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Revista do Instituto Humanitas Unisinos
Nº 411 - Ano XII - 10/12/2012 - ISSN 1981-8769
Tropicalismo.
O desejo
de uma
modernidade
amorosa para
o Brasil
U
m modo de ser nos trópi- tão, lamenta, não há nada tão expres- Armando Almeida, consultor da
cos, uma postura de vida, sivo, inclusive em sua “monstruosida- Unesco, completa esta edição deba-
uma antropofagia que de- de barroca”. tendo no seu artigo a contracultura
glutiu a jovem guarda, a André Monteiro, também da e a indústria cultural com o pano de
bossa nova e influências além-mar UFJF, examina a tropicália, a marginá- fundo do movimento.
e regurgitou uma cultura nova e in- lia e a erosão das fronteiras culturais, Por fim, para Frederico Oliveira
quietante, embalada por guitarras cujas influências podem ser sentidas Coelho, professor e coordenador dos
elétricas e dissonâncias as mais di- até hoje, mesmo que alguns dos ve- cursos de Literatura e Artes Cênicas
versas. Tudo isso e mais um pouco lhos tropicalistas se dobrem à “máfia no Departamento de Letras da PUC-
ajuda a compreendermos o que foi do dendê”. -Rio, demorou décadas para o mundo
o movimento tropicalista, surgido Sem nenhum sentido utópico, absorver a proposta tropicalista.
em 1967 como expressão máxima de o tropicalismo foi revolucionário na Mais três entrevistas completam
uma arte que não podia e nem queria maneira de entender e fazer música a edição.
mais ser a mesma. Os tempos eram popular e no modo de produzir uma Jon Sobrino, teólogo espanhol
outros, urgia o novo. Nem o peso das conjunção entre significação estética que esteve na Unisinos em outubro
botas de um regime ditatorial pode- e significação política, pontua Celso por ocasião do Congresso Continental
ria sufocá-la. Fernando Favaretto, professor eméri- de Teologia, fala sobre a construção
Contudo, nem todos os pesqui- to da Universidade de São Paulo – USP. de uma teologia viva, que caminha
sadores que participam do debate Na opinião de Pedro Rogério, com os pobres. Por sua vez, o teólogo
proposto pela IHU On-Line desta se- professor da Universidade Fede- Carlos Mendoza, oriundo do México,
mana concordam no caráter inovador ral do Ceará – UFC, trata-se de um debate a superação do ressentimento
e emblemático do tropicalismo. transbordamento impossível de e a gratuidade do bem.
Gilberto Felisberto Vasconcellos, aprisionar, enquanto Pedro Busta- A política do precariado e a mer-
da Universidade Federal de Juiz de mante Teixeira aponta para a aceita- cantilização do trabalho é a temática
Fora – UFJF, garante que se dá impor- ção da outridade e a síntese do tran- abordada pelo sociólogo Ruy Braga,
tância exagerada ao fenômeno, que se em canções como pontos-chave que dá mais detalhes sobre sua obra
ele tipifica como o “triunfo do rico”. do movimento. A política do precariado (São Paulo:
Já Eduardo Guerreiro Brito Los- Júlio Cesar Valladão Diniz, profes- Boitempo, 2012).
so, da Universidade Federal Rural do sor da Pontifícia Universidade Católica Por fim, o publicitário e crítico de
Rio de Janeiro – UFRRJ, acentua esse do Rio de Janeiro – PUC-Rio, analisa a cinema Celso Sabadin comenta o fil-
como o último movimento vanguar- poética da agoridade, o deslizamento me argentino Elefante branco.
dista brasileiro, numa clara transição e a permanência no bojo de um modo A todas e a todos uma ótima se-
para o pós-modernismo. Desde en- de ser tropicalista. mana e uma excelente leitura!
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Instituto Humanitas
REDAÇÃO Colaboração: César Sanson,
Unisinos André Langer e Darli Sampaio,
Diretor de redação: Inácio
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São Leopoldo/RS. ISSN 1981-8769. (grazielaw@unisinos.br). Projeto gráfico: Agência
CEP.: 93022-000 IHU On-Line pode ser Redação: Márcia Junges MTB Experimental de Comunicação
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Schneider (jacintos@unisinos.br). (icorrea@unisinos.br). Wagner Altes e Mariana Staudt
2
Tema de Capa
Índice
LEIA NESTA EDIÇÃO
TEMA DE CAPA | Entrevistas
5 Eduardo Guerreiro Brito Losso: O terremoto tropicalista e sua monstruosidade
barroca
15 Celso Fernando Favaretto: Tropicalismo, uma revolução?
18 Pedro Bustamante Teixeira: Um movimento libertário?
21 Frederico Oliveira Coelho: Tropicalismo, “força fatal” da música popular
23 Baú da IHU On-Line
24 Armando Almeida: Tropicália, contracultura e indústria cultural
28 André Monteiro: Tropicália, marginália e a erosão das fronteiras culturais
31 Pedro Rogério: Um transbordamento impossível de aprisionar
34 Júlio Cesar Valladão Diniz: Poética da agoridade, deslizamento e permanência
36 Gilberto Felisberto Vasconcellos: “Tropicália, triunfo do rico e aplauso do genocídio”
DESTAQUES DA SEMANA
40 ENTREVISTA DA SEMANA: Jon Sobrino: Caminhar com os pobres para construir uma
teologia viva
43 TEOLOGIA PÚBLICA: Carlos Mendoza: A espiral da violência, a superação do
ressentimento e a gratuidade do bem
46 LIVRO DA SEMANA: Ruy Braga: A política do precariado e a mercantilização do
trabalho
49 Destaques On-Line
IHU EM REVISTA
51 Celso Sabadin: Elefante Branco e uma igreja humana, demasiado humana
54 IHU REPÓRTER: Tânia Torres Rossari www.ihu.unisinos.br
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3
Tema
de
Capa
Destaques
da Semana
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IHU em
Revista
4 SÃO LEOPOLDO, 00 DE XXX DE 0000 | EDIÇÃO 000
O terremoto tropicalista e sua
Tema de Capa
monstruosidade barroca
Marco da cultura nacional brasileira, o último movimento vanguardista representou
uma transição para o pós-modernismo, acentua Eduardo Guerreiro Brito Losso.
Há 30 anos não surge algo tão expressivo
Por Márcia Junges e Thamiris Magalhães
U
m mito de origem que fez a indústria está sendo para o Brasil, desde o tropicalis-
cultural brasileira ingressar na fase mo”. Losso fala, também, sobre o direito ao
pós-moderna. Assim Eduardo Guer- silêncio e o dever de se fornecer boa música:
reiro Brito Losso caracteriza o “terremoto “A meu ver, o problema de cuidar do que o ci-
tropicalista”, que unificou a “eureca da antro- dadão comum ouve todo dia é tão importante
pofagia com uma entrada simultaneamente quanto o que ele come”.
simpática e subversiva na indústria cultural”. Eduardo Guerreiro Brito Losso é mestre e
Em seu ponto de vista, o movimento “foi tão doutor em Letras pela Universidade Federal
(in) fielmente oswaldiano que redimensionou do Rio de Janeiro – UFRJ e Universität Leipzig,
e levou a antropofagia às últimas consequên- Alemanha, orientado por Christoph Türcke,
cias”, disse na entrevista concedida por e-mail com a tese Teologia negativa e Theodor Ador-
à IHU On-Line. Para os estrangeiros, comple- no. A secularização da mística na arte mo-
menta, a bossa nova é mais palatável, clássica derna. Na Universidade do Estado do Rio de
e compacta do que “a monstruosidade barro- Janeiro – UERJ cursou pós-doutorado. Leciona
ca do tropicalismo”. Expoente máximo dessa na Universidade Federal Rural do Rio de Janei-
vertente, Caetano Veloso “soube fazer de sua ro – UFRRJ e é um dos autores de O carnaval
vida a epopeia de um herói brasileiro, um se- carioca de Mario de Andrade (Rio de Janeiro:
mideus macunaímico”, algo como um Goethe Azougue Editorial, 2011). Conheça seu site
verde amarelo: “Não acho exagero dizer que http://www.eduardoguerreirolosso.com/.
o que Goethe foi para a Alemanha Caetano Confira a entrevista.
IHU On-Line – Qual é o contexto havia muita gente estudando os expo- A pergunta leva a uma questão
de surgimento e qual era o objetivo entes principais, Gilberto Gil2 e, princi- mais grave: o que dizer do tropicalis-
do tropicalismo? palmente, Caetano Veloso3. mo? Se tanto já foi dito, devemos ser
Eduardo Guerreiro Brito Losso
– Não sou especialista em tropica- 2 Gilberto Passos Gil Moreira (1942): mú- uma carreira que já ultrapassa quatro dé-
lismo (e hoje não existem poucos), sico e político brasileiro. Em fins de 1968, cadas, construiu uma obra musical mar- www.ihu.unisinos.br
mas posso dizer que sou o primeiro Gil e Caetano Veloso, cuja importância cada pela releitura e renovação, conside-
no Brasil era, e é, de certa forma com- rada de grande valor intelectual e poéti-
e um dos únicos a escrever academi- parável à de John Lennon e Paul McCar- co. Em 1969, é preso pelo regime militar
camente sobre uma de suas maiores tney no mundo anglófono, foram presos e parte para exílio político em Londres,
realizações estritamente musicais: os pelo regime militar brasileiro instaurado onde lança Caetano Veloso (1971). Transa
após 1964 devido a supostas atividades (1972) representou seu retorno ao país e
Mutantes1. Mas se escrevi esse artigo subversivas, de que foram taxados. Am- seu experimento com compassos de reg-
sobre eles foi justamente porque já bos exilaram-se por ocasião do AI-5 (Ato gae. Em 1976, une-se a Gal, Gil e Bethâ-
Institucional 5) do governo militar em nia para formar o Doces Bárbaros, típico
vigência no Brasil a partir de 1969 em grupo hippie dos anos 70, lançando um
1 Os Mutantes: banda psicodélica brasi- Londres. Nos anos 1970 iniciou uma turnê disco, Doces Bárbaros. Na década de 80
leira formada em 1966, em São Paulo, por pelos Estados Unidos e gravou um álbum apadrinhou e se inspirou nos grupos de
Rita Lee (vocais), Sérgio Dias (guitarra, em inglês. De volta ao Brasil, em 1975 Gil rocks nacionais, aventurou-se na produ-
vocais) e Arnaldo Baptista (baixo, teclado, grava Refazenda, um dos mais importan- ções dos discos Outras Palavras, Cores,
vocais). Depois de quase trinta anos ausen- tes trabalhos que, ao lado de Refavela, Nomes, Uns e Velô, e em 1986 participou
tes dos palcos, o grupo retorna em 2006 gravado após uma viagem ao continente de um programa de televisão com Chi-
com sua formação clássica, exceção feita a africano, e Realce, formariam uma trilo- co Buarque. Na década de 90, escreveu
Rita Lee, que não aceitou voltar ao grupo. gia RE. Foi ministro da Cultura entre 2003 Verdade Tropical (1997), e o disco Livro
A cantora Zélia Duncan foi convidada a as- e 2008. (Nota da IHU On-Line) (1998) ganha o Prêmio Grammy em 2000,
sumir os vocais e desde então acompanha 3 Caetano Veloso (1942): músico, produ- na categoria World Music. (Nota da IHU
a banda. (Nota da IHU On-Line) tor, arranjador e escritor brasileiro. Com On-Line)
(mensagens como “Incorporo a Revolta” ra do final dos ano 50 lançado por João
e “Estou Possuido”), e os materiais com Gilberto, Tom Jobim, Vinícius de Mora- compreensível que a monstruosidade
que é executado (tecido, borracha, tinta, es e jovens cantores e/ou compositores barroca do tropicalismo.
papel, vidro, cola, plástico, corda, palha) de classe média da zona sul carioca. De
a partir dos movimentos de alguém que o início, o termo era apenas relativo a um
A tropicália não foi só o último
vista. Por isso, é considerado uma escul- novo modo de cantar e tocar samba na- movimento vanguardista determinan-
tura móvel. Em 1965, foi expulso de uma quela época, ou seja, a uma reformula- te do Brasil: foi já, em si mesmo, uma
mostra no Museu de Arte Moderna do Rio ção estética dentro do moderno samba
de Janeiro por levar ao evento integran- carioca urbano. Com o passar dos anos,
transição para o pós-modernismo e
tes da Mangueira vestidos com parango- a Bossa Nova tornou-se um dos movimen- a resultante predominante de todos
lés. A experiência dos morros cariocas fa- tos mais influentes da história da música os outros movimentos. Mas, se estou
zia parte da dimensão da sua obra. (Nota popular brasileira, conhecido em todo
da IHU On-Line) o mundo , um grande exemplo disso é
incorporando a sua grandiloquência
5 José Celso Martinez Corrêa (Arara- a música Garota de Ipanema composta para caracterizá-lo, não posso deixar
quara, São Paulo, 30 de março de 1937): em 1962 por Vinícius de Moraes e Antô- de dizer que sua predominância não
conhecido como Zé Celso, é uma das nio Carlos Jobim. Sobre o tema, confira a
figuras mais importantes ligadas ao tea- edição da IHU On-Line intitulada Chega
tro brasileiro. Destacou-se como um dos de saudade... Bossa Nova, 50 anos, de
principais diretores, atores, dramaturgos 08-09-2008, disponível em http://bit.ly/ roll na veia. Edição 212, de 19-03-2007,
e encenadores do Brasil. (Nota da IHU YzDFvb. (Nota da IHU On-Line) disponível em http://bit.ly/ySPITJ.
On-Line) 7 Sobre o tema, confira a revista Rock ‘n’ (Nota da IHU On-Line)
Tema de Capa
dos movimentos afins, muito menos aristocracia da celebridade. O “sol condenação antiga de condescendên-
deve ser motivo de descaso, desprezo nas bancas de revista” é o rei Sol do cia com a ditadura. Em seguida, uma
e, pior, desconhecimento das tendên- mundo da celebridade e da cultura e, coluna de José Miguel Wisnik9, outra
cias a ele divergentes ou, simplesmen- sinceramente, por mais que Pelé seja de Francisco Bosco, botam o pingo
te, diversas. Pelé, a persona pública do craque do dos is e revelam que o calcanhar de
É fato que foi o trabalho de co- futebol não é páreo para o craque da aquiles de um dos maiores intelec-
nexão posterior de seus pivôs, Gil arte de ser artista, intelectual e estre- tuais de mundo, outrora difícil de fo-
e Caetano, com os acontecimentos la. Ele retira declarações de amor bem car, ficou à mostra numa condenação
culturais e políticos os mais diversos, diretas de músicos, atores, modelos, completamente despropositada. E
isto é, a prática estético-política pro- jornalistas, esportistas, políticos, bem anuncio de antemão: chegará o dia
gressiva da pluralidade do movimento como outras não tão indiretas, mas em que João Camillo Penna, um dos
numa integração crescente dos mais não menos emocionadas e sideradas, maiores nomes da ensaísmo teórico
diversos fenômenos artísticos e pops, de antropólogos, críticos literários, no Brasil hoje, apresentará uma se-
intelectuais e célebres, fez com que colunistas, poetas, filósofos. Ele fez nhora resposta devidamente funda-
Gil e, principalmente, Caetano se tor- muito para se ligar a muita coisa – o mentada em forma de livro a vir. Em
nassem, paulatinamente, epicentro que deriva de sua própria versatili- outras palavras: quando um Hércules
de um oceano variável de debates e dade de assimilar e dialogar com di- resolve afrontar o leonino, sai perden-
questões, bem como relações de po- versas instâncias – e, por conseguin- do no seu próprio território.
der e prestígio. te, uma multidão profusa anseia por Há uma palavra interessante para
Precisamente porque a impor- estar ligada a ele. A tentação de se se referir à história da cultura alemã:
tância dessas figuras não deve dimi- querer ser pai, filho, neto do tropica- Goethezeit. A “época de Goethe10” foi
nuir a de outros integrantes do tropi- lismo é grande e, particularmente, do o período – longo e glorioso – de vida
calismo nem outros artistas que nada Superbacana. de Goethe, que abarcou Kant11, revo-
tem a ver com o mesmo, vale a pena Assim, o impacto, constância do
entender o porquê do sucesso de seu “tempo tempo tempo tempo”, expan-
9 José Miguel Soares Wisnik (1948): mú-
maior expoente. A raríssima e feliz são e aprofundamento da influência sico, compositor e ensaísta brasileiro. É
conjunção alquímica de Caetano ser de Caetano nos setores mais diversos também professor de Literatura Brasilei-
ao mesmo tempo um poeta e pensa- (universidade, mídia, política e, como ra na Universidade de São Paulo. Gradu-
ado em Letras (Português) pela Universi-
dor de primeira grandeza; uma cele- não poderia deixar de ser, música) dade de São Paulo (1970), mestre (1974)
bridade marcante, cativante, carismá- fez dele, consequentemente, alvo de e doutor em Teoria Literária e Literatura
tica; um polemista constante, atento, grosseira vituperação. Contudo, como Comparada (1980), pela mesma Universi-
dade. (Nota da IHU On-Line)
impetuoso e corajoso; um observador seus adoradores são, em grande par- 10 Johann Wolfgang von Goethe (1749-
certeiro do que ocorreu, ocorre e está te, muito finos e valorosos, em geral 1832): escritor alemão, cientista e filó-
para ocorrer; enfim, o caráter de ho- a defesa e contra-ataque, dele e dos sofo. Como escritor, Goethe foi uma das
mais importantes figuras da literatura
mem apaixonado pela vida concreta e seus, vence de longe as pedras e to- alemã e do Romantismo europeu, nos
presente, logo, pelas complicações e mates, os quais, aliás, desde o discur- finais do século XVIII e inícios do século
aventuras da vida pública mais inten- so de “É proibido proibir”, fazem parte XIX. Juntamente com Schiller foi um dos
líderes do movimento literário român-
sa, às vezes alegre, de sorriso leve e do show. tico alemão Sutrm und Drang. De suas
aberto, às vezes feroz (na sua incon- Porém, há também adversários obras, merecem destaque Fausto e Os
trolável ira contra as mentiras jorna- de maior estatura, como Roberto sofrimentos do jovem Werther. (Nota da
IHU On-Line)
lísticas), barrocamente disperso, pro- Schwarz8, que terminam por se sen- 11 Immanuel Kant (1724-1804): filósofo
lixo, mas veloz e agudo, fez dele uma tir extremamente incomodados com prussiano, considerado como o último
entidade apaixonante. Seu modo de o alcance de seu domínio num setor grande filósofo dos princípios da era mo-
derna, representante do Iluminismo, in-
gostar de ser elogiado obtém profun- que, em outros países, não poderia
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discutivelmente um dos seus pensadores
dos elogios, seu narcisismo declarado ser o dele (isso se ele não passa de um mais influentes da Filosofia. Kant teve
e autocrítico instiga a devoção alheia, cantor de rádio), e resolvem escrever um grande impacto no Romantismo ale-
mão e nas filosofias idealistas do século
por mais irritante que possa ser a ou- ensaios longos reconhecendo, por um XIX, tendo esta faceta idealista sido um
tros olhos; sua mãe, suas mulheres e lado, a grandeza literária de seu livro ponto de partida para Hegel. Kant esta-
amantes compõem a continuação épi- (o que é, na verdade, um tremendo beleceu uma distinção entre os fenôme-
nos e a coisa-em-si (que chamou noume-
ca do mito de origem que é o tropica- dum troféu, vindo de quem vem) e, non), isto é, entre o que nos aparece e o
lismo no mito homérico que é a vida por outro, demarcando claramente que existiria em si mesmo. A coisa-em-si
de Caetano. não poderia, segundo Kant, ser objeto de
conhecimento científico, como até en-
8 Roberto Schwarz (Viena, 20 de agos-
Semideus macunaímico to de 1938): crítico literário e professor
tão pretendera a metafísica clássica. A
ciência se restringiria, assim, ao mundo
Sim, ele soube fazer de sua vida aposentado de Teoria Literária brasileiro. dos fenômenos, e seria constituída pelas
a epopeia de um herói brasileiro, um Um dos principais continuadores do tra- formas a priori da sensibilidade (espaço
balho crítico de Antonio Candido. Redigiu e tempo) e pelas categorias do enten-
semideus macunaímico. E como todo estudos sobre Machado de Assis elenca- dimento. A IHU On-Line número 93, de
herói grego tem de ser aristocrático, dos entre os mais representativos sobre 22-03-2004, dedicou sua matéria de capa
o menino de Santo Amaro se tor- o autor das Memórias Póstumas de Brás à vida e à obra do pensador com o título
Cubas. (Nota da IHU On-Line) Kant: razão, liberdade e ética, disponí-
Tema de Capa
e adorado pela multidão ao longo de Uma vez que, primeiramente, uma linha tão natural de evolução e
décadas, enfim, de ter marcado pro- o jazz20 e a bossa nova, depois o tro- afinidades entre tropicalismo e o lixo
fundamente a alma de tantos ouvin- picalismo e o rock psicodélico e pro- de todo dia?
