casa de Edição
Projeto gráfico e diagramação: Teti Santiago
Fotos: Sonia Coelho, Bruna Zagatto, Neuza Tito, Fernanda Estima,
Gláucia Matos e Sérgio Roberto Campos

Apoio para esta publicação: Oxfam

SOF Sempreviva Organização Feminista


Rua Ministro Costa e Silva, 32, Pinheiros
São Paulo/SP - cep 05417-080
fone/fax: (11)3819-3876
endereço eletrônico: sof@sof.org.br
página eletrônica: www.sof.org.br

São Paulo, agosto de 2006

SOF Sempreviva Organização Feminista


S644c Caminhos para a Igualdade de Gênero entre
Indígenas e Quilombolas/Miriam Nobre, Neuza Tito,
Sonia Coelho ...(et al.) - São Paulo : SOF, 2006.
44p.

ISBN 85-86548-12-x

1.Gênero 2.População Tradicional 3. Formação 4.


Indígenas 5.Quilombolas I.Título

CDU – 323.15

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Sumário

Apresentação 6

Formação com indígenas e quilombolas na construção de igualdade de gênero 7


POPULAÇÕES TRADICIONAIS E GÊNERO 7
Os desafios a superar 8
Os pressupostos do trabalho de gênero 9
Uma formação construída em processo 11
Um saldo positivo de participação 15
AS ATIVIDADES DE FORMAÇÃO 16
As mobilizações 16
A escolha dos conteúdos e das maneiras de trabalhá-los 16
Metodologias participativas 17
Os temas trabalhados 20
UMA LEITURA DO PROCESSO E DOS RESULTADOS 25
Como as mulheres indígenas avaliaram o processo 27
Como as mulheres quilombolas avaliaram o processo 29
A contribuição das escolhas metodológicas 32
Alguns avanços a partir das atividades de formação 33

Anexo 34

Um canto pela justiça, um canto pela vida digna 36


O REFÚGIO 36
O RETORNO 39
ETNICIDADE, REFÚGIO E RETORNO 41
AS MÚLTIPLAS NEGOCIAÇÕES ENVOLVIDAS EM SER MULHER, ESPOSA, MÃE E DIRIGENTE 41
OS SONHOS PARA O FUTURO 45

5
Apresentação
Este Caderno resgata a experiência do trabalho proposta de alguns povos tradicionais, de estabelecer
de formação da SOF (Sempreviva Organização e negociar patentes em nome da comunidade,
Feminista) com organizações indígenas e quilombolas em contraposição à nossa visão, contrária aos
entre 2003 e 2006. cercamentos, seja da terra, da água, da semente ou
Nesse processo, ampliamos nossa pauta e nossa do conhecimento. Outro tema é como fortalecer as
visão sobre o país. Sentimo-nos desafiadas a contribuir alianças entre as indígenas e quilombolas brasileiras
para que as preocupações, análises e formas de agir com as mulheres dos movimentos indígenas da
das indígenas e quilombolas influenciem o movimento América Latina, que estão vivendo um momento
feminista que, mesmo com o forte protagonismo das importante na definição dos destinos dos povos de
camponesas, ainda tem uma visão muito urbana. regiões andinas e da Guatemala e sul do México.
As lutas das mulheres indígenas e quilombolas Por esse motivo quisemos compartilhar aqui, com as
não estão isoladas das lutas de seus povos, que leitoras e os leitores, a história de vida de Ana María
elas fortalecem, mas não abrem mão de mostrar Rodríguez, liderança indígena e feminista maia, tão
suas contradições e limites. Também nos sentimos bem contada por Morna Macleod.
desafiadas a contribuir para que as agendas A SOF trabalha com formação feminista há
e formas de atuação dos movimentos sejam mais de vinte anos. E tem sentido a necessidade de
influenciadas pelas preocupações e lutas realizadas escrever resgatando nossas escolhas e os processos
pelas mulheres. que desencadeamos ou de que tomamos parte. Este
Durante as atividades de formação ligadas ao trabalho é uma parte dessa história. Talvez seja por
projeto, as mulheres da Omir (Organização de isso que, mesmo sendo ele tão recente, temos a
Mulheres Indígenas de Roraima) nos ensinaram sensação de se tratar de uma árvore frondosa e firme.
como prevenir e punir a violência contra as Ou talvez porque já aprendemos com as mulheres
mulheres resgatando as formas de enfrentamento indígenas e quilombolas uma outra referência de
pela própria comunidade. Nesse caminho, elas tempo, referência essa que fortalece nossa resistência
superaram a negação e a naturalização da violência contra a sociedade de mercado, que acelera o tempo
sexista sem ter como única referência as instituições nos ritmos dos fluxos de capital e quer congelar a
dos brancos e da sociedade nacional, que tantas juventude pela medicalização e pelo consumismo.
vezes representou para seus povos opressão e Agradecemos as companheiras que
mesmo violência contra as mulheres. contribuíram em diferentes momentos deste
As mulheres da Aconeruq (Associação de trabalho: Ana Emilia Moreira dos Santos, Angela
Comunidades Negras Rurais Quilombolas) Sacchi, Aninha Pecci, Beth Mindlin, Bruna
construíram conosco os meios de formar e de Zagatto, Claudia Luz, Fernanda Franco, Gláucia
organizar as mulheres em suas comunidades, muitas Matos, Iranildes Barbosa dos Santos (Olga),
vezes as mais distantes, com estruturas as mais Lavina Alves Salomão, Lucia Andrade, Maria
precárias, mas com pessoas as mais valorosas. Elas Emilia Pacheco, Selma Gomes, Vanessa Caldeira.
nos ensinaram como dar sentido político e realidade A toda equipe da SOF e as pessoas da Omir/Cir,
concreta a termos, como etnodesenvolvimento, muitas Omixuc e Aconeruq.
vezes apresentados como estritamente técnicos.
Temos toda uma pauta de debate ainda não tocada. Miriam Nobre, Neuza Tito, Sonia Coelho
Há o tema da biodiversidade, em que se inclui a Agosto de 2006

6
Formação com indígenas e quilombolas
na construção de igualdade de gênero
Miriam Nobre, Neuza Tito, Sonia Coelho

POPULAÇÕES TRADICIONAIS E GÊNERO


O trabalho com gênero em populações militantes e lideranças de movimentos
tradicionais foi inicialmente colocado para sociais ou agroecológicos.
a SOF por uma organização parceira, a CPI Nossas propostas para ampliar a
(Comissão Pró-Índio), que nos convidou participação dessas mulheres convergiram
a pensar como as mulheres poderiam com seu desejo de ter uma atividade
se envolver com o projeto econômico econômica própria, da qual elas
de beneficiamento da castanha que ela controlassem desde a produção até a
desenvolvia com a ARQMO (Associação dos renda obtida pela comercialização. Uma
Remanescentes de Quilombos de Oriximiná), dessas propostas foi a de transformação
no Pará. Preparamos oficinas junto com a dos ouriços de castanha em belas peças de
CPI e as realizamos em duas comunidades: artesanato que são vendidas em lojas de
uma onde o citado projeto já estava em grandes cidades.
andamento e a outra onde ele se iniciava. Foi devido a esse trabalho que a
Nessa experiência, levantamos os Oxfam* nos procurou para desenvolver
problemas existentes para o envolvimento uma abordagem de gênero no conjunto
das mulheres e discutimos propostas para do Programa Populações Tradicionais,
superá-los. Ficou evidente que o trabalho elaborando política e instrumentos, em
doméstico, o cuidado com as crianças e o diálogo com as contrapartes envolvidas,
calendário escolar destes, e o desestímulo e assim concretizar o objetivo inicial
por parte dos companheiros eram as do Programa, de estimular e apoiar a
principais limitações à participação das participação das mulheres indígenas e
mulheres, pois as restringiam cada vez mais quilombolas como forma de fortalecer
ao espaço doméstico, não lhes permitindo a organização de seus movimentos,
maior apropriação do território que haviam considerando as especificidades de cada
contribuído para conquistar. povo e comunidade.
O trabalho realizado teve muitos pontos A SOF tinha, por outro lado, interesse
em comum com o que a SOF realiza junto em dar prosseguimento ao debate
a trabalhadoras e trabalhadores rurais, e à construção de propostas para o

*
A Oxfam é uma organização não-governamental independente, sem vínculo partidário ou religioso, que trabalha com organizações,
comunidades, povos e populações em mais de oitenta países, na busca por soluções duradouras para a pobreza e para a diminuição do
sofrimento causado por situações de emergência humanitária.

7
enfrentamento da violência contra as
mulheres no meio rural. (Nos processos
preparatórios e de construção de pautas
para as Marchas das Margaridas, em
2000 e 2003, havíamos identificado a
predominância das referências urbanas para
esse enfrentamento, ou seja, equipamentos
como delegacias, centros de referência e
casas-abrigos.) Esse interesse foi discutido
com a ICCO (Interchurch Organisation for
Development Cooperation)* no momento
de renovação de nosso convênio com
ela, que nos propôs considerar também a
realidade das mulheres não-brancas e focar
nossa atuação nas regiões Norte e Nordeste.
material. Dessa forma, é impossível pensar
OS DESAFIOS A SUPERAR gênero em abstrato, sem considerar o contexto
de vida das pessoas, o que torna obrigatório
O fato de a relação com indígenas e abranger no debate a questão indígena e
quilombolas ser colocada para a SOF por quilombola de um modo geral.
duas agências de cooperação (Oxfam e Havia, ainda, a questão de termos já
ICCO) pareceu-nos um desafio bastante uma agenda de trabalho muito extensa,
arriscado. Como não eram as próprias em vista de nossa responsabilidade com
mulheres que nos demandavam apoio, o movimento de mulheres em geral. Mas
o contexto da relação existente entre acabamos por entender que o contato
as comunidades dessas mulheres e as com as experiências de luta das mulheres
organizações que as assessoram ou as indígenas e quilombolas nos permitiria
apóiam financeiramente dava os limites apreender melhor a realidade nacional. Por
de nossa intervenção. Mas confiamos em outro lado, não se tratava de uma atuação
que, com nossa metodologia, poderíamos direta nas comunidades locais, mas junto
realizar nosso trabalho com aquelas a organizações dos movimentos indígena
organizações que o quisessem e com as e quilombola, que têm, em seu próprio
quais construíssemos relações de confiança objetivo de constituição, o diálogo e a
e compromisso. negociação com a sociedade nacional e o
Outro desafio era como integrar na equipe Estado, e também com organizações de
da SOF um tema novo de trabalho (gênero em assessoria, e que, portanto, se espelham nas
populações tradicionais). Para nós, as relações mesmas estruturas que questionamos pela
de gênero estão articuladas às de classe e de hierarquia e exclusão das mulheres.
raça/etnia, e estruturam a sociedade e a vida E, por fim, no primeiro contato com
concreta das pessoas, não se restringindo as organizações responsáveis pelo
ao campo das idéias, ou seja, têm uma base Programa, tínhamos de inevitavelmente

*
A ICCO é uma organização intereclesiástica criada para a cooperação pelo desenvolvimento, financiadora de atividades que estimulem e
habilitem pessoas para criar, à própria maneira, condições dignas e humanas de vida e habitação.

8
explicitar o que somos e o que buscamos, realizar uma enorme carga de trabalho sem
pois já no próprio nome da SOF aparece dividi-la com seus companheiros ou demandar
a palavra feminista. Portanto, nesse serviços do Estado. Se as matas em torno de
momento nos tocou, em alguma medida, uma comunidade foram devastadas e a fonte
a responsabilidade de desfazer os de água próxima secou, isso não aparece
preconceitos em relação ao feminismo. E, como um grave problema, porque as mulheres
se existiam nos movimentos iniciativas acordarão mais cedo e caminharão mais tempo
de auto-organização das mulheres, elas para conseguir lenha e água. Essas tarefas são
deveriam estar no centro da estratégia para consideradas naturais da mulher; sua realização
construir uma abordagem de gênero. é vista não como um trabalho, mas como uma
afirmação do ser mulher e de sua dedicação às
OS PRESSUPOSTOS DO pessoas que ela ama. É preciso questionar o
TRABALHO COM GÊNERO fato de que o cuidado e o trabalho reprodutivo
sejam responsabilidades só das mulheres para
A função da divisão sexual do trabalho que essa sobrecarga seja reconhecida como
Embora, na análise realizada e na atuação uma injustiça.
de muitas organizações, as relações entre
homens e mulheres sejam percebidas como O entrelaçamento das relações sociais
complementares, isso não é verdadeiro para Não se pode pensar as relações sociais
nós. Quando falamos em relações, estamos de gênero, classe e raça/etnia de forma
nos referindo a duas dimensões: as relações dissociada, nem atribuir mais importância a
concretas entre as pessoas como interação uma ou a outra. A experiência, os desafios,
social (de afeto, proximidade) e a tensão as possibilidades de uma mulher negra
existente em torno da divisão sexual do que vive do que cultiva na terra não são os
trabalho, que cria grupos sociais (mulheres mesmos de uma mulher branca empresária.
e homens) com interesses contraditórios, ou Ao mesmo tempo, uma mulher negra rural
seja, com o controle dos homens sobre as não é primeiro mulher, depois negra e depois
mulheres e sobre o trabalho que elas realizam. rural; em momentos diferentes a combinação
A divisão sexual do trabalho está no das várias facetas de sua identidade se
centro das relações sociais de gênero e é sua expressa de forma diversa, ficando uma mais
base material. Ela possui um princípio de iluminada que as outras. Por exemplo, uma
separação – determinadas tarefas e funções mulher pode se reconhecer como quilombola,
são consideradas masculinas e outras, quando está lutando pelo reconhecimento de
femininas – e um princípio de hierarquia sua terra, como trabalhadora rural, quando
– as tarefas e funções realizadas pelos vai ao STR (Sindicato dos Trabalhadores
homens são consideradas mais importantes Rurais) para tratar do auxílio-maternidade,
e são mais valorizadas. e como quebradeira de coco, quando está
Não se mudam as relações de gênero reivindicando um preço melhor para o óleo de
somente com propaganda e seminário. Isso coco-de-babaçu. Portanto, a identidade está
requer a transformação das bases materiais de relacionada com nossa experiência de vida,
organização da sociedade, as quais se fundam com nossas relações de pertencimento e lutas.
na relação desigual entre mulheres e homens. Como as relações de gênero estruturam
Por exemplo, para que nossa sociedade, o conjunto, não há separação entre geral
como é hoje, funcione, as mulheres precisam e específico. Não podemos dizer que

9
as reivindicações relacionadas a saúde problema, de propor indicadores que o
reprodutiva e violência sexista estão descrevam e os instrumentos para atuar
vinculadas exclusivamente a gênero, e que sobre ele, melhor será sua resolução.
as de terra e território, apenas a classe e Quando avaliamos as relações de gênero
raça/etnia. Por exemplo, as indígenas e as do ponto de vista político, o objetivo
quilombolas revelam, em suas análises e está na mudança da correlação de forças
reivindicações, a vontade de autonomia das que mantém desigual uma dada situação,
mulheres e de suas comunidades: aprender ou seja, o centro da análise e da atuação
a se comunicar em português, além do está na construção do sujeito político que
idioma de seu povo, valorizar o artesanato opera essa mudança, que, no nosso caso,
que fazem, combater a violência doméstica são as mulheres indígenas e quilombolas.
e sexual, e também são ativas na luta pelo Mas é impossível construir um sujeito
território. Mas não se pode dizer que uma político forte pela imposição externa.
dessas conquistas assegura as demais. Como Para serem protagonistas, essas mulheres
as relações são entrelaçadas, é real que, têm de analisar sua situação e construir
para diminuir a sobrecarga de trabalho das estratégias para mudá-la. Sua maneira de
mulheres ou sua exposição à violência do ver e atuar para a transformação deve fazer
homem branco, é fundamental a conquista parte do movimento de mulheres, para que
do território. Porém, se não forem vistas sejamos todas mais fortes. Somos parte do
como sujeitos, elas podem não se apropriar movimento de mulheres, compartilhamos
do território de seu povo. experiências comuns enquanto tais, como
Um dos impactos da relação das a responsabilidade com a casa e os filhos,
mulheres quilombolas e indígenas com que limitam nossas possibilidades no
o mundo dos brancos é a separação dos trabalho e na militância, e somos vítimas
núcleos familiares em casas individuais e da violência sexista porque todas mudamos
o confinamento das mulheres no espaço nossos comportamentos ou limitamos nossa
doméstico. As quilombolas, quando expressão por medo de nos expormos a
responsabilizadas prioritariamente pelo situações de risco.
trabalho doméstico, só conseguem coletar A afirmação das mulheres e de sua vontade
castanha ao redor da casa. Aos poucos, vão de viver plenamente tem de ser parte da
deixando de ir mata adentro, passando a
desconhecer as castanheiras, seus caminhos
e o próprio território de sua comunidade.
Já as indígenas que coletam andiroba nos
limites de seu território estão assegurando
sua integridade ao perceberem e evitarem a
entrada de invasores.

