Вы находитесь на странице: 1из 53

UMA VISÃO PROSPECTIVA DA FILOSOFIA MEDIEVAL LATINA

ATÉ O SÉCULO XII


(Parte I)

Prof. Marcos Aurélio Fernandes

Curso de Filosofia Medieval (UnB – 2017.1)

Introdução

Ao iniciar o nosso curso nós queremos lançar uma visão prospectiva para a
filosofia medieval latina. Ela pertence ao todo do pensamento ocidental. Ao longo de
dois milênios e meio de cultura ocidental, o pensamento se desenvolveu de diversos
modos. O pensamento grego se desenvolveu a serviço do ser (on;
physis; ousía) e da vida humana (bíos). Na tarda antiguidade começa a se
transformar e se põe a serviço do crer. No fim da idade média e no novo renascimento,
se põe a serviço do conhecer. A filosofia medieval latina se encontra dentro do segundo
desenvolvimento do pensamento na história ocidental.

A história do ocidente medieval provém do fluxo de três tradições, a grega, a


hebraica e a romana. As fontes destas três tradições são, respectivamente, Atenas,
Jerusalém e Roma. De Atenas vem o pensar e a filosofia. De Jerusalém, a fé judaica e a
fé cristã. De Roma, o poder. De certo modo, tanto a idade média latina quanto a idade
média bizantina são romanas. Uma é a romanidade ocidental latina. Outra, a
romanidade oriental bizantina.

Filon de Alexandria e o Novo Testamento


O pensamento grego, isto é, a filosofia e a fé judaica, por um lado, e a fé cristã,
por outro lado, se encontraram no final da antiguidade. O pensador mais importante no
encontro entre a fé judaica e a filosofia foi Filon de Alexandria (nascido entre os anos 20
1
e 10 a. C e morto cerca do ano 41 d.C.). Este escreveu um tratado sobre a “Vida
Contemplativa” (Bíos theoretikós). Introduziu na leitura da Bíblia a interpretação
alegórica. Afirmou a radical transcendência de Deus; a criação a partir do nada; a função
mediadora do Lógos; a criaturalidade do homem (sua niilidade e sua finitude e, ao
mesmo tempo, imagem e semelhança de Deus); a existência humana como êxodo
(saída, partida, viagem de libertação); a experiência pneumática do espírito, o êxtase
como cume e o profeta como o humano cunhado a partir desta experiência. O judaísmo
alexandrino é um judaísmo helenista, diverso do judaísmo palestino. Enquanto o
judaísmo palestino opunha resistência à cultura grega, o judaísmo helenista busca
aculturar a fé judaica no mundo grego e se apropriar do pensamento grego no horizonte
da fé judaica.

No Novo Testamento temos um escrito cristão dos primórdios que está bem
afinado com os temas do judaísmo helenista, a saber, a Epístola aos Hebreus. Nela
encontra-se uma definição de fé que aponta para a sua paradoxia:

(estin dè pístis elpizoménon hypóstasis, pragmáton élenchos ou blepoménon) – “É pois
fé a hipóstase das coisas que se esperam, a demonstração das coisas que não se veem”
(Hb 11,1). Agostinho e Tomás de Aquino traduziram “hypostasis” por “substantia”.
Substância é o sentido de ser como presença atual e atuante, como realidade que resiste
em sua consistência, como autossubsistência. O paradoxo está em que o que ainda não
é, o que está porvir, já é de alguma outra maneira, já se doa antecipadamente e se doa
de maneira a ter certa consistência, certo vigor de realidade. Ressalta-se, aqui, por outro
lado, o caráter escatológico da fé: crer é esperar, perseverante e pacientemente, no
Deus das promessas e nas promessas de Deus. Para o crente, a fé é, pois, o penhor, a
garantia, a posse antecipada, como traduz Gregório de Nissa, do dom que ainda está por
se dar plenamente. O outro paradoxo consiste em a fé ser a demonstração das coisas
que não se veem. A fé, aqui, é uma visão. Só que uma visão que vê no visível o invisível.
Neste sentido, a fé não seria cega, seria, antes, visionária. Não tem olho a menos, mas
olho a mais. É um sensório para captar o invisível. Filo de Alexandria, afinando o discurso
da fé com o pensamento platônico, entendia a fé como uma guinada do mundo visível
para o Deus invisível. A Carta aos Hebreus fala de um (élenchos) – de uma

2
demonstração – isto é, de um deixar e fazer ver – que, no entanto, se refere ao invisível.
E de Moisés ela diz: em seu caráter paradoxal, a fé seria a evidência do invisível. Por isso,
o autor da Carta aos Hebreus, ao falar de Moisés diz:
(tò gàr aóraton hôs horôn ekartéresen) - “e,
como quem vê o invisível, manteve-se inabalável”.

Desta indicação resultam pelo menos três coisas: 1. Que o conceito de “pistis”
(fé) é diverso, no mundo grego, e no mundo judaico-cristão. No mundo grego, a “pistis”
tem um sentido de confiança (em algo ou alguém) ou de convicção (que pode também
ser firme e bem fundada), mas que não alcança o nível do saber. No mundo judaico e
cristão a fé uma disposição e uma atitude básica numa relação pessoal de encontro,
respectivamente, com o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó e com o Deus de Jesus
Cristo1. 2. A temporalidade e a historicidade da fé são diversas quando se trata de crença
e convicção e quando se trata de fé em sentido bíblico. É que a crença é fundada no
passado. Já a fé é fundada no porvir, no futuro (tem a ver com espera e esperança). 3.
Uma coisa é o pensamento e o saber, por um lado; outra coisa é a fé e sua contemplação,
por outro lado. Suas duas possibilidades existenciais diferenciadas, irredutíveis e
incomensuráveis uma à outra. Não há homogeneidade, mas sim heterogeneidade entre
ambas as possibilidades; não há continuação, mas sim uma ruptura entre elas; não há
uma passagem entre elas. Não se pode transitar de uma para a outra a não ser num
salto mortal. Embora, em si mesmas, tomadas abstratamente, sejam possibilidades
existenciais radicalmente diversas, concretamente, isto é, facticamente,

1
No sentido usual da linguagem grega ordinária “pístis” significava, antes de tudo, confiança que se
estabelece numa relação, seja com pessoas, seja com coisas; em sentido secundário significava também
firme convicção1. Na linguagem filosófica esta oscilação semântica se mantém. No âmbito do
pensamento, Parmênides não atribui uma “pístis alethés” (verdadeira confiança) aos pareceres e opiniões
dos mortais (broton doxas), que se atêm às aparências. Ao contrário, no caminho do ser, o homem se
move com o ânimo intrépido da verdade bem-redonda (alethéies eukykleos) (Fr. 1, 30). Platão, por sua
vez, chega a falar de “pistis” firmes, verdadeiras, corretas, mas as coloca no âmbito da “dóxa” (aparência,
parecer, opinião) e não da “epistéme” (saber) (cfr. República VI, 505; Timeu 37 bc; República 601e). Outro,
porém, é o conceito de “pistis” na fé judaica e na fé cristã. O judaísmo entende a “pistis” num outro
sentido do que o pensamento grego. A “pistis” caracteriza, sobretudo, o ser do homem para Deus, a
atitude básica de sua relação para com a deidade, no encontro com ela como com um Tu. Fé, aqui, mais
do que crença, é fidelidade pessoal. Este é o entendimento de Filon de Alexandria. O crente é alguém que
confia nas promessas do Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó. Fé é a solidez ou a firmeza que o homem
adquire na sua relação pessoal com Deus – é o mesmo que fidelidade na relação de pertença do homem
para com Deus. A Carta aos Hebreus define a “pistis” remetendo à “elpís” (esperança). O crente é um
homem que está voltado para o futuro, para o porvir, na espera da realização das promessas divinas. Esta
espera se torna, nele, esperança.

3
historicamente, elas podem se reunir na biografia de alguns homens, abrindo
possibilidades de realizações, criando uma riqueza de perspectivas. É o caso, por
exemplo, de um Agostinho, de um Tomás de Aquino, etc.

Que pensamento e fé fosse dois mundos irredutíveis e incomensuráveis fora a


posição dos primeiros cristãos. Assim se posicionou o Apóstolo Paulo, depois que passou
por Atenas (cfr. At 17, 16-34) e foi viver em Corinto. O início da Primeira Carta aos
Coríntios mostra esta posição de Paulo. Para ele, a fé cristã é o anúncio do Cristo
Crucificado, que é “escândalo para os judeus, loucura para os pagãos, mas para os que
são chamados, tanto judeus como gregos, ele é o Cristo, poder de Deus (Theou dynamin)
e sabedoria de Deus (Theou sophian)” (1 Cor 1, 23s). Paulo procura deixar claro que a fé
cristã não se fundamenta na sabedoria dos homens deste mundo, com seus discursos
persuasivos, mas na palavra da cruz (logos tou staurou), que, aos olhos da sabedoria do
mundo, parece loucura (moria). E que a sabedoria ensinada no anúncio evangélico é “a
sabedoria de Deus, misteriosa, escondida” (sophia en mysterio) (1 Cor 2, 7), que “o olho
não viu, o ouvido não ouviu, nem subiu ao coração do homem” (1 Cor, 2,9), sabedoria
revelada pelo Espírito, que sonda o mistério divino abissal, isto é, as profundezas de
Deus (ta bathe tou theou) (cfr. 1 Cor 2, 10).

Os Padres da Igreja
Na época do “primeiro fervor” do cristianismo fé cristã e pensamento filosófico
grego se mantiveram separados. No entanto, a partir do segundo século aconteceu uma
aproximação entre ambas as possibilidades. E divergentes foram os posicionamentos
sobre como lidar com esta aproximação. O cristianismo tinha surgido da necessidade de
se institucionalizar e organizar o movimento cristão, originado da pregação do
Evangelho de Cristo (cristidade), em seu fervor de expansão pelo mundo antigo, que era
um mundo que falava a língua grega e pensava no medium da cultura grega helenista
(oikoumene). A época desta institucionalização nós conhecemos como “patrística”. No
âmbito do cristianismo, chama-se de “era patrística” o tempo dos “padres da Igreja”.
Denominam-se “padres da Igreja” determinados escritores da antiguidade cristã,
clérigos e leigos, em cujas obras a doutrina cristã foi primeiramente elaborada, exposta
e conservada. De seus escritos surgiu toda uma elaboração da vida e da doutrina, da
4
moral, dos sacramentos, do governo, da ascese e da mística, que veio a dar uma feição
concreta e institucional ao cristianismo. Costuma-se delimitar o término da era patrística
da seguinte maneira: no ocidente, com a morte de Isidoro de Sevilha (636) e no oriente,
com a morte de João Damasceno (749). As três grandes fases da era patrística são: 1.
Padres Apostólicos – são aqueles que conviveram, ainda, com os apóstolos (sec. I); 2.
Padres Apologetas ou Apologistas – defensores do cristianismo diante dos pagãos
(sobretudo séc. II); 3. Padres Dogmáticos – defensores da ortodoxia diante das heresias
e participantes decisivos na elaboração dos primeiros dogmas do cristianismo (a partir
do século III). A era patrística constitui-se como um momento em que a Igreja e a
pregação cristã, em seu fervor, se expandem pelo mundo antigo, no espaço cultural da
língua grega (a oikoumene). A expansão da mensagem cristã, a revelação e a fé em
Cristo, pelo espaço geográfico e espiritual do mundo helênico tornou inevitável o
encontro/confronto entre cristianismo e filosofia. Daí a importância da era patrística
tanto para a história do cristianismo quanto para a história da filosofia.

Já na época dos Padres Apostólicos, dos Padres Apologetas e dos Padres


Dogmáticos caem as resistências iniciais da Igreja Primitiva diante da filosofia
helenística. Nos moldes das duas vertentes do judaísmo rabínico, da Halachá2 e da
Aggadah3, e com os recursos sobretudo da filosofia grega, especialmente do
Mesoplatonismo4 e do Neoplatonismo5, se foi construindo, aos poucos, uma elaboração

2
A literatura da “Halachá” (ou Halakhah) concerne aos textos legais e rituais do judaísmo. A palavra é de
origem incerta, mas parece querer indicar o “caminho a seguir”.
3
A literatura da “Aggadha” concerne aos textos não legais e não rituais do judaísmo, em que se explicitam
a doutrina e a ética em forma de narrativas, isto é, de parábolas e estórias.
4
Este termo é usado por alguns historiadores da filosofia para designar o platonismo intermediário entre
o platonismo cético dos acadêmicos e o neoplatonismo, ou seja, entre Antíoco de Ascalão (séc. I) e Plotino
(séc. III). São contados como filósofos mesoplatônicos: Eudoro de Alexandria, Moderato de Cádis,
Numênio de Apamea, Nicômaco de Gérasa, Plutarco. Este mesoplatonismo rejeitava o ceticismo dos
acadêmicos e era eclético: aberto às influências do estoicismo e dos pitagóricos. Procurava adaptar o
pensamento platônico à linguagem da filosofia aristotélica. Por outro lado, antecipa, em relação ao
neoplatonismo, a característica do monismo (o Um como princípio de tudo) em oposição ao dualismo
platônico. Entretanto, não distingue o Ser do Um, como faz Plotino. Os filósofos mesoplatônicos tendem
a interpretar a doutrina de Platão como uma revelação divina e consideram como fim prático da filosofia
o tornar-se semelhante a Deus. A realidade provém do Um pelo três (tríades) e se estrutura
hierarquicamente.
5
O neoplatonismo foi a última grande criação da filosofia grega antiga. Sob esta etiqueta historiográfica
se colocam o pensamento de Plotino, Porfírio, Jâmblico e Proclo, dentre outros. Estes desenvolveram uma
metafísica prática de cunho religioso, no último período do império romano. Por um lado, esta metafísica
rivalizou com o cristianismo nascente. Por outro, o cristianismo se serviu de vários elementos do
neoplatonismo para cunhar a sua metafísica teológico-eclesiástica no interior da dogmática dos primeiros
séculos. Plotino foi, juntamente com o cristão Orígenes, discípulo de Amônio Sakkas. Amônio era de pais

5
do viver cristão. Em meio a hereges e heresias6, movimentos gnósticos7 e esotéricos,
polêmicas e condenações, martírios e perseguições surgem as primeiras sínteses

cristãos, mas retornou ao culto dos velhos deuses. Fundou uma escola em Alexandria. Nada escreveu.
Centrou a filosofia na vida da alma. Morreu cerca do ano 242 d.C. Podemos caracterizar com algumas
teses o pensamento plotiniano: A) há uma nítida distinção entre o mundo sensível (kosmos aisthetikos),
corpóreo, e mundo inteligível (kosmos noetikos), incorpóreo. B) O mundo inteligível é formado por uma
tríade hierarquicamente ordenada: as três hipóstases (princípios subsistentes em si mesmos), a saber, o
Uno (Hén), o Intelecto (Nous) e a Alma (Psyché). C) Este esquema triádico funciona de tal maneira que a
hipóstase superior produz aquela inferior, sem diminuir sua potência, doando sem empobrecer. D) A
relação entre as hipóstases segue um ritmo também triádico assim caracterizado: cada hipóstase
permanece junto de si mesma (imanência) e, ao mesmo tempo, atua na produção da hipóstase sucessiva,
momento chamado de “processão”; cada hipóstase derivada, por sua vez, opera um retorno à hipóstase
anterior, momento chamado de “conversão”. E) O mundo sensível, material-corpóreo, não constitui uma
hipóstase, isto é, não subsiste em si mesmo, mas é produzido pela terceira hipóstase: a Alma; ele não tem
a força para fazer o retorno ou conversão, desvanece e decai no não-ser.
6
A heresia faz parte cristianismo. Só o cristão pode ser herético. A palavra “heresia” vem do grego
“haíresis”. Esta palavra tinha uma envergadura semântica que vai do significado de tomada, conquista,
escolha, eleição, preferência e inclinação até o significado de escola filosófica, de seita, de divisão e facção
e de falsa doutrina no contexto do cristianismo. A heresia seria, assim, uma escolha que acarreta uma
concepção da fé heterodoxa. Uma verdade ou mais verdades da fé é tomada e ao, mesmo tempo, retirada
de seu todo orgânico, isolada, e, ou falsamente interpretada, ou negada. A heresia tem um sentido
positivo para o cristianismo e o desenvolvimento de seus dogmas. A evolução dos dogmas no cristianismo,
com efeito, é a história de um discernimento e de uma decisão que acontece através de um progressivo
e cada vez mais nítido não às heresias. Na história da evolução dos dogmas do cristianismo a filosofia
sempre teve um papel relevante. Na verdade, sobretudo a partir das elaborações dogmáticas cristológicas
e trinitárias, do século III em diante, a metafísica grega foi sendo cada vez mais assimilada na formulação
da doutrina cristã. Podemos dizer que as heresias expressam uma metafísica heterodoxa da doutrina
cristã e, de outro lado, o dogma expressa uma metafísica ortodoxa da doutrina cristã, que é definida
principalmente nos primeiros concílios ecumênicos da história do cristianismo. O cristianismo foi
elaborando a sua doutrina ortodoxa nos dogmas emanados de quatro concílios ecumênicos: Niceia I (325),
que se combateu o Arianismo e declarou que o Filho é consubstancial ao Pai (homousios); Constantinopla
(381), que estende a definição de consubstancialidade também ao Espírito Santo; Éfeso (431), que
condena o monofisismo: afirma a unidade das duas naturezas, completas e perfeitas em Jesus Cristo,
humana e divina. Emite a seguinte sentença: “Todos nós professamos um e idêntico Filho, Nosso Senhor
Jesus Cristo, completo quanto à divindade e completo quanto à humanidade, em (não “de”) duas
naturezas, não confusas e não transmudadas (contra os monofisistas), inseparadas e indivisas (contra os
nestorianos) unidas ambas em uma pessoa e em uma hipóstase”. As Igrejas não calcedonianas não
reconhecem este concílio e nenhum dos posteriores. São elas: Igreja Apostólica Armênia; Igreja Ortodoxa
Síria; Igreja Ortodoxa Copta ou Alexandrina (egípcia ou etíope); Igreja Ortodoxa Etíope; Igreja Ortodoxa
Indiana; Igreja Ortodoxa Eritréia. O quarto concílio decisivo na definição da doutrina cristã foi o de
Calcedônia (451), que condenou o Nestorianismo, que negava a união hipostática da natureza divina e da
natureza humana em Jesus. O Nestorianismo provinha da tradição eclesiástica e teológica da Igreja de
Antioquia, da Síria e combatia o Monofisismo, cuja raiz se encontrava na tradição eclesiástica e teológica
da Igreja de Alexandria. O monofisismo afirmava unicamente a natureza divina, que, na encarnação do
Lógos, teria absorvido a natureza humana de Jesus. Foram como “Cila” e “Caríbdis” na Igreja do século IV-
V. As Igrejas Católica Romana, Bizantina e também o protestantismo moderno aceitam as definições de
fé destes quatro primeiros concílios ecumênicos.
7
No interior do cristianismo, desenvolveu-se o gnosticismo como uma doutrina que faz depender a
salvação do homem de seu conhecimento das realidades espirituais. O gnosticismo apareceu na história
do cristianismo como um sistema sincrético de crenças, cujas raízes são anteriores ao próprio
cristianismo. Trata-se de um sincretismo formado por elementos cristãos, judaicos, persas, babilônicos,
egípcios e gregos. Ele aparece no século II e no século III dá origem à forma mais sincrética possível no
maniqueísmo. Os primeiros gnósticos são Simão, o Mago e Menandro, ambos de Samaria. O mais
artificioso dos gnosticismos foi o alexandrino, representado por Basílides e Valentim. Depois, há o

6
doutrinárias e as balizas das decisões conciliares. O legado da Patrística para os
medievais e para toda a posteridade (também a moderna) consta do imenso acervo da
Bíblia e das respostas, interpretações, sínteses, apologias, exortações, definições,
homilias, condenações, atas de martírios e hagiografias que surgiram na igreja dos
primeiros séculos. Daí surgiu toda uma elaboração da vida e da doutrina, da moral, dos
sacramentos, do governo, da ascese e da mística que veio a dar uma feição concreta ao
cristianismo.

