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A dinâmica de meu pensamento foi sempre movida basicamente pelos efeitos do estado
do mundo em minha sensibilidade, quando estes me causam estranhamento. Sinto-me
então convocada a inventar conceitos que permitam integrar os efeitos das forças da
alteridade em meu cotidiano, para que este possa retomar seu movimento. Portanto, a
cada período, meu trabalho gira em torno de um só e mesmo problema, que exploro em
diferentes direções, de modo a introduzi-lo em meus territórios de existência e suas
respectivas cartografias, processo que pode resultar em sua recomposição.
Assim, desde sempre, a produção teórica cumpre uma função essencial em minha
existência: criar saídas para o fluxo vital, nos pontos em que este se encontra obstruído.
Daí o trabalho intelectual ter para mim um sentido estético e político, mas também e
indissociavelmente clínico. Daí igualmente eu estar sempre reelaborando os conceitos,
ROLNIK, Suely. Com o que você pensa? . Núcleo de estudos da subjetividade – PUC-SP. 2007. [Apostila].
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reelaboração que não tem a ver com “corrigi-los” ou torná-los mais próximos de uma
suposta verdade, mas sim com dar voz à singularidade do processo que ao mesmo tempo
os convoca e constitui a cada vez, em função dos contextos em que eles voltam a ser
operatórios.
Subjetividade Antropofágica
Utilizei este conceito pela primeira vez em meu livro Cartografia Sentimental, minha tese
de doutorado publicada em 1989 3 – ano da retomada da democracia no Brasil e da queda
do muro de Berlim. Tratava-se então de nomear e afirmar a política de subjetivação, de
criação e de relação com o outro que havíamos inventado nos movimentos dos anos 1960,
por oposição à subjetividade regida pelo princípio identitário, pois este havia sido
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reativado e enrijecido pela ditadura militar ao longo dos anos 1970 4 – o que costuma
acontecer neste tipo de regime. O mesmo ainda se fazia necessário em 1994, quando
escrevi “Esquizoanálise e Antropofagia” 5 . Mas o foco era então a relação entre aquilo
que eu designava por subjetividade antropofágica e o conceito de subjetividade que se
pode extrair da obra de Deleuze e Guattari, para tentar compreender a ampla recepção do
pensamento destes autores no campo da clínica no Brasil (o que aliás continua ainda
hoje).
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Esse exemplo nos mostra que, em meu trabalho, os conceitos são plásticos, e que sua
coerência só pode ser buscada em função do contexto no qual cada uma de suas
transformações tem sua origem e sua necessidade. Assim, nos anos 1980, valorizar por
princípio o modo de subjetivação que designei com este conceito não era um equívoco,
pois respondia às urgências da sensibilidade do momento. Equivocado teria sido insistir
em pensá-lo da mesma maneira ao longo do tempo.
Fica evidente que a matéria prima de meu trabalho intelectual é o estado do mundo: suas
tensões (e meu mal estar) são o seu ponto de partida e nomeá-los para melhor situá-los,
seu ponto de chegada (visando a invenção de saídas). O pensamento não fica confinado
na biblioteca, onde ele correria o risco de asfixia. Não que livros não sejam importantes:
ao contrário, eles o são, mas enquanto fonte de elementos para a produção dos conceitos
que darão língua aos afetos que buscam inscrever-se na cartografia do presente. Mas
mesmo enquanto fonte, eles não são a única, nem necessariamente a mais importante.
Filmes, trabalhos de artes plásticas ou de dança, romances, conversas ou até uma simples
canção, mas também um movimento coletivo, podem fornecer elementos mais adequados
para um dado problema, ressonâncias mais fecundas para seu tratamento. Este é meu
critério de valor para escolher aquilo que será utilizado, e não uma hierarquia fixa e pré-
estabelecida, na qual, por princípio, a teoria se situaria no topo, acima de qualquer outro
suporte do pensamento.
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Descreverei brevemente a seqüência de alguns destes exílios. No final dos anos 1960,
meu campo de atuação era o das ciências sociais, pois é aí onde se pensava com maior
acuidade o capitalismo industrial e sua sociedade disciplinar, bem como a resistência a
seus aspectos intoleráveis. Mas já naquela época, o movimento de criação nas ciências
sociais começava a esgotar-se, sob o peso esmagador de um pensamento de esquerda
parado no tempo, que se recusava a reconhecer a importância da dimensão micropolítica
na definição de um regime e nas estratégias das transformações que se fazem necessárias.
