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Universidade de Brasília
Instituto de Psicologia
Departamento de Psicologia Clínica

AS EMOÇÕES DO PROFISSIONAL PSICOSSOCIAL COM O

ABUSO SEXUAL INFANTIL

REBECCA RIBEIRO

BRASÍLIA – DF

2004
1

REBECCA RIBEIRO

AS EMOÇÕES DO PROFISSIONAL PSICOSSOCIAL COM O ABUSO


SEXUAL INFANTIL

Dissertação apresentada como requisito


parcial à obtenção do grau de Mestre.

Departamento de Psicologia Clínica


Instituto de Psicologia
Universidade de Brasília

Orientadora: Profª Drª Liana Fortunato Costa

BRASÍLIA – DF

2004
2

Trabalho apresentado ao Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da

Universidade de Brasília, sob orientação da Profª Drª Liana Fortunato Costa.

Aprovado por:

_______________________________________
Profª Drª Liana Fortunato Costa
Presidente

__________________________________
Prof. Dr. Ileno Izídio da Costa
Membro

___________________________________
Profª Drª Maria Aparecida Penso
Membro

____________________________________
Profª Drª Tânia Mara Campos de Almeida
Membro Suplente
3

Por tanto amor, por tanta emoção


A vida me fez assim
Doce ou atroz, manso ou feroz
Eu, caçador de mim

Preso a canções
Entregue a paixões que nunca tiveram fim
Vou me encontrar, longe do meu lugar
Eu, caçador de mim

Nada a temer
Senão a correr da luta
Nada a fazer
Senão esquecer o medo
Abrir o peito à força
Numa procura
Fugir às armadilhas da mata escura
Longe se vai, sonhando demais
Mas onde se chega assim
Vou descobrir o que me faz sentir
Eu, caçador de mim

Caçador de Mim
(Sérgio Magrão/Luiz Carlos Sá)
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“Tudo aquilo que flui como uma expressão espontânea do ser é, sem
dúvida, arte. O caminhar se transforma numa dança, a palavra em poesia, o silêncio
em meditação. Cada gesto está impregnado da divina beleza que tem a essência do
ser”.
(Veet Pramad, 2003)

Dedico esse trabalho a todos os profissionais e trabalhadores


que com coragem, disposição e amor, lidam diariamente
com pessoas em sofrimento decorrente da violência sexual
infantil, transformando a dor em crescimento e esperança.
5

AGRADECIMENTOS

Aos meus queridos pais, Wilson e Alcenira, pelo inesgotável amor,


dedicação e exemplo de vida. Obrigada pelas conversas, pela ajuda na transcrição e
pelas correções gramaticais e especialmente, pelo apoio e incentivo durantes esses
anos de mestrado. Vocês foram muito importantes nesse percurso.

À minha irmã Perla, pelo amor, companherismo e incentivo, mesmo quando


estava distante. Suas idéias e seu trabalho de luta para a implementação de políticas
públicas éticas e justas na área da criança e do adolescente me orgulham e me fazem
sempre acreditar que a gente faz a diferença.

À minha orientadora, amiga e mestre, Profª Drª Liana Fortunato Costa pela
dedicação, paciência e atenção durante todos esses anos. Obrigada por acreditar em
mim, mesmo quando eu parecia confusa e sem esperança.

À Srª Clésia e ao grupo de estudos espiritualistas pelo apoio espiritual e pelos


ensinamentos de um serviço humanitário voltado ao próximo, de inclusão e aceitação
das diferenças através da ação do Amor.

Ao Sr. Valter que com toda sua paciência e disponibilidade, me ajudou nas
reflexões sobre as emoções sob a ótica da filosofia clássica.

À minha querida Vó Maria, por compartilhar comigo suas experiências de


vida e suas orações. Sua presença aqui é inestimável.

Ao Excelentíssimo Desembargador Getúlio Vargas de Moraes Oliveira pela


autorização para que essa pesquisa fosse realizada, por acreditar na importância do
nosso trabalho e por incentivá-lo constantemente.

À Helenice por sempre ter acreditado em mim, no meu trabalho e no meu


crescimento profissional. Obrigada pelo apoio e incentivo para que essa pesquisa se
realizasse.

À minhas amigas e companheiras de trabalho, Luciana e Lia, pela paciência


nos momentos difíceis, pelas contribuições, pelo incentivo e por “segurar a barra” em
Sobradinho nas minhas ausências. Vocês foram o meu apoio emocional e intelectual
diário para a concretização dessa pesquisa, Vocês fazem parte de todo o processo
desse trabalho. Não existe equipe melhor para se trabalhar!

À Luciana de Paula Gonçalves Barbosa, minha amiga e irmã de coração, pelas


idéias, pela participação constante e pelas angústias e emoções compartilhadas.

Às profissionais da SEPAF que fizeram parte do grupo de discussão pela


disponibilidade, contribuição e incentivo. Sem a riqueza das suas reflexões e
6

experiência nada disso poderia ter sido feito. Vocês são a essência e a grandeza dessas
reflexões.

À Viviane, Niva e Márcia pelo apoio, discussões, críticas e sugestões que me


fizeram crescer pessoal e profissionalmente.

À equipe do Serviço Psicossocial Forense pelo acolhimento e pelas


inquietações. Seus questionamentos, vontade de aprender e disponibilidade diária para
fazer melhor foram as sementes de toda essa pesquisa.

Às alunas estagiárias Carolina, Juliana e Tatiana pela ajuda na organização do


trabalho, na coordenação do grupo focal e na transcrição das fitas.

À Eliena, Rodrigo, Silvia, Suely, Vanessa, Jussara e Climene, pelo exemplo de


dedicação, doação e eficiência. Vocês são incansáveis na luta diária contra a
exploração e o abuso sexual de crianças e adolescentes.

À minhas amigas e amigos Lúcia Margarida, Márcia , Denise, Giu, Fábio, Leo
e Paulo Amado, pelas discussões e reflexões críticas sobre a nossa atuação ética e
transformadora. Fábio, obrigada por ter estado sempre ao meu lado durante esse
percurso.

Aos Professores do Instituto de Psicologia, em especial a Ângela Almeida,


Maria de Fátima Sudbrack, Gláucia Diniz e Vera Coelho pelo incentivo e contribuição
nos primeiros escritos deste trabalho.

Ao meu amigo Caetano, que mesmo à distância e envolto em seu Doutorado,


sempre me apoiou e incentivou a prosseguir, afirmando o quanto valia a pena.

Aos meus amigos Flávia e Paulo pela torcida e pela ajuda nas horas que eu
mais precisava. Suas palavras me tranqüilizavam sempre.

Às amigas Ana Carolina, Juliana Pal e Juliana Ramalho por me brindarem


com a percepção que a arte e a dança também são recursos para nos ajudar a lidar com
o sofrimento e as tensões da prática profissional. Jujuba, muito obrigada por sua
disponibilidade na confecção do design e dos convites.

Aos Professores Doutores Ileno Izídio da Costa, Maria Aparecida Penso e


Tânia Mara Campos de Almeida por aceitarem o convite para compor a Banca
Examinadora.

A todos os meus familiares, amigos e amigas que, de perto ou de longe,


sempre me apoiaram.
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ÍNDICE

Introdução ...................................................................................................................... 11

Capítulo 1: Fundamentação Teórica .................................................................... 19

1.1 – A Evolução do Estudo das Emoções .......................................................................... 19

1.2 – As Emoções e a Pós-modernidade ............................................................................. 21

1.2.1 – A Perspectiva do Construcionismo Social .................................................. 22

1.2.2 – A Proposta de González Rey ...................................................................... 23

1.2.3 – As Perspectivas Construtivistas .................................................................. 26

1.3 – Considerações sobre o Abuso Sexual Infantil ............................................................ 32

1.4 – O Emocionar dos Profissionais que Lidam com o Abuso Sexual Infantil ................. 39

1.5 – O Abuso Sexual Infantil e a Justiça ........................................................................... 43

1.6 – O Serviço Psicossocial Forense do Tribunal de Justiça do

Distrito Federal e Territórios .................................................................................... 47

Capítulo 2: Método ..................................................................................................... 52

2.1 – Uma Proposta de Pesquisa Qualitativa........................................................................52

2.2 – A Pesquisa Realizada na Seção Psicossocial Forense

do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios ............................................56

2.2.1 – Contexto de Pesquisa ..................................................................................56

2.2.2 – Os Participantes da Pesquisa ......................................................................57

2.2.3 – Instrumentos para a Investigação – Entrevista de Grupo Focal Reflexiva..57

2.2.4 – Procedimentos ............................................................................................60

2.2.5 – Método de Análise .....................................................................................63


8

Capítulo 3: Análise e Discussão dos Resultados............................................... 65

3.1 – Análise da Primeira Entrevista ...................................................................................65

3.1.1 – As Emoções que Fundam o Domínio da Ação do Profissional ...................65

3.1.2 – “Ai meu Deus, e agora?” ..............................................................................71

3.1.3 – Conhecer, Refletir e ter Fé ...........................................................................76

3.1.4 – Do Caos à Dúvida, da Dúvida à Confusão ...................................................80

3.1.5 – As Duas Faces da Instituição .......................................................................87

3.1.6 – A Criança é a Bússola ..................................................................................89

3.1.7 – Os Coadjuvantes ..........................................................................................94

3.2 – Análise da Segunda Entrevista ...................................................................................96

3.2.1 – Assumindo o Paradoxo da Instituição ........................................................100

3.2.2 – Mudanças Possíveis ....................................................................................103

3.2.3 – A Criança Desperta nossas Vivências de Violência e Abuso ....................107

3.2.4 – Criminoso, Doente ou Sujeito de Direitos ..................................................111

Capítulo 4: Considerações Finais ...............................................................116

4.1 – As Emoções e as Relações: duas faces da mesma moeda .........................................117

4.2 – A Vivência Contínua do Paradoxo ............................................................................121

4.3 – O Psicossocial e o Direito: uma articulação possível ................................................124

4.4 – A Criança é o “futuro” ou o “presente” de nosso país?.............................................126

4.5 – A Ação Reflexiva ......................................................................................................129

Referências Bibliográficas .......................................................................................131

Anexos .............................................................................................................................138
9

RESUMO

Ribeiro, Rebecca (2004). As Emoções do Profissional Psicossocial com o Abuso


Sexual Infantil. Dissertação de Mestrado. Departamento de Psicologia Clínica,
Universidade de Brasília.

Este trabalho teve como objetivo principal identificar e conhecer os processos


afetivos-emocionais dos psicólogos e assistentes sociais do Serviço Psicossocial Forense
(SEPAF) do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT) que se constituem
ao abordar e refletir sobre o abuso sexual infantil. Esta temática exige atualmente uma
reflexão sobre as emoções suscitadas na relação com famílias abusivas no contexto judicial. O
método utilizado para a construção das informações foi a entrevista de grupo focal reflexiva
que ofereceu um espaço de conversação, onde os profissionais puderam compartilhar
significados, construindo sentidos ao sofrimento vivenciado na prática profissional. As
entrevistas foram realizadas no TJDFT com a participação de seis profissionais da SEPAF, em
dois momentos diferentes. As informações foram analisadas e interpretadas através da
Investigação Qualitativa. Na primeira entrevista foram construídas sete zonas de sentido, nas
quais emoções de raiva, desconforto e medo, entre outras, foram suscitadas, constituindo as
relações e orientando o domínio da ação do profissional nos casos de abuso sexual infantil.
Essas zonas também evidenciaram uma ambigüidade e confusão com relação ao papel do
profissional no processo judicial e uma identificação do profissional com a criança vítima de
abuso sexual, sendo esta essencial para a constituição do sentido da prática psicossocial. A
segunda entrevista, na qual as profissionais discutiram a partir de questões refletidas,
interpretadas e construídas na primeira entrevista, configurou 4 zonas, percebendo-se uma
ampliação das percepções das profissionais sobre si mesmas, a instituição, a criança e o
agressor. Nessas reflexões percebeu-se a importância de se considerar as emoções dos
profissionais frente aos casos em que atuam, de forma que, reconhecendo-as eles possam
utilizá-las como recursos na relação com a família. Essas emoções se mostraram bastante
paradoxais, estabelecendo um contexto de intervenção que exige do profissional uma
presença emocional e uma habilidade em lidar com as ambigüidades da atuação. Esse
panorama demanda uma constante atenção e apoio da instituição judiciária aos profissionais e
a implementação de uma ação-reflexiva que possibilite a constituição do sentido de nossa
condição de agentes sociais, proporcionando na Justiça um contexto de transformação.
Palavras Chave: Emoção, Abuso Sexual Infantil, Justiça, Profissionais, Família.
10

ABSTRACT

Ribeiro, Rebecca (2004). The Psychosocial Worker’s emotions in contact with child
sexual abuse. Master’s Degree Dissertation. Department of Clinical Psychology,
Brasilia University, Brasilia.

This research had as a main objective the identification and the study of the emotional
process of psychologists and social workers of the Serviço Psicossocial Forense from the
Brasilia’s Court of Justice (TJDFT), formed within the approach and consideration about
child sexual abuse situations. This subject demands a current reflection about the emotions
roused on the relation with abusive families at the judicial context. The method used to put
the information together was the reflecting group focus interview that offered a
conversational context where the professionals were able to share meanings, constructing the
sense of the pertaining suffering at the work practice. The interviews were held at the
Brasilia’s Court House (TJDFT) with six SEPAF’s professionals participating, in two
different moments. The information was analyzed and interpreted by the Qualitative
Investigation proposal. Seven categories of emotions were formed on the analyses of the first
interview, where emotions of rage, anger, discomfort and fear, among others, were roused,
establishing relations and orientating the professional practice in child sexual abuse cases.
These categories also indicated a confusion and ambiguity related to the professional role in
the judicial cases and the worker’s identification with the child victim of sexual abuse, where
she constitutes the meaning of the psychosocial practice. On the second interview the
participants used the reflected, interpreted and constructed information from the first
interview to discuss and meditate upon, enabling the development of four other categories.
We were able to see a professional’s perception increase about themselves, the child, the
institution and the aggressor. It became evident from these considerations the importance of
considering and recognizing the professional’s emotions regarding the cases they work on, so
they can use them as tools in their relation with the families. The emotions revealed to be very
paradoxical that establish a demanding context of the professional’s emotional presence and
the ability to deal with the practice’s ambiguities. This study points out the need of a constant
Court of Law’s attention and support of its professionals and the implementation of a
reflective practice that can develop the constitution of our social agent condition’s meaning,
providing a transformation context in the Justice.

Key words: Emotions, Child Sexual Abuse, Justice, Professional, Family


11

INTRODUÇÃO
“Quando as escolas do pensamento forem construídas,
então o significado dos sentimentos será testado” (Morya).

A ciência encontra-se em um momento de renovações, reformulações e

questionamentos, onde concepções, idéias e teorias há séculos aceitas e utilizadas para

explicar os fenômenos e descobrir a realidade dos fatos, têm trazido lacunas, levando

pensadores e cientistas a encruzilhadas no conhecimento. Essas transformações no

campo científico têm sido propiciadas por um repensar de paradigmas e práticas

científicas, em uma perspectiva de inclusão de aspectos da realidade desconsiderados

pelo pensamento da modernidade.

O desenvolvimento do conhecimento científico, baseado no método de

quantificação, verificação de dados, controle de variáveis e previsão concreta,

evidenciou um grande desenvolvimento tecnológico e enriquecimento da própria

ciência. Por outro lado, o progresso das certezas científicas possibilitou que hoje se

constituísse, paradoxalmente, um contexto fértil e rico de incertezas, conflitos e

contradições que tem estimulado diversos pensadores e cientistas, criando uma

oportunidade de criatividade, construção e transformação.

Os pressupostos da racionalidade, da simplicidade, da estabilidade e da

objetividade, característicos da ciência dita moderna (Vasconcellos, 2002),

orientaram, e ainda orientam, a produção do conhecimento científico, buscando

ordenar e controlar a realidade. Esses princípios de explicação da realidade passavam

por um pensamento de simplificação na qual a aparente complexidade das coisas

pudesse ser explicada, através de procedimentos de separação e redução dos

fenômenos (Morin, 2000). Dessa forma, o pesquisador, ao se deparar com um


12

fenômeno, deveria buscar seu elemento explicativo, separando-o e isolando-o do

ambiente, de forma objetiva, racional e sem interferência do observador, unificando e

generalizando tudo que parecesse diferente, a fim de explicar, prever e controlar tal

fenômeno. Alguns fenômenos que não conseguiam ser encaixados nesse pensamento

foram mantidos à distância do campo científico, relegando-os a outras esferas do

conhecimento, como a arte e a filosofia.

No entanto, a complexidade dos fenômenos tem demandado uma postura

diferente para a sua compreensão. Métodos, intervenções e teorias antes eficazes não

têm conseguido dar conta de acontecimentos complexos e multifacetados que exigem

do pesquisador e do interventor uma postura diferenciada da visão dicotômica,

reducionista e objetiva. Começa-se a pensar em formas mais integradas de

conhecimento e ação, privilegiando, ao mesmo tempo, a diversidade e a unicidade, o

individuo e o coletivo, o sujeito e o seu contexto e buscando uma articulação entre as

diversidades, as multidimensionalidades e os saberes.

O reflexo do movimento pós-moderno na Psicologia tem propiciado um

espaço de crise e de muita reflexão a respeito de suas teorias, da falta de diálogo entre

as diversas abordagens e das intervenções em contextos complexos. Uma vez que “as

mudanças de paradigmas só podem ocorrer por meio de vivências, de experiências, de

evidências que nos coloquem frente a frente com os limites de nosso paradigma atual”

(Vasconcellos, 2002, p.35), percebemos hoje que a psicologia tem tido acesso a

realidades desafiadoras, que trazem em si a contradição, o paradoxo e a

multicausalidade e desencadeiam reflexões e transformações na intervenção.

Uma das questões relegadas por muito tempo e que denuncia as contradições

atuais na psicologia é o tema das emoções. A importância e a necessidade de se


13

considerar a subjetividade do profissional e sua afetividade nas relações que constrói

com seus clientes foi uma questão esquecida e colocada em segundo plano na história

da construção do conhecimento científico. Autores e pensadores importantes que se

debruçaram sobre essa temática, ao serem denominados de metafísicos, eram

desconsiderados nos estudos e nas intervenções positivistas. No entanto, suas

reflexões foram abarcadas por alguns profissionais inquietos e insatisfeitos com a

forma que a ciência lidava com a relação sujeito-objeto, terapeuta-cliente, e em

especial com o papel que as emoções e a afetividade possuía na construção do

conhecimento científico.

Com os pressupostos do paradigma da simplificação, as emoções ao serem

estudadas e sistematizadas, foram descaracterizadas, reduzidas a subprodutos e

desconectadas do sujeito que se emociona. Ademais, a partir de uma perspectiva da

objetividade do sujeito no processo do conhecimento, as emoções foram banidas da

pesquisa e da intervenção psicológica, tendo o sujeito uma postura “neutra”, como se

o objeto em estudo ou de intervenção fosse algo externo ao pesquisador/interventor,

independente deste, esperando para ser descoberto, tratado ou curado.

No entanto, alguns autores têm recuperado os estudos dos fenômenos afetivos

e das emoções, a partir de perspectivas de construção da subjetividade, destacando

aspectos ontológicos, subjetivos e sociais. González Rey (1995, 2000), em sua

definição de sujeito e personalidade, contempla a afetividade e as emoções enquanto

constituintes importantes, definindo-as enquanto motivos e necessidades e

enfatizando o caráter ontológico das emoções, enquanto fenômenos em si mesmos.

Em uma mesma linha de pensamento, para Neubern (2001) as emoções têm a função
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de permitir o acesso ao mundo social e cultural, dentro de um processo histórico,

participando efetivamente na construção dos sentidos que os sujeitos venham a obter.

Maturana (2001, 2002), em uma perspectiva construtivista, considera as

emoções como disposições para a ação, ou seja, as emoções definem os domínios de

nossos comportamentos em um determinado contexto. Este autor também destaca o

caráter ontológico das emoções, atribuindo uma grande importância a elas nas

relações entre as pessoas.

Gergen (2002), por sua vez, destaca a característica social e relacional das

emoções, enfatizando o self construído nos jogos lingüísticos das relações sociais. As

emoções são contextualizadas, construídas a partir das narrativas e adquirem sentido

em seu contexto de uso.

Essas perspectivas apontam as emoções enquanto processos fundamentais da

subjetividade humana (González Rey, 1996) e da construção do saber, sendo

importante considerá-las em qualquer processo de conhecimento empreendido por um

sujeito, seja ele um pesquisador, um terapeuta, um estudante ou uma pessoa em busca

de autoconhecimento. Esse processo é constituído pelas emoções vivenciadas nas

relações que se estabelecem e reconhecer tais emoções possibilita iluminar pontos

cegos, ajudando a esclarecer ou a ampliar a compreensão de alguns fenômenos

complexos, como o abuso sexual infantil.

O abuso sexual infantil, como um fenômeno multifacetado que relaciona

questões emocionais, legais, familiares, de gênero, de poder, entre outras, revela sua

complexidade e necessidade de uma prática articuladora dessas diversas facetas,

levando em conta os vários atores envolvidos nesse fenômeno e na tentativa de sua

resolução: a criança, a mãe, o pai, as instituições e os profissionais.


15

Ferrari (2002) acredita que há, atualmente, dentro de nossa sociedade, uma

campanha de sensibilização para que a criança seja bem cuidada, amparada e

protegida desde seu nascimento, esperando-se que pais e mães cuidem bem de seus

filhos. Portanto, diante desses valores e frente à situação de vitimização de crianças e

adolescentes dentro da família, esta autora aponta que a reação das pessoas que

entram em contato com a situação de violência infantil é de choque, indignação e

susto. Essas reações também ocorrem nos profissionais que atuam com essas famílias,

despertando sentimentos de proteção, identificação, raiva, dor, impotência, vergonha,

agressividade e nojo, entre outros, ao conhecer e enfrentar situações de abuso sexual

infantil. Muitas vezes esses sentimentos estão também presentes nas famílias

atendidas e percebe-se que se refletem nas equipes profissionais.

Como Furniss (1993) aponta, a violência sexual infantil é um campo minado

de complexidade e confusão pessoal e profissional para os profissionais que precisam

lidar com as conseqüências dessa violência. Além das emoções vivenciadas na relação

com a família e sua história de vida, a própria questão de ter que lidar e trabalhar com

o abuso sexual infantil é vista muitas vezes como ameaça aos papéis profissionais

tradicionais, gerando um desafio às tradicionais formas de trabalho e estrutura de

cooperação e uma constante zona de perigo de fracasso aos diversos profissionais

envolvidos.

Com relação aos profissionais que trabalham na Justiça, que assessoram os

Magistrados em processos judiciais envolvendo famílias abusivas, esse

reconhecimento das emoções é importante a fim de que se possa atuar de forma a

interromper o ciclo abusivo, propiciando um contexto de proteção a criança ou

adolescente.
16

Essa importância do papel do profissional em situações de violência sexual

infantil é apontada por Ravazzola (2000), a qual coloca que o que eles fazem, ou

deixam de fazer (pensam ou deixam de pensar) tem importância para a continuidade

ou o cessar do abuso. Para esta autora, devido à violência sexual se instalar em uma

dinâmica abusiva recorrente dentro da família, os protagonistas das situações

violentas muitas vezes entram em um jogo que anestesia as emoções e consideram os

maus tratos como elementos naturais nas conversações e nas ações. Dessa forma,

torna-se mais difícil para eles mudarem as idéias, crenças, valores familiares e as

ações violentas, por estarem envolvidos nesse jogo.

Pode-se ressaltar, portanto, a importância do papel dos profissionais da Justiça

que entram em contato com famílias com histórias de abuso sexual infantil, pois esses

profissionais, de alguma forma, estão em condições de jogar um papel diferente no

circuito abusivo e de influenciar em sua resolução (Ravazzola, 1997), podendo

proporcionar um contexto potencializador de saúde e de mudança para as pessoas.

Ao considerar que a construção do espaço relacional na Justiça é perpassada

pelo emocionar de todas as pessoas envolvidas e que as emoções participam

ativamente do cenário em que surge o saber, qualificando idéias, mundos e relações e

participando de decisões e atividades de reflexão (Neubern, 2001), faz-se necessário

um autoconhecimento e um espaço de reflexão constante a respeito da afetividade e

das emoções do psicólogo e do assistente social na sua prática profissional diária se

queremos construir uma possibilidade de mudança e de encontro em um contexto de

controle e poder.

Considerando a complexidade dos processos judiciais com histórias de abuso

sexual infantil, os profissionais da Psicologia e do Serviço Social da Seção


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Psicossocial Forense (SEPAF) do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios

(TJDFT) perceberam a urgência em encontrar soluções ou formas de atuação mais

eficazes, ampliando seu papel de forma a constituir uma ação mais benéfica para a

criança e sua família. Dessa forma, ressaltando a proposta novo-paradigmática de

atuação dos profissionais, que os incluem enquanto sujeitos no processo de

intervenção, construindo na relação e nas conversações com a família, novas

possibilidades de pensar, emocionar e atuar, a equipe psicossocial construiu um

espaço de reflexão e construção, do qual esta pesquisa se originou.

A presente pesquisa surgiu da necessidade que a SEPAF vem vivenciando de

refletir e repensar suas intervenções com famílias cuja temática é o abuso sexual

infantil. Com o aumento do número de casos de famílias com esta temática e a

mobilização que essas situações vem ocasionando na equipe psicossocial, existe uma

demanda interna em conhecer mais os aspectos relacionados ao abuso sexual, tanto no

que se refere à dinâmica familiar, à participação do profissional no processo de

resolução e interrupção do ciclo abusivo, quanto à interação da família com a equipe

psicossocial na possibilidade de construção de alternativas de ação mais saudáveis

para a criança e para a família.

Os dados dessa pesquisa poderão subsidiar futuras ações do Serviço frente a

essa problemática, além de proporcionar uma reflexão sobre a necessidade de uma

maior atenção e apoio aos profissionais que trabalham com essas situações, a fim de

que possam atuar de forma menos sofrida para eles.

É importante ressaltar que essa pesquisa possui a perspectiva de recuperação

do sujeito no processo do conhecimento, suas vivências, crenças, valores e visões de

mundo, com a participação ativa, auto-reflexiva e autocrítica do pesquisador (Morin


18

2000). Em razão da complexidade do tema da violência e das emoções, do contexto

da pesquisa e da situação da pesquisadora enquanto profissional da SEPAF, foi

necessário a adoção de uma postura epistemológica de implicação do sujeito no

processo de produção do conhecimento proposto nessa pesquisa. Uma vez que o

sujeito existe na linguagem, as explicações dos fenômenos são uma reformulação da

experiência aceita por um observador, trazendo o papel ativo e constitutivo do sujeito

em qualquer processo de construção do conhecimento (Maturana, 2002). Nesse

sentido, eu, enquanto pesquisadora e profissional da SEPAF, estou presente em todos

os momentos, escritos, reflexões e discussões propostos nesse trabalho.