A resistência à filosofia em alguns Padres da Igreja - Tertuliano


A difusão do cristianismo pelo mundo grego tornou inevitável o encontro entre
fé cristã e pensamento filosófico grego. Entre os primeiros escritores cristãos há aqueles
que opõem uma resistência à filosofia no interior do cristianismo, tais como Taciano,
Irineu de Lyon, Lactâncio e Tertuliano. Mas há também os que acolhem a filosofia no
mundo da fé cristã, como Justino o Mártir, Clemente de Alexandria e Orígenes, e o
capadócio Gregório de Nissa. Tertuliano (séc. II-III) assume uma posição radical contra a
mistura de cristianismo e filosofia. Nos seus escritos encontramos posições do seguinte
teor: assim como os profetas são os patriarcas dos cristãos, os filósofos são os patriarcas
dos heréticos no cristianismo. Platão é um recipiente de condimentos para os gnósticos.
Um simples cristão, pela fé na palavra de Cristo, tem acesso a Deus mais do que os
maiores filósofos dos gregos pela simples via da razão, sim, mais do que Platão.

gnosticismo sírio, professado por Saturnino, Taciano, Júlio Cassiano, Marcião e Carpócrates, dentre
outros. Um dos escritores gnósticos de maior vulto foi Valentim. Valentim ou Valentino (c. 100 – 175):
nascido no Delta Egípcio, em Phrebonis, recebeu educação grega na vizinha cidade de Alexandria. É
provável que ali ele tenha conhecido Basílides e que tenha sofrido a sua influência. Era conhecedor do
platonismo alexandrino e da interpretação bíblica alegórica introduzida por Filon de Alexandria. Começou
a ensinar em Alexandria entre 117 e 138. Também ele invocava uma sanção apostólica para o seu
ensinamento, dizendo ter recebido lições de certo Teudas, relacionado com São Paulo. Entre 136 e 140,
Valentino mudou para Roma, onde atuava publicamente como um líder e mestre cristão. Contudo,
entendia que a escritura podia ser interpretada alegoricamente e que ela escondia uma verdade mais
profunda e reuniu em torno de si um círculo esotérico, origem dos Valentinianos. Parece ter pretendido
ser bispo de Roma, mas isso não aconteceu. Em sua época, Pio foi eleito bispo de Roma (Papa). Valentino
parece ter sido alvo de ataques de teólogos ortodoxos já em vida. Alguns Padres afirmam que ele devera
se retirar de Roma. Sua carreira se encerrou por volta de 165. Não se tem notícias sobre sua morte.
Embora situe seu ensinamento no quadro de um mito gnóstico, o teor da sua doutrina era mais cristã e
sua linguagem era fortemente platônica. Contrabalançou os elementos gnósticos com outras duas
tradições: a da tradição do Evangelho de Tomé (cfr. LAYTON, 2002, p. 425-483) e a dos escritos herméticos
atribuídos a Hermes Trimegisto, especialmente o Poimandres (Cfr. LAYTON, 2002, p. 523-545).

7
Tertuliano concede que os filósofos muitas vezes disseram coisas próximas do que os
cristãos dizem, como, por exemplo, os estoicos (Cfr. a sus expressão: “Seneca saepe
noster” – Sêneca é muitas vezes dos nossos). Mas, se os filósofos disseram coisas
acertadas e semelhantes ao que dizem os cristãos é por acaso, como marinheiros que,
por acaso, dão em algum porto, levados por uma cegueira afortunada. Para marcar a
diferença entre a filosofia e a fé cristã, Tertuliano usa palavras inflamadas e uma retórica
feita de antíteses e de paradoxo:

O que tem o filósofo e o cristão em comum? O


discípulo da Grécia e o discípulo do Céu? O pretendente à
fama e o pretendente à vida eterna? O fazedor de palavras e
o realizador de ações? O destruidor e o edificador das coisas?
O amigo e o inimigo do erro? O falsificador da verdade e o
seu reconstituidor? O seu ladrão e o seu vigia? (Apologia 46).

O que tem em comum Atenas e Jerusalém, a


Academia e a Igreja, os heréticos e os cristãos? (Da
Prescrição 7).

O filho de Deus foi crucificado, do que não me


envergonho, porque há que se envergonhar. E que o filho de
Deus tenha morrido, é de todo crível, porque é inepto
(prorsus credibile est, quia ineptum est). E que, sepultado,
tenha ressuscitado, é certo, por ser impossível (certum est,
quia impossibile est). (Da Carne de Cristo 5).

O uso destes paradoxos remete a Paulo: “Quod stultum est Dei, sapientius est
hominibus” – “O que é estulto de Deus, é mais sábio do que os homens” (1 Cor 1, 25).
Com estes paradoxos Tertuliano remete para a o caráter transcendente da fé cristã. Esta
não é, para ele, irracional, mas suprarracional. A razão ultrapassa a razão. A razão do
divino ultrapassa a razão do humano. É por isso que Tertuliano pode dizer: “quid divinum
non rationale?” (Que há de divino que não seja racional?) (De fuga 4). “Deus, criador de
tudo, não providenciou, dispôs e ordenou, nada sem razão, nem quis que fosse tratado
ou entendido sem razão” (De Penitentia 1). O cristianismo é uma sabedoria, mas uma
sabedoria superior à sabedoria filosófica: uma sabedoria que vem da escola do céu

8
(sapientia de schola coeli – De Anima 16). Partindo disso, fica difícil prestar
reconhecimento à sentença “credo quia absurdum”, que Tertuliano não disse, mas que
lhe fora atribuída ao longo da história. No entanto, como a exclusão não é um
relacionamento apropriado para com o outro, Tertuliano não conseguiu manter a
filosofia muito longe de si. Para refutar a filosofia, teve de filosofar. Mas não conseguiu
filosofar de modo vigoroso. Acabou assumindo posições filosóficas estoicas que, mais
tarde, seriam rejeitadas pelos demais escritores cristãos, como aquelas que podiam ser
colocadas sob a etiqueta de materialismo (tudo é corpo; a alma é um corpo sutil, como
o ar, etc.). Tertuliano era um escritor ardoroso e cheio de zelo. Seu zelo, porém, o
conduziu à intransigência, sobretudo moral, e esta posição foi recusada pela Igreja.
Considerando os cristãos católicos como por demais indulgentes para com o corpo e
moralmente laxos, ele aderiu à heresia do montanismo8 e, depois, considerando
também esta seita como ainda relaxada nos costumes, fundou uma seita rigorista que
levou o seu nome. O encratismo (proscrição do casamento) foi uma tendência desta
seita. A seita dos tertulianistas existia em Cartago ainda no tempo de Agostinho, que os
reconciliou com a Igreja Católica.

A antifilosofia de alguns Padres da Igreja lhes custaria caro. Tertuliano fora um


escritor cristão brilhante, mas, sua incursão em posições consideradas heréticas o
ofuscou. Taciano9 e Lactâncio10 não se tornaram grandes autoridades doutrinais na

8
No século II, o asiático (nascido nos confins da Mísia e da Frígia) Montano, que se considerava
diretamente inspirado por Deus e portador de uma nova revelação (a do Espirito Santo, o Paráclito, de
quem se considerava o porta-voz), atraiu um grupo de entusiastas e fundou uma seita rigorista e
milenarista, que permaneceu no oriente até o século VIII.
9
O assírio Taciano (séc. II), que foi aluno brilhante de Justino em Roma (séc. II), filósofo convertido ao
cristianismo, não seguiu o mestre em sua apreciação positiva da filosofia. Em vista de defender a
desprezada “filosofia dos bárbaros”, que era o cristianismo, ele ataca duramente o helenismo em seu
“Lógos pròs hellenas” (Discurso contra os gregos). Dos gregos ele ataca a imoralidade dos costumes, os
deuses, que ele reduz a demônios, e a mitologia, a magia, o fatalismo e a astrologia, e, junto com isso
tudo, a filosofia. A “nossa filosofia” – é assim que Taciano chama o cristianismo – é mais antiga do que a
filosofia grega, diz ele, retomando um tema dos polemistas da escola judaico-alexandrina (cfr. Fílon,
Alegorias I, 33). O que os filósofos gregos teriam visto de verdadeiro, teriam roubado dos judeus. Ainda
que não seja verdadeira esta tese, ela demonstra, porém, como observa Gilson, “que os primeiros
pensadores cristãos tiveram consciência clara de que certa área de problemas pertencia conjuntamente
à jurisdição dos filósofos e à dos cristãos” (Gilson, Etienne. A filosofia na Idade Média. São Paulo: Martins
Fontes, 1995, p. 10). Taciano não conseguiu manter-se na ortodoxia do cristianismo. Acabou debandando
para o gnosticismo de Valentim e, tomado por um rigorismo incomum, à semelhança de Tertuliano,
tornou-se figura importante de uma seita encratita, isto é, que proscrevia o casamento, e que chegava ao
extremo de proibir o vinho, mesmo na celebração da eucaristia.
10
O norte-africano Lactâncio (250-325) foi aluno de Arnóbio de Sica (no território que hoje pertence à
Tunísia), apologista cristão, atuou como professor de retórica na Nicomédia (no território da atual

9
tradição do cristianismo patrístico. Um escritor de maior vulto foi Irineu de Lion. Sua
resistência à filosofia tem a ver com a subsunção da filosofia grega por parte dos
gnósticos11. Para Irineu, a verdadeira gnose seria a fé na revelação divina, que pode ser
encontrada nas Escrituras Sagradas e na tradição apostólica, e o conhecimento que esta
fé gera de si. O princípio fundamental que Irineu expressa é: Deus não pode ser
conhecido sem Deus e o verdadeiro conhecimento de Deus se dá por meio da revelação
divina, que contida na Bíblia e que é recolhida e acolhida na tradição apostólica da Igreja.
Irineu faz ver que a doutrina da Igreja se afasta do dualismo e do espiritualismo gnóstico
de maneira resoluta12. A fé cristã aceita a criação do mundo material e professa a

Turquia) e se converteu ao cristianismo por volta do ano 300. Em 316 Constantino o encarregou da
educação de seu filho. Entre 307 e 311 escreveu sua obra principal: as “Instituições Divinas”. Lactâncio
retoma a fala de Paulo, de que a sabedoria do mundo é loucura diante de Deus. A filosofia até busca a
sabedoria, mas não é a sabedoria, diz ele no terceiro livro desta obra (III, 2). Incapaz de encontrar a ciência
e a sabedoria, que só vem ao homem desde fora (extrinsecus), o filósofo persiste no campo das opiniões.
As contradições entre as escolas filosóficas testemunham isso. Somente a revelação divina pode dar ao
homem o acesso à verdade e, assim, à ciência e à sabedoria. Na fé cristã, Lactâncio vê mais razão do que
na razão filosófica. No mundo pagão, o culto dos deuses e a filosofia se desentendem. O homem fica
diante da possibilidade: religião sem sabedoria ou sabedoria sem religião. Somente o culto do Deus único
abre ao homem a possibilidade de conjugar sabedoria e religião. O Deus único mesmo é a fonte, quer da
sabedoria, quer da religião. Lactâncio procura mostrar que o homem foi criado pelo Deus único para
cultuá-lo e, por meio deste culto, acompanhado pela justiça, o homem alcançar a imortalidade. Lactâncio,
no entanto, quando tem que entrar em detalhes na exposição de seu ensinamento, muitas vezes incorre
em erros, em argumentos frágeis, deixando lacunas. Embora tenha conhecido e estimado o platonismo
do Corpus Hermeticum, e admirado que Hermes Trimegisto10, em seu “Lógos Téleios” (Discurso Perfeito)
tenha chegado muito próximo das intuições cristãs, Lactâncio não passou de um moralista, não
alcançando nunca um nível de pensamento metafísico, como acontecera, por exemplo, com Orígenes e
com Agostinho.
11
Irineu teria nascido na primeira metade do século I (c. 130), na Ásia Proconsular, a parte mais ocidental
da atual Turquia, provavelmente na cidade de Esmirna. Quando jovem, ali ele teria conhecido Policarpo,
que fora discípulo do Apóstolo João. Quando adulto, em todo o caso, Irineu se tornou bispo de Lyon, na
Gália, hoje parte meridional da França. Sua principal obra foi a “Refutação e desmascaramento da
falsamente assim chamada Gnose” (Elenchos kai anatrophe tes pseudonymou gnoseos), a qual é
conhecida também como Adversus Haereses (Contra os hereges).
12
O cristianismo introduz a fé de que a redenção alcança a carne humana e a matéria cósmica, de que
essas são, na sua origem, obras da ação criadora de Deus e que serão, no fim, redimidas juntamente com
o espírito, ali onde o grego recorre ao espiritualismo que reduz e condena a matéria ao não-ser ou à
função de origem do mal. O cristianismo se contrapõe também ao dualismo gnóstico. Característico do
modo de pensar gnóstico é o dualismo cósmico/metafísico: Deus, como puro espírito, é o bem; a matéria
é o mal. De Deus procederam por emanação os eons (hipóstases), de modo que a luz do espírito foi se
misturando com as trevas da matéria. No eon de Cristo acontece a salvação, que é a separação entre o
espírito e a matéria. Cristo é o Lógos celeste, que não se encarnou em um corpo material, apenas assumiu
um corpo aparente ou um corpo espiritual. O Logos (Cristo) ensina ao homem o caminho da ascensão e
do retorno a Deus, através da superação do apego à matéria e ao mundo corpóreo-sensível. O espírito do
homem é uma centelha da luz divina, mas se encontra aprisionado em um corpo material, por isso, está
também dominado pela ilusão, que é o mundo. Ele, com efeito, se encontra de início e no mais das vezes
submerso em estado de ignorância e os espíritos malignos procuram mantê-lo neste estado. O homem,
no entanto, sente em seu íntimo o impulso para a libertação de sua alma, a qual só é atuável através do
conhecimento. Cristo é aquele que traz ao homem a possibilidade desse conhecimento, que traz

10
encarnação como central na salvação do homem. Aqui podemos recordar o que disse
Tertuliano: caro cardo salutis (carne: eixo da salvação). O gnosticismo entendia que a
matéria era o lugar do mal e que o espírito era o lugar do bem. O cristianismo, no
entanto, que o mundo material, enquanto criado por Deus, é em si mesmo bom; que o
mal é algo que acontece propriamente na dimensão do espírito; e que a salvação do
homem se dá pela encarnação do Lógos como homem real, de carne e osso, na pessoa
de Jesus Cristo, que foi em tudo igual aos homens, menos no pecado. Por isso, a
redenção não é uma salvação apenas do espírito, mas do homem todo, e, com isso, de
todo o cosmo, pois o homem, em seu ser corporal e espiritual, reúne todos os modos
de ser de todos os entes, sejam eles corpóreos ou incorpóreos.

A subsunção da filosofia na sabedoria da fé em alguns Padres da Igreja: de


Justino a Gregório de Nissa

Outra vertente dos Padres da Igreja realiza a subsunção e a apropriação criativa


da filosofia no interior da meditação a respeito da fé cristã. Esta vertente é bem
representada por escritores como Justino o Mártir, Clemente de Alexandria, Orígenes e
os Capadócios (Basílio Magno, Gregório de Nazianzo e Gregório de Nissa).

libertação e que reergue o homem, elevando-o a Deus. Ao Cristo espiritualista do gnosticismo, o


cristianismo ortodoxo contrapõe o Cristo enquanto Logos encarnado. Irineu, em discordância com os
gnósticos, diz que o Logos não é uma dentre outras emanações de Deus, mas sim o seu Filho co-eterno e
co-igual. O Logos permanece em eterna unidade com Deus, mesmo vindo ao mundo na carne da
humanidade. Ele se subordina ao Pai não segundo o ser divino, que é o mesmo e uno, mas segundo a sua
condição de ser gerado e enviado. O Logos encarnado é a pessoa de Jesus, verdadeiro homem, que viveu
as vicissitudes da condição humana, menos o pecado, inclusive a paixão e morte na Cruz. Ao adotar a
natureza humana ele a divinizou. Por meio dele Deus criou e salvou o mundo inteiro. Também a matéria
participa da criação e da salvação divina, operadas pelo Logos. A encarnação e a ressurreição de Cristo é
o penhor da ressurreição da carne, isto é, dos justos em seus corpos materiais. Tudo isso, pode-se ver, vai
contra uma compreensão espiritualista e dualista do tipo gnóstico. Apesar da sua ortodoxia, Irineu
ensinou elementos que depois não se tornaram uma doutrina comum da Igreja. Ensinou, assim como
Justino, que a alma não era por si mesma eterna, mas que sua imortalidade era não um atributo da
natureza e sim um dom da graça e da vontade de Deus. Ensinou também o milenarismo, ou seja, a
doutrina baseada numa interpretação do Livro do Apocalipse, segundo a qual antes do Reino definitivo
de Deus aconteceria o Reino de Cristo e dos justos neste mundo, por uma duração de mil anos.

