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Da Performatividade
do
Corpo Existente
Allan Kaprow
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Origem da poesia é não ter nada a
dizer. O que é, para a linguagem,
falar é, para a poesia, falhar. Assim,
é preciso que a linguagem falhe,
para que o poeta fale.
Ferreira Gullar
O presente trabalho parte da obra teórica de Alberto Pimenta, com uma incidência
particular em O Silêncio dos Poetas, representando uma tentativa de problematizar a
estética que, no entender do poeta, é talvez a única fundadora nos dias de hoje.
A partir do desenvolvimento das reflexões de Alberto acerca da arte literária
emancipada, pareceu-me particularmente pertinente indagar o lugar e o papel do corpo
nesta estética.
Além de poeta, Alberto é ainda conhecido pelas suas performances. Pretendo
demonstrar que ambos os campos artísticos são indissociáveis nos dias que correm; vias
intercomunicantes do artista se expressar e problematizar a criação artística, o tempo e
espaço atuais e o seu lugar possível de atuação no seio (talvez seja antes à margem,
como seguidamente veremos) dessa situação. Parece-me então essencial situar o
trabalho teórico de Alberto no contexto histórico-cultural no e do qual surge.
Neste sentido, procuro evidenciar, a partir da leitura de O Silêncio dos Poetas, a arte
estética que radica de um gesto de dissidência”, graças à qual se torna possível
incorporar a complexidade e multiplicidade das vivências do sujeito múltiplo, como
resposta a um sistema normativo poetológico que deriva de um modelo totalitário da
racionalidade.
Este salto – entre a língua como domínio alienante e o discurso do corpo enquanto
entidade de afirmação da singularidade do sujeito –, resulta da tentativa de estabelecer
um diálogo entre as considerações de Eugénia Vilela, tecidas em Do Corpo Equívoco –
Reflexões sobre a Verdade e a Educação nas Narrativas Epistemológicas da
Modernidade, e as reflexões teóricas de Alberto Pimenta, no sentido de sugerir uma
estética da performatividade, que, segundo João Barrento, é o espaço por excelência a
partir do qual o intelectual da era pós-intelectual nos fala, ou antes, nos mostra.
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Em O Silêncio dos Poetas, Alberto Pimenta sistematiza a distinção entre a arte literária
regulada por poéticas normativas e a arte literária estética ou emancipada. A arte
estética é pura expressão do sensível, ao passo que a arte poética tem uma matriz
fundamentalmente conceptual.
Segundo o autor, o sistema normativo poetológico determina bases segundo as quais se
estabelece o acordo entre a expressão subjetiva e função comunicativa dessa expressão.
Estabelece-se, à partida, um compromisso entre o que é dito e como é dito. Este sistema
rege-se por aquilo que considera serem valores eternos, adotando uma postura trans-
histórica. A arte literária que segue esta via não levanta problemas de leitura; as poéticas
normativas que prescrevem a produção das obras fornecem igualmente chaves de leitura
para a interpretação das mesmas. Poder-se-á considerar que a arte que tem na sua
origem normas prescritivas, é uma arte assente na essência monológica do racionalismo.
O modelo racional, desenvolvido e levado ao extremo (racionalismo técnico-científico)
pelo pensamento ocidental, reduz a diversidade do real a uma totalidade inteligível, a
um mundo conceptual. Este modelo sobrepõe a uma infinidade de seres e
acontecimentos, relações estáveis e perenes. Ou seja, este modelo de conhecimento não
conduz e não tem pretensões de compreender o real, mas sim dominá-lo. A
racionalidade técnico-científica aspira dominar não só a natureza, como também a vida
do homem, atravessando todos os segmentos da realidade.
A racionalização é sustentada por uma coerência unívoca da visão, abandonando ou até
mesmo negligenciando tudo o que ignora ou não compreende. Os modelos totalitários
da racionalidade visam alcançar uma estabilidade e ordem, a partir da exclusão do
contingente, do singular e da complexidade do real.
Sendo que a experiência, e mais concretamente o corpo, considerado na sua totalidade,
não se inserem nos quadros das categorias da razão, o modelo racional, na procura de
uma validade científica e legitimação, distancia-se do concreto da vida e mantém com o
sujeito uma relação de posse. Facilmente se depreende que a racionalidade entenda a
natureza humana como algo de estável e invariante, independente das manifestações
históricas do acontecer.