Os objetivos da pesquisa são:

a) Identificar e conhecer os processos afetivo-emocionais dos psicólogos e

assistentes sociais da Seção Psicossocial Forense (SEPAF) que surgem ao abordar o

abuso sexual infantil;

b) Conhecer e analisar como esses processos afetivo-emocionais

constituem os significados construídos pelos profissionais da SEPAF em relação a

violência sexual infantil;

c) Conhecer como esses processos afetivo-emocionais orientam a prática

profissional desses técnicos;

d) Refletir sobre a prática profissional dos psicólogos e assistentes sociais

da SEPAF;

e) Analisar o papel desses profissionais nos casos de abuso sexual infantil;

f) Contribuir para a atuação dos Serviços Psicossociais no Judiciário;


19

1 - FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

“... não creio que aquilo que sentimos na psicoterapia, como terapeutas,
seja uma limitação: ao contrário, parece-me que essas pretensas
limitações podem ser transformadas em instrumentos de trabalho, que
para nós constituem em preciosos trunfos”. (Elkaïm, 1998, p. 321)

1.1- A Evolução do Estudo das Emoções

As emoções e a afetividade humanas, como constituintes da existência e da

experiência do ser humano, são consideradas objeto de estudo e reflexão instigantes

por seu caráter questionador e denunciador de rupturas epistemológicas para a

psicologia e as ciências sociais.

A filosofia, a literatura e as artes assumiram para seus campos de

conhecimento o pensar sobre as emoções especialmente a partir da modernidade,

caracterizada pelos paradigmas cartesiano e newtoniano da ciência que,

historicamente, constituíram a visão de mundo ocidental desde o século XVII

(Vasconcellos, 2002). Essa visão de mundo, entre outras coisas, atribuiu às emoções o

papel de “vilã” da ordem da sociedade e da verdade científica, capazes de desvirtuar a

razão, levando à desordem, ao descontrole e à loucura.

Essa concepção sobre as emoções já era disseminada na filosofia grega. Platão

(427-347 a C.), em Fédon, diálogo sobre a alma e a morte de Sócrates, enfatiza que os

amores, desejos e temores de todas as formas são frivolidades do corpo que impedem

o pensamento correto e sensato. As emoções, portanto, eram consideradas entraves

para a busca do conhecimento verdadeiro, não aceitáveis na vida do filósofo por

desconcertarem a razão “a ponto de nos tornar incapazes de distinguir a verdade”

(Platão, 2002, p.30).


20

No pensamento científico tradicional, a visão reducionista e mutiladora,

característica do pensamento moderno, influenciou os estudos da afetividade e

emoção humana. Nas pesquisas psicológicas, quanto mais as escolas de pensamento

tentaram sistematizar as emoções como objeto de estudo, mais a descaracterizaram.

As emoções eram isoladas de seu contexto, reduzidas a um de seus aspectos (sejam

eles o biológico, o social ou o lingüístico, por exemplo) ou a elementos definidos

operacionalmente, desconsiderando o sujeito e sua história e qualificando os

processos emocionais a partir de cenários apartados e distantes, como o laboratório

(Neubern, 1999).

A idéia de que as emoções eram danosas a vida científica prevaleceu, sendo

consideradas fonte de erro e potencial de risco na produção do conhecimento, no

desenvolvimento e na saúde humana. Mahoney (1991) ressalta que, sob a influência

do empirismo, as emoções eram geralmente relegadas a níveis inferiores, animais ou

instintivas, segregadas dos processos mentais “superiores”, sendo atribuídas a elas a

responsabilidade por atos irracionais e potencialmente destrutivos e a influência

desorganizadora na adaptação e comportamento humano.

Nesse sentido, as emoções do pesquisador também foram praticamente

excluídas do processo de conhecimento, atribuindo à neutralidade, à racionalidade e

ao método experimental a validade do conhecimento científico. Esse caminho

explicativo dos fenômenos, denominado por Maturana (1996) objetividade sem

parênteses, atribui à existência um lugar independente do observador, privilegiando

uma realidade objetiva e única, onde “a razão parece revelar a verdade por meio do

descobrimento do real” (p. 75). Esse autor ressalta que:


21

Neste caminho explicativo, as emoções não contribuem para validar


um argumento racional; elas podem cegar o observador no seu poder
evocador, porém não o alteram, já que está fundamentado no real...
Neste caminho a busca da realidade é a busca das condições que fazem
um argumento racional e, portanto, inegável. (Maturana, 1996, p.75).

Essa tendência racionalista e positivista enfatizou os estudos objetivos dos

processos cognitivos e comportamentais, dificultando a elaboração do tema das

emoções enquanto uma realidade em si mesma e colocando-a numa posição mais de

produto do que como realidade constitutiva da subjetividade humana (González Rey,

2000). As emoções, enquanto processos psíquicos eram decompostas em unidades

básicas (estados afetivos e sensações), buscando suas bases fisiológicas e separando-

as dos demais processos subjetivos, com o objetivo de buscar explicações universais

para os fenômenos emocionais.

1.2 – As Emoções e a Pós-modernidade

Seguindo o movimento do surgimento de importantes contribuições no estudo

dos processos emocionais e da afetividade, que consistiram em momentos de ruptura

com a epistemologia dominante na psicologia, algumas expressões teóricas do

construtivismo e construcionismo social buscaram ampliar as noções sobre as

emoções, numa tentativa de resgatar a complexidade do fenômeno. Essas duas

epistemologias, como Grandesso (2000) as denomina, são importantes para o

contexto deste estudo pelo caráter local e contextualizado, pela realidade construída

na relação, pela importância da linguagem e, especialmente, pela interdependência

entre o sujeito cognoscente e o objeto. Partem da idéia de que a existência do objeto


22

do conhecimento implica necessariamente a presença de um sujeito, expondo a

experiência conforme ela é vivida.

Esses pressupostos caracterizam o movimento pós-moderno, segundo

Grandesso (2000), que tem no Construtivismo e no Construcionismo Social seus

principais representantes na Psicologia. É necessário esclarecer a opção por esta

definição uma vez que a pós-modernidade tem recebido diferentes conceitualizações

nas ciências e na filosofia (Grandesso, 2000). Ademais, o estudo das emoções implica

em um posicionamento teórico que inclua o observador, o caráter constitutivo da

realidade e a multiplicidade e singularidade dos fenômenos e contextos. Nesse

sentido, considero importante a contribuição dessas epistemologias para a reflexão e

estudo das emoções.

A seguir, descreverei de forma mais pormenorizada as teorias que de alguma

forma tiveram um papel transformador na psicologia das emoções.

1.2.1 – A Perspectiva do Construcionismo Social

Sob a ótica do construcionismo social, as emoções são percebidas enquanto

subprodutos das relações sociais. A compreensão humana a partir da esfera relacional,

enfatizando a construção dos significados a partir das relações interpessoais, constitui

o núcleo central do pensamento construcionista, que atribui às emoções um caráter

socialmente construído, não possuindo um status ontológico no sujeito, ou seja, um

status especial de estados interiores.

As emoções são, então, resultados de pautas relacionais, uma parte a mais da

complexa teia da comunicação entre as pessoas (Hoffman, 1998). Gergen (2002)

ressalta que as emoções não são estados biológicos do organismo, convidando-nos a


23

considerá-las como uma “performance social historicamente contingente” (p.3). Este

autor aponta que os termos emocionais adquirem sentido no seu contexto de uso,

aparecendo através das categorias que definem as pautas interativas expressas na

linguagem dentro de cada momento social (González Rey, 2000). Sob essa

perspectiva, se pensarmos a respeito das emoções expressas por psicólogos e

assistentes sociais nas conversações sobre suas práticas com famílias abusivas, por

exemplo, só poderemos falar das emoções surgidas naquele contexto de conversação,

naquele momento histórico. Gergen, portanto, conceitualiza as emoções como

fenômenos sociais e externos, resgatando essa importante dimensão do fenômeno

ignorada por muito tempo (González Rey, 2000).

Ao centrar o conceito de emoção nas pautas relacionais, Gergen recebe críticas

por não considerar o aspecto ativo e constitutivo do sujeito. As emoções, enquanto

processos complexos, embora sejam de natureza relacional, não se esgotam nesta

natureza (González Rey, 2003). De acordo com González Rey (2003) essa perspectiva

não proporciona uma compreensão da dinâmica complexa existente entre o individual

e o social, e a participação das emoções na constituição da subjetividade.

Por considerar uma falha na construção teórica do construtivismo social a

eliminação das emoções enquanto processos subjetivamente constituídos, González

Rey (2003) propõe o resgate dessa dimensão das emoções, atribuindo-a um papel

ativo na constituição da subjetividade humana.

1.2.2 – A Proposta de González Rey

González Rey, a partir de sua proposta de resgatar o estudo da subjetividade

humana enquanto uma categoria complexa e dinâmica, trouxe contribuições para as


24

reflexões acerca das emoções. Em sua perspectiva, a subjetividade possui dimensões

complexas, dialógicas e dialéticas, integrando o contraditório no processo de sua

constituição, de forma auto-reguladora e recursiva (González Rey, 2002). Com a

subjetividade, complexos sistemas emocionais passaram a ser considerados na

constituição da psique, num processo gerador de sentidos.

Toda configuração subjetiva responde tanto a determinantes intrapsíquicos

quanto à atividade do sujeito, interativa e pensante. A realidade interna e externa do

indivíduo se constitui a partir da linguagem e a medida que se desenvolve o sujeito,

aparecem os eventos da realidade mediada pela subjetividade e pelas características

dos sistemas de comunicação do sujeito. O sujeito representa assim uma instância de

integração entre o social e a subjetividade.

Nesse processo existem dois níveis de desenvolvimento, o que é construído e

constituído. A ação volitiva e intencional do sujeito constrói representações da

realidade vivenciada de maneira consciente, através de uma estrutura simbólica. Por

outro lado, existem fatores que vão se constituir subjetivamente sem que se tenha

intenção, que são emoções e sentidos. Portanto, o que se constitui é aquilo que

aparece além da consciência do indivíduo. A construção e constituição fazem parte do

mesmo processo, um influenciando o outro, revelando a contradição. Nem sempre o

que é construído é congruente com a configuração subjetiva, com a emoção sentida.

Muitas vezes esses sentidos, constituídos pelas emoções vivenciadas, se formam de

maneira inconsciente e contraditória com a representação e significação consciente da

experiência (González Rey, 1995).

Em todo esse processo de desenvolvimento da personalidade, González Rey

destaca a importância do social. A atmosfera social e institucional define vivências


25

que resultam essenciais ao bem-estar emocional do sujeito. Essas vivências se

produzem por uma multiplicidade de canais que atuam sobre o sujeito, sobre o qual

muitas vezes ele não tem consciência, mas que são essenciais no processo de

formação das representações conscientes (González Rey, 1995). O social tem

influência à medida que tem um sentido, ou seja, atinge o sujeito através da estrutura

atual de sentidos. Dessa forma, pode-se considerar que a ação dos sujeitos implicados

em um mesmo espaço social, como, por exemplo, o Tribunal de Justiça, compartilha

elementos de sentido e significados constituídos dentro desse espaço, que passam

então a fazer parte da subjetividade individual (González Rey, 2003). A subjetividade

do individuo é produzida em diferentes contextos sociais constituídos historicamente,

ao mesmo tempo em que atua como aspecto diferenciado do desenvolvimento da

subjetividade social.

As emoções, nessa perspectiva, são processos subjetivamente constituídos e

responsáveis pela capacidade criadora e geradora do sujeito, sendo elementos centrais

na produção do sentido subjetivo da experiência humana (González Rey, 2003). Para

o autor, elas são estados de “ativação psíquica e fisiológica resultante de complexos

registros do organismo ante o social, o psíquico e o fisiológico” (2003, p. 242), que

caracterizam o espaço de suas relações sociais e o contexto em que suas ações são

desempenhadas. O sentido subjetivo da emoção não se expressa de uma maneira

direta na evidência do comportamento emocional e por isso ela deve ser estudada

mais amplamente e não como simples respostas. Não se pode “acessar” as emoções a

não ser pela conversação, perpassada pela linguagem, ou seja, é o que se fala sobre as

emoções sentidas e expressadas em um momento e contexto específico. As emoções

são consideradas a unidade fundamental na constituição das necessidades e


26

motivações e são resultado das que as precedem, tornando-se constituintes e

constitutivas das necessidades e motivações.

Portanto, as emoções surgem e são constituídas a partir das relações

interpessoais. São essas relações que constituem um cenário emocional, ou seja, um

contexto propício para a constituição e aparecimento de determinadas emoções que,

recursivamente, contribuem para a construção de um contexto específico de

comportamentos, conversações e ações. Dessa forma, o indivíduo tem condições de

mudar suas ações a partir do reconhecimento e transformações de suas emoções, pois

identificando as emoções e ressignificando-as na conversação, o sujeito possibilita um

domínio de ação diferente (González Rey, 2000).

1.2.3 – As Perspectivas Construtivistas

Dentro das perspectivas construtivistas, o estudo das emoções traz um caráter

ontológico das necessidades e motivações humanas, concebendo-as enquanto um

sistema que organiza os vários níveis de informações que lhe chegam, construindo

significados complexos e direcionando os comportamentos. Essas perspectivas

propõem uma integração dos aspectos cognitivos e afetivos, não concebendo as

emoções isoladas dos processos cognitivos e estes isolados dos processos emocionais.

No entanto, apesar de propor essa interdependência cognitivo-emocional, percebe-se

uma preeminência do aspecto cognitivo na compreensão da vida afetiva, pela forte

influencia da tradição cognitivista de alguns autores construtivistas (González Rey,

2000).

Nesse sentido, para Greenberg, Rice e Elliot (em Neubern, 1999 e González

Rey, 2000) o surgimento de uma emoção depende de um processo avaliativo do


27

indivíduo, sujeitando-a aos processos cognitivos e/ou de significação que o

antecedem. Esses autores afirmam que os sentimentos são o ponto de encontro entre a

mente, o corpo, o meio, a cultura e o comportamento, podendo unir na experiência

consciente vários aspectos da realidade, tais como: hormonais, fisiológicos,

avaliativos do self e normas culturais. O caráter plurideterminado das emoções e

sentimentos, enquanto processos que se constituem na subjetividade humana, é

evidenciado nessas colocações, destacando ainda as emoções como fundamentais para

o direcionamento das ações.

Também nessa direção, Mahoney (1991) destaca a estreita relação das

emoções com as crenças e os comportamentos, implicando-as na construção dos

significados a partir da história do sujeito, em um nível estrutural profundo

denominado por ele de “core ordering processes”. Ele relaciona as emoções com as

crises das necessidades de novos padrões relacionais e de organização interna,

considerando-as como fundamentais nos processos de mudanças, que não ocorreriam

sem uma modificação no nível emocional.

Em uma perspectiva semelhante, porém menos cognitivista, Humberto

Maturana (1997, 2001 e 2002) traz em sua teoria uma compreensão das múltiplas

dimensões das emoções, destacando o seu caráter estrutural biológico, oferecendo um

diálogo entre o biológico, o social e o histórico.

As reflexões epistemológicas e teóricas sobre as relações entre o biológico, a

linguagem, a cognição e a emoção abriram o campo científico para o resgate e

reavaliação das teorias que consideravam a importância do ser humano como seres

históricos viventes na linguagem. Maturana, representante deste momento nas

ciências, em sua teoria da Biologia do Conhecer (inicialmente conhecida como teoria


28

da autopoiesis), aponta para uma fenomenologia dos seres humanos, no processo de

vir-a-ser dos sujeitos no domínio de sua existência.

Nessa perspectiva, o ser humano é concebido como sistema auto-organizado,

no qual ao produzir as interações de seus componentes, ele se produz, num processo

histórico e relacional. As dinâmicas da constituição do individual e do social são

consideradas interdependentes no sentido de uma interconstituição. O indivíduo, em

sua idiossincrasia, ao construir-se, segundo as conversações de sua comunidade

lingüística, também a transforma (Grandesso, 2000).

O sujeito é considerado o ponto central da reflexão, pois o processo de

conhecimento pertence à vida cotidiana, onde este sujeito é observador na

experiência, ou seja, no suceder do viver na linguagem (Maturana, 2001). Ele existe

na linguagem, no explicar das experiências humanas, que tem em si um transcurso

histórico na relação com o outro. Quando consideramos o observar e o conhecer como

fenômenos biológicos, a partir do observador, descobre-se a presença e a importância

das emoções (Maturana, 2001).

Maturana coloca que ao longo da história da humanidade, as emoções já

existiam antes do surgimento da linguagem e que esta, ao ser constituída

historicamente, foi entrelaçada ao emocionar. Esse entrelaçamento entre a linguagem

e as emoções constituem o conversar que por sua vez, também atua na constituição da

afetividade e da linguagem, em um processo recursivo, nas interações humanas.

As emoções são consideradas por Maturana (1996, 2001) como estados de

ânimo de disposições para as ações, ou seja, elas surgem como disposições corporais

que especificam domínios de ações:


29

Com efeito, ao convidá-los a reconhecer que as emoções são


disposições corporais que especificam domínios de ações, e que as
diferentes emoções se distinguem precisamente porque especificam
domínios de ações distintos, convido-os também a reconhecer que,
devido a isso, todas as ações humanas, independentemente do espaço
operacional em que se dão, se fundem no emocional porque ocorrem
no espaço de ações especificado por uma emoção. (Maturana, 2002, p.
170).

Dessa forma, para distinguirmos e reconhecermos uma emoção, nós temos que

identificar os campos de ação nos quais as pessoas se encontram. Ao falarmos de

emoções – amor, medo, vergonha, entre outras – conotamos diferentes domínios de

ações e atuamos no entendimento de que uma pessoa só pode fazer certas coisas e não

outras, dentro desse domínio (Maturana, 1997). A emoção define e orienta a ação. Por

exemplo, se uma pessoa se sente amedrontada, esse medo orienta certas

possibilidades de ação (comportamentos verbais ou não, pensamentos, condutas),

fazendo com que ela não consiga desempenhar uma determinada função, não incluída

nesse leque de possibilidades. Essas possibilidades de ação não são biologicamente

determinadas ou consideradas universais no ser humano, mas são constituídas ao

longo da experiência na linguagem, nas relações vivenciadas pelo indivíduo ao longo

da vida.

Portanto, as emoções fundam e constituem os espaços de ação, existindo

diferentes formas de interações humanas quanto há diferentes tipos de emoções que as

fundamentam, pois “não há nenhuma atividade humana que não esteja fundada,

sustentada por uma emoção” (Maturana, 2001, p.48).

As emoções têm papel ativo nas conversações que, para o autor, são redes de

coordenações de coordenações consensuais de ações e emoções (Maturana, 1997).

Para conhecer o que se sucede em qualquer conversação, é preciso ver quais as


30

emoções que especificam o domínio das ações nas quais a conversação tem lugar, ou

seja, temos que prestar atenção ao entrelaçamento do emocionar e a linguagem que

este envolve (Maturana, 1997).

Quando as conversações são recorrentes, elas podem estabilizar as emoções

envolvidas, dificultando a mudança e/ou transformação de ações. Para que essas

mudanças ocorram, o fluir do emocionar em tal conversação também tem que ser

modificada. As ações e os significados construídos na relação entre os sujeitos mudam

com a mudança no fluir das emoções e vice-versa, mudanças nas circunstâncias do

viver que mudam a conversação implicam mudanças no fluir do emocionar

(Maturana, 1997). Maturana (1996) relata como exemplo que podemos mudar

inclusive nossos argumentos racionais (uma ação) à medida que as nossas emoções ou

estados de ânimo mudam. Destarte, as conversações propiciam que ao mudar as

emoções acerca de um fenômeno como, por exemplo, a violência, criam-se

possibilidades de se mudar também nossas ações em relação a tal fenômeno.

Essa concepção do emocionar humano carrega em si o conhecimento de que o

sujeito, enquanto observador, não pode desconsiderar a si mesmo na construção de

sua explicação, na conversação. A inclusão do observador no processo do

conhecimento foi definida por Maturana (1996) como um caminho explicativo da

objetividade entre parênteses, onde o observador encontra a si mesmo como fonte de

toda realidade a partir de suas distinções na práxis do viver. O observador pode

utilizar-se de tantos domínios de realidade diferentes possíveis quanto existam

diferentes tipos de operações de distinção que ele pode lançar mão na sua existência.

E essa escolha por essas operações (cognição, pensar, raciocinar) vai depender,

segundo Maturana, da preferência do observador, ou seja, da emoção de aceitação.


31

Cada domínio de explicação, cada processo de conhecimento, cada relação

interpessoal, constitui um campo de atuação sustentada por emoções e fazemos as

nossas opções segundo “o fluxo de nosso emocionar nas nossas relações interpessoais

e em nossos desejos” (Maturana, 1996, p.73). Dessa forma, não existiria uma única

realidade, fora do sujeito, esperando para ser conhecida, mas sim várias realidades

explicativas diferentes, igualmente legítimas e válidas, (Maturana, 1996) constituídas

no explicar, na linguagem do viver cotidiano (multiverso). A aceitação de um self

imerso em um multiverso social não implica a anulação de um self singular, pois as

pessoas são únicas embora se constituam nas comunidades em que vivem (Grandesso,

2000).

Essa forma de conceber a realidade proporciona o diálogo entre as diferenças,

assumindo as múltiplas realidades explicadas pelos diferentes indivíduos. Não há,

portanto, uma verdade única, abrindo espaço para incluir o outro na relação comigo.

Essa é a dimensão ética para Maturana (2001), a aceitação efetiva do outro como

legitimo outro na convivência, que promove a possibilidade de uma reflexão

responsável acerca da coexistência, permitindo espaços de consenso.

Essa perspectiva de Maturana sobre as emoções permite um diálogo com

outras teorias, contribuindo para a reflexão sobre o emocionar dos psicólogos e

assistentes sociais na prática profissional no contexto da Justiça, com famílias com

historias de violência sexual infantil. Elege-se aqui, portanto o pensamento de

Maturana para embasar as futuras considerações a respeito do tema, possibilitando um

diálogo com as outras concepções pós-modernas.

O que se pode perceber é que a emoção enquanto objeto de estudo e reflexão

passou durante a história de nossa cultura ocidental de uma desconsideração e


32

negação para um reconhecimento e resgate de sua importância como parte integrante

do ser humano. A simples negação da sua existência e/ou a tentativa de suprimir suas

expressões são vistas hoje como caminhos tortuosos e não autênticos da evolução da

experiência humana. É importante a reflexão, na prática profissional, sobre nossas

emoções para a busca de um entendimento melhor das situações em que nos

encontramos. Como Maturana (2001) coloca, temos que “assumir a participação das

emoções na reflexão sobre o humano, na reflexão sobre o social e na reflexão ética”

(p.52), uma vez que, ao negarmos nossas emoções, nos tornamos incapazes de apagar

o sofrimento que causamos a nós mesmos e aos outros.

1.3 – Considerações sobre o Abuso Sexual Infantil

Qualquer pessoa que faça uma pequena reflexão sobre a história da

humanidade, percebe o papel importante que a violência sempre desempenhou nas

atividades humanas, em especial como meio para se alcançar dominação e poder

sobre outros. Mesmo com esse destaque na história, a violência foi raramente vista e

estudada, muitas vezes sendo considerada algo corriqueiro, comum, e inerente à

natureza humana (Arendt, 1985). No entanto, com as transformações sociais nos

últimos séculos, com a industrialização, imigração e outros fenômenos da sociedade

ocidental moderna, surgiram novos problemas sociais e os já existentes foram

intensificados, colocando em evidência o problema social da violência a partir de uma

maior conscientização pública a respeito dele (Corsi, 1994).

A violência é definida como uma modalidade cultural, um produto

essencialmente humano, constituída por condutas destinadas a obter controle e


33

dominação sobre outras pessoas sendo transformada lentamente em um modo habitual

de expressar os diferentes estados emocionais, tais como a frustração, o medo, a raiva

e a irritação, bem como de resolver as diferenças (Corsi & Peyrú, 2003; Corsi 1994).

Para Maturana (1997), a violência, a subjugação e os abusos (uso forçado) são

decorrentes do modo de conviver, das redes conversacionais (ou seja, nossos valores e

crenças) da nossa sociedade patriarcal ocidental, caracterizada por sentimentos de

apropriação, posse, competição e não tolerância ao diferente.

Dentro da família, o reflexo da violência expressa a forma relacional por meio

da dominação, do poder, e da anulação do diferente, do outro na relação familiar. A

família, enquanto instituição social reflete características de uma particular

organização hierárquica baseada nas questões de poder e gênero. O poder na família é

estruturado verticalmente segundo critérios de gênero e idade, que são os eixos de

desequilíbrio do poder na família (Corsi, 1994). A verticalidade, a disciplina, a

obediência, a hierarquia, características de sistemas autoritários e de gênero, são leis

que regulam as relações familiares e que legitimam diversas formas de abuso

intrafamiliar, além de dificultar que essa violência apareça e seja evidenciada

socialmente (Ravazzola, 1997).

Uma das formas de expressão da violência familiar é a violência contra

criança. Essa forma de violência, em especial, a violência sexual infantil tem

aparecido nas últimas décadas como uma grande preocupação social e tem chamado

atenção da população em geral e dos profissionais que trabalham com crianças

vítimas de violência e com suas famílias no contexto hospitalar, escolar, judiciário,

entre outros. Dados oficiais revelam essa preocupação: em 2003, no Distrito Federal,

a Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente registrou 147 ocorrências


34

policiais de abuso sexual infantil, e nos últimos dez meses, foram registradas cerca de

5000 denúncias de maus tratos, abuso sexual e exploração sexual de crianças e

adolescentes em todo o Brasil.1

O fenômeno da violência contra a criança não é algo novo na sociedade,

sempre existiu na história da humanidade, porém tem se tornado mais visível,

principalmente pelo surgimento de um sentimento de infância como uma etapa da

vida diferenciada e merecedora de atenção, proteção e cuidado (Ferrari, 2002). A atual

compreensão e concepção da infância são o resultado de um processo histórico que

tem se construído socialmente nas categorias etárias como “infância” e

“adolescência”, estabelecendo diferenças de comportamento, posição e inserção

social (Barboza, 2000).

De acordo com Almarales (1998), esta maior visibilidade das ações abusivas

que se produzem dentro do lar reflete, essencialmente, uma mudança nas relações de

poder dentro da estrutura familiar e a um maior reconhecimento dos direitos pessoais

dos componentes da família, onde a nova posição da mulher na sociedade e o

reconhecimento da criança como sujeito de direito têm sido os pilares deste interesse

social dirigido a combater a violência doméstica. Nesse sentido, o abuso sexual

intrafamiliar vem se tornando objeto de discussões, pesquisas e de veiculação na

mídia, o que tem aumentado a consciência da existência, da gravidade e da extensão

desse fenômeno. Isso tem causado perplexidade tanto nos organismos governamentais

como na sociedade e nos profissionais que atuam nessa área.

1
Esses dados foram obtidos no jornal Correio Brasiliense do dia 09/03/2004, na reportagem “Diga não a
violência sexual infantil”
35

A questão do abuso sexual infantil é extremamente complexa, pois é um

fenômeno de expressão em diferentes níveis da vida social, entrelaçado com questões

individuais, familiares, transgeracionais e culturais. São várias as definições de

violência sexual contra crianças e de abuso sexual infantil, cada uma enfatizando uma

destas facetas do fenômeno. Cabe ressaltar que violência sexual e abuso sexual não

são sinônimos e, dependendo da ênfase cultural, social ou psicológica, utilizando-se

um dos dois termos. A violência é considerada a categoria explicativa do abuso,

referindo-se a natureza da relação abusiva (de poder e dominação) estabelecida no

abuso sexual, e este é a situação de uso excessivo, de ultrapassar os limites nas

relações sociais, afetivas e culturais entre adultos e criança ou adolescentes,

transformando-as em relações sexuais, genitalizadas, violentas e criminais e que

causam danos às vítimas.2 Apesar dessa diferença, esses dois termos parecem ser

recursivos no sentido de que o abuso sexual é um ato de violência sexual, física e

psicológica contra a criança e o adolescente, e por sua vez, a violência sexual infantil

é constituída de uma dinâmica abusiva do adulto frente à criança.