11
Justino é um dos primeiros filósofos a se tornar cristão. O itinerário de sua busca
filosófica o levou à fé cristã. Nela, como antes dele Aristides13, Justino encontrou uma
sabedoria que considerou como a “verdadeira filosofia”, entendendo por “filosofia” não
só um modo de pensar, mas também de ser, não só uma investigação do pensamento,
mas também uma forma de vida14. Justino escreveu duas Apologias15 e o Diálogo com
Trifão16, ancião e sábio judeu com quem ele discute a respeito da fé. Trata-se de uma
tentativa de um escritor cristão se explicar com o judaísmo, mostrando suas
convergências e divergências. O intuito principal de Justino é mostrar a universalidade
da mensagem cristã. O cristianismo suplanta o judaísmo, na medida em que Cristo se
consuma o sentido da Torah (Lei – Diretriz – Instrução) e se realizam as profecias
judaicas. Ao mesmo tempo, a mensagem cristã é destinada a todos os povos. Justino
identificou o Lógos do Evangelho de João, que “ilumina todo homem que vem ao
mundo”, com o Lógos dos estoicos, que dá vida ao mundo e o rege. O Lógos dos estoicos,
por sua vez, é uma ressonância tardia do Lógos de Heráclito: a Unidade unificadora de
tudo, a Unidade mística do real. Pois bem, para Justino, Cristo é o Lógos que se fez
homem. Cada homem tem uma participação parcial no Lógos: traz em si uma semente
do Lógos ou um Lógos seminal (Lógos spermatikós). Tudo o que os filósofos falaram de
bom e de verdadeiro foi por causa de sua afinidade com este Lógos seminal divino, de
acordo com a parte e a participação que lhes coube neste. Mas Cristo é o Lógos total,

13
Este escreve uma apologia endereçada ao imperador Antonino Pio (c. 140), um escrito que se parece,
no estilo, à Didake, a doutrina dos apóstolos transmitida pela tradição, e à Carta a Diogneto, que
apresenta o Logos como technites kai demiourgos ton holon – artífice e demiurgo do todo. Aristides
confessa que no cristianismo encontrou a verdadeira filosofia. Seu empenho é refutar o politeísmo dos
pagãos e mostrar a racionalidade do monoteísmo dos judeus e cristãos. Em Aristides, Deus é apresentado
como o Único e com os atributos de insondável, inacessível, infinito, inominável, criador bondoso da
maravilhosa ordem do universo e do homem mesmo. Aristides irá testemunhar que este Deus é quem
enviou o seu Filho eterno, que, na plenitude dos tempos, se encarnou no ventre da Virgem Maria
(ÜBERWEG, 1927, p. 14).
14
Justino, nascido na Palestina, em uma cidade colonial romana, Flávia Neápolis (Nablus, antiga Siquém
da Samaria), de pais gregos, tinha percorrido, em sua formação filosófica, as várias correntes da filosofia
helenística, em busca da sabedoria, que só encontrou no cristianismo. Sua conversão se deu por volta de
132. Como Aristides, tomava o cristianismo como a “verdadeira filosofia”, ou seja, como a filosofia segura
e conveniente: “tauten monen euriskon philosophian asphale te kai symphoron, encontrei a única filosofia
confiável e vantajosa”, dizia ele (Dial. c. 8) (ÜBERWEG, 1927, p. 15). Mesmo depois de sua conversão ao
cristianismo, continuou usando o manto dos filósofos (andava em traje de filósofo: en philosophou
schemati). Fundou uma escola em Roma, onde polemizou com o filósofo cínico Crescêncio, e ali também
morreu, mártir, entre 163 e 167, sendo Rústico o prefeito de Roma e Marco Aurélio o imperador.
15
A apologia era um arrazoado jurídico, que visava apresentar a reivindicação dos cristãos aos
imperadores romanos, de obter reconhecimento legal e direito de existência no domínio do Império.
16
Alguns identificam este sábio judeu com o célebre rabino Tarfão, morto em 155.

12
que, “por amor a nós, se tornou homem para partilhar de nossos sofrimentos e curá-
los”, diz ele no capítulo 13 da sua segunda Apologia. Esta posição sobre a universalidade
do Cristo e da mensagem cristã o leva a tomar os bens da filosofia como pertencentes
ao patrimônio do cristianismo.

Mais decisivo ainda para uma subsunção da filosofia por parte do cristianismo
foi o empenho de Clemente de Alexandria e de sua escola17. Trata-se de uma escola que
unia o estudo das artes liberais e da filosofia aos estudos próprios da fé cristã. Supõe-se
que o primeiro diretor desta tenha sido Panteno18. Contudo foi Clemente que dera à
escola cristã de Alexandria um direcionamento de pensamento decisivo. Clemente tinha
uma excelente formação filosófica. Os seus escritos retomam os pensamentos de Platão,
do estoicismo (Musônio Rufo) e de Filon de Alexandria. Embora muitos escritos de
Clemente tenham se perdido, uma compreensão do seu pensamento se pode obter a
partir de sua famosa Trilogia. A primeira obra de sua trilogia é o “Logos proteptikos pros
Hellenos” (Discurso de Exortação aos Gregos). A segunda se intitula “Paidagogos”
(Educador) e a terceira, “Stromateis” (Tapetes). O Lógos Total é o Cristo e este é o
Mestre Universal. Todo o mundo se tornou, doravante, Atenas e Hélade, por causa do
Logos. Todos podem se tornar discípulos dele: judeu e gentio; grego e bárbaro; homem
e mulher. Como dirá mais tarde Eusébio de Cesaréia (265-369), O cristianismo é uma
filosofia verdadeira e uma filosofia para todos: “a filosofia bárbara que nós seguimos é
uma filosofia verdadeira e verdadeiramente perfeita” (Strom. II, 2) (Apud PADOVANI,
1954, p. 84). Nele, todos se tornam filósofos, não somente os homens, mas também as

17
Alexandria era um grande centro de estudo na antiguidade tardia. Reunia matemáticos e pesquisadores
das ciências naturais e das artes filológicas, além de escolas filosóficas helênicas, onde convergiam
principalmente a corrente platônica e a estoica, embora ali também vivesse, na passagem do século II
para o III, um grande representante de ceticismo, o filósofo e médico Sexto Empírico. Havia também as
escolas judaicas, herdeiras da sua tradição sapiencial e da obra de Filon e as escolas gnósticas, onde
ensinavam Basílides e Carpócrates.
18
Este fora um filósofo estoico, convertido ao cristianismo. Ele teria viajado à Índia e retornado ao Egito,
onde ensinara na escola cristã de Alexandria, por volta do ano 180. Deve ter morrido pelo ano 200. Não
há resquícios de escritos seus. Supõe-se que Clemente tenha nascido em Atenas, entre 140 e 150, de
família não-cristã. Sabe-se que se converteu ao cristianismo e que viajou por diversos países
mediterrânicos. Depois de percorrer a Grécia, a Ásia Menor e a Palestina, se estabelecera em Alexandria,
no Egito. Assumiu a direção da escola após a morte de Panteno (200). Provavelmente não fora presbítero,
mas catequista. Na perseguição aos cristãos, deflagrada no ano de 202, Clemente deixou Alexandria e
refugiou-se na Cesareia da Capadócia (Ásia Menor), junto do bispo Alexandre, seu ex-aluno. Este, numa
carta a Orígenes, de 217, se refere a Clemente como já falecido.

13
mulheres, não somente os ricos, mas também os pobres, não somente os cidadãos
livres, mas também os escravos. Mais tarde ainda, mesmo os monges irão entender a
vida contemplativa vivida nos desertos e nas montanhas como “verdadeira filosofia”.

O conceito de filosofia, aqui, é o de um modo de vida pautado no amor à


sabedoria – neste caso, a sabedoria da fé cristã, que não exclui, antes inclui o que a
sabedoria humana podia alcançar. Clemente assume as artes liberais (Trivium e
Quadrivium) como preparação para a filosofia; e a filosofia como preparação para a
sabedoria da fé. A verdadeira filosofia não coincide com nenhuma das correntes
filosóficas e a filosofia grega é somente uma filosofia parcial. Dentre as correntes
filosóficas gregas, porém, segundo ele, a de Platão é a melhor: ho panta aristos Platon,
... hoion theoforoumenos – o melhor de todos é Platão, o “teóforo”, ou seja, aquele que
porta consigo o divino (Paid. III, 2) (Apud ÜBERWEG, 1927, p. 63). A
ideia de Deus não é estranha ao homem. Todo homem tem em si um conhecimento
antecipado, uma pre-noção (prolepsis) da verdade da existência de Deus (Strom. V, 133).
Trata-se de uma iluminação natural que vem do próprio Deus, ou melhor, de seu Logos
que ilumina todo o homem que vem a este mundo (Prot. VI, 68-72). “Todos os seres
recebem, de antemão, uma relação para com o Pai e Criador do universo” (Prot. V, 133).
Somente por isso é que os filósofos, sobretudo Platão, chegaram ao conhecimento de
um Deus como fundamento originário e como fim consumador de todo o movimento
do universo (Prot. VI, 68-72). O método pelo qual se chega à ideia de Deus é o da “via
abstrationis” (Strom. V, 71). Abstraindo-se, ou melhor, prescindindo de todo o conteúdo
empírico que o universo apresenta e atendo-se somente à forma racional dos diversos
degraus do ser, o pensamento chega à ideia de um ser puramente espiritual, à ideia do
Uno, que transcende todo o ser e todo o conhecimento.

Contudo, como antes fizera Filon de Alexandria, também Clemente afirma que
Deus está ainda mais além desta Unidade: “epekeina tou henos kai hyper auten monada
– acima do Uno e da própria Unidade” (Paid. I, 71). Embora o homem tenha essa pre-
compreensão inata de Deus em si mesmo, ele é incapaz de tornar esta ideia objeto de
uma demonstração. “Deus é indemonstrável” (Strom. IV, 156). A existência de Deus não
pode ser agarrada através de uma ciência demonstrativa; pois esta se apoia sempre em
algo já dado de antemão e já conhecido, contudo, nada é dado antes daquele que é o

14
Imutável (Strom. V, 82). Assim como a existência de Deus é indemonstrável, do mesmo
modo a sua essência nos é incognoscível. De Deus, podemos afirmar que “não
conhecemos o que ele é, mas sim o que ele não é” (Strom. V, 71). Ele é “invisível e
inefável” (Strom. V, 78). E está acima de todas as categorias (Strom. V, 71). Tudo o que
o homem pode alcançar a partir de si no conhecimento de Deus é muito pouco. O
conhecimento mais perfeito de Deus é aquele que acontece à medida que o homem dá
ouvidos ao Lógos. O Logos é, pois, “o verdadeiro mestre, que ensina a respeito de Deus”
(Strom. V, 1). O Logos é a fonte e a consumação de toda a revelação de Deus, natural ou
sobrenatural. Dele advêm as intuições absolutas dos filósofos e as palavras inspiradas
dos profetas. O Logos é a Inteligência ordenadora do cosmos, intuída pelos estoicos; é
também a Sabedoria mediadora entre Deus e o universo, evocada por Filon de
Alexandria; é ainda o Filho Unigênito celebrado no Prólogo do Evangelho de João; e,
pelo evento da Encarnação, é Jesus de Nazaré. Toda a revelação divina, toda a
religiosidade humana e toda a forma de conhecimento da verdade provém, pois, do
Logos e está sob o seu domínio.

Clemente lançou o projeto mesmo da ordem do saber, que vigorará na Idade


Média: da luz natural da razão à fé; da fé à razão iluminada pela luz sobrenatural da
revelação, ou seja, à ciência da fé; da ciência da fé à sapiência, que é o conhecimento
consumado das coisas divinas e humanas e de suas razões; da sapiência à caridade, isto
é, ao relacionamento amoroso e amigo com Deus; da caridade à mística, que é o saber
feito experiência, o conhecimento como contato íntimo na união mística com Deus, a
finalidade da contemplação. Orígenes e os Capadócios seguiram este caminho aberto
por Clemente. Em Orígenes reúnem-se o conhecimento das Escrituras Sagradas, o
domínio da filosofia grega, especialmente da metafísica, e a capacidade sistematizadora
da doutrina da fé. Eusébio de Cesaréia (265-369), o maior historiador da Igreja na
Antiguidade, o considera como modelo do filósofo cristão19.

19
Orígenes nasceu por volta de 185 em Alexandria, de pais cristãos. Morreu mártir em 254, na cidade de
Tiro, após ser encarcerado durante a perseguição de Valeriano, que começou em 249. Na infância, fora
educado por seu pai Leônidas e, na juventude, por Clemente na escola catequética de Alexandria. Após o
martírio de seu pai (201/202), ele precisou cuidar de sua família, trabalhando como professor de
gramática. Em 215 foi para a cidade de Cesaréia Marítima (Palestina, perto da atual Tel Aviv). Em 217 foi
chamado de volta para Alexandria pelo bispo Demétrio, para dirigir a escola catequética e o fez até o ano
de 230. Neste ano foi, durante uma viagem, ordenado presbítero. Devido ao seu rigor ascético foi
chamado de Adamantios, homem de aço. Num excessivo rigor ascético, tomou ao pé da letra o dito de

15
Segundo Gregório Taumaturgo, o currículo da escola de Orígenes, fundada na
Cesareia Marítima, era caracterizado pela universalidade do saber e pelo espírito de
pesquisa e investigação. Ele considerava que em toda a corrente filosófica há um núcleo
de verdade. Contudo, prezou acima de tudo a Platão. A partir de Platão, considerou o
modo de raciocínio da geometria como modelo formal de conhecimento científico e
como “algo de inabalável”. A partir daí buscou elaborar, de maneira geométrica, a
ciência da fé, em sua obra “Perì archôn” (Dos Princípios), provavelmente escrita entre
220 e 230 em Alexandria. Aqui as “archaí” têm o sentido de princípios do conhecimento.
Como faz o geômetra, ele procurou estabelecer os axiomas – os pressupostos mais
simples, elementares e evidentes – da ciência da fé e daí deduzir, por vias de
demonstração rigorosa, os demais conteúdos a serem apreendidos. Neste sentido,
Orígenes foi o primeiro cristão a buscar uma sistematização rigorosa da doutrina da fé,
servindo de modelo para os esforços sistemáticos da “sagrada doutrina” que serão
envidados pelos teólogos medievais. A obra Perì archôn só chegou até nós por meio da
tradução latina de Rufino (De Principiis), feita no ano 398. Naquele tempo a “regra da
fé” estava mais definida e alguns ensinamentos de Orígenes pareciam heterodoxos. Na
sua tradução, Rufino procurou abrandá-los. Jerônimo dá algumas informações sobre
ela. Basílio de Cesaréia e Gregório de Nazianzo apresentam alguns fragmentos na
“Filocalia” de Orígenes.

Outra obra origeniana importante para a história da filosofia é o escrito


intitulado Katá Kélson (Contra Celsum – oito livros, escritos entre 246 e 248). Celso (185
– 225) era um filósofo eclético de origem judia, que renegara o judaísmo e abraçara a
religião vigente, ou seja, a religião politeísta. Em um escrito do ano 178, intitulado
“Alethes logos” – Discurso verdadeiro –, atacava o messianismo judaico e cristão.
Atacava a fé bíblica, raiz do cristianismo, baseada, segundo ele, na excessiva valorização

Mateus 19,22 e se castrou. Foi, por problemas doutrinário, excomungado pelo bispo Demétrio. Contudo,
a Igreja de Cesaréia não reconhecera esta excomunhão do bispo de Alexandria. Orígenes foi, então, morar
na Cesaréia Marítima. Fez várias viagens na própria Palestina, na Arábia, na Ásia Menor, na Grécia e para
Roma. Assim conheceu os principais movimentos espirituais de sua época. Porfírio testemunha que em
Roma Orígenes fora aluno, junto com Plotino, de Amônio Sakkas e acrescenta que ele “conduziu sua vida
como cristão e como fora da lei; em relação, porém, às opiniões sobre as coisas e sobre o divino, ele
helenizou e sujeitou o que era dos helenos aos mitos estrangeiros” (dos judeus e cristãos) – “kata men ton
bion christianos zon kai paranomos, kata de tas peri ton pragmaton kai tou theiou doxas hellenizon kai ta
hellenon tois ethneiois hypoballomenos mythois” (Apud ÜBERWEG, 1927, p. 66).

16
da alma humana e na (absurda) opinião de que Deus se interessa pelo homem. Esta obra
não sobreviveu, devido ao triunfo posterior do cristianismo. Conhecemos algo dela pela
resposta dada por Orígenes. O seu discurso se articulava em quatro partes. Na primeira,
intencionava mostrar que os cristãos desvirtuaram a esperança messiânica dos judeus;
na segunda, buscou refutar o próprio messianismo judaico; na terceira, criticou a fé e a
moral cristãs; e na quarta parte, fazia a apologia da religião pagã.

Orígenes defende o cristianismo da acusação de misologia (ódio ao Lógos, à


razão). As palavras de Paulo a respeito da loucura da Cruz precisam ser bem entendidas.
“O apóstolo não diz em absoluto que a sapiência é estultícia junto de Deus, mas se refere
à sapiência deste mundo. Não diz simplesmente: se alguém parece ser sapiente entre
vós que se torne estulto, mas que se torne estulto neste mundo, para que seja sapiente”
(Contra Celsum, I, 15) (Apud PADOVANI, 1954, p. 88-89). A sabedoria da fé é estultícia
para a sabedoria do mundo e a sabedoria do mundo é estultícia para a sabedoria da fé.
Paulo não condena a sabedoria pura e simplesmente, mas a sabedoria “do mundo”.
“Mundo” quer dizer, aqui, segundo a linguagem cristã, não o universo, mas o homem
que se fecha à dimensão da fé. Para Orígenes, a filosofia que está mais em consonância
com o Cristianismo é a de Platão, sobretudo, devido à importância que ela dá à alma
humana, enquanto que a dos estoicos, peripatéticos e epicuristas se mantêm fechadas
à profundidade transcendental, metafísica. Orígenes não exclui, antes inclui que, se um
sapiente ou filósofo se converte ao cristianismo, passando-se por estulto aos olhos do
mundo, ele continue usando de sua razão para reafirmar, aprofundar e desdobrar a
doutrina cristã. Admite também que se possa demonstrar uma determinada
racionalidade do crido da fé cristã, ou, ao menos, a sua não absurdidade. Melhor seria
perceber que a fé tem a sua própria racionalidade, que o crer tem suas próprias razões,
que muitas vezes escapam à racionalidade filosófica. A esta racionalidade da fé, na Idade
Média, se chamaria de teologia.

A ciência da fé parte das Escrituras Sagradas. Mas estas não podem ser
interpretadas segundo a letra, mas sim segundo o espírito da letra, isto é, seus sentidos
espirituais. Somente o sentido espiritual desvela as profundidades das Escrituras
Sagradas. Assim como o homem tem três dimensões: corpo, alma e espírito; do mesmo
modo, a linguagem tem três níveis: os sons e as letras, os significados e os sentidos;

17
ainda do mesmo modo, a intepretação das Sagradas Escrituras devem se dar em três
níveis: no nível literal, no nível moral e no nível pneumático-místico. A alegoria é que
desvela os sentidos espirituais, isto é, não literais, do texto, quer no nível moral (vida
ativa) quer no nível místico (vida contemplativa).

Na esteira de Filon, Justino e Clemente, e recorrendo à filosofia platônica,


Orígenes vai elaborar uma metafísica do Lógos. O Logos é “omnium creaturarum et dei
medium, id est, mediator”: o meio de Deus e do universo, ou seja, o mediador. O Lógos
(Filho) é gerado pelo Um (Pai). Por outro lado, ele é a ideia das ideias (idea ideon) (Contra
Celsum, VI, 64) (Apud ÜBERWEG, 1927, p. 69). Pois ele é a fonte do “kósmos noetós”
(mundus intelligibilis). Nele “se encontravam, pois, todas as forças e todas as figuras
para a criação que estava por vir, tanto para as criaturas primárias, quanto para as coisas
que surgem secundariamente” (De Princ. I 2, 2). As criaturas primárias são as espirituais.
As secundárias são as materiais. A liberdade é o que caracteriza as criaturas espirituais.
O mal pertence não às criaturas materiais, mas às criaturas espirituais. O mal é, por parte
do ser espiritual, o ato de abandonar a plenitude do ser e da verdade, que é o Sumo
Bem, para se voltar para o bem participado, a criatura, e, assim, tender para o vazio e a
nulidade (o não-ser) (ÜBERWEG, 1927, p. 70). A história é a destinação das criaturas
espirituais, nas suas peripécias e vicissitudes, suas quedas e sua redenção. A liberdade
é o motivo da criação, da queda, da redenção pela encarnação do Logos, e é também da
repristinação de todas as coisas20.

