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Desafios da Igreja

na América Latina
HISTÓRIA, ESTRATÉGIA E TEOLOGIA DE MISSÕES

" o mundo de amanhã não precisa de


latino-americanos que aspirem por viver
na comodidade e no luxo dos missionários
norte-americanos e europeus, mas de
latino-americanos que convençam seus
parceiros norte-americanos e europeus
que se pode viver com simplicidade e
alegria, com os meios estritamente
necessários para realizar a obra, e um
senso de satisfação que vem da
fidelidade ao chamado de Deus "

Um dos mais respeitáveis teólogos da


atualidade, fundador da Fraternidade Teológica
Latino-Americana, Samuel Escobar nos convida
a refletir sobre a realidade da Igreja na América
Latina, rumo ao século XXI.
O autor nos oferece uma agenda de
capacitação de missiólogos, propõe uma
revisão histórica das relações entre o
protestantismo e o catolicismo, aponta
novas fronteiras e apresenta um enfoque
latino-americano ao modelo paulino ele
missões.

11'" 11111111111111
004394
DESAFIOS DA IGREJA NA AMÉ
L-8

Ultlmat
EDITORA
o s trabalhos aqui reunidos são
um convite o reflexão. Neste
fim de século há um afã
missionário incrível a partir da
América latina, especialmente
a partir do Brasil.Issoé motivo
de alegria, mas também de
reflexão. Ativismo sem reflexão
pode levar a igreja a cometer
erros, gastar maios recursos e a
edificar sobre a areia.
O primeiro trabalho desta
coletânea apresenta uma
agenda de capacitação de
missiólogos,dentro do contexto
DESAFIOS DA IGREJA NA
latino-americano, para atender
aos desafios do próximo século.
Em seguida, Samuel Escobarfaz
AMÉRICA LATINA
uma revisão histórica e
demonstra os vínculos da HISTÓRIA, ESTRATÉGIA E TEOLOGIA DE MISSÕES
Reforma com a missão da
Igreja hoje e compara a histórlo
missionária católica com a
história missionária protestante.
No quarto e quinto trabalhos, o
autor explora as novas
fronteiras e suas implicações no
trabalho missionário, bem como
analisa o modelo paulino como
um paradigma ã obediência
ao imperativo missionáriode
JesusCristo.
SAMUEL ESCOBAR

DESAFIOS DA IGREJA NA
AMÉRICA LATINA
HISTÓRIA, ESTRATÉGIA E TEOLOGIA DE MISSÕES

TRADUÇÃO:

Hans Udo Fuchs

Ultimato
EDITORA
Copyright © 1997 by Samuel Escobar

Projeto Gráfico:
Editora Ultimato

1" Edição:
Agosto de 1997

Revisão:
Bernadete Ribeiro
Délnia M. C. Bastos

Ficha catalográfica preparada pela Seção de Catalogação


e Classificação da Biblioteca Central da UFV
Com afeto especial este livro é dedicado a
Escobar, Samuel
Rose e Fílmen Douglas,
E74d Desafios da igreja na América Latina; história, estratégia
1997 e teologia de missões / Sarnuel Escobar. -Viçosa: Ultimato, amigos e colegas de ministério,
1997. missionários de Jesus Cristo,
1041'.
Bibliografria no final dos capítulos
fazedores de tendas brasileiros
ISBN 85-86539-05-8
poramore adoção.
1. Igrejas Protestantes - Missões - América Latina.
2. Igrejas protestantes - Relações - Igreja católica (Igreja
Ortodoxa, etc.) - História. 3. Missões - América Latina.
r. Título.
CDo. 19.ed. 266.4
CDo. 20.ed. 266.4

1997

Publicado com autorização e com todos os direitos reservados à


EDITORA ULTIMATO LTDA.
Caixa Postal 43
36570-000 Viçosa - MG
Telefone: (031) 891-3149 - Fax: (031) 891-1557
E-mail: ultimato@homenet.com.br
SUMÁRIO

PREFÁCIO .......... 9

1. TREINA..'VIENTO DE MISSIÓLOGOS PARA O


CONTEXTO LA11NO-AMERICANO . . .. 13

2. A REFORMA PROTESTANTE E A MISSÃO DA


IGREJA HOJE . . . . . . . . . . . . . . ..... 31

3. CATÓLICOS E EVANGÉLICOS NA AMÉRICA LATINA


DIANTE DO DESAFIO MISSIONÁRIO DO SÉCULO XXI . . . . 51

4. As NOVAS FRONTEIRAS DE MISSÕES . . 69

5. O PARADIGMA PAULINO DE MISSÕES - UM


ENFOQUE LATINO-AMERICANO 87
PREFÁCIO

"Não é bom proceder sem refletir, epeca quem é


precipitado" (pv 19.2)

o s trabalhos reunidos neste livro são um convite à reflexão.


Neste fim de século encontramos um afã missionário
incrível a partir da América Latina, especialmente a partir do
Brasil. Isso é motivo de alegria para nós que cremos na
obrigação missionária da Igreja, mas deve ser também motivo
de reflexão à luz da Palavra de Deus e das experiências da
história de missões. Muito ativismo sem reflexão pode nos levar
a cometer erros, a gastar mal os recursos, a edificar sobre a
areia. A Palavra de Deus nos diz que devemos agir e refletir.
Apresentei o primeiro trabalho dessa coletânea na Escola
de Missões do Seminário Fuller, em Pasadena, na Califórnia,
em 1992, como parte de uma consulta sobre a capacitação de
missiólogos para o século XXI. Propus-me oferecer uma
agenda do que essa capacitação deveria abranger, dentro do
contexto latino-americano, das mudanças que me parecem mais
urgentes para responder ao desafio do próximo século.
10 - DESAFIOS DA IGREJA NA AM(~RICA LATINA
PREFACIO - 11

Baseei-me em minha própria experiência como missionário e A reflexão do missionário deve ser empre iluminada pela
formador de missionários, e em uma leitura missiológica da Palavra de Deus. Através dos séculos aobediência ao impera-
situação latino-americana. tivo missionário de Jesus Cristo, em sua ümensão transcultural,
Um item importante da minha agenda é a revisão da nossa recebeu inspiração e direção do modele pioneiro do apóstolo
história. Não podemos ignorar o passado nem nos contentar- Paulo. No quinto e último capítulo desa coletânea, apresento
mos com visões que, por inércia ou tendência de buscar o ca- uma leitura breve do modelo paulino, lascado em uma passa-
minho mais fácil, desfiguram esse passado. Apresentei o gem clássica da carta aos romanos. Apttsentei-a, pela primeira
segundo trabalho em Lima, no Peru, por ocasião da celebra- vez, na Inglaterra, em 1988, a pedido h Church Missionary
ção do aniversário da Reforma, em outubro de 1994. Propus- Society (Sociedade Missionária da Igrqa da Inglaterra). Com
me mostrar que nossa herança missionária evangélica deve mais algumas modificações, o texto em ingks foi minha contribui-
ao pietismo e ao avivamento wesleyano do que ao protestan- ção para um livro em homenagem ro missiólogo Arthur
tismo clássico do século XVI. Por isso mesmo, olhando para Glasser, e o texto em espanhol faz part:e de um livro em ho-
o futuro, concordo com Valdir Steuernagel e José Comblin menagem póstuma a Orlando Costas, colega a quem o Senhor
a respeito da centralidade do Espírito Santo para a ação e levou na flor da idade.
reflexão missionária. Agora; esses trabalhos são publicacos em um volume em
Na revisão da história um dos temas mais difíceis e português, graças ao estímulo e ao entisiasmo dos meus ami-
controvertidos éa relação com o catolicismo romano. Nesse gos e irmãos Elben César e Marcos Boitempo, aos quais agra-
sentido, creio que, comparando a história missionária católica deço efusivamente. Desde a minha primeira visita ao Brasil,
com a história missionária protestante, podemos aprender em 1953, como jovem delegado peruaro a um congresso mun-
muito daquela. Esse é o campo que exploro no terceiro ensaio, dial da juventude batista, apaixonei-m: por esse imenso país.
o qual escrevi em 1994 como contribuição à homenagem da Em 1959 e 1960 percorri como evangtlista e discipulador um
revista teológica Kairós, da Guatemala, ao meu amigo e colega bom número de centros universitários Cheguei de avião, um
Emílio Antonio Nufiez. Ele é um especialista no tema do velho Catalina da Panair, de Iquitos, na selva peruana, até
catolicismo, e permito-me dialogar com ele sobre algumas Manaus. Dali percorri o Norte e o Nrrdeste, até chegar a São
questões urgentes para a missão cristã a partir da América Paulo, onde, entre 1962 e 1964, traballei como missionário na
Latina. frente estudantil, nos primeiros anos h Aliança Bíblica Uni-
A missão cristã sempre implicou em cruzar fronteiras, versitária. Desde então, com admiraçâi e gratidão ao Senhor,
porém cada geração cristã, ao cruzar novas fronteiras, tem de tenho acompanhado a obra evangélica no Brasil. Espero que
explorá-Ias antes de lançar-se à aventura. Proponho-me fazer estas páginas sejam úteis ao povo de Deus e aos missionários
essa exploração no quarto ensaio, escrito para o Terceiro do próximo século.
junho de 1997.
Congresso Latino-americano de Evangelização (CLADE III),
Samuel Escobar
realizado em Quito, no Equador, em 1992, cujo tema foi Todo
Seminário Teológico Batista do Leste
o evangelho, para todos ospovos, a partir da .América Latina.
Filadélfia-EUA / Lima-Peru
1.

TREINAMENTO DE
MISSIÓLOGOS PARA
O CONTEXTO
LATINO-AMERICANO

Améric'a Latina é um laboratório missiológico


A singular, onde o missionário e o missiólogo podem
encontrar ao mesmo tempo as situações mais convencionais e
as experiências mais temerárias. Isso dá uma relevância especial
ao assunto e quero rrabalhá-lo de maneira bem específica. Meu
assunto não é o treinamento de missionários mas de missiólogos, e
creio que há uma diferença clara entre esses dois tipos de
treinamento. Você pode treinar um "missionário" ensinando
uma pessoa a memorizar uma certa versão do evangelho,
passando-lhe algumas técnicas de comunicação, acrescentando
um pouco de percepção transcultural que pode abranger a
TREINAMENTO DE MISSIÓLOGOS - 15
14 - DESAFIOS DA IGREJA NA At\1ÉRICA LATINA

o catolicismo na defensiva
compreensão etnocêntrica que você tem das outras culturas, e
Antes do fim desta década metade dos católicos romanos
outras técnicas apropriadas para a tarefa específica do missionário.
do mundo estarão vivendo na América Latina. Para os
Entretanto, o que é um "missiólogo", e como treiná-Io?
missiólogos isto significa dizer que, se houver atividade
Minha proposta para a diferença-chave entre um missi-
missionária católica no próximo século, os católicos latino-
onário e um missiólogo é que o missionário desincumbe-se
da tarefa que seu chamado lhe propôs, e que o missiólogo, americanos terão um papel de destaque a desempenhar nela.
além disso, reflete sobre essa tarefa de modo critico e sistemático. Entretanto, menos de dois por cento da força missionária ca-
Essa reflexão é necessária para adaptar, corrigir e aperfeiçoar a tólica sai da América Latina. Além disso, os missiólogos cató-
metodologia missionária. Ela é enriquecida por disciplinas licos observam que a proporção de conversões do catolicismo
teológicas clássicas como estudos bíblicos, his tória da para as diferentes formas de protestantismo na América Lati-
teologia, história da igreja, bem como as ciências sociais. na tem sido tão grande que, comparativamente, mais católicos
Essa reflexão deveria ser a fonte do conteúdo da missiologia, a se tornaram protestantes aqui do que em toda a Europa du-
ser desdobrado em forma de currículo para o treinamento rante a Reforma do século XlVI Durante o CELAM IV, a
de missionários e missiólogos. assembléia mais recente dos bispos latino-americanos em San-
A missiologia é um estudo interdisciplinar, e os to Domingo (12-18 de outubro de 1992), o papa João Paulo li
missiólogos concordam que, na educação teológica, é sem- usou a expressão "lobos vorazes" para referir-se às igrejas
pre difícil integrar adequadamente as diferentes disciplinas. evangélicas.2 Linguagem e atitude traem a mesma defensividade
Este problema não está limitado à educação teológica, mas do CELAM I no Rio de Janeiro, em 1955, há quase quarenta
é um problema sério da educação superior em geral. O con-
anos.
tato com a atividade missionária exerce um papel integrativo
na formação acadêmica de missionários e missiólogos. A
espiritualidade em suas diversas formas também tem um
o crescimento do protestantismo popular

papel integrativo na educação missiológica, porque os me- Em 1916, quando as forças missionárias que trabalhavam
lhores momentos da história e prática missionária estão sem- na América Latina realizaram sua primeira conferência conti-
pre relacionados com uma vitalidade espiritual renovada. nental no Panamá, eles contaram 126.000 protestantes. Não
Com isso demos uma volta completa até nossa afirmação temos informações precisas da nossa época, mas uma estima-
inicial. O melhor missiólogo será um missionário cujo com- tiva conservadora coloca o número dos protestantes latino-
promisso com a missão e cuja vitalidade espiritual são parte americanos para além dos 40 milhões em 1992. Até jornalistas
integrativa de suas reflexões sobre a prática missionária. A católicos crêem que a América Latina poderá ter uma maioria
reflexão missiológica não é mero exercício acadêmico, mas evangélica no começo do século XXI porque " ... na verdade,
é parte da obediência missionária. em termos de participação na igreja, os evangélicos 'pratican-
tes' podem já estar superando em número os católicos
o contexto latino-americano
'observantes"'.3 As igrejas que crescem mais rápido são as po-
Vejamos alguns dados da situação na América Latina que pulares do tipo pentecostal, que são as mais contextualizadas
são especialmente significativos na perspectiva missiológica atual.
16 - DESAFIOS DA IGREJA NA fuY!ÉRICA LATINA TREINAMENTO DE MISSIÓLOGOS - 17

em termos de liturgia e metodologia evangelística. São A deterioração das condições sociais


também as que têm menqs ligações ou influência estrangeiras.
A década de 80 tem sido chamada de "década perdida",
por causa da deterioração visível das condições sociais em toda
o surgimento de setores marginalizados
a América Latina. Um documento evangélico recente descre-
Padrões migratórios e massiva concentração urbana têm co- ve dramaticamente o cenário no final desta década:
locado em evidência segmentos da população que eram quase o mundo latino-americano recebeu um triste legado de
-invisíveis no passado. Essa nova visibilidade daqueles que an- estruturas arcaicas de propriedade da terra, estagnação das
tes estavam ausentes foi chamada pelo teólogo Gustavo comunidades rurais, invasão dos territórios indígenas,
deterioração da qualidade de vida nas grandes cidades,
Gutiérrez de "surgimento dos pobres", que estão-se tornando
desemprego, fome, violência, abandono de crianças e idosos,
os novos atores dos processos históricos. Este movimento é
analfabetismo, déficit habitacional, piora dos serviços
bem exemplificado pelo crescimento significativo da igreja que públicos, em especial nas áreas de educação e saúde, lentidão
ocorreu entre as comunidades nativas na Guatemala, México, nos processos judiciais, prisões superlotadas, corrupção e
Peru, Bolívia e Equador. O fato de que elas agora têm a Bíblia inflação generalizadas."
completa em sua própria língua nos permite esperar desafios
Tudo isso afetou de modo significativo o padrão de vida da
teológicos importantes no futuro. Mais de 45.000 cópias da
igreja e a educação teológica.
Bíblia completa em quíchua foram vendidas no Peru nos pri-
meiros três anos depois de sua publicação, apesar do sofri-
mento causado pelos terroristas maoístas de um lado e pela Ativismo cristão
repressão militar do outro. Como contrapartida ao crescimento da pobreza e da
marginalização, mas também causada por ele, a vida e o teste-
o enigma missionário munho das comunidades cristãs intensificou-se. Por toda a
América Latina o nome de Jesus está sendo proclamado alto e
Considerando que os cinco séculos da evangelização ibéri- bom som nas ruas apinhadas das megalópolis, bem como nas
ca na América Latina foram comemorados em 1992, é estra- vilas mais remotas. Há camponeses simples, assim como inte-
lectuais sofisticados, prontos a arriscar suas vidas pelo que con-
nho constatar que, da força missionária enviada da América
sideram exigências da sua fé em Jesus Cristo como seu Senhor.
do Norte, tanto católica como protestante, o maior contin-
Fidelidade à fé torna-se uma questão de vida ou morte, e
gente de missionários ainda está sendo enviado para a Améri-
não um debate acadêmico sobre princípios. Algumas igrejas
ca Latina, mais do que para qualquer outra região do mundo. estão diminuindo em número e influência, mas outras estão
A maioria não vai trabalhar entre populações pagãs, mas en- florescendo.
tre cristãos nominais. Na verdade, o contexto do crescimento
protestante é uma população cristianizada superficialmente sem
Ativismo missionário
atenção pastoral, porque a igreja Romana está fraca demais até
para manter seus fiéis dentro do aprisco. Uma reflexão hones- O entusiasmo por missões a nível global começou a
ta sobre este fato está cheia de lições missionárias. florescer entre os evangélicos, e diversas organizações
18 - DESAFIOS DA IGREJA NA A.t\1ÉRlCA LATINA
TREINAMI'NI'O 1)1/. 1V1I~"'1I11 t 11.'-'

missionárias surgiram nas últimas duas décadas. Por exemplo,


escolas missiológicas predominantes na Am6riLI do r ~nl'lQ I
há agora missionários do Brasil, Costa Rica, Peru e Colômbia
na Europa, em especial quando é evidente que elas CHI .111 1"
trabalhando em outros países latino-americanos, assim como
sando por uma crise de ajuste às novas condições do 111111111"
na Europa, África e Oriente Médio. Além disso, entre os cen-
Nosso programa de treinamento na América Latina PI·("lIM.1
tenas de milhares de latino-americanos "que se deslocam em
ser elaborado com base em convicções bíblicas, expcriêncm
exílio voluntário para outras partes do mundo, há um número
de vida, consciência histórica e preocupação pastoral. Meu cs
pequeno mas significativo de evangélicos que cultivam sua fé
boço é basicamente uma reflexão sobre a prática corrente, não
em meio à transição e que estão engajados entusiasticamente
uma proposta teórica.
em difundir o evangelho enquanto estão "indo". O crescimento
significativo do protestantismo entre os hispânicos na Améri-
Onde começa o treinamento
ca do Norte é dinamizado pelo empenho ativo de leigos, o
que a Igreja Católica Romana tem muitas dificuldades de O preparo de pessoas para missões é iniciado por experi-
fomentar. ências de vida muito antes que uma faculdade, um seminário
ou uma escola de missões lhes proporcione uma quantidade
Consciência crescente da missão integral de informação organizada em um currículo. O zelo, a visão e
as qualidades básicas do caráter, que são a "matéria-prima" da
Uma das reuniões protestantes mais significativas do nosso qual os missionários são feitos, são desenvolvidos em casa, na
século ocorreu recentemente em Quito, no Equador. Foi o igreja e em organizações para-eclesiásticas. Em tempos de cri-
CLADE lI!, Terceiro Congresso Latino-americano de se e transição social e moral, como estes pelos quais a América
Evangelização (24/8-4/9/1992). O sucesso desse evento atraiu Latina está passando, é importante manter esse fato em men-
mais de 1.000 delegados de toda a América Latina, mostrou a te. Quando você tem um número crescente de candidatos ao
existência de centenas de projetos de missão integral criados e trabalho missionário que vêm de famílias desestruturadas e
desenvolvidos pelos próprios latino-americanos, e evidenciou envolvimento com drogas ou espiritismo, é preciso revisar as
uma nova geração de teólogos de missões que são também pressuposiçõestque serviram de base para formas anteriores
ativos como missionários.' É evidente que além do entusias- de treinamento missionário. Neuza Itioka, que treina missio-
mo missionário, há também criatividade e a preocupação bem nários para aAvante no Brasil, destacou este ponto (1991), e eu
pensada de fazer missões à maneira de Jesus e não repetir também escrevi sobre a minha experiência."
simplesmente os padrões anglo-saxões. A missão integral acon- Não devemos esquecer que, antes de uma pessoa ensinar,
tece aqui através da impressionante capacidade de recupera- evangelizar, traduzir Escrituras, promover desenvolviment
ção dos pobres e da criatividade dos que estão comprometidos
auto-sustentado, refletir sobre missões ou fazer qualquer ou-
com o serviço ao próximo.
tra coisa que se espera de missionários, essa pessoa tem uma
Em um continente com essas características o treinamento
maneira de ser. Sua presença comunica algo a outros, especial
de missionários e missiólogos precisa ser repensado. Não
mente àqueles que são recebedores da missão. No CLADI ': III
podemos limitar-nos a copiar o currículo e os métodos das
ouvimos uma missionária brasileira em Angola rcfcrirsr; .1()
20 - DESAFIOS DA IGREJA NA Aj\1fiRlCi\ LATINA TREINAMENTO DE MISSIÓLOGOS - 21

longo processo de aprendizado de que a humildade é a princi- redescoberta de uma antropologia bíblica em contraste ao
pal característica que deve identificar um missionário. E esta reducionismo evangélico atual.
virtude não pode ser ensinada na disciplina Humildade 101 do Outro elemento importante aqui é o estilo de diálogo que o
currículo de missões! processo educacional deve adotar. O credo pedagógico de Paulo
Ao observar situações de treinamento na América Latina e Freire tem alguns pontos de importância missiológica, mesmo
refletir sobre os processos de discipulado em igrejas e organi- que suas pressuposições ideológicas sejam questionáveis. Freire
zações para-eclesiásticas, cheguei à conclusão de que formar faz uma distinção clara entre educação e "domesticação". O
pessoas para missões deve acontecer dentro do âmbito de um aprendizado acontece melhor através do diálogo, em klg~r do
relacionamento "pessoa a pessoa", que é fundamental como monólogo do professor, baseado na convicção de que nin-
ambiente para o processo educacional. Nenhum grau de exce- guém é totalmente ignorante e ninguém sabe tudo. A abertura
para ouvir e discutir a experiência de todos contribui para uma
lência acadêmica ou ortodoxia doutrinária pode substituir essa
atmosfera educacionallibertadora. O processo pode ser facili-
dimensão personalizada do treinamento para missões. Isso é
tado e enriquecido incluindo no'grupo de alunos pessoas com
difícil na América do Norte, onde as instituições teológicas
contexto e experiência missionária, na base de igualdade c
dependem demais da necessidade da educação de mercado e
mutualidade. Quando os professores são incentivados a aban-
das limitações impostas pelas agências de credenciamento. Pelo
donar a pose "magisterial", eles se tornam mais aptos a ajudar
menos na América Latina, ainda há espaço para um processo
os alunos a refletir sobre sua própria experiência. A transmissão de
mais cuidadoso de seleção de alunos, que permite fazer um
informação e o desenvolvimento de novas habilidades torna-
trabalho melhor na admissão e um bom monitoramento ao
se mais significativo e aceitável dentro do contexto dessa re-
longo do caminho.
flexão ativa.
A interação com várias pessoas que praticam missões tam-
Atmosfera educacional
bém tem um efeito formativo. Missionários estrangeiros ou
o desenvolvimento e formação de pessoas é um alvo baseado latino-americanos que visitam outros centros de treinamento
no modelo bíblico da prática de Jesus e dos apóstolos, e tam- compartilham sua experiência e interagem com os alunos. Esse
bém nos modelos históricos das personalidades carismáticas tipo de presença tem de ser mais do que a simples divulgação
que fundaram algumas das ordens missionárias. Nos movimen- que conhecemos. Seu valor formativo está relacionado ao grau
tos estudantis em que trabalhei, a cura de pessoas através da de autenticidade e toque pessoal que se mantém. Uma versão
vida em conjunto e da interação tem sido um elemento-chave mais formal desse princípio tem sido incentivar os alunos a
no preparo de missionários." A Unidad Cristiana Universitaria na pesquisar a história da sua denominação e concentrar-se na
Colômbia tem sido um viveiro de missionários para outras re- vida e na obra de missionários específicos, com simpatia mas
giões da América Latina e da Europa, e tem desenvolvido um também com realismo. É o que os meus colegas Stcwar t
currículo personalizado para seu treinamento. Questões levan- McIntosh e Tito Paredes fizeram na Escola de Missiologia
tadas quanto ao discipulado de futuros missionários levou Orlando E. Costas, em Lima, e eu tenho feito no Eastern Baptist
missiólogos como René Padilla8 ou Neuza Ltio ka" à Theological Seminary.
TREINAMENTO DE MISSIÓLOGOS - 23
22 - DESAFIOS DA IGREJA NA .fu\1ÉRJCA LATINA

