Академический Документы
Профессиональный Документы
Культура Документы
www.lumenjuris.com.br
EditorEs
JoãodeAlmeida
JoãoLuizdaSilvaAlmeida
ConSelho eDitorial
ProDução eDitorial
livraria e editora lumen Juris ltda.
impresso no Brasil
Printed in Brazil
À minha esposa, Patrícia Diniz Gonçalves moreira
alves, pelo apoio incomensurável quando pensava
em fraquejar e pelo amor, carinho e compreensão
que me deram a tranquilidade suficiente para a con-
clusão deste trabalho.
aGraDeCimentoS
lista de abreviaturas
Prefácio
Capítulo 1 – introdução
Capítulo 2 – a autonomia Privada no Âmbito do Direito Civil Clássico
2.1. Conceito e características da autonomia privada
2.2. Distinção necessária entre autonomia privada e autonomia da vontade
2.3. a autonomia da vontade no estado liberal
Capítulo 3 – a tradicional Summa Divisio
Capítulo 4 – a autonomia Privada, a Summa Divisio e a Família no
Código Civil de 1916
4.1. Breves considerações sobre o movimento de codificação
4.2. o panorama do Código Civil de 1916, a autonomia privada e a summa
divisio
4.3. a família no Código Civil de 1916
Capítulo 5 – a autonomia Privada, a Summa Divisio e a Família após o
Código Civil de 1916
5.1. a autonomia privada e a summa divisio no estado Social de direito
5.2. a perda do monopólio do Código Civil de 1916
5.3. o perfil da família após o Código Civil de 1916
Capítulo 6 – a Constitucionalização do Direito Civil e a redefinição da
autonomia Privada e da Summa Divisio
6.1. o estado Democrático de Direito como consagrador dos direitos fun-
damentais do indivíduo
6.2. a aplicação dos direitos fundamentais nas relações privadas (horizon-
talização dos direitos fundamentais)
6.3. o fenômeno da constitucionalização do direito civil brasileiro
6.4. a redefinição da autonomia privada e da summa divisio
Capítulo 7 – o novo Perfil da Família após a Constituição Federal de 1988
Capítulo 8 – Direito de Família mínimo
8.1. a possibilidade de aplicação da autonomia privada no âmbito do direi-
to de família
8.2. o princípio da intervenção mínima no âmbito do direito de família
8.3. a consagração do direito de família mínimo na ordem jurídica
brasileira: o artigo 1.513 do Código Civil de 2002
Capítulo 9 – exemplos do Direito de Família mínimo
9.1. exemplos do exercício da autonomia privada no âmbito do direito de
família
9.1.1. liberdade de constituir família e liberdade de não casar
9.1.2. a união estável
9.1.3. a união homoafetiva
9.1.4. a lei n. 11.441/07
9.1.5. Paternidade socioafetiva
9.1.6. a mediação no direito de família
9.1.7. a mutabilidade do regime de bens no casamento
9.2. a atuação do ministério Público nas causas de família
9.3. Situações que não mais admitem a intervenção estatal no âmbito do
direito de família
9.3.1. a culpa na separação judicial
9.3.2. a limitação etária como causa de aplicação do regime de sepa-
ração obrigatória de bens
9.3.3. a irrenunciabilidade do direito a alimentos entre cônjuges
9.3.4. o dever de coabitação e o débito conjugal
Capítulo 10 – Conclusão
referências Bibliográficas
lista de abreviaturas
abr. – abril
acres. – acrescida
ago. – agosto
ampl. – ampliada
art. – artigo
atual. – atualizada
aum. – aumentada
Coord. – Coordenador
Coords. – Coordenadores
Dez. – Dezembro
ed. – edição
Fev. – Fevereiro
Jan. – Janeiro
Jul. – Julho
Julg. – Julgado
Jun. – Julho
min. – ministro
n. – número
nov. – novembro
org. – organizador
orgs. – organizadores
out. – outubro
P. – Página
Publ. – Publicado
rel. – relator
rev. – revista
Set. – Setembro
tir. – tiragem
trad. – tradução
v. – volume
v.g. – verba gratia
vs. – versus
Prefácio
[...] com esse poder que o ordenamento jurídico atribui ao sujeito, este se
torna apto a estabelecer ‘miniordenamentos jurídicos’ para situações especí-
ficas de sua vida, estabelecendo regras, reconhecidas e validadas pelo orde-
namento jurídico, que disciplinem situações concretas de seu dia-a-dia
(BorGeS, 2005, p. 47).
Por conta disso, caso haja discrepância entre autonomia privada (in casu,
exercitável por meio do negócio jurídico) e ordenamento jurídico, este pode-
rá ignorá-la ou rechaçá-la. ocorre a primeira hipótese quando, embora o
negócio jurídico exista no plano fático, o ordenamento jurídico não o reco-
nheça, não o tutelando e, em concomitância, não o repudiando. Borges (2005,
p. 49) cita como exemplo os contratos de cessão de útero ou de maternidade
de substituição ou de gestação de substituição (“barriga de aluguel”): não são
expressamente reconhecidos pelo ordenamento jurídico pátrio e, ao mesmo
tempo, não constituem ilícito civil e/ou penal. Já na segunda hipótese, o orde-
namento jurídico repudia o negócio jurídico, caracterizando-o como ato ilíci-
to. Como exemplo, tem-se a disposição de coisa alheia como própria, tipifica-
1 Conforme será visto nos Capítulos 3 e 7, a incidência de normas cogentes é exceção no Direito
Civil, embora tal ideia mereça certos temperamentos no Direito de Família.
da no artigo 171, § 2º, inciso i, do Código Penal, como crime de estelionato,
punível com reclusão, de um a cinco anos, e multa.
Por outro lado, em havendo irrestrita conformidade entre a autonomia
privada e o ordenamento jurídico, o negócio jurídico será não só aceito por
este, mas também por ele tutelado, para que os efeitos jurídicos pretendidos
pelas partes sejam regularmente produzidos.
nessa linha de intelecção, verifica-se que, assim como qualquer outro ins-
tituto jurídico, a autonomia privada não é absoluta, devendo prestar obediên-
cia a determinados limites impostos pelo ordenamento jurídico, conforme já
mencionado alhures. tais limites são tradicionalmente chamados pela doutri-
na civilista de fronteiras da autonomia privada, sendo conhecidos como a lei
(entendida em sentido amplo, o que inclui a Constituição Federal, englobando
suas regras e seus princípios), a ordem pública, a moral e os bons costumes.
em face do objetivo e dos limites epistemológicos desta pesquisa, não será
analisada de per si cada uma das fronteiras da autonomia privada. ao final deste
tópico, deixa-se apenas registrado de antemão que os direitos fundamentais
encontrados na Constituição Federal aplicáveis às relações privadas são conside-
rados fronteiras à autonomia privada. tal noção mostra-se fundamental para o
desenrolar deste trabalho e será melhor apreciada durante o seu curso.
Por fim, mas não menos importante, faz-se imperioso registrar que a
autonomia privada, no fundo, trata-se da concretização do direito de liberdade
no âmbito privado, “[...] baseia-se, portanto, ou tem como pressuposto, a liber-
dade individual [...]” (amaral, 2006, p. 349), possuindo, por consequência,
ligação umbilical com os direitos da personalidade do indivíduo, e, como tal, é
variável de acordo com o contexto histórico, com cada modelo assumido pelo
estado (estado liberal, estado Social, estado Democrático de Direito):
essa ideia deve ficar absolutamente sedimentada, pois também será funda-
mental para o desenvolvimento deste trabalho, a começar pelo próximo tópico.
[...] que irá ter grande papel no processo de evolução política, econômica e
jurídica da sociedade européia. Política porque “desejosa de paz e estabilida-
de, necessárias ao bom andamento dos negócios, favoreceu a centralização
do governo e o fortalecimento do poder real”. econômica, por ser a base da
criação e desenvolvimento do capitalismo. e jurídica porque com ela se con-
sagra o individualismo como princípio fundamental da ordem jurídica
moderna (amaral, 2006, p. 117).
Quanto à igualdade, visualiza-se que ela acaba sendo exercida sob uma
conotação preponderantemente formal (igualdade perante a lei), eis que
notória a superioridade da burguesia em relação a todas as outras classes
sociais. É justamente essa igualdade formal – ao lado da autonomia da vonta-
de – que vai justificar, posteriormente, a adoção do princípio do pacta sunt
servanda no âmbito do Direito Contratual, conforme será apreciado no curso
desta pesquisa.
É nesse cenário que precisa ser estudada a liberdade, especificamente no
seu viés negocial, que nada mais é do que a própria autonomia da vontade.
Sustentava-se, no período do estado liberal, que, para a realização do negócio
jurídico, afigurava-se suficiente a manifestação da vontade dos contratantes,
sendo irrelevante o seu cotejo com o ordenamento jurídico vigente, desde que
lícito o respectivo objeto, daí por que, houve uma supervalorização do insti-
tuto da autonomia da vontade, o que muitas vezes desaguou em um individua-
lismo exarcebado, um egocentrismo desmedido.
o indivíduo, na sua órbita privada, gozava de ampla e irrestrita liberda-
de, podendo pactuar do modo que melhor lhe aprouvesse.
o estado liberal, por sua vez, deveria tão-somente exercer o seu reduzi-
do papel de não intervir no mercado e respeitar, como profissão de fé, o
encontro de vontades dos sujeitos contratantes. essa concepção veio a carac-
terizar o chamado princípio do consensualismo ou voluntarismo ou da subje-
tividade jurídica, segundo o qual “[...] o indivíduo seria a causa e a razão final
da esfera jurídica privada” (almeiDa, 2008, p. 166).
a vontade, portanto, constituía um verdadeiro dogma, não encontrando
praticamente nenhum limite à sua aceitação como fonte única de formação
das regras jurídicas, melhor dizendo, dos negócios jurídicos. Com isso, “[...] no
âmbito jurídico, o indivíduo aparece como fonte e causa final de todo o direi-
to, sendo as normas jurídicas obras dos indivíduos e não da sociedade [...]”