tes. E isso justifica o fato de Caetano já gressivo em geral, tenham feito uma Eu não posso deixar de me pro-
ter declarado que não gosta de Led Ze- conquista dessa dimensão, é contra- nunciar: a cafonice de Led Zeppelin
ppelin18, por achar “cafona”, mas ado- ditório e lamentável, depois, diluir é infinitamente superior à de Danie-
rar Daniela Mercury, Sandy e Júnior e essa mesma conquista e abraçar ce- la Mercury. Ainda que Caetano seja
etc. Logo, Roberto Carlos, que ainda lebridades que nada contribuem para exemplar na maioria de suas atitudes
é interessante, se tornou o primeiro o valor intrínseco da obra de arte. E (é o que acho), neste ponto ele não
de uma série de ternos acolhimentos toda a crítica da opressão racista em pode ser justificado, por mais malaba-
que artistas de alto calibre, como Cae- torno da alta cultura, por mais impor- rismos argumentativos que inventem.
tano e Gil, mas não só eles, Chico Bu- tante que seja e por mais que deva- Peço aos seus fãs intelectuais que
arque19 também, fizeram de gente de mos assimilá-la, não deve pulverizar poupem tinta nesse caso e admitam
estrondoso sucesso e nenhuma quali- a necessidade de se discutir o que é que ele não será uma boa referência
dade. Devemos condená-los por isso? bom e o que não é na indústria mu- para introduzirmos um critério esté-
Não, discordo daqueles que se acham sical de massa – só deve ser um fator tico do que é bom e o que não é na
no direito de policiar escolhas afetivas de complexificação. Sempre me per- indústria cultural. E não adianta evi-
de quem quer que seja. gunto uma coisa: se não admitimos, tar: isso é uma tarefa que todos estão
Contudo, uma das lutas mais di- na literatura, essa confusão, se conti- adiando, mas que deve ser feita, por
fíceis do surto criativo do rock dessa nua sendo claro para todos que Paulo mais que haja fatores relativizantes a
época e do tropicalismo foi a de rom- Coelho21 não é igual a Clarice Lispec- se interpor no caminho. A mania dos
per com a separação de alta e baixa tor22, porque na música pop teóricos pró-caetanistas de se mobilizarem em
cultura, de modo a produzir obras de justificar tudo o que ele diz e faz acaba
grande valor que não devem nada à se tornando suspeita.
chamada alta cultura, antecipando, 20 Sobre esse estilo musical, confira a re- Como figuras do porte de Cae-
vista IHU On-Line intitulada Jazz. O som
até mesmo, a crítica a um preconceito da surpresa. Edição 139, de 02-05-2005,
tano e Chico Buarque se tornaram
europeizante tradicionalista ligado à disponível em http://bit.ly/TJcnLW. profundamente influentes na uni-
hierarquização de formas e gêneros, (Nota da IHU On-Line) versidade, entre os mais qualificados
21 Paulo Coelho (1947-): escritor brasi-
que o modernismo iniciou o ataque, leiro que tem ocupado, sistematicamen-
pesquisadores, aquilo que eles fazem
mas somente nessa época que foi de- te, as primeiras posições no ranking dos com o direito de sua liberdade e com
cisivamente abalado. Foi isso que per- livros mais vendido no mundo. Já ven- os motivos que, mesmo involuntaria-
deu mais de 65 milhões de livros, sendo
mitiu a artistas com grandes ambições o autor mais vendido em língua portu-
mente, podem ser, por que não?, o de
estéticas conquistarem o território guesa de todos os tempos, ultrapassando se manterem na posição de celebrida-
hegemônico da indústria musical. até mesmo Jorge Amado. Em 2002, foi de, torna-se modelo para o juízo es-
eleito para ocupar a cadeira número 21
da Academia Brasileira de Letras. Dentre
tético de pessoas como historiadores
seus grandes sucessos editoriais, desta- da música popular e críticos sérios. É
cam-se O diário de um mago (1987), O evidente que eles não se sustentariam
alquimista (1988) e Brida (1990). (Nota
18 Led Zeppelin: banda britânica de da IHU On-Line)
numa posição de visibilidade se se re-
rock, criada em 1969. Era formada por 22 Clarice Lispector (1920-1977): es- lacionassem somente com escritores
Jimmy Page, John Bonham, John Paul critora nascida na Ucrânia. De família de vanguarda; já que ocupam esse
Jones e Robert Plant. Um de seus traba- judaica, emigrou para o Brasil quando
lhos antológicos é Led Zeppelin, de 1969. tinha apenas dois meses de idade. Co-
lugar de ambivalência, não penso que
(Nota da IHU On-Line) meçou a escrever logo que aprendeu a se deve condená-los por isso. No en-
19 Chico Buarque de Hollanda (1944): ler, na cidade de Recife. Em 1944 pu- tanto, também não se deve aceitar tal
músico, dramaturgo e escritor brasileiro, blicou seu primeiro romance, Perto do
atitude como boa em si. O que não
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conhecido por ser um dos maiores nomes coração selvagem. A literatura brasileira
da MPB. Sua discografia conta com apro- era nesta altura dominada por uma ten- pode ser “moralizado” também não
ximadamente oitenta discos, entre eles dência essencialmente regionalista, com deve virar motivo para a pura e sim-
discos-solo, em parceira com outros mú- personagens contando a difícil realidade
sicos e compactos. É compositor de Cons- social do país na época. Lispector surpre-
ples inversão da necessidade de uma
trução, considerada uma das melhores endeu a crítica com seu romance, quer ética da crítica estética no terreno da
músicas brasileiras já feitas. Filho do his- pela problemática de caráter existencial, cultura de massa. Por causa disso,
toriador Sérgio Buarque de Holanda, ini- completamente inovadora, quer pelo es-
ciou sua carreira como escritor em 1962. tilo solto elíptico, e fragmentário, remi-
aquilo que um dia, no auge do flores-
Ganhou destaque como cantor a partir de niscente de James Joyce e Virginia Woolf, cimento da melhor combinação de
1966, quando lançou seu primeiro álbum, ainda mais revolucionário. Seu romance cultura pop e erudita, foi canonizado
Chico Buarque de Hollanda, e venceu o mais famoso embora menos característi-
Festival de Música Popular Brasileira com co quer temática quer estilísticamente,
na história da MPB é posto ao lado de
a música A Banda. Socialista declarado é A hora da estrela, o último publicado manifestações claramente ordinárias.
autoexilou-se na Itália em 1969, devido à antes de sua morte. Neste livro a vida de
crescente repressão da regime militar do Macabéa, uma nordestina criada no esta-
Brasil nos chamados “anos de chumbo”, do Alagoas e vai morar no Rio de Janei-
tornando-se, ao retornar, em 1970, um ro, e vai morar em uma pensão, tendo 16-07-2008, intitulada Clarice Lispector.
dos artistas mais ativos na crítica política sua vida descrita por um escritor fictício Uma pomba na busca eterna pelo ninho,
e na luta pela democratização no país. chamado Rodrigo S.M. Sobre a autora, disponível para download em http://mi-
(Nota da IHU On-Line) confira a edição 228 da IHU On-Line, de gre.me/qQHT. (Nota da IHU On-Line)
Tema de Capa
mediocridade de sucesso garantido, os Beatles30, re-
Ainda assim, um fenômeno mi-
lagroso como a Vanguarda Paulistana
deixar de me solveram simplesmente revolucionar
a história unindo o mais extremo ca-
de Arrigo Barnabé27 tornou-se, a meu
ver, um fruto tardio do espírito de li-
pronunciar: risma com o mais extremo bom gosto
experimental; no Brasil, entusiasma-
dos pelo estopim dado pelos Beatles,
berdade dos anos 1970 (não é à toa
que parte do álbum Clara crocodilo a cafonice de os tropicalistas sofisticaram ainda
mais a aventura com a nova síntese
tinha sido concebida ainda em mea-
dos dos anos 1970). Caetano apoiou Led Zeppelin é de bossa nova, diferentes tradições
milagres como esse e outros, como populares musicais e teorias antropo-
Hermeto Pascoal28, que teve seu auge infinitamente fágicas e concretistas. O gênio intuiti-
nessa época. vo e poético de Caetano, cujo disco de
Onde eu quero chegar é que a superior à de 1967 tornou-se o grandioso pontapé
ditadura do mercado dos anos 1980 inicial, foi seguido disco do Gilberto
foi criando muitos sucessos, a grande Daniela Mercury” Gil de 1968, junto com os Mutantes.
Logo em seguida, apareceu o primeiro
maioria ruins, que por sua vez foram
se tornando clássicos, que influencia- disco dos Mutantes, que, em termos
ram outros piores ainda, de modo que de experimentação e trabalho formal
se criou uma cadeia ininterrupta de e sensíveis que sejamos às diferen- musical, superou os dois anteriores e
mediocridade. Já se passaram mais de tes camadas de gosto e valores, falta iniciou a carreira da maior realização
30 anos sem que um movimento forte politizar a indústria de massa para artística da indústria musical de mas-
tenha conseguido criar um contexto fins de formação cultural cultivada. sa da história do Brasil. Um disco de
de realizações potentes e aparecido Considero isso um dever político de Gil, o Cérebro eletrônico, de 1969, e
com força nas rádios. Algo um pouco primeira mão, muito maior do que a todos os álbums d’Os Mutantes são, a
melhor que, por vezes, surge é sem- politiquice de todo dia. meu ver, a melhor e maior realização
pre rara exceção. Ao mesmo tempo, A meu ver, o problema de cuidar artística do tropicalismo e sustento
os historiadores e críticos não pontu- do que o cidadão comum ouve todo que são, também, de toda a história
am a factualidade do mal e colocam dia é tão importante quanto o que ele da música popular brasileira, sendo
maravilhas do passado ao lado de no- come. Pode ainda faltar, mesmo de- ombreados somente pelo Chico Bu-
mes insossos. pois do Bolsa Família, comida no pra- arque de Construção, o Walter Franco
Francamente, acho que falta um to de muitos no Brasil, mas não falta de Ou não e, anos depois, pelo Arrigo
movimento sério de pressão contra o rádio, TV e alto falantes berrantes in- Barnabé de Clara crocodilo. É claro
império absoluto da banalização no vadindo nosso espaço auditivo a todo que, se eu considero esses álbuns os
espaço nobre da indústria cultural, já instante, o que podemos tranquila- melhores, não quero diminuir, muito
que, depois dos anos 1970, ficou pro- mente chamar de poluição sonora. É menos apagar, o peso de Jorge Ben31,
vado que esse pode ser um espaço imprescindível, portanto, politizar o
de cultivo da sensibilidade estética direito ao silêncio, em primeiro lugar,
e o dever de fornecer boa música, em Francisco em meados da década de 1950,
para boa música e poesia. Se a luta provocando grandes alterações nas cons-
do tropicalismo foi contra o ufanis- segundo. ciências das pessoas e culminando com
uma grande vitalidade cultural que de-
mo e a separação entre alta e baixa sembocou no movimento hippie do final
cultura, e eles venceram; falta ago- IHU On-Line – Por que este mo-
dos anos 1960. (Nota da IHU On-Line)
ra, uma vez conquistado o direito de vimento, ao menos no início, sofreu 30 The Beatles: banda de rock inglesa,
poder fazer grande arte na indústria grande rejeição por parte dos acadê- criada no final da década de 1950. For-
micos e jovens da época? mada por John Lennon (guitarra e vocal),
cultural, inserir trabalhos criativos e
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Paul McCartney (baixo e vocal), George
elaborados nela. E, por mais abertos Eduardo Guerreiro Brito Losso – Harrison (guitarra e vocal) e Ringo Star
Justamente porque havia uma esquer- (bateria e vocal), obtiveram notoriedade
da tacanha que via na guitarra um ini- até hoje. (Nota da IHU On-Line)
27 Arrigo Barnabé (1951): músico e ator 31 Jorge Ben Jor (1945): guitarrista,
brasileiro. Seu reconhecimento para o migo, isto é, via o inimigo exatamente cantor e compositor popular brasileiro.
grande público veio logo com o primeiro no lugar errado; e acadêmicos que Seu estilo característico possui diversos
disco, Clara Crocodilo, em 1980, quando não estavam preparados para aceitar elementos, entre eles: rock and roll,
foi recebido pela imprensa como a maior samba, samba rock (termo que gosta de
novidade na música brasileira desde a que um movimento ligado à cultura usar), bossa nova, jazz, maracatu, funk,
tropicália. Em suas composições, Arrigo de massa era capaz de uma propos- ska e até mesmo hip hop, com letras que
mistura elementos e procedimentos da ta estética sofisticada. Comprovar no misturam humor e sátira, além de temas
música erudita do século XX a letras feri- esotéricos. A obra de Jorge Ben tem uma
nas sobre a vida na grande cidade. (Nota plano teórico, poético e musical que importância singular para a música bra-
da IHU On-Line) isso era possível foi a grande conquis- sileira, por incorporar elementos novos
28 Hermeto Pascoal (1936): compositor, ta, nos EUA, da associação do drop out no suingue e na maneira de tocar violão,
arranjador e multi-instrumentista brasi- com características do rock, soul e funk
leiro (toca acordeão, flauta, piano, saxo- rebelde dos beatniks29 com os roquei- norte-americanos. Além disso, trouxe
fone, trompete, bombardino, escaleta, influências árabes e africanas, oriundas
violão e diversos outros instrumentos de sua mãe, nascida na Etiópia. (Nota da
musicais). (Nota da IHU On-Line) 29 Beatnik: Movimento iniciado em São IHU On-Line)
sozinho com o álbum Memória Velha Janeiro, e por vezes é chamado de “Pai 37 Renato Manfredini Júnior (1960-
(2000). (Nota da IHU On-Line) do Rock Brasileiro” e “Maluco Beleza”. 1996): conhecido como Renato Russo.
34 Os Novos Baianos: conjunto musical Sua obra musical é composta de 21 dis- Cantor, compositor e baixista da banda
brasileiro, nascido na Bahia, ativo entre cos lançados em seus 26 anos de carreira brasileira Legião Urbana. (Nota da IHU
os anos de 1969 e 1979. Eles marcaram e seu estilo musical é tradicionalmente On-Line)
a música popular brasileira e até o rock classificado como rock e baião (Nota da 38 Titãs: banda de rock brasileira forma-
brasileiro dos anos 70, utilizando-se de IHU On-Line) da em São Paulo, em 1982. Ativa há trinta
vários ritmos musicais brasileiros que vão 36 Lobão (1957): cantor, compositor, anos, tornou-se uma das quatro maiores
de bossa nova, frevo, baião, choro, afoxé escritor, multi-instrumentista, editor de bandas do BRock, ao lado de Legião Urba-
ao rock n’ roll. O grupo lançou oito tra- revista e apresentador de televisão bra- na, Os Paralamas do Sucesso e Barão Ver-
balhos antológicos para MPB. Influencia- sileiro. Sua carreira musical é marcada melho. Algumas de suas músicas de maior
dos pela contracultura e pela emergente por grandes parcerias; compôs sucessos sucesso são Sonífera Ilha, Flores, Polícia,
Tropicália. Contava com Moraes Moreira como “Me Chama”, muito famosa na Família, Comida, O Pulso, Go Back, Do-
(compositor, vocal e violão), Baby Con- voz de vários intérpretes, e “Vida Louca mingo. (Nota da IHU On-Line)
suelo (vocal), Pepeu Gomes (Guitarra), Vida”, conhecida na voz de Cazuza. Ape- 39 Cazuza (1958-1990): cantor e compo-
Paulinho Boca de Cantor (vocal), Dadi sar de ter surgido e conseguido sucesso sitor brasileiro que ganhou fama como
(baixo) e Luiz Galvão (letras) entre ou- no ambiente marginal e underground do vocalista e principal letrista da banda Ba-
tros. (Nota da IHU On-Line) rock brasileiro nos anos 80, Lobão vem rão Vermelho. Sua parceria com Roberto
35 Raul Santos Seixas (1945-1989): can- dialogando com diversos gêneros, como Frejat foi criticamente aclamada. (Nota
tor e compositor brasileiro, frequente- o samba, ao longo de sua carreira. (Nota da IHU On-Line)
mente considerado um dos pioneiros do da IHU On-Line) 40 Nação Zumbi (1997): banda brasileira,
Tema de Capa
mais esforço para não aparecer na de vista político, a insistência nos valo-
mídia que Os Racionais MCs) como os
melhores trabalhos que conheço. (…) politizar o res avançados, democráticos e laicos
da modernidade feita por Caetano, um
IHU On-Line – A seu ver, poderia direito ao silêncio, ateu que defende o direito de mino-
rias, foi teoricamente desenvolvida por
haver um tropicalismo do século XXI? Wisnik e por Antonio Cícero, que além
Em que sentido? em primeiro de filósofo e letrista é um dos maiores
Eduardo Guerreiro Brito Losso – poetas hoje. Num país de analfabetos
Sim e em diferentes sentidos. Há um lugar, e o dever reais e funcionais e ameaçado com o
aspecto importante que eu preciso perigo de diversos fundamentalismos,
mencionar: o tropicalismo, especial- de fornecer figuras políticas como Gil, Caetano,
mente Caetano, seguiu uma tradição Wisnik e Cícero são indispensáveis.
de afirmar e pensar o Brasil que se ini- boa música, em A volta dos Mutantes
ciou com Gilberto Freyre41 e se coloca
como uma alternativa decisiva a uma
postura depreciante do país. Se muitos
segundo” Foi desse meio vigoroso que
surgiu um ensaísta simultaneamente
grandes pensadores brasileiros ten- modesto (compara-se ao jogador de
dem a incorporar valores europeus de futebol de salão, que se esmera em
capacidade negativa para a disciplina e
juízo da cultura, outros procuraram en- dribles em espaço curto) e primoro-
um relaxamento positivo de fronteiras
tender, em caracterizações teóricas pe- so, influenciado pela escrita de Ro-
de classe e hierarquia, bem como uma
culiares, como a cordialidade de Sergio land Barthes44, especialmente no livro
disposição de leveza e alegria diante da
Buarque42, a ambivalência de uma in- Banalogias, mas já aí soube trilhar
vida, diferente da melancolia europeia.
caminho próprio: Francisco Bosco.