Outra razão foi que, para o evangélico latino-americano


o missionário brasileiro que lidera o projeto Magreb no Norte
médio, a evangelização ainda é o âmago da missão da igreja; é
da África descreveu as sérias dificuldades que os latino-ameri-
a própria razão de ser da igreja.
canos têm em aceitar a pobreza e as privações em alguns dos
Estudei esse ponto em relação à cristologia, por exemplo,
países muçulmanos onde trabalham. 10 Ele não vê outra alter-
que para nós é muito mais do que um estudo das fórmulas dos
nativa que não a encarnação. Nunca se pode fazer missões à
credos do século IV Deve, isto sim, ser um estudo do material
distância, do conforto de um agradável escritório. A chave
bíblico na busca de um modelo para o missionário atual, ou
para levar o evangelho de uma cultura para outra é a experiên- seja, uma cristologia missionária." Os teólogos evangélicos na
cia quenótica da encarnação, seguindo o modelo cristológico América Latina não fazem teologia para a galeria de acadêmi-
de missões apresentado em Filipenses 2.5-11. É custoso e do- cos ou para os cães de guarda fundamentalistas. As questões
lorido, mas é o único modelo que produz resultados perma- relevantes na teologia devem ser sempre as mesmas questões
nentes. Se a semeadura do evangelho exige este estilo de vida de missões. Essa tarefa é empolgante, mas não sem dificuldades
de encarnação do missionário, ela dará à luz uma vida cristã e lutas.
também de encarnação na referida cultura. Essas perspectivas Penso que, em relação a missões, a tarefa do teólogo está
sobre missões não vêm de livros ou computadores, mas da sempre entre dois extremos: o ideológico e o crítico. Alguns acham
encarnação em situações de frente de batalha, pelo poder do que a tarefa do teólogo é prover uma "ideologia" para o em-
Espírito Santo. Esse tipo de experiência é o ponto de partida preendimento missionário como ele existe. A função da ideo-
ao qual as descobertas das ciências sociais e da história da logia é explicar (prover racionalidade) e justificar (sancionar
cultura podem ser acrescentadas para prover uma percepção ou legitimar) um fato social. Alguns imaginam a tarefa da teo-
básica das culturas. logia de missões exatamente dentro desses parâmetros: a cria-
ção de uma teoria de missões que irá substanciar uma certa
Teologia e missões expressão do empreendimento missionário. A missiologia sim-
plesmente torna-se metodologia. Outros vêem a tarefa da te-
No desenvolvimento recente da teologia na América Lati- ologia de missões como crítica, em que o empreendimento
na, a teologia praticamente tem sido missiologia. Já foi dito missionário é submetido à luz das ciências sociais, de modo a
que as teologias da libertação, por exemplo, são estudos do expor todas as falhas, ao ponto de, no fim, o próprio trabalho
significado de missões para a igreja nos dias atuais. Entre os missionário ser abandonado. Essa é uma das maneiras de a
evangélicos o início de uma teologia nacional está ligado a um missiologia tornar-se uma atividade puramente acadêmica,
congresso de evangelização (CLADE I, Bogotá, 1969), que assumindo a forma de um comentário sempre negativo, sem
foi o berço da Fraternidade Teológica Latino-americana. A compromisso com a prática. Penso que, mantendo-se perto
única maneira de explorar a profundidade da nossa fé para da atividade missionária, a missiologia evita a armadilha da
inseri-Ia em nosso contexto foi relacionar esse estudo com a esterilidade acadêmica. Mas também creio que, sendo fiel à
Palavra de Deus, a missiologia também evita a armadilha de
evangelização. Uma razão importante para isso era que nossas
simplesmente prover uma ideologia conveniente ao sistema
perguntas sobre a fé vieram da nossa prática como evangelistas
missionário existente.
e pastores, e não de questionários tirados de livros traduzidos.
24 - DES/\FIOS DA IGREJA NA AMÉRlCA LATINA TREINAMENTO DE MISSIÓLOGOS - 25

Durante o CLADE IH, Federico Bertuzzi'! do COMIBAM uma "nova evangelização" para a América Latina. O conceito
concordou com Carlos Mraida!', pastor e professor de desenvolveu-se e, mais tarde, foi melhor definido"; sendo
Missiologia em Buenos Aires, quanto à necessidade de uma distinguido de qualquer idéia de "re-evangelização", como se
revisão drástica do currículo de instituições teológicas padro- a primeira evangelização no século XIV tivesse falhado. A "nova
nizadas pelo sistema anglo-saxão. Eles chegaram à conclusão evangelização" deveria ser "nova em seu fervor, seus méto-
de que este sistema, na verdade, está direcionado para o treina- dos, sua expressão", mas pressupõe que a primeira foi bem
mento de ministros mono culturais. Mraida crê que todo o cur- sucedida, apesar de suas limitações. Como os bispos disseram
rículo precisa ser influenciado pela redescoberta da natureza em Puebla,
missionária da igreja, das obrigações missionárias de todos os apesar dos defeitos e pecados sempre presentes, a fé da igreja
crentes, e da participação da América Latina em missões a ní- impôs seu selo sobre a alma da América Latina. Ela deixou
vel global. Isso é muito mais do que simplesmente acrescentar suas marcas na identidade histórica essencial da América
Latina, tornando-se a matriz cultural do continente, do qual
um curso de missões ao currículo. Significa reformular as dis-
surgiram novos povos. 11>
ciplinas para colocar a missão da igreja no centro do objeto de
estudo. Os missiólogos na Europa e América do Norte sabem Usando categorias do Vaticano H e do documento Evangelii
que isso não é fácil de fazer em instituições teológicas e que Nuntiandi do papa Paulo VI, desenvolveu-se o conceito de
temos, portanto, um longo caminho à frente. "evangelização de culturas", num esforço de compreender gru-
pos de pessoas nas circunstâncias específicas em que vivem. O
Ecumenísmo e cooperação missionário-missiólogo Roger Aubry afirma que a futura tare-
fa missionária católica na América Latina concentra-se num
Essa provavelmente é a área em que os latino-americanos tríplice desafio: as "culturas antigas" (povos indígenas e afro-
têm mais dificuldades. Na América do Norte os missiólogos americanos), as "culturas em mudança" (multidões de migrantes
conseguem cooperar com protestantes conciliares e católicos para as grandes cidades) e as "culturas novas" (pessoas afeta-
na Sociedade Americana de Missiologia; na América Latina das pelo impacto da modernização) (CELAM 1990, p. 76-80).
missões são o pomo de discórdia que separa os três grupos. O Este conceito os missiólogos protestantes não podem se dar
relatório do Diálogo Evangélico-Católico Romano sobre Mis- ao luxo de ignorar.
sões'", que explorou tantas bases comuns, tem sido ignorado Que tipo de missionários são necessários hoje em dia, de
por católicos e protestantes. Nem mesmo o diálogo entre pro- acordo com os missiólogos católicos? A resposta mais corajosa
testantes é praticado, em parte porque muito da divulgação a esta pergunta veio dos católicos norte-americanos, que avali-
missionária se baseia nas regras de competição de mercado. aram a sua experiência missionária durante os anos críticos
Quero mencionar dois aspectos do catolicismo romano atual da década de 60. Para eles, naquela época "começou a surgir
que a missiologia protestante na América Latina não pode um enfoque de missões radicalmente novo [....]. Os missioná-
Ignorar. rios que restaram começaram a aprender em vez de ensinar,
A 19a Assembléia dos Bispos Latino-americanos em 1983 a servir em vez de liderar"." Um veterano de vinte anos de
foi a ocasião que o papa João Paulo H aproveitou para propor trabalho missionário na Nicarágua coloca a idéia nestes termos:
TREINAMENTO DE MISSIÓLOGOS - 27
26 - DESAFIOS DA IGREJA NA AMí~RlCA LATINA

Se alguém não quiser 'vestir a mente de Cristo', é melhor que da história contemporânea de missões, mais eu respeito o
não venha trabalhar na América Latina [...]. Cristo veio como trabalho missionário de Espanha e Portugal no século XVI.
um dos oprimidos, com uma mensagem de vida para os No Peru Stewart McIntosh tem ensinado como o jesuíta José
opressores. Nós, a igreja de hoje, temos a tendência de vir
de Acosta, no século XVI, respondeu de modo criativo e bí-
como opressores aos oprimidos, dizendo-lhes que temos uma
mensagem de vida - e eles dizem: 'Ah, é? Mostrem-nos!'"
blico a alguns dilemas de missões transculturais em sua épo-
(Costello, 1979, p. 41). ca.2Ü Os historiadores protestantes da igreja e de missões na
América Latina têm feito um bom trabalho ao mostrar em que
Outro missionário americano que serve no Peru usou sua
os métodos e estilos missionários de católicos e protestantes
perspectiva cristológica de Mateus 25.31-46 para descrever a
se aproximam e se afastam.21.22 Nesta linha uma boa obra de
experiência de "reconhecer o rosto de Cristo no rosto da mu-
pesquisa missiológica publicada recentemente pela Fraternidade
lher latino-americana, do camponês, ou do operário", uma ex-
Teológica Latino-americana é o livro de Pablo Deiros", histo-
periência que "cresce da vivência diária dos que levantaram
riador e pastor de uma grande igreja batista em Buenos Aires.
sua tenda entre os pobres [...], não os que visitam o mundo
Entretanto, nem o espírito irenista destes historiadores nem o
dos pobres ocasionalmente, como faz um técnico agrícola do
conteúdo de seus livros alcançou o nível pastoral e missiológico
governo, mas os que moram entre os pobres'<.l" Essa
da vida diária e da prática dos missionários evangélicos. Espe-
missiologia que vem de uma prática missionária nova não pode
ser ignorada pelos protestantes que buscam um novo modelo remos que estes estudos contribuam para uma futura compre-
de missões, que seja relevante para a nossa época. ensão missiológica mais madura.
O treinamento de missiólogos na América Latina requer a
abertura da mente e do coração dos evangélicos latino-ameri- Mudança no paradígma míssíológíco
canos para a realidade missiológica do catolicismo em nosso
Mostramos que um dos efeitos da urbanização acelerada
continente. Em outras regiões do mundo há sinais de
na América Latina foi o surgimento de novos segmentos da
ecumenismo prático que pode estar anunciando novas tendên-
população, e que as formas populares do protestantismo flo-
cias para o futuro. Não estou pensando necessariamente nos
resceram entre eles. Cientistas sociais que usaram o marxismo
padrões bem organizados de atividades e discursos ecumênicos,
acadêmico para avaliar esse crescimento consideraram-no ne-
mas na linha de frente em que o treinamento para missões e a
gativo, porque não mobiliza as forças sociais para uma revolu-
prática missionária acontecem. Achei um fascinante sinal dos
ção de estilo marxista. Os teólogos da libertação encararam o
nossos tempos que um missionário evangélico conservador
fenômeno pentecostal do mesmo modo. No entanto, David
como Viv Grigg, autor de Servos entre os Pobres'", preparando-
Martin, um renomado sociólogo da religião, chegou à conclu-
se para trabalhar como evangelista nas favelas de Manila,
são' de que o melhor paradigma que podemos usar para estu-
possa encontrar valor, inspiração e orientação no modelo de
um grande líder ecumênico como o japonês Toyohiko Kagawa dar e interpretar esse fenômeno latino-americano é o
e o estilo pioneiro de encarnação de Francisco de Assis. movimento wesleyano dos séculos XVIII e XIX2\ em que
O treinamento missiológico na América Latina requer uma podemos ver uma experiência espiritual evangelística redentora
compreensão nova da nossa história. Quanto mais eu conheço e o dinamismo social que ela produz.
TREINAMENTO DE MISSIÓLOGOS - 29
28 - DESAFIOS DA IGREJA NA AMI~RICA LATINA

Mundo, como Daniel Fountain, um médico no Zaire", e Viv


Se compararmos essa realidade com os padrões de uma
Grigg, um implantado r de igrejas nas favelas de Manila.
missiologia que leva a sério o ensino do Novo Testamento e a
história da igreja, perceberemos que temos diante de nós um Para Itioka,
fenômeno de significado missiológico tremendo. O poder O método intelectual racional que usamos por tanto tempo só
expansionista desse protestantismo popular vem de sua habili- nos traz novas informações, uma nova maneira de pensar. O
que precisamos para alcançar pessoas que convivem
dade em mobilizar o povo leigo e adotar formas realmente
diariamente com o sobrenatural é a presença poderosa do
contextualizadas de culto, vida congregacional e práticas pas- Cristo ressuscitado. Ele é o missionário e evangelista por
torais. Para as multidões em transição, essas igrejas são o único excelência. Sem esse envolvimento íntimo não temos missões
caminho para encontrar aceitação social, alcançar dignidade e não haverá transformação na vida das pessoas."
humana e sobreviver ao impacto das forças descontroladas que
O treinamento de missiólogos latino-americanos começou
atuam nas grandes cidades.
a surgir dependendo de modelos importados. Ele precisa dei-
As comunidades pentecostais enfatizam o ministério do
xar para trás as algemas que currículos, métodos e livros de
Espírito Santo e o conflito espiritual relacionado com missões.
textos da América do Norte e da Europa lhe colocam, domi-
Os missiólogos pentecostais estão trabalhando numa nova com-
nados por intelectualismo, cosmovisão ocidental imperialista,
preensão do ensino do Novo Testamento sobre essa questão. pedagogia autoritária e denominacionalismo sectário. À medi-
O argentino Norberto Saracco, por exemplo, entende que os da que o Espírito Santo levar a igreja da América Latina para
evangelhos enfatizam a atmosfera de conflito que envolveu o novas fronteiras de missões, a Palavra de Deus mostrará nova-
ministério de Jesus e constituiu o contexto em que o reino de mente seu poder renovador inexaurível para as novas gerações
Deus e o poder do evangelho devem ser entendidos. Ele diz de missionários que irão levar o Grande Mandamento e a
em seguida: Grande Comissão para dentro do século XXI.
Infelizmente os evangélicos de hoje, especialmente na
América Latina, foram influenciados por uma teologia
dispensacionalista que lhes deu um evangelho sem reino, e por <
REFERÊNCIAS
uma cosmovisão ocidental que os privou de uma concepção
integral do ser humano e do mundo."
1. DAMEN, Franz. Las sectas: ,:avalancha o desafío? Revista Cuarto Intermedio,
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À sua própria maneira, os missiólogos latino-americanos
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estão buscando uma missiologia pós-iluminista que leva a sé- York Times, 27 out. 1992.
rio as realidades espirituais. Neuza Itioka, uma brasileira que 3. McCOY,John. Robing Peter to pay Paul. The evangelical tide. Latinamerica Press
dedicou diversos anos ao trabalho missionário em seu país e 21 (24), 22 jun. 1989.
que desenvolveu uma pesquisa missiológica a nível de douto- 4. POWELL, Eisa R. de et aI. Evangelical involvement in the politicallife of Latin
rado, vê uma relação íntima entre opressão espiritual e as con- America. Transformation 9 (3), 1992. p. 8-12.

dições sociais de pobreza e exploração. Com isso ela chega a 5. ESCOBAR, Samuel. The whole gospel for the whole world frorn LatinAmerica.
Transformation 10 (1), 1993. p. 30-32.
conclusões semelhantes às de outros missionários do Terceiro
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20. McINTOSH, G. Stewart. Acosta and The De Procuranda Indorem Salute - A
sixteenth century missionary model with twentieth century implications.
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uando comemoramos a Reforma Protestante, quase
21. GONZÁLEZ,Justo L. Historia de Ias misiones. Buenos Aires: La Aurora, 1970.
22. PRlEN, Hans Jürgen. La historia dei cristianismo en América Latina. Salamanca:
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Q sempre nos lembramos dos personagens mais destacados
do seculo XVI, ou seja, o alemão Martinho Lutero, o francês
23. DElROS, Pablo. Histeria dei cristianismo en América Latina. Buenos Aires: FTL, João Calvino, o suíço Ulrico Zuinglio e o escocês John Knox,
1992.
Nós, evangélicos latino-americanos identificamo-nos com os
24. MARTIN, David. Tongues of fire: the explosion of protestantism in Latin America.
sentimentos e convicções dessas ilustres figuras do norte da
Oxford: Basil & Blackwell, 1989.
25. SARACCO, Norberto. EI evaflgeliodepoder. In: CLADE, 3°, Quito, 1992.
Europa. No mundo de fala hispânica também lembramos de
26. FOUNTAIN, Daniel E. Health, the Bible and the Church. Wheaton: 1989. BGC reformadores espanhóis como Juan e Alfonso Valdés e
monografia. Francisco de Enzinas. Tanto para o culto comunitário como
27. lTIOKA, Neuza. Third world missionary training: Two Brazilian models. In: para a devoção pessoal, a maioria dos evangélicos latino-
TAYLOR, David William. Intemationalising missionary training. Exeter,
Paternoster, 1991. p. 111-120.
americanos ainda usa alguma versão clássica da tradução da
Bíblia para o castelhano, que os mestres do idioma nos legaram
32 - DESAFIOS DA IGREJA NA AMÉRICA LATINA A REFORl\fA PROTESTANTE - 33

no século XVI: Casiodoro de Reina e Cipriano de Valera. Mesmo assim, as novas possibilidades que essa atividade
Houve uma reforma na Península Ibérica, por isso missionária abre devem levar-nos a uma avaliação de modelos
e experiência, e a uma correção constante destes à luz da
rejeitamos a construção ideológica que quer nos convencer
Palavra de Deus (Il I DV
de que quem é protestante em nossos países é menos latino-
americano ou é estrangeirizante. Esse fato que a Declaração de Quito descreve comprovei-o
Proponho aqui um caminho diferente do tradicional. Isso em meu ministério nos Estados Unidos e em minhas visitas a
se deve ao fato de que estou empenhado na pesquisa e no outras partes do mundo. Na minha peregrinação tenho-me
ensino do campo específico da missão cristã, procurando de- encontrado com exilados econômicos e políticos que saíram
senvolver uma visão missiológica, na qual confluem elemen- de igrejas evangélicas latino-americanas e agora estão em Chi-
tos tanto da teologia como da história. Creio que essa visão cago (EUA), Sidney (Austrália) ou Colônia (Alemanha). Mui-
tem chances de frutificar. Assim, gostaria de olhar para o tos deles, da maneira mais natural e com seus próprios recursos,
passado e em seguida para o futuro. Olhando para o passado, são missionários leigos que evangelizam, fundam igrejas, inici-
gostaria de me referir não ao século XVI, mas aos nossos an- am projetos de ajuda social e criam institutos bíblicos. Consta-
tepassados mais próximos do século XVIII, os pietistas e tamos que eles simplesmente levaram consigo para o exílio o
morávios, precursores do grande movimento missionário evan- dinamismo missionário que caracterizava suas igrejas aqui na
gélico que floresceu no começo do século XiX. Minha tese é América Latina, em seu país de origem. Também conheço mis-
que os pietistas e morávios também foram antecessores do sionários evangélicos latino-americanos que foram enviados
movimento pentecostal que desabrochou no século XX. Creio para esses países distantes por suas igrejas, e por sociedades
que, para os evangélicos latino-americanos, o parentesco com missionárias evangélicas latino-americanas, daqui mesmo.
os pietistas e morávios é mais claro do que o que podemos ter
com Lutero e Calvino, ainda que geralmente nos referimos Um fator novo na história das igrejas cristãs
mais a estes do que àqueles. Olhando para o futuro, gostaria de
considerar um desafio missionário específico que defrontamos O que acabo de dizer sobre o dinamismo missionário dos
no umbral do século XXI: a participação latino-americana nas latino-americanos no exílio é parte de um quadro mais amplo
missões cristãs em escala global. que é muito importante considerar. Às portas do século XXI
Minha pesquisa baseia-se no espírito do CLADE III, cujo nos defrontamos com um fato novo na história do cristianis-
tema foi "Todo o Evangelho, para todos os povos, a partir da mo. Mudou o equilíbrio da força numérica da presença cristã
América Latina". A Declaração de Quito diz: no mundo. No começo do nosso século as grandes igrejas e a
força missionária estavam na Europa e na América do Norte.
o Espírito Santo fez surgir na América Latina uma nova
A mudança que se vê é que a prática da fé cristã declina na
consciência missionária. À prática missionária do passado se
soma uma disposição crescente de assumir a responsabilidade Europa e, por outro lado, as igrejas do hemisfério sul, na
da igreja, em obediência à Palavra, a partir da América Latina. África, Ásia e América Latina, crescem de forma vigorosa. O
Nos últimos anos aumentaram as oportunidades de formação dinamismo missionário transferiu-se para o sul, apesar de as
e envio de missionários para outros continentes e contextos.
igrejas africanas, asiáticas e latino-americanas serem pobres e
34 - DESAFIOS DA IGREJA NA AMÉRICA LATINA
A REFORMA PROTESTANTE - 35