O legado de Orígenes passou através de Eusébio de Cesareia e de Macrina aos


Padres Capadócios. A Capadócia era uma região da Anatólia central, hoje, parte da

20
Como teólogo, se aventurou a pensar e escrever sobre pontos que não estavam claros na bíblia, nem
na tradição apostólica. Muitas de suas inferências tinham, para ele, um valor hipotético. Algumas delas
se revelaram, depois, heterodoxas. Mas continuaram sendo defendidas por origenistas obcecados, que
dogmatizavam as doutrinas do mestre. Nestas correntes, o platonismo extremo exercia uma forte
influência. Os origenistas foram monges que viveram no Egito, na Palestina e na Síria, entre os séculos IV
e VI. Os concílios acabaram condenando, dentre outras, as doutrinas da preexistência das almas, da
reencarnação, da não punição eterna dos demônios e das almas humanas, a “apokatastasis”. Apesar de
toda a turbulência em torno dos origenistas nos séculos seguintes à sua morte, Orígenes gozou de grande
respeito também por parte de outros Padres da Igreja e dos pensadores medievais. Surgiram, pois,
defensores e admiradores entre exímios escritores e pensadores cristãos. Entre os primeiros, Gregório
Taumaturgo e Panfílio de Cesaréia, que escreveu uma apologia do mestre, conhecida por Eusébio, outro
admirador. Através de Gregório Taumaturgo, bispo de Neocesaréia no Ponto (Ásia Menor, atual Turquia),
a admiração por Orígenes chegou até Macrina, a Velha, e, por meio dela, até os Padres Capadócios, pois
Basílio Magno e Gregório de Nissa, assim como, Macrina, a Jovem, foram seus netos.

18
Turquia. Os três são: Basílio Magno (ou Basílio de Cesaréia) e seu amigo Gregório de
Nazianzo, e ainda o irmão de Basílio, Gregório de Nissa21 (século IV). Basílio e Gregório
Nazianzeno chegaram a escrever uma antologia ou florilégio de Orígenes: a “Philokalia”
(Amor às Coisas Belas). Estavam ligados, sobretudo, ao platonismo; não ao
neoplatonismo de Plotino e Porfírio, mas ao platonismo médio de Clemente, Plutarco e
Filon de Alexandria. Conheciam diretamente várias obras de Platão: Fedro, Fedon,
Symposion, República, Timeu, Crátilo. O mais pensador dos três foi Gregório de Nissa22.
A Idade Média será beneficiada por um escrito seu sobre o homem. Trata-se do escrito
intitulado “De Hominis Opificio” (Da Criação do Homem). Essa obra teve uma forte
atuação na Idade Média, através da sua difusão por João Escoto Eriúgena. Trata-se de
um discurso antropológico que conjuga passagens bíblicas com filosofemas platônicos e
aristotélicos. A presença de uma concepção da alma ao modo aristotélico é bem nítida.

O homem é uma conjunção de opostos: de mundo espiritual e mundo corpóreo.


Nele as duas esferas se unem e fica assegurada a unidade cósmica. O homem subsume
em si todos os modos de ser e níveis do mundo corpóreo. O nível dos corpos inanimados,
das plantas e dos animais. Nele, o corpo se anima de uma força vital (zotike dynamis),
que é, ao mesmo tempo, vegetativa e nutritiva, como a das plantas, e motriz e sensitiva
como a dos animais. Entretanto, no homem esta força vital corpórea (en somati zoe)

21
A influência de Orígenes vem de Gregório Taumaturgo, conhecido por Macrina, a avó dos irmãos Basílio
e Gregório de Nissa. Gregório Taumaturgo tinha sido bispo de Neocesaréia do Ponto (atual Niksar,
Turquia). Ali Macrina tinha vivido a sua infância. Mais tarde, Macrina teve de mudar para Cesaréia da
Capadócia (atual Kayseri, Turquia). Foi ali que nasceram os netos de Macrina, Basílio e Gregório de Nissa.
Basílio e Gregório de Nazianzo foram colegas de estudo, juntamente com o futuro imperador, Juliano, o
Apóstata, em Atenas. Voltando dos estudos, os dois viveram vida monástica, em Annesoi. Mais tarde,
ambos se tornaram bispos: Basílio, de sua cidade natal, Cesaréia (da Capadócia); Gregório, primeiramente,
de Sásima e de Nazianzo (também na Capadócia), e depois, à época do Imperador Teodósio I, em
Constantinopla. Cansado, porém, das lutas doutrinárias e dos reveses das intrigas políticas e eclesiásticas,
renunciou ao episcopado durante o Concílio de Constantinopla (381), e voltou para Arianzo, sua terra
natal, que ficava perto de Nazianzo. Gregório de Nissa foi educado pelo seu irmão mais velho, Basílio. Foi
bispo de Nissa e arcebispo de Sebaste (Capadócia). Combateu os arianos. Foi preso pelo governador do
Ponto, Demóstenes, mas conseguiu escapar da prisão. Renunciou para não entrar em contendas políticas
e eclesiásticas. Reassumiu o cargo, porém, em 378, depois da morte do imperador Valente, ariano.
Participou ativamente do Concílio de Constantinopla (381).
22
Entre as obras de Gregório Nisseno, do ponto de vista filosófico, podem-se destacar, dentre outros, o
“Logos katechetikos ho megas” (Grande Discurso Catequético), uma espécie de sistematização do crido
da fé, à semelhança do “Perì Archôn” de Orígenes; o diálogo “Peri Psyches kai Anastaseos” (Da Alma e da
Ressurreição), escrito em estilo platônico com Macrina (a Jovem), sua irmã, por ocasião da morte de
Basílio; e uma “Vida de Moisés”, homônimo com uma obra de Filo de Alexandria, onde Gregório delineia
o itinerário místico.

19
transcende as capacidades vegetativa e sensitiva e se atua plenamente como força
racional, que é própria dos espíritos. Na verdade, não se trata de três almas, mas de uma
única e mesma alma, essencialmente racional, que tem também as funções vegetativa
e sensitiva, além da função cognitiva.

A alma (psyche) é o princípio de vida do corpo (organismo). Corpo (organismo) e


alma não são separados. O corpo só é propriamente corpo em virtude da alma. Um
corpo sem vida (= sem alma) é um cadáver, que se decompõe, não um corpo que se
mantém. Qual é, pois, a definição da natureza da alma? Ela é “uma substância criada,
viva e racional, que confere por si mesma a vida e a sensibilidade a um corpo organizado
e suscetível de sensações, e isso enquanto durar a natureza que delas é capaz” (Makr.
29 B) (Apud ÜBERWEG, 1927, p. 88). Por força desta íntima unidade de corpo e alma,
Gregório de Nissa tende a defender a concepção de que alma e corpo surgem juntos, no
momento em que o homem é criado por Deus, a saber, no momento da concepção.
Gregório, em diferença de Orígenes, porém, nega a preexistência da alma. Contra
Platão, nega a metempsicose (transmigração da alma). Para ele, a concepção é o
surgimento do homem todo, inteiro, integral, com todas as suas possibilidades de ser.
Assim como na semente está toda a árvore, também no momento da concepção está o
homem todo, potencial e teleologicamente, presente. Assim como o desenvolvimento
da árvore vai se dando aos poucos, do mesmo modo o humano vai manifestando aos
poucos suas potencialidades. Na gestação, o que se manifesta é o princípio vital
vegetativo e nutritivo. Por isso, o embrião, o feto, o nascituro apenas crescem e se
alimentam, e suas potências sensitivas ficam adormecidas. Com o nascimento e os
primeiros tempos de vida, desperta a força sensitiva, o homem se abre para o mundo e
se ergue para o céu. À medida que este homem cresce, desperta-se também a faculdade
racional, e ele se torna apto a pensar e a querer, e vai amadurecendo, ao longo da vida,
esta dimensão do espírito, que é a última a se manifestar, mas que é a primordial e
essencial no homem. A alma não está presente apenas neste ou naquele órgão do corpo;
antes, está presente e atuante em todo o corpo, como o que lhe oferece organização,
vitalidade e sensibilidade. Enquanto racional, porém, a alma transcende o corpo que
anima e é essencialmente espiritual, imaterial, incorpórea e, por isso, imortal.
Entretanto, a unidade da alma com o corpo é tanta que, mesmo na morte, a alma não

20
se separa dos elementos de seu corpo. A morte não é propriamente o desaparecimento
da alma, como querem os materialistas, por exemplo, Epicuro. Não é também o
desligamento da alma e do corpo, como postula o platonismo. Nem a morte consegue
dissociar o corpo da alma. Na morte, a alma apenas se retrai para a dimensão do
invisível, o Hades (to aphanes te kai aeides – o não manifesto e invisível). Contudo,
mesmo ali ela permanece ligada ao seu corpo, à espera da ressurreição da carne. A
ressurreição é a reconstituição da unidade e integridade visível do homem, corpo e alma,
em um novo céu e nova terra.

A dimensão mais elevada e essencial da alma humana, do homem, é, porém, o


nous (intelecto, espírito). Pelo nous, o homem é imagem e semelhança de Deus. Muitos
se admiram de o homem ser um microcosmo, uma imagem do macrocosmo, isto é, o
mundo criado, o universo. Contudo, mais admirável é o homem ser uma imagem do
Criador. Assim como Deus é o nous que cria, organiza, rege e dá sentido a todo o
universo, também há na alma do homem uma força inteligente, que o faz transcender
o mundo corpóreo, e abarcar, pela compreensão, a totalidade do ente. O nous é, pois,
o homem interior, essencial. Esta força originária da alma humana, o intelecto, por sua
vez, se exterioriza e se expressa por meio da linguagem (logos). A linguagem é o meio
pelo qual o espírito pode atuar no mundo sensível. O homem é um ser vivo dotado de
linguagem (zoon logon echon). Enquanto ser vivo, porém, ele não pode prescindir da
sensibilidade. É verdade que, devido à íntima unidade de corpo e alma no homem, a
potência intelectiva não pode atuar sem o serviço da potência sensitiva. Há um
escalonamento nas potências da alma, onde o superior carece do serviço do inferior. A
sensibilidade supõe a materialidade e a intelectualidade supõe a sensibilidade. Apesar
dessa dependência, a potência intelectiva ultrapassa, isto é, transcende o mundo
corpóreo e sensível, e faz o homem participar do mundo espiritual. Espírito, porém, é
um modo de ser caracterizado pela liberdade. Graças à transcendência da potência
intelectiva (razão) e à liberdade da potência volitiva (vontade), o homem é imagem
(finita) de Deus (infinito). Graças à racionalidade e à liberdade, o homem exerce o
domínio sobre si mesmo e sobre o mundo e anda ereto, de cabeça erguida para o céu,
revestido de uma dignidade real. Entretanto, o homem decaiu desta sua condição de
dignidade originária, pois se pronunciou livremente contra Deus. Como consequência,

21
perdeu o domínio sobre si e inverteu a ordem constitutiva de suas potências, passando
o espírito a se submeter à sensibilidade, tornando-se escravo da concupiscência. Por
isso, para se reerguer e retornar à sua unidade com Deus, o homem necessita do
empenho de purificação e do dom da graça. A “imago Dei” (imagem de Deus) nele ficou
esquecida e perdida. Ela precisa, pois, ser reencontrada. Para Gregório, um símbolo
desta tarefa é a parábola bíblica da “dracma perdida”. Assim como uma moeda traz em
si a imagem do rei, do mesmo modo nossa alma traz em si a imagem de Deus. Para
recuperar esta imagem de Deus perdida é preciso que o homem acenda a lâmpada da
razão, iluminando o que está oculto. Depois, ele precisa varrer a casa, ou seja, dedicar-
se à purificação da alma por meio da correção ética. Se há este empenho, então a graça
oferece de volta ao homem a imagem e semelhança de Deus, que ele tinha perdido. É,
então, o momento da alegria, em que a alma racional chama as suas vizinhas para se
alegrar com ela, a saber, as demais potências, afetivas e sensitivas, para participarem de
seu júbilo e para admirarem o resplendor da imagem de Deus nela brilhando.

Gregório Nisseno não seguiu apenas pela via da especulação dialética acerca dos
mistérios da fé e da condição do homem e do mundo em face de Deus. A tese da
“imagem de Deus” no homem se tornou um fio condutor para percorrer os caminhos da
elevação mística para Deus. A elevação mística, no entanto, transcende todas as
especulações conceituais e se aquieta no silêncio do êxtase, na contemplação e união
amorosa com Deus:

Quem deixa todas as aparências para trás, não


somente o que o sentido, mas também o que a razão faz
aparecer para o olhar, este anseia sempre mais por
interioridade, até que ele, por meio do investigar da razão,
mergulha no invisível e incompreensível e aí vê Deus. Uma
vez que o buscado transcende todo saber, nisso jaz o
verdadeiro saber do buscado, nisso consiste o ver: no não
ver (en touto to idein en to me idein), em ser compreendido
pelo incompreensível, como se é envolvido por certa
escuridão (De Beatitudinis, PG 44, 377 A) (Apud ÜBERWEG,
1927, p. 89).

22
A contemplação surge de um deixar. Na Idade Média, Mestre Eckhart retomará
este princípio: a serenidade (Gelassenheit) alcança o espírito do homem à medida que
ele é capaz de deixar (lassen) tudo. Quando ele de tudo se desprende (Abgeschiedenheit
= desprendimento) e de tudo se esvazia, então Deus o preeche com a sua plenitude. Do
mesmo modo, Boaventura, no sétimo degrau do Itinerário da Mente para Deus,
convidará o peregrino a abandonar todas as atividades intelectuais, para, no silêncio e
na escuridão do mistério divino, repousar em Deus. É que, como dirá o Pseudo-Dionísio
Areopagita, Deus está além do sensível e do inteligível e quem quiser alcança-lo no seu
próprio deverá transcender tanto o sensível quanto o inteligível. Somente mergulhando
no invisível e incompreensível do mistério, somente recolhendo-se e silenciando na
intimidade deste mistério, é que o homem, de fato, conhece a Deus. Mas este
conhecimento é todo próprio, é sui generis. Conhecer é, aqui, uma experiência de
intimidade, de encontro íntimo entre amantes. A visão de Deus, porém, a visão do
invisível consiste, justamente, no não ver. Ela só acontece para além de toda imagem e
representação. Nisso consiste o ver: no não ver. Nisso consiste o conhecimento: na
(douta) ignorância, para usar uma expressão que será cara a Nicolau de Cusa. Nesta
experiência de conhecimento, o saber é sabor. O compreender consiste muito mais em
ser compreendido, isto é, abarcado pelo mistério, envolvido pela caligem divina.
Gregório de Nissa abre, assim, o caminho da tradição mística do ocidente medieval:
Dionísio Areopagita, Eriúgena, Boaventura, Eckhart, Nicolau de Cusa.

Agostinho – um pensador no fim do mundo antigo


De todos os pensadores da patrística, porém, os que se tornaram maiores
autoridades para os medievais foram Santo Agostinho, no universo latino, e Dionísio
Areopagita, no universo grego.

Agostinho vive em si mesmo o ocaso do mundo antigo. Ele é um homem que


prepara a passagem da antiguidade para uma nova época, aquela que nós, modernos,
chamamos de “medieval”. A nota fundamental, que dá o tom a todo o seu pensamento
é a quaestio Dei (a busca de Deus), que, em seu entendimento é a própria busca da
verdade e da felicidade. Seu pensamento é marcado por um forte cunho existencial. Em
cada texto de seus escritos ressoa a facticidade da existência humana vivida em primeira
23
pessoa (eu), diante de um Tu (Deus), e em comunhão com um nós (os outros,
companheiros de peregrinação na viagem da vida). Por isso, sua linguagem é,
basicamente, a da “confissão”. Confessar é, aqui, trazer à fala a alegria da libertação,
que o homem experimenta na busca e no encontro da verdade. Por isso, a confissão é,
em Agostinho, canto de louvor. A própria miséria da existência humana, experimentada
no horizonte desta libertação, se transfigura. Até mesmo a culpa se torna “feliz culpa”,
quando o homem experimenta a graça de uma verdade libertadora. E esta verdade
libertadora Agostinho experimenta no horizonte da fé cristã. É, pois, a partir deste
horizonte hermenêutico que Agostinho se apropria criticamente da filosofia grega,
tornando-se um dos maiores pensadores de todos os tempos e a grande referência para
os pensadores medievais.

Nas Confissões Agostinho medita a sua história como uma quaestio Dei (busca
de Deus). Nesta busca, ele percorre um caminho, uma viagem, que o leva a passar por
diversas estações. Nascido no ano de 354, na Numídia (território a oeste de Cartago),
mais precisamente, em Tagaste, como filho de pai romano e pagão (Patrício) e de mãe
africana e cristã (Mônica), Agostinho vive em sua própria carne o encontro de duas
culturas que se mesclam naquela região do norte da África: a cultura púnica autóctone
e a cultura romana dominante. Vive também em sua alma uma divisão: a luta entre o
apelo sensual (herdado do pai) e o apelo espiritual (herdado da mãe). Na escuta do apelo
espiritual e na correspondência a ele é que acontecem a sua conversão filosófica e a sua
conversão cristã.

O encontro com a filosofia se deu a partir da leitura do diálogo Hortêncio de


Cícero, uma exortação à filosofia, entendida como “amor à sabedoria”. Ali Agostinho se
depara com um pensamento que ele fará seu por toda a vida: que todo o homem quer
ser feliz; que a verdadeira felicidade não consiste em fazer o que se quer, mas em querer
e fazer o bem, ou seja, que a verdadeira felicidade se encontra na virtude, que torna o
homem bom e suas obras boas. Com a leitura deste livro, aconteceu a descoberta de sua
vocação filosófica, já que aquele livro mudou o seu afeto, da cobiça da vaidade da
eloquência para o desejo da imortalidade da sapiência23. Nas Confissões, Agostinho

23
Este acontecimento é posto como ponto de partida de seu itinerário filosófico-espiritual em De Beata
Vita I, 4.

24
recorda que o “amor da sapiência” tem o nome grego de “filosofia”, e que, sob este
nome grande, brando e honesto, muitos homens seduzem os outros, colorindo e
adornando os seus erros. Contudo, o discurso de exortação de Cícero, diz ele, excitou,
acendeu e inflamou nele o desejo não de aderir a esta ou aquela seita (escola filosófica),
mas sim o desejo de amar (diligere), buscar (quaerere), obter
(adsequere) e manter (tenere) a própria sapiência (ipsam sapientiam). Agostinho
encontra-se com a filosofia no caminho de sua busca pela “beatitudo” (beatitude, bem-
aventurança, felicidade). O sentido do filosofar está em levar à consumação a própria
busca humana pela felicidade, como ele dirá na obra “De Civitate Dei” (Da cidade de
Deus)23: nulla est homini causa philosophandi, nisi ut beatus sit (não há nenhuma outra
causa de o homem filosofar, a não ser para ser feliz). Porém, uma beatitude verdadeira
só pode ser encontrada na verdade. Uma beatitude que não se encontrasse na verdade
seria falsa, isto é, não seria beatitude.

