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CORPO SEM CABEÇA

O tipógrafo-editor
e a Petalógica
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
ђіѡќџю Sandra Regina Goulart Almeida
іѐђȬђіѡќџ Alessandro Fernandes Moreira

EDITORA UFMG
іџђѡќџ Flavio de Lemos Carsalade
іѐђȬіџђѡќџю Camila Figueiredo

CONSELHO EDITORIAL
Flavio de Lemos Carsalade (ѝџђѠіёђћѡђ)
Camila Figueiredo
Eduardo de Campos Valadares
Élder Antônio Sousa Paiva
Fausto Borém
Lira Córdova
Maria Cristina Soares de Gouvêa
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CORPO SEM CABEÇA


O tipógrafo-editor
e a Petalógica

Belo Horizonte
Editora UFMG
2018
іџђіѡќѠȱюѢѡќџюіѠ Anne Caroline Silva
ѠѠіѠѡѾћѐіюȱђёіѡќџіюљ Eliane Sousa
ќќџёђћюѷѬќȱёђȱѡђѥѡќѠ Lira Córdova
џђѝюџюѷѬќȱёђȱѡђѥѡќѠ Roberta Paiva
ђѣіѠѬќȱёђȱѝџќѣюѠ Letícia Ayenne e Mirian Oliveira
џќїђѡќȱєџѨѓіѐќ Cássio Ribeiro
њюєђњȱёђȱѐюѝю Petalógico boquirroto que ilustra o
cabeçalho de O Corretor de Petas. Rio de
Janeiro, Imprensa Americana de I. P. da
Costa, 1841. Acervo da Biblioteca Nacional.
ќџњюѡюѷѬќȱђȱњќћѡюєђњȱёђȱѐюѝю Alessandra Magalhães
PџќёѢѷѬќȱєџѨѓіѐю Warren Marilac

© 2018, O autor
© 2018, Editora UFMG
Este livro ou parte dele não pode ser reproduzido por qualquer meio sem autoriȬ
zação escrita do Editor.

M386c. Martins, Bruno Guimarães


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II. Série.

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CDU: 070.432

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EDITORA UFMG
Av. Antônio Carlos, 6.627 CAD II Bloco III
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˜›’£˜—ŽȬ ȱȱȱ›Šœ’•
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www.editoraufmg.com.br editora@ufmg.br
Por tudo e por nada.

Para Bel, Luiz e Cecília.


AGRADECIMENTOS

A Karl Erik Schøllhammer pela amizade, pelas conversas, pelo


acolhimento e equilíbrio com o qual conduziu a orientação na
pesquisa de doutorado que originou este livro, simultaneamente
apontando sentidos e estimulando a autonomia.
Aos professores que compuseram as bancas de qualificação
e de doutorado apresentando críticas instigantes e contribuições
generosas: Ana Kiffer, Emílio Maciel, João Cezar de Castro Rocha,
Marília Rothier Cardoso, Pedro Dolabela Chagas e Tânia Bessone.
Aos meus colegas do Departamento de Comunicação Social da
UFMG, especialmente àqueles que estimularam e enriqueceram este
livro com palpites e conversas informais: André Brasil, André Melo
Mendes, Ângela Salgueiro Marques, Bruno Souza Leal, Carlos AlȬ
berto de Carvalho, Carlos Frederico Brito D’Andrea, Carlos Magno
Mendonça, César Guimarães, Cláudia Fonseca, Dalmir Francisco
(in memorian), Delfim Afonso Jr., Enderson Cunha, Elton Antunes,
Fábia Lima, Graziela Valadares, Joana Ziller, Juarez Guimarães Dias,
Laura Guimarães Corrêa, Luciana de Oliveira, Márcio Simeone

