Вы находитесь на странице: 1из 56

IHU

ON-LINE
Revista do Instituto Humanitas Unisinos
Nº 411 - Ano XII - 10/12/2012 - ISSN 1981-8769

Tropicalismo.
O desejo
de uma
modernidade
amorosa para
o Brasil

Eduardo Losso: Gilberto Frederico


O terremoto tropicalista Vasconcellos: Coelho:
e sua monstruosidade “Tropicália, triunfo Tropicalismo, “força
barroca do rico e aplauso do fatal” da música
genocídio” popular
E MAIS

Ruy Braga: Jon Sobrino:


A política do precariado Caminhar com os
e a mercantilização do pobres para construir
trabalho uma teologia viva
Tropicalismo. O desejo de uma
Editorial

modernidade amorosa para o Brasil

U
m modo de ser nos trópi- tão, lamenta, não há nada tão expres- Armando Almeida, consultor da
cos, uma postura de vida, sivo, inclusive em sua “monstruosida- Unesco, completa esta edição deba-
uma antropofagia que de- de barroca”. tendo no seu artigo a contracultura
glutiu a jovem guarda, a André Monteiro, também da e a indústria cultural com o pano de
bossa nova e influências além-mar UFJF, examina a tropicália, a marginá- fundo do movimento.
e regurgitou uma cultura nova e in- lia e a erosão das fronteiras culturais, Por fim, para Frederico Oliveira
quietante, embalada por guitarras cujas influências podem ser sentidas Coelho, professor e coordenador dos
elétricas e dissonâncias as mais di- até hoje, mesmo que alguns dos ve- cursos de Literatura e Artes Cênicas
versas. Tudo isso e mais um pouco lhos tropicalistas se dobrem à “máfia no Departamento de Letras da PUC-
ajuda a compreendermos o que foi do dendê”. -Rio, demorou décadas para o mundo
o movimento tropicalista, surgido Sem nenhum sentido utópico, absorver a proposta tropicalista.
em 1967 como expressão máxima de o tropicalismo foi revolucionário na Mais três entrevistas completam
uma arte que não podia e nem queria maneira de entender e fazer música a edição.
mais ser a mesma. Os tempos eram popular e no modo de produzir uma Jon Sobrino, teólogo espanhol
outros, urgia o novo. Nem o peso das conjunção entre significação estética que esteve na Unisinos em outubro
botas de um regime ditatorial pode- e significação política, pontua Celso por ocasião do Congresso Continental
ria sufocá-la. Fernando Favaretto, professor eméri- de Teologia, fala sobre a construção
Contudo, nem todos os pesqui- to da Universidade de São Paulo – USP. de uma teologia viva, que caminha
sadores que participam do debate Na opinião de Pedro Rogério, com os pobres. Por sua vez, o teólogo
proposto pela IHU On-Line desta se- professor da Universidade Fede- Carlos Mendoza, oriundo do México,
mana concordam no caráter inovador ral do Ceará – UFC, trata-se de um debate a superação do ressentimento
e emblemático do tropicalismo. transbordamento impossível de e a gratuidade do bem.
Gilberto Felisberto Vasconcellos, aprisionar, enquanto Pedro Busta- A política do precariado e a mer-
da Universidade Federal de Juiz de mante Teixeira aponta para a aceita- cantilização do trabalho é a temática
Fora – UFJF, garante que se dá impor- ção da outridade e a síntese do tran- abordada pelo sociólogo Ruy Braga,
tância exagerada ao fenômeno, que se em canções como pontos-chave que dá mais detalhes sobre sua obra
ele tipifica como o “triunfo do rico”. do movimento. A política do precariado (São Paulo:
Já Eduardo Guerreiro Brito Los- Júlio Cesar Valladão Diniz, profes- Boitempo, 2012).
so, da Universidade Federal Rural do sor da Pontifícia Universidade Católica Por fim, o publicitário e crítico de
Rio de Janeiro – UFRRJ, acentua esse do Rio de Janeiro – PUC-Rio, analisa a cinema Celso Sabadin comenta o fil-
como o último movimento vanguar- poética da agoridade, o deslizamento me argentino Elefante branco.
dista brasileiro, numa clara transição e a permanência no bojo de um modo A todas e a todos uma ótima se-
para o pós-modernismo. Desde en- de ser tropicalista. mana e uma excelente leitura!
www.ihu.unisinos.br

IHU
Instituto Humanitas
REDAÇÃO Colaboração: César Sanson,
Unisinos André Langer e Darli Sampaio,
Diretor de redação: Inácio
do Centro de Pesquisa e Apoio
Endereço: Av. IHU On-Line é a revista semanal Neutzling (inacio@unisinos.br).
aos Trabalhadores - CEPAT, de
do Instituto Editora executiva: Graziela
Unisinos, 950, Curitiba-PR.
Humanitas Unisinos - IHU Wolfart MTB 13159
São Leopoldo/RS. ISSN 1981-8769. (grazielaw@unisinos.br). Projeto gráfico: Agência
CEP.: 93022-000 IHU On-Line pode ser Redação: Márcia Junges MTB Experimental de Comunicação
Telefone: 51 3591 1122 - ramal 4128. acessada às segundas-feiras, da Unisinos - Agexcom.
9447 (mjunges@unisinos.
no sítio www.ihu.unisinos.br. Editoração: Rafael Tarcísio
E-mail: humanitas@unisinos.br. Sua versão impressa circula às br), Patricia Fachin MTB 13062
(prfachin@unisinos.br) e Thamiris Forneck
terças-feiras, a partir das 8h, na
Unisinos. Magalhães MTB 0669451 Atualização diária do sítio:
Diretor: Prof. Dr. Inácio Neutzling.
Apoio: Comunidade dos (thamirism@unisinos.br). Inácio Neutzling, Patricia Fachin,
Gerente Administrativo: Jacinto Jesuítas – Residência Conceição. Luana Nyland, Natália Scholz,
Revisão: Isaque Correa
Schneider (jacintos@unisinos.br). (icorrea@unisinos.br). Wagner Altes e Mariana Staudt

2
Tema de Capa
Índice
LEIA NESTA EDIÇÃO
TEMA DE CAPA | Entrevistas
5 Eduardo Guerreiro Brito Losso: O terremoto tropicalista e sua monstruosidade
barroca
15 Celso Fernando Favaretto: Tropicalismo, uma revolução?
18 Pedro Bustamante Teixeira: Um movimento libertário?
21 Frederico Oliveira Coelho: Tropicalismo, “força fatal” da música popular
23 Baú da IHU On-Line
24 Armando Almeida: Tropicália, contracultura e indústria cultural
28 André Monteiro: Tropicália, marginália e a erosão das fronteiras culturais
31 Pedro Rogério: Um transbordamento impossível de aprisionar
34 Júlio Cesar Valladão Diniz: Poética da agoridade, deslizamento e permanência
36 Gilberto Felisberto Vasconcellos: “Tropicália, triunfo do rico e aplauso do genocídio”

DESTAQUES DA SEMANA
40 ENTREVISTA DA SEMANA: Jon Sobrino: Caminhar com os pobres para construir uma
teologia viva
43 TEOLOGIA PÚBLICA: Carlos Mendoza: A espiral da violência, a superação do
ressentimento e a gratuidade do bem
46 LIVRO DA SEMANA: Ruy Braga: A política do precariado e a mercantilização do
trabalho
49 Destaques On-Line

IHU EM REVISTA
51 Celso Sabadin: Elefante Branco e uma igreja humana, demasiado humana
54 IHU REPÓRTER: Tânia Torres Rossari www.ihu.unisinos.br

twitter.com/ihu

bit.ly/ihufacebook

www.ihu.unisinos.br
3
Tema
de
Capa

Destaques
da Semana
www.ihu.unisinos.br

IHU em
Revista
4 SÃO LEOPOLDO, 00 DE XXX DE 0000 | EDIÇÃO 000
O terremoto tropicalista e sua

Tema de Capa
monstruosidade barroca
Marco da cultura nacional brasileira, o último movimento vanguardista representou
uma transição para o pós-modernismo, acentua Eduardo Guerreiro Brito Losso.
Há 30 anos não surge algo tão expressivo
Por Márcia Junges e Thamiris Magalhães

U
m mito de origem que fez a indústria está sendo para o Brasil, desde o tropicalis-
cultural brasileira ingressar na fase mo”. Losso fala, também, sobre o direito ao
pós-moderna. Assim Eduardo Guer- silêncio e o dever de se fornecer boa música:
reiro Brito Losso caracteriza o “terremoto “A meu ver, o problema de cuidar do que o ci-
tropicalista”, que unificou a “eureca da antro- dadão comum ouve todo dia é tão importante
pofagia com uma entrada simultaneamente quanto o que ele come”.
simpática e subversiva na indústria cultural”. Eduardo Guerreiro Brito Losso é mestre e
Em seu ponto de vista, o movimento “foi tão doutor em Letras pela Universidade Federal
(in) fielmente oswaldiano que redimensionou do Rio de Janeiro – UFRJ e Universität Leipzig,
e levou a antropofagia às últimas consequên- Alemanha, orientado por Christoph Türcke,
cias”, disse na entrevista concedida por e-mail com a tese Teologia negativa e Theodor Ador-
à IHU On-Line. Para os estrangeiros, comple- no. A secularização da mística na arte mo-
menta, a bossa nova é mais palatável, clássica derna. Na Universidade do Estado do Rio de
e compacta do que “a monstruosidade barro- Janeiro – UERJ cursou pós-doutorado. Leciona
ca do tropicalismo”. Expoente máximo dessa na Universidade Federal Rural do Rio de Janei-
vertente, Caetano Veloso “soube fazer de sua ro – UFRRJ e é um dos autores de O carnaval
vida a epopeia de um herói brasileiro, um se- carioca de Mario de Andrade (Rio de Janeiro:
mideus macunaímico”, algo como um Goethe Azougue Editorial, 2011). Conheça seu site
verde amarelo: “Não acho exagero dizer que http://www.eduardoguerreirolosso.com/.
o que Goethe foi para a Alemanha Caetano Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual é o contexto havia muita gente estudando os expo- A pergunta leva a uma questão
de surgimento e qual era o objetivo entes principais, Gilberto Gil2 e, princi- mais grave: o que dizer do tropicalis-
do tropicalismo? palmente, Caetano Veloso3. mo? Se tanto já foi dito, devemos ser
Eduardo Guerreiro Brito Losso
– Não sou especialista em tropica- 2 Gilberto Passos Gil Moreira (1942): mú- uma carreira que já ultrapassa quatro dé-
lismo (e hoje não existem poucos), sico e político brasileiro. Em fins de 1968, cadas, construiu uma obra musical mar- www.ihu.unisinos.br
mas posso dizer que sou o primeiro Gil e Caetano Veloso, cuja importância cada pela releitura e renovação, conside-
no Brasil era, e é, de certa forma com- rada de grande valor intelectual e poéti-
e um dos únicos a escrever academi- parável à de John Lennon e Paul McCar- co. Em 1969, é preso pelo regime militar
camente sobre uma de suas maiores tney no mundo anglófono, foram presos e parte para exílio político em Londres,
realizações estritamente musicais: os pelo regime militar brasileiro instaurado onde lança Caetano Veloso (1971). Transa
após 1964 devido a supostas atividades (1972) representou seu retorno ao país e
Mutantes1. Mas se escrevi esse artigo subversivas, de que foram taxados. Am- seu experimento com compassos de reg-
sobre eles foi justamente porque já bos exilaram-se por ocasião do AI-5 (Ato gae. Em 1976, une-se a Gal, Gil e Bethâ-
Institucional 5) do governo militar em nia para formar o Doces Bárbaros, típico
vigência no Brasil a partir de 1969 em grupo hippie dos anos 70, lançando um
1 Os Mutantes: banda psicodélica brasi- Londres. Nos anos 1970 iniciou uma turnê disco, Doces Bárbaros. Na década de 80
leira formada em 1966, em São Paulo, por pelos Estados Unidos e gravou um álbum apadrinhou e se inspirou nos grupos de
Rita Lee (vocais), Sérgio Dias (guitarra, em inglês. De volta ao Brasil, em 1975 Gil rocks nacionais, aventurou-se na produ-
vocais) e Arnaldo Baptista (baixo, teclado, grava Refazenda, um dos mais importan- ções dos discos Outras Palavras, Cores,
vocais). Depois de quase trinta anos ausen- tes trabalhos que, ao lado de Refavela, Nomes, Uns e Velô, e em 1986 participou
tes dos palcos, o grupo retorna em 2006 gravado após uma viagem ao continente de um programa de televisão com Chi-
com sua formação clássica, exceção feita a africano, e Realce, formariam uma trilo- co Buarque. Na década de 90, escreveu
Rita Lee, que não aceitou voltar ao grupo. gia RE. Foi ministro da Cultura entre 2003 Verdade Tropical (1997), e o disco Livro
A cantora Zélia Duncan foi convidada a as- e 2008. (Nota da IHU On-Line) (1998) ganha o Prêmio Grammy em 2000,
sumir os vocais e desde então acompanha 3 Caetano Veloso (1942): músico, produ- na categoria World Music. (Nota da IHU
a banda. (Nota da IHU On-Line) tor, arranjador e escritor brasileiro. Com On-Line)

EDIÇÃO 411 | SÃO LEOPOLDO, 10 DE DEZEMBRO DE 2012 5


didáticos? Porém, não é da natureza mais. O destino da história que tem a Por outro lado, ele foi tão plura-
Tema de Capa
de um movimento modernista ser felicidade de ser relembrada é se tor- lista em sua palavra de ordem de ma-
antiprofessoral? Por outro lado, esse nar mito. E o tropicalismo é, digamos nifesto, que se tornou forçadamente
não é justamente um movimento assim, um mito de origem: a entrada universalista: ele abarcou o Brasil em
literário-musical e um movimento de de uma nova fase da indústria cultu- si e soube abarcar o mundo em sua
massa? E tanto a arte quanto a cultura ral, a fase pós-moderna. E para ser imagem do Brasil. A solução antropo-
de massa precisam ser devidamente breve: o contexto foram os festivais – fágica, somada ao internacionalismo
mastigadas por nós, os introdutores inédita abertura da indústria cultural intelectual dos concretos e a sabedo-
didáticos do que um dia foi escândalo para experimentações – e a ditadura ria de reunião local e internacional,
espetacular? – inédito aprisionamento político da bem como erudita e popular da bossa
Antes de entrar na questão do liberdade. O objetivo foi reposicionar nova, cada uma dessas manifestações
início do terremoto tropicalista, é pre- a síntese modelar da bossa nova6 para musicais e literárias foi exponencia-
ciso observar o caráter mítico de um um campo bem mais ampliado da mú- da pelo tropicalismo: o movimento
movimento artístico que virou marco sica popular brasileira e das guitarras que trouxe todas elas para o âmbito
histórico de uma cultura nacional. É elétricas. de uma configuração definitivamen-
uma história que de tão repetida e te hegemônica e estável da cultura
recontada virou mito: ascensão (re- IHU On-Line – Quais eram as raí- de massa que, a partir daí, tornou-
lação com Terra em transe, Oiticica4, zes culturais desse movimento? -se paradigmática até hoje: o pós-
Zé Celso5), feitos heroicos (festivais, Eduardo Guerreiro Brito Losso -modernismo, o chamado hibridismo
discurso É proibido proibir, Divino ma- – Essas que acabei de mencionar, e cultural, em termos tropicalistas, a ge-
ravilhoso), sacrifício (prisão e exílio) e mais: juntar a eureca da antropofagia leia geral. Por isso, o tropicalismo foi
retorno. Já era mito em meados dos com uma entrada simultaneamente aquele tipo de acontecimento cultural
anos 1970. Virou obsessão tanto na simpática e subversiva na indústria que soube fazer de sua especificidade
imprensa e livros de jornalistas, quan- cultural. Tornar a antropofagia pós- uma negação determinada de seus
to na universidade, já nos anos 1980. -moderna, evidenciando a raiz antro- próprios limites, extraindo forças,
Quando o livro Verdade tropical (São pofágica do próprio pós-modernismo. antropofagicamente, de outros mo-
Paulo: Companhia das Letras, 1997), Por um lado, o tropicalismo foi muito vimentos poderosos (como a própria
de Caetano, surgiu, o mito se con- preciso e determinado: teve de lidar antropofagia!) e impondo-se naquele
frontou com um texto autobiográfico com a oposição entre os defensores lugar que, precisamente no momento
e literário de peso que o inflou ainda conservadores da tradição nacional de seu surgimento, tornar-se-á o fun-
e a mera aceitação reprodutora da damento da massificação para as pró-
influência internacional e, no meio ximas décadas.
4 Hélio Oiticica (1937-1980): pintor, es-
cultor, artista plástico e performático
disso, retomou a fórmula de pré-so-
de aspirações anarquistas. É considera- lução da bossa nova para o problema IHU On-Line – Em termos gerais,
do por muitos um dos artistas mais re- de reunião de avanços brasileiros e como você avalia o tropicalismo?
volucionários de seu tempo e sua obra
experimental e inovadora é reconhecida
americanos (samba + jazz) que, por Eduardo Guerreiro Brito Losso
internacionalmente. Em 1959, fundou o conseguinte, aplicado à nova configu- – Ele foi tão (in) fielmente oswaldia-
Grupo Neoconcreto, ao lado de artistas ração, não deixou de se opor ao ethos no que redimensionou e levou a an-
como Amilcar de Castro, Lygia Clark, Ly-
gia Pape e Franz Weissmann. Na década
da bossa nova, aderindo às gritarias, tropofagia às últimas consequências,
de 1960, Hélio Oiticica criou o Parangolé, estridências e surrealismos do rock7 conseguindo com isso, retrospectiva-
que ele chamava de “antiarte por exce- lisérgico. mente, tornar mesmo a bossa nova
lência” e uma pintura viva e ambulan-
te. O Parangolé é uma espécie de capa
ofuscada pelo seu alcance que, deve-
(ou bandeira, estandarte ou tenda) que 6 Bossa nova: derivado do samba e com ras, foi muito maior. Inclusive sublinho
só mostra plenamente seus tons, cores, forte influência do jazz, trata-se de um o fato de a bossa nova, para o estran-
formas, texturas, grafismos e textos movimento da música popular brasilei-
geiro, ser mais clássica, compacta e
www.ihu.unisinos.br

(mensagens como “Incorporo a Revolta” ra do final dos ano 50 lançado por João
e “Estou Possuido”), e os materiais com Gilberto, Tom Jobim, Vinícius de Mora- compreensível que a monstruosidade
que é executado (tecido, borracha, tinta, es e jovens cantores e/ou compositores barroca do tropicalismo.
papel, vidro, cola, plástico, corda, palha) de classe média da zona sul carioca. De
a partir dos movimentos de alguém que o início, o termo era apenas relativo a um
A tropicália não foi só o último
vista. Por isso, é considerado uma escul- novo modo de cantar e tocar samba na- movimento vanguardista determinan-
tura móvel. Em 1965, foi expulso de uma quela época, ou seja, a uma reformula- te do Brasil: foi já, em si mesmo, uma
mostra no Museu de Arte Moderna do Rio ção estética dentro do moderno samba
de Janeiro por levar ao evento integran- carioca urbano. Com o passar dos anos,
transição para o pós-modernismo e
tes da Mangueira vestidos com parango- a Bossa Nova tornou-se um dos movimen- a resultante predominante de todos
lés. A experiência dos morros cariocas fa- tos mais influentes da história da música os outros movimentos. Mas, se estou
zia parte da dimensão da sua obra. (Nota popular brasileira, conhecido em todo
da IHU On-Line) o mundo , um grande exemplo disso é
incorporando a sua grandiloquência
5 José Celso Martinez Corrêa (Arara- a música Garota de Ipanema composta para caracterizá-lo, não posso deixar
quara, São Paulo, 30 de março de 1937): em 1962 por Vinícius de Moraes e Antô- de dizer que sua predominância não
conhecido como Zé Celso, é uma das nio Carlos Jobim. Sobre o tema, confira a
figuras mais importantes ligadas ao tea- edição da IHU On-Line intitulada Chega
tro brasileiro. Destacou-se como um dos de saudade... Bossa Nova, 50 anos, de
principais diretores, atores, dramaturgos 08-09-2008, disponível em http://bit.ly/ roll na veia. Edição 212, de 19-03-2007,
e encenadores do Brasil. (Nota da IHU YzDFvb. (Nota da IHU On-Line) disponível em http://bit.ly/ySPITJ.
On-Line) 7 Sobre o tema, confira a revista Rock ‘n’ (Nota da IHU On-Line)

6 SÃO LEOPOLDO, 10 DE DEZEMBRO DE 2012 | EDIÇÃO 411


“incorpora” nem apaga o diferencial nou pivô essencial da pós-moderna território ideológico ao reforçar uma

Tema de Capa
dos movimentos afins, muito menos aristocracia da celebridade. O “sol condenação antiga de condescendên-
deve ser motivo de descaso, desprezo nas bancas de revista” é o rei Sol do cia com a ditadura. Em seguida, uma
e, pior, desconhecimento das tendên- mundo da celebridade e da cultura e, coluna de José Miguel Wisnik9, outra
cias a ele divergentes ou, simplesmen- sinceramente, por mais que Pelé seja de Francisco Bosco, botam o pingo
te, diversas. Pelé, a persona pública do craque do dos is e revelam que o calcanhar de
É fato que foi o trabalho de co- futebol não é páreo para o craque da aquiles de um dos maiores intelec-
nexão posterior de seus pivôs, Gil arte de ser artista, intelectual e estre- tuais de mundo, outrora difícil de fo-
e Caetano, com os acontecimentos la. Ele retira declarações de amor bem car, ficou à mostra numa condenação
culturais e políticos os mais diversos, diretas de músicos, atores, modelos, completamente despropositada. E
isto é, a prática estético-política pro- jornalistas, esportistas, políticos, bem anuncio de antemão: chegará o dia
gressiva da pluralidade do movimento como outras não tão indiretas, mas em que João Camillo Penna, um dos
numa integração crescente dos mais não menos emocionadas e sideradas, maiores nomes da ensaísmo teórico
diversos fenômenos artísticos e pops, de antropólogos, críticos literários, no Brasil hoje, apresentará uma se-
intelectuais e célebres, fez com que colunistas, poetas, filósofos. Ele fez nhora resposta devidamente funda-
Gil e, principalmente, Caetano se tor- muito para se ligar a muita coisa – o mentada em forma de livro a vir. Em
nassem, paulatinamente, epicentro que deriva de sua própria versatili- outras palavras: quando um Hércules
de um oceano variável de debates e dade de assimilar e dialogar com di- resolve afrontar o leonino, sai perden-
questões, bem como relações de po- versas instâncias – e, por conseguin- do no seu próprio território.
der e prestígio. te, uma multidão profusa anseia por Há uma palavra interessante para
Precisamente porque a impor- estar ligada a ele. A tentação de se se referir à história da cultura alemã:
tância dessas figuras não deve dimi- querer ser pai, filho, neto do tropica- Goethezeit. A “época de Goethe10” foi
nuir a de outros integrantes do tropi- lismo é grande e, particularmente, do o período – longo e glorioso – de vida
calismo nem outros artistas que nada Superbacana. de Goethe, que abarcou Kant11, revo-
tem a ver com o mesmo, vale a pena Assim, o impacto, constância do
entender o porquê do sucesso de seu “tempo tempo tempo tempo”, expan-
9 José Miguel Soares Wisnik (1948): mú-
maior expoente. A raríssima e feliz são e aprofundamento da influência sico, compositor e ensaísta brasileiro. É
conjunção alquímica de Caetano ser de Caetano nos setores mais diversos também professor de Literatura Brasilei-
ao mesmo tempo um poeta e pensa- (universidade, mídia, política e, como ra na Universidade de São Paulo. Gradu-
ado em Letras (Português) pela Universi-
dor de primeira grandeza; uma cele- não poderia deixar de ser, música) dade de São Paulo (1970), mestre (1974)
bridade marcante, cativante, carismá- fez dele, consequentemente, alvo de e doutor em Teoria Literária e Literatura
tica; um polemista constante, atento, grosseira vituperação. Contudo, como Comparada (1980), pela mesma Universi-
dade. (Nota da IHU On-Line)
impetuoso e corajoso; um observador seus adoradores são, em grande par- 10 Johann Wolfgang von Goethe (1749-
certeiro do que ocorreu, ocorre e está te, muito finos e valorosos, em geral 1832): escritor alemão, cientista e filó-
para ocorrer; enfim, o caráter de ho- a defesa e contra-ataque, dele e dos sofo. Como escritor, Goethe foi uma das
mais importantes figuras da literatura
mem apaixonado pela vida concreta e seus, vence de longe as pedras e to- alemã e do Romantismo europeu, nos
presente, logo, pelas complicações e mates, os quais, aliás, desde o discur- finais do século XVIII e inícios do século
aventuras da vida pública mais inten- so de “É proibido proibir”, fazem parte XIX. Juntamente com Schiller foi um dos
líderes do movimento literário român-
sa, às vezes alegre, de sorriso leve e do show. tico alemão Sutrm und Drang. De suas
aberto, às vezes feroz (na sua incon- Porém, há também adversários obras, merecem destaque Fausto e Os
trolável ira contra as mentiras jorna- de maior estatura, como Roberto sofrimentos do jovem Werther. (Nota da
IHU On-Line)
lísticas), barrocamente disperso, pro- Schwarz8, que terminam por se sen- 11 Immanuel Kant (1724-1804): filósofo
lixo, mas veloz e agudo, fez dele uma tir extremamente incomodados com prussiano, considerado como o último
entidade apaixonante. Seu modo de o alcance de seu domínio num setor grande filósofo dos princípios da era mo-
derna, representante do Iluminismo, in-
gostar de ser elogiado obtém profun- que, em outros países, não poderia
www.ihu.unisinos.br
discutivelmente um dos seus pensadores
dos elogios, seu narcisismo declarado ser o dele (isso se ele não passa de um mais influentes da Filosofia. Kant teve
e autocrítico instiga a devoção alheia, cantor de rádio), e resolvem escrever um grande impacto no Romantismo ale-
mão e nas filosofias idealistas do século
por mais irritante que possa ser a ou- ensaios longos reconhecendo, por um XIX, tendo esta faceta idealista sido um
tros olhos; sua mãe, suas mulheres e lado, a grandeza literária de seu livro ponto de partida para Hegel. Kant esta-
amantes compõem a continuação épi- (o que é, na verdade, um tremendo beleceu uma distinção entre os fenôme-
nos e a coisa-em-si (que chamou noume-
ca do mito de origem que é o tropica- dum troféu, vindo de quem vem) e, non), isto é, entre o que nos aparece e o
lismo no mito homérico que é a vida por outro, demarcando claramente que existiria em si mesmo. A coisa-em-si
de Caetano. não poderia, segundo Kant, ser objeto de
conhecimento científico, como até en-
8 Roberto Schwarz (Viena, 20 de agos-
Semideus macunaímico to de 1938): crítico literário e professor
tão pretendera a metafísica clássica. A
ciência se restringiria, assim, ao mundo
Sim, ele soube fazer de sua vida aposentado de Teoria Literária brasileiro. dos fenômenos, e seria constituída pelas
a epopeia de um herói brasileiro, um Um dos principais continuadores do tra- formas a priori da sensibilidade (espaço
balho crítico de Antonio Candido. Redigiu e tempo) e pelas categorias do enten-
semideus macunaímico. E como todo estudos sobre Machado de Assis elenca- dimento. A IHU On-Line número 93, de
herói grego tem de ser aristocrático, dos entre os mais representativos sobre 22-03-2004, dedicou sua matéria de capa
o menino de Santo Amaro se tor- o autor das Memórias Póstumas de Brás à vida e à obra do pensador com o título
Cubas. (Nota da IHU On-Line) Kant: razão, liberdade e ética, disponí-

EDIÇÃO 411 | SÃO LEOPOLDO, 10 DE DEZEMBRO DE 2012 7


lução francesa, Schiller12, pré-roman- to o carnaval / Eu inauguro o monu- nero, o que levanta uma questão que
Tema de Capa
tismo e idealismo alemão. Não acho mento no planalto central / Do país”. discuti em detalhes num artigo inti-
exagero dizer que o que Goethe foi tulado “Aspectos teológicos da teoria
para a Alemanha Caetano está sendo IHU On-Line – Por que Caetano da cultura de massa...”. Umberto Eco17
para o Brasil, desde o tropicalismo. Veloso, no documentário Tropicália, foi, a meu ver, um dos primeiros teóri-
diz que o movimento do tropicalismo cos que apresentou um argumento fa-
IHU On-Line – Qual a dife- não existe mais? vorável ao valor não necessariamente
rença do termo “tropicália” para Eduardo Guerreiro Brito Losso elevado, mas genuíno, das diversas
“tropicalismo”? – Se aguçarmos o nosso ouvido, per- manifestações da cultura de massa,
Eduardo Guerreiro Brito Losso ceberemos que ele já dá a resposta a por lidarem com diferentes camadas
– Quase não há. Os dois termos são essa pergunta na mesma ocasião da de fruição, umas mais modestas, ou-
usados com o mesmo sentido alterna- declaração: eles resolveram “sepul- tras mais exigentes, e que não faz sen-
damente. Título de uma instalação de tar” o movimento para não manter o tido julgar uma com base no critério
Hélio Oiticica sugerido por Luis Carlos compromisso de uma constante coe- de outra. Além disso, a efervescência
Barreto a Caetano, o nome “tropicá- rência entre eles, o que é muito sensa- constante da música pop apresenta,
lia” é da impactante canção do gran- to, pois eram figuras necessariamente mesmo em seus produtos mais gri-
diosíssimo álbum de 1967 com o pri- diferentes (todo bom artista deve ser tantemente apelativos, um material
moroso arranjo de Julio Medaglia13. único), que se reuniram naquele mo- estético que, em vez de ser recusado
Devido à força de representatividade mento por força das afinidades e do pelo erudito sisudo, sempre pode ser
do movimento, tornou-se parte do contexto, mas que estavam destina- apreciado e aproveitado de diferentes
nome do disco Tropicalia ou Panis et dos a seguir cada um o seu caminho. maneiras. Por exemplo, podemos rir
Circencis, que é sua grande produção Foi a decisão certa para, ao sacrificar a às gargalhadas com as letras do funk
e tem explícita função de manifesto. integração do movimento, imortalizá- carioca. Além disso, há coisas que
O “ismo” veio de um texto de -lo para a história e, com um golpe de despertam nosso gosto e não são, de
Nelson Motta14, que inaugurou a sua mestre, torná-lo mito. fato, nada de mais, e outras que po-
abundante fortuna crítica. Toda a dem demonstrar grande esforço artís-
questão da centralidade de Caetano IHU On-Line – Quais são as dife- tico, porém não nos conquistam.
no tropicalismo – por mais que isso renças do tropicalismo em relação a
seja discutível e problemático – foi outros movimentos, como a Jovem Policiamento de escolhas
antecipada no famoso trecho da letra: Guarda15? Qual foi a sua principal No entanto, acho que, ainda que
“Eu organizo o movimento / Eu orien- peculiaridade? haja toda uma oscilação relativizante
Eduardo Guerreiro Brito Los- que tem sua razão em contestar os
so – A diferença em relação à Jovem defensores da pureza da alta cultura,
Guarda é grande: esta era uma ma- o debate deve sair dessa etapa e pas-
vel para download em http://migre.me/ nifestação completamente atrelada à sar para outra. Roberto Carlos pode
uNrH. Também sobre Kant foi publicado ser muito bom em seu gênero e den-
este ano o Cadernos IHU em formação
indústria cultural, devedora do lado
número 2, intitulado Emmanuel Kant - mais inofensivo do rock americano; tro de seus limites, e, por isso mesmo,
Razão, liberdade, lógica e ética, que não tinha nenhum pensamento van-
pode ser acessado em http://migre.me/
uNrU. (Nota da IHU On-Line)
guardista nem o nível de complexida- estrelou um programa na TV Record, cha-
12 Johann Christoph Friedrich von de de questões e conexões do tropi- mado Jovem Guarda (que batizou esse
Schiller (1759-1805: poeta, filósofo e calismo. Porém, eles representavam movimento de rock), e filmes inspirados
historiador alemão, tido como o mais im- na fórmula lançada pelos Beatles - como
portante dramaturgo alemão. Schiller foi
uma abertura para internacionaliza- “Roberto Carlos em Ritmo de Aventura”,
um dos grandes homens de letras da Ale- ção num ambiente nacionalista redu- “Roberto Carlos e o Diamante Cor-de-
manha do século XVIII, e juntamente com tor e conquistaram simpatia até dos -rosa” e “Roberto Carlos a 300km por
Goethe, Wieland e Herder é representan- Hora”. Atualmente continua se apresen-
concretos. Para os tropicalistas, a rela-
www.ihu.unisinos.br

te do Romantismo alemão e do Classicis- tando com frequência e produz anual-


mo de Weimar. Sua amizade com Goethe ção com a Jovem Guarda foi essencial, mente um especial que vai ao ar na se-
rendeu uma longa troca de cartas que pois era uma maneira de se opor aos mana do Natal pela Rede Globo, mesma
se tornou famosa na literatura alemã. época em que costumavam ser lançados
Sua poesia também é famosa, como por
entraves que eles queriam demolir. seus discos anuais. Segundo a ABPD, o
exemplo a “An die Freude”, que inspirou É claro que as canções de Rober- Roberto Carlos é o artista solo com mais
Ludwig van Beethoven a escrever, em to Carlos16 são exemplares no seu gê- álbuns vendidos na história do Brasil.
1823, o quarto movimento de sua nona (Nota da IHU On-Line)
sinfonia. (Nota da IHU On-Line) 17 Umberto Eco (1932): autor italiano
13 Júlio Medaglia (1938): maestro e ar- 15 Jovem Guarda: programa televisivo mundialmente reputado por diversos
ranjador brasileiro. Ex-aluno de Pierre brasileiro exibido pela Rede Record a ensaios universitários sobre semiótica,
Boulez, Stockhausen e John Barbirolli, partir de 1965. Os integrantes do progra- estética medieval, comunicação de mas-
Medaglia foi fundador da Amazonas Fi- ma foram influenciados pelo rock ameri- sa, lingüística e filosofia, dentre os quais
larmônica e dirigiu a Orquestra da Rádio cano no final da década de 50, e faziam destacam-se Apocalípticos e Integrados,
de Baden-Baden e a Rádio Roquete Pinto. uma variação do rock batizada de “iê-iê- A estrutura ausente e Kant e o ornitorrin-
(Nota da IHU On-Line) -iê. (Nota da IHU On-Line) co. Tornou-se famoso pelos seus roman-
14 Nelson Cândido Motta Filho (1944): 16 Roberto Carlos Braga (1941): cantor ces, sobretudo O nome da rosa, adaptado
jornalista, compositor, escritor, roteiris- e compositor brasileiro, um dos primei- para o cinema. A ilha do dia anterior;
ta, produtor musical e letrista brasilei- ros ídolos jovens da cultura brasileira, Baudolino e A misteriosa chama da Rai-
ro. Filho de Maria Cecília Motta e Nelson liderando o primeiro grande movimento nha Loana são outras de suas obras. (Nota
Cândido Motta. (Nota IHU On-Line) de rock feito no Brasil. Além dos discos, da IHU On-Line)