sofrerem uma grave crise social e econômica. As igrejas da A constatação do monsenhor Aubry coincide com a de
América do Norte e da Europa ainda são ricas e desfrutam de Franz Damen, um sacerdote passionista que trabalhou como
privilégios especiais em suas sociedades, mas estão cansadas e missionário na Bolívia, e que publicou diversos trabalhos so-
sem condições de resistir ao impacto desgastante da bre os evangélicos na América Latina. Damen também des-
modernidade, dos novos paganismos, do consumismo com creve o dinamismo missionário evangélico e recorre a uma
sua cultura hedonista e cínica. comparação:
Com seu proselitismo sistemático e entusiasta, as seitas
o dinamismo missionário evangélico pentecostais e milenaristas se apresentam como comunidades de
fé profundamente missionárias, em que a tarefa de
Seja por nossa própria experiência ou pela literatura abun- evangelização não é deixada para pessoas especializadas, porque
dante sobre esse tema nos últimos tempos, todos estamos cons- é a missão de cada membro da comunidade. Na América Latina,
cientes da crescente presença do protestantismo evangélico na entre os grupos cristãos, os pentecostais são os que mostram o
maior crescimento numérico, enquanto contam com o menor
América Latina, em especial o crescimento das igrejas popula-
número (relativo) de missionários-Com isso eles põem o dedo
res do tipo pentecostal. Também está claro que esse fato é em uma ferida das igrejas estabelecidas, que é sua relativa
motivo de inquietação dos setores dirigentes e da hierarquia inatividade missionária hoje em dia, a tremenda dificuldade que
da Igreja Católica Romana.' Dentro desse quadro fica muito - têm de desenvolver uma espiritualidade missionária nas
interessante examinar a forma como alguns estudiosos católi- comunidades de fé, e a quase incapacidade de pôr em marcha
programas missionários leigos.'
cos olham para o dinamismo missionário das igrejas evangéli-
cas, especialmente aqueles que estudam o tema com o reconhecimento do dinamismo missionário evangélico
preocupação missiológica. Por exemplo, o monsenhor Roger não significa que esses autores tenham deixado de lado suas
Aubry, que foi presidente do Departamento de Missões do convicções pessoais sobre a igreja de Roma, mas representam
CELAM, em um livro escrito para promover missões, dedica um passo à frente na compreensão das diferenças e semelhan-
um capítulo aos evangélicos e, utilizando a linguagem católica ças entre evangélicos e católicos, que poderia ajudar na busca
tradicional, descreve "a participação ativa na vida e na missão de novas formas de respeito mútuo e convivência, no âmbito
da igrej a": das sociedades pluralistas do futuro.
Todos os convertidos são membros ativos que devem Do ponto de vista missiológico é notável que alguns católi-
promover a vida da seita e trabalhar para a conversão dos que cos, ainda que críticos em relação ao esforço evangelístico das
ainda não o são. É verdade que às vezes esse esforço, ainda igrejas evangélicas, reconhecem que, em muitos casos, ele cons-
que muito generoso, parece mais proselitista do que
titui a primeira experiência de fi cristã de algumas pessoas. Antes da
evangelizador, e que há métodos que não expressam o
respeito e a liberdade que essa evangelização requer. Todavia, reunião dos bi-spos latino-americanos em Puebla (1979), o
constatar este fato não deve nos tranqüilizar nem nos manter Departamento de Missões do CELAM fez circular um docu-
em nossa inércia, pois devemos confessar que, entre nós, mento de trabalho chamado Panorama Missionário, que descre-
apesar dos esforços sérios que estão sendo feitos, poucos são via "a nova situação missionária" na América Latina. O Panorama
os leigos envolvidos de forma ativa e criativa na atividade
reconhecia que
pastoral de sua paróquia ou igreja.'
36 - DESAFIOS DA IGREJA NA fuvrÚRICA LATINA A REFORMA PROTESTANTE - 37

as maiorias latino-americanas geralmente se consideram Toda a igreja é responsável pela evangelização de todos os
'católicas, apostólicas e romanas', mesmo que sua adesão povos, raças e línguas. Uma fé que se considera universal, mas
eclesial freqüentemente se baseie mais em uma pertença por que não é missionária, se transforma em retórica sem
costume à igreja do que em profundas convicções de fé. autoridade e se torna estéril. A afirmação de que toda a igreja
é missionária baseia-se no sacerdócio universal dos crentes.
o Panorama considerava também a forma de certos proces- Foi para o cumprimento dessa missão que Jesus Cristo dotou
sos sociais, como as migrações, trazerem à luz a debilidade do sua igreja de dons e do poder do Espírito Santo. (IIl B.)
vínculo das massas com a Igreja Católica, ou simplesmente,
Esse é precisamente o ponto que eu quero destacar,
diríamos nós, a ausência total de uma fé pessoal e salvadora
porque tanto ogrande movimento missionário protestante do século XIX,
em Jesus Cristo. O missiólogo Juan Gorski observa que, frente
como o dinamismo missionário dos evangélicos latino-americanos no sécu-
a essas novas situações, "se uma dinâmica tipicamentemissionária
lo XX podem relacionar-se com o conceito e a prática do sacerdócio uni-
não está suficientemente presente na 'pastoral geral' da Igreja
versal dos crentes. Esse conceitofundamental da fé evangélica não pode ser
Católica, ela é característica da ação das seitas". A existência
separado de uma visão da obra do Espírito Santo no mundo} que éfun-
desse dinamismo missionário no que Gorski chama de "sei-
damental para aprática e a teologia de missões. O que estamos dizen-
tas" explica, portanto, que:
do é que o vigor missionário evangélico do século XIX provinha
as seitas protestantes e outras estão penetrando nos ambientes
do Espírito Santo e pôde manifestar-se quando foram criadas
urbanos e rurais com proveito. Oferecem a muitas pessoas sua
estruturas que permitiam a participação de todos os crentes
primeira experiência concreta e desafiadora da Palavra de
Deus, da comunhão e da ajuda mútua na igreja, e da em missões. Da mesma maneira, o vigor missionário das
transformação moral. Freqüentemente essas seitas colhem os igrejas evangélicas populares latino-americanas no século XX
frutos de sentimentos religiosos latentes e de um dinamismo vem de um impulso do Espírito Santo, que encontra igrejas
missionário que não existe na pastoral católica ... s
dispostas a estruturar-se para permitir que esse impulso se
manifeste.
Uma pergunta fundamental que nos cabe fazer é sobre a
origem desse dinamismo missionário: De onde ele vem? Quem
o produz? A Declaração de Quito, à qual já nos referimos, ..
Nossosparentes protestantes mais próximos
representa uma nova tomada de consciência de um amplo setor É neste ponto que quero propor uma revisão da herança
do povo evangélico latino-americano quanto à sua obrigação protestante que devemos recordar. Nós, evangélicos latino-ame-
missionária. Essa tomada de consciência também inclui uma ricanos, estamos muito mais próximos dos pietistas e avivalistas
reflexão teológica importante a respeito da conjuntura pre- dos séculos XVIII e XIX do que dos reformadores do século
sente, quanto à natureza da igreja. A Declaração de Quito atri- XVI. E, se queremos refletir sobre nossa participação em mis-
bui à obra do Espírito Santo o florescimento de uma vocação sões, será melhor estudar essa parte da nossa herança com mais
missionária entre nós: "O Espírito Santo fez surgir na Améri- atenção. O que recebemos do pietismo e do movimento
ca Latina uma nova consciência missionária". E não só isso; morávio pode nos ajudar em nossa busca de modelos missio-
traz também uma afirmação missiológica que faz uma ligação I\~rios para o século XXI. Pesquisemos um pouco da história
natural com a herança da Reforma protestante. Diz assim: ,I respeito. O historiador Justo L. González nos oferece uma
38 - DESAFIOSDAIGREJANA.fuVlÉRICA
LATINA
A REFORMAPROTESTANTE- 39

descrição muito precisa das origens do movimento missionário surgiram dele. Assim, por exemplo, os missionários
evangélico moderno. protestantes do século XIX tinham a tendência de enfatizar a
No fim do século XVII e por todo o século XVIII apareceu necessidade de uma decisão individual por parte dos
convertidos, muito mais do que os missionários católicos o
na história do protestantismo um despertar da religiosidade
tinham feito antes, e também os primeiros missionários
individual ligado a um novo interesse em missões. Os lideres deste
protestantes. [...] Por outro lado, é necessário assinalar que,
novo despertar protestavam contra a rigidez da velha
ortodoxia protestante e, apesar de eles mesmos serem, em apesar de tudo o que já foi dito sobre a tendência do pietismo
de se separar das realidades do mundo, foi esse movimento
geral, teólogos devidamente preparados tendiam a enfatizar,
que deu origem ao interesse da igreja na totalidade geográfica
acima das fórmulas teológicas, a importância da vida cristã
prática. Esta vida cristã era entendida, em geral, em termos do mundo.'
individuais, de modo que se enfatizava a experiência pessoal do
O mais conhecido historiador das missões cristãs em nosso
cristão e sua obediência como indivíduo aos mandamentos de
Deus. Em termos gerais estes movimentos não pretendiam século, Kenneth Scott Latourette, afirmou algo parecido em
constituir-se em novas seitas ou igrejas, antes seu propósito suas conferências Carnahan, em Buenos Aires, em 1956. De-
era servir de fermento dentro das igrejas já existentes. Se, em pois de traçar um quadro magist-ral do protestantismo con-
alguns casos, o resultado não foi este, isso ocorreu não tanto temporâneo e dos desafios com que se defrontava no momento,
por causa do espírito cismático dos seus fundadores, mas por
ele nos lembrou:
causa da rigidez das igrejas dentro das quais eles surgiram."
As minorias vitais de protestantes na Europa são, em grande
Os elementos que destacamos nessa descrição são caracte- parte, de tradição puritano-pietista-evangélica. O movimento
rísticos dos evangélicos latino-americanos. Os aspectos extre- tem crescido em números e influência principalmente fora
mos como o excesso de individualismo são criticados com da Europa. Isso significa que o protestantismo mundial tem
cada vez mais um perfil puritano-pietista-evangélico. Nem
freqüência, e, mesmo assim, quero destacar que esse pietismo
todos os que têm uma herança protestante ou todos os
de entusiasmo espiritual, conversão pessoal e atenção à prática movimentos vigorosos dentro do protestantismo pertencem a
visível da fé mais do que aos credos doutrinários está ligado ao essa corrente. Porém, através dela, oprotestantismo, na prática,
fervor missionário. É interessante observar que alguns comen- acentua mais do que antes a justificação pela fé, o sacerdócio
universal dos crentes e o direito e dever do juízo individual.
taristas católicos ou protestantes da libertação descrevem cri-
Com isso, em seu testemunho, ele se aproxima mais do que
ticamente esses traços como "fundamentalismo". González
nunca do coração do evangelho,"
está especialmente interessado na história de missões, e, por
isso, faz um esclarecimento importante mais adiante: Minha tese aqui é que as igrejas populares de tipo pentecostal
que estão crescendo na América Latina muitas vezes encarnam
É notável como a influência do pietismo alemão,
as principais características do dinamismo missionário dos
especialmente de Spener e Francke, pode ser seguido através
de Zinzendorf, Wesley e o Grande Avivamento na América morávios e pietistas, melhor que outras igrejas evangélicas que
do Norte. Como a grande expansão missionária protestante se consideram guardiãs da herança protestante. Com isto que-
do século XIX começou com esses movimentos, não é ro dizer também que o protestantismo renovado e pietista que
surpreendente que essa expansão tenha algumas deu origem ao movimento missionário dos séculos XVIII e
características do pietismo e dos outros movimentos que
XIX criou estruturas que permitiram a realização prática do
40 - DESAFIOS DA IGREJA NA Al\1I~RICA LATINA A REFORMA PROTESTANTE - 41

sacerdócio universal dos crentes, melhor do que as igrejas dos grandes teólogos protestantes do nosso século, cujo livro
luteranas e calvinistas do século XVI. O mal-entendido da Igrda resume sua contribuição valiosa à
Se levamos em conta as observações dos missiólogos eclesiologia. Essa obra foi publicada em 1951, mas só foi
católicos que citei antes, como Aubry, Damen e Gorski, traduzida recentemente. Brunner nos lembra que, para com-
reconhecemos de imediato as semelhanças entre o que eles preendermos o que a igreja é, não podemos prescindir de um
escrevem com o que González e Latourette escreveram. Mas conceito de continuidade desde suas origens no próprio Cris-
creio que também é importante esclarecer que as igrejas to até o presente, e ele nos leva a examinar o papel da tradição.
populares de hoje apresentam estas características evangélicas Aqui Brunner levanta uma questão fundamental que ele crê
e este dinamismo missionário dentro das condições próprias respaldada pelo Novo Testamento, "que não é simplesmente
da cultura e da pobreza em que estão situadas. uma questão de continuidade da palavra - a permanência da
Há tentativas de explicar o dinamismo transformador e mis- doutrina original - mas também de continuidade de vida: a
sionário das igrejas populares como simples reflexo das condi- vida que flui do Espírito Santo". Brunner acrescenta uma ra-
ções sociais e econômicas em que elas surgem e se expandem. zão que nos desafia a reconhecer uma lacuna:
Do ponto de vista missiológico podemos chamar isto de
A comunidade de Jesus vive sob a inspiração do Espírito
sociologismo, porque não se considera a possibilidade de que es- Santo, Este é o segredo da sua vida, da sua comunhão e do
tas igrejas tenham uma dinâmica espiritual própria e uma men- seu poder. Usando uma palavra moderna, o Espírito supre o
sagem espiritual que explica seu poder de expansão e dinamismo da Ecclesía. [... 1 Devemos encarar o testemunho do
transformação. Parece-nos mais adequado abrir nossas men- Novo Testamento com sinceridade suficiente para reconhecer
que neste "pneuma" que a Ecclesía possuía conscientemente
tes e nossos olhos à possibilidade de que o mesmo Espírito
há forças extra-racionais que em grande escala faltam em
Santo que fez surgir a visão missionária entre os pobres refugi- muitos cristãos de hoje."
ados do centro da Europa que formavam o povo pietista e
morávio, seja o Espírito que hoje em dia anima as igrejas Brunner desenvolveu bastante seu entendimento desta ação
populares que crescem em resposta às profundas necessidades extra-racional do Espírito e nos lembra que
das massas latino-americanas. Creio que neste ponto a a Ealesia em sua experiência do Espírito Santo conheceu a
reflexão teológica pode nos ajudar: Deus como aquele cujo impacto sobre a vida humana penetra
até a profundidade da alma, toca nas energias escondidas e as
mobiliza e subordina ao serviço da sua santa vontade. io
o Espírito Santo e a missão da igreja
É surpreendente a conclusão a que Brunner nos leva mais
N a segunda metade do nosso século começou a ficar forte adiante, se levamos em conta que se trata de um intelectual
a convicção de que é o Espírito Santo quem tem a iniciativa na cristão sério, um teólogo de vocação profunda, produção
realização de missões cristãs, não só porque impulsiona o di- abundante e metodologia rigorosa. Ele afirma que
namismo missionário da igreja em si, mas também porque está
A teologia não é o melhor instrumento para elucidar com
em ação em todo o mundo, criando condições e preparando precisão este aspecto das manifestações da alma. Porque
corações. Aqui me parece pertinente citar Emil Brunner, um teo-Iogia tem a ver com o Logos e, em conseqüência, só está
42 - DESAFIOS DA IGREJA NA AMÉRICA LATINA
A REFORMA PROTESTANTE - 43

qualificada para tratar de assuntos que de alguma forma são


lógicos, não com o dinamismo em suas características espontaneidade antiga e a lentidão burocrática e tradicionalis-
alógicas. Por essa razão o Espírito Santo sempre tem sido ta de algumas missões modernas a estruturas inadequadas e à
padrasto da teologia e o dinamismo do Espírito Santo, o falta de fé no poder mobilizador do Espírito Santo. As idéias
espantalho dos teólogos.'!
de Allen influenciaram o pensamento do missiólogo latino-
americano Kenneth Strachan, que desenvolveu a visão do mo-
Ao expor a forma como a comunidade de Jesus se expan-
vimento Evangelização em Profundidade na década de 60.
diu no começo, Brunner dá peso igual à instrumentalidade da
Todavia, ninguém ainda fez um estudo adequado deste impor-
Palavra de Deus e ao poder sobrenatural do Espírito. A con-
tante movimento."
versão requer uma palavra específica, mas também um poder
Harry Boer foi missionário reformado na Nigéria, e sua
que vai muito além da palavra do pregador.
obra clássica é Pentecost and Mission", A tese desse trabalho é
Aqui as energias poderosas do Espírito são mais importantes que no estudo de missões prestou-se muita atenção à Grande
que qualquer palavra, ~inda que estas energias, mesmo sendo
Comissão, mas não de igual modo a Pentecostes, e que o pon-
do Espírito Santo, tenham sua origem na Palavra de Deus. Os
evangelistas e missionários de hoje geralmente aceitam esse
to de partida de missões no Novo Testamento é o que aconte-
fato melhor que os teólogos, que não só subestimam o poder ceu em Pentecostes. Ele propõe uma revisão não só da teologia
dinâmico do Espírito Santo, mas freqüentemente o de missões, mas da teologia em geral, à luz desse fato. Seu
desconhecem totalmente." cuidadoso estudo do material bíblico seguia a convicção de
que escreveu-se muito sobre a obra do Espírito Santo na sal-
Nas décadas que seguiram à publicação desta obra de
vação dos seres humanos, mas muito pouco sobre seu signifi-
Brunner, a missiologia protestante se renovou notavelmente,
cado crucial para o testemunho missionário da igreja. O assunto
precisamente com o acréscimo de missionários e evangelistas
não foi totalmente ignorado, mas deveria ser central na refle-
que, partindo de uma auto crítica de seu próprio trabalho mis- xão sobre missões, e tem sido relegado à periferia.'?
sionário, estudaram o material do Novo Testamento com sen- Em terceiro lugar menciono Lesslie Newbigin, que foi
so de urgência e abertura, redes cobrindo o Espírito Santo e missionário na Índia e acabou sendo eleito pelos indianos como
seu papel em missões. Somente a título de exemplos, que não bispo primaz da Igreja do Sul da Índia. Ao regressar à Inglater-
posso desenvolver aqui, limito-me a mencionar alguns cuja con- ra, depois de trinta anos, confrontou-se com o secularismo de
tribuição tem sido reconhecida pelos estudiosos do mundo urna paróquia de operários. Newbigin é conhecido agora por
inteiro. sua excelente análise missiológica de modernidade e
Em primeiro lugar Roland Allen, ex-missionário na China, pluralismo." Uma de suas primeiras obras fundamentais é A
cujas obras foram escritas na década de 20, porém só chega- família de Deus, o primeiro trabalho eclesiológico de enverga-
ram a difundir-se na década de 60. Dois de seus trabalhos mais dura que levou a sério as lições aprendidas no campo missio-
conhecidos são La expansión espontánea de Ia Iglesia13 e Missionary nário para formular uma nova compreensão da natureza da
Methods: S t. Paul's or Ours?'4, em que ele compara a metodologia igreja. Seu objetivo era ser uma eclesiologia que servisse de
orientação tanto para as igrejas que sobrevivem em um con-
das missões anglicanas da sua época com as do Novo
Icxto pós-cristão, como para o movimento ecumênico que
Testamento. Allen credita o contraste marcante entre a
huscava a unidade das igrejas para missões.
...
44 - DESAFIOS DA IGREJA NA At\1L~RICALATINA A REFORMA PROTESTANTE - 45