A consciência desta dimensão, eu a trazia da contra-cultura, com a qual eu me encontrava
intensamente envolvida na mesma época, numa existência radicalmente experimental. No
entanto, se a micropolítica estava ausente das ciências sociais e da militância, à contra-
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cultura faltava a macropolítica. No Brasil, o conflito entre estas dois movimentos era
especialmente violento, o que tornava ainda mais intransponível o abismo entre estes dois
tipos de experiência e mais impossível a tão necessária articulação entre macro e
micropolítica. Encontrei a possibilidade desta articulação tanto teórica quanto
pragmaticamente, na atmosfera da Paris pós-68, onde eu estive em exílio (aqui,
literalmente) durante toda a década de 1970. Do ponto de vista teórico, a encontrei
sobretudo nos escritos e seminários de Deleuze, Guattari, Foulcault e Pierre Clastres, o
que me levou a migrar para a Filosofia (em Paris VIII) e a Antropologia (em Paris VIII e
na École Pratique des Hautes Études). Do ponto de vista pragmático, encontrei esta
articulação no trabalho de Lygia Clark qui vivia em Paris na época, como eu e 30.0000
outros brasileiros, mas também e mais explicitamente em La Borde, na Psicoterapia e
Análise Institucionais, assim como em seu desdobramento naquilo que Deleuze e
Guattari chamaram de Esquizoanálise. Naquele momento, um amplo movimento de
crítica institucional agitava o campo da Saúde mental em vários países provocando
rupturas radicais. Isso me levou a uma nova migração: nos estudos, para a Psicologia em
Paris VII (uma faculdade criada após 1968, que, não por acaso, se chamava “Ciências
Humanas Clínicas”); e no trabalho, para uma atuação como terapeuta e professora que
continuo ainda hoje. Nos anos 1980 e começo dos 90, já de volta ao Brasil, participei
febrilmente das transformações que se operaram neste âmbito. Porém, em meados dos
anos 1990, o movimento crítico neste campo esvaziara, enquanto ele passava a pulsar
intensamente no campo das artes plásticas, como reação à instrumentalização da
produção artística pelo capitalismo financeiro que então já instalara-se completamente. É
para este campo que migrei naquele momento, onde me encontro desde então.
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Porque a Arte?
Se ainda hoje me encontro na arte é porque neste campo, a meu ver, continuam a estar em
jogo questões essenciais de nossa atualidade. As artes plásticas nunca tiveram tanto poder
no traçado da cartografia cultural do presente como nos últimos dez ou quinze anos.
Além da proeminência que a imagem em geral adquiriu neste traçado ao longo do século
XX, no campo específico da arte, as exposições internacionais converteram-se num
dispositivo privilegiado para o desenvolvimento de narrativas de modo a nos situarmos
na sociedade planetária que nos tornamos, irreversivelmente. Com efeito, elas
concentram e compõem, num só espaço e tempo, o maior número possível de universos
culturais – tanto do lado das obras, como de seu público. Esta é provavelmente uma das
razões pelas quais mega-exposições se espalham por toda parte em vertiginosa
velocidade, a ponto de podermos supor que, num futuro nada longínquo, teremos bienais,
gigantescas feiras de arte e museus de arte contemporânea com suas espetaculosas
arquiteturas nas capitais de todos os países do planeta (o franchising de museus europeus
e norte-americanos faz parte desta lógica).
Julgar se a cultura globalizada é coisa boa ou coisa má é um falso problema, pois esta é
apenas nossa realidade atual, a qual, como toda forma de realidade, se produz no embate
entre as diferentes políticas de sua(s) construção(ões). Ora, é tão falso quanto perguntar-
se sobre a pertinência do papel da arte na invenção de tais cartografias. Também aqui, o
que importa são as forças em jogo em cada proposta artística: o quanto a criação parte das
turbulências da experiência sensível contemporânea. Estas resultam dos inevitáveis
atritos, tensões, impossibilidades que a complexa construção de uma sociedade
globalizada implica singularmente em cada contexto e a cada momento. No campo das
artes plásticas, estas forças tomam corpo não só nas próprias obras, mas em suas
exposições e nos conceitos curatoriais que expressam, nos textos críticos que as
acompanham e nas diretrizes dos museus que as acolhem – e por fim (ou início?), em
todas as práticas artísticas que se fazem numa deriva para além do terreno institucional da
arte, na qual tem embarcado parte da produção contemporânea.