8 SÃO LEOPOLDO, 10 DE DEZEMBRO DE 2012 | EDIÇÃO 411


tem todo o direito de ser ovacionado Pró-caetanismo suspeito dos mais respeitáveis insistem em ver

Tema de Capa
e adorado pela multidão ao longo de Uma vez que, primeiramente, uma linha tão natural de evolução e
décadas, enfim, de ter marcado pro- o jazz20 e a bossa nova, depois o tro- afinidades entre tropicalismo e o lixo
fundamente a alma de tantos ouvin- picalismo e o rock psicodélico e pro- de todo dia?
tes. E isso justifica o fato de Caetano já gressivo em geral, tenham feito uma Eu não posso deixar de me pro-
ter declarado que não gosta de Led Ze- conquista dessa dimensão, é contra- nunciar: a cafonice de Led Zeppelin
ppelin18, por achar “cafona”, mas ado- ditório e lamentável, depois, diluir é infinitamente superior à de Danie-
rar Daniela Mercury, Sandy e Júnior e essa mesma conquista e abraçar ce- la Mercury. Ainda que Caetano seja
etc. Logo, Roberto Carlos, que ainda lebridades que nada contribuem para exemplar na maioria de suas atitudes
é interessante, se tornou o primeiro o valor intrínseco da obra de arte. E (é o que acho), neste ponto ele não
de uma série de ternos acolhimentos toda a crítica da opressão racista em pode ser justificado, por mais malaba-
que artistas de alto calibre, como Cae- torno da alta cultura, por mais impor- rismos argumentativos que inventem.
tano e Gil, mas não só eles, Chico Bu- tante que seja e por mais que deva- Peço aos seus fãs intelectuais que
arque19 também, fizeram de gente de mos assimilá-la, não deve pulverizar poupem tinta nesse caso e admitam
estrondoso sucesso e nenhuma quali- a necessidade de se discutir o que é que ele não será uma boa referência
dade. Devemos condená-los por isso? bom e o que não é na indústria mu- para introduzirmos um critério esté-
Não, discordo daqueles que se acham sical de massa – só deve ser um fator tico do que é bom e o que não é na
no direito de policiar escolhas afetivas de complexificação. Sempre me per- indústria cultural. E não adianta evi-
de quem quer que seja. gunto uma coisa: se não admitimos, tar: isso é uma tarefa que todos estão
Contudo, uma das lutas mais di- na literatura, essa confusão, se conti- adiando, mas que deve ser feita, por
fíceis do surto criativo do rock dessa nua sendo claro para todos que Paulo mais que haja fatores relativizantes a
época e do tropicalismo foi a de rom- Coelho21 não é igual a Clarice Lispec- se interpor no caminho. A mania dos
per com a separação de alta e baixa tor22, porque na música pop teóricos pró-caetanistas de se mobilizarem em
cultura, de modo a produzir obras de justificar tudo o que ele diz e faz acaba
grande valor que não devem nada à se tornando suspeita.
chamada alta cultura, antecipando, 20 Sobre esse estilo musical, confira a re- Como figuras do porte de Cae-
vista IHU On-Line intitulada Jazz. O som
até mesmo, a crítica a um preconceito da surpresa. Edição 139, de 02-05-2005,
tano e Chico Buarque se tornaram
europeizante tradicionalista ligado à disponível em http://bit.ly/TJcnLW. profundamente influentes na uni-
hierarquização de formas e gêneros, (Nota da IHU On-Line) versidade, entre os mais qualificados
21 Paulo Coelho (1947-): escritor brasi-
que o modernismo iniciou o ataque, leiro que tem ocupado, sistematicamen-
pesquisadores, aquilo que eles fazem
mas somente nessa época que foi de- te, as primeiras posições no ranking dos com o direito de sua liberdade e com
cisivamente abalado. Foi isso que per- livros mais vendido no mundo. Já ven- os motivos que, mesmo involuntaria-
deu mais de 65 milhões de livros, sendo
mitiu a artistas com grandes ambições o autor mais vendido em língua portu-
mente, podem ser, por que não?, o de
estéticas conquistarem o território guesa de todos os tempos, ultrapassando se manterem na posição de celebrida-
hegemônico da indústria musical. até mesmo Jorge Amado. Em 2002, foi de, torna-se modelo para o juízo es-
eleito para ocupar a cadeira número 21
da Academia Brasileira de Letras. Dentre
tético de pessoas como historiadores
seus grandes sucessos editoriais, desta- da música popular e críticos sérios. É
cam-se O diário de um mago (1987), O evidente que eles não se sustentariam
alquimista (1988) e Brida (1990). (Nota
18 Led Zeppelin: banda britânica de da IHU On-Line)
numa posição de visibilidade se se re-
rock, criada em 1969. Era formada por 22 Clarice Lispector (1920-1977): es- lacionassem somente com escritores
Jimmy Page, John Bonham, John Paul critora nascida na Ucrânia. De família de vanguarda; já que ocupam esse
Jones e Robert Plant. Um de seus traba- judaica, emigrou para o Brasil quando
lhos antológicos é Led Zeppelin, de 1969. tinha apenas dois meses de idade. Co-
lugar de ambivalência, não penso que
(Nota da IHU On-Line) meçou a escrever logo que aprendeu a se deve condená-los por isso. No en-
19 Chico Buarque de Hollanda (1944): ler, na cidade de Recife. Em 1944 pu- tanto, também não se deve aceitar tal
músico, dramaturgo e escritor brasileiro, blicou seu primeiro romance, Perto do
atitude como boa em si. O que não
www.ihu.unisinos.br
conhecido por ser um dos maiores nomes coração selvagem. A literatura brasileira
da MPB. Sua discografia conta com apro- era nesta altura dominada por uma ten- pode ser “moralizado” também não
ximadamente oitenta discos, entre eles dência essencialmente regionalista, com deve virar motivo para a pura e sim-
discos-solo, em parceira com outros mú- personagens contando a difícil realidade
sicos e compactos. É compositor de Cons- social do país na época. Lispector surpre-
ples inversão da necessidade de uma
trução, considerada uma das melhores endeu a crítica com seu romance, quer ética da crítica estética no terreno da
músicas brasileiras já feitas. Filho do his- pela problemática de caráter existencial, cultura de massa. Por causa disso,
toriador Sérgio Buarque de Holanda, ini- completamente inovadora, quer pelo es-
ciou sua carreira como escritor em 1962. tilo solto elíptico, e fragmentário, remi-
aquilo que um dia, no auge do flores-
Ganhou destaque como cantor a partir de niscente de James Joyce e Virginia Woolf, cimento da melhor combinação de
1966, quando lançou seu primeiro álbum, ainda mais revolucionário. Seu romance cultura pop e erudita, foi canonizado
Chico Buarque de Hollanda, e venceu o mais famoso embora menos característi-
Festival de Música Popular Brasileira com co quer temática quer estilísticamente,
na história da MPB é posto ao lado de
a música A Banda. Socialista declarado é A hora da estrela, o último publicado manifestações claramente ordinárias.
autoexilou-se na Itália em 1969, devido à antes de sua morte. Neste livro a vida de
crescente repressão da regime militar do Macabéa, uma nordestina criada no esta-
Brasil nos chamados “anos de chumbo”, do Alagoas e vai morar no Rio de Janei-
tornando-se, ao retornar, em 1970, um ro, e vai morar em uma pensão, tendo 16-07-2008, intitulada Clarice Lispector.
dos artistas mais ativos na crítica política sua vida descrita por um escritor fictício Uma pomba na busca eterna pelo ninho,
e na luta pela democratização no país. chamado Rodrigo S.M. Sobre a autora, disponível para download em http://mi-
(Nota da IHU On-Line) confira a edição 228 da IHU On-Line, de gre.me/qQHT. (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 411 | SÃO LEOPOLDO, 10 DE DEZEMBRO DE 2012 9


IHU On-Line – Em que sentido o
“A tropicália não Rita Lee25, foram os que se tornaram
Tema de Capa
tropicalismo teve papel importante bem sucedidos nessa virada. Gil e
durante a ditadura militar, sobretudo
na década de 1960? foi só o último especialmente Caetano fizeram essa
passagem muito bem. As canções de
Eduardo Guerreiro Brito Losso
– Penso que a atitude dos seus inte- movimento Caetano desse período são clássicos,
há grandes letras e composições. Mas
grantes no momento da ditadura foi não podemos deixar de observar que,
exemplar e considero a crítica de Ro- vanguardista no plano instrumental, especifica-
berto Schwarz completamente equi- mente o musical, todos saíram per-
vocada. Essa é uma questão que exigi- determinante do dendo em comparação com a sonori-
ria análises sociopolíticas específicas dade dos anos 1970. Os timbres são
nas quais não me deterei por achar Brasil: foi já, em todos pobres, infantilizados, e os ar-
que não tenho algo relevante a acres- ranjos, mesmo os que pretendem ser
centar. Recomendo o ensaio de João si mesmo, uma mais elaborados, dão a impressão de
Camillo Penna sobre o assunto que total artificialidade diante da geniali-
está para sair. Vou me ater à dimensão
do valor estético, e Schwarz, que de-
transição para o dade de Rogério Duprat26 e do tipo de
instrumentista que surgiu de 1968 em
veria estar tão preocupado com o pro-
blema quanto eu, não toca no assunto
pós-modernismo diante. Esse clima mediocrizante dos
anos 1980 foi decisivo para uma cano-
em seu ensaio; no entanto, penso que
ele é bem mais importante para o que
e a resultante nização mortuária do rock psicodélico
como algo a que o lado mais experi-
ocorre hoje do que acusações ideoló-
gicas a favor ou contra posicionamen-
predominante de mental da cena pós-punk pretendia se
filiar e uma depreciação cínica do rock
tos políticos.
O tropicalismo foi um dos prin-
todos os outros progressivo, por ser algumas manifes-
tações dele mais arredias ao entendi-
cipais esforços que abriram o uso da
indústria cultural para realizações es- movimentos” mento fácil do público e não caber na
camisa de força dos produtores e das
téticas de alto calibre e, especialmen- rádios. Críticos que fizeram trabalhos
te, para a irreverência vanguardista. importantes para a música brasileira,
De fato, o auge da boa relação entre determinando a mentalidade e o coti- como Carlos Calado, cuja biografia dos
a melhor arte e indústria cultural diano da população como nunca, isto Mutantes é referência obrigatória, da
ocorreu mundialmente na época do é, a segunda é o fruto oculto vencedor qual sou apreciador entusiasta, e Eze-
nascimento do tropicalismo, com o da primeira. quiel Neves, movidos pela corrente
rock psicodélico, de 1967 em diante, determinante da indústria cultural, fi-
desmembrando-se em mananciais de Produtores, rádios e camisas zeram o deplorável papel de seus fieis
boa música em torno de vários subgê- de força soldados justificando o injustificável e
neros, como jazz fusion. Aquele que Contudo, como muitos artistas, prestaram um desserviço para a opi-
se tornou abrigo para as mais criativas nessa época foram criados num am- nião e formação auditiva de milhões
e ousadas realizações foi o rock pro- biente mercadológico de recepção de pessoas.
gressivo, cujo período preponderan- de ousadias, embora alguns tenham
te durou de 1970 a 1977. Ele levou a sido pegos de surpresa, outros sou-
inovação e ruptura com a estrutura beram adaptar sua linguagem aos
da canção a seus limites; enfim, hou- novos tempos. Alguns aderiram aber-
ve vários desmembramentos de um tamente ao sucesso pelo sucesso, ou-
princípio de aliança entre vanguarda e tros conseguiram conciliar resultados mais conhecida como Gal Costa, (1945):
www.ihu.unisinos.br

cantora brasileira. Em 1968 participou


rock juvenil. Contudo, depois do movi- estéticos interessantes reformulando do disco Tropicália ou Panis et Circencis
mento puramente destruidor que foi estilos estabelecidos ou dialogando (1968), com as canções Mamãe coragem
o punk, fruto da depressão econômica com os novos; outros, da nova gera- (Caetano Veloso e Torquato Neto), Par-
que industrial (Tom Zé) e Enquanto seu
da crise do petróleo, a partir de me- ção pós-punk, procuraram produzir lobo não vem (Caetano Veloso), além de
ados de 1978 a indústria fonográfica algo singular a partir da nova lingua- Baby (Caetano Veloso), o primeiro grande
iniciou um período de censura explí- gem. Dos integrantes do tropicalismo, sucesso solo, que se tornou um clássico.
(Nota da IHU On-Line)
cita de toda música que tenha alguma aqueles que passaram a se chamar 25 Rita Lee: cantora, compositora e i
pretensão experimental e instaurou Doces Bárbaros, Caetano, Gil, Beta- nstrumentista brasileira. De seus discos,
a ditadura da superficialidade. Se a nia23, Gal24 e, entre os ex-Mutantes, destacamos Lança perfume (1980). (Nota
da IHU On-Line)
ditadura militar foi política e estatal, 26 Rogério Duprat (1932-2006): composi-
abrangendo todos os países da Amé- 23 Maria Bethânia Viana Teles Veloso, tor e maestro brasileiro. Um dos maiores
mais conhecida como Maria Bethânia responsáveis pela ascensão da Tropicália,
rica Latina, a ditadura mercadológica (1946): cantora brasileira. Segunda can- personalizando o som do então emergen-
dos anos 1980 foi especificamente tora feminina em vendagem de discos do te movimento musical com arranjos bem
estética e mundial. A primeira ruiu, a Brasil e a de maior vendagem da MPB: 26 elaborados, criativos e perfeitamente
milhões de cópias. (Nota da IHU On-Line) antenados com as tendências internacio-
segunda nasceu, cresceu e prosperou, 24 Maria da Graça Costa Penna Burgos, nais da época. (Nota da IHU On-Line)

10 SÃO LEOPOLDO, 10 DE DEZEMBRO DE 2012 | EDIÇÃO 411


Cadeia ininterrupta de “Eu não posso ros; na Inglaterra, um grupo de jovens

Tema de Capa
mediocridade de sucesso garantido, os Beatles30, re-
Ainda assim, um fenômeno mi-
lagroso como a Vanguarda Paulistana
deixar de me solveram simplesmente revolucionar
a história unindo o mais extremo ca-
de Arrigo Barnabé27 tornou-se, a meu
ver, um fruto tardio do espírito de li-
pronunciar: risma com o mais extremo bom gosto
experimental; no Brasil, entusiasma-
dos pelo estopim dado pelos Beatles,
berdade dos anos 1970 (não é à toa
que parte do álbum Clara crocodilo a cafonice de os tropicalistas sofisticaram ainda
mais a aventura com a nova síntese
tinha sido concebida ainda em mea-
dos dos anos 1970). Caetano apoiou Led Zeppelin é de bossa nova, diferentes tradições
milagres como esse e outros, como populares musicais e teorias antropo-
Hermeto Pascoal28, que teve seu auge infinitamente fágicas e concretistas. O gênio intuiti-
nessa época. vo e poético de Caetano, cujo disco de
Onde eu quero chegar é que a superior à de 1967 tornou-se o grandioso pontapé
ditadura do mercado dos anos 1980 inicial, foi seguido disco do Gilberto
foi criando muitos sucessos, a grande Daniela Mercury” Gil de 1968, junto com os Mutantes.
Logo em seguida, apareceu o primeiro
maioria ruins, que por sua vez foram
se tornando clássicos, que influencia- disco dos Mutantes, que, em termos
ram outros piores ainda, de modo que de experimentação e trabalho formal
se criou uma cadeia ininterrupta de e sensíveis que sejamos às diferen- musical, superou os dois anteriores e
mediocridade. Já se passaram mais de tes camadas de gosto e valores, falta iniciou a carreira da maior realização
30 anos sem que um movimento forte politizar a indústria de massa para artística da indústria musical de mas-
tenha conseguido criar um contexto fins de formação cultural cultivada. sa da história do Brasil. Um disco de
de realizações potentes e aparecido Considero isso um dever político de Gil, o Cérebro eletrônico, de 1969, e
com força nas rádios. Algo um pouco primeira mão, muito maior do que a todos os álbums d’Os Mutantes são, a
melhor que, por vezes, surge é sem- politiquice de todo dia. meu ver, a melhor e maior realização
pre rara exceção. Ao mesmo tempo, A meu ver, o problema de cuidar artística do tropicalismo e sustento
os historiadores e críticos não pontu- do que o cidadão comum ouve todo que são, também, de toda a história
am a factualidade do mal e colocam dia é tão importante quanto o que ele da música popular brasileira, sendo
maravilhas do passado ao lado de no- come. Pode ainda faltar, mesmo de- ombreados somente pelo Chico Bu-
mes insossos. pois do Bolsa Família, comida no pra- arque de Construção, o Walter Franco
Francamente, acho que falta um to de muitos no Brasil, mas não falta de Ou não e, anos depois, pelo Arrigo
movimento sério de pressão contra o rádio, TV e alto falantes berrantes in- Barnabé de Clara crocodilo. É claro
império absoluto da banalização no vadindo nosso espaço auditivo a todo que, se eu considero esses álbuns os
espaço nobre da indústria cultural, já instante, o que podemos tranquila- melhores, não quero diminuir, muito
que, depois dos anos 1970, ficou pro- mente chamar de poluição sonora. É menos apagar, o peso de Jorge Ben31,
vado que esse pode ser um espaço imprescindível, portanto, politizar o
de cultivo da sensibilidade estética direito ao silêncio, em primeiro lugar,
e o dever de fornecer boa música, em Francisco em meados da década de 1950,
para boa música e poesia. Se a luta provocando grandes alterações nas cons-
do tropicalismo foi contra o ufanis- segundo. ciências das pessoas e culminando com
uma grande vitalidade cultural que de-
mo e a separação entre alta e baixa sembocou no movimento hippie do final
cultura, e eles venceram; falta ago- IHU On-Line – Por que este mo-
dos anos 1960. (Nota da IHU On-Line)
ra, uma vez conquistado o direito de vimento, ao menos no início, sofreu 30 The Beatles: banda de rock inglesa,
poder fazer grande arte na indústria grande rejeição por parte dos acadê- criada no final da década de 1950. For-
micos e jovens da época? mada por John Lennon (guitarra e vocal),
cultural, inserir trabalhos criativos e
www.ihu.unisinos.br
Paul McCartney (baixo e vocal), George
elaborados nela. E, por mais abertos Eduardo Guerreiro Brito Losso – Harrison (guitarra e vocal) e Ringo Star
Justamente porque havia uma esquer- (bateria e vocal), obtiveram notoriedade
da tacanha que via na guitarra um ini- até hoje. (Nota da IHU On-Line)
27 Arrigo Barnabé (1951): músico e ator 31 Jorge Ben Jor (1945): guitarrista,
brasileiro. Seu reconhecimento para o migo, isto é, via o inimigo exatamente cantor e compositor popular brasileiro.
grande público veio logo com o primeiro no lugar errado; e acadêmicos que Seu estilo característico possui diversos
disco, Clara Crocodilo, em 1980, quando não estavam preparados para aceitar elementos, entre eles: rock and roll,
foi recebido pela imprensa como a maior samba, samba rock (termo que gosta de
novidade na música brasileira desde a que um movimento ligado à cultura usar), bossa nova, jazz, maracatu, funk,
tropicália. Em suas composições, Arrigo de massa era capaz de uma propos- ska e até mesmo hip hop, com letras que
mistura elementos e procedimentos da ta estética sofisticada. Comprovar no misturam humor e sátira, além de temas
música erudita do século XX a letras feri- esotéricos. A obra de Jorge Ben tem uma
nas sobre a vida na grande cidade. (Nota plano teórico, poético e musical que importância singular para a música bra-
da IHU On-Line) isso era possível foi a grande conquis- sileira, por incorporar elementos novos
28 Hermeto Pascoal (1936): compositor, ta, nos EUA, da associação do drop out no suingue e na maneira de tocar violão,
arranjador e multi-instrumentista brasi- com características do rock, soul e funk
leiro (toca acordeão, flauta, piano, saxo- rebelde dos beatniks29 com os roquei- norte-americanos. Além disso, trouxe
fone, trompete, bombardino, escaleta, influências árabes e africanas, oriundas
violão e diversos outros instrumentos de sua mãe, nascida na Etiópia. (Nota da
musicais). (Nota da IHU On-Line) 29 Beatnik: Movimento iniciado em São IHU On-Line)

EDIÇÃO 411 | SÃO LEOPOLDO, 10 DE DEZEMBRO DE 2012 11


Milton Nascimento32 e alguns outros,
“Num país de Russo37, Titãs38 e Cazuza39, e o clima
Tema de Capa
que devem ser mencionados como fi- cômico e leve de Blitz, Eduardo Duzek,
guras simpáticas ao tropicalismo, po-
rém essencialmente diferenciadas em analfabetos reais Fausto Fawcett, entre outros. Insisto,
porém, que todos esses nomes são
termos de mundivisão estética.
Isso que faço agora – tomar po- e funcionais e bem menores do que a grandeza das
melhores realizações dos anos 1970,
sição para elencar o que é o melhor ficando Arrigo como o herói, realiza-
– é infinitamente problemático. Eu ameaçado com o dor do grande disco da época.
mesmo não acredito, em certo sen- Se houve uma primeira ruptura
tido, nesse gesto, principalmente no perigo de diversos no ano de 1967 na indústria musical,
campo da historiografia da literatura. que podemos chamar de um surto
Mas, no campo da música popular, ele fundamen- vanguardista criativo e contestador
é necessário, pelo menos para pontu- no interior da cultura juvenil, e uma
ar uma posição dentro da discussão talismos, figuras segunda, em 1978, introdutora da
do cânone em construção, que não ditadura da superficialidade e do es-
vai deixar de existir com argumentos
relativizantes.
políticas como Gil, pírito conservador, na segunda meta-
de dos anos 1990, com o advento da

Toque de Midas Caetano, Wisnik internet, ocorreu uma pulverização da


centralização hegemônica da mídia, o
Depois do tropicalismo, vários
outros cantores e grupos se bene-
e Cícero são que permitiu um novo surto criativo
descentralizador, porém muito me-
ficiaram da porta que eles abriram,
influenciados ou não. Não há dúvida indispensáveis” nor do que o dos anos 1960-1970, é
preciso ressaltar. O esgarçamento da
da grandeza de Secos e Molhados33, estrutura da canção introduzido pelo
Novos Baianos34, João Bosco e, espe- rock progressivo com fins experimen-
cialmente, Raul Seixas35. Percebe-se tais, que nos anos 1980 foi recusado,
até que tudo o que o tropicalista Ro- nesse momento tornou-se inteira-
32 Milton Nascimento (1942): cantor e gério Duprat tocava, como o primeiro mente bem sucedido e motivou a cri-
compositor brasileiro, reconhecido mun-
álbum de João Bosco, Ou não, entre se chamada de morte da canção, que
dialmente como um dos mais influentes
e talentosos cantores e compositores outros, virava ouro. Certos grupos, co- não é morte, sem dúvida, mas abalo,
da Música Popular Brasileira. Mineiro de nhecidos só por aficcionados, foram com certeza, feito pelo hip hop e pela
coração, tornou-se conhecido nacional-
extremamente criativos, como o Mó- música eletrônica. Esta última foi res-
mente, quando a canção “Travessia”,
composta por ele e Fernando Brant, ocu- dulo 1000. ponsável pelas melhores tentativas de
pou a segunda posição no Festival Inter- Nos anos 1980, período que, como experimentação rítmica e timbrística,
nacional da Canção, de 1967. Em 1998,
já disse, foi triste, embora quem tenha mas perdeu a vitalidade instrumental
ganhou o Grammy de Best World Music
Album in 1997. Foi nomeado novamente assimilado a mediocridade como uma da banda de rock, embora algumas
para o Grammy em 1991 e 1995. (Nota da grande coisa ache ser maravilhoso, pro- bandas tenham encontrado a sen-
IHU On-Line)
duziu, sim, trabalhos interessantes, es- satez de conciliar o melhor das duas
33 Secos & Molhados: grupo vocal
brasileiro da década de 1970 cuja pecialmente em letras de teor poético coisas. No Brasil, eu destaco, nesse
formação clássica consistia de João e crítico como as de Lobão36, Renato período, o grande instrumentista e
Ricardo (vocais, violão e harmônica), compositor que é Guinga, o fervor
Ney Matogrosso (vocais) e Gérson Conrad
(vocais e violão). João havia criado o
rítmico e potencial poético de Chico
nome da banda sozinho em 1970 até Science e Nação Zumbi40 e a ironia
juntar-se com as diferentes formações nos rock brasileiro. Também foi produtor mu-
anos seguintes e prosseguir igualmente sical da CBS durante sua estada no Rio de
www.ihu.unisinos.br

sozinho com o álbum Memória Velha Janeiro, e por vezes é chamado de “Pai 37 Renato Manfredini Júnior (1960-
(2000). (Nota da IHU On-Line) do Rock Brasileiro” e “Maluco Beleza”. 1996): conhecido como Renato Russo.
34 Os Novos Baianos: conjunto musical Sua obra musical é composta de 21 dis- Cantor, compositor e baixista da banda
brasileiro, nascido na Bahia, ativo entre cos lançados em seus 26 anos de carreira brasileira Legião Urbana. (Nota da IHU
os anos de 1969 e 1979. Eles marcaram e seu estilo musical é tradicionalmente On-Line)
a música popular brasileira e até o rock classificado como rock e baião (Nota da 38 Titãs: banda de rock brasileira forma-
brasileiro dos anos 70, utilizando-se de IHU On-Line) da em São Paulo, em 1982. Ativa há trinta
vários ritmos musicais brasileiros que vão 36 Lobão (1957): cantor, compositor, anos, tornou-se uma das quatro maiores
de bossa nova, frevo, baião, choro, afoxé escritor, multi-instrumentista, editor de bandas do BRock, ao lado de Legião Urba-
ao rock n’ roll. O grupo lançou oito tra- revista e apresentador de televisão bra- na, Os Paralamas do Sucesso e Barão Ver-
balhos antológicos para MPB. Influencia- sileiro. Sua carreira musical é marcada melho. Algumas de suas músicas de maior
dos pela contracultura e pela emergente por grandes parcerias; compôs sucessos sucesso são Sonífera Ilha, Flores, Polícia,
Tropicália. Contava com Moraes Moreira como “Me Chama”, muito famosa na Família, Comida, O Pulso, Go Back, Do-
(compositor, vocal e violão), Baby Con- voz de vários intérpretes, e “Vida Louca mingo. (Nota da IHU On-Line)
suelo (vocal), Pepeu Gomes (Guitarra), Vida”, conhecida na voz de Cazuza. Ape- 39 Cazuza (1958-1990): cantor e compo-
Paulinho Boca de Cantor (vocal), Dadi sar de ter surgido e conseguido sucesso sitor brasileiro que ganhou fama como
(baixo) e Luiz Galvão (letras) entre ou- no ambiente marginal e underground do vocalista e principal letrista da banda Ba-
tros. (Nota da IHU On-Line) rock brasileiro nos anos 80, Lobão vem rão Vermelho. Sua parceria com Roberto
35 Raul Santos Seixas (1945-1989): can- dialogando com diversos gêneros, como Frejat foi criticamente aclamada. (Nota
tor e compositor brasileiro, frequente- o samba, ao longo de sua carreira. (Nota da IHU On-Line)
mente considerado um dos pioneiros do da IHU On-Line) 40 Nação Zumbi (1997): banda brasileira,

12 SÃO LEOPOLDO, 10 DE DEZEMBRO DE 2012 | EDIÇÃO 411


grotesca de Zumbi do Mato (que fez
“É imprescindível e Pelé em Veneno remédio. Do ponto

Tema de Capa
mais esforço para não aparecer na de vista político, a insistência nos valo-
mídia que Os Racionais MCs) como os
melhores trabalhos que conheço. (…) politizar o res avançados, democráticos e laicos
da modernidade feita por Caetano, um