A construção do sujeito político


Quando pensamos as relações de
gênero como um problema técnico, as
estratégias têm no centro a figura da
especialista, da técnica; quanto melhor
for a capacidade desta de analisar o

10
agenda e das preocupações de seus povos e quilombolas, assim como brancos e
organizações. Quando elas estão juntas negros, rurais e urbanos, expressam
na luta e participam dela por inteiro, suas resistências a compartilhar
como protagonistas, o povo é mais forte. recursos, poder, tempo de lazer e
Quando são sujeitos de suas próprias conhecimento com as mulheres. Só um
vidas e da vida de seus povos, as indígenas compromisso radical de superar todas as
e as quilombolas põem em questão o formas de injustiça em nossa sociedade,
argumento de que o debate de gênero é uma incluindo as pessoais e cotidianas, pode
imposição externa. alterar nossas análises e práticas.
Esse argumento se justifica por um
pressuposto de que as culturas são frágeis UMA FORMAÇÃO
e não resistem à interferência externa. Nós, CONSTRUÍDA EM PROCESSO
no entanto, entendemos que a cultura é um
processo histórico vivo e que as populações No primeiro trabalho conjunto com a
chamadas tradicionais reelaboram o Oxfam, que consistiu em um levantamento
mundo exterior. É certo que a violência da bibliográfico e entrevistas com as parceiras
expansão capitalista sobre os territórios quilombolas, foram apontadas três
dessas comunidades tem como uma de vertentes: 1) o conhecimento das relações
suas estratégias minar a cultura e a tradição de gênero por essas populações; 2) o
dos povos que as compõem. E as mulheres diálogo sobre as questões de gênero com
atuam muitas vezes como guardiãs dessa homens e mulheres; e 3) o fortalecimento
cultura. Mas isso não justifica os discursos das mulheres indígenas e quilombolas como
de que a igualdade entre mulheres e homens protagonistas desse processo.
é um projeto externo, imposto, e que Nesse primeiro momento, revelando
contribui para criar cisões dentro do grupo insegurança para tratar de um tema
e enfraquecê-lo. novo e encarar os desafios colocados,
Também não concordamos com uma enfatizamos o estudo e a apropriação do
forma de manifestação de preconceito saber acadêmico. Escrevíamos: “desafios
racial/étnico que coloca os homens no âmbito teórico”, “conhecer a fundo”,
indígenas e quilombolas inferiorizados em “avaliar que instrumentos de análise são
relação aos homens brancos intelectuais. necessários a um diagnóstico das relações
De acordo com essa visão, os primeiros de gênero”. Havia, assim, de nossa parte,
seriam mais agressivos, mais próximos uma resistência que se manifestava pela
da natureza (mais instintivos) e mais exigência da especialização, com a alegação
distanciados da cultura em que estariam de o assunto populações tradicionais ser
assentados os princípios da igualdade de muito complexo. Sem desconsiderarmos
gênero. Além de preconceituosa, essa é a importância de conhecer o contexto e da
uma visão linear da História, segundo a abertura para a relação com outras mulheres
qual as mulheres foram mais oprimidas no e para outras experiências, mitificávamos
passado e essa opressão foi diminuindo a necessidade de conhecimento prévio
com a modernidade e o progresso, à atuação. Isso não significa que não
tendendo a desaparecer, se é que isso tenhamos aprendido muita coisa, pois
já não teria acontecido nas camadas acabamos percebendo os limites de nossas
intelectualizadas. Homens indígenas e referências e metodologias. Mas superar

11
esse receio inicial foi importante para a todas as organizações interessadas para
realização deste trabalho. sensibilização e intercâmbios mediante uma
No plano de ação de 2004-2005, as oficina, no início, e um seminário, no final
estratégias propostas foram: do Plano; o segundo foi de aprofundamento
• aprofundamento político-conceitual do do trabalho de formação de lideranças em
debate com as contrapartes, centrado no duas organizações (Aconeruq* e Omir/
tema dos direitos; CIR**); e, por fim, o terceiro, foi o de
• acompanhamento sistemático de algumas debate interno à equipe da SOF e parceiras.
organizações dos movimentos indígena e
quilombola a partir de suas pautas; Quebrando resistências
• mobilização de recursos de outras Um resultado importante de nossa atividade
instituições para a produção e a qualificação foi a quebra da resistência inicial do grupo.
de informações sobre indígenas e Em nossa experiência na atuação com ONGs
quilombolas que contenham uma agroecológicas, percebemos que a resistência
perspectiva de gênero; em trabalhar as questões de gênero é muito
• avanço na construção de uma metodologia maior da parte dos técnicos e das técnicas do
de formação em gênero com populações que das camponesas e camponeses. Existe um
tradicionais, em diálogo com as organizações mito de que esse trabalho implica o risco de
parceiras que estão oferecendo formação. provocar uma tal desestruturação da família e
Essas estratégias foram construídas da comunidade das pessoas que participam a
para responder às questões-problemas ponto de estas serem levadas ao isolamento ou
identificadas inicialmente: a necessidade à degradação.
de construir marcos de referência Os temas de debate são importantes:
analítica; o diálogo com movimentos de quem é o apego à tradição – da
indígenas e quilombolas; o diálogo com comunidade, de quem nela atua, de
organizações parceiras de assessoria; a lideranças ou de técnicos do mundo
produção de informação; e a atuação pela externo? Em que aspectos vale a tradição
formação. Dessas estratégias, as que de – na organização da vida econômica,
fato desenvolvemos foram as pertinentes no acesso a bens de consumo ou na
à formação construída em processo com manutenção de relações hierárquicas?
organizações do movimento. Seguimos Sabemos que a tradição é criada e
dialogando com organizações de assessoria, renovada expressando o arranjo de
como a CPI e o Cimi (Conselho Indigenista forças entre aqueles que dela participam.
Missionário), mas o diálogo com o conjunto Sabemos, também, que muitas vezes a
das ONGs parceiras não esteve no centro de tradição e o costume são o último ponto de
nossa atuação e, talvez por isso, não demos referência identitário de um povo que já foi
seqüência à estratégia sobre produção de expropriado de sua terra e de sua língua.
informações, que exigia consolidar parcerias Mas a responsabilidade das mulheres como
com disposição e possibilidades para fazê-lo. guardiãs da tradição pode ser, ao mesmo
O trabalho de formação foi realizado tempo, sua força na comunidade e uma
em três níveis: o primeiro envolvendo limitação à sua autonomia pessoal.

* Associação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas do Maranhão.


** Organização das Mulheres Indígenas de Roraima/Conselho Indígena de Roraima.

12
Flexibilidade na abordagem questão mais colocada para os movimentos,
Um dos riscos da insegurança no provavelmente porque há um interesse
desenvolvimento de um trabalho é nos e uma demanda das mulheres que deles
aferrarmos às poucas certezas que temos e participam. Avaliamos que, de maneira geral,
perdermos a amplitude da visão. Evitamos os processos vindos dos movimentos – estes
esse risco mantendo a flexibilidade no interpelando as organizações de assessoria
desenho das estratégias e na revisão dos com temas e questões – são mais sólidos do
resultados previstos, pondo mais ênfase nos que o contrário.
processos do que nos produtos. Lembramos
que o produto inicialmente desejado Superando os empecilhos de linguagem
era a elaboração de uma política para a É importante propiciar espaços para
abordagem transversal de gênero com que indígenas e quilombolas reflitam
desdobramentos na atuação das contrapartes coletivamente sobre suas experiências e
do Programa Populações Tradicionais da sobre como se situam no contexto político e
Oxfam, contrapartes estas de naturezas social, e formulem suas demandas e projetos.
distintas, como movimentos sociais e Com esse propósito, tentamos nos afastar
organizações de assessoria. Esse produto ao máximo das formas não-indígenas de
não foi alcançado em sua totalidade, porém “ler” o mundo, pois a maneira de formular a
mantivemos no horizonte os resultados pergunta que orienta um momento do debate
esperados do Programa, ou seja: ou uma dinâmica delimita os conteúdos
• as organizações e os representantes que virão como resposta. Por exemplo,
indígenas e quilombolas são ouvidos e nossa leitura sobre o tempo, dividido
suas opiniões são levadas em consideração entre tempo de trabalho e tempo livre, e
pelos governos e instituições no processo separado da noção de espaço, diz pouco para
de elaboração, decisão, implementação e várias culturas, assim como aquela sobre
avaliação de políticas que os afetam; a demarcação das fases da vida (infância,
• as mulheres indígenas e quilombolas adolescência, idade adulta e velhice), e sobre
participam dos processos organizacionais a separação entre o tempo da vida de um
internos, assim como nos processos de indivíduo e os tempos da comunidade ou dos
decisão, planejamento, implementação e ciclos da natureza.
avaliação das políticas, programas e demais Outro ponto importante são nossas
ações que lhes dizem respeito. medidas para aferir se as mulheres estão
Ao construirmos a estratégia, acabamos integradas ao trabalho e participando. Um
fazendo um investimento maior nas medidor geralmente é a fala: um grupo
organizações dos movimentos, o qual que funciona bem é aquele em que todas
também foi maior da parte destas. Nossa falam e se escutam, mas essa pode não
proposta foi acordar a forma de execução ser uma medida para grupos em que falar
do plano de trabalho na Oficina Gênero demasiado seja algo desvalorizado. Quando
e Populações Tradicionais, para a qual trabalhamos com mulheres guaranis,
todas as contrapartes foram convidadas. sentimos fortemente o empecilho da
Das organizações do movimento língua: os minigrupos em que elas
nenhuma esteve ausente, enquanto, se comunicam em sua língua
das de assessoria, duas estiveram materna são muito importantes,
presentes e três não. Esta é uma mesmo que, ao final, tenhamos

13
todas/todos as/os participantes foi muito
positiva e, em sua fala final, um dirigente
indígena expressou que, embora seja difícil,
não é impossível abordar o assunto gênero.
O seminário possibilitou uma aproximação
das/dos participantes, na medida em que
permitiu perceber que a luta é a mesma,
mesmo levando-se em conta as especificidades
de cada lugar. Além de militantes dos
movimentos indígena e quilombola,
participaram integrantes dos movimentos
de mulheres, de mulheres camponesas e de
mulheres negras. As realidades das populações
indígenas e quilombolas foram debatidas
a partir da experiência de luta das próprias
pouco material para processar no grupo mulheres e inseridas em uma visão nacional.
grande ou para registro. E a continuidade do trabalho foi apontada
O trabalho focado em duas organizações como fundamental.
nos pareceu acertado, pois pudemos construir Um desdobramento importante dessas
uma experiência concreta de formação que atividades deu-se na Omixuk (Organização
funcionou como referência. Os aprendizados de Mulheres Xucuru Kariri), de Palmeira dos
e desafios dessas duas experiências são Índios, Alagoas. Essa instituição almejava
relatados adiante. realizar um trabalho com mulheres, mas suas
Os momentos de intercâmbio mais integrantes tinham dúvidas de como fazê-lo.
amplo foram avaliados de forma bastante Seus primeiros contatos com organizações
positiva. A primeira oficina foi considerada de mulheres e de mulheres indígenas não
uma oportunidade para as mulheres de tinham sido muito proveitosos. Um novo
exporem suas idéias sem interferência impulso lhes foi dado no espaço da oficina e
e de se fortalecerem para sua atuação dos seminários, nos quais elas apresentaram
cotidiana; as/os participantes entenderam a muitas concordâncias em relação aos
discussão tanto pela metodologia como pela demais temas, pois não separavam a luta das
linguagem utilizada, e as dúvidas foram mulheres das demais lutas de seu povo, mas
sanadas, embora tenham sido percebidas aguçaram o olhar crítico sobre as formas de
as dificuldades próprias da discussão exclusão das mulheres.
das questões de gênero. Isso foi possível Nas atividades de formação de lideranças
porque as análises foram sendo construídas mulheres localizadas na Aconeruq e na
coletivamente, partindo das experiências, Omir, tivemos como resultados principais
das falas, das esculturas e das expressões o fortalecimento do trabalho de base e a
corporais de todas/todos. valorização da fala e da experiência das
O principal saldo dessa oficina foi mulheres. Fortalecidas, elas perceberam um
iniciar a discussão de gênero de forma a maior respeito dos companheiros.
não criar resistências, desmistificando a Nessas duas organizações, as militantes
impossibilidade de tratar esse tema com têm a percepção de que sua força vem
populações tradicionais. A avaliação de da consolidação do trabalho de mulheres

14
desde a base. Estruturamos o trabalho para as Mulheres, realizada em Brasília, em
para responder a essa percepção tão julho de 2004, discutimos com militantes
valiosa. Destinamos recursos para viagens do movimento de que participamos – a
de mobilização e acompanhamento do Marcha Mundial das Mulheres – o apoio à
processo nas comunidades, construímos demarcação contínua da Reserva Raposa
coletivamente os instrumentos para o Serra do Sol e, junto com as mulheres da
trabalho local: a cartilha e o plano de Omir, recolhemos as assinaturas necessárias
ação. Preparamos os cursos com elas, à apresentação de uma moção em plenário.
que pautaram os temas: violência, No 8 de março de 2005, como integrantes
etnodesenvolvimento e políticas públicas da Marcha Mundial das Mulheres,
(controle social, acesso). A cartilha Um organizamos o lançamento da Carta
futuro sem violência expressou a fala das Mundial das Mulheres para a Humanidade
mulheres e, mais que isso, a estratégia e começamos uma colcha-de-retalhos que
que elas desenharam centrada nas regras expressa as visões das mulheres de um mundo
das comunidades. Nesse processo, elas com igualdade, liberdade, solidariedade,
vivenciaram o respeito às suas opiniões e a justiça e paz. Tivemos uma companheira
autonomia de pensamento. indígena presente nesses momentos, assim
Esses cursos só foram possíveis porque como companheiras indígenas e quilombolas
combinamos recursos da Oxfam e da ICCO. participando do I Encontro Nacional da
E um dos aspectos que trabalhamos neles foi Marcha Mundial das Mulheres, realizado em
a análise do orçamento e de como os recursos Belo Horizonte. em maio de 2006.
eram gastos. No caso da Omir, foram as Em outubro de 2005, encontramos
mulheres da organização que gerenciaram os mulheres das organizações indígenas na
recursos de transporte e alimentação. Assembléia Popular Mutirão por um Novo
Brasil, que reuniu militantes de vários
UM SALDO POSITIVO movimentos sociais para refletir sobre o que
DE PARTICIPAÇÃO queremos para o nosso país.
Em todos os espaços políticos onde atua,
Com a CPI, seguimos no debate a como ONG ou como Marcha Mundial das
respeito do desenvolvimento e da visão das Mulheres, a SOF almeja ampliar a discussão
mulheres sobre o futuro das comunidades, e a participação das companheiras indígenas
em oficinas que realizamos com mulheres e quilombolas que conhecemos e com as
guaranis, em uma reunião de intercâmbio quais convivemos nesse processo. Elas se
sobre economia solidária e na oficina mostraram muito abertas para conhecer e se
Mulheres Quilombolas e Desenvolvimento integrarem em outros processos, ampliando
Sustentado. Também nos encontramos sua visão com uma dimensão nacional.
com mulheres quilombolas em atividades Esse viés da participação das mulheres
sobre etnodesenvolvimento e extensão indígenas e quilombolas em outros
rural organizadas pelo PPIGRE (Programa processos em que a SOF está inserida
de Promoção da Igualdade de Gênero, tem de ser mais trabalhado. E essa é a
Raça e Etnia) e pela SAF (Secretaria da possibilidade que temos de continuidade
Agricultura Familiar), ambos do Ministério dessa relação, considerando os limites de
do Desenvolvimento Agrário. atuação da SOF determinados pela distância
Na Conferência de Políticas Públicas e pela falta de recursos.