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As forças que predominam hoje neste território são as que denegam ativamente os
traumas da experiência contemporânea, suas turbulências, nossa fragilidade. Quando a
criação artística é tomada por esta força de denegação, ela se torna elemento de uma
cartografia cultural e existencial vazia e sem relevo. Porém, o que é mais inquietante é
que ela se oferece ao turismo cultural como um modelo genérico prêt-à-porter, a ser
consumido em qualquer lugar do planeta – um importante ingrediente na produção de
uma subjetividade flexível do tipo zumbi, adequada ao funcionamento do capitalismo
financeiro internacional. Este seria, me parece, um dos aspectos mais sutis e também
mais perversos da instrumentalização da arte para os interesses do capital.
Uma nova cartografia se esboça nestes gestos a contrapelo do regime dominante na arte.
Uma das principais tensões que estas forças enfrentam é a do lugar central que ocupa a
criação no capitalismo mundial integrado. Esta situação cria as condições para superar a
dissociação entre micro e macropolítica que se reproduz na dissociação entre as figuras
clássicas do artista e do militante. Tal dissociação encontra-se na base do conflito que
caracterizou a conturbada relação de amor e ódio entre movimentos artísticos e
movimentos políticos ao longo do século XX, responsável por muitas das frustrações de
tentativas coletivas de mudança (a começar pela revolução russa). Apresentarei a seguir
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Entretanto o bloqueio da potência crítica da criação se faz também fora de seu terreno,
pois a lógica mercantil-midiática não só tem nas forças de criação uma de suas principais
fontes de extração de mais-valia, como sabemos, mas sobretudo ela opera uma
instrumentalização das mesmas para constituir o que chamarei aqui de “imagosfera”, a
qual hoje recobre inteiramente o planeta. Refiro-me à camada contínua de imagens que se
interpõe como um filtro entre o mundo e nossos olhos, tornando-os cegos à tensa
pulsação da realidade. Tal cegueira, acrescida da identificação a-crítica com estas
imagens (que tende a se produzir nos extratos mais variados da população por todo o
planeta) é o que prepara e condiciona as subjetividades para submeter-se aos desígnios do
mercado, permitindo assim que sejam aliciadas todas suas forças vitais para a
hipermáquina de produção capitalista.
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principais armas, senão “a” principal. Sua luta, portanto, deixa de restringir-se ao plano
da economia política, para englobar os planos da economia do desejo e da política da
imagem. A colaboração entre artista e ativista impõe-se muitas vezes na atualidade como
uma condição necessária para levar a termo o trabalho de interferência crítica que tanto
um como outro empreendem, cada qual num âmbito específico do real, e cujo encontro
produz efeitos de transversalidade em cada um de seus respectivos terrenos.
Nesta nova situação, as intervenções artísticas que preservam sua potência micropolítica
seriam aquelas que se fazem a partir do modo como as tensões do capitalismo cultural
afetam o corpo do artista e é esta qualidade de relação com o presente que tais ações
podem convocar em seus ‘perceptores’. 12 E quanto mais precisa sua linguagem, maior o
poder das mesmas de liberar a expressão e suas imagens de seu uso perverso. Isto
favorece outros modos de utilização das imagens, outras formas de recepção, mas
também de expressão, as quais podem introduzir novas políticas da subjetividade e de sua
relação com o mundo – ou seja, novas configurações do inconsciente no campo social,
em ruptura com as referências dominantes.