IHU On-Line – A seu ver, poderia direito ao silêncio, ateu que defende o direito de mino-
rias, foi teoricamente desenvolvida por
haver um tropicalismo do século XXI? Wisnik e por Antonio Cícero, que além
Em que sentido? em primeiro de filósofo e letrista é um dos maiores
Eduardo Guerreiro Brito Losso – poetas hoje. Num país de analfabetos
Sim e em diferentes sentidos. Há um lugar, e o dever reais e funcionais e ameaçado com o
aspecto importante que eu preciso perigo de diversos fundamentalismos,
mencionar: o tropicalismo, especial- de fornecer figuras políticas como Gil, Caetano,
mente Caetano, seguiu uma tradição Wisnik e Cícero são indispensáveis.
de afirmar e pensar o Brasil que se ini- boa música, em A volta dos Mutantes
ciou com Gilberto Freyre41 e se coloca
como uma alternativa decisiva a uma
postura depreciante do país. Se muitos
segundo” Foi desse meio vigoroso que
surgiu um ensaísta simultaneamente
grandes pensadores brasileiros ten- modesto (compara-se ao jogador de
dem a incorporar valores europeus de futebol de salão, que se esmera em
capacidade negativa para a disciplina e
juízo da cultura, outros procuraram en- dribles em espaço curto) e primoro-
um relaxamento positivo de fronteiras
tender, em caracterizações teóricas pe- so, influenciado pela escrita de Ro-
de classe e hierarquia, bem como uma
culiares, como a cordialidade de Sergio land Barthes44, especialmente no livro
disposição de leveza e alegria diante da
Buarque42, a ambivalência de uma in- Banalogias, mas já aí soube trilhar
vida, diferente da melancolia europeia.
caminho próprio: Francisco Bosco.
Roberto Schwarz, crítico privilegiado
nascida no início da década de 1990, em Ouso dizer que o melhor fruto do tro-
do tropicalismo, acentuou o lado nega-
Recife, capital do estado de Pernambuco, picalismo, o melhor filho de Caetano,
a partir da união do Loustal, banda de tivo da cordialidade; José Miguel Wis-
não está na música, está no ensaísmo
rock pós-punk, com o bloco de samba- nik, pensador da cultura brasileira in-
-reggae Lamento Negro, e originalmente deste atual colunista do Globo. E não
teiramente ligado a Caetano, acentua o
chamava-se “Chico Science & Nação Zum- exagero ao dizer que suas colunas são
bi”. O líder e vocalista da banda, o cantor seu lado positivo. Wisnik, que motivou
a melhor coisa que já li em jornal, pois
e compositor Chico Science, fundou, jun- Caetano a escrever Verdade tropical,
to com a banda Mundo Livre S/A, o mo- combina simplicidade, rigor estilístico,
autor de O som e o sentido e Veneno
vimento Manguebeat. Ao lado de bandas discussões éticas e estéticas envol-
como Raimundos e Planet Hemp, foi res- remédio, é sem dúvida a referência de
vendo posicionamentos lúcidos e ad-
ponsável pela “abertura de portas” para primeira mão do pensamento brasi-
o rock brasileiro dos anos 90, sendo uma miráveis, com versatilidade semelhan-
leiro hoje que incorporou, no melhor
das mais influentes bandas brasileiras de te à de Caetano e Wisnik, mas com o
todos os tempos. (Nota da IHU On-Line) sentido, a ruptura da separação entre
gosto barthesiano pela concisão clás-
41 Gilberto Freyre (1900-1987): escri- alta e baixa cultura a favor de uma in-
tor, professor, conferencista e deputado sica, melhor dizendo, o “clássico mo-
terpretação da cultura na sua abran-
federal. Colaborou em revistas e jornais derno” do texto de prazer. Contudo,
brasileiros. Foi professor convidado da gência, pontuando a continuidade do
o livro que mais gosto dele foi aquele
Universidade de Stanford (EUA). Rece- melhor de uma com o melhor de outra;
beu vários prêmios por sua obra, entre em que a clareza harmoniosa foi aba-
lembro, por exemplo, a emblemática
os quais, em 1967, o prêmio Aspen, do lada por conflitos internos, E livre seja
Instituto Aspen de Estudos Humanísticos comparação entre Machado de Assis43
(EUA) e o Prêmio Internacional La Mado-
ninna, em 1969. Entre seus livros, cita- que discute a loucura. Também escreveu
mos: Casa grande & Senzala e Sobrados tema “O homem cordial: Raízes do Brasil, poesia e foi um ativo crítico literário,
e Mocambos. O Prof. Dr. Mário Maestri, de Sérgio Buarque de Holanda” e no dia além de ser um dos criadores da crôni- www.ihu.unisinos.br
do PPG em História da Universidade de 8-05-2003, a professora apresentou essa ca no país. Foi o fundador da Academia
Passo Fundo (UPF), apresentou o segundo mesma obra no Ciclo de Estudos sobre o Brasileira de Letras. Confira a entrevista
livro na programação do II Ciclo de Estu- Brasil, concedendo, nessa oportunidade, especial realizada pela IHU On-Line com
dos sobre o Brasil, promovido no dia 15- uma entrevista a IHU On-Line, publicada Maílde Trípoli, em 20-04-2007, no link
04-2004, pelo IHU. Sua palestra originou na edição nº 58, de 5-05-2003, disponível http://migre.me/qR3n, intitulada O ne-
o artigo publicado no Cadernos IHU nº 6, em http://bit.ly/iYypBD Sobre Sérgio Bu- gro na obra de Machado de Assis. Sobre
de 2004, intitulado Gilberto Freyre: da arque de Holanda, confira, ainda, a edi- o escritor, foram produzidas duas edições
Casa-Grande ao Sobrado. Gênese e Dis- ção 205 da IHU On-Line, de 20-11-2006, especiais: edição 262, de 16-06-2008, sob
solução do Patriarcalismo Escravista no intitulada Raízes do Brasil, disponível o título de Machado de Assis: um conhe-
Brasil. Algumas Considerações, dispo- para download em http://bit.ly/jwktif cedor da alma humana, disponível em
nível para download em http://migre. (Nota da IHU On-Line) http://migre.me/qR47, e edição número
me/69teH. (Nota da IHU On-Line) 43 Joaquim Maria Machado de Assis 275, intitulada Machado de Assis e Gui-
42 Sérgio Buarque de Holanda (1902- (1839-1908): escritor brasileiro, conside- marães Rosa: interprétes do Brasil, de
1982): historiador brasileiro, também rado o pai do realismo no Brasil, escre- 29-09-2008, disponível em http://migre.
crítico literário e jornalista. Entre ou- veu obras importantes como Memórias me/qR4B. (Nota da IHU On-Line)
tros, escreveu Raízes do Brasil, de 1936. póstumas de Brás Cubas (Rio de Janeiro: 44 Roland Barthes: 1915-1980, crítico
Obteve notoriedade através do conceito Ediouro, 1995), Dom Casmurro (Erechim: literário, sociólogo e filósofo francês.
de “homem cordial”, examinado nessa Edelbra, 1997), Quincas Borba (15. ed. Entre suas obras se destacam: Elementos
obra. A professora Dr.ª Eliane Fleck, do São Paulo: Atica, 1998) e vários livros de de semiologia (1965), Sistema da moda
PPG em História da Unisinos, apresentou, contos, entre eles a obra-prima O Alie- (1967), O Império dos signos (1970).
no evento IHU Idéias, de 22-08-2002, o nista (32. ed. São Paulo: Ática, 1999), (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 411 | SÃO LEOPOLDO, 10 DE DEZEMBRO DE 2012 13


este infortúnio, de 2010, o qual con-
“A ditadura do foram chamados, numa matéria na pri-
Tema de Capa
tém, aliás, um ensaio sobre o Arnaldo meira página do Segundo Caderno do
Batista45 dos Mutantes, que, por sua
vez, dialoga com meu artigo sobre Os mercado dos anos Globo de fevereiro, de “Geração fora
do tempo”, mas eles mesmos se inti-
Mutantes publicado na revista Cultura tulam Coletivo Chama; como disse um
brasileira contemporânea, organizada 1980 foi criando deles, Pedro Moraes: “As questões que
por ele mesmo, de 2006. Francisco foi nos interessam não estão nas relações
também coordenador da Rádio Ba- muitos sucessos, do homem com seu tempo, mas com o
tuta do Instituto Moreira Salles, que infinito”. Fiquei especialmente aliviado
hoje está com Paulo da Costa e Silva. a grande maioria em me deparar com músicos que estão
Francisco fez e Paulo está fazendo um questionando abertamente a medio-
belo trabalho de resgate histórico e ruins, que por cridade da indústria fonográfica hoje e
documental da música popular. procurando, em seus trabalhos, nadar
Voltando para a música, Francisco sua vez foram se contra a corrente. Embora Lobão tam-
Bosco, que começou sendo poeta, foi bém tenha um posicionamento inte-
também letrista admirável da nova sa-
fra de discos de seu pai João Bosco, que
tornando clássicos, ressante a esse respeito, eles são mais
consistentes. Um gesto como o de Pe-
é um dos melhores trabalhos atuais da
geração iniciada nos anos 1970. Gil e es-
que influenciaram dro Moraes alimenta minha esperança
em todo o nosso futuro. Eles apontam
pecialmente Caetano estão sempre sur-
preendentemente antenados e seus ál-
outros piores justamente para o que estou chaman-
do de politização qualitativa do espaço
buns atuais também são interessantes.
O novo disco de Tom Zé46, Lixo lógico, é
ainda, de modo nobre da indústria cultural.
Há um programa deles na Rá-
bom e tem pelo menos uma canção for-
te: “Tropicalea Jacta Est”.
que se criou uma dio Roquette-Pinto todas as sextas,
Rádio Chama, que é nada mais nada
Depois do retorno dos dois ir-
mãos dos Mutantes juntos tocando cadeia ininterrupta menos do que uma obra prima de se-
leção musical, bom humor e estratos
seus sucessos, eles se separaram de
novo, mas Sergio Dias47 encabeçou de mediocridade” literários, tudo coordenado em torno
de um eixo temático, a cada semana.
um novo disco, Haih or Amortecedor, E o trabalho de Pedro Moraes, banda
de 2009, que foi solenemente igno- Escambo, Armando Lôbo, Edu Kneip e
rado, mas contém grandes canções e ço. Seu trabalho mutante isolado do Sergio Krakowski é revelador de uma
está também entre as melhores coisas disco de 1974, Tudo foi feito pelo Sol, nova cena que promete muito.
produzidas pelos mestres hoje, talvez e de 1975, o A e o Z, mesmo que te- Termino com seu maior expoen-
até a melhor, confirmando a potência nha perdido a irreverência das letras, te. Thiago Amud, no CD Sacradança, é,
do maior banda do Brasil até hoje. Re- em termos musicais chegou a ganhar de tudo o que citei de século XXI aqui,
comendo uma faixa arrasadora: “Que- qualidades, em alguns aspectos, em a maior realização, pois é aquela que
rida, querida”. relação aos discos anteriores: é rock extrai dos anos de ouro da boa músi-
progressivo. Não se equipara ao me- ca suas lições e está criando algo de
Verve satírica lhor do gênero que lhe serviu de mo- fato diferente e dando sangue novo.
Sérgio Dias, de todos os tropica- delo, Yes e Genesis, mas também não Thiago Amud tem sido ignorado pela
listas, foi aquele que sustentou, nos fica muito atrás. Décadas depois, com mídia mas, no seu abrigo sombrio, ele
seus trabalhos, na sua posição esté- o disco atual, Sérgio Dias demonstra é a melhor coisa que ouvi desde Ar-
tico-política, em várias entrevistas, a saber retomar à verve satírica, com rigo Barnabé. Não me importa o que
posição mais digna e firme que conhe- novas doses críticas, do princípio. Eu aparece e o que acontece por aí, só o
www.ihu.unisinos.br

sou não só um fã, eu me identifico infinito importa! e, para mim, Thiago


com toda a trajetória de Sérgio Dias, nasceu clássico.
45 Arnaldo Dias Baptista (1948): cantor
e compositor brasileiro, mais conhecido declaro abertamente. Ela me inspira
por seu trabalho com Os Mutantes. (Nota assim como Caetano o fez com outros.
da IHU On-Line)
46 Antônio José Santana Martins (1936),
mais conhecido como Tom Zé: composi-
Mas não é só de tropicalistas e
seus filhos que se faz o melhor de hoje. Leia mais...
tor, cantor e arranjador brasileiro. É con- O movimento mais diferencial e deter-
siderado uma das figuras mais originais >> Eduardo Guerreiro Brito Losso já
minante na música e na discussão so-
da música popular brasileira, tendo par- concedeu outra entrevista à IHU On-
ticipado ativamente do movimento musi- bre estética e ética na indústria cultural
cal conhecido como Tropicália nos anos está em pessoas que, de certo modo, Line. Confira:
1960 e se tornado uma voz alternativa estão procurando um lugar para além • A mística e o enfrentamento radical
influente no cenário musical do Brasil.
(Nota da IHU On-Line) do tropicalismo, comprometidos com da miséria humana. Revista IHU On-
47 Sérgio Dias Baptista (1951): guitarris- os problemas que se acumularam dos -Line, edição 401, de 03-09-2012,
ta, cantor e compositor brasileiro, mais anos 1980 para cá. Há um grupo de
conhecido por seu trabalho com Os Mu- disponível em http://bit.ly/OUdCbT
tantes. (Nota da IHU On-Line) compositores de altíssimo nível que

14 SÃO LEOPOLDO, 10 DE DEZEMBRO DE 2012 | EDIÇÃO 411


Tema de Capa
Tropicalismo, uma revolução?
Sem nenhum sentido utópico, o tropicalismo foi revolucionário na
maneira de entender e fazer música popular e no modo de produzir
uma conjunção entre significação estética e significação política, pontua
Celso Fernando Favaretto

Por Thamiris Magalhães

O
tropicalismo foi um movimento que ou de vício e alguma coisa que não era música
não precisa se repetir. “Ele foi uma in- brasileira, que era música estrangeira ou algo
tervenção e o caráter de intervenção é incompreensível por ser caótica nos seus tex-
conceitualmente muito importante. Intervir é tos e em suas melodias. E não era nada disso.
entrar em uma situação, trabalhar com os da- Ela não era caótica coisa nenhuma”. Para ele,
dos dessa situação, produzir mudanças e não os nossos ouvidos foram totalmente transfor-
precisa mais repetir. A repetição, aí, torna-se mados e foram transformados, em primeiro
enfraquecimento”, avalia Celso Fernando Fa- lugar, pelas indicações da bossa nova, e, em
varetto, autor de Tropicália: alegoria, alegria, seguida, pela radicalização tropicalista.
em entrevista concedida por telefone à IHU Celso Fernando Favaretto possui gradua-
On-Line. Para ele, não há tropicalismo depois ção em Filosofia pela Pontifícia Universidade
de 1967-1968. “Há ressonâncias, influências, Católica de Campinas – PUC-Campinas, mes-
absorção de suas proposições até hoje”. trado em Filosofia pela Universidade de São
O tropicalismo, reativando uma série de Paulo – USP e doutorado em Filosofia pela
indicações que a bossa nova já tinha coloca- mesma instituição. Tem livre-docência pela
do, é exigente, segundo Favaretto. “Ele exige Faculdade de Educação da USP. É professor
que a música seja objeto de uma atenção por emérito da Universidade de São Paulo – USP.
parte dos receptores tanto quanto as outras Tem experiência na área de Filosofia, com ên-
artes. E, naquele momento, o tropicalismo foi fase em Estética, Educação e Ensino de Filo-
um desafio muito grande. Ele mudou a audi- sofia. É autor de Tropicália: alegoria, alegria
ção das pessoas”, conta. E continua: “Ou as (São Paulo: Kairós Editora, 1979), obra clássi-
pessoas mudavam o modo de ouvir a música ca sobre o movimento da tropicália e A inven-
popular ou não entendiam nada; ou rejeita- ção de Hélio Oiticica (EdUSP, 1992).
vam, chamando-a de alienada politicamente Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual o contexto de etc.; seja na literatura com José Agri- desenvolvia-se uma atividade bifron- www.ihu.unisinos.br
surgimento do tropicalismo e que pe- ppino de Paula2, seja no teatro etc., tal: de um lado, levar a experimenta-
ríodo compreende este movimento? ção, que tinha sido detonada em to-
Celso Fernando Favaretto – O de março de 1980): artista visual brasilei- dos os lugares do mundo pela pop art
ro, mais conhecido por sua participação
tropicalismo surgiu em meados dos no grupo de concretismo, por seu uso ino-
até os seus limites expressivos mais
anos 1960, mas vigorou apenas entre vador da pintura, e para o que ele mais elevados, e, simultaneamente, de ou-
1967, 1968, no momento em que as tarde chamou de “arte eco-friendly”, tro lado, no caso particular do Brasil,
que incluiu Picasso e Penetráveis, como o
propostas e projetos de intervenções famoso Tropicália. (Nota da IHU On-Line) colocar essa experimentação em con-
políticas através das artes estavam 2 José Agrippino de Paula (São Paulo, jugação com a necessidade de reagir
desenvolvendo um experimentalismo 13 de julho de 1937 – Embu, 4 de julho
de 2007): escritor brasileiro. Dentre os
de alta voltagem como não tinha sido livros de sua autoria se destaca PanA-
efetivada até então no Brasil. Seja na mérica (1967), obra fundamental para o
desenvolvimento do movimento da tropi- Estes personagens participam de uma
música, com os tropicalistas, seja nas cália. Irreverente, o livro apresenta per- filmagem de episódios da Bíblia e atuam
artes plásticas, com Hélio Oiticica1 sonalidades como Che Guevara, Marilyn com uma narrativa na primeira pessoa,
Monroe, Cary Grant, John Wayne, Marlon em cenas sem uma sequência lógica e
Brando, Cecil B. de Mille, Andy Warhol, com um viés pitoresco ou cinematográfi-
1 Hélio Oiticica (26 de julho de 1937 – 22 entre outros ícones da cultura de massa. co. (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 411 | SÃO LEOPOLDO, 10 DE DEZEMBRO DE 2012 15


à ditadura militar, ao regime militar
“Não há dinária em termos de música popular.
Tema de Capa
ditatorial imposto pelo golpe de 1964. Então, essa é uma marca indelével
Da coalisão, justaposição e das
intersecções entre invenções estéti- tropicalismo do tropicalismo. Nesse aspecto, não
precisa haver outro tropicalismo. Ele
cas e de novas maneiras de resistên-
cia política é que nascem as melhores depois de foi uma intervenção e o caráter de in-
tervenção é conceitualmente muito
indicações da arte da segunda metade
dos anos 1960 e que tem o seu ponto 1967-1968. Há importante. Intervir é entrar em uma
situação, trabalhar com os dados des-
de estrangulamento com a promul-
gação do Ato Institucional Número ressonâncias, sa situação, produzir mudanças e não
precisa mais repetir. A repetição, aí,
5 (AI-5) do dia 13-12-1968. Então, o
tropicalismo surge exatamente no influências, torna-se enfraquecimento.
Logo, não há tropicalismo depois
meio dessa grande voltagem de trans-
formações. Surge também a partir de absorção de suas de 1967-1968. Há ressonâncias, in-
fluências, absorção de suas proposi-
uma reflexão que vinha sendo feita
desde o final dos anos 1950 e, prin- proposições até ções até hoje.

Tropicalismo como influência


cipalmente, no início dos anos 1960,
a partir da bossa nova e da atividade hoje” para os dias atuais
e técnica de João Gilberto3, do traba- Uma vez o tropicalismo termi-
lho de Tom Jobim4 etc., e que estava nado com o AI-5, porque houve um
to de confluência de manifestação da impedimento daquele tipo de mani-
sendo efetuada pelos jovens. O Cae-
resistência política ao regime militar. festação libertária que eles faziam,
tano Veloso, desde 1965, refletia lon-
O tropicalismo nasce, portanto, principalmente na televisão, as in-
gamente sobre a tradição da música
ao mesmo tempo como uma exigência fluências deste movimento foram
popular brasileira e das intersecções
de reorganização na cultura, principal- enormes nos anos seguintes. A músi-
que esta música estava tendo, seja
mente de reorganização da maneira ca brasileira passou a estar livre para
com a bossa nova, seja quando surge
das artes interferirem politicamente todas as suas experimentações possí-
a jovem guarda do Roberto Carlos e
na realidade, já que o golpe militar de veis, o que vem acontecendo até hoje.
Erasmo Carlos, seja com as indicações
1964 tinha liquidado as posições an- O tropicalismo foi, portanto, um mo-
internacionais do jazz e de outras mú-
teriores, por serem muito inadequa- mento não só de invenção inédita no
sicas, do rock especificamente.
das à situação brasileira, e abre um Brasil, como de liberação, no caso da
Tropicalismo como intervenção momento de experimentação, junta- música, mas também no caso do tea-
Nesse sentido, é na intersecção mente com outras artes, que emer- tro, cinema e outras artes, para todas
de reflexão do que é estética e do que ge no Brasil. Essa experimentação se as suas aventuras e possibilidades.
é política que surge o tropicalismo, expressa nos discos tropicalistas, nos
como uma intervenção, em primeiro seus shows, nas suas atividades de IHU On-Line – Então, o senhor
lugar, na música popular brasileira, televisão, nas suas manifestações e acredita que ainda hoje há marcas do
sendo que pela primeira vez o gênero principalmente com uma influência tropicalismo na sociedade?
MPB é reconhecido como um gênero muito grande nos comportamentos Celso Fernando Favaretto – O
propriamente artístico e não apenas da juventude. tropicalismo foi uma coisa bem con-
ligado a entretenimento, divertimen- figurada historicamente. Ele é típico
Repetição como
to ou à expressão de sensibilidade daquele tempo. O movimento produz
enfraquecimento
ou de sentimentalidade e, ao mesmo uma intervenção que não era assimi-
O Caetano sempre disse que,
www.ihu.unisinos.br

tempo, essa música se torna um pon- lável imediatamente em termos de


antes de tudo, o tropicalismo foi uma
comunicação, emocionais e sentimen-
intervenção na música popular brasi-
tais. Exigia uma reflexão para que essa
3 João Gilberto Prado Pereira de Olivei- leira, com uma valoração a tal ponto
intersecção entre experimentalismo
ra (1931): músico brasileiro. Tido como que se tornou uma coisa fundamen-
o criador da bossa nova, é considerado artístico e significação política surgis-
tal como talvez só ficou semelhante
um gênio e uma lenda viva da música se de uma audição nova.
popular brasileira. Seus shows, quando nos Estados Unidos e um pouco em
anunciados, têm os ingressos esgotados Não é o momento de falar mais
Cuba, que é uma significação social
nas primeiras horas de venda. (Nota da de tropicalismo. As marcas estão lá
IHU On-Line) de alto nível, tanto em termos de ex-
atrás, enquanto configuraram uma
4 Antônio Carlos Brasileiro de Almeida pressão, de sensibilidade, de desejo
Jobim (1927-1994), mais conhecido como abertura experimental, um modo de
e de pensamento quanto em termos
Tom Jobim: compositor, maestro, pianis- pensar a relação de arte e política,
ta, cantor, arranjador e violonista brasi- de expressão política. Essa música foi
leiro. É considerado o maior expoente de
muito centrada naquele momento
revigorada e levada a uma atenção
todos os tempos da música brasileira pela e que tiveram que ser reformuladas,
revista Rolling Stone, e um dos criadores maior com o tropicalismo. Ela antes
tanto nos anos 1970, em função do ri-
do movimento da bossa nova. (Nota da não tinha isso, embora fosse extraor-
IHU On-Line) gor da censura e da repressão política,

16 SÃO LEOPOLDO, 10 DE DEZEMBRO DE 2012 | EDIÇÃO 411


das prisões, torturas etc., como de-
“Os nossos Celso Fernando Favaretto – Tro-

Tema de Capa
pois da redemocratização, onde não picália é uma coisa. Movimento tropi-
cabia mais simplesmente fazer a de-
núncia e a exortação. Cabia construir ouvidos foram calista é outra.
Esse termo tropicália tem um
outra coisa. A marca principal é exa-
tamente incluir o experimentalismo e totalmente caráter de intervenção. O termo foi
inventado pelo Hélio Oiticica, em
a necessidade contínua de repensar a
relação entre arte e sociedade. transformados 1967, quando ele montou um am-
biente, que hoje se chama instalação.

IHU On-Line – Quais foram as e foram O Museu de Arte Moderna do Rio de


Janeiro ele nomeou de tropicália. Es-
principais conquistas conseguidas
pelo movimento? transformados, crevi um livro sobre isso, chamado
A invenção de Hélio Oiticica (EdUSP,
Celso Fernando Favaretto – A
primeira foi transformar a música bra- em primeiro lugar, 1992), onde analiso com detalhes o
que era essa tropicália. Então, tro-
sileira de um gênero ligado mais ao
entretenimento. Por mais fabulosa pelas indicações picália é uma proposição de ruptura
de um modo de a arte relacionar-se
que fosse a música que vem dos anos
1920 e 1930, esta não era vista como da bossa nova, com as artes do momento, do passa-
do e com o contexto político-social.
um gênero, como eram a literatura, o
cinema, o teatro e as artes plásticas. O e, em seguida, A música tropicália de Caetano Velo-
so chamou-se tropicália exatamente
tropicalismo, reativando uma série de
indicações que a bossa nova já tinha pela radicalização porque ela, no seu funcionamento
interno, de fazer uma radiografia e
colocado, é exigente. Ele exige que a
música seja objeto de uma atenção tropicalista” uma crítica das mazelas do Brasil, era
muito semelhante ao ambiente de
por parte dos receptores tanto quan- Hélio Oiticica.
to as outras artes. E, naquele mo-
mento, o tropicalismo foi um desafio IHU On-Line – Onde estão essas O novo por excelência
muito grande. Ele mudou a audição influências, que o senhor citou aci- O ismo dá ideia de movimento. E,
das pessoas. Ou as pessoas mudavam ma, do tropicalismo hoje? de fato, houve um grupo. E o tropica-
o modo de ouvir a música popular ou Celso Fernando Favaretto – Ele lismo tornou-se um movimento mes-
não entendiam nada; ou rejeitavam, inventou que a música popular bra- mo, no sentido de intervir na situação
chamando-a de alienada politicamen- sileira poderia ser muitas coisas, si- cultural e musical brasileira. Isso foi o
te ou de vício e alguma coisa que não multaneamente, como dizia Gilberto tropicalismo.
era música brasileira, que era música Gil. Ela poderia incluir elementos da O movimento se extinguiu em
estrangeira ou algo incompreensível música contemporânea, eletrônica, dezembro de 1968 com o AI-5. Qual-
por ser caótica nos seus textos e em pós-eletrônica, elementos aleató- quer proposta, não só na música, mas
suas melodias. E não era nada disso. rios, aproveitar todas as produções também no teatro, no cinema e em
Ela não era caótica coisa nenhuma. populares de todas as gerações, que todo o lugar terminou com o rigor do
sempre foram rigorosas até hoje no regime, da censura, da repressão, da
IHU On-Line – O senhor acredita Brasil, incluir o rock e os instrumen- tortura, etc. Hoje, não tem sentido
que o tropicalismo foi revolucioná- tos não tradicionais, e assim por nenhum falar em ismo. Esse caráter
rio? Por quê? diante. Hoje, temos uma música po- de movimento foi típico do período
Celso Fernando Favaretto – Sem pular brasileira extremamente culta, moderno. Ele deixou de ser significa- www.ihu.unisinos.br
nenhum sentido utópico, de que re- variada, e só não voltamos mais ao tivo depois que todas as conquistas
volucionário quer dizer intervir na requinte, seja no canto, seja na or- modernas foram colocadas à disposi-
totalidade da sociedade e mudá-la, questração, dos arranjos etc., porque ção e localizo esse tempo exatamente
o tropicalismo foi revolucionário, na nós já nos acostumamos. Os nossos no final dos anos 1960 até meados de
maneira de entender e fazer música ouvidos foram totalmente transfor- 1970.
popular e no modo de produzir uma mados e foram transformados, em A partir de então, as artes vivem
conjunção entre significação estética primeiro lugar, pelas indicações da da reorganização interna daquelas
e significação política. Nesse senti- bossa nova, e, em seguida, pela radi- proposições modernas e a invenção
do, o movimento foi revolucionário, calização tropicalista. consiste muito mais numa reelabora-
sem delírios de achar que a música ção que traz novidades do que a ten-
poderia transformar a sociedade e a IHU On-Line – Como você defini- tativa de fazer o novo que nunca tinha
realidade, assim como as outras artes ria a tropicália? Qual a diferença en- existido antes. O tropicalismo, sim, foi
também. tre este termo e o tropicalismo? o novo por excelência.

EDIÇÃO 411 | SÃO LEOPOLDO, 10 DE DEZEMBRO DE 2012 17


Tema de Capa
Um movimento libertário?
De acordo com Pedro Bustamante Teixeira, o tropicalismo marcou uma época porque
foi capaz de aceitar a outridade e conseguiu sintetizar o transe em canções

Por Thamiris Magalhães

O
tropicalismo quebrou as barreiras en- lhes parecia inequívoca e irremediável. A partir
tre o pop e o folclore; entre a cultura da “desconstrução de estereótipos através de
erudita e a de massa; entre a tradição escrachos, novas possibilidades são criadas. De
e a vanguarda. Para Pedro Bustamante Teixeira, modo que se torna possível unir o fino da bos-
o movimento conseguiu estes êxitos jogando sa ao programa do Roberto Carlos, o rock e o
com os estereótipos de brasilidade. “Na justa- baião, o Brasil e o mundo, o bumba-meu-boi e
posição de suas imagens, o tropicalismo expu- o iê-iê-iê, Rogério Duprat e Os Mutantes, Cae-
nha com amor, já que ele sabe que isto também tano Veloso e Chico Buarque etc.”
o constitui, o ridículo destas”, diz, em entrevista Pedro Bustamante Teixeira possui gradua-
concedida por e-mail à IHU On-Line. Segundo ção em Língua Portuguesa e em Língua Italiana
ele, ao focar as imagens constantemente rela- (e em suas respectivas literaturas), e mestrado
cionadas a uma identidade brasileira: as bana- em Letras: Estudos Literários pela Universida-
nas, os pandeiros, as mulatas, Carmen Miranda, de Federal de Juiz de Fora – UFJF. É doutorando
Bossa Nova, Chico Buarque, Vicente Celestino, do Programa de Pós-Graduação em Letras: Es-
o tropicalismo operava na desconstrução de tudos Literários e Representações Culturais na
uma identidade endossada por um mito-Brasil mesma instituição.
em nome de uma diversidade identitária que Confira a entrevista.

IHU On-Line – O tropicalismo substituir a luta pela ação cultural. O em que se tornava célebre pelas apre-
conseguiu “modernizar” a cultura tropicalismo vem a reboque dos ven- sentações conturbadas nos festivais,
brasileira em apenas um ano, que tos pré-revolucionários, mas se posta causava um mal-estar generalizado
correspondeu à duração do movi- para além da causa, pois enxerga na nas alas progressistas. A terra estava
mento? Como isso foi possível? política cultural das esquerdas uma em transe, não só no Brasil, não só em
Pedro Bustamante Teixeira – visão deveras reducionista do que po- Eldorado. O tropicalismo marcou uma
Primeiramente, é preciso lembrar deria ser a cultura brasileira. época porque foi capaz de aceitar a ou-
que esse foi um momento ímpar na tridade e conseguiu sintetizar o transe
história brasileira. E não só por conta Devir identitário em canções. Assim, a prática tropi-
da ação tropicalista. No cinema, no O movimento tropicalista se re- calista resultou na edificação de uma
teatro, na música, nas artes plásticas, bela contra o nacional-popular. Per- identidade nacional mais complexa,
nos jornais, apesar da ditadura da cebe nele uma séria ameaça ao devir mais tolerante, mais atenta, híbrida e
www.ihu.unisinos.br

direita, soprava um “vento pré-revo- da cultura brasileira. Desatando-se das maior. Uma identidade que existe mais
lucionário” que afetava as estruturas diretrizes culturais da esquerda, vide através da práxis antropofágica do
e convocava o artista à participação CPC2, o movimento, ao mesmo tempo que pela preservação de uma essên-
política. “O Brasil estava irreconheci- cia originária. Em menos de um ano, a
velmente inteligente”, diria o marxista Fora – UFJF e autor de Música popular: tropicália foi capaz de implodir com as
Roberto Schwarz sobre esse tempo no de olho na fresta (Rio de Janeiro: Graal, bases do nacional-popular que de cer-
ensaio Cultura e política, 1964-1969. 1977). O docente participa desta edição ta forma uniam a direita à esquerda, e
da IHU On-Line, com entrevista sobre o
No entanto, ao se pretender se ser- Tropicalismo. (Nota da IHU On-Line) de introduzir na cultura popular brasi-
vir da cultura para a conscientização 2 O Centro Popular de Cultura (CPC) foi leira uma nova forma de pensamento.
das massas e à revolução, a esquerda uma organização associada à União Nacio- Agora, mais próximo dos manifestos de
nal de Estudantes - UNE, criada em 1961,
incorria num erro político, detecta- na cidade do Rio de Janeiro, por um grupo Oswald de Andrade3 do que do Ensaio
do posteriormente por Gilberto Fe- de intelectuais de esquerda, com o obje-
lisberto Vasconcellos1, que era o de tivo de criar e divulgar uma “arte popular
revolucionária”. Reuniu artistas de diver- arte, bem como o engajamento político
sas áreas (teatro, música, cinema, lite- do artista. (Nota da IHU On-Line)
1 Gilberto Felisberto Vasconcellos: pro- ratura, artes plásticas etc.), defendendo 3 Oswald de Andrade (1890-1954): poe-
fessor da Universidade Federal de Juiz de o caráter coletivo e didático da obra de ta, romancista e dramaturgo. Nasceu em

18 SÃO LEOPOLDO, 10 DE DEZEMBRO DE 2012 | EDIÇÃO 411


sobre a música brasileira, de Mário de Caetano Veloso e Gilberto Gil lhe fize- da “transa” ao transe, e do tranco e da