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Vaz, Roberta Veiga, Rousiley Maia e Vera Regina França.
Aos colegas e professores que colaboraram das mais diversas
formas para a elaboração da pesquisa: Ana Gruszynski, Ana Paula
Goulart, Ana Utsch, Aníbal Bragança, Antônio Marcos Pereira, CláuȬ
dio Santos, Daniela Beccaccia Versiani, Eduardo Antônio de Jesus,
Fernanda Guimarães Goulart, Flávio Vignoli, Frederico Tavares,
Heidrun Olinto, Igor Sacramento, Itânia Gomes, Jorge Cardoso Filho,
Juliana Gutmann, Laura Erber, Luciene Azevedo, Luiz Camilo OsóȬ
rio, Marcelo Drummond, Márcio Souza Gonçalves, Marina Garone,
Nelson Schapochnik, Renato Cordeiro Gomes, Ricardo Portilho,
Roberto Said, Sérgio Antônio Silva e Sonia Queiroz.
Às instituições que financiaram pesquisas, participações e
publicações relacionadas a este livro: CNPq, Capes e Fapemig.
Aos grupos e redes de pesquisadores cujos encontros fomentaram
muitas das discussões aqui desenvolvidas: Associação Nacional
˜œȱ ›˜›Š–Šœȱ Žȱ àœȬ›ŠžŠ³¨˜ȱ Ž–ȱ ˜–ž—’ŒŠ³¨˜ȱ ǻ˜–™àœǼǰȱ
GP Produção Editorial da Intercom, Associação Brasileira de PesȬ
quisadores de História da Mídia (Rede Alcar), Rede de Grupos de
Pesquisa em Historicidade dos Processos Comunicacionais e Rede
Š’—˜ȬŠ–Ž›’ŒŠ—ŠȱŽȱž•ž›Šȱ ›¤’ŒŠǯȱ
Este livro não seria possível sem instituições que preservam e
disponibilizam seus acervos como o Arquivo Nacional, a BiblioȬ
teca Nacional (e sua fantástica Hemeroteca Digital), a Brasiliana
da Universidade de São Paulo, o Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, o Museu Afro Brasil, o Museu Histórico Nacional, o MuȬ
seu Imperial, o Museu Nacional de Belas Artes, e o Real Gabinete
Português de Leitura onde, graças ao financiamento da Fundação
Calouste Gulbenkian, pude mergulhar nas leituras de periódicos
oitocentistas. Também agradeço a Carlos Eduardo Capucio que
gentilmente cedeu imagens de sua coleção filatélica particular.
Aos amigos do passado, do presente e do futuro, que contriȬ
buíram incentivando, criticando ou, simplesmente, conversando:
Aluísio Cunha Jr., Ana Martins Marques, Anderson Torres, André
Luiz Prado, Bruno Santa Cecília, Carlos Alberto Maciel, Cassius ParaȬ
nhos Couri, Cristiano Wagner Guimarães, Danilo Matoso Macedo,
Danilo Queiroz, Elisa Paraíso e Thiago Nunes, Elisa Von Randow,
Frederico Marques, Henrique Figueiredo, Ivan Caiafa, Luciana
Ferreira e Ricardo Brito, Ludmila Zago, Marcílio França Castro,
¤¡’–˜ȱ ˜Š•‘Ž’›˜ǰȱ Ž›˜ȱ ˜›Š’œǰȱ Ž›˜ȱ Š•Žœǰȱ Š–˜—ȱ ˜™Žœȱ Žȱ
Rogério de Vasconcelos Faria Tavares.
Aos amigos que transformaram as muitas viagens ao Rio de
Janeiro em momentos memoráveis: André Amparo, Antônio VallaȬ
dares, Argus Saturnino, Daniela Soares e José Ignacio Yañez, Danusa
Depes, Leandro Campos e Stella Paiva.
Aos amigos queridos do mítico Peixe Gordo, presenças constantes
e alentadoras: Andrea Gomes, Fernando Maculan, Lina e Rosa, JosaȬ
na Matedi, Ricardo Brasileiro e Francisco, Júlia Rebouças e Rodrigo
ŠŸŠ›ŽœǰȱŠž•ŠȱŠœ—’Œ˜ǰȱ•Ž¡Š—›Žȱ›Šœ’•ȱŽȱ—Šǯ
À Maria Aparecida Raimundo, Cida, pelo apoio muito mais
que invisível.
Aos familiares cuja presença sempre nos afeta: tia Cleusa, tio
Š›Œ˜œǰȱ•·¡’ŠȱŽȱŠ›Œ˜œȱ’—ÇŒ’žœDzȱ’Šȱ˜—’Šǰȱ’˜ȱ˜‹Ž›˜ȱǻin memo-
rianǼǰȱžŒŠœȱŽȱž’œŠDzȱ–Žžœȱœ˜›˜œȱ™›Ž’•Ž˜œȱ ›Ž—ŽȱŽȱŠ·›Œ’˜ȱǻŽœŽȱ
um verdadeiro petalógico contemporâneo juntamente com todos os
seus companheiros da Mesa Hum), Guilherme, Beatriz, Fabrício,
Fernando e todas as tias, tios, primas, primos e agregados da família
’ŠœȱŽȱ•’ŸŽ’›ŠDzȱŠ˜ȱŠ™‘ŠŽ•ȱŽȱ¥ȱŠ›’ŠDzȱŠ˜œȱŠ—Ÿ’—Œ”Ž—›˜¢Žǰȱ˜™‘’Šǰȱ
ŠŸ’ǰȱ Š›ŠȱŽȱŸŠDzȱŠ˜ȱ–Žžȱ™Š’ǰȱ ˜œ·ȱŠ›’—œDzȱŽȱ¥ȱ–’—‘Šȱ–¨Žǰȱ˜—’Šǯ
Aos meus filhos Luiz e Cecília, verdadeiros acontecimentos
em minha vida. Finalmente, agradeço à Izabel pelo amor e pela
inspiração constantes.
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO 15
Karl Erik Schøllhammer

Prefácio
LUGAR FORA DAS IDEIAS: CORPO SEM CABEÇA
E A(S) GENEALOGIA(S) DA MALANDRAGEM 17
Emílio Maciel

INTRODUÇÃO 29

Capítulo 1
O PAPEL DA HISTÓRIA

Trilhando um campo não hermenêutico 39


“Lição de escrita”, lições da escrita 44
Desgraçadamente tarde 55
Deslizando na superfície da imagem impressa 67
A imprensa como revolução e a longa história da leitura 79
Capítulo 2
MASTIGANDO CHUMBO
Um mulato letrado 85
A política das letras 90
Dois de Dezembro 98
Impressos e não impressos 102

Capítulo 3
A MECÂNICA DA AUTONOMIA
Transgressões de um pioneiro marginal 117
Um poeta na retaguarda 123
O leitor-tipógrafo 133
A seriedade do cômico 149
O riso autômato 156

Capítulo 4
PETAS NO AR
Escutando a lógica 161
Editar a voz 168
Passatempo 182
Ficção científica 187
Nota e parola 192
Outros semblantes 197

Conclusão
IMPRESSÕES EM FALSO 205

NOTAS 209
Posfácio
DA RUA, AS PÁGINAS... DO CORPO, AS LETRAS
Ana Utsch 245

MISCELÂNEA PETALÓGICA
Sessões da Petalógica 251
Petas & Petalogia 284
Verão x inverno 314
Memórias do mundo da lua 331
Festejos, homenagens, caridade 364

CADERNO DE IMAGENS 391


APRESENTAÇÃO

É um fato reconhecido que a tecnologia do impresso se instala


tarde no Brasil. Relaciona-se frequentemente essa chegada tardia da
imprensa ao atraso do letramento que adentrara o século XXI manten-
do altos índices de analfabetismo que ainda continuam a caracterizar
o país. Poucos conhecem a fascinante história de Francisco de Paula
Brito (1809-1861), editor pioneiro do Brasil Império, que além de pu-
blicar livros, periódicos e jornais como A Mulher do Simplício (1832) e A
Marmota na Corte (1849) implantou uma cultura letrada através de uma
viva produção de anúncios, folhas, santinhos, estampas, marmotas e
pasquins que inauguraram, senão uma esfera pública, certamente um
ambiente de impressos propício à circulação de frases e textos com
a desenvoltura da comunicação oral. A livraria de Paula Brito foi o
berço da polêmica Sociedade Petalógica que sob o mote “contrariar os
mentirosos, mentindo-lhes” semeou um debate público cético e jocoso
de inédita liberdade. A partir de uma perspectiva de história material
da mídia, Corpo sem cabeça faz uma análise aguda e importante do mo-
mento de inauguração de um espaço “letrado”, advindo da intersecção
entre o sistema oral fortemente consolidado e as possibilidades de
uma nova dinâmica gráfica que, alavancada pelo avanço da tipografia,
demarcam o lugar e a particularidade do literário na instalação e no
desenvolvimento da imprensa no Brasil.