Roberto Schwarz, crítico privilegiado
nascida no início da década de 1990, em Ouso dizer que o melhor fruto do tro-
do tropicalismo, acentuou o lado nega-
Recife, capital do estado de Pernambuco, picalismo, o melhor filho de Caetano,
a partir da união do Loustal, banda de tivo da cordialidade; José Miguel Wis-
não está na música, está no ensaísmo
rock pós-punk, com o bloco de samba- nik, pensador da cultura brasileira in-
-reggae Lamento Negro, e originalmente deste atual colunista do Globo. E não
teiramente ligado a Caetano, acentua o
chamava-se “Chico Science & Nação Zum- exagero ao dizer que suas colunas são
bi”. O líder e vocalista da banda, o cantor seu lado positivo. Wisnik, que motivou
a melhor coisa que já li em jornal, pois
e compositor Chico Science, fundou, jun- Caetano a escrever Verdade tropical,
to com a banda Mundo Livre S/A, o mo- combina simplicidade, rigor estilístico,
autor de O som e o sentido e Veneno
vimento Manguebeat. Ao lado de bandas discussões éticas e estéticas envol-
como Raimundos e Planet Hemp, foi res- remédio, é sem dúvida a referência de
vendo posicionamentos lúcidos e ad-
ponsável pela “abertura de portas” para primeira mão do pensamento brasi-
o rock brasileiro dos anos 90, sendo uma miráveis, com versatilidade semelhan-
leiro hoje que incorporou, no melhor
das mais influentes bandas brasileiras de te à de Caetano e Wisnik, mas com o
todos os tempos. (Nota da IHU On-Line) sentido, a ruptura da separação entre
gosto barthesiano pela concisão clás-
41 Gilberto Freyre (1900-1987): escri- alta e baixa cultura a favor de uma in-
tor, professor, conferencista e deputado sica, melhor dizendo, o “clássico mo-
terpretação da cultura na sua abran-
federal. Colaborou em revistas e jornais derno” do texto de prazer. Contudo,
brasileiros. Foi professor convidado da gência, pontuando a continuidade do
o livro que mais gosto dele foi aquele
Universidade de Stanford (EUA). Rece- melhor de uma com o melhor de outra;
beu vários prêmios por sua obra, entre em que a clareza harmoniosa foi aba-
lembro, por exemplo, a emblemática
os quais, em 1967, o prêmio Aspen, do lada por conflitos internos, E livre seja
Instituto Aspen de Estudos Humanísticos comparação entre Machado de Assis43
(EUA) e o Prêmio Internacional La Mado-
ninna, em 1969. Entre seus livros, cita- que discute a loucura. Também escreveu
mos: Casa grande & Senzala e Sobrados tema “O homem cordial: Raízes do Brasil, poesia e foi um ativo crítico literário,
e Mocambos. O Prof. Dr. Mário Maestri, de Sérgio Buarque de Holanda” e no dia além de ser um dos criadores da crôni- www.ihu.unisinos.br
do PPG em História da Universidade de 8-05-2003, a professora apresentou essa ca no país. Foi o fundador da Academia
Passo Fundo (UPF), apresentou o segundo mesma obra no Ciclo de Estudos sobre o Brasileira de Letras. Confira a entrevista
livro na programação do II Ciclo de Estu- Brasil, concedendo, nessa oportunidade, especial realizada pela IHU On-Line com
dos sobre o Brasil, promovido no dia 15- uma entrevista a IHU On-Line, publicada Maílde Trípoli, em 20-04-2007, no link
04-2004, pelo IHU. Sua palestra originou na edição nº 58, de 5-05-2003, disponível http://migre.me/qR3n, intitulada O ne-
o artigo publicado no Cadernos IHU nº 6, em http://bit.ly/iYypBD Sobre Sérgio Bu- gro na obra de Machado de Assis. Sobre
de 2004, intitulado Gilberto Freyre: da arque de Holanda, confira, ainda, a edi- o escritor, foram produzidas duas edições
Casa-Grande ao Sobrado. Gênese e Dis- ção 205 da IHU On-Line, de 20-11-2006, especiais: edição 262, de 16-06-2008, sob
solução do Patriarcalismo Escravista no intitulada Raízes do Brasil, disponível o título de Machado de Assis: um conhe-
Brasil. Algumas Considerações, dispo- para download em http://bit.ly/jwktif cedor da alma humana, disponível em
nível para download em http://migre. (Nota da IHU On-Line) http://migre.me/qR47, e edição número
me/69teH. (Nota da IHU On-Line) 43 Joaquim Maria Machado de Assis 275, intitulada Machado de Assis e Gui-
42 Sérgio Buarque de Holanda (1902- (1839-1908): escritor brasileiro, conside- marães Rosa: interprétes do Brasil, de
1982): historiador brasileiro, também rado o pai do realismo no Brasil, escre- 29-09-2008, disponível em http://migre.
crítico literário e jornalista. Entre ou- veu obras importantes como Memórias me/qR4B. (Nota da IHU On-Line)
tros, escreveu Raízes do Brasil, de 1936. póstumas de Brás Cubas (Rio de Janeiro: 44 Roland Barthes: 1915-1980, crítico
Obteve notoriedade através do conceito Ediouro, 1995), Dom Casmurro (Erechim: literário, sociólogo e filósofo francês.
de “homem cordial”, examinado nessa Edelbra, 1997), Quincas Borba (15. ed. Entre suas obras se destacam: Elementos
obra. A professora Dr.ª Eliane Fleck, do São Paulo: Atica, 1998) e vários livros de de semiologia (1965), Sistema da moda
PPG em História da Unisinos, apresentou, contos, entre eles a obra-prima O Alie- (1967), O Império dos signos (1970).
no evento IHU Idéias, de 22-08-2002, o nista (32. ed. São Paulo: Ática, 1999), (Nota da IHU On-Line)
O
tropicalismo foi um movimento que ou de vício e alguma coisa que não era música
não precisa se repetir. “Ele foi uma in- brasileira, que era música estrangeira ou algo
tervenção e o caráter de intervenção é incompreensível por ser caótica nos seus tex-
conceitualmente muito importante. Intervir é tos e em suas melodias. E não era nada disso.
entrar em uma situação, trabalhar com os da- Ela não era caótica coisa nenhuma”. Para ele,
dos dessa situação, produzir mudanças e não os nossos ouvidos foram totalmente transfor-
precisa mais repetir. A repetição, aí, torna-se mados e foram transformados, em primeiro
enfraquecimento”, avalia Celso Fernando Fa- lugar, pelas indicações da bossa nova, e, em
varetto, autor de Tropicália: alegoria, alegria, seguida, pela radicalização tropicalista.
em entrevista concedida por telefone à IHU Celso Fernando Favaretto possui gradua-
On-Line. Para ele, não há tropicalismo depois ção em Filosofia pela Pontifícia Universidade
de 1967-1968. “Há ressonâncias, influências, Católica de Campinas – PUC-Campinas, mes-
absorção de suas proposições até hoje”. trado em Filosofia pela Universidade de São
O tropicalismo, reativando uma série de Paulo – USP e doutorado em Filosofia pela
indicações que a bossa nova já tinha coloca- mesma instituição. Tem livre-docência pela
do, é exigente, segundo Favaretto. “Ele exige Faculdade de Educação da USP. É professor
que a música seja objeto de uma atenção por emérito da Universidade de São Paulo – USP.
parte dos receptores tanto quanto as outras Tem experiência na área de Filosofia, com ên-
artes. E, naquele momento, o tropicalismo foi fase em Estética, Educação e Ensino de Filo-
um desafio muito grande. Ele mudou a audi- sofia. É autor de Tropicália: alegoria, alegria
ção das pessoas”, conta. E continua: “Ou as (São Paulo: Kairós Editora, 1979), obra clássi-
pessoas mudavam o modo de ouvir a música ca sobre o movimento da tropicália e A inven-
popular ou não entendiam nada; ou rejeita- ção de Hélio Oiticica (EdUSP, 1992).
vam, chamando-a de alienada politicamente Confira a entrevista.
IHU On-Line – Qual o contexto de etc.; seja na literatura com José Agri- desenvolvia-se uma atividade bifron- www.ihu.unisinos.br
surgimento do tropicalismo e que pe- ppino de Paula2, seja no teatro etc., tal: de um lado, levar a experimenta-
ríodo compreende este movimento? ção, que tinha sido detonada em to-
Celso Fernando Favaretto – O de março de 1980): artista visual brasilei- dos os lugares do mundo pela pop art
ro, mais conhecido por sua participação
tropicalismo surgiu em meados dos no grupo de concretismo, por seu uso ino-
até os seus limites expressivos mais
anos 1960, mas vigorou apenas entre vador da pintura, e para o que ele mais elevados, e, simultaneamente, de ou-
1967, 1968, no momento em que as tarde chamou de “arte eco-friendly”, tro lado, no caso particular do Brasil,
que incluiu Picasso e Penetráveis, como o
propostas e projetos de intervenções famoso Tropicália. (Nota da IHU On-Line) colocar essa experimentação em con-
políticas através das artes estavam 2 José Agrippino de Paula (São Paulo, jugação com a necessidade de reagir
desenvolvendo um experimentalismo 13 de julho de 1937 – Embu, 4 de julho
de 2007): escritor brasileiro. Dentre os
de alta voltagem como não tinha sido livros de sua autoria se destaca PanA-
efetivada até então no Brasil. Seja na mérica (1967), obra fundamental para o
desenvolvimento do movimento da tropi- Estes personagens participam de uma
música, com os tropicalistas, seja nas cália. Irreverente, o livro apresenta per- filmagem de episódios da Bíblia e atuam
artes plásticas, com Hélio Oiticica1 sonalidades como Che Guevara, Marilyn com uma narrativa na primeira pessoa,
Monroe, Cary Grant, John Wayne, Marlon em cenas sem uma sequência lógica e
Brando, Cecil B. de Mille, Andy Warhol, com um viés pitoresco ou cinematográfi-
1 Hélio Oiticica (26 de julho de 1937 – 22 entre outros ícones da cultura de massa. co. (Nota da IHU On-Line)
Tema de Capa
pois da redemocratização, onde não picália é uma coisa. Movimento tropi-
cabia mais simplesmente fazer a de-
núncia e a exortação. Cabia construir ouvidos foram calista é outra.
Esse termo tropicália tem um
outra coisa. A marca principal é exa-
tamente incluir o experimentalismo e totalmente caráter de intervenção. O termo foi
inventado pelo Hélio Oiticica, em
a necessidade contínua de repensar a
relação entre arte e sociedade. transformados 1967, quando ele montou um am-
biente, que hoje se chama instalação.
O
tropicalismo quebrou as barreiras en- lhes parecia inequívoca e irremediável. A partir
tre o pop e o folclore; entre a cultura da “desconstrução de estereótipos através de
erudita e a de massa; entre a tradição escrachos, novas possibilidades são criadas. De
e a vanguarda. Para Pedro Bustamante Teixeira, modo que se torna possível unir o fino da bos-
o movimento conseguiu estes êxitos jogando sa ao programa do Roberto Carlos, o rock e o
com os estereótipos de brasilidade. “Na justa- baião, o Brasil e o mundo, o bumba-meu-boi e
posição de suas imagens, o tropicalismo expu- o iê-iê-iê, Rogério Duprat e Os Mutantes, Cae-
nha com amor, já que ele sabe que isto também tano Veloso e Chico Buarque etc.”
o constitui, o ridículo destas”, diz, em entrevista Pedro Bustamante Teixeira possui gradua-
concedida por e-mail à IHU On-Line. Segundo ção em Língua Portuguesa e em Língua Italiana
ele, ao focar as imagens constantemente rela- (e em suas respectivas literaturas), e mestrado
cionadas a uma identidade brasileira: as bana- em Letras: Estudos Literários pela Universida-
nas, os pandeiros, as mulatas, Carmen Miranda, de Federal de Juiz de Fora – UFJF. É doutorando
Bossa Nova, Chico Buarque, Vicente Celestino, do Programa de Pós-Graduação em Letras: Es-
o tropicalismo operava na desconstrução de tudos Literários e Representações Culturais na
uma identidade endossada por um mito-Brasil mesma instituição.
em nome de uma diversidade identitária que Confira a entrevista.
IHU On-Line – O tropicalismo substituir a luta pela ação cultural. O em que se tornava célebre pelas apre-
conseguiu “modernizar” a cultura tropicalismo vem a reboque dos ven- sentações conturbadas nos festivais,
brasileira em apenas um ano, que tos pré-revolucionários, mas se posta causava um mal-estar generalizado
correspondeu à duração do movi- para além da causa, pois enxerga na nas alas progressistas. A terra estava
mento? Como isso foi possível? política cultural das esquerdas uma em transe, não só no Brasil, não só em
Pedro Bustamante Teixeira – visão deveras reducionista do que po- Eldorado. O tropicalismo marcou uma
Primeiramente, é preciso lembrar deria ser a cultura brasileira. época porque foi capaz de aceitar a ou-
que esse foi um momento ímpar na tridade e conseguiu sintetizar o transe
história brasileira. E não só por conta Devir identitário em canções. Assim, a prática tropi-
da ação tropicalista. No cinema, no O movimento tropicalista se re- calista resultou na edificação de uma
teatro, na música, nas artes plásticas, bela contra o nacional-popular. Per- identidade nacional mais complexa,
nos jornais, apesar da ditadura da cebe nele uma séria ameaça ao devir mais tolerante, mais atenta, híbrida e
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direita, soprava um “vento pré-revo- da cultura brasileira. Desatando-se das maior. Uma identidade que existe mais
lucionário” que afetava as estruturas diretrizes culturais da esquerda, vide através da práxis antropofágica do
e convocava o artista à participação CPC2, o movimento, ao mesmo tempo que pela preservação de uma essên-
política. “O Brasil estava irreconheci- cia originária. Em menos de um ano, a
velmente inteligente”, diria o marxista Fora – UFJF e autor de Música popular: tropicália foi capaz de implodir com as
Roberto Schwarz sobre esse tempo no de olho na fresta (Rio de Janeiro: Graal, bases do nacional-popular que de cer-
ensaio Cultura e política, 1964-1969. 1977). O docente participa desta edição ta forma uniam a direita à esquerda, e
da IHU On-Line, com entrevista sobre o
No entanto, ao se pretender se ser- Tropicalismo. (Nota da IHU On-Line) de introduzir na cultura popular brasi-
vir da cultura para a conscientização 2 O Centro Popular de Cultura (CPC) foi leira uma nova forma de pensamento.
das massas e à revolução, a esquerda uma organização associada à União Nacio- Agora, mais próximo dos manifestos de
nal de Estudantes - UNE, criada em 1961,
incorria num erro político, detecta- na cidade do Rio de Janeiro, por um grupo Oswald de Andrade3 do que do Ensaio
do posteriormente por Gilberto Fe- de intelectuais de esquerda, com o obje-
lisberto Vasconcellos1, que era o de tivo de criar e divulgar uma “arte popular
revolucionária”. Reuniu artistas de diver- arte, bem como o engajamento político
sas áreas (teatro, música, cinema, lite- do artista. (Nota da IHU On-Line)
1 Gilberto Felisberto Vasconcellos: pro- ratura, artes plásticas etc.), defendendo 3 Oswald de Andrade (1890-1954): poe-
fessor da Universidade Federal de Juiz de o caráter coletivo e didático da obra de ta, romancista e dramaturgo. Nasceu em
Tema de Capa
Andrade4. Por fim, a rebeldia tropicalis- ram ver que ela era – apesar de paulis- tranca, teriam que cuidar de si mes-
ta resultou no devir de uma identidade ta, roqueira e filha de americano – tão mos para não sucumbirem à dor.
cultural brasileira múltipla, de infinitas brasileira quanto o Garrincha.
possibilidades e que nem por isso pare- IHU On-Line – Podemos afirmar
cia menos brasileira do que a anterior. IHU On-Line – Em que sentido o que o tropicalismo foi além da mú-
movimento sofisticou a estética e a sica? O movimento influenciou tam-
IHU On-Line – De que maneira cultura brasileiras? bém as artes plásticas, o teatro e o
o tropicalismo quebrou as barreiras Pedro Bustamante Teixeira – cinema? De que forma?
entre o pop e o folclore? Entre a cul- Não combina muito com a estética Pedro Bustamante Teixeira –
tura erudita e a de massa? Entre a tropicalista a palavra sofisticação, que Devido à diversidade de frentes de
tradição e a vanguarda? talvez sirva melhor para nos referir- atuação, Flora Süssekind5 prefere o
Pedro Bustamante Teixeira – Jo- mos ao movimento da bossa nova. O termo momento tropicalista ao mais
gando com os estereótipos de brasi- tropicalismo joga o tempo todo com usado movimento tropicalista. E já
lidade. Na justaposição de suas ima- o brega, o cafona, justapondo-os ao que estamos falando de um momento
gens, o tropicalismo expunha com que pode haver de mais sofisticado heterogêneo, é bastante complicado
amor, já que ele sabe que isso tam- na música brasileira e internacional. mapear quem influenciou quem. O
bém o constitui, o ridículo destas. Ao Apesar de uma vontade de supera- que há é o surgimento de uma nova
focar as imagens constantemente re- ção do subdesenvolvimento, presente sensibilidade que rejeita tanto a filia-
lacionadas a uma identidade brasilei- nas experimentações com os instru- ção automática às diretrizes esquer-
ra: as bananas, os pandeiros, as mu- mentos elétricos, a incorporação de distas dos Centros Populares quanto
latas, Carmen Miranda, Bossa Nova, elementos da eletrônica e uma expe- uma inclinação nacionalista em nome
Chico Buarque, Vicente Celestino... o rimentação cada vez mais incisiva nos da liberdade e da experimentação de
tropicalismo operava na desconstru- estúdios, a sofisticação jamais foi um novas formas artísticas. Sensibilida-
ção de uma identidade endossada por desejo da tropicália, que é, antes de de que passa a ser sentida no teatro
um mito-Brasil em nome de uma di- tudo, escracho, escândalo e jogo. A de José Celso Martinez Corrêa6, no
versidade identitária que lhes parecia sofisticação sublima, mas não assus- cinema de Glauber Rocha7, nas artes
inequívoca e irremediável. O jovem ta. E o tropicalismo viera munido do plásticas com Hélio Oiticica8, Lygia
Caetano já dizia: “me recuso a fol- Kitsch, do brega , do rock e do pop,
clorizar meu subdesenvolvimento”. E justamente para assustar “as pessoas 5 Flora Süssekind: Professora de teoria
assim, da desconstrução de estereóti- da sala de jantar”. do teatro no Centro de Letras e Artes da
pos através de escrachos, novas possi- UNI-Rio e pesquisadora da Casa de Rui
Barbosa (Rio de Janeiro). (Nota da IHU
bilidades são criadas. De modo que se IHU On-Line – “O nome de um On-Line)
torna possível unir o fino da bossa ao movimento só existe enquanto o mo- 6 José Celso Martinez Corrêa (Arara-
programa do Roberto Carlos, o rock e vimento existe. E o tropicalismo não quara, São Paulo, 30 de março de 1937):
conhecido como Zé Celso, é uma das
o baião, o Brasil e o mundo, o bumba- existe mais como movimento.” Como figuras mais importantes ligadas ao tea-
-meu-boi e o iê-iê-iê, Rogério Duprat avalia essa frase de Caetano Veloso, tro brasileiro. Destacou-se como um dos
e Os Mutantes, Caetano Veloso e Chi- proferida em um programa português, principais diretores, atores, dramaturgos
e encenadores do Brasil. (Nota da IHU
co Buarque etc. A tropicália chega à recuperada de forma inédita recente- On-Line)
conclusão promissora que para se es- mente no documentário Tropicália? 7 Glauber de Andrade Rocha (14 de março
colher um caminho não é preciso ig- Pedro Bustamante Teixeira – No de 1939 – 22 de agosto de 1981): influente
cineasta brasileiro, ator e escritor. É o
norar seus outros possíveis. E por isso momento em que Caetano faz essa diretor do filme Terra em Transe (drama,
é também um movimento libertário. afirmação, nem ele nem Gil, nem mais 1967). (Nota da IHU On-Line)
Rita Lee disse em uma entrevista que ninguém poderia responder por um 8 Hélio Oiticica (1937-1980): pintor, es-
cultor, artista plástico e performático
movimento que tinha sido dissipado,
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de aspirações anarquistas. É considera-
junto a tantos outros, com a promul- do por muitos um dos artistas mais re-
São Paulo, e estudou na Faculdade de Di- gação do Ato Institucional número volucionários de seu tempo e sua obra
reito do Largo São Francisco. Sua poesia experimental e inovadora é reconhecida
é precursora do movimento que marcou
5 – AI-5 - e a seguinte intensificação internacionalmente. Em 1959, fundou o
a cultura brasileira na década de 1960, o da reação aos tais ares pré-revolucio- Grupo Neoconcreto, ao lado de artistas
concretismo. (Nota da IHU On-Line) nários. No momento em que Caetano como Amilcar de Castro, Lygia Clark, Ly-
4 Mário Raul de Morais Andrade (9 de gia Pape e Franz Weissmann. Na década
outubro de 1893 – 25 de fevereiro de
e Gil não poderiam nem mais pisar de 1960, Hélio Oiticica criou o Parangolé,
1945): poeta brasileiro, romancista, mu- em seus trópicos que doravante pa- que ele chamava de “antiarte por exce-
sicólogo, historiador de arte, crítico e fo- reciam, mais uma vez, tristes; o tropi- lência” e uma pintura viva e ambulan-
tógrafo. Um dos fundadores do modernis- te. O Parangolé é uma espécie de capa
mo brasileiro. Praticamente criou a poe-
calismo não fazia mais sentido algum. (ou bandeira, estandarte ou tenda) que
sia moderna brasileira com a publicação O absurdo alegre tornava-se uma vio- só mostra plenamente seus tons, cores,
de sua Paulicéia Desvairada (alucinada lenta desilusão. Era o momento de se formas, texturas, grafismos e textos
Cidade), em 1922. Teve uma enorme in- (mensagens como “Incorporo a Revolta”
fluência na moderna literatura brasileira,
restabelecer o mínimo, “o mínimo Eu”. e “Estou Possuido”), e os materiais com
e como um estudioso e ensaísta, foi um Os ombros mal suportavam o próprio que é executado (tecido, borracha, tinta,
pioneiro do campo da etnomusicologia – peso que dirá o do movimento. Caeta- papel, vidro, cola, plástico, corda, palha)
sua influência transcendeu o Brasil. (Nota a partir dos movimentos de alguém que o
da IHU On-Line)
no e Gil, depois do itinerário que vai vista. Por isso, é considerado uma escul-
“O
tropicalismo, como movimento, calismo, como disse uma vez Rogério Duarte,
não tinha objetivo. Ou, se tinha, foi o desejo de uma modernidade amorosa
era a fixação de uma nova ima- para o Brasil”.