(Faria, 2007, p. 56).
a autonomia da vontade, amparada na igualdade meramente formal
(igualdade perante a lei), reitere-se, encontrava terreno fértil para sua aplica-
ção no âmbito contratual, o que implicava o reconhecimento do sagrado e
imutável princípio pacta sunta servanda (o contrato é lei entre as partes).
assim, a avença deveria sempre (sem exceções) ser cumprida. mesmo se o
contrato fosse injusto, prejudicial e excessivamente oneroso a uma das partes,
ele deveria ser respeitado, pois, afinal de contas, assim o foi desde o início,
quando os contratantes, em tese iguais, tiveram a pretensa liberdade de não
pactuá-lo ou ainda de pactuá-lo de outra forma.
torna-se clássica, então, a ideia da força obrigatória dos contratos, que
“[...] significa que a vontade particular, autônoma, estabelece uma lei entre as
partes contratantes que se vinculam ao cumprimento das obrigações estabele-
cidas por essa vontade” (amaral, 2006, p. 358). em razão disso, não era
sequer imaginável se falar, a essa época, em teorias como a da imprevisão ou
da onerosidade excessiva, engendradas somente na era da modernidade do
Direito Civil. Clássico também era o conceito de efeito relativo dos contratos,
segundo o qual “[...] a eficácia do contrato, isto é, as obrigações e as regras esta-
belecidas para o seu cumprimento, produzem efeitos apenas entre as respecti-
vas partes, não afetando terceiros” (amaral, 2006, p. 358).
Sobre o tema, rodrigues (2007, p. 5) assevera:
Já foi afirmado acima que a família constitui a célula básica da sociedade. ela
representa o alicerce de toda a organização social, sendo compreensível, por-
tanto, que o estado a queira preservar e fortalecer. Daí a atitude do legisla-
dor constitucional, proclamando que a família vive sob a proteção especial
do estado. o interesse do estado pela família faz com que o ramo do direito
que disciplina as relações jurídicas que se constituem dentro dela se situe
mais perto do direito público do que do direito privado. Dentro do Direito
de Família o interesse do estado é maior do que o individual. Por isso, as
normas de Direito de Família são, quase todas, de ordem pública, insuscetí-
veis, portanto, de serem derrogadas pela convenção entre particulares [...].
a recepção, por seu turno, tem lugar quando um país escolhe um orde-
namento alienígena para ter vigência como se seu fosse, tal como se deu na
Germânia com o Direito romano e, no caso do Brasil, com as ordenações
afonsinas, manuelinas e Filipinas.
De outro lado, como já afirmado, a codificação é fenômeno típico do
período iluminista compreendido entre o final do século Xviii e praticamen-
te todo o século XiX.
a burguesia, classe social ascendente, que acabara de conquistar o poder
político, procurou construir um sistema jurídico que lhe favorecesse. Com
essa finalidade, fazia-se necessário transformar o cenário jurídico pré-codifi-
cação da idade média, marcado pela existência concomitante de diversos
ordenamentos jurídicos em um mesmo território, haja vista que, em cada
feudo, prevalecia uma regra peculiar (geralmente alicerçada no Direito
romano), sem falar na influência do Direito Canônico em todo um país, cená-
rio este não totalmente superado na idade moderna.
Para enterrar em definitivo este cenário caótico de grande insegurança e
instabilidade das relações sociais e do próprio Direito, a burguesia encontra a
sua tábua de salvação no código, instrumento jurídico que, pelas suas caracte-
rísticas típicas (rigidez, completude, coerência e clareza), era o único capaz de
unificar e centralizar o ordenamento jurídico vigente e, por consequência,
promover a tão sonhada segurança jurídica. as codificações privadas, portan-
to, “[...] disciplinavam, [...] com pretensões de exaustividade, as relações tra-
vadas entre os indivíduos na sociedade” (Sarmento, 2006, p. 14).
Dessa forma, por meio da codificação, o estado (liberal), centralizado
muitas vezes na figura soberana do Príncipe, responsável por supostamente
decodificar todos os anseios sociais, voltava a ser a única fonte de produção do
Direito (monismo jurídico), fato este que prepara o terreno para implementa-
ção de toda a filosofia apregoada pelo Positivismo Jurídico.
1 Curiosamente, a teoria da codificação nunca vingou no país de origem de Bentham, já que, até os
dias de hoje, prevalece na inglaterra o sistema jurídico da common law.
estado era visto como adversário da liberdade, e por isso cumpria limitá-lo,
em prol da garantia dos direitos do homem. Sob este prisma, foi de enorme
utilidade a técnica da separação de poderes, divulgada por montesquieu, que
tinha como finalidade conter o poder estatal para assegurar o governo mode-
rado [...]. (Sarmento, 2006, p. 8).
2 tornou-se histórico o embate travado na alemanha, no século XiX, entre Savigny e thibaut
sobre a conveniência da elaboração de um Código Civil para o país. enquanto este defendia de
forma apaixonada a criação do Código, aquele era ardorosamente contrário a tal ideia, pregando
ser mais prudente que o Direito fosse encarado sob uma perspectiva muito mais histórica, de aná-
lise dos fatos sociais. Destarte, pode-se afirmar que, de certa forma, thibaut saiu vencedor neste
embate, pois, em 1896, foi promulgado o Código Civil alemão, conhecido como BGB,
Bürgerliches Gesetsbuch.
alemão (B.G.B – Bürgerliches Gesetsbuch, de 1896) e até do Código Civil da
itália (1942) e do Código Civil de Portugal (1966).
o movimento de codificação do século XiX repercutiu, no Brasil, através
da elaboração do Código Civil de 1916, como será evidenciado no próximo
tópico.
Seu defeito, se tem algum, é o de ter sido elaborado ao fim do século XiX e
representar a cristalização da cultura de uma época, porventura desadaptada
à evolução que se seguiu [...]. o Código Civil brasileiro é um Código elabo-
rado no fim do século passado e cristaliza uma cultura que o tempo, em gran-
de parte, tornou ultrapassada [...].
Pessoa, nessa ordem de idéias, é aquele que compra, que vende, que testa;
enfim, aquele que reúne condições de desenvolver atividades adequadas ao
sentido marcadamente proprietarista do Código Civil Brasileiro. Ser pessoa
é adequar-se, perfeitamente, aos parâmetros estabelecidos pelo ordenamen-
to; é traduzir, de modo concreto, a imagem conceitual ditada pelas normas
[...].
Seguindo essa ordem de idéias, as relações jurídicas disciplinadas pelas nor-
mas contidas na codificação civil estabelecem-se não propriamente entre
seres humanos, posto que seus interesses pessoais são suplantados pelos
patrimônios, cuja valoração é marcadamente superior. na concepção clássi-
ca do Direito Privado, a pessoa humana é valorizada pelo que tem e não por
sua dignidade como tal (meirelleS, 1998, p. 91-95).
mesmo sendo a vida aos pares um fato natural, em que os indivíduos se unem
por uma química biológica, a família é um agrupamento cultural. Preexiste ao
estado e está acima do direito. a família é uma construção social organizada
através de regras culturalmente elaboradas que conformam modelos de com-
portamento. Dispõe de estruturação psíquica na qual cada um ocupa um
lugar, possui uma função – lugar do pai, lugar da mãe, lugar dos filhos –, sem,
entretanto, estarem necessariamente ligados biologicamente.
[...] Seria o direito de família o mais pessoal dos direitos civis. as normas de
direito das coisas e de direitos das obrigações não seriam subsidiárias do
direito de família.
entretanto, os códigos civis, na maioria dos povos ocidentais, desmentem
essa recorrente afirmação. editados sob inspiração do liberalismo individua-
lista, alçaram a propriedade e os interesses patrimoniais a pressuposto
nuclear de todos os direitos privados, inclusive o direito de família.
Desse modo, a família não era encarada como uma célula da sociedade,
mas sim como uma célula do estado (DiaS, 2006, p. 27). realmente, ela era
um instituto não das pessoas ou da sociedade, mas sim do estado, não poden-
do ser criada, desenvolvida ou mesmo extinta pela simples vontade dos indi-
víduos, necessitando, para tanto, da chancela estatal, exercida por meio do
formal instituto do matrimônio. o estado, assim intervindo na regulação do
Direito de Família, é alcunhado por Pereira (2006, p. 157-158) como estado-
protetor-repressor, no sentido negativo da expressão, pois muitas dessas inter-
venções eram absolutamente indesejadas, a exemplo da imposição da culpa na
separação judicial (artigos 317, 320, 324 e 326), da limitação etária como causa
de aplicação do regime de separação obrigatória de bens (artigo 258, parágra-
fo único, inciso ii), do dever matrimonial de coabitação (artigo 231, inciso ii)
etc., tema que voltará a ser debatido com mais vagar no Capítulo 9.
Portanto, ao contrário do que se via na atividade negocial, no Direito de
Família havia uma constante edição de normas cogentes, fruto do apontado
intervencionismo estatal, o que praticamente afastava a possibilidade de apli-
cação da autonomia privada (autonomia da vontade) nesta seara. Praticamente,
porque o Código permitia em algumas poucas relações familiares o exercício da
autonomia da vontade, relações estas, em sua grande maioria e não por coinci-
dência, com cunho justamente patrimonial, a exemplo da liberdade de estipu-
lação do regime matrimonial de bens estampada no artigo 256, caput.
em razão desse fenômeno, até então incomum no Direito Civil como um
todo, pois à época era absolutamente estanque a summa divisio, conforme
apreciado no capítulo anterior, parcela da doutrina, até hoje, possui sérias difi-
culdades em classificar o Direito de Família como integrante do Direito
Privado ou do Direito Público. nessa esteira, rodrigues (2000, p. 11), por
exemplo, entende que ele faz parte do Direito Público, em face das razões já
transcritas no Capítulo 3 e aqui novamente reprisadas:
Já foi afirmado acima que a família constitui a célula básica da sociedade. ela
representa o alicerce de toda a organização social, sendo compreensível, por-
tanto, que o estado a queira preservar e fortalecer. Daí a atitude do legisla-
dor constitucional, proclamando que a família vive sob a proteção especial
do estado. o interesse do estado pela família faz com que o ramo do direito
que disciplina as relações jurídicas que se constituem dentro dela se situe
mais perto do direito público do que do direito privado. Dentro do Direito
de Família o interesse do estado é maior do que o individual. Por isso, as
normas de Direito de Família são, quase todas, de ordem pública, insuscetí-
veis, portanto, de serem derrogadas pela convenção entre particulares [...].