Karl Erik Schøllhammer


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LUGAR FORA DAS IDEIAS


Corpo sem cabeça e a(s) genealogia(s)
da malandragem

Em seu clássico texto sobre os anos de 1960, escrito quando a


década nem bem havia se encerrado, Roberto Schwarz propõe a
caracterização do Tropicalismo como uma estética de contrastes
e choques estridentes que, uma vez articulados na forma canção,
operariam como um modelo reduzido da matéria social brasileira.
Tendo como horizonte último um atrito de temporalidades discre-
pantes, convertidas em cada peça tropicalista numa tensa coabitação
de arcaico e moderno, o elemento destacado pelo crítico desponta
em meio a um texto marcado por uma estranha mistura de fascínio e
pé atrás, tornada especialmente clara na caracterização do movimento
como um “esnobismo de massas”, empregada para dar conta da
nada pequena ambiguidade ideológica que este despertava. Escrito
num momento de exasperação da ditadura militar, e funcionando
também, em larga medida, quase como um trabalho de luto de uma
certa cultura de esquerda, é interessante perceber ainda como, na
obra do crítico, muitos dos traços destacados nesse ensaio seminal
irão se converter em fios condutores de seu futuro mergulho na obra
de Machado de Assis, quando vários dos elementos identificados em
18 CO R PO S EM CA BEÇA

“Cultura e política: 1964-1969” – desde os descompassos temporais


até a crise da noção de projeto, passando pela bizarra mistura de
sofisticação estética e traços regressivos – irão ganhar um efeito de
compactação quase ofuscante. Um pouco como se, de um ponto
a outro, o que era abordado no caso do Tropicalismo em clave
de sintoma ressurgisse na obra machadiana alçado a um método
formal em seu próprio direito – ao estilo de uma assinatura rítmica
inconsciente de súbito transformada em motivo sinfônico.
Consubstanciando-se naquilo que Schwarz irá chamar depois
de “dialética da volubilidade”, não há dúvida de que, ao articular
a textura da obra a um panorama mais amplo, trata-se de um sintag-
ma capaz de sintetizar num só golpe vários dos principais dilemas
brasileiros, ao fazer do contínuo ir e vir do eu que narra a história
em Brás Cubas – sem jamais se comprometer por inteiro com aquilo
que conta – a cifra de um país em que tudo parece estar começando
do zero a cada geração, e as novas ideias são quase como roupas
da moda a serem usadas e descartadas pela classe dominante. Por
outro lado, nesse elo de afinidade estabelecido entre contextos tão
distintos – no qual a assinatura capturada nas primeiras canções de
Caetano reaparece retomada e amplificada no repertório de truques
do narrador machadiano, a um só tempo tão refinado e tão reacio-
nário –, é claro que há uma coincidência interessante demais para
ser aleatória, e cuja linha de fuga, em última instância, acena para
a própria possibilidade de uma definição de cultura brasileira, em
sentido lato, tendo por baliza justamente esse jogo de interseções
quiasmáticas entre passado e presente, contíguo e sucessivo, arcaico
e ultramoderno. De modo um pouco mais linear, decerto, está
uma impressão que volta a se dizer presente também ao longo da
leitura de Corpo sem cabeça, de Bruno Guimarães Martins, centrado
sobre a figura do editor, empresário e polígrafo Francisco de Paula
Brito e sua Sociedade Petalógica, mas cujo raio de amplitude, como
veremos, está muito longe de limitar-se ao exercício antiquário. De
џђѓѨѐіќ 19

fato, tendo como eixo um nome que, já a partir de sua condição de


“mulato letrado”, pode ser inscrito numa vasta e nobre linhagem
de mediadores culturais – figuras que, de tia Ciata a Vinicius de
Moraes, de Nara Leão a Hermínio Bello de Carvalho, cuidariam de
estabelecer possíveis zonas de contato entre o erudito e o popular,
entre a casa e a rua –, foi também “o primeiro editor digno desse
nome que houve entre nós” (Machado de Assis) se dá a ver no ensaio
de Bruno Martins como a encruzilhada na qual vários caminhos se
encontram; caracterização que não soa de resto nada exagerada à
luz dos vários pioneirismos a ele associados, seja no que se refere
à valorização de fenômenos como o carnaval e a canção popular,
seja, ainda, no esforço de constituição de um primeiro e tímido
esboço de esfera pública, no qual pela primeira vez se fariam ouvir
as vozes do negro e da mulher. Verdadeiro “abridor de picadas” na
incipiente República das Letras brasileira, a trajetória de Paula Brito,
em seus altos e baixos, serve, por isso mesmo, como um bom sismó-
grafo das relações entre imprensa e poder na fase mais incipiente
do nosso nation building, compreendendo desde a agitação radical
democrática do período regencial (1831-1840) – quando, aos moldes
de um Café Procope tupiniquim, sua casa de chá se torna ponto de
encontro dos principais intelectuais da época –, até estabilizar-se
na roupagem um tanto quanto mais áulica da Empresa Tipogáfica
Dois de Dezembro, em cuja lista de acionistas, por sinal, constava
ninguém mais ninguém menos que Pedro II.
Desnecessário dizer, porém, que já a partir de sua própria con-
dição de mestiço e homem livre numa sociedade tremendamente
informe, violenta e assimétrica, o seu é um percurso fadado a
equilibrar-se todo o tempo num fio tênue, e que passa tanto pela
dificuldade de dar a devida explicitude aos conflitos em latência
quanto pelo colossal déficit de diferenciação do campo intelectual
brasileiro, ecoando num certo ar de enciclopédia chinesa que emana
do seu rol de atividades, abarcando desde a edição de romances até
20 CO R PO S EM CA BEÇA