15
AS ATIVIDADES DE FORMAÇÃO

Foram realizados quatro Cursos de AS MOBILIZAÇÕES


Formação para o Fortalecimento das
Mulheres Lideranças Quilombolas e Para a construção dos cursos foram
Indígenas, sendo dois com a Aconeruq e realizadas mobilizações por lideranças
dois com a Omir/CIR. Após levantamento das duas entidades, que trabalharam
diagnóstico e participação em atividades diferenciadamente: na Omir, como as
junto com as duas entidades, definiu-se participantes eram as coordenadoras
como prioridade dos cursos fortalecer ações regionais, a tarefa era apenas de divulgação;
que vinham sendo realizadas no trabalho no caso específico da Aconeruq, a escolha
com as mulheres. Com a Omir/CIR, das participantes foi feita em reuniões nas
articulamos o fortalecimento da organização comunidades. Como o interesse era maior que
com o trabalho contra a violência sexista o número de vagas possíveis, foi necessário
que elas estavam desenvolvendo. Com a estabelecer critérios. Essas reuniões foram
Aconeruq, a tônica foi o fortalecimento importantes para a divulgação da recém-criada
da Secretaria de Articulação de Mulheres Secretaria da Mulher.
Negras Quilombolas e também das mulheres Nesse momento, as representantes
das comunidades. das organizações exercitavam formas
O enfoque sobre temas que já haviam de organização de planilhas de custos e
despertado interesse nas comunidades, na a definição dos critérios para a seleção
construção dos cursos, deu concretitude a das participantes, e faziam os demais
nossa ação. Aportando informações sobre preparativos para a realização dos cursos.
os temas e levando nossa experiência no Assim, as mobilizações cumpriram duplo
trabalho de formação com as mulheres, papel: o de selecionar as mulheres para os
fomos coletivamente dinamizando as formas cursos e reuni-las para discutirem temas
de organização já presentes nas instituições inerentes às entidades, e o de ressaltar a
e fortalecendo o trabalho com as mulheres. importância da organização das mulheres
em suas lutas gerais.

A ESCOLHA DOS CONTEÚDOS


E DAS MANEIRAS DE TRABALHÁ-LOS

Os conteúdos abordados foram


previamente discutidos com as
coordenadoras da Omir e da Aconeruq,
considerando suas expectativas em relação
ao fortalecimento que o curso poderia
proporcionar a partir dos trabalhos que
elas vinham desenvolvendo. O objetivo
da SOF foi o de que os cursos tivessem
sentido e utilidade para a vida daquelas

16
mulheres e possibilitassem um processo atividades juntas, e já chegaram mais
de ensino-aprendizagem de mão-dupla. desinibidas. Entre elas também havia jovens.
Esse foi um aspecto que procuramos Para dar conta dessa diversidade, foi
acordar desde o início nas conversas fundamental a observação das reações dos
com as duas entidades. Tais princípios grupos. Era preciso construir um clima de
deveriam ser preponderantes, já que pensar confiança, desde o início, para que todas se
a integralidade e a não-fragmentação dos sentissem parte daquele momento e, apesar
conteúdos e ensinar aprendendo fazem das diferenças de idade e de escolaridade,
parte de nossa visão de formação, além de pudéssemos trabalhar de forma a fazer que
pelo fato de se tratar de uma experiência todas se sentissem contribuindo e valorizadas
com um público novo. em seu saber. Em relação às jovens, o cuidado
Um aspecto importante dos cursos foi foi para que elas se sentissem à vontade em
a forma de trabalhar os conteúdos tendo sua expressão perante as mais velhas.
como preocupação central olhar para a
vida e a experiência dessas mulheres e seus Apurando o olhar e a observação:
aprendizados, lutas, as discriminações e os sentimentos do grupo
as formas de resistência a elas e, por esse A metodologia tece os fios dos sentidos,
caminho, valorizar saberes e também refletir das experiências, das histórias, das alegrias,
sobre o processo de desigualdade vivido. dos choros, da organização, da observação,
Desse modo, para nós, o cotidiano é o dos textos, das expressões do corpo. Juntos,
ponto de partida para a compreensão de esses fios tramam um tecido em que a
realidades mais complexas. A fala de cada formação acontece provocando processos
uma permite socializar experiências, buscando individuais e coletivos.
compreender as causas comuns de problemas Em um trabalho com público tão
e as diferenças, e construir saídas coletivas. diverso, prestar atenção ao que acontece
entre as pessoas pode ser a chave para o
METODOLOGIAS PARTICIPATIVAS bom andamento das atividades. Uma das
integrantes deu-nos um exemplo disso:
Por esse processo coletivo de mobilização tinha ótima atuação no trabalho em grupo
e pelo acordo na forma de atuar e de e mostrava-se à vontade nos momentos
abordar os temas, os cursos foram iniciados, de integração, mas, na hora da síntese
trazendo expectativas, alegrias e muitas do tema trabalhado, feita geralmente de
novidades que passamos a descrever. forma dialogada, ela se afastava do grupo
O público dos cursos foi bem diverso: e se fechava em silêncio, não conseguindo
mulheres jovens, adultas e mais idosas; responder às perguntas que lhe eram
algumas não dominavam a escrita e a dirigidas. Indagada sobre essa sua atitude,
leitura, outras eram professoras. No caso revelou que, na reunião da comunidade,
das quilombolas, elas vieram de diferentes ao comunicar sua intenção de vir ao
lugares e muitas não se conheciam; algumas curso, fora questionada sobre por que
estavam saindo do quilombo pela primeira fazê-lo, já que, sendo burra, não teria
vez para participar de uma atividade de capacidade de aprender nada. E, após essa
formação. As mulheres indígenas, por serem revelação, ela desabou em choro. Naquele
coordenadoras regionais, estavam mais momento, a resposta do grupo foi dar-lhe
acostumadas a participar e a desenvolver um abraço coletivo.

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O questionamento e a depreciação das linguagens. Um exemplo interessante de
lutas e da participação das mulheres foram como eles complementam as informações e
relatados por várias outras integrantes. o conteúdo surgiu no momento de discutir
Ficou explícita, durante as discussões, a a história do trabalho e da divisão sexual
grande cobrança que enfrentam quando do trabalho. Os grupos sentiam dificuldade
saem de suas comunidades quanto ao de definir o trabalho das mulheres na
retorno que elas e suas famílias terão com comunidade, e percebeu-se que muitas
essa participação, já que precisam ter boas atividades não apareciam nos relatos.
razões para deixarem os filhos e as filhas, os Como fazê-las emergir? Pedimos que
maridos e o trabalho doméstico. fizessem um círculo e interpretassem os
movimentos do trabalho: uma iniciava e
Trabalhando informações não-verbais as outras repetiam os movimentos e, com
A chegada, primeiro momento de isso, fomos listando um a um os trabalhos
contato com o grupo, era a oportunidade do dia-a-dia das mulheres na comunidade.
de se apresentarem e de socializarem Importante, também, nesse método, foi o
suas expectativas. Essa era a primeira fato de algumas participantes mais caladas
forma de construir a confiança mútua e a se integrarem intensamente.
integração, que se manifestava por meio Todos os conteúdos eram introduzidos a
de desenhos, em pequenos grupos, ou de partir de trabalhos em grupos. A formação
um objeto significativo. Usamos várias dos agrupamentos era diferenciada: ora
formas de expressão nas apresentações, por comunidades, ora por faixa etária, ora
criando situações que contribuíram para a aleatória. Esse procedimento permitiu-nos
compreensão da metodologia participativa perceber como as dimensões de geração,
que seria aplicada durante o curso e também de maior envolvimento em movimentos
importante para desinibir as participantes. e de afinidades locais produziam leituras
Ali também se estabeleceu um espaço para diferenciadas de um mesmo tema, gerando
percebermos como as mulheres se viam, uma riqueza de detalhes sobre o processo de
seus desejos pessoais e os resultados que experienciação dessas mulheres.
elas queriam levar para suas comunidades. Após cada intervenção das mulheres
pela apresentação dos trabalhos de grupos,
“Eu nunca havia saído do quilombo para nenhuma atividade o tema estudado era colocado ao conjunto
de formação. No curso, eu cheguei e fiquei só olhando. A das participantes. Por meio de exposição
forma como o curso foi sendo dado foi fazendo com que eu dialogada, os conceitos de gênero, divisão
perdesse o medo de falar. Todas falavam de suas vidas nos sexual do trabalho, violência e naturalização
quilombos, era muito parecido. Tudo que era falado tinha da desigualdade eram questionados,
sentido para a vida da gente, e todas entendiam”. buscando-se produzir reflexões sobre a vida
e a vivência em comunidade.
As dinâmicas, mais que somente
descontração, propiciam o uso de outras Fazendo fluir a comunicação
formas de expressão além das linguagens Outra preocupação sempre presente
oral e escrita. Os trabalhos corporais foi com a linguagem. Procurávamos ir
contribuem para fazer aflorarem traduzindo o significado das
os conteúdos que às vezes palavras e exemplificando os
não se manifestam por essas conceitos, de modo a fazer

18
fluir o entendimento sobre o tema Contando histórias
trabalhado. Também perguntávamos sobre Contar histórias, cantar cantigas e
o significado de palavras, principalmente “Chegamos aqui exibir danças também fizeram parte da
indígenas, que nos eram menos familiares. pensando que metodologia de linguagens dos cursos. Por
Esse procedimento foi ressaltado durante este curso seria meio dessas atividades muitas informações
a avaliação do curso e considerado muito um bicho-de- sobre as formas de resistência cotidiana
positivo, pois as explicações em linguagem sete-cabeças, na luta pela terra e sobre o processo de
simples e acessível contribuíram para mas não foi. expropriação da cultura apareceram e
que as pessoas pudessem se soltar e Queremos vir foram incorporados nas ações formativas. A
falar sem constrangimentos, facilitaram no próximo, história contada por uma quilombola é uma
a compreensão dos conteúdos e foram continuar demonstração do aprendizado cotidiano
importantes para que as mulheres saíssem mudando, dessas mulheres que, enquanto lutam pela
confiantes de que poderiam, considerando superar a sobrevivência diária, embora correndo
os limites e acúmulo de cada uma, timidez e falar riscos, mantêm vivas a luta e a resistência
reproduzir aqueles conteúdos junto às ainda mais”. por seu território.
suas comunidades.

A importância do algo escrito Duas amigas foram pescar no igarapé,


O uso das diferentes formas de como sempre haviam feito na vida. As terras
linguagem, do corpo ao papel e de volta que cercam o igarapé e os babaçuais dos
ao corpo, incorpora a sistematização quais elas catam o coco para quebrar e
escrita como parte importante do vender foram cercados por um fazendeiro
processo formativo. Para essas mulheres é que alega ser o dono. Quando estavam
fundamental ter conteúdos sistematizados, pescando, cada uma com sua varinha, eis
dados estatísticos que as possam subsidiar que chegou um capataz de “olhos azuis”
em ações formativas na comunidade ou, por apontando-lhes uma arma e perguntando:
que não, servir de recordação concreta do “O que vocês estão fazendo aqui nestas
vivido. Assim, levar consigo algo escrito terras? Não falei que não é mais para
torna-se uma prova da participação. Isso é pescar aqui?” Sem nem sequer mover as
importante na comunidade, pois às vezes varinhas da água, uma respondeu: “Nós
alguns membros questionam sobre o que estamos pescando. Afinal não foi você
elas mulheres estão fazendo fora dela, quem criou este igarapé; foi a natureza, e
julgando ser mentiras suas justificativas. pertence a quem quiser pescar. Só vamos
Os resumos postos na lousa ou no papel deixar de pescar aqui quando este igarapé
eram valorizados: copiavam tudo em seus secar”. O capataz continuou empunhando
cadernos. Mesmo as que não dominavam a arma e ameaçando. As duas respondiam
a escrita pediam às outras que copiassem a tudo sem demonstrar medo, até que,
para elas. aos pouquinhos, ele foi abaixando a arma
Uma indígena ressaltou a importância da e falando mais calmo. Foi quando elas o
escrita, que, segundo ela, embora sempre convidaram: “Por que você não vem pescar
tenha sido arma do branco contra os índios, aqui? Tem tanto peixe”. Ele balançou a
pode ser também instrumento de luta para cabeça, dizendo: “Ah! Essas mulheres
elas. Uma outra afirmou: “Ter anotações dá teimosas”. E entrou no carro e foi embora.
a idéia de estar carregando as palavras”.

19
Como esta, outras histórias foram
contadas em que as mulheres desafiam
os fazendeiros e os jagunços, passando
por cercas para catar coco e lenha. O
significado disso é que viver nas terras
onde elas e seus antepassados nasceram e
se criaram continua sendo, ainda hoje, um
ato cotidiano de resistência. No entanto,
essas formas de resistência utilizadas pelas
mulheres não são percebidas como tais nem
por elas nem pelo conjunto da comunidade.
Se o trabalho de buscar a água e garantir
alimento e algum dinheiro para o sustento
da família é das mulheres, são elas que
enfrentam cotidianamente a repressão
dos fazendeiros. Histórias como essa são
importantes para trabalhar a participação
das mulheres nas lutas da comunidade,
desde que elas percebam que representam
uma forma de resistência e contribuem para
o avanço da luta pelo direito à terra.
A atividade de contar histórias revelou Ao final de todos os cursos, realizamos
também a influência da religião cristã nas exercícios práticos em torno de um plano
comunidades, na mudança dos costumes, de ação para trabalhar a formação e a
e a falta de interesse, principalmente das ação na comunidade. Entendemos que
jovens, nas danças rituais dos povos. essa seria uma forma de materializar os
Esses momentos ajudaram na conhecimentos construídos e de estimular
compreensão das diferentes formas de as mulheres para que, em seu retorno às
apropriação da cultura e permitiram viver comunidades, cada uma estivesse portando
a formação como um processo em que mais insumos a fim de iniciar ou continuar
usamos todo o corpo, seus sentidos e suas ações na comunidade. No início, foi
formas de expressão. Dessa forma, partir comum elas dizerem que não conseguiriam,
da experiência não significa desvalorizar os pois seria muito difícil, mas, no final, os
conteúdos e o aporte teórico. Entendemos grupos sempre surpreendiam, não somente a
que todo conhecimento é produzido pelas nós mas a eles mesmos.
pessoas em seu fazer/ser cotidiano. Ao ser
sistematizado, ele toma outras formas de OS TEMAS TRABALHADOS
apresentação – livros, teses, e assim por
diante – e passa a legitimar outros espaços. Os cursos se propuseram fortalecer
Legitimar a experiência e os saberes dos as mulheres indígenas e quilombolas.
espaços dessas mulheres é reconhecer a Fortalecer em quê? Como? Qual o alcance
produção social do conhecimento como possível de uma ação de formação nesse
humana e, portanto, que este deve estar ao sentido? Iniciamos a organização dos cursos
alcance de todos e todas. com essas questões em mente.