Família é vocábulo que, em roma, além de outros sentidos, significa: 1º, con-
junto de pessoas colocadas sob o poder de um chefe – o paterfamilias (obs.
Pater, nesta expressão, não quer dizer pai, mas chefe, efetivo ou em poten-
cial. um impúbere e um celibatário podem ser patres) e 2º, o patrimônio do
paterfamilias.
ao contrário da família moderna, baseada no casamento do chefe que, assim,
funda a sua família, a família romana é de base patriarcal: tudo gira em torno
de um paterfamilias ao qual, sucessivamente, se vão subordinando os des-
cendentes – “alieni júris” –, até a morte do chefe.
o paterfamilias tem o dominium in domo, a potestas. É o dominus, o senhor,
a quem está confiada a domus, ou grupo doméstico.
a domus tem tríplice aspecto: é grupo religioso (pater é o sacerdote), econô-
mico (pater é o dirigente) e jurídico-político (pater é o magistrado).
em nossos dias, em sentido estrito, família é a unidade formada pelo casal e
filhos. Cada filho que se casa constitui nova família, da qual se torna chefe,
de tal modo que os netos não estão subordinados ao avô, mas ao pai.
em roma, ao contrário, família é o complexo de pessoas colocadas sob a
pátria potestas de um chefe – o paterfamilias. a pátria potestas não se extin-
gue pelo casamento dos filhos que, tenham a idade que tiverem, sejam casa-
dos ou não, continuam a pertencer à família do chefe. Daí, o grande núme-
ro de membros da família romana.
3 Com o advento do Código Civil de 2002, o pátrio poder passou a ser chamado de poder familiar.
Foi mantido neste trabalho, porém, o termo antigo em virtude de estar sendo feita referência jus-
tamente ao Código que o consagrou.
a esposa, por outro lado, ocupava papel meramente secundário, já que
quase só tinha deveres, como se via nos artigos 240 a 255. a chefia da socie-
dade conjugal, por exemplo, só era atribuída a ela em casos excepcionais, con-
substanciados no artigo 251. além disso, determinados atos da vida civil só
poderiam ser por ela praticados caso o marido assim consentisse, nos termos
do artigo 242.
nunca é demais ressaltar que, até o estatuto da mulher Casada de 1962
(lei n. 4.121/62), a esposa era considerada relativamente incapaz para os atos
da vida civil. ademais, somente com o citado estatuto é que ela se tornou
colaboradora do marido na chefia da sociedade conjugal, bem como adquiriu
a titularidade do pátrio poder, apesar de continuar também como colaborado-
ra no exercício deste direito-dever.
a desigualdade e o machismo ficavam ainda patentes quando se analisa-
va o artigo 219, inciso iv, que permitia a anulação do casamento por deflora-
mento da mulher, ignorado pelo marido, hipótese esta tratada como erro
essencial sobre a pessoa do outro cônjuge, mas que não era (e nem poderia ser)
aplicada ao varão. além disso, entendia-se que o debitum conjugale só pode-
ria ser exigido pelo homem, nunca pela esposa.
Sendo assim, pouco importava se os membros da família estavam felizes
ou não com aquela situação. a dignidade deles era um dado secundário. o
que, de fato, se tornava relevante era a manutenção da paz doméstica, o equi-
líbrio, a segurança, a coesão formal da família, mesmo em detrimento da rea-
lização pessoal de cada um dos seus integrantes, principalmente a mulher.
a família era concebida como um instituto em prol da própria família,
um fim em si mesma, porque o legislador entendia que aquele modelo fecha-
do era o único correto; logo, assim teria que ser, a qualquer preço, indepen-
dentemente do sacrifício pessoal de seus membros. nessa linha de intelecção,
a subordinação e o sofrimento da mulher seriam recompensados com um
valor de maior importância, a manutenção do vínculo familiar.
outro balizador da família do Código Civil de 1916 era a relação hierár-
quica existente entre pais e filhos, mesmo aqueles chamados de “legítimos”: o
pai ocupava o posto de senhor absoluto da razão, enquanto que o filho era seu
mero obediente.
o processo educacional era extremamente rígido, autoritário e unilate-
ral. o filho não tinha voz nem vez, restando-lhe somente o privilégio de calar-
se e obedecer, pois o patriarca sabia o que era bom para sua prole (ou melhor:
para a família). não era aberto espaço para o diálogo, para a troca de ideias e
de conhecimentos, algo tão salutar em qualquer método educacional.
o pai do início do século XX tinha como seu principal papel nutrir finan-
ceiramente seus filhos. isso bastaria para que fosse proporcionada a felicidade
da sua prole. aí estava exaurido o seu dever. logo, a paternidade não era ins-
pirada na proteção da pessoa dos filhos, mas no patrimônio familiar.
Por outro lado, o pátrio poder era exercido pelo seu titular como se fosse
um direito deste para com seus filhos, quando, na verdade, os poderes deve-
riam ser conferidos no intuito de facilitar a realização do dever da paternida-
de responsável (guarda, educação e sustento da prole).
acerca de toda a hierarquia encontrada na família estampada pelo
Código Civil de 1916, vale a pena registrar o teor dos comentários de meirelles
(1998, p. 105):
não há que se olvidar que o estado liberal traçou o cenário perfeito para
a implementação e o desenvolvimento acelerado dos interesses econômicos da
burguesia. De fato, não interferindo no espaço particular do indivíduo, o
estado permitiu que essa classe social colocasse em prática o seu projeto de
liberdade, notadamente no que se refere ao livre comércio, responsável, entre
outros efeitos, por uma profunda dinamização dos meios de produção, incre-
mento da tecnologia, ampliação do volume de mão-de-obra e consequente-
mente do mercado consumidor, o que veio a desaguar na chamada revolução
industrial, tida como marco de consolidação do capitalismo hodierno.
nesse sentido, não obstante os inquestionáveis progressos trazidos pela
industrialização, certo é que ela aumentou sensivelmente a complexidade das
relações sociais, criando, de um lado, uma destacada classe de industriais, que
cada vez mais auferia lucros exorbitantes, e, de outro, a classe de proletários,
composta pelas mais variadas pessoas, incluindo crianças e idosos, e que esta-
va submetida a péssimas condições de trabalho, jornada diária desumana e bai-
xíssimos salários. Consoante Bonavides (2009, p. 188), “o velho liberalismo,
na estreiteza de sua formulação habitual, não pôde resolver o problema essen-
cial de ordem econômica das vastas camadas proletárias da sociedade, e por
isso entrou irremediavelmente em crise”. Presenciava-se assim um acentuado
e injusto quadro de exploração do homem pelo próprio homem, o que desper-
tou reações das mais diversas por parte do proletariado, algumas inclusive vio-
lentas, instaurando-se com isso uma verdadeira luta de classes.
entre tais reações, ganharam destaque na história o marxismo, o socialis-
mo utópico e a doutrina social da igreja, que tinham em comum a crítica ao
capitalismo selvagem e ao individualismo exacerbado do liberalismo econômi-
co e a exigência de que o estado deixasse a sua postura negativa e passasse a
efetivamente agir em proteção aos menos favorecidos. Com efeito, dada a sua
postura de neutralidade e abstenção nas questões sociais, o estado liberal real-
mente não seria capaz de solucionar essa grave questão, daí por que seu mode-
lo passou a entrar em crise, o que ameaçava o próprio sistema capitalista. e
essa ameaça não se restringia ao plano teórico, reverberando-se no mundo dos
fatos, pois, como lembra Sarmento (2006, p. 17),
algumas décadas mais tarde, sob a influência das idéias marxistas, eclode a
revolução russa em 1917, e, cerca de 40 anos depois, um terço da humani-
dade estava vivendo em regimes diretamente derivados do modelo soviéti-
co, de apropriação coletiva dos meios de produção.
nesse prisma, fica clara a ideia de vinculação direta e imediata dos parti-
culares aos direitos fundamentais quando se tem em mente que, de um lado,
conforme abordado no tópico anterior, os direitos fundamentais, em essência,
são princípios, e que, de outro, os princípios, em verdade, são normas jurídi-
cas, seguem um comando normativo de caráter deontológico, enfim, implicam
um código binário – ou se aplicam ou não se aplicam (CruZ, 2007, p. 276), o
que leva à silogística conclusão de que os direitos fundamentais, enquanto
princípios (na ampla maioria dos casos, constitucionais), devem naturalmente
incidir nas relações jurídicas travadas entre particulares, independente de pre-
visão infraconstitucional.
idêntico posicionamento possui rosenvald (2005, p. 147), ao postular que:
É claro que todo esse processo acaba trazendo como consequência uma
mudança de postura hermenêutica, no sentido de que o Direito Civil deve
estar mais atento aos valores personalísticos insculpidos na Constituição
Federal do que aos valores excessivamente patrimonialistas e egoísticos con-
sagrados pelo Código Civil. É com esse raciocínio que deve ser entendida a
superação da chamada subversão hermenêutica apontada por tepedino
(2001), pois o Código finalmente deixava de ser a “Constituição do Direito
Privado” (tePeDino, 2001, p. 2). nesse contexto, tem-se que essa superação
cumpre, na verdade, um papel muito mais simbólico, principalmente em se
tratando de “[...] um país em que, historicamente, o desrespeito à norma cons-
titucional se fez costumeiro [...]” (FariaS; roSenvalD, 2007a, p. 21).
outra consequência da constitucionalização do Direito Civil relaciona-se
com o fato de que, a partir desse fenômeno, a própria Constituição Federal
passou a ter papel (re)unificador ou ressistematizador do Direito Privado –
embora lorenzetti (1998) prefira falar em descentralização do Direito Civil,
não havendo um eixo centralizador desse ramo jurídico. a matéria civilista,
antes fragmentada, agora está centrada na Carta magna. É ela o instrumento
propulsionador, o combustível para todo o Direito Civil. Dela surgirão os ins-
titutos não só do Direito Público, mas do Direito Privado também.
enfim, se antes o papel unificador do sistema jurídico era pretensamen-
te delegado ao Código Civil, modernamente há de ser entregue ao texto
Constitucional, para que possam ser pacificados eventuais conflitos existentes
nos diversos ramos da Ciência Jurídica, traçando regras básicas a serem segui-
das pela legislação infraconstitucional – seja de Direito Público, seja de Direito
Privado (FariaS, 2001).
o Código Civil, mostrando-se frágil, agonizou ao perder o seu significa-
do de repositório de todo o Direito Privado e de centro da experiência jurídi-
ca de um povo. esvaziou-se no seu conteúdo e perdeu o seu sentido. Por con-
sequência, houve deslocamento de grande parcela do ordenamento antigo do
Código para a Constituição Federal.