“Ao estender-se a todos os espaços do humano, o modelo totalitário da
racionalidade descreve, também no espaço antropológico, uma
racionalização que, definindo-se sob a forma de mapas interpretativos
das trajectórias do sujeito, condiciona a própria topologia do humano,
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determinando-a sob os pressupostos da exclusão, legitimada pela
legalidade discursiva.” (Vilela, 1998: 56)
Os homens vêem-se inseridos numa lógica paradoxal: são simultaneamente sujeitos de
conhecimento e objetos cognoscíveis, deixando “de se afirmar por si mesmos, para se
reduzirem a relações estabelecidas com outros seres, ontologicamente homónimos.”
(Vilela, 1998: 39)
O logocentrismo, instrumento privilegiado da racionalidade técnico-científica, define o
homem “sob a hegemonia da razão e a insignificância do corpo” (Vilela, 1998: 14);
figura um homem cujo corpo é tão-somente lugar sobre o qual poderes exteriores atuam.
A consciência de que a língua está a cargo de poderes totalitários é fundamental para a
perceção da necessidade da “re-nomeação” do mundo, da qual decorre a atualização do
sistema poetológico e o reposicionamento do sujeito no interior do mundo e de si
mesmo.
As normas, cânones, hierarquias e ideologias, enfim a língua, limitam a afirmação da
liberdade individual.
Em contrapartida, a arte literária estética propõe a afirmação da existência. Ao negar o
poder totalitário do sistema comunicativo, o poeta furta-se à sua apropriação pela massa
indiscriminada da sociedade. A produção estética não tem como objetivo alcançar uma
dimensão comunicativa ou intersubjetiva, mas sim expor a “luta do indivíduo pela posse
de si mesmo”. (Pimenta, 1978: 30)
De acordo com Alberto, uma obra é tanto mais estética quanto mais se conseguir afastar
da adesão aos símbolos apriorísticos. A arte estética tende a transgredir e, precisamente
por isso, a exigir que haja uma atualização permanentemente do sistema. As “ondas”
geradas pelo que está à margem da norma, invariavelmente acabam por ser por ela
absorvidas e neutralizadas, a partir de um redimensionamento das fronteiras do sistema.
Sendo que a língua é composta por conceitos abstratos que veiculam interesses
ideológicos e pragmáticos e hierarquias sociais, constitui um obstáculo à perceção do
contingente, mutabilidade e variedade do mundo, barrando o sujeito ao conhecimento
de si mesmo. A arte literária estética dá conta das limitações do sistema., funcionando
como discurso que permite redefinir a língua.
“É pois na máxima transformação possível desse sistema que o sujeito
pode re-nomear o mundo a seu modo e encontrar assim perante si mesmo
a confirmação (estética) da sua existência absoluta e relativa.” (Pimenta,
1978: 27)
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Os esforços do poeta devem reunir-se na tentativa de estabelecer um confronto direto
entre sujeito e objeto, não mediado pela língua. Alberto Pimenta apela a uma poesia da
experiência e vivência do sujeito, marcada pelo instante e não mais pela memória (que
implica uma conceptualização da experiência).
“a nós interessa viver. Criar percursos poéticos onde todos os estímulos
sensoriais estejam presentes e sejam vividos de dentro por cada um que
os percorra. […] Misturar o ‘público’ na acção: abolir o ‘público’, abolir
a ordem exterior, a memória, o modelo. Abolir a eterna presença da
distância, reiterar o contacto, iluminar os sentidos por dentro, eliminar o
sentido da sua exibição por fora.” (Pimenta, 1985: 34)
Alberto aponta que a grande limitação da poesia é o facto de se constituir
fundamentalmente como memória, ao invés de se constituir como agora, como
vivência. O poeta diagnostica que só quando a poesia for capaz de abandonar os
modelos exteriores a priori poderá alcançar o interior da vida; concluindo que a arte
deve nascer de um movimento de dentro do artista para fora e não o contrário (do
medium para o interior de si). Estas reflexões são muito significativas, pois manifestam
a urgência de uma relação-outra do poeta não só com o mundo, como também com o
seu próprio corpo.
“o corpo humano excede o corpo físico objectivo, pois o corpo manifesta
um excesso do viver encarnado, o que requer pensá-lo, não do exterior,
mas desde dentro.” (Vilela, 1998: 99)
O corpo tanto é recetor como emissor de sentido – está permanentemente a produzir
sentido. Não podemos reduzi-lo ao corpo epistemológico, ou seja, à construção social e
cultural – dimensão simbólica – que situa o homem no “interior de um espaço de
relação” (Vilela, 1998: 100) com outros. O corpo epistemológico é uma entidade
conceptual, objeto de conhecimento dissecado por processos de racionalização.