Tema de Capa
Andrade4. Por fim, a rebeldia tropicalis- ram ver que ela era – apesar de paulis- tranca, teriam que cuidar de si mes-
ta resultou no devir de uma identidade ta, roqueira e filha de americano – tão mos para não sucumbirem à dor.
cultural brasileira múltipla, de infinitas brasileira quanto o Garrincha.
possibilidades e que nem por isso pare- IHU On-Line – Podemos afirmar
cia menos brasileira do que a anterior. IHU On-Line – Em que sentido o que o tropicalismo foi além da mú-
movimento sofisticou a estética e a sica? O movimento influenciou tam-
IHU On-Line – De que maneira cultura brasileiras? bém as artes plásticas, o teatro e o
o tropicalismo quebrou as barreiras Pedro Bustamante Teixeira – cinema? De que forma?
entre o pop e o folclore? Entre a cul- Não combina muito com a estética Pedro Bustamante Teixeira –
tura erudita e a de massa? Entre a tropicalista a palavra sofisticação, que Devido à diversidade de frentes de
tradição e a vanguarda? talvez sirva melhor para nos referir- atuação, Flora Süssekind5 prefere o
Pedro Bustamante Teixeira – Jo- mos ao movimento da bossa nova. O termo momento tropicalista ao mais
gando com os estereótipos de brasi- tropicalismo joga o tempo todo com usado movimento tropicalista. E já
lidade. Na justaposição de suas ima- o brega, o cafona, justapondo-os ao que estamos falando de um momento
gens, o tropicalismo expunha com que pode haver de mais sofisticado heterogêneo, é bastante complicado
amor, já que ele sabe que isso tam- na música brasileira e internacional. mapear quem influenciou quem. O
bém o constitui, o ridículo destas. Ao Apesar de uma vontade de supera- que há é o surgimento de uma nova
focar as imagens constantemente re- ção do subdesenvolvimento, presente sensibilidade que rejeita tanto a filia-
lacionadas a uma identidade brasilei- nas experimentações com os instru- ção automática às diretrizes esquer-
ra: as bananas, os pandeiros, as mu- mentos elétricos, a incorporação de distas dos Centros Populares quanto
latas, Carmen Miranda, Bossa Nova, elementos da eletrônica e uma expe- uma inclinação nacionalista em nome
Chico Buarque, Vicente Celestino... o rimentação cada vez mais incisiva nos da liberdade e da experimentação de
tropicalismo operava na desconstru- estúdios, a sofisticação jamais foi um novas formas artísticas. Sensibilida-
ção de uma identidade endossada por desejo da tropicália, que é, antes de de que passa a ser sentida no teatro
um mito-Brasil em nome de uma di- tudo, escracho, escândalo e jogo. A de José Celso Martinez Corrêa6, no
versidade identitária que lhes parecia sofisticação sublima, mas não assus- cinema de Glauber Rocha7, nas artes
inequívoca e irremediável. O jovem ta. E o tropicalismo viera munido do plásticas com Hélio Oiticica8, Lygia
Caetano já dizia: “me recuso a fol- Kitsch, do brega , do rock e do pop,
clorizar meu subdesenvolvimento”. E justamente para assustar “as pessoas 5 Flora Süssekind: Professora de teoria
assim, da desconstrução de estereóti- da sala de jantar”. do teatro no Centro de Letras e Artes da
pos através de escrachos, novas possi- UNI-Rio e pesquisadora da Casa de Rui
Barbosa (Rio de Janeiro). (Nota da IHU
bilidades são criadas. De modo que se IHU On-Line – “O nome de um On-Line)
torna possível unir o fino da bossa ao movimento só existe enquanto o mo- 6 José Celso Martinez Corrêa (Arara-
programa do Roberto Carlos, o rock e vimento existe. E o tropicalismo não quara, São Paulo, 30 de março de 1937):
conhecido como Zé Celso, é uma das
o baião, o Brasil e o mundo, o bumba- existe mais como movimento.” Como figuras mais importantes ligadas ao tea-
-meu-boi e o iê-iê-iê, Rogério Duprat avalia essa frase de Caetano Veloso, tro brasileiro. Destacou-se como um dos
e Os Mutantes, Caetano Veloso e Chi- proferida em um programa português, principais diretores, atores, dramaturgos
e encenadores do Brasil. (Nota da IHU
co Buarque etc. A tropicália chega à recuperada de forma inédita recente- On-Line)
conclusão promissora que para se es- mente no documentário Tropicália? 7 Glauber de Andrade Rocha (14 de março
colher um caminho não é preciso ig- Pedro Bustamante Teixeira – No de 1939 – 22 de agosto de 1981): influente
cineasta brasileiro, ator e escritor. É o
norar seus outros possíveis. E por isso momento em que Caetano faz essa diretor do filme Terra em Transe (drama,
é também um movimento libertário. afirmação, nem ele nem Gil, nem mais 1967). (Nota da IHU On-Line)
Rita Lee disse em uma entrevista que ninguém poderia responder por um 8 Hélio Oiticica (1937-1980): pintor, es-
cultor, artista plástico e performático
movimento que tinha sido dissipado,
www.ihu.unisinos.br
de aspirações anarquistas. É considera-
junto a tantos outros, com a promul- do por muitos um dos artistas mais re-
São Paulo, e estudou na Faculdade de Di- gação do Ato Institucional número volucionários de seu tempo e sua obra
reito do Largo São Francisco. Sua poesia experimental e inovadora é reconhecida
é precursora do movimento que marcou
5 – AI-5 - e a seguinte intensificação internacionalmente. Em 1959, fundou o
a cultura brasileira na década de 1960, o da reação aos tais ares pré-revolucio- Grupo Neoconcreto, ao lado de artistas
concretismo. (Nota da IHU On-Line) nários. No momento em que Caetano como Amilcar de Castro, Lygia Clark, Ly-
4 Mário Raul de Morais Andrade (9 de gia Pape e Franz Weissmann. Na década
outubro de 1893 – 25 de fevereiro de
e Gil não poderiam nem mais pisar de 1960, Hélio Oiticica criou o Parangolé,
1945): poeta brasileiro, romancista, mu- em seus trópicos que doravante pa- que ele chamava de “antiarte por exce-
sicólogo, historiador de arte, crítico e fo- reciam, mais uma vez, tristes; o tropi- lência” e uma pintura viva e ambulan-
tógrafo. Um dos fundadores do modernis- te. O Parangolé é uma espécie de capa
mo brasileiro. Praticamente criou a poe-
calismo não fazia mais sentido algum. (ou bandeira, estandarte ou tenda) que
sia moderna brasileira com a publicação O absurdo alegre tornava-se uma vio- só mostra plenamente seus tons, cores,
de sua Paulicéia Desvairada (alucinada lenta desilusão. Era o momento de se formas, texturas, grafismos e textos
Cidade), em 1922. Teve uma enorme in- (mensagens como “Incorporo a Revolta”
fluência na moderna literatura brasileira,
restabelecer o mínimo, “o mínimo Eu”. e “Estou Possuido”), e os materiais com
e como um estudioso e ensaísta, foi um Os ombros mal suportavam o próprio que é executado (tecido, borracha, tinta,
pioneiro do campo da etnomusicologia – peso que dirá o do movimento. Caeta- papel, vidro, cola, plástico, corda, palha)
sua influência transcendeu o Brasil. (Nota a partir dos movimentos de alguém que o
da IHU On-Line)
no e Gil, depois do itinerário que vai vista. Por isso, é considerado uma escul-

EDIÇÃO 411 | SÃO LEOPOLDO, 10 DE DEZEMBRO DE 2012 19


Clark9 e Rubens Gerchman10, na Litera- meiro e único programa de Divino Ma- Ianque; por outro, ela parecia repre-
Tema de Capa
tura de José Agrippino de Paula11 e na ravilhoso. A TV foi uma fresta pela qual sentar uma séria ameaça à moral e aos
música tropicalista. Em cada área há os tropicalistas puderam emitir os seus bons costumes. Este lado reagiu sorra-
uma ruptura intrínseca a ela. Para cada sinais diretamente para as massas. Em teiramente até o ato da prisão de Gil e
ruptura, uma nova batalha, a vitória de suma, sem a televisão, o movimento de Caetano, aquele de imediato, com
uns não dispensa a luta dos demais, não teria acontecido. as vaias e as denúncias. Para estes,
mas também não deixa de ajudar. Caetano e Gil seriam espécies de ins-
IHU On-Line – Qual a diferença trumentos da atual conjuntura para a
IHU On-Line – Qual foi o papel entre tropicália e tropicalismo? desmobilização da juventude brasilei-
que a televisão teve para a divulga- Pedro Bustamante Teixeira – ra. A esquerda que, segundo Schwarz,
ção do movimento, dos cantores e da Frederico Coelho13 faz uma distinção manteve de 1964 até o Ato 5 uma rela-
própria canção, na época? que pode ser muito produtiva nos tiva hegemonia na cultura do Brasil, via
Pedro Bustamante Teixeira – estudos acadêmicos desenvolvidos na nova abordagem proposta por Cae-
Como já dissemos, sem a televisão cer- sobre o assunto. O pesquisador sepa- tano e Gil uma rendição incosequente
tamente não haveria o susto tropicalis- ra o tropicalismo musical da tropicá- ao mercado e uma adesão ao projeto
ta12. O susto tropicalista só é possível lia. Segunda a sua divisão, o primeiro de modernização proposto pelos mili-
através das transmissões dos festivais e diz respeito ao lado musical do movi- tares. Curiosamente, essas suspeitas
dos programas tropicalistas. Só é pos- mento e está centrado nas figuras de só seriam sanadas com a chegada mais
sível com a subversão da imagem do Gilberto Gil e Caetano Veloso; o se- que tardia da notícia da prisão de Gil
artista de televisão, a adoção de trajes gundo, mais abrangente, faz menção e de Caetano. Poucos sabiam, na épo-
e penteado indiscretos, das guitarras e a diferentes áreas artísticas e não se ca, o que realmente tinha acontecido
dos gritos. A transmissão da juventude centra em uma área específica. No aos dois. E, além do mais, quando eles
sorridente do rock em meio aos festi- entanto, como o lado musical, no mo- puderam retornar do exílio em 1972,
vais da música popular brasileira re- mento tropicalista, está muito imbri- ainda não havia espaço para maiores
duzia um preconceito e uma resistên- cado com os demais, acho a tarefa um esclarecimentos.
cia que se preservavam apenas pelo tanto quanto complicada. Um campo
medo do diferente. A transmissão des- alimenta o outro, um artista de uma O adeus
sas imagens ao vivo evitava qualquer área está sempre influenciando um Ademais, não lhes interessava
apropriação indébita. Os rostos jovens artista de outra área. Havia uma cena mais essa briga; o objetivo do movi-
e sorridentes dos Mutantes, acom- artística muito diversificada que se mento já tinha sido de algum modo
panhando Gilberto Gil e a orquestra frequentava. Não é fácil fazer o inven- alcançado. As estruturas estéticas já
regida por Duprat, falavam por si só. tário do movimento. Gosto muito da estavam descerradas. Além do mais,
O sorriso de Caetano enfrentando as fala de Gil no documentário Tropicá- era preciso seguir em frente, pois já
vaias, para defender Alegria, alegria, lia, em que ele diz: “Tropicália é uma tinham perdido tempo demais de tra-
também. A televisão foi a plataforma ilha, um território, uma utopia”, “o – balho. O mal-entendido que houve se
ideal para os happenings tropicalistas. ismo era coisa de momento”, passou. estendeu e foi de tal maneira recal-
Transmitiu o início, no Festival da Re- cado que, volta e meia, ainda pesam
cord, em 1967, e o seu enterro, no pri- IHU On-Line – Podemos dizer denúncias contra o movimento. Uma
que, à época, nem todo mundo en- das motivações para que Caetano Ve-
tura móvel. Em 1965, foi expulso de uma tendeu o tropicalismo? Por quê? loso escrevesse Verdade tropical era a
mostra no Museu de Arte Moderna do Rio Pedro Bustamante Teixeira – Se o de desfazer os malentendidos, recon-
de Janeiro por levar ao evento integran- tando em detalhes a sua parte nessa
tes da Mangueira vestidos com parango- tropicalismo hoje ainda é mal entendi-
lés. A experiência dos morros cariocas fa- do, imagine só naquele momento. Na história, mas essa história não termina
zia parte da dimensão da sua obra. (Nota época, ainda pesava uma dupla suspei- aqui: ainda têm o ensaio de Schwarz
da IHU On-Line) de 2012, as respostas e as canções.
9 Lygia Clark (1920-1988): brasileira,
ta em relação à tropicália. Por um lado,
ela era acusada de servir aos interesses
www.ihu.unisinos.br

pintora, escultora, auto intitulou-se não-


artista. (Nota IHU On-Line) da ditadura militar e do imperialismo
10 Rubens Gerchman (Rio de Janeiro, 10
de janeiro de 1942 — São Paulo, 29 de ja-
neiro de 2008): artista plástico brasileiro,
ligado a tendências vanguardistas como a
13 Frederico Oliveira Coelho: possui
graduação em História pela Universidade Leia mais...
pop art e influenciado pela arte concre- Federal do Rio de Janeiro – UFRJ,
ta e neoconcreta. O artista usou ícones Mestrado em História Social pela mesma >> Pedro Bustamante Teixeira já
de futebol, televisão e política em suas Universidade e Doutorado em Literatura
obras. (Nota da IHU On-Line) Brasileira pela PUC-Rio. Entre 2001 e concedeu outra entrevista à IHU On-
11José Agrippino de Paula (São Paulo, 13 2009 foi pesquisador do Núcleo de Estudos
de julho de 1937 – Embu, 4 de julho de Musicais (NUM) da Universidade Cândido Line. Confira:
2007): escritor brasileiro. Dentre os livros Mendes e atualmente é pesquisador do • O samba como símbolo de brasilida-
de sua autoria se destaca PanAmérica NELIM (Núcleo de Estudos de Literatura
(1967), obra fundamental para o desen- e Música) da PUC-Rio. Desde março deste de. Entrevista publicada na Revista
volvimento do movimento da Tropicália. ano, é professor dos cursos de Literatura
(Nota da IHU On-Line) e Artes Cênicas (atual coordenador) no IHU On-Line, edição 380, de 14-11-
12 Termo usado por Heloísa Buarque de Departamento de Letras da PUC-Rio.
2011, disponível em http://migre.
Holanda em seu livro Impressões de Via- O docente participa desta edição da
gem: CPC, vanguarda e desbunde. (Nota IHU On-Line, com entrevista sobre o me/cefSq
do autor) Tropicalismo (Nota da IHU On-Line)

20 SÃO LEOPOLDO, 10 DE DEZEMBRO DE 2012 | EDIÇÃO 411


Tema de Capa
Tropicalismo, “força fatal” da
música popular
Como o tropicalismo foi um dos primeiros momentos de uma sensibilidade
globalizada no Brasil (ou pós-moderna, se quiserem), ele permanece cada dia mais
atual e cada vez mais atuante entre nós, assinala Frederico Oliveira Coelho

Por Thamiris Magalhães e Graziela Wolfart

“O
tropicalismo, como movimento, calismo, como disse uma vez Rogério Duarte,
não tinha objetivo. Ou, se tinha, foi o desejo de uma modernidade amorosa
era a fixação de uma nova ima- para o Brasil”.
gem e um novo discurso sobre a modernida- Frederico Oliveira Coelho possui gradua-
de brasileira. Isso também foi, de certa forma, ção em História pela Universidade Federal do
atingido, mas em longo prazo. Como a músi- Rio de Janeiro – UFRJ, mestrado em História
ca também, aliás. Demorou décadas para o Social pela mesma Universidade e doutorado
mundo absorver a proposta tropicalista”, en- em Literatura Brasileira pela PUC-Rio. É pes-
fatiza Frederico Oliveira Coelho, em entrevista quisador do Núcleo de Estudos de Literatura
concedida por e-mail à IHU On-Line. Para ele, e Música – NELIM da PUC-Rio. Trabalha como
o que houve de mais original no tropicalismo pesquisador para documentários, sítios ele-
foi a liberdade de fazer música e cultura de trônicos, editoras e instituições culturais. Des-
acordo com sua própria sensibilidade, suas de março deste ano é professor dos cursos de
próprias ideias, sem ter que definir a priori ca- Literatura e Artes Cênicas (atual coordenador)
minhos, discursos e representações estáticas no Departamento de Letras da PUC-Rio.
que circulavam no país e no mundo. “O tropi- Confira a entrevista.

IHU On-Line – Em seu livro Eu, ra – MPB no âmbito da cultura de Frederico Oliveira Coelho – O
brasileiro, confesso a minha culpa e massas e da contracultura mundial. período dos anos 1960 foi uma das
meu pecado você faz uma distinção Em 1968, esses dois eixos radicais chamadas “épocas de ouro” da mú-
entre tropicália e tropicalismo mu- de pensamento sobre a modernida- sica popular feita no Brasil. É nesse
sical. Quais seriam as razões dessa de brasileira confluem em ações co- período que a sigla MPB ganha espa-
escolha? muns que resultam no que viria a se ço e reduz os demais gêneros da can-
Frederico Oliveira Coelho – As chamar após 1968 de “cultura mar- ção popular (samba, bolero, baião,
www.ihu.unisinos.br
razões da divisão entre tropicália ginal” ou “marginália”. Digo sempre balada, samba-canção, bossa nova)
e tropicalismo musical ocorreram que o papel do movimento musical a um grande nome guarda-chuva. A
devido à necessidade de demarcar foi fundamental para a expansão música dos anos 1960 concentra em
dois eixos históricos de ação cultural das ideias contidas na tropicália de poucos anos os desdobramentos da
no Brasil dos anos 1950-1960. Um, Oiticica, já que os músicos levaram bossa nova de 1959, a politização cul-
vindo dos desdobramentos do movi- debates do âmbito das artes visuais tural do país via CPC da União Nacio-
mento neoconcreto carioca, do cine- para a cultura de massas, programas nal dos Estudantes – UNE, Teatro de
ma novo, dos debates no âmbito da de televisão, entrevistas em jornais Arena e as canções engajadas de Edu
Nova Objetividade Brasileira, tudo e shows pelo país. Lobo1, Sérgio Ricardo2, Sidney Miller,
que desaguou no conceito “tropi-
cália”, cunhado por Hélio Oiticica. IHU On-Line – Como você avalia
1 Eduardo de Góes Lobo, conhecido
Outro, vindo da experiência de jo- a produção da música popular bra- como Edu Lobo (1943): cantor, composi-
vens músicos e intelectuais baianos, sileira nos anos 1960-especialmen- tor, arranjador e instrumentista brasilei-
cariocas e paulistas ao redor dos te em 1967, que é quando surge o ro. (Nota da IHU On-Line)
2 Sérgio Ricardo, nome artístico de João
dilemas da música popular brasilei- tropicalismo? Lutfi, (1932): cantor e compositor brasi-

EDIÇÃO 411 | SÃO LEOPOLDO, 10 DE DEZEMBRO DE 2012 21


os primeiros e brilhantes discos de escrita por Mariza Alvarez Lima, sai do que cinquenta anos atrás. O que
Tema de Capa
Nara Leão3, a entrada do pop rock quase ao mesmo tempo que o AI-5 circula pela web são centenas de ati-
juvenil que vinha dos EUA e demais (dezembro de 1968). Portanto, de- vismos políticos, músicas, imagens e
países europeus e resultou na nossa pois do uso jornalístico, “marginália” obras de arte que são compartilhados
jovem guarda, a retomada do chama- passa a designar ações e ideias que por todos. Como demarcar o seu lugar
do “samba de morro” por parte de estariam vinculados a essa radicali- específico de diferença em relação ao
uma juventude urbana universitária zação que vinha ocorrendo em 1968. “sistema”, ao mainstream ou algum
e, claro, a complexificação do cená- Eventos como Apocalipopótese e o grande “inimigo cultural”? O tropica-
rio musical a partir do tropicalismo e Seminário Cultura e Loucura (organi- lismo, grosso modo, foi um movimen-
seu diálogo aberto com as vanguardas zados por Oiticica, Rogério Duarte e to feito “de fora para dentro”. Não
musicais brasileiras (Rogério Duprat), Frederico Morais), os shows dos tro- foram seus participantes que reivindi-
os grupos de pop rock que surgiam picalistas (com a bandeira “Seja mar- caram o nome ou a articulação entre
(Mutantes) e o diálogo direto com o ginal, seja herói”, também de Oiticica, diferentes áreas. Quem fez isso foi a
arquivo popular da música brasileira como cenário), seus programas agres- imprensa da época e a crítica cultural.
(Luiz Gonzaga4, Vicente Celestino, Do- sivos na televisão como Divino Ma-
rival Caymmi5). A síntese entre a ban- ravilhoso, filmes como O Bandido da IHU On-Line – Qual era o prin-
da de pífaros de Caruaru e Sargent Luz Vermelha de Rogério Sgaznerla e cipal objetivo do tropicalismo? O se-
Peppers dos Beatles resultou em um Câncer de Glauber Rocha, enfim, uma nhor acha que foi alcançado?
produto musical brasileiro e universal, série de eventos foi constituindo um Frederico Oliveira Coelho – Ca-
renovador dos impasses típicos do espaço em comum de ação ao redor etano Veloso sempre disse na época
pensamento de esquerda do período da representação do marginal urbano que o principal objetivo do que eles
que dividia a produção cultural entre brasileiro. A marginália não é um mo- estavam fazendo na música era acabar
engajados (brasileiros, populares) e vimento coeso, pois não têm manifes- com o “bom mocismo” zona sul-ca-
alienados (estrangeiros, massifica- tos nem eventos fundadores, mas ela rioca que existia ao redor da música
dos). 1967 é o ano que em um único é uma movimentação importante na brasileira de sua geração. Todos eram
festival todos esses movimentos e virada dos anos 1960-1970 no Rio de passivos em relação a uma tradição,
movimentações ao redor da música Janeiro, em São Paulo, em Salvador e sem aplicar violência e radicalidade
popular brasileira se concretizam e outras cidades do país. nas experimentações e possibilidades
explodem para todo o público – e em de transformar a música brasileira em
cadeia nacional. IHU On-Line – Nos anos 1960 e uma música de qualidade universal.
1970 no Brasil tivemos alguns mo- Isso, sem sombra de dúvida, eles con-
IHU On-Line – É possível reco- vimentos capazes de reunir artistas seguiram. Hoje, os Mutantes são vis-
nhecer a marginália como um movi- de diferentes áreas de atuação. Você tos como uma das melhores bandas
mento? Qual seria a sua ligação com acredita na possibilidade de novos de rock do mundo, e não do Brasil. Os
a tropicália? movimentos artísticos de porte seme- grandes nomes da cultura internacio-
Frederico Oliveira Coelho – A lhante no cenário contemporâneo? nal sabem ao menos em linhas gerais
marginália foi, antes de tudo, uma Frederico Oliveira Coelho – Não o que foi o tropicalismo brasileiro. Oi-
palavra para amarrar em uma matéria acredito, pois hoje a lógica de ação ticica é um dos maiores nomes da arte
da revista O Cruzeiro um feixe amplo cultural mudou bastante. Temos no- brasileira no mundo etc. Mas o tropi-
de artistas e intelectuais que flerta- vas formas de associativismo estético calismo, como movimento, não tinha
vam no final de 1968 com a radicali- que passam por coletivo sem ação objetivo. Ou, se tinha, era a fixação de
zação do seu discurso político frente conjunta articulando arte e mercado, uma nova imagem e um novo discurso
à violência e miséria social existente como, por exemplo, o Fora do Eixo. sobre a modernidade brasileira. Isso
no regime militar do período. Não é Ou então esses movimentos que se também foi, de certa forma, atingido,
à toa que a matéria com esse título, tornaram “ismos” eram típicos do mas em longo prazo. Como a músi-
www.ihu.unisinos.br

modernismo do século XIX/XX e hoje ca também, aliás. Demorou décadas


eles não trazem mais a coesão que para o mundo absorver a proposta
leiro. Incentivado por Carlos Lyra, passou
a inteirar-se de problemas políticos e so-
era necessária naquela época. Deve- tropicalista.
ciais, o que o levou a compor canções re- mos lembrar que as vanguardas que
tratando esses temas. Compôs o romance se organizaram em movimentos cole- IHU On-Line – Muitos acreditam
violado que originou a trilha e narração
do filme Deus e o diabo na terra do sol,
tivos batalhavam por espaços de atua- que o tropicalismo teve seu fim em
de Glauber Rocha. (Nota da IHU On-Line) ção, mudanças de paradigmas críticos 1968, quando Gil e Caetano são pre-
3 Nara Lofego Leão Diegues (1942-1989): e de criação, escreviam manifestos sos, confinados em Salvador e, en-
cantora brasileira. (Nota da IHU On-Line)
4 Luiz Gonzaga do Nascimento (1912-
demarcando posições políticas etc. tão, forçados a deixar o país. Porém,
1989): compositor popular brasileiro, Hoje, muitas das mudanças que ocor- muitos creem que mesmo no exílio
conhecido como o Rei do Baião. (Nota da rem através de coletivos são contami- de seus mentores o movimento resis-
IHU On-Line)
5 Dorival Caymmi (1914-2008): cantor,
nadas rapidamente por outras infor- tiu até 1972. Ou, ainda, fincou bases
compositor, violonista, pintor e ator bra- mações que circulam no mundo em de criação e avaliação artística que
sileiro. Compôs inspirado pelos hábitos, tempo real, fazendo com que rupturas permanecem até hoje. E o senhor,
costumes e as tradições do povo baiano
(Nota da IHU On-Line)
sejam mais tênues e menos chocantes acredita que há marcas do tropicalis-

22 SÃO LEOPOLDO, 10 DE DEZEMBRO DE 2012 | EDIÇÃO 411


mo ainda hoje em nossa sociedade. ou entre o erudito/culto e o popular/ Duarte, foi o desejo de uma moderni-

Tema de Capa
Por quê? massificado tornou-se regra na pro- dade amorosa para o Brasil.
Frederico Oliveira Coelho – Se dução musical brasileira e na cultura
pensarmos o movimento atrelado à como um todo. Como o tropicalismo IHU On-Line – Em relação às
biografia de Gil e Caetano, ele acaba foi um dos primeiros momentos de décadas de 1960 e 1970, a canção
em 1968, com a prisão deles. O que uma sensibilidade globalizada no Bra- teria perdido a importância, a sua
fizeram depois, em Salvador e no exí- sil (ou pós-moderna, se quiserem), ele potência?
lio, eram desdobramentos pessoais permanece cada dia mais atual e cada Frederico Oliveira Coelho – De
de seus trabalhos. Ambos abriram vez mais atuante entre nós. jeito nenhum. A canção é a forma
mão de serem líderes de qualquer mais sólida e estável da música bra-
movimento quando foram exilados. IHU On-Line – A seu ver, o sileira. As novas experimentações
(Entrevistas deles de 1969 deixam que houve de mais original no sonoras ao longo dos anos 1970 não
isso claro.) Mas, se quisermos pensar tropicalismo? serviram para enfraquecer a canção,
a questão do tropicalismo para além Frederico Oliveira Coelho – A li- mas sim para fortalecer e diversificar
dos dois principais compositores, ve- berdade de fazer música e cultura de seu formato. Hoje, com os diversos
remos que os discos de Gal Costa de acordo com sua própria sensibilida- recursos eletrônicos, ritmos como o
1969, 1970 e 1971 são totalmente de, suas próprias ideias, sem ter que funk, o rap, o dub, o drone, os muitos
tropicalistas, assim como os trabalhos definir a priori caminhos, discursos e rocks, a canção continua em expansão
dos Mutantes. E assim sucessivamen- representações estáticas que circu- no Brasil. Basta ver trabalhos como os
te. O tropicalismo, como movimento lavam no país e no mundo. A experi- da Céu, Lucas Santana, Romulo Fróes,
musical, está em tudo, como uma es- mentação como regra criativa, o gosto Seu Jorge, Siba, Marisa Monte, o su-
pécie de “força fatal” da música po- pelo risco e pelo enfrentamento do cesso avassalador dos Los Hermanos
pular, já que sua abertura radical para consenso, a uso estratégico da cultura anos atrás, enfim, uma gana de artis-
o mundo, a quebra da ideia classista de massas como espaço de subversão tas que ainda seguram a canção como
de bom gosto e o cruzamento deli- (e não de alienação passiva). O tropi- gênero hegemônico e presente na
berado entre “alta” e “baixa” cultura calismo, como disse uma vez Rogério música brasileira.

Baú da IHU On-Line


A IHU On-Line abordou temas ligados à música em diversas edições. Confira:
• Jazz. O som da surpresa. Edição 139, de 02-05-2005, disponível em http://bit.ly/TJcnLW
• Rock ‘n’ roll na veia. Edição 212, de 19-03-2007, disponível em http://bit.ly/ySPITJ
• Chega de saudade... Bossa Nova, 50 anos. Edição 08-09-2008, disponível em http://bit.ly/YzDFvb
• Canção: a palavra cantada. Edição 380, de 14-11-2011, disponível em http://bit.ly/RBpFxW

Confira também a edição especial da IHU On-Line sobre a Semana da Arte Moderna, movimento que tem profundas
www.ihu.unisinos.br
ligações com a Tropicália:
• Semana de Arte Moderna. Revolução ou mito? Edição 395, de 04-06-2012, disponível em http://bit.ly/KceMZx

Saiba mais sobre a formação cultural do Brasil, bem como sobre alguns de seus grandes intérpretes acessando as seguin-
tes edições da IHU On-Line:
• Intérpretes do Brasil: A redescoberta do Brasil como problema. Edição 165, de 21-11-2005, disponível em
http://bit.ly/VCkZp1
• Raízes do Brasil. Edição 205, de 20-11-2006, disponível em http://bit.ly/SMypxY
• Macunaíma: 80 anos depois. Ainda um personagem para pensar o Brasil. Edição 268, de 11-08-2008, disponível em
http://bit.ly/Lgf55q
• Machado de Assis e Guimarães Rosa: intérpretes do Brasil. Edição 275, de 29-09-2008. Disponível em http://bit.ly/THA6hz
• Euclides da Cunha e Celso Furtado. Demiurgos do Brasil. Edição 317, de 30-11-2009, disponível em http://bit.ly/VjTxKW

EDIÇÃO 411 | SÃO LEOPOLDO, 10 DE DEZEMBRO DE 2012 23


Tema de Capa
Tropicália, contracultura e
indústria cultural
Antropofagia tropicalista devorava informações estrangeiras, em ato de canibalismo
cultural, e ressignificava essas contribuições com aquilo que pode ser apontado como
nossa melhor tradição, analisa Armando Almeida

Por Armando Almeida

“P
roduto e esforço de atualização de como o foi o modernismo em relação à elite
nossa história, segundo o ponto de intelectual paulista.
vista de jovens barrocos baianos Graduado em Ciências Econômicas pela
que a lideraram”, a tropicália não deve ser vis- Universidade Federal da Bahia – UFBA, Ar-
ta como algo exótico, muito menos inusitado. mando Ferreira de Almeida Júnior é mestre
“O Brasil já não era tão periférico assim”, ob- em Economia Rural pela Univesidade Federal
serva Armando Almeida no artigo inédito que da Paraíba – UFPB, e doutor em Cultura e So-
escreveu para a IHU On-Line. Ele frisa que ciedade pela UFBA com a tese A contracultura
esse movimento foi a “mais completa tradu- e a política que o Ilê Aiyê inaugura: relações
ção da contracultura entre nós”. de poder na contemporaneidade. É consul-
Contudo, ressalva que tratou-se de uma tor da Organização das Nações Unidas para a
manifestação de classe média alta, assim Educação Ciência e Cultura – UNESCO.
Confira o artigo.