o comércio de chá. Tendo por horizonte um cenário, portanto, onde,


na falta de instituições consolidadas, o intelectual se vê prensado
entre o clamor de autonomia e a necessidade de lisonjear os donos
do poder, a hesitação contínua que daí resulta é um traço muito
bem apreendido pela ágil arquitetura narrativa deste Corpo sem
cabeça que, em sua incessante peteca entre o perto e o longe, parece
mimetizar, a seu modo, a agilidade e esquivança do seu objeto-alvo.
Começando de modo até relativamente convencional numa série de
breves tomadas panorâmicas, nas quais o entrelugar do oral e do
escrito ocupado por Paula Brito é relido à luz das formulações de
nomes como Levi-Strauss, De Certeau e Gumbrecht, é possível que
um dos grandes apelos do livro esteja exatamente na rica trama de
referências cruzadas que se vai construindo, via imersões pontuais,
convertidas por sua vez em atalhos inesperados para questões de
longa duração, que ora geram uma familiaridade estranha face o
presente, ora funcionam como um bem-vindo efeito bumerangue
contextualizando e historicizando supostas evidências. É o que faz,
por exemplo, com que na exploração dos ocos e vazios dos trechos
escolhidos possa-se perceber um esperto aceno de esguelha à
estética do efeito de Iser, aqui mobilizada para realçar o potencial
crítico daquilo que por vezes se omite, por vezes se atenua. Ou
ainda, com que, na ênfase posta sobre a sensibilidade de Paula Brito
para recursos como sinais gráficos e efeitos de pontuação, o autor
já consiga entrever, em germe, o sutil encalacrar-se do texto sobre o
seu estrato material; traquejo, como se sabe, que será depois levado
ao paroxismo por uma obra-prima como Brás Cubas, em que se pode
reconhecer algo como uma exacerbação corrosiva de certas manhas
petalógicas. Diga-se de passagem, aliás, que o fato de que muitas
dessas associações mantenham-se quase todo o tempo em estado
potencial é um detalhe sem dúvida perfeitamente ajustado ao modo
como a petalogia potencializa os silêncios, desvios e gingas do texto.
Tal vezo torna-se especialmente palpável, por exemplo, quando,
џђѓѨѐіќ 21

em meio à pompa e circunstância de um jornal como A Gazeta dos


Tribunais – à primeira vista voltado para a autocelebração do mais
vetusto bacharelismo –, irrompe um trecho coalhado de fora a fora
de acintosos erros ortográficos, com uma verve que em nada ficaria a
dever ao melhor Adoniran. O mesmo aplica-se, ainda – quase como
num aceno não creditado a Roman Jakobson –, ao trecho em que a
análise se detém brevemente sobre os efeitos encantatórios gerados
pelas paranomásias nos slogans publicitários, vertente que serve
para mais uma vez confirmar a condição de precursor do nosso
patafísico protagonista.
Não sendo essa nem de longe propriamente uma enumeração
exaustiva, penso que tais exemplos dão muito bem a medida da
destreza com que este livro abre novos flancos teóricos a partir de
pequenos detalhes, que vão se deixando carregar de segundos planos
pela tocada insinuante da análise, na qual o que fica de fora tem quase
o mesmo peso daquilo que é afirmado. Ou, para retomar uma bela
formulação de José Miguel Wisnik, em que um signo que não quer
dizer nada pode também dizer tudo. Obviamente, porém – num meio
que parece ainda estar buscando definir, de modo algo tateante, seus
marcos de referência, e tendo, ainda por cima, exatamente como pedra
de escândalo o status ao mesmo tempo ubíquo e denegado do fator
mestiçagem –, é claro que não são poucos os usos a que se pode prestar
essa dicção de negaceios, capaz tanto de servir de sinal de distinção
entre os happy few como também, em vários momentos – com esse seu
jeito de quem faz que vai e volta do meio para trás –, de converter em
sinal positivo a própria condição indefinida da sua fonte emissora,
às voltas com um ambiente no qual, não raro – e disso há exemplos
de sobra na obra de Machado –, um mero capricho ou mau humor
do branco proprietário é o que basta para devolver o homem livre
mestiço à sua condição sem eira nem beira. Daí, decerto, a persis-
tente impressão de lusco-fusco gerada pelas várias performances
identitárias do nosso factótum, cuja embocadura cobre desde os
22 CO R PO S EM CA BEÇA

acentos da voz feminina em A Mulher do Simplício – salvo engano, a


primeira revista para mulheres publicada no Brasil – até a coragem
para colocar em pauta, com toda a cautela possível, o tema do
heroísmo do negro, na gravura que homenageia os feitos do mari-
nheiro Simão, ainda durante a Regência. Com toda certeza, não é
pequeno o risco envolvido em ambas empreitadas, nas quais se pode
perceber claramente a invulgar capacidade do Paula Brito de “andar
na corda bamba”. Posteriormente tal traço retornará de forma ain-
da mais ousada em poema publicado por outros petalógicos justo
durante o aniversário daquele que fora o mais ilustre patrocinador
do nosso trickster. Com versos que não poderiam ser mais tediosos
e previsíveis em seu longo desfiar de hipérboles, alinhando, sem
qualquer lampejo de inspiração, todos os piores clichês do gênero
encomiástico, trata-se de uma peça, como ficaremos logo sabendo,
que se presta a ser lida também como acróstico satírico, em que
a frase formada pela primeira letra maiúscula de cada verso (“O
BOBO DO REI FAZ ANOS”) faz desmoronar com um golpe seco
tudo o que fora dito e redito pela leitura cursiva. Em boa medida,
portanto – e ressalvada, claro, a muito menor sofisticação desse
torpedo antimonárquico, cujo impacto dificilmente seria capaz
de resistir a uma segunda ou terceira leitura –, não me parece que
estejamos tão distantes assim do jogo de tensões magistralmente
orquestrado, décadas depois, por uma canção como “Com que
roupa”, de Noel Rosa, na qual, como bem mostrou, entre outros, o
próprio Wisnik, a mensagem na primeira camada do enunciado –
tendo por mote o conhecido tópos do malandro que decide “mudar
de vida” –, é como que sutilmente desestabilizada pela entoação ma-
treira do canto falado, despoletando assim um jogo de desmentidos
recíprocos entre conteúdo e forma. Tanto num caso como no outro,
pois, é como se a necessidade de passar recibo à ordem dominante
– mas de maneira tal, bem entendido, que sempre permita a cada
narrador descomprometer-se de chofre de qualquer acusação mais
џђѓѨѐіќ 23