20
Os temas centrais das atividades foram massa de modelar e foram reconstruindo
sendo organizados de forma que as a história de seus grupos e identificando a
mulheres construíssem sua trajetória a partir vida das mulheres e sua relação com tudo
de seu espaço, a comunidade. Iniciamos isso. Esse exercício permitiu-lhes perceber
pela exploração do eu: quem sou? Que que a falta de infra-estrutura – como água,
lembranças trago das fases de minha vida? luz e escola – nas comunidades as onera
Eu no meu espaço: como é este meu lugar? muito mais que aos homens e acirra as
Como minha trajetória acontece neste desigualdades de gênero. Ao comparar
lugar? Onde estou eu neste lugar? suas vidas com as de mulheres de outras
comunidades, elas foram identificando
A naturalização da divisão pontos em comum na forma como enfrentam
sexual do trabalho as dificuldades e lutam por uma vida melhor.
A análise das relações de gênero ajuda Com base nesse olhar sobre a
a abrir o caminho para a compreensão dos comunidade, iniciamos o trabalho
mecanismos que estruturam e mantêm a considerando cada aspecto da vida dessas
opressão. Certos aspectos, como o papel da mulheres. Com relação à divisão sexual
mulher na família, os tipos de trabalho que do trabalho, o objetivo foi verificar de que
lhe são destinados, o trabalho doméstico modo ela se dá em comunidades indígenas
e o cuidado com crianças e idosos, o e quilombolas. Os conteúdos trazidos, pelas
exercício da sexualidade, a relação com o indígenas e quilombolas, mostraram que se
corpo, a violência sofrida, são geralmente assemelha com a realidade das mulheres no
tratados como se pertencessem à esfera meio rural. As mulheres perceberam que
da vida privada e como coisas menores, os homens, por mais pobres e explorados
desvinculadas de todo o processo e contexto que sejam, ainda têm vantagens, como,
de desigualdade, opressão e exploração. por exemplo, a de não terem sobrecarga de
A análise desses aspectos propicia a trabalho e a de não sofrerem a violência
compreensão de que o que se vive na que é infligida às mulheres e meninas, em
família e nas relações interpessoais faz casa e na comunidade.
parte das relações sociais e de poder que Apoiadas em nossa visão, buscamos que
estruturam a sociedade, e, portanto, não é os grupos percebessem a idéia da divisão
um problema individual de cada mulher, sexual do trabalho como o componente
mas sim um processo histórico, que pode que materializa a opressão às mulheres,
ser transformado e reconstruído. Essa na medida em que ela define lugares,
análise abre a possibilidade de as mulheres graus de valor do trabalho e, portanto, as
se verem como pessoas capazes de mudar inferioriza em relação ao homem. Essas são
a si mesmas e a realidade em que vivem, as condições que justificam as diferentes
gerando uma visão integral e articulada de formas de violência e outras desigualdades
todos os processos sociais. na vida das mulheres, como a ausência de
O início da conversa sobre a participação lideranças do sexo feminino.
da mulher na comunidade foi a construção Com as indígenas, usamos a técnica
coletiva da vivência das mulheres em seus da linha da vida, pela qual resgatamos
espaços de atuação. Organizados os grupos histórias da infância e da adolescência
por comunidade, as participantes construíram para compreender a vida no presente e,
uma maquete do lugar onde vivem com daí, vislumbrar e traçar um futuro melhor.

21
Por essa técnica, após um exercício de de coco-de-babaçu, de frutos e de matérias-
relaxamento, as pessoas são primeiramente primas para o artesanato. No caso das
induzidas a lembrar das várias fases de quilombolas, somam-se a essas tarefas as
sua vida, de como a sociedade, a família caminhadas de vários quilômetros para
e a escola educam meninos e meninas, buscar água, lavar roupa e levar as crianças
da diferença de tratamento que recebem à escola.
durante a criação, de como é esse processo “Qual é seu sonho para o uso do tempo?”
de socialização na infância e de como cada A essa pergunta a maioria respondeu
uma viveu as fases de sua vida, para depois dizendo que gostaria de trabalhar menos,
passarem à discussão do significado do fazer uma coisa ou outra, ou, no mínimo,
presente. Essa discussão inclui, no caso, dividir as tarefas. Diante de sua realidade
responder a perguntas como: o que é ser tão dura, poucas se arriscaram a sonhar com
mulher e ser homem hoje? Quais as marcas momentos para si ou de lazer. Obviamente
e os aprendizados que permaneceram em cabia, aí, a questão da participação em
nossas vidas e como lidamos com isso? atividades ou movimentos que lhes
As Macuxi e as Wapichana revelaram pudessem interessar. Três obstáculos
ter saudades de certos aspectos da vida no importantes à integração em espaços
passado. As crianças tinham outra educação: extracomunitários, além da falta de tempo,
respeitavam os mais velhos e as regras foram citados tanto pelas indígenas como
comunitárias; desde cedo, acompanhavam pelas quilombolas: o ciúme dos maridos,
a mãe e o pai à roça; a cesta de colher ia o receio de serem desprestigiadas e
aumentando de acordo com o tamanho da desvalorizadas ao exporem suas opiniões
criança. Essa era uma forma de educar para em público, e o de não entenderem os
o trabalho, que hoje está mudando sob a conteúdos que se discutem.
influência da educação dos brancos. Ao
mesmo tempo, elas relembraram também Como seria uma liderança mulher?
que as mulheres tinham uma vida mais Para o enfoque da importância da
difícil, sofrendo muita violência e mais formação de lideranças mulheres, foi
discriminações, mas avaliaram que hoje já realizado um exercício de caracterização
conquistaram vários espaços, mesmo com a dessas lideranças, tanto com as indígenas
resistência dos homens. como com as quilombolas. Como deve
A sobrecarga de trabalho é um ser uma líder? Elas se mostraram bastante
obstáculo importante, não somente para a exigentes quanto às qualidades necessárias
participação política das mulheres indígenas para se cumprir esse papel, configurando
e quilombolas, mas também para um uma mulher quase perfeita. Durante as
tempo mínimo de lazer ou espairecimento. discussões fomos trabalhando a idéia de
Para que elas visualizassem sua rotina de que, ao aprendermos o que é ser mulher,
trabalho, realizamos um exercício no qual adquirimos qualidades como as de saber
cada grupo organizava a rotina diária de ouvir e de ser mansas, que elas apontaram
homens e mulheres nas comunidades. Em como importantes, mas que a vivência
geral, as mulheres se incumbem de todo histórica das mulheres de sua exclusão
o trabalho da casa e do cuidado com as nos campos de decisão também lhes tem
crianças, e contribuem para o sustento da significado menos experiência e mais
família, trabalhando na roça ou na coleta dificuldade para acederem aos espaços

22
públicos e de decisão, de modo que temos A elaboração do texto dessa cartilha
de nos cobrar menos, de nos unir e de resultou de uma oficina sobre Violência
apoiar umas às outras, experimentando e Contra a Mulher, realizada pela Omir.
ousando nas várias tarefas para ocupar esses Nossa participação foi apontar e comentar
espaços. Mas, no processo de luta dos dois “Hoje temos as discordâncias que tínhamos em relação
povos que representam, elas têm buscado direito a voz a alguns poucos pontos. Tratando-se
superar as dificuldades. e liberdade de um material da Omir, obviamente a
que antes cartilha deveria expressar a visão de suas
A violência contra as mulheres não tínhamos, representantes, mas, ao mesmo tempo,
Esse tema, embora abordado com e mesmo os sendo uma parceria com a SOF, havia o
as mulheres das duas entidades, foi homens não desconforto quanto à forma de abordagem
aprofundado com as representantes da Omir, gostando, de algumas questões, como, por exemplo,
que já vinham trabalhando essa questão. eles têm de considerar o alcoolismo a principal causa
Muitas vezes a violência sexista é respeitar as da violência contra as mulheres. Durante as
justificada principalmente por razões mulheres”. conversas que tivemos, fomos chegando a
externas, como, por exemplo, o alcoolismo, acordos e a novas versões do texto.
a perda de identidade étnica e a falta de Esse processo foi importante porque,
perspectiva da comunidade. Além disso, a com o auxílio da cartilha, elas passaram
baixa auto-estima das mulheres as leva a a discutir mais intensamente a questão
pensar que sempre têm alguma culpa pela da violência contra a mulher e a elaborar
violência que sofrem e de se tratar de um propostas de prevenção e punição,
problema a ser resolvido em âmbito privado. principalmente com base na cultura de
Nosso trabalho orientou-se pela seus povos, buscando envolver a
perspectiva de ir desfazendo essas visões comunidade como um todo, ou seja, a
e construindo uma compreensão, a partir superação do problema. Ficou evidente
do próprio cenário de vivência dessas e estabelecida entre elas a visão de que
mulheres, para chegar à noção de que a o acolhimento às mulheres que sofrem
violência contra elas é um mecanismo de violência é responsabilidade de todas e
controle sobre suas vidas. todos, e de que somente assim é possível
As formas de superação da violência impedir que ela aconteça e, caso aconteça,
foram trazidas pelas mulheres da Omir não fique sem punição.
com bastante clareza e objetividade, e Esse tem sido um tema muito presente
com propostas concretas de devolver no trabalho da SOF, que, havia já algum
à comunidade a responsabilidade pela tempo, vinha refletindo sobre as limitações
punição e prevenção da violência, do trabalho do movimento de mulheres
com vistas à sua superação. Durante e do Estado em torno dele. Em primeiro
as discussões, elas nos relataram sua lugar, a ênfase esteve sempre colocada
preocupação e as iniciativas que vinham sobre uma certa especialidade, ou seja, a
desenvolvendo em relação à questão, e questão era tratada por advogadas ou por
propuseram à SOF que as apoiasse na especialistas dos movimentos de mulheres;
confecção de um material pertinente para em segundo, as saídas apontavam sempre
sua entidade. Decidimos, então, juntar para as políticas públicas. Os movimentos
nossos esforços para elaborar a cartilha de mulheres foram perdendo a capacidade
intitulada Um futuro sem violência. de questionar profundamente as causas da

23
renda, a participação política, índices de
pobreza. Propusemos, também, enfocar
o outro lado: como as mulheres negras e
indígenas se organizam no Brasil para lutar
contra as injustiças sofridas e para construir
a perspectiva da igualdade e de um mundo
sem opressão.

Mas, afinal, qual


desenvolvimento queremos?
Na segunda etapa do curso da
Aconeruq, as coordenadoras da entidade
nos solicitaram que trabalhássemos
o tema Políticas Públicas para o
Etnodesenvolvimento, já que ele estava
violência e de disseminar este como um tendo forte presença nas comunidades, em
problema que envolve toda a sociedade. vista das políticas do MDA (Ministério do
Nossa visão é a de que a violência contra Desenvolvimento Agrário).
a mulher tem suas bases na desigualdade A parte institucional foi feita com a
existente entre homens e mulheres, sendo participação de uma assessora do PPIGRE
central na manutenção das mulheres como (Programa de Promoção da Igualdade
objetos e seres inferiores, e funcionando de Gênero, Raça e Etnia) do MDA,
como um mecanismo de controle sobre o que apresentou as políticas específicas
corpo e a vida delas. direcionadas aos quilombolas. As mulheres
Essa experiência da Omir ajuda a puderam, na ocasião, debater e conhecer
iluminar o difícil caminho do enfrentamento vários caminhos para a participação em
a essa violência que milhares de mulheres organismos institucionais que decidem e
vivem todos os dias. É uma iniciativa elaboram as políticas públicas.
inovadora e pode contribuir para superar Para a discussão sobre
um limite do movimento feminista que, desenvolvimento, utilizamos o caminho
até o momento, tem pensado em políticas da construção coletiva do conhecimento,
centradas em equipamentos que dificilmente a fim de permitir às participantes olhar
estarão disponíveis para todas. para a comunidade e discutir em grupo a
visão de uma comunidade desenvolvida.
Os movimentos de mulheres O resultado dessa discussão foi a
A abordagem, nos cursos, das constatação da carência de equipamentos
semelhanças das desigualdades vividas por públicos, de infra-estrutura e de
mulheres indígenas e quilombolas, criou instrumentos de produção nas
nelas a expectativa de conhecer a história comunidades, em suma, da negação dos
do movimento de mulheres e suas lutas. A direitos básicos a essa população por parte
partir disso, organizamos estudos sobre a das autoridades públicas. Além disso,
situação das mulheres negras e indígenas ficou clara a existência do entrelace das
no Brasil: como vivem, como morrem e necessidades básicas e organizativas,
adoecem, o emprego, o desemprego, a religiosas e de produção.

24
A intenção foi mostrar e fazer perceber dessa luta, mais possibilidades têm, após a
que o desenvolvimento deve ter no centro conquista, de participar das decisões quanto
a qualidade de vida das pessoas e que ele ao que fazer com a terra. A experiência da
está relacionado ao equilíbrio ecológico, Fazenda São Marcos (Raposa Serra do
ao respeito aos povos, e não apenas a Sol), na qual as mulheres tiveram seu retiro
estratégias de distribuição de mercadorias (criação de gado) ou roça coletiva, é muito
para o consumo. O processo de construção especial e precisa ser bem cuidada, já que
do que entendemos por desenvolvimento não existe em muitos lugares.
gerou um debate importante sobre “Como é que a gente consegue que as
organização, lutas, tarefas das lideranças mulheres tenham poder de decisão sobre
e das entidades. o que fazer com a terra, com o território?”
Quando trabalhamos com a idéia de
A questão da terra território, na qual podemos integrar tudo,
e os direitos das mulheres é maior a possibilidade de enxergar as
Sempre que nos referíamos à realidade mulheres. Quando olhamos para a terra
das comunidades, acalorava-se a discussão somente como o lugar em que se vai fazer
sobre a questão agrária e, em muitos a roça, para depois vender seus produtos, é
momentos, explicitava-se o expressivo difícil perceber que ali está o trabalho das
grau de envolvimento das indígenas e mulheres, que muitas vezes não é vendido,
quilombolas na frente da luta pela terra. mas voltado à manutenção da família.
Sendo essa uma luta de todos, precisávamos Muitas relataram que enfrentam sozinhas
trabalhar uma outra parte dela: depois de os jagunços, para catar o coco que quebram
conquistada a terra, as mulheres teriam pela manhã para comprar a comida da tarde,
como decidir o que fazer com ela? Quanto ou para retirar da mata ervas e raízes para
mais as mulheres tomam a linha de frente praticar sua medicina.