A racionalização simplista que entende o corpo exclusivamente como forma onde estão
inscritos sintomas socio-culturais, psicológicos, etc., não faz mais do que reconhecê-lo
como mero conceito abstrato, apreensível pela dimensão cognoscível que tudo deve
abarcar. Exorciza, assim, a zona de indeterminação intraduzível pela inteligibilidade.
“Declina-se o desejo de compreensão do sentido integral do humano em
favor dos factos por ele produzidos, quer o seu território de manifestação
seja o domínio material, quer seja o domínio espiritual.” (Vilela, 1998:
39)
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A ambição de amordaçar o corpo numa zona coerente de sentido, confinada a uma
lisibilidade e visibilidade absolutas, obscurece o domínio do sensível que configura
espaços de opacidade.
O corpo situado no espaço existencial é um corpo com tempo e espaço concretos. O
lado íntimo da experiência (o ser único situado no mundo real), irredutível a medidas de
controlo, patenteia uma indefinição radical do humano, sendo, por isso, silenciado pela
razão castradora que não consegue vislumbrar nele lógica alguma.
Deste modo, é no corpo existente, reprimido pela lógica racionalista, que reside a força
apta a confrontar e questionar os fundamentos da racionalidade técnico-científica e a
“realçar a constante mudança do que ‘é’ no que ‘não é’” (Pimenta, 1995: 99), ou ainda
não é.
Alberto afirma que os conceitos imutáveis e abstratos desembaraçam-se tanto do tempo
como do corpo: “[a] lógica é possível porque escamoteia o que talvez seja a ‘essência’
de existir: o tempo.” (Pimenta, 1995: 62)
Somente quando for capaz de ouvir o espaço existencial do corpo, poderá o homem
interrogar-se sobre si mesmo, sobre o seu lugar no mundo, e tomar enfim consciência
do conjunto de possibilidades em aberto que o constitui: “a linguagem do corpo é a
linguagem concreta”. (Pimenta, 1982: 132)
Alberto Pimenta parte do trabalho do filósofo Helmuth Plessner, para problematizar
precisamente a cisão do corpo: o homem é e simultaneamente tem um corpo. Ter corpo
significa que o homem se coloca numa posição exterior ao corpo, ser corpo resulta da
coincidência do homem com o corpo.
Assim sendo, Alberto, parafraseando Plessner, deduz que a existência física não é uma
evidência, porque resulta da relação, por vezes conflituosa, “entre si (‘consciência’ ou
‘eu’) e ele (o corpo).” (Pimenta, 1995: 165)
O autor de O Silêncio dos Poetas considera que a “concretização” estética depende, de
certo modo, da demissão do eu e da afirmação do corpo.
“sendo o riso e o choro respostas do corpo, o corpo a falar, entende-se
então perfeitamente o alto carácter estético que têm, e isto tanto pelo que
diz respeito à representação dramática como à plástica.” (Pimenta, 1995:
167)
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Este percurso leva-nos a crer que os sistemas poetológicos, que derivam de uma
racionalização dominadora, simplista e assente na exclusão, constrangem o corpo
existente, porque exigem um compromisso pré-estabelecido entre o vivido e o modo
como esse vivido é dito.
Alberto Pimenta e Eugénia Vilela acentuam a lógica dualista transversal no pensamento
ocidental, que determina que se pense o mundo a partir de dicotomias que não têm lugar
no real: espírito e matéria, corpo e alma, homem e corpo. Estas cisões decorrem da
razão excessiva e determinam a impossibilidade da existência de uma relação entre os
termos, estruturados como estão numa oposição radical.
Alberto contrapõe ao conhecimento conceptual (simbólico), o conhecimento essencial,
que implica a fusão entre sujeito e objeto.
Em A Magia que tira os Pecados do Mundo, sugere que a arte deve ter como objetivo
reconciliar o que é com tudo aquilo que ele não é, para posteriormente tornar evidente
que tudo o que ele não é e tudo o que é são idênticos. Nesta obra, afirma ainda que
aquilo que semanticamente constitui uma antítese, de um ponto de vista estético não é
senão um processo de harmonização, resultante de uma coerência orgânica. A poesia
deve estar comprometida na anulação dos contrários conceptuais.