Iglesias (1996, conforme citado por Faleiros, 2000) coloca que o abuso sexual

infantil caracteriza-se pela utilização sexual de uma criança em benefício de outra

pessoa, comumente adulta, que se encontra em uma situação de vantagem frente

àquela, seja por razões de seu maior desenvolvimento físico ou mental, pela relação

que o une a criança ou por sua posição de autoridade e poder. Para Kempe (1978,

conforme citado por Faleiros, 2000), o abuso sexual se define como a implicação de

crianças e adolescentes em atividades sexuais exercidas por adultos que buscam

2
Definição retirada do Manual de Capacitação para prevenção e intervenção em crise da violência sexual
infantil, do Bureau International Catholic de Lénfance (BICE) do Uruguai.
36

principalmente sua satisfação, sendo os menores de idade imaturos e, portanto

incapazes de compreender o sentido dessas atividades e de dar seu consentimento

real. Almarales (1998) define, por sua vez, o abuso sexual como o ato executado

contra uma criança ou adolescente por seus pais ou substitutos, ou por outro adulto,

com a finalidade de satisfazer-se sexualmente, sem considerar o consentimento da

vítima, devido a pouca maturidade e conhecimentos necessários para compreender o

ato e suas conseqüências.

Para Azevedo e Guerra (1988), a violência sexual contra a criança e o

adolescente inclui ocorrências intra e extrafamiliares, com atos que envolvem ou não

contato físico, utilizando o termo violência por este definir uma relação hierárquica de

força expressa enquanto relação de dominação. Ademais, o abuso é caracterizado por

atividades impróprias para a idade e nível de desenvolvimento psicossexual das

crianças ou adolescentes vitimizados, causando danos em diferentes níveis à

integridade física, psicológica ou moral, nos contextos simbólicos ou culturais da

vítima. O termo abuso sexual denota o uso abusivo e injusto da sexualidade,

refletindo a idéia de que não existe relação sexual apropriada entre uma criança e um

adulto e que a responsabilidade de tal ato é exclusivamente do adulto (Barudy, 1998).

Pode-se observar que nas diversas definições sobre violência e abuso sexual

caracteriza-se o aspecto hierárquico do adulto frente à criança e a utilização pelo

adulto de dominação, força e poder para sua gratificação sexual. Quando esse

fenômeno ocorre dentro da família, determinando um padrão de relacionamento

abusivo entre pai, mãe, filhos e outros membros familiares, é denominado

intrafamiliar. A violência produzida no seio da vida familiar adquire então um

significado especial, pois a unidade familiar aparece na sociedade como um reduto de


37

amor e proteção, incompatível com a agressão e o uso da força (Almarales, 1998).

Essa característica torna a violência sexual na família mais difícil de ser percebida

socialmente.

Diversos autores (Cirillo e Di Blasio, 1991; Azevedo e Guerra, 1997; Perrone

e Nannini, 1997; Furniss, 1993; Ravazzola, 1997) descrevem o terreno no qual o

abuso sexual ocorre, constituindo um pano de fundo dos sistemas familiares afetados.

No entanto, essas descrições não explicam o abuso sexual, e nem são fatores

determinantes do fenômeno, mas servem de signos indicadores da possibilidade e

probabilidade de que tal família possui interações transgeracionais disfuncionais e

transgressivas (Perrone e Nannini, 1997).

Em uma perspectiva da estrutura familiar, os abusos sexuais são mais

freqüentes nas famílias monoparentais ou reconstituídas, pois muitas vezes ocorre o

relaxamento dos laços filiais e conflitos relacionais mãe/filha com relação ao novo

companheiro da mãe. Nessas famílias, o abuso sexual perpetrado pelo padrasto é

bastante comum, como também o perpetrado pelo pai, durante as visitas de fim de

semana da filha (Perrone e Nannini, 1997). No entanto, os abusos não são restritos a

essas estruturas familiares, podendo ocorrer também em famílias onde ambos os pais

residem juntos. Mais do que o tipo de estrutura familiar, os estudos mostram que a

forma como os membros da família se relacionam, a vulnerabilidade das fronteiras

transgeracionais, a interação conjugal conflituosa e as interações comunicacionais

confusas e ambíguas, entre outras, são indicadores mais plausíveis de ocorrência de

abuso sexual infantil.

Cirillo e Di Blasio (1991) destacam ainda a necessidade de se conhecer o jogo

relacional entre os membros de famílias abusivas, pois dessa forma permite-se


38

integrar o nível individual e contextual representado tanto pelo funcionamento

familiar como social, ampliando a compreensão da complexidade do fenômeno. Estes

autores acreditam que dessa maneira há um reconhecimento da autonomia relativa das

emoções, comportamentos e estratégias de cada um dos membros da família, ainda

que todos estejam estreitamente integrados na organização interativa que os engloba.

As famílias com transações incestuosas possuem uma discrepância entre a

imagem que demonstram ao seu meio e o que ocorre em seu interior. São famílias

fechadas, rígidas, isoladas, coniventes e se vêem fora do controle social (Perrone e

Nannini, 1997; Thouvenin, 1997). A lei privada e interna da dinâmica familiar se opõe

à lei geral da sociedade, deixando a criança sem uma referência de proteção.

O sistema conjugal caracteriza-se por uma pobre atividade sexual como

conseqüência de um consenso implícito entre os membros da díade conjugal, que

permite que a filha assuma o lugar da esposa do pai. Para Perrone e Nannini (1997), o

incesto está inscrito no contrato conjugal, constituindo fronteiras difusas entre os

papéis parentais e conjugais, onde tanto o marido quanto a esposa, enquanto pais

compartilham imaturidade e irresponsabilidade.

A indiferenciação dos papéis e das funções familiares juntamente com a

rigidez dos valores da família cria um contexto onde a interdição se estende à palavra,

gerando um segredo, guardado de maneira cuidadosa através das ameaças, das

chantagens e/ou da violência física por parte daquele que comete o abuso sexual. Toda

a energia do sistema é utilizada para manter o status relacional, criando uma tendência

à imobilidade, onde a dinâmica “paralisa a relação, exclui as escapatórias e fecha as

saídas” (Perrone e Nannini, 1997, p.105).


39

A criança vítima do abuso sexual não consegue escapar dessa dinâmica,

apresentando uma espécie de estado alterado de consciência, caracterizado por uma

perda da capacidade crítica e focalização restritiva da atenção, encontrando-se sobre a

influência e o domínio abusivo daquele que controla a relação. Este estado gera

dúvidas, confusão, sentimentos contraditórios de amor e ódio, que muitas vezes

permite que a relação abusiva se perpetue, mesmo sem violência física e ameaças

objetivas.

As vivências dessas famílias excluem os observadores externos. O segredo e o

silêncio são difíceis de serem rompidos, o que dificulta as intervenções dos agentes

sociais para a interrupção do ciclo abusivo. Dessa forma, pode ocorrer um processo de

evitação de enfrentamento, gerando um contexto de silêncio, conivência, medo,

tolerância e até mesmo de impunidade, seja por parte dos próprios membros da

família onde os abusos ocorrem como pelas redes sociais e profissionais com as quais

essa família entra em contato.

Para Siegfried (2000), é responsabilidade da comunidade consagrar os direitos

das crianças e dos adolescentes, desmistificar a sexualidade, fomentar a visibilidade

social sobre a violência sexual infantil, conseguindo que todos especialmente os

profissionais (médicos, professores, juízes, advogados...), sejam conscientes de seus

deveres, seus papéis e suas responsabilidades frente a situações de violência.

1.4 – As Emoções dos Profissionais que Lidam com o Abuso Sexual Infantil

Na perspectiva novo-paradigmática de atuação, em que o sujeito está

implicado na relação com o outro, o processo terapêutico torna-se mutuamente


40

influenciado pelo cliente e pelo terapeuta, em uma co-autoria e uma co-evolução

(Santos, 2002). A forma como o terapeuta vê a realidade vai depender da posição que

ele ocupa no sistema. Sua história pessoal e sua subjetividade têm um importante

valor e deve ser compreendida e incluída no contexto do sistema profissional-família.

(Boscolo, 2000). É buscado na relação terapeuta-cliente, o que existe de intenso e

vivo no cliente, ao mesmo tempo em que “intervimos com tudo o que é nosso: nossa

formação (obviamente), mas também tudo o que sentimos fortemente” (Minkovsky,

1999, p.4). Assim, os psicólogos e assistentes sociais ao entrarem em contato com os

casos de abuso sexual, estão implicados no processo de intervenção através de suas

crenças, valores e sentimentos, contribuindo na construção de possibilidades para a

interrupção ou não do circuito abusivo.

Alguns estudos já apontam a importância do profissional e sua subjetividade

na relação de trabalho, especialmente em contextos de ajuda. Campos (2001), em seu

estudo sobre a família nos estudos psicossociais de adoção na Vara da Infância,

destaca o reconhecimento do aspecto subjetivo da avaliação psicossocial, do

sofrimento do profissional envolvido no processo, de sua subjetividade e emoções,

superando muitas vezes os aspectos legais e jurídicos da adoção. Neubern (1999)

destaca como a dinâmica familiar reflete na dinâmica da equipe profissional que a

atende, tendo uma ressonância dos sofrimentos, emoções, sentimentos e histórias da

família na equipe.

No contexto escolar, Brino e Williams (2003) desenvolveram um estudo sobre

as concepções das professoras acerca do abuso sexual infantil e de que forma essas

concepções interferiam na detecção e na denúncia dos casos de violência sexual

intrafamiliar. Essas autoras demonstraram em suas conclusões que o desconforto em


41

relação ao tema, o medo de se expor juntamente com a desinformação sobre a questão

perpetuam mitos e crenças que dificultam a percepção da situação de abuso sexual e a

denúncia a órgãos competentes. Nesse mesmo sentido, Vargas (1999) apresenta em

seu estudo sobre o fluxo do Sistema de Justiça Criminal (queixa, inquérito, denúncia e

sentença), como a subjetividade dos operadores que participam desse processo, suas

crenças, valores e estereótipos a respeito do estupro, do abuso, da sexualidade e dos

relacionamentos familiares, orientam suas ações e determinam a chegada do processo

criminal a uma resolução legal ou não. Para a autora, a existência de um

relacionamento próximo ou familiar entre o agressor e a vítima determina as decisões

do Sistema de Justiça Criminal nos crimes de estupro, existindo, inclusive, diferenças

no tratamento dado a agressores conhecidos e desconhecidos da vítima nas várias

fases do fluxo.

Em casos de abuso sexual infantil, a intensidade da violência e do abuso

vivenciada por essas famílias se reflete nos profissionais que as atendem e reverberam

neles sentimentos intensos com relação à situação das pessoas envolvidas em tais

circunstâncias. Raiva, dor, impotência, nojo, agressividade e pena são alguns

sentimentos que nos arrebatam ao conhecermos ou enfrentarmos situações de abuso

sexual infantil. Essas emoções e sentimentos são importantes de serem percebidos,

pois é através desse mal estar e desse incômodo que a intervenção e a ajuda pode ser

estabelecida na relação. Para Ravazzola (1997), o problema se encontraria no

momento em que diante de situações de violência e abuso, o profissional não

vivenciasse tais emoções, demonstrando um possível envolvimento deste na dinâmica

de segredo e anestesia estabelecida na família, e numa perspectiva mais ampla,

refletiria um processo de insensibilização e acomodação sociais frente à violência.


42

Por outro lado, analisar pessoalmente nossas emoções e saber que estarão

presentes quando enfrentarmos situações de abuso sexual infantil nos permitirá

manejá-las de forma mais adequada, permitindo ter consciência do nosso sentir,

discernindo-o do sentir do outro, e podendo criar uma certa distância daquilo que nos

é relatado. Sem esse reconhecimento e discernimento, nossas emoções podem invadir

a entrevista ou o atendimento, confundindo o profissional que, ao invés de realizar

uma escuta respeitosa, atenta e comprometida à criança ou à família, acaba atuando

seus sentimentos e emoções, fazendo julgamentos, perguntas inadequadas e tomando

decisões apressadas e independentes, o que prejudicará a proteção da criança, a

responsabilização do agressor e a intervenção familiar.3

Como partimos do pressuposto de Maturana (1997), em que são as nossas

emoções que determinam e orientam a cada instante o que fazemos ou não, é

primordial identificar as emoções que especificam o domínio das ações, se queremos

conhecer o que ocorre em cada interação ou conversação. Assim, é importante

identificar e conhecer esses sentimentos e emoções que as histórias de abuso sexual

infantil desencadeiam nos profissionais para entender suas ações e orientações frente

às famílias. Ao conhecer suas emoções acerca do abuso sexual infantil, os

profissionais podem mudá-las nas conversações entre eles e entre estes e as famílias,

criando-se a possibilidade de mudar também as ações.

É necessário, como afirma Ravazzola (1997), realizarmos uma conexão

reflexiva com as nossas emoções que estão ligadas aos nossos valores e princípios

éticos para propiciar o surgimento de conhecimentos capazes de nos orientar a

respeito da maneira de por limites efetivos as ações nefastas da violência e abuso

3
Manual de capacitación em violência sexual infantil do BICE
43

famíliar. É responsabilidade da comunidade consagrar os direitos das crianças e dos

adolescentes, desmistificar a sexualidade, fomentar a visibilidade social sobre a

violência sexual infantil, conseguindo que todos, especialmente os profissionais

(médicos, professores, juizes, advogados, etc), sejam conscientes de seus deveres,

seus papéis e suas responsabilidades frente a essas situações de violência (Siegfried,

2000).

1.5 - O Abuso Sexual Infantil e a Justiça

As definições sobre o abuso sexual revelam valores e crenças sociais,

implicando em si julgamentos sociais a respeito do que é ou não considerado

adequado para o desenvolvimento da criança. Essas diferenças culturais e sociais dão

significados diferentes a violência sexual infantil que dificultam, muitas vezes, as

ações de prevenção e as intervenções nessas situações. Porém, as diversas declarações

e compromissos de caráter internacional e nacional relativos à infância, como a

Declaração Universal dos Direitos das Crianças (1959), e o Estatuto da Criança e do

Adolescente (1990) no Brasil, mostram, de alguma forma, sob quais valores e crenças

sócio-culturais a sociedade ocidental está se pautando para delinear políticas públicas,

práticas e intervenções em casos de violência sexual infantil, revelando ainda um

consenso a respeito desses valores e idéias que imperam na sociedade ocidental nesse

momento histórico.

No Brasil, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), instrumento jurídico

construído a partir da luta pelo reconhecimento da criança e do adolescente enquanto

sujeitos de direitos, reflete as considerações internacionais da doutrina da proteção


44

integral da infância, estabelecendo que crianças e adolescentes devam ter seus direitos

humanos (direito à saúde, educação, família, identidade, etc) garantidos e respeitados.

Com relação à violência sexual infantil, o ECA estabelece, nos artigos 5º, 17 e 130 o

seguinte:

“Artigo 5º - Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de

negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na

forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais”.

“Artigo 17 – O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade

física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da

imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, idéias e crenças, dos espaços e

objetos pessoais”.

“Artigo 130 – Verificada a hipótese de maus-tratos, opressão ou abuso sexual

imposto pelos pais ou responsável, a autoridade judiciária poderá determinar, como

medida cautelar, o afastamento do agressor da moradia comum”.

Além disso, em virtude da dinâmica do silêncio e da negação que envolve os

casos de abuso sexual, é importante destacar o artigo 245 que estabelece a

obrigatoriedade de qualquer profissional em comunicar casos suspeitos ou

confirmados às autoridades competentes para os encaminhamentos jurídicos, médicos

e psicossociais necessários para a proteção da criança ou do adolescente que tenha

sofrido o abuso.

A Justiça, como instituição social normativa, tem um papel fundamental na

disseminação desses valores e na intervenção em casos de abuso sexual infantil para

proteção da criança ou do adolescente, através de suas práticas penais, normativas e

reguladoras, garantindo a aplicação das leis sociais, podendo inclusive, exercer uma
45

função educadora e protetora. Para tal, a atuação dos profissionais das áreas de

Psicologia e do Serviço Social no contexto judiciário tem contribuído nessas funções

ao auxiliar os Juízes nas questões psicossociais, ampliando a compreensão dos

fenômenos.

De acordo com Cirillo & Di Blasio (1991), o assessoramento psicossocial, no

contexto judiciário, visa contribuir para o esclarecimento de uma problemática

complexa, controvertida e contraditória. O assessoramento de psicólogos e assistentes

sociais não é requerido quando a transparência do caso permite ao juiz tomar uma

decisão rápida e imediata. Em geral, a demanda de realização do estudo psicossocial

está relacionada aos casos de disputa judicial explícita ou encoberta, onde as crianças

estão bastante envolvidas, e onde a temática da violência, física, emocional e sexual, é

um importante eixo do relacionamento e da comunicação familiar, tornando-se,

inclusive, um dos elos que conecta a família à Justiça.

Nos casos de abuso sexual infantil, o primeiro objetivo da Justiça é proteger a

criança vítima. A denúncia e o processo judicial constituem-se aspectos importantes e

imprescindíveis para a garantia da proteção da criança ou adolescente vítima do abuso

sexual. Além dos aspectos jurídicos, a denúncia formal e o processo judicial

possibilitam que os profissionais da psicologia e do serviço social intervenham de

forma a superar a negação do abuso, a sensação de impotência e a simples

incriminação do culpado.

Para Cirillo e Di Blasio (1991), qualquer trabalho de intervenção psicossocial

nas famílias com abuso sexual infantil fica comprometido e resulta infrutífero se não

vem acompanhada da denúncia judicial. Na ausência de disposições jurídicas

oportunas e claras, qualquer profissional encontra-se frente a uma família reticente e


46

que se recusa a aceitar ajuda. O apoio e a intervenção psicológica e social representam

um recurso, uma possibilidade somente após a ativação de um mecanismo judicial.

Ao mesmo tempo, os autores destacam que os juízes não conseguem

desenvolver adequadamente seu dever de proteger a criança sem o auxílio dos

serviços sociais e psicológicos que podem avaliar a situação da família e da criança,

avaliando sua susceptibilidade a mudanças e oferecendo indicações de

encaminhamentos, buscando a proteção da criança. Destacam, portanto, a

imprescindível integração entre a intervenção psicossocial e a Justiça de forma a

possibilitar que a aplicação da lei possa ser um terceiro social que promova a

interrupção do ciclo abusivo, a responsabilização do abusador e a conseqüente

proteção da criança.

É importante destacar aqui que a quantidade de fatores e circunstâncias do tipo

jurídico, de saúde, social e psicológica nos casos de abuso sexual demanda um

trabalho multidisciplinar em que cada um dos campos de trabalho é indispensável em

virtude de sua especificidade, porém deve integrar suas ações para que a intervenção

seja efetiva (Furniss, 1993, Faleiros e Faleiros, 2001). No entanto, na realidade

brasileira essa intervenção interdisciplinar é prejudicada pela falta de integração e

conhecimento dos trabalhos realizados nos casos de abuso sexual, constituindo-se em

um verdadeiro curto circuito nos procedimentos de intervenção judicial, de saúde,

psicossociais e policial (Faleiros e Faleiros, 2001).


47

1.6 – O Serviço Psicossocial Forense do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e

Territórios4.

Com o crescimento da importância e o reconhecimento do trabalho

psicossocial no âmbito judiciário, a intervenção do psicólogo e do assistente social na

Justiça tem se ampliado no Brasil. Atualmente, diversos tribunais no território

brasileiro, como em São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Distrito Federal,

possuem equipes psicossociais que auxiliam e assessoram os Juízes em suas decisões.

No Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT), o Serviço

Psicossocial Forense foi criado, através do Provimento nº 027/92 datado de 11 de

setembro de 1992, para prestar assessoria psicossocial aos serviços judiciários e

administrativos do TJDFT, estando diretamente subordinado à Corregedoria da Justiça

do Distrito Federal. Este Serviço subdivide-se em três seções – Seção Psicossocial

Forense (SEPAF), Seção de Atendimento Psicossocial (SEAPS) e Seção de Pesquisas,

Acompanhamento e Avaliação de Programas Psicossociais (SEPAP) - que

desenvolvem trabalhos diferenciados.

A Seção Psicossocial Forense (SEPAF) tem desenvolvido um trabalho, em 12

anos de atuação, de assessoramento psicossocial aos Magistrados das Varas de

Família, Cíveis, Criminais, Precatórias e de Competência Geral de todo o Distrito

Federal. Estes Magistrados encaminham as famílias que possuem processos judiciais

tramitando nessas Varas, para que se realize um estudo psicossocial e posteriormente

recebem um parecer técnico que fará parte do processo judicial e que subsidiará sua

4
As informações contidas nessa parte foram obtidas do Plano de Ação do Serviço Psicossocial Forense do
TJDFT 2002-2004
48

decisão. Geralmente, os processos judiciais encaminhados são aqueles em que as

famílias possuem algum conflito relacional/emocional que promova uma situação

litigante, dificultando a resolução da questão judicial.

Em virtude do aumento do número de processos encaminhados nos últimos

anos e a dificuldade de locomoção de inúmeras famílias, que muitas vezes não tinham

condições financeiras de ir ao Fórum do Plano Piloto para serem atendidas, a Seção

foi subdividida em três: a SEPAF Centro, localizada no fórum do Plano Piloto, que

atende às Varas desta circunscrição judiciária; a SEPAF Norte, localizada no Fórum

de Sobradinho, que atende às Varas dos Fóruns de Sobradinho, Planaltina e Paranoá; e

a SEPAF Sul, localizada no Fórum de Taguatinga, que atende às Varas desse Fórum e

dos de Ceilândia, Samambaia, Gama, Brazlândia, Santa Maria e Recanto das Emas.

O trabalho desenvolvido atualmente na SEPAF tem como objetivo

compreender e explicitar a dinâmica relacional familiar subjacente ao processo

judicial e promover intervenções sistêmicas, criando um contexto de potencialização

das competências da família para a resolução de seus conflitos, superando o impasse

judicial e alcançando um consenso em sua decisão a respeito da problemática que deu

origem ao processo judicial, sempre priorizando a proteção e o bem estar das crianças

e adolescentes envolvidos (Rodrigues e Lima, 2003). O trabalho é baseado no

paradigma teórico da abordagem relacional e sistêmica, no qual se procura criar um

contexto de compreensão onde os recursos e potenciais da família e de seus membros

são considerados e qualificados, possibilitando que atuem como co-responsáveis no

processo de decisão. Privilegia-se o atendimento em conjunto das partes, envolvendo

também outros membros da família extensa ou pessoas que estariam de alguma forma

envolvidas no conflito e que pudessem contribuir na busca de soluções.


49

Os objetivos gerais da SEPAF são:

 Assessorar os magistrados das Varas de Família e Criminal da Circunscrição

Judiciária do Distrito Federal, através de estudos psicossociais referentes aos

processos encaminhados a fim de subsidiar a decisão judicial;

 Auxiliar as famílias a buscar soluções para os conflitos gerados em função

da problemática que deu origem ao processo judicial.

E os objetivos específicos constituem-se em:

 Conscientizar as partes do processo a respeito da problemática que os levou

a procurar a justiça;

 Motivar os envolvidos para uma participação efetiva no processo de

atendimento;

 Identificar, orientar e trabalhar os conflitos de ordem prática gerados nas

relações interpessoais;

 Favorecer a clientela à mudança de atitudes, à melhoria na comunicação e

relacionamento e à capacidade de aceitar e introduzir mudanças;

 Propiciar às partes condições para que desenvolvam a habilidade de criar

opções para seus problemas;

 Desenvolver condições para que as partes entrem em acordo;

 Conscientizar os advogados das partes da importância da participação dos

seus clientes nos atendimentos realizados no Serviço Psicossocial Forense;

 Capacitar continuamente os técnicos do Serviço (psicólogos e assistentes

sociais) de modo a mantê-los atualizados e reciclados.


50

A partir do momento em que o processo judicial chega a SEPAF, este é

distribuído para os profissionais que ao recebê-lo, lê o processo e agenda os

atendimentos (geralmente cinco) a serem realizados com a família. O estudo

psicossocial é realizado em dupla, sempre que possível, uma vez que se percebe que a

participação de mais um profissional possibilita maior riqueza, além de propiciar

maior continência emocional para os profissionais envolvidos.

O estudo é iniciado com o estabelecimento de um contrato com a família, de

cinco atendimentos com duração de aproximadamente duas horas, com datas e

horários fixos. O primeiro atendimento normalmente é iniciado com o par parental e

divide-se em dois momentos, sendo que no primeiro é feita a apresentação do trabalho

e o estabelecimento do contrato com a família e no segundo momento, colhe-se a

história da família como um todo, com vistas a entender a dinâmica familiar atual que

os levou a Justiça. Os atendimentos seguintes são planejados conforme o que foi

percebido e trabalhado no atendimento anterior, solicitando a presença dos filhos em

questão e de outros membros da família extensa, da família reconstituída e da rede

social mais próxima (vizinhos, professores, amigos). O último atendimento pode ser

um momento tanto de conclusão do acordo familiar quanto do compartilhamento da

opinião técnica quando não foi possível a construção de um acordo pelas partes. Além

disso, conforme a necessidade evidenciada, realiza-se encaminhamentos para a

família ou algum de seus membros para acompanhamento psicoterapêutico ou social

adequado (Rodrigues e Lima, 2003). Também está prevista a realização de visitas

domiciliares ou institucionais, conforme a necessidade de cada caso.

Ao final do estudo psicossocial é elaborado um parecer técnico que será

anexado ao processo judicial. No parecer técnico são expressas as dinâmicas


51

relacionais observada, os avanços que a família conseguiu alcançar, especialmente no

que se refere ao bem estar dos filhos, e o acordo construído pela família ou sugerido

pelos profissionais.

Nos processos judiciais encaminhados a SEPAF, muitas vezes a temática do

abuso sexual infantil está presente e aparece ou explicitada na argumentação jurídica a

favor ou contra uma das partes do processo judicial (requerente ou requerido), ou é

evidenciado durante o estudo psicossocial. Dados da SEPAF demonstram que em três

anos, apenas na SEPAF Norte, foram atendidos trinta casos em que as famílias

envolvidas possuíam uma dinâmica abusiva entre seus membros. A partir dessa

realidade, a SEPAF ampliou seus objetivos para abarcar a necessidade de proteção da

criança ou do adolescente envolvido a partir da criação de um espaço de denúncia e

de articulação das várias áreas de atuação a fim de construir um tecido único e

integrado de intervenção que consiga abarcar todas as questões controversas e as

dificuldades que são encontradas nos casos de violência sexual infantil. Dentro desta

perspectiva, o Psicossocial Forense atua visando dois objetivos:

 Oferecer um espaço de escuta da denúncia, refletindo a respeito da mesma e

transformando-a, junto com a família, em uma demanda de ajuda por parte dos

envolvidos;

 Propiciar uma articulação da rede profissional que ofereça intervenções de

proteção da vítima e de interrupção do ciclo abusivo, um contexto de apoio a esta e

sua família, e a evitação da exposição excessiva dos envolvidos na situação de abuso

sexual.
52

2 – MÉTODO

2.1- Uma Proposta de Pesquisa Qualitativa

Com a idéia e a necessidade de estudar as emoções dos profissionais da Justiça

a respeito do abuso sexual infantil, busquei uma proposta metodológica que

contemplasse as diversidades e contradições desse fenômeno. A complexidade das

emoções demandava em seu estudo e pesquisa uma perspectiva de construção do

conhecimento, destacando a ênfase na participação ativa e efetiva de todos os

envolvidos inclusive da pesquisadora.