A tropicália, além das questões quando ela se mostra mais nitida- dente afora. No Brasil a tropicália foi
estéticas, mais próximas aos concei- mente para a grande massa, são exa- uma dessas. Em 1968, em especial,
tos de beleza artística e literária, foi a tamente os anos da tropicália. Quan- entrávamos na fase mais dura da di-
mais completa tradução da contracul- do ela nasce, cresce e morre, segundo tadura militar que resistiria por mais
tura entre nós. Não foi a única, mas seus autores. Isso não acontece por de 20 anos. A despeito de tudo isso,
foi a mais significativa. Principalmente mera coincidência. Havia entre elas tal contexto não impediu que no Bra-
porque revolucionou a cultura bra- uma sintonia fina. São produtos de sil florescessem movimentos estético-
sileira, mobilizando grandes massas. uma época global. O que os jovens -políticos como a tropicália, e que
As afinidades eletivas entre as duas já americanos trouxeram para debate aquelas inquietações que marcaram o
www.ihu.unisinos.br

chamam a atenção de alguns estudio- naqueles últimos anos da década de Ocidente no final dos anos 1960 e iní-
sos faz muito tempo1. Estética e políti- 1960, embalados pelo rock ’n’ roll e cio dos anos 1970 deixassem de con-
ca foram inseparáveis naqueles anos. ilustrados pela pop art e o psicode- taminar grande parcela da juventude
As principais lideranças da tropi- lismo combinava com os anseios de local, tornando-se quase uma marca
cália tornaram-se grandes expressões amplas massas urbanas de grandes da juventude desta década também
da crítica comportamental. Ela é con- cidades do mundo ocidental. Em vá- no Brasil.
temporânea de novas formas ociden- rios aspectos afinava-se com um novo No centro desta transformação
tais de fazer política. pensamento de esquerda, crítico ao está o novo papel que a cultura – re-
Os anos mais efervescentes da comunismo ortodoxo e preocupado presentada sobretudo por uma radical
contracultura (entre 1967 e 1969), com as liberdades sexuais e compor- mudança de valores e costumes – pas-
tamentais. A tropicália é expressão sa a ocupar no território da política. A
1 Destaco, em especial, Dunn (2001)
brasileira do “turn pointing” de uma contracultura, a tropicália e muito do
por estar este trabalho voltado exata- época. que se identifica como pós-moderno
mente ao estudo de suas relações, da Foram muitas as invenções e são expressões desta mudança.
tropicália com a contracultura. (Nota
do entrevistado)
traduções da contracultura pelo Oci-

24 SÃO LEOPOLDO, 10 DE DEZEMBRO DE 2012 | EDIÇÃO 411


Tropicália é produto e esforço de estético-políticos idealizados pelas es- Brasil homogêneo, idealizado por

Tema de Capa
atualização de nossa história, segun- querdas de então, e ao mesmo tempo ufanismos. Uma das mais fortes mo-
do o ponto de vista de jovens barro- muito marcada por uma forte insatis- tivações da atitude tropicalista, sem
cos baianos que a lideraram. Não é fação quanto à nossa realidade social. sombra de dúvida, está relacionada
algo exótico, muito menos inusitado. Já vivíamos em uma aldeia global. a um firme posicionamento contrá-
O Brasil já não era tão periférico as- O rock ’n’ roll internacionalizou-se ra- rio a certo nacionalismo estético e
sim. Já tinha um “Parque industrial”2 pidamente, foi a música daquele tem- cultural predominante, sobretudo na
montado. Eles estavam atendendo às po. Os tropicalistas se apropriaram e intelligentizia brasileira, para quem
exigências que nossa melhor tradição absorveram este patrimônio cultural, – por sinal – mais se dirigiram as crí-
lhes impunha. A antropofagia os unia. reprocessando-o de acordo com nos- ticas dos tropicalistas. Preocupações
“Socialmente. Economicamente e Fi- sas circunstâncias e nossas ferramen- bem menos presentes na maioria da
losoficamente”, como diria Oswald de tas. Posicionando-nos no curso da população, diga-se de passagem. A
Andrade. história. Colocaram o rock dentro do tropicália foi um movimento de classe
As redes de informação que co- enorme caldeirão de estilos musicais média e média alta, como foi o mo-
meçavam a se agigantar a partir da- brasileiros, incorporando-o e criando dernismo um movimento da elite in-
queles anos terminariam por alterar a novos formatos. telectual paulista. Eram todos jovens
lógica das relações entre centro e pe- Ao mesmo tempo a tropicália foi universitários em certo sentido. Como
riferia. As fronteiras passam a ser mais um movimento antiufanista que teve eram também aqueles que estavam
tênues, indefinidas e cambiantes. O a coragem de enfrentar anacronismos comprometidos com as canções de
planeta passava então a se comparti- e nacionalismos populistas; o gosto protesto cepecistas e os festivais da
lhar culturalmente como nunca havia estabelecido, o maniqueísmo antia- canção. Ambos disputavam uma fa-
acontecido. Naqueles anos o mundo mericano dos que também faziam tia de mercado na emergente indús-
se conectava via satélite, as grandes oposição ao regime militar e que man- tria cultural brasileira. Buscavam uma
redes de televisão se expandiam, já tinham reservas elitistas em relação à hegemonia cultural e defendiam uma
anunciando a globalização. Estava cultura de massa e à indústria cultu- ideia de Brasil na mídia.
também começando o poderio cul- ral. Isso foi feito sem idealizar o outro
tural, econômico e político da Rede e sem glorificar o nosso, expondo um Canibalismo cultural
Globo de Televisão no Brasil. Em 1970 Brasil cheio de contrastes a cada can- Na base desta discussão está
pudemos assistir à Copa do Mundo ção. Para isso a tropicália processou um conceito de identidade cultural.
instantaneamente. Um ano antes ha- antropofagicamente aquele momen- A busca de uma “autenticidade” pro-
víamos visto as imagens do homem to e várias das dimensões libertárias vocada pelo conflito entre inovação e
chegando à Lua. Em 1972 já tínhamos que a contracultura americana pôs tradição. Uma antiga e nova questão,
TV colorida. Naquela altura, mais da em discussão, identificando, dige- presente desde que o Brasil passou a
metade de nossa população já mora- rindo e traduzindo aquilo que dela pensar-se como nação. É esta, pois,
va nas cidades3. Tínhamos definitiva- cabia em nosso contexto, assumindo a questão central do movimento an-
mente deixado de sermos rurais. também muito de seus desafios. Em tropofágico de Oswald de Andrade:
nome de um Brasil sincrético, ao mes- a bossa nova, a poesia concreta e o
Projeto de brasilidade mo tempo internacional, arcaico e fu- tropicalismo são ícones contemporâ-
anti-ufanista turista. Ao contrário do que a palavra neos, incontestáveis produtos made
Além disso, a tropicália surge em levava a crer, ao tropicalismo interes- in Brazil, são expressões de uma mes-
plena ditadura militar. Não apenas sava ressaltar o lado internacionali- ma atitude diante da arte e da cultura.
contra ela. Uma atitude política assu- zante da cultura urbana ocidental (VE- Uma atitude antropofágica de quem
mida através da música popular, com- LOSO, 1997). Ele fundia nacional com devora (para ser fiel à metáfora) a in-
prometida com o meio urbano, com a internacional. Foi um posicionamento formação estrangeira, num ato de ca-
universalização de seus valores e con- brasileiro enquanto terceiro mundis- nibalismo cultural, sem imitá-la, tiran-
www.ihu.unisinos.br
tra autoritarismos de um modo geral. ta4, de maneira extremamente crítica do o que dela pode melhor contribuir
Apropria-se de patrimônios culturais a si próprio, enquanto país com altos para o que fazemos, unindo-a a nossa
universais para realizar uma interven- níveis de desigualdade social e que melhor tradição, e criando com isso
ção no campo cultural, deliberada- vivia sob uma ditadura militar. Reali- algo novo, voltado para o Brasil de
mente em desacordo com os modelos dade bem diferente da americana e hoje, reinventando-se e sendo capaz
europeia, mas nem por isso menos de competir no mercado de igual para
2 Título de uma canção do disco ma- complexa. igual, e de ser exportado ao mesmo
nifesto Panis et circenses, de Caetano Foi também um projeto de bra- tempo. A tropicália era um projeto de
Veloso e Gilberto Gil, 1968. (Nota do modernização do Brasil, dntro de um
entrevistado)
silidade, que ia na contramão de um
3 Em 1970 a população urbana brasi- espírito universalista, em diálogo com
leira já representava 56% do total, em seus contemporâneos. Era uma ex-
1996 chegava 78% e em 2009 estima- 4 Como era muito comum de se dizer pressão de seu tempo.
-se que esteja em torno de 90%. Dis- na época. Ainda não éramos emergen-
ponível em: <http://www.ibge.gov.br/ tes. Para muita gente nosso subdesen- Assim se expressou sobre o as-
home/ estatistica/populacao/censo- volvimento era estrutural. Vale ver esta sunto Caetano Veloso em suas me-
historico/1940_1996.shtm>. (Nota do discussão em Buarque (1980). (Nota do mórias reflexivas, seu livro Verdade
entrevistado) entrevistado)

EDIÇÃO 411 | SÃO LEOPOLDO, 10 DE DEZEMBRO DE 2012 25


tropical: “Os pruridos nacionalistas
“Coerentemente, uma tradição que marca a atitude de
Tema de Capa
nos pareciam tristes anacronismos. nossos compositores populares em
Ao mesmo tempo, sabíamos que
queríamos participar da linguagem a tropicália foi várias épocas. Há muito tempo mistu-
ramos chiclete com banana. De modo
mundial para nos fortalecermos
como povo e afirmarmos nossa ori- também um que, o que Caetano disse sobre a bos-
sa nova se encaixa perfeitamente so-
ginalidade” (1997, p. 292). Sob esse bre o que nós poderíamos dizer sobre
aspecto, a eficácia da música popular posicionamento a tropicália: “significa violência, rebe-
brasileira é incontestável. Ela é uma lião, revolução e também olhar em
parte do Brasil que deu certo. Nun- no mercado. Os profundidade e largueza, sentir com
ca precisou de reserva de mercado. intensidade e coragem, querer com
Tem convivido com a música de ou- tropicalistas não decisão” (2005, p. 47). Aliás, acaba de
tros países e regiões de igual para assim dizer também em uma de suas
igual, interagindo, incorporando e se intimidaram mais novas canções: “A bossa nova é
estilizando. foda” (2012).
Muito cedo os tropicalistas refe-
renciaram-se em Carmem Miranda.
diante da Eles sabiam que uma forte pre-
sença no mercado faria a diferença. O
Não apenas pelo que ela expõe de um
Brasil estereotipadamente sensual,
indústria cultural. disco manifesto fez declaradamente
parte de uma estratégia de lançamen-
alegre e colorido, como diria Caetano,
mas também como símbolo da acei-
Ao contrário, to do grupo (VELOSO, 1997, p.147).
Em sua contracapa esta preocupação
tação do desafio de atuar por dentro
da cultura de massa. Coerentemente,
montaram uma e determinação estão explicitadas
através de uma suposta entrevista
a tropicália foi também um posiciona-
mento no mercado. Os tropicalistas
estratégia para que deixa claro saber tratar-se de um
produto destinado ao mercado. Uma
não se intimidaram diante da indús-
tria cultural. Ao contrário, montaram atuar dentro dela” mercadoria mudando sensibilidades
e atitudes, esta era a prova dos nove
uma estratégia para atuar dentro do que se queria. As capas foram tam-
dela. Certos de que nela poderiam ter bém revolucionárias, um capítulo à
uma margem de manobra para provo- Destruição das fronteiras parte, aliás. Afinal, elas são a embala-
car uma reflexão sobre o Brasil, e fazer Os tropicalistas sabiam que iriam gem do produto disco. A primeira im-
história. Estavam deliberadamente enfrentar os mais poderosos forma- pressão que dele terá o consumidor.
com as massas. dores de opinião do país, e a acade- Esta dessacralização da obra artística
O sucesso foi muito bem plane- mia, todos portadores de uma cons- que os tropicalistas promovem re-
jado. Sabiam que tinham que ser de ciência para o povo e empenhados duz fronteiras culturais entre classes
massa para fazerem vingar seus pro- em “preservar a pureza das tradições sociais; a exemplo do que fizeram os
jetos. Como todos os que se aventu- nacionais”, o que quase sempre o fa- Beatles, destruindo fronteiras entre a
ram pelo mundo do show business, ziam naturalizando nosso subdesen- alta cultura e a cultura de massa. Sem
precisavam do sucesso. Só assim volvimento, compreendido como par- concessões à qualidade, pode-se dizer
poderiam transformar quantidade te de nosso caráter5. que a tropicália alterou valores e com-
em qualidade, como fizeram. Não ti- Eles sabiam exatamente o tama- portamentos através do mercado.
nham medo do mercado, como se vê. nho da confusão que causariam ao Aproximou o erudito do popular de
Não era outra coisa o que também saírem determinados em defesa do uma maneira muito original. Através
almejava Oswald de Andrade: con- pop internacional, e de um iê-iê-iê do mercado os tropicalistas promove-
quistar o consumo de massa com o nacional. Havia entre os tropicalistas ram a convivência com a pluralidade
www.ihu.unisinos.br

biscoito fino que fabricava, rompen- o compromisso de dar um passo além de estilos, destruindo hierarquias e
do explicitamente com a contradição da bossa nova, de seguir criticamente desrespeitando fronteiras entre clas-
entre ser de qualidade e ser de mas- sua “organicidade evolutiva”6, inspira- ses sociais, e entre níveis de educação
sa. Um posicionamento totalmente dos em sua antropofágica lição, fiéis a (CAETANO, 1997). Tal qual beats e hi-
contrário ao da Escola de Frankfurt, ppies, os tropicalistas também valori-
aliás, para quem a indústria cultural 5 “Nego-me a folclorizar meu subdesen-
zam as margens da cultura letrada.
a tudo degrada. Contraditoriamente, volvimento para compensar as dificulda- O pop, a urbanidade e a indus-
ou não, a contracultura que renega des técnicas”, disse Caetano em dois de- trialização, muitas vezes, se confun-
poimentos dados em 1967 e 1968, respec-
a sociedade de consumo se expande tivamente à revista Manchete e Realida-
dem. Jorge Mautner em entrevista
através dela. Cada uma das tribos ur- de (1997, p. 207). (Nota do entrevistado) concedida ao jornal O Bondinho, ao
banas que por ela se organiza, tam- 6 Expressão usada por Caetano para ser questionado sobre a industrializa-
ilustrar esta ideia em artigo publicado em
bém intermediadas pelo mercado, 1965, em uma revista baiana chamada
ção da contracultura como algo que
toma forma, muitas vezes, de nicho Ângulos, depois republicado no livro lhe retirava a pureza e a autenticida-
que não só padroniza, mas também Alegria, Alegria de Caetano Veloso. Rio de, que a contaminava pelo alto con-
de Janeiro: Pedra Q Ronca, 1977, p.10.
customiza. (Nota do entrevistado)
sumo, se posiciona considerando ino-

26 SÃO LEOPOLDO, 10 DE DEZEMBRO DE 2012 | EDIÇÃO 411


cente tal ponto de vista. Isso porque, passa a ser de outra qualidade, e para barreiras convencionais entre os se-

Tema de Capa
na base desta discussão está uma pre- outro desenho de público. xos, as classes sociais e os graus de
tensão de “neutralidade” do produto Para a esquerda mais tradicio- cultura e também entre as diferentes
artístico, imaculado, único, monolítico nal, questões de sexo, religião, raça, culturas e entre faixas etárias, para
e autônomo, com uma aura que se relações homem/mulher e relações atingir um individualismo pluralista
esvai quando massificado. Um ponto homem/natureza eram questões me- nuançado dentro do mais generoso
de vista que não enxerga estarmos nores. Algumas, em parte, continuam espírito comunitário.
cercados por uma sociedade de con- sendo menores para esta esquerda. O neo-rock ’n’ roll inglês e o
sumo, que a tudo absorve e integra, Ou, muitas vezes só não o são de fa- maio francês, o tropicalismo brasi-
e que quando costumes e linguagens chada, isto é, para manter as aparên- leiro, o popismo nova-iorquino e o
passam a ser por ela adotados isso só cias. São questões que avançaram hippismo californiano – todos parti-
pode significar uma vitória, pois que tanto em um âmbito mais geral que ciparam desse clima de ideias. Esse
representa a infiltração de outra cul- chegaram a tornar politicamente in- programa utópico traria problemas,
tura sobre aquela que é dominante, correto não reconhecer suas perti- perderia a medida do possível e
dando-lhe outro colorido (CARDOSO, nências. Entretanto, ainda há muito encontraria reações violentas e/ou
2008). Esta é uma sutileza da batalha até que esta institucionalização se cul- obstinadas que fatalmente o leva-
que se dá no campo da cultura. Nun- turalize, para que supere o universo riam a uma retração. Eu, pessoal-
ca se a conquista em todos os níveis. formal e faça naturalmente parte de mente, com toda a luta para manter
Sempre representa um pacto, a for- nossas rotinas a assunção de outro a lucidez e o poder de julgamento
mação de um consenso social. Por comportamento sobre aquelas ques- sobre tais ambições e os métodos
isso é uma questão de hegemonia, tões. O que significa dizer, em última intuídos para tentar levá-las a cabo,
por isso é cultural. Dito de outra ma- instância, até que sejam incorporadas nunca me senti inclinado a abrir
neira, seu resultado desloca o “con- culturalmente. É precisamente nesse mão do essencial desse ideário”.
trato social” vigente, impregnando-o território, no da mudança de com- (VELOSO, 2005, p. 276)
de novos sentidos para a vida. Uma portamento, sensibilidade e visão de
compreensão que contrasta total- mundo através dos grandes meios de
mente com a ideia de algo cooptado e comunicação de massa que os tropi- Referências Bibliográficas
diluído pela ideologia dominante7 que calistas e pós-tropicalistas foram e CAMPOS, Augusto de. O balanço da bossa
não enxerga o processo histórico e o têm sido mais eficazes em suas ações e outras bossas. 2. ed. São Paulo: Perspec-
nível da negociação política que lhe estético-políticas. tiva, 1974. 357p. (Coleção debates, 3)
dá legitimidade. A contracultura foi também CARDOSO, Jary. Entrevista com Jorge
A radicalidade contracultural dos para o tropicalismo uma maneira de Mautner. In: JOST, Miguel; COHN, Sergio
tropicalistas vai crescendo aos pou- enfrentar a ditadura, como o foi para (Org.). Entrevistas Bondinho. Rio de Ja-
cos como pano de fundo. Ao lado da várias áreas da vida social e artísti- neiro: Beco do Azouge, 2008.
crítica estética que os tropicalistas ca, e para muitas tribos urbanas no DUNN, Christopher. Brutality Garden:
realizavam com suas obras, a crítica Ocidente. A proliferação da chama- Tropicália and the emergence of a brazil-
comportamental vai neles tomando da imprensa alternativa, nanica, un- ian counterculture. London: Chapell Hill;
uma dimensão ainda maior, se agi- derground e marginal atestam esta The University North Carolina Press, 2001.
gantando e tornando-se mais visível, diversidade.
FAVARETTO, Celso. Tropicália, alegoria,
sobretudo na fase pós-tropicalista Bom poder fechar citando Cae-
alegria. 3.ed. Cotia: Ateliê Editorial, 2000.
especialmente de Caetano Veloso e tano fazendo uma síntese sobre o as-
185p.
Gilberto Gil. sunto aqui em questão: contracultura,
tropicalismo e indústria cultural. A HOLLANDA, Heloísa Buarque. Impressões
Programa utópico citação abaixo foi retirada de um ar- de viagem – CPC, vanguarda e desbunde:
O engajamento muda de cor, tigo-depoimento que ele encaminhou 1960/70. São Paulo: Editora Brasiliense, www.ihu.unisinos.br
provocando hostilidades de todos para publicação na Folha de S.Paulo, 1980.199p.
os lados e ameaçando convenções em 21 de outubro de 1993, e que pos- SANTIAGO, Silviano. A permanência do
opressivas. Está em jogo outra relação teriormente veio a ser incluído em discurso da tradição no modernismo.
da arte com a política. Outra militân- uma coletânea de textos seus: São Paulo: Editora Companhia das Letras,
cia. O desatrelamento das práticas “Queríamos acabar com a hi- 1989. p. 94-123.
políticas vigentes não significou “dis- pocrisia, ampliar o campo de per- VELOSO, Caetano. Alegria, Alegria. Rio de
tanciamento do engajamento”. Em cepção, reencontrar a dimensão es- Janeiro: Pedra Q Ronca, 1977.
realidade, a arte participante agora piritual em nossa época de grandes
______. Utopia 2. Folha de S. Paulo, 25
massas, salvar o mundo. Queríamos
out. 1994. Caderno 6, p.12.
arte de vanguarda na indústria do
entretenimento e hábitos alimenta- ______. Verdade tropical. São Paulo:
7 Ver Favaretto (2000). À página 136
res ao mesmo tempo mais artificial- Companhia das Letras, 1997.
se vê que para ele o produto final da
antropofagia resulta uma “relativização mente criados e mais racionalmente ______. O mundo não é chato. Organiza-
alegre dos valores em conflito e (n)uma naturais. Queríamos radicalizar as do por Eucanaã Ferraz. São Paulo: Compa-
degradação contínua da informação”. nhia das Letras, 2005.
(Nota do entrevistado)
conquistas democráticas, romper as

EDIÇÃO 411 | SÃO LEOPOLDO, 10 DE DEZEMBRO DE 2012 27


Tema de Capa
Tropicália, marginália e a erosão
das fronteiras culturais
Influência tropicalista pode ser sentida até hoje, mas o movimento não deve ser
confundido com “mero ecletismo cultural”, frisa André Monteiro. Por vezes, velhos
tropicalistas se dobram à “máfia do dendê”

Por Márcia Junges, Thamiris Magalhães e Pedro Bustamante Teixeira

E
spécie de “neoantropofagismo” oswal- do ecletismo, com a indistinção do gosto ali-
diano, o tropicalismo devorava a tradi- mentar. Dentro da lógica antropofágica, não
ção cultural brasileira e realizava “uma é eticamente viável comer, por exemplo, Ivete
incorporação crítica, tanto da cultura pop Sangalo e arrotar Novos Baianos. O problema
internacional e da comunicação de massas é que essa confusão, às vezes, é promovida
como de referências do alto modernismo li- pelos próprios velhos tropicalistas, quando se
terário e da vanguarda concretista dos anos deixam dobrar pela “máfia do dendê” e pelos
1950”. A afirmação é de André Monteiro, em fascismos da indústria cultural”.
entrevista concedida por e-mail à IHU On- Graduado em Letras pela Universidade Fe-
-Line. Um dos grandes êxitos do movimento deral de Juiz de Fora – UFJF, é mestre e doutor
foi “ter conseguido entrar na indústria cul- em Letras pela Pontifícia Universidade Católi-
tural, normalmente conduzida por meca- ca do Rio de Janeiro – PUC-Rio, com a disser-
nismos duros de homogeneização estético- tação A ruptura do escorpião – ensaio sobre
-comportamental, sem se deixar tragar pela Torquato Neto e o mito da marginalidade (São
redundância de suas órbitas viciadas”. Para Paulo: Cone Sul, 2001) e a tese Incômodo e
Monteiro, a principal característica do tropi- Movimento – um plano pirata. Nessa mesma
calismo é distender as fronteiras entre alta instituição cursou pós-doutorado. Leciona na
cultura, cultura de massa e cultura popular. Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF
Houve, ainda, uma ampliação dessa postura e é autor de Ossos do ócio (São Paulo: Cone
marginal nos anos 1970 naquilo que se define Sul, 2001).
como “desbunde contracultural”. E provoca: Confira a entrevista.
“Antropofagia nada tem a ver com a frouxidão
www.ihu.unisinos.br

IHU On-Line – De que maneira o ticulando o discurso antropofágico circencis (disco-manifesto gravado em
senhor definiria o tropicalismo? Qual modernista de Oswald de Andrade, 1968) para se ter uma ideia da síntese
foi o grande êxito deste movimento? o tropicalismo, ao mesmo tempo em antropofágica tropicalista. Nela en-
André Monteiro – A distensão que devorava a tradição cultural brasi- contramos uma mescla de “macum-
entre as fronteiras das chamadas alta leira (do samba ao baião, de Carmem ba”, “Batman”, “iê- iê-iê” e “Obá” (ori-
cultura, cultura de massa e cultura Miranda a Vicente Celestino), realizou xá nagô feminino). A mise en page da
popular é o que define, a meu ver, uma incorporação crítica, tanto da letra da canção, por sua vez, é estrutu-
de forma mais contundente, o movi- cultura pop internacional e da comu- rada à maneira concretista, fundindo
mento tropicalista brasileiro do final nicação de massas como de referên- fundo e forma, já que se assemelha à
dos anos 1960. Como declarou Cae- cias do alto modernismo literário e da asa de um morcego.
tano Veloso, em entrevista a Augusto vanguarda concretista dos anos 1950. Navegando entre o luxo e o lixo,
de Campos, incluída em Balanço da Basta ver/ouvir, por exemplo, a letra para evocar o famoso poema concreto
bossa e outras bossas, “O tropicalis- da canção “Batmacumba”, de Gil e Ca- de Augusto de Campos, e rompendo
mo é um neoantropofagismo”. Rear- etano, gravado no antológico Panis et com a dicotomia “integrados” versus

28 SÃO LEOPOLDO, 10 DE DEZEMBRO DE 2012 | EDIÇÃO 411


“apocalípticos”, como diria Umberto
“A postura experimental e inusitado na música

Tema de Capa
Eco, o grande êxito do movimento popular brasileira, dos anos 1970 até
tropicalista foi ter conseguido entrar
na indústria cultural, normalmente marginal será, de hoje, de uma forma ou de outra, tem
relação com os tropicalistas. Quando
conduzida por mecanismos duros de
homogeneização estético-compor- muitos modos, penso num Clube da Esquina, num
Walter Franco, num Arrigo Barnabé,
tamental, sem se deixar tragar pela
redundância de suas órbitas viciadas. ampliada e, por num Chico Science, num Fernando
Catatau, penso que, por mais singu-
De algum modo, tal como sonhara
Oswald de Andrade, os tropicalistas vezes, radicalizada, lares que sejam esses personagens e
seus contextos, há uma relação deles
conseguiram fabricar e oferecer à
massa seu “biscoito fino”. nos anos 1970, com as portas que foram abertas por
Caetano, Gil, Tom Zé, Torquato, Capi-

IHU On-Line – Qual a diferença com o advento nam e os Mutantes. Nesse sentido, a
existência do tropicalismo foi, e é, ex-
entre tropicália e a marginália?
André Monteiro – Pode haver do chamado tremamente benéfica para a música
brasileira de invenção produzida nos
uma diferença, mas não uma opo-
sição, entre tropicália e marginália. desbunde últimos 40 anos.
Por outro lado, o tropicalismo
A própria expressão marginália foi
cunhada no contexto do tropicalismo, contracultural” se torna uma herança fraca quando
sua mistura antropofágica passa a ser
já que é o título uma letra de Torquato confundida, o que não é raro, com
Neto1 musicada por Gilberto Gil. Nela mero ecletismo cultural. Antropofagia
encontramos, além de uma descons- apresentam, cada uma delas, uma fo- nada tem a ver com a frouxidão do
trução explícita do discurso ufanista tografia de jornal do bandido carioca ecletismo, com a indistinção do gosto
brasileiro, algo típico das canções tro- Cara de Cavalo morto pelos “homens alimentar. Dentro da lógica antropofá-
picalistas, a imagem do poeta como de ouro” da Scuderie Le Cocq (a mes- gica, não é eticamente viável comer,
aquele que, em sua “negra solidão”, ma fotografia, aliás, foi estampada na por exemplo, Ivete Sangalo e arrotar
assume um “comportamento des- bandeira utilizada no já referido show Novos Baianos. O problema é que
viante” na “tropical melancolia” da tropicalista). Na foto, Cara de Cavalo essa confusão, às vezes, é promovida
vida ordinária. A postura marginal, aparece morto, estirado no chão e pelos próprios velhos tropicalistas,
que nos anos 1970 vai se tornar um com os braços pendidos para os lados, quando se deixam dobrar pela “máfia
rótulo comum para se referir a muitas causando uma impressão de crucifica- do dendê” e pelos fascismos da indús-
manifestações culturais, tais como “ci- ção. No fundo da caixa, há um saco tria cultural.
nema marginal” e “poesia marginal”, plástico contendo pigmentos verme-
já era uma bandeira que circulava no lhos, instalado sobre grades de ferro IHU On-Line – Como era vista,
contexto do tropicalismo dos anos que compõem o fundo da caixa. Sobre naquela época, a questão do des-
1960. Basta lembrar a famosa frase o saco plástico, lê-se: “Aqui está, e fi- bunde, e a reação da esquerda a esse
“Seja marginal, seja herói”, criada por cará! Contemplai o seu silêncio herói- posicionamento?
Hélio Oiticica e estampada em uma co.” Como já disse o Waly Salomão, André Monteiro – Desde os anos
bandeira no antológico e “agressivo” essa homenagem a Cara de Cavalo é 1960, havia uma divergência entre a
show tropicalista que Gil, Caetano e autorreferente, sendo uma fala da re- esquerda tradicional e os tropicalistas
os Mutantes realizaram na boate Su- sistência heróica do artista frente ao que, de muitas maneiras, já pratica-
cata em outubro de 1968 (o show foi mundinho cooptador dos marchands, vam o que, mais tarde, nos anos 1970, www.ihu.unisinos.br
interrompido pela censura, que teria curadores, galerias e museus. A pos- seria chamado de desbunde con-
usado como pretexto justamente a tura marginal será, de muitos modos, tracultural. Assumindo uma postura
frase da bandeira). A frase nos reme- ampliada e, por vezes, radicalizada, neoantropofágica, o tropicalismo se
te diretamente ao contexto simbólico nos anos 1970, com o advento do cha- tornou uma voz muito singular no âm-
do “Bólide Caixa 18 – homenagem a mado desbunde contracultural. bito das discussões promovidas pelos
Cara de Cavalo”, obra criada por Oiti- principais grupos artísticos dos anos
cica em 1966 e que encarna o “mito IHU On-Line – O senhor acredita 1960 (CPCs, Teatro de Arena, Opinião,
da revolta”. Trata-se de uma caixa que ainda há raízes na contempora- entre ouros), marcados por um dis-
(sem tampa e com a parede anterior neidade do tropicalismo na música e curso de “coesão nacionalista” e, ao
estendida ao solo) cujas faces internas cultura brasileiras? Em que sentido? mesmo tempo, de utopia revolucio-
André Monteiro – Parafrasean- nária filiada ao marxismo ortodoxo.
1 Torquato Pereira de Araújo Neto do Mário de Andrade, o tropicalis- O tropicalismo se afastou do desejo,
(1944-1972): poeta, jornalista, letrista mo instituiu, de vez, no contexto da típico de certas posturas da esquer-
de música popular, experimentador da
contracultura brasileiro. (Nota da IHU
música pop, o direito permanente à da moderna, de fazer do intelectual
On-Line) pesquisa estética. Tudo que se fez de um guia das massas e/ou aquele que

EDIÇÃO 411 | SÃO LEOPOLDO, 10 DE DEZEMBRO DE 2012 29


compreende a verdade do povo em
“O tropicalismo apenas porque foi um dos principais
Tema de Capa
sua totalidade. Ao mesmo tempo em letristas do movimento, como tam-
que assumiam o Brasil como uma ale-
goria fragmentária e múltipla, os tro- se afastou do bém porque foi um de seus principais
estrategistas. A letra da canção Ge-
picalistas rejeitavam projetos macro-
políticos interessados em “colonizar desejo, típico de leia geral, escrita por ele, e musica-
da por Gilberto Gil, talvez represente
o futuro”, como diria Octavio Paz2, e
assumem atitudes micropolíticas inte- certas posturas o grande manifesto, o grande texto
publicitário do tropicalismo. Além
ressadas em pensar o corpo, a sexua-
lidade e transgredir os tabus compor- da esquerda disso, Torquato, o anjo desafinado
e torto do tropicalismo, fez a ponte
tamentais da cultura ocidental. Essa
postura contracultural tropicalista moderna, de fazer entre a tropicália dos anos 1960 e a
marginália dos 1970. Encarnou com
será radicalizada no chamado desbun-
de contracultural dos anos 1970. O do intelectual um intensidade o espírito da contracul-
tura, participando, através de polê-
rock, o hippismo, as experiências com
drogas, a “curtição” e a fruição do cor- guia das massas micas jornalísticas, do chamado cine-
ma marginal, influenciando grande
po serão vividos, nos anos 1970, como
um “comportamento desviante” às e/ou aquele que parte dos chamados poetas margi-
nais e, principalmente, concebendo
normas do mercado, do estado e da
moral familiar patriarcal. compreende a um novo conceito de “poetar”. Para
Torquato, ser poeta não era apenas
É nesse ambiente pós-tropi-
calista de desbunde que surge, por verdade do povo sinônimo de uma experimentação
verbal, e sim de uma ousadia vital,
exemplo, a chamada poesia margi-
nal dos anos 1970, marcada por um em sua totalidade” pronta a “ocupar espaço” e, perigo-
samente, fazer diferença no mundo.
ceticismo em relação aos projetos,
tanto das vanguardas políticas como IHU On-Line – Qual foi o papel
das vanguardas estéticas do alto de poética contracultural dos anos de Gal Costa no desbunde?
modernismo. Ao mesmo tempo, 1970 esteve empenhada em criticar André Monteiro – Gal represen-
essa poesia era sustentada por um e dessacralizar o “caráter elevado” tou uma das figuras mais emblemáticas
apego ao corpo e à subjetividade. do artista e do próprio poema. Os do desbunde contracultural brasileiro,
Interessava à poesia marginal des- poetas marginais desejavam “viver o que se deu, tanto no plano musical,
construir as fronteiras ente arte e poesia”, e não apenas “escrever po- surfando em praias psicodélicas, como
vida e fazer da poesia uma vivência esia”. Um “poemão” vivido a muitas no plano comportamental: sua manei-
corporal do lúdico e do acaso coti- mãos, como diria Cacaso. ra de se vestir, seu modo descontraído
dianos. Grande parte da sensibilida- de expor o corpo e a sexualidade tra-
IHU On-Line – Qual o papel do duziam, em grande medida, a faceta
jornalista, poeta e compositor Tor- feminina da contracultura. Não à toa,
2 Octavio Paz Lozano (1914-1998): poe- quato Neto no movimento? no Rio do início dos anos 1970, um
ta, ensaísta, tradutor e diplomata mexi-
cano, notabilizado, principalmente, por
André Monteiro – Torquato dos principais pontos de encontro dos
seu trabalho prático e teórico no campo Neto foi importantíssimo para cons- “desbundados” foi batizado com seu
da poesia moderna ou de vanguarda. truir a medula e o osso do tropica-
Recebeu o Nobel de Literatura de 1990. nome: “Dunas da Gal”.
(Nota da IHU On-Line) lismo. Sua importância não se deu
www.ihu.unisinos.br

LEIA OS CADERNOS IHU


NO SITE DO IHU
WWW.IHU.UNISINOS.BR
30 SÃO LEOPOLDO, 10 DE DEZEMBRO DE 2012 | EDIÇÃO 411
Tema de Capa
Um transbordamento impossível
de aprisionar
Em vez de se falar em rompimento com movimentos anteriores, Pedro Rogério
pontua que o tropicalismo deve ser compreendido como um transbordamento,
quando aconteceu uma reinvenção, uma mescla que resultou em riqueza
cultural única

Por Márcia Junges e Thamiris Magalhães

P
ara Pedro Rogério, o artista é uma espé- Pedro acentua a impossibilidade de se apri-
cie de sociólogo que faz leituras da so- sionar a arte, a imaginação e a intuição: “Po-
ciedade e a reinventa. Isso se deu com dem até prender as pessoas, mas suas ideias
o movimento tropicalista que, em diálogo e sentimentos não podem ser controlados.
com diferentes matrizes culturais brasileiras, As pessoas continuam fazendo sua arte. São
se reapropriou delas, em claro estilo antropo- perseguidas quando publicizam o que criam,
fágico, e as devolveu em forma de arte. Um e mesmo assim prosseguem fazendo”.
dos maiores legados do tropicalismo foi man- Graduado em Música pela Universidade
ter uma postura política esclarecida. “Outras Estadual do Ceará – UECE, Pedro Rogério é
lições são deixar de lado o preconceito, estar mestre e doutor em Educação pela Universi-
aberto e permitir que as misturas aconte- dade Federal do Ceará – UFC, onde leciona
çam”, disse em entrevista concedida por te- no Instituto de Cultura e Arte – ICA. É autor
lefone à IHU On-Line. Ele tece aproximações de Pessoal do Ceará: habitus e campo musical
entre esse movimento e o mangue beat, de na década de 1970 (Fortaleza: Edições UFC,
Recife, sinalizando que a busca por um diálo- 2008) e um dos organizadores de Educação
go entre a cultura local, considerando-a rele- Musical: campos de pesquisa, formação e ex-
vante, além de lançar um olhar com interesse periências (Fortaleza: Edições UFC, 2012).
artístico e estético, misturando e fazendo com Confira a entrevista.
que ganhe notoriedade, são traços comuns.