“O que tenho para dizer é que a única razão de ser plausível para haver
discurso poético (ou, se se prefere, literário), em vez de o não haver,
consiste no acto de harmonizar opostos, ou seja, no acto de reordenar o
caos criado pela separação da identidade, ou, noutra perspectiva, no acto
de revelar como caótica a ordem introduzida pelo intelecto resultante da
separação.” (Pimenta, 1995: 273)
Em Do Corpo Equívoco, Eugénia Vilela analisa o lugar do corpo na tradição ocidental,
incidindo sobretudo na modernidade. Propõe primeiramente a destruição do corpo
enquanto objeto epistemológico, engendrado pelas narrativas técnico-científicas e pela
cisão inscrita no homem, para, posteriormente, sugerir uma reconfiguração do corpo
baseada no encontro e harmonização entre corpo epistemológico e corpo existente.
Partindo do conceito de biopoder, proposto e desenvolvido por Foucault, Eugénia Vilela
expõe que o corpo é o lugar por excelência onde se inscrevem as relações do poder dos
discursos globalizantes – o corpo é visto como objeto manipulável, “supliciado,
marcado, domesticado ou despossuído”. (Vilela, 1998: 105)
No entanto, os sistemas e instituições que disseminam o poder sob estes moldes
esquecem que a circunscrição total do corpo só ocorreria caso “o corpo se configurasse
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como uma natureza exposta sobre uma superfície de evidência” (Vilela, 1998: 100) e se
a sua dimensão vital fosse totalmente rasurada.
A significação do corpo, que decorre da sua natureza simbólica, sustenta igualmente a
singularidade do indivíduo – o corpo é um lugar plural.
O gesto transgressor que caracteriza a arte estética reside no facto de o corpo passar a
habitar a palavra, contrariando a lógica do sistema, no qual é a palavra que manipula e
engendra o corpo. A palavra não mais é produto e instrumento de ação e poder, mas sim
energia contínua e força ativa, liberta da “transcendentalidade conceptual e da sua
instrumentalidade referencial”. (Pimenta, 1978: 61) Daqui decorre a forma inquieta e
inquietante.
“a literatura que exprime a actual consciência de existir é uma literatura
labiríntica na forma, mas com os fios de todas as saídas cortados; sem
princípio, meio e fim, apenas com um presente contínuo, circular.”
(Pimenta, 1995: 115)
A perceção da contingência, do acontecimento, implica a consideração do tempo
histórico como elemento fundamental de compreensão do mundo. Isto implica um
pensamento não mais estruturado a partir das categorias violentas da tradição ocidental.
Alberto Pimenta defende que o artista é acima de tudo um “perpetuador” dos conflitos e
marcas do seu tempo; deve existir um compromisso entre a poesia e, não só o poeta,
como também a realidade e circunstancialidade na e da qual nasce. A poesia deve falar
das impossibilidades de seu tempo.
“se toda a compreensão é gerada numa herança histórica definidora de
sentido, ela desenha-se também, de um modo ainda mais radical, por
remissão à situação existencial do sujeito que a empreende, logo, o
conhecimento deverá ser perspectivado, simultaneamente, como local
(situado) e temporal (não acabado, em aberto).” (Vilela, 1998: 38)
Neste sentido, Alberto abomina a poesia que estabelece um pacto com o significado, já
que este representa uma “paragem no tempo”. A poesia, de acordo com o poeta, deve
ser movimento.
A evolução da poesia não é linear, sendo que o poeta não cria somente objetos, mas
também a sua relação com esses objetos. De acordo com Alberto, a poesia acompanhou
o percurso de toda a cultura, isto é, conceptualizou-se progressivamente – passou de
ritmo e sonoridade a efeito visual. A relação visual que se instaurou entre o público e as
obras de arte impossibilita um acesso ao interior das próprias obras, o que explica as
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incessantes interpretações e discussões que se geram em torno delas e que dificultam a
sua fruição plena.
Alberto Pimenta não descura o facto de a consciência do sensorial só se processar a um
nível racional – confronto que designa de razão estética. A obra resulta da luta entre
estas duas formas de conhecimento: sensível e racional.