UMA LEITURA DO PROCESSO E DOS RESULTADOS


O trabalho formativo da SOF sobre por parte delas, da situação em que vivem
abordagem de gênero com populações e de que, embora a formação seja muito
tradicionais resultou em quatro atividades importante nesse processo, serão elas, em
com as mulheres da Aconeruq e da Omir/ sua ação local, que criarão as condições
CIR. Os cursos foram programados na para as mudanças em suas vidas e
perspectiva de fortalecer a organização e a comunidades.
participação das mulheres. Apresentamos aqui uma das leituras
A escolha por trabalhar com as mulheres do processo dos cursos, pois certamente
de base das duas entidades dialogou com outras tantas foram produzidas a respeito,
a concepção de que o fortalecimento do no decorrer das atividades e a partir do
trabalho de mulheres, nesse caso indígenas cotidiano das participantes, nos quais elas
e quilombolas, se dá pela compreensão, contribuíram para o alcance dos objetivos

25
estabelecidos. Esta leitura coloca-nos atividades foram encarados na perspectiva
questões relevantes: como nos formamos? de superação, tendo por alicerce o desejo
Quando nos formamos? Qual a relação de contribuir para o fortalecimento da
do tempo da formação, em si, com o das organização das mulheres, o enfrentamento
possíveis mudanças? Que resistências são das desigualdades em suas vidas e uma
colocadas ao processo de nossa formação maior participação delas em suas entidades.
causadas por referências que internalizamos A reflexão que fazemos baseia-se nos
ao longo de nossas vidas? registros das avaliações e relatórios das
Muitas das participantes, como já foi dito, atividades desenvolvidas com as duas
estavam saindo de suas comunidades pela entidades e em entrevistas realizadas
primeira vez e já vinham com a tarefa de com lideranças indígenas e quilombolas.
repassar os conteúdos a estas no retorno. Buscamos, na fala dessas protagonistas,
Aqui já encontramos um foco de resistência: possíveis respostas aos desafios colocados
serei capaz de compreender e repassar? para a realização do trabalho de
Elas convivem em um espaço em que todas abordagem de gênero com populações
e todos lutam cotidianamente pelo direito tradicionais. Há indicação de que alguns
ao lugar onde a comunidade sempre viveu, desafios foram superados e os resultados
por garantia de políticas públicas básicas fortaleceram as mulheres, e de que outros
ligadas à oferta de energia elétrica, água ainda estão em processo.
e saneamento, e onde as desigualdades de As entrevistas foram realizadas por meio
gênero as oprimem, seja pela violência de roteiro organizado pela equipe da SOF
sexista ou pela necessidade de aumentar envolvida nos cursos. Entrevistamos a
sua carga de trabalho para garantir a coordenadora da Secretaria de Articulação
sobrevivência. Mas como inserir o debate da Mulher Negra Quilombola, da Aconeruq,
de gênero na comunidade articulado com as e recolhemos informações entre algumas
lutas consideradas gerais? mulheres que participaram de uma reunião no
Alguns desafios foram ficando mais Quilombo Santa Rosa dos Pretos, situado no
notórios após a realização do diagnóstico município de Itapecuru Mirim (Maranhão).
e do levantamento das expectativas das Da Omir, entrevistamos duas de suas
duas entidades em relação aos cursos. lideranças, em visitas ao estado de Roraima.
Essas expectativas relacionavam-se com O trabalho com as duas entidades teve
um desejo muito grande de consolidar um formas diferentes de organização e, por
trabalho com as mulheres que tivesse reflexo isso, apresentamos as reflexões de suas
no conjunto das entidades. Na relação com representantes separadamente, visando
a Aconeruq e a Omir, a SOF procurou uma melhor compreensão do processo de
ir construindo estratégias que pudessem avaliação. Porém, o eixo central orientador,
responder aos desafios: como considerar nos dois casos, será o significado das
as especificidades de cada entidade? Como atividades formativas para o fortalecimento
fortalecer a participação das mulheres a partir e organização das mulheres nas duas
da já existente? Como trabalhar as relações de instituições. Os parâmetros para verificação
gênero nas comunidades enfrentando os valores desse fortalecimento serão os avanços que
preconcebidos que norteiam a vida do lugar? podem ser percebidos, relacionados com a
Esses desafios apontados inicialmente realização das atividades formativas e com as
e outros que surgiram ao longo das ações organizativas desencadeadas por elas.

26
sofrerem violência doméstica e sexual.
A reflexão da Omir sobre a produção da
cartilha indica a importância de a terem
escrito a partir de suas experiências.

“A forma como elaboramos a cartilha ‘Um


futuro sem violência’ foi bem interessante,
porque nós mesmas a escrevemos a partir de
nossa experiência. Ainda falta muita coisa na
cartilha e é preciso reelaborá-la.”

A utilização da cartilha como


instrumento para combater a violência não
está sendo uma ação focada apenas nas
mulheres. A Omir busca inserir o debate
no conjunto das comunidades, usando
COMO AS MULHERES INDÍGENAS os espaços de decisão das organizações
AVALIARAM O PROCESSO indígenas, como as assembléias e as
reuniões, para ampliar o trabalho.
Para as integrantes da Omir, o significado Nós distribuímos a cartilha nas
dos cursos, no fortalecimento das ações que comunidades de Roraima para agentes
suas integrantes vinham desenvolvendo de saúde, tuxauas, coordenadores e
nas comunidades, foi positivo em termos coordenadoras regionais e em nossas
de organização, de aporte de novos escolas, para que façam o trabalho
conteúdos e de metodologia para subsidiar a preventivo nas comunidades e reflitam e
continuidade do trabalho. pensem a questão da violência.
As mulheres indígenas reconhecem as
“As atividades desenvolvidas e a forma como foram dificuldades para a construção coletiva
construídas nos deram mais condições para desenvolver de uma ação contra a violência. Mas,
o trabalho com as mulheres, fortaleceram a OMIR e como fruto do trabalho que vem sendo
melhoraram o relacionamento com os tuxauas (lideranças feito, sentem-se mais encorajadas a
indígenas homens). Esse trabalho nos deu mais segurança denunciar a agressão.
para conversar com eles assuntos relacionados à mulher,
ao próprio homem e também com relação a nossa vida, “Elas se conscientizaram de suas realidades,
nós como indígenas. Fortaleceu-nos como mulheres no principalmente em relação aos casos de
convívio com as lideranças. A gente aprendeu muito.” violência. Hoje sentem mais confiança em
denunciar a violência aos tuxauas ou na dele-
Com as mulheres indígenas da Omir, gacia. O tipo de denúncia mais comum tem
o trabalho sobre o tema da violência foi sido pedir ajuda para outras companheiras.”
se consolidando como prioritário para a
organização das mulheres e para uma ação Ao aprofundar o debate e o combate
coletiva nas comunidades. Os cursos buscaram à violência sexista nas comunidades
dialogar com esses anseios e construir a indígenas, as mulheres passam a identificar
compreensão sobre os porquês de as mulheres vários fatores que a produzem.

27
Embora, em suas reflexões, não “Às vezes A participação nas instâncias de
explicitem que as desigualdades de gênero dizemos que representação do CIR contribui para o
são a causa dessa violência e que esta a bebedeira reconhecimento do trabalho das mulheres
é sistêmica, as indígenas mostraram ter é a causa da indígenas, amplia seu número em posições
compreendido que a condição de gênero violência, mas antes ocupadas somente por homens, além
estrutura as desigualdades e naturaliza a há homens que de ampliar o alcance de sua atuação. Elas
violência contra as mulheres. A estratégia não bebem e identificam a valorização das mulheres
de trabalhar com as mulheres e de buscar violentam por como um avanço, que teve início na década
conjuntamente formas de construir a co- ciúmes, para de 1990, e o associam a diversos fatores,
responsabilidade de toda a comunidade não deixar sendo o principal deles o trabalho mais
para o fim da violência foi bem-sucedida e sair, coisas específico de gênero. Nesse caso, também
deixou claro que é preciso mudar formas de assim. Sem- os cursos vieram se somar a um conjunto de
convivência entre homens e mulheres para pre tem um atividades que têm fortalecido e valorizado
uma ação eficaz para esse fim. motivo.” as mulheres.
O desejo de construir um processo
continuado de atividades com as mulheres “Há uma maior valorização das mulheres. Elas
esbarra nas dificuldades que elas têm para estão em vários espaços, como tuxauas, coor-
participar e na falta de recursos financeiros. denadoras, conselheiras regionais, diretoras
As mulheres ainda são impedidas de sair indígenas. Mas ainda enfrentamos muito
para participar, seja pelos maridos ou machismo de algumas lideranças masculinas.”
companheiros, seja pelas tarefas na família.
Mas elas têm buscado estratégias para A ocupação dos espaços considerados
superar essas dificuldades. masculinos pelas mulheres exacerba
os conflitos e as leva a perceber que a
“Temos conseguido fazer o trabalho do dia-a- expressão do machismo é uma forma de
dia sobre violência junto com as atividades procurar manter inalteradas as relações
de saúde, DST e AIDS realizadas nas comu- de gênero. A participação da mulher
nidades. Aproveitamos para trabalhar outros em espaços diferentes dos que lhe
temas para as mulheres nos grupos mistos, são designados socialmente pode ser
entre eles o da importância da participação.” considerado um problema para alguns
homens. Mas por quê?
De que maneira esse trabalho tem
fortalecido a organização e a articulação
das mulheres junto às entidades indígenas? “A participação das mulheres em certas atividades
Ao apontarem as dificuldades que têm tido pode permitir-lhes aprender outras coisas, de um outro
para garantir uma representação da Omir mundo e, assim, mudar os costumes. O medo é de que
na Coordenação do CIR, elas demonstram elas despertem e deixem de ser dependentes deles.
o aumento de uma ação organizada dessas A participação nos cursos e em outros eventos, como na
mulheres, enquanto tais, e o fortalecimento Marcha Mundial das Mulheres, abriu a nossa visão.”
de sua entidade. E também identificam as
resistências ao processo de organização As mudanças na relação com as
das mulheres, o que ajuda a ampliar a lideranças indígenas masculinas refletem
compreensão de que as desigualdades em uma maior participação das mulheres
estruturam lugares de homens e de mulheres. em atividades externas.

28
“Hoje, as lideranças masculinas nos respeitam Nessa reflexão, podemos ratificar nosso
mais. Um dos motivos é o aumento do número acerto em fortalecer a ação que elas vinham
de lideranças mulheres. Esse fortalecimento desenvolvendo por meio do trabalho
na atuação das mulheres possibilitou, entre sobre violência, tema que ganhou maior
outras coisas favoráveis, a indicação para visibilidade e potencializou o trabalho
participação em encontros de níveis regional, da Omir com as mulheres. Além de sua
local e nacional.” participação nas lutas e nas estruturas de
representação de seus povos.
Mesmo com os avanços apontados,
o desenvolvimento do trabalho com as COMO AS MULHERES QUILOMBOLAS
mulheres indígenas ainda é um grande AVALIARAM O PROCESSO
desafio. Além das dificuldades em relação
ao cotidiano, a questão financeira tem O trabalho com a Aconeruq teve por
dificultado a ampliação desse trabalho centro o fortalecimento da organização
ou seu melhor direcionamento. A Omir das mulheres e a importância de sua
considera importante ir construindo participação, pois não havia um tema
paulatinamente a visão do direito das específico sendo trabalhado por elas. A
mulheres à participação na comunidade. instituição havia criado, em 2003, como
iniciativa para começar seu trabalho, a
“Temos desenvolvido um trabalho de conversar Secretaria de Articulação de Mulheres
com as nossas mulheres indígenas. Mas isso Negras Quilombolas.
tem de ser feito aos poucos. É difícil chegar
e dizer: ‘Olhem, vocês estão passando por essa
situação, mas podem mudar suas vidas para
melhor’, pois a decisão repentina de sair da
comunidade para participar, por exemplo,
de um encontro, pode gerar ameaças e até
violência física por parte do companheiro.”

Outra ação lembrada pelas mulheres


indígenas como um processo que
as fortaleceu foi a que tiveram pela
homologação das terras da Reserva Raposa
Terra do Sol.

“A carta que enviamos ao governo federal pedindo a


homologação foi muito importante para as mulheres, pois
fomos nós que iniciamos essa luta. Vocês, da SOF,
ajudaram a pressionar para o presidente da República
assinar. Eu acompanhei o movimento nas barreiras,
enfrentando os policiais militares e as bombas. Lutamos
para conquistar nossa terra e isso foi importante para
as mulheres, porque agora reconhecemos que temos o
direito de lutar por nossa terra.”

29
O significado das ações formativas
realizadas pela SOF com as mulheres
quilombolas foi, segundo a coordenadora da
Secretaria, importante para desencadear um
trabalho com as mulheres, para a divulgação
da Secretaria recém-criada e também para o
aumento da participação.

“Os cursos contribuíram para o


fortalecimento das mulheres nas comunidades
e para a Secretaria. Eles geraram um maior
interesse em participar de eventos tanto da
Aconeruq como de outros.”

O debate que realizamos sobre as


relações de gênero também aparece como
fundamental para que as mulheres se “Falamos Mas que sentimento as mulheres da base
fortaleçam para atuarem em outros espaços tudo que relatam das atividades que desenvolveram
na comunidade. ouvimos nos nos cursos?
cursos para
“Não havia como organizar as mulheres sem as amigas. “Gostei muito. Aprendi muitas coisas e levei
que elas tivessem antes o conhecimento de Elas gostaram para minha comunidade. Estou passando para
como as desigualdades são construídas. Não é muito e es- minhas amigas do Grupo de Mães, e elas
possível colocar esse conhecimento na cabeça tamos muito passam para os maridos, os colegas da nossa
das pessoas que estão lá, no seu cantinho, sem animadas comunidade e de outras.”
um processo formativo mais amplo. Então, para continu-
trabalhar as questões de gênero tem sido ar o trabalho. Os cursos incentivaram as participantes
muito bom para a gente nesse sentido”. Formamos a, no retorno às suas comunidades,
um Grupo de reproduzir o que haviam apreendido, e essa
Além de fortalecer a organização das Mães com 28 era uma expectativa de todas, conforme
mulheres, o debate de gênero provoca mulheres.” expressado quando os iniciaram. Muitas
mudanças e também tem contribuído para delas foram questionadas se seriam capazes
quebrar resistências dentro da entidade. de compreender e repassar os conteúdos
para a comunidade. Seria também a
primeira vez que a maioria delas teria a
“Hoje temos mais apoio para realizarmos a formação das tarefa de organizar uma atividade e repassar
mulheres. Há mais compreensão de que a garantia dos informações. Os relatórios das atividades
direitos das mulheres contribui para as lutas gerais do desenvolvidas nas comunidades indicam
quilombo. Com o início do debate de gênero, os coordena- como esse processo foi auto-afirmativo para
dores, que tinham outra concepção sobre a necessidade as mulheres que participaram.
de um trabalho específico com as mulheres, começaram A maioria das comunidades relatou
defender maior participação das mulheres, para que ter constituído um Grupo de Mães a
elas se formem como um todo”. partir das reuniões realizadas nelas após
o retorno das integrantes. Esta é uma

30
forma de organização muito presente comprovamos nos relatórios dos trabalhos
entre as mulheres das comunidades rurais feitos nas comunidades:
no Maranhão e tem sido introduzida e
reforçada pelas mulheres quilombolas. “Hoje a gente consegue trazer as mulheres, não só as que
Nas atividades formativas realizadas nas participaram dos cursos, mas também as outras, para
comunidades, os temas abordados foram: atividades, reuniões e plenárias. A participação aumentou,
construção social de mulheres e homens, mas ainda é muito difícil reunir todas as mulheres.”
divisão sexual do trabalho, violência sexista
e participação feminina. Esses temas Outro exemplo do envolvimento das
foram articulados com as estratégias de mulheres em ações nos quilombos são as
fortalecimento das lutas gerais do quilombo: associações, espaços de decisão dentro das
pela terra, por políticas sociais, por energia comunidades. Em um desses casos, um
elétrica e água, enfim, pela solução dos grupo de mulheres participantes dos cursos
problemas enfrentados pela comunidade decidiu criar uma outra associação, para
que aumentam o trabalho das mulheres e melhor organizar as demandas. No início
dificultam sua formação e participação. houve resistência, principalmente por parte
É o que sintetiza um relatório sobre os dos homens, mas elas se organizaram e
temas debatidos: conseguiram chegar a seu objetivo.
Apesar das dificuldades cotidianas, as
“A violência contra as mulheres exige mulheres quilombolas se mostram mais
justiça, mas precisa da conscientização das disponíveis e animadas a participar das
mulheres; nossa terra precisa ser delimitada ações formativas.
e ter título para termos segurança; falamos
de nossos sonhos, de tudo ser realizado “Os cursos realizados pela SOF foram muito importantes
porque nós temos direito; falamos do ser para o fortalecimento das mulheres em suas comunidades.
homem e do ser mulher e que as mulheres O fato de terem vindo a São Luís para realizar a formação
trabalham mais que os homens. Esta é a voz e retornar depois de uma semana já mostra seu desejo de
de todas as mulheres.” mudança. No retorno, fizeram diversas atividades com as
mulheres nas comunidades. Atualmente muitas delas auxi-
Como disse uma quilombola: “Ser liam bastante nas reuniões que realizamos nas comunidades.”
mulher é se sentir liberta e ter uma vida
digna”; “As mulheres são capazes de Após os cursos, foi realizado um
exercer os mesmos cargos dos homens e de Encontro Estadual de Mulheres Negras
ser importantes na sociedade”. Quilombolas, em março de 2006, e estão
Por essas demonstrações percebe-se que a sendo organizados encontros regionais,
metodologia que adotamos contribuiu para além de várias reuniões em comunidades.
que elas desenvolvessem o trabalho nas Nesses espaços, elas tratam de temas
comunidades, utilizando as informações que gerais e específicos para a organização das
anotaram durante os cursos, as dinâmicas mulheres. O objetivo é o fortalecimento da
utilizadas e principalmente a experiência de organização e uma maior inserção nas ações
vida das mulheres da própria comunidade dos quilombos. Após o citado Encontro,
para debater os temas. as mulheres ficaram para a assembléia da
A reflexão da coordenadora da Secretaria Aconeruq, tendo sido esta a que teve a
de Mulheres da Aconeruq reafirma o que maior participação de mulheres.