IHU On-Line – Como você define significado da música, a maneira de de antropofagia, e de não negar e www.ihu.unisinos.br
o tropicalismo? ser e estar no mundo perante as coi- excluir nada, bebendo em todas as
Pedro Rogério – O tropicalismo sas dadas naquele período.
é a tradução musical de um momen-
to de efervescência política e cultural IHU On-Line – Em que sentido o chamada de Semana de 22, ocorreu em
São Paulo nos dias 13, 15 e 17 de feverei-
do Brasil que ganhou notoriedade em tropicalismo ainda exerce influência ro daquele ano, no Teatro Municipal. Re-
todo o país. Ele foi muito difundido e hoje? presentou uma verdadeira renovação de
linguagem, na busca de experimentação,
influenciou toda uma geração. Para Pedro Rogério – Alguns temas na liberdade criadora da ruptura com o
falar a verdade, até hoje vivemos in- tabus, a forma como ler o mundo e passado e até corporal, pois a arte passou
fluências benéficas desse movimen- reinventá-lo são, ainda, algo que ali- então da vanguarda para o modernismo.
Participaram da Semana nomes consa-
to, assim como outros movimentos menta as reflexões dos intelectuais e grados do modernismo brasileiro, como
foram fomentados nesse mesmo pe- artistas. Isso foi potencializado pela Mário de Andrade, Oswald de Andrade,
Víctor Brecheret, Plínio Salgado, Anita
ríodo junto de intelectuais, porque se tropicália, mas remonta ao Movimen- Malfatti, Menotti Del Pichia, Guilherme
tratava não somente de um grupo de to Modernista de 19221, com a ideia de Almeida, Sérgio Milliet, Heitor Villa-
músicos, mas também de intelectuais -Lobos, Tarsila do Amaral, Tácito de Al-
meida, Di Cavalcanti entre outros. (Nota
que repensaram o valor estético, o 1 Semana de Arte Moderna: também da IHU On-Line)

EDIÇÃO 411 | SÃO LEOPOLDO, 10 DE DEZEMBRO DE 2012 31


fontes. Há, assim, um transborda-
“No tropicalismo, que as pessoas podem continuar a fa-
Tema de Capa
mento cultural. Não há rompimentos. lar de amor, apesar do golpe militar.
Quando se estuda história da arte,
normalmente se fala em movimen- assim como Isso é algo que os caracteriza bem.
Evidentemente, não é impensável que
tos que romperam com o movimento
anterior. No tropicalismo, assim como no Clube da os tropicalistas não tivessem tido uma
reação esclarecida e definida politi-
no Clube da Esquina, há uma caracte-
rização pelo transbordamento muito Esquina, há uma camente contra o AI-5, mas eles não
ficam reféns disso. Eles se permitem
mais do que por ruptura. A ideia de
cultura híbrida, de pensamento com- caracterização continuar passeando por outros tem-
pos e temas.
plexo, transdisciplinaridade, de poder
dialogar e transitar nas diversas áreas pelo IHU On-Line – Como os cantores
é algo que os tropicalistas haviam se
apropriado, quebrando barreiras para transbordamento e pioneiros do tropicalismo consegui-
ram escrever suas músicas num pe-
avançar na maneira de se relacionar
com as coisas e o mundo, não tendo muito mais do que ríodo de ditadura militar, com censu-
ras, prisões, fechamento e proibições
preconceito. Mas não se trata só de
não ter preconceito, mas de ter uma por ruptura” que vieram com o AI-5?
Pedro Rogério – Por mais que se
postura aberta para reinventar a cul- proíba, a arte, a imaginação e a intui-
tura brasileira, do ser brasileiro. ção são invisíveis e não aprisionáveis.
redefinição do homem frente às novas
Podem até prender as pessoas, mas
tecnologias, como o fato de trazer as
IHU On-Line – Qual foi o papel suas ideias e sentimentos não podem
guitarras para dentro da música. Nos
de Maria Bethânia na tropicália? ser controlados. As pessoas continu-
festivais universitários, por exemplo,
Pedro Rogério – A força interpre- am fazendo sua arte. São persegui-
não se tocava guitarra. Então, naquele
tativa de Maria Bethânia é algo muito das quando publicizam o que criam,
momento usar uma guitarra já signi-
característico, e ela faz isso cantando e mesmo assim prosseguem fazendo.
ficava inovação. Isso tem um sentido
desde Fernando Pessoa até João do Gilberto Gil e Caetano Veloso continu-
novo: a maneira de se relacionar com
Vale, compositor do Maranhão. Assim am a criar a partir de Londres, onde
o significado da música e o que ela re-
como ela canta Pessoa e do Vale, ela realizaram uma produção fantástica.
presenta simbolicamente. Então, não
canta Chico Buarque. Trata-se de uma Eles fizeram disso uma fonte de ins-
há um marco ou momento apenas.
intérprete, mas não no sentido técni- piração, inclusive. Claro que não que-
co, com uma voz tecnicamente bem remos que o AI-5 se repita para que
IHU On-Line – Qual foi o im-
trabalhada. Seu forte, na verdade, é tenhamos fonte de inspiração. Longe
pacto do AI-5) para o movimento do
interpretar, trazer o sentimento e dei- disso. A fonte de inspiração não era o
tropicalismo?
xar transbordar as emoções. Quando AI-5, mas a postura, os sentimentos, a
Pedro Rogério – Esse impacto
Bethânia canta, a música ganha nova maneira, a comunicação, que é vida.
se deu em toda a sociedade. Como o
vida, é como se ela fosse uma coauto- Quem é vivo se comunica. Não é co-
movimento tropicalista era composto
ra, compondo junto com a obra, e não mum um artista produzindo para ele
em grande parte por intelectuais, que
simplesmente a reproduzindo. Nesse mesmo dentro de um quarto. Um ar-
não vão obedecer regras sem postura
sentido, ela passou por vários esti- tista produz para que sua arte circule.
crítica, houve grande reação. Assim, o
los, gêneros e traz para dentro de sua Barrar isso é impossível.
AI-5 provoca na sociedade, especial-
obra um diálogo com vários cenários.
mente no âmbito universitário, nas-
Ela não se fecha em apenas um, e isso IHU On-Line – Acredita que ain-
www.ihu.unisinos.br

cedouro desse movimento e fonte de


é tropicália. da hoje poderia haver um movimen-
seu principal público naquela época e
to parecido no Brasil? Por quê?
até hoje, um verdadeiro choque. En-
IHU On-Line – Quando e como Pedro Rogério – Algo pareci-
tão, há uma reação forte contra o AI-
se deu o ápice da tropicália? do esteticamente creio que não. O
5, e a bandeira da liberdade passa a
Pedro Rogério – Penso que po- que sempre surge é essa postura de
ser o pano de fundo de praticamente
demos nomear vários momentos para querer um mundo melhor, que é o
tudo que se faz em arte no Brasil. O
isso, mas menciono o lançamento do que todos almejam. Em relação às
que é interessante é que os tropicalis-
disco Panis et circenses, um verdadei- décadas de 1960 e 1970, vivemos
tas não ficaram presos à situação po-
ro marco do movimento. Contudo, é uma configuração muito diferente
lítica, eles extrapolam isso, continuan-
preciso pensar em outros momentos do ponto de vista tecnológico, polí-
do a falar de amor e valorizando até
fundantes do tropicalismo. No proces- tico e de interações humanas. O que
a jovem guarda, que era tão criticada
so histórico não dá para dizer exata- podemos pensar como princípio de
pelos políticos como se fosse um mo-
mente a data de começo e fim de um vida das pessoas é que elas se pro-
vimento alienado. Gil e Caetano não
movimento. Não há um começo e fim, ponham a colaborar com um mun-
percebem dessa maneira: eles dizem
e sim um processo que ocorre junto à do que se reinventa. A reinvenção

32 SÃO LEOPOLDO, 10 DE DEZEMBRO DE 2012 | EDIÇÃO 411


é fundamental. Lenine é exemplo
“O que é que viveram. Então, é preciso trazer a

Tema de Capa
disso. É um cara que se reinventa ideia da antropofagia, do transborda-
dentro da própria obra. É o caso do
Pato Fu, com sua música de brinque- interessante é que mento e, principalmente, de uma pos-
tura honesta no sentido de considerar
do. Caetano hoje é totalmente dife-
rente do que era em seus começos, os tropicalistas o valor que as coisas têm dentro da sua
obra, sem preconceito.
como é o caso de Gil e Tom Zé. É o
caso, ainda, de Bethânia, Gal Costa, não ficaram presos IHU On-Line – Que aproxima-
Os Mutantes e Rita Lee. Todos esses
artistas se reinventaram, o que é à situação política, ções você faria entre o tropicalismo e
o mangue beat, de Recife?
muito saudável. Essa ideia de rein-
venção no sentido de colaborar com eles extrapolam Pedro Rogério – Acredito que
buscar um diálogo entre a cultura lo-
uma leitura de um mundo real e dar
uma colaboração para essa leitura isso, continuando cal e considerá-la relevante, além de
lançar um olhar com interesse artís-
é algo importante. O artista é uma
espécie de sociólogo: ele faz leituras a falar de amor e tico e estético, misturando e fazendo
com que ganhe notoriedade é algo
da sociedade e a reinventa.
valorizando até a que é comum a ambos os movimen-
tos. Por que o mangue beat reverbe-
IHU On-Line – Que lição
o tropicalismo deixou para a jovem guarda, que rou no Brasil e em muitos lugares do
mundo? Porque ele traz questões que
contemporaneidade?
Pedro Rogério – Penso que uma era tão criticada são próprias do lugar e que traduzem
os outros lugares também. O que fa-
das grandes lições é essa reinvenção
à qual acabo de me referir, mantendo pelos políticos zemos aqui no Ceará tem muito a ver
com o que o mangue beat pautou
uma postura esclarecida politicamen-
te. Outras lições são deixar de lado o como se fosse através da sua postura. Há, aí, uma re-
lação muito próxima entre tropicalis-
preconceito, estar aberto e permitir
que as misturas aconteçam. A música um movimento mo e o mangue beat, com uma valo-
rização do local não para ficar preso a
mais brega que existe precisa ficar den-
tro daquele rótulo, ou existe algo ali do alienado” ele, mas para estabelecer um diálogo
entre o regional e o universal. Os dra-
qual podemos nos reapropriar e fazer mas humanos, as lutas, a valorização
parte de um movimento de recriação ça, o teatro e o cinema com as novas de si são coisas universais. O universal
da música, do cinema? É preciso deixar tecnologias. Isso os tropicalistas fize- é algo que toca a todos.
fluir o diálogo entre a música e a dan- ram muito bem dentro do contexto em

www.ihu.unisinos.br

LEIA OS CADERNOS TEOLOGIA PÚBLICA


NO SITE DO IHU
WWW.IHU.UNISINOS.BR

EDIÇÃO 411 | SÃO LEOPOLDO, 10 DE DEZEMBRO DE 2012 33


Poética da agoridade,
Tema de Capa

deslizamento e permanência
Condição existencial nos trópicos, permeada por uma atitude afirmativa frente à vida, é
um dos traços tropicalistas, destaca Júlio Cesar Valladão Diniz. Flertando com a literatura,
deglutindo a bossa nova, a jovem guarda e influências estrangeiras, cria o inusitado
Por Márcia Junges e Thamiris Magalhães

“O
ser tropical é um mulato que de- silêncio imposto pela ditadura, da dominação
liberadamente contrabandeia do do mercado dos bens simbólicos, da mesmice e
exterior a matéria prima da nossa rigidez estética e conceitual presentes em boa
cultura, seja ela europeia ou africana, transfor- parte da música popular da época”.
mando a diáspora em lugar de deslizamento e Graduado em Português-Literatura pela
permanência. Até hoje”, assegura Júlio Cesar Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ,
Valladão Diniz em entrevista concedida por Júlio Cesar Valladão Diniz é mestre e doutor em
e-mail à IHU On-Line. Essa “poética da agori- Literatura Brasileira pela Pontifícia Universida-
dade” tem na afirmação da vida no presente de Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio com a
grande parte de sua fundamentação. “O tropi- dissertação Uns caetanos (estudo de composi-
calismo fecha a porta modernista sem nostalgia ções) e a tese Modulando a dissonância: músi-
e olha pela fresta o devir-pós-moderno sem ne- ca e letra. Cursou pós-doutorado em Literatura
nhum desejo de colonizar o futuro, utilizando Comparada na Universidade de Salamanca, na
a imagem de Octavio Paz”, menciona. Além de Espanha. Foi diretor do Departamento de Le-
movimento cultural e artístico, devemos enten- tras da PUC-Rio e é professor na área de Estu-
der o tropicalismo como um modo de ser, “uma dos de Literatura. É o organizador do Dicionário
maneira cosmopolita e contemporânea de Cravo Albin da Música Popular Brasileira (Rio de
olhar e tentar compreender o país, a sociedade Janeiro, 2002), foi membro do Conselho Esta-
brasileira, seus dilemas, angústias, grandezas e dual de Cultura do Rio de Janeiro (2004-2006) e
misérias. Ampliar e amplificar as vozes brasilei- é pesquisador do CNPq.
ras diante dos impasses da modernidade, do Confira a entrevista.

IHU On-Line – De que maneira o IHU On-Line – Em que sentido dade, em especial em sociedades pós-
senhor define o tropicalismo? podemos fazer uma relação entre o -industriais, a partir do início da década
Júlio Cesar Valladão Diniz – De- movimento do tropicalismo e a mo- de 1970. O tropicalismo fecha a porta
finir o tropicalismo em uma palavra dernidade e/ou a pós-modernidade? modernista sem nostalgia e olha pela
ou uma frase é tarefa impossível. O Júlio Cesar Valladão Diniz – Acho fresta o devir-pós-moderno sem ne-
tropicalismo, antes de ser um movi- que toda a nossa tradição é e será sem- nhum desejo de colonizar o futuro,
mento cultural e artístico, é um modo pre moderna, o que não significa que utilizando a imagem de Octavio Paz. A
www.ihu.unisinos.br

de ser, uma condição existencial nos seja modernista. Do romantismo ale- defesa de uma “poética da agoridade”
trópicos, ou seja, uma maneira cos- mão do final do século XVIII de Schiller, em aliança com uma ética que afirma o
mopolita e contemporânea de olhar e Schlegel, Schelling e Schleiermacher valor da vida no presente.
tentar compreender o país, a socieda- às vanguardas históricas do alto mo-
de brasileira, seus dilemas, angústias, dernismo, representadas por Picasso, IHU On-Line – A seu ver,
grandezas e misérias. Ampliar e am- Matisse, Artaud e Joyce, por exemplo, quem foram os grandes ícones do
plificar as vozes brasileiras diante dos toda a constituição de um estado de movimento?
impasses da modernidade, do silêncio espírito ligado às noções de subjetivi- Júlio Cesar Valladão Diniz – Di-
imposto pela ditadura, da dominação dade, transgressão, ruptura e invenção fícil dizer quem liderou, quem deu a
do mercado dos bens simbólicos, da é marca da modernidade. Como então partida, quem sacou primeiro, quem
mesmice e rigidez estética e concei- falar de pós-modernidade e tropica- provocou quem para ir à luta. Concor-
tual presentes em boa parte da mú- lismo se no final dos anos 1960 o que do com o Tom Zé, para mim, gênio da
sica popular da época. O tropicalismo vivíamos no Brasil e no mundo era a raça, quando diz que o tropicalismo
tem a ver com comportamento, com crise de valores que nos formaram, os tem a ver com o encontro existencial,
transgressão, com uma atitude afir- valores ligados à tradição moderna? afetivo, artístico e político do Caeta-
mativa diante da vida. Pode-se, sim, falar de pós-moderni- no com o Gil. Fatores diversos, num

34 SÃO LEOPOLDO, 10 DE DEZEMBRO DE 2012 | EDIÇÃO 411


momento de extrema sensibilidade e de trânsito no movimento entre tex- rock nacional e internacional, incorpo-

Tema de Capa
beleza, colaboraram e corroboraram tualidade, sonoridade, corporeidade rando a utilização da guitarra elétrica.
com os desejos de uma geração ávida e plasticidade. A literatura sempre es- O maior valor do tropicalismo é a ca-
de liberdade, mudanças e do novo. O teve ali, contrabandeada, travestida, pacidade (presente até hoje nas rami-
movimento começou em 1967, pauta- potencializada em suas referências, ficações tropicalistas e tribalistas) de
do pela intervenção crítico-musical no citações, costuras e rasuras. repensar o lugar do corpo, da alterida-
cenário cultural brasileiro, e do qual de, das novas subjetividades, da visua-
participaram, além de Caetano, Gil e IHU On-Line – Quais foram, lidade e da voz na cena performática.
Tom Zé, os poetas Torquato Neto e Ca- a seu ver, os principais desafios O tropicalismo, em seu melting pot tri-
pinam, os maestros de formação eru- enfrentados pelo movimento do turador, meteu e tirou inúmeras vezes
dita Rogério Duprat, Damiano Cozzella tropicalismo? a colher estetizante e politizante de
e Júlio Medaglia, o grupo Os Mutantes, Júlio Cesar Valladão Diniz – seu caldeirão. Celso Favaretto conse-
a cantora Gal Costa e o artista plástico Como já mencionado acima, penso guiu, em seu ensaio de 1979, perceber
Rogério Duarte, entre tantos outros. que o tropicalismo vivenciou o de- que a tropicália não só trabalhava com
sejo antropofágico preconizado por materiais que representavam o kitsch,
IHU On-Line – Qual a relação da Oswald de Andrade de uma maneira o cafona, a extroversão, o excessivo
antropofagia com o movimento? afirmativa, alegórica e radical. Há na na cultura brasileira, mas também
Júlio Cesar Valladão Diniz – A vontade de potência tropical e híbri- com a sofisticação de uma formatação
tropicália representou uma retomada da a nobreza do mulato que afirma a clean, com seu gesto mais intimista,
extremamente fértil do diálogo com vida, o empenho com a transforma- sua construção mais plana e angular
as posturas políticas, estéticas e éticas ção da estética em valor vital, contra de uma tradição da bossa nova, a voz
de Oswald de Andrade, em especial a moral do escravo, representada no dissonante, desencaixada, tradutora
com a antropofagia. A tropicália res- panorama cultural dos anos 1960 no de modulações. Esta constatação se
saltou, em sua estética, os contrastes Brasil pelo ressentimento e autorita- aplica às canções como também aos
da cultura brasileira, buscando supe- rismo de uma grande parte da esquer- cenários dos shows, roupas e princi-
rar as dicotomias arcaico/moderno, da intelectual. Ao mesmo tempo, por palmente às capas dos discos, em fun-
nacional/estrangeiro e cultura de mais paradoxal que pareça, o tropica- ção da proximidade dos músicos com
elite/cultura de massas, que, hege- lismo representa a quitação de contas os artistas plásticos.
monicamente, marcavam a discussão com o alto modernismo, a rasura com Fazendo um balanço da icono-
cultural na década de 1960. a contribuição milionária de todos os grafia das capas de disco durante os
acertos e erros de Mário e Oswald de anos 1950 e 1960, percebe-se uma
IHU On-Line – De que maneira Andrade, o esgotamento do projeto enorme ruptura na concepção vi-
podemos relacionar o tropicalismo modernista e o início de outro mo- sual da bossa nova em comparação
com a literatura brasileira? mento da arte brasileira, em sintonia com a das décadas anteriores. Elas
Júlio Cesar Valladão Diniz – An- com as grandes transformações polí- são mais claras, “limpas, modernas”.
tes de qualquer coisa, gostaria de ticas, sociais e culturais do Ocidente. Há uma evidência, quando se obser-
afirmar que há uma questão fun- va a coleção bossa nova, de que um
damental no estado da arte dos es- IHU On-Line – Qual a relação da novo processo se instaurava, uma
tudos literários hoje que merece a tropicália com a MPB? “higienização” latente no conteúdo
nossa reflexão: o processo contínuo Júlio Cesar Valladão Diniz – A programático bossa-novista, uma de-
e irreversível de ressemantização do ação tropicalista representa a radi- puração radical do excesso, seja ele
conceito de literatura. O diálogo pro- calização da volta a uma tradição do musical, poético, gráfico ou visual.
posto pelos Estudos Culturais abre kitsch, do exagero, da hipérbole, da Em relação ao tropicalismo, o que se
inúmeras possibilidades de articula- “cafonização” das imagens, da leitura vê é exatamente o contrário. As capas
ção intertextual e interdisciplinar en- crítica dos diapasões do Brasil, seja dos primeiros discos da tropicália são
tre as práticas escriturais e as distintas em sua estética, seja em seu compor- hipercoloridas, justapondo elemen-
manifestações estéticas. Em outras tamento geracional, seja em sua ma- tos modernos e tradicionais, o novo
www.ihu.unisinos.br
palavras, o conceito de literatura com neira de pensar a cultura. A constru- e a tradição, bem ao estilo de Sgt.
o qual fomos formados já não existe ção de um imaginário hiperbólico e a Pepper’s dos Beatles. As imagens do
mais. É claro que para uma boa par- opção por uma estética do excesso são Brasil e do exterior devoradas, deglu-
te da crítica literária, o que eu estou retomadas e reafirmadas pela tropicá- tidas e devolvidas como proposta de
dizendo é um disparate, uma loucura. lia, fazendo não o circuito tradicional desierquização e em sintonia com as
Mas na verdade acho que há uma no- e previsível de um programa vanguar- vanguardas de então.
ção de literatura expandida que atra- dista, ou seja, negando a bossa nova, a
vessa o panorama contemporâneo canção de protesto e a jovem guarda. IHU On-Line – Gostaria de acres-
e nos ajuda a entender que o que se Os tropicalistas incorporaram à sua es- centar algo?
chama (ou se chamou) de literatura tética tanto os procedimentos de uma Júlio Cesar Valladão Diniz – O
está presente em letras de música, na performance over da fase heroica da ser tropical é um mulato que delibe-
cultura audiovisual e nas artes plás- MPB quanto os procedimentos mini- radamente contrabandeia do exterior
ticas, por exemplo. O tropicalismo malistas da bossa nova. Sua proposta a matéria prima da nossa cultura, seja
colocou os pés, mãos e estômago na voltava-se para a absorção de distintos ela europeia ou africana, transfor-
literatura brasileira, provocando com gêneros musicais, como samba, bole- mando a diáspora em lugar de desli-
ela uma nova parceria. Há uma área ro, frevo, música de vanguarda e o pop zamento e permanência. Até hoje.

EDIÇÃO 411 | SÃO LEOPOLDO, 10 DE DEZEMBRO DE 2012 35


Tema de Capa
“Tropicália, triunfo do rico e
aplauso do genocídio”
Para Gilberto Felisberto Vasconcellos é dada uma importância exagerada à tropicália,
que ele classifica como “triunfo do rico”

Por Thamiris Magalhães, Leandro de Souza Domith e Pedro Bustamante Teixeira

P
or que a tropicália continua um tema portância dada à música popular como uma
candente até nossos dias? Segundo o radiografia do Brasil. Como a academia é sub-
cientista social Gilberto Felisberto Vas- metida à ideologia da indústria fonográfica,
concellos, é porque esse movimento inte- então aquele livro passou a ser uma espécie
ressa sobretudo jornalistas de televisão e de de junção da universidade com a indústria fo-
jornal, mas não o povo. “Atinge estes caras: nográfica. Renego esse livro. Todo autor tem
redator, chefe de segundo caderno. Mas eu que ter um livro renegado.”
não acho que o povo curte isso não...” E in- Gilberto Felisberto Vasconcellos possui
daga, em entrevista exclusiva à IHU On-Line, graduação em Ciências Sociais pela Univer-
por e-mail: “O que a tropicália fez? Aprovou sidade de São Paulo – USP e doutorado pela
o quê? A multinacional é que é o quente, que mesma instituição. É professor adjunto da
ganhou, venceu a burguesia gostosa. É a va- Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF.
lorização da multinacional como motor do Escreveu um livro clássico sobre o tema da
desenvolvimento. Por isso que eu digo que a MPB: Música popular: de olho na fresta (Rio
tropicália é a transfiguração sonora da econo- de Janeiro: Graal, 1977), que aborda com mais
mia política do automóvel trazida pelo Jusce- detalhe nesta entrevista. Também é autor de,
lino Kubitschek”. entre outros, A Questão do Folclore no Brasil:
Ao abordar sua obra Música popular: de do Sincretismo à Xipofagia (Natal: EDUFRN,
olho na fresta, Gilberto Vasconcellos frisa 2009); e O Príncipe da Moeda (Rio de Janei-
que, depois dele, ele se tornou um “defun- ro: Espaço e Tempo, 1997). Ele já esteve duas
to autor” ou um autor defunto. “Acho que a vezes no Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
academia entendeu o livro em função da im- Confira a entrevista.

IHU On-Line – Por que o livro De autor tem que ter um livro renegado, fui renegado. É igual norte-america-
olho na fresta é sua obra mais comen- a não ser por um capítulo sobre Noel no que dá um pau nos Estados Uni-
www.ihu.unisinos.br

tada na academia? A que se deve este Rosa: “Yes, nós temos bananas”, ali é dos, mal comparando: Orson Welles1,
fato? bom. Mas eu sei é que toda hora di-
Gilberto Felisberto Vasconcellos zem: “ah! mas e o De olho na fresta?”
– Depois de De olho na fresta eu vi- Se eu não estivesse em São Paulo não
rei um “defunto autor” ou um autor teria escrito esse livro. O De olho na
1 George Orson Welles (6 de maio de
defunto. Acho que a academia enten- fresta é um livro paulista, e meus ou- 1915 – 10 de outubro de 1985): ator ame-
deu o livro em função da importância tros livros quebraram com isso, talvez ricano, escritor, diretor e produtor que
dada a música popular como uma ra- seja por aí. trabalhou extensivamente na rádio, te-
atro e cinema. Ele é mais lembrado por
diografia do Brasil. Como a academia Como a ideologia paulista é a do- seu trabalho inovador em todos os três
é submetida à ideologia da indústria minante no Brasil, se você quebrar com meios, mais notavelmente César (1937),
uma adaptação da Broadway; a estreia do
fonográfica, então aquele livro passou ela você quebra com o estabelecido, do- Mercury Theatre, A Guerra dos Mundos
a ser uma espécie de junção da univer- minante, hegemônico. Quando rompi (1938), uma das transmissões mais famo-
sidade com a indústria fonográfica. Foi com o De olho na fresta, rompi com o sos na história do rádio, e Cidadão Kane
(1941), que é constantemente classifica-
por aí, creio... Renego esse livro. Todo colonialismo interno paulista e, então, do como um dos melhores filmes de todos
os tempos. (Nota da IHU On-Line)

36 SÃO LEOPOLDO, 10 DE DEZEMBRO DE 2012 | EDIÇÃO 411


Cassavetes2, Paul Sweezy3, Leo Huber-
“A tropicália é o gério é quem fez a capa de Deus e o

Tema de Capa
man4, Paul Baran, fui o paulista que diabo, é dele o:
chutou o pau da barraca; tenho essa
clivagem com São Paulo... E um deta- triunfo do rico, do ...ainda canto o ido o tido o dito
o dado o consumido o consumado
lhe: escrevi esse livro sem conhecer
os caras, se eu tivesse os conhecido, cara que venceu, Ato do amor morto motor da saudade
diluído na grandicidade idade de pedra
não teria escrito o livro... Se eu qui-
sesse me dar bem, teria reproduzido e indiretamente Ainda canto quieto o que conheço
Quero o que não mereço: o começo...
esse discurso; seria senador pelo PT
ou pelo PSDB, mas eu não consigo ou- é o aplauso do Isso é a melhor coisa da tropicá-
lia, isso daí é do Rogério, um violão da
vir esse troço. Creio que fui engana-
do. Como toda juventude atribui uma genocídio” pesada. Aliás, ele fez a capa do meu
livro Itamar o predestinado (Brasília:
função cognitiva à música popular, eu
Agência Quality, 1993).
achava que aquilo ali era um retrato
do Brasil, e na verdade era pura ideo- ao automóvel, a economia política do
automóvel. A MPBSHELL é a transfigu- IHU On-Line – Onde se encon-
logia, puro lucro, pura gandaia.
ração sonora da economia política do tram Glauber Rocha, Oswald de An-
automóvel. drade e tropicália?
IHU On-Line – Depois deste li-
Gilberto Felisberto Vasconcellos
vro, sua abordagem sobre a música
IHU On-Line – Há ainda alguma – Creio que Glauber tinha momentos
popular deu uma guinada em direção
coisa a ser dita sobre a tropicália que de ambivalência: ora ele falava bem
oposta ao De olho na fresta. Em seu
ainda não foi dito? dos músicos da tropicália, mas de-
livro, O Príncipe da moeda (Rio de
Gilberto Felisberto Vasconcellos pois chamou de tropicanalha... Mas
Janeiro: Espaço e Tempo, 1997) você
– A tropicália é o triunfo do rico, do o fato é que o Glauber nunca colocou
emprega o termo MPBSHELL para re-
cara que venceu, e indiretamente é o nenhum cantor da tropicália nos seus
lacionar a música popular e as condi-
aplauso do genocídio. O que a tropi- filmes. A não ser a Gal Costa cantan-
ções materiais e históricas que propi-
cália fez? Aprovou o quê? A multina- do ali no começo... Aliás, foi ele quem
ciaram seu surgimento. Você poderia
cional é que é o quente, que ganhou, lançou a Gal Costa... Mas o Glauber
explicar tal relação?
venceu a burguesia gostosa. É a valo- é Villa Lobos e o povo contra o resto.
Gilberto Felisberto Vasconcellos
rização da multinacional como motor Glauber não tinha esse negócio com
– MPBSHELL é junção da música brasi-
do desenvolvimento. Por isso que eu a MPB, só assim, Jorge Ben, Vanzolini,
leira com o petróleo. É o bate-estaca,
digo que a tropicália é a transfigura- com aquele baita samba maravilhoso,
é o som do automóvel, ou tudo que
ção sonora da economia política do e o Sérgio Ricardo.
circunscreve o automóvel: a publici-
automóvel trazida pelo Juscelino Ku- Agora sobre Oswald, a tropicália
dade, o anúncio, entendeu: “baby you
bitschek5. Agora a melhor coisa da oportunistamente se colocou como
can drive my car”... os “Paralamas do
tropicália é o Rogério Duarte6. O Ro- a corrente que estava valorizando
Sucesso”, o pneumático, a banda lar-
Oswald de Andrade, que estava mor-
ga, é isso... Toda música depois do “JK
5 Juscelino Kubitschek de Oliveira
to. Ele morreu em 1954, de 1954 até
music” – que é a bossa nova – é ligada
(1902-1976): médico e político brasilei- 1967-1968, ninguém falou do Oswald,
ro, conhecido como JK. Foi presidente do a não ser a poesia concreta. Na verda-
2 John Nicholas Cassavetes (9 de dezem- Brasil entre 1956 e 1961, sendo o respon-
bro de 1929 – 3 de fevereiro de 1989): sável pela construção de Brasília, a nova de, a poesia concreta é que trouxe o
ator americano, roteirista e cineasta. capital federal. Sobre JK, confira a edi- Oswald para a cena, e não a tropicália.
Cassevetes também foi um dos pionei- ção 166, de 28-11--2005, A imaginação Foi o Décio7, o Haroldo8 e o Augusto9
ros de filmes americanos independentes no poder. JK, 50 anos depois, disponível www.ihu.unisinos.br
por escrever e dirigir mais de uma dúzia para download em http://migre.me/
de filmes, financiados, em parte, com qkeQ. (Nota da IHU On-Line) blicamente a tortura no regime militar.
seus salários de Hollywood. Foi pioneiro 6 Rogério Duarte Guimarães (Ubaíra, 10 Preso juntamente com seu irmão Ronaldo
no uso da improvisação. (Nota da IHU de abril de 1939): Intelectual multimídia Duarte, o caso mobilizou artistas e mere-
On-Line) baiano, Rogério Duarte é artista gráfico, ceu ampla divulgação no jornal carioca
3 Paul Sweezy Marlor (10 de abril de músico, compositor, poeta, tradutor e Correio da Manhã, que publicou uma carta
1910 – 28 de fevereiro de 2004): econo- professor. Nos anos 60 mudou-se para o coletiva pedindo a libertação dos “Irmãos
mista marxista, ativista político, editor Rio de Janeiro, onde trabalhou como di- Duarte”. (Nota da IHU On-Line)
e fundador da revista de longa duração retor de arte da UNE e da Editora Vozes. 7 Décio Pignatari (1927-2012): advoga-
Monthly Review. É mais lembrado por Foi o autor de vários cartazes para filmes do, poeta, ensaísta, professor e tradutor
suas contribuições à teoria econômica de seu amigo Glauber Rocha, como Deus e brasileiro. (Nota da IHU On-Line)
como um dos principais economistas mar- o diabo na terra do sol (símbolo do cine- 8 Haroldo Eurico Browne de Campos
xistas da segunda metade do século 20. ma nacional), Terra em transe e A idade (1929-2003): poeta e tradutor brasileiro.
(Nota da IHU On-Line) da terra. Também criou, para este último, (Nota da IHU On-Line)
4 Leo Huberman (Newark, 17 de outu- a trilha sonora. Entre os vários artistas 9 Augusto Luís Browne de Campos
bro de 1903 - 9 de novembro de 1968): com os quais colaborou, contam-se Gil- (1931): poeta, tradutor e ensaísta brasi-
jornalista e escritor marxista norte-ame- berto Gil, Caetano Veloso, João Gilberto, leiro. É um dos criadores da Poesia Con-
ricano, cofundador da revista Monthly Jorge Ben e Gal Costa. Considerado um creta, junto com seu irmão, Haroldo de
Review. É autor de História da Riqueza dos mentores intelectuais do movimento Campos, e Décio Pignatari, que ao rom-
do Homem (Rio de Janeiro: LTC Editora, tropicalista, Rogério foi também um dos perem com o Clube de Poesia, lançaram a
1986) (Nota da IHU On-Line) primeiros a ser preso e a denunciar pu- revista Noigandres. (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 411 | SÃO LEOPOLDO, 10 DE DEZEMBRO DE 2012 37


que fizeram esse resgate. Aliás, um
“Outro fato acerca como tiveram esses músicos. Claro,
Tema de Capa
trabalho excelente. O que eles fizeram porque a música é mais fácil, a músi-
em relação a Oswald de Andrade foi
genial. A minha geração em 1968 co- da persistência ca tem um negócio comportamental,
que envolve sedução, dançar, muscu-
meçou a ler o Oswald de Andrade por
causa da poesia concreta. da tropicália é latura... O cinema não, ele é reflexivo,
o cinema do Glauber não é muscular,