Nessa obra Newbigin é o primeiro a levar a sério a realidade no Brasil, no qual Valdir Steuernagel estuda e interpreta
pentecostal e sua contribuição distinta para a eclesiologia e missiologicamente diversos modelos de missões que foram
a missiologia, numa ênfase diferente de catolicismo e empregados no transcorrer da história, começando na época
protestantismo. de Juliano, o apóstata, passando por Francisco de Assis, e che-
o catolicismo pôs a ênfase principal na estrutura, o gando aos Irmãos Morávios. Steuernagel nos faz lembrar da
protestantismo na mensagem; mas, em sua melhor expressão, conversa entre Jesus e Nicodemos no capítulo 3 do Evange-
ambos sabem que estão se esforçando para honrar e
lho segundo João e da analogia do vento como símbolo do
salvaguardar o que de fato importa, a suficiência e finalidade
dos atos salvadores de Deus em Jesus Cristo."
sopro do Espírito Santo, e em seguida afirma:
Missão, compreendida numa linguagem pneumatológica, é um
Ao lado destas duas posturas Newbigin propõe que se só ato com duas face tas. É, primeiro, perceber o sopro de
considere uma terceira corrente da tradição cristã, que tem Espírito e a sua direção. E, depois, é correr na direção em que
muita coisa em comum com as outras, mas também tem sua o Espírito está soprando."
ênfase própria: " ... seu elemento central é a convicção de que a
É um movimento duplo na vida da igreja: Primeiro ver o
vida cristã é a experiência do poder e da presença do Espírito
que está acontecendo e discernir nos fatos a ação do Espírito;
Santo".20
depois, num ato de obediência, pôr-se a andar na direção que
Comum a esses três autores é que eles partem de suas expe-
o Espírito indica. Para Steuernagel trata-se de um ato
r,
riências missionárias e de uma reflexão séria sobre elas. Ao
refletir dentro de um quadro teológico, e mais precisamente sempre arriscado e ambíguo, pois toda interpretação humana
da vontade de Deus é limitada e toda obediência é
bíblico, eles redescobrem o papel central do Espírito Santo em
contaminada pela história e realidade do nosso pecado."
missões. A partir dessa descoberta, questionam as atitudes pre-
sas a tradições irrelevantes, as estruturas eclesiásticas que im- i o discernimento do sopro do Espírito requer uma abertura
pedem a participação dos cristãos em missões, e as e sensibilidade para reconhecer que, por trás de alguns aconte-
metodologias obsoletas que impedem a plena realização da cimentos que parecem novos e inusitados, pode estar a força e
vocação missionária. Quero destacar que estamos diante de o vigor do E;pírito Santo. O ato de obediência exige criati-
uma auto crítica missiológica do empreendimento missionário. vidade para forjar novas estruturas que sirvam como veículos
Provém de pessoas que estão vitalmente comprometidas com da ação missionária obediente em cada momento histórico.
missões. Não se trata do clássico ataque antimissionário que
brota do antiimperialismo metodológico. Por isso chega às fon- A herança missionário dos morávios
I
tes do impulso missionário no Espírito Santo e busca modelos ~
históricos que possam ser contextualizados em nossa época. Que lições sobre missões podemos aprender desses nossos
Em minha análise, entretanto, não quero limitar-me ao de- parentes próximos, os irmãos morávios? Vou limitar-me a re-
safio da missiologia européia. Quero chegar às novas vozes sumir alguns pontos do trabalho inicial de Steuernagel." A
que podem ser ouvidas na América do Sul, entre os evangélicos. prática rnissionária dos morávios era de toda a comunidade,
Começo com um trabalho missiológico brilhante publicado q\ll", pela experiência do sofrimento e exílio, havia alcançado

~
A REFORMA PROTESTANTE - 47
46 - DESAFIOS DA IGREJA NA AMÉRICA LATINA

A promessa da prática missionário evangélica


coesão interna e estava altamente motivada. Proporcionalmente
ao seu tamanho ela enviou um número inusitado de missionários A Reforma do século XVI considerou-se sempre um retor-
para lugares difíceis que exigiam encarnação e um alto preço. no à Palavra de Deus, um processo de purificação da igreja
Os morávios estavam respaldados por uma teologia em que o através de um retorno à Bíblia. Essa tarefa não terminou com
Espírito Santo ocupava um papel central, porém essa teologia aquela geração. Da Reforma surgiu o conceito de uma Ecc/esia
tratou de expressar-se em termos compreensivos e simples, e reformata semper reformanda. O pietismo missionário e a experi-
não nas categorias clássicas do pensamento grego. O conde ência morávia foram um desses momentos de nova reforma,
Zinzendorf, um dos líderes da comunidade morávia, falava através de uma nova abertura à Palavra. Esses movimentos,
da Trindade como de uma família e, levando a sério o todavia, proclamavam uma abertura não só à Palavra mas tam-
vocabulário bíblico, falava do Espírito Santo como de uma bém à ação do Espírito. O sacerdócio universal dos crentes
mãe. pressupunha um povo consciente da presença e do poder do
Apesar de os morávios darem a ênfase à salvação pessoal Espírito para iluminar a palavra e impulsionar rumo à obedi-
própria do pietismo, havia um forte senso de comunidade, ência missionária. Por isso me parece interessante terminar esta
cujo conselho e decisão eram levados em conta e aceitos pelos reflexão com um desafio que vem de ninguém menos que um
missionários. Havia uma firme confiança na presença prepa- católico 'do Brasil. Trata-se de José Comblin, que escreveu um
ratória do Espírito Santo no mundo, de maneira que os mis- livro surpreendente sobre o Espírito Santo. Comblin crê que o
sionários não se consideravam como os principais heróis dinamismo das experiências das comunidades de base e das
e protagonistas. Os recursos limitados da comunidade igrejas pentecostais demonstra que o Espírito Santo está agin-
de Herrnhut, de onde saíram os missionários morávios, obri- do nelas. Sua análise da experiência dos homens e mulheres
garam-nos a uma estratégia de auto-sustento. Cada grupo simples que abandonam a passividade das velhas formas de
era responsável por sua sobrevivência no país para onde vida eclesiástica é muito sugestiva:
era enviado. Assim, os missionários estavam livres do
Esta experiência de tomar a palavra em público é uma das
controle das estruturas eclesiásticas e imperiais da sua
coisas mais impressionantes que existem. Nas primeiras
época. vezes eles têm a impressão de que o mundo vai cair sobre
Cada um desses pontos contém lições valiosas que às vezes a sua cabeça. Mas logo adquirem confiança e segurança.
estão em contraste flagrante com as práticas missionárias do Se estas palavras tivessem sido pronunciadas por pessoas
formadas, não haveria nada de espiritual nelas. Tudo
nosso tempo. Steuernagel, no entanto, também propõe que
poderia ser explicado pela formação intelectual e pela
olhemos o modelo morávio de modo crítico. O individualis-
facilidade da palavra habitual nas classes dirigentes. O
mo pietista não permitiu que se desse atenção suficiente ao aspecto espiritual está na conversão radical: os mudos
caráter das comunidades que surgiriam da vida missionária, falam. A experiência do Espírito está em que são eles que
porque predominava a idéia da salvação de pessoas como indi- tomam a palavra. Trata-se de uma verdadeira tomada, de
víduos. Seguindo as linhas que o trabalho de Steuernagel suge- uma conquista. A palavra surge das energias que estavam
escondidas no fundo secreto da pessoa. A palavra começa
re, fiz um trabalho comparativo entre a prática protestante
a ressuscitar."
pietista e a católica." .
48 - DESAFIOS DA IGREJA NA AMI~RlCA LATINA A REFORi\fA PROTESTANTE - 49

Em comparação com tantas análises sócio-políticas que para entender os sinais dos tempos e participar na Missão do
geralmente fazem críticas desapiedadas do protestantismo Pai, seguindo o modelo do Filho, no poder do Espírito Santo.
popular e do pentecostalismo, é um refrigério notar as obser-
vações missiológicas de Comblin:
A mesma experiência também se manifesta na igreja. A leitura
da Bíblia pelos pobres produz efeitos extraordinários. Nas
REFERÊNCIAS
igrejas pentecostais a descoberta pessoal da Bíblia: pelos
convertidos Ihes dá um senso de superioridade absoluta. Os
1. CLADE, 3°, Quito, 1992. Palestras, informes e declaração final em Fraternidade
católicos se sentem envergonhados diante dos "crentes"
Teológica Latino-americana. Declaração, p. 853-861.
porque não lêem a Bíblia, enquanto os "crentes" sabem citá-Ia
e tirar dela argumentos a que os católicos não sabem 2. ESCOBAR, Samuel. La presencia protestante en América Latina: conflicto de
responder. Nas comunidades católicas a leitura direta da interpretaciones. In: Historia y MisiólI. Re/JisiÓIIde perspectisas. Lima: Ediciones
Bíblia também transforma a personalidade. Descobre-se o Presencia, 1994.
mundo. Antes eles recebiam tudo dos sacerdotes. Agora os 3. AUBRY, Roger. l a rsision síg1lie/1doa jesás por los caminos de América Latina. Buenos
leigos começam a pensar por si mesmos.ê" Aires: Guadalupe, 1990. p. 11-112. -
4. DAi\!EN, Franz. Las sectas: eavalancha o desafío? Revista Cuarto Intermedio,
Como assinalamos antes, o impulso missionário protestante Cochabamba, n. 3, maio 1987. p. 60-61.
surgiu dos círculos pietistas morávios e dos movimentos de 5. GORSKI M. M.,Juan. EI desarrol/o bistôrico de Ia 1Ilisionolo,gíaen Aménca Latina. La
avivamento nos países de língua inglesa. Na verdade, século Paz, Bolívia: 1985. p. 283.
após século na história de missões, pode-se perceber que o 6. GONZÁLEZ, Justo L. Historia de Ias misiones. Buenos Aires: La Aurora, 1970. p.
impulso missionário brota da vitalidade espiritual nutrida e ilu- 187-188.

minada por uma releitura da Palavra de Deus. É o que Comblin 7. Idem. p. 203.
também diz, à sua maneira: 8. LATOURETTE, Kenneth Scott. Desafio aios protestantes. Buenos Aires: La Au-
rora, 1957. p. 78.
O efeito deste tomar a palavra é que os cristãos se tornam
9. BRUNNER, Emil. EI malentendido de Ia Iglesia. Guadalajara, México: Ediciones
missionários. Aquele que descobriu a palavra se sente
Transformación, 1993. p. 58-59.
impelido a publicá-Ia. Nas comunidades surgem vocações
missionárias. A experiência da palavra alcança seu ponto 10. Idem. p. 60.
culminante quando seu receptor se converte em transmissor. 11. Ibidem.
A experiência do Espírito é completada no testemunho
12. Idem. p. 66.
público. Se alguém que esteve sempre calado, ao cabo de
13. ALLEN, Roland. La expânsion espontânea de Ia Iglesia. Buenos Aires: La Aurora,
poucas semanas, se põe a proclamar abertamente o evangelho
1970.
em outros lugares, fundando outras comunidades, não há
dúvidas de que o Espírito Santo está ali.27 14. Missionary metbods: St. Panl': or ours? 3. ed. Londres: World Dominion
Press, 1953.
Diante dos desafios inéditos para a missão cristã no século 15. Os trabalhos de Strachan que resumem sua visão missiológica são seus artigos
XXI, os evangélicos latino-americanos necessitam de um im- de polêmica com líderes ecumênicos. In: lnternational reoie» of missions (1964),
publicados em espanhol (Buenos Aires: Cuadernos Teológicos, 1965). Ver
pulso renovado do Espírito Santo e de uma leitura nova e também seus livros Tbe inescapable cal/à'!, (Grand Rapids: Eerdmans, 1968)
contextual da Palavra de Deus. Assim, teremos discernimento e Desafio a Ia eIJangeli':{(/ciólI(Buenos Aires: Logos, 1970).
50 - DESAFIOS DA IGREJA NA A.l\11~RICA LATINA

16. BOER, Harry. Pentecost and missions. Grand Rapids: Eerdmans, 1961.
17. op. citop. 12.

18. NEWBIGIN, Lesslie. La re/igiónpara e/ hombre secu/ar(Madrid:Studium). Foo/ishness


to the greeks (Genebra: WCC, 1986); The Cospe! in a p/ura/ist sociery (Grand
Rapids: Eerdrnans, 1989).
3.
19. Lafamilia de Dios. México: Casa Unida de Publicaciones, 1961. p. 121.
20. Idem. p. 122.
21. STEUERNAGEL, Valdir. Obediência missionárta eprática histórica; em busca de •
modelos. São Paulo: ABU Editora, 1993. p. 92.
22. Idem. p. 93.
23. Ibidem. p. 101-111.
24. Ver capítulo 3. CATÓLICOS E EVANGÉLICOS
25. COMBLIN, José. E/ Espíritu Sal/to y /a liberaaõn. Madri: Ediciones Paulinas,
1987. p. 44. NA AMÉRICA LATINA DIANTE
26. Idem. p. 44-45.
DO DESAFIO MISSIONÁRIO
27. Ibidem. p. 45.
DO SÉCULO XXI

igreja latino-americana, tanto católica como protestante,


A começa a conscientizar-se de sua responsabilidade
missionária. Ela deve aprender das diferenças históricas entre
os métodos missionários católicos e evangélicos na América
Latina. Para os católicos, a finalidade de missões tem sido o
estabelecimento da igreja institucional; para os evangélicos, a
conversão de indivíduos ao evangelho. Os dois métodos têm
suas debilidades. Com respeito ao futuro de missões latino-
americanas, os evangélicos devem corrigir os excessos de
individualismo, e perguntar se o crescimento evangélico na
América Latina foi devido mais à metodologia que à doutrina.
52 - DESAFIOS DA IGREJA NA fu\1ÉRICi\ LATINA
CATÓLICOS E EVANGÉLICOS - 53

~II
No fim do século XX surge um fato completamente novo No caso dos católicos, a razão é evidente. Durante o Quarto
na história do cristianismo. Alterou-se radicalmente o equili- Congresso Missionário Latino-americano (COMLA 4), os
brio das forças numéricas da presença cristã no mundo. Em lideres católicos o descreveram de maneira dramática:
contraste com o começo do século, quando as grandes igrejas Apesar de a América Latina concentrar 42% dos católicos no
e a força missionária estavam na Europa e América do Norte, mundo, e de que a evangelização do continente foi iniciada há
500 anos, a porcentagem de missionários latino-americanos
hoje a prática da fé cristã declina rapidamente na Europa, en-
não chega nem a 2% do total de missionários do mundo.'
quanto as igrejas da África e da América Latina crescem de
forma vigorosa. O dinamismo missionário transferiu-se para O que é ainda pior, para sobreviver nesta região, a Igreja
o sul, apesar de as igrejas africanas e latino-americanas serem Católica necessita de um fluxo constante de missionários que
pobres e enfrentarem desafios dramáticos com a crise social e vêm de outros continentes. Assim, por exemplo, dos 5.467
econômica em sua região. Até igrejas asiáticas jovens como as missionários católicos que saíram dos Estados Unidos em 1992,
da Coréia entraram no mundo de missões com força inusita- 2.345 vieram para a América Latina, ou seja, quase 43%.2
da. As igrejas européias e norte-americanas continuam Os bispos de Puebla (1979) jÚinham tocado nesse proble-
sendo ricas e desfrutando de privilégios especiais em suas ma ao destacar a necessidade de uma participação latino-ame-
sociedades, mas parece que não conseguem resistir ao ricana maior em missões mundiais, reconhecendo: "É verdade
impacto desgastante da modernidade, do secularismo e do que precisamos de missionários. Mas devemos dar da nossa
pluralismo. pobreza".' A "mensagem final" do COMLA 4 reitera a razão
Não se pode deixar de considerar este fator novo na histó- da urgência de participação em missões, com uma frase que irá
ria do cristianismo, em qualquer reflexão sobre o futuro de soar familiar ao leitor evangélico:
missões cristãs. Neste capítulo nos propomos examinar o tema, Na proximidade do ano 2000, só uma terça parte da
vinculando-o com a questão espinhosa da relação entre católi- população mundial (perto de 6 bilhões de habitantes) foi
cos e evangélicos na América Latina. Fazemos isto por uma akançada pelo evangelho. Nesta situação, a igreja latino-
americana, que abrange quase a metade dos católicos do
razão simples, ainda que controvertida. Ao falar de missões
mundo inteiro, registra uma presença mínima de missionários
cristãs na América Latina hoje em dia, não se pode evitar a fora das suas fronteiras."
referência aos cinco séculos de conquista e missões ibéricas
No caso dos evangélicos, a proporção de missionários
que são parte da nossa história. Nós evangélicos continuamos
achando que a América Latina precisa ser evangelizada, e os estrangeiros na América Latina é menor, apesar de também
católicos falam de uma "nova evangelização". Mesmo assim, elevada. Isso parece paradoxal, se levamos em conta que entre
o fato é que perto do início do terceiro milênio os estudiosos os evangélicos se fala muito do crescimento espetacular das
de missões, tanto católicos como evangélicos, crêem que aAmé- igrejas nacionais na América Latina, e das grandes necessida-
des do campo missionário em regiões da Ásia, Europa Orien-
rica Latina não deve ser vista mais somente como um "campo
missionário" ao qual vêm missionários de outras partes do mun- tal e Oriente Médio, onde, muitas vezes, é necessário fazer o
trabalho missionário básico de evangelização e estabelecimento
do, mas também uma "base de missões" da qual saem
evangelistas para outras partes do mundo. de igrejas. Tomando também como exemplo a força missionária
54 - DESAFIOS DA IGREJA NA fuvrÉRICA LATINA CATÓLICOS E EVANGÉLICOS - 55

proveniente da América do Norte, a porcentagem de concílio Vaticano II, e assinala que, em nosso continente, os
missionários que vêm para a América Latina é alta e parece ser católicos começaram a imitar os métodos evangelizadores e
desproporcional em relação às áreas mais necessitadas do glo- pastorais dos evangélicos. Em relação a isso, no entanto, ele
bo. Mesmo assim, há um vigor missionário crescente e um nos recorda alguns fatos importantes. Em primeiro lugar, que
senso de responsabilidade renovado. Isso foi expresso clara- nossa identidade não depende da polêmica evangélico-católica,
mente pelo consenso do Terceiro Congresso Latino-america- já que "ser evangélico significa muito mais do que estar em
no de Evangelização (CLADE IlI, Quito, 1992), que, até hoje, polêmica com a Igreja Católica. Existem muitas pessoas que
foi a reunião mais representativa do protestantismo. (Veja são anticatólicas, mas que não são evangélicas"." Em segundo
citação da Declaração de Quito às páginas 32-33.) lugar, Núfiez afirma que "nossa identidade evangélica não con-
siste tão somente em nossos métodos de trabalho ou estratégi-
Lições da história as ... "7 Para esse mestre centro-americano, a identidade
evangélica depende das convicções doutrinárias dos cristãos
Diante desse sentido de responsabilidade missionária que
evangélicos. Ele resume essas -convicções como sendo "a
parecem compartilhar católicos e evangélicos na América La-
palavra de Deus no centro da vida da pessoa cristã e da igreja
tina hoje, vale a pena refletir um pouco sobre o significado das
cristã'", e nos lembra que essa verdade não foi inventada pelos
lições da história da obra missionária tanto católica como evan-
gélica, usando um enfoque comparativo dentro de uma pers- reformadores do século XVI, mas é algo por que eles se
pectiva histórica. Mais do que uma comparação da mensagem esforçaram para recuperar.
e da teologia que geralmente se tem usado ao falar de católicos Proponho-me nas linhas que seguem mostrar que a situa-
e evangélicos, proponho-me aqui a prestar atenção à ção atual de católicos e protestantes na América Latina não se
metodologia e ao estilo missionário. Nesse sentido, pretendo explica somente por diferenças doutrinárias, mas também por
dialogar com Emilio Antonio Núfiez, um respeitado teólogo práticas missionárias distintas. Creio que, ao ver nossas igrejas
evangélico latino-americano e amigo meu, a quem dedico es- à luz do processo de sua gênese histórica, podemos encontrar
tas páginas. Núfiez tem seguido atentamente a evolução do chaves melhores para entender o que são os católicos e evan-
catolicismo mundial e latino-americano em nosso século. As- gélicos hoje em dia na América Latina, e a forma em que po-
sim, ele explorou os riscos e as oportunidades que essa evolu- derão participar da tarefa missionária cristã no século que em
ção representa para os evangélicos. Já em Bogotá, por ocasião breve irá se iniciar. Tratarei de seguir uma regra importante de
do CLADE I em 1969, Núfiez nos advertiu: qualquer diálogo, que consiste em comparar o que há de
o concílio Vaticano 11marcou uma linha divisória profunda melhor em um com o que há de melhor no outro, e não
entre a "igreja pré-conciliar" e a "igreja pós-conciliar" [...] com o que há de pior, assim como comparar teoria com
Sem margem de dúvidas, a Igreja Romana está se teoria, prática com prática."
rejuvenescendo, despojando-se das suas vestimentas
Venho realizando um trabalho comparativo de métodos mis-
medievais e sintonizando-se com a era moderna."
sionários por causa das conseqüências que têm para a estraté-
Em um breve mas valioso trabalho sobre a identidade gia missionária futura. Não é minha intenção condenar um
evangélica, Núfiez atualiza suas observações sobre o efeito do enfoque e elogiar outro, mas, sim, compreender o presente à
CATÓLICOS E EVANGÉLICOS - 57
56 - DESAFIOS DA IGREJA NA AMÉRlCA LATINA