31
Além de participar de atividades da auto-estima, pela valorização do saber
específicas da Aconeruq, as quilombolas têm que elas trouxeram. Como sintetiza a fala
tido parte ativa em diversas ações no estado. de uma quilombola: “Nós conversamos e
descobrimos que trabalhar em conjunto e
A CONTRIBUIÇÃO DAS muito bom”.
ESCOLHAS METODOLÓGICAS Outro aspecto importante das escolhas
metodológicas foi a inclusão dos diferentes
A metodologia desenvolvida nos tipos de linguagem com os objetivos
cursos para as duas entidades visou de envolver as mulheres no processo,
aumentar a confiança das mulheres a fim incentivar o exercício da fala e aprofundar
de realizarem ações formativas em suas os conteúdos sistematizados de forma que
comunidades e participarem de outros todas compreendessem.
eventos. As duas entidades apresentaram
reflexões que indicam o acerto das escolhas “Não foi só aquela metodologia de chegar,
metodológicas. De acordo com uma falar e as pessoas anotarem. A gente dese-
liderança indígena: nhou, escrevemos em cartaz e no caderno,
desenhamos como era nossa comunidade.
“As oficinas de trabalho que realizamos junto com a Fomos imaginando e colocando na cartolina.”
SOF foram uma boa metodologia. Apesar de não
termos expressado antes o que pretendíamos, parece Relatos como esse indicam dimensões
que a gente estava em sintonia.” importantes da construção metodológica:
a quebra das resistências e a integração do
A construção do debate dos conteúdos a grupo; a construção do conhecimento de
partir da realidade das mulheres contribuiu forma partilhada; a comunicação intergrupo.
para o exercício da fala em público, a Foi importante, também, a relação com o
percepção de que as mulheres vivem histórias tempo, necessária para se conhecer e para
semelhantes, a construção de processos se formar, para sentir o corpo e perceber
de aprendizagem coletivos e o aumento as mudanças. Tempo que as mulheres
percebem que não têm, devido ao acúmulo
de trabalho a elas designado social e
culturalmente. Tempo para refletir sobre o
vivido. Esses elementos constituem fatores
importantes para que a atividade formativa
provoque mudanças e dê surgimento a
sujeitos políticos. Como o desejo de “se
sentir liberta e ter uma vida digna”.

“O trabalho foi desenvolvido para que nós,


mulheres, pensemos um pouquinho sobre como
vivemos. A gente foi lembrando e meditando
como era nossa vida no passado e pôde tirar
um tempo para viajar um pouco e relembrar
como vivíamos e também percebermos como
vivemos hoje.”

32
que lutar de forma organizada pelo fim das
desigualdades que as mulheres sofrem é,
também, fortalecer as lutas de seus povos.
Alguns temas trabalhados, como a divisão
desigual do trabalho que sobrecarrega as
mulheres, precisam de mais tempo para
serem mais bem-compreendidos e para
gerarem uma intervenção organizada, desafio
colocado ao conjunto das mulheres, e não
somente às quilombolas e às indígenas.
Os avanços percebidos são continuidade
de um processo de participação das
mulheres iniciado antes dos cursos,
principalmente na luta pela terra, mas as
atividades realizadas contribuíram para
fortalecer o trabalho com as mulheres e com
ALGUNS AVANÇOS A PARTIR a ampliação da visão sobre as desigualdades
DAS ATIVIDADES DE FORMAÇÃO que elas vivem.
A contribuição das atividades formativas,
Podemos também concluir que resguardados seus limites de tempo e
começa a mudar a correlação de forças, respeitando a trajetória das indígenas
principalmente na relação com as lideranças e quilombolas, possibilitou criar uma
masculinas. O fortalecimento amplia a dinâmica em que elas se viram como
compreensão das desigualdades de gênero sujeitos políticos. Como elas mesmas
por parte das mulheres e reflete em sua concluíram, a formação teve sentido para
organização e intervenção, muitas vezes suas vidas e gerou processos em que
gerando conflitos – na medida em que vão construindo a experiência de serem
interfere nas relações de poder – mas não reconhecidas como sujeitos de sua história
necessariamente cisões ou fragmentação e da história de seus povos.
na identidade ou na luta do povo. Ou seja, As estratégias que elas vêm organizando,
os relatos demonstram que o trabalho de de ocupar espaços nas entidades e de valorizar
gênero contribuiu para as mulheres se a auto-organização, são muito importantes.
organizarem e se inserirem nas ações gerais Esses exercícios trarão outras percepções
de suas comunidades. das desigualdades e da necessidade de outras
Nas duas entidades, o coletivo das lutas que contribuam para seu fortalecimento
mulheres atua com as próprias mulheres em e sua autodeterminação, e para as lutas de
espaços autônomos e participa das lutas suas comunidades, nas quais gerem
da comunidade. As formas de intervenção processos de solidariedade e de construção
que elas vêm organizando demonstram da sonhada igualdade.

33
Anexo
PROJETO GÊNERO E POPULAÇÕES TRADICIONAIS

1. ATIVIDADES DE FORMAÇÃO * Curso de Formação para o Fortalecimento


ORGANIZADAS PELA SOF das Mulheres Lideranças Quilombolas
da Aconeruq (2ª etapa)
* Oficina de Formação de Lideranças da Omir Local: Sindicato dos Bancários, São Luís (MA)
(Organização de Mulheres Indígenas de Roraima) Período: 7 a 11 de novembro de 2005
Local: Boa Vista (RR) Participantes: 40 mulheres pertencentes a 22
Período: 7 a 9 de maio de 2004 comunidades de dez municípios
Participantes: 24 mulheres e 3 homens
* Seminário Populações Tradicionais:
* Oficina Gênero e Populações Tradicionais Um Olhar de Gênero a Partir das Lutas
Local: Brasília (DF) das Mulheres Indígenas e Quilombolas
Período: 26 a 28 de outubro de 2004 Local: Colégio Pio XI - São Paulo (SP)
Participantes: 20 mulheres e 3 homens de Período: 28 a 30 de novembro de 2005
15 organizações indígenas, quilombolas e de Participantes: 27 pessoas das instituições e órgãos:
assessoria Omir/CIR, Omixuk, Apoinme, Coiab, Aconeruq,
AQCC (Associação Quilombola de Conceição
* Elaboração e avaliação da cartilha das Crioulas), ARQUMO, Ação Cultural Indígena
Um futuro sem violência Pankararu, Cimi, CPI, Instituto Sócio-Ambiental,
Realização: SOF e Omir Marcha Mundial das Mulheres, Movimento
Período: agosto de 2004 das Mulheres Camponesas, Projeto Metuia-
USP, Ministério do Desenvolvimento Agrário,
* Curso de Formação para o Fortalecimento das Coordenadoria de Assuntos da Mulher de Ubatuba
Mulheres Lideranças Quilombolas da Aconeruq (SP), jornalista da Agência Carta Maior e Intervozes
Local: Sindicato dos Bancários, São Luís (MA)
Período: 10 a 15 de abril de 2005 * Assessoria para a assembléia anual da Omixuk
Participantes: 32 mulheres pertencentes a doze (Organização das Mulheres Xucuru Kariri)
comunidades quilombolas Local: Aldeia Cafurna de Baixo, Palmeira dos
Índios (AL)
* Curso de Formação para Período: de 1 a 3 de abril de 2006
o Fortalecimento das Lideranças da Omir Participantes: 60 pessoas
Local: CIR-Boa Vista (RR)
Data: 13 a 15 de junho de 2005 * Oficina sobre Gravidez Precoce
Participantes: 24 mulheres macuxis, e Violência Contra Mulher
wapichanas e saparás, e 2 representantes da Coiab Local: Comunidade Malacacheta, Cantá (RR)
(Coordenação das Organizações Indígenas da Data: 19 de maio de 2006
Amazônia Brasileira) Participantes: 80 pessoas entre jovens (meninas

34
e meninos de 10 a 18 anos), professoras(es), Remanescentes de Quilombos do Município de
agentes de saúde, lideranças locais e de Boa Vista, Oriximiná) e parceiras da SOF que atuam com
e adultos da comunidade economia solidária na Grande São Paulo

2. NOSSA PARTICIPAÇÃO EM ATIVIDADES * Seminário Mulheres Quilombolas: Gênero e


DE FORMAÇÃO EM PARCERIA OU Políticas Públicas para o Etnodesenvolvimento
REALIZADAS POR OUTRAS ORGANIZAÇÕES Organização: Programa de Igualdade
de Gênero, Raça e Etnia do Ministério do
* Oficina Mulheres Quilombolas Desenvolvimento Agrário
e Desenvolvimento Sustentável Período: 29 e 30 de março de 2005
Organização: Comissão Pró-Índio; parceria SOF Local: Brasília (DF)
Local: Colégio Pio XI, São Paulo (SP) Participantes: 20 mulheres de grupos
Período: 12 a 14 de maio de 2004 produtivos em quilombos

* Oficina Mulheres Indígenas do Litoral Norte * Oficina de Mulheres Guaranis


Organização: Comissão Pró-Índio de São do Litoral de São Paulo
Paulo; parcerias SOF e Núcleo Picinguaba do Organização: Comissão Pró-Índio; parceria
Parque Estadual da Serra do Mar. SOF
Local: Ubatuba (SP) Local: Parque Estadual de Ubatuba (SP)
Período: 27 a 28 de julho de 2004 Período: 15 a 18 de julho de 2005
Participantes: 30 mulheres
* Curso de Agentes de ATER
(Assistência Técnica e de Extensão Rural) 3. PARTICIPAÇÃO EM
que Atuam com Comunidades Quilombolas ATIVIDADES INSTITUCIONAIS
Organização: Setor de Extensão Rural da
Secretaria de Agricultura Familiar do Ministério * Encontro de Parceiros da Oxfam
do Desenvolvimento Agrário Local: Recife (PE)
Local: São Luís (MA) Período: 23 e 27 de maio de 2004
Período: 21 a 25 de fevereiro de 2005
Participantes: 30 pessoas * Seminário: Incorporação da Perspectiva
de Gênero nos Programas e Projetos de
* Reunião de Intercâmbio sobre Desenvolvimento da Oxfam GB no Brasil
Economia Solidária Local: Recife (PE)
Organização: CPI; parceria SOF Período: 20 a 22 de fevereiro de 2006
Local: São Paulo Participantes: entidades de assessoria que
Data: 18 de março de 2005 trabalham a questão de gênero nos diversos
Participantes: ARQMO (Associação dos programas da Oxfam

35
Um canto pela justiça,
um canto pela vida digna
Morna Macleod/Ana María Rodríguez*

Este texto é um fragmento do trabalho da autora, concluído em julho de 2005 e publicado em Historias
a dos voces: testimonios de luchas y resistencias de mujeres indígenas**, resultante de uma entrevista feita
por ela com Ana María Rodríguez, da etnia maia Mam, proveniente de um município majoritariamente
indígena do departamento guatemalteco de San Marcos, fronteiriço com o México. Por meio dele,
conhecemos o contexto de luta de mulheres mestiças e indígenas de diversas etnias da Guatemala,
marcadamente pela eqüidade de gênero, mas extensivamente também pela justiça social. Os antecedentes
de Ana María são os de uma mulher que, aos poucos, por contingências de sua vida, acaba entrando em
contato com as conturbações político-sociais de seu país e buscando asilo político no México, onde, após
algum tempo, passa a ter sua atividade voltada para as questões da cultura de gênero.

O REFÚGIO Começamos a estimular a sindicalização


das trabalhadoras domésticas, mas logo tive
Refugiei-me com minha filha, Estaba, contato com os grupos que trabalhavam
em Chiapas, na fronteira com a Guatemala. com os refugiados. Meu irmão engajou-
Meu companheiro, morto na guerra, só a se neles e eu, na verdade, teria preferido
viu quando ela nasceu. Depois da morte continuar em Cuernavaca, pois ali o
dele, parti para Cuernavaca [cidade próxima aprendizado no ambiente de luta das
da capital mexicana] e comecei a procurar mulheres era diferente.
um trabalho remunerado. Isso porque, Eu vinha de um ambiente muito fechado,
na fronteira, eu trabalhava de graça com de muito temor e perseguição, onde me
mulheres, pois vivia com uma família que sentia inibida para dar minhas opiniões.
também colaborava, sem remuneração, Além disso, o medo de perseguição me
com esses projetos para refugiados. Nossa tornava pouco confiável, já que podia ser
sobrevivência devia-se à comida dada pela acusada de guerrilheira. Mas percebi que
Igreja e à venda de artesanato. Tudo ali era a situação no México era mais livre: as
muito limitado e difícil, e por isso tomei mulheres não eram perseguidas; lutavam
essa decisão. por seus direitos, por uma mudança; a
Em Cuernavaca, a vantagem era o sindicalização não era proibida. Comecei
conhecimento que se obtinha do trabalho realmente a abrir-me; percebi que não
com grupos de trabalhadoras domésticas. nos perseguiam e não podiam nos matar,
Trabalhei um ano nisso e, depois de três que não tinha de permanecer proibida de
meses, fui eleita membro da junta diretiva. expressar minhas idéias ou de trabalhar.

* Morna Macleod é doutoranda em Estudos Latino-americanos da Faculdade de Ciências Políticas e Sociais da Unam (Universidade
Nacional Autônoma do México). (N.E.)
** Coordenado por R. Aida Hernández (Morelia, México, Instituto Michoacano de la Mujer).

36
E aquele ano foi-me útil para fortalecer que também queremos trabalhar em grupo,
a auto-estima que a guerra destrói pela fazer pão para vender e ter uma renda.”
perseguição, sobretudo pela violência. Mas E, de fato, as 25 mulheres trouxeram seus
disseram-me: “Por que você está fora? maridos. Eu não estive nessa reunião, mas
Estamos aqui, também, guatemaltecos as companheiras me relataram. Um deles
refugiados. Você tem de nos apoiar”. argumentou: “Ah, pobres mulheres! Nós,
É claro que, então, me integrei. Começamos que somos homens, por acaso estamos
a trabalhar nos acampamentos de Campeche, conseguindo algo? A cooperativa tem muita
Quintana Roo e Chiapas1. Queríamos dificuldade e nos está devendo, e, às vezes,
realmente fazer um trabalho a partir das nem temos podido trabalhar direito. E
necessidades dos refugiados, organizá-los, vocês, que são mulheres, o que vão poder
porque conhecíamos suas reivindicações, fazer?” As recusas começaram com outros
sobretudo a de preparar seu regresso. três e, então, os demais acompanharam:
Fiquei ali durante um tempo. Trabalhava “E a comida? E os filhos? Como fica tudo
com homens, na colheita de feijão, isso se vocês querem trabalhar? Não, não,
amendoim e milho das cooperativas; a não vou dar permissão”. No final, restaram
equipe de campo era formada por um apenas uns três casais.
mestiço, um Ixil* e eu, que sou Mam, Voltei uns cinco dias depois dessa
servindo de intérprete para o meu povo. Nas reunião, e as mulheres estavam cabisbaixas.
comunidades, depois da reunião com os Encontrei a líder do grupo muito triste em
homens, as mulheres Mam se aproximavam sua casa: “Nossos maridos já nos dividiram,
e me diziam: “E você, por que só conversa o grupo não existe mais. Só restamos eu e
com os homens? Por que não conosco, Juana. Porque os homens disseram que vão
também? Se não nos informam nada, não nos pegar, se nos virem juntas”. Mas ela
sabemos como está o país, a situação, nada. acrescentou: “Mas agora já somos cinco
Só sentadas em casa, nada podemos fazer. outra vez”. Como todas iam buscar água
Queremos uns vinténs, fazer algo. Por que nas bicas, ali puderam se comunicar e ser
não trabalha conosco?” Disso originou-se incentivadas: “Vamos continuar! Vamos
meu interesse em mim, como mulher, e continuar!” E três delas concordaram.
nelas, e também na Madre Tierra2, em 1988. O mais bonito foi que, se o grupo havia
Começamos a formar grupos de mulheres sido destruído, o forno estava pronto ao
nos acampamentos de Campeche, Quintana meu regresso! “E agora, quando chego,
Roo e Chiapas. Essa história começou, os senhores estão fazendo um forno?”
de fato, com as refugiadas Mam, em Eram uns cinco trabalhando e disseram-
Campeche. Cada uma cedeu um ovo de me: “Sim, é das mulheres”. Comentei com
galinha para vender, a fim de conseguirmos a companheira: “É verdade, o forno está
o capital inicial para fazer pão. Mas pronto”. Mas ela me confidenciou: “Sim,
necessitávamos de um forno grande e elas já, mas se você soubesse a história desse
resolveram pedir ajuda aos homens para forno...”. Fiquei curiosa e ouvi a história:
construí-lo. “Traremos nossos maridos e
falaremos com eles em conjunto. Diremos

* Ixil, Mam, K’iche, Q’eqchi’, Kanjobal e Kaqchikel são grupos étnicos da Guatemala,
que descendem dos maias, cada qual com seu idioma. (N. T.)