IHU On-Line – Haveria alguma que ela atinge ao contrário... E a música popular
conquistou as mulheres, elas foram
relação entre os ensaios publicados
por Augusto de Campos em O ba- essencialmente seduzidas pela música. Isso se deve às
inflexões culturais impostas à mulher
lanço da bossa e o seu livro De olho
na fresta? É possível vislumbrar uma jornalistas de e eles tematizam ela o tempo todo.
Creio que de maneira até antifemini-
aproximação entre as duas obras?
Gilberto Felisberto Vasconcellos televisão e de na. Discordo desse negócio de que o
músico popular é o grandão, o cara
– É anterior... Fiz o De olho na fresta
muito inspirado no Augusto. Ele legi- jornal, não atinge que saca os segredos da mulher, isso
aí é mistificação... Outro fato acerca
timou na alta cultura a tropicália. O
Augusto ficou deslumbrado com ela. o povo. Atinge da persistência da tropicália é que
ela atinge essencialmente jornalistas
Ele chegou ao ponto de colocá-la até
superior ao Villa lobos. Talvez porque esses caras: de televisão e de jornal, não atinge o
povo. Atinge estes caras: redator, che-
ela tinha o domínio da comunicação
de massa e a poesia concreta sempre redator, chefe de fe de segundo caderno. Mas eu não
acho que o povo curte isso não...
ficou um negócio confinado a pouca
gente... Então, talvez tenha sido isso. segundo caderno. IHU On-Line – O problema é a
Se bem que o Haroldo de Campos
nunca deu importância a isso. Mas, Mas eu não acho música popular ou a tropicália?
Gilberto Felisberto Vasconcellos
depois de certa altura, os concretos
saíram de cena. Você não vê mais que o povo curte – O povo ágrafo aprende tudo pelo
ouvido, não é? E ao mesmo tempo
hoje o Augusto falando da tropicália.
Agora, confesso que se dá uma impor- isso não...” a música popular depende do en-
chimento sonoro onipresente na so-
tância exagerada à tropicália. Não tem ciedade brasileira. Se você fizer uma
importância nenhuma isso. crítica das condições insanas acústicas
trevista comigo sobre a tropicália. Por do Brasil, os músicos vão ser contra,
IHU On-Line – E por que a tropi- causa disso. Esse é o problema. Você eles gostam de sonzinho em elevador,
cália ainda hoje é estudada? devia começar a questionar essa en- no bar, é a sobrevivência dos caras...
Gilberto Felisberto Vasconcellos trevista: por que o Glauber não teve Por que, o que é a música? A música é
– É porque você está fazendo essa en- e mesma ressonância na juventude a crítica do som da sociedade. É isso!
www.ihu.unisinos.br

LEIA OS CADERNOS IHU IDEIAS


NO SITE DO IHU
WWW.IHU.UNISINOS.BR

38 SÃO LEOPOLDO, 10 DE DEZEMBRO DE 2012 | EDIÇÃO 411


Tema
Tema
dede
Capa
Capa

Destaques
Destaques
da da
Semana
Semana

www.ihu.unisinos.br
www.ihu.unisinos.br

IHU
IHU
emem
Revista
Revista
39 EDIÇÃO 000 | SÃO LEOPOLDO, 00 DE 00 DE 0000 SÃO LEOPOLDO, 00SÃO
DE LEOPOLDO,
XXX DE 000000
| EDIÇÃO
DE XXX DE
0000000 | EDIÇÃO 000 39
Entrevista da Semana
Destaques da Semana

Caminhar com os pobres para


construir uma teologia viva
“Para mim é um absurdo falar em autocrítica a respeito da relação entre Teologia da
Libertação e marxismo”, afirma Jon Sobrino

Por Graziela Wolfart | Tradução: Graziela Wolfart

A
o refletir sobre os rumos da Teologia vivem uma realidade que não vivemos. Em
da Libertação nos últimos 40 anos, o geral, os pobres não querem servir de exem-
teólogo espanhol Jon Sobrino reco- plo para ninguém. Eles simplesmente dão o
nhece que ela pode ter perdido um pouco da exemplo pela experiência, pelo modo de ser e
força e da potência midiática que possuía nos nos evangelizam”.
anos 1980. Ele recorda a época dos regimes Jon Sobrino é professor da Universidade
militares na América Latina, que teria sido o Centro-Americana – UCA, de San Salvador.
período de maior perseguição aos teólogos Doutor em Teologia pela Hochschule Sankt
da libertação: “as ditaduras militares usavam Georgen, em Frankfurt (Alemanha) e diretor
força militar, ou seja, armas, com as quais po- da Revista Latino-americana de Teologia e do
diam matar e assim o fizeram. Agora o que informativo Cartas a las Iglesias, é autor de,
temos são democracias capitalistas. E que entre muitos outros livros, Cristologia a partir
poder elas têm? O capital. Este não mata nor- da América Latina: esboço a partir do segui-
malmente, porque pode enganar ou comprar mento do Jesus histórico (Petrópolis: Vozes,
as pessoas de outras formas. A Teologia da Li- 1983). Sobrino esteve na Unisinos partici-
bertação pode realmente ter perdido forças. pando do Congresso Continental de Teologia,
O que não perde as forças é o capital”. Para com a conferência inaugural do evento, inti-
Sobrino, “o capitalismo pode tolerar até certo tulada “Um novo Congresso e um Congresso
ponto a ajuda e o amor aos pobres. Outra coi- novo”, no último mês de outubro, ocasião em
sa é quando se sai em defesa deles, o que pro- que concedeu a entrevista a seguir, pessoal-
voca um conflito social. Nesse sentido, o povo mente, à IHU On-Line.
www.ihu.unisinos.br

pobre ensina a nós, que não somos pobres, a Confira a entrevista.


ver melhor as coisas do mundo real, porque

IHU On-Line – Quais os cami- Serrat2, cantor popular espanhol, que pergunta quais os caminhos para cons-
nhos para se construir uma teologia diz “Caminhante, não há caminho; o truir uma teologia viva. E eu te respon-
viva? caminho se faz ao andar”3. Você me do com a canção: não há caminhos;
Jon Sobrino – Há um poema de eles se fazem ao andar. Se vivemos no
um poeta espanhol chamado Antonio poeta espanhol, pertencente ao moder- mundo com os olhos abertos para ver
nismo. (Nota da IHU On-Line)
Machado1, cantado por Joan Manuel a pobreza real, percebemos que ela
2 Joan Manuel Serrat i Teresa (1943):
cantor, poeta, músico e compositor es- se capta melhor com o nariz, com o
panhol, uma das expressões mais desta-
1 Antonio Cipriano José María y Francis- cadas da música moderna espanhola e
co de Santa Ana Machado Ruiz, conheci- catalã. (Nota da IHU On-Line) XXIX, em Campos de Castilla”. (Nota da
do como Antonio Machado (1875 -1939): 3 Extraído de “Proverbios y cantares IHU On-Line)

40 SÃO LEOPOLDO, 10 DE DEZEMBRO DE 2012 | EDIÇÃO 411


cheiro das pessoas. Às vezes, quando
“Os teólogos que mataram. Mas mantém sua força mes-

Destaques da Semana
vemos os pobres nas fotografias, eles mo morto, como teólogo, por meio
são até bonitos: estão nus, sujos, até
simpáticos. Mas quando nos depara- seguiram Medellín de seus escritos, que hoje são muito
mais lidos do que antes. Gustavo Gu-
mos com os pobres e queremos hu-
mildemente ajudar, estamos fazendo o tem sofrido muita tierrez6 perdeu força? Creio que não,
pois aos 84 anos continua produzindo
caminho para uma teologia viva. Cons-
trói-se uma teologia viva caminhando perseguição” e está escrevendo um livro importan-
te sobre os pobres, que acredito que
com os pobres. Casaldáliga4, que é ou- será muito bom. Leonardo Boff7 tam-
tro grande poeta, comentando a refe- bém não perdeu a força, mas mudou
rida poesia de Antonio Machado, diz: ram mortos não por serem teólogos a direção de sua força. O que quero
“o caminho se faz ao andar para que da libertação, mas por defenderem o dizer é que os teólogos que seguiram
os atrasados possam nos alcançar. É pobre, por lutarem pela justiça e tra- Medellín8 tem sofrido muita persegui-
preciso caminhar para animar aqueles balharem pela paz. A direita dos mi- ção. Sempre que o pensar cristão esti-
que estão atrás, para que também ca- litares não queria ouvir falar de uma ver realmente baseado em uma visão
minhem. Faça do canto do teu povo o paz entre marxistas e ricos. Também dos pobres, em uma prática movida
ritmo da tua marcha”. destaco que a Teologia da Libertação
começou como um movimento rea-
6 Gustavo Gutiérrez (1928): padre e teó-
IHU On-Line – Quarenta anos lizado por homens e devemos nos logo peruano, um dos pais da Teologia
depois do surgimento da Teologia da perguntar o que temos feito com as da Libertação. Gutiérrez publicou, de-
pois de sua participação na Conferência
Libertação, que autocrítica ela deve mulheres enquanto intelectuais pen- Episcopal de Medellín de 1968, Teologia
fazer? santes e teólogas? E nesse campo é da Libertação (Petrópolis: Vozes, 1975),
Jon Sobrino – A primeira auto- preciso fazer uma autocrítica. No en- traduzida para mais de uma dezena de
idiomas, e que o converteu num teólo-
crítica é reconhecer que é humana. tanto, as coisas estão caminhando. O go polêmico. Uma década mais tarde
E não falo aqui da Teologia da Liber- mesmo ocorre em relação aos indíge- participou da Conferência Episcopal de
Puebla (México, 1978), que selou seu
tação, mas de teólogos, teólogas, ho- nas. Para mim é um absurdo falar em compromisso com os desfavorecidos e
mens, mulheres, sacerdotes, leigos e autocrítica a respeito da relação entre serviu de motor de mudança na Igreja,
jornalistas também. Falo de pessoas. Teologia da Libertação e marxismo. especialmente latino-americana. Alguns
dos últimos livros de Gustavo Gutiérrez
Há jornais e periódicos da libertação, são: Em busca dos pobres de Jesus Cris-
mas há também os da opressão. O IHU On-Line – Muitos criticam a to. O pensamento de Bartolomeu de Las
Teologia da Libertação, dizendo que Casas (São Paulo: Paulus, 1992) e Onde
que vejo é que há resistência à Teolo- dormirão os pobres? (São Paulo: Paulus,
gia da Libertação por parte do Vatica- ela perdeu o entusiasmo e a força de 2003). (Nota da IHU On-Line)
no, que a persegue. Talvez, às vezes, atuação dos anos 1980. Como recebe 7 Leonardo Boff (1938-): teólogo brasi-
leiro, autor de mais de 60 livros nas áre-
com razão, afinal, ela não é perfeita; essa crítica e quais os desafios da Te- as de teologia, espiritualidade, filosofia,
mas muitas vezes sem razão. Alguns ologia da Libertação hoje? antropologia e mística. Boff escreveu um
Jon Sobrino – Em primeiro lugar, depoimento sobre as razões que ainda
teólogos, como Ignacio Ellacuría5, fo- lhe motivam a ser cristão, publicado na
a Teologia da Libertação é um ente edição especial de Natal da IHU On-Li-
abstrato. Ellacuría também perdeu a ne, número 209, de 18-12-2006, dispo-
4 D. Pedro Casaldáliga: bispo prelado de nível em http://bit.ly/iBjvZq, e conce-
São Félix, Mato Grosso. É poeta e escritor
força quando estava vivo, porque o deu uma entrevista sobre a Teologia da
de renome internacional. Quando assume Libertação na IHU On-Line número 214,
a prelazia de São Felix, em pleno regime de 02-04-2007, disponível em http://
militar, denuncia veementemente o lati- El Salvador. Ele era reitor da Universida- bit.ly/kaibZx. Na edição 238, de 01-10-
fúndio e defende a reforma agrária e o de Centro Americana, em San Salvador, 2007, intitulada Francisco. O santo, con-
direito indígena à terra. Foi duramente confiada à Companhia de Jesus. Ele e cedeu a entrevista A ecologia exterior e www.ihu.unisinos.br
perseguido pelo regime militar. Pe. João seus companheiros foram barbaramente a ecologia interior. Francisco, uma sín-
Bosco Penido Burnier, jesuíta, foi assassi- assassinados por terem conseguido fa- tese feliz, disponível em http://bit.ly/
nado ao lado dele, no dia 12 de outubro zer desta universidade uma importante km44R2. Sua entrevista mais recente à
de 1976. A edição 137 da IHU On-Line, de força social na luta pela promoção da IHU On-Line intitula-se Os intelectuais
18 de abril de 2005, publicou uma entre- justiça social. Sobre Ellacuría, confira a que têm algum sentido ético precisam
vista com Casaldáliga: O próximo ponti- entrevista especial concedida por Héctor falar sobre a Terra ameaçada e está dis-
ficado será um tempo de transição signi- Samour, em 16-11-2007, ao site do Insti- ponível em http://bit.ly/Qpj45L. (Nota
ficativo. A edição 89, de 12 de janeiro de tuto Humanitas Unisinos – IHU, intitulada da IHU On-Line)
2004, trouxe entrevista com o religioso, Inteligência, compaixão e serviço. Cele- 8 Documento de Medellín: em 1968, na
falando sobre a homologação de terra brando o martírio de Ignacio Ellacuría esteira do Concílio Vaticano II e da en-
contínua para índios. Leia as Notícias do e companheiros, disponível em http:// cíclica Populorum Progressio, realiza-se,
Dia 10-12-2012, especificamente Dom Ca- migre.me/11DN8. Na mesma data, nosso na cidade de Medellín, Colômbia, a II
saldáliga é evacuado de sua casa em São site publicou a notícia Ignacio Ellacuría Assembleia Geral do Episcopado Latino-
Félix por ameaças de morte, disponível e companheiros assassinados no dia 16- -Americano que dá origem ao importante
em http://bit.ly/Rjbuha. (Nota da IHU 11-1989, disponível em http://migre. documento que passou a ser chamado o
On-Line) me/11DO7. No site do IHU visite a Sala Documento de Medellín. Nele se expressa
5 Ignácio Ellacuría: filósofo, especialis- Ignácio Ellacuría e Companheiros, onde a clara opção pelos pobres da Igreja La-
ta em Zubiri, jesuíta, foi assassinado no podem ser lidas notícias, a história dos tino-Americana. A conferência foi aberta
dia 15 de novembro de 1988, juntamen- mártires jesuítas e o memorial criado pessoalmente pelo papa Paulo VI. Era a
te com mais quatro companheiros jesu- pelo IHU em sua homenagem: http:// primeira vez que um papa visitava a Amé-
ítas e duas senhoras, em San Salvador, migre.me/11DOt. (Nota da IHU On-Line) rica Latina. (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 411 | SÃO LEOPOLDO, 10 DE DEZEMBRO DE 2012 41


pela compaixão pelos pobres, have- IHU On-Line – Hoje não temos crueldade terrível, era a morte desig-
Destaques da Semana
rá perseguição. No entanto, percebo mais grandes líderes como Ignacio nada aos terroristas. Era uma morte
que hoje há menos perseguição do Ellacuría, por exemplo? humilhante, até para a família de um
que há alguns anos. Por exemplo, na Jon Sobrino – Não. E sei bem crucificado. Mas por que fizeram isso
UCA (Universidad Centroamericana disso, pois convivi com ele durante com Jesus? Porque ele se envolveu
José Simeón Cañas, em El Salvador), 15 anos. Mas isso não significa perder – principalmente com palavras – no
onde estou, de 1976 a 1989, foram força. Essa é a lei da vida. Quando há conflito social da época, defendendo
explodidas no campus 25 bombas. grandes líderes que são mortos, não o povo oprimido. A expressão “opção
Isso não ocorre mais hoje. É preciso se pode esperar que imediatamen- pelos pobres” é algo que gosto muito,
reconhecer que a UCA perdeu muito te surjam outros. Se vier será muito mas não de forma absoluta, porque a
da sua força social, realmente, afinal bom, mas nem sempre é o que ocor- opção pelos pobres não significa op-
não temos mais um Ignacio Ellacuría re. No entanto, não me assusto com tar pelos pobres simplesmente, mas,
ou um Martín-Baró, e todos aqueles o fato de que não há grandes líderes. primeiro, sair em defesa deles. É mais
que eram grandes lutadores sociais. O problema está quando se mata o profundo. O capitalismo pode tole-
Então, admito que a Teologia da Liber- povo; e aqui não falo apenas de matar rar até certo ponto a ajuda e o amor
tação não atua como nos anos 1980. com armas. aos pobres. Outra coisa é quando se
Ela perdeu popularidade midiática, sai em defesa deles, o que provoca
sem dúvida nenhuma. IHU On-Line – Em que sentido a um conflito social. Nesse sentido,
vivência com o povo de El Salvador o povo pobre ensina a nós, que não
IHU On-Line – Mas hoje não te- ensina a fazer uma teologia atenta somos pobres, a ver melhor as coisas
mos mais ditaduras militares; vive- aos sinais dos tempos? do mundo real, porque vive uma rea-
mos em uma democracia... Jon Sobrino – O que faço é uma lidade que não vivemos. Em geral, os
Jon Sobrino – As ditaduras mi- teologia junto aos pobres, de alguém pobres não querem servir de exem-
litares usavam força militar, ou seja, interessado pelos pobres e, sobretu- plo para ninguém. Eles simplesmente
armas, com as quais podiam matar e do, foi designado a mim, em El Salva- dão o exemplo pela experiência, pelo
assim o fizeram. Agora o que temos dor, mais do que estar com os pobres, modo de ser e nos evangelizam.
são democracias capitalistas. E que po- estar perto de pessoas perseguidas.
der elas têm? O capital. Este não mata Quando cheguei a El Salvador não ti-
normalmente, porque pode enganar nha a mais remota ideia do que iria
ou comprar as pessoas de outras for- me acontecer, pois eu vinha dos meus
mas. A Teologia da Libertação pode estudos na Alemanha. Ao nos sentir- Leia mais...
realmente ter perdido forças. O que mos tocados pela realidade, nos move
não perde as forças é o capital. Por a vontade de fazer algo de concreto >> Jon Sobrino já concedeu outra
exemplo, a Copa do Mundo e os Jogos por ela. Fiz minha tese de doutorado entrevista à IHU On-Line. Confira:
Olímpicos que serão realizados no Bra- em Frankfurt sobre a cristologia, mas
sil irão ser eventos fantásticos e que foi em El Salvador, no ano de 1970, • O absoluto é Deus, e o coabsoluto
não correm nenhum risco de fracasso, que aprendi porque mataram Jesus
porque são expressões do capital. No de Nazaré, porque o crucificaram no são os pobres. Publicada na edição
entanto, uma universidade que pensa, ano 30 ou 33. Paulo foi morto deca-
número 404, de 05-10-2012, dispo-
uma igreja que predica, pode perder pitado com uma espada, o que era
força no sentido de que os ricos dizem: uma morte digna na cultura romana. nível em http://bit.ly/OnKxGt
“essas não incomodam mais”. A morte na cruz, além de ser uma
www.ihu.unisinos.br

Leia as entrevistas
do dia no sítio do IHU:
www.ihu.unisinos.br

42 SÃO LEOPOLDO, 10 DE DEZEMBRO DE 2012 | EDIÇÃO 411


Teologia Pública

Destaques da Semana
A espiral da violência, a superação
do ressentimento e a gratuidade
do bem
Sistema ambíguo que pode gerar muitos sofrimentos, a religião precisa abandonar
seu lado sacrificial, pondera Carlos Mendoza. Ações cotidianas, dos justos, é que
mudam o curso da história e permitem que a humanidade continue a existir

Por Márcia Junges / Tradução: Márcia Junges

“A
s pessoas não perdem a esperan- profetas de todas as religiões são incômodos
ça. A partir dessas vítimas com para as suas instituições porque as colocam
seus atos de solidariedade é que em questionamento”. Mendoza acentua que
podemos começar a reconstruir um mundo é nos gestos cotidianos de homens e mu-
um pouco diferente”, disse o teólogo mexica- lheres comuns que a humanidade consegue
no Carlos Mendoza, na entrevista que conce- sobreviver: “De outro modo, já teríamos nos
deu pessoalmente à IHU On-Line por ocasião destruídos todos se não houvesse homens e
de sua vinda ao Congresso Continental de mulheres que detêm a espiral de violência
Teologia, sediado pelo Instituto Humanitas em sua própria vida cotidiana”.
Unisinos – IHU em outubro. A seu ver, é pre- Carlos Mendoza-Alvarez se formou em
ciso descobrir na exclusão os atos de “gratui- Filosofia, pela Universidade Autônoma do
dade, de doação e amor não recíproco, de México, e fez doutorado em Teologia, em
generosidade. Em meio a tanta exclusão as Paris e Friburgo (Suíça). Em sua tese de dou-
pessoas não se desumanizam, mas chegam torado procurou tecer um diálogo com o
a tocar o fundo de si mesmas e dar o melhor pensamento hermenêutico de Paul Ricoeur,
de si aos outros”. Ele fala, ainda, que muitos a ética da alteridade de Emmanuel Levinas www.ihu.unisinos.br
pensadores tem proposto uma religião sem e a teoria mimética de René Girard. Dentre
religião, que excluiria a mentalidade sacrifi- seus escritos, destaca-se o livro O Deus es-
cial, através da qual sempre há necessidade condido da pós-modernidade: desejo, me-
de uma vítima. “Esses autores dizem que a mória e imaginação escatológica. Ensaio
religião é um sistema de poder, crenças e de teologia fundamental pós-moderna (São
ritos e como sistema gera sacrifícios, exclu- Paulo: É Realizações, 2011). Mendoza par-
são e algum tipo de sofrimento. Por isso se ticipou do Congresso Continental de Teolo-
afirma que a religião só corresponde a um gia falando sobre o tema “modernidade e
momento da vida espiritual. Há outro que pós-modernidade”.
vai mais além da religião, e os místicos e Confira a entrevista.

EDIÇÃO 411 | SÃO LEOPOLDO, 10 DE DEZEMBRO DE 2012 43


IHU On-Line – Entre avanços e
“As guerras IHU On-Line – Como podemos
Destaques da Semana
recuos, como analisa os 40 anos da compreender que haja uma religião
Teologia da Libertação?
Carlos Mendoza – Analiso como religiosas são sem religião?
Carlos Mendoza – Essa é uma
um sinal dos tempos da recepção cria-
tiva do Concílio Vaticano II1 na América uma contradição tendência apontada por vários auto-
res, sejam teólogos ou líderes espiri-
Latina. Isso quer dizer que a Teologia
da Libertação é uma experiência ecle- e sem dúvida tuais, porque a religião está associa-
da ao sacrifício. Há uma mentalidade
sial, de pensamento e cultura afortu-
nada que temos desse Concílio. Isso são a violência sacrificial segundo a qual sempre ne-
cessitamos de alguma vítima, como
porque tomou muito a sério e a fundo
os desafios do mundo moderno, visto mais terrível que diz Girard2 e outros pensadores. Es-
ses autores dizem que a religião é
desde o reverso da história, ou seja, a
partir das vítimas, dos excluídos, dos a humanidade um sistema de poder, crenças e ritos
e como sistema gera sacrifícios, ex-
pobres, coisa que o Concílio Vaticano
II assinalou com os sofrimentos, ale- já conheceu – clusão e algum tipo de sofrimento.
Por isso se afirma que a religião só
grias, tristezas e angústias dos pobres.
Nas conferências de Medellín tomou- tudo em nome corresponde a um momento da vida
espiritual. Há um outro que vai mais
-se a sério um pensamento teológico
que lhe deu articulação teórica com de Deus. Hoje, além da religião, e os místicos e pro-
fetas de todas as religiões são incô-
presença nos processos sociais – a Te-
ologia da Libertação. nos damos conta modos para as suas instituições por-
que as colocam em questionamento.

IHU On-Line – A partir dessa de que a religião Foi o que fizeram São João da Cruz3,
Santa Teresa4 e grandes místicos an-
realidade pós-moderna, quais se-
riam os principais desafios dessa é um sistema 2 René Girard (1923): filosofo e antro-

ambíguo que pode


teologia? pólogo francês. Partiu para os Estados
Unidos para dar aulas de francês. De suas
Carlos Mendoza – O principal obras, destacamos La Violence et le Sacré
desafio é se abrir aos excluídos de
todo o sistema de dominação e a gerar grandes (A violência e o sagrado), Des Choses Ca-
chées depuis la Fondation du Monde(Das
coisas escondidas desde a fundação do
partir daí reler a passagem de Deus
como fizeram a primeira geração de sofrimentos” mundo), Le Bouc Émissaire (O Bode ex-
piatório), 1982. Todos esses livros foram
publicados pela Editora Bernard Grasset
teólogos, falando dos pobres desde de Paris. Ganhou o Grande Prêmio de Fi-
sua experiência de empobrecimento losofia da Academia Francesa, em 1996,
social, econômico e cultural. Agora e o Prêmio Médicis, em 1990. O seu livro
sua situação como consequência da mais conhecido em português é A violên-
temos consciência de que há outras cia e o sagrado (São Paulo: Perspectiva,
exclusão, de sua busca por um outro
expressões da exclusão e do sofri- 1973). Sobre o tema desejo e violência,
tipo de racionalidade e comunhão. confira a edição 298 da revista IHU On-Li-
mento, e a Teologia da Libertação
Isso quer dizer que a Teologia Femi- ne, de 22-06-2009, disponível em http://
dá espaço para inspirar muitas teo- bit.ly/doOmak. Leia, também, a edição
nista é um bom exemplo de como a especial 393 da IHU On-Line, de 21-05-
logias novas, contextualizadas por
teologia latino-americana enrique- 2012, sobre o pensamento de Girard, in-
grupos como as mulheres. A teologia titulada O bode expiatório, o desejo e a
ceu com essas outras vozes, com no-
feminista se sabe e se diz devedora vioLência (Nota da IHU On-Line)
vas identidades. 3 João de Yepes ou São João da Cruz
da Teologia da Libertação. Claro que
Contudo, seguem-se pendentes (1542-1591): ingressou na Ordem dos
www.ihu.unisinos.br

agora ela caminha sozinha. Trata-se Carmelitas aos 21 anos de idade, em


outros grupos, como os povos ori- 1563, quando recebe o nome de Frei
de uma teologia que as mulheres
ginários latino-americanos, que em João de São Matias, em Medina del Cam-
constroem a partir de sua experiên- po. Em setembro de 1567 encontra-se
1992, data do quinto centenário da
cia pessoal de empoderamento, de com Santa Teresa de Jesus, que lhe fala
chegada de Colombo às Américas, sobre o projeto de estender a Reforma
reafirmam sua identidade para se- da Ordem Carmelita também aos padres.
1 Sobre o tema, confira as seguintes edi- rem povos não colonizados, com sua Aceitou o desafio e trocou o nome para
ções da IHU On-Line: 157, de 26-09-2005, João da Cruz. No dia 28 de novembro de
intitulada Há lugar para a Igreja na socie- própria língua, tradições, práticas 1568, juntamente com Frei Antônio de
dade contemporânea? Gaudium et Spes: jurídicas e identidade cultural, além Jesús Heredia, inicia a Reforma. No dia
40 anos, disponível para download na 25 de janeiro de 1675 foi beatificado por
página eletrônica do IHU, http://migre. dos símbolos religiosos. Essa é outra Clemente X. Foi canonizado em 27 de de-
me/KtJn; 297, Karl Rahner e a ruptura teologia que é muito vital e produti- zembro de 1726 e declarado Doutor da
do Vaticano II, de 15-6-2009, disponível va nos últimos anos, também filha do Igreja em 1926 por Pio XI. Em 1952 foi
no link http://migre.me/KtJE; 401, de proclamado “Patrono dos Poetas Espa-
03-09-2012, intitulada Concílio Vaticano Concílio Vaticano II e da Teologia da nhóis”. Sua festa é comemorada no dia
II. 50 anos depois, disponível em http:// Libertação. 14 de dezembro. (Nota da IHU On-Line)
bit.ly/REokjn. (Nota da IHU On-Line) 4 Teresa de Ávila (1515 - 1582): freira

44 SÃO LEOPOLDO, 10 DE DEZEMBRO DE 2012 | EDIÇÃO 411


tigos e modernos que acentuam ser
“As ações dos ça interior que chamamos de Deus.

Destaques da Semana
a instituição um meio apenas, e não Por isso os justos são seres trans-
um fim. Diversos autores dizem que
a religião, às vezes, separa em vez de justos não são parentes, translúcidos, íntegros de
coração. São pessoas coerentes com
unir. As guerras religiosas são uma
contradição e sem dúvida são a vio- espetaculares, são seus princípios de escuta, abertura e
simpatia para com o Outro.
lência mais terrível que a humanida-
de já conheceu – tudo em nome de cotidianas, e é isso IHU On-Line – Hans Küng disse
Deus. Hoje nos damos conta de que
a religião é um sistema ambíguo que que faz mudar a que o Concílio Vaticano II foi uma
espécie de dislexia. A partir dessa
pode gerar grandes sofrimentos. Por
isso alguns autores dizem que é pre- história. A história afirmação, pode-se pensar que a te-
ologia de Roma seria como a coruja
ciso ir mais além do sistema de cren-
ças, doutrinas e moral para então existe graças a de Minerva de Hegel, que só levanta
voo ao entardecer, ou seja, chega tar-
entrar numa dimensão mais contem-
plativa da experiência religiosa. Os esses pequenos de demais para um mundo em cons-
tante mutação?
meios se demonstram curtos porque
a experiência é mais rica e compro- atos cotidianos Carlos Mendoza – Creio que
inclusive em Roma há muitas teo-
metedora, o que representa um de-
safio ao falar de religião sem religião. de generosidade, logias. Há uma que é mais solene e
oficial quando se expressa em do-
Isso implica em mais mística e expe-
riência espiritual, além de mais com- de justiça e cumentos dirigidos aos bispos e à
Igreja em geral. Nos encontros mais
promisso ético. O que tal pensamen-
to propõe é ir mais além da religião, compromisso com pessoais, com pastores ou líderes,
há outras compreensões mais be-
em sua experiência originária.
a verdade. Essa nevolentes e compassivas, menos
formais. Há uma tendência a centra-
IHU On-Line – A exclusão tem
muitos rostos. Como podemos com- é a vida” lizar a discussão e fechá-la nos de-
bates, mantendo a autoridade. Mas
preender que através desses rostos, isso não é exclusivo da igreja hierár-
dessa alteridade, se revele o rosto de quica, mas das instituições de poder,
Deus? que foram sacrificados, que supera inclusive como as empresas. Creio
Carlos Mendoza – Porque nes- seu ressentimento, graças a esses que esse seja o problema: devemos
ses rostos e experiências de gra- atos concretos a humanidade pode compreender a Igreja como mais do
tuidade há algo que transcende os sobreviver. De outro modo, já terí- que uma empresa ou um sistema
limites do humano e do mal. Isso amos nos destruídos todos se não de poder. A Igreja existe desde o
que dizer quer através de uma pes- houvesse homens e mulheres que primeiro inocente que foi vitimado.
soa que compartilha seu pão, que detêm a espiral de violência em sua Creio que devemos ter uma compre-
perdoa e guarda a memória dos própria vida cotidiana. Não se trata ensão de Igreja mais inclusiva da his-
de grandes atos heroicos, mas a par- tória humana, porque essa institui-
tir de uma perspectiva de reverter ção existe como grande projeto para
carmelita espanhola nascida em Ávila,
Castela, famosa reformadora da ordem em seu corpo, em sua sensibilida- que nós humanos vivamos com um
das Carmelitas. Canonizada por Gregório de e inteligência, toda a violência, pouco mais de dignidade.
XV (1622), é festejada na Espanha em 27
transformando-a em outra coisa.
www.ihu.unisinos.br
de agosto, e no resto do mundo em 15 de
outubro. Foi a primeira mulher a receber Isso fazem os pais de família com
o título de doutora da igreja, por decre- seus filhos, o artista ao criar, o líder
to de Paulo VI (1970). Entre seus livros
citam-se Libro de su vida (1601), Libro
de las fundaciones (1610), Camino de la
social que promove uma mudança
de justiça para sua comunidade. As
Leia mais...
perfección (1583) e Castillo interior ou ações dos justos não são espetacu-
Libro de las siete moradas (1588). Escre- >> Carlos Mendoza já concedeu outra
veu também poemas, dos quais restam 31 lares, são cotidianas, e é isso que faz
entrevista à IHU On-Line. Confira:
deles, e enorme correspondência, com mudar a história. A história existe
458 cartas autenticadas. Sobre Teresa,
graças a esses pequenos atos coti- • É possível falar de Deus na socieda-
confira Teresa - A Santa Apaixonada, (Rio
de Janeiro: Objetiva, 2005), de autoria dianos de generosidade, de justiça de contemporânea? Edição 404, de
de Rosa Amanda Strausz; Obras comple- e compromisso com a verdade. Essa
tas (São Paulo: Loyola, 1995) e Santa Te- 05-10-2012, disponível em http://
resa de Jesus – “Livro da vida” (4ª ed., é a vida. Devo “pagar” essa fatura
bit.ly/RNKfs5
São Paulo: Ed. Paulus, 1983). (Nota da porque estou habitado por uma for-
IHU On-Line)

EDIÇÃO 411 | SÃO LEOPOLDO, 10 DE DEZEMBRO DE 2012 45


Livro da Semana
Destaques da Semana

BRAGA. Ruy. A política do precariado. São Paulo:


Boitempo, 2012.