A inclusão da pesquisadora foi uma questão crucial para a escolha do método

uma vez que a pesquisadora, ao fazer parte do grupo estudado, era um participante

ativo de todo o processo, desde o inicio das discussões a respeito do tema na SEPAF à

análise e interpretação dos resultados da pesquisa. A emoção, enquanto fenômeno

subjetivo, constituía a subjetividade da pesquisadora tanto como profissional em

contato com as famílias com histórias de abuso sexual infantil quanto como

pesquisadora no contexto de trabalho. Essa questão em especial exigiu uma

metodologia que tivesse, além de uma coerência com os pressupostos epistemológicos

apresentados, uma proposta que contemplasse a inclusão da pesquisadora no processo

de construção do conhecimento científico.

Dessa forma, a proposta escolhida foi o método da pesquisa qualitativa,

buscando a predominância do aspecto qualitativo, em todos os sentidos. Não se trata

aqui de fazer apologia ao qualitativo, desconsiderando a importância do quantitativo


53

na ciência, já que se considera ambos os aspectos modos diferenciados e

complementares de manifestação, funcionamento e dinâmica da realidade (Demo,

1999). O que se buscou foi um método que fosse adequado ao estudo de um

fenômeno complexo e multifacetado como as emoções e que as estratégias

metodológicas facilitassem o entendimento e a compreensão da complexidade do

fenômeno, através de um olhar que investiga o que “está por trás” daquilo que emerge

como dado de pesquisa.

A pesquisa qualitativa, segundo Demo (2001), preserva a realidade acima do

método, buscando no contexto informações que possam ser manipuladas

cientificamente para uma melhor compreensão e condições de intervenção e mudança.

Este tipo de informação não é apenas colhido, mas construído, uma vez que o

conhecimento é construído como um diálogo crítico entre a realidade e o pesquisador,

que também é parte desta realidade (Santos, 2002). A informação qualitativa é

constantemente interpretada, trabalhada e retrabalhada, e não é lida apenas como um

mero objeto de análise. Ela é resultado da comunicação discutida o que implica a

participação do pesquisador nesse processo, pois não há processo comunicacional sem

que sejamos parte desse processo (Demo, 2001).

Segundo González Rey (2002), a perspectiva qualitativa de investigação em

psicologia é uma opção epistemológica, teórica e ideológica e não somente uma

questão formal de método. A epistemologia qualitativa, para este autor, apóia-se em

três princípios: que o conhecimento é uma produção construtiva-interpretativa, que

esse processo de produção do conhecimento tem um caráter interativo e que a

significação da singularidade possui uma legitimidade em todo esse processo.


54

Nesse sentido, o conhecimento não é buscado ou descoberto, como um reflexo

de uma realidade externa existente a priori. Ele é construído na interação entre as

pessoas envolvidas, enfatizando como cenário da pesquisa as relações pesquisador-

pesquisado e as relações entre os sujeitos pesquisados (González Rey, 2002). É esse

contexto interativo e relacional que se constitui em um terreno fértil para que o

processo criativo de diálogo, reflexão e produção de conhecimento se desenvolva.

A pesquisa vai se constituindo a medida em que o pesquisador estabelece

relações com seu tema de estudo, com os sujeitos participantes da pesquisa e com o

próprio delineamento desta. Nesse processo, o pesquisador não define a priori e de

forma fechada o problema e as hipóteses de trabalho. Estes são comprometidos com o

curso da pesquisa e desenvolvem-se ao longo desta, constituindo-se em momentos de

reflexão do pesquisador (González Rey, 2002).

A teoria tem um papel de instrumentalizar o pesquisador no processo

interpretativo, não como uma “camisa de força”, com categorias rígidas e pré-

definidas, mas sim enquanto um momento de sentido no processo de produção

teórica. Nesse processo interpretativo, o pesquisador integra, desconstrói, reconstrói e

apresenta indicadores (construções interpretativas) obtidos ao longo da pesquisa, que

não teriam sentido descontextualizados ou vistos de forma isolada como constatações

empíricas (González Rey, 2002). É a interpretação que dá sentido às várias e

diferentes expressões do estudado.

Esse conhecimento possui uma legitimidade que é produzida pelo significado

que a construção do conhecimento tem em relação às necessidades atuais do processo

de pesquisa. O que o torna legítimo, do ponto de vista qualitativo, não é a quantidade

de sujeitos estudados, mas sim a qualidade de sua expressão, que adquire significado
55

de acordo com o lugar que possui em determinado momento para a produção de

idéias por parte do investigador. Isso dá à singularidade um status diferenciado e

privilegiado no processo de compreensão e interpretação da expressão do sujeito

investigado (González Rey, 2002).

Em todo o curso da pesquisa qualitativa, os imprevistos, as contradições e a

informação que aparece nos momentos informais da pesquisa são bem vindos e fazem

parte do tecido processual da construção do conhecimento cientifico. Essas situações

são significativas, produzindo informações relevantes para a produção teórica

(González Rey, 2002). Muitas vezes são nessas situações que estão os saltos

qualitativos que proporcionam o desenvolvimento teórico, ampliando a compreensão

de um determinado fenômeno.

Nessa perspectiva, o pesquisador é completamente implicado em todo

processo de construção do conhecimento. O pesquisador, enquanto sujeito, produz

idéias ao longo da pesquisa, em um processo permanente que conta com momentos de

integração e continuidade de seu próprio pensamento (González Rey, 2002). O

pesquisador “não só participa nas relações, mas produz idéias à medida que surgem

elementos no cenário da pesquisa, as quais confronta com os sujeitos pesquisados, em

um processo que o conduz a novos níveis de produção teórica” (p. 57). Associado a

isto, a posição ativa e participativa do sujeito pesquisado no curso da pesquisa

propicia seu envolvimento, realizando construções implicadas nos diálogos nos quais

se expressa, contribuindo no enquadre da pesquisa.

É importante ressaltar que ao assumir uma postura participativa na pesquisa,

enquanto pesquisadora e parte do grupo pesquisado, reconheço a implicação de minha

subjetividade em todo o processo construtivo. Para González Rey (2002), a presença e


56

participação constante do pesquisador dentro da instituição ou grupo de pessoas que

está se estudando, dá acesso a fontes de informação informal, além de favorecer o

contato interativo entre pesquisador e pesquisado no contexto relevante para o estudo.

Ademais, as idéias produzidas tanto na atividade profissional quanto na pesquisa

acabam se relacionando e é o pesquisador, sujeito de ambas as atividades, que as

integra em um processo irregular, aberto e complexo de produção do conhecimento.

Não podemos perder essa posição de vista, pois a subjetividade, emoções,

valores e ideologias do pesquisador são fenômenos intrínsecos ao caminho científico.

Reconhecer esse fato é essencial para atuarmos de forma mais aberta, direta e honesta

consigo e com o grupo estudado, dentro de um enquadre de pesquisa que permite um

papel diferenciado para o pesquisador dentro do grupo no momento da pesquisa

(Demo, 1999; Brydon-Miller, 1997).

2.2 – A Pesquisa Realizada na Seção Psicossocial Forense do Tribunal de Justiça

do Distrito Federal e Territórios.

2.2.1 – Contexto de Pesquisa

Diante das inquietações que os casos de abuso sexual suscitam na equipe de

profissionais do TJDF, a pesquisa começou a ser delineada conjuntamente a partir de

questionamentos e reflexões acerca da prática psicossocial na Justiça. O tema de

pesquisa surgiu, portanto, em um contexto de diálogo, motivado por uma atmosfera

de reflexão sobre as questões da intervenção nos casos de abuso sexual, do qual fiz

parte desde o princípio. É importante ressaltar que esta pesquisa faz parte de um

movimento do grupo em repensar a prática, mobilizando-se e utilizando as


57

competências e recursos da equipe e de cada membro para propiciar um contexto de

mudança de acordo com as ressonâncias que a equipe tem da relação grupo-famílias-

justiça.

O contexto em que foi realizada a pesquisa foi o Serviço Psicossocial Forense,

mais especificamente a Seção Psicossocial Forense (conforme descrita no item 1.6).

2.2.2 – Os Participantes da Pesquisa

Os participantes da pesquisa foram seis5 profissionais (cinco psicólogas e uma

assistente social) da Seção Psicossocial Forense, todas do sexo feminino, na faixa

etária entre 29 e 40 anos de idade e com uma média de três anos de trabalho na

SEPAF. Nesse grupo, duas profissionais trabalhavam na SEPAF Norte (Fórum

Sobradinho), uma na SEPAF Sul (Fórum Taguatinga) e três na SEPAF Centro (Fórum

Plano Piloto). Todas realizam o estudo psicossocial dos processos encaminhados

pelos Juízes, no entanto apenas uma das profissionais não havia, até o momento da

pesquisa, atendido um caso com história de abuso sexual infantil. Entre todas as

participantes havia apenas uma psicóloga que tinha cerca de seis anos no TJDFT,

tendo trabalhado em outro Serviço Psicossocial do TJDFT antes da SEPAF.

2.2.3 – Instrumento para a Investigação – Entrevista de Grupo Focal Reflexiva

Em virtude da complexidade do fenômeno estudado e da característica e

momento do grupo e das participantes deste, pensou-se em uma forma de obter as

informações que pudesse propiciar uma discussão e reflexão do grupo, além de uma

participação ativa das profissionais nas interpretações e na construção do

5
Incluindo a mim mesma
58

conhecimento. Dessa forma, busquei articular dois instrumentos de pesquisa que

combinados, pudessem facilitar a expressão mais completa dos sujeitos, privilegiando

as interações e incorporando as construções do grupo participante, de uma maneira

interativa e reflexiva: a entrevista de grupo focal e a entrevista reflexiva.

Segundo Berg (1998), a entrevista de grupo focal é definida como um estilo de

entrevista desenhada para pequenos grupos em que a obtenção de informação decorre

da interação dos membros do grupo, emergindo contradições, questionamentos, apoio

e soluções dentro da vivência de cada participante. Dentro do grupo, ocorrem

discussões direcionadas ou não a respeito de uma questão em particular de relevância

ou interesse do grupo e do pesquisador, proporcionando para a pesquisa, informações

qualitativas em um único momento (Berg, 1998). Para esse autor, a entrevista de

grupo focal possibilita a interação entre os membros do grupo e estimula a discussão,

gerando idéias, questões e soluções para um determinado problema. Ademais, permite

ao pesquisador observar o processo de interação entre os participantes, oferecendo

dados grupais que refletem a noção coletiva, compartilhada e negociada pelo grupo.

A entrevista de grupo focal oferece um espaço de conversação onde o

conhecimento e experiência do outro é valorizado e compartilhado. Na relação dentro

do grupo, as profissionais participantes da pesquisa puderam compartilhar

significados, construindo sentidos ao sofrimento vivenciado na prática profissional e

encontrando um canal de expressão no grupo desse sofrer solitário. O grupo focal

possibilitou um espaço de conversação e diálogo que não representa apenas uma

forma de favorecer o bem estar dos sujeitos que participam da pesquisa, mas é fonte

essencial para o pensamento e, portanto, elemento imprescindível para a qualidade da

informação produzida na pesquisa (González Rey, 2002).


59

A entrevista reflexiva caracteriza-se pela reflexividade da fala de quem é

entrevistado, em que este tem contato com a expressão e compreensão do pesquisador

sobre sua fala (Szymanski, 2002). Ela tem como objetivo suscitar informações

qualitativas bem como conduzir um diálogo para que o tema em questão seja

aprofundado numa situação de interação (Yunes, 2001).

A entrevista em si mesma já é considerada um processo interativo de

construção de significados e a proposta da entrevista reflexiva surge a partir desta

consideração, da entrevista enquanto um encontro interpessoal que inclui a

subjetividade dos participantes e se constitui em um momento de construção de

conhecimento novo, e também surge dos limites da representatividade da fala e da

busca de uma horizontalidade nas relações de poder dentro de uma entrevista

(Szymanski, 2002). Nesse sentido, a entrevista reflexiva propicia que o entrevistado

se coloque diante de um pensamento organizado de forma inédita para ele mesmo, em

um movimento reflexivo em sua narração, possibilitando ‘insights’ ou ampliações de

consciência a respeito do tema abordado. O entrevistado, ao se deparar com sua fala

na fala do pesquisador, pode voltar para a questão discutida e articulá-la de uma outra

forma, gerando uma nova narrativa a partir da narrativa do pesquisador (Szymanski,

2002).

Assim, ao combinar as duas modalidades, foi realizada uma entrevista de

grupo focal reflexiva6, constituída por dois momentos diferentes. Foi no segundo

momento que foi feita a reflexão sobre algumas de minhas considerações e

interpretações a respeito da fala do grupo no primeiro momento. As construções

6
Essa denominação foi dada por mim, ao combinar a entrevista reflexiva, que é geralmente realizada com
uma pessoa ou com uma família, com a entrevista de grupo focal.
60

realizadas por mim foram compartilhadas, questionadas e discutidas para a ampliação

do tema em questão. Neste processo participativo, as idéias eram produzidas à medida

que surgiam elementos no cenário de pesquisa, as quais foram confrontadas com o

grupo, conduzindo a novos níveis de produção teórica (González Rey, 2002).

No processo reflexivo, a ação também é compreendida, pois promove um

contexto de mudança, onde a pesquisa se torna a ciência da prática exercida pelos

técnicos no âmago de seu local de trabalho (Barbier, 2002). A entrevista de grupo

focal reflexiva pode ser considerada uma pesquisa-ação, uma vez que para Barbier

(2002), todo e qualquer trabalho reflexivo e promotor de mudança é uma pesquisa-

ação.

As entrevistas de grupo focal foram realizadas em uma das salas do Serviço,

no prédio do TJDFT no Plano Piloto, em horário de trabalho (13 ás 19 horas).

2.2.4 – Procedimentos

A partir da demanda inicial da equipe da SEPAF, que havia se mobilizado com

o tema do abuso sexual infantil e com os inúmeros casos que passaram a chegar no

Serviço com essa temática, foi proposto à equipe um projeto de pesquisa que pudesse

ao mesmo tempo responder a algumas inquietações e oferecer um espaço reflexivo

para o próprio grupo. Dessa forma, a partir da perspectiva qualitativa, a pesquisa

começou a ser delineada.

Com o projeto de pesquisa pronto, foi realizada uma reunião com o

Corregedor de Justiça do TJDFT, a quem o Serviço Psicossocial Forense é

subordinado, a fim de solicitar a permissão para a realização da pesquisa. Com a

autorização do Corregedor, o projeto foi apresentado a todas as profissionais das


61

SEPAFs Norte, Sul e Centro (ao todo 18 profissionais na época), em uma reunião de

equipe. Nessa ocasião, foi feito um convite a equipe e foi pedido àquelas que tivessem

interesse em participar da entrevista de grupo focal reflexiva que me procurassem

para agendarmos as entrevistas do grupo. Além disso, cada SEPAF ficou com uma

cópia do projeto para consulta posterior por algum interessado.

Das dezoito profissionais da Seção, nove se disponibilizaram a participar da

pesquisa, sendo que efetivamente apenas seis (incluindo a minha pessoa)

compareceram no dia da primeira entrevista de grupo focal. O motivo utilizado pelas

outras três profissionais para justificar a ausência foi o excesso de trabalho,

dificuldades de remarcar atendimentos pré-agendados e reunião com superiores

marcada em cima da hora. Com as seis profissionais presentes, a entrevista de grupo

focal foi realizada. Foi pedido o consentimento oral das participantes para que a

entrevista fosse gravada, o que todas consentiram.

Durante a primeira entrevista, a partir de um relato sucinto de um caso de

abuso sexual infanto-juvenil encaminhado a Seção (processo judicial usualmente

atendidos por elas) e de perguntas abertas (anexos I e II), que desencadearam a

discussão, as profissionais dialogaram sobre suas reflexões, reações emocionais,

fantasias e significações a respeito da sua prática profissional ao atenderem esses

tipos de casos. Esse encontro foi dividido em três momentos: o aquecimento, a partir

do relato do caso e da expressão de cada uma sobre qual símbolo ou imagem

representasse seus sentimentos ao entrarem em contato com o caso relatado; a

discussão propriamente dita a partir das questões desencadeadoras; e a finalização,

com os encaminhamentos do grupo para o caso relatado.


62

Cerca de dois meses depois da primeira entrevista de grupo focal, as mesmas

profissionais que participaram do primeiro grupo foram convidadas novamente para

uma segunda entrevista, em que conversariam a respeito dos significados construídos

anteriormente por elas, a partir de interpretações feitas pela pesquisadora. A segunda

entrevista foi marcada dois meses depois da primeira em virtude do recesso

institucional do mês de Julho e das agendas lotadas das profissionais. Apenas uma

profissional não pode participar da segunda entrevista, em virtude de ter sido

convocada pela direção a realizar uma atividade considerada prioritária para o Serviço

naquele momento.

Assim, nesse segundo momento do grupo, foram apresentadas às profissionais

seis grandes zonas de sentido construídas a partir da conversação do grupo: a relação

do profissional com a criança; a relação do profissional com o pai/mãe; a relação do

profissional com a família; a relação do profissional com o processo judicial; a

relação do profissional consigo mesmo e a relação do profissional com a instituição.

Além dessa apresentação, foi proposto que se discutissem a respeito das

interpretações dentro de cada uma dessas dimensões, propiciando um momento tanto

de reflexão quanto de desdobramento sobre o entendimento e a conscientização de si

em cada uma dessas dimensões.

Participaram das entrevistas duas estagiárias do Serviço que auxiliaram na

coordenação do grupo e no registro das observações durante as entrevistas grupais.

As entrevistas de grupo focal reflexiva tiveram, cada uma, duração

aproximada de uma hora e meia, e foram gravadas e transcritas para as análises

posteriores.
63

2.2.5 – Método de Análise

Foi utilizada para a análise e interpretação das informações obtidas e o

processo de construção do conhecimento, a proposta da Investigação Qualitativa de

González Rey (2002). Nessa proposta, a análise é realizada a partir de indicadores na

fala dos participantes de alguma dimensão de sentido presente no estudo. Os

indicadores são elementos ou conjunto de elementos que adquirem significação

através da interpretação do pesquisador e representam um momento hipotético no

processo de produção da informação, mesmo que conduzam ao surgimento de outros

novos indicadores, por meio de novas idéias do pesquisador associadas aos

indicadores precedentes (González Rey, 2002).

Para González Rey (2002) o significado dos indicadores não se define pela

análise da resposta isolada ou abstrata, mas pelo seu significado no conjunto de

elementos de sentido que o sujeito expressa no instrumento e na situação de sua

aplicação.

Os indicadores propiciam a construção e definição de zonas de sentido sobre o

problema estudado que são novas categorias que conceitualizam as questões e

processos que aparecem no curso da pesquisa e que se tornam inteligíveis ao

pensamento (Neubern, 1999). As novas zonas de sentido são construídas no diálogo

com os dados e são uma referência dos processos construtivos do pesquisador

(González Rey, 2002).

As informações informais também adquirem importância e são consideradas

na análise. Segundo González Rey (2002), as informações obtidas pelo pesquisador

em momentos casuais contribuem no sentido atribuído por ele aos fragmentos de


64

informação precedentes obtidas pela entrevista, ocupando um espaço importante no

processo de construção do conhecimento.


65

3 – ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

Com a transcrição das entrevistas finalizada, debrucei-me sobre material para

a elaboração e interpretação do conteúdo das falas da entrevista de grupo focal

reflexiva. Primeiramente li e reli o material da primeira entrevista e ao longo das

leituras fui identificando palavras e frases que indicavam um sentido semelhante e

integravam-se em uma zona de sentido comum. Utilizei as dimensões de sentido que

já havia construído em um primeiro momento logo após a primeira entrevista e as

quais levei para a reflexão grupal na segunda entrevista. Essas dimensões orientaram

as análises seguintes. No entanto, como se constituía um novo momento do processo

de pesquisa, essas dimensões foram reconstruídas e ampliadas, originando então sete

grandes zonas de sentido: As emoções que fundam o domínio da ação do profissional;

“Ai meu Deus, e agora?”; Conhecer, refletir e ter fé; Do caos à dúvida, da dúvida à

confusão; As duas faces da instituição; A criança é a bússola; e Os coadjuvantes.

Optei por realizar a análise das duas entrevistas em separado, uma vez que

percebi a ampliação das reflexões surgidas na primeira entrevista e melhor elaboradas

na segunda entrevista, o que considerei importante destacar separadamente.

3.1 – Análise da Primeira Entrevista

3.1.1 – As Emoções que Fundam o Domínio da Ação do Profissional

Ao entrar em contato com o tema do abuso sexual infantil, as profissionais

apresentaram respostas emocionais elementares, no sentido de serem emoções


66

expressas de forma mais reativa ao tema, sem uma maior elaboração por parte das

profissionais. Essas emoções são mais primitivas, o que implica uma forma de

sinalização não simbólica e distinta do processamento cognitivo da informação. Elas

consistem em um momento fundamental para o direcionamento da ação, uma das

características principais da emoção (Greenberg, Rice e Elliot, 1996, citado por

Neubern, 1999). Essas reações emocionais estão relacionadas ao eu pessoal da

profissional e se constituíram por um conjunto de emoções fortes e desagradáveis, tais

como desorientação, angústia, ansiedade, medo, desconforto, cansaço, desilusão,

desânimo, raivas, entre outras.

A desorientação expressou-se por uma sensação da profissional em estar

perdida, sem rumo, sem saber para onde ir e o que fazer nos casos de abuso sexual

infantil:

“...eu me sinto como se eu tivesse dirigindo um barco dentro de um mar

imenso sem saber exatamente que rumo esse barco deve ir, pra que lado, sul norte,

aonde esse barco deve chegar.”

As profissionais também revelaram uma indisposição e desmotivação em

relação ao tema, representadas por sensações de cansaço, desânimo, desesperança e

desilusão, chegando a ser expressas por dores e indisposições corporais como dor de

cabeça e mal estar:

“Sempre saio de lá (do Serviço) horrível. Eu me sinto muito mal, é dor de

cabeça, é dor no corpo...”.

A angústia e a ansiedade também perpassaram todos os momentos da

entrevista e se expressaram em diversos sentidos: angústia de não poder dizer se

houve abuso ou não, angústia pela responsabilidade do trabalho, angústia de ter que
67

fazer tudo em pouco tempo, angústia pelo sofrimento da criança, vítima do abuso.

Para Teubal (2001) a angústia do profissional que lida com abuso sexual infantil

decorre muitas vezes da sensação de estar escutando algo que não deveria saber,

relacionada ao segredo e ao silêncio que fazem parte da dinâmica familiar, além de

refletir uma insegurança de não saber o que fazer diante da denúncia de situações

abusivas na família.

Perceberam-se também muitas expressões emocionais de desconforto e raiva,

que eram também expressas por gestos e expressões faciais durante a entrevista, como

movimentos constantes na cadeira. Inclusive, uma das profissionais ao longo da

entrevista foi aos poucos se dirigindo a porta da sala de forma que, ao final da

discussão, se localizava longe do círculo onde estavam as outras profissionais, perto

da porta e voltada para a saída, como se estivesse apenas esperando um momento para

sair da sala. Esse incômodo das profissionais em relação ao tema decorre bastante da

sensação de agressão quando o assunto é abordado, em virtude do abuso sexual

infantil ser visto como um absurdo, algo horroroso e pesado:

“...eu não consegui ficar confortável em caso de abuso assim...”

“...isso é um acontecimento, isso é um absurdo”

“O assunto é tenso, pesado”

As explicações, reações e ações das profissionais são constituídas pelas

emoções que Maturana (1997, 2001, 2002) define enquanto disposições corporais que

especificam domínios de ações. Essas disposições corporais, que são observadas e

apreciadas pelo observador, constituem, na relação com o outro, um contexto possível

de atuação, ou coordenações consensuais de ações. Ou seja, as emoções fundam e


68

constituem os espaços de ações dos sujeitos, pois não existe ação humana que não

seja constituída por uma emoção.

Raiva, indignação, mal estar, desânimo, medo e angústia são emoções que

fundam o domínio da ação da profissional que lida com famílias com dinâmicas

abusivas. Essas reações emocionais são primordiais no sentido de motivar ou

impulsionar a profissional para uma ação, pois o sujeito só interage se algo o mobiliza

(Maturana, 2001). Se não há uma emoção que funde ou defina uma ação e possibilite

uma interação, o sujeito não implica o outro em sua convivência, não estabelecendo

uma relação. Para Maturana (2001), são as interações recorrentes entre as pessoas ou

sistemas (coordenações consensuais de ações) que promovem mudanças ao longo da

história dessas interações. Para se pensar em alguma possibilidade de mudança ou

ajuda na relação entre a profissional e a família, essa profissional precisa expressar

uma disposição corporal que aceite o sistema familiar e seus membros em sua

convivência, ou seja, precisa expressar uma emoção que a mobilize a agir.

No entanto essas emoções não determinam ações específicas, como se a única

ação possibilitada pelo medo fosse a fuga. Existe um leque de opções de ações e

coordenações de ações constituídas por uma emoção. Em virtude dessa complexidade,

não tenho a intenção aqui de afirmar que determinados comportamentos são

direcionados por uma determinada emoção. Mas é possível se refletir diante das

expressões das profissionais na entrevista sobre algumas situações de interação que

podem ajudar ou dificultar a intervenção e a interrupção do ciclo abusivo, sempre

partindo do pressuposto de que essa interação já foi promovida e constituída por uma

emoção.
69

As reações emocionais de susto, horror podem muitas vezes gerar uma

paralisia, dificultando a intervenção nos casos de abuso sexual. Esse estado pode levar

a profissional a desenvolver um mecanismo inconsciente de negação, não escutando o

que escutou ou duvidando do que escutou (Teubal, 2001). Se uma perturbação

produzida em uma relação é muito além do campo de experiência da pessoa, ou muito

fora-do-comum, ela pode se fechar para essa perturbação externa para não ser

influenciada, evitando ou dificultando as interações seguintes (Andersen, 1996;

Maturana, 2001). Se o mal estar da profissional é demasiado e constante no exercício

de sua profissão, essas emoções podem orientar a profissional a agir de maneira a

evitar as interações que levam a esse mal estar, propiciando a negação, a minimização

e a naturalização da violência sexual.