Complementando o cenário da constitucionalização do Direito Civil,
deve-se ressaltar que esse fenômeno também inaugura a era dos estatutos jurí-
dicos, considerados institutos autônomos, com regras substanciais, proces-
suais, penais e até administrativas próprias. São leis esparsas de mister impor-
tância, como o estatuto da Criança e do adolescente (lei n. 8.069/90), o
Código de Proteção e Defesa do Consumidor (lei n. 8.078/90), e o estatuto da
Cidade (lei n. 10.257/01).
os estatutos encontram seu fundamento nas cláusulas gerais, as quais
disciplinam de forma genérica (não mais casuística) as situações fáticas. a pre-
visão legislativa, dessa forma, ganha mais longevidade. São exemplos das cláu-
sulas gerais a boa-fé objetiva, a função social do contrato e a função social da
propriedade.
a linguagem dos estatutos, por isso, sofre relevante modificação: deixa
de ser pontual, casuística, voltada para um sujeito específico atingido pela
hipótese fática, para estar direcionada ao cidadão comum, atendendo à exi-
gência de acesso ao Direito Civil. É possível, desse modo, o acesso aos textos
legislativos por parte do homem médio, não apenas pelo jurista técnico. São
utilizados, inclusive, termos típicos de outras áreas do conhecimento humano,
como a informática, a medicina e a economia.
ademais, com o escopo de alcançar a personalização do Direito Civil, os
estatutos traçam objetivos, metas que deverão ser cumpridas. o Código de
Defesa do Consumidor, por exemplo, estabelece a política nacional de relações
de consumo no seu artigo 4º. o estatuto da Criança e do adolescente, por sua
vez, delineia a política de proteção integral da criança e do adolescente. uma
vez cumpridas tais metas, deve-se conceder benefícios, vantagens ao indiví-
duo, como a redução de impostos, de taxas, tarifas públicas, a concessão de
financiamentos etc., caracterizando assim a função promocional do Direito
(tePeDino, 2001, p. 9).
Feitas essas breves considerações acerca da influência da Constituição
Federal sobre o Direito Civil, resta indubitável a interface entre o Direito
Constitucional e este ramo jurídico. Contudo, há de se indagar: será que essa
interface implica severa restrição ou até mesmo aniquilamento da autonomia
privada e da própria summa divisio? em outros termos, há de se falar em crise
dos institutos civilistas tradicionais, tais como a propriedade, o contrato e a
família, e do próprio Direito Civil? a resposta a essas indagações será formu-
lada no tópico seguinte.
[...] a própria distinção entre direito privado e público está em crise. esta
distinção, que já os romanos tinham dificuldade em definir, se substancia
ora na natureza pública do sujeito titular dos interesses, ora na natureza
pública e privada dos interesses. Se, porém, em uma sociedade onde é preci-
sa a distinção entre liberdade do particular e autoridade do estado, é possí-
vel distinguir a esfera do interesses dos particulares daquela do interesse
público, em uma sociedade como a atual, torna-se difícil individuar um inte-
resse particular que seja completamente autônomo, independente, isolado
do interesse dito público. as dificuldades de traçar linhas de fronteira entre
direito público e privado aumentam, também, por causa da cada vez mais
incisiva presença que assume a elaboração dos interesses coletivos como
categoria intermédia (tome-se, como exemplo, o interesse sindical ou das
comunidades).
[...] antes de qualquer outro sentido e alcance que se lhe possa atribuir, sig-
nifica muito simplesmente que o contrato não deve ser concebido como uma
relação jurídica que só interessa às partes contratantes, impermeável às con-
dicionantes sociais que o cercam e que são por ele próprio afetadas.
aponte-se que a função social do contrato encontra-se atualmente con-
substanciada no Código Civil no artigo 421, que apregoa: “a liberdade de con-
tratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato” (Bra-
Sil, 2002). Comentando esse dispositivo legal, amaral (2006, p. 366) dispõe que
a liberdade de contratar “[...] só pode exercer-se em consonância com os fins
sociais do contrato, implicando os valores primordiais da boa-fé e da probidade,
e levando em conta os efeitos que se possam produzir em face de terceiros”.
não há dúvidas de que o instituto da família também sofreu intenso pro-
cesso de funcionalização, mas a apreciação deste fenômeno, em particular,
será feita no próximo capítulo.
Certo é que a autonomia privada restou funcionalizada aos direitos fun-
damentais previstos na Carta magna Federal e, dessa forma, acabou revitaliza-
da. nesse sentido, entende-se que não houve eliminação ou sequer enfraque-
cimento da autonomia privada, muito pelo contrário, a consagração dos alu-
didos direitos fundamentais nas relações privadas, em um processo de eman-
cipação do indivíduo – peculiar do estado Democrático de Direito (vide item
6.1) –, permitiu que houvesse uma maior igualdade de forças entre os agentes
atuantes nesse âmbito (igualdade material), criando um cenário que possibili-
tou um efetivo exercício desse instituto. tome-se como exemplo a proteção
contratual hodiernamente dispensada, em diversas facetas, ao hipossuficiente
da relação jurídica (vedação das cláusulas abusivas, teoria da onerosidade
excessiva etc): no fundo, o que se pretende com essa proteção é a equiparação
substancial entre os agentes para que verdadeiramente eles tenham a liberda-
de de contratar como bem quiserem.
Corroborando integralmente com esse posicionamento, pondera Braga
(2008, p. 140):
1 Para quem admite que há uma crise do contrato, tal crise, na verdade, consiste em uma reconstru-
ção da teoria contratual clássica, em um novo paradigma, superando-se o tratamento conferido a
este instituto no estado liberal. É o que apregoa, por exemplo, negreiros (2006) e marques (2007).
autonomia da vontade, a qual, como já reiteradamente visto ao longo deste
trabalho, incidia apenas e tão somente nas relações privadas patrimoniais. em
razão disso, chega-se à inarredável conclusão de que a autonomia privada, em
sua nova faceta, passa a ter aplicação em toda e qualquer espécie de relação
jurídica privada, seja de caráter patrimonial, seja de caráter extrapatrimonial
ou existencial.
em verdade, a essência da autonomia privada nada tem a ver com o cará-
ter patrimonial da relação sobre a qual ela incide. o que importa para a sua
caracterização é perquirir se, em dada relação jurídica, o ordenamento jurídi-
co permite que o indivíduo seja legislador de seus próprios interesses, inde-
pendente se estes são de ordem patrimonial ou existencial.
não obstante ser esta a posição majoritariamente defendida pela doutri-
na civilista, conforme adiante será demonstrado, impende registrar, por leal-
dade acadêmica, que há respeitadas opiniões em contrário, a exemplo de
amaral (2006, p. 347), que defende a aplicação da autonomia privada somen-
te ou ao menos de forma prevalecente nas relações jurídicas patrimoniais:
Contudo, não parece ser essa a posição mais acertada. a rigor, a associa-
ção da autonomia privada exclusivamente ou majoritariamente às relações
patrimoniais, como já afirmado alhures, parece estar ainda fincada na concep-
ção do instituto engendrada no período do estado liberal. Superado esse con-
texto histórico e em face do paradigma do estado Democrático de Direito, res-
ponsável pela redefinição da autonomia privada, natural que essa concepção
se encontre superada, abrindo-se a possibilidade de incidência deste instituto
também em relações jurídicas existenciais.
e a doutrina civilista majoritária inclina-se nesse sentido. Perlingieri
(2002, p. 18-19), por exemplo, sustenta que é possível a aplicação da autono-
mia privada em situações jurídicas patrimoniais e existenciais, embora em
cada uma delas o fundamento de incidência seja diverso, naquelas, a iniciati-
va econômica privada, nestas, a proteção à pessoa humana:
não é possível afirmar, depois do quanto foi acima especificado, que a auto-
nomia negocial não tem nenhuma relevância constitucional, nem, de outro
lado, que se pode esgotar na autonomia contratual e, portanto, tornar-se
relevante somente para dar atuação às vicissitudes de relações jurídicas
patrimoniais. a tentativa de individuar o fundamento da autonomia na
garantia constitucional da iniciativa econômica privada [...] é parcial. a
negociação que tem por objeto situações subjetivas [...] não-patrimoniais –
de natureza pessoal e existencial – deve ser colocada em relação à cláusula
geral de tutela da pessoa humana [...]. os atos de autonomia têm, portanto,
fundamentos diversificados; porém encontram um denominador comum na
necessidade de serem dirigidos à realização de interesses e de funções que
merecem tutela e que são socialmente úteis.
Por isso, não se deve pensar que o direito privado se resume à atividade eco-
nômica do particular. Conforme lodovico Barassi, não é correto limitar o
direito privado às relações econômicas ou patrimoniais, pois existem rela-
ções não econômicas no campo do direito privado, como, por exemplo, o
direito de família, que o autor italiano situa nitidamente no campo das rela-
ções privadas, embora alguns queiram considerá-lo direito público.