É muito fácil criticar a igreja colonial pela superficialidade


da
luz do passado. A comparação de métodos missionários ajuda
sua evangelização e por seus defeitos, mas seria injusto passar
a compreender melhor as eclesiologias das quais eles provêm. por alto os crentes sinceros que lutaram contra os abusos."
Em última instância, diferentes enfoques refletem diferentes
maneiras de planejar as relações entre a igreja e o mundo: a Aplicando seu próprio conselho, em seu excelente livro
maneira católica, determinada fortemente pela experiência sobre a evangelização do Peru, antes de contar a história da
constantiniana e medieval, e a protestante, que surgiu no co- evangelização pelos evangélicos, Kessler oferece um resumo
meço da modernidade e foi aprofundada pela experiência crítico e honesto da obra missionária católica no século XVI e
pietista. Esse é o ponto fundamental da teologia que não tem da situação da igreja colonial.
conseqüências para a ética social, os métodos missionários e Para poder aprender das lições do passado fazemos bem
as relações inter-eclesiásticas. A "forma com que católicos e em conhecer melhor a história da obra missionária ibérica que
protestantes visualizam seu próprio futuro na América Latina, acompanhou a conquista do século XVI, com suas luzes e som-
seu papel na sociedade e suas relações mútuas está relacionada bras. Se, nas páginas dessa história, aparecem vilões como
com esse tema fundamental. Valverde, há também figuras que-poderíamos chamar de "evan-
gélicas",. por seu desejo de servir a Deus, seguindo os ensinos
Superar a lenda negra bíblicos em sua maneira de realizar missões. São pessoas como
Toríbio de Mogrovejo, um verdadeiro pastor do povo que lu-
Qualquer latino-americano bem informado sobre a histó- tou contra as injustiças dos encomenderos, ou o jesuíta José de
ria pode lembrar de páginas vergonhosas do papel que muitos Acosta, cuja obra De procuranda indo rum salute está marcada por
religiosos desempenharam na conquista da América. Como um grande fervor evangelístico, e contém lições valiosas, ain-
peruano, o autor lembra muito bem do golpe espanhol contra da para o presente.P A história da implantação do catolicismo
Atahualpa, o último imperador inca de Cajamarca, e o triste na América Latina foi enriquecida, nos últimos anos, com
papel desempenhado pelo monge Vicente Valverde.'" Talvez muitos trabalhos de história e análise que contêm ricas lições
não haja exemplo que melhor ilustre a utilização aberta da missiológicas."
religião como ideologia da conquista e o papel instrumental
desempenhado pela Igreja Católica Romana. Mas se só Comparações metodológícas
levamos em conta eventos como esse, em vez de história
Atualmente existem estudos comparativos desses diferen-
estamos aceitando uma "lenda negra". Nós, evangélicos,
tes enfoques missiológicos, e alguns têm a vantagem de não
precisamos revisar a forma fácil com que temos usado esta
surgir de um espírito polêmico, mas de uma aproximação his-
velha "lenda negra" anticatólica e antiibérica. Quanto
tórica e ecumênica. Podemos mencionar em primeiro lugar o
mais estudamos a história de missões no século XVI,
trabalho de N orman Horner, Cross and Crucifix in Mission"; que
melhor entendemos como se formou essa lenda e aprende-
foi uma pesquisa levada a cabo entre 1956 e 1964. Horner
mos a distingui-Ia dos fatos. A esse respeito, o historia-
tinha sido missionário presbiteriano durante dez anos (1939-
dor evangélico Juan B. Kessler nos faz uma valiosa
adver tência: 1949) no Camarões de língua francesa, na África, onde pôde

'.
58 - DESAFIOS DA IGREJA NA AMÉRICA LATINA CATÓLICOS E EVANGÉLICOS - 59

observar de perto o trabalho missionário católico. Primeiro o observador evangélico pode ficar surpreso. Nesse sentido,
ele escreveu sua tese de doutorado, em 1956, comparando as Ricard é bem claro:
missões protestantes e católicas entre os bantúes de Cama- Se é a graça divina que converte o homem (emprego a palavra
rões. Mais tarde, e em diferentes períodos, ele viajou pelaAmé- "converter" em seu sentido amplo e também restrito), e se
rica Latina, Ásia e Oriente Médio, prosseguindo em seu estudo normalmente é a igreja que derrama a graça divina através dos
comparativo, que culminou no livro mencionado. Também há seus sacramentos, sendo intermediária entre Deus e sua
criatura, é lógico que a tarefa principal do missionário consiste
trabalho comparativo nos volumes 3 e 4 da monumental his-
em pôr à disposição dos infiéis os meios normais de
tória de missões de Kenneth Scott Latourette" e nas histórias conversão."
de missões de Stephen Neill" e Justo González."
Há diversos aspectos da obra missionária em que se pode Ao narrar sua história da evangelização, Ricard coloca a
fazer uma pesquisa comparativa. Por exemplo, o tema da par- igreja em primeiro plano, e considera os missionários "sem
II1
ticipação dos leigos na tarefa missionária, ou o tema da relação dúvida como convertedores, porém mais ainda como funda-
entre conquista colonial e missões. No presente capitulo irei dores de igreja".2o _
I
limitar-me ao exame da questão da finalidade ou objetivo da A atividade missionária é precedida por uma definição
obra missionária. eclesiológica clara na qual predomina a ênfase institucional
e sacramental. Isso corresponde a uma tradição católica que,
Qual é a finalidade da obra missionário? como os estudiosos destacam tão bem, teve continuidade
no concílio Vaticano II: antes de definir sua teologia e pas-
Uma diferença fundamental entre os métodos missioná- toral da ação missionária no documento Ad gentes, os pa-
rios de católicos e protestantes é a forma diferente de con- dres conciliares definiram sua eclesiologia no documento
ceber a finalidade da ação missionária. Como ponto de Lumen gentium. A metodologia missionária se nutre da visão
partida muito útil pode-nos servir aqui uma afirmação do eclesiológica. Apesar disso, talvez se pudesse dizer que re-
historiador católico Robert Ricard, na introdução ao seu side aqui uma debilidade básica da metodologia católica: as
livro clássico, que descreve a evangelização católica no missões católicas na América Latina conseguiram estabelecer
México, no século XVI. Ricard afirma: a instituição, mas não chegaram a converter as pessoas.
... difunde-se cada dia mais entre os teólogos que se ocupam A crítica evangélica, expressa pelos pioneiros da reflexão
dos problemas missionários a idéia de que ofim essencial de missiológica, expôs com clareza o fracasso dessa metodologia.
missões entre os infiéis não é a conversão de indivíduos mas, acima de Esse fracasso foi descrito com objetividade nos escritos da
tudo, o estabelecimento da igrqa visíve~ com todos os órgãos e geração evangélica de pioneiros como Rycrofr" ou de funda-
instituições em que implica esta expressão da igreja visível."
dores como Báez-Camargo'", seguidos por teólogos como
Ricard prossegue afirmando que essa concepção "encai- José Miguez Bonino.P Já na década de 60, no entanto, a
xa perfeitamente na linha lógica da doutrina católica", para própria auto crítica católica começou a reconhecer esse fato,
a qual a visão da igreja tem um forte traço institucional e precisamente porque, nessa época, a crise social do continente
sacramental. Quando essa visão é formulada com precisão, lançou luz sobre o nominalismo da fé dos católicos latino-
60 - DESAFIOS DA IGREJA NA AMÉRICA LATINA CATÓLICOS E EVANGl~LlCOS - 61

americanos. É muito importante constatar que teólogos como uma pastoral profética. Sua crítica foi ao âmago da questão
Juan Luis Segundo e Gustavo Gutiérrez, já no princípio da sua quando, referindo-se à dita pastoral de cristandade, ele afirmou:
trajetória, assinalaram essa debilidade do catolicismo latino-
Quanto ao acesso à fé nessa opção pastoral, existe uma
americano, movidos por uma forte preocupação pastoral. Ao equivalência entre a conversão (a conversão do coração, a
observar a realidade contemporânea do catolicismo latino-ame- mudança interior) e a entrada na igreja visível, que se
ricano, eles criticaram a "imensa máquina de fazer cristãos" efetua pelo batismo. O batizado é considerado crente,
mesmo que na prática não o seja [...1 Troca-se a
que não tinha conseguido a conversão das pessoas ao evange-
evangelização por uma sacramentalização imediata."
lho transformador. Segundo dizia:

Se, na América Latina, o cristianismo só pode sobreviver às Gutiérrez criticou também a equiparação da vida cristã com
mudanças sociais à medida em que desenvolve em cada a prática sacramental. "Chega-se a extremos como considerar
pessoa uma vida pessoal, heróica, formada no interior, a o sacramento como um seguro de salvação, sem que importe
pastoral deve assumir uma tarefaforma/mente nova. Nova com muito a conduta posterior da pessoa.?"
respeito a essa época constantiniana em que temos vivido até
Outro analista do catolicismo-o sociólogo Ivan Vallier, de-
aqui; por outro lado não nova, mas a mais antiga e tradicional:
atare fa de el/angelizar.24 monstrou com bastante precisão que a superficialidade das
raizes católicas explica por que a igreja institucional não con-
Gutiérrez fez uma análise histórica dessa metodologia segue responder aos processos de modernização e precisa re-
missionária, enquadrando-a na que chamou de "pastoral de correr à manipulação dos mecanismos políticos de controle
cristandade", uma pastoral que correspondia à época social. Vallier diz:
constantiniana, que tinha entrado em crise na Europa no sécu-
Por causa das condições históricas e institucionais que
lo XVI, mas que entrou em crise na América Latina na época
prevaleceram, da época da conquista no século XVI até o
da independência da Espanha e de Portugal. Para Gutiérrez, a período da independência, a igreja não havia seguido de modo
"mentalidade de cristandade" acentuou-se na América Latina coerente uma política que fomentasse a solidariedade religiosa
porque Espanha e Portugal não viveram no século XVI a cri- ou o aprofundamento da espiritualidade leiga.28
se da cristandade que sacudiu o restante do continente
Por não pàder contar com a lealdade entusiasmada da
europeu. Espanha se tornou a defensora da fé e persegui-
população, quando chegavam os momentos de crise a igreja
dora de heresias. Referindo-se a ela, Gutiérrez disse:
institucional defendia-se por meios políticos:
Sua aspiração de prolongar a Idade Média encontra neste
Quanto maiores eram a politização da igreja e a adoção de
continente um campo propício, já que não há grupos
estratégias de adaptação imediata, maior era a debilidade
sociais fortes que possam se opor. A tarefa fundamental
dos interesses espirituais e religiosos dos seus fiéis. A igreja
que se empreende é batizar; todo o continente é batizado.
Mas o cristianismo não lança raízes profundas na América se transformou mais em um agente político importante,
Latina ...25 atuando em defesa das forças que prometiam protegê-Ia
como instituição, do que em um sistema religioso
Gutiérrez criticou também a permanência de uma pastoral diferenciado, com raizes na vida espiritual de grupos de fiéis
de cristandade em pleno século XX e, em lugar desta, propôs autônomos."
62 - DESAFIOS DA IGREJA NA fuVlÉRICA LATINA CATÓLICOS E EVANGÉLICOS - 63

<,
Como se trata essa questão no mundo evangélico? Devemos Poder-se-ia dizer que essas características do pietismo no
lembrar que o movimento missionário protestante surgiu movimento missionário protestante se acentuaram na América
somente em meados do século XVIII, ou seja, dois séculos Latina, pela tendência em estabelecer um contraste com a pas-
depois do florescimento das missões católicas. Pode-se dizer toral de cristandade que a Igreja Católica Romana praticava. O
que uma de suas características é que o protestantismo enten- lado positivo do pietismo foi sua força renovadora entre as
deu a finalidade de missões em termos bem distintos da visão igrejas protestantes adormecidas na Europa e na América do
católica. Os historiadores de missões, como Latourette, Neill e Norte, e sua capacidade de gerar dinamismo missionário em
Justo González, assinalam que as missões protestantes brota- muitos cristãos comuns e acomodados. As igrejas que surgi-
ram do avivamento pietista e foram moldadas por ele. Deve- ram desse esforço eram compostas por pessoas com um grau
mos lembrar que o pietismo buscava, acima de tudo, a vivência elevado de lealdade e senso de pertencer ao Senhor, que os
pessoal da fé para cada crente, em contraste com a simples levava a uma vida disciplinada e sacrificada, em um ambiente
confissão de um credo comum em conjunto. Tratava-se de um hostil. O problema que resulta do predomínio dessa
avivamento ou despertamento espiritual. (Veja citação de conceituação e metodologia missionária é o excessivo indivi-
González à página 38.) dualismo e o espírito de competição comercial, que impede a
Essa raiz pietista original e o dinamismo do movimento cooperação entre os evangélicos em missões. Isso também
missionário evangélico determinaram o estilo e a forma de fa- explica a falta de uma eclesiologia clara e a atitude sectária que
3
zer missões, mais do que as definições das diferentes leva algumas igrejas a se considerarem as únicas verdadeiras. !
eclesiologias protestantes. A finalidade de missões veio a ser As advertências sobre os perigos dessa prática missionária
entendida cada vez mais como "a conversão de pessoas como foram percebidas já bem cedo por um dos primeiros analistas
indivíduos ao evangelho de Jesus Cristo". Essa foi precisamente do forte movimento missionário evangélico para a América
a experiência na América Latina, e continua sendo-o, em con- Latina, que floresceu depois da Segunda Guerra Mundial.
traste com a experiência católica. González assinala que no Kenneth Strachan constatou o fenômeno de que, à medida
século XX essa tendência acentuou-se. Por sua vez, Núfiez que diminuíam o entusiasmo e a atividade missionária nas igrejas
destacou esse aspecto na prática e no estilo dos missionários protestantes tradicionais ou históricas, aumentavam os setores
das missões independentes, chamadas em inglês deJaith missions. que se organizavam como missões independentes e enviavam
Ele mostrou que os missionários dessas missões, entre 1900 e fortes contingentes missionários para a América Latina. "Para
1940, eram "premilenistas em sua escatologia, pietistas em sua o bem ou para o mal" - dizia Strachan - "os grupos .não-
visão do cristianismo, e separatistas em sua atitude básica com, históricos constituem um fator importante na determinação
relação aos outros grupos eclesiásticos e à sociedade em do futuro protestante na América Latina.P Para Strachan era
geral"." A essas características Núfiez atribuiu a incapacidade possível que esses grupos ou missões fossem usados por Deus
dessa geração de missionários de assumir as tarefas que o para infundir vida nova a corpos eclesiásticos que tinham
quadro social de pobreza e injustiça característico da América perdido seu vigor e vitalidade. Mas o contrário também era
Latina demandava. possível, ou seja, que esses grupos pudessem ser
64 - DESAFIOS DA IGREJA NA fu\1(,RICA LATINA CATÓLICOS E EVANG1~LICOS - 65

instrumentos que desviam a igreja evangélica por extremos o dualismo exagerado cristão-mundo, que em muitos lugares
doutrinários e preciosismos religiosos, que tragicamente a levou a igreja evangélica latino-americana a bater em retirada
impedem de fazer contato com a corrente principal da vida da cena social, pode ser asceta e maniqueísta, mas não é
latino-americana. Além disso, eles podem aumentar e cristão. Também não é bíblico o secularismo que tenta
aprofundar as divisões (entre evangélicos), a ponto de torná- mundanizar a igreja e sacralizar o que é mundano."
los completamente incapazes de resistir e vencer as pressões
Fica claro que a tarefa teológica acompanha a tarefa
anticristãs que estão crescendo no mundo de hoje."
pastoral corretiva, e é de se esperar que os missionários
evangélicos latino-americanos do futuro desenvolvam
Algumas conclusões
uma metodologia que não seja uma imitação servil da de seus
Limitei-me apenas a sugerir uma linha de pesquisa e refle- mestres anglo-saxãos.
xão sobre um tema que me parece importante para o futuro Em segundo lugar, cabe-nos perguntar até onde o cresci-
de missões na e da América Latina. Quero agora tentar tirar mento evangélico na América Latina se explica pelas falhas da
algumas conclusões, sem aprofundar mais o trabalho histórico pastoral e da metodologia missionária católica e não necessari-
e missiológico. Em primeiro lugar, uma tarefa teológica e pas- amente pela maior veracidade ou superioridade da doutrina
toral muito importante é a correção dos excessos do individu- evangélica. Os missiólogos católicos reconhecem o desafio que
alismo evangélico. Nessa direção, busca-se um modelo de representa para 'eles o crescimento evangélico. Um estudioso
missão integral por parte da geração fundadora da Fraternidade católico do fenômeno evangélico no Peru afirma que a Igreja
Teológica Latino-americana. O integralismo reconhece Católica não trata bem do tema das "seitas" se se limita a dar
a necessidade de uma experiência pessoal da graça salvadora palestras ou cursilhos sobre a doutrina das ditas seitas, porque
de Deus, mas ao mesmo tempo recupera a visão bíblica do ser o descompasso entre os católicos e as igrejas evangélicas tem
humano como ser social, cuja transformação é vivida, em causas que não são de origem doutrinária. Esse autor afirma:
primeiro lugar, no contexto de uma comunidade que, em si
Cremos que nenhum católico mudou para outro grupo ou
mesma, é uma expressão do reino de Deus e um anúncio da igreja por motivos doutrinários, mas por motivos vivenciais;
nova criação. ninguém .que saiu da Igreja Católica para ingressar em um
É na igreja que se vive, em primeiro lugar, as dimensões movimento religioso (cristão ou não) se deu ao trabalho de
pessoal e comunitária da salvação. Por isto não pode haver estudar e analisar as doutrinas de cada grupo ou igreja, para
depois escolher racionalmente qual é a melhor e em qual
evangelização adequada sem uma eclesiologia adequada. Uma
grupo entrar. Antes, muita gente primeiro entra nesses grupos
eclesiologia adequada nos livra também da tentação sectária por uma série de motivos, acima de tudo vivenciais, e só
que impede a cooperação em missões entre os próprios evan- depois toma conhecimento do que este grupo pensa.P
gélicos. A influência excessiva de modelos para-eclesiásticos
de evangelização tem prejudicado o desenvolvimento de uma Podemos rejeitar boa parte dessa afirmação. Mesmo assim,
missão integral na América Latina. Ao mesmo tempo faz falta minha própria experiência pastoral e minhas observações e
revisar a compreensão da visão bíblica da relação entre a igreja estudos a confirmam, em parte. Proponho aqui duas obser-
e o mundo. Indicando uma das raízes teológicas dessa busca, vações para reflexão. Em primeiro lugar, onde os sacerdo-
Núfiez disse com muito acerto: tes e leigos católicos começaram a imitar as metodologias
pastorais e missionárias dos evangélicos, parece que as igrejas
66 - DESAFIOS DA IGREJA NA AMl~RICA LATINA
CATÓLICOS E EVANGÉLICOS - 67

5. NÚNEZ, Emilio A. Posición de IaIglesia frente aI"aggiornamento". In: CLADE,


evangélicas não crescem no mesmo ritmo que em lugares onde
1°, Acción en Cristo para IIn continente en crisis. San José - Miami: Editorial
há vazios de presença ou de ação da parte dos católicos. Em Caribe, 1970. p. 39.
segundo lugar, as igrejas evangélicas mais antigas estão experi-
6. Consciencia e identidad evangélicay Ia renovación católica. Guatemala: Grupo
mentando uma problemática similar à dos católicos. Novos Evangélico Universitário, s.f. p.9.
movimentos do tipo carismático e novas igrejas independen-
7. Idem. p. 10.
tes estão crescendo em toda aAmérica Latina, à custa das igre-
8.Ibidem.
jas evangélicas mais tradicionais. Elas atraem muitos evangélicos
9. STOTI, John, MEEKING, Basil. Diálogo sobre Ia misiõn. Buenos Aires: Nueva
desiludidos com suas igrejas por razões de ordem pastoral, can-
Creación, 1988.
saço com a rotina da pregação e ausência de aplicações para a
10. CANILLEROS, Tres testigos de Ia conquista deI Perú. Madri: Espasa Calpe, Coleção
problemática diária, e, às vezes, pelos fracassos morais dos
Austral.
dirigentes evangélicos tradicionais.
11. KESSLER, J. B. A. Historia de Ia evangelización en el Perâ. Lima: EI Inca, s.f. p. 50.
No momento que os evangélicos latino-americanos consi-
deram sua participação em missões cristãs nas próximas déca- 12. Traduzido para o inglês pelo estudioso evangélico Estuardo McIntosh,
missionário no Peru.
das, eles precisam não só participar de missões em suas igrejas
13. PRIEN, Hans Jürgen. A Historia del cristianismo en América Latina. Salamanca:
a nível local, mas também familiarizar-se com a história de mis- Sígueme, 1985. BORGES, Pedro. Misión y civilización en América Latina.
sões. Hoje em dia não há lugar para triunfalismo fácil. Como Madri: Alhambra, 1987. VALLIER, Ivan. Catolicismo, control socialy
Núíiez nos lembrou muitas vezes, o crescimento numérico é modernización. Buenos Aires: Amorrortu, 1970.

motivo de alegria e gratidão a Deus, mas sabemos que tam- 14. HORNER, Norman. Cross and crucifix in Mission. Nashville: Abington Press,
bém deve haver crescimento em profundidade, para poder 1965.

haver um impacto profundo e raízes duradouras, e para 15. LATOURETIE, Kenneth Scott. A history of the expansion of christianity. New
York: Harper & Row, 1937-1945.7 v. (O último volume foi traduzido
sermos fiéis à Palavra de Deus. para o espanhol sob o títuloA través de Ia tormenta. Buenos Aires: La Auro-
ra,1952.)
16. NEILL, Stephen. História das missões. São Paulo: Vida Nova, 1989. ryer especial-
mente os capítulos 6 - 8.)
17. GONZÁLEZ, Justo L. Histeria de Ias misiones. Buenos Aires: La Aurora, 1970.
18. RICARD, Robert. La conquista espiritual de México. México: Fondo de Cultura
REFERÊNCIAS Económica, 1991. p. 21.

19. Idem.

1. Memórias de/ COMIA 4. Lima: Ediciones Paulinas / Obras Misionales Pontificias, 20. Ibidem. p. 22.
1991. p. 267. 21. RYCROFT, W. Stanley. Religión y fi dinâmica en Ia América Latina. México: Casa
2. U. S. Catholic Mission Association. Annlla/Report on U. S. Catho/ic Overseas Mission, Unida de Publicaciones, 1991.
1992-1993. Washington: 1992. p. 24-26. 22. BÁEZ-CAMARGO. Hacia Ia renouaaân religiosa en Hispanoamérica. México: 1929.
3. CELAM, Docnmento de Pllebla. parágrafo 368 . 23. BONINO,José Míguez. EI testimonio cristiano en un continente descristianizado.
4. Memórias deI COMI A 4. Lima: Ediciones Paulinas / Obras Missionales Pontificias, Testimonium 9/1, 1961. (Míguez combina julgamento e crítica em Protestan-
1991. p. 247. tismo y liberalismo en América Latina. San José: DEI, 1983.)
68 - DESAFIOS DA IGREJA NA A1\fÉRICA LATINA

24. SEGUNDO, Juan Luís. De Ia sociedad a Ia teología. Buenos Aires: Carlos Lohle,
1970. p. 37.

25. GUTIÉRREZ, Gustavo. l.zneas pastorales de Ia Iglesia en Aménca Latina. Lima:


CEO, 1970. p. 17. 4.
26. Idem. p. 16-17.
27. Ibidem. p. 17.