Para Abreu, Stoll, Ramos, Baumgardt & Kristensen (2002), a tensão

emocional que produz sensações de esgotamento, insatisfação e desmotivação na

prática profissional de psicólogos pode levar ao que denominam de

despersonalização, que é resultado do desenvolvimento de emoções e atitudes

negativas, às vezes indiferentes e cínicas, em torno das pessoas na relação

profissional, levando a uma desumanização da relação e prejudicando a prática. O

profissional perde o sentido da sua relação com o trabalho, não se importando mais

com as pessoas e qualquer esforço lhe parece inútil. Isso caracterizaria um nível maior

de esgotamento (burnout) em que as emoções seriam vivenciadas como algo

extremamente perturbador para as pessoas que não teriam recursos afetivos,

relacionais ou profissionais para lidar com casos de abuso sexual infantil.

Dessa forma, o incômodo, o mal estar e o desconforto que arrebate a

profissional que lida com famílias com situações de abuso sexual infantil é uma
70

sensação desagradável, e propicia ações para diminuir a sensação de mal estar, quase

que automaticamente (Ravazzola, 1997). Os processos de anestesia, minimização ou

naturalização da violência são percebidos na comunicação e na relação entre as

pessoas envolvidas nos circuitos abusivos dentro da família, incluindo os profissionais

que em algum momento entram em contato com ela. Se o processo de anestesia tem

êxito, aquele mal estar que os observadores deveriam experimentar (a indignação, a

raiva, a impotência) nem sequer aparecem. Na entrevista, algumas profissionais

relataram a necessidade de minimizarem algumas situações para poderem lidar com

famílias com história de abuso sexual, apontando um processo de anestesia à medida

que vai atendendo tais famílias, como se passasse a se acostumar com o mal estar e

desconforto do tema:

“Então, assim, eu acho que a gente vai se anestesiando um pouco pra tentar

lidar com o agressor... a gente vai minimizando a coisa né, apesar da gente saber que

é horrível.”

Ao mesmo tempo em que essas emoções podem gerar paralisia, negação ou

anestesia, elas também podem mobilizar as pessoas e em especial as profissionais que

lidam com o abuso sexual infantil, motivando ações para a interrupção do circuito

abusivo:

“Eu não sei se poderia dizer que a minha indignação, é uma coisa assim,

dentro de mim que me motiva...”

Para Ravazzola (1997), são essas emoções de mal estar, indignação, raiva,

medo, a consciência do horror que despertam as relações abusivas na família, que

propiciam a atuação e intervenção nesses casos, permitindo que se fale em voz alta

sobre essa violência, que tende a ser mantida em silêncio e segredo. Essas emoções
71

também propiciariam uma mobilização no sentido de buscar maneiras de ajudar as

pessoas envolvidas nas relações abusivas, levando os profissionais a alguma forma de

re-ação (de tentar alguma ação diferente) que possibilite a interrupção do abuso

sexual infantil. Precisamos aprender a registrar e recuperar sistematicamente nosso

próprio mal estar a partir da nossa conscientização da relevância de nossas ações e

discursos enquanto profissionais nos casos de abuso sexual infantil. Para Ravazzola

(1997), recuperar esse mal estar é um ponto de partida imprescindível para produzir

perturbações em sistemas tão estáveis como as famílias com dinâmicas abusivas.

3.1.2 – “Ai meu Deus, e agora? ”.

“Eu me sinto como se eu tivesse dirigindo um barco dentro de um mar imenso

sem saber exatamente que rumo esse barco deve ir, pra que lado, sul ou norte, aonde

esse barco deve chegar. Às vezes vem a sensação assim, cabe a mim, ou, é

responsabilidade minha, responsabilidade imensa diante de um mar tão grande

assim, de fazer esse barco ir pro rumo certo, pro destino certo, pro destino que lhe

cabe.”

Durante toda a entrevista, as profissionais expressaram emoções relacionadas

ao seu papel profissional dentro do contexto judiciário. As emoções enquanto

elemento central na constituição do sentido subjetivo (González Rey, 2003)

constituem e são constituídas pelas configurações subjetivas do sujeito ao longo de

suas relações e interação. Nesse processo irregular e complexo da constituição da

subjetividade humana, o contexto social é uma das dimensões integradas

dialeticamente. A subjetividade individual se produz em espaços sociais constituídos

historicamente, os quais configuram uma determinada subjetividade social que


72

participa no processo de configuração de sentidos e significados. Os sujeitos que

atuam em um determinado espaço social compartilham elementos de sentido e

significados gerados nesse espaço, que passam a integrar a subjetividade individual.

Assim, as profissionais entrevistadas compartilham um conjunto de emoções

dominantes ligadas ao papel social e profissional dentro da Justiça, mais

especificamente do Serviço Psicossocial Forense do TJDFT. O espaço social do

tribunal contribui para o desenvolvimento de sentidos específicos nos psicólogos e

assistentes sociais que ali realizam suas atividades profissionais, devido a seu

pertencimento ao grupo. Da mesma forma, a organização do Serviço Psicossocial não

está desvinculada dos processos históricos de cada uma das profissionais, das famílias

que ali são atendidas e do próprio contexto institucional no qual se inserem. A

subjetividade individual das profissionais contém o social (contexto sócio-histórico da

Justiça, instituição TJDFT) como a subjetividade social vai conter as crenças e valores

de cada uma das profissionais do Serviço.

Destarte, as crenças e os mitos que as profissionais possuem sobre o papel da

psicologia e do serviço social e sobre o papel da Justiça na sociedade contemporânea

configuram-se como elementos constitutivos dos sentidos subjetivos que atribuem ao

seu papel profissional. Especialmente em um momento sócio-histórico em que o

papel de psicólogos e assistentes sociais, a partir de críticas e questionamentos sobre

sua atuação na Justiça, está em processo de transição de uma epistemologia positivista

para uma mais complexa, dinâmica e sistêmica. Como todo processo de transição,

ainda existe uma indefinição, o que propicia um contexto cheio de contradições e

ambigüidades sobre não somente a atuação dessas profissionais como também de sua

importância na instituição.
73

Na fala do grupo entrevistado percebeu-se que o papel das profissionais na

Justiça circulava entre dois olhares: o olhar psicossocial, de atender a família e a

criança e proporcionar um contexto de ajuda e reflexão para possíveis mudanças na

dinâmica abusiva da família; e um olhar jurídico-policial, de investigação, de ter que

saber se o fato é verdade, se realmente houve abuso, se houve crime. A profissional

não somente tem a obrigação e a responsabilidade de proteger a criança, mobilizar

recursos de proteção na família, auxiliar a criança em seu sofrimento, como também

tem que investigar se houve mesmo o abuso sexual, se o fato é verídico, e assegurar

através de provas ou indícios a responsabilização e a punição do agressor:

“... agora, existe sim uma preocupação de você fazer uma afirmação, né, a de

que houve um abuso. Acho que a gente sempre vai ter que falar que houve, que há

indícios que houve.”

Esses dois olhares partem de discursos epistemológicos diferentes:

 O discurso do Direito Positivo, baseado no positivismo científico

(objetividade, previsibilidade, causalidade linear, simplicidade),

caracteriza-se pela tarefa de assegurar a ordem vigente, perdendo de

vista a tensão entre regulação e emancipação social, priorizando a

regulação como forma de conhecimento preponderante (Santos,

2001b). Nessa perspectiva, existe a busca de uma única verdade,

comprovada pelos fatos da realidade, através de uma objetividade em

que o observador tem a capacidade de fazer referência a algo

independente dele através da racionalidade. Seria o que Maturana

(1997) chama de um caminho explicativo da objetividade sem

parênteses em que uma afirmação cognitiva é valida porque faz


74

referência a algo independente do observador, e é o caminho

explicativo que percebemos no Direito.

 O discurso de uma epistemologia sistêmica (Vasconcellos, 2002),

caracterizado pela complexidade, contextualização, causalidades

recursivas, instabilidade dos sistemas e a inclusão do observador na

observação e na construção do conhecimento. Maturana (1997)

denomina essa forma de pensar de caminho explicativo da objetividade

entre parênteses, no qual a existência depende do observador e a

explicação é através da experiência. Nesse sentido, existem tantas

realidades quanto explicações possíveis, todas legítimas (multiverso).

Essa epistemologia fundamenta a prática dos psicólogos e assistentes

sociais da SEPAF.

A profissional, nesse contexto, oscila entre esses dois discursos, transitando

emocionalmente entre eles, o que configura sentidos muitas vezes contraditórios entre

si. Isso gera angústia e um senso de responsabilidade e obrigação em realizar um

trabalho bem feito, quase que perfeito, muito além das capacidades de qualquer

profissional:

É assim, uma sensação de impotência, você pode fazer então vamos fazer até

onde dá, mas a partir daí fica aquela sensação assim, meu deus e agora?... É uma

sensação de, eu posso fazer alguma coisa mas é tão pouco perto do tudo que essa

família precisa, então essa coisa que invade a gente assim, de impotência mesmo, de

sei lá?”
75

Dentro desse contexto de críticas e incertezas, as profissionais se agarram as

suas crenças, valores e mitos para assegurar-lhes algum norte para sua ação

psicossocial. No entanto, essas crenças e mitos são geralmente percepções de uma

atuação idealizada da profissão, quase perfeita, porém impossível de ser alcançada.

Essas crenças encontram-se em estreita relação com as emoções (Mahoney, 1991). A

elevada auto-exigência e cobrança dessas profissionais de um trabalho bem feito e

que de alguma forma possa incluir as duas dimensões explicativas acima descritas

desenvolvem sentimentos de insegurança e incompetência profissional, em que elas se

avaliam com rigidez e severidade. Essas obrigações excessivas e muitas vezes

impossíveis de serem conciliadas fazem com que se sintam incompetentes e incapazes

de lidar com TUDO. É um trabalho de Hércules que fatalmente leva a frustração e

sensação de fracasso, pois não têm como serem cumpridas todas as exigências e

cobranças instituídas pela subjetividade das profissionais. Assim, elas se percebem

enquanto incompletas, sempre em falta e não aptas a exercer suas funções:

“É o meu sentimento de insegurança, de assim, será que eu vou dar conta

disso aqui, entendeu... a minha primeira sensação é de insegurança, de medo, de não

dar conta”.

Por outro lado, essa necessidade de ter que lidar com tudo, uma crença na

onipotência do profissional, se insere nos discursos em que se privilegia a falta, a

situação sofrida do outro, em detrimento de percebê-lo enquanto um ser com

competências, capaz de utilizar seus recursos para enfrentar as adversidades e

dificuldades que enfrenta (Pereira, 2003). Além disso, mantém a crença de que não só

os membros da família não dão conta de resolver suas dificuldades como também

outras instituições (Hospital, Delegacia, Conselhos Tutelares, Serviço Social) têm


76

dificuldades em exercer suas funções, não desempenhando adequadamente seu papel.

Assim, as profissionais tomam pra si toda a responsabilidade de ajudar e resolver a

situação, uma vez que percebem a família e outras instituições incompetentes para

resolverem a situação do abuso sexual naquele momento.

3.1.3 – Conhecer, Refletir e ter Fé

As sensações de incompletude e inabilidade vivenciadas pelas profissionais

despertam nelas uma crítica extremamente pertinente a necessidade de uma maior

preocupação pessoal e institucional com a formação e capacitação contínuas dos

psicólogos e assistentes sociais para poderem trabalhar com o abuso sexual infantil.

O abuso sexual infantil, enquanto um fenômeno complexo e engendrado por

questões sociais, emocionais, relacionais entre outras, demanda do profissional que

entra em contato com essa realidade uma formação especifica, tanto a partir de

conhecimento teórico quanto da prática contínua. Esses conhecimentos geralmente

não são adquiridos nos anos de Universidade, o que leva a maior parte dos

profissionais que passam a trabalhar com a questão da violência e abuso terem que

buscar uma capacitação posterior para poder trabalhar. Acrescido a esse fato, não

existe uma política de capacitação da instituição nessa área para os profissionais que

ingressam no TJDFT a partir do concurso público, o que demanda uma iniciativa

pessoal ou até do Serviço para que a capacitação na área da violência sexual seja

realizada.

Com relação ao grupo entrevistado, a maior parte das profissionais tinha em

média três anos de prática na instituição jurídica e de prática profissional como um

todo. Mesmo diante de dois cursos pontuais e grupos de estudo com a temática da
77

violência, foi apontado que o medo e a insegurança nesses casos decorrem da falta de

estudo e formação especifica:

“Porque eu fico, assim, insegura com o que pode acontecer estando nas

minhas mãos, sem essas condições de tá assim realmente, por falta de estudo, por

falta, né, porque é uma coisa que eu tenho que estudar, não tem jeito, ninguém nasce

sabendo.”(essa fala é da profissional que nunca atendeu um caso de abuso sexual)

Ao mesmo tempo, elas afirmam que esse conhecimento, tanto teórico quanto

prático, e a experiência profissional (que ao longo da entrevista elas apontam como

algo que não possuem ou é incipiente) são recursos importantes que auxiliam no

trabalho com famílias com história de abuso sexual infantil. Elas contam basicamente

com três aspectos para auxiliá-las:

 Um primeiro aspecto é o conhecimento teórico-técnico e a experiência

que elas possuem ao chegar ao Serviço e também aquele conhecimento

que o Serviço tem para oferecer a elas, através de capacitações e

programas de qualificação. A experiência prática é importante, pois é a

partir das relações e interações recorrentes com as famílias que existe a

possibilidade de ampliar o domínio das interações possíveis na ação,

ampliando assim a possibilidade de mudança dessa dinâmica

(Maturana, 2001).

“A gente tem que correr atrás mesmo pra estudar”.

“Acho que uma coisa que pode ajudar é a coisa da experiência também...”.
78

 O segundo seria uma certa qualificação pessoal, um autoconhecimento,

que depende delas, por ser primariamente uma decisão pessoal de

procurar uma psicoterapia, mas também depende do Serviço no sentido

de como ele pode apoiar essas iniciativas, oferecendo um ambiente

favorável a manutenção das profissionais periodicamente em um

processo reflexivo e de autoconhecimento.

“A minha insegurança de estar atendendo um caso desse, além da falta de

conhecimento poderia assim, eu mesmo tenho que me analisar, porque eu não sei,

mas penso que poderia está relacionado com alguma situação que eu passei, uma

dificuldade de estar vivenciando aquilo de novo...”.

 E a terceira é uma questão metafísica, religiosa e de fé ao qual elas

lançam mão quando se encontram especialmente sem saber o que

fazer, em um beco sem saída. Elas buscam a ajuda de algo superior, de

Deus, para auxiliá-las.

“...eu sempre orei muito por eles, eu sou uma pessoa de muita fé, então

entrego muito os casos que eu atendo aqui nas mãos de Deus.”

É importante ressaltar que em diversos momentos as profissionais colocam

esses recursos em um mesmo nível de importância: o conhecimento científico,

teórico-prático, religioso e de senso comum. Em virtude da falta de qualificação e do

apoio e respaldo institucional, o conhecimento do senso comum, em especial a

religião e Deus, é um recurso possível e imprescindível de ser buscado e utilizado

para minimizar as sensações de desesperança, frustração e insegurança que o tema

evoca.
79

Diante da realidade da violência sexual, as profissionais necessitam de

subsídios teóricos e práticos que possibilitem a compreensão da amplitude dos

processos envolvidos e que as capacitem nas ações e intervenções durante o estudo

psicossocial. Diversos autores destacam não apenas a importância dessa formação

inicial, mas também a capacitação continuada, através de cursos, supervisões e apoio

no decorrer de seu trabalho (Furniss, 1993, Ravazzola, 1997, Antoni & Koller, 2001,

Mahoney, 1997). Ravazzola (1997) aponta inclusive que são os profissionais mais

jovens, com pouca ou nenhuma experiência, a maioria daqueles que trabalham

diretamente com famílias com dinâmicas abusivas nas instituições, jovens motivados,

porém com poucos instrumentos para produzir benefícios e para auto defender-se dos

danos provocados por essa problemática. Dessa forma, ressalta a necessidade de um

treinamento de habilidades perceptivas e instrumentais específicas para poder lidar

com a violência de forma que o trabalho seja eficiente e contribua para a interrupção

do ciclo abusivo.

A equipe que trabalha com violência familiar tem que ter uma intervenção

contínua em virtude também do desgaste emocional, angústias, tensão e frustrações

decorrentes do trabalho que em muitos casos desencadeiam doenças, somatizações,

estresse e prejuízos na qualidade de vida da profissional. Estudar, pesquisar, ouvir

outros profissionais e debater são ações que contribuem para o entendimento e para

aliviar a ansiedade e as frustrações advindas das limitações e dificuldades existentes

no trabalho (Antoni & Koller, 2001).

Na pesquisa constatamos que essa formação e capacitação têm um caráter

pessoal e individual, em que cada uma das profissionais decide a partir de uma

demanda pessoal, buscar ajuda terapêutica ou teórica para auxiliá-la em sua prática.
80

Porém, tem também um caráter institucional extremamente importante de promover,

possibilitar e estimular que seus servidores tenham capacitação teórica, pessoal e

prática para lidar com o abuso sexual infantil. Para isso, é necessária uma

conscientização da instituição sobre a importância desse apoio institucional contínuo

para a realização de um trabalho efetivo sem provocar desgastes emocionais e estresse

excessivo em seus funcionários. A necessidade de estar atento a saúde e ao cuidado do

profissional é imprescindível e precisa ser colocado em pauta nas discussões e

decisões do TJDFT e dos serviços desta instituição. O “cuidado com o cuidador”

precisa fazer parte de uma consciência institucional e dessa forma abrir um espaço

definitivo e garantido.

3.1.4 – Do Caos à Dúvida, da Dúvida à Confusão.

“Por que eu sinto assim, e daqui, eles vão sair daqui e, será que o juiz vai

determinar, será que ele vai seguir a nossa sugestão de que esse pai seja afastado

desse filho? Será que o juiz vai entender que isso precisa de uma denúncia do

Ministério Publico, será que o promotor vai estar lendo e vai está apresentando a

denúncia? Será que esse pai vai ser...”

As dúvidas expressadas pelas profissionais extrapolam o âmbito de uma

insegurança ou dúvida pessoal a respeito do tema. Elas denotam dúvidas a respeito de

seu papel profissional no contexto da instituição judicial, gerando uma insegurança

institucional, ou seja, de qual seria o seu papel em todo o trâmite processual da ação

judicial.

Ao longo da entrevista, as profissionais destacaram vários papéis que

acreditam desempenhar em seu trabalho: papel social de apoio à criança e sua família,
81

papel de proteção da criança, papel de investigação do abuso, papel de representante

da lei e papel simbólico da Justiça. Esses papéis misturam-se e confundem-se,

dificultando a construção de um sentido subjetivo do papel profissional do psicólogo

e do assistente social na Justiça.

Faleiros (2003) aponta três fluxos da denúncia de situações de abuso sexual de

crianças e adolescentes. O fluxo de defesa de direitos é responsável em defender e

garantir os direitos de todos os implicados na situação notificada, ocupando-se com a

garantia da cidadania (são os Conselhos Tutelares, Vara da Infância e da Juventude,

Ministério Publico, Defensoria Publica e Centros de Defesa). O fluxo de atendimento

tem a função de dar acesso a políticas sociais, prestar serviços, cuidar e proteger,

ocupando-se das pessoas de seu sofrimento e danos sofridos (Instituições de saúde,

educação, assistência). E o fluxo de responsabilização tem a função de responsabilizar

judicialmente os autores das violações dos direitos, proteger a sociedade e fazer valer

a lei, ocupando-se do processo legal e da sanção (Delegacias, IML, Varas Criminais,

Vara da Infância e da Juventude). Dentro dessa perspectiva, observou-se que os papéis

atribuídos pelas profissionais entrevistadas ao seu trabalho se misturam nesses três

fluxos, impossibilitando uma clareza maior de sua função: afinal, trabalhando em um

serviço psicossocial dentro do Tribunal, seu papel seria de garantia de direitos, de

prestação de atendimento, cuidado e proteção, ou comprovação e investigação dos

fatos, para sanção e responsabilização penal, ou são todas simultaneamente? Devido à

complexidade da situação de abuso sexual e dos inúmeros fatores envolvidos, não é

tão simples definir com clareza uma só especificidade de ação.

Sobre esse papel profissional, alguns autores destacam a importância da

intervenção psicossocial em processos de abuso sexual a partir de uma função


82

específica de promover a proteção da criança, a interrupção do ciclo abusivo e

restabelecer o simbólico para o cumprimento da lei (Ravazzola, 1997; Perrone e

Nannini, 1997; Cirillo e Di Blasio, 1991; Furniss, 1993; Thouvenin, 1997). Cirillo e

Di Blasio (1991) afirmam que faz parte do papel do psicólogo e do assistente social

não só realizar intervenções psicossociais, mas também denunciar situações de abuso

e maus tratos à autoridade judicial para que os procedimentos de proteção à

integridade física e psicológica da criança possam ser tomados. Para estes autores, o

apoio e a intervenção psicossocial representam um recurso, uma possibilidade,

somente após a ativação de um mecanismo judicial, demonstrando a necessidade de

integração desses serviços para que a denúncia possa se transformar em um

instrumento clínico para se conseguir um diálogo com a família que de outra forma

seria inalcançável.

Para Thouvenin (1997), o psicólogo tem que escutar a vítima de abuso, apoiá-

la e pensar em sua proteção, além de ter que se posicionar diante da obrigação legal

de advertir as autoridades judiciais.

Percebe-se, portanto, que a intervenção psicossocial tem uma função

específica dentre as várias atuações que são necessárias no processo judicial, desde

antes da ação ser ajuizada no Tribunal. Cada uma dessas instâncias ou serviços tem

papéis específicos e necessários, existindo uma complementaridade entre estes

trabalhos, sem a qual os casos de abuso sexual infantil muitas vezes ficam sem uma

resolução tanto judicialmente, quanto em termos psicossociais para a família. Porém,

as profissionais entrevistadas demonstraram incertezas sobre qual seria sua função

dentro da instituição, não conseguindo muitas vezes situar o seu trabalho dentro da

seqüência de intervenções que o processo judicial sofre ao longo do trâmite dentro da


83

Justiça. Elas têm dificuldades em perceber a complementaridade de seu papel. Essa

dificuldade de definir/perceber seu papel pode decorrer do fato de o trabalho

psicossocial na SEPAF ser um momento intermediário em todo o processo, no qual já

tiveram atuações anteriores (inquérito policial, advogados, petições, audiências) e

ainda vão acontecer outras (outras petições, audiência, julgamento, sentença) das

quais as profissionais não vão participar:

“Então é como se eu tivesse, é, como se eu pegasse o navio, usando a mesma

figura, e levasse ele até um porto, mas aquele não é o destino final, ainda tem muita

coisa pra ser feita pra aquele navio andar, e eu não vou saber se foi, se não foi, se

ficou, se não ficou”.

Dessa forma, as atividades dos setores dentro do TJDFT nesse processo

apresentam-se desconectadas, onde cada um faz a sua tarefa sem ter muitas vezes

conhecimento do que o outro faz, impossibilitando a percepção do processo como um

todo. Parece que existe uma cultura de desconexão, como Pakman (1999) define,

onde a prática é pautada por uma cegueira a questões sistêmicas mais amplas, não

enxergando determinantes significativos e fragmentando possíveis significados. Para

esse autor, essa desconexão se expressa como uma inabilidade de fazer pontes

pertinentes entre fenômenos relacionados e expressa-se emocionalmente como um

sistema que mina a solidariedade entre os profissionais dos setores e serviços

envolvidos no processo.

Essa cultura de desconexão propicia também o acirramento de lutas de poder e

competição entre profissionais, dinâmica já existente entre as diversas instâncias da

Justiça e que se reflete nos serviços psicossociais, o que torna mais complexo ainda a

possibilidade de uma integração entre os diversos serviços psicossociais e judiciais


84

dentro do Tribunal, como entre estes e outras instituições governamentais e não

governamentais que também fazem parte de todo o processo.

Os diferentes fluxos que se seguem nos casos notificados de abuso sexual

infantil fazem parte de uma mesma rede, embora tenham funções diferentes (Faleiros,

2003). Como eles tendem a atuar de forma fragmentada e paralela, com pouca ou

nenhuma articulação, muitas vezes ocorrem ações repetidas e desnecessárias,

decorrentes da confusão e superposição de funções. É importante e necessário que os

profissionais compreendam não só o que fazem, mas também quais os efeitos que

suas ações tem sobre o trabalho de outro profissional e sobre a direção geral da

complexa intervenção global (Furniss, 1993):

“... mas eu acho que eu só conseguiria me sentir aliviada em casos de abuso

se a gente tivesse um apoio na rede social maior. Assim, fosse melhor estruturado de

atendimento a essas pessoas, não só no hospital não, sabe, na delegacia, eu acho que

enquanto isso, eu só teria mais tranqüilidade com a mudança da sociedade mesmo,

sabe.”

Além disso, é importante ressaltar a falta de conhecimento jurídico por parte

das profissionais da área da psicologia e do serviço social que pode propiciar uma

atuação alienada e descontextualizada. Como as famílias com história de abuso sexual

infantil podem ingressar na Justiça por diversos caminhos, entre eles por uma Ação

Criminal ou por uma Ação de Família (ou por ambas), um conhecimento mínimo

sobre as diferenças processuais entre essas Ações é necessário para perceber em que

contexto atuamos e que significado nosso trabalho possui em cada um desses

procedimentos judiciais. Cada um desses procedimentos possui características

próprias e trâmites específicos para a finalização da ação: uma Ação Criminal precisa
85

de inquérito policial anterior e o julgamento é feito através de provas materiais que

comprovem o crime, o que não ocorre em uma Ação de Vara de Família. Saber onde

nos situamos e como o parecer psicossocial é inserido em cada um desses

procedimentos judiciais é outro fator importante para podermos desenvolver um

sentido de nossa ação enquanto sujeitos sociais na condição de agentes de mudança e

reflexão.

Essa desconexão, desarticulação das ações e falta de percepção de um

contexto institucional maior onde nossas ações estão inseridas aumenta a pressão

institucional sobre as profissionais, na medida em que papéis são superpostos e

demandas não referentes a nossa competência são exigidas, aumentando a angústia,

tensão e a frustração. A sensação de desesperança e de cansaço vivenciada pelas

famílias, à medida que passam por inúmeros serviços e instituições, é refletida na

equipe de profissionais que, da mesma forma, acaba se sentindo sozinha tendo que

resolver questões que inclusive não estão sob sua alçada.

Nesse contexto de dúvida e confusão, o processo judicial que chega na mão da

profissional da SEPAF é visto como algo negativo, uma “batata quente”, que gera

sofrimento a todos os envolvidos, que revitimiza a criança por ela ter que falar

inúmeras vezes sobre o abuso sofrido, que “desprotege a criança tentando protegê-la”,

e que gera desgaste emocional ao profissional:

“É uma coisa assim, ai meu Deus, às vezes é melhor não ter tido denúncia, ou

ter resolvido separar, sem processo, porque a família vai ter que falar mais de

quinhentas vezes, a família vai ter que vir ao fórum mais de duzentas vezes, não sei”.

Paradoxalmente, nas entrevistas, as profissionais também perceberam o

processo como algo positivo, um momento de possibilidades para a família e para a


86

criança, porém somente quando se consegue integrar as ações, inclusive com outras

instituições (Secretaria de Saúde, Secretaria de Assistência Social, Delegacia,

Universidades) de forma que a criança seja protegida, a família ajudada e o agressor

responsabilizado. Destacaram inclusive a importância das famílias e de seus membros

poderem ser encaminhados para atendimento na rede como um fator que gera

segurança para a profissional.