Como visto no item 4.3 deste trabalho, a família desenhada pelo Código
Civil de 1916 era caracterizada como uma entidade patrimonializada e hierar-
quizada. É certo que, conforme analisado no tópico 5.3, as mudanças operadas
no corpo social ao longo do século XX provocaram certa mitigação dessas
características, mas, mesmo assim, a essência do perfil deste modelo de famí-
lia continuou a prevalecer.
no entanto, tal perfil veio a ser completamente superado com o advento
da Constituição Federal de 1988, responsável pela consagração de direitos fun-
damentais, os quais, conforme visto no capítulo anterior, incidiram direta e
imediatamente nas relações jurídicas privadas, inclusive as de Direito de
Família.
nesse sentido, é de bom alvitre destacar que o objetivo deste capítulo é
apreciar de que forma a incidência dos direitos fundamentais no âmbito fami-
liar alterou por inteiro o modelo jurídico da família brasileira.
todavia, advirta-se, desde já, que não se pretende analisar a incidência
de todos os direitos fundamentais no campo Direito de Família. É certo que a
doutrina civilista aponta a existência de inúmeros outros tantos direitos dessa
natureza, a exemplo dos princípios da paternidade/maternidade responsável e
do planejamento familiar, da consagração do poder familiar, da monogamia
(Carvalho, 2009, p. 13-15), da convivência familiar (lÔBo, 2008, p. 52),
da proteção aos idosos, da proibição do retrocesso social (DiaS, 2006, p. 57-
59) etc., mas, para os fins desta pesquisa, é suficiente a discussão daqueles que
efetivamente provocaram a ruptura do modelo de família idealizado pelo
legislador de 1916. ademais, advirta-se também que o corte epistemológico
deste trabalho e o próprio espaço para o seu desenvolvimento não permitem
que a apreciação dos direitos fundamentais em comento se alongue demasia-
damente. Basta, pois, que seja delineado um conceito sintético de cada direito
fundamental e seja apontada a maneira com que ele altera o perfil da família
da legislação codificada anterior. Por fim, vale a pena esclarecer que, seguin-
do a linha dos ensinamentos de Dworkin (1999), não se dará aqui preferência
a esse ou aquele princípio constitucional selecionado, pois se entende que não
há qualquer hierarquia axiológica entre os princípios constitucionais.
Feitos esses esclarecimentos introdutórios, convém asseverar que se pre-
tende neste capítulo, de forma sucinta, demonstrar que, de um lado, os prin-
cípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da solidariedade fami-
liar ceifaram a veia patrimonializada da família do Código Civil de 1916, e, de
outro, os princípios constitucionais da igualdade (em suas diversas facetas), da
pluralidade das formas de família, da liberdade da dissolução do casamento e
do melhor interesse do menor foram responsáveis pelo rompimento da estru-
tura hierarquizada desta mesma família.
Quanto à dignidade da pessoa humana, consagrada no artigo 1º, inciso
iii, da Constituição Federal como um dos fundamentos da república
Federativa do Brasil, pode-se afirmar que ela é a fundamentalidade material
dos direitos fundamentais (Cunha JÚnior, 2008, p. 518), no sentido de que
tais direitos fundamentais devem buscar essencialmente satisfazer as necessi-
dades da pessoa humana. Desse modo, tem-se que os direitos fundamentais são
instrumentos de realização da personalidade humana, não possuindo, portan-
to, um fim em si mesmo. o foco de atuação do estado Democrático de Direito
deve ser sempre, pois, o ser humano.
Barcellos (2008, p. 128) corrobora integralmente com esse conceito:
É claro que isso não significa dizer que o princípio da dignidade da pes-
soa humana é absoluto, prepondera axiologicamente sobre os demais princí-
pios constitucionais. Com Dworkin (2002), tem-se a certeza de que o princí-
pio da dignidade da pessoa humana, como os demais princípios, é aberto,
devendo ser definido no caso concreto, não havendo, portanto, preferência
apriorística por qualquer dos princípios constitucionais. além disso, reconhe-
ce-se que o princípio em comento, de forma alguma, pode ensejar a priorida-
de do interesse de um indivíduo em particular sobre todos os demais interes-
ses porventura envolvidos em uma lide jurídica. tudo isso implicaria um uso
deturpado, ilimitado e abusivo deste princípio, como inclusive sói ocorrer
hodiernamente na jurisprudência brasileira. em verdade, entende-se que o
princípio da dignidade da pessoa humana possui a relevante importância de
chamar a atenção para o próprio estado e para os operadores do Direito de que
a atuação estatal deve se pautar necessariamente na satisfação da pessoa huma-
na, entendida seja em sentido individual, seja em sentido coletivo.
Para ilustrar ainda mais essa concepção, veja-se o que afirma lamounier
(2009, p. 143):
Por mais óbvio que esse raciocínio possa parecer, nunca é demais relem-
brar que a história humana está recheada de acontecimentos marcados pela
barbárie, ocorridos muitas vezes para o atendimento de interesses mesquinhos
e/ou utópicos. Já na antiguidade Clássica isso era sentido. atenas, cidade grega
à época tida como exemplo de democracia, somente atribuía a reduzida parce-
la do seu povo o status de cidadão, pois mulheres, crianças, escravos, prisionei-
ros de guerra e estrangeiros estavam excluídos desse privilegiado rol. entendia-
se que era preciso restringir a participação política local em favor da qualidade
do voto. ademais, intelectuais e filósofos necessitavam do trabalho escravo
para que tivessem tempo ocioso para produzir suas mais variadas obras nos
campos artístico, literário e científico (Silva, 2005, p. 129). o correr da histó-
ria apresentou outros tantos exemplos. Para não causar exaustão, podem ser
citados apenas alguns exemplos marcantes, como a “Santa” inquisição na idade
média, a escravidão na américa e na África nos séculos Xv a XiX, o extermí-
nio dos povos indígenas, o capitalismo selvagem e o massacre contra o traba-
lhador durante a revolução industrial, as duas grandes Guerras mundiais, o
nazismo de hitler e o fascismo de mussolini e o horror do holocausto.
atentos a esse passado sombrio, diversos documentos elaborados pela
organização das nações unidas (onu) no século XX tiveram a preocupação
de destacar a dignidade da pessoa humana como um dos principais fundamen-
tos dos direitos humanos. assim, por exemplo, a Declaração universal dos
Direitos do homem, de 1948 (eStaDoS uniDoS Da amÉriCa, 1948), no
seu Preâmbulo, dispõe nesses termos:
Por conta disso, reforça-se a ideia de que o ser humano não pode ser visto
apenas sob um prisma biológico, encarado como mais um entre os inúmeros
animais deste planeta. ele guarda incontáveis peculiaridades, daí decorrendo
a necessidade de garantir-lhe uma vida digna. não se pode admitir, em virtu-
de deste princípio, que o homem seja tratado como res, objeto de direito. em
verdade, por sua condição especial que lhe é inerente, a todo e qualquer ins-
tante ele é e sempre será foco primordial do Direito.
Disso não destoa Sarlet (2009, p. 47), quando afirma que
1 acrescente-se que o Projeto de lei n. 791/07, de autoria do Deputado Walter ioshi, alterando o
artigo 18 da lei de introdução ao Código Civil, pretende ampliar a aplicação do quanto disposto
na lei n. 11.441/07, permitindo que as autoridades consulares brasileiras realizem a separação e
o divórcio consensuais de brasileiros que morem no exterior, mesmo sem a assistência de advo-
gado. a título de curiosidade, noticie-se que tal Projeto de lei foi aprovado pela Comissão de
Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados em 23.04.2009.
judicial, ao entendimento de que o referido dispositivo legal viola o teor do
artigo 226, § 6º, da lex Fundamentallis, que exige como único e exclusivo
requisito para a concessão do divórcio por conversão o lapso temporal de 1
(um) ano da separação judicial. Correta a decisão do Pretório excelso por ser
este entendimento mero corolário do princípio constitucional da liberdade da
dissolução do casamento.2
ora, conforme será abordado ainda neste tópico, a partir da Constituição
Federal, a família passou a ser encarada como o principal ambiente de promo-
ção da personalidade humana. em razão disto, qualquer espécie de família,
incluindo o matrimônio, só deve persistir enquanto presente o afeto entre seus
componentes (affectio familiae). mas se tal opção de entidade familiar já não
mais satisfaz cada um dos seus membros, se, no caso particular do matrimô-
nio, ele deixou de cumprir esse seu papel, o insatisfeito passa a ter o direito
fundamental de dissolvê-lo, sob pena de violação da sua liberdade e da sua
própria dignidade.
no que tange ao princípio do melhor interesse do menor (best interest of
the child), vem ele estampado no artigo 227, caput, da Constituição Federal,
segundo o qual é dever da família, da sociedade e do estado assegurar aos indi-
víduos menores de idade, com absoluta prioridade, os seus direitos fundamen-
tais. essa norma constitucional é ainda materializada no estatuto da Criança e
do adolescente (lei n. 8.069/90), mais precisamente no seu artigo 3º, que con-
sagra a proteção integral dos direitos fundamentais das crianças e dos adoles-
centes. Por força do princípio constitucional ora analisado, entende-se que
todas as medidas pertinentes aos menores, a exemplo da guarda judicial, devem
ser aplicadas em seu benefício e não em favor dos seus pais ou responsáveis.
ultimados esses breves comentários acerca dos princípios constitucionais
mitigadores da família idealizada pelo Código Civil de 1916, resta agora fazer
uma análise do novo perfil jurídico da família surgida após a Constituição
Federal de 1988.
Dentro do contexto de franca personalização do Direito Civil, a família
passa a ser encarada como uma verdadeira comunidade de afeto e entreajuda
e não mais como uma fonte de produção de riqueza como outrora. É o âmbi-
to familiar o local mais propício para que o indivíduo venha a obter a plena
realização da sua dignidade enquanto ser humano, porque o elo entre os inte-
grantes da família deixa de ter conotação patrimonial para envolver, sobretu-
do, o afeto, o carinho, amor e a ajuda mútua.