séria – desse lugar a uma curiosa solução de compromisso entre


termos aparentemente incompatíveis, colocando momentaneamen-
te em suspenso a distinção entre positivo e negativo, afirmação e
negação, homenagem e sátira. E, ato contínuo, como nas melhores
piscadelas conspiratórias, tendo o cuidado de jamais se converter
num embate direto com a autoridade que, delicadamente e a um
só tempo, lisonjeiam e destronam.
Determinar então qual o sinal que se deve acrescentar a estratégias
como essa – que se, de um lado, tornam-se, sem dúvida, um truque
valioso em face a uma ordem enrijecida, de outro, apontam também
para certa dificuldade de identificar, formalizar e explicitar os conflitos
– é um dilema que se mantém até hoje como uma das grandes linhas de
força da melhor reflexão em torno do significante “Brasil”, conhecendo
talvez na “Dialética da malandragem”, de Antonio Candido, a sua
súmula mais poderosa e influente. De forma um pouco mais oblíqua,
ainda – e que passa, no entanto, bem ao largo das sínteses generali-
zantes –, pode-se dizer que tal pergunta mantém-se ecoando, em tom
menor, na própria dicção escrupulosa do livro de Bruno Martins, em
que a aparente restrição do foco adotado não deixa de operar como
matriz geradora de um caleidoscópio riquíssimo, em que muitas das
aporias da famigerada “dialética da ordem e desordem” emergem
como acenos fugazes em comentários sobre temas tão variados tais
quais o lundu, o violão e o carnaval, em trechos que servem, por si sós,
como pequenos exercícios de engenharia reversa sobre os sentidos mais
conhecidos desses e outros clichês. O mais intrigante, porém, é que,
sendo tais nexos menos desenvolvidos que insinuados, é quase como
se, ao recusar-se englobar e linearizar tais sugestões numa formulação
genérica – optando antes por fazê-las desfilar diante dos nosso olhos,
como numa esteira rolante – , o ensaio nos forçasse também a jogar uma
sombra de dúvida nas inúmeras exorbitações que provoca; mecanismo
sintetizado com rara felicidade, aliás, na quadrinha metalinguística,
explorando o contraponto entre os textos “com ou sem intenção”.
24 CO R PO S EM CA BEÇA

Binarismo que soa obviamente como música para os leitores da


teoria literária contemporânea, esse gosto por dizer à socapa e/ou
em contrabando responde, decerto, e muito, pela peculiar eficácia
persuasiva dessa dicção aparentemente neutra e sem crescendos,
com seu cuidado em jamais hierarquizar em demasia as escalas de
importância dos materiais com que lida. Nada mais adequado, por
sinal, em vista do que parece ser também, sob vários aspectos, o
próprio modus operandi do objeto abordado, eixo de uma narrativa
na qual, via de regra, a capacidade de transpor o aparentemente já
conhecido para um ângulo inusitado – o que inclui desde assumir a
voz de uma mulher até contemplar o Segundo Império de uma pers-
pectiva “lunática” – emerge como um vetor de capital importância
nesses primeiros delineamentos de um campo literário autônomo,
acercados com olho de lince pela atilada montagem de fragmentos
que o livro costura. Num registro um pouco mais crispado, aliás, é
um traço que irá ganhar claramente a frente, mais uma vez, no que
me parece ser, sem favor algum, um dos momentos mais inspirados
do livro, tendo por foco um comentário aparentemente banal sobre
as adivinhas em verso de Paula Brito, pelas quais este procurava
instigar a interação com os leitores da Marmota Fluminense. Podendo
até parecer um recurso um tanto quanto simplório em seu valor
de face – a fortiori, não muito mais sofisticado que um jogo de
palavras cruzadas –, penso que o lance decisivo, nessa passagem,
tem lugar quando, ao convidar seu público a dissertar sobre “uma
certa coisa amarela” que teria impregnado o lenço oferecido por
uma bela moçoila, o editor abre rapidamente uma fresta para um
possível sentido escatológico, que será, aliás, depois, cuidadosamente
fechada pelo comentário tranquilizador dos versos da glosa citados,
nos quais se opta por interpretar em chave inofensiva o tal elemento
estranho. De um momento a outro, contudo, como bem assinala
Bruno, não é despropositado dizer que, no intervalo que vai da sus-
peita incômoda até a fixação do sentido, é como se o texto deixasse
џђѓѨѐіќ 25

entrever um vetor de ameaça pulsando por trás da aparente falta de


contornos do sintagma enigmático, que, nesses termos, funcionaria
como uma anamorfose capaz de ativar um possível sentido obsceno
no repertório de expectativas do público, nem que seja apenas para
fazê-la dissolver-se em névoa logo no parágrafo seguinte.
A essa altura, porém, até que essa pequena síncope perturba-
dora se dissipe, a verdade é que ela já terá deixado impressa em
nossas retinas mentais uma leve marca incômoda a qual, se não
tem a mesma eloquência sinistra da caveira de Holbein, com esta
partilha, entretanto, a capacidade de gerar uma espécie de recon-
sideração em slow motion dos elos nem sempre amigáveis entre
projeção e percepção, elos que tendem, aliás, a ser drasticamente
atenuados na esfera por assim dizer mais pragmática da vida
cotidiana. Desproporções à parte, contudo, para os interessados
em demover eventuais suspeitas de hybris hermenêutica, penso
que um bom ponto de partida, em termos “filológicos” , pode ser
dado pela própria instabilidade constitutiva da palavra-chave
“peta”, capaz, como se sabe, de remeter tanto à mentira e ao que
não é sério quanto à “marca de podre na fruta”. Em tal imagem,
sem maior esforço, poderíamos identificar algo como uma versão
rebaixada da mesma tópica da efemeridade levada, em “Os em-
baixadores”, a consequências extremas. Seja isso ou não um dado
fortuito, creio que o elemento mais intrigante, nesse específico,
diz respeito menos ao maior ou menor grau de premeditação de
tais enlaces do que ao modo como, não muito mais tarde, isso irá,
digamos, começar a “fazer sistema” na obra madura de Machado,
na qual o disseminar de pistas falsas e meneios de duplo sentido
se vê efetivamente convertido em princípio estilístico. Para nos
atermos apenas a um caso óbvio, é uma cristalização bastante
evidente, por exemplo, nas extraordinárias sutileza e sofisticação
de um episódio como o de Sofia e Carlos Maria, em Quincas Borba,
quando as convenções do romance de adultério oitocentista são de
26 CO R PO S EM CA BEÇA