As profissionais entrevistadas apontaram como um fator de fundamental

relevância para um trabalho efetivo e para um apaziguamento emocional diante da

tensão e desgaste dos casos de abuso sexual, a necessidade de um trabalho em rede e

da articulação dos atores e organizações para uma ação mais conjunta e integrada.

Como essa integração ainda é incipiente, na qual os fluxos e serviços se manifestam

de forma paralela e fragmentada (Faleiros, 2003), a angústia e o desgaste emocional

permanecem, levando a profissional novamente em um beco sem saída: para ficar

tranqüila e segura, a profissional precisa ter certeza, saber que o abuso realmente

ocorreu. No entanto, como elas mesmas afirmam, a situação do abuso sexual nunca

vai apresentar uma certeza ou configurar uma verdade provada, principalmente se as

profissionais pautam suas ações em um caminho explicativo da objetividade entre

parênteses, na qual não existe realidade independente do observador, única e passível

de ser comprovada:

“Acho que a gente nunca vai poder afirmar com todas as letras que houve o

abuso”.

Para elas, dependendo da resolução e do encaminhamento do processo, há um

apaziguamento de sua angústia e todo o sofrimento vai ter valido a pena.


87

3.1.5 – As Duas Faces da Instituição.

O TJDFT, enquanto contexto de atuação das profissionais entrevistadas,

aparece na percepção destas de forma contraditória, gerando ora sentimentos de

satisfação e apoio, ora sentimentos de abandono, interferência e descaso institucional.

A instituição foi percebida pelas profissionais como facilitadora do trabalho

psicossocial na medida em que oferece um contexto de construção de uma

metodologia especifica, que estimula e propicia cursos e grupos de estudo e que

realiza convênios com Universidades para encaminhamentos. O recurso mais

importante de apoio e suporte do trabalho é a equipe:

“Eu acho que o trabalho em dupla, eu acho que auxilia, o fato de você está

com outro profissional... a supervisão”.

O trabalho em equipe possibilita ampliar as alternativas, contribuindo para a

sensação de alívio por parte das profissionais diante do mar de incertezas, angústias e

confusões que o caso de abuso suscita. A oportunidade de trabalhar em dupla e de ter

o apoio da equipe como um todo nas supervisões ou estudos de caso propicia um

contexto de compartilhamento das angústias e sofrimentos vividos no cumprimento

das tarefas profissionais.

As explicações do profissional sobre o abuso, sobre as relações dos envolvidos

e sobre tudo o que envolve a sua intervenção, tem a ver com o profissional, aquele

que observa, aquele que explica. O seu explicar vai depender de sua subjetividade, do

que aceita ou não e das emoções envolvidas nesse aceitar (Maturana, 2001). Como

partimos do pressuposto que a habilidade de compreender a experiência da família e

de seus membros está sempre restrita a própria extensão da experiência pessoal do

profissional, o trabalho em conjunto com outros possibilita a ampliação dessas


88

percepções possíveis, onde nossos valores, crenças e opiniões são compartilhados e

discutidos, pois o olhar técnico do outro é essencial para a análise das dificuldades

encontradas na relação com as famílias (Campos, 2001). É notório que sempre existe

mais a se ver daquilo que é visto por alguém, várias versões diferentes sobre uma

mesma situação (Andersen, 1996), portanto o trabalho em equipe propicia um

contexto de reconhecimento de outras visões e realidades (multiverso), ampliando a

reflexão sobre a atuação e as possibilidades de ação, no momento em que as emoções

dos profissionais também podem ser reconhecidas e compartilhadas através do

“espelho” que o outro propicia de suas ações.

Por outro lado, essa mesma instituição judiciária foi considerada lenta,

emperrada, pouco atenta as necessidades dos profissionais da área psicossocial,

demandando uma quantidade grande de trabalho (número grande de processos) em

pouco espaço de tempo (prazos de 20, 30 e 45 dias), com falta de recursos materiais e

humanos, que atrapalham e dificultam o trabalho:

“Agora essa coisa do prazo e do número de processos que entram e a equipe

reduzida, isso é um fator que, é um atrapalhador, que a instituição parece que está

assim...., não está vendo isso”.

“Mas nessa situação me angustia muito ter que cumprir um prazo, ter que

cumprir uma forma de atendimento e dar conta de tudo aquilo que vem pra gente, é

muita coisa”.

O maior entrave apontado foi o prazo em que é exigido que se realize o estudo

psicossocial dos casos de abuso sexual. Esse prazo pode ser estabelecido pelo Juiz ou

pelo Serviço e segue uma concepção de maximizar em menos tempo, uma vez que no

imaginário social a Justiça é considerada extremamente lenta.


89

A dificuldade de conciliar os diversos tempos – da família, da profissional, da

instituição, do processo – pode ser analisada pelas diferentes concepções

paradigmáticas do tempo, decorrente dos diferentes caminhos explicativos de atuação

anteriormente referidos: o tempo como algo relativo, irreversível, que depende do

observador; e o tempo absoluto, concreto, que flui de maneira uniforme e

independente do mundo material. O tempo linear traz uma noção de progresso

contínuo que marcou a modernidade, remetendo-nos ao aspecto do tempo enquanto

metáfora econômica que se demanda a necessidade e a eficiência temporal (Macedo,

2004). O tempo institucional e processual é constituído enquanto absoluto e linear e

entra em contradição ao tempo relativo e subjetivo das famílias, de cada membro e

dos profissionais envolvidos.

Esses tempos coexistem, diferentes dentro de uma unidade de trabalho, e

aumentam a tensão, a angústia e o desespero das profissionais diante de situações tão

complexas e multifacetadas como a violência sexual.

3.1.6 - A Criança é a Bússola.

“...claro que existe angústia do mar, sem rumo, sem bússola, a bússola pra

mim vai ser inicialmente a fala da criança.”

A criança que sofre o abuso sexual tem um papel fundamental na constituição

do sentido profissional das psicólogas e assistente social entrevistadas. Ela é vista

como alguém desprotegida, indefesa, que necessita de um adulto que a proteja ou que

interceda por ela, evitando ou interrompendo o ciclo de abuso sexual. As entrevistadas

atribuem para si esta tarefa de proteção e atenção à criança que está nessa situação de

risco, gerando angústia caso não consigam suprir essa expectativa de proteção e
90

evitação da situação abusiva. Parece que existe uma identificação maior das

profissionais com as crianças vítimas de abuso, o que faz com que se mobilizem

emocionalmente quando entram em contato com seus relatos e seus sofrimentos.

Essas emoções constituídas na relação com a criança são fundamentais para que haja

a possibilidade de interações recorrentes e são elas que vão orientar e especificar o

campo ou domínio em que as ações vão se coordenar, constituindo o sentido para a

ação profissional (Maturana, 1997, 2001, 2002).

Muitas vezes as emoções expressas pelas profissionais com relação às

crianças refletem as sensações e emoções destas próprias diante da situação abusiva:

medo, confusão e desorientação. No entanto, essas emoções ao mesmo tempo em que

geram dificuldades e ansiedade no encontro com as crianças, motivam o trabalho e a

busca de soluções para as situações de abuso.

Essa motivação decorre em grande parte da credibilidade que o profissional

assegura à fala da criança. As profissionais repetiram ao longo da entrevista que é o

que a criança diz ou faz durante o estudo psicossocial o que dá segurança às ações

técnicas, sendo que o que ela fala é sempre considerado uma verdade. Nesse sentido,

uma das entrevistadas falou sobre casos de abuso atendidos por ela:

“eu parti do princípio de que a criança estava falando a verdade”.

É interessante notar que mesmo a criança sendo percebida como indefesa,

tendo que ser protegida, é ela, suas atitudes, expressões emocionais e fala, que

orientam e dão tranqüilidade a atuação psicossocial. A criança representa uma saída

para a confusão e desorientação do processo em que ela é configurada legalmente

como vítima. Na fala das entrevistadas, a criança se apresenta como a única, entre os
91

atores das situações de abuso sexual infantil (pai, mãe, entre outros) que tem um

papel, uma função ativa no processo judicial, orientando as ações dos profissionais.

Essa percepção é de certa forma positiva porque vê a criança em um papel

ativo, enquanto um sujeito de direito, e não de forma passiva em todo o processo,

apresentando uma coerência com o pressuposto preconizado no Estatuto da Criança e

do Adolescente. A criança, ao ser vista enquanto sujeito de direitos, é considerada em

seu sofrimento, suas vivências e suas necessidades, propiciando-se um espaço de

diálogo com ela. Isso nem sempre ocorre em nossa sociedade na qual a criança é

muitas vezes desacreditada e desqualificada:

“Eu acho que o sentimento das crianças deve ser justificativa suficiente para

o juiz entender que 10 e 12 anos precisam de ser respeitados no processo”.

Vargas (1999) aponta que nos casos de crimes sexuais, como os exames de

perícia médica são raramente conclusivos, a palavra da vítima torna-se um elemento

fundamental a ser trabalhado na construção de evidências. No entanto, esta autora

percebe uma menor credibilidade por parte dos profissionais, operadores do Direito,

conferidas a narrativa das vítimas, especialmente quando existe proximidade entre

elas e os agressores, como no caso de pai/padrasto e filha. Essa desqualificação da

fala da criança leva a inquéritos não conclusivos, arquivados, e a não resolubilidade

do caso, tanto no âmbito psicológico quanto legal.

Faleiros (2003) acrescenta que o reflexo do contexto sócio-cultural na família,

caracterizado pelo autoritarismo e o machismo, que cria um contexto de silêncio,

segredos e cumplicidades nas situações de abuso sexual infantil, desqualifica as

revelações verbais e não verbais das vítimas, negando evidências e sinais, em nome

de fidelidades, interesses de diversas ordens, medos, sigilos profissionais e de Justiça.


92

Dessa forma, diante desse contexto, a crença na fala da criança, a construção de um

contexto de diálogo e ajuda e o reconhecimento da criança enquanto um sujeito ativo

e possuidor de direitos constituem aspectos importantes para a intervenção e

resolubilidade dos casos de abuso sexual infantil. Ao acreditar na criança e considerá-

la enquanto sujeito, as profissionais entrevistadas são um terceiro protetor, que

permite que a palavra da criança, tão abafada e desqualificada, se torne uma palavra

social, iniciando assim um processo sócio-jurídico que traga soluções para a situação

de risco da criança (Koshima, 2004).

Através desse papel ativo atribuído a criança pelas profissionais entrevistadas,

percebeu-se que é a criança que sofre violência sexual que dá sentido ao processo

judicial. As relações estabelecidas entre a profissional e os outros atores do processo

geram angústias e inseguranças que remetem a falta de algo, a um vazio, o que na

relação com a criança não acontece, pois é ela quem fornece credibilidade, segurança

e tranqüilidade à profissional, constituindo o norte das ações psicossociais. É no

contato com a criança que a profissional constitui o sentido para o seu fazer, para sua

ação.

O sentimento de confusão atribuído aos casos de abuso sexual se dissipa um

pouco no contato com a criança, uma vez que é na relação com ela que se torna claro

o papel da profissional no contexto judiciário. A clareza desse papel está em relação

ao contrapapel da criança, mais do que aos outros atores do processo:

“Dependendo de como ela (a criança) demonstra, lógico, a afetividade, se ela

está deprimida, se ela está abatida, tudo o que acompanha a fala da criança, eu não

tenho tanto receio assim de dizer (que houve abuso). Porque aí, naquele momento, é
93

como se eu soubesse, não, é pra lá que esse barco tem que ir, então agora eu vou com

segurança”.

A criança dá sentido à atuação da profissional, pois é na relação com ela que a

psicóloga e a assistente social reencontram o seu papel profissional, que é de uma

ordem psicossocial e não de uma ordem investigativa ou punitiva. Quando não há o

contato com a criança durante o processo, a profissional encontra insegurança, falta, e

assim precisa julgar e punir para apaziguar sua angústia. Quando há a presença da

criança, é na relação com ela que a profissional restabelece uma coerência interna

consigo mesmo num papel protetivo que corresponde mais a um ideal de Justiça e um

ideal profissional. A criança dá o sentido ao trabalho e ao dar este sentido, esclarece o

papel profissional, tornando-se a protagonista do processo judicial.

No entanto, esse papel protagonista da criança no processo judicial traz

consigo um impasse. Atualmente, os profissionais que trabalham com essa

problemática, seja na sociedade civil ou nas instituições públicas, vêm discutindo a

necessidade de se preservar a criança do constante desgaste que os processos de abuso

sexual promovem. Os procedimentos policiais e jurídicos demandam muitas vezes

que a fala da criança seja repetida e exposta diversas vezes, criando um contexto de

revitimização da criança que inicialmente deveria ser protegida (Faleiros, 2003;

Costa, Penso, Gramkow, Santana & Ferro, 2003; Santos, 2002). Assim, existem

reflexões e iniciativas no sentido de que a criança fale sobre o ocorrido apenas uma

vez, na Delegacia de Proteção da Criança e do Adolescente e que essa fala seja

gravada e seja considerada como prova material em todo o processo. Essas reflexões

ajudam a resolver a questão da revitimização da criança, mas se ela não for mais a

protagonista do processo judicial, como o sentido do papel profissional dos


94

psicólogos e assistentes sociais será constituído? Quem desempenhará o contrapapel

que dá sentido a prática psicossocial? Se em termos da emoção é a criança que

constitui o sentido profissional, em termos do processo como que se vai resolver a

questão da revitimização?

3.1.7 – Os Coadjuvantes

Os outros participantes na situação de abuso sexual infantil surgiram de uma

forma bastante periférica e superficial, ocupando um papel coadjuvante em todo o

drama familiar e judicial. As profissionais, ao se referirem ao pai (o que comete o

abuso), expressaram emoções elementares e primitivas, como reações de raiva, medo,

indignação, entre outras. Pela identificação com a criança, o contato com essa

agressão e com o agressor suscitou essas reações emocionais primitivas, semelhantes

às emoções sentidas pelas crianças:

“Eu não conseguia me dirigir a pessoa (ao pai abusador), a ele enquanto

pessoa”.

“E, assim, o sentimento, o que eu senti assim, foi assim, inconformação com a

situação e raiva até de estarem fazendo isso com pessoas indefesas né... é como se

essa pessoa estivesse com um punhal, ameaçando a vida”.

As entrevistadas percebem o pai, agente da violência, no que ele tem de

potencial ofensivo, nas suas faltas enquanto adulto que deveria proteger a criança, um

adulto irresponsável, desrespeitoso e cruel. Diante dessa percepção, a não

responsabilização ou punição do abusador gera uma sensação de insegurança,

fracasso e impotência diante da situação em que a criança se encontra. As ações

necessárias para que haja uma maior tranqüilidade para as profissionais e menor
95

sensação de frustração diante do trabalho com famílias com dinâmica abusiva são a

responsabilização e punição do pai agressor, remetendo-as a uma função da Justiça de

sanção/punição e reparação por parte daqueles que agrediram a criança.

Nessa primeira entrevista, as reações emocionais com relação ao pai agressor

trouxeram a tona crenças sociais a respeito do abusador enquanto alguém cruel e

perverso, merecedor de punição. Apesar do conhecimento de que os homens que

cometem abuso sexual em sua maioria são homens da comunidade, socialmente

adaptados e reconhecidos, a violência sexual a crianças e adolescentes suscita o

imaginário do “monstro”, muitas vezes desviando a atenção dos profissionais de que

esses agentes da violência também são pessoas em sofrimentos e sujeitos de direito. A

resolubilidade das situações de abuso sexual infantil não se esgota com a prisão e

punição dos acusados (Faleiros, 2003), mas também na defesa dos direitos e o

atendimento às pessoas envolvidas nas situações de violência sexual e de seus

sofrimentos, inclusive do genitor agente da violência. Sem uma noção de

resolubilidade mais ampla, que inclua também o atendimento psicossocial e/ou

terapêutico ao pai agressor, existe a possibilidade da violência se perpetuar, na relação

entre o acusado e a instituição policial e presidiária, ou voltar a ocorrer na medida em

que ele cumpra sua pena e retorne ao convívio social e familiar.

A mãe, outra coadjuvante, também é percebida no papel de alguém que não

protegeu, que permitiu de alguma forma que o abuso se perpetuasse. Ela é vista numa

situação semelhante ao pai, sendo cobrada por sua falta, o que gera angústia no

profissional.

“...vou ficando angustiada por causa da mãe, de não saber, de pensar que não

conseguiu fazer nada, em impedir”.


96

Ë interessante notar que apesar de todas as entrevistadas serem mulheres, elas

não expressaram uma identificação com a mãe/mulher e também não a percebem

enquanto vítimas da situação. Essa não identificação com a mãe talvez decorra do

contexto da prática psicossocial dessas mulheres no judiciário, no sentido de que

refletem o emocionar que perpassa as relações na Justiça. No Tribunal de Justiça, as

emoções que constituem os espaços de ações e que se entrelaçam com a linguagem,

estabelecem uma cultura institucional que reflete a cultura ocidental, pautada por

emoções de apropriação, desconfiança, cobrança, controle, suspeição e punição. Para

Maturana (1997), esse modo de emocionar é característico da cultura patriarcal,

diferente de uma possível cultura matrística, na qual o modo de emocionar estaria

relacionado à cooperação, participação, confiança e respeito mútuo. De alguma

forma, essas percepções das profissionais refletem essa cultura institucional em que as

emoções que perpassam as relações com os pais e mães de famílias com situação de

abuso sexual refletem o controle, a hierarquia e o poder.

3.2 – Análise da Segunda Entrevista

Com a estimulação proporcionada pela discussão em grupo sobre as

emoções, sentidos e significados a respeito da prática na Justiça com famílias com

situação de abuso sexual infantil, as profissionais da SEPAF que vivenciaram tal

experiência passaram por um processo reflexivo de suas atuações e de seu emocionar

no desempenho de suas funções profissionais, proporcionando a ampliação das

questões discutidas e uma maior clareza das problemáticas levantadas. A partir da


97

primeira entrevista, as profissionais foram revendo suas crenças, seus conceitos e suas

práticas através da escuta dos outros e de si mesmas.

Conversas e reuniões paralelas no período entre as duas entrevistas

evidenciaram que o ocorrido no grupo permanecia ressoando em cada uma das

profissionais, que traziam para mim e para as colegas mudanças, percepções e

‘insights’ a respeito dos atendimentos aos casos de abuso sexual infantil. Algumas

profissionais chegaram a me procurar pessoalmente para fazerem comentários sobre a

importância do grupo focal para a reflexão de sua intervenção. Um exemplo foi o

relato de uma das profissionais entrevistadas de como o grupo a tinha ajudado em sua

prática, fazendo-a refletir sobre algumas questões ainda nebulosas para ela e

modificando a sua atuação. Contou que, após a primeira entrevista de grupo focal,

sentiu-se mais segura para “escutar” a criança, ficando claro para ela a ocorrência do

abuso sexual, o que se refletiu no parecer técnico. Nesse caso, soubemos pelo retorno

da sentença do Juiz que o parecer técnico foi claro, bem elaborado e o suficiente para

que ele acionasse os mecanismos de proteção à criança e de sanção ao pai agente do

abuso. Durante a segunda entrevista, esta profissional relatou ao grupo o que ocorreu:

“Depois que a gente teve o primeiro grupo eu fiquei muito na cabeça com o

seu relato, daquela menina, do avô, aí depois eu atendi um caso com a L. que a

criança ela teve, uma criança de três anos, o atendimento foi muito impactante ... foi

o meu relatório mais claro de dizer que eu tenho certeza que seja abuso sexual dessa

menina, sabe por que sempre eu fico assim não, pensa numa coisa ou outra, que pode

ser que não, não tenha tido, e esse não, foi o caso mais claro pela forma como essa

criança agiu.”
98

O processo reflexivo estimulado pelo grupo focal proporcionou às

profissionais reconhecerem suas emoções, ampliarem suas percepções, passando a ter

uma maior consciência de onde estão, do contexto e da função de seu trabalho na

instituição (Freire, 1976). O espaço de conversação proporcionado pelo grupo

possibilitou que as profissionais falassem sobre questões que trazem sofrimento e

angústia, permitindo a elas olharem para si mesmas através dos olhos das outras

(Pakman, 1999). Segundo Afonso (2003), para que o processo de reflexão seja

expandido para uma elaboração, o grupo tem que produzir ‘insights’ sobre sua própria

experiência a partir de sua reflexão e articular essa reflexão aos conflitos e realizações

vividos na rede grupal. As profissionais tiveram tempo, oportunidade, contexto e

relação que proporcionou que elas avançassem de uma experiência emocional mais

elementar e primitiva, centrada no eu, para uma visão mais ampliada de suas relações,

elaborando e complexificando a experiência vivida. Esse processo centrado na

conversação pôde ajudar as profissionais a entender melhor suas emoções frente ao

abuso sexual e ao trabalho na instituição jurídica, proporcionando mudanças em suas

ações (Maturana, 1997). É na relação consigo mesmo e na relação com o outro que

ocorrem os avanços na construção de significados e na constituição do sentido de suas

práticas.

Todo esse processo parece ter sido estimulado pela metodologia de entrevista

de grupo focal reflexiva. À medida que se propõe a realizar uma pesquisa para

construir conhecimento acerca da qualidade de um fenômeno complexo, como o

emocionar na Justiça diante das situações de abuso sexual infantil, proporciona-se um

espaço de reflexão, elaboração e mudança, problematizando a realidade conflitiva e

implicando um enfrentamento dos sujeitos com essa realidade (Freire, 1976). Esse
99

processo mobiliza os sujeitos pesquisados, o grupo e a instituição, além de abrir novos

questionamentos e problemas.

Vale ressaltar a importância ética dessa pesquisa no momento em que cria um

espaço alternativo de conversação para refletirmos sobre as condições de nossas vidas

e de nossas práticas, a fim de sairmos de uma “ingênua” atuação diante do contexto

em que trabalhamos. Minha posição enquanto pesquisadora e sujeito do grupo

pesquisado foi e ainda é de abrir um espaço de discussão, comunicação, reflexão

crítica e de criatividade, estimulando uma percepção que é capaz de perceber-se

(Freire, 1976). Dessa forma, a reflexão visaria possibilitar mudanças que privilegiem

a saúde e a qualidade de vida das profissionais, a promoção de uma atuação

compromissada com a família e seus membros em um contexto de compreensão,

proteção e escuta, e uma prática reflexiva, aceitando o outro como legítimo outro na

relação (Maturana, 1997). Esse espaço reflexivo é um processo social e político, na

medida em que é reflexivo, crítico e tem como um dos objetivos ampliar nossas

habilidades de atuarmos no mundo, dentro das restrições que temos, ao invés de

sermos representantes alienados de ‘scripts’ que nos são escritos (Pakman, 1999).

A partir dessa reflexão, apresentarei a seguir zonas de sentido que foram

ampliadas e elaboradas na segunda entrevista. Os conteúdos das zonas de sentido “As

emoções que fundam o domínio da ação profissional”, “Ai meu Deus, e agora?”,

“Conhecer, refletir e ter fé” e “Do caos à dúvida, da dúvida à confusão” surgiram em

diversos momentos na segunda entrevista de uma forma bastante semelhante da

primeira. Portanto, não as apresentarei novamente, me detendo na discussão das

categorias que tiveram um avanço na elaboração, de uma forma mais global.


100

3.2.1 – Assumindo o Paradoxo da Instituição

A visão contraditória da instituição surgiu novamente em vários momentos da

segunda entrevista, apresentando aspectos positivos, como a possibilidade de uma

intervenção protetiva e o trabalho em equipe, e aspectos negativos, como a falta de

apoio da instituição, semelhante ao discutido na análise da primeira entrevista. No

entanto, essa dualidade apresentou-se de forma diferente: não mais como algo externo

à profissional, passível de condenação ou aprovação por sua parte, mas como algo

interiorizado no seu próprio papel profissional. A instituição não era mais vista como

algo externo, mas estava “dentro” das profissionais, constituindo também sua

subjetividade e seu sentido profissional. Assim, como González Rey (2003) afirma, as

relações estabelecidas entre as profissionais com a instituição, com as famílias, entre

elas na equipe e consigo mesma, suscitam emoções que fazem parte da constituição

da subjetividade individual de cada uma das profissionais, que contém também em si

uma dimensão social e institucional. A subjetividade individual é construída nas

relações estabelecidas no social, contribuindo também para a subjetividade social na

medida em que se participa desse contexto e se está inserida nele. Dessa forma, ao

perceberem a instituição enquanto contexto de responsabilização e proteção, as

profissionais também se perceberam como alguém que protege e responsabiliza em

sua intervenção, possuindo uma polaridade na própria execução de sua função. Esta

profissional não é independente, ela é a instituição, conjugando das mesmas

contradições e paradoxos:

“...mas eu acho que a responsabilidade da gente de estar numa instituição, eu

acho que isso amplia, porque ela veio aqui para buscar proteção também, não só a

elaboração do sofrimento e tudo, mas ela veio para que pudesse haver um ponto
101

final, ou uma definição, uma resolução com relação a situação que ela está

vivenciando. Agora quando se fala assim também que suscita uma coisa de proteção,

além de ser pelo fato que a gente está na instituição, representando a instituição,

então automaticamente eu me sinto assim como se eu estivesse ali mesmo para fazer

isto.”

A confusão inicial de qual função assumir – a da Psicologia ou do Direito –

adquire um novo sentido, no momento que as profissionais assumem, na segunda

entrevista, a função paradoxal, inerente à prática do psicólogo e do assistente social

no judiciário. Não desempenham somente a função de psicólogos e assistentes sociais,

mas também o papel da Justiça, da instituição em que trabalham. Para Freire (1976), a

reflexão e a problematização de uma realidade conflitiva e contraditória, promove

uma mudança de percepção na medida em que ocorre um novo enfrentamento dos

sujeitos com suas realidades. Essa mudança de percepção implica uma apropriação do

contexto, uma inserção nele, o que parece ter ocorrido com as profissionais a partir do

enfrentamento e reflexão de sua realidade profissional no judiciário.

Portanto, nessa segunda entrevista, as profissionais avançaram na

compreensão de seu papel e de sua realidade institucional, se incluindo nesse

contexto. Ao se incluírem, assumem para si a instituição, e dessa forma também

assumem a função paradoxal, o que representa uma dificuldade, na medida em que

ocupar pólos opostos gera angústia, insegurança e incerteza. As profissionais saem de

uma relação dual para uma relação de integração e ao ocupar emoções diferentes

simultaneamente não escapam da angústia de viver e trabalhar nesse paradoxo.

Mahoney (1997) destaca essa dificuldade quando afirma que a tolerância à


102

ambigüidade é uma habilidade crucial à prática e o seu desenvolvimento não emerge

de forma rápida e sem angústia para o profissional.

“É muito difícil a relação com a família quando a gente não tem perspectiva

mesmo né, de um apoio externo, mas quando a gente vê que existe uma perspectiva

de apoio da família né, de querer ser ajudada, acho que a relação fica um pouco

mais fácil, menos sofrida talvez né.

Diminui um pouco a sua carga diante da comunidade né?”