gem e um novo discurso sobre a modernida- Frederico Oliveira Coelho possui gradua-
de brasileira. Isso também foi, de certa forma, ção em História pela Universidade Federal do
atingido, mas em longo prazo. Como a músi- Rio de Janeiro – UFRJ, mestrado em História
ca também, aliás. Demorou décadas para o Social pela mesma Universidade e doutorado
mundo absorver a proposta tropicalista”, en- em Literatura Brasileira pela PUC-Rio. É pes-
fatiza Frederico Oliveira Coelho, em entrevista quisador do Núcleo de Estudos de Literatura
concedida por e-mail à IHU On-Line. Para ele, e Música – NELIM da PUC-Rio. Trabalha como
o que houve de mais original no tropicalismo pesquisador para documentários, sítios ele-
foi a liberdade de fazer música e cultura de trônicos, editoras e instituições culturais. Des-
acordo com sua própria sensibilidade, suas de março deste ano é professor dos cursos de
próprias ideias, sem ter que definir a priori ca- Literatura e Artes Cênicas (atual coordenador)
minhos, discursos e representações estáticas no Departamento de Letras da PUC-Rio.
que circulavam no país e no mundo. “O tropi- Confira a entrevista.
IHU On-Line – Em seu livro Eu, ra – MPB no âmbito da cultura de Frederico Oliveira Coelho – O
brasileiro, confesso a minha culpa e massas e da contracultura mundial. período dos anos 1960 foi uma das
meu pecado você faz uma distinção Em 1968, esses dois eixos radicais chamadas “épocas de ouro” da mú-
entre tropicália e tropicalismo mu- de pensamento sobre a modernida- sica popular feita no Brasil. É nesse
sical. Quais seriam as razões dessa de brasileira confluem em ações co- período que a sigla MPB ganha espa-
escolha? muns que resultam no que viria a se ço e reduz os demais gêneros da can-
Frederico Oliveira Coelho – As chamar após 1968 de “cultura mar- ção popular (samba, bolero, baião,
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razões da divisão entre tropicália ginal” ou “marginália”. Digo sempre balada, samba-canção, bossa nova)
e tropicalismo musical ocorreram que o papel do movimento musical a um grande nome guarda-chuva. A
devido à necessidade de demarcar foi fundamental para a expansão música dos anos 1960 concentra em
dois eixos históricos de ação cultural das ideias contidas na tropicália de poucos anos os desdobramentos da
no Brasil dos anos 1950-1960. Um, Oiticica, já que os músicos levaram bossa nova de 1959, a politização cul-
vindo dos desdobramentos do movi- debates do âmbito das artes visuais tural do país via CPC da União Nacio-
mento neoconcreto carioca, do cine- para a cultura de massas, programas nal dos Estudantes – UNE, Teatro de
ma novo, dos debates no âmbito da de televisão, entrevistas em jornais Arena e as canções engajadas de Edu
Nova Objetividade Brasileira, tudo e shows pelo país. Lobo1, Sérgio Ricardo2, Sidney Miller,
que desaguou no conceito “tropi-
cália”, cunhado por Hélio Oiticica. IHU On-Line – Como você avalia
1 Eduardo de Góes Lobo, conhecido
Outro, vindo da experiência de jo- a produção da música popular bra- como Edu Lobo (1943): cantor, composi-
vens músicos e intelectuais baianos, sileira nos anos 1960-especialmen- tor, arranjador e instrumentista brasilei-
cariocas e paulistas ao redor dos te em 1967, que é quando surge o ro. (Nota da IHU On-Line)
2 Sérgio Ricardo, nome artístico de João
dilemas da música popular brasilei- tropicalismo? Lutfi, (1932): cantor e compositor brasi-
Tema de Capa
Por quê? massificado tornou-se regra na pro- dade amorosa para o Brasil.
Frederico Oliveira Coelho – Se dução musical brasileira e na cultura
pensarmos o movimento atrelado à como um todo. Como o tropicalismo IHU On-Line – Em relação às
biografia de Gil e Caetano, ele acaba foi um dos primeiros momentos de décadas de 1960 e 1970, a canção
em 1968, com a prisão deles. O que uma sensibilidade globalizada no Bra- teria perdido a importância, a sua
fizeram depois, em Salvador e no exí- sil (ou pós-moderna, se quiserem), ele potência?
lio, eram desdobramentos pessoais permanece cada dia mais atual e cada Frederico Oliveira Coelho – De
de seus trabalhos. Ambos abriram vez mais atuante entre nós. jeito nenhum. A canção é a forma
mão de serem líderes de qualquer mais sólida e estável da música bra-
movimento quando foram exilados. IHU On-Line – A seu ver, o sileira. As novas experimentações
(Entrevistas deles de 1969 deixam que houve de mais original no sonoras ao longo dos anos 1970 não
isso claro.) Mas, se quisermos pensar tropicalismo? serviram para enfraquecer a canção,
a questão do tropicalismo para além Frederico Oliveira Coelho – A li- mas sim para fortalecer e diversificar
dos dois principais compositores, ve- berdade de fazer música e cultura de seu formato. Hoje, com os diversos
remos que os discos de Gal Costa de acordo com sua própria sensibilida- recursos eletrônicos, ritmos como o
1969, 1970 e 1971 são totalmente de, suas próprias ideias, sem ter que funk, o rap, o dub, o drone, os muitos
tropicalistas, assim como os trabalhos definir a priori caminhos, discursos e rocks, a canção continua em expansão
dos Mutantes. E assim sucessivamen- representações estáticas que circu- no Brasil. Basta ver trabalhos como os
te. O tropicalismo, como movimento lavam no país e no mundo. A experi- da Céu, Lucas Santana, Romulo Fróes,
musical, está em tudo, como uma es- mentação como regra criativa, o gosto Seu Jorge, Siba, Marisa Monte, o su-
pécie de “força fatal” da música po- pelo risco e pelo enfrentamento do cesso avassalador dos Los Hermanos
pular, já que sua abertura radical para consenso, a uso estratégico da cultura anos atrás, enfim, uma gana de artis-
o mundo, a quebra da ideia classista de massas como espaço de subversão tas que ainda seguram a canção como
de bom gosto e o cruzamento deli- (e não de alienação passiva). O tropi- gênero hegemônico e presente na
berado entre “alta” e “baixa” cultura calismo, como disse uma vez Rogério música brasileira.
Confira também a edição especial da IHU On-Line sobre a Semana da Arte Moderna, movimento que tem profundas
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ligações com a Tropicália:
• Semana de Arte Moderna. Revolução ou mito? Edição 395, de 04-06-2012, disponível em http://bit.ly/KceMZx
Saiba mais sobre a formação cultural do Brasil, bem como sobre alguns de seus grandes intérpretes acessando as seguin-
tes edições da IHU On-Line:
• Intérpretes do Brasil: A redescoberta do Brasil como problema. Edição 165, de 21-11-2005, disponível em
http://bit.ly/VCkZp1
• Raízes do Brasil. Edição 205, de 20-11-2006, disponível em http://bit.ly/SMypxY
• Macunaíma: 80 anos depois. Ainda um personagem para pensar o Brasil. Edição 268, de 11-08-2008, disponível em
http://bit.ly/Lgf55q
• Machado de Assis e Guimarães Rosa: intérpretes do Brasil. Edição 275, de 29-09-2008. Disponível em http://bit.ly/THA6hz
• Euclides da Cunha e Celso Furtado. Demiurgos do Brasil. Edição 317, de 30-11-2009, disponível em http://bit.ly/VjTxKW
“P
roduto e esforço de atualização de como o foi o modernismo em relação à elite
nossa história, segundo o ponto de intelectual paulista.
vista de jovens barrocos baianos Graduado em Ciências Econômicas pela
que a lideraram”, a tropicália não deve ser vis- Universidade Federal da Bahia – UFBA, Ar-
ta como algo exótico, muito menos inusitado. mando Ferreira de Almeida Júnior é mestre
“O Brasil já não era tão periférico assim”, ob- em Economia Rural pela Univesidade Federal
serva Armando Almeida no artigo inédito que da Paraíba – UFPB, e doutor em Cultura e So-
escreveu para a IHU On-Line. Ele frisa que ciedade pela UFBA com a tese A contracultura
esse movimento foi a “mais completa tradu- e a política que o Ilê Aiyê inaugura: relações
ção da contracultura entre nós”. de poder na contemporaneidade. É consul-
Contudo, ressalva que tratou-se de uma tor da Organização das Nações Unidas para a
manifestação de classe média alta, assim Educação Ciência e Cultura – UNESCO.
Confira o artigo.
A tropicália, além das questões quando ela se mostra mais nitida- dente afora. No Brasil a tropicália foi
estéticas, mais próximas aos concei- mente para a grande massa, são exa- uma dessas. Em 1968, em especial,
tos de beleza artística e literária, foi a tamente os anos da tropicália. Quan- entrávamos na fase mais dura da di-
mais completa tradução da contracul- do ela nasce, cresce e morre, segundo tadura militar que resistiria por mais
tura entre nós. Não foi a única, mas seus autores. Isso não acontece por de 20 anos. A despeito de tudo isso,
foi a mais significativa. Principalmente mera coincidência. Havia entre elas tal contexto não impediu que no Bra-
porque revolucionou a cultura bra- uma sintonia fina. São produtos de sil florescessem movimentos estético-
sileira, mobilizando grandes massas. uma época global. O que os jovens -políticos como a tropicália, e que
As afinidades eletivas entre as duas já americanos trouxeram para debate aquelas inquietações que marcaram o
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chamam a atenção de alguns estudio- naqueles últimos anos da década de Ocidente no final dos anos 1960 e iní-
sos faz muito tempo1. Estética e políti- 1960, embalados pelo rock ’n’ roll e cio dos anos 1970 deixassem de con-
ca foram inseparáveis naqueles anos. ilustrados pela pop art e o psicode- taminar grande parcela da juventude
As principais lideranças da tropi- lismo combinava com os anseios de local, tornando-se quase uma marca
cália tornaram-se grandes expressões amplas massas urbanas de grandes da juventude desta década também
da crítica comportamental. Ela é con- cidades do mundo ocidental. Em vá- no Brasil.
temporânea de novas formas ociden- rios aspectos afinava-se com um novo No centro desta transformação
tais de fazer política. pensamento de esquerda, crítico ao está o novo papel que a cultura – re-
Os anos mais efervescentes da comunismo ortodoxo e preocupado presentada sobretudo por uma radical
contracultura (entre 1967 e 1969), com as liberdades sexuais e compor- mudança de valores e costumes – pas-
tamentais. A tropicália é expressão sa a ocupar no território da política. A
1 Destaco, em especial, Dunn (2001)
brasileira do “turn pointing” de uma contracultura, a tropicália e muito do
por estar este trabalho voltado exata- época. que se identifica como pós-moderno
mente ao estudo de suas relações, da Foram muitas as invenções e são expressões desta mudança.
tropicália com a contracultura. (Nota
do entrevistado)
traduções da contracultura pelo Oci-
Tema de Capa
atualização de nossa história, segun- querdas de então, e ao mesmo tempo ufanismos. Uma das mais fortes mo-
do o ponto de vista de jovens barro- muito marcada por uma forte insatis- tivações da atitude tropicalista, sem
cos baianos que a lideraram. Não é fação quanto à nossa realidade social. sombra de dúvida, está relacionada
algo exótico, muito menos inusitado. Já vivíamos em uma aldeia global. a um firme posicionamento contrá-
O Brasil já não era tão periférico as- O rock ’n’ roll internacionalizou-se ra- rio a certo nacionalismo estético e
sim. Já tinha um “Parque industrial”2 pidamente, foi a música daquele tem- cultural predominante, sobretudo na
montado. Eles estavam atendendo às po. Os tropicalistas se apropriaram e intelligentizia brasileira, para quem
exigências que nossa melhor tradição absorveram este patrimônio cultural, – por sinal – mais se dirigiram as crí-
lhes impunha. A antropofagia os unia. reprocessando-o de acordo com nos- ticas dos tropicalistas. Preocupações
“Socialmente. Economicamente e Fi- sas circunstâncias e nossas ferramen- bem menos presentes na maioria da
losoficamente”, como diria Oswald de tas. Posicionando-nos no curso da população, diga-se de passagem. A
Andrade. história. Colocaram o rock dentro do tropicália foi um movimento de classe
As redes de informação que co- enorme caldeirão de estilos musicais média e média alta, como foi o mo-
meçavam a se agigantar a partir da- brasileiros, incorporando-o e criando dernismo um movimento da elite in-
queles anos terminariam por alterar a novos formatos. telectual paulista. Eram todos jovens
lógica das relações entre centro e pe- Ao mesmo tempo a tropicália foi universitários em certo sentido. Como
riferia. As fronteiras passam a ser mais um movimento antiufanista que teve eram também aqueles que estavam
tênues, indefinidas e cambiantes. O a coragem de enfrentar anacronismos comprometidos com as canções de
planeta passava então a se comparti- e nacionalismos populistas; o gosto protesto cepecistas e os festivais da
lhar culturalmente como nunca havia estabelecido, o maniqueísmo antia- canção. Ambos disputavam uma fa-
acontecido. Naqueles anos o mundo mericano dos que também faziam tia de mercado na emergente indús-
se conectava via satélite, as grandes oposição ao regime militar e que man- tria cultural brasileira. Buscavam uma
redes de televisão se expandiam, já tinham reservas elitistas em relação à hegemonia cultural e defendiam uma
anunciando a globalização. Estava cultura de massa e à indústria cultu- ideia de Brasil na mídia.
também começando o poderio cul- ral. Isso foi feito sem idealizar o outro
tural, econômico e político da Rede e sem glorificar o nosso, expondo um Canibalismo cultural
Globo de Televisão no Brasil. Em 1970 Brasil cheio de contrastes a cada can- Na base desta discussão está
pudemos assistir à Copa do Mundo ção. Para isso a tropicália processou um conceito de identidade cultural.
instantaneamente. Um ano antes ha- antropofagicamente aquele momen- A busca de uma “autenticidade” pro-
víamos visto as imagens do homem to e várias das dimensões libertárias vocada pelo conflito entre inovação e
chegando à Lua. Em 1972 já tínhamos que a contracultura americana pôs tradição. Uma antiga e nova questão,
TV colorida. Naquela altura, mais da em discussão, identificando, dige- presente desde que o Brasil passou a
metade de nossa população já mora- rindo e traduzindo aquilo que dela pensar-se como nação. É esta, pois,
va nas cidades3. Tínhamos definitiva- cabia em nosso contexto, assumindo a questão central do movimento an-
mente deixado de sermos rurais. também muito de seus desafios. Em tropofágico de Oswald de Andrade:
nome de um Brasil sincrético, ao mes- a bossa nova, a poesia concreta e o
Projeto de brasilidade mo tempo internacional, arcaico e fu- tropicalismo são ícones contemporâ-
anti-ufanista turista. Ao contrário do que a palavra neos, incontestáveis produtos made
Além disso, a tropicália surge em levava a crer, ao tropicalismo interes- in Brazil, são expressões de uma mes-
plena ditadura militar. Não apenas sava ressaltar o lado internacionali- ma atitude diante da arte e da cultura.
contra ela. Uma atitude política assu- zante da cultura urbana ocidental (VE- Uma atitude antropofágica de quem
mida através da música popular, com- LOSO, 1997). Ele fundia nacional com devora (para ser fiel à metáfora) a in-
prometida com o meio urbano, com a internacional. Foi um posicionamento formação estrangeira, num ato de ca-
universalização de seus valores e con- brasileiro enquanto terceiro mundis- nibalismo cultural, sem imitá-la, tiran-
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tra autoritarismos de um modo geral. ta4, de maneira extremamente crítica do o que dela pode melhor contribuir
Apropria-se de patrimônios culturais a si próprio, enquanto país com altos para o que fazemos, unindo-a a nossa
universais para realizar uma interven- níveis de desigualdade social e que melhor tradição, e criando com isso
ção no campo cultural, deliberada- vivia sob uma ditadura militar. Reali- algo novo, voltado para o Brasil de
mente em desacordo com os modelos dade bem diferente da americana e hoje, reinventando-se e sendo capaz
europeia, mas nem por isso menos de competir no mercado de igual para
2 Título de uma canção do disco ma- complexa. igual, e de ser exportado ao mesmo
nifesto Panis et circenses, de Caetano Foi também um projeto de bra- tempo. A tropicália era um projeto de
Veloso e Gilberto Gil, 1968. (Nota do modernização do Brasil, dntro de um
entrevistado)
silidade, que ia na contramão de um
3 Em 1970 a população urbana brasi- espírito universalista, em diálogo com
leira já representava 56% do total, em seus contemporâneos. Era uma ex-
1996 chegava 78% e em 2009 estima- 4 Como era muito comum de se dizer pressão de seu tempo.