uma só vez evocadas, absorvidas e destituídas pela melíflua dicção


do narrador, e a suposta infidelidade da mulher de Cristiano Palha
surge menos como um evento diegético do que como uma miragem
ativada pelas expectativas do público. Note-se, aliás, que, na sem
cerimônia como dialoga de igual para igual com a produção de
ponta da época – chegando mesmo até o desplante de virar pelo
avesso seus tiques –, o referido episódio vale, sem exagero, quase
como uma pequena certidão de maioridade da literatura brasileira,
continuando até hoje, não por acaso, a inquietar/desafiar boa parte
da melhor crítica literária em língua portuguesa.
Sob o pano de fundo de Corpo sem cabeça, entretanto, o fato é
que, sem em nada perder em originalidade e genialidade, esse e
outros golpes de mestre de Machado surgem como que convin-
centemente reemoldurados numa linha de tradição mais ampla,
capaz de colocar em diálogo, numa só fita de Moebius, tanto
a tal coisa amarela de duvidosa consistência quanto as várias
estratégias de despiste usadas, já no século XX, pelos “cidadãos
precários” do samba; tanto a vocação hibridizante da MPB quanto
as impostações do poema-piada, de Oswald a Francisco Alvim. Vista
do plano geral, portanto – e ressalvada, é claro, também a margem
de liberdade associativa de cada leitor –, o que se tem aqui é uma
oscilação, no limite, que, longe de convidar-nos a imobilizá-la,
tende antes a tornar estranhamente porosas as fronteiras de pre-
sente e passado, na mesma tacada em que vai também adiando
por tempo indefinido a fixação de uma possível moldura em
última instância para esse arco de questões, apta a silenciar de
uma vez por todas a ressonância dos seus ocos. Todavia, a julgar
pelo que é demonstrado e praticado no ensaio de Bruno Martins,
não me parece que isso seja exatamente algo a se lamentar: afi-
nal, se, como escreveu certa vez outro nosso escritor maior, um
livro pode valer também pelo que nele “não deveu caber”, não
é exagero afirmar que, na dificuldade de dizer a palavra final
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sobre esses e outros impasses – com tudo o que isso também com-
porte implícita ou explicitamente de apelo à interação –, eis sem
dúvida uma bela prova em ato da pertinência e amplitude deste
precioso trabalho que, de negaceio em negaceio, de insinuação
em insinuação, parece dar um novo e refrescante sentido à boa
e velha expressão “jogar sem bola”.

Emílio Maciel
INTRODUÇÃO

O outro é o fantasma da historiografia. O objeto que ela busca, que


ela honra e que ela sepulta. Um trabalho de separação se efetua com
respeito a esta inquietante e fascinante proximidade.

Michel de Certeau

Enquanto folheava uma reedição da obra pioneira sobre nossa


história editorial, O livro no Brasil,1 não por acaso redigida por um
bibliotecário inglês, meu olhar foi magneticamente atraído para a
reprodução de um retrato litografado do “editor mulato” Francisco
de Paula Brito. O capítulo em que se encontrava inserida a ima-
gem oferecia uma compilação de dados biográficos e o histórico
do desenvolvimento dos seus negócios editoriais, além de incluir
uma breve descrição da Sociedade Petalógica, mencionando alguns
dos seus ilustres frequentadores, e desvendando o significado do
neologismo em uma equação simples: “uma peta = uma mentira”.
As singularidades biográficas do editor, seu pioneirismo e as lacu-
nas na descrição daquela curiosa sociedade que adotara a mentira
30 CO R PO S EM CA BEÇA

como lógica me pareceram temas promissores para desenvolver


minha tese de doutorado que agora se apresenta na forma de livro.
No início da pesquisa bibliográfica não foi difícil reconhecer a
redundância de informações e a ausência de novas perspectivas de
abordagem, a despeito de algumas notáveis exceções, como os de-
talhes apontados com perspicácia por Raimundo Magalhães Júnior
no contrapelo da fortuna crítica de Machado de Assis,2 a busca por
uma descrição da “vida literária” feita por Ubiratan Machado,3 e,
na exploração de um viés historiográfico contemporâneo, o esforço
de Rafael Cardoso em delinear o que foi o impresso no Brasil.4 De
meu lado, além de novas teorias para abordar as relações entre o
editor, o impresso e o literário, evitei a simples repetição de infor-
mações, buscando por citações e iconografia inéditas.5 Em contraste
com seu retrato mais difundido quando aparece já maduro e com
os olhos cansados, apresentamos um retrato menos divulgado
quando o editor surge jovem e auspicioso. Em uma época quando
ter a imagem gravada era um privilégio para poucos, também são
significativos os decalques para gravura com esboços de Paula Brito,
de sua esposa e das duas filhas (figuras 1-6).

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No Brasil contemporâneo, o notável sucesso dos meios de comu-


nicação eletrônicos se contrapõe às dificuldades para universalizar o
letramento. Se é correto que uma cultura letrada não se consolidou
por completo entre nós, assumimos uma dificuldade em ordenar
“historicamente” nossa experiência coletiva. Constitui-se como ta-
refa do presente investigar tal dificuldade retomando os primeiros
passos do medium identificado com a disseminação de uma cons-
ciência histórica, a imprensa. Mais do que criar novos símbolos, a
escrita parece tê-los organizado em linhas, criando as condições
para materializar a “ficção de uma linearidade do tempo”. Animada
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pela cronologia, a escrita da história ordenou acontecimentos que


se encaixam em uma lógica de causa e efeito estabelecendo, simul-
taneamente às narrativas exemplares e à temporalização, sentidos
para o progresso e o atraso. Foi nas páginas impressas da história
moderna que se operou a separação na qual um presente “vivo”
distingue-se de um passado “morto”, transfigurando-o em um outro,
em algo diferente do que se é. Entretanto, se esse gesto de separação
se realiza na escrita, por sua vez, a leitura da história conserva a
potência de explorar o que ali se insinua e se oculta.
Em uma breve visita à toponímia que tem a pretensão de nos re-
presentar, podemos vislumbrar como a amputação do passado nos
assombra na forma fantasmagórica do atraso: de “Novo Mundo” a
“ex-Colônia”, de “terceiro mundo” a “país do futuro”, até a variação
utilizada pelo jornalismo contemporâneo, “país emergente”, todas
insistem em repetir o sentido unidirecional do progresso que relega
o passado ao esquecimento. Quaisquer discursos que compartilhem
essa noção de “atraso” têm como base uma projeção histórica linear
que, impulsionada pela força do medium, resulta na compreensão
do passado como uma espécie de bárbaro primitivo, excluindo do
discurso tudo aquilo que por ele não pode ser ordenado. Ao integrar
o esforço de refletir sobre a história dos meios de comunicação e a
literatura no Brasil, buscamos por indícios de fenômenos e acon-
tecimentos que tiveram dificuldades em se ordenar no fio dessa
história pautada pelo atraso.
Três séculos e meio distanciam o aparecimento da imprensa na
Europa Ocidental de sua chegada às terras brasileiras, marco histórico
em torno do qual vamos elaborar nossas hipóteses. A instalação das
prensas no início dos Oitocentos foi um passo relevante para consoli-
dar um sistema de comunicação baseado na produção e recepção de
impressos, pois, grosso modo, ao longo do período colonial contava-se
apenas com a circulação tímida de alguns manuscritos e impressos,
implicando severas restrições tanto para a publicação quanto para
32 CO R PO S EM CA BEÇA