Na entrevista, percebeu-se que as profissionais tentam resolver esse paradoxo

através do encaminhamento da família e de seus membros para outros profissionais da

rede de atendimento, fora do contexto judicial. Como a formação do psicólogo e do

assistente social enfoca a atenção ao psíquico e ao social, a profissional vive uma

confusão uma vez que tem que considerar, ao mesmo tempo, o psíquico, o social e o

jurídico. No sentido de resolver essa angústia, encaminham para atendimento

psicológico ou social fora da Justiça, o que traz mais tranqüilidade e segurança. Mas

na medida em que não há uma rede de atendimento funcionando de forma eficiente e

integrada, como discutido na zona de sentido “Do caos à confusão, da confusão à

dúvida”, as profissionais não conseguem resolver essa função paradoxal.

Uma outra questão que surge ao assumir o paradoxo institucional é a

ressonância da relação hierarquizada e de poder característica da instituição judiciária.

Se a instituição está introjetada na profissional, então a sua estrutura hierárquica acaba

se refletindo no trabalho e na prática, na qual a profissional entra, querendo ou não,

numa posição diferenciada na relação com a família, assumindo um status de

autoridade que a Justiça lhe outorga e pela qual a família a percebe. Isso pode ser

negativo no sentido de reproduzir a relação de poder e abuso com a família,


103

privilegiando o controle e a punição e dificultando um acolhimento ao sofrimento,

mas também pode contribuir no sentido de oportunizar uma ação protetiva e

mobilizadora da família, buscando uma resolução da situação do abuso sexual tanto

no âmbito legal como no psicossocial.

Em virtude dessas emoções de desconforto e angústia suscitadas pela vivência

do paradoxo, percebe-se muitas vezes uma resistência por parte de psicólogos e

assistentes sociais do judiciário em admitir essa função paradoxal. Preferem manter-se

no papel de compreensão e acolhimento, privilegiando apenas o aspecto psicossocial,

a assumir também a função de intervenção protetiva e de responsabilização. A

assunção desse paradoxo não resolve o paradoxo, mas permite que se reflita sobre ele,

reconhecendo as emoções resultantes dele e permitindo agir de forma a contemplar

esses opostos. A reflexão e discussão permitem aclarar a comunicação dentro desse

paradoxo, possibilitando seu manejo através de uma metacomunicação, como

Winston (1993) aponta. A vivência do paradoxo não necessariamente é negativa ou

patológica (Winston, 1993), precisamos aprender a manejá-lo, através da integração

desses pólos e do movimento de oscilação entre essas duas funções, o que vai exigir

da instituição o reconhecimento do paradoxo e a continência a equipes psicossociais

que trabalham diariamente nele.

3.2.2 – Mudanças Possíveis

Uma outra elaboração percebida na segunda entrevista com relação à

instituição foi a ampliação da visão contextual e sistêmica da instituição e de suas

relações por parte das profissionais. A percepção da desconexão e da fragmentação

dos procedimentos dos serviços e setores que atuam no processo de casos de abuso
104

sexual infantil e a noção de uma falta de conhecimento da continuidade do processo

após a intervenção do psicossocial, permitiu que as profissionais refletissem sobre a

cultura institucional e o contexto social em que a instituição esta inserida:

“Está em outra limitação que você estava falando né da, do seu atendimento

sabendo de você mesmo e com a instituição que não oferece nada além e aí me veio

uma coisa com a nossa sociedade mesmo assim, o Brasil ele não tem recurso mesmo

para você está trabalhando essas crianças”

“E também é uma instituição jurídica né, e aí ele só olha os aspectos

jurídicos, mesmo a gente fazendo o nosso trabalho, a gente ainda está fazendo em

função do juiz, e aí eu percebo um distanciamento muito grande entre nós, os

profissionais, assistentes sociais e psicólogos e o mundo jurídico”.

Para Maturana (1997), as conversações estabelecem uma rede recorrente que

constituem uma cultura. No caso de uma instituição, as emoções que constituem os

espaços de ações de seus profissionais e que se entrelaçam com a linguagem,

constituem a cultura desta instituição. A Justiça, um subsistema de um contexto sócio-

cultural maior, reflete em suas interações o emocionar e a linguagem de nossa cultura

ocidental, pautada por emoções de disputa, competição, controle, hierarquia e poder

(Maturana, 1997).

Essa forma de se relacionar constitui uma dinâmica que privilegia uma

forma de atuação mais repetitiva e burocrática, desencarnada de um processo

reflexivo e criativo (Pakman, 2003). Essa prática reflete uma competitividade,

otimização de recursos e uma dinamização em que a maior quantidade em menor

tempo é desejada e aplaudida, preocupando-se mais com essa dinamização do que

com o humano e sua qualidade. Perpetua-se assim, como Pakman (1998) afirma, a
105

socialização de uma vida profissional ideologicamente cega, tornando os sujeitos

sociais em objeto sociais que desempenham “papéis alienados e alienantes, ditados

pelas burocracias que dão forma à vida contemporânea” (p.19).

Da mesma forma, as característica das dinâmicas abusivas presentes nas

famílias se refletem nas relações institucionais, uma vez que também são pautadas

pelo mesmo emocionar de nossa cultura de apropriação, competição e poder. Isso gera

uma dupla sensação de impotência e desânimo, desencadeadas tanto na relação com a

família quanto com a própria instituição. Esse desânimo em relação às limitações da

instituição leva muitas vezes a uma apatia, justificada pela carga de trabalho existente,

em um contexto ainda paradoxal, que qualifica o trabalho psicossocial, porém não o

coloca como uma das prioridades de serviço à população, uma vez que o Tribunal

“não é a nossa casa (dos psicólogos)”. As pressões, vindas dos juízes, das chefias, dos

prazos dos processos, das famílias em sofrimento, da auto-exigência de um trabalho

de qualidade, esgotam e adoecem o serviço, ao mesmo tempo em que mobiliza o

sistema a repensar a função do psicossocial no TJDFT e sua atuação frente às famílias

e aos juízes.

Como Freire (1976) e Levy (2001) colocam, a contradição surge do próprio

sistema (instituição), que ao mesmo tempo tem uma força conservadora, produtiva de

códigos institucionais, que mantém a ordem e a estabilidade, e uma força que gera

caos, impulsiona transformações e proporciona mudanças (Baremblitt, 1994). Na

instituição existe o instituinte, uma potência, um movimento de transformação

constante (processo dinâmico), e o instituído, que é o resultado do instituinte e que

apresenta resistência à mudança (resultado, de caráter estático). Portanto, existe um

processo dialético entre esses componentes, onde o instituinte materializa-se no


106

instituído e este não seria funcional se não estive aberto à potência instituinte

(Baremblitt, 1994).

A mudança, então, surge no interior da estrutura de conflitos de uma

determinada instituição e o ator social surge no contexto de uma crise estrutural,

acreditando que as “coisas poderiam ser diferentes”. Surgem da antiga ordem como

portadores do desejo de uma nova ordem social e, nesse sentido, a experiência

compartilhada que caracteriza e constitui o grupo não se dá em um vácuo, mas nasce

no interior de uma ordem estruturalmente definida e em conflito com ela.

O pedido vindo das próprias profissionais a respeito da necessidade de um

grupo reflexivo sobre a sua prática reflete esse momento de mudança e a dialética

existente entre as forças mantenedoras e as transformadoras. No momento em que o

grupo reflexivo é proposto e legitimado tanto pela direção quanto pela corregedoria

do Tribunal, apenas 6 das 18 profissionais se disponibilizam a participar de tal grupo.

É difícil priorizar essa reflexão em um contexto que, qualifica, mas não prioriza o

papel psicossocial na Justiça.

Ao mesmo tempo pode-se perceber que, ao tratar de questões sobre a prática

e, especialmente, sobre os nossos sentimentos e emoções, surge uma oportunidade e

uma instabilidade que questiona as regras e as práticas pré-estabelecidas,

proporcionando mudanças também na instituição. As profissionais entrevistadas

apontaram as mudanças que percebem na instituição a partir de suas práticas e de suas

reflexões, a despeito das dificuldades e limitações. Não permaneceram na queixa e na

reclamação, ampliaram para um reconhecimento do cenário em que atuam, dos

limites e contribuições e de sua participação na construção desse contexto

institucional:
107

“Então eu vejo os juízes, muitas vezes querendo propor diferente e aí chega

ali, ah, bate e volta. Então eu sinto a gente até contribui para desmistificar com as

esferas aqui de baixo, mas aí ainda precisa chegar na lá em cima, para a instituição

também poder estar mudando de uma forma mais humana”.

Percebendo o contexto maior, internalizando a instituição e assumindo sua

participação, as profissionais passam de uma posição de “vítimas” da estrutura

institucional para uma co-responsabilidade na manutenção ou mudança da cultura

institucional e da construção do espaço psicossocial interdisciplinar na Justiça. Uma

vez que a nossa subjetividade individual contém a social, a subjetividade social

também vai ser constituída a partir da subjetividade individual, e a prática, tanto

interventiva quanto reflexiva, na medida em que ela ocorre nas relações estabelecidas

entre os diversos atores, contribui recursivamente para a subjetividade legal que

permeia a instituição jurídica.

3.2.3 – A Criança Desperta Nossas Vivências de Violência e Abuso

“... eu acho que a criança desperta na gente a nossa criança interna. Porque

todas as vezes que eu vejo uma criança numa situação em que ela está indefesa, é

como se eu me identificasse com ela, ficar indefesa realmente, não ter ninguém com

quem contar, saber que de repente tem um adulto que poderia estar contando com

ele, mas aquele adulto pode se esquivar de fazer alguma coisa, eu me sinto assim

como se eu estivesse ali naquele lugar...”

Nesse segundo momento, as profissionais entrevistadas ampliaram sua

compreensão sobre a função da criança na relação com elas e de como essa função, de
108

orientar e guiar a prática no estudo psicossocial, remete-se a uma forte identificação

destas profissionais com as crianças que elas atendem.

Parece que ao se identificar com a criança vítima de abuso sexual, a

profissional vivencia emoções semelhantes às vivenciadas pela criança na relação

abusiva. Segundo Thouvenin (1997) e Perrone e Nannini (1997), a criança ou o

adolescente que sofre abuso sexual experiencia confusão, sentimentos de culpa, de

impotência, perplexidade, ambivalência de sentimentos e um grande sofrimento

psíquico. Há uma ressonância na profissional a partir de sua identificação e dessa

forma ela sente angústia, ansiedade e confusão diante da relação com a criança e com

a família. No contato com a criança, a vivência e o passado da profissional se atualiza,

fazendo ressurgir muitas vezes seus próprios medos infantis ou vivências próprias de

abuso emocional ou físico.

Acredito que o fato de o grupo entrevistado, assim como a equipe psicossocial

da SEPAF, ser composta somente por mulheres tenha uma participação importante no

emocionar nessas relações e na constituição do sentido profissional a partir da relação

com a criança. As formas de organização social, os sistemas de crenças e os valores

que prevalecem em nossa sociedade ocidental são permeados por um sistema de

gênero, como afirma Ravazzola (1997). Esse sistema de gênero pressupõe

construções hierárquicas imutáveis que assinalam níveis diferentes de poder entre o

masculino e o feminino e que se convertem em princípio organizativo naturalizado,

formando parte da identidade dos sujeitos da cultura. As crenças e estereótipos

culturais nesse sistema atribuem mais valor ao masculino que ao feminino, atribuindo

distintos níveis hierárquicos para homens e mulheres dentro das organizações sociais.
109

Como o abuso é caracterizado por uma forma de interação em um contexto de

desequilíbrio de poder onde aquele que esta em uma posição hierarquicamente

superior ocasiona danos ou prejuízos físicos e/ou psicológicos, por ação ou omissão,

ao outro na relação (Corsi, 1994), fica evidente que as formas de emocionar e de

relacionar em nosso contexto sócio-cultural propicia relações abusivas e de violência

em várias dimensões. É muito difícil uma pessoa de nossa cultura não ter vivenciado

algum episódio ou situação de violência ou abuso (seja físico, emocional ou sexual)

durante sua vida. A probabilidade de acontecer uma dessas situações aumenta

consideravelmente no caso das mulheres e crianças/adolescentes, em virtude de todo

esse contexto. É difícil uma mulher em nossa sociedade não ter vivenciado algum

tipo de abuso ou violência durante sua infância ou vida adulta.

As profissionais, psicólogas e assistentes sociais, sendo mulheres e tendo sido

crianças e adolescentes, também tiveram vivências de algum tipo de abuso ou

violência, seja na família, na escola, na rua, no trabalho, etc. Assim, o contato com a

criança, faz ressurgir sua própria vivência de vitimização, atualiza seus abusos

sofridos, trazendo consigo sentimentos e emoções de medo, angústia, raiva, confusão,

entre outros, que podem muitas vezes levar a profissional a negar o que ocorre ao

outro, mantendo o silêncio e o segredo, ou “não vendo o que se vê”, como forma de

proteção. Assim, como Nogueira & Pereira de Sá (2004) destacam, é necessário que

esses sentimentos sejam “reconhecidos e colocados a serviço do nosso trabalho, em

vez de serem tratados como elementos ou forças que nos paralisam ou que impedem

que ele ocorra” (p. 97). Ao identificar e reconhecer essas emoções, a profissional dá

voz ao seu próprio sofrimento e dessa forma pode dar voz e escutar o sofrimento do

outro. Se nós profissionais não nos escutamos ou negamos nossas vivências, corremos
110

o risco de calar a criança, não permitindo e desqualificando sua fala na Justiça. É

preciso um processo de autoconhecimento para poder dar conta do abuso vivido pelo

outro, dar voz à criança e servir de mediador de sua palavra na Justiça:

“Então é um aprendizado assim muito louco mesmo de tentar trabalhar com

esses limites, tentar assim, eu não posso me envolver completamente porque senão eu

não dou conta de fazer o trabalho, eu vou sofrer muito, mas também se eu sair e

olhar que nem um médico de fora né, que eu já estou ficando acostumada com aquela

coisa, também não vou me vincular e não vou conseguir fazer o trabalho né”

Essa identificação com a criança também nos remete ao resgate da função

psicossocial, em que a profissional na relação com a criança constitui o sentido de sua

prática. A criança na relação suscita a função de compreensão, acolhimento, ajuda e

proteção, características da função psicossocial. No entanto, a profissional não pode

permanecer na identificação, pois precisa retomar seu papel na Justiça e atuar de

forma a interromper o circuito abusivo e proteger a criança. Dessa forma, a

profissional faz um movimento de identificação com a criança, que a permite ampliar

a compreensão da situação e acolher o sofrimento desta, mas ela também precisa sair

dessa identificação e retomar o papel de psicólogo e assistente social da Justiça. Não

pode permanecer apenas na compreensão e no acolhimento, tem que também intervir

e promover a proteção da criança e a garantia dos direitos dos atores envolvidos.

Esse movimento de sair da identificação para poder intervir passa pelo

reconhecimento e qualificação de nossas emoções na relação com a criança e a

família. Se permanecermos na identificação com a criança e envolvidas nas emoções

que essa relação emerge, corremos o risco de nos envolvermos em nossos sentimentos

e não darmos conta de agir inteligentemente para promover mudanças em benefício


111

da criança e da família. Ao reconhecer e qualificar nossas emoções, podemos então

utilizá-las como recursos e atuar em beneficio do outro. Como Mahoney (1997)

aponta, é necessária uma presença emocional e responsiva do terapeuta para se

construir uma relação de ajuda e acolhimento a alguém, e dessa forma a presença

emocional do psicólogo e do assistente social na relação com a criança e a família é

indispensável para o momento psicossocial de escuta e compreensão. Mas é

necessário, também um distanciamento para poder agir na dimensão protetiva e legal.

Manter essa presença e fazer esse contínuo movimento de aproximação e

distanciamento é freqüentemente um desafio emocionalmente exaustivo para o

profissional (Mahoney, 1997).

3.2.4 – Criminoso, Doente ou Sujeito de Direitos

Nessa segunda entrevista, a percepção com relação à pessoa que comete abuso

sexual é ampliada, saindo de uma discussão periférica para um dos focos de reflexão

durante a entrevista. Essa ampliação da percepção veio concomitante com uma

variação de emoções relacionadas ao abusador. A raiva, o nojo e a indignação em

relação ao agressor, expressas na primeira entrevista, ressurgiram na discussão, porém

surgiram também emoções de empatia, culpa e pena. Assim como a criança na

situação de abuso sexual não só vivencia emoções ditas ruins ou negativas em relação

ao agente do abuso, mas também emoções de afeto e carinho, especialmente se este é

alguém próximo afetivamente (pai, padrasto, avô, por exemplo) (Perrone & Nannini,

1997; Furniss, 1993), as profissionais expressaram, de forma bem confusa e

descontinua, emoções ambivalentes com relação ao agressor, durante toda a

entrevista:
112

“Eu já consegui empatizar com vários abusadores, sabe assim, eu não acho

que eu não tenha uma resistência, de nossa aquilo é uma coisa horrível, é um

monstro que está na minha frente e não conseguir entrar, criar um tipo de vínculo

com ele, não acho isso. Eu consigo tentar em várias situações (risos) O coitadinho, já

né! Nossa história complicada de vida, é uma coisa que ele podia ter, não ter tido

passar por isso, devia ser assim, não, mas né. Achar um criminoso, eu acho que eu

que nem sempre chega a acontecer, mas eu vejo assim uma dificuldade pelo menos

em mim, apesar de conseguir enxergar essa pessoa não como uma criminosa né”

“mas ao mesmo tempo eu não consegui enxergar aquele homem como um

monstro, ele era extremamente ignorante, o próprio M., super doente mesmo sabe,

ele não tinha noção, a mínima noção do que aquele ato tinha de significado, da

conseqüência e de tudo né, então é um paradoxo mesmo, a relação com cada um

desses homens acusados”...

A ambivalência de emoções com relação ao abusador constitui uma relação

paradoxal com este, em que em alguns momentos ele é visto enquanto um criminoso,

com emoções que constituem um espaço relacional que privilegia o afastamento, a

punição e a dificuldade em lidar de forma civilizada com o agressor, e em outros

enquanto um coitado, uma pessoa em sofrimento, ou um doente, que necessita de

ajuda, acolhimento e/ou tratamento.

O que se percebe é que com o processo reflexivo desencadeado pelas

discussões grupais, a elaboração dos sentimentos e das relações com o abusador pôde

ser ampliada. Assim como ocorreu com relação à instituição, as profissionais saíram

da relação pessoal, de extrema identificação com a criança, que suscitam emoções de

asco, medo, desconfiança, raiva, entre outras, para uma relação profissional e
113

institucional com o agressor, incluindo sua dimensão de sujeito de direito. As

profissionais saem da visão única de culpado e criminoso, ampliando para uma visão

mais sistêmica, transgeracional e contextual do abuso sexual infantil. É interessante

notar que, apesar do paradigma teórico e prático das profissionais ser o sistêmico,

parece que a primeira reação diante da situação de abuso e especialmente diante

daquele acusado de cometer tal violência é de agir a partir da raiva e da indignação

suscitadas, a favor da criança-vítima e contra o pai-abusador. As emoções elementares

parecem polarizar a visão, dicotomizando as ações, constituindo ações de proteção

para um e punição para o outro.

No entanto, no momento em que se reflete sobre essas emoções e ações, o

leque de opções é ampliado, possibilitando uma visão mais contextualizada. Como

Maturana (1997) coloca, ao mudar o fluir do emocionar nas conversações, os

significados e as ações também mudam e da mesma forma, mudanças nas

circunstâncias do viver que mudam o conversar, implicam mudanças no emocionar.

“Esta é a diferença que a gente pode fazer entre considerar ele um criminoso,

patológico, mas saber que tem uma família por trás, tem um contexto social por trás,

um contexto cultural, geralmente quem vem de uma sociedade super machista, acha

que tem o domínio sobre a criança, sobre a mulher, tem tudo isto, mas ele pode dar

um passo diferente, acho que isto que é relevante”.

Essas mudanças que possibilitam unir o contraditório, de forma a considerar

também a dimensão do sujeito e da cidadania da pessoa que comete o abuso sexual

são imprescindíveis, pois como Faleiros (2003) aponta, a concepção de que a

resolução da situação de abuso passa somente pela prisão dos acusados é difundida

pela opinião pública e compartilhada por muitos dos teóricos e profissionais que
114

lidam com essa problemática. É muito difícil, em virtude do nosso contexto sócio-

cultural, nossas vivências e sentimentos, considerarmos também a dimensão da

cidadania do agressor, especialmente nas situações de violência sexual infantil, que

incomoda, agride e revolta a maioria daqueles que lidam com essa situação. No

entanto, a justiça não pode ser realmente feita se seus profissionais abarcam apenas

um lado da questão, a proteção e atenção à criança, esquecendo o agressor. Mesmo

porque a não atenção ao agressor, tanto na questão legal da punição quanto da questão

psicossocial de atendimento e/ou tratamento, permite que o contexto de proteção à

criança não se concretize, na medida em que o agressor ao ser liberado judicialmente,

continua a relacionar-se com seus filhos ou outras crianças, sem uma compreensão ou

ressignificação de suas ações abusivas.

Sem um trabalho que permita um processo de ressimbolização e recuperação

da trajetória individual e familiar da pessoa que abusa sexualmente, possibilitando

que o ato de violência possa ser resgatado e ressignificado (Selosse, 1989; Costa,

Penso & Almeida, 2004), fica difícil promover uma ação reparadora da violência

cometida, para todos os envolvidos. A pessoa que abusa sexualmente de uma criança

e/ou adolescente precisa compreender seu ato (ou atos), sua situação em relação aos

limites e fronteiras familiares e sociais, e introjetar a noção de falta, erro e crime. Esse

espaço pode ser possibilitado pela Justiça, a partir de uma intermediação de um

terceiro que tem força simbólica da lei (Selosse, 1989) e pela Psicologia e Assistência

Social, na medida em que permite a reconstrução de significados e sentidos presentes

nos atos de violência, resgatando a compreensão em uma perspectiva humana, de uma

dinâmica familiar e transgeracional e de cidadania (Costa, Penso & Almeida, 2004).

Se a Justiça não promove esse espaço de ressignificação, sanção, reeducação e


115

reparação, o agressor perde a oportunidade de passar por esse processo e retorna para

a sociedade, após a punição ou a absolvição, sem ter recuperado sua dimensão de

cidadania, comprometendo a garantia da cidadania do outro, no caso a criança e/ou

adolescente.

Como Ravazzola (1997) destaca, todos as pessoas envolvidas nos casos de

violência, aquelas que sofrem a violação, seus perpetradores e a família, são vítimas

da situação. Portanto, todos merecem e tem direito de receberem atenção e suporte

psicossocial das instituições competentes (Costa, Penso & Almeida, 2004). Sem isso,

cria-se um contexto de revitimização também do abusador, pois na maioria das vezes,

também foram vítimas de abusos sexuais na infância ou adolescência, com uma

história de vida de vitimizações psicológicas, sociais, econômicas (Faleiros, 2003).

Ao assumir a função institucional, as profissionais também assumem essa

função de mediação do resgate da cidadania do agente do abuso sexual, sempre

trabalhando no paradoxo. É como se elas precisassem circular entre essas emoções

ambivalentes para poder lidar como o abusador/criminoso e a pessoa/ sujeito de

direito, dentro de uma “unidualidade” (Morin, 2000).


116

4 – CONSIDERAÇÕES FINAIS

“Quando começamos a buscar entender o mundo (...)


é a nós mesmos que encontramos,
é a nós mesmos que descobrimos
e é conosco que contamos” (Pakman, 1997)

Nesse caminho percorrido pelas nuances e expressões das emoções dos

profissionais, da prática psicossocial na Justiça e da relação deste profissional com a

violência sexual infantil no contexto Judiciário, as reflexões suscitadas, construídas e

discutidas revelam mais questões e problemas do que respostas ou conclusões

fechadas.

O espaço da Psicologia e do Serviço Social no Judiciário no Brasil é recente e

vem se estabelecendo aos poucos, firmando sua importância e sua necessidade para

uma Justiça mais democrática e humana. Nas questões de família, essa importância é

mais visível em virtude da multiplicidade de interrogações e da dimensão subjetiva,

relacional e emocional dos conflitos que chegam à Justiça. Em virtude dessas

dimensões, muitas vezes apenas o acordo ou a sentença judicial não tem condição de

resolver tais conflitos jurídicos, demandando o conhecimento e a atuação da

Psicologia e do Serviço Social (Cezar-Ferreira, 2000).

Quando esses conflitos jurídicos vêm permeados por relações abusivas e de

violência familiar, a complexidade aumenta, ampliando a instabilidade do “terreno”

onde o profissional pisa. É a partir dessa instabilidade, que a reflexão e a criatividade

surgem, possibilitando a criação de novas ou renovadas formas de conhecimento,

ações e questões a serem problematizadas.


117

4.1 - As Emoções e as Relações: duas faces importantes da mesma moeda

As emoções em todo esse percurso, como o fio condutor dessas reflexões,

destacam-se enquanto fenômenos essenciais à compreensão da ação do profissional

na Justiça. São fenômenos importantes que devem ser resgatados na produção do

conhecimento humano e na reflexão ética. Ao reconhecer e identificar as emoções que

constituem um determinado domínio de ação, é criada a possibilidade de uma ação

inteligente, que promova a inclusão, a consideração e o respeito pelo outro enquanto

sujeito na relação. Estar atento, reconhecer nossas emoções constituídas nas relações

com famílias com histórias de abuso sexual infantil e aceitar que elas existem em

nossa subjetividade, possibilita que nossos sentimentos de vulnerabilidade,

insegurança e desconforto diante da situação possam ser expressos e compartilhados.

Isso facilita o contato mais atento com a realidade e permite que se ofereça à criança

um espaço verdadeiro de comunicação para suas experiências (Nogueira & Pereira de

Sá, 2004).

Como foi discutido anteriormente, o contato da profissional com a criança

vítima de abuso sexual constitui o sentido e constrói significados a respeito de sua

atuação no judiciário. Isso decorre em parte pela reatualização das vivências de

violência da própria profissional, remetendo-a a sua história e a suas experiências.

Como Elkaïm (1996) destaca, o que sentimos se relaciona conosco e com a nossa

história de vida, de outra forma não se amplificaria a partir da relação estabelecida.

Com uma posição bem semelhante, Maturana (1997) aponta que nós só nos

emocionamos ou nos mobilizamos se aquilo faz parte de nossa experiência, ou seja,

você só se preocupa com o outro se esse outro faz parte de seu domínio de
118

experiência. Nesse sentido, como vivemos em uma sociedade constituída

predominantemente por emoções de apropriação, poder, anulação e intolerância, que

propiciam relações de abuso e de violência, o abuso sexual infantil incomoda e

mobiliza as pessoas em virtude de suas experiências nessa sociedade, tanto no sentido

de negar e manter o silêncio e a invisibilidade social do abuso como no sentido de

interromper o ciclo abusivo, promovendo a proteção da criança e a garantia dos

direitos de todos os envolvidos.

Ao mesmo tempo, essas emoções suscitadas não se vinculam somente à

profissional, não podem ser limitados a ela e ao seu passado, mas também se referem

ao sistema em que ela participa. Elkaïm (1996) afirma que esses sentimentos têm uma

utilidade e uma função para o sistema do qual o profissional participa. Este autor

denomina de ressonância esses sentimentos suscitados na relação, em que vários

sistemas entrelaçados possuem um tema em comum, que amplifica no profissional

sua experiência, mas também se vincula ao presente e a função que esses sentimentos

possam ter para os diversos membros do sistema terapêutico. É necessário

lembrarmos que as emoções suscitadas pela criança, pelo agressor e pela família são

constituídas na relação singular com cada uma das famílias atendidas e se referem a

essa relação, a esse sistema, naquele contexto. As emoções apresentam “um sentido e

uma função ligados ao próprio sistema em que emergem” (Elkaïm, 1998, p. 322).