28. VALLIER. Catolicismo, control socialy modernización en América Latina. p. 17.


29. Idem. p. 18.

30. NÚNEZ, Emilio A., TAYLO R, WilIiam D. Crisis in l satin America; an evangelical
perspective. Chicago: Moody Press, 1989. p. 376.
AS NOVAS FRONTEIRAS
31. Esse problema foi a preocupação que, em parte, motivou a pesquisa de Juan
Kessler em sua obra citada, com respeito ao Peru e ao Chile. DE MISSÕES
32. STRACHAN, Kenneth. Tbe missionary motemenr of lhe non-historical groups in Latin
.America. Nova York: Committee of Cooperation in Latin America, 1957.
33. Idem.

34. NÚNEZ, EmilioA. Caminosderenovación. Grand Rapids: Portavoz, 1975. p. 103.


35. GUADALUPE,José Luis Pérez, Las seetas en eI Perú. 2. ed. Lima: Conferencia
Episcopal Peruana, 1992. p. 11.

D urante quase vinte séculos o evangelho de Jesus Cristo


vem cruzando todo tipo de fronteiras, passando de um
país para outro, de uma cultura para outra, de uma classe social
para outra. Em quase todos os idiomas e dialetos do mundo
de hoje Jesus é invocado e sua Palavra é lida. A mensagem de
Jesus alcançou uma universalidade maior que a de qualquer
outra pessoa que tenha vivido na história. Neste constante
atravessar de fronteiras o Espírito Santo impulsiona a igreja a
cumprir a missão para a qual Deus a formou, e ela realiza assim
o propósito de amor redentor revelado e realizado por Jesus
Cristo. O Espírito sempre faz surgir em meio ao povo de Deus
mulheres e homens que, cheios de paixão evangelística, se
lançam a cruzar todo tipo de fronteiras para levar o evangelho
de salvação a todos os seres humanos. A igreja que cumpre sua
missão é povo em marcha, lançado aos quatro ventos em uma
atitude de obediência.
70 - DESAFIOS DA IGRliJA NA AMI~RlCA LATINA As NOVAS FRONTEIRAS DE MISSÕES - 71

Fundamento bíblico e histórico de encarnar esta palavra, de refletir a luz recebida, chegando
também a ser luz. A nova vida é uma vida que ilumina. Assim
o testemunho do evangelista João nos diz que Jesus, em como Deus é luz e Jesus é a luz do mundo, os discípulos de-
um momento culminante do seu ministério, afirmou: "Mas vem iluminar. No Sermão do Monte Jesus afirma: "Vocês são
eu, quando for levantado da terra, atrairei todos a mim" a luz do mundo" (Mt 5.14), e esclarece que está se referindo à
(Jo 12.32 NVI). Joã() comenta que Ele se referia à sua morte: prática da verdade, a uma vida de "boas obras" que levam os
na cruz, onde seria exposta aos olhos de todos, Jesus seria outros a glorificar o Pai (Mt 5.16). Precisamos viver e precisa-
como um ímã que atrairia todos os seres humanos. Mais tarde mos proclamar a mensagem de Jesus. Nas palavras de Paulo,
esse Jesus ressuscitado, a quem toda autoridade foi dada, no essa proclamação é uma dívida que precisa ser paga (Rm 1.14),
céu e na terra, disse aos seus apóstolos, ou seja, seus "envia- e "ai de mim se não pregar o evangelho!" (1 Co 9.16).
dos", que Ele queria ter discípulos em todas as nações da terra A história de missões não é somente uma história de peri-
(Mt 28.18-20). As fronteiras geográficas que os apóstolos cru- pécias de viagens e do transpor de fronteiras geográficas. Tam-
zaram no começo da missão estão explícitas no mandato mis- bém é uma história das aventuras de passar de uma cultura
sionário do Mestre, como círculos concêntricos de alcance para outra, lutando contra o etnocentrismo e o racismo inatos
universal: Jerusalém, Judéia, Samaria e até os confins da terra. ao coração humano. É a história da descoberta contínua do
Já na segunda geração de missionários, que o apóstolo Paulo "outro": o "gentio" fora de Jerusalém e o "bárbaro" além das
representa, as fronteiras assumem uma dimensão cultural mais fronteiras do Império Romano, o "mouro" além das frontei-
específica. Depois de pregar em toda a região oriental do Im- ras da cristandade medieval, o "índio" e o "asiático" além do
pério, de Jerusalém até o Ilírico (Rm 15.19), Paulo se propõe oceano. Em seus melhores momentos as missões cristãs par-
chegar "aos confins da terra", a distante Espanha onde a Europa tem desta nova experiência de um povo novo onde as frontei-
acaba. Mas às vezes o apóstolo também afirma a universalidade ras são eliminadas, porque "não há diferença entre judeus e
do seu chamado com referência à multiplicidade de culturas de não-judeus, entre escravos e livres, entre homens e mulheres:
seu mundo, cujas fronteiras ele atravessa: ele é devedor a judeus, todos vocês são um só por estarem unidos com Cristo Jesus"
gentios, gregos, bárbaros, sábios e ignorantes (Rm 1.13-15). (GI 3.28 BLH). Os que pertencem a este povo podem dizer
A razão para essa movimentação constante é que a própria com sinceridade: "a ninguém mais consideramos do ponto de
natureza da fé cristã a torna missionária. Paulo diz que "a fé vista humano" (2 Co 5.16).
vem por ouvir a mensagem, e a mensagem é ouvida mediante A encarnação do verbo (Jo 1.14), o fato fundamental da
a palavra de Cristo" (Rm 10.17). A verdade que salva não vem obra salvadora de Deus, nos diz que a Palavra se traduz em
ao mundo com cada ser humano, como uma faísca que pode realidade visível que nossos olhos podem ver. A mensagem
ser acesa pela prática religiosa ou pelo conhecimento filosófi- desta palavra encarnada pode ser traduzida para todas as
co. A verdade que salva é uma palavra que outro ser humano, línguas humanas. De fato, os documentos básicos que são os
uma testemunha, nos transmite. Não é um descobrimento por evangelhos já vêm a ser uma tradução, já que não os temos na
introspecção, mas um testemunho que se recebe. E quem língua aramaica que Jesus falava, mas no grego popular mais
alcança a salvação, ao receber o testemunho, tem a obrigação usado no primeiro século. Esta "traducibilidade" do evangelho
72 - DESAFIOS DA IGREJA NA AMÉRICA LATINA As NOVAS FRONTEIRAS DE MISSÕES - 73

dignifica toda cultura, pois não há idioma ou cultura que não missionária que busca modelos bíblicos, que quer aproveitar
possam ser um bom veículo para a mensagem divina. Ao os recursos do contexto e quer fazer missão integral a partir da
mesmo tempo ela relativiza toda cultura, pois não há uma cultura pobreza. Como missões no tempo bíblico aconteceram a par-
ou uma língua sagrada que todos precisam aprender se quise- tir da Galiléia, este enfoque sai da periferia, e poderíamos
rem ser salvos e conhecer a verdade; nem o hebraico nem o chamá-I o de enfoque integral. Esse enfoque é o mais adequado
grego, muito menos o latim. Assim, o dinamismo do Espírito, para missões a partir da América Latina, sem deixar de aprovei-
que empurra a igreja em direção ao cumprimento da sua mis- tar as contribuições positivas dos outros enfoques.
são, também leva o povo de Deus a um constante processo de
contextualização. No final deste século como nunca antes Novas fronteiras
estamos conscientes de que os missionários são vasos de bar-
ro, portadores da glória do evangelho, mas eles mesmos frá- Ao nos aproximarmos do ano 2000 nos encontramos em
geis e preparados para quebrar-se "para mostrar que este poder um mundo no qual o evangelho já cruzou quase todas asfrontei-
que a tudo excede provém de Deus" e não deles mesmos ras geogr4ftcas e em que a igreja está presente nos rincões mais
(2 Co 4.7). Com estas palavras, Paulo destrói toda pretensão remotos da terra. De um certo ângulo de visão pode-se dizer
imperialista e reafirma o modelo de missões no estilo de Jesus que os meios de transporte e a tecnologia aplicada às comuni-
Cristo e não no estilo da igreja constantiniana, aliada ao opres- cações fizeram do planeta uma aldeia global. Em poucos se-
sor e ao conquistador, que usa missões para submeter outros gundos um fax leva uma notícia de Moscou a Medellín, e
seres humanos a uma dominação humana. qualquer turista japonês faz em oito horas a viagem em que
Entre as fileiras evangélicas há hoje em dia três maneiras de Colombo demorou seis semanas, das Canárias até um ponto
executar missões cristãs, três enfoques missiológicos que de- do Caribe. Usando o computador um bispo guatemalteco pode
vemos conhecer e avaliar. Na Inglaterra e no restante da Euro- saber em questão de segundos se o Santo Ofício no Vaticano
pa, evangélicos como John Stott e Michael Green trataram de aprova ou não um certo teólogo da libertação. Com uma rede
encontrar no Novo Testamento o verdadeiro modelo de mis- invisível de ondas interestelares, uma cultura nova e nervosa,
sões, e abandonaram as formas missionárias vinculadas ao im- com sua linguagem própria de satélites, computadores, estatís-
perialismo do passado com sua idéia de superioridade cultural ticas, armas mortíferas, velocidade e drogas, está-se impondo
e poder econômico. Este é o enfoque pós-imperialista de mis- em todo o mundo, com rapidez e eficiência.
sões. Na América do Norte predomina um enfoque que se Olhando de outro ângulo, todavia, pode-se dizer que o abis-
baseia na aplicação de técnicas eletrônicas para determinar as mo cultural e social que separa uma raça de outra, dentro da
necessidades em termos de missões, técnicas, gerenclals para mesma sociedade, pode ter aumentado a ponto de, em uma
organizar missões e avaliações estatísticas para medir sua mesma cidade, a poucos metros um do outro, coexistirem se-
efetividade. Esse enfoque, que chamamos de gerenaal, domina tores que não conseguem se comunicar. Este é o caso entre
os conceitos de crescimento de igrejas e os movimentos como negros, hispânicos e judeus na cidade de Nova York, ou entre
"Amanhecer" e ''AD 2000", que têm o ano 2000 como meta. sérvios e croatas na Iugoslávia. As igrejas de Nova York ou
Na Ásia, África e América Latina está surgindo uma inquietação Los Angeles enviam missionários ao outro lado do mundo,
74 - DESAFIOS DA IGREJA NA Ai\1ÉRICA LATINA As NOVAS FRONTEIRAS DE MISSÕES - 75

mas seus membros não conseguem nem orar ou solidarizar-se lugares remotos. Para os cristãos latino-americanos o desafio
com seus irmãos em Cristo de outra raça, a poucas quadras de missionário de hoje está em terras distantes onde não se co-
distância. Por outro lado, as migrações têm levado ao coração nhece a Cristo, como o mundo islâmico, budista ou hindu.
da Europa e dos Estados Unidos refugiados de todo o mundo, Mas está também na própria terra, e exige a atitude e abertura
que estão colocando agora o desafio de um novo pluralismo e encarnação que torne possível cruzar a fronteira cultural mais
cultural e religioso, ao qual os países ricos não estavam acostu- próxima. A Igreja Batista Horebe no México imprimiu um guia
mados. Ao mesmo tempo, o colapso do marxismo na Europa de oração diária que tem duas partes. Uma para interceder cada
Oriental pôs a descoberto barreiras milenares de preconceito dia por um povo não alcançado pelo evangelho em outros
racial que alcança as proporções de um tribalismo destruidor, continentes, e outra para interceder por uma comunidade in-
que não haviam sido destruídas, mas apenas reprimidas pela dígena no próprio México. Interceder é conhecer, é aproxi-
ideologia materialista dialética. Num mundo assim, que novas mar-se, é tornar esses povos motivo de oração e perguntar se a
fronteiras os missionários cristãos de hoje precisam atravessar, gente mesmo não é a resposta para a necessidade missionária.
a partir da América Latina? As fronteiras culturais de hoje incluem a fronteira urbana.
A população do mundo se acumulou em cidades, e a cultura
A fronfeira culfural urbana predomina. A cultura urbana tem seus próprios desafi-
os. O crescimento massivo das igrejas protestantes populares
Na própria América Latina experimentamos a contradição
na América Latina mostra que elas souberam responder à sua
entre proximidade geográfica e distância cultural. Há regiões
maneira aos desafios urbanos. Sabem falar a linguagem das
importantes de concentração de comunidades indígenas, em
massas urbanas populares, provêem uma experiência de co-
regiões montanhosas ou de selva onde a presença de missio-
munidade que contrasta com a impessoalidade da cidade, cons-
nários estrangeiros se tornou indispensável porque as igrejas
troem redes de apoio mútuo e formas de ajuda pastoral mútua,
nacionais não conseguiram ou não quiseram cruzar essa fron-
oração e leitura da Bíblia. Com tudo isso, mais do que uma
teira cultural. Desde a conquista ibérica, nas nações mestiças
teoria social ou um discurso sobre libertação, as igrejas protes-
desenvolveu-se uma atitude de desprezo aberto ou velado pelo
tantes populares criaram uma alternativa evangélica para o
indígena e pelo africano, que ainda influencia até mesmo as
desafio urbano de hoje. A mesma genialidade criadora do avi-
igrejas. No calor do entusiasmo missionário fomentado pela
vamento wesleyano e das comunidades valdenses ou anabatistas
missiologia gerencial, há crentes latino-americanos dispostos a
em outras épocas pode ser vista agora nessas igrejas, e pode-se
aprender línguas da África ou da Ásia, mas que nunca conse- aprender muito com elas. É irônico verificar que aquilo que
guiriam aprender as línguas nativas para servir em seus próprios tem sido uma contribuição missiológica evangélica, tentaram
países. nos vender como uma invenção das comunidades de base
A missiologia que glorifica as fronteiras geográficas e es- católicas.
quece as fronteiras culturais mais imediatas está equivocada. O transpor da fronteira cultural significa encarnação
Rejeitamos a idéia de que somente é missionário aquele que e contextualização. A encarnação como aproximação ao
trabalha cruzando fronteiras geográficas e culturais em "outro" implica na valorização da língua e cultura do "outro",
76 - DESAFIOS DA IGREJA NA AMÉRICA LATINA As NOVAS FRONTEIRAS DE MISSÕES - 77

e em aprender a colocar a sua própria em segundo plano. É o É exatamente nesse crescimento dos abismos sociais que
princípio apostólico que Paulo exemplifica: "Tornei-me tudo tomamos conhecimento de que as igrejas crescem com uma
para com todos, para de alguma forma salvar alguns" (1 Co incrível vitalidade num mundo de pobreza, enquanto as igre-
9.22). Por exemplo, há missionários que, pressionados pela jas do ocidente rico e desenvolvido têm declinado em número
grave crise econômica, estão redes cobrindo o valor das práti- e vitalidade. A iniciativa missionária está passando do mundo
cas de medicina popular tradicional para usá-Ias no lugar da do norte para o do sul, exatamente quando a crise da pobreza
medicina ocidental. Há pregadores que redescobriram, no es- é mais aguda no sul, e o mundo do norte se mostra muito mais
tilo da narrativa popular oral, um veículo de comunicação mais indiferente, muito menos disposto a gestos de solidariedade
apropriado que a clássica exposição conceitual que é ensinada humana. Ainda há situações missionárias em que as igrejas ri-
nos seminários teológicos. As formas em que os pobres se cas enviam seps missionários como presença e ajuda aos po-
associam e se apóiam para defesa e sobrevivência podem ser bres. Apesar de seu surgimento recente, o fervor missionário
um sinal que expressa a fraternidade cristã, e, em meio a esta, das igrejas coreanas segue o mesmo modelo. Porém, o próxi-
cumprir um programa de educação cristã mais autêntico que o mo século exigirá criatividade-em como fazer missões, no
momento que as igrejas pobres estarão enviando seus missio-
dos manuais traduzidos.
nários para cruzar as novas fronteiras. Quero assinalar aqui
dois modelos:
A fronteira social O modelo que podemos chamar de cooperativo é aquele em
que os recursos financeiros das igrejas dos países ricos se unem
o abismo entre uns poucos que têm muito e a maioria que
aos recursos humanos das igrejas dos países pobres para reali-
não possui o suficiente tem aumentado na América Latina e
zar a obra missionária em um terceiro âmbito de necessidade.
no mundo. Estudos recentes nos Estados Unidos mostram
Se as bases de cooperação são claras e há reciprocidade e res-
que a distância entre pobres e ricos aumentou ao mesmo tem-
peito mútuo entre as partes, esse modelo pode ser a resposta.
po em que as condições para minorias como negros e hispâni-
Quando o apóstolo Paulo escreveu à igreja em Roma sobre
cos piorou notavelmente nos últimos anos. A condição dos
seus planos de ir como missionário para a Espanha (Rm 15.23-
refugiados do sudeste asiático e dos trabalhadores africanos e
24), mesmo sem ter fundado essa igreja nem sendo membro
turcos na Europa muitas vezes chega a ser sub-humana, No dela, ele pediu ajuda para seu empreendimento: "Gostaria tam-
Japão há grandes comunidades de latino-americanos e filipinos bém que vocês me ajudassem a ir até lá" (v. 24 BLH). Entre os
que trabalham em condições precárias, e cuja presença perma- primeiros missionários evangélicos estiveram os morávios de
nece quase oculta para o observador comum. Entre todos es- Herrnhut, ajudados pelo rei da Dinamarca, que queria enviar
ses setores há formas diversas da cultura da pobreza, e a vida missionários mas não encontrou candidatos em seu reino. Os
está marcada por violência, desenraizamento e perda de um morávios tinham paixão missionária, eram trabalhadores ex-
mínimo de dignidade para a vida humana. É precisamente nes- celentes e simples, e não tinham recursos materiais.
ses setores que há abertura para a mensagem do evangelho e a Um modelo de organização rnissionária que tem funcionado
fé cristã é praticada com entusiasmo e dedicação. por séculos, apesar de suas limitações, é o das ordens religiosas
78 - DESAFIOS DA IGREJA NA A.J\1ÉRICA LATINA
As NOVAS FRONTEIRAS DE MISSOES - 79

católicas. Os membros dessas ordens têm em comum uma


O transpor da fronteira social em países ricos que já foram
teologia, uma espiritualidade, um voto de pobreza, o celibato
cristãos, ou em países ainda não evangelizados como os muçul-
e uma disciplina comunitária, a que todos os membros da
manos, só poderá acontecer regressando-se ao modelo do Novo
ordem precisam se submeter por igual, seja qual for sua nacio-
Testamento, quando a ação missionária surgiu de uma sociedade
nalidade. Os evangélicos teriam que criar um instrumento pa-
que estava na periferia do Império Romano, e de comunidades
recido, porque em suas sociedades missionárias atuais as
que não tinham poder econômico, político ou cultural. Mesmo
questões financeiras, o excessivo individualismo competitivo
assim sua ação missionária foi cruzando fronteiras até chegar ao
e a falta de disciplina para trabalhar em equipe têm sido os
coração do Império e afetá-Io. A missiologia gerencial está im-
maiores obstáculos para o trabalho internacional que possa
unir ricos e pobres em um empreendimento. pondo aos evangélicos da América Latina os modelos desenvol-
O mundo de amanhã não precisa de latino-americanos que vidos nos séculos XIX e XX nos países anglo-saxões, que nos
aspirem por viver na comodidade e no luxo dos missionários parecem muito limitados para cruzar com efetividade a fronteira
norte-americanos e europeus, mas de latino-americanos que social a partir de uma base de missões no Terceiro Mundo.
convençam seus parceiros norte-americanos e europeus que
se pode viver com simplicidade e alegria, com os meios estrita- A fronteira do poder espiritual
mente necessários para realizar a obra, e um senso de satisfa-
ção que vem da fidelidade ao chamado de Deus. Há exemplos Influenciados por filosofias secularistas e materialistas, alguns
como o Comitê Central Menonita, a Comunidade Internacio- teólogos do nosso século proclamaram a idéia de que o ser huma-
nal de Estudantes Evangélicos e Jovens com uma Missão, que no de hoje na sociedade moderna já não é religioso, e que se deve
mostram que essa meta não é impossível de ser alcançada. desmitificar o evangelho. No fim deste século, no entanto, pre-
O outro modelo é o migratório, que foi praticado no trans- senciamos a descoberta da realidade da vida espiritual e da dimen-
correr da história e tem agora um equivalente que surgiu es- são religiosa, também nas sociedades mais avançadas. Nem tudo
pontaneamente. Impelidos pela pobreza e pela necessidade de nesse movimento é positivo, porque vemos como a feitiçaria ou a
trabalhar, os migrantes dos países pobres estão levando consi- adoração de demônios, e o retorno ao paganismo, florescem na
go sua mensagem e sua igreja para outros países. Para mencio- América do Norte e na Europa, tanto como no mundo dos Dois
nar alguns exemplos, assim foi com os metodistas livres Terços. Esta religiosidade pagã tem manifestações elegantes, como
japoneses que emigraram para o Brasil, com os batistas a "Nova Era", ou populares e, às vezes, grotescas como a umbanda.
jamaicanos na Inglaterra, os pentecostais chilenos na Argenti- A experiência recente de médicos e antropólogos rnissioná-
na e os latino-americanos que emigraram para a Austrália e os rios que regressaram da África ou da América do Sul levou-os a
Estados Unidos. Esse modelo caracteriza-se pela espontanei- procurar de novo os ensinos do Novo Testamento sobre a pre-
dade da ação missionária e pela participação de toda uma comu- sença e o poder do Espírito Santo em missões. Também é o que
nidade em missões, e não unicamente de alguns especialistas tem demonstrado o vigoroso movimento pentecostal, e o
chamados de "missionários". Tanto a encarnação como movimento carismático em suas diversas manifestações pelo
a contextualização parecem ter-se dado de modo mais natural mundo. Nem a tecnologia avançada nem a formação intelec-
nesse caso.
tual, por si só, são suficientes para missões. O poder espiritual
80 - DESAFIOS DA IGREJA NA Aiv!l~RICA LATINA As NOVAS FRONTEIRAS DE MISSÕES - 81