-se que esteja em torno de 90%. Dis- na época. Ainda não éramos emergen-
ponível em: <http://www.ibge.gov.br/ tes. Para muita gente nosso subdesen- Assim se expressou sobre o as-
home/ estatistica/populacao/censo- volvimento era estrutural. Vale ver esta sunto Caetano Veloso em suas me-
historico/1940_1996.shtm>. (Nota do discussão em Buarque (1980). (Nota do mórias reflexivas, seu livro Verdade
entrevistado) entrevistado)
biscoito fino que fabricava, rompen- o compromisso de dar um passo além de estilos, destruindo hierarquias e
do explicitamente com a contradição da bossa nova, de seguir criticamente desrespeitando fronteiras entre clas-
entre ser de qualidade e ser de mas- sua “organicidade evolutiva”6, inspira- ses sociais, e entre níveis de educação
sa. Um posicionamento totalmente dos em sua antropofágica lição, fiéis a (CAETANO, 1997). Tal qual beats e hi-
contrário ao da Escola de Frankfurt, ppies, os tropicalistas também valori-
aliás, para quem a indústria cultural 5 “Nego-me a folclorizar meu subdesen-
zam as margens da cultura letrada.
a tudo degrada. Contraditoriamente, volvimento para compensar as dificulda- O pop, a urbanidade e a indus-
ou não, a contracultura que renega des técnicas”, disse Caetano em dois de- trialização, muitas vezes, se confun-
poimentos dados em 1967 e 1968, respec-
a sociedade de consumo se expande tivamente à revista Manchete e Realida-
dem. Jorge Mautner em entrevista
através dela. Cada uma das tribos ur- de (1997, p. 207). (Nota do entrevistado) concedida ao jornal O Bondinho, ao
banas que por ela se organiza, tam- 6 Expressão usada por Caetano para ser questionado sobre a industrializa-
ilustrar esta ideia em artigo publicado em
bém intermediadas pelo mercado, 1965, em uma revista baiana chamada
ção da contracultura como algo que
toma forma, muitas vezes, de nicho Ângulos, depois republicado no livro lhe retirava a pureza e a autenticida-
que não só padroniza, mas também Alegria, Alegria de Caetano Veloso. Rio de, que a contaminava pelo alto con-
de Janeiro: Pedra Q Ronca, 1977, p.10.
customiza. (Nota do entrevistado)
sumo, se posiciona considerando ino-
Tema de Capa
na base desta discussão está uma pre- outro desenho de público. xos, as classes sociais e os graus de
tensão de “neutralidade” do produto Para a esquerda mais tradicio- cultura e também entre as diferentes
artístico, imaculado, único, monolítico nal, questões de sexo, religião, raça, culturas e entre faixas etárias, para
e autônomo, com uma aura que se relações homem/mulher e relações atingir um individualismo pluralista
esvai quando massificado. Um ponto homem/natureza eram questões me- nuançado dentro do mais generoso
de vista que não enxerga estarmos nores. Algumas, em parte, continuam espírito comunitário.
cercados por uma sociedade de con- sendo menores para esta esquerda. O neo-rock ’n’ roll inglês e o
sumo, que a tudo absorve e integra, Ou, muitas vezes só não o são de fa- maio francês, o tropicalismo brasi-
e que quando costumes e linguagens chada, isto é, para manter as aparên- leiro, o popismo nova-iorquino e o
passam a ser por ela adotados isso só cias. São questões que avançaram hippismo californiano – todos parti-
pode significar uma vitória, pois que tanto em um âmbito mais geral que ciparam desse clima de ideias. Esse
representa a infiltração de outra cul- chegaram a tornar politicamente in- programa utópico traria problemas,
tura sobre aquela que é dominante, correto não reconhecer suas perti- perderia a medida do possível e
dando-lhe outro colorido (CARDOSO, nências. Entretanto, ainda há muito encontraria reações violentas e/ou
2008). Esta é uma sutileza da batalha até que esta institucionalização se cul- obstinadas que fatalmente o leva-
que se dá no campo da cultura. Nun- turalize, para que supere o universo riam a uma retração. Eu, pessoal-
ca se a conquista em todos os níveis. formal e faça naturalmente parte de mente, com toda a luta para manter
Sempre representa um pacto, a for- nossas rotinas a assunção de outro a lucidez e o poder de julgamento
mação de um consenso social. Por comportamento sobre aquelas ques- sobre tais ambições e os métodos
isso é uma questão de hegemonia, tões. O que significa dizer, em última intuídos para tentar levá-las a cabo,
por isso é cultural. Dito de outra ma- instância, até que sejam incorporadas nunca me senti inclinado a abrir
neira, seu resultado desloca o “con- culturalmente. É precisamente nesse mão do essencial desse ideário”.
trato social” vigente, impregnando-o território, no da mudança de com- (VELOSO, 2005, p. 276)
de novos sentidos para a vida. Uma portamento, sensibilidade e visão de
compreensão que contrasta total- mundo através dos grandes meios de
mente com a ideia de algo cooptado e comunicação de massa que os tropi- Referências Bibliográficas
diluído pela ideologia dominante7 que calistas e pós-tropicalistas foram e CAMPOS, Augusto de. O balanço da bossa
não enxerga o processo histórico e o têm sido mais eficazes em suas ações e outras bossas. 2. ed. São Paulo: Perspec-
nível da negociação política que lhe estético-políticas. tiva, 1974. 357p. (Coleção debates, 3)
dá legitimidade. A contracultura foi também CARDOSO, Jary. Entrevista com Jorge
A radicalidade contracultural dos para o tropicalismo uma maneira de Mautner. In: JOST, Miguel; COHN, Sergio
tropicalistas vai crescendo aos pou- enfrentar a ditadura, como o foi para (Org.). Entrevistas Bondinho. Rio de Ja-
cos como pano de fundo. Ao lado da várias áreas da vida social e artísti- neiro: Beco do Azouge, 2008.
crítica estética que os tropicalistas ca, e para muitas tribos urbanas no DUNN, Christopher. Brutality Garden:
realizavam com suas obras, a crítica Ocidente. A proliferação da chama- Tropicália and the emergence of a brazil-
comportamental vai neles tomando da imprensa alternativa, nanica, un- ian counterculture. London: Chapell Hill;
uma dimensão ainda maior, se agi- derground e marginal atestam esta The University North Carolina Press, 2001.
gantando e tornando-se mais visível, diversidade.
FAVARETTO, Celso. Tropicália, alegoria,
sobretudo na fase pós-tropicalista Bom poder fechar citando Cae-
alegria. 3.ed. Cotia: Ateliê Editorial, 2000.
especialmente de Caetano Veloso e tano fazendo uma síntese sobre o as-
185p.
Gilberto Gil. sunto aqui em questão: contracultura,
tropicalismo e indústria cultural. A HOLLANDA, Heloísa Buarque. Impressões
Programa utópico citação abaixo foi retirada de um ar- de viagem – CPC, vanguarda e desbunde:
O engajamento muda de cor, tigo-depoimento que ele encaminhou 1960/70. São Paulo: Editora Brasiliense, www.ihu.unisinos.br
provocando hostilidades de todos para publicação na Folha de S.Paulo, 1980.199p.
os lados e ameaçando convenções em 21 de outubro de 1993, e que pos- SANTIAGO, Silviano. A permanência do
opressivas. Está em jogo outra relação teriormente veio a ser incluído em discurso da tradição no modernismo.
da arte com a política. Outra militân- uma coletânea de textos seus: São Paulo: Editora Companhia das Letras,
cia. O desatrelamento das práticas “Queríamos acabar com a hi- 1989. p. 94-123.
políticas vigentes não significou “dis- pocrisia, ampliar o campo de per- VELOSO, Caetano. Alegria, Alegria. Rio de
tanciamento do engajamento”. Em cepção, reencontrar a dimensão es- Janeiro: Pedra Q Ronca, 1977.
realidade, a arte participante agora piritual em nossa época de grandes
______. Utopia 2. Folha de S. Paulo, 25
massas, salvar o mundo. Queríamos
out. 1994. Caderno 6, p.12.
arte de vanguarda na indústria do
entretenimento e hábitos alimenta- ______. Verdade tropical. São Paulo:
7 Ver Favaretto (2000). À página 136
res ao mesmo tempo mais artificial- Companhia das Letras, 1997.
se vê que para ele o produto final da
antropofagia resulta uma “relativização mente criados e mais racionalmente ______. O mundo não é chato. Organiza-
alegre dos valores em conflito e (n)uma naturais. Queríamos radicalizar as do por Eucanaã Ferraz. São Paulo: Compa-
degradação contínua da informação”. nhia das Letras, 2005.
(Nota do entrevistado)
conquistas democráticas, romper as
E
spécie de “neoantropofagismo” oswal- do ecletismo, com a indistinção do gosto ali-
diano, o tropicalismo devorava a tradi- mentar. Dentro da lógica antropofágica, não
ção cultural brasileira e realizava “uma é eticamente viável comer, por exemplo, Ivete
incorporação crítica, tanto da cultura pop Sangalo e arrotar Novos Baianos. O problema
internacional e da comunicação de massas é que essa confusão, às vezes, é promovida
como de referências do alto modernismo li- pelos próprios velhos tropicalistas, quando se
terário e da vanguarda concretista dos anos deixam dobrar pela “máfia do dendê” e pelos
1950”. A afirmação é de André Monteiro, em fascismos da indústria cultural”.
entrevista concedida por e-mail à IHU On- Graduado em Letras pela Universidade Fe-
-Line. Um dos grandes êxitos do movimento deral de Juiz de Fora – UFJF, é mestre e doutor
foi “ter conseguido entrar na indústria cul- em Letras pela Pontifícia Universidade Católi-
tural, normalmente conduzida por meca- ca do Rio de Janeiro – PUC-Rio, com a disser-
nismos duros de homogeneização estético- tação A ruptura do escorpião – ensaio sobre
-comportamental, sem se deixar tragar pela Torquato Neto e o mito da marginalidade (São
redundância de suas órbitas viciadas”. Para Paulo: Cone Sul, 2001) e a tese Incômodo e
Monteiro, a principal característica do tropi- Movimento – um plano pirata. Nessa mesma
calismo é distender as fronteiras entre alta instituição cursou pós-doutorado. Leciona na
cultura, cultura de massa e cultura popular. Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF
Houve, ainda, uma ampliação dessa postura e é autor de Ossos do ócio (São Paulo: Cone
marginal nos anos 1970 naquilo que se define Sul, 2001).
como “desbunde contracultural”. E provoca: Confira a entrevista.
“Antropofagia nada tem a ver com a frouxidão
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IHU On-Line – De que maneira o ticulando o discurso antropofágico circencis (disco-manifesto gravado em
senhor definiria o tropicalismo? Qual modernista de Oswald de Andrade, 1968) para se ter uma ideia da síntese
foi o grande êxito deste movimento? o tropicalismo, ao mesmo tempo em antropofágica tropicalista. Nela en-
André Monteiro – A distensão que devorava a tradição cultural brasi- contramos uma mescla de “macum-
entre as fronteiras das chamadas alta leira (do samba ao baião, de Carmem ba”, “Batman”, “iê- iê-iê” e “Obá” (ori-
cultura, cultura de massa e cultura Miranda a Vicente Celestino), realizou xá nagô feminino). A mise en page da
popular é o que define, a meu ver, uma incorporação crítica, tanto da letra da canção, por sua vez, é estrutu-
de forma mais contundente, o movi- cultura pop internacional e da comu- rada à maneira concretista, fundindo
mento tropicalista brasileiro do final nicação de massas como de referên- fundo e forma, já que se assemelha à
dos anos 1960. Como declarou Cae- cias do alto modernismo literário e da asa de um morcego.
tano Veloso, em entrevista a Augusto vanguarda concretista dos anos 1950. Navegando entre o luxo e o lixo,
de Campos, incluída em Balanço da Basta ver/ouvir, por exemplo, a letra para evocar o famoso poema concreto
bossa e outras bossas, “O tropicalis- da canção “Batmacumba”, de Gil e Ca- de Augusto de Campos, e rompendo
mo é um neoantropofagismo”. Rear- etano, gravado no antológico Panis et com a dicotomia “integrados” versus
Tema de Capa
Eco, o grande êxito do movimento popular brasileira, dos anos 1970 até
tropicalista foi ter conseguido entrar
na indústria cultural, normalmente marginal será, de hoje, de uma forma ou de outra, tem
relação com os tropicalistas. Quando
conduzida por mecanismos duros de
homogeneização estético-compor- muitos modos, penso num Clube da Esquina, num
Walter Franco, num Arrigo Barnabé,
tamental, sem se deixar tragar pela
redundância de suas órbitas viciadas. ampliada e, por num Chico Science, num Fernando
Catatau, penso que, por mais singu-
De algum modo, tal como sonhara
Oswald de Andrade, os tropicalistas vezes, radicalizada, lares que sejam esses personagens e
seus contextos, há uma relação deles
conseguiram fabricar e oferecer à
massa seu “biscoito fino”. nos anos 1970, com as portas que foram abertas por
Caetano, Gil, Tom Zé, Torquato, Capi-
IHU On-Line – Qual a diferença com o advento nam e os Mutantes. Nesse sentido, a
existência do tropicalismo foi, e é, ex-
entre tropicália e a marginália?
André Monteiro – Pode haver do chamado tremamente benéfica para a música
brasileira de invenção produzida nos
uma diferença, mas não uma opo-
sição, entre tropicália e marginália. desbunde últimos 40 anos.
Por outro lado, o tropicalismo
A própria expressão marginália foi
cunhada no contexto do tropicalismo, contracultural” se torna uma herança fraca quando
sua mistura antropofágica passa a ser
já que é o título uma letra de Torquato confundida, o que não é raro, com
Neto1 musicada por Gilberto Gil. Nela mero ecletismo cultural. Antropofagia
encontramos, além de uma descons- apresentam, cada uma delas, uma fo- nada tem a ver com a frouxidão do
trução explícita do discurso ufanista tografia de jornal do bandido carioca ecletismo, com a indistinção do gosto
brasileiro, algo típico das canções tro- Cara de Cavalo morto pelos “homens alimentar. Dentro da lógica antropofá-
picalistas, a imagem do poeta como de ouro” da Scuderie Le Cocq (a mes- gica, não é eticamente viável comer,
aquele que, em sua “negra solidão”, ma fotografia, aliás, foi estampada na por exemplo, Ivete Sangalo e arrotar
assume um “comportamento des- bandeira utilizada no já referido show Novos Baianos. O problema é que
viante” na “tropical melancolia” da tropicalista). Na foto, Cara de Cavalo essa confusão, às vezes, é promovida
vida ordinária. A postura marginal, aparece morto, estirado no chão e pelos próprios velhos tropicalistas,
que nos anos 1970 vai se tornar um com os braços pendidos para os lados, quando se deixam dobrar pela “máfia
rótulo comum para se referir a muitas causando uma impressão de crucifica- do dendê” e pelos fascismos da indús-
manifestações culturais, tais como “ci- ção. No fundo da caixa, há um saco tria cultural.
nema marginal” e “poesia marginal”, plástico contendo pigmentos verme-
já era uma bandeira que circulava no lhos, instalado sobre grades de ferro IHU On-Line – Como era vista,
contexto do tropicalismo dos anos que compõem o fundo da caixa. Sobre naquela época, a questão do des-
1960. Basta lembrar a famosa frase o saco plástico, lê-se: “Aqui está, e fi- bunde, e a reação da esquerda a esse
“Seja marginal, seja herói”, criada por cará! Contemplai o seu silêncio herói- posicionamento?
Hélio Oiticica e estampada em uma co.” Como já disse o Waly Salomão, André Monteiro – Desde os anos
bandeira no antológico e “agressivo” essa homenagem a Cara de Cavalo é 1960, havia uma divergência entre a
show tropicalista que Gil, Caetano e autorreferente, sendo uma fala da re- esquerda tradicional e os tropicalistas
os Mutantes realizaram na boate Su- sistência heróica do artista frente ao que, de muitas maneiras, já pratica-
cata em outubro de 1968 (o show foi mundinho cooptador dos marchands, vam o que, mais tarde, nos anos 1970, www.ihu.unisinos.br
interrompido pela censura, que teria curadores, galerias e museus. A pos- seria chamado de desbunde con-
usado como pretexto justamente a tura marginal será, de muitos modos, tracultural. Assumindo uma postura
frase da bandeira). A frase nos reme- ampliada e, por vezes, radicalizada, neoantropofágica, o tropicalismo se
te diretamente ao contexto simbólico nos anos 1970, com o advento do cha- tornou uma voz muito singular no âm-
do “Bólide Caixa 18 – homenagem a mado desbunde contracultural. bito das discussões promovidas pelos
Cara de Cavalo”, obra criada por Oiti- principais grupos artísticos dos anos
cica em 1966 e que encarna o “mito IHU On-Line – O senhor acredita 1960 (CPCs, Teatro de Arena, Opinião,
da revolta”. Trata-se de uma caixa que ainda há raízes na contempora- entre ouros), marcados por um dis-
(sem tampa e com a parede anterior neidade do tropicalismo na música e curso de “coesão nacionalista” e, ao
estendida ao solo) cujas faces internas cultura brasileiras? Em que sentido? mesmo tempo, de utopia revolucio-
André Monteiro – Parafrasean- nária filiada ao marxismo ortodoxo.
1 Torquato Pereira de Araújo Neto do Mário de Andrade, o tropicalis- O tropicalismo se afastou do desejo,
(1944-1972): poeta, jornalista, letrista mo instituiu, de vez, no contexto da típico de certas posturas da esquer-
de música popular, experimentador da
contracultura brasileiro. (Nota da IHU
música pop, o direito permanente à da moderna, de fazer do intelectual
On-Line) pesquisa estética. Tudo que se fez de um guia das massas e/ou aquele que
P
ara Pedro Rogério, o artista é uma espé- Pedro acentua a impossibilidade de se apri-
cie de sociólogo que faz leituras da so- sionar a arte, a imaginação e a intuição: “Po-
ciedade e a reinventa. Isso se deu com dem até prender as pessoas, mas suas ideias
o movimento tropicalista que, em diálogo e sentimentos não podem ser controlados.
com diferentes matrizes culturais brasileiras, As pessoas continuam fazendo sua arte. São
se reapropriou delas, em claro estilo antropo- perseguidas quando publicizam o que criam,
fágico, e as devolveu em forma de arte. Um e mesmo assim prosseguem fazendo”.
dos maiores legados do tropicalismo foi man- Graduado em Música pela Universidade
ter uma postura política esclarecida. “Outras Estadual do Ceará – UECE, Pedro Rogério é
lições são deixar de lado o preconceito, estar mestre e doutor em Educação pela Universi-
aberto e permitir que as misturas aconte- dade Federal do Ceará – UFC, onde leciona
çam”, disse em entrevista concedida por te- no Instituto de Cultura e Arte – ICA. É autor
lefone à IHU On-Line. Ele tece aproximações de Pessoal do Ceará: habitus e campo musical
entre esse movimento e o mangue beat, de na década de 1970 (Fortaleza: Edições UFC,
Recife, sinalizando que a busca por um diálo- 2008) e um dos organizadores de Educação
go entre a cultura local, considerando-a rele- Musical: campos de pesquisa, formação e ex-
vante, além de lançar um olhar com interesse periências (Fortaleza: Edições UFC, 2012).
artístico e estético, misturando e fazendo com Confira a entrevista.
que ganhe notoriedade, são traços comuns.
IHU On-Line – Como você define significado da música, a maneira de de antropofagia, e de não negar e www.ihu.unisinos.br
o tropicalismo? ser e estar no mundo perante as coi- excluir nada, bebendo em todas as
Pedro Rogério – O tropicalismo sas dadas naquele período.
é a tradução musical de um momen-
to de efervescência política e cultural IHU On-Line – Em que sentido o chamada de Semana de 22, ocorreu em
São Paulo nos dias 13, 15 e 17 de feverei-
do Brasil que ganhou notoriedade em tropicalismo ainda exerce influência ro daquele ano, no Teatro Municipal. Re-
todo o país. Ele foi muito difundido e hoje? presentou uma verdadeira renovação de
linguagem, na busca de experimentação,
influenciou toda uma geração. Para Pedro Rogério – Alguns temas na liberdade criadora da ruptura com o
falar a verdade, até hoje vivemos in- tabus, a forma como ler o mundo e passado e até corporal, pois a arte passou
fluências benéficas desse movimen- reinventá-lo são, ainda, algo que ali- então da vanguarda para o modernismo.