Daí vem a importância de nos incluirmos em nossas observações e reflexões,

pois as nossas emoções podem ser utilizadas como recursos na intervenção

psicossocial (Miller & De Shazer, 2000) no sentido de promover mudanças nas

dinâmicas abusivas. Compartilho da posição de Elkaïm (1996; 1998) de que o melhor

recurso que o terapeuta tem é a si mesmo. A partir dessa concepção, devemos sempre
119

nos perguntar sobre nosso papel nos sistemas em que atuamos, seja na família, na

equipe ou na instituição, para que os sentimentos e as construções do profissional não

promovam o enrijecimento de crenças ou convicções profundas que dificultam a

mudança do sistema. Temos que perceber nossas emoções, como elas são constituídas

e constituem as nossas relações, para possibilitar um fluxo emocional diferente que

promova instabilidades e gere novas construções e narrativas, novas formas de se

emocionar.

A importância desse reconhecimento das emoções é uma importância ética,

pois ao assumir a subjetividade e o fato de que as explicações e ações das

profissionais são constituídas e constituem as emoções, legitima-se o outro na relação

através do respeito. O respeito implica em se fazer responsável pelas emoções frente

ao outro, sem negá-lo, e para me fazer responsável pelas minhas emoções preciso

reconhecê-las e assumi-las (Maturana, 2001).

Se pensarmos dessa forma, o espaço relacional na Justiça precisa ser

preservado e incentivado para que a intervenção seja ética e tenha um sentido para o

profissional. O estudo psicossocial é um processo aberto de produção de

conhecimento sobre a singularidade de uma família e não pode ser fechado,

padronizado, a priorístico e a-contextual, sendo um processo relacional constituído

por meio da comunicação.

Se é na relação com o outro, especialmente com a criança, que se constituem

as emoções que perpassam a construção dos sentidos e significados da atuação

psicossocial na Justiça, essa dimensão interacional e subjetiva precisa ser considerada

e reafirmada pelo judiciário. É a partir desse espaço relacional que o sentido para o
120

trabalho se estabelece, portanto ele também precisa ser priorizado na Justiça para que

as ações possam ser efetivas.

Esse é um aspecto importante a ser destacado porque atualmente estamos

atuando em uma Justiça que vem crescendo em demanda a cada ano, aumentando o

número de processos e mantendo o número de funcionários em virtude de questões

econômicas, burocráticas e políticas. Esse aumento da demanda jurisdicional,

concomitantemente com o aumento pela procura dos serviços psicossociais dentro da

instituição, tem aumentado consideravelmente o trabalho (a cada ano duplica o

numero de processos atendidos pela SEPAF), o que tem gerado pressões internas e

externas para que se mantenha uma produtividade dentro do prazo legal estabelecido

(tempo do processo). Essas pressões aos poucos têm acarretado uma primazia da

quantidade e da produtividade, diminuindo o espaço relacional necessário para que a

atuação psicossocial possa ser considerada efetiva, tanto os espaços de relação com a

família como entre os profissionais na equipe. Há uma premência de que os aspectos

legal e institucional sejam privilegiados, através do cumprimento dos prazos dos

processos em detrimento da qualidade da interação no estudo psicossocial.

Esta situação cria um problema na medida em que se percebe a necessidade da

instituição conter e compatibilizar os diversos “tempos” e “espaços”: tempo

legal/processual, tempo da família, tempo do profissional, tempo da equipe, tempo da

instituição e seus respectivos espaços de ação e relação. O tempo necessário para a

profissional entrar em contato com a família, seus membros, consigo mesmo e com a

equipe precisa ser repensado, flexibilizado e principalmente considerado como

fundamental para uma intervenção eficaz e efetiva das situações de violência e abuso

sexual infanto/juvenil. Para que isso ocorra precisamos começar a construir espaços
121

de diálogos dentro da instituição entre essas diferentes dimensões e discursos, para

que possamos compatibilizar e incluir as diferenças. Sem esse diálogo entre as áreas,

corre-se o risco de cada vez mais realizarmos trabalhos burocráticos,

despersonalizados, desconsiderando o sujeito que procura a Justiça, não cumprindo a

missão de “garantir o pleno exercício do Direito indiscriminadamente e

imparcialmente a toda a comunidade do Distrito Federal e Territórios” (missão do

TJDFT) e não garantindo o cumprimento da lei e a garantia dos direitos.

4.2 – A Vivência Contínua do Paradoxo

“As verdades aparecem nas ambigüidades


e numa aparente confusão” (Morin, 2000, p. 183)

Na relação com as famílias com dinâmicas abusivas e seus membros, a

profissional vivencia uma predominância de emoções paradoxais que constituem

espaços de experiência paradoxais no judiciário. Trabalhar com violência sexual

infantil na Justiça suscita insegurança, confusão, medo, desconforto, vontade de não

ver e nem acreditar no horror da situação que é desvelada sob seus olhos e ouvidos.

Ao mesmo tempo, esses sentimentos nos mobilizam para uma ação que interrompa o

abuso e proteja a criança. Sentimos raiva e indignação em relação a pessoa agente do

abuso, mas também pena e empatia diante de alguém que também sofre. Ações de

escuta, acolhimento, avaliação, proteção, investigação e punição fazem parte do leque

de intervenções psicossociais no judiciário, confundindo funções e misturando papéis,

mais também buscando formas de apaziguar e tranqüilizar a profissional diante das

incertezas, do sofrimento e das frustrações da prática.


122

O espaço da atuação psicossocial na Justiça é paradoxal: desprotege a criança

tentando proteger, na medida em que é na relação com ela que se constitui o sentido

da ação psicossocial, em que ela precisa falar e repetir sua vivência de vitimização

sexual (revitimização); tem reações emocionais intensas e negativas com relação ao

agressor, percebendo-o como abusador e criminoso, mas também percebendo-o

enquanto sujeito, com suas próprias vivências de vitimização e com o direito de ter

direitos, de resgate de sua cidadania; identifica-se com a criança, possibilitando uma

ampliação da compreensão da situação vivida pela criança, mas precisa se

“desidentificar”, se distanciar para poder intervir; tem uma função psicossocial de

ajuda e acolhimento, mas também uma função judicial, de proteção da criança e

garantia dos direito dos envolvidos.

Na medida em que as subjetividades individuais das profissionais se

entrelaçam com a subjetividade social do contexto em que trabalham, em um processo

recursivo de mutua constituição, o paradoxo da ação das profissionais na Justiça vai

se constituindo nas relações estabelecidas com os diversos atores e participantes do

drama familiar, social e judicial.

A profissional está o tempo todo lidando com uma circunstância que promove

reações paradoxais. Não é uma situação em que ela vá encontrar respostas claras,

fáceis e coerentes. Na prática psicossocial, as profissionais oscilam entre o participar

e o observar (Sluski, 1996), entre o psicossocial e o legal, entre o acolhimento e a

intervenção protetiva. As saídas são sempre através de vivências paradoxais, que

criam situações emocionalmente difíceis, podendo levar ao adoecimento e ao

esgotamento do profissional. Ademais, o esgotamento também é uma resposta a uma

mudança impossível (McNamee, 1997). As profissionais, por estarem presos em uma


123

“ontologia discursiva” que constrói suas identidades e estabelece que certas

interpretações e ações são viáveis ou não, impedem os recursos conversacionais que

produzem mudança, deixando-as sem saída (McNamee, 1997).

No entanto, o paradoxo pode ser trabalhado de forma construtiva, na medida

em que, reconhecendo essa situação e essas emoções, a profissional possa oscilar

entre esses pólos de forma mais consciente e produtiva, possibilitando a coexistência

pacífica dos contrários. Isso precisa ser reconhecido pela instituição através de uma

ótica dialógica que inclua as contradições e os paradoxos, num processo de superação

do antagonismo, permitindo que as noções do universo sejam ao mesmo tempo

contraditórias e complementares, mantendo a dualidade no seio da unidade

(Vasconcellos, 2002). Destarte, ampliando as percepções e as lógicas, a instituição

juntamente com os serviços psicossociais podem construir contextos de acolhimento e

continência de seus profissionais.

Em virtude dessas situações, a equipe, com seu suporte teórico e emocional,

também tem um papel essencial e indispensável para a atuação das profissionais, no

momento em que possibilita uma qualidade na relação entre seus membros e espaços

de conversação e discussão sobre as intervenções, práticas e emoções. A equipe

proporciona formas concretas de ajuda mútua e de apoio que permitam à profissional

conduzir um novo olhar sobre situações críticas, compartilhando e co-construindo

novos sentidos para a atuação (Elkaïm, 1998).

Porém, há a necessidade também da participação ativa da profissional e de um

desejo de lidar com essas situações de violência sexual infantil e com os sentimentos

que essa situação lhes suscita. Os recursos de apoio que o Serviço e a instituição

possam oferecer ou incentivar, como a supervisão, a terapia e a formação profissional,


124

não permitem um desabrochar individual, senão à medida que os participantes desses

contextos aceitem se envolver nos sistemas de que fazem parte (Elkaïm, 1998). É

necessária uma disponibilidade emocional da profissional para entrar em contato e

elaborar suas questões emocionais e se permitir estar presente emocionalmente nas

famílias em que atua. Não adianta terapia, cursos ou supervisões se as profissionais

não aceitarem se envolver nos sistemas em que atuam e não estiverem disponíveis

emocionalmente para viver os paradoxos e oscilar entre os contrários.

4.3 – O Psicossocial e o Direito: uma articulação possível.

Uma das questões levantadas pela pesquisa e que precisa continuar sendo

discutida e refletida é a função do psicossocial nos casos de abuso sexual infantil. A

confusão dos papéis e discursos que perpassam as falas das profissionais revela um

momento transitório, de constituição e definição de funções dentro da Justiça diante

da problemática da violência contra crianças e adolescentes.

A Justiça possui um papel construído e definido socialmente de poder

regulador das relações sociais através da manutenção do cumprimento da lei. No

entanto, existe um contexto de crise e de mudança da Justiça na atualidade, que

Santos (2001a) denomina de crise da ‘administração da justiça’, propiciada por

movimentos sociais de conquista e garantias de direitos. A identificação dos limites e

das insuficiências do paradigma do Direito Moderno, atrelado ao Estado, tem

promovido um contexto de transição, ao resgatar as demais ordens jurídicas vigentes

sociologicamente na sociedade, recuperando o potencial emancipatório do Direito

(Santos, 2001b). Para este autor, esse processo de transição marcado por um ‘des-
125

pensar’ do Direito será orientado inicialmente pelas tradições banidas ou

marginalizadas da modernidade. Poder falar sobre o emocionar de profissionais na

Justiça e de suas subjetividades fornece um discurso diferenciado que pode contribuir

nesse processo de transição.

Essa crise abre espaço para que se discuta e reflita sobre o papel da Justiça,

promovendo críticas à primazia da função de controle e regulação e propondo que a

função de emancipação seja privilegiada no desequilíbrio dinâmico entre regulação e

emancipação (Santos, 2001b). O conhecimento emancipatório do Direito, para Santos

(2001b), caracteriza-se pela dimensão da solidariedade, que é o conhecimento obtido

no processo, sempre inacabado, de nos tornarmos capazes de reciprocidade através da

construção e do reconhecimento da intersubjetividade. O estudo, o reconhecimento e

a participação das emoções têm muito a contribuir para essa transição.

Dessa forma, a atuação psicossocial no contexto judicial contribui para esse

repensar tanto da Justiça enquanto regulação, assim como promove uma reflexão

sobre o papel da Psicologia e do Serviço Social no judiciário, indo além da função de

ajuda e acolhimento. O papel psicossocial na Justiça precisa ser ampliado no sentido

de abarcar ou contemplar a função da Justiça, que ao meu ver, extrapola o controle e a

regulação, sendo também um espaço de garantia e proteção dos direitos. Nos casos de

abuso sexual infantil, a articulação entre o Direito, a Psicologia e o Serviço Social

propicia um contexto de proteção da criança e do adolescente, de garantia dos direitos

de todos os envolvido, de escuta do sofrimento, da sanção e da reparação. Como

Costa, Penso & Almeida (2004) apontam, o Direito ajuda a ação psicossocial na

medida em que resgata o sentido reparador da desproteção das crianças nos sistema

familiar e social, oferecendo um contexto de “expressão das emoções em palavras e a


126

reelaboração da vivência de violência” (p.10). Ao mesmo tempo, a Psicologia

contribui para a atuação da Justiça na medida em que amplia a noção dos atos de

violência, não atrelados a uma visão somente criminal e de isolamento da violência do

contexto social e cultural no qual ela ocorre. A violência é ressignificada, sendo

compreendida mais amplamente, através de uma perspectiva relacional, social e

transgeracional, resultando em um novo discurso e uma nova forma de intervenção na

supressão da violência pelo Estado (Angelim, 2004).

Assim como Pearce (1996) aponta que o momento de transição gera sensações

de descontinuidade, vertigem e desorientação, levando muitas vezes a confusões de

papéis, percebemos que nesse momento os profissionais encontram-se buscando

entender e clarear suas funções dentro de um contexto paradoxal. São impulsionados

pelas possibilidades construídas pelas mudanças ao mesmo tempo em que contribuem

com o seu pensar e emocionar para as mudanças institucionais. No entanto, mesmo

sem uma definição e constituição clara da função psicossocial na Justiça, acredito que

essas mudanças proporcionam uma atuação que contemple a proteção, a garantia e

defesa de direitos e a reparação.

4.4 – A criança é o “futuro” ou o “presente” do nosso país?

O destaque do papel da criança e sua importância na constituição do sentido

da ação psicossocial nos casos de violência sexual infantil são outros aspectos

importantes levantado pela pesquisa, que refletem questões sociais importantes a

respeito da função da criança em nossa sociedade. É notório que a atual compreensão

e concepção da infância é o resultado de um processo histórico que se construiu


127

socialmente nas categorias etárias da infância e da adolescência, enquanto uma etapa

diferenciada do desenvolvimento. Durante muito tempo, a criança no Brasil foi vista

como um ser débil e incapaz, que necessitava de proteção e repressão para sua

adaptação social, para não se tornar delinqüente. Era considerado um sujeito passivo,

objeto de intervenções do Estado. Essa situação legitimava uma potencial ação

judicial indiscriminada sobre as crianças e adolescentes consideradas em situação

irregular. Para proteger as crianças e os adolescentes, se utilizava a repressão e o

controle social, onde se negava às crianças os direitos mais elementares.

Em meados da década de 70, os movimentos sociais de redemocratização e

luta pelos direitos promoveram uma mudança na visão social e legal da criança e do

adolescente. Estes passaram a ser concebidos enquanto seres humanos em condição

peculiar de desenvolvimento, cidadãos e sujeitos de direitos legítimos, que devem

participar de decisões sobre sua vida, de sua comunidade e da sociedade em geral

(sujeito social). Pela luta social, foi se construindo a visão da criança e do adolescente

enquanto sujeitos de direito, direito à proteção, à participação e à reivindicação. Esta

doutrina se estabeleceu a partir da inclusão da criança enquanto prioridade nacional

na Constituição Brasileira e da criação do ECA, baseados na Doutrina Internacional

dos Direitos da Criança e Adolescente, mudando de uma perspectiva de alienação

para emancipação (Ribeiro, 1999).

Percebe-se que, mesmo diante desse movimento e transformação sócio-

jurídica da posição da criança em nossa sociedade, sua identidade ainda se configura

paradoxalmente: a criança é prioridade nacional e merecedora de atenção e proteção;

mas também não é efetivamente priorizada social e politicamente, sendo

desqualificada enquanto sujeito nas ações em que ela participa.


128

A importância da criança na constituição do sentido da prática profissional

de psicólogos e assistentes sociais na Justiça reflete esse movimento de qualificação e

consideração da criança como sujeito de direitos. Promove uma participação ativa das

crianças no estudo psicossocial nos casos de violência sexual infantil, considerando

seu sofrimento, sua palavra, sua vivencia e sua proteção.

Considero a importância da criança não apenas na dimensão política e

jurídica, mas como Maturana (1997) aponta, também na dimensão social. Para este

autor, a criança tem um papel fundamental na mudança e conservação de uma nova

forma de emocionar baseada no respeito, tolerância e inclusão. A forma como nós nos

relacionamos com elas, como vivemos com nossas crianças é “tanto a fonte como o

fundamento da mudança cultural” (p. 16). A criança precisa ser respeitada enquanto

sujeito para aprender a respeitar e considerar o outro enquanto legítimo outro na

relação. Para chegar a ser um adulto que se respeita e respeita o outro, vivendo como

um ser com responsabilidade social, a criança deve viver na dignidade de ser

respeitada e de respeitar o outro (Maturana, 1997, p.14). Como na situação de abuso

sexual a criança é desrespeitada em sua singularidade e em todos os seus direitos,

precisamos estar atentos para construir contextos de intervenção que resgate esse

respeito pela criança e permita a ela vivenciar relações de legitimidade mútua. Se não

fizermos isso agora, enquanto ela ainda é criança, não haverá o futuro, pois a criança

não pode ser o futuro de nosso país se ela não for o presente.
129

4.5 – A Ação Reflexiva

“Somente os seres que podem refletir sobre sua própria limitação


são capazes de libertar-se desde, porém, que sua reflexão
não se perca numa vaguidade descomprometida,
mas se dê no exercício da ação transformadora
da realidade condicionante” (Freire, 1976, p. 66)

Ao chegar nessa etapa do processo de construção desse conhecimento, que

não se conclui nem se finaliza nessas últimas palavras, considero, assim como Demo

(2004), a dimensão política da pesquisa a partir de uma intervenção que contribuísse

para uma reflexão e possível mudança no contexto psicossocial dentro do TJDFT.

Diante de uma realidade extremamente complexa, cheia de nuances,

contradições e incertezas, a pesquisa se propôs a iniciar uma reflexão crítica conjunta

a respeito das emoções do profissional no judiciário, os significados e sentidos desse

trabalho. A conversação que foi proporcionada e que continua ecoando nas salas e

corredores do tribunal é apenas o início de um longo processo de ação reflexiva que

considero como uma das práticas importantes para manter a discussão e possibilitar

mudanças. Assim com Freire (1976) aponta, a consciência crítica não se constitui

através de um trabalho intelectualista, mas na práxis - ação e reflexão.

Concordo com Pakman (2003) quando ele afirma a importância de refletir

sobre o conhecimento em ação, atribuindo aos profissionais a habilidade de um

constante questionamento reflexivo em e na situação da prática. Essa ação reflexiva

permite rever nossos limites que unem e separam as práticas e discursos dentro da

Justiça, perceber nossa participação na sua construção e promover dessa forma

conversações que possam criar alternativas e constituir um sentido de nossa condição

de agentes sociais.
130

Essa reflexão não pode permanecer somente na SEPAF, devendo se estender a

outros serviços psicossociais no tribunal, outras instâncias do judiciário e a outras

instituições que trabalhem diariamente com pessoas em sofrimento decorrente de

situações de violência sexual infantil. É necessário criar estruturas de interface com os

outros sistemas que entram em contato com essas famílias –escolar, assistência social,

policia, Ongs – possibilitando uma rede efetiva de atendimento, defesa de direitos e

responsabilização. Uma rede articulada amplia a possibilidade de ação e de

metacomunicação, uma das formas de se lidar com as contradições inerentes a esse

trabalho.

A consideração das emoções e da subjetividade é essencial nesse processo de

ação reflexiva, uma vez que o processo de mudança dificilmente acontece sem uma

mudança nas nossas emoções. Nas conversações e reflexões podemos compreender as

emoções que perpassam as nossas ações e assim podemos entender melhor o que

fazemos e o que não fazemos como membros participantes do sistema profissional-

família-justiça. Da mesma forma, podemos mudar o nosso emocionar a partir das

reflexões e ampliações proporcionadas pelas conversações (Maturana, 1997).

Gostaria de finalizar ampliando a metáfora do barco sem rumo, utilizada por

uma das entrevistadas para caracterizar a relação da profissional com a situação de

abuso sexual infantil. Acredito que, enquanto a criança é considerada a bússola que

orienta a direção desse barco, as emoções possam ser o vento, vento que se intenso e

forte pode afundar o barco, mas que se bem administrado e utilizado, pode fazer o

barco caminhar para um porto seguro ou para novas rotas de possibilidades e

crescimento.
131

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138

ANEXO I

Luiz*, 35 anos, e Laura, 29 anos, foram casados por cerca de 10 anos, período em que
mantiveram um relacionamento conflituoso e permeado por agressões físicas e verbais.
Tiveram dois filhos, Marcelo, 12 anos, e Carla, 10 anos, que presenciavam as agressões dos
pais e inclusive participavam em alguns momentos das agressões, sendo Marcelo muitas
vezes agredido pelo pai.
Com a separação, Laura saiu de casa com os dois filhos, ocasião em que Marcelo
passou a visitar o pai nos fins de semana quinzenalmente. Após a separação, Luiz não teve
contato com Carla por aproximadamente um ano, até 1999, época em que passou a visitar
também a filha, levando-a para seu apartamento.
As visitas ocorreram normalmente até o final de 1999, quando, de acordo
com Laura, seus filhos não quiseram mais visitar o pai, sentindo-se amedrontados toda vez
que este passava para levá-los para visita, recusando-se a ir com ele. Após algumas
semanas, Laura escutou o filho conversando com Carla e dizendo que deveriam contar a
mãe o que tinha acontecido. Ao serem questionados pela mãe, Marcelo e Carla lhe
contaram que na última visita, o pai os submeteu a situações de abuso sexual, fazendo-os
assistir a filmes pornográficos, olhar o pai manter relações sexuais com outros adultos na
presença deles, forçando-os a ingerir substâncias tóxicas (cocaína e álcool) e mantendo
contatos de cunho sexual com a filha Carla. Laura diz que as crianças foram obrigadas a
manter segredo sobre esses acontecimentos, com a ameaça de que Luiz a mataria caso eles
contassem a alguém.
Desde então, os contatos entre Marcelo e Carla com o pai foram
interrompidos, o que fez Luiz pedir na justiça a regulamentação de suas visitas aos filhos,
negando que tenha cometido tais atos.
Luiz Laura
35 2
9

Marcelo Carla
12
1
0
*
osnomes foram alterados para preservar as identidades
139

ANEXO II

Roteiro da Entrevista

1- APRESENTAÇÃO
Esta é uma entrevista em grupo com o objetivo de levantar dados para uma
pesquisa que comporá minha dissertação de mestrado em psicologia clinica na
Universidade de Brasília. Esta entrevista tem como objetivo conhecer como vocês se
sentem, enquanto técnicas da SEPAF, ao atenderem famílias com historias de abuso sexual.
As identidades individuais serão preservadas.
Para isso, preciso do consentimento de vocês.
Serão feitas algumas questões destinadas para o grupo todo, com o objetivo
de estimular o dialogo entre os técnicos, que deverão conversar entre si, pensando nas suas
experiências com as famílias com historia de abuso sexual atendidas neste Serviço. O
dialogo será gravado e, posteriormente, transcrito. A primeira analise dos dados será
apresentada a vocês num momento posterior para reflexão e discussão.

2- AQUECIMENTO

Entregar para cada um uma copia do resumo de um caso de uma família com
denuncia de abuso sexual.
Ler em voz alta com todos acompanhando.
Perguntar: Que símbolo (ou imagem) vem à cabeça de vocês que
representaria seus sentimentos ao entrarem em contato com um historia dessas.

3- PERGUNTAS (30 minutos para cada)

Promover um contexto de dialogo e interação entre todos.


1- Como vocês reagem quando percebem que vão realizar o estudo de uma família
com historia de abuso sexual?Que sentimentos e emoções as histórias de abuso
sexual suscitam em vocês?

2- Quais seriam as dificuldades de atender casos de abuso sexual? O que mais


angustiam vocês ao atenderem tais famílias?

3- Qual o papel que nos profissionais temos nesses casos?

4- O que vocês fazem durante o estudo, para dar conta de realizar o trabalho? Que
tipo de ajuda interna e externa vocês têm ou buscam?

4- FINALIZAÇÃO

Quais seriam os encaminhamentos para o caso lido no inicio?


140

ANEXO III
Segundo grupo focal
Entrevista reflexiva

Bem, primeiramente gostaria de agradecer a vcs por terem se disponibilizado a estar


participando novamente desse grupo, em uma nova etapa de reflexão a respeito do impacto
que os casos de abusos tem em nós, que emoções, sentimentos e reações eles suscitam.
Na primeira entrevista, nós lemos um caso de abuso e conversamos um pouco sobre
nossas reações e emoções, vcs se lembram?
Da nossa conversa surgiram várias reflexões interessantes, dentre as quais algumas
nós vamos estar hoje refletindo, pois acreditamos que essa reflexão conjunta com o grupo
vai não só acrescentar e enriquecer a pesquisa, mas também nos fazer refletir algumas
questões da nossa pratica aqui no Serviço.
De tudo o que foi falado aqui no primeiro grupo, nós pudemos perceber que o
estudo psicossocial de casos de abuso sexual fornece seis grandes dimensões de sentido, de
reflexão: A relação do técnico com a criança, a relação do técnico com o adulto, a relação
do técnico com a família, a relação do técnico com o processo, a relação do técnico consigo
mesmo e a relação do técnico com a instituição.
Eu vou tecer um pequeno comentário sobre cada dimensão e pedir a vocês que
reajam e comentem sobre o meu comentário, para a gente estar pensando e ampliando
nossa compreensão.

Relação com a criança:


Parece que as crianças despertam na gente sentimentos de proteção, de querer
proteger, de ajudar. Ao mesmo tempo é a criança, o que ela fala, que dá a segurança para o
técnico durante o estudo. Como esse comentário é visto por vcs?
141

Relação com o adulto:


O que chamou atenção foi a dificuldade de contato em relação ao agressor,
desencadeadas por sentimentos de medo e expectativas em relação a ele. Parece que o
agressor é visto como um criminoso. O que vcs podem comentar?

Relação com a família:


A relação do técnico com a família é melhor quando ele vê possibilidades de ajuda
para a família?

Relação com o processo:


Percebemos que o processo tem uma conotação bem negativa (pesado, difícil,
trabalhoso, batata quente, neurose), porem foi falado também que se se consegue uma
finalização considerada satisfatória, ele é benéfico e tem caráter curativo pra criança.

Relação consigo mesma:


Nessa área, percebemos três grupos de sentimentos: aqueles de natureza íntima
ligados a medo, angustia, duvida e ansiedade, os relacionados com a cobrança de si mesmo,
de realizar algo bem feito, de se responsabilizar, e os relacionados com as duvidas sobre a
nossa competência profissional e formação.

Relação com a Instituição:


A instituição foi vista como facilitadora do nosso trabalho quando oferece uma
metodologia de trabalho em dupla, grupos de estudo e uma simbologia que ajuda o técnico
na hora de atender o caso. Por outro lado, ela foi considerada lenta, emperrada,
demandando uma quantidade muito grande de processos, pouco tempo e exigência de prazo
para fazer o estudo, falta de recursos materiais e humanos, que atrapalha e dificulta o nosso
trabalho.

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