que vem da abertura para Deus e do exercício da oração, e cidades ocidentais só as igrejas de pobres, negros, asiáticos e
as disciplinas espirituais, são necessários para o transpor das hispânicos mantém a verdadeira fé em Deus e a esperança no
novas fronteiras de religiosidade no mundo. De novo vemos poder do evangelho. Há muita religiosidade ocidental que nada
com clareza, não só o poder do Espírito Santo, mas o fato de mais é que religião civil, ou seja, a intenção de dar um verniz
que, para discernir esse poder, é necessário conhecer bem a religioso ao nacionalismo egoísta. Dessa fonte se alimentam
Palavra de Deus e praticar um estilo de vida segundo o modelo as teologias da prosperidade com sua desfiguração da men-
de Jesus. Nessa verdade trinitária é que deve basear-se a sagem do evangelho. Em meio a tudo isso é preciso fazer
formação dos futuros missionários. missões no Ocidente hoje em dia.
Como nos tempos em que Paulo escrevia aos coríntios, junto
com a consciência do poder espiritual e até com os dons espi- A fronteira religiosa
rituais, pode haver mundanismo, abuso e manipulação. Há, por
um lado, os casos trágicos de televangelistas milionários e cor- Um dos fatos mais admiráveis nos últimos vinte anos tem
ruptos que enganam as massas simples para tirar-lhes o di- sido o ressurgimento do Islã. A_prática religiosa estrita e a co-
nheiro, como Jimmy Swaggart e Jim Baker. Há políticos nexão política inequívoca nos apresentam um desafio incom-
inescrupulosos que querem impor um plano político de direita parável. Como na época das cruzadas, os europeus e seus
sob disfarce religioso, como Pat Robertson. É uma verdade descendentes só vêem este desafio em termos militares e de
clara que, como disse o teólogo croata Peter Kuzmic, "o carisma interesses econômicos, agora ligados ao petróleo. Como em
sem caráter pode levar à catástrofe". Por outro lado, há séculos atrás, querem nos fazer crer que os árabes só devem
missiólogos que fazem estatísticas de quantos demônios há ser vistos como inimigos. Isso se complica ainda mais pela
em cada cidade do mundo, e com que estratégia estatística existência de um sionismo cristão que, devido à compreensão
podem ser derrotados, mas se esquecem das exigências éticas errada das profecias bíblicas, torna-se propagandista da ideo-
do evangelho e do mistério do poder de Deus que não se sub- logia e da política exterior do Estado sionista de Israel, fechan-
mete a nenhuma manipulação humana. O transpor de frontei- do os olhos para todos os excessos e abusos que este país -
ras espirituais exige que dobremos nossos joelhos e escrutemos como qualquer outro país - comete, especialmente no
a Bíblia aberta, para saber discernir. Oriente Médio.
Outro aspecto dessa fronteira é que a decadente cultura O Islã nos desafia a buscar novos estilos missionários que
ocidental da Europa e da América do Norte é a que mais vão contra a correnteza das ideologias e práticas mundanas
resiste ao evangelho. Como mostrou o grande missiólogo dos países ocidentais. Faz falta um conhecimento profundo da
Lesslie Newbigin, a grande pergunta missionária de hoje é se o história e da doutrina do Islã. Parece-me que alguns esforços
Ocidente poderá converter-se novamente a Jesus Cristo. O latino-americanos para fazer missões neste mundo não leva-
Ocidente está corroído por um secularismo militante, pelo ram em conta a necessidade de respeitar a cultura islâmica e
consumismo desenfreado, pelo egoísmo coletivo da economia conhecê-Ia, para ter uma presença eficaz, mais contextual e
de mercado, pela alienação das drogas e por teologias que mais de acordo com o modelo bíblico. O que dizemos sobre o
perderam todo senso de missões. No coração de muitas Islã vale também para as outras grandes religiões como o
82 - DESAFIOS DA IGREJA NA Ai\1ÉRICA LATINA As NOVAS FRONTEIRAS DE MISSÕES - 83

Budismo e o Hinduísmo, que, em alguns casos, estão experi- que querem evangelizar. O transpor da fronteira religiosa exi-
mentando um renas cimento inesperado. Não nos esqueçamos ge, como diria Paulo, não só zelo mas também conhecimento;
que esse renas cimento é, algumas vezes, uma maneira de re- e acrescentamos: trabalho em equipe, planos a longo prazo,
jeitar o materialismo consumista, a obsessão sexual e a desin- espírito de sacrifício, abertura para o Espírito de Deus.
tegração da família, que caracterizam os países ocidentais.
Cabe também mencionar aqui o mundo da Europa Orien- A formação de futuros missionários
tal, onde o marxismo sofreu sua queda colossal. É importante,
Tudo o que temos dito até aqui mostra que, para formar os
agora que há um furor de ativismo nessa parte do mundo, lem-
missionários latino-americanos do futuro, não podemos sim-
brar que ali sempre houve uma igreja fiel que suportou a per-
plesmente imitar e traduzir as metodologias desenvolvidas em
seguição, que realizou sua missão em meio a restrições. Essa
países ricos, com seu triunfalismo e sua dependência de técni-
igreja tem muito a ensinar sobre o sofrimento e a sobrevivên-
cas de mercado e persuasão. Isso está em crise, agora, no pró-
cia, quando uma religião oficial como o marxismo se impôs
prio local de origem. O que faz falta, por um lado, é o retorno
com arrogância. Há um evidente vazio e uma grande abertura
aos modelos bíblicos. Precisamos reler os princípios funda-
espiritual, mas seria trágico chegar até lá com a religiosidade
mentais de missões no Novo Testamento. Depois, necessita-
decadente do Ocidente, ou com a religião civil do nacionalis-
mos de um currículo no qual a parte bíblica seja reforçada, não
mo norte-americano. Aqui também pode haver uma contri-
tanto como erudição pura, mas com sentido missiológico. Lem-
buição especial a partir da América Latina.
bremos que as epístolas não foram escritas como manuais de
Alguns dos grandes missionários do passado, como
teologia sistemática, para satisfazer professores ortodoxos eru-
Raimundo Lulio, Francisco Xavier, William Carey, Robert
ditos, mas como resposta às situações pastorais e missionárias
Kalley, John A. Mackay, nunca consideraram perda de tempo
procurar conhecer a fundo as grandes e antigas culturas ou das igrejas nascentes.
Em segundo lugar, é preciso revisar os modelos históricos
religiões, em meio às quais realizaram sua obra de evangelização.
Muitas obras clássicas que tornaram as grandes culturas de como se realizavam missões antes que a igreja se tornasse
milenares conhecidas na Europa e na América do Norte fo- aliada do imperialismo e ferramenta de colonização. Precisa-
ram fruto do esforço e da sensibilidade dos missionários. Em mos redes cobrir como os pobres foram missionários em dife-
nossa própria América Latina foram os missionários que nos rentes momentos da história, a partir de baixo, no estilo galileu.
ajudaram a conhecer e apreciar algumas das culturas nativas; O mesmo olhar indagado r e crítico que usamos ao ler a história
para isso, submergiram nelas por vinte ou trinta anos de tra- devemos usar ao observar o presente para ver como as igrejas
balho paciente como tradutores e educadores. Devemos rejei- dinâmicas que cumprem sua missão entre os pobres estão fazen-
tar a mentira de tantos antropólogos e sociólogos ideologizados do missões hoje. Precisamos trabalhar com uma leitura missiológica
que acusam os missionários de destruir culturas. Mas também da história.
devemos criticar esse mal entendido senso de urgência que Em terceiro lugar, para compreender as culturas e sociedades
leva alguns cristãos a tentar fazer o trabalho missionário sem do nosso tempo, as ciências sociais nos prestam alguma ajuda.
sequer ter-se dado ao trabalho de aprender o idioma daqueles Precisamos fazer uso delas com critérios missiológicos, sem
84 - DESAFIOS DA IGREJA NA fuvrÉRICA LATINA As NOVAS FRONTEIRAS DE MISSÕES - 85

permitir que elas nos imponham seu programa ideológico e cruzou a fronteira da marginalização para abraçar
político, mas como ferramentas para compreender melhor o publicanos e samaritanos,
mundo em que nos cabe viver. É interessante ver as contribui- cruzou a fronteira do poder espiritual para libertar os
ções que muitos missionários fizeram no campo da Antropo- que eram afligidos por legiões de demônios,
logia e da Lingüística. Uma base bíblica sólida sobre a visão do cruzou a fronteira do protesto social para dizer
ser humano e da sociedade pode nos ajudar a discernir verdades aos fariseus, escribas e mercadores do
o que aceitamos e o que rejeitamos das ciências sociais como templo,
instrumento. cruzou a fronteira da cruz e da morte para ajudar a
Em quarto lugar está o valor do aprendizado pela prática. Ao
todos nós a passarmos para o outro lado;
lado de missionários, pastores e evangelistas, trabalhando sob sua Senhor ressuscitado que por isso nos espera lá, em toda
fronteira que tenhamos de cruzar com seu
tutela e orientação, pode-se complementar e dinamizar o que se
evangelho.
aprende nos livros. Só se aprende a cruzar culturas cruzando-as,
de forma que os centros de formação devem ser localizados em
lugares em que constantemente se está cruzando culturas, como
por exemplo o centro das grandes cidades, onde há um pluralismo
cada vez maior.
Em quinto lugar, nada substitui a disciplina espiritual. Os
grandes movimentos missionários se deram em meio à reno-
vação da vida espiritual. A escola da oração, a meditação na
Bíblia, a exortação mútua e a expectativa diante do Senhor
tem sido o que forma o núcleo central da vocação missionária,
do espírito de serviço, da aprendizagem da convivência com
outros, da devoção a Cristo, que sustenta o missionário em
meio aos conflitos e dificuldades do seu trabalho. Sem disci-
plina espiritual, intencional e constante não há formação
missionária.

Epílogo
Seja a nossa atitude a mesma de CristoJesus, o qual,
para chegar até nós, cruzou a fronteira entre o céu e
a terra,
cruzou a fronteira da pobreza para nascer em um
curral e viver sem saber onde iria reclinar sua
cabeça a cada noite,
5.

o PARADIGMA
PAU LINO DE MISSÕES -
UM ENfOQUE
LATINO-AMERICANO

cristianismo do Terceiro Mundo emergiu como novo


O fator decisivo para as missões cristãs no século XXI.
Igrejas jovens e motivadas crescem em meio a processos
complexos de modernização desigual e mudanças sociais. A
queda do muro de Berlim acabou com as esperanças de que a
luta de classes revolucionária traria a sociedade justa e livre
objetivada pelos manifestos socialistas. Entretanto, a percepção
de que as utopias falharam, por si só, não levará as sociedades
do Terceiro Mundo para a frente, no caminho da transformação
radical, se quisermos preservar um mínimo de dignidade
humana para as multidões empobrecidas. Dentro desse cenário,
a missiologia cristã na América Latina é desafiada a
compreender o significado de mudanças inesperadas no mapa
88 - DESAFIOS DA IGREJA NA Alvn~RICA LATINA o PARADIGMA PAULlNO DE MISSÕES - 89

religioso da região', bem como o desafio de missões a partir da A missiologia de Paulo muitas vezes é expressa como
América Latina no próximo século. Precisa ter também uma exposição teológica, entrelaçada com referências de sua prática
missiologia transformacional, o resultado da fidelidade ao missionária. Penso que Romanos 15.11-33 é um texto ilustrativo
evangelho em que, "se alguém está em Cristo, é nova criatura: da metodologia de Paulo, especialmente relevante para a refle-
as coisas antigas já passaram; eis que se fizeram novas" xão missiológica na América Latina. Esta passagem apresenta
(2 Co 5.17). uma interação entre a teoria e a prática, entre os fatos da vida
em obediência a Deus e a reflexão sobre esses fatos. Em vez
Teoriae prática da missiologia paulina de um exercício especulativo, a missiologia é uma reflexão do
povo de Deus que age em obediência ao chamado missionário
o apóstolo Paulo foi o grande herói e santo padroeiro dos
de Deus, à luz da Palavra de Deus. Esta passagem está permeada
evangélicos na América Latina durante as primeiras décadas
de um tom pessoal intenso. Ela expressa as afeições profundas
de sua presença neste vasto continente. Seu entusiasmo
e carinhosas do coração de um homem que vive e reparte não
evangelístico, em meio a sociedades normalmente católicas,
só "tudo o que tem", mas "também me desgastarei pessoal-
era a fonte da ênfase da pregação evangélica sobre o funda-
mente" (2 Co 12.15). Essa não é a linguagem árida, institucional,
mento das doutrinas básicas da Reforma, como a justificação
impessoal dos relatórios de atividades, descrições de trabalho
pela fé. A estratégia missionária de Paulo, sua tensão aberta
e organogramas que, em alguns grupos, constituem a imagem
com a sinagoga, era vista como um paradigma adequado para
de um empreendimento missionário hoje. Este estilo de Paulo
os missionários evangélicos, confrontados pela rejeição e opo-
sição de uma igreja altamente institucionalizada que era parte não está, por si só, cheio de sugestões?
do sistema feudal. Entretanto, durante as décadas de 60 e 70, Uma leitura cuidadosa de Romanos 15.11-33 evidencia uma
que foram uma época de muita fermentação teológica, a po- estrutura de quatro partes da missiologia de Paulo. Em cada
pularidade de Paulo decresceu sensivelmente, e em alguns ti- seção encontraremos um "fato" central ligado à prática de Pau-
pos de discurso de libertação não havia muito espaço para ele. lo, seguido da reflexão pastoral e missiológica que é estimula-
Havia um certo embaraço com Paulo, por causa do seu supos- da por esse fato e que gira em torno dele. O primeiro éproclamação:
to conservadorismo social e sua espiritualidade dualista. "Proclamei plenamente o evangelho de Cristo" (v. 17-22);
Mais recentemente surgiu um número grande de estudiosos o segundo é previsão: "Planejo [vê-los] quando for à Espanha"
de Paulo, especialmente de sua prática e ensino missionário.' (v. 23-24); o terceiro é conclusão: "Agora, porém, estou de partida
Uma das conseqüências da recente pesquisa tem sido o para Jerusalém" (v. 25-29); e o quarto é luta: "Recomendo-
questionamento da figura do apóstolo como provedor de uma lhes, irmãos [...] que se unam a mim em minha luta" (v. 30-33).
ideologia que apóie atitudes conservadoras na sociedade. Como
mostra E. A. Judge, um dos pioneiros da mudança de direção,
Proclamação
uma das razões básicas para suspeitar que Paulo não era
conservador em suas idéias sobre a sociedade é que ele Paulo começa constatando um fato: "desde Jerusalém e ar-
abandonou deliberadamente a segurança da condição redores, até o llírico, proclamei plenamente o evangelho de
confortável em que ele estava vivendo (ludge, 1974). Cristo" (Rm 15.19). Sua vida como apóstolo foi dedicada à
90 - DESAFIOS DA IGREJA NA AMÉRICA LATINA o PARADIGMA PAULINO DE MISSÕES - 91

proclamação do evangelho de Cristo em uma região vasta do natureza da proclamação missionária. Pelo menos dois aspectos
mundo mediterrâneo. Essa proclamação é descrita com um dessa moldura mais ampla, vale a pena olhar mais de perto.
elemento de cumprimento e conclusão: "De modo completo" Em primeiro lugar, Paulo se considera simplesmente um agente
(BLH). Em suas viagens de cidade em cidade, da sinagoga para de um Deus triúno ativo, que, na verdade, é quem toma a ini-
o mercado, em casas, navios, ou pelo caminho, a principal pre- ciativa. O ministério de Paulo é apresentado como uma reali-
ocupação de Paulo foi a proclamação do evangelho. Lutero zação de Cristo, em obediência a Deus, no poder do Espírito
seguiu essa tradição paulina quando disse que queria ser co- Santo (v. 17-19a). Por causa disso, a glória é dada somente a
nhecido como "servo da Palavra". Muitos pioneiros evangéli- Deus. Em 15.16 Paulo comparou seu ministério apostólico ao
cos na América Latina, como James Thompson no século XIX ministério sacerdotal do Antigo Testamento e, como diz
ou Francisco Penzotti no século XX, escreveram sobre seu Leenhardt,
trabalho apostólico corno aventureiros "com a Palavra" ou Assim como o sacerdote no altar meramente obedecia as
"com o Livro" na América Latina. É um sinal animador dos prescrições de Moisés, a ponto de sua individualidade ser
novos tempos que, em alguns países latino-americanos, onde ofuscada pela instituição divina que de fato dava valor às suas
ações, o ministério sacerdotal do apóstolo não dá margem
um pouco de renovação bíblica tocou a Igreja Católica Roma-
para vaidades pessoais (1 Co 15.10-31; 2 Co 10.13). Cristo é o
na, os catequistas são chamados de "agentes da Palavra". ator invisível que torna esse ministério tão assombrosamente
Esta proclamação do evangelho entre os gentios e em luga- fecundo (2 Co 3.5,4.7,13.3). (Leenhardt, 1961, p. 369).
res em que antes não era conhecido é a ambição e tarefa espe-
cífica de Paulo. Ele se vê contribuindo para cumprir o que os Ao mesmo tempo em que o apóstolo afirma seu chamado
profetas anunciaram (v. 21). Como mostra a primeira parte específico, portanto, ele também reconhece os chamados es-
deste capítulo, "ele vê testimonium da missão aos gentios na Lei, pecíficos dos outros e a complementaridade das tarefas dentro
nos Profetas e nos Salmos (Bruce, 1985, p. 243). Sua vida é a de uma concepção integral de missões (1 Co 3.5-15). Paulo
prática da obediência que torna real o que foi anunciado na não precisa usar técnicas de vendas para provar que seu
Palavra. Como diz Leon Morris: "Paulo está dizendo que seu chamado é o melhor e mais urgente, para tirar doadores das
objetivo constante era ser simplesmente um evangelista pio- agências concorrentes.
neiro" (Morris, 1988, p. 515). Essa proclamação é central em Em segundo lugar, através da proclamação do evangelho,
missões. Os latino-americanos da minha geração que foram Deus quer "levar os gentios a obedecerem a Deus" (v. 18). O
chamados de "evangélicos radicais" por causa de sua luta por evangelho inclui um chamado claro a arrependimento, fé e
um enfoque integral de missões nunca questionaram ou nega- obediência. A verdade de Cristo é envolvente. Usando a ima-
ram a centralidade da proclamação do evangelho em missões. gem criada por John A. Mackay, um grande missionário
A prática e a teologia de pessoas como René Padilla, Orlando na América Latina, o evangelho é um chamado para seguir a
Costas, Rolando Gutiérrez e Pedro Arana confirmam esse Cristo pelo caminho, não para contemplá-I o da distância con-
compromisso. fortável da arquibancada: "É sempre quem faz a vontade de
Nesta passagem, a proclamação de Paulo é vista dentro Deus que conhece a doutrina". Isso é outra maneira de dizer
de uma moldura mais ampla e abrangente, que esclarece a que a verdade, com respeito a Deus, é sempre de caráter
92 - DESAFIOS DA IGREJA NA AMÉRICA LATINA
o PARADIGMA PAULINO DE MISSÕES - 93

Previsão
existencial, incluindo um assentimento da vontade e um ato
de compreensão. ''A concordância pode ser expressada da Desde o início desta epístola, Paulo deixa bem clara sua
arquibancada, mas o compromisso é inseparável do caminho" intenção de visitar Roma (1.16). Agora ele diz que Roma será
(Mackay, 1942, p. 59). somente uma parada em seu caminho para a Espanha. "Espe-
René Padilla, evangelista, pastor e teólogo na Argentina, ro visitá-Ios de passagem e dar-lhes a oportunidade de me aju-
tem insistido nesse ponto. Sua missiologia tem sido um esfor- dar em minha viagem para lá" (v.24). A península ibérica era
ço para elaborar as conseqüências da noção "obediência de o extremo ocidental do império, e os olhos deste visionário
fé" para missões na América Latina. Em um continente que se estão postos nela.
autoproclamou "cristão" desde o século XVI há a necessidade
Há muito tempo ele tinha agendado uma campanha na
de lidar com um tipo de missões que reduziu o evangelho a
Espanha. Nessa viagem era necessário passar por
um mínimo, para manter no redil o maior número de pessoas.
Roma, por óbvias razões geográficas e menos óbvias
Eu concordo com Padilla em que, no mundo evangélico hoje, razões logísticas (1.8-15; 15.14-33). Entretanto, essa
há formas de missiologia que adotam o mesmo princípio. viagem planejada foi frustrada-vez após vez (Minear,
1971, p. 2).
Como resultado, a igreja, longe de ser um fator transformador
da sociedade, torna-se meramente outro reflexo da sociedade Nesta seção o fato central é este plano definido, para o
e, pior, outro instrumento que a sociedade usa para
qual a epístola é possivelmente um estágio preparatório. Lucas
condicionar as pessoas aos seus valores materialistas (padilla,
1985, p. 55). nos dá uma pequena idéia da definição do propósito de Paulo
ao aludir em Atos 19.21 à decisão do apóstolo quando estava
Esse tipo de missiologia separa fé de arrependimento, o em Éfeso: "Paulo decidiu no espírito ir a Jerusalém, passando
anúncio do indicativo de Deus da salvação em Cristo do impe- pela Macedônia e Acaia. Ele dizia: 'Depois de haver estado ali,
rativo de Deus de uma vida nova, salvação de santificação. é necessário também que eu vá visitar Roma.'" F. F. Bruce
Em seu nível mais básico, ela leva a distinguir entre Cristo mostrou que, para Lucas, a cidade de Roma parece ser o ponto
como Salvador e Cristo como Senhor. Isso produz um culminante, pela maneira que ele conta sua história em Atos,
evangelho que permite uma pessoa manter os valores e
mas este não é o caso do apóstolo em si.
atitudes que predominam numa sociedade de consumo e, ao
mesmo, tempo gozar da segurança temporal e eterna que a Na mente dele Roma era um ponto de parada, na melhor
religião proporciona (padilla, 1985, p. 55). das hipóteses uma base avançada em seu caminho para a
Espanha, onde planejava repetir o programa que tinha
Como Orlando Costas disse, completado na região do Egeu (Rm 15.23) (Bruce, 1977,
p.314).
Se o cristianismo atual não quiser ser reduzido a uma peça
de museu, um objeto do passado, um cadáver ou um alegre A unidade de propósito de Paulo quanto à direção da sua
clube religioso, ele precisa recuperar a urgência de
viagem combina com sua determinação firme quanto ao tipo
proclamar três coisas: o nome de Jesus, a natureza radical
de ministério que iria desenvolver. Knox o disse com muita
do reino de Deus e o chamado a arrependimento e fé
(Costas, 1979, p. 12). precisão:
94 - DESAFIOS DA IGR"JA NA ArvrÜICA LJ\TINA o PARADIGMA PAULINO DE MISSÕES - 95