37
“Como agora é lua cheia, demos o jantar patriarcais de direção, como a de dominar
e pusemos os filhos para dormir, às 7 os demais, que não desejávamos repetir.
ou 8 da noite, e andamos às escondidas Começamos a gerenciar uma escola
por aí catando pedras, todas as noites. Já com muita dificuldade, mas tivemos o
durante o dia, combinávamos e saíamos primeiro apoio externo, como Madre
para buscar madeira e cortar os paus”. Na Tierra, de um governo local autônomo
verdade, então, elas começaram a fazer o da Espanha. A Escola de Formação e
forno. A companheira continuou: “Quando Capacitação de Mulheres Indígenas e
as outras viram o que estávamos fazendo, Camponesas concentrou-se em Organização
outras cinco se juntaram a nós e ficamos Comunitária, Educação Popular, Empresas
em dez”. Puseram pedras, terra e tudo mais, Populares e Gênero Básico. Criamos o
e depois levantaram a mesinha do forno. nome “Gênero Básico” na intenção de
“Começamos a fazer o forno, mas, como compreender o conceito de gênero e de
não sabemos fazer forno de pedra redondo, definir como desejávamos que ele se
ao chegarmos na metade, ele caía”. traduzisse para nós, pois tínhamos muita
Como eu estava trabalhando com os dificuldade de interpretá-lo. O significado
homens na cooperativa, eles sabiam da não podia ser encontrado nem em cada uma
minha data de retorno. Uma semana antes, nem no grupo. Essa oficina gerou espaço
envergonhados por terem deixado as para analisá-lo e saber como trabalhar a
mulheres fazendo o forno sozinhas e com questão da eqüidade. Tivemos, de fato,
medo do que eu pudesse dizer, decidiram o apoio dos livros, de documentos e de
ajudar. Não foram todos, mas uns cinco que, bibliografia, mas nos esforçávamos mais
por vergonha, completaram o alto do forno. para construir nossos próprios conceitos.
Mas isso foi o começo. Sabíamos que Quanto à matéria de Organização
tínhamos de nos preparar. Como mulheres, Comunitária, em que se trabalhou o Papel
era enorme nossa dificuldade de acesso de Liderança, também nela utilizamos as
aos espaços, aos recursos. E quando experiências das anciãs para chegarmos a
chegaríamos à universidade, se nem ao como deve ser desempenhado esse papel.
menos sabíamos ler e escrever? Disso Outro foco de estudo foi o de Empresas de
surgiu, já em 1993, a idéia das Escolas de Mulheres, porque queríamos manter nossos
Mulheres Lideranças. Decidimos preparar- projetos; não os deixamos de lado, por mais
nos por nossa própria iniciativa. É certo que que fracassássemos. Víamos os fracassos
o Acnur [Alto Comissariado das Nações como uma aprendizagem. Se não sabíamos,
Unidas para os Refugiados], o Serviço queríamos aprender a trabalhar projetos
Jesuíta a Refugiados e outras ONGs nos produtivos de mulheres e a tocar essas
ofereciam oficinas sobre gênero, educação empresas, que depois passamos a chamar de
sexual, saúde mental, e assim por diante. Empresas Populares. Elaboramos um manual
Mas elas aconteciam esporadicamente de Empresas Populares, outro de Organização
e precisávamos daquelas destinadas a Comunitária e outro, ainda, de Gênero
fortalecer uma organização, a nos dar Básico. Eles são a sistematização das idéias
uma formação sistemática, sustentada das mulheres, com base na Escola. Isso nos
por três eixos: o conceito de organização; ajudou muito, para estabelecer os objetivos,
o significado de ser dirigente; a atitude saber como evitar que a administração se
dentro da organização. Havia atitudes algo corrompesse, como realizá-los, quem os

38
assumiria, como fiscalizar o funcionamento, participar do processo de gestão e
quem iria fazer a contabilidade. As negociação das terras”. Foi um tiro certeiro.
companheiras que são hoje dirigentes da Era essa a intenção, e as companheiras
Madre Tierra saíram dessa escola foram admitidas: assim, entraram na
Em agosto de 1993, a Madre Tierra já equipe uma representante da Madre Tierra
era uma organização sólida com os grupos de Chiapas, uma de Campeche e outra de
dos três estados. Foi quando começamos Quintana Roo.
a planejar o que fazer a curto e a longo Todas as mulheres são da zona nordeste
prazos, e o retorno, que era um ponto do país, mas aspirava-se a chegar a
importante. Passamos a nos concentrar uma área na Costa Sul que pertencera a
no retorno. Originalmente tínhamos em latifundiários5. E isso também foi uma
mente ir para Ixcán, para as terras de grande conquista, pois negociou-se a
onde havíamos saído, pois o governo base de crédito6 e assim se deram os
guatemalteco ainda não permitia o regresso primeiros retornos à Costa Sul7, onde
à Costa Sul. a Madre Tierra teve a oportunidade de
se instalar, de maneira organizada, com
O RETORNO projetos e trabalhos. Essa integração foi
outra aprendizagem, pois chegou-se a
A Madre Tierra surgiu de um processo de uma região nova, que as famílias e as
migração, de deslocamento. O retorno3 foi mulheres desconheciam. Nas fazendas, só
como uma segunda etapa de aprendizagem havia as casas dos proprietários e, como
de nossa instituição. Depois de viver como eram fazendas de gado e de algodão, já
refugiados, na volta à terra natal tem-se não tinham muita vegetação. No refúgio,
uma esperança. Para as mulheres da Madre igualmente, as pessoas não encontraram
Tierra, a esperança principal é o direito às nada e tiveram de construir. Depois de
terras e poder contribuir para a mudança. terem deitado raiz, voltaram a arrancar as
As companheiras diziam: “Precisamos plantas e regressaram à Guatemala, onde
voltar à Guatemala a fim de contribuir para tiveram de semear novamente e fazer
a mudança, e não para vivermos a vida de barracas de náilon para morar. Em vista
antes, de opressão, de discriminação como disso, a Madre Tierra tomou a iniciativa de
mulheres”. O plano é que a Madre Tierra construir um armazém de víveres com um
integre as comissões de gestão de terras, fundo de 140 mil quetzales*. Em um ano
como parte das Comissões Permanentes4. e meio as mulheres já tinham recuperado
Lembro-me de alguns companheiros 70% desse capital. O armazém tornou-se
dizendo, em uma assembléia realizada para auto-sustentável, e o gado também, pois
definir a equipe de gestão: “Pois é, que bom conseguiram ter 170 cabeças.
que as companheiras estão no grupo, porque A Madre Tierra é também uma semente
elas servem para fazer a comida, lavar a de mudança. As mulheres dizem: “Vejam,
roupa”. Então a companheira Raquel se vamos voltar à Guatemala, mas não
levantou, pegou o microfone e protestou: para viver a vida de antes. Queremos ir
“Companheiros, nós não estamos aqui e crescer na Guatemala, compartilhar
para fazer comida e lavar roupa. Queremos nossas experiências com outras mulheres

* Quetzal: moeda guatemalteca. (N.T.)

39
e para que também elas possam trabalhar havia organização, convidamos mulheres
conosco”. Esse sonho realizou-se, porque interessadas e elas começaram a criar
de fato se regressou à Guatemala, mesmo as suas. É o caso da Estrella Tz’utujil,
que somente para três comunidades: de Sololá, que se fortaleceu com cinco
Nuevo México, La Lupita e El Carmen. comunidades. A Madre Tierra deu-lhe um
Fizeram-se encontros e convidaram-se as acompanhamento inicial até que fizesse seu
mulheres das comunidades vizinhas, que, plano e, desde então, caminha sozinha. O
no começo, se aproximavam dizendo: mesmo acontece também em Huehue e em
“Ah, é uma organização importada, com San Sebastián, onde as mulheres são Mam
mentalidade mexicana. Vocês se agarraram e, no ano passado, terminaram seu plano
a isso, e na Guatemala não é assim”. Ao estratégico. A Madre Tierra administrou
que respondíamos: “Desculpem, mas não é um projeto para que construíssem sua
importada. É nossa iniciativa. Só estivemos sede. As de Río Sqisal já têm seu centro
refugiadas no território mexicano, mas lá de capacitação de dois pisos, depois de
fizemos nossa organização e regressamos dois anos de formação na Escola com
com o objetivo de ficar e de trabalhar acompanhamento pela Madre Tierra.
aqui na Guatemala”. É claro que, então, Em 2003, Nebaj ganhou uma Escola
compartilhando nossas experiências, as Regional, modalidade que a Madre Tierra
companheiras locais foram se interessando. começou a colocar em prática. Escolas
E elas também tinham seus interesses e seus regionais são pensadas para fortalecer mais
grupos formados. Esse foi um processo de mulheres nas comunidades. De duas oficinas
muitos encontros. A Madre Tierra fez seu em Nebaj saíram mulheres para quatro
diagnóstico, para redefinir seu trabalho aqui organizações, aglutinando 21 comunidades e
na Guatemala, estudou dez comunidades (as com 675 sócias, mas ainda em fase de início.
três de retornadas e as dos arredores) e oito A Madre Tierra não pretende expandir-se
decidiram integrar-se nela. com esse mesmo nome, mas contribuir
Já para as mulheres Ixiles o para lançar a semente e fazer crescerem
processo é outro. Em 2000, tivemos a as organizações em todos os cantos, a fim
oportunidade de administrar novamente de que trabalhem conjuntamente. Agora o
a Escola de Lideranças Mulheres, que sonho é, uma vez tendo organizações irmãs,
foi aberta e integrou organizações de podermos nos unir em uma luta nacional de
outros departamentos* que solicitaram mulheres rurais.
apoio à Madre Tierra: Sololá, Petén, Estimula-se a participação das mulheres
Huehuetenango, Chimaltenango, Nebaj nos espaços políticos em âmbito nacional.
en El Quiché, além dos de Chiquimula, Temos uma aliança de mulheres retornadas:
Alta Verapaz, Suchitepéquez e Escuintla. Mama Maquín, Ixmukane e Madre Tierra,
Cobrimos, então, onze organizações em e estamos lutando pela co-propriedade da
nove departamentos. São oferecidas dez terra e pela participação das mulheres, tanto
oficinas em dois níveis – avançado e nacional como localmente, na tomada de
principiante –, e as organizações já estão decisões. Mas, primeiro, preparamo-nos
se consolidando com as novas lideranças a nós mesmas, adquirindo condições em
formadas na Escola. Nas regiões onde não nível local, para depois darmos o outro

* Departamento: na Guatemala, como em outros países, divisão política sob uma autoridade administrativa. (N.T.)

40
salto, que é a luta nacional, de forma mais retorno e a eqüidade de gênero. A identidade
consolidada, e creio que já o conseguimos. étnica nunca foi considerada. Apenas ao
E a Madre Tierra também está aliada às regressar, as mulheres se dão conta de
organizações mistas da CNOC8. que aqui está sua família, seu povo, sua
gente e seu traje. Algumas oficinas, como
ETNICIDADE, REFÚGIO E RETORNO as do Oxfam Australia11, de Gênero e de
Cosmovisão, são aproveitadas para ajudar
Tivemos muitas mudanças durante o a entender um pouco mais nossa situação.
refúgio, algumas positivas e outras que nos O mesmo se pode dizer das oficinas de
afetaram. No aspecto étnico, vivemos um formação do Centro Maia Saqb’e12, das
lapso, porque no refúgio não podemos usar quais participaram mulheres da Mama
nossos trajes. Embora isso fosse possível Maquín, Ixmukane e Madre Tierra. As
nos acampamentos, não havia mais tela e companheiras que os freqüentam começam,
fios para fazer os trajes, pois as condições já no processo de formação, a comprar seu
econômicas não permitiam; era mais fácil traje, a querer reaprender o idioma ou a
comprar um vestido, uma calça, ainda que melhorar nele. Assim, reconhecemos nossa
de paca9, que são realmente mais baratos. raiz para podermos visualizar para onde
E as refugiadas dispersas não podiam usar vamos, como mulheres e como indígenas.
seu traje e falar seu idioma. Isso teve tanta Uma vez conhecendo sua história e sua raiz,
ressonância que nos desligamos desse as pessoas passam a buscar o entendimento
laço comunitário natural. Obviamente como uma mesma sociedade, uma mesma
perdemos muitos valores a partir dos filhos, vida, uma verdadeira vida. Essas oficinas
principalmente o idioma, pois eles não nos ajudaram a fixar-nos, o que também
aprenderam a falá-lo. Algumas comunidades serviu para visualizarmos o caminho a
se mantiveram unidas e preservaram seus seguir a fim de continuarmos contribuindo
idiomas, mas muitas não10 e, quando para essa mudança social.
regressam, já estão desabituadas. Nas
comunidades da Madre Tierra – à exceção AS MÚLTIPLAS NEGOCIAÇÕES
da de El Carmen, onde se preserva o traje e ENVOLVIDAS EM SER MULHER,
o idioma Mam, e alguns, como o Kanjobal ESPOSA, MÃE E DIRIGENTE
e o Kaqchikel, porque se mantiveram em
grupo e voltaram em grupo –, as jovens Ser mulher dirigente tem um ônus
já não usam o traje, só falam o idioma. diferente do que suportam os companheiros
Somente quando regressam é que tratam homens de direção. O papel da mulher
de retomá-lo, mas é muito difícil para as sempre foi ligado à cozinha, aos filhos
moças, tanto quanto para as mães, recuperar e à família. Obviamente, então, ela,
todo seu ser. Atualmente, a Madre Tierra é enquanto dirigente, tem de se superar. A
composta por cinco grupos étnicos – Mam, participação em grupos, o trabalho exigido,
K’iche’, Q’eqchi’, Kanjobal e Kaqchikel a presença em reuniões, ausentar-se da
– e por mestiças. As mestiças são talvez uns
20% e as Mam, por volta de 50%.
De fato, no refúgio, nenhuma instituição
trabalhou a questão da identidade étnica;
preocupou-se mais com a sobrevivência, o