2 advirta-se, porém, que a Proposta de emenda à Constituição n. 28/09, avançando no tema, pre-
tende dispensar qualquer lapso temporal para a concessão do divórcio direto, o que igualmente
atende ao princípio da liberdade da dissolução do casamento.
aqui deve ser relembrada mais uma vez a família idealizada pelo Código
de 1916: nela ficava patente que a sua organização estava totalmente voltada
para atender às exigências de uma sociedade capitalista. nesse sentido, os
papéis dos familiares estavam previamente (e de forma rígida e imutável) esta-
belecidos: a mulher deveria tomar conta da casa para que seu marido, tido
como superior, lutasse no mercado de trabalho pelo seu sustento e dos filhos
em comum, havidos muitas vezes como meros herdeiros da riqueza produzi-
da e força de trabalho.
a ideia do patrimônio provocava um exagerado individualismo, distan-
ciando cada vez mais pais e filhos. aliás, estes eram meros reprodutores das
ordens emanadas daqueles, não havendo qualquer possibilidade de uma edu-
cação participativa. o casal, por sua vez, tinha uma relação muito mais hierar-
quizada do que propriamente afetiva, pois a mulher sempre deveria subordi-
nar-se ao seu marido. nesse contexto, interessante lembrar quantos casamen-
tos aconteciam por “encomenda” dos pais dos nubentes, os quais, muitas
vezes, só se conheciam no dia da festa.
além disso, a família só era constituída de um único modo, qual seja,
pelo casamento, considerado pelo legislador como o meio ideal para tal fim,
tanto que o vínculo matrimonial era indissolúvel.
todo esse cenário vem a ruir com os princípios constitucionais anterior-
mente abordados. a partir daí, as relações familiares tornam-se muito mais
verdadeiras, porque são construídas (e não impostas) por quem integra o ins-
tituto (e não por um terceiro, um elemento estranho, como o legislador). o
ser, finalmente, supera o ter, fazendo com que o afeto se torne o elemento
irradiador da convivência familiar.
nessa esteira, o relacionamento entre os familiares ganha uma nova rou-
pagem. Passa a ser muito mais aberto, democrático e plural, permitindo que
cada indivíduo venha a obter, de fato, a realização da sua felicidade particu-
lar. É, pois, no âmbito familiar que o indivíduo cresce e adquire suas habilida-
des para a convivência social, devendo, por isso mesmo, sentir-se confortável
e seguro para o desafio da vida adulta.
nessa linha de intelecção, tepedino (2001, p. 328) afirma que a maior
preocupação da atualidade é com
todo instituto jurídico é criado com um determinado fim, com uma deter-
minada função, a qual deve ser observada na sua aplicação, sob pena de se
desvirtuá-lo.
Por sua vez, a sede por excelência desses princípios é a Constituição Federal,
norma fundamental de organização do estado, estabelecida pelo povo e
representando seus anseios. nela, encontrar-se-ão, por exemplo, a função
social da propriedade, a qual, se não observada, permite a aplicação de uma
série de sanções, como a desapropriação [...].
não é diferente com o Direito de Família. os institutos desse segmento do
Direito Civil são criados e devem observar uma determinada finalidade, sob
pena de perderem a sua razão de ser. assim, deve-se buscar, nos princípios
constitucionais, o que almejou o Constituinte para a família, de forma a bem
entender a sua normatização [...].
ao lado da dignidade da pessoa humana, há, ainda, outros princípios consti-
tucionais relativos à família e que indicam sua finalidade, como a igualdade,
a solidariedade, a paternidade responsável, a pluralidade das entidades fami-
liares, a tutela especial da família, o dever de convivência, a proteção inte-
gral da criança e do adolescente e a isonomia entre os filhos.
tendo em vista esses princípios, resta claro que a família, atualmente, não
pode mais ser vista como um fim em si mesmo; sendo, ao contrário, um ins-
trumento, um locus privilegiado para o desenvolvimento pleno da persona-
lidade de seus membros [...].
assim, impõe-se, atualmente, um novo tratamento jurídico da família, tra-
tamento esse que atenda aos anseios constitucionais sobre a comunidade
familiar, a qual deve ser protegida na medida em que atenda a sua função
social, ou seja, na medida em que seja capaz de proporcionar um lugar pri-
vilegiado para a boa convivência e dignificação de seus membros.
De outro lado, com fincas em lôbo (2005), advirta-se que “os únicos
deveres comuns tanto aos cônjuges quanto aos companheiros que não violam a
privacidade e a vida privada deles, nem interferem em sua comunhão de vida,
são o dever de mútua assistência e o dever de sustento, guarda e educação dos
filhos”, pois são deveres exigíveis e refletem interesse público relevante.
e se os deveres conjugais ainda fossem admitidos, eles não poderiam ter
a mesma roupagem de outrora. a fidelidade, por exemplo, não envolveria uni-
camente o aspecto sexual, mas também o respeito e o carinho mútuos, a con-
fiança, a cumplicidade etc. Daí porque já começa a ser discutida, no âmbito
dos tribunais, a possibilidade de se configurar a traição por meio da internet,
especialmente nas famigeradas salas de bate-papo (chats). a esse respeito,
noticie-se que, em decisão prolatada em 21.05.2008, a 2ª vara Cível da
Comarca de Brasília/DF, no bojo dos autos da ação de indenização n.
2005.01.1.118170-3, condenou o réu ao pagamento de indenização por danos
morais no valor de r$ 20.000,00 (vinte mil reais) por ter ofendido a honra
subjetiva e violado o direito à privacidade da autora, sua ex-esposa, segundo a
qual este a traiu com outra mulher durante a vigência do casamento, o que foi
demonstrado por emails trocados entre o requerido e a sua amante, nos quais
eles compartilhavam fantasias eróticas (sexo virtual) e comentários jocosos
feitos pelo traidor sobre o desempenho sexual da traída, afirmando inclusive
que ela seria uma pessoa “fria” na cama.
o dever de coabitação segue esse mesmo trilhar: não seria mais suficien-
te a mera convivência sob o mesmo teto conjugal para que ele estivesse sendo
corretamente respeitado. a boa convivência entre quatro paredes, constante,
ininterrupta, intensa e prazerosa, isso sim perfectibilizaria a vida em comum.
Com base nessa assertiva é que os tribunais vêm admitindo a existência de
separação de fato entre cônjuges que residem no mesmo local, sustentam a
imagem de casados perante a sociedade, mas vivem às turras dentro do lar,
muitas vezes causando traumas inimagináveis nos seus filhos. o julgado
revista dos tribunais 574/271, por exemplo, permitiu a concessão de alimen-
tos para o cônjuge que vivia sob o mesmo teto do seu par, pois reconheceu a
separação de fato entre eles.
verifica-se também uma nova roupagem do dever de sustento, guarda e
educação dos filhos: o papel do pai (gênero) moderno não se limita apenas ao
simples pagamento dos gastos da sua prole ao final do mês. É inegável que o
pagamento das diversas despesas é indispensável à sobrevivência dos menores,
mas ele não é a única função dos pais, sequer a mais importante, até porque
poderia ser facilmente preenchida por um orfanato ou outra instituição de
caridade qualquer, talvez até com maior eficiência.
É o acompanhamento psicológico, educacional e mesmo espiritual, o diá-
logo exercitado cotidianamente, a transferência de maturidade e de lições de
vida, a participação efetiva na escolha do colégio, do esporte, da academia de
balé, é estar sempre se renovando e se conhecendo para acompanhar as gra-
dativas mudanças dos filhos, enfim, é preparar um ser humano intelectual-
mente equilibrado e certo dos seus valores para a vida em sociedade que defi-
ne o verdadeiro papel do pai contemporâneo.
Caso haja descumprimento desse dever, lôbo (2005) aponta para as
seguintes conseqüências para os cônjuges:
Justamente com base nesse raciocínio é que boa parcela da doutrina civi-
lista, como teixeira, Sales e Souza (2007, p. 57-73), vem admitindo o exercí-
cio da autonomia privada por parte de sujeitos menores de idade em situações
jurídicas existenciais, relacionadas ao gozo dos seus direitos fundamentais, o
que provocaria, por exemplo, uma revisão do regime das incapacidades, nes-
ses termos:
Conforme visto no item 4.3 desta pesquisa, o Código Civil de 1916 tute-
lava a família muito mais sob o seu aspecto externo, abordando-a como um
instituto jurídico, como uma entidade abstrata, despreocupada com o interes-
se particular de cada um dos seus membros. nesse passo, a família não era tra-
tada como célula da sociedade, mas sim do estado (DiaS, 2006, p. 27), daí por
que este chamava para si praticamente todo o regramento legal do Direito de
Família, não deixando quase nenhum espaço para o exercício da liberdade dos
seus integrantes.
assim é que o estado apenas reconhecia como família a entidade prove-
niente do casamento (família matrimonializada) e, como consequência, as
relações espúrias, adulterinas ou concubinárias eram completamente ignora-
das pelo ordenamento jurídico. além disso, os filhos havidos fora do casamen-
to eram alvo de injustificado preconceito, não lhes sendo reconhecido qual-
quer tipo de direito. ademais, com o escopo de tutelar irrestritamente o sagra-
do instituto do casamento, único legitimador da família, o estado vedada a
extinção do vínculo matrimonial pelo divórcio e impunha ao cônjuge tido
como culpado pela separação judicial desarrazoadas sanções, a exemplo da
perda do nome de casado, do direito a alimentos e da guarda judicial dos
filhos, isso sem falar nos deveres cominados aos cônjuges, tais como o de vida
em comum no domicílio conjugal.
a incidência de normas cogentes no âmbito do Direito de Família era
abundante, sendo poucas as hipóteses de permissão do exercício da autonomia
privada pelos membros de uma família. aliás, como já afirmado alhures, tais
hipóteses se davam com maior força na seara patrimonial, a exemplo da liber-
dade de estipulação do regime matrimonial de bens, o que reforçava a corres-
pondência da autonomia privada com a autonomia da vontade.