No entanto, a busca da felicidade e da verdade, no amor da sapiência iria hesitar


e oscilar muito por longos anos no caminho de Agostinho. Neste caminho ele passa de
uma vida mundana para o maniqueísmo24, do maniqueísmo para o ceticismo25, do

24
Em busca da verdade e da verdadeira felicidade, e em meio às lutas com sua sensualidade – que se
ameniza um pouco com o encontro de uma companheira, com quem ele tem um filho, “Adeodato” (que
significa: Dado por Deus) –, Agostinho adere ao maniqueísmo. No dualismo ético e metafísico
característico desta forma sincrética de gnosticismo – que mistura cristianismo gnóstico, zoroastrismo,
hinduísmo e budismo – Agostinho encontra um reflexo de sua própria alma dividida. O pertencimento a
esta forma de gnosticismo se dava em três estágios: os hýlicos (materiais), os psíquicos – também
chamados de auditores (ouvintes) – e os pneumáticos (espirituais) ou eleitos. Agostinho chegou ao grau
de ouvinte. No maniqueísmo ele encontrou, provisoriamente, uma explicação para o problema do mal,
que muito o aturdia. Segundo esta doutrina de Manés (ou Mani), a realidade se divide em dois princípios
conflitantes: o do bem – espiritual – e o do mal – a matéria. Entretanto, no maniqueísmo Agostinho não
encontrou uma síntese de fé e razão. De fato, sua crença maniquéia era mantida apesar de muitas
perguntas de sua razão ficar sem resposta. Após o encontro em Cartago com um líder maniqueu, chamado
Fausto, que não conseguiu responder às suas perguntas, que se relacionavam especialmente com a
astrologia e com a concepção materialista de Deus e da alma, Agostinho abandona o maniqueísmo.
25
Após a frustração com o maniqueísmo, Agostinho busca refúgio no ceticismo da nova academia. Tende
para os filósofos acadêmicos, que em todas as questões promoviam a dúvida e afirmavam que o homem
não pode apreender nenhuma verdade com certeza absoluta. Todo conhecimento era apenas provável.
Para eles, a felicidade se encontrava na conquista da ataraxia (imperturbabilidade da alma), que se
alcança através do exame crítico de toda tese (skepsis) e da suspensão de todo o juízo (epoche). Já Cícero
tinha adotado o ceticismo como orientação de vida. Entretanto, o ceticismo de Agostinho não chegou a
ser uma postura generalizada – ele não abandonou a fé em Deus, por exemplo. Tratava-se, para ele, mais
de uma postura crítica em matéria de conhecimento. Já Clemente de Alexandria tinha combatido o
ceticismo. Clemente procurava mostrar que existe uma íntima contradição na posição cética. Caso a
afirmação “nada é certo e verdadeiro” proceda, então, no mínimo esta mesma frase deve ser verdadeira,
o que leva a concluir que a sentença “nada é certo e verdadeiro” é falsa. Entretanto, se o cético afirma
que esta sentença é falsa, isto é, não verdadeira, então ele deve conceder que há algo de certo e de

25
ceticismo para o neoplatonismo26 e, por fim, do neoplatonismo para o cristianismo. Na
fé cristã Agostinho considera ter encontrado a verdadeira religião, o caminho universal
da libertação da alma, procurado pelos filósofos neoplatônicos, e, na verdadeira religião,
a verdadeira filosofia, pois, amar a sabedoria é, em última instância, amar a Deus. A
partir de então os textos de Agostinho expressam sempre mais o empenho de buscar
uma compreensão, movendo-se ao interno da própria fé: “crede ut intelligas, intellige
ut credas” (crê para compreenderes, compreenda para creres). Na fé cristã, portanto, a
busca de Agostinho pela verdade e pela felicidade – por Deus – encontrou um firme
ponto de apoio, uma resposta ao seu coração inquieto: “porque nos criastes para Vós e
o nosso coração vive inquieto, enquanto não repousar em Vós” (Confissões I 1)
(AGOSTINHO, 1988, p. 23).

Assim que se converteu à fé cristã e pediu o batismo, Agostinho passou a


escrever profusamente obras de filosofia27. O programa de investigação filosófica em

verdadeiro. O cético não pode duvidar de tudo, pois não pode duvidar da dúvida mesma; e, no fundo,
reivindica o que ele nega: que há algo de verdadeiro e de certo (cfr. Strom. VIII, 1-8). Agostinho combate
o ceticismo por diversas frentes, sobretudo no seu livro “Contra Academicos”. Uma frente é a evidência
imediata do mundo. Mesmo se os sentidos nos enganassem a respeito do que percebemos no mundo,
não há dúvida de que há um mundo, isto é, uma totalidade de coisas que se nos manifestam. Uma segunda
frente é a evidência das verdades lógicas. Uma terceira, é a evidência imediata do “cogito”. Mesmo se o
conhecimento sensível e o conhecimento racional fossem enganosos, há algo que se subtrai a todo
engano: si fallor, sum (se me engano, existo), diz Agostinho, antecipando, de certa maneira, o cogito, ergo
sum, de Descartes (Cfr. A Cidade de Deus XI 26) (AGOSTINHO, 1990b, p. 46-47). Com efeito, é certíssima
a evidência da auto-presença da mente para si mesma, evidência que ela tem, junto dos atos ou vivências
que ela realiza: “Quem, porém, pode duvidar que a alma vive, recorda, entende, quer, pensa, sabe e julga?
Pois, mesmo se duvida, vive; se duvida, lembra-se do motivo de sua dúvida; se duvida, entende que
duvida; se duvida, quer estar certo; se duvida, pensa; se duvida, sabe que não sabe; se duvida, julga que
não deve consentir temerariamente. Ainda que duvide de outras coisas não deve duvidar de sua dúvida.
Visto que se não existisse, seria impossível duvidar de alguma coisa” (Da Trindade X 10, 14). (AGOSTINHO,
1994, p. 328).
26
O neoplatonismo ajuda-o a fazer uma passagem do dualismo para o monismo metafísico. De fato, o
pensamento neoplatônico encara a realidade como constituída a partir de um único princípio: justamente
o princípio do Uno. Para o platonismo o mal não é uma realidade em si, que nega e se rivaliza com o bem.
Ontologicamente, o mal é uma privação do bem, o que equivale a dizer: uma privação do ser. O
neoplatonismo deu a Agostinho também a possibilidade de um conhecimento não materialista de Deus
(o Uno, o Bem) e da alma, ultrapassando, assim, a própria concepção estoica de Deus e da alma. Ademais,
a doutrina do Nous (Intelecto) possibilitou a Agostinho uma aproximação à especulação acerca do Logos
(Verbum = Verbo) desenvolvida pelo cristianismo desde Justino e os alexandrinos (Clemente, Orígenes),
a partir do Prólogo do Evangelho de João e da concepção judaico-helenista acerca da Sabedoria (Sophia)
de Filo de Alexandria. Ora, nos escritos neoplatônicos Agostinho diz ter encontrado pensamentos muito
semelhantes àqueles do Prólogo de João. Mas não encontrou que “o Logos se fez carne e habitou entre
nós” (Jo 1, 14).
27
O tempo que imediatamente antecede e sucede ao seu batismo é o mais fecundo em escritos
filosóficos. Em 386 Agostinho forma com seus amigos uma comunidade de vida, dedicada ao estudo e à
oração, num retiro chamado Cassicíaco, junto de Milão. Ainda na Itália, ele escreve um opúsculo contra o
ceticismo (Contra academicos); um sobre a felicidade (De beata vita); outro sobre o lugar do bem e do

26
Agostinho se resume nesta frase: Deum et animam scire cupio. Nihil plus? Nihil omnino
(Desejo conhecer Deus e a alma. Nada mais? Absolutamente nada mais) (Solilóquio I 2,
7). Portanto, ao preceito do oráculo délfico (Gnote seauton – conhece-te a ti mesmo!),
Agostinho acrescenta o conhecimento de Deus. Nesse duplo conhecimento, pois, está o
essencial da investigação filosófica agostiniana. Na verdade, a filosofia natural (física), a
racional (lógica) e a moral (ética), constituem um tríplice caminho, que reconduz o
homem a Deus, pois Deus é causa subsistendi (causa do subsistir), ratio intelligendi
(razão do entender) e ordo vivendi (ordem do viver) (A Cidade de Deus VIII 4)28.

Em 388 d.C., Agostinho deixa Roma e retorna à África, aportando em Cartago.


Nunca mais deixaria as terras africanas. Chegando a Tagaste, iria fundar uma
comunidade de vida religiosa. Em 389, morre o seu filho, Adeodato. Em 391, é aclamado
pelo povo sacerdote e auxiliar do bispo Valério, de Hippo Regius (Hipona). Em 396,
Valério o torna seu bispo coadjutor. Em breve, Valério morre e Agostinho o sucede. Em
397-398, escreve as Confissões.

mal na ordem universal criada por Deus (De ordine); e um diálogo íntimo (“de si consigo mesmo”) sobre
a investigação das coisas inteligíveis e sobre a imortalidade da alma (Soliloquium), tema que é retomado
em outros textos desta fase, como o De imortalitate animae (Da imortalidade da alma) e o De quantitate
animae (Da grandeza da alma), sobre a relação entre alma e corpo. Ainda é deste período o projeto de
escrever sobre as ciências da época, cujas raízes remontavam ao tempo dos sofistas (séc. IV a.C), ou seja,
as disciplinas das sete artes liberais (artes liberales: o trivium – gramática, dialética e retórica – e o
quadrivium – geometria, música, aritmética e astronomia). Deste projeto, Agostinho conseguiu realizar
somente a redação em parte de um escrito sobre a gramática e sobre a música. De volta a Tagaste, em
388, Agostinho ainda escreve o diálogo De Magistro (Do mestre), sobre a linguagem e a educação, e
termina o livro De vera religione (Da verdadeira religião), sobre a relação entre a fé e o saber.
28
Para Agostinho a existência de Deus é conhecida de todos os homens. Apenas uns poucos se excluem
deste conhecimento. No “De libero arbítrio” ele discute incidentalmente sobre a existência de Deus.
Tratava-se de dar uma demonstração racional daquilo que era crido. É preciso ter a boa fé de buscar o
saber, isto é, de buscar a evidência. Além disso, é preciso buscar compreender aquilo que se crê, isto é,
partir da fé para chegar ao conhecimento de Deus. O fim último do homem não crer em Deus, mas
conhecê-lo. Mas, aqui vale a advertência do profeta Isaías, “se não crerdes, não compreendereis” (Is 7,
9). Dadas estas condições, a demonstração da existência em Agostinho parte da evidência da nossa
própria existência. É evidente que eu sou. É indubitável. A dúvida é um ato da consciência cognoscente.
Enquanto se duvida, não se pode duvidar desta consciência mesma. Aquele que duvida sabe que existe,
vive e pensa. Dentre estas perfeições (existir, viver e pensar), a maior é pensar. O conhecimento
intelectivo ultrapassa o conhecimento sensitivo. A razão é o que há de mais elevado no homem. Mas a
razão aponta para algo que a ultrapassa: a própria verdade. A verdade é o que ilumina o homem para
julgar. As regras eternas da verdade são aquilo a partir do que a razão julga, mas que a razão mesma não
pode julgar. Não é a razão que rege a verdade. É a verdade que rege a razão. A razão se depara, na própria
mente, com algo que lhe é superior, algo de absoluto, de eterno e imutável, o lume da verdade. Mas a
verdade que ilumina todo o homem é, em última instância, Deus. Esta cognição, reconhece Agostinho, é
frágil, mas é certa (certa, quamvis adhuc tenuissima, forma cognitionis).

27
As Confissões de Agostinho foram escritas como um canto novo do homem novo,
um louvor à grandeza e à misericórdia divina que socorre o homem em sua pequenez e
miséria. “Confissão” não significa, aqui, propriamente e primeiramente, acusar-se dos
pecados. Significa também isso: Confiteri (confessar) como reinterpretação de todas as
faltas dentro de um caminho de bem-aventurança. Mas confessar significa, sobretudo,
aqui, reconhecer, assumir com gratidão e alegria, declarar como sua própria identidade,
como o seu próprio, a gratuita pertença e atinência à fonte da vida. Significa louvar a
Deus pela salvação, isto é, pela recondução à saúde, ao vigor essencial da vida (salus =
saúde, salvação). Por isso, mais do que confessar a própria miséria humana, as
“Confissões” confessam (louvam) a misericórdia divina.

Agostinho mesmo esclarece o sentido de “Confissão” ao comentar o salmo 94.


Ele diz:

A Escritura fala de confissão em dois sentidos: há a


confissão de quem louva, e a confissão de quem geme. A
primeira quer glorificar aquele que é objeto de louvor; a
segunda é um ato de arrependimento da parte de quem se
acusa a si mesmo. Confessar é contemporaneamente louvar
Deus e acusar a si mesmo. Não há coisa mais digna que a
linguagem humana possa realizar.

Nas Confissões, Agostinho confessa, isto é, proclama Deus como vida de sua vida.
Em Deus, a sua vida humana – vida mortal, morte vital – encontra a verdadeira vida, a
vida feliz. Vida quer vida, mais vida, vida plena. A sede de vida, o desejo da vida feliz
reside no mais íntimo do coração do homem. Esse querer é um buscar, uma ansiar, um
desejar. O homem, desde as raízes de seu ser, quer viver, quer viver bem, viver na
plenitude da vida, que é a felicidade. Para Agostinho, a vida feliz é o próprio Deus: “Et
ipsa beata vita gaudere ad te, de te, propter te – e a vida feliz consiste em alegrar-se
junto a Ti, a partir de Ti, por causa de Ti”. A busca da felicidade é, de imediato, busca da
alegria. Entretanto, nem toda a alegria realiza essa ânsia de felicidade da alma humana.
O homem é feliz quando se alegra na verdade e com a verdade. “Beata vita est gaudium
de veritate – a vida feliz consiste em alegrar-se com a verdade”. Entretanto, o homem,
que não gosta nunca de ser enganado, muitas vezes prefere se enganar, além de

28
enganar os outros. Ama a felicidade, mas odeia a verdade. Pois teme a libertação que a
verdade exige e doa. Contudo, encontrar a verdade é encontrar a liberdade e a
felicidade, pois é encontrar Deus. “Ubi enim inveni veritatem, ibi inveni Deum meum
ipsam veritatem – onde encontrei a verdade, ali encontrei o meu Deus, que é a verdade
mesma”. Qual o lugar privilegiado, porém, onde o homem pode encontrar a verdade?
Esse “lugar” é a sua própria alma. “ Noli foras ire, in te redi, in interiore homine habitat
veritas – não vás para fora, entra em ti mesmo. É no homem interior que habita a
verdade”. A verdade, que é Deus, habita no mais íntimo do homem e, ao mesmo tempo,
o transcende: “Tu autem eras interior intimo meo et superior summo meo – tu, porém,
eras mais íntimo do que o meu imo e mais alto do que o meu sumo”. As Confissões têm,
pois, o sentido do instaurar de um relacionamento do homem com a verdade que o
habita no seu âmago e que, ao mesmo tempo, o transcende. As Confissões são um canto
de louvor, de alegria, pela graça da libertação que vem da verdade:

Confessar tem nas Confissões o sentido positivo do


evento pascal, de proclamar a grandeza, de engradecer a
libertação dos homens pela verdade de Deus (...). As
Confissões não proclamam a libertação de um homem, nem
de alguns, ou de muitos homens. As Confissões proclamam a
libertação de todos os homens e assim anunciam para todo
o mundo a verdade libertadora de Deus (...). A Confissão é
uma exigência da verdade29.

Entretanto, podemos nos perguntar: como pode a “confissão” ser um


relacionamento do homem como a verdade? Será ela uma forma de conhecimento, uma
via de pensamento? O filósofo H. Rombach, interpretando Pascal, um dos maiores
pensadores agostinianos de todos os tempos, fala de três diferentes modos de o homem
se relacionar com a verdade: kennen (tomar conhecimento), erkennen (conhecer
propriamente) e bekennen (confessar).

O primeiro modo, “kennen” (tomar conhecimento), consiste no fato de que o


homem vive na abertura da verdade do cotidiano, do óbvio, da banalidade, isto é,

29
Leão, Emmanuel Carneiro. Aprendendo a Pensar I: O pensamento na modernidade e na religião.
Teresópolis: Daimon, 2008, p. 169-173.

29
daquela verdade que ele se deixa doar, que ele simplesmente recebe, verdade em cuja
luz o mundo se lhe deixa encontrar. O homem vive nesta verdade do mundo cotidiano,
ou melhor, nela, ele “é vivido”, pois a ela ele se abandona, seguindo as tendências
habituais do viver cotidiano. Aí ele não questiona (não busca, não interroga, não
investiga) a verdade. Ele vive sem questionamento e sem um relacionamento
apropriado com a verdade. Com efeito, a verdade é condição de possibilidade para que
possa haver algum questionamento (= busca, interrogação, indagação, investigação). A
banalidade é, assim, o relacionamento não reflexivo, irrefletido, do homem para com a
verdade, aquele no qual os homens se encontram, de início e na maior parte das vezes.

Num segundo modo, o “erkennen” (conhecer), surge o questionamento, e


irrompe um relacionamento do homem com a verdade, que consiste na busca do
verdadeiro. Esta, por sua vez, leva o homem a buscar interpretações e definições daquilo
que é cognoscível e sabível. É o acontecer da ciência. Esta busca o verdadeiro, busca
detê-lo em axiomas, categorias, definições. Assim, o homem se julga “de posse” da
verdade. O conhecimento justificado, fundado e fundamentado, dá ao homem a
pretensão de “possuir” a verdade. Neste caso, porém, a verdade é submetida ao critério
e à medida do verdadeiro, e não o contrário. Nisso, o homem erra no seu
relacionamento com a verdade. É que a verdade não é o verdadeiro. Ela é a condição de
possibilidade para que o verdadeiro seja verdadeiro.

Num terceiro modo, contudo, o homem se abre à verdade como verdade, deixa-
ser a verdade como verdade. Agora não se trata mais de “possuir” a verdade, trata-se,
antes de, no não-saber, desprender-se para a verdade enquanto verdade, dar-se a ela:
é o “bekennen” (confessar). O saber, o conhecimento fundado e justificado do
verdadeiro, pode dar ao homem a ilusão de “possuir” a verdade. Mas a “douta
ignorância” da “Confissão” desfaz esta ilusão: mostra que não é o homem a possuir a
verdade, mas a verdade a tomar posse do homem; não é o homem a conquistar, por
seus méritos, passo a passo, a verdade, mas sim a verdade a iluminar, repentinamente,
o homem, dando-se a ele como dom e graça. A “Confissão” reconhece que a verdade é
muito mais do que todo o verdadeiro que o homem pode conquistar. A “Confissão”
deixa ser a verdade como verdade e a verdade como dom. Seu reconhecimento é feito
de gratidão e de louvor. No pensar, no criar, no crer, de diferentes modos, é dado ao

30
homem fazer a experiência da gratuidade da verdade – gratuidade do que é “sem por
quê”, do que “floresce por florescer”. A “Confissão” é o florescer da verdade, que,
enraizada no coração do homem, floresce em sua boca. A fé, que é o estar fundado na
verdade de Deus, se expressa na “Confissão de fé”. A confissão do pensador é
meditação. A confissão do poeta é canto. A confissão do crente é... louvor, ação de
graças.

Magnus es, domine, et laudabilis valde’: ‘magna


virtus tua et sapientiae tuae non est numerus’. Et laudare te
vult homo, aliqua portio creaturae tuae, et homo
circumferens mortalitatem suam, circumferens testimonium
peccati sui et testimonium, quia ‘superbis resistis’. Et tamen
laudare te vult homo, aliqua portio creaturae tuae. Tu
excitas, ut laudare te delectet, quia fecisti nos ad te et
inquietum est cor nostrum, donec requiescat in te.

Grande és, Senhor, e muito louvável’: grande é o teu


vigor e tua sapiência é sem número’. E louvar-te quer o
homem, pequena porção da tua criatura; o homem, que é
circundado pela sua mortalidade, que é circundado pelo
testemunho de seu pecado e pelo testemunho de que
‘resistes aos soberbos’. E, no entanto, quer louvar-te o
homem, pequena porção da tua criatura. Tu nos excitas, para
que louvar-te nos deleite, porque nos fizeste para ti e
inquieto está o nosso coração, enquanto não repousa em
ti30.