Participaram da Semana nomes consa-
to, assim como outros movimentos menta as reflexões dos intelectuais e grados do modernismo brasileiro, como
foram fomentados nesse mesmo pe- artistas. Isso foi potencializado pela Mário de Andrade, Oswald de Andrade,
Víctor Brecheret, Plínio Salgado, Anita
ríodo junto de intelectuais, porque se tropicália, mas remonta ao Movimen- Malfatti, Menotti Del Pichia, Guilherme
tratava não somente de um grupo de to Modernista de 19221, com a ideia de Almeida, Sérgio Milliet, Heitor Villa-
músicos, mas também de intelectuais -Lobos, Tarsila do Amaral, Tácito de Al-
meida, Di Cavalcanti entre outros. (Nota
que repensaram o valor estético, o 1 Semana de Arte Moderna: também da IHU On-Line)
Tema de Capa
disso. É um cara que se reinventa ideia da antropofagia, do transborda-
dentro da própria obra. É o caso do
Pato Fu, com sua música de brinque- interessante é que mento e, principalmente, de uma pos-
tura honesta no sentido de considerar
do. Caetano hoje é totalmente dife-
rente do que era em seus começos, os tropicalistas o valor que as coisas têm dentro da sua
obra, sem preconceito.
como é o caso de Gil e Tom Zé. É o
caso, ainda, de Bethânia, Gal Costa, não ficaram presos IHU On-Line – Que aproxima-
Os Mutantes e Rita Lee. Todos esses
artistas se reinventaram, o que é à situação política, ções você faria entre o tropicalismo e
o mangue beat, de Recife?
muito saudável. Essa ideia de rein-
venção no sentido de colaborar com eles extrapolam Pedro Rogério – Acredito que
buscar um diálogo entre a cultura lo-
uma leitura de um mundo real e dar
uma colaboração para essa leitura isso, continuando cal e considerá-la relevante, além de
lançar um olhar com interesse artís-
é algo importante. O artista é uma
espécie de sociólogo: ele faz leituras a falar de amor e tico e estético, misturando e fazendo
com que ganhe notoriedade é algo
da sociedade e a reinventa.
valorizando até a que é comum a ambos os movimen-
tos. Por que o mangue beat reverbe-
IHU On-Line – Que lição
o tropicalismo deixou para a jovem guarda, que rou no Brasil e em muitos lugares do
mundo? Porque ele traz questões que
contemporaneidade?
Pedro Rogério – Penso que uma era tão criticada são próprias do lugar e que traduzem
os outros lugares também. O que fa-
das grandes lições é essa reinvenção
à qual acabo de me referir, mantendo pelos políticos zemos aqui no Ceará tem muito a ver
com o que o mangue beat pautou
uma postura esclarecida politicamen-
te. Outras lições são deixar de lado o como se fosse através da sua postura. Há, aí, uma re-
lação muito próxima entre tropicalis-
preconceito, estar aberto e permitir
que as misturas aconteçam. A música um movimento mo e o mangue beat, com uma valo-
rização do local não para ficar preso a
mais brega que existe precisa ficar den-
tro daquele rótulo, ou existe algo ali do alienado” ele, mas para estabelecer um diálogo
entre o regional e o universal. Os dra-
qual podemos nos reapropriar e fazer mas humanos, as lutas, a valorização
parte de um movimento de recriação ça, o teatro e o cinema com as novas de si são coisas universais. O universal
da música, do cinema? É preciso deixar tecnologias. Isso os tropicalistas fize- é algo que toca a todos.
fluir o diálogo entre a música e a dan- ram muito bem dentro do contexto em
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deslizamento e permanência
Condição existencial nos trópicos, permeada por uma atitude afirmativa frente à vida, é
um dos traços tropicalistas, destaca Júlio Cesar Valladão Diniz. Flertando com a literatura,
deglutindo a bossa nova, a jovem guarda e influências estrangeiras, cria o inusitado
Por Márcia Junges e Thamiris Magalhães
“O
ser tropical é um mulato que de- silêncio imposto pela ditadura, da dominação
liberadamente contrabandeia do do mercado dos bens simbólicos, da mesmice e
exterior a matéria prima da nossa rigidez estética e conceitual presentes em boa
cultura, seja ela europeia ou africana, transfor- parte da música popular da época”.
mando a diáspora em lugar de deslizamento e Graduado em Português-Literatura pela
permanência. Até hoje”, assegura Júlio Cesar Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ,
Valladão Diniz em entrevista concedida por Júlio Cesar Valladão Diniz é mestre e doutor em
e-mail à IHU On-Line. Essa “poética da agori- Literatura Brasileira pela Pontifícia Universida-
dade” tem na afirmação da vida no presente de Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio com a
grande parte de sua fundamentação. “O tropi- dissertação Uns caetanos (estudo de composi-
calismo fecha a porta modernista sem nostalgia ções) e a tese Modulando a dissonância: músi-
e olha pela fresta o devir-pós-moderno sem ne- ca e letra. Cursou pós-doutorado em Literatura
nhum desejo de colonizar o futuro, utilizando Comparada na Universidade de Salamanca, na
a imagem de Octavio Paz”, menciona. Além de Espanha. Foi diretor do Departamento de Le-
movimento cultural e artístico, devemos enten- tras da PUC-Rio e é professor na área de Estu-
der o tropicalismo como um modo de ser, “uma dos de Literatura. É o organizador do Dicionário
maneira cosmopolita e contemporânea de Cravo Albin da Música Popular Brasileira (Rio de
olhar e tentar compreender o país, a sociedade Janeiro, 2002), foi membro do Conselho Esta-
brasileira, seus dilemas, angústias, grandezas e dual de Cultura do Rio de Janeiro (2004-2006) e
misérias. Ampliar e amplificar as vozes brasilei- é pesquisador do CNPq.
ras diante dos impasses da modernidade, do Confira a entrevista.
IHU On-Line – De que maneira o IHU On-Line – Em que sentido dade, em especial em sociedades pós-
senhor define o tropicalismo? podemos fazer uma relação entre o -industriais, a partir do início da década
Júlio Cesar Valladão Diniz – De- movimento do tropicalismo e a mo- de 1970. O tropicalismo fecha a porta
finir o tropicalismo em uma palavra dernidade e/ou a pós-modernidade? modernista sem nostalgia e olha pela
ou uma frase é tarefa impossível. O Júlio Cesar Valladão Diniz – Acho fresta o devir-pós-moderno sem ne-
tropicalismo, antes de ser um movi- que toda a nossa tradição é e será sem- nhum desejo de colonizar o futuro,
mento cultural e artístico, é um modo pre moderna, o que não significa que utilizando a imagem de Octavio Paz. A
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de ser, uma condição existencial nos seja modernista. Do romantismo ale- defesa de uma “poética da agoridade”
trópicos, ou seja, uma maneira cos- mão do final do século XVIII de Schiller, em aliança com uma ética que afirma o
mopolita e contemporânea de olhar e Schlegel, Schelling e Schleiermacher valor da vida no presente.
tentar compreender o país, a socieda- às vanguardas históricas do alto mo-
de brasileira, seus dilemas, angústias, dernismo, representadas por Picasso, IHU On-Line – A seu ver,
grandezas e misérias. Ampliar e am- Matisse, Artaud e Joyce, por exemplo, quem foram os grandes ícones do
plificar as vozes brasileiras diante dos toda a constituição de um estado de movimento?
impasses da modernidade, do silêncio espírito ligado às noções de subjetivi- Júlio Cesar Valladão Diniz – Di-
imposto pela ditadura, da dominação dade, transgressão, ruptura e invenção fícil dizer quem liderou, quem deu a
do mercado dos bens simbólicos, da é marca da modernidade. Como então partida, quem sacou primeiro, quem
mesmice e rigidez estética e concei- falar de pós-modernidade e tropica- provocou quem para ir à luta. Concor-
tual presentes em boa parte da mú- lismo se no final dos anos 1960 o que do com o Tom Zé, para mim, gênio da
sica popular da época. O tropicalismo vivíamos no Brasil e no mundo era a raça, quando diz que o tropicalismo
tem a ver com comportamento, com crise de valores que nos formaram, os tem a ver com o encontro existencial,
transgressão, com uma atitude afir- valores ligados à tradição moderna? afetivo, artístico e político do Caeta-
mativa diante da vida. Pode-se, sim, falar de pós-moderni- no com o Gil. Fatores diversos, num
Tema de Capa
beleza, colaboraram e corroboraram tualidade, sonoridade, corporeidade rando a utilização da guitarra elétrica.
com os desejos de uma geração ávida e plasticidade. A literatura sempre es- O maior valor do tropicalismo é a ca-
de liberdade, mudanças e do novo. O teve ali, contrabandeada, travestida, pacidade (presente até hoje nas rami-
movimento começou em 1967, pauta- potencializada em suas referências, ficações tropicalistas e tribalistas) de
do pela intervenção crítico-musical no citações, costuras e rasuras. repensar o lugar do corpo, da alterida-
cenário cultural brasileiro, e do qual de, das novas subjetividades, da visua-
participaram, além de Caetano, Gil e IHU On-Line – Quais foram, lidade e da voz na cena performática.
Tom Zé, os poetas Torquato Neto e Ca- a seu ver, os principais desafios O tropicalismo, em seu melting pot tri-
pinam, os maestros de formação eru- enfrentados pelo movimento do turador, meteu e tirou inúmeras vezes
dita Rogério Duprat, Damiano Cozzella tropicalismo? a colher estetizante e politizante de
e Júlio Medaglia, o grupo Os Mutantes, Júlio Cesar Valladão Diniz – seu caldeirão. Celso Favaretto conse-
a cantora Gal Costa e o artista plástico Como já mencionado acima, penso guiu, em seu ensaio de 1979, perceber
Rogério Duarte, entre tantos outros. que o tropicalismo vivenciou o de- que a tropicália não só trabalhava com
sejo antropofágico preconizado por materiais que representavam o kitsch,
IHU On-Line – Qual a relação da Oswald de Andrade de uma maneira o cafona, a extroversão, o excessivo
antropofagia com o movimento? afirmativa, alegórica e radical. Há na na cultura brasileira, mas também
Júlio Cesar Valladão Diniz – A vontade de potência tropical e híbri- com a sofisticação de uma formatação
tropicália representou uma retomada da a nobreza do mulato que afirma a clean, com seu gesto mais intimista,
extremamente fértil do diálogo com vida, o empenho com a transforma- sua construção mais plana e angular
as posturas políticas, estéticas e éticas ção da estética em valor vital, contra de uma tradição da bossa nova, a voz
de Oswald de Andrade, em especial a moral do escravo, representada no dissonante, desencaixada, tradutora
com a antropofagia. A tropicália res- panorama cultural dos anos 1960 no de modulações. Esta constatação se
saltou, em sua estética, os contrastes Brasil pelo ressentimento e autorita- aplica às canções como também aos
da cultura brasileira, buscando supe- rismo de uma grande parte da esquer- cenários dos shows, roupas e princi-
rar as dicotomias arcaico/moderno, da intelectual. Ao mesmo tempo, por palmente às capas dos discos, em fun-
nacional/estrangeiro e cultura de mais paradoxal que pareça, o tropica- ção da proximidade dos músicos com
elite/cultura de massas, que, hege- lismo representa a quitação de contas os artistas plásticos.
monicamente, marcavam a discussão com o alto modernismo, a rasura com Fazendo um balanço da icono-
cultural na década de 1960. a contribuição milionária de todos os grafia das capas de disco durante os
acertos e erros de Mário e Oswald de anos 1950 e 1960, percebe-se uma
IHU On-Line – De que maneira Andrade, o esgotamento do projeto enorme ruptura na concepção vi-
podemos relacionar o tropicalismo modernista e o início de outro mo- sual da bossa nova em comparação
com a literatura brasileira? mento da arte brasileira, em sintonia com a das décadas anteriores. Elas
Júlio Cesar Valladão Diniz – An- com as grandes transformações polí- são mais claras, “limpas, modernas”.
tes de qualquer coisa, gostaria de ticas, sociais e culturais do Ocidente. Há uma evidência, quando se obser-
afirmar que há uma questão fun- va a coleção bossa nova, de que um
damental no estado da arte dos es- IHU On-Line – Qual a relação da novo processo se instaurava, uma
tudos literários hoje que merece a tropicália com a MPB? “higienização” latente no conteúdo
nossa reflexão: o processo contínuo Júlio Cesar Valladão Diniz – A programático bossa-novista, uma de-
e irreversível de ressemantização do ação tropicalista representa a radi- puração radical do excesso, seja ele
conceito de literatura. O diálogo pro- calização da volta a uma tradição do musical, poético, gráfico ou visual.
posto pelos Estudos Culturais abre kitsch, do exagero, da hipérbole, da Em relação ao tropicalismo, o que se
inúmeras possibilidades de articula- “cafonização” das imagens, da leitura vê é exatamente o contrário. As capas
ção intertextual e interdisciplinar en- crítica dos diapasões do Brasil, seja dos primeiros discos da tropicália são
tre as práticas escriturais e as distintas em sua estética, seja em seu compor- hipercoloridas, justapondo elemen-
manifestações estéticas. Em outras tamento geracional, seja em sua ma- tos modernos e tradicionais, o novo
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palavras, o conceito de literatura com neira de pensar a cultura. A constru- e a tradição, bem ao estilo de Sgt.
o qual fomos formados já não existe ção de um imaginário hiperbólico e a Pepper’s dos Beatles. As imagens do
mais. É claro que para uma boa par- opção por uma estética do excesso são Brasil e do exterior devoradas, deglu-
te da crítica literária, o que eu estou retomadas e reafirmadas pela tropicá- tidas e devolvidas como proposta de
dizendo é um disparate, uma loucura. lia, fazendo não o circuito tradicional desierquização e em sintonia com as
Mas na verdade acho que há uma no- e previsível de um programa vanguar- vanguardas de então.
ção de literatura expandida que atra- dista, ou seja, negando a bossa nova, a
vessa o panorama contemporâneo canção de protesto e a jovem guarda. IHU On-Line – Gostaria de acres-
e nos ajuda a entender que o que se Os tropicalistas incorporaram à sua es- centar algo?
chama (ou se chamou) de literatura tética tanto os procedimentos de uma Júlio Cesar Valladão Diniz – O
está presente em letras de música, na performance over da fase heroica da ser tropical é um mulato que delibe-
cultura audiovisual e nas artes plás- MPB quanto os procedimentos mini- radamente contrabandeia do exterior
ticas, por exemplo. O tropicalismo malistas da bossa nova. Sua proposta a matéria prima da nossa cultura, seja
colocou os pés, mãos e estômago na voltava-se para a absorção de distintos ela europeia ou africana, transfor-
literatura brasileira, provocando com gêneros musicais, como samba, bole- mando a diáspora em lugar de desli-
ela uma nova parceria. Há uma área ro, frevo, música de vanguarda e o pop zamento e permanência. Até hoje.
P
or que a tropicália continua um tema portância dada à música popular como uma
candente até nossos dias? Segundo o radiografia do Brasil. Como a academia é sub-
cientista social Gilberto Felisberto Vas- metida à ideologia da indústria fonográfica,
concellos, é porque esse movimento inte- então aquele livro passou a ser uma espécie
ressa sobretudo jornalistas de televisão e de de junção da universidade com a indústria fo-
jornal, mas não o povo. “Atinge estes caras: nográfica. Renego esse livro. Todo autor tem
redator, chefe de segundo caderno. Mas eu que ter um livro renegado.”
não acho que o povo curte isso não...” E in- Gilberto Felisberto Vasconcellos possui
daga, em entrevista exclusiva à IHU On-Line, graduação em Ciências Sociais pela Univer-
por e-mail: “O que a tropicália fez? Aprovou sidade de São Paulo – USP e doutorado pela
o quê? A multinacional é que é o quente, que mesma instituição. É professor adjunto da
ganhou, venceu a burguesia gostosa. É a va- Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF.
lorização da multinacional como motor do Escreveu um livro clássico sobre o tema da
desenvolvimento. Por isso que eu digo que a MPB: Música popular: de olho na fresta (Rio
tropicália é a transfiguração sonora da econo- de Janeiro: Graal, 1977), que aborda com mais
mia política do automóvel trazida pelo Jusce- detalhe nesta entrevista. Também é autor de,
lino Kubitschek”. entre outros, A Questão do Folclore no Brasil:
Ao abordar sua obra Música popular: de do Sincretismo à Xipofagia (Natal: EDUFRN,
olho na fresta, Gilberto Vasconcellos frisa 2009); e O Príncipe da Moeda (Rio de Janei-
que, depois dele, ele se tornou um “defun- ro: Espaço e Tempo, 1997). Ele já esteve duas
to autor” ou um autor defunto. “Acho que a vezes no Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
academia entendeu o livro em função da im- Confira a entrevista.
IHU On-Line – Por que o livro De autor tem que ter um livro renegado, fui renegado. É igual norte-america-
olho na fresta é sua obra mais comen- a não ser por um capítulo sobre Noel no que dá um pau nos Estados Uni-
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tada na academia? A que se deve este Rosa: “Yes, nós temos bananas”, ali é dos, mal comparando: Orson Welles1,
fato? bom. Mas eu sei é que toda hora di-
Gilberto Felisberto Vasconcellos zem: “ah! mas e o De olho na fresta?”
– Depois de De olho na fresta eu vi- Se eu não estivesse em São Paulo não
rei um “defunto autor” ou um autor teria escrito esse livro. O De olho na
1 George Orson Welles (6 de maio de
defunto. Acho que a academia enten- fresta é um livro paulista, e meus ou- 1915 – 10 de outubro de 1985): ator ame-
deu o livro em função da importância tros livros quebraram com isso, talvez ricano, escritor, diretor e produtor que
dada a música popular como uma ra- seja por aí. trabalhou extensivamente na rádio, te-
atro e cinema. Ele é mais lembrado por
diografia do Brasil. Como a academia Como a ideologia paulista é a do- seu trabalho inovador em todos os três
é submetida à ideologia da indústria minante no Brasil, se você quebrar com meios, mais notavelmente César (1937),
uma adaptação da Broadway; a estreia do
fonográfica, então aquele livro passou ela você quebra com o estabelecido, do- Mercury Theatre, A Guerra dos Mundos
a ser uma espécie de junção da univer- minante, hegemônico. Quando rompi (1938), uma das transmissões mais famo-
sidade com a indústria fonográfica. Foi com o De olho na fresta, rompi com o sos na história do rádio, e Cidadão Kane
(1941), que é constantemente classifica-
por aí, creio... Renego esse livro. Todo colonialismo interno paulista e, então, do como um dos melhores filmes de todos
os tempos. (Nota da IHU On-Line)
Tema de Capa
man4, Paul Baran, fui o paulista que diabo, é dele o:
chutou o pau da barraca; tenho essa
clivagem com São Paulo... E um deta- triunfo do rico, do ...ainda canto o ido o tido o dito
o dado o consumido o consumado
lhe: escrevi esse livro sem conhecer
os caras, se eu tivesse os conhecido, cara que venceu, Ato do amor morto motor da saudade
diluído na grandicidade idade de pedra
não teria escrito o livro... Se eu qui-
sesse me dar bem, teria reproduzido e indiretamente Ainda canto quieto o que conheço
Quero o que não mereço: o começo...
esse discurso; seria senador pelo PT
ou pelo PSDB, mas eu não consigo ou- é o aplauso do Isso é a melhor coisa da tropicá-
lia, isso daí é do Rogério, um violão da
vir esse troço. Creio que fui engana-
do. Como toda juventude atribui uma genocídio” pesada. Aliás, ele fez a capa do meu
livro Itamar o predestinado (Brasília:
função cognitiva à música popular, eu
Agência Quality, 1993).
achava que aquilo ali era um retrato
do Brasil, e na verdade era pura ideo- ao automóvel, a economia política do
automóvel. A MPBSHELL é a transfigu- IHU On-Line – Onde se encon-
logia, puro lucro, pura gandaia.
ração sonora da economia política do tram Glauber Rocha, Oswald de An-
automóvel. drade e tropicália?