nesse contexto, parcela significativa da doutrina indicava o Direito de
Família como parte integrante do Direito Público, a exemplo de rodrigues
(2000, p. 11), em passagem já citada anteriormente ao longo deste trabalho:
Já foi afirmado acima que a família constitui a célula básica da sociedade. ela
representa o alicerce de toda a organização social, sendo compreensível, por-
tanto, que o estado a queira preservar e fortalecer. Daí a atitude do legisla-
dor constitucional, proclamando que a família vive sob a proteção especial
do estado. o interesse do estado pela família faz com que o ramo do direito
que disciplina as relações jurídicas que se constituem dentro dela se situe
mais perto do direito público do que do direito privado. Dentro do Direito
de Família o interesse do estado é maior do que o individual. Por isso, as
normas de Direito de Família são, quase todas, de ordem pública, insuscetí-
veis, portanto, de serem derrogadas pela convenção entre particulares [...].
não obstante, todo esse cenário veio a ser profundamente alterado com
o advento da Constituição Federal de 1988. em primeiro lugar, como visto no
item 6.4, porque a incidência de direitos fundamentais nas relações privadas
fez com que a autonomia privada perdesse a sua conotação exclusivamente
patrimonial, típica do período do estado liberal, passando a ser aplicada tam-
bém em relações extrapatrimoniais, a exemplo daquelas travadas no âmbito do
Direito de Família. em segundo lugar – e que aqui mais interessa –, porque o
novo perfil da família desenhado pela Carta magna Federal permitiu que ela
se tornasse uma instituição verdadeiramente democrática, na qual a preocu-
pação maior é com a felicidade pessoal dos seus membros, com a implementa-
ção da sua dignidade, com a realização dos seus direitos fundamentais, moti-
vo pelo qual ela deixa de ser uma entidade estatal e ganha contornos de enti-
dade social (célula básica da sociedade), o que autoriza o exercício da autono-
mia privada no seu âmago.
em longa, mas elucidativa passagem, Pereira (2006, p. 154-182) pontifica:
É nesse sentido que ganha destaque o teor do artigo 226, caput, da lex
Fundamentallis, segundo o qual a família é base da sociedade (e não do es-
tado), merecendo justamente por isso especial proteção (e não monopólio da
regulamentação) do estado.
Sobre o citado mandamento constitucional, Pereira (2006, p. 158) escla-
rece que
De fato, não há dúvidas de que o afeto “[...] talvez seja apontado, atual-
mente, como o principal fundamento das relações familiares. mesmo não
constando a palavra afeto no texto maior como um direito fundamental,
podemos dizer que o afeto decorre da valorização constante da dignidade
humana” (tartuCe, 2008, p. 47).
Com idêntico sentir, Pereira (2006, p. 180) aduz:
Para que haja uma entidade familiar, é necessário um afeto especial ou, mais
precisamente, um afeto familiar, que pode ser conjugal ou parental [...].
Diante deste quadro estrutural, o que se conclui é ser o afeto um elemento
essencial de todo e qualquer relacionamento conjugal ou parental [...].
no seio familiar, são os seus integrantes que devem ditar o regramento pró-
prio da convivência. Desta órbita interna exsurgem disposições que farão
com que a sociedade e o estado respeitem e reconheçam tanto a família,
enquanto unidade, como os seus membros individualizadamente.
Por certo que o princípio em questão mantém relação direta com o princí-
pio da autonomia privada, que também deve existir no âmbito do Direito de
Família [...].
a autonomia privada não existe apenas em sede contratual ou obrigacional,
mas também em sede familiar. Quando escolhemos, na escalada do afeto,
com quem ficar, com quem namorar, com quem ter uma união estável ou
com quem casar, estamos falando em autonomia privada, obviamente.
não se deve confundir, pois, esta tutela com poder de fiscalização e contro-
le, de forma a restringir a autonomia privada, limitando a vontade e a liber-
dade dos indivíduos. muito menos se pode admitir que esta proteção alce o
Direito de Família à categoria de Direito Público, apto a ser regulado por
seus critérios técnico-jurídicos. esta delimitação é de fundamental impor-
tância, sobretudo para servir de freio à liberdade do estado para intervir nas
relações familiares.
Prevê o art. 1.513 do Código Civil em vigor que “é defeso a qualquer pessoa
de direito público ou direito privado interferir na comunhão de vida insti-
tuída pela família”. trata-se da consagração do princípio da liberdade ou da
não-intervenção na ótica do Direito de Família.
Por certo que o princípio em questão mantém relação direta com o princí-
pio da autonomia privada, que também deve existir no âmbito do Direito de
Família.
art. 1.565, § 2º: o art. 1.565, § 2º, do Código Civil não é norma destinada ape-
nas às pessoas casadas, mas também aos casais que vivem em companheiris-
mo, nos termos do art. 226, caput, §§ 3º e 7º, da Constituição Federal de
1988, e não revogou o disposto na lei n. 9.263/96.
noutro giro, como já afirmado no item anterior, a nova lei de adoção (lei
n. 12.010, de 3 de agosto de 2009) repetiu o espírito do artigo 1.513 do Código
Civil, consagrando expressamente o princípio da intervenção mínima do
estado nos moldes aqui propostos ao tratar dos princípios que regem a aplica-
ção das medidas específicas de proteção aos menores de idade no artigo 100,
parágrafo único, inciso vii, do estatuto da Criança e do adolescente (lei n.
8.069/90), nesses termos (BraSil, 2009):
nesse tópico, que inicia a segunda parte desta pesquisa, não se pretende
abordar todos os exemplos de exercício da autonomia privada no âmbito do
Direito de Família, esgotando a matéria, mas apenas os mais importantes ou os
mais debatidos em sede doutrinária – e mesmo assim sem aprofundá-los –,
para que se ilustre a teoria que aqui se quer provar.
vale dizer, os noivos firmam apenas uma expectativa, uma intenção de casa-
mento, mas isso não significa que efetivamente irão se casar. não é razoável
admitir obrigatório tal comportamento, sob pena de frontal violação a um
dos princípios básicos do casamento: a liberdade dos candidatos a contraen-
tes firmarem ou não o compromisso matrimonial.
em face disso, não se deve admitir a indenização por danos morais em
virtude da quebra dos esponsais, simplesmente porque o rompimento de um
noivado (ou de qualquer outro relacionamento afetivo) é um exercício regu-
lar do direito de liberdade do nubente, que, repita-se novamente, não pode ser
compelido a contrair núpcias.
Corroborando com essa ideia, moraes (2004, p. 410-411) apregoa:
SÚmula n. 382: a vida em comum sob o mesmo teto, more uxorio, não é
indispensável à caracterização do concubinato (BraSil, 1964).
1 Conforme Diniz (2008, p. 700), “no caso em que, celebrado o casamento pelo regime da comu-
nhão parcial de bens, e não havendo o falecido deixado bens particulares, o cônjuge sobreviven-
te nada herdará, se existirem descendentes. o mesmo ocorrerá quando o regime for o da comu-
nhão universal ou da separação obrigatória. neste caso, foram conferidos mais direitos ao compa-
nheiro, que terá direitos sucessórios em relação aos bens havidos na constância da união”.
além disso, o artigo 1.790 não qualifica o companheiro como herdeiro
necessário, diferente do que ocorre com o cônjuge, que assim é caracterizado
pelo artigo 1.845.
outra crítica a ser feita diz respeito à concorrência sucessória entre o
companheiro e os descendentes do falecido. nos termos do artigo 1.790, inci-
sos i e ii, se o companheiro “concorrer com filhos comuns, terá direito a uma
quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho” (BraSil, 2002),
enquanto que, “se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-
lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles” (BraSil, 2002). Destarte,
no caso de concorrência sucessória entre o cônjuge e os descendentes do de
cujus, o artigo 1.832 do Código Civil não faz essa distinção, estipulando a regra
única de que o viúvo terá sempre direito a quinhão igual ao dos descendentes.
Situação semelhante é verificada na concorrência sucessória entre o
companheiro e os ascendentes do falecido. Segundo o artigo 1.790, inciso iii,
se o companheiro “concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a
um terço da herança” (BraSil, 2002). entretanto, se a concorrência for entre
o cônjuge e os ascendentes do de cujus, conforme a redação do artigo 1.837,
há de se distinguir duas hipóteses: “concorrendo com ascendente em primei-
ro grau, ao cônjuge tocará um terço da herança” (BraSil, 2002); porém,
“caber-lhe-á a metade desta se houver um só ascendente, ou se maior for
aquele grau” (BraSil, 2002).