A política do precariado e a
mercantilização do trabalho
Conceito ressignificado da sociologia francesa por Ruy Braga ajuda a compreender as
relações trabalhistas no Brasil, especialmente questões como as greves de 2011 e as
peculiaridades da atividade dos operadores de call center

Por Márcia Junges e Graziela Wolfart

“N
o capitalismo, como o trabalha- periféricas”. As demandas das pautas operá-
dor é despojado de meios de rias remetem, via de regra, ao “velho regime
produção, necessitando vender fabril despótico, agora revigorado pelas ter-
sua força de trabalho para poder viver, a in- ceirizações e pelas subcontratações”. A entre-
segurança o acompanha desde o início de sua vista a seguir foi inspirada no lançamento de
trajetória como assalariado. Afinal, ele preci- sua obra A política do precariado (São Paulo:
sa encontrar alguém que compre sua única Boitempo, 2012).
mercadoria em condições sociais médias”. A Ruy Braga é especialista em Sociologia
declaração é do sociólogo Ruy Braga na en- do Trabalho e leciona no Departamento de
trevista exclusiva que concedeu por e-mail à Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras
IHU On-Line. Exemplificando suas ideias, ele e Ciências Humanas da Universidade de São
afirma que “os teleoperadores resumem to- Paulo – USP, onde coordenou o Centro de Es-
das as tendências importantes do mercado de tudos dos Direitos da Cidadania – Cenedic.
trabalho no país na última década: formaliza- É graduado em Ciências Sociais pela Uni-
ção, baixos salários, terceirização, significativo versidade de Campinas – Unicamp, onde cur-
www.ihu.unisinos.br

aumento do assalariamento feminino, incor- sou mestrado em Sociologia e doutorado em


poração de jovens não brancos, ampliação Ciências Sociais. É pós-doutor pela Universi-
do emprego no setor de serviços, elevação dade Califórnia/Berkeley, nos Estados Unidos,
da taxa de rotatividade do trabalho, etc. Por e livre-docente pela Universidade de São Pau-
tudo isso, estudar a trajetória e o destino his- lo. Entre outros, é autor de Por uma sociolo-
tórico dos teleoperadores no Brasil é tão im- gia pública (São Paulo: Alameda, 2009).
portante. Eles são uma espécie de ‘retrato’ do Confira a entrevista.
precariado pós-fordista em condições sociais

IHU On-Line – O que é a política condições capitalistas periféricas. Em significando-o, da sociologia francesa.
do precariado? primeiro lugar, é preciso compreen- Trata-se daquele amplo contingente
Ruy Braga – É a prática políti- der o que entendo por “precariado”, de trabalhadores que, pelo fato de
ca do proletariado precarizado em conceito que tomei emprestado, res- possuírem qualificações escassas, são

46 SÃO LEOPOLDO, 10 DE DEZEMBRO DE 2012 | EDIÇÃO 411


admitidos e demitidos muito rapi-
“Em países rendimentos do trabalho associada

Destaques da Semana
damente pelas empresas, ou encon- à inquietação social com os baixos
tram-se no campo, na informalida-
de ou são ainda jovens em busca do capitalistas salários, com as péssimas condições
de trabalho e o com o aumento do
primeiro emprego, ou estão inseridos
em ocupações tão degradantes, su- periféricos endividamento das famílias promovi-
do pelo atual regime de acumulação
bremuneradas e precárias que resul-
tam em uma reprodução anômala da como o Brasil, o financeirizado.

força de trabalho.
Em países capitalistas periféricos precariado forma IHU On-Line – Por que a preca-
riedade é inevitável no processo de
como o Brasil, o precariado forma um
contingente enorme da classe traba- um contingente mercantilização do trabalho?
Ruy Braga – Basicamente, trata-
lhadora, permanentemente espremi-
do entre o aumento da exploração enorme da classe -se de uma característica da pró-
pria relação salarial capitalista. No
econômica e a ameaça da exclusão
social. Em termos teóricos, retirei do trabalhadora, capitalismo, como o trabalhador é
despojado de meios de produção,
precariado, tanto os trabalhadores
profissionais, aqueles com qualifica- permanentemente necessitando vender sua força de
trabalho para poder viver, a insegu-
ções ecassas, por isso, percebendo um
salário melhor e mais estáveis, quanto espremido entre rança o acompanha desde o início
de sua trajetória como assalariado.
a população pauperizada – envelheci-
da, acidentada, inapta para o trabalho o aumento da Afinal, ele precisa encontrar alguém
que compre sua única mercadoria em
– além daquilo que Marx chamava
de “lumpemproletariado”, ou seja, o exploração condições sociais médias. E isso não
é nada simples... Historicamente, o
“lixo de todas as classes”, indivíduos
que vivem de práticas “incofessáveis”, econômica e desenvolvimento das lutas de classes
criou instituições capazes de diminuir
mendigos, etc. Em minha opinião, é a
existência de um amplo precariado, e a ameaça da essa insegurança, como a previdência
social ou o seguro desemprego.
não de um enorme contingente em-
pobrecido, que caracteriza a reprodu- exclusão social” No entanto, em momentos de
crise econômica, como o que estamos
ção do capitalismo periférico. vivendo hoje na Europa, essas con-
Assim, busquei caracterizar so- quistas tendem a ser enfraquecidas
ciologicamente a prática política des- pela reação das classes dominantes
se precariado após a industrialização IHU On-Line – Qual é o seu con- que procuram restabelecer condi-
fordista no país por meio da análise texto de surgimento e como pode ser ções “ótimas” para o consumo da
do que eu chamei de “classismo em compreendida em nossos dias? mercadoria força de trabalho, com a
estado prático”, ou seja, uma relação Ruy Braga – Analisei a formação diminuição forçada dos “custos” de
política baseada em interesses mate- e as transformações dessa prática po- reprodução e do preço da força de
riais enraizados na estrutura de clas- lítica em dois momentos: durante a trabalho. Isso significa, em termos
ses, ainda que carente de recursos industrialização fordista no país, isto práticos, atacar os direitos sociais que
organizativos, ideológicos e políticos. é, entre os anos 1950 e 1980, e, logo marcaram a expansão capitalista no
Tendo em vista os estreitos limites depois, ao longo da transição pós-for- segundo pós-guerra. Evidentemente,
impostos pelo modelo de desenvol- dista que deu origem ao regime de esses ataques aos direitos significam www.ihu.unisinos.br
vimento periférico às concessões acumulação financeirizado brasileiro. um aumento da insegurança social e
trabalhistas, assim como a existên- Destaquei a relação da prática políti- um aprofundamento da precariedade
cia de condições sempre precárias ca do proletariado precarizado com laboral.
de reprodução da força de trabalho, os distintos modos de regulação dos
esta prática vê-se obrigada a politi- conflitos classistas que emergiram no IHU On-Line – Quais são as pe-
zar rapidamente suas reivindicações, pós-guerra: as regulações populista, culiaridades do precariado entre os
radicalizando suas iniciativas. A meu autoritária, neopopulista, neoliberal operadores de call center?
ver, o classismo prático traduz em- e lulista. Atualmente, a política do Ruy Braga – Os teleoperadores
piricamente um reformismo plebeu precariado pode ser sintetizada da resumem todas as tendências impor-
instintivamente anticapitalista, sin- seguinte maneira: proximidade do tantes do mercado de trabalho no
dicalmente refratário à colaboração proletariado precarizado com a regu- país na última década: formalização,
com as empresas e politicamente lação lulista e com as políticas públi- baixos salários, terceirização, signi-
orientado pela crença no poder de cas que estimularam a desconcentra- ficativo aumento do assalariamento
decisão das bases. ção de renda entre os que vivem dos feminino, incorporação de jovens não

EDIÇÃO 411 | SÃO LEOPOLDO, 10 DE DEZEMBRO DE 2012 47


brancos, ampliação do emprego no em Pernambuco2, e por aí vai… Tudo ção do populismo no sentido da Au-
Destaques da Semana
setor de serviços, elevação da taxa de somado, o Dieese calculou em 170 mil fhebung hegeliana (nega, conserva e
rotatividade do trabalho, etc. Por tudo o número de trabalhadores que, so- eleva a um patamar superior)?
isso, estudar a trajetória e o destino mente em março de 2011, cruzaram Ruy Braga – Ao contrário daque-
histórico dos teleoperadores no Brasil os braços. les que interpretaram a relação do sin-
é tão importante. Eles são uma espé- Nas pautas operárias, encontra- dicalismo populista pré-1964 com o
cie de retrato do precariado pós-for- mos invariavelmente demandas por “novo sindicalismo” do final dos anos
dista em condições sociais periféricas. reajuste dos salários, adicional de pe- 1970 em termos de uma “ruptura ra-
riculosidade, equiparação salarial para dical com o passado”, sustentamos
IHU On-Line – Pensando no con- as mesmas funções, direito de voltar uma posição distinta. Do ponto de vis-
texto brasileiro, como o precariado se para as regiões de origem a cada 90 ta do relacionamento do precariado
apresenta nas greves e nos caminhos dias, fim dos maus-tratos, melhoria com as lideranças sindicais e do rela-
tomados pelos movimentos sociais? de segurança, da estrutura sanitária e cionamento destas com o aparelho de
Ruy Braga – Apesar do notório da alimentação nos alojamentos… Ou Estado, argumentamos no livro que a
controle do governo federal sobre os seja, demandas que nos remetem ao hegemonia lulista, ao mesmo tempo,
movimentos sociais, o atual regime de velho regime fabril despótico, agora nega, conserva e eleva a regulação
acumulação pós-fordista consolidou revigorado pelas terceirizações e pe- populista. Ou seja, em vez de uma ex-
uma face despótica que alimenta uma las subcontratações. Apesar disso, as terioridade formal, percebemos entre
insatisfação difusa na base, desafian- políticas públicas do governo federal os distintos regimes uma relação his-
do a regulação lulista dos conflitos tra- têm garantido certo fôlego ao atual tórica de superação dialética.
balhistas. Bastaria lembrarmos a onda modelo, assegurando boas doses de Conforme nosso argumento, o
de paralisações, greves e rebeliões popularidade aos gestores lulistas. momento “negativo” deve ser busca-
operárias que se espalhou em março Esse ponto é central: argumen- do no amadurecimento da experiên-
de 2011 pela indústria da construção tamos no livro que a hegemonia cia operária ao longo do ciclo grevista
civil, atingindo algumas das principais lulista originou-se de uma “revolu- de 1978-1980, o “conservador” na re-
obras do Programa de Aceleração do ção passiva à brasileira” apoiada na conciliação da burocracia de São Ber-
Crescimento – PAC do governo fede- unidade entre duas formas de con- nado com a estrutura sindical oficial e
ral: 22 mil trabalhadores parados na sentimento popular: por um lado, o a “elevação” na conquista do gover-
hidrelétrica de Jirau1 em Rondônia; consentimento passivo das classes no federal em 2002 que possibilitou
16 mil na hidrelétrica de Santo Antô- subalternas que, atraídas pelas polí- àquela burocracia sindical converter-
nio; alguns milhares na hidrelétrica ticas públicas redistributivas e pelos -se em gestora da poupança dos tra-
de São Domingos no Mato Grosso do modestos ganhos salariais advindos balhadores. Dessa maneira, identifica-
Sul; 80 mil trabalhadores grevistas do crescimento econômico, aderiram mos a origem – mas apenas a origem
em diferentes frentes de trabalho na momentaneamente ao programa go- – da relação hegemônica lulista no
Bahia e Ceará; dezenas de milhares vernista; por outro, o consentimento “novo sindicalismo” e sua peculiar
no Complexo Petroquímico de Suape ativo das direções sindicais, seduzidas combinação de consentimento passi-
por posições no aparato estatal, além vo das bases à liderança da burocracia
das incontáveis vantagens materiais sindical de São Bernardo com a incor-
1 Usina Hidrelétrica de Jirau: usina hi-
drelétrica em construção no Rio Madeira, proporcionadas pelo controle dos poração ativa daqueles que mais se
a 150 km de Porto Velho, em Rondônia. fundos de pensão. Trata-se de uma destacaram durante o longo período
Foi planejada para ter um reservatório relação hegemônica que deve conti- grevista iniciado em 1978 ao aparato
de 258 km², que terá capacidade instala-
da de 3.450MW, e faz parte do Complexo nuar se reproduzindo por um bom pe- sindical.
do Rio Madeira. A construção está a cargo ríodo, apesar das flagrantes explosões
www.ihu.unisinos.br

do consórcio “ESBR - Energia Sustentável


do Brasil”, formado pelas empresas Suez de descontentamento com salários e
Energy (50.1%), Eletrosul (20%), Chesf condições de trabalho, como as que
(20%) e Camargo Corrêa (9,9%). Confira eu mencionei, e que tendem a se in-
os materiais publicados pela IHU On-Line
sobre Jirau: Conjuntura da Semana. A tensificar ainda mais no futuro, tendo
rebelião de Jirau, disponível em http://
bit.ly/e5FnmE; Sindicato estima que
3.000 vão deixar obra de Jirau, dispo-
em vista o cenário de desaceleração
econômica. Leia mais...
nível em http://bit.ly/luCiCN; Operário
maranhense morre na hidrelétrica de
>> Ruy Braga já concedeu outra
IHU On-Line – Em que medida
Jirau, disponível em http://bit.ly/ma- entrevista à IHU On-Line. Confira:
dqwN; Jirau hoje, Belo Monte amanhã o lulismo se caracteriza pela supera-
– Relatório aponta violações em Jirau • O desmantelamento do estado de
e prevê repetição em Belo Monte, dis-
ponível em http://bit.ly/mAJJ6E. Leia, 2 Sobre o tema, confira Suape: um desa- bem-estar social é o DNA do capita-
também, a edição 39 dos Cadernos IHU fio para Pernambuco. Entrevista especial
Em Formação, intitulada Usinas hidrelé- com Valdeci Monteiro dos Santos, publi- lismo. Notícias do Dia 28-09-2012,
tricas no Brasil: matrizes de crises socio- cada nas Notícias do Dia do site do IHU,
ambientais, disponível em http://bit.ly/ em 24-04-2012, disponível em http://bit. disponível em http://bit.ly/VSYdd4
ih0UqU. (Nota da IHU On-Line) ly/I6y7jn. (Nota da IHU On-Line)

48 SÃO LEOPOLDO, 10 DE DEZEMBRO DE 2012 | EDIÇÃO 411


Destaques On-Line

Destaques da Semana
Entrevistas especiais feitas pela IHU On-Line no período de 04-12-2012 a 07-11-2012, disponíveis nas
Entrevistas do Dia do sítio do IHU (www.ihu.unisinos.br).

Sobrevivente dos anos de chumbo. Agrotóxicos: “Flexibilizar a lei gaúcha


Depoimento e apelo seria um retrocesso”
Entrevista com Anivaldo Padilha, sociólogo e Entrevista especial com Jaime Weber
membro do grupo de trabalho constituído pela Confira nas Notícias do Dia de 06-12-2012
Comissão Nacional da Verdade que investiga o Acesse no link http://migre.me/cgyjE
papel das igrejas durante a ditadura militar
Confira nas Notícias do Dia de 04-12-2012 “É estranho que o Brasil, na tentativa de resolver o
Acesse no link http://migre.me/cgy92 problema da fome, use uma série de tecnologias no
sentido de aumentar a produtividade. Mas o fato
O sociólogo solicita a colaboração para enviar é que desde 2008 o Brasil é o maior consumidor
informações ao seu email apadilha@distopia.com de agrotóxicos do mundo”, constata o engenheiro
que possam contribuir para o trabalho do Grupo agrônomo.
de Trabalho conduzido pela Comissão Nacional da
Verdade, que investiga o papel das igrejas durante a
ditadura.
A política energética e a MP 579: um
debate político e corporativista
A rotulagem e a flexibilização geral dos Entrevista especial com Célio Bermann,
transgênicos pesquisador do Instituto de Eletrotécnica e
Energia da USP
Entrevista especial com José Maria Ferraz, Confira nas Notícias do Dia de 07-12-2012
professor do curso de mestrado em Agroecologia Acesse no link http://migre.me/cgyua
e Desenvolvimento Rural da UFSCar e professor
convidado da Universidade Estadual de “A MP 579 apenas reforça o caráter autocrático
Campinas com que o atual governo procura conduzir a política
Confira nas Notícias do Dia de 05-12-2012 energética no país”, declara o pesquisador.
Acesse no link http://migre.me/cgyfI

“A partir da regulamentação do feijão transgênico


dá para se ter uma ideia de como está funcionando
a lei de biossegurança no país. Na verdade, ela está
favorecendo o interesse do agronegócio e não da
população”, observa o membro da CTNBio.
www.ihu.unisinos.br

LEIA OS CADERNOS TEOLOGIA PÚBLICA


NO SITE DO IHU
WWW.IHU.UNISINOS.BR

EDIÇÃO 411 | SÃO LEOPOLDO, 10 DE DEZEMBRO DE 2012 49


Tema
de
Capa

Destaques
da Semana
www.ihu.unisinos.br

IHU em
Revista
50 SÃO LEOPOLDO, 00 DE XXX DE 0000 | EDIÇÃO 000
IHU em Revista
Elefante Branco e uma igreja
humana, demasiado humana
O cinema argentino é um cinema de emoções, que sabe trabalha-las tanto no nível
individual, como no social. Em Elefante Branco vê-se algo diferente, que expõe mais
as feridas e escancara as suas relações humanas, afirma Celso Sabadin

Por Thamiris Magalhães

FICHA TÉCNICA
Título original: Elefante Blanco
Título em português: Elefante Branco
Diretor: Pablo Trapero
Elenco: Ricardo Darín, Martina Gusman, Jérémie Renier, Federico Benjamín Barga, Mauricio MInetti, Walter Jakob
Produção: Alejandro Cacetta, Juan Pablo Galli, Juan Gordon, Pablo Trapero, Juan Vera
Roteiro: Pablo Trapero
Fotografia: Guillermo Nieto
Duração: 110 min
Ano: 2012
País: Argentina, Espanha
Gênero: Drama
Cor: Colorido
Distribuidora: Paris Filmes
Estúdio: Matanza Cine / Morena Films / Patagonik Film Group
Classificação: 16 anos
www.ihu.unisinos.br
Elefante Branco, segundo Celso é supervilão, todos têm suas motiva- partir de 1979, jornalista e crítico de
Sabadin, em entrevista concedida por ções, não há maniqueísmos fáceis. É cinema brasileiro. Foi crítico de cine-
e-mail à IHU On-Line, é original por um filme que trabalha dentro de pa- ma em diversos veículos. Produziu e
ser o primeiro filme argentino a expor radigmas estabelecidos”. apresentou programas de rádio sobre
abertamente a temática social. “Já vi O longa foi exibido e debatido no trilhas sonoras de cinema. De 1989 a
filmes de várias nacionalidades fa- Instituto Humanitas Unisinos – IHU 2001, foi apresentador, roteirista e crí-
zendo isso, mas nunca tinha visto um no dia 6 de dezembro último, em três tico de cinema na Rede Bandeirantes
argentino. E ele o faz com qualidade”, oportunidades. e nos canais Band News e Canal 21.
frisa. Para ele, há humanização no fil- Celso Sabadin é publicitário gra- Cobre Festivais nacionais e internacio-
me no sentido de que todos os perso- duado pela Escola Superior de Propa- nais de Cinema desde 1990.
nagens são bem construídos, críveis, ganda e Marketing e jornalista pela Confira a entrevista.
com suas fraquezas e qualidades. Fundação Cásper Líbero. Especializou-
“Ninguém é super-homem, ninguém -se em jornalismo cinematográfico a

EDIÇÃO 411 | SÃO LEOPOLDO, 10 DE DEZEMBRO DE 2012 51


IHU On-Line – De que maneira
“O cinema lão, todos têm suas motivações, não
IHU em Revista
Buenos Aires é retratada no filme? há maniqueísmos fáceis. É um filme
Celso Sabadin – É a Buenos Aires
que não se vê nos folhetos turísticos, argentino sempre que trabalha dentro de paradigmas
estabelecidos.
e que nós jamais vemos como visitan-
tes. É uma cidade mais real, onde a fa- trabalha dentro IHU On-Line – De que maneira
vela surge como símbolo do caos e do
desequilíbrio social. Uma favela e um de um grau de a Igreja se apresenta no longa-me-
tragem? Há certa crítica em relação
sistema de poder paralelo que lembra
muito o que acontece também aqui sensibilidade à instituição religiosa no filme? Por
quê?
no Brasil.
muito grande” Celso Sabadin – Acredito que o
filme questiona o conceito de sacer-
IHU On-Line – Qual a especifici- dócio, de ser impossível alguém abdi-
dade do cinema argentino em rela- car de sua própria condição humana
ção à sensibilidade diante das rela- no filme? Estas questões não são para se dedicar exclusivamente a uma
ções sociais? novas, não é mesmo? Então, qual é única causa. Isso parece ser impossí-
Celso Sabadin – O cinema argen- a originalidade do longa-metragem? vel. E há também uma insinuação de
tino sempre trabalha dentro de um Celso Sabadin – Ele é original por corrupção dentro da Igreja, que esta-
grau de sensibilidade muito grande. ser, pelo menos que eu tenha conhe- ria desviando o dinheiro das obras das
É um cinema de emoções, que sabe cimento, o primeiro filme argentino a favelas, o que eu também acho bas-
trabalhar muito bem as emoções hu- expor abertamente esta temática. Já tante plausível, já que os comandan-
manas tanto no nível individual como vi filmes de várias nacionalidades fa- tes de toda e qualquer instituição reli-
no social. Em Elefante Branco vemos zendo isso, mas nunca tinha visto um giosa – ainda que se finjam ser deuses
um cinema argentino um pouco mais argentino. E ele o faz com qualidade. – são bastante humanos e, portanto,
diferente, que expõe mais as feridas, passíveis de erros.
que escancara mais as suas relações IHU On-Line – Em que sentido
humanas. há humanização no filme? IHU On-Line – Que tipo de de-
Celso Sabadin – No sentido de núncia Elefante Branco almeja trazer
IHU On-Line – De que manei- que todos os personagens são bem à tona?
ra as drogas, a corrupção, moradias construídos, críveis, com suas fra- Celso Sabadin – Acima de tudo,
sub-humanas, invasões policiais, ti- quezas e qualidades. Ninguém é a injustiça social, que gera monstros
roteios, entre outros, são retratados super-homem, ninguém é supervi- sociais como aquela favela.

Leia as entrevistas
www.ihu.unisinos.br

do dia no sítio do IHU:

www.ihu.unisinos.br

52 SÃO LEOPOLDO, 10 DE DEZEMBRO DE 2012 | EDIÇÃO 411


Acesse as redes sociais do

Instituto Humanitas Unisinos - IHU

facebook

blog twitter

EDIÇÃO 411 | SÃO LEOPOLDO, 10 DE DEZEMBRO DE 2012 53


IHU Repórter
IHU em Revista

Tânia Torres Rossari


Por Thamiris Magalhães

“S
ou complexa, às vezes muito ra- Arquitetura da Unisinos Tânia Torres Rossari,
cional, noutras muito instintiva. em entrevista concedida pessoalmente à IHU
Além disso, sou crítica – talvez em On-Line. Trabalhando há 38 anos nesta insti-
excesso. Mas me acho alegre, o que contraba- tuição, Tânia frisa que adora os espaços ver-
lança. Adoro estudar, mas detestaria ser vista des que temos. Conheça um pouco mais sua
como ‘intelectual’ ou, o que é muito pior, uma trajetória de vida.
‘pseudointelectual’”, admite a professora de

Origem – Nasci no dia 27 julho população do planeta está demo- área é Teoria e História da Arquitetura
de 1945, em Porto Alegre, onde moro rando muito para perceber o quanto Mundial.
até hoje. Sou solteira e não tenho fi- cabe a nós.
lhos. Moro com minha irmã, Jane, que Unisinos – Ela é minha segun-
é bibliotecária aposentada. Meus pais Formação – Sou formada em da casa. Trabalho nesta instituição
são falecidos, sendo que minha mãe História, com mestrado em Antropo- desde 1974. São mais de 30 anos de
morreu há poucos meses, com 94 logia Social (Antropologia do Espa- memórias de todo tipo. E de muita
anos. Dona Carmen era excepcional. ço), na Universidade Federal do Rio atividade: pesquisa, graduação, ex-
Uma mulher saudável, trabalhadora, Grande do Sul – UFRGS – e esse é um tensões, especializações, viagens de
inteligente, corajosa e dedicadíssima. link excelente para a arquitetura, o estudo com os alunos... Nos anos
curso em que trabalho desde meu 1970, coordenei dois salões nacio-
Autodefinição – Sou complexa, ingresso. Não basta produzir ou viver nais de Arte e Arquitetura (chama-
às vezes muito racional, noutras mui- em espaços. É preciso pensar o Espa- dos Obraberta 1 e 2, respectivamen-
to instintiva. Além disso, sou crítica ço. Também cursei a Escola de Artes te). Hoje, olhando para trás, não sei
– talvez em excesso. Mas me acho da UFRGS por algum tempo – o sufi- como tive aquele pique. Aqui me
www.ihu.unisinos.br

alegre, o que contrabalança. Ado- ciente para fazer todas as disciplinas sinto perfeitamente à vontade. Ado-
ro estudar, mas detestaria ser vista das sequências de desenho e pintura ro os espaços verdes que temos, a
como “intelectual” ou, o que é muito – atividades que ainda me dão enor- beleza das plantas, dos nossos patos
pior, uma “pseudointelectual”. Acho me prazer. e gansos. Amo ver alguns gatinhos
que consegui evitar isso. Intelecto é por aqui, e apenas gostaria de suge-
muito, mas não é tudo. O lado emo- Curso – Durante alguns anos le- rir que tivéssemos algumas árvores
cional tem que estar bem resolvido. cionei Estética e Cultura de Massas como plátanos, bordos, enfim, aque-
E tem o lado físico. Por exemplo, sou para o curso de Comunicação na Uni- las que ficam vermelhas no outono.
cuidadosa com a minha imagem. sinos, (mas atualmente permaneço Teríamos um colorido todo especial!
Elegância e boa apresentação são apenas com o curso de Arquitetura, E, claro, ar condicionado sempre se-
importantes. Hoje me volto cada vez que foi, aliás, onde comecei e sempre ria um avanço em certos dias infer-
mais para as questões ecológicas. A lecionei, desde 1974). Aqui, minha nalmente quentes!

54 SÃO LEOPOLDO, 10 DE DEZEMBRO DE 2012 | EDIÇÃO 411


IHU em Revista
Lazer – Gosto muito de viajar. Conheço vários paí- rialidade e espiritualidade. Um lado olhando desconfia-
ses, principalmente europeus, mas ainda quero visitar do para o outro.
a Alemanha, a Irlanda, a Escócia e Canadá, por exem-
plo, que não conheço. Minhas cidades preferidas aí fora Sonho – Nessa fase da vida, não temos mais muitos
são Nova Yorque, Paris, Veneza e, mais perto, Buenos sonhos. Desejo apenas terminar bem cada dia. E com
Aires. Aqui no Brasil, admiro a imbatível beleza natural toda a saúde possível.
e a alegria do Rio de Janeiro. Ademais, não sei se pos-
so classificar de lazer meus quatros gatos. São fonte de IHU – Preencheu um vácuo. É muito importante no
alegria, ocupação e preocupação. Espécie de filhos. Se- contexto da Unisinos.
jamos honestas: às vezes shopping também faz muito
bem. Não sou xiita nessa discussão sobre cidade versus
shopping center. Os espaços novos podem ser tão in-
teressantes quanto os tradicionais. Não se trata de um
“grenal”. Ademais, gosto de romances do gênero dos de
Rosamunde Pilcher. O melhor dela, em minha opinião, é
www.ihu.unisinos.br

www.ihu.unisinos.br
Os catadores de conchas, que sabe descrever belíssimas
paisagens.

Filme – Para mim, cinema também é lazer e nesse


particular sou completamente eclética. Só não gosto de
filmes violentos ou de terror. Houve um filme, há muitos
anos atrás, que nunca esqueci: pela história, beleza das
imagens, trilha sonora: Lawrence da Arábia, de David
Lean, com Peter O’Toole no papel título. Ainda no pas-
sado, Dança com Lobos.

Religião – Nascida e criada no catolicismo, não sou


praticante. Acho que vivo num estranho limiar de mate-

EDIÇÃO 411 | SÃO LEOPOLDO, 10 DE DEZEMBRO DE 2012 55


Contracapa
IHU em Revista

Audições comentadas de música em 2013


Atividades relacionadas à música integram a
programação de Páscoa do IHU em 2013
com o objetivo de proporcionar momentos cele-
brativos através de audições comentadas de mú-
sica clássica e brasileira.

Para acessar a programação completa da


10ª Páscoa IHU, que conta com peças de Johann
Sebastian Bach e Franz Joseph Haydn, clique em
http://bit.ly/VrQj7L

IHU Cinema em 2013


polonês Krzysztof Kieslowski, acompanhada de
debates;
• Ciclo de filmes “Testemunhos”, sobre histórias
de pessoas que deram a vida no enfrentamento da
injustiça;
O IHU cinema é um espaço para assistir, debater • Ciclo de filmes “Jesus no cinema”, com abor-
e refletir sobre filmes e suas temáticas que estarão dagens sobre a vida de Jesus Cristo, relacionadas ao
disponíveis em três ciclos e uma palestra da progra- contexto de produção de cada filme;
mação do evento Páscoa IHU 2013. Nessa pers- • Palestra “O Decálogo de Krzysztof Kieslowski.
pectiva, a programação do IHU Cinema integra as Ética e Estética”, com reflexões de ética e estética
seguintes atividades: das obras.
• Ciclo de Filmes “Decálogo”, com exibições
da série de 10 filmes media-metragem do diretor Saiba mais em http://bit.ly/SSaFZk

Limites e desafios para os direitos humanos no Brasil


A edição número 180 dos Cadernos IHU Mais informações podem ser
ideias acaba de ser publicada, trazendo o artigo “Li- obtidas pelo telefone (51) 3590 4888.
mites e desafios para os direitos humanos no Brasil:
Entre o reconhecimento e a concretização”. O texto, de A versão completa desta edi-
autoria de Afonso Maria das Chagas, mestrando em ção estará disponível no sítio do
Direito pela Unisinos, apresenta uma reflexão sobre di- IHU (www.ihu.unisinos.br) a par-
reitos humanos na atual conjuntura social. tir de 4 de janeiro de 2013, para
download em formato PDF.
Os Cadernos IHU ideias podem ser adquiridos na
Livraria Cultural, no campus da Unisinos ou pelo ende-
reço livrariaculturalsle@terra.com.br

twitter.com/ihu bit.ly/ihufacebook

Вам также может понравиться