Ninguém pode duvidar que Paulo tinha um senso especial de longe de ser o caso. A grande maioria das pessoas às quais nos
vocação e um senso de vocação especial - que ele considerava dirigimos não terão nada a ver com religião. Eles adotaram
a si e seu trabalho como de importância extraordinária de esta atitude porque a religião e a moralidade estiveram
algum modo na execução do propósito de Deus em Cristo. separadas por toda a história da vida religiosa na América do
Ao lermos suas cartas sempre de novo ficamos Sul (Mackay, 1928, p. 121).
impressionados e às vezes repelidos por sinais do que
parece um senso quase mórbido da própria importância O movimento ecumênico acabou corrigindo seu erro de
(Knox, 1964, p. 5). 1910. Mas eu temo que os antigos conceitos errados ainda
estejam ali, nas mentes de muitos lideres eclesiásticos.
o mesmo poderia ser dito de missionários de todas as épo-
Ao longo de toda a história missionária há evidências dessa
cas. É só pensar em Ramón Lull, Bartolomeu de Ias Casas,
tensão entre visionários de objetivos definidos, por um lado, e
Francisco Xavier, William Carey, Henry Martyn, Robert Moffat,
igrejas dormentes ou instituições endurecidas, por outro. O
Allen Gardiner, e alguns contemporâneos que conhecemos!
Espírito de Deus interfere nessa tensão para revitalizar sua igreja
Este senso de chamado pessoal está ligado à convicção da obri-
e realizar sua missão. Mas há o.utro lado presente nesta passa-
gação implicita na natureza do evangelho e da própria fé cris-
gem de Romanos 15. Paulo não quer desincumbir-se de sua
tã. É somente em relação com esse senso básico de vocação
missão sozinho.
pessoal, vivido dramaticamente na prática, que o material
teológico da epístola aos Romanos faz sentido. Vemos aqui a Algumas pessoas pensam que Paulo só queria orações e votos
de felicidade, o que pode ser verdade. Mas parece mais
certeza absoluta de um Deus que quer trazer a salvação a cada
provável que ele esperava contar com Roma como sua base
ser humano, nos confins da terra, e ele escolheu Paulo como
para seu trabalho nas regiões ocidentais. Até ali, Antioquia
instrumento. tinha servido como sua base, mas ela estava longe demais de
Quem poderá negar hoje em dia o direito das igrejas latino- lugares como a Espanha. Para Paulo seria de grande ajuda se
americanas à existência e proclamação do evangelho na Amé- os cristãos de Roma pudessem ver com clareza sua tarefa de
rica Latina? Quem, então, irá negar os efeitos que a proclamação servir de igreja-base de Paulo, por assim dizer, enquanto ele
avançava para território desconhecido ... (Morris, 1988, p. 518).
do evangelho durante os últimos dois séculos teve, não so-
mente ao dar origem a milhares de comunidades evangélicas Onde é "o território desconhecido, onde são as fronteiras
vibrantes, mas também ao contribuir para sacudir o catolicis- que devemos cruzar ao entrarmos em um novo século? No
mo romano da complacência para um novo senso de missões? caso da América Latina, cada vez mais os novos mártires de
Os que tomaram as decisões na famosa conferência missionária missões não estão entre os aucas da selva, mas nas cidades
de Edinburgo em 1910 negaram aos evangélicos o direito de entulhadas como São Paulo e Lima, onde inflação, drogas e a
evangelizar a América Latina. Dezoito anos mais tarde, no corrupção tradicional estão tornando a vida uma aventura
encontro do Conselho Missionário Internacional em Jerusa- muito arriscada para os missionários. O alvo determinado de
lém, John A. Mackay disse: pioneiros como Viv Grigg no inferno urbano de Manila apre-
senta a todos nós uma nova estratégia missionária (Grigg, 1990).
Às vezes os que estão interessados no serviço cristão na
América do Sul podem ser considerados bucaneiros religiosos, Uma das marcas do nosso tempo é a escalada das massas, o
com as vidas dedicadas à pirataria eclesiástica, o que está surgimento dos pobres como presença perturbadora, ao lado
96 - DESAFIOS DA IGREJA NA Ai\lI'(RICA LATINA O PARADIGMA PAULINO DE MISSÕES - 97

de luxo e riqueza. Eu vejo isso em Filadélfia e o vejo em Lima. recusados; a autoridade de Paulo tinha sido rejeitada.
Havia rumores de que toda a iniciativa era suspeita
Isso inclui as massas de refugiados em alguns países asiáticos,
(Minear, 1971, p. 3).
os migrantes nas cidades da América Latina, as multidões de
estrangeiros ilegais nos Estados Unidos, os trabalhadores es- Diferentes dos judeus, os gentios não tinham o costume
trangeiros em alguns países europeus. de dar esmolas. A resistência de alguns cristãos judeus aos
métodos missionários de Paulo entre os gentios, que não fazia
Conclusão questão que estes se judaizassem, pode ter dado origem a res-
sentimentos contra Jerusalém. Provavelmente foi em Corinto
A terceira seção em nossa passagem é iniciada por uma que Paulo encontrou mais dificuldades, o que justifica as ex-
frase que soa como uma interrupção do discurso: ''Agora, plicações longas e cuidadosas que Paulo dá em sua segunda
porém, estou de partida para Jerusalém, a serviço dos santos carta aos Coríntios. Entretanto, a conclusão de Minear é
[ali] ..." (v. 25). O fato central desta seção é que, apesar do seu esclarecedora:
plano de evangelizar a Espanha e da urgência que isso tem Vemos que o dinheiro foi a rajz dos conflitos na igreja tanto
para ele, Paulo se encontra no meio de outra viagem missionária naquela época como agora. O calor do conflito, entretanto,
à qual ele dá importância especial. A expressão "a serviço dos não demoveu o apóstolo do seu intento de levantar a oferta.
santos" indica a última coleta que Paulo organizou nas igrejas Na verdade, ele tinha transformado essa coleta num teste de
lealdade das congregações gentias. Ele tinha dedicado
gentias da grande região que ele tinha evangelizado. Ele estava
diversos anos a ela e adequado seu itinerário para facilitá-Ia.
levando o dinheiro para os pobres de Jerusalém. A linguagem Referências em cinco das suas cartas provam com quanto
da passagem é reveladora. Ele tinha expresso seu propósito cuidado ele planejou a campanha (Minear, 1971, p. 3).
definido de ir à Espanha via Roma, mas há um "porém". Como
Bruce diz: Nestes versículos Paulo usa linguagem teológica para falar
da transação financeira, e argumentos teológicos para explicar
É difícil exagerar a importância que Paulo deu a esse trabalho seu significado. Paulo fala do dinheiro em questão como koinonia
e à remessa segura do dinheiro para Jerusalém nas mãos dos
(v. 26-27), uma palavra que tem conotações espirituais profun-
representantes das igrejas que contribuíram
das. Morris diz que isso é um sinal de que
(Bruce, 1977, p. 319).
o dinheiro não era um presente insensível, mas a expressão
Paul Minear chamou nossa atenção para o fato de que a exterior do amor profundo que vincula os cristãos no corpo
própria idéia de socorrer os pobres era uma novidade completa que é a igreja (de igual modo em 2 Co 8.4, 9.13) (Morris,
para as igrejas gentias. 1988, p. 520).

Campanhas financeiras são tão rotineiras em nossas igrejas Constatamos também a insistência de Paulo de que a oferta
modernas que facilmente deixamos de ver a importância
deve ser voluntária. Duas vezes ele usa o verbo "ter alegria,
estratégia dessa primeira campanha. Ela foi uma inovação
prazer" para descrever a atitude dos crentes na Macedônia
revolucionária. Os cristãos gel/tios da Macedônia e Acaia
tinham sido convocados para enviar dinheiro para os cristãos e Acaia (v. 26-27). Não seria um despropósito imaginar que
jtldetls pobres de Jerusalém. Apelos anteriores tinham sido alguns crentes judeus em Jerusalém podem ter entendido mal
98 - DESAFIOS DA IGRJ;JA NA AMÉRICA LATINA
O PARADIGMA PAULINO DE MISSÕES - 99

a natureza da oferta, considerando-o uma espécie de tributo que, muitos anos antes, tinha chamado Paulo para ser seu
que as igrejas gentias se viam obrigadas a pagar à igreja-mãe apóstolo aos gentios (Bruce, 1977, p. 323).
em Jerusalém. O âmago do ensino de Paulo sobre a oferta
enfatiza sua natureza voluntária: ela deveria ser preparada Há portanto, dois elementos nessa visão integral de
"como oferta generosa, e não como algo dado com avareza" missões: um é o fato empírico de uma quantia ofertada em
(2 Co 9.5). dinheiro, em muitos casos de maneira sacrificial, como expres-
No contexto do plano salvador de Deus para a humanida- são da preocupação pelos pobres em outros lugares. O outro é
de, Paulo estabelece um senso de mutualidade e reciprocidade o sinal de maturidade, de conclusão do processo de
entre os que receberam o evangelho primeiro e os que foram evangelização que o ato de ofertar em si mesmo expressa. Ao
evangelizados por eles. A compulsão que Paulo sentia para dar, o doador cresce e recebe bênçãos, e o recebedor é aben-
evangelizar vinha da fonte profunda do amor de Cristo: "O çoado pela ajuda prática em sua aflição. A transação adquire
amor de Cristo nos constrange" (2 Co 5.14). Da mesma ma- uma dimensão "eucarística" (2 Co 9.12).
neira, a gratidão espontânea a Deus pela salvação recebida como "A noção básica aqui não _é esmola, mas reciprocidade"
presente deveria tornar-se a fonte da oferta dos gentios para (Bassler, 1991, p. 94). Dieter Georgi conclui que o versículo 27 .
os pobres de Jerusalém. Dentro desse quadro é que deve- fornece uma compreensão mais clara do significado que Paulo
mos entender como o repartir mútuo de bênçãos coloca no atribui à própria existência dos empobrecidos economicamente,
mesmo nível as bênçãos espirituais compartilhadas pelos ju- que seriam representantes das "bênçãos espirituais" que
deus e as bênçãos materiais compartilhadas pelos gentios. Uma Jerusalém ofereceu.
barreira cultural foi derrubada neste caminho. Existe nas vidas deles um dom, uma qualidade de testemunho,
A oferta é um sinal evidente da unidade da igreja. em termos ideais mas também práticos, até econômicos. Eles
Ela mostra de modo concreto que os novos brotos apontam para a pobreza como a base para a existência
estavam ligados firmemente ao antigo tronco humana em sociedade; eles lembram a sociedade de sua
(Leenhardt,1961, p.375). eterna periferia (Georgi, 1992, p. 164).

Note também que no versículo 28 Paulo fala do encerra- Essa questão é especialmente significativa como quadro de
mento dessa tarefa como do amadurecimento de um fruto. As referência para os muitos esforços missionários dos países ri-
imagens podem muito bem indicar que Paulo está encerrando cos para os pobres em nossa época de disparidades crescentes
um estágio do seu apostolado, sendo essa viagem a Roma a a nível nacional e global. Prestar atenção aos princípios paulinos
sua coroação. Paulo estava trazendo não só o dinheiro, mas pode nos habilitar a corrigir alguns aspectos negativos que
também um grupo de crentes gentios, representantes das igre- foram se desenvolvendo. Para o começo, as contribuições dos
jas doadoras. Dentro da idéia de sacerdócio (v. 16), Bruce des- cristãos para ajudar os pobres, e até para eliminar as causas da
creveu a intenção de Paulo:
pobreza, deveriam ser canalizadas no quadro de reciprocidade
Os representantes gentios iriam levar a oferta para Jerusalém, e mutualidade que só pode brotar de um compromisso comum
mas os próprios representantes gentios eram a oferta de de crer em Cristo. Elas deveriam contribuir para fortalecer os
Paulo, presenteados não tanto à igreja-mãe quanto ao Senhor
laços de união dos cristãos que viviam separados por barreiras
100 - DESAFIOS DA IGREJA NA AMl~RICA LATINA
o PARADIGMA PAULINO DE MISSÕES - 101

culturais, politicas e até ideológicas. Em lugar de uma atitude Oração por Paulo não era simplesmente um ato mecânico
paternalista, padronizada mais de acordo com o sistema buro- para não sair da tradição. Suas cartas estão repletas de uma
crático de bem-estar do Estado secular, devemos dizer que atitude de oração, como de instruções de como a oração deve
uma atitude "eucarística" precisa ser moldada. Os ajudadores ocupar o lugar central na vida do cristão. No versículo 18 des-
e os ajudados deveriam tornar-se parceiros e agentes de seu te capítulo, Paulo reconhece com humildade que seus esforços
desenvolvimento e libertação. Isso expressaria uma apostólicos tão frutíferos naquela vasta região, na verdade,
integralidade verdadeira, em que a pregação do evangelho e o "Cristo realizou". Essa percepção teológica é expressa como
serviço nas necessidades dos santos andassem lado a lado, sem uma confissão na prática de oração constante e disciplinada.
constrangimentos nem pedidos de desculpas. Novamente, se olharmos para trás na história de missões,
A operação de ajuda organizada por Paulo era algo novo encontraremos o mesmo padrão repetido século após século.
para as igrejas gentias. Sua criatividade missionária é um Grandes movimentos missionários nascem no berço de uma
bom exemplo do tipo de criatividade que nossa época requer, vida de oração. Nesse sentido, os grandes missionários tam-
quando olhamos para a parceria missionária futura, em escala bém foram "místicos", pes.soas de uma profunda
global. espiritualidade. A determinação que mencionamos acima tam-
bém se manifesta com relação à oração. John R. Mott, cuja
carreira ecumênica notável começou quando ele ainda era um
Luta
estudante universitário, disse algo muito eloqüente a respeito.
Essa seção da epístola termina com um pedido urgente por Referindo-se à vitalidade do Movimento de Voluntários Estu-
solidariedade em oração. "Rogo-vos, pois, irmãos, por nosso dantes 33 anos após sua fundação, Mott, um dos fundadores,
Senhor Jesus Cristo e também pelo amor do Espírito, que luteis disse:
juntamente comigo nas orações a Deus a meu favor" (v. 30, A verdadeira fonte da energia vital do Movimento tem sido
Almeida). Este é o fato: o apóstolo pede aos seus irmãos e sua relação, através do exercício da oração, com a fonte de
irmãs em Roma que orem por ele. O pedido é feito em "ago- toda vida e poder. Os caudais que movem as turbinas do
mundo nascem em lugares solitários - na vida de estudantes
nia", se eu posso ficar perto da raiz grega e usar o termo com
individuais em comunhão como Deus Vivo. O movimento
o sentido em que Unamuno o usou: luta em grego é "agonia".
assumiu expressão visível e coletiva nas reuniões de oração
De fato, como disse o grande filósofo espanhol, a vida, mes- inesquecíveis dos secundaristas em Mount Hermon
mo a vida cristã, deve ser vivida como uma agonia, uma luta. (Mott, 1946, p. 199).
Ao famoso dito de Descartes, cogito ergo sum ("penso, logo exis-
to"), Unamuno opôs o seu,pugno ergo sum ("luto, logo existo"). Eu tenho uma dívida pessoal muito grande aos movimen-
Bem espanhol, de fato! Mas também poderíamos dizer bem tos evangélicos de estudantes, onde entendi pela primeira vez
a experiência feliz de sentir o sabor da universalidade da igreja
paulino. O apóstolo considerava sua missão como parte de
e a beleza e lógica da doutrina evangélica. Mas não só isso.
uma luta cósmica, e é muito importante perceber como, nesse
Com eles aprendi o significado profundo do compromisso com
pedido por oração, o elemento trinitário acompanha o pedido
por ajuda na sua luta. uma vida de oração disciplinada.
102 - DESAFIOS DA IGREJA NA AMÉRICA LATINA o PARADIGMA PAULINO DE MISSÕES - 103

Creio que é necessário, a esta altura, qualificar o que eu chama os de fora de "rebeldes" (Almeida - uma tradução mais
disse até aqui sobre oração. Há alguns anos servi de intérprete literal do que "descrentes"), esperando deles oposição e mes-
o

para um pastor coreano famoso que, em uma das suas prega- mo perseguição. Como Daniel, ele estava caminhando para a
ções, falou sobre oração e crescimento numérico da igreja. Para cova dos leões, e precisaria ser socorrido. O relato em Atos
minha surpresa ele estabeleceu uma relação quase mecânica e 23.12-35 nos conta o restante da história. Não sabemos até
matemática entre as horas dedicadas à oração e o número de onde ele teve sucesso com os "santos" em Jerusalém. Morris
conversões em sua igreja. Acho que alguns missiólogos estão acha que é provável que ele não tenha tido sucesso.
fazendo a mesma conta de maneira mais sistemática e com o Alguns membros da igreja em Jerusalém consideravam Paulo
uso de computadores. Não é isso que quero dizer, e não é o um inovador perigoso, que desobedecia a Deus, ao dar tão
pouco valor à obrigação de obedecer a lei que Deus tinha
que Paulo diz nesta passagem. Alguns missionários, que tive-
dado por meio do seu servo Moisés [...] A igreja em
ram uma vida profunda de oração e devoção e um compro- Jerusalém não parece tê-Io ajudado: por exemplo, não há
misso especial com sua tarefa missionária, não tiveram sucesso nenhum registro de ajuda depois da prisão do apóstolo
por padrões numéricos. Entretanto, deixe-me apontar para (Morris, 1988, p. 524).
um fato: mesmo sem as estatísticas, eu vi na Coréia, na Améri-
Deus respondeu a oração de Paulo de modo inesperado.
ca do Norte, na América Latina e na Europa muitas igrejas e
Ele acabou chegando a Roma como prisioneiro do imperador,
movimentos em que uma vida intensa de oração está ligada
nas mãos de soldados. Mas seu desejo de encontrar os crentes
intimamente à vitalidade missionária.
em Roma com alegria e ter um tempo agradável com eles
Paulo se prepara para mobilizar a igreja em Roma para mis-
(v. 32) ainda era uma alegria que seu Senhor lhe daria em res-
sões, levando-a a orar por ele, que vê dias críticos em Jerusa-
posta às suas orações (At 28.14-16). Sua missão ali tomou ou-
lém se aproximarem. De modo semelhante, é interessante
tro rumo, penetrando até na guarda do palácio (Fp 1.13), mas
observar como, no Terceiro Mundo, a participação de toda a
é provável que ele não tenha conseguido ir à Espanha. Deus
congregação em missões de proclamação e serviço da igreja
tinha outros planos para ele. E, como bom servo, Paulo estava
geralmente está ligada à mobilização para orar. Quando estou
pronto para qualquer coisa que o Mestre quisesse.
no México sempre tento ir ao culto na Igreja Batista Horebe,
As surpresas de hoje oferecem à igreja na América Latina
uma congregação viva de uns 800 cristãos, onde o ministério é
uma multidão de novos desafios missionários. A visão
desenvolvido por um conselho de vinte diáconos. O pastor é o
missionária de Paulo, porém, continua sendo um guia confiável.
Dr. Rolando Gutiérrez, professor de filosofia na Universidade
A caminho do próximo milênio a igreja na América Latina
Metropolitana do México e ex-presidente da Fraternidade Te-
precisa encontrar novas maneiras de proclamar o evangelho
ológica Latino-americana. Trata-se de uma igreja missionária
de Jesus Cristo, distinguir seu chamado, concluir sua tarefa e
que colocou o alvo de 2.000 novas igrejas até o ano 2000. É
lutar por transformações radicais da sua realidade.
uma igreja onde as pessoas estão mobilizadas para orar!
Paulo queria que os cristãos de Roma orassem pelos pro-
blemas que ele esperava encontrar em Jerusalém, dentro e fora
da igreja. Coerente com sua teologia de evangelização, Paulo
104 - DESAFIOS DA IGREJA NA AMI~RICA LATINA

REFERÊNCIAS

1. Para uma reflexão missiológica sobre as novas condições na América Latina veja
o número especial de Missiology 20, n. 2 (abril de 1992), sobre o tema
"Colombo e o Novo Mundo: Evangelização ou Invasão." )
f

2. Um resumo excelente dos comentários recentes sobre Paulo pode ser encontra-
do em Bosch (1991b, p. 123-178).

A tradução bíblica usada neste capítulo é a Nova Versão Internacional


(Sociedade Bíblica Internacional, São Paulo, 1993),exceto quando
houver outra indicação.

Samuel Escobar é peruano e


esteve no Brasil pela primeira vez
em 1953. A partir daí começou um
longo e proveitoso relacionamento
com a igreja brasileira. Entre 1959
e 1964 andou por várias
universidades do país como
evangelista e discipulador, nos
CARO LEITOR: primeiros anos da Aliança Bíblica
Conheça e assine a revista Ultimato.
Universitária.
Peça também nosso catálogo com todos os títulos da Editora Ultimato Foi também missionário entre
e veja as novidades. estudantes universitários na
Escreva ou ligue para receber informações e, graciosamente, a Argentina, Espanha e Canadá. É
fundador e ex-presidente da
última edição da revista.
Fraternidade Teológica Latino-
Americana. Atualmente é
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Telefone: (031) 891-3149 - Fax: (031) 891-1557 11
Teológico Batista do Leste, na
E-mail: ultimato@homenet.com.br Filadélfia, EUA e em Lima, Peru.

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