Nos últimos livros das Confissões, Agostinho trata da criação e da temporalidade.


Platão tinha postulado o mundo inteligível das ideias ou essências como eterno e
imutável, separado do mundo sensível. O Demiurgo de Platão ordena o mundo sensível
a partir do mundo inteligível. Agostinho entende que as ideias se encontram na mente
ou no Intelecto divino (no Logos ou Verbo). Elas são pensamentos de Deus, segundo os
quais ele cria todas as coisas. São, pois, as razões eternas e estáveis das coisas, os

30
Confissões, livro. X, cap. 29. Cfr. Augustinus, Confessiones / Bekenntnisse. München: Kösel Verlag, 1960,
p. 12.

31
fundamentos de tudo aquilo que surge e perece (rationes rerum – razões ou
fundamentos das coisas), que estão presentes na Sabedoria criadora de Deus. São
formas formadoras e não formas formadas, que estão presentes e atuantes na matéria
do universo como logoi spermatikoi (sementes do Logos) ou rationes seminales (razões
que atuam como sementes), isto é, são potencialidades de geração e de formação que
a matéria traz consigo, em seu bojo, diz Agostinho, mesclando, assim, uma concepção
ao mesmo tempo platônica e estoica das ideias.

Em lugar da emanação neoplatônica, Agostinho põe a tese de uma creatio ex


nihilo (criação a partir do nada). A emanação é um processo necessário e eterno.
Segundo este processo, as coisas emergem do Uno de maneira não imediata, mas
através de uma série de mediações. A criação é, ao contrário, um ato livre e contingente,
que não tem nenhum pressuposto, a não ser a própria vontade criadora que Deus traz
consigo, ou seja, a vontade de comunicar o ser para além de si mesmo. Dizer que a
criação é ex nihilo (do nada) é dizer que ela é a partir da absoluta liberdade de Deus.
Nada é pressuposto desta criação a não ser a gratuidade desta liberdade. Mesmo o caos
originário, de onde surge o cosmos é um caos criado. A matéria informe, um quase-
nada, é entendida como o substrato indeterminado, que recebe a o ser como forma
determinante das coisas. Se a forma é o elemento estável e definidor das coisas, a
matéria é o elemento instável: princípio de mutação, que traz consigo o sentido da
transitoriedade do vir a ser. Ademais, a criação é uma comunicação do ser que é
imediata. “Tudo o que é, enquanto tem o ser, o tem de Deus” (Da Verdadeira Religião:
XVIII 36, 97). Criação é comunicação do ser. É, portanto, evento que acontece por meio
da Palavra (Logos / Verbo), que é a própria Sabedoria eterna de Deus. É nesta Sabedoria
que estão as Ideias como arquétipos (formas originárias) de todas as coisas. Na mente
divina, porém, não estão somente as ideias universais das coisas, mas também as ideias
de cada ser individual. A individualidade ou singularidade das coisas adquire, assim, uma
dignidade eterna e infinita, que não tinha no pensamento grego. Cada indivíduo foi
como indivíduo, isto é, na sua singularidade, pensado por Deus, desde a eternidade
(Epístola XIV 4). Se do ponto de vista de Deus a criação é uma comunicação do ser, do
ponto de vista da criatura ela é uma participação do ser. A criatura só é à medida que
participa do ser, que lhe é comunicado livre e gratuitamente pelo Criador. Por si mesma,

32
ela é um nada e tende para o nada. Por isso, a conservação do mundo é uma continuação
do ato criador de Deus. Se Deus retirasse o ser que ele comunica à criatura, esta voltaria
para o nada.

A decisão de criar, por parte de Deus, é eterna (Cfr. A Cidade de Deus XI 4ss). Mas
o mundo criado, em virtude da sua finitude, é temporal. Tempo e espaço só existem no
mundo criado e com o mundo criado. O tempo é a medida do movimento, do devir, do
surgir e perecer. Só há tempo onde há mutabilidade. Mas, só há medida onde haja uma
mente que atue o ato de medir. A mente humana vive a experiência imediata do tempo
como duração. “Em ti, ó meu espírito, meço os tempos!” (Confissões XI 27). Nessa
experiência da duração, primeiro vem o futuro, como o que ainda não é; depois vem o
presente, como o que já é; depois, o passado, como o que não mais é. Na vivência da
duração, o futuro é expectativa; o presente é atenção; o passado, memória. O tempo é
uma distentio animae: o distender do espírito. Os três tempos, na verdade, são um único
tempo: o presente. O futuro é o presente da expectativa; o presente é o presente da
atenção; o passado, o presente da memória. Futuro, presente e passado são, portanto,
três formas de presente. Eles pressupõem sempre a autopresença do espírito a si
mesmo. O tempo é, assim, um vestígio ou uma imagem da eternidade: o presente
estável, que não conhece nem mutação nem duração. O homem se encontra, assim,
entre o tempo e a eternidade, em virtude da ambivalência de sua natureza. Ele se
encontra no meio, entre o ser absoluto e o nada (o não-ser absoluto). Isso lhe provoca
fascínio e horror: Inhoresco, inquantum dissimilis ei sum, inardesco, inquantum similis ei
sum (horrorizo-me, enquanto sou dissímile dela [da luz divina], inflamo-me, enquanto
sou símile a ela) (Confissões XI 9).

Note-se que o tempo, a história, em Agostinho, são compreendidos a partir do


que podemos chamar de “mundo do si-mesmo”, da interioridade. Segundo Heidegger,
o aguçamento da experiência de mundo no mundo do si-mesmo, como atitude
fundamental da experiência cristã da vida fática, traz consigo uma revolução contra a
antiga ciência grega. Esta atitude fundamental, de tempos em tempos, no ocidente,
irrompe. É a partir daqui que precisa ser entendida a obra de Agostinho, as suas
Confissões, a Cidade de Deus: o emergir da facticidade da vida vivida desde o mundo do
si-mesmo nas Confissões; o emergir da facticidade como experiência da temporalidade

33
e da historicidade na Cidade de Deus. É a partir daqui que também se pode entender a
irrupção da mística medieval em seus princípais representantes: Bernardo de Claraval,
Boaventura de Bagnoregio, Mestre Eckhart, Tauler. É a partir daqui que se pode
entender a significância de Lutero e da religiosidade vivida desde a loucura da cruz, bem
como a significância de Kierkegaard como escritor religioso e pensador subjetivo, que
põe a existência em sua facticidade como tema fundamental do e para o pensamento
que reflete.

A Cidade de Deus foi escrita a partir do ano de 410, por ocasião do saque de
Roma, por Alarico, rei dos Godos. A violação da “Cidade eterna” (Roma) foi um abalo no
mundo da época. Os pagãos diziam que o responsável pela fraqueza de Roma era o
cristianismo. Enquanto Roma fora governada sob a proteção dos deuses pagãos, ela
dominou o mundo; agora que Roma era governada sob a proteção do Deus cristão, o
Deus de um crucificado, ela se enfraquece e é dominada pelos bárbaros. Agostinho
defende, nesta obra, o cristianismo desta acusação. Roma fora grande não por causa
dos deuses pagãos e sim por causa da moralidade herdada dos primeiros romanos. Do
mesmo modo, sua queda não era devida ao Deus cristão e sim à corrupção daquela
mesma moralidade, que se instalara nas instituições do Império. Esta defesa dá a
Agostinho também a ocasião de pensar o sentido da história à luz da fé cristã. Surge,
assim, a primeira teologia da história, que reúne um vasto saber enciclopédico e
historiográfico sobre a história antiga e uma forte especulação filosófica sobre o sentido
da historicidade da vida humana como tal. Agostinho morre em 430, com os Vândalos
às portas da cidade de Hipona (Hippo Regius, atual Annaba, na Argélia), onde ele fora
bispo desde o ano de 397. Ele morre, pois, vendo o fim de uma potência mundial, que
parecia inabalável: o Império Romano.

O ponto de partida da consideração da história em Agostinho é o amor e a


comunidade humana que ele gera. A medida de um homem é a medida de seu amor.
Cada um é aquilo que ele ama e como ele ama. Isto vale não somente para o indivíduo.
Vale também para as comunidades humanas e para esta comunidade de seres racionais,
que é a Civitas (Cidade, Estado)31. A história da humanidade, lida à luz da história da

31
A civitas é, pois, uma comunidade espiritual, fundada num ordenamento ético e jurídico. Não qualquer
congregação de seres humanos é uma civitas, mas sim aquela cuja fundamentação repousa na ratio

34
salvação, contida na Bíblia, é, para Agostinho, a história de duas Cidades, fundadas por
dois amores: a Civitas terrena (Cidade Terrena), simbolizada biblicamente por Babilônia,
arquétipo da desordem e da injustiça, e a Civitas Dei (Cidade de Deus), simbolizada por
Jerusalém, arquétipo da ordem e da justiça. “Dois amores fundaram, pois, duas cidades,
a saber: o amor próprio, levado ao desprezo a Deus, a terrena: o amor a Deus, levado
ao desprezo de si próprio, a celestial. Gloria-se a primeira em si mesma e a segunda em
Deus” (A Cidade de Deus XIV 28). As duas Cidades, portanto, são dois tipos de
constituição do mundo da convivência humana, duas formas de organização da vida
social, cada uma fundada por uma espécie de amor e seu ethos. Podemos ressaltar a
concepção de poder que fundamenta a arte de governar em uma e outra Cidade:
“naquela, seus príncipes e nações avassaladas veem-se sob o jugo da concupiscência de
domínio; nesta, servem em mútua caridade, os governantes, aconselhando, e os súditos,
obedecendo” (A Cidade de Deus XIV 28). Ou seja: numa, o poder é exercido a partir da
cobiça de dominação sobre os outros homens, noutra, o poder é exercido a partir da
intenção de servir e ajudar a construir uma comunidade humana justa.

As duas cidades encontram-se, durante toda a história, misturadas. Por


conseguinte, não coincidem com a Igreja e o mundo. A Cidade de Deus tem habitantes
mesmo entre os que estão fora dos limites da Igreja visível, como a cidade terrena
também tem habitantes mesmo entre aqueles que estão contados como cristãos. A
Igreja militante é ainda uma realidade mista, híbrida: traz em si justos e injustos,
habitantes da Cidade de Deus e da cidade terrena. Somente a Igreja triunfante, na
eternidade, é que será uma realidade pura e sem mancha de pecado, em que habitarão
somente os justos.

A história é um processo teleológico. A consumação deste processo consiste na


revelação e constituição definitiva do Reino de Deus: o triunfo da Jerusalém Celeste. A
temporalidade histórica é caracterizada pela tempestuosidade dos combates entre os

(razão) e, por conseguinte, no vínculo da lex (lei). A civitas é, por conseguinte, uma societas rationalium –
sociedade de seres racionais – fundada sobre o povo, especialmente, sobre o costume dos antepassados
(mos maiorum). A civitas é, portanto, uma res publica, uma realidade pública, a forma de sociedade,
instituída pelo povo. Agostinho assim definiu o conceito de ‘povo’: populus est coetus multitudinis
rationalis rerum quas diligit concordi communione sociatus (“o povo é o conjunto de seres racionais
associados pela concorde comunidade dos objetos amados”) (A Cidade de Deus XIX 24). Por isso, dirá
Agostinho, se quisermos conhecer a identidade de um povo, é preciso perguntar: o que é que ele ama?
Este mesmo critério Agostinho usa para refletir sobre a história.

35
humanos que se agitam na diversidade e mesmo no conflito de seus interesses. A paz
terrena é sempre frágil, fruto dos acordos interesseiros dos homens. Os homens que
amam a justiça, porém, devem promover esta paz terrena, mas almejando a paz celeste
e perpétua, que é a verdadeira meta da história e que consiste em o homem fruir de
Deus e em Deus. Mas, o que é a paz como tal? Agostinho responde: “a paz de todas as
coisas é a tranquilidade da ordem”. E o que é a ordem? “A ordem é a disposição que às
coisas diferentes e às iguais determina o lugar que lhes corresponde” (A Cidade de Deus
XIX 13).

Agostinho é um pensador de alto nível e de intensa dinâmica existencial. Sua


influência foi bastante forte em toda a Idade Média e chega até aos nossos dias. Na Alta
Idade Média (do século V até o ano mil) sua influência é decisiva para formar o espírito
medieval latino. Até o século XII, esta influência não encontra concorrência. Com ele,
vigora a filosofia de Platão e do neoplatonismo, porém. No século XIII, com a recepção
de Aristóteles, esta hegemonia platônico-agostiniana é quebrada, sobretudo na obra de
Tomás de Aquino. Mesmo assim, naquele tempo, o agostinismo resistiu e se adaptou ao
predomínio do aristotelismo. A modernidade do século XVII foi fundada recorrendo em
grande parte à herança do pensamento de Agostinho.

A ressonância da patrística grega


Na Igreja do oriente o tempo da patrística entrou em sua última fase. A filosofia
neoplatônica, majoritariamente, e a filosofia aristotélica, minoritariamente, foram
subsumidas na metafísica da dogmática cristã. Os autores que participam deste
momento são Sinésio de Cirene (séc. IV-V), Nemésio de Emessa (fim do século IV), Cirilo
de Alexandria, Teodoreto de Ciro, Procópio de Gaza, Eneias de Gaza, Zacarias
Escolástico, João Filopono, Leôncio de Bizâncio, Dionísio Areopagita e João Damasceno.
Neste quadro, destacam-se, em termos de legado da patrística grega para a filosofia
medieval latina, o legado de Dionísio Areopagita e de João Damasceno.

36
Dionísio Areopagita quer dizer, aqui, a obra de pensamento que foi transmitida
aos medievais sob este nome32. A historiografia usa o nome de Pseudo-Dionísio
Areopagita. Dionísio, em sua obra, aborda as possibilidades e os limites do
conhecimento e do discurso humano sobre Deus (HEINZMANN, 1992, p. 117). O
pensamento de Dionísio se expõe em contínua tensão dialética. De um lado, está a
teologia afirmativa; de outro, a teologia negativa (PSEUDO DIONISIO AREOPAGITA,
1990, p. 374-377). A teologia afirmativa (kataphatike) é descendente (kata = do alto
para baixo). Ela nomeia Deus com os nomes que são acessíveis à razão e que são dados
pela revelação. Afirma que Deus é; que ele é unidade (monas) e tríade (trias); que ele é
ser, vida e sabedoria; que, como ser, ele deixa e faz ser todo o ente; como vida, ele
anima todo o vivente; como sabedoria, ele ilumina e instrui todo o inteligente. Depois,
nomeia Deus com os nomes que são acessíveis ao discurso cotidiano, tirado do mundo
sensível, usando metáforas: dizendo que Deus é vento, é água, é fogo, é rocha, é águia,
é leão, etc. Ora, o discurso simbólico sobre Deus é um discurso que, fala da semelhança
na dessemelhança. E o discurso racional sobre Deus é um discurso também limitado,
pois fala de Deus com os nomes e os conceitos que nos são acessíveis. Por isso, torna-
se necessária a teologia negativa (apophatike), que realiza, por meio do negar, um
retorno a Deus. De fato, o prefixo “apo” dá a entender um movimento de eliminação,
mas também de retorno e distanciamento. Aqui se nega que Deus seja qualquer
determinação que nós atribuímos a ele, por meio de imagens ou de conceitos da nossa
linguagem. Deus não é nada de sensível; também não é nada daquilo que nos é

32
Na Idade Média, um conjunto de escritos, o corpus dionysiacum, teve uma alta relevância para a filosofia
e teologia. Assim é chamado este conjunto de escritos pois foi legado sob a autoria de Dionísio Areopagita,
o filósofo convertido por Paulo em sua pregação no areópago em Atenas, na qual o Apóstolo anuncia aos
gregos o “Deus desconhecido” (agnostos theos) (Atos dos Apóstolos 17, 17-34). Este conjunto de escritos,
pois, foi transmitido com o peso de uma autoridade apostólica. Mas, não deixou de corroborar a
importância deste “corpus” o nível de especulação filosófica e teológica nele inserida. O verdadeiro
escritor destes escritos permanece-nos ignorado. Já Abelardo (1079 – 1142) levantou a dúvida sobre a
autoria deles, No século XV, por sua vez, Lourenço Valla realizou de modo mais rigoroso uma crítica à
autenticidade da autoria atribuída a Dionísio, o Areopagita. Mas somente no século XIX é que a falsificação
ficou provada. Daí o nome: Pseudo-Dionísio. Aqui, porém, por comodidade, vamos chamá-lo como os
medievais o chamavam, ou seja, simplesmente de Dionísio. As pesquisas mais recentes corroboram a
hipótese de que o autor do corpus dionysiacum teria vivido na virada do século V para o século VI, no
espaço da Síria (HEINZMANN, 1992, p. 116). O corpus está escrito em grego. O autor promove uma síntese
de neoplatonismo tardio – ele é um herdeiro de Proclo (410 – 485) – e de especulação cristã – neste
sentido ele é também herdeiro da patrística grega do século IV, sobretudo dos capadócios, e, em especial,
de Gregório de Nissa (334 – 394).

37
inteligível, pois transcende tudo, tanto o sensível, quanto o inteligível. Na teologia
afirmativa, o divino se dá em proximidade crescente, à medida que ele se deixa dizer em
nossa linguagem conceitual e simbólica. Noutra, o divino não se deixa dizer, ele se
subtrai sempre de novo e só se dá nessa subtração, isto é, na distância de seu mistério
e no retraimento de sua transcendência. A teologia afirmativa é como uma pintura; a
negativa, como uma escultura. A pintura põe. A escultura tira. Mas, tanto no pôr como
no tirar, ambas fazem aparecer algo de novo. Contudo, Deus não é nada daquilo que
aparece tanto numa como noutra. Tanto o conhecimento que o homem alcança pela via
positiva, como o que ele consegue pela via negativa, só têm sentido dentro do
movimento maior, que dá sentido a ambas, quer dizer, dentro da experiência da busca
da união amorosa com a Deidade, ou seja, dentro da teologia mística. É na união
(henosis) amorosa com a Deidade que se dá a completa semelhança do homem com
Deus, melhor, se dá a deificação (theosis) do homem. E esta é a meta da teologia mística.

Deus, propriamente, não é. Dizer isso, no contexto da teologia negativa, não


significa dizer que ele não existe. Significa, antes, afirmar que ele transcende o ser e todo
o ente. Ele é superessencial (hyperousios), ou seja, ele supera toda essência (ousia). Ele
está além de tudo (epekeina ton panton). Ele é superdesconhecido (hyperagnostos). O
homem só pode conhecê-lo pela ignorância, que está acima de todo o conhecimento:
no saber mais excelente, que é o não-saber. Ele está envolvido na caligem, isto é, na
escuridão do mistério. Só no silêncio o homem conhece o inominável. O pensamento de
Dionísio está a serviço desse silêncio. Tudo o que ele diz, o faz a partir desse silêncio.
Tudo o que ele fala, o faz para se deixar tocar por este silêncio. Mas, o que é que se pode
dizer de Deus, mesmo sabendo que ele é o indizível? A regra primeira é que tudo o que
o homem pode dizer de Deus deve dizê-lo de maneira a exprimir a sua excelência
(hyperokhe), já que ele transcende tudo. Os medievais denominarão esta forma de falar
de Deus de via eminentiae (via da excelência), pela qual se atribui a Deus o que há de
melhor e em grau superlativo.