a leitura. Entretanto, para evitar o lamento sombrio do atraso será


necessário questionar a perspectiva historiográfica moderna que,
ao determinar quão tardia foi a chegada desse iluminado meio de
comunicação, oculta as consequências constitutivas de tal “retardo”.
Não se trata simplesmente de negar a linearidade, mas de questionar
a noção evolutiva implícita em tal raciocínio, que não só nos destina,
eternamente, a uma posição secundária, mas também encobre aspec-
tos particulares em nossa história.
Se concordamos que certas prescrições normativas parecem
perder suas forças à medida que se afastam dos centros onde
são produzidas, talvez haja um certo privilégio em se observar
à margem, pois implica traduzir, adaptar, apropriar ou, mesmo,
inventar novos modelos. Diferentemente de considerar o atraso na
chegada da imprensa como causa para repisadas “precariedades”
do sistema letrado e intelectual, buscaremos compreender como
essa condição temporal produziu particularidades positivas na
constituição de um sistema marginal e secundário. Para observar a
consolidação de um sistema de comunicação no Brasil que tem por
base escrita, publicação e leitura, consultamos impressos da época
e (re)visitamos a história para encontrar a alteridade que constitui
o fundo de sua narrativa.
Na comunicação impressa são os atos de leitura que tornam
comum a apropriação. No entanto, a imagem de um leitor que,
de forma reservada e silenciosa, toma o livro em suas mãos para
desvendar as intenções do autor, o que seria romanticamente ide-
alizado em qualquer outro contexto, certamente, pouco representa
da realidade brasileira nos Oitocentos. A imprensa aportou no Brasil
mais complexa do que quando surgira na Europa, encontrando
aqui um ambiente distinto daquele que havia contribuído para
desenvolver. Se podemos relacionar o desenvolvimento de uma
subjetividade moderna com a supressão da presença no ato de
conhecimento proporcionado pelo texto impresso, as projeções de
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tal subjetividade no espelho de nosso antigo Império não produzi-


ram reflexos simétricos aos daqueles que criticaram e fizeram ruir o
absolutismo. Trata-se, então, de mirar as distorções desses reflexos.
Ao se posicionar entre autor e leitor, entre texto e recepção, o
editor apresenta uma posição privilegiada para a observação de
ações produtivas e seletivas, assim como gestos de apropriação
em uma cultura letrada. Daí porque focar a trajetória do “primeiro
editor, digno do nome, que houve entre nós”, Francisco de Paula
Brito, desde a aquisição de sua primeira tipografia em 1831, até
sua morte em 1861. O ensaio que ora apresentamos busca articular
as complexas mediações operadas pelo editor para compreender
como se inserem impressos em uma sociedade cujas práticas co-
municativas já se encontravam consolidadas pelos mais de três
séculos de colonização (sem esquecer, é claro, do período anterior
à “descoberta”). Pressupõe-se que esse enfoque nas mediações do
editor revele passagens quando se transfiguram outras formas de co-
municação como, por exemplo, o gesto e a voz, no interior do circuito
impresso. Nesse sentido, dentre os impressos editados por Paula
Brito destacaremos os registros da Sociedade Petalógica, grupo
“litero-humorístico” que manteve, em meados do século XIX, uma
curiosa dinâmica de performance ficcional. “Peta”, cujo significado
principal, “mentira”, se sobrepõe ao movimento multidirecional de
projeção revelado pelo significado secundário, “mancha de podre”,
e ganha matiz paradoxal quando anteposto à “lógica”, revelando no
neologismo, “Petalógica”, o espírito engenhoso e bem-humorado
que animava as conversas e palestras que ocorriam nas lojas de
Paula Brito. Esse acontecimento singular de sociabilidade literária
estabeleceu uma curiosa instituição informal, uma solidária “família
da rua”, um anárquico “corpo sem cabeça”, onde se entrelaçaram
práticas de uma nascente comunidade letrada e o cotidiano de um
público pouco letrado. Nesse sentido, os registros das sessões da
Petalógica são artefatos valiosos para esboçar uma arqueologia do
34 CO R PO S EM CA BEÇA

impresso e do literário, pois apresentam vestígios de um momento


quando ainda não haviam conquistado um espaço próprio.
Um gesto se repete ao longo do livro caracterizando-o: focar no
aparentemente secundário, buscar a figura no fundo. É o que pre-
tendemos ao alçar ao primeiro plano a trajetória de um “tipógrafo-
-editor” e a sociedade literária que se formou ao seu redor. Esse
gesto é replicado quando, por exemplo, no impresso identificamos
o oral e o caligráfico; no autor observamos o editor; no leitor pres-
sentimos o tipógrafo; no literário buscamos o gráfico e o gestual. Tal
inversão também se desdobra para a lógica disciplinar, pois somente
podemos chamar o que ora apresentamos de “ensaio de história
literária”, mirando compreender como os discursos históricos e
literários, articulados na comunicação impressa, desenharam suas
fronteiras em relação ao que lhes é externo, ou seja, em relação a
outros meios e à própria realidade em que se inseriram. Para tanto,
focamos nos meios de comunicação, especialmente nas mediações
operadas pelo editor, para observar desenhos de fronteiras e seus
limiares, oscilações entre inscrever e apagar, entre impresso e não
impresso, entre literário e não literário.

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No primeiro capítulo, “O papel da história”, apresentamos um


conjunto de teorias e métodos em torno do tipógrafo-editor e da
Sociedade Petalógica para desenvolver e articular nossas hipóteses.
Ao invocar uma perspectiva “não-hermenêutica” quisemos dar a
devida atenção à superfície, a aspectos estéticos da experiência, co-
locando em relevo diferentes formas de apropriação dos impressos
que não se esgotam no ato de interpretação. Seguindo esse raciocínio
questionamos a separação operada pela escrita da história buscando
perceber vestígios apagados ou não percebidos em sua linearidade
narrativa. Daí a necessidade de considerar ações comunicativas
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cotidianas, uma vez que passaram a configurar o “fundo” sobre o