Em outras palavras, o que este tipo de prática pode suscitar naqueles que a recebem não é
simplesmente a consciência da dominação e da exploração, sua face visível,
macropolítica, mas sim a experiência destas relações de poder no próprio corpo, sua face
invisível, inconsciente, micropolítica, que interfere no processo de subjetivação lá onde
este se torna cativo. Diante desta experiência, tende a ser impossível ignorar o malestar
que esta perversa cartografia nos provoca. Isso pode nos levar a romper o feitiço da
imagosfera neoliberal sobre nossos olhos, despertando sua potência vibrátil de seu estado
doentio de hibernação. Ganha-se com isso uma maior precisão de foco para uma prática
de resistência efetiva, inclusive no plano macropolítico. Esta em compensação se debilita
quando tudo que diz respeito à vida social volta a se reduzir exclusivamente à
macropolítica, fazendo dos artistas que atuam neste terreno meros cenógrafos, designers
gráficos e/ou publicitários do ativismo (o que, além do mais, favorece as forças reativas
que predominan no território institucional da Arte, ao lhes fornecer argumentos para
justificar sua separação da realidade e sua despolitização).
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Macro e micropolítica estariam enfim juntas? Uma nova aliança entre arte e ativismo
estaria se estabelecendo no no século que ora se inicia?
1
Cf. Guattari, F. e Rolnik, S., Micropolítica. Cartografias do desejo (Vozes, 1986; 8a ed 2007);
P. 132.
2
O Movimento Antropofágico destacou-se no pensamento brasileiro dos anos 1920. Com sua
base dadaísta transfigurada e sua prática construtivista, foi marcado por forte singularidade no
contexto internacional do modernismo, ainda que pouco conhecido fora de Brasil.
3
Cartografia Sentimental. Transformações contemporâneas do desejo (São Paulo: Estação
Liberdade, 1989, esgotado). 2a e 3a edições revisadas + prefácio (Porto Alegre: Sulinas / UFRG,
2006, 2007).
4
Em 1985 foi eleito, indiretamente, o primeiro presidente civil do país. As primeiras eleições
diretas foram em 1989.
5
Schizoanalyse et Anthropophagie. In: ALLIEZ, Eric (Org.). Gilles Deleuze. Une vie
philosophique (Paris: Synthélabo, col. Les empêcheurs de penser en rond, 1998 . P.463-476).
Tradução brasileira: Esquizoanálise e Antropofagia, Gilles Deleuze. Uma vida filosófica. (São
Paulo: Editora 34, 2000. P. 451-462).
6
Subjetividade Antropofágica / Anthropophagic Subjectivity. In: Herkenhoff, Paulo e PedrosaA,
Adriano (Edit.). Arte Contemporânea Brasileira: Um e/entre Outro/s, XXIVa Bienal
Internacional de São Paulo. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1998. P. 128-147. Edição
bilíngüe (português/inglês).
7
Zombie Anthropophagy. In: Curlin Ivet, Ilic Natasa (org), Collective Creativity dedicated to
anonymous worker. Kunsthalle Fridericianum: Kassel, 2005. Em português: Antropofagia
Zumbi, Revista Azougue 2006-2008; ISBN 978-85-88338-**-*.
8
A noção de “subjetividade flexível” inspira-se parcialmente da “personalidade flexível”
sugerida por Brian Holmes, a qual desenvolvo da perspectiva dos processos de subjetivação (V.
Holmes, Brian, “The Flexible Personality”. In: Hieroglyphs of the Future. Zagreb: WHW/Arkzin,
2002).
9
Lygia Clark, de l’objet à l’événement. Ativação da memória de uma obra e seu
contexto
/ Lygia Clark, da obra ao acontecimento. Activation de la mémoire d’une oeuvre et son context.
França, Brasil, EUA, 2003-2008.
10
Lygia Clark, de l’oeuvre à l’événement. Nous sommes le moule, à vous de donner o souffle,
Musée de Beaux-Arts de Nantes, 2005 . Versão brasileira: Lygia Clark, da obra ao
acontecimento. Somos o molde, a você cabe o sopro. Pinacoteca do Estado de São Paulo, 2006.
11
F. Guattari et S. Rolnik, Micropolítica. Cartografia do desejo, op.cit, P. 269.
12
‘Perceptores’ é uma sugestão do artista brasileiro Rubens Mano, para designar o tipo de relação
que se estabelece em propostas artísticas que para realizar-se dependem de seu efeito na
subjetividade de quem delas participa. Noções como a de receptor, espectador, participador,
participante, etc, são inadequadas para este tipo de proposta.
ROLNIK, Suely. Com o que você pensa? . Núcleo de estudos da subjetividade – PUC-SP. 2007. [Apostila].
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