Deus é a causa, o princípio, a essência e a vida de tudo. Causa (aitia) é aquilo que
responde (aiteo) pelo surgimento de uma coisa. Princípio (arkhe) é o que não somente
faz começar, mas também sustenta e faz consumar alguma coisa. Deus é essência de
tudo, não no sentido de que tudo é Deus (panteísmo), mas no sentido de que Deus

38
concede a tudo a vigência e a presença no ser. Deus é vida de tudo, no sentido de que
toda a dinâmica do universo é por ele regida, sustentada, animada e vivificada. Se ele
retira o seu sopro do universo, tudo volta ao pó do nada. Ele é o Senhor do ser, o ser
que está acima de todo o ente e de toda a essência. Ele é o fundamento do ser de todos
os entes. Mas, trata-se de um fundamento abissal, pois é fundamento sem fundo, que
se retrai e se retira do horizonte do ser, à medida que transcende o próprio ser. Como
Criador, ele chama para dentro do horizonte do ser (eis to einai) todos os entes. Em si,
ele não é nada daquilo que existe e não pode ser conhecido em qualquer uma das
criaturas. Porém, por outro lado, tudo o que existe é uma determinada imagem e
semelhança dele. Quanto mais alto ele se encontrar na ordem do ser, ou seja, quanto
mais perfeito for o ente, ele expressa mais e de modo mais esplendoroso a bondade do
Criador. Ele é o Uno, que é o autor do Todo. Este Todo articula o múltiplo a partir do
Uno e em vista do Uno (uni-verso: vertido no e para o Uno).

A totalidade do ente, o universo, é uma ordem bela (kosmos), pois em tudo há


certa ressonância e resplendor do Criador (HEINZMANN, 1992, p. 119-121). É uma
hierarquia: uma ordem principiada e regida pelo poder sagrado (hieros). Nesta ordem,
os entes, em diferentes graus de perfeição, remetem ao Criador, à medida que
participam mais ou menos do ser, da vida, da inteligência. Todo o cosmos é uma teofania
(manifestação de Deus). Todo o universo celebra uma liturgia onde cada ente é
revestido de uma correspondência simbólica ou analógica, que permite ao homem
ascender a Deus. Em toda a parte, através dos diversos coros dos entes terrenos e
celestes, sensíveis e inteligíveis, celebra-se o ofício divino, a obra de Deus na criação.
Espíritos celestes e terrestres se estruturam, de modo a receber e a comunicar o ser, a
força e a atuação que procedem de Deus. Espaço e tempo se carregam de um sentido
sagrado.

Esta concepção de mundo, essencialmente metafísica e religiosa, une a visão


cristã da criação e a visão neoplatônica da emanação numa síntese bem peculiar. Ela é
fundamentalmente otimista. Todo o ente é bom na mesma medida em que é. Pois, na
criação, o Bem se difunde, comunicando o ser a todo o ente. O mundo é produto da
bondade divina. Deus cria com um ato livre e gratuito de bondade e cria cada coisa
imediatamente (sem mediações, como afirmava a teoria neoplatônica da emanação), o

39
que indica um interesse por cada criatura, ao contrário da tese de alguns filósofos
gregos, como Epicuro, por exemplo, que afirmavam que Deus não se interessa pelo
mundo. Se há o mal, ontologicamente ele vem de uma privação do bem; eticamente ele
vem das livres escolhas das criaturas racionais, à medida que invertem a ordem
hierárquica dos bens, valorizando mais o que tem menos dignidade e valorizando menos
o que tem mais dignidade. Por isso é que o homem precisa retornar para Deus, galgando
os níveis da purificação, da iluminação e da perfeição. Quando um homem se eleva até
Deus, ele ergue consigo todo o universo. No livre destinar das criaturas racionais,
portanto, está cada vez em jogo o retorno do universo a Deus, do múltiplo ao Uno.

A mística de Dionísio e o seu modo de assumir as possibilidades filosóficas e


teológicas da razão tiveram grande efeito na Idade Média. Através de Máximo, o
confessor (falecido em 622), ela atuou sobre a Igreja do Oriente (Bizantina). Ele foi
honrado, sobretudo, na França medieval, que o identificava com o São Dionísio (Saint
Denis), bispo de Paris nos primórdios da história da Igreja. Através de Hilduíno (827 –
835) e de João Escoto Eriúgena, intelectuais importantes no renascimento promovido
por Carlos Magno, atuou sobre os teólogos monásticos do século XII (Ricardo e Hugo de
São Vitor; Guilherme de Saint Thierry). No século XIII, os escritos do “corpus
dionysiacum” foram comentados por nada mais nada menos do que por Roberto
Grosseteste, Alberto Magno e Tomás de Aquino. Boaventura, o mais insigne teólogo da
mística franciscana, também o teve como autoridade. Nos séculos XIV e XV, Dionísio
influi no maior místico especulativo que a Idade Média conheceu: Mestre Eckhart, bem
como em sua escola (Tauler e Ruysbroeck). Através destes últimos e de Dionísio, o
Cartuxo, a influência de Dionísio chega a Nicolau de Cusa, o último pensador medieval,
que se tornou um elo entre dois mundos: o medieval e o moderno, pois, com sua “douta
ignorância” possibilitou uma nova concepção do saber moderno, aquela que fundou o
projeto da física matemática.

João Damasceno (+ 754) encerra o tempo da patrística grega. Uma obra sua é
bastante significativa para a história da filosofia medieval latina. Trata-se da obra
intitulada Fonte do Conhecimento (Pege gnoseos). A obra começa com uma introdução
à lógica e à ontologia, inspirada em Porfírio e em Amônio. Na linha da tradição de Filo,
Clemente de Alexandria e Gregório de Nissa, ele vê na filosofia uma serva da teologia,

40
posição que também será especialmente afirmada por Pedro Damião, no ocidente, no
século XII. A segunda parte da obra dá uma visão das heresias cristãs. A terceira parte
desenvolve sistematicamente a doutrina dos Padres da Igreja. A teologia dos Padres é
articulada em quatro livros: sobre Deus, sobre a criação, sobre a encarnação e, por
último, sobre a glorificação do homem-Deus, sobre os sacramentos e sobre a escatologia
– grosso modo, a mesma articulação adotada, mais tarde, por Pedro Lombardo (século
XII) nos seus Livros das Sentenças. Esta terceira parte foi traduzida para o latim por
Burgúndio de Pisa (1151) sob a encomenda do papa Eugênio III (1145-1153). Alberto
Magno e Tomás de Aquino a cita sob o nome de De fide ortodoxa (Da fé ortodoxa)
(LIBERA, 1998, p. 76-77). Entre as contribuições de João Damasceno está a sua teoria
dos nomes divinos: a distinção entre nomes “negativos”, que dizem o que Deus não é, e
não o que ele é, e os nomes “positivos”, que nos dizem o que convém à natureza de
Deus (seus atributos), e não a sua natureza mesma. Outra contribuição é a sua afirmação
resoluta da transcendência divina: que Deus está além do conhecimento, porque – tal
como o Bem de Platão – é “além da essência” (epekeina tes ousias). Por fim, ficou
famosa também a sua interpretação de Êxodo 3,14, segundo a qual o “sou quem sou”
significa a incompreensibilidade de Deus e que Deus possui e reúne em si a totalidade
do ser, como um oceano de substância, infinito e ilimitado.

Alta Idade Média


Em 476 ocorreu a queda do Império Romano do Ocidente. Odoacro, ex-rei dos
hérulos e soldado mercenário, chefe da guarda pretoriana, depôs o imperador Rômulo
Augusto em Ravena. Este fato costuma ser apontado como o início da Idade Média. Com
a queda do Império Romano do Ocidente, o cristianismo foi a única força histórica
universalista que podia reunir o que restou da civilização romana e o que os povos
“bárbaros” traziam consigo. Era o fim da Antiguidade, uma era em que o homem
acreditava simplesmente poder seguir as forças da natureza e da sua razão, para
alcançar a felicidade pessoal e coletiva. O cristianismo, ao contrário, ensinava que havia
algo de errado com o homem e que, se ele seguisse simplesmente a sua natureza,
acabaria errando o alvo de sua busca pela felicidade. O homem precisava de uma força
sobrenatural, pois sua natureza se tinha degenerado e se tornara desnaturada. Era a

41
graça que poderia elevar a natureza do homem para que ele alcançasse a felicidade,
aquela que fosse possível nesta vida e a felicidade plena na vida eterna. Os primeiros
séculos medievais, a assim chamada Alta Idade Média (do século V ao ano mil), foi um
tempo de penitência e purgação. Os mosteiros se tornaram os centros de difusão da
civilização, da cultura e da espiritualidade, uma espiritualidade baseada no lema de
Bento de Núrsia (c. 480 – c. 547): ora et labora (ora e trabalha). Diz-se que este tempo,
em que os senhores feudais e a Igreja dominaram, foi uma longa noite história, que só
se interrompera com o renascimento urbano dos séculos XII e XIII, com a irrupção do
poder burguês, o surgimento das universidades e a influência do aristotelismo na
filosofia. Mas nesta noite o homem ocidental não deixou de ter sonhos místicos e não
faltaram espíritos vigilantes. Trata-se, no dizer de Chesterton, biógrafo de Francisco de
Assis e de Tomás de Aquino, de “uma noite demorada e austera, noite de vigília, à qual
não faltara a visita das estrelas”. Em meio a esta noite brilharam as luzes de alguns
luminares do saber. Vamos indicar alguns deles.

Boécio: um pensador no começo do mundo medieval

Boécio (c. 480 – 524) é considerado o último romano e o primeiro filósofo da


Idade Média. Nasceu em Roma e era de família nobre. Participou do governo de
Teodorico, rei dos ostrogodos, mestre dos exércitos, que subiu ao poder no ocidente,
no ano de 488, com o apoio do então Imperado Romano do Oriente, Zenão (474 – 491).
Boécio foi uma peça chave na translação do pensamento grego para a nova era que
estava começando, o que nós chamamos de Idade Média. Teodorico, que tinha passado
a sua infância em Constantinopla (461 – 471), colocou sua capital em Ravena e moldou
a sua cúria segundo o modelo bizantino. Confiou a Boécio a tarefa de promover a
transmissão do saber antigo às nova geração, mas também nomeou-o para cargos
administrativos e políticos. De fato, Boécio chegou a ocupar o papel de cônsul e também
o mais alto cargo do governo, o cargo de magister officium (“mestre dos ofícios”). Mas
caiu sobre ele a suspeita de conspiração com Constantinopla, ele foi preso e depois

42
morto, por ordem do rei. Na prisão, ele compôs uma das obras mais célebres da
literatura latina: o livro “De Consolatione Philosophiae” (Da Consolação da Filosofia)33.

O projeto da vida de Boécio foi mediar, como intérprete, a passagem da filosofia


grega para a nova época (HEINZMANN, 1992, p. 95-115). Queria escrever sobre as “artes
livres” (artes liberales) – as do trivium, disciplinas sobre a linguagem (gramática, dialética
e retórica) e as do quadrivium, disciplinas matemáticas (geometria, música, aritmética e
astronomia) –, que eram consideradas uma propedêutica ao estudo filosófico.
Adaptando os tratados matemáticos de Nicômaco de Gerasa, escreveu pelo menos uma
instrução sobre a aritmética (Institutio arithmetica) e outra sobre a música (Institutio
musica). O papel de intérprete da filosofia grega para o novo mundo ele exerceu em
duplo sentido: como tradutor e como comentador dos textos filosóficos gregos. Seu
desejo era traduzir e comentar todas as obras de Platão e todas as de Aristóteles.
Morreu sem cumpri-lo. Boécio partilhava do entendimento dos neoplatônicos, segundo
o qual Aristóteles seria uma propedêutica a Platão. Almejava restituir a concordância
entre ambos (in unam revocare concordantiam). Segundo a prática dos neoplatônicos,
o estudo filosófico começava com as obras lógicas de Aristóteles, consideradas como
instrumentais (organon - instrumento) ou como condições para a construção do saber
científico. Boécio passou à posteridade como o comentador das Categorias e do Da

33
Todo o empenho do homem aspira a uma única coisa, ao seu bem último e pleno, ou seja, à sua
felicidade. A felicidade é aquela condição em que todos os bens se reúnem de modo perfeito (BOÉCIO,
1999, p. 186-187). Esta felicidade, o homem não pode encontrar fora (extra), mas somente dentro (intra)
de si. Ora, o homem aspira, naturalmente, aos verdadeiros bens. Estes bens, porém, remetem ao bem
supremo. Aspirando ao seu supremo bem, o homem, no fundo, aspira ao Bem puro e simples, que é
idêntico ao Uno. Esta aspiração ao Uno/Bem puro e simples é o amor (o Eros de Platão). O amor, a
aspiração ao Uno/Bem, é o princípio estruturante do cosmo e da vida humana. A ruina da alma humana
se dá quando ela se perde fora de si, em busca das muitas coisas, dos muitos bens. Sua salvação, quando
ela se recolhe em si mesma e aí se transcende, movida pela aspiração ao Uno/Bem. O homem está posto
entre Deus e o animal. Está no poder de sua liberdade elevar-se até Deus ou rebaixar-se ao nível da vida
animal. O homem está também entre o tempo e a eternidade. O tempo é conduzido pela providência
divina. A providência (providentia) é aquela divina razão, que tudo ordena e dispõe no supremo Senhor
de todas as coisas. Deus governa o mundo com leis imutáveis e estáveis. Imóvel, move todas as coisas. O
destino (fatum) é aquela necessidade das leis imutáveis, que a providência impõe às coisas mutáveis. O
homem que se afasta de Deus e se perde na multiplicidade das coisas materiais, sente o destino como
fatalidade. Porém o homem que aspira a Deus, retornando, a partir de sua liberdade, para o Uno/Bem,
sente o destino como providência divina. Ele entende que todas as coisas são conduzidas pela providência
e pelo destino para o bem, melhor, para o seu bem. Por isso, ele pode sempre esperar e orar. A esperança
do homem, porém, em última instância aspira a uma felicidade que não é temporal, mas eterna. O tempo
não pode conter toda a plenitude da vida divina. Ele se dispersa na multiplicidade dos momentos, que se
sucedem uns aos outros. A eternidade é um presente que não passa. O presente é uma imagem da
eternidade de Deus. Esta, porém, consiste nisso: na posse perfeita e totalmente simultânea da vida infinita
(interminabilis vitae tota simul et perfectio possessio).

43
Interpretação. Comentou também o Isagoge, de Porfírio, que era uma introdução
(eisagoge) às Categorias de Aristóteles e, portanto, uma introdução à introdução à
filosofia. Além disso, escreveu vários opúsculos sobre lógica, que, juntamente com os
escritos de Aristóteles e de Porfírio, fizeram parte da chamada logica vetus (Lógica
Velha), que predominou até o século XII. Entretanto, Boécio não era somente um lógico,
mas também um metafísico e teólogo. Os medievais o chamaram de noster summus
philosophus (nosso supremo filósofo). Os seus opúsculos sobre os mistérios da revelação
e da fé cristã, os Opuscula sacra, passaram à Idade Média revestidos de autoridade. Eles
tiveram o mérito de traduzir para o latim palavras fundamentais da dogmática cristã,
cunhadas a partir da filosofia grega e inseridas no discurso teológico, a partir dos
confrontos com as heresias trinitárias e cristológicas: palavras como substância,
acidente, essência, natureza, pessoa, potência, ato, matéria, etc. No campo teológico
ele se torna exemplar do slogan: fidem si poteris rationemque coniunge (se podes, une
a fé e a razão) (Opuscula Sacra, Patrologia Latina 64, 1302) (Cfr. BOÉCIO, 2005, p. 195 e
309).

Boécio é foi importante para a lógica medieval. Escreveu sobre as categorias e o


problema dos universais34. No que concerne às categorias, investiga, do ponto de vista
da linguagem, a distinção entre categorias substanciais (substância, qualidade e
quantidade) e categorias acidentais (as sete outras categorias de Aristóteles)35. Conexo
ao problema das categorias está o problema dos universais, que ele retoma de Porfírio.

34
Para Boécio, a lógica não tem um fim em si mesma, mas serve à filosofia. Ele não deixa claro sua posição
sobre o estatuto da lógica: se ela é uma disciplina apenas instrumental – supellex atque instrumentum
(ferramenta e instrumento) –, ou se ela é parte integrante da filosofia mesma, filosofia racional, como se
dizia – tractatus de propositionibus atque syllogismis et cetera (tratado sobre as proposições e os
silogismos, e outras coisas). Sua posição parece querer conciliar ambas as posições: a lógica é parte
integrante da filosofia, já que ela tem o seu objeto próprio; mas ela é também instrumento, pois funciona
metodicamente a serviço de outras disciplinas da filosofia.
35
No caso das categorias substanciais, a predicação constitui uma atribuição do ser e expressam a
identidade do sujeito; no das caso das categorias acidentais, não, a predicação não atribui um predicado
intrínseco ao ser, mas sim extrínseco, uma vez que não expressa algo de sua identidade. Boécio elabora
também uma teoria sobre os termos concretos. Há termos concretos que expressam algo de substancial,
como o nome “animal” e termos que expressam algo de acidental, como o nome “branco”. Assim
também, há uma predicação essencial, quando o termo indica algo de substancial, ou seja, quando ele faz
parte da definição do sujeito, como “animal” no predicado “animal racional mortal” atribuído ao sujeito
“homem”; e há também uma predicação acidental, quando o termo não indica algo que faz parte da
definição do sujeito, como “branco” quando referido ao sujeito “homem”. O termo acidental é designado
como de subiecto (a partir do sujeito) e o termo essencial é designado como in subiecto (no sujeito).
Boécio ainda elabora uma teoria sobre a natureza da relação dos termos abstratos com os termos

44
Porfírio colocara o problema, mas sem querer resolvê-lo. Os conceitos universais
são aqueles que se referem aos predicáveis. Os categoremas ou predicáveis designam
os modos em que um predicado se predica de um sujeito, ou seja, as diversas formas de
relações lógicas que o predicado possa ter com o sujeito. Porfírio os chamou de cinco
“vozes” (voces). São eles: gênero, espécie, diferença, próprio e acidente. As questões
que porfírio colocou eram: 1. Gêneros e espécies subsistem por si mesmos ou são simples
conceitos mentais? Na primeira alternativa, Porfírio usa o verbo hyphesteken: de
hyphistemi, que Boécio traduz, em latim, ora por subsistere, ora por substare; quer dizer,
ser posto por debaixo (a modo de hypokeimenon, de subjectum, sujeito), subsistir,
resistir, como algo de real, enfim, existir realmente; já na segunda, Porfírio usa en
monais psilais epinoiais para dizer algo de meramente pensado, um conceito privado de
referência à realidade. 2. Caso sejam subsistentes, gêneros e espécies são corpóreos
(somata) ou incorpóreos (asomata)? Esta segunda pergunta está formulada em
linguagem estoica. Podemos interpretar assim: gêneros e espécies pertencem ao âmbito
do sensível ou do inteligível? 3. Gêneros e espécies são separados (chorista) ou são
presentes nas coisas sensíveis? Isto quer dizer: gêneros e espécies são entes inteligíveis,
isto é, são ideias, formas separadas, transcendentes em relação ao mundo sensível, ou
são presentes nas coisas sensíveis, como ideias participadas, formas imanentes às coisas
sensíveis? Porfírio, porém, recusou-se responder a estas perguntas numa obra
introdutória como era a Eisagogé.