IHU On-Line – Depois deste li-
Gilberto Felisberto Vasconcellos
vro, sua abordagem sobre a música
IHU On-Line – Há ainda alguma – Creio que Glauber tinha momentos
popular deu uma guinada em direção
coisa a ser dita sobre a tropicália que de ambivalência: ora ele falava bem
oposta ao De olho na fresta. Em seu
ainda não foi dito? dos músicos da tropicália, mas de-
livro, O Príncipe da moeda (Rio de
Gilberto Felisberto Vasconcellos pois chamou de tropicanalha... Mas
Janeiro: Espaço e Tempo, 1997) você
– A tropicália é o triunfo do rico, do o fato é que o Glauber nunca colocou
emprega o termo MPBSHELL para re-
cara que venceu, e indiretamente é o nenhum cantor da tropicália nos seus
lacionar a música popular e as condi-
aplauso do genocídio. O que a tropi- filmes. A não ser a Gal Costa cantan-
ções materiais e históricas que propi-
cália fez? Aprovou o quê? A multina- do ali no começo... Aliás, foi ele quem
ciaram seu surgimento. Você poderia
cional é que é o quente, que ganhou, lançou a Gal Costa... Mas o Glauber
explicar tal relação?
venceu a burguesia gostosa. É a valo- é Villa Lobos e o povo contra o resto.
Gilberto Felisberto Vasconcellos
rização da multinacional como motor Glauber não tinha esse negócio com
– MPBSHELL é junção da música brasi-
do desenvolvimento. Por isso que eu a MPB, só assim, Jorge Ben, Vanzolini,
leira com o petróleo. É o bate-estaca,
digo que a tropicália é a transfigura- com aquele baita samba maravilhoso,
é o som do automóvel, ou tudo que
ção sonora da economia política do e o Sérgio Ricardo.
circunscreve o automóvel: a publici-
automóvel trazida pelo Juscelino Ku- Agora sobre Oswald, a tropicália
dade, o anúncio, entendeu: “baby you
bitschek5. Agora a melhor coisa da oportunistamente se colocou como
can drive my car”... os “Paralamas do
tropicália é o Rogério Duarte6. O Ro- a corrente que estava valorizando
Sucesso”, o pneumático, a banda lar-
Oswald de Andrade, que estava mor-
ga, é isso... Toda música depois do “JK
5 Juscelino Kubitschek de Oliveira
to. Ele morreu em 1954, de 1954 até
music” – que é a bossa nova – é ligada
(1902-1976): médico e político brasilei- 1967-1968, ninguém falou do Oswald,
ro, conhecido como JK. Foi presidente do a não ser a poesia concreta. Na verda-
2 John Nicholas Cassavetes (9 de dezem- Brasil entre 1956 e 1961, sendo o respon-
bro de 1929 – 3 de fevereiro de 1989): sável pela construção de Brasília, a nova de, a poesia concreta é que trouxe o
ator americano, roteirista e cineasta. capital federal. Sobre JK, confira a edi- Oswald para a cena, e não a tropicália.
Cassevetes também foi um dos pionei- ção 166, de 28-11--2005, A imaginação Foi o Décio7, o Haroldo8 e o Augusto9
ros de filmes americanos independentes no poder. JK, 50 anos depois, disponível www.ihu.unisinos.br
por escrever e dirigir mais de uma dúzia para download em http://migre.me/
de filmes, financiados, em parte, com qkeQ. (Nota da IHU On-Line) blicamente a tortura no regime militar.
seus salários de Hollywood. Foi pioneiro 6 Rogério Duarte Guimarães (Ubaíra, 10 Preso juntamente com seu irmão Ronaldo
no uso da improvisação. (Nota da IHU de abril de 1939): Intelectual multimídia Duarte, o caso mobilizou artistas e mere-
On-Line) baiano, Rogério Duarte é artista gráfico, ceu ampla divulgação no jornal carioca
3 Paul Sweezy Marlor (10 de abril de músico, compositor, poeta, tradutor e Correio da Manhã, que publicou uma carta
1910 – 28 de fevereiro de 2004): econo- professor. Nos anos 60 mudou-se para o coletiva pedindo a libertação dos “Irmãos
mista marxista, ativista político, editor Rio de Janeiro, onde trabalhou como di- Duarte”. (Nota da IHU On-Line)
e fundador da revista de longa duração retor de arte da UNE e da Editora Vozes. 7 Décio Pignatari (1927-2012): advoga-
Monthly Review. É mais lembrado por Foi o autor de vários cartazes para filmes do, poeta, ensaísta, professor e tradutor
suas contribuições à teoria econômica de seu amigo Glauber Rocha, como Deus e brasileiro. (Nota da IHU On-Line)
como um dos principais economistas mar- o diabo na terra do sol (símbolo do cine- 8 Haroldo Eurico Browne de Campos
xistas da segunda metade do século 20. ma nacional), Terra em transe e A idade (1929-2003): poeta e tradutor brasileiro.
(Nota da IHU On-Line) da terra. Também criou, para este último, (Nota da IHU On-Line)
4 Leo Huberman (Newark, 17 de outu- a trilha sonora. Entre os vários artistas 9 Augusto Luís Browne de Campos
bro de 1903 - 9 de novembro de 1968): com os quais colaborou, contam-se Gil- (1931): poeta, tradutor e ensaísta brasi-
jornalista e escritor marxista norte-ame- berto Gil, Caetano Veloso, João Gilberto, leiro. É um dos criadores da Poesia Con-
ricano, cofundador da revista Monthly Jorge Ben e Gal Costa. Considerado um creta, junto com seu irmão, Haroldo de
Review. É autor de História da Riqueza dos mentores intelectuais do movimento Campos, e Décio Pignatari, que ao rom-
do Homem (Rio de Janeiro: LTC Editora, tropicalista, Rogério foi também um dos perem com o Clube de Poesia, lançaram a
1986) (Nota da IHU On-Line) primeiros a ser preso e a denunciar pu- revista Noigandres. (Nota da IHU On-Line)
IHU On-Line – Haveria alguma que ela atinge ao contrário... E a música popular
conquistou as mulheres, elas foram
relação entre os ensaios publicados
por Augusto de Campos em O ba- essencialmente seduzidas pela música. Isso se deve às
inflexões culturais impostas à mulher
lanço da bossa e o seu livro De olho
na fresta? É possível vislumbrar uma jornalistas de e eles tematizam ela o tempo todo.
Creio que de maneira até antifemini-
aproximação entre as duas obras?
Gilberto Felisberto Vasconcellos televisão e de na. Discordo desse negócio de que o
músico popular é o grandão, o cara
– É anterior... Fiz o De olho na fresta
muito inspirado no Augusto. Ele legi- jornal, não atinge que saca os segredos da mulher, isso
aí é mistificação... Outro fato acerca
timou na alta cultura a tropicália. O
Augusto ficou deslumbrado com ela. o povo. Atinge da persistência da tropicália é que
ela atinge essencialmente jornalistas
Ele chegou ao ponto de colocá-la até
superior ao Villa lobos. Talvez porque esses caras: de televisão e de jornal, não atinge o
povo. Atinge estes caras: redator, che-
ela tinha o domínio da comunicação
de massa e a poesia concreta sempre redator, chefe de fe de segundo caderno. Mas eu não
acho que o povo curte isso não...
ficou um negócio confinado a pouca
gente... Então, talvez tenha sido isso. segundo caderno. IHU On-Line – O problema é a
Se bem que o Haroldo de Campos
nunca deu importância a isso. Mas, Mas eu não acho música popular ou a tropicália?
Gilberto Felisberto Vasconcellos
depois de certa altura, os concretos
saíram de cena. Você não vê mais que o povo curte – O povo ágrafo aprende tudo pelo
ouvido, não é? E ao mesmo tempo
hoje o Augusto falando da tropicália.
Agora, confesso que se dá uma impor- isso não...” a música popular depende do en-
chimento sonoro onipresente na so-
tância exagerada à tropicália. Não tem ciedade brasileira. Se você fizer uma
importância nenhuma isso. crítica das condições insanas acústicas
trevista comigo sobre a tropicália. Por do Brasil, os músicos vão ser contra,
IHU On-Line – E por que a tropi- causa disso. Esse é o problema. Você eles gostam de sonzinho em elevador,
cália ainda hoje é estudada? devia começar a questionar essa en- no bar, é a sobrevivência dos caras...
Gilberto Felisberto Vasconcellos trevista: por que o Glauber não teve Por que, o que é a música? A música é
– É porque você está fazendo essa en- e mesma ressonância na juventude a crítica do som da sociedade. É isso!
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39 EDIÇÃO 000 | SÃO LEOPOLDO, 00 DE 00 DE 0000 SÃO LEOPOLDO, 00SÃO
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Entrevista da Semana
Destaques da Semana
A
o refletir sobre os rumos da Teologia vivem uma realidade que não vivemos. Em
da Libertação nos últimos 40 anos, o geral, os pobres não querem servir de exem-
teólogo espanhol Jon Sobrino reco- plo para ninguém. Eles simplesmente dão o
nhece que ela pode ter perdido um pouco da exemplo pela experiência, pelo modo de ser e
força e da potência midiática que possuía nos nos evangelizam”.
anos 1980. Ele recorda a época dos regimes Jon Sobrino é professor da Universidade
militares na América Latina, que teria sido o Centro-Americana – UCA, de San Salvador.
período de maior perseguição aos teólogos Doutor em Teologia pela Hochschule Sankt
da libertação: “as ditaduras militares usavam Georgen, em Frankfurt (Alemanha) e diretor
força militar, ou seja, armas, com as quais po- da Revista Latino-americana de Teologia e do
diam matar e assim o fizeram. Agora o que informativo Cartas a las Iglesias, é autor de,
temos são democracias capitalistas. E que entre muitos outros livros, Cristologia a partir
poder elas têm? O capital. Este não mata nor- da América Latina: esboço a partir do segui-
malmente, porque pode enganar ou comprar mento do Jesus histórico (Petrópolis: Vozes,
as pessoas de outras formas. A Teologia da Li- 1983). Sobrino esteve na Unisinos partici-
bertação pode realmente ter perdido forças. pando do Congresso Continental de Teologia,
O que não perde as forças é o capital”. Para com a conferência inaugural do evento, inti-
Sobrino, “o capitalismo pode tolerar até certo tulada “Um novo Congresso e um Congresso
ponto a ajuda e o amor aos pobres. Outra coi- novo”, no último mês de outubro, ocasião em
sa é quando se sai em defesa deles, o que pro- que concedeu a entrevista a seguir, pessoal-
voca um conflito social. Nesse sentido, o povo mente, à IHU On-Line.
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IHU On-Line – Quais os cami- Serrat2, cantor popular espanhol, que pergunta quais os caminhos para cons-
nhos para se construir uma teologia diz “Caminhante, não há caminho; o truir uma teologia viva. E eu te respon-
viva? caminho se faz ao andar”3. Você me do com a canção: não há caminhos;
Jon Sobrino – Há um poema de eles se fazem ao andar. Se vivemos no
um poeta espanhol chamado Antonio poeta espanhol, pertencente ao moder- mundo com os olhos abertos para ver
nismo. (Nota da IHU On-Line)
Machado1, cantado por Joan Manuel a pobreza real, percebemos que ela
2 Joan Manuel Serrat i Teresa (1943):
cantor, poeta, músico e compositor es- se capta melhor com o nariz, com o
panhol, uma das expressões mais desta-
1 Antonio Cipriano José María y Francis- cadas da música moderna espanhola e
co de Santa Ana Machado Ruiz, conheci- catalã. (Nota da IHU On-Line) XXIX, em Campos de Castilla”. (Nota da
do como Antonio Machado (1875 -1939): 3 Extraído de “Proverbios y cantares IHU On-Line)
Destaques da Semana
vemos os pobres nas fotografias, eles mo morto, como teólogo, por meio
são até bonitos: estão nus, sujos, até
simpáticos. Mas quando nos depara- seguiram Medellín de seus escritos, que hoje são muito
mais lidos do que antes. Gustavo Gu-
mos com os pobres e queremos hu-
mildemente ajudar, estamos fazendo o tem sofrido muita tierrez6 perdeu força? Creio que não,
pois aos 84 anos continua produzindo
caminho para uma teologia viva. Cons-
trói-se uma teologia viva caminhando perseguição” e está escrevendo um livro importan-
te sobre os pobres, que acredito que
com os pobres. Casaldáliga4, que é ou- será muito bom. Leonardo Boff7 tam-
tro grande poeta, comentando a refe- bém não perdeu a força, mas mudou
rida poesia de Antonio Machado, diz: ram mortos não por serem teólogos a direção de sua força. O que quero
“o caminho se faz ao andar para que da libertação, mas por defenderem o dizer é que os teólogos que seguiram
os atrasados possam nos alcançar. É pobre, por lutarem pela justiça e tra- Medellín8 tem sofrido muita persegui-
preciso caminhar para animar aqueles balharem pela paz. A direita dos mi- ção. Sempre que o pensar cristão esti-
que estão atrás, para que também ca- litares não queria ouvir falar de uma ver realmente baseado em uma visão
minhem. Faça do canto do teu povo o paz entre marxistas e ricos. Também dos pobres, em uma prática movida
ritmo da tua marcha”. destaco que a Teologia da Libertação
começou como um movimento rea-
6 Gustavo Gutiérrez (1928): padre e teó-
IHU On-Line – Quarenta anos lizado por homens e devemos nos logo peruano, um dos pais da Teologia
depois do surgimento da Teologia da perguntar o que temos feito com as da Libertação. Gutiérrez publicou, de-
pois de sua participação na Conferência
Libertação, que autocrítica ela deve mulheres enquanto intelectuais pen- Episcopal de Medellín de 1968, Teologia
fazer? santes e teólogas? E nesse campo é da Libertação (Petrópolis: Vozes, 1975),
Jon Sobrino – A primeira auto- preciso fazer uma autocrítica. No en- traduzida para mais de uma dezena de
idiomas, e que o converteu num teólo-
crítica é reconhecer que é humana. tanto, as coisas estão caminhando. O go polêmico. Uma década mais tarde
E não falo aqui da Teologia da Liber- mesmo ocorre em relação aos indíge- participou da Conferência Episcopal de
Puebla (México, 1978), que selou seu
tação, mas de teólogos, teólogas, ho- nas. Para mim é um absurdo falar em compromisso com os desfavorecidos e
mens, mulheres, sacerdotes, leigos e autocrítica a respeito da relação entre serviu de motor de mudança na Igreja,
jornalistas também. Falo de pessoas. Teologia da Libertação e marxismo. especialmente latino-americana. Alguns
dos últimos livros de Gustavo Gutiérrez
Há jornais e periódicos da libertação, são: Em busca dos pobres de Jesus Cris-
mas há também os da opressão. O IHU On-Line – Muitos criticam a to. O pensamento de Bartolomeu de Las
Teologia da Libertação, dizendo que Casas (São Paulo: Paulus, 1992) e Onde
que vejo é que há resistência à Teolo- dormirão os pobres? (São Paulo: Paulus,
gia da Libertação por parte do Vatica- ela perdeu o entusiasmo e a força de 2003). (Nota da IHU On-Line)
no, que a persegue. Talvez, às vezes, atuação dos anos 1980. Como recebe 7 Leonardo Boff (1938-): teólogo brasi-
leiro, autor de mais de 60 livros nas áre-
com razão, afinal, ela não é perfeita; essa crítica e quais os desafios da Te- as de teologia, espiritualidade, filosofia,
mas muitas vezes sem razão. Alguns ologia da Libertação hoje? antropologia e mística. Boff escreveu um
Jon Sobrino – Em primeiro lugar, depoimento sobre as razões que ainda
teólogos, como Ignacio Ellacuría5, fo- lhe motivam a ser cristão, publicado na
a Teologia da Libertação é um ente edição especial de Natal da IHU On-Li-
abstrato. Ellacuría também perdeu a ne, número 209, de 18-12-2006, dispo-
4 D. Pedro Casaldáliga: bispo prelado de nível em http://bit.ly/iBjvZq, e conce-
São Félix, Mato Grosso. É poeta e escritor
força quando estava vivo, porque o deu uma entrevista sobre a Teologia da
de renome internacional. Quando assume Libertação na IHU On-Line número 214,
a prelazia de São Felix, em pleno regime de 02-04-2007, disponível em http://
militar, denuncia veementemente o lati- El Salvador. Ele era reitor da Universida- bit.ly/kaibZx. Na edição 238, de 01-10-
fúndio e defende a reforma agrária e o de Centro Americana, em San Salvador, 2007, intitulada Francisco. O santo, con-
direito indígena à terra. Foi duramente confiada à Companhia de Jesus. Ele e cedeu a entrevista A ecologia exterior e www.ihu.unisinos.br
perseguido pelo regime militar. Pe. João seus companheiros foram barbaramente a ecologia interior. Francisco, uma sín-
Bosco Penido Burnier, jesuíta, foi assassi- assassinados por terem conseguido fa- tese feliz, disponível em http://bit.ly/
nado ao lado dele, no dia 12 de outubro zer desta universidade uma importante km44R2. Sua entrevista mais recente à
de 1976. A edição 137 da IHU On-Line, de força social na luta pela promoção da IHU On-Line intitula-se Os intelectuais
18 de abril de 2005, publicou uma entre- justiça social. Sobre Ellacuría, confira a que têm algum sentido ético precisam
vista com Casaldáliga: O próximo ponti- entrevista especial concedida por Héctor falar sobre a Terra ameaçada e está dis-
ficado será um tempo de transição signi- Samour, em 16-11-2007, ao site do Insti- ponível em http://bit.ly/Qpj45L. (Nota
ficativo. A edição 89, de 12 de janeiro de tuto Humanitas Unisinos – IHU, intitulada da IHU On-Line)
2004, trouxe entrevista com o religioso, Inteligência, compaixão e serviço. Cele- 8 Documento de Medellín: em 1968, na
falando sobre a homologação de terra brando o martírio de Ignacio Ellacuría esteira do Concílio Vaticano II e da en-
contínua para índios. Leia as Notícias do e companheiros, disponível em http:// cíclica Populorum Progressio, realiza-se,
Dia 10-12-2012, especificamente Dom Ca- migre.me/11DN8. Na mesma data, nosso na cidade de Medellín, Colômbia, a II
saldáliga é evacuado de sua casa em São site publicou a notícia Ignacio Ellacuría Assembleia Geral do Episcopado Latino-
Félix por ameaças de morte, disponível e companheiros assassinados no dia 16- -Americano que dá origem ao importante
em http://bit.ly/Rjbuha. (Nota da IHU 11-1989, disponível em http://migre. documento que passou a ser chamado o
On-Line) me/11DO7. No site do IHU visite a Sala Documento de Medellín. Nele se expressa
5 Ignácio Ellacuría: filósofo, especialis- Ignácio Ellacuría e Companheiros, onde a clara opção pelos pobres da Igreja La-
ta em Zubiri, jesuíta, foi assassinado no podem ser lidas notícias, a história dos tino-Americana. A conferência foi aberta
dia 15 de novembro de 1988, juntamen- mártires jesuítas e o memorial criado pessoalmente pelo papa Paulo VI. Era a
te com mais quatro companheiros jesu- pelo IHU em sua homenagem: http:// primeira vez que um papa visitava a Amé-
ítas e duas senhoras, em San Salvador, migre.me/11DOt. (Nota da IHU On-Line) rica Latina. (Nota da IHU On-Line)
Leia as entrevistas
do dia no sítio do IHU:
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Destaques da Semana
A espiral da violência, a superação
do ressentimento e a gratuidade
do bem
Sistema ambíguo que pode gerar muitos sofrimentos, a religião precisa abandonar
seu lado sacrificial, pondera Carlos Mendoza. Ações cotidianas, dos justos, é que
mudam o curso da história e permitem que a humanidade continue a existir
“A
s pessoas não perdem a esperan- profetas de todas as religiões são incômodos
ça. A partir dessas vítimas com para as suas instituições porque as colocam
seus atos de solidariedade é que em questionamento”. Mendoza acentua que
podemos começar a reconstruir um mundo é nos gestos cotidianos de homens e mu-
um pouco diferente”, disse o teólogo mexica- lheres comuns que a humanidade consegue
no Carlos Mendoza, na entrevista que conce- sobreviver: “De outro modo, já teríamos nos
deu pessoalmente à IHU On-Line por ocasião destruídos todos se não houvesse homens e
de sua vinda ao Congresso Continental de mulheres que detêm a espiral de violência
Teologia, sediado pelo Instituto Humanitas em sua própria vida cotidiana”.