Diniz (2008, p. 699) também identifica essas distorções, conforme trecho
a seguir transcrito:
2 Pondere-se, entretanto, que o Projeto de lei n. 508/07 pretende retirar o cônjuge (e, por conse-
quência, não incluir o companheiro) do rol dos herdeiros necessários.
artigo 226, § 3º, da Carta Constitucional, que determina que a lei facilitará tal
conversão, pois o procedimento judicial implicará mais despesas às partes,
com o pagamento de advogado e custas processuais. não há que se olvidar que
a norma em comento acaba dificultando sobremaneira a situação dos convi-
ventes que porventura queiram converter a sua relação fática em casamento,
ficando mais fácil se casarem diretamente, lembrando que o casamento é gra-
tuito. Corroborando com todo esse posicionamento, Farias e rosenvald (2008,
p. 428-429) asseveram:
[...] direito potestativo extintivo, uma vez que se atribui ao cônjuge o poder
de, mediante sua simples e exclusiva declaração de vontade, modificar a
situação jurídica familiar existente, projetando efeitos em sua órbita jurídi-
ca, bem como de seu consorte. enfim, trata-se de direito (potestativo) que se
submete apenas à vontade do cônjuge, a ele reconhecido com exclusividade
e marcado pela característica da indisponibilidade, como corolário da afir-
mação de sua dignidade. (grifo nosso)
3 acrescente-se que o Projeto de lei n. 791/07, de autoria do Deputado Walter ioshi, alterando o
artigo 18 da lei de introdução ao Código Civil, pretende ampliar a aplicação do quanto disposto
na lei n. 11.441/07, permitindo que as autoridades consulares brasileiras realizem a separação e o
divórcio consensuais de brasileiros que morem no exterior, mesmo sem a assistência de advogado.
mada pelo cônjuge de seu nome de solteiro ou à manutenção do nome adota-
do quando se deu o casamento. Frise-se, porém, que, em respeito à autodeter-
minação dos cônjuges, é possível a inclusão de outras cláusulas no negócio
jurídico dissolutório do casamento, a exemplo de doações (puras ou não, com
ou sem cláusulas de inalienabilidade, impenhorabilidade e íncomunicabilida-
de) entre si e a terceiros, instituição de usufruto, uso ou habitação em favor do
outro, de filhos ou de terceiros, cessão de bens, direitos, comodato ou loca-
ções, dever de indenizar, obrigação de pagar dívidas anteriormente assumidas
pelo consorte, outorga de procuração, implementação do bem de família con-
vencional sobre imóvel ou renda que sirvam para a manutenção do casal,
entre tantas outras (FariaS, 2007a, p. 99-100).
essa escritura pública, como já afirmado alhures, formaliza o exercício da
autonomia privada das partes, não necessitando, portanto, ser homologada
judicialmente, constituindo título hábil para o registro civil e o registro de
imóveis. não há que se olvidar que a simplicidade desse ato advém do interes-
se do legislador em resguardar a autonomia das partes. nessa esteira, como
assevera Cruz (2008, p. 333), “[...] é justo que seja oferecido as partes um cami-
nho simplista para a dissolução da sociedade conjugal, afastando a intromissão
do estado, e, possibilitando, ao casal, o fim do casamento, por um simples ato
notarial [...]” (destacado no original).
também em respeito à autonomia privada é que vem prevalecendo na
doutrina o entendimento de que a utilização da via administrativa é uma
faculdade das partes, devendo ser mantida, portanto, a possibilidade de formu-
lação do pedido judicial de separação/divórcio consensual, como apontado por
Cruz (2008, p. 336):
enunciado n. 103. art. 1.593: o Código Civil reconhece, no art. 1.593, out-
ras espécies de parentesco civil, além daquele decorrente da adoção, aco-
lhendo, assim, a noção de que há também parentesco civil no vínculo paren-
tal proveniente quer das técnicas de reprodução assistida heteróloga relati-
vamente ao pai (ou mãe) que não contribuiu com seu material fecundante,
quer da paternidade socioafetiva, fundada na posse do estado de filho (Bra-
Sil, 2002).
[...] imagine-se um homem que engravidou uma mulher, com quem mante-
ve um brevíssimo relacionamento, sequer voltando a travar contato com ela
ou com o rebento nascido – neste caso, a solução passaria pela invocação do
critério biológico [...].
Para que seja maximizada a autonomia privada das partes, deve-se auto-
rizar a mutabilidade do regime de bens mesmo daqueles casamentos realiza-
dos antes da vigência do Código Civil de 2002. assim, o artigo 2.039 do Código
Civil, que dispõe que os casamentos celebrados sob a égide do Código anterior
– que não permitia a mutabilidade do regime de bens –, devem ser por ele
regidos, não deve ter o condão de impedir a aludida mutabilidade, afinal de
contas este dispositivo legal se refere apenas aos “[...] efeitos do regime esco-
lhido, que não poderão ser alterados com a modificação do regime de bens
[...]” (tePeDino, 2008, p. 207). É esse o posicionamento do Superior
tribunal de Justiça:
Direito civil. Família. Casamento celebrado sob a égide do CC/16. alteração
do regime de bens. Possibilidade. a interpretação conjugada dos arts. 1.639,
§ 2º, 2.035 e 2.039, do CC/02, admite a alteração do regime de bens adotado
por ocasião do matrimônio, desde que ressalvados os direitos de terceiros e
apuradas as razões invocadas pelos cônjuges para tal pedido. (BraSil.
Superior tribunal de Justiça. resp n. 821.807, 3ª turma, relatora ministra
nancy andrighi, julg. 19.10.2006).
em suma, lembrado que o ministério Público tem sua atuação pautada pela
defesa de interesses indisponíveis do indivíduo e da sociedade, bem como ao
zelo dos interesses sociais, coletivos ou difusos, resta imprópria sua investi-
dura para tarefas de outra ordem [...].
assim como já alertado no início do item 9.1., nesse tópico, não se pre-
tende abordar todas as situações que não mais admitem a intervenção estatal
no âmbito do Direito de Família nem sequer esgotá-las, mas apenas tratar
daquelas mais importantes ou as mais debatidas em sede doutrinária, como
forma de ilustrar a teoria que se quer provar neste trabalho.
direito potestativo extintivo, uma vez que se atribui ao cônjuge o poder de,
mediante sua simples e exclusiva declaração de vontade, modificar a situa-
ção jurídica familiar existente, projetando efeitos em sua órbita jurídica, bem
como de seu consorte. enfim, trata-se de direito (potestativo) que se subme-
te apenas à vontade do cônjuge, a ele reconhecido com exclusividade e mar-
cado pela característica da indisponibilidade, como corolário da afirmação
de sua dignidade. (grifo nosso).
É por estes e por outros motivos que já existe uma tendência mundial em
abolir o instituto da separação judicial e privilegiar o divórcio, via menos trau-
mática, cujo único requisito para concessão é o decurso do lapso temporal, não
se discutindo, em nenhum momento, a culpa. no Brasil, por sugestão do
instituto Brasileiro de Direito de Família (iBDFam), o Deputado Sérgio
Barradas Carneiro apresentou ao Congresso nacional, no dia 10 de abril de
2007, Proposta de emenda à Constituição (PeC), sob o número originário
33/2007 e atualmente no Senado com o número 28/2009, sugerindo o fim do
instituto da separação judicial (em qualquer modalidade) com a alteração do
artigo 226, § 6o, da Constituição Federal, PeC esta já aprovada em dois turnos
na Câmara dos Deputados, aguardando deliberação no Senado.
Seguindo essa tendência, a doutrina vem apontando para a impossibili-
dade de o juiz se recusar a homologar e não decretar a separação judicial con-
sensual, mesmo se apurar que a convenção não preserva suficientemente os
interesses dos filhos ou de um dos cônjuges, não obstante a atual redação do
artigo 1.574, parágrafo único, do Código Civil postular em sentido contrário:
Socorrendo-se de regra encontrada no direito francês e italiano, o legislador
consagrou, no parágrafo único do art. 1.574, a possibilidade do juiz recusar-
se a homologar acordo de separação consensual sempre que o perceba como
prejudicial aos interesses da prole ou dos membros do casal. o que em prin-
cípio parece soar como uma regra que visa proteger os interesses dos mem-
bros da entidade familiar, revela-se, em verdade, uma afronta ao princípio
da liberdade de autodeterminação dos cônjuges. no que toca a intenção de
proteger o patrimônio do casal, esta pode ser perfeitamente atingida com a
recusa da homologação apenas da partilha. Já quanto ao escopo de proteção
dos filhos, as obrigações dos genitores separados vão prosseguir inalteradas,
e o convívio parental deve ser assegurado mediante a regulamentação de
visitas e a disciplina da guarda [...]. vale dizer que a violação atinge cores
mais gritantes e atenta também contra o princípio da igualdade quando se
considera que para as separações consensuais realizadas em cartório – con-
quista da lei nº 11.441/07 – não será possível falar em recusa da homologa-
ção do acordo pelo tabelião [...]. (FariaS; roSenvalD; Barretto,
2010, p. 167).
além deste, alinha a mesma Comissão vários outros motivos que falam con-
tra a manutenção do princípio da culpa: dificuldade de apuração das causas
do arruinamento conjugal e, dentre elas, das que têm origem na culpa, intro-
missão do juiz na esfera íntima dos cônjuges, envenenamento do processo e
das relações pessoais das partes, etc. “nem os cônjuges, eles próprios” – já se
observou, entre nós – “terão muitas vezes a consciência precisa de onde resi-
de a causa de seu malogro, quase sempre envolta na obscuridade que, em
maior ou menor grau, impregna todas as ações humanas”.
aceitar esse sistema é permitir que toda uma história em comum seja
esquecida. exigir a comprovação da culpa para o decreto de separação é pos-
sibilitar que “demandas separatórias se arrastem no tempo e perpetuem inú-
teis sentimentos de ódio e de perseguição retaliativa, como obra inacabada do
desamor” (maDaleno, 2000, p. 32).
Por fim, culpas transitórias ou circunstanciais numa relação onde quase sem-
pre é difícil detectar quando teve real início a desavença nupcial e onde é
praticamente impossível distinguir opressor de oprimido, punições de indi-
gência desequilibram injustamente uma longa história conjugal (maDale-
no, 2000, p. 37).
uma vez que um dos cânones maiores das garantias individuais é o direito à
privacidade e intimidade, constitui violação do sagrado direito à dignidade
da pessoa humana a ingerência do estado na vida dos cônjuges, obrigando
um a revelar a intimidade do outro, para que, de forma estéril e desnecessá-
ria, imponha o juiz a pecha de culpado ao réu.
5 a esse respeito, acentue-se que o Código Civil de 2002, no tópico destinado aos Direitos da
Personalidade (Capítulo ii do título i, do livro i), mais precisamente no artigo 16, estatui que
“toda pessoa tem direito ao nome, nele compreendidos o prenome e o sobrenome” (BraSil,
2002).
consorte, somente sendo possível a sua não utilização, por óbvio, se o seu titu-
lar assim optar. a regra, portanto, deve ser sempre a da plena liberdade de
manter o nome quando da separação.
Por conta dessa regra, entende-se que as ressalvas contidas na parte final
do artigo 1.578, caput, do Código Civil de 20026 não deveriam sequer existir;
ao contrário, certo seria se o comando normativo contido no parágrafo 1o
deste dispositivo legal7 tivesse validade para toda e qualquer hipótese (e não
apenas para o cônjuge “inocente”