“O criador de arte literária passa por uma experiência do mundo que não
é conceptual, semiótica. Poderá ser mística? Seja como for, ele não tem a
coragem do mergulho total, da fusão no mundo, ele é o que mergulha e
volta para dizer como é, e fá-lo com símbolos próprios afinal das duas
esferas, daquela em que mergulhou e desta em que vive. […] Mais
interessado nesse outro mundo do que neste, por isso desprezando o
poder que a perfeita conceptualização confere, o criador de arte literária
não tem também vontade de permanecer no silêncio da fusão total com
esse outro mundo: ele é por temperamento um intermediário.” (Pimenta,
1982: 55)
O poeta não está submerso no código pré-estabelecido, caso contrário o seu discurso
limitar-se a produzir variações de superfície dos modelos existentes. Conhecer os dois
mundos (o caótico e informe, e o ordenado e lógico), permite-lhe “[d]evolver aos
sentidos o que a razão lhes roubou”. (Pimenta, 1995: 134)
A poesia, no entender de Alberto, não tem pretensões de revelar a cara desconhecida
que se esconde atrás da máscara. A sua “modesta” intenção é a de apontar para a
existência de máscaras.
Ainda que ao nível da expressão o contacto não mediado entre sujeito e objeto de certo
modo se perca, (a experiência torna-se memória (linguística) dessa experiência), os
esforços do poeta reúnem-se na procura da destruição do medium.
Alberto assinala e alerta (possivelmente para evitar leituras que tentem neutralizar este
gesto transgressor), que na origem da destruição da linguagem não deve ser visto algo
que não seja a própria destruição da linguagem. Ato de criação e ato de destruição são
indissociáveis.
A linguagem não se situa agora como veículo do pensamento ou instrumento da
comunicação. De acordo com Alberto, a dimensão comunicativa só se estabelece numa
base superficial da interação1. O poeta sustenta que, para se tornar possível, a
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Entrevista disponível em https://www.youtube.com/watch?v=_Lq_4I9ImoA
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comunicação discursiva recorre à língua como “máximo denominador comum da
trivialidade do pensamento”. (Pimenta, 2003: 73)
A poesia que apela primeiramente à força expressiva da linguagem diz aquilo que é
incomunicável na linguagem comum; exprime num ritmo exterior o ritmo interior do
poeta. O poeta desfaz a fala conceptual, para reunir as suas partes segundo o seu próprio
sistema.
O distanciamento do carácter pragmático da língua pode ocorrer quer a nível
fonológico, quer a nível semântico, quer ainda a nível sintático. Os processos de
transformação apontam mais para o que destroem – o apriorismo conceptual da língua –
do que para aquilo que constroem. A despragmatização da língua dá-se quando esta “é
privada da sua veracidade lógica convencional e reduzida a uma veracidade quando
muito analógica” (Pimenta, 1978: 60)
Da tentativa de destruição do medium resulta o aparente paradoxo (incontornável) da
concentração da atenção do leitor no próprio medium: “A língua torna-se mais
claramente língua, quando desaparece a sua função”. (Franz Mon apud Pimenta, 2003:
70)
Torna-se evidente que a expressão estética solicita uma perceção estética.
A arte literária emancipada apresenta-se como problema a uma receção tradicional.
Coloca-se o mesmo problema relativamente ao happening: “[t]he decisive factor in
judging the receptive situation is how active the unprepared viewer becomes within a
certain framework of action and without specific instructions…” (Dinkla, s/d: 84)
A pluralidade de leituras que a arte emancipada convoca, é sintomática da rejeição de
qualquer tipo de normatividade.
Se a arte estética parte necessariamente da experiência e do mundo interior do poeta, é
natural que envolva o leitor em novas experiências.
Através do estranhamento que provoca, o leitor é confrontado consigo mesmo e levado
a questionar o seu mundo habitual e seus hábitos linguísticos. Este estranhamento
prolonga a duração da perceção, tornando a experiência estética mais intensa. A obra
poética percorre o corpo do leitor, à medida que desperta vários planos da consciência.
“os significados do discurso poético não são realizados pelo leitor em
termos de imagem mental: há uma espécie de bloqueio semântico, e é a
aura do discurso que envolve o leitor num tipo de conhecimento difuso e
agradável.” (Pimenta, 1995: 241)
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Deve haver uma responsabilidade do leitor em preservar o que é marcadamente estético,
prolongando-o no ato de leitura.
Se, por regra, o sistema acaba por absorver a arte literária emancipada é porque
estabelece uma equivalência entre os elementos estéticos da obra e os conceitos a priori
nos quais fundamenta a sua interpretação e descrição da obra. A análise que funciona a
partir da re-semantização, ou seja, a partir de uma interpretação conceptual da obra
literária, manipula-a e integra-a pelo logos, transportando-a para um campo no qual ela
não quer estar. Funciona, no fundo, como uma tradução que anexa ideologia ao que se
havia (intencionalmente) distanciado dela.