Depois de discutir as antinomias do problema, Boécio aponta a seguinte solução,


que se refaz à de Alexandre de Afrodísia: gênero e espécie nomeiam formas essenciais,
portanto, entidades reais, que, por um lado, são incorpóreas, mas que, por outro lado,

concretos. O termo concreto acidental “branco”, por exemplo, guarda uma dupla relação: com o sujeito
que ele nomeia (a coisa branca em questão) e com a forma da qual ele deriva (a brancura). O termo
“branco” nomeia um acidente, uma qualidade de um sujeito (a coisa em questão). Mas, por outro lado,
ele é um termo derivado de outro termo, que é abstrato, mas que nomeia algo de essencial: a brancura.
“Branco” pode ser predicado de alguma coisa; mas “brancura” não pode. “Brancura” nomeia uma forma
essencial: a brancura é aquilo pelo que o branco é branco. Essa dupla relação é chamada de paronímia.
Paronímia é a característica de uma palavra que deriva de outra, dito de outro modo, que recebe de outro
a sua denominação, como branco vem de brancura, gramático vem de gramática, e corajoso de coragem.
Ora, esta apresentação da paronímia dá margem a uma interpretação platonizante, pois permite uma
aproximação com a eponímia platônica, segundo a qual a imposição dos nomes acontece à medida que
as ideias se reproduzem nas coisas sensíveis que delas participam. Assim, o “branco” recebe o nome de
“brancura”. Segundo a interpretação platônica, o branco é branco por participar, isto é, tomar parte da
essência comum, da ideia ou forma essencial da brancura. Esta concepção toca, então, o famoso
“problema dos universais”.

45
se dão como formas imanentes às próprias coisas, não existindo separadas delas. Na
verdade, a coisa concreta é o resultado da união da forma essencial, inteligível, com a
matéria acidental, sensível. Os sentidos apreendem ambos os momentos constituintes
de maneira misturada e confusa. O intelecto, porém, tem a capacidade de, por sua
própria força de pensamento, separar o que está unido na coisa: a forma essencial,
como elemento inteligível, e a matéria, como elemento sensível. O universal, portanto,
só existe imanente à coisa concreta, mas só pode ser apreendido de modo separado. O
ato intelectual de separar o inteligível do sensível Boécio chama de divisão (divisio) ou
abstração (abstractio). Divisão é fazer acontecer uma visão do inteligível junto do
sensível; abstração é extrair mentalmente o inteligível do sensível. Este processo de
divisão/abstração, por sua vez, se faz com a ajuda da comparação. Comparando vários
indivíduos, prescindindo das suas diversidades e concentrando a atenção somente em
suas semelhanças, eu apreendo a espécie. Por sua vez, comparando várias espécies,
deixando de lado suas diversidades e ressaltando somente suas semelhanças, eu intuo
o gênero. Com outras palavras: a espécie é um conceito que se forma a partir da
semelhança de vários indivíduos e o gênero é um conceito que se forma a partir da
semelhança de várias espécies. Portanto, os universais, como conceitos, são produtos
da abstração. Mas, eles não são conceitos vazios. Eles nomeiam algo de real, embora
não concreto, algo que existe na coisa concreta e que a determina em seu ser: as formas
essenciais ou as naturezas das coisas. A abstração pressupõe, antes de toda a
comparação, uma capacidade de ver, isto é, de cointuir (contueri) e espelhar (speculari)
o que há de essencial e inteligível na coisa concreta. Trata-se, pois, de uma solução que
concilia Aristóteles, para quem as formas essenciais são imanentes às coisas; e Platão,
para quem as formas essenciais ou ideias são entidades reais, tão reais que determinam
toda realização das coisas concretas. Apesar do vocabulário aristotélico, porém, no seu
teor, ela pende mais para o lado de Platão. Ela lê o problema das categorias e dos
categoremas de Aristóteles com os olhos de Platão.

Investigando a natureza das coisas, o intelecto se depara com três tipos de


naturezas: as naturalia (coisas naturais), as intelligibilia (realidades inteligíveis) e as
intellectibilia (neologismo de Boécio, que aqui traduzimos com um neologismo em
português, usando a expressão “realidades intelectíveis). Naturais são as coisas

46
corpóreas, sensíveis. Inteligíveis são as almas humanas, que, embora sendo em si
mesmas espirituais, não são puros espíritos, mas sim espíritos unidos aos corpos.
Intelectíveis, por sua vez, são os seres puramente espirituais e imutáveis, Deus em
primeiro lugar.

Na sua obra De hebdomadibus (Septenários)36, Boécio formula uma teoria


ontológica seguindo o modelo axiomático da matemática (termini e regulae – definições
nominais e axiomas seguidos de demonstração). Nessa obra ele anuncia a diferença
entre “esse” (ser) e “id quod est” (isso que é). É um ponto culminante de seu
pensamento. Vejamos as teses que ele apresenta.

Sobre os termos em questão Boécio escreve:

I. Communis animi conceptio est enuntiatio quam quisque probat auditam.


Harum duplex modus est. Nam una ita communis est ut omnium sit
hominum, veluti si hanc proponas: “Si duobus aequalibus aequalia
auferas, quae relinquantur aequalia esse” nullus id intellegens neget. Alia
vero est doctorum tantum, quae tamen ex talibus communibus animi
conceptionibus uenit, ut est: “Quae incorporalia sunt, in loco non esse”
et caetera quae non uulgus sed docti comprobant. – Uma concepção
comum do espírito é uma enunciação que todos aceitam, tão logo ela seja
ouvida. Pode ser de dois modos: uma delas é tão comum, que é de todos
os homens, como quando dizes: “Se de dois iguais tu retiras grandezas
iguais, as grandezas que restam serão também iguais”, e ninguém que
entenda isso poderá negá-lo; a outra, no entanto, mesmo vindo daquelas
concepções comuns do espírito, é apenas dos doutos, como, por
exemplo, “O que é incorpóreo não é no espaço” etc. – essas concepções
os doutos as comprovam, não o vulgo”37.
II. [1] Diversum est esse et id quod est; ipsum enim esse nondum est, at vero
quod est accepta essendi forma est atque consistit – Diversos são o ser e

36
Este nome foi posto posteriormente. O título mais original é: QUOMODO SUBSTANTIAE IN EO QUOD
SINT BONAE SINT CUM NON SINT SUBSTANTIALIA BONA (como as substâncias, nisto que elas são, são
boas, embora não sejam bens substanciais).
37
Tradução de Juvenal Savian Filho em Boécio. Escritos (opuscula sacra). Martins Fontes, 2005, p. 187ss.

47
isto que é; com efeito, o ser mesmo ainda não é, mas, por certo, isto que
é, recebida a forma de ser, é e subsiste.
III. [2] Quod est participare aliquo potest sed ipsum esse nullo modo aliquo
participat. Fit enim participatio cum aliquid iam est; est autem aliquid,
cum esse susceperit – Isto que é pode participar de algo, mas o ser
mesmo não participa, de modo algum, de algo. A participação, portanto,
se dá quando algo já é, mas algo é porque já recebeu o ser.
IV. [3] Id quod est habere aliquid praeterquam quod ipsum est potest; ipsum
vero esse nihil aliud praeter se habet admixtum. – Isto que é pode ter
algo além do que ele mesmo é; mas o ser mesmo não tem nada de
misturado, para além de si.
V. [4] Diversum est tantum esse aliquid et esse aliquid in eo quod est; illic
enim accidens hic substantia significatur. – Apenas ser algo é diverso de
ser algo nisto que é; aquele significa acidente, este, a substância.
VI. [5] Omne quod est participat eo quod est esse ut sit; alio vero participat
ut aliquid sit. Ac per hoc id quod est participat eo quod est esse ut sit; est
vero ut participet alio quolibet. Tudo o que participa do que é o ser, para
ser, participa, também, de outro, a fim de ser algo. E, por isso, isto que é
participa do que é o ser, para ser; mas é, para que participe de algum
outro.
VII. [6] Omne simplex esse suum et id quod est unum habet; - Tudo o que é
simples possui, numa unidade, o seu ser e isto que é.
VIII. omni composito aliud est esse, aliud ipsum est. – para todo o composto,
um é o ser; outro, o próprio “é”.
IX. [7] Omnis diversitas discors, similitudo vero appetenda est; et quod
appetit aliud, tale ipsum esse naturaliter ostenditur quale est illud hoc
ipsum quod appetit. – Toda diversidade é discorde, ao passo que a
semelhança é desejável; e o que deseja algo mostra ser, ele mesmo,
naturalmente, tal qual aquele mesmo que ele deseja.

Vou arriscar, aqui, uma interpretação...

48
I. A introdução apresenta a posição segundo a qual há conceitos comuns, que
compreendem imediatamente, e há conceitos comuns que todos
pressupõem, embora só muito raramente e com dificuldade são
explicitamente notados pelos homens. Com outras palavras, estes conceitos
são compreensíveis por si mesmos, mas são difíceis de serem compreendidos
para nós, que não exercitamos o intelecto.

II. A primeira e fundamental tese, posta a modo de axioma, diz: diversum est
esse et id quod est (diverso é ser e isto que é). Penso que seja preciso
entender “esse”, aqui, em sentido verbal. “Esse” (ser) vige como diferente de
“id quod est” (isto que é). Tendo a interpretar como a diferença ontológica,
isto é, a diferença entre ser (em sentido verbal puro e infinito) e ente (em
sentido participial). A primeiro aviso, ser é uma palavra vazia.
Gramaticalmente, “esse” é “verbum” (uma palavra que faz aparecer a ação)
no “modus infinitivus”, isto é, no modo da ilimitação, da indeterminação. O
modo infinito de um verbo é o que transmite o mínimo de significação de um
verbo. Os modos determinados da significação do verbo desaparecem.
Quando transformamos o verbo no modo infinitivo em substantivo verbal, e
dizemos, “o ser”, nós fixamos este desaparecimento. A palavra “ser” nos
parece, pois, vazia; sua significação, flutuante. A posição corrente da filosofia
é a de que “ser” possui a significação mais vazia de conteúdo e por isso
mesmo possui a mais extensa envergadura. O arco dessa envergadura só
encontra limites no nada. Tudo, que não seja nada, pertence a ser. De certo,
modo, mesmo nada pertence a ser, como sua negação ou como seu outro.
Sendo máxima a universalidade do conceito de ser, a elucidação do seu
conteúdo não pode servir-se de nenhum outro conceito, de vez que todo
conceito já inclui e pressupõe o conceito universalíssimo de ser. O que se
poderá é apenas explicar-lhe a máxima universalidade. Tal explicação não
será, porém, uma demonstração, mas sim uma indicação. Essa indicação nos
levará a paradoxos. Mas, examinemos mais de perto esta paradoxia38. A

38
Em grego, paradoxia quer dizer o caráter do que é maravilhoso, surpreendente. Paradoxo é o que é
contrário à doxa, isto é, ao parecer usual, corrente, à opinião comum. No pensamento moderno (Pascal,

49
palavra “ser” é indeterminada em sua significação, entretanto, nós a
entendemos sempre determinadamente. Por exemplo, distinguimos entre
ser e não ser. Se “ser” não tivesse nenhum sentido, isto é, se não tivéssemos
nenhuma compreensão de “ser” não poderíamos compreender nada daquilo
que é. Não poderíamos, portanto, falar do que quer que seja. E, assim, já não
seríamos homens. Portanto, a compreensão de ser, embora indeterminada,
é fundamental para a nossa existência. Para compreendermos o ente como
ente é preciso já termos compreendido ser. E a compreensão do ser é algo
de necessário para sermos o que somos: homens. “Ser” é o que há de mais
universal. Só que a universalidade de ser não é a universalidade do gênero.
No mesmo sentido, os modos de ser (ex.: natureza, história) não são espécies
do ser. “Ser” é o mais universal, e sua universalidade, pois, não é a de gênero
e de espécie, sua universalidade é, por assim dizer, transcendental
(transcende toda a categoria e também toda espécie e todo o gênero). E, no
entanto, é algo de único, incomparável, sui generis. Para compreendermos
“isto que é” é preciso compreender “ser”. Para compreendermos aquilo que
é como tal é preciso já termos compreendido ser. Ser se abre e se manifesta
em nossa compreensão daquilo que é. Ser, porém, é diverso daquilo que é.
Ser não é nenhuma coisa. Isto quer dizer: ser não é nada de ente. Boécio diz:
“ipsum enim esse nondum est” – “ser mesmo, pois, ainda não é”39. Mas em
“isto que é” ser se abre e se manifesta numa multiplicidade de modos. “Ser”
se dá em “isto que é” é o “é” de “isto que é” se deixa entender em uma
multiplicidade de modos. São os modos de ser. O aparente vazio do ser se
desdobra, pois, numa plenitude de modos de ser. Assim, nos é permitido
encontrar uma diversidade de entes numa multiplicidade riquíssima de
modos de ser. O “é” denota, no dizer, uma variedade rica de significações.
No dizer, o “é” nos vem ao encontro entendido ora de uma maneira ora de

Kierkegaard), acontece o paradoxo quando o finito se choca com o infinito ou quando o infinito irrompe
no finito.
39
Ser, enquanto fundamento de “isto que é”, não pode ser um “isto que é”. Neste sentido, enquanto
outro de “isto que é”, ser é chamado de “nada”. Em grego, “oudén” (ou-d-én = nem um); em latim, “nihil”
(ne hilum quidem = nem um olho de fava, nem um pouquinho); em português, “nada” (nulla res nata); em
inglês, nothing (no thing = não coisa); em alemão, das Nichts (das nicht sein = o não ser). O fundamento,
pois, da realização de tudo o que é, pode ser chamado de “nada”. O fundamento é, pois, um abismo.

50
outra. Mas, nos muitos modos de o “é” se nos dar e ser compreendido, há
algo de fundo: o “é” de “isto que é” de alguma maneira mostra uma
apresentação e uma presença. Nós compreendemos ser de início e na maior
parte das vezes a partir do “é” (não, por exemplo, a partir do “sou), e sempre
de alguma maneira em referência a uma vigência que se dá como presença e
apresentação. Foi assim que os gregos entenderam “o ser” (tó einai). Boécio
continua nesta tradição. “Isto que é”, quer dizer, isto que se apresenta e que
pode ser apontado (conexão entre o artigo determinado e o pronome
demonstrativo) “recebida a forma de ser é e subsiste”. O “é” do “isto que é”
se dá sempre numa determinada “forma essendi” (forma de ser) (por. a
animalidade do animal, a humanidade do homem, etc.). “Isto que é” recebe,
pois, uma forma de ser. A forma dá ser. Mais propriamente: ela dá a isto que
é o ser um ente determinado deste modo e não de outro modo (Sócrates é
homem. Sócrates recebe a forma de ser do humano, a humanidade). O ente
é, quer dizer, ele subsiste. Com o verbo latino subsistere Boécio traduz o
verbo grego hyphistemi, que quer dizer, ser posto por debaixo (a modo de
hypokeimenon, de subjectum, sujeito). Subsistir é o ser do sujeito, do
substrato, que é determinado pela forma de ser, que recebe o ser esta coisa
determinada, da forma de ser.

III. A segunda tese diz que o ser não participa de nada, enquanto isto que é
participa. Aqui entra o conceito de “participatio” (participação) – em grego:
methéxis40. Aquilo que é existe e subsiste enquanto participa de ser e de uma
determinada forma de ser. Aquilo que é chama-se “ens” por esta
participação. Com efeito, “ens” (em grego, on) é um “participium”41. “Isto

40
Para Platão a relação entre o ente e a ideia (forma que dá ser) era de participação. O conceito de
“participatio” será um conceito fundamental no pensamento de Tomás de Aquino. Todo ente finito só
existe e subsiste graças a uma “participatio quaedam infiniti” (uma certa participação no infinito). A
participação é uma forma restrita (parcial) de realização, do ato de ser, de presença da perfeição ilimitada
do ser. O ente criado, finito, tem também uma “participatio ex nihilo” (uma participação do nada), donde
segue a sua caducidade.
41
O particípio reúne em si tanto a função do nome, quanto a função do verbo. Neste sentido, diz tanto
“ser” quanto “isto que é”. Tem, pois, um caráter ambivalente. A “metoché” articula, pois, a diferença
referente de “ser” e “isto que é”. Duas palavras fundamentais da filosofia grega, “on” e “ousía” guardam
este caráter ambivalente. “On” diz tanto “ser” quanto “isto que é”. “Ousía” diz tanto o “o que é” (tó ti
estin) quanto “isto que é” enquanto é em si (ens in se). Para Platão e Aristóteles, a “ousía” é o princípio
constituinte do “on” enquanto “on” – é a dinâmica de estruturação que faz com que “tó on” seja. Na

51
que é” participa do ser e de uma forma de ser. A forma de ser dá a “isto que
é” o ser de um determinado modo. “Isto que é” recebe o “ser” do qual
participa.

IV. A terceira tese anuncia que o ser mesmo é puro ser, não tendo nada fora de
si e que “isto que é” não é somente o que ele é, mas tem também algo fora
de si. Esta tese se compreende melhor com a tese seguinte.

V. Na quarta tese Boécio introduz a diferença entre substância, aquilo que o


ente é em si mesmo; e acidente, aquilo que o ente tem fora de si mesmo.
Substância nomeia o apenas ser alguma coisa (esse tantum aliquid).
Acidente, porém, nomeia o ser alguma coisa naquilo que é (esse aliquid in eo
quod est), ou seja, o ser inerente a alguma coisa.

VI. A quinta tese dá a entender a primazia do ser sobre o ser-alguma-coisa, sobre


o ser isto ou aquilo (uma forma determinada): para (simplesmente) ser, tudo
o que é (todo o ente) participa do ser; mas, para ser alguma coisa, todo “isto
que é” deve participar também de outra coisa (diferente do ser puro e
simples). O ser, portanto, vem antes de ser-alguma-coisa. Todo “isto que é”
participa do ser, enquanto é. E participa de uma determinada forma de ser,
enquanto é alguma coisa desta essência e não de outra. Com outras palavras:
o ente participa do ser (puro e simples) e participa de uma essência (uma
determinada forma de ser).

VII. A sexta tese diz: tudo o que é simples tem o ser e o “isto que é” como um.
Aqui se anuncia o estatuto ontológico de Deus: sua simplicidade. Isto quer
dizer: nele, ser e “isto que é” fazem uma unidade e não uma dualidade. Deus
não tem o ser, ele é o (seu) ser. Nele, essência e existência são um e não dois.
Não se dá nenhuma adição da existência à essência.

VIII. A proposição seguinte, fala do contrário do que é simples, isto é, do que é


composto: em todo o ser composto, uma coisa é o ser, outra coisa é o “isto

terminologia latina podemos dizer: a “essentia” é o princípio constituinte do “ens” – a estruturação que
dá “esse” (ser) ao “ens” (ente).

52
que é”. Portanto, no composto há uma dualidade de ser e “isto que é”. Neste
caso, o “isto que é” não é o seu ser; ele apenas tem o seu ser.

IX. A sétima tese fala do diverso e do semelhante. O diverso provoca repulsa. O


semelhante busca, anseia pelo semelhante. O que deseja alguma coisa além
de si mesmo mostra que é por natureza semelhante àquilo que deseja. Esta
tese serve para fundamentar uma ideia central na ontologia de Boécio e
sempre reiterada na tradição medieval, a de que todo o ente é bom. Esta tese
se fundamenta de maneira silogística da seguinte maneira: todo o ente
deseja o seu próprio bem; todo o ente deseja o seu semelhante; logo, todo o
ente que deseja o bem é ele mesmo um bem.

53

Вам также может понравиться