Unisinos – IHU em outubro. A seu ver, é pre- Carlos Mendoza-Alvarez se formou em
ciso descobrir na exclusão os atos de “gratui- Filosofia, pela Universidade Autônoma do
dade, de doação e amor não recíproco, de México, e fez doutorado em Teologia, em
generosidade. Em meio a tanta exclusão as Paris e Friburgo (Suíça). Em sua tese de dou-
pessoas não se desumanizam, mas chegam torado procurou tecer um diálogo com o
a tocar o fundo de si mesmas e dar o melhor pensamento hermenêutico de Paul Ricoeur,
de si aos outros”. Ele fala, ainda, que muitos a ética da alteridade de Emmanuel Levinas www.ihu.unisinos.br
pensadores tem proposto uma religião sem e a teoria mimética de René Girard. Dentre
religião, que excluiria a mentalidade sacrifi- seus escritos, destaca-se o livro O Deus es-
cial, através da qual sempre há necessidade condido da pós-modernidade: desejo, me-
de uma vítima. “Esses autores dizem que a mória e imaginação escatológica. Ensaio
religião é um sistema de poder, crenças e de teologia fundamental pós-moderna (São
ritos e como sistema gera sacrifícios, exclu- Paulo: É Realizações, 2011). Mendoza par-
são e algum tipo de sofrimento. Por isso se ticipou do Congresso Continental de Teolo-
afirma que a religião só corresponde a um gia falando sobre o tema “modernidade e
momento da vida espiritual. Há outro que pós-modernidade”.
vai mais além da religião, e os místicos e Confira a entrevista.
IHU On-Line – A partir dessa de que a religião Foi o que fizeram São João da Cruz3,
Santa Teresa4 e grandes místicos an-
realidade pós-moderna, quais se-
riam os principais desafios dessa é um sistema 2 René Girard (1923): filosofo e antro-
Destaques da Semana
a instituição um meio apenas, e não Por isso os justos são seres trans-
um fim. Diversos autores dizem que
a religião, às vezes, separa em vez de justos não são parentes, translúcidos, íntegros de
coração. São pessoas coerentes com
unir. As guerras religiosas são uma
contradição e sem dúvida são a vio- espetaculares, são seus princípios de escuta, abertura e
simpatia para com o Outro.
lência mais terrível que a humanida-
de já conheceu – tudo em nome de cotidianas, e é isso IHU On-Line – Hans Küng disse
Deus. Hoje nos damos conta de que
a religião é um sistema ambíguo que que faz mudar a que o Concílio Vaticano II foi uma
espécie de dislexia. A partir dessa
pode gerar grandes sofrimentos. Por
isso alguns autores dizem que é pre- história. A história afirmação, pode-se pensar que a te-
ologia de Roma seria como a coruja
ciso ir mais além do sistema de cren-
ças, doutrinas e moral para então existe graças a de Minerva de Hegel, que só levanta
voo ao entardecer, ou seja, chega tar-
entrar numa dimensão mais contem-
plativa da experiência religiosa. Os esses pequenos de demais para um mundo em cons-
tante mutação?
meios se demonstram curtos porque
a experiência é mais rica e compro- atos cotidianos Carlos Mendoza – Creio que
inclusive em Roma há muitas teo-
metedora, o que representa um de-
safio ao falar de religião sem religião. de generosidade, logias. Há uma que é mais solene e
oficial quando se expressa em do-
Isso implica em mais mística e expe-
riência espiritual, além de mais com- de justiça e cumentos dirigidos aos bispos e à
Igreja em geral. Nos encontros mais
promisso ético. O que tal pensamen-
to propõe é ir mais além da religião, compromisso com pessoais, com pastores ou líderes,
há outras compreensões mais be-
em sua experiência originária.
a verdade. Essa nevolentes e compassivas, menos
formais. Há uma tendência a centra-
IHU On-Line – A exclusão tem
muitos rostos. Como podemos com- é a vida” lizar a discussão e fechá-la nos de-
bates, mantendo a autoridade. Mas
preender que através desses rostos, isso não é exclusivo da igreja hierár-
dessa alteridade, se revele o rosto de quica, mas das instituições de poder,
Deus? que foram sacrificados, que supera inclusive como as empresas. Creio
Carlos Mendoza – Porque nes- seu ressentimento, graças a esses que esse seja o problema: devemos
ses rostos e experiências de gra- atos concretos a humanidade pode compreender a Igreja como mais do
tuidade há algo que transcende os sobreviver. De outro modo, já terí- que uma empresa ou um sistema
limites do humano e do mal. Isso amos nos destruídos todos se não de poder. A Igreja existe desde o
que dizer quer através de uma pes- houvesse homens e mulheres que primeiro inocente que foi vitimado.
soa que compartilha seu pão, que detêm a espiral de violência em sua Creio que devemos ter uma compre-
perdoa e guarda a memória dos própria vida cotidiana. Não se trata ensão de Igreja mais inclusiva da his-
de grandes atos heroicos, mas a par- tória humana, porque essa institui-
tir de uma perspectiva de reverter ção existe como grande projeto para
carmelita espanhola nascida em Ávila,
Castela, famosa reformadora da ordem em seu corpo, em sua sensibilida- que nós humanos vivamos com um
das Carmelitas. Canonizada por Gregório de e inteligência, toda a violência, pouco mais de dignidade.
XV (1622), é festejada na Espanha em 27
transformando-a em outra coisa.
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de agosto, e no resto do mundo em 15 de
outubro. Foi a primeira mulher a receber Isso fazem os pais de família com
o título de doutora da igreja, por decre- seus filhos, o artista ao criar, o líder
to de Paulo VI (1970). Entre seus livros
citam-se Libro de su vida (1601), Libro
de las fundaciones (1610), Camino de la
social que promove uma mudança
de justiça para sua comunidade. As
Leia mais...
perfección (1583) e Castillo interior ou ações dos justos não são espetacu-
Libro de las siete moradas (1588). Escre- >> Carlos Mendoza já concedeu outra
veu também poemas, dos quais restam 31 lares, são cotidianas, e é isso que faz
entrevista à IHU On-Line. Confira:
deles, e enorme correspondência, com mudar a história. A história existe
458 cartas autenticadas. Sobre Teresa,
graças a esses pequenos atos coti- • É possível falar de Deus na socieda-
confira Teresa - A Santa Apaixonada, (Rio
de Janeiro: Objetiva, 2005), de autoria dianos de generosidade, de justiça de contemporânea? Edição 404, de
de Rosa Amanda Strausz; Obras comple- e compromisso com a verdade. Essa
tas (São Paulo: Loyola, 1995) e Santa Te- 05-10-2012, disponível em http://
resa de Jesus – “Livro da vida” (4ª ed., é a vida. Devo “pagar” essa fatura
bit.ly/RNKfs5
São Paulo: Ed. Paulus, 1983). (Nota da porque estou habitado por uma for-
IHU On-Line)
A política do precariado e a
mercantilização do trabalho
Conceito ressignificado da sociologia francesa por Ruy Braga ajuda a compreender as
relações trabalhistas no Brasil, especialmente questões como as greves de 2011 e as
peculiaridades da atividade dos operadores de call center
“N
o capitalismo, como o trabalha- periféricas”. As demandas das pautas operá-
dor é despojado de meios de rias remetem, via de regra, ao “velho regime
produção, necessitando vender fabril despótico, agora revigorado pelas ter-
sua força de trabalho para poder viver, a in- ceirizações e pelas subcontratações”. A entre-
segurança o acompanha desde o início de sua vista a seguir foi inspirada no lançamento de
trajetória como assalariado. Afinal, ele preci- sua obra A política do precariado (São Paulo:
sa encontrar alguém que compre sua única Boitempo, 2012).
mercadoria em condições sociais médias”. A Ruy Braga é especialista em Sociologia
declaração é do sociólogo Ruy Braga na en- do Trabalho e leciona no Departamento de
trevista exclusiva que concedeu por e-mail à Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras
IHU On-Line. Exemplificando suas ideias, ele e Ciências Humanas da Universidade de São
afirma que “os teleoperadores resumem to- Paulo – USP, onde coordenou o Centro de Es-
das as tendências importantes do mercado de tudos dos Direitos da Cidadania – Cenedic.
trabalho no país na última década: formaliza- É graduado em Ciências Sociais pela Uni-
ção, baixos salários, terceirização, significativo versidade de Campinas – Unicamp, onde cur-
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IHU On-Line – O que é a política condições capitalistas periféricas. Em significando-o, da sociologia francesa.
do precariado? primeiro lugar, é preciso compreen- Trata-se daquele amplo contingente
Ruy Braga – É a prática políti- der o que entendo por “precariado”, de trabalhadores que, pelo fato de
ca do proletariado precarizado em conceito que tomei emprestado, res- possuírem qualificações escassas, são
Destaques da Semana
damente pelas empresas, ou encon- à inquietação social com os baixos
tram-se no campo, na informalida-
de ou são ainda jovens em busca do capitalistas salários, com as péssimas condições
de trabalho e o com o aumento do
primeiro emprego, ou estão inseridos
em ocupações tão degradantes, su- periféricos endividamento das famílias promovi-
do pelo atual regime de acumulação
bremuneradas e precárias que resul-
tam em uma reprodução anômala da como o Brasil, o financeirizado.
força de trabalho.
Em países capitalistas periféricos precariado forma IHU On-Line – Por que a preca-
riedade é inevitável no processo de
como o Brasil, o precariado forma um
contingente enorme da classe traba- um contingente mercantilização do trabalho?
Ruy Braga – Basicamente, trata-
lhadora, permanentemente espremi-
do entre o aumento da exploração enorme da classe -se de uma característica da pró-
pria relação salarial capitalista. No
econômica e a ameaça da exclusão
social. Em termos teóricos, retirei do trabalhadora, capitalismo, como o trabalhador é
despojado de meios de produção,
precariado, tanto os trabalhadores
profissionais, aqueles com qualifica- permanentemente necessitando vender sua força de
trabalho para poder viver, a insegu-
ções ecassas, por isso, percebendo um
salário melhor e mais estáveis, quanto espremido entre rança o acompanha desde o início
de sua trajetória como assalariado.
a população pauperizada – envelheci-
da, acidentada, inapta para o trabalho o aumento da Afinal, ele precisa encontrar alguém
que compre sua única mercadoria em
– além daquilo que Marx chamava
de “lumpemproletariado”, ou seja, o exploração condições sociais médias. E isso não
é nada simples... Historicamente, o
“lixo de todas as classes”, indivíduos
que vivem de práticas “incofessáveis”, econômica e desenvolvimento das lutas de classes
criou instituições capazes de diminuir
mendigos, etc. Em minha opinião, é a
existência de um amplo precariado, e a ameaça da essa insegurança, como a previdência
social ou o seguro desemprego.
não de um enorme contingente em-
pobrecido, que caracteriza a reprodu- exclusão social” No entanto, em momentos de
crise econômica, como o que estamos
ção do capitalismo periférico. vivendo hoje na Europa, essas con-
Assim, busquei caracterizar so- quistas tendem a ser enfraquecidas
ciologicamente a prática política des- pela reação das classes dominantes
se precariado após a industrialização IHU On-Line – Qual é o seu con- que procuram restabelecer condi-
fordista no país por meio da análise texto de surgimento e como pode ser ções “ótimas” para o consumo da
do que eu chamei de “classismo em compreendida em nossos dias? mercadoria força de trabalho, com a
estado prático”, ou seja, uma relação Ruy Braga – Analisei a formação diminuição forçada dos “custos” de
política baseada em interesses mate- e as transformações dessa prática po- reprodução e do preço da força de
riais enraizados na estrutura de clas- lítica em dois momentos: durante a trabalho. Isso significa, em termos
ses, ainda que carente de recursos industrialização fordista no país, isto práticos, atacar os direitos sociais que
organizativos, ideológicos e políticos. é, entre os anos 1950 e 1980, e, logo marcaram a expansão capitalista no
Tendo em vista os estreitos limites depois, ao longo da transição pós-for- segundo pós-guerra. Evidentemente,
impostos pelo modelo de desenvol- dista que deu origem ao regime de esses ataques aos direitos significam www.ihu.unisinos.br
vimento periférico às concessões acumulação financeirizado brasileiro. um aumento da insegurança social e
trabalhistas, assim como a existên- Destaquei a relação da prática políti- um aprofundamento da precariedade
cia de condições sempre precárias ca do proletariado precarizado com laboral.
de reprodução da força de trabalho, os distintos modos de regulação dos
esta prática vê-se obrigada a politi- conflitos classistas que emergiram no IHU On-Line – Quais são as pe-
zar rapidamente suas reivindicações, pós-guerra: as regulações populista, culiaridades do precariado entre os
radicalizando suas iniciativas. A meu autoritária, neopopulista, neoliberal operadores de call center?
ver, o classismo prático traduz em- e lulista. Atualmente, a política do Ruy Braga – Os teleoperadores
piricamente um reformismo plebeu precariado pode ser sintetizada da resumem todas as tendências impor-
instintivamente anticapitalista, sin- seguinte maneira: proximidade do tantes do mercado de trabalho no
dicalmente refratário à colaboração proletariado precarizado com a regu- país na última década: formalização,
com as empresas e politicamente lação lulista e com as políticas públi- baixos salários, terceirização, signi-
orientado pela crença no poder de cas que estimularam a desconcentra- ficativo aumento do assalariamento
decisão das bases. ção de renda entre os que vivem dos feminino, incorporação de jovens não
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Entrevistas especiais feitas pela IHU On-Line no período de 04-12-2012 a 07-11-2012, disponíveis nas
Entrevistas do Dia do sítio do IHU (www.ihu.unisinos.br).
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IHU em
Revista
50 SÃO LEOPOLDO, 00 DE XXX DE 0000 | EDIÇÃO 000
IHU em Revista
Elefante Branco e uma igreja
humana, demasiado humana
O cinema argentino é um cinema de emoções, que sabe trabalha-las tanto no nível
individual, como no social. Em Elefante Branco vê-se algo diferente, que expõe mais
as feridas e escancara as suas relações humanas, afirma Celso Sabadin
FICHA TÉCNICA
Título original: Elefante Blanco
Título em português: Elefante Branco
Diretor: Pablo Trapero
Elenco: Ricardo Darín, Martina Gusman, Jérémie Renier, Federico Benjamín Barga, Mauricio MInetti, Walter Jakob
Produção: Alejandro Cacetta, Juan Pablo Galli, Juan Gordon, Pablo Trapero, Juan Vera
Roteiro: Pablo Trapero
Fotografia: Guillermo Nieto
Duração: 110 min
Ano: 2012
País: Argentina, Espanha
Gênero: Drama
Cor: Colorido
Distribuidora: Paris Filmes
Estúdio: Matanza Cine / Morena Films / Patagonik Film Group
Classificação: 16 anos
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Elefante Branco, segundo Celso é supervilão, todos têm suas motiva- partir de 1979, jornalista e crítico de
Sabadin, em entrevista concedida por ções, não há maniqueísmos fáceis. É cinema brasileiro. Foi crítico de cine-
e-mail à IHU On-Line, é original por um filme que trabalha dentro de pa- ma em diversos veículos. Produziu e
ser o primeiro filme argentino a expor radigmas estabelecidos”. apresentou programas de rádio sobre
abertamente a temática social. “Já vi O longa foi exibido e debatido no trilhas sonoras de cinema. De 1989 a
filmes de várias nacionalidades fa- Instituto Humanitas Unisinos – IHU 2001, foi apresentador, roteirista e crí-
zendo isso, mas nunca tinha visto um no dia 6 de dezembro último, em três tico de cinema na Rede Bandeirantes
argentino. E ele o faz com qualidade”, oportunidades. e nos canais Band News e Canal 21.
frisa. Para ele, há humanização no fil- Celso Sabadin é publicitário gra- Cobre Festivais nacionais e internacio-
me no sentido de que todos os perso- duado pela Escola Superior de Propa- nais de Cinema desde 1990.
nagens são bem construídos, críveis, ganda e Marketing e jornalista pela Confira a entrevista.
com suas fraquezas e qualidades. Fundação Cásper Líbero. Especializou-
“Ninguém é super-homem, ninguém -se em jornalismo cinematográfico a
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“S
ou complexa, às vezes muito ra- Arquitetura da Unisinos Tânia Torres Rossari,
cional, noutras muito instintiva. em entrevista concedida pessoalmente à IHU
Além disso, sou crítica – talvez em On-Line. Trabalhando há 38 anos nesta insti-
excesso. Mas me acho alegre, o que contraba- tuição, Tânia frisa que adora os espaços ver-
lança. Adoro estudar, mas detestaria ser vista des que temos. Conheça um pouco mais sua
como ‘intelectual’ ou, o que é muito pior, uma trajetória de vida.
‘pseudointelectual’”, admite a professora de
Origem – Nasci no dia 27 julho população do planeta está demo- área é Teoria e História da Arquitetura
de 1945, em Porto Alegre, onde moro rando muito para perceber o quanto Mundial.
até hoje. Sou solteira e não tenho fi- cabe a nós.
lhos. Moro com minha irmã, Jane, que Unisinos – Ela é minha segun-
é bibliotecária aposentada. Meus pais Formação – Sou formada em da casa. Trabalho nesta instituição
são falecidos, sendo que minha mãe História, com mestrado em Antropo- desde 1974. São mais de 30 anos de
morreu há poucos meses, com 94 logia Social (Antropologia do Espa- memórias de todo tipo. E de muita
anos. Dona Carmen era excepcional. ço), na Universidade Federal do Rio atividade: pesquisa, graduação, ex-
Uma mulher saudável, trabalhadora, Grande do Sul – UFRGS – e esse é um tensões, especializações, viagens de
inteligente, corajosa e dedicadíssima. link excelente para a arquitetura, o estudo com os alunos... Nos anos
curso em que trabalho desde meu 1970, coordenei dois salões nacio-
Autodefinição – Sou complexa, ingresso. Não basta produzir ou viver nais de Arte e Arquitetura (chama-
às vezes muito racional, noutras mui- em espaços. É preciso pensar o Espa- dos Obraberta 1 e 2, respectivamen-
to instintiva. Além disso, sou crítica ço. Também cursei a Escola de Artes te). Hoje, olhando para trás, não sei
– talvez em excesso. Mas me acho da UFRGS por algum tempo – o sufi- como tive aquele pique. Aqui me
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alegre, o que contrabalança. Ado- ciente para fazer todas as disciplinas sinto perfeitamente à vontade. Ado-
ro estudar, mas detestaria ser vista das sequências de desenho e pintura ro os espaços verdes que temos, a
como “intelectual” ou, o que é muito – atividades que ainda me dão enor- beleza das plantas, dos nossos patos
pior, uma “pseudointelectual”. Acho me prazer. e gansos. Amo ver alguns gatinhos
que consegui evitar isso. Intelecto é por aqui, e apenas gostaria de suge-
muito, mas não é tudo. O lado emo- Curso – Durante alguns anos le- rir que tivéssemos algumas árvores
cional tem que estar bem resolvido. cionei Estética e Cultura de Massas como plátanos, bordos, enfim, aque-
E tem o lado físico. Por exemplo, sou para o curso de Comunicação na Uni- las que ficam vermelhas no outono.
cuidadosa com a minha imagem. sinos, (mas atualmente permaneço Teríamos um colorido todo especial!
Elegância e boa apresentação são apenas com o curso de Arquitetura, E, claro, ar condicionado sempre se-
importantes. Hoje me volto cada vez que foi, aliás, onde comecei e sempre ria um avanço em certos dias infer-
mais para as questões ecológicas. A lecionei, desde 1974). Aqui, minha nalmente quentes!
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Os catadores de conchas, que sabe descrever belíssimas
paisagens.
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