“diluindo a subjectividade na universalidade do juízo racional, o logos
ocidental exprime uma afirmação de violência que exclui qualquer
argumentação, a não ser a argumentação circular e rígida do discurso da
exclusão. E da imutabilidade.” (Vilela, 1998: 68)
No seguimento destes deslocamentos, compreende-se a necessidade de permanente
renovação dos processos estéticos. Apenas assim, poderão continuar a apresentar-se
como forças atuantes.
Estas apreciações justificam, por outro lado, que a par e passo da arte literária estética
caminhe aquilo que Alberto designa por anti-sentido – tudo o que escapa à visão
paradigmática do logocentrismo (que inviabiliza a possibilidade de existência de
sentidos em aberto).
Uma certa poesia, do discurso do conhecimento íntimo, forma os seus sentidos fora do
sentido linear do código, o qual é “passível de ser capturado em toda a sua extensão, sob
o esquema a-temporal e a-contextual”. (Vilela, 1998: 102)
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Conclusão
Em O Mundo está Cheio de Deuses, João Barrento constata que o intelectual da era
contemporânea não intervém forçosamente no plano do dizer, mas mais no plano do
mostrar. Ao invés de apelar à inteligibilidade, apela sobretudo à sensibilidade do
destinatário.
O intelectual da era pós-intelectual estabelece uma relação profícua com contextos
precisos e está profundamente comprometido com o seu tempo. Isto é o mesmo que
dizer, que o seu modo de intervenção é sobretudo performativo, ao invés de estar
alicerçado na dimensão conceptual da palavra.
Esta transição, do intelectual retórico para o intelectual performer, acompanha os
movimentos traçados pelas novas formas da política: “tal como, cada vez mais, o corpo
dos indivíduos se transformou em factor, objecto e sujeito de uma biopolítica de Estado,
assim também esse corpo […] substituiu a voz interventiva e ‘autorizada’ do
intelectual”. (Barrento, 2011: 89)
Barrento explicita que na era intelectual a figura do intelectual recorria às mesmas
estratégias que o poder, ainda que por vezes tivesse como objetivo deslegitimá-lo.
Ainda que João Barrento afirme que os atos performativos não resistem de modo tão
eficaz ao esquecimento quanto os discursos assentes na palavra, eles são, na verdade, o
único lugar possível para o intelectual dos nossos dias.
Parte-se do princípio que o performer renova constantemente os seus gestos, evitando o
seu amordaçamento e cristalização pelo e no interior do sistema. Um gesto é um
acontecimento.
Vejamos o sentido que Barrento atribui ao gesto que agora retomo:
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“não é do gesto retórico que se trata aqui – esse faz parte das estratégias
de persuasão que foram também as do intelectual. O gesto de que falo
aqui é o que vem depois do fracasso desse e se lhe contrapõe, podendo
continuar a situar-se ainda no corpo da linguagem, mas prescindindo
dela, ou situando-se, o que acontece com frequência, a meio caminho,
enquanto aceno, fragmento, remissão para linguagens perdidas no
próprio movimento livre da palavra e da frase.” (Barrento, 2011: 111)
Quando os gestos do artista são anexados pela “academia”, silencia-se o seu carácter
provocativo e a sua própria razão de ser.
As obras que renunciam à mensagem explícita registam e despertam formas e
expressões de vida. Tal como na performance, a arte estética redefine os conceitos de
espaço e tempo – culto do efémero, do instante e do movimento, difusão de estímulos
que dão conta das múltiplas nuances da vida, sagração do percurso e imprevisibilidade
de desfecho.
“faz parte da estética da arte concreta, seja ela poesia ou música, o não
se repetir: não só não aspira a ser eterna, como quer deliberadamente
ser momentânea. Acontecer uma vez é característica do happening;
dentro de si ele deve trazer já a marca de que não pode repetir-se, ao
contrário do discurso científico, que é por excelência o discurso da
repetição, e daquele discurso literário que aspira a ser eterno.”
(Pimenta, 1982: 160)
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Bibliografia e Webgrafia
. Pimenta, Alberto (1995) A Magia que Tira os Pecados do Mundo, Cotovia, Lisboa
. Pimenta, Alberto (2003) A Dimensão Poética das Línguas, in O Silêncio dos Poetas,
Cotovia, Lisboa
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