qual emerge um novo espaço público urbano mediado por impres-
sos, depois da rápida sincronização tecnológica da imprensa, que já
se equiparava às nações europeias em meados do século XIX. Essa
aparente sincronização foi responsável por cristalizar o fantasma
do atraso que teima em nos assombrar até hoje. Para inverter o
valor negativo geralmente atribuído ao atraso, posicionamos Paula
Brito como uma personagem-pivô capaz de articular um antes e
um depois da imprensa no Brasil; nesse sentido, a Petalógica se
configura como espaço de sociabilidade onde essa articulação foi
realizada. O editor pioneiro incorpora a complexidade da imprensa
ao condensar simultaneamente três figurações que, de acordo com
o historiador Roger Chartier, caracterizam diferentes momentos
na história da edição: a) o livreiro-editor, b) o editor autônomo e c)
editor da voz. Cada uma dessas figurações guia os três capítulos
seguintes do ensaio.
No segundo capítulo, intitulado “Mastigando chumbo”, ao in-
vestigar as implicações do capital comercial para o livreiro-editor
Paula Brito, analisamos o contexto social e econômico que possi-
bilitou a ascensão de um mulato letrado em um regime escravo-
crata. Diante dos conflitos e indefinições políticas das regências,
premido por necessidades materiais, Paula Brito abrigaria suas
múltiplas facetas sob o nome de “impressor-livre”, transformando
sua atividade profissional não só em “meio de vida”, mas em sua
principal identidade. Foi a máscara do livre ofício que permitiu ao
editor se manter na posição de mediador ao longo da turbulência
política das regências e ainda expandir seus negócios. Em seu auge
empresarial, Paula Brito lançou uma empresa cujos primeiros sócios
eram ninguém menos que os mais prestigiosos mecenas da época,
o imperador e a imperatriz. O capital arrecadado junto a acionistas
ávidos para se tornarem sócios da família imperial foi utilizado para
a ampliação das oficinas e a aquisição de equipamentos. No entanto,
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o empreendimento fracassaria, sendo a empresa dissolvida oito


anos após seu aparecimento. São diversos os motivos que levaram
Paula Brito à derrocada financeira, todavia buscamos relacionar
seu fracasso empresarial à incompatibilidade entre ampliação do
público leitor e restrições do cenáculo literário erigido em torno do
imperador. Ainda como forma de compreender o empresário-editor
analisamos objetos impressos e não impressos comercializados nas
lojas de Paula Brito, verificando que uma grande variedade de im-
pressos efêmeros, ao lado de periódicos e livros, foi responsável por
disseminar a cultura impressa no cotidiano. Por sua vez, objetos não
impressos, que certamente eram fonte segura de rendimentos, se
relacionavam aos princípios do jogo e do artifício, realizando uma
espécie de materialização do literário no cotidiano.
A figuração madura do editor que define suas publicações com
base em critérios intelectuais e estéticos foi explorada no terceiro
capítulo, intitulado “A mecânica da autonomia”. O notável pio-
neirismo de Paula Brito é um primeiro aspecto que demonstra
sua autonomia, seja pela introdução de temáticas e gêneros antes
inexistentes na imprensa nacional, seja por trazer à luz escritores
brasileiros, seja pelas inovações técnicas e empresariais. Foi sua bio-
grafia multifacetada e os constantes deslocamentos de perspectivas
daí decorrentes que pavimentaram o caminho para que consolidasse
sua autonomia editorial. Deslizando entre diferentes identidades
– soldado, tipógrafo, impressor, leitor, tradutor, redator, autor,
poeta, editor, empresário – Paula Brito foi capaz de realizar uma
autorreflexão produtiva que emergiu em suas práticas editoriais.
Esses deslizes autorreflexivos foram capazes de sensibilizar o leitor
para as mediações culturais e qualidades metalinguísticas do im-
presso. Como resultado dessa dinâmica surgiria um leitor-tipógrafo
que, ao se divertir decifrando enigmas ou glosando motes, caminha-
va em direção à sua própria autonomia. Perseguindo os vestígios
gestuais do oral e do caligráfico no impresso deparamos com alguns
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exemplos que parecem ilustrar a fórmula da comicidade elaborada


por Bergson: “o mecânico calcado no vivo”. A transfiguração da
fluidez da voz e do gesto para a rígida modularidade da tipografia
torna visível (e risível) a linguagem do impresso. Ao provocar no
leitor, simultaneamente, a possibilidade de crítica social e experiência
estética, a visibilidade dos vestígios do oral e do caligráfico também
o conduziria em direção à autonomia.
No quarto capítulo, “Petas no ar”, nos dedicamos a definir Paula
Brito como um editor da voz, ou seja, como aquele que cria condições
para que vozes se manifestem selecionando-as e compondo-as. Se
inicialmente sua autodeclarada identidade de impressor-livre lhe
permitiu agir como mediador no debate político, em um segundo
momento deu lugar ao besteirol da Sociedade Petalógica. Entretanto,
o absurdo das mentiras inventadas mirava um alvo específico além de
disparar o riso dos petalógicos. Caso as petas fossem tomadas como
verdadeiras seriam capazes não só de multiplicar as gargalhadas, mas
fariam com que seus repetidores caíssem em descrédito, disparando
a dinâmica de: “contrariar os mentirosos, mentindo-lhes”. Com essa
lógica retorcida, as petas sensibilizavam leitores e ouvintes para os
artifícios da linguagem disseminando um ceticismo generalizado.
Nas sessões da Petalógica, múltiplas vozes mentiam, discutiam, riam,
cuspiam, contavam, declamavam, cantavam, improvisavam. Fossem
os pés de couve gigantes, as polêmicas acirradas sobre temas prosaicos
ou as fabulações de um viajante à lua, os vestígios impressos das reu-
niões apontam para seu aspecto vigorosamente polifônico, anônimo,
popular. Ali também floresceu um sistema de criação para a música
popular que se aproveitava do encontro entre letrados e músicos; a
pose do bacharel se mostrava produtiva ao ser balançada pela ginga
do músico popular. Performance, riso e fantasia impulsionaram ações
e reflexões que dissolviam diferenças entre o oral e o escrito. Na
Petalógica, Paula Brito surgiria como editor de vozes muitas vezes
estranhas ao que se poderia esperar de uma República das Letras.
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Finalmente, após articular conclusões em “Impressões em falso”,


apresentamos em “Miscelânea petalógica” fragmentos diversos que
apresentam a vocês, leitores, o que foram os espíritos zombeteiros
e desconfiados que compuseram a Sociedade Petalógica. Em sua
maioria, os textos foram extraídos das Marmotas publicadas por Paula
Brito, mas também em outros periódicos que circulavam à época. Ao
elaborar este apêndice, como se fôssemos um editor, desejamos pos-
sibilitar que o leitor experimente um pouco desse ambiente quando
a performance ficcional impulsionou a criação literária.

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