41
comunidade e integrar-se em processos de
gestão e negociação ou de reivindicações
exigem que abandone ou adie suas
responsabilidades históricas de cuidado da
casa e da família. Creio que, nestes tempos,
participar não deve de ser somente um
custo, mas um direito também. No entanto,
é custoso deixar a família e a casa. Muitas da necessidade de mudar a sociedade são
das dirigentes já perderam o companheiro. raros. Conheço algumas pouca exceções,
E muitos companheiros criticam: “Muito homens que entendem que um futuro se
bem, vocês vivem falando de eqüidade de constrói hoje, e não amanhã, e a partir
gênero e de luta das mulheres, e a maioria de si próprios e da família, contribuindo
já não tem marido. De que raiz estão conjuntamente para a construção de uma
falando?” Alguns chegaram a dizer que a sociedade diferente. Quando aparece
mulher desintegra sua família. Certamente um companheiro novo, com uma atitude
muitas se separaram, mas essa é uma visão diferente, falando em construir uma vida
curta, porque, na situação em que vivemos, diferente, os demais começam a hostilizá-
as mulheres também podem participar ao lo. E nisso somos todos parecidos, tanto
lado de seus companheiros. Se essa situação os ladinos (mestiços) como os indígenas,
fosse diferente, com igualdade e justiça, as mulheres como os homens andamos de
não nos sentiríamos obrigadas a abandonar mãos dadas com o machismo.
esse papel tão bonito, de estar com os Tive uma experiência semelhante com
filhos, fazendo comida, lavando ou mesmo meu companheiro13. Quando estávamos
descansando quando temos vontade. no refúgio, conheci um homem diferente:
Alguns companheiros, em vez de nos colaborava comigo, me apoiava e nos
apoiarem, vêem nossa luta como se ela solidarizávamos em todo o processo
fosse feita para desintegrar a família, e de luta das mulheres e pelo retorno.
não é esse nosso objetivo. A cooperação Mas, quando retornamos à Guatemala,
dos companheiros viria fortalecer nossas ele começou a se reintegrar em sua
famílias e construiríamos uma sociedade comunidade, na família, com os amigos, e
diferente. Mas eles apenas reclamam retomou a vivência do machismo. Nessas
da comida que não foi feita, dos filhos comunidades, obviamente não houve
que estão abandonados, e assim por mudança, vive-se da forma de sempre.
diante. Se não há compreensão entre o Ele passou a embriagar-se, coisa que não
casal, a relação começa a deteriorar-se e fazia no México, e, quando discutíamos
torna-se impossível sustentá-la, porque a respeito, argumentava: “No México,
o companheiro continua fazendo essas éramos diferentes, estávamos refugiados.
cobranças. E ele vai buscar outra mulher, Agora estamos aqui e eu sou guatemalteco
outra companheira, porque não tem claro e maia, sou indígena, portanto vou agir
que a mudança social tem de ser construída como os indígenas”. A reintegração foi,
a partir da própria família, de cada um e da pois, para uma sociedade decomposta; daí
sociedade. Muitos companheiros carecem a retomada do machismo: “Por que você
do entendimento da grande decomposição vai a reuniões?” Ele não havia manifestado
da sociedade. Homens que têm consciência esse ciúme antes; tínhamos confiança um no

42
outro. Para mim, significou um retrocesso; resolver, piora a situação. A mudança tem
para ele, retomar os costumes de seu de ser realmente mais profunda; temos
povo. Infelizmente muitos companheiros de aprender a pensar no tipo de vida
readquiriram costumes negativos e se que buscamos. Temos de saber se o que
esqueceram dos novos, que nossos pais, queremos realmente é uma vida de justiça
nossas comunidades assimilaram em vinte ou uma vida remendada. Por exemplo,
anos de luta. de que vale dizer: “Bom, vou respeitar a
No refúgio, meu companheiro mulher, mas continuo sendo violento”,
lavava a roupa das crianças e a minha. ou seja, “Não discrimino mais, porém
Costumávamos nos revezar nessa e em continuo nos maus costumes”? Será muito
outras tarefas, para podermos sair, cada difícil mudar a sociedade se continuarmos
um por sua vez. Numa das ocasiões pensando parcialidades. Precisamos de uma
em que ele lavava roupa, chegou um educação social, mas a partir da limpeza
companheiro indígena, que também era do coração e da mente. Temos de encontrar
dirigente e com quem dividíamos a casa. essa mudança profunda em nós mesmos.
Ao ver roupa minha nas mãos de meu Que mudança podemos pedir se não a
companheiro, ele lhe disse rudemente: estamos vivendo pessoalmente? Quantos
“Mas nem que fosse a roupa de uma de nós estamos dispostos a mudar nosso
velha”. E continuou com as grosserias, coração e nossa mente? Mas vivamos isso
perguntando por que ele havia se deixado agora mesmo para podermos dizer: “É assim
dominar. Não presenciei a conversa, mas, que deve ser a mudança; façamo-la desta
ao me dar conta de que meu companheiro maneira”, e teremos famílias e comunidades
já não lavava minhas roupas, mas só as nesse outro nível de mudança, com justiça,
das crianças, perguntei-lhe por quê. Foi sem discriminação, machismo, violência,
quando ele me contou o ocorrido. E, por maus costumes, roubos, assassinatos, maus-
mais que tenhamos discutido a respeito, tratos em nossas famílias.
sentia-se tão envergonhado, tão agredido, Se estivermos dispostos a mudar
e somando o fato de vivermos com esse individualmente, para que necessitaríamos
companheiro, ele nunca mais lavou minhas fazer marchas e tantos projetos? E, se
roupas. Depois disso, começou a deteriorar as mudanças se perdem no nada, pois a
nos trabalhos e descambou no machismo. sociedade não se modificou, simplesmente é
Decidimos, então, pela separação, pois ele porque não há essa disposição. A educação
não mais me completava, não era mais o tem de ser integral, tem de ser da família.
mesmo homem de quando o conheci. Falei Mãe, filho, filha, pai, juntos, refletindo
com companheiros mais esclarecidos a internamente em cada família: o que os
respeito dessa pressão da sociedade sobre os torna injustos? O que faz com que uma
homens que mudaram seus costumes, e eles sociedade seja enferma? Que pontos nos
comentaram que são hostilizados por outros afetam? E, da lista de injustiças, de quantas
companheiros, por seus amigos, por pessoas estou impregnado e até que ponto estou
conhecidas, sendo até mesmo tratados como disposto a extirpá-las de minha vida e de
se fossem mulheres ou efeminados. meu procedimento? Cada qual deve se
Resolver os problemas de pedacinho em questionar a respeito disso e depois avaliar-
pedacinho é como remendar o remendado se. Claro que nossas autoridades teriam
ou remendar telas velhas: em vez de de aceitar a justiça, mas construída desde

43
os diferentes níveis, da família até nossos até mesmo na prostituição. A dignidade da
governantes. Para que seja real – e não só mulher não será respeitada se a dignidade
teórica, de palavra, documentos, projetos do homem e da família não for recuperada.
e discursos –, ela tem de ser sentida do Muitas de nós queremos agora trabalhar na
fundo do coração e nos levar à verdadeira recuperação de valores, como a justiça.
paz, uma paz que se viva, se apalpe, se Ser mãe e dirigente é, portanto, bem
sinta, e não a que permanece como sonho, complicado neste momento. Se a mulher
pois a justiça que se busca, a nova vida, tem de deixar seus filhos e não tem o
está distante. Ela só é almejada, isto é, apoio do companheiro, as coisas se
“queremos” mudar a sociedade no tornam duplamente complicadas. Ela tem
futuro, mas onde se situa esse futuro? de assumir o cuidado total dos filhos e o
Quem sabe? Não colocamos prazo trabalho como dirigente. Quanto a mim,
para nossas metas. Mas, se estamos sinto-me realmente dividida, mas não
dispostos a essa mudança agora, quantos culpada. Se há algo que tenho podido
somos? Cheguemos a um acordo, na desfrutar em minha vida é a satisfação pelo
família, na comunidade ou na organização, que faço. Para mim foi tudo maravilhoso.
para começar, e talvez possamos realmente Todas as dificuldades que passei e, além
ser uma pequena luz para acender por disso, os êxitos que consegui foram muito
todos os lados. Acredito nisso, porque, caso enriquecedores. E os passos que dei foram
contrário, vamos seguir fazendo remendos a caminho de algo que pode ser útil. Isso
e remendos, e nunca mais terminaremos foi muito importante para mim, fez-me
de remendar o que há de velho, se o que realmente viver a vida com tudo o que ela
queremos construir é algo novo, uma tela significa neste momento: uma vida meio
nova. escura e meio clara; não ainda com essa
A Madre Tierra encaminhou sua luta na luz que sonhamos, mas que vivi e da qual
defesa da dignidade da mulher, mas falta- não me arrependo. Senti-me dividida, sim,
nos construir a nós mesmas, primeiro. porque queria estar com meus filhos e, ao
Estamos buscando a forma da mudança, mesmo tempo, trabalhar na Madre Tierra.
mas é preciso realmente que todas mudem, Minha vida são também meus filhos, e
que nos respeitemos, que haja compreensão eles reclamavam isso às vezes. Mas os
nas juntas diretivas, fraternidade geral, valores que nossos pais inculcam e a crença
entendimento entre sócias, porque às em um Criador que nos acompanhou
vezes acontecem problemas cotidianos nas sempre permitiram que meus filhos,
próprias comunidades. Esse é o ponto que agora mais crescidos, compreendessem e
queremos aprofundar mais e colocamos à assumissem, também, sua contribuição.
Madre Tierra: que tipo de semente queremos E eles contribuem comigo quando se
ser? Queremos realmente contribuir para a cuidam. Meus irmãos e minha mãe também
sociedade? Analisando essa questão, várias me apoiaram muito. Eles respeitam meu
companheiras dirigentes lembraram os trabalho e a Madre Tierra. É uma sorte
doze anos percorridos, os êxitos e avanços
conseguidos como mulheres. Mas como
estão nossos maridos e nossos filhos? Nossos
filhos? Muitos viciados, muitos no crime.
Nossos maridos? Muitos no alcoolismo ou

44
minha, que nem todas as mulheres têm, a e de que se possa enfrentar a injustiça.
ajuda de minha família, que sempre ficou E, se podemos contribuir para realizar
unida e preocupada, não só comigo, mas esse sonho, vamos fazê-lo. Quero ficar
com outros irmãos e irmãs, que às vezes não com minha família, com meus filhos,
podiam estar com os filhos. que eles cresçam e se tornem capazes de
Temos de aprender a ser ambas as coisas: caminhar sozinhos, e que eu então possa
mãe e dirigente. E não se pode ser mãe e, integrar-me um pouco mais, continuar
às vezes, nem dirigente por inteiro. Nesse trabalhando e contribuindo, em processos
processo, dediquei-me mais ao trabalho de aprendizagem, mas também colaborar
social do que a meus filhos, mas depois para uma mudança, para conquistar a Vida
percebi que precisava dar valor também ao que se deseja, porque talvez aquela que
que é meu. Por isso ultimamente tratei de vivemos seja meia-vida ou talvez nem
equilibrar meu tempo: metade com meus isso. Precisamos construir a vida a partir
filhos e metade com a organização. Isso é da justiça, da eqüidade tanto de gênero,
um pouco difícil, porque me custa as duas entre os grupos étnicos, entre os pobres,
coisas, mas posso estar e compartilhar como social, numa sociedade com menos
mais com meu filhos, e as companheiras exclusão. Mas isso tudo em nosso próprio
me deram a oportunidade de descansar um ritmo, não em um ritmo que não seja o
pouco do trabalho da organização. nosso, porém o de mulheres indígenas
e rurais. Foi essa a contribuição das
O SONHO PARA O FUTURO companheiras da Madre Tierra em seu
conjunto, de apoiar e trabalhar com outros
Meu sonho é de uma sociedade justa, grupos de mulheres, para que, como disse
de comunidades e suas famílias apostando uma companheira, nossos cantos, como os
realmente em uma vida diferente, dos passarinhos, sejam ouvidos em todos
com justiça, de que acabe a violência os rincões da Guatemala, um canto de
intrafamiliar, de que se viva em plenitude justiça, um canto de uma vida digna.

Notas
1
Os refugiados chegaram a Chiapas e formaram os acam- 3
O retorno se refere aos grupos de refugiados que regressa-
pamentos. Em meados da década de 1980, o governo me- ram de forma organizada à Guatemala: 22.905 utilizaram
xicano, por razões de segurança e de fronteira, tratou de essa modalidade, a maioria dos quais voltou ao nordeste
transferir todos os refugiados para Campeche e Quintana do país, principalmente para Ixcán; 20.798 se repatriaram,
Roo, mas alguns se negaram a trasladar-se. isto é, chegaram ao país de forma individual; outro grupo
decidiu integrar-se ao México.
2
A Madre Tierra é uma das três organizações de mulheres
refugiadas no México. Ana María faz referência às ou- 4
As Comissões Permanentes de
tras duas, Mama Maquín e Ixmukane, em sua entrevista, Refugiados Guatemaltecos
mas, por problemas de espaço, concentrei-me na Madre no México (CCPPs),
Tierra. integradas por re-

45
presentantes dos acampamentos de Chiapas, Campeche e muitos anos de negociações, conseguiram que o governo
Quintana Roo, foram formadas para negociar as condi- reduzisse a dívida.
ções do retorno à Guatemala. Compôs-se uma instância
tripartite de negociação: refugiados, governos (do México 7
O primeiro retorno à Costa Sul deu-se em abril de 1995,
e da Guatemala) e entidades internacionais (o Acnur, da à fazenda La Providencia, em Escuintla (Comunidad
ONU, e agências de cooperação internacional). Em 8 de Nuevo México). Posteriormente se deram dois retornos
outubro de 1992, foi firmado um acordo global sobre o com maior participação ativa da Madre Tierra: em no-
retorno organizado e coletivo entre as CCPPs e o governo vembro de 1995, à fazenda La Lupita, e em 1997, à fazen-
da Guatemala. Um dos pontos principais do acordo foi a da El Carmen, ambas em Suchitepéquez.
garantia de acesso à terra, sendo essa terra a que antes per-
tencia aos refugiados ou nova terra comprada com crédi- 8
CNOC: Coordenadoria Nacional de Organizações
tos praticáveis. Com base no acordo global, negociava-se Camponesas.
a terra para os grupos organizados de refugiados. O pri-
meiro retorno organizado foi para a Comunidad Victoria, 9
Na Guatemala, paca é a roupa de segunda mão que vem
em 20 de janeiro de 1993. Nas CCPPs só havia homens, dos Estados Unidos.
daí que as organizações de mulheres refugiadas, Madre
Tierra, Mama Maquín e Ixmukane, não podiam integrar- 10
A maioria das novas comunidades de retornados foram
se nas negociações. formadas por pessoas e famílias de diferentes partes do
país e de diferentes acampamentos no México. Tiveram
5
Na Costa Sul estão as terras mais férteis do país. Cabe de formar a comunidade, já que não haviam vivido juntas
assinalar que, durante a longa estada de cerca de quinze antes.
anos no México, as terras originais da maior parte dos re-
fugiados foram apropriadas por outros, fossem militares e 11
Naquele tempo, eu era representante regional do Oxfam
ex-patrulheiros de autodefesa civil (moços das comunida- Australia e impulsionamos um programa educativo tradu-
des organizados pelo Exército para servir de amortecedor zido para o Kaji’E e depois para o Pop N’oj, com oficinas,
entre ele e a guerrilha), familiares ou outros membros das entre outras, de Cosmovisão e Gênero.
comunidades. Essa situação ilustra o conflituoso tema da
posse da terra em âmbito local, não só nacional. Houve 12
O Centro Maya Saqb’e (Caminho Claro), em
muita resistência dos grandes latifundiários aos retornos à Chimaltenango, realizou seu primeiro curso, “Gestão
Costa Sul, e o governo argumentava que o preço da terra Política Maia”, para organizações indígenas em 2001. O
nessa zona era demasiado elevado para admitir retornos. Saqb’e também teve importante empenho em trabalhar o
tema de “Cosmovisão e Saúde Mental”, nas exumações
6
Em outras partes do país, o crédito para a compra de terra de milhares de indígenas massacrados e enterrados em ce-
aos refugiados foi dado sob a condição de que o pagamen- mitérios clandestinos durante o conflito armado interno.
to fosse feito a um fundo que se destina a investimento
na comunidade. O governo não aceitou esse sistema na Ana refere-se aqui a outro companheiro, e não ao pai já
13

Costa Sul, a compra foi feita a crédito baixo. Depois de mencionado de sua primeira filha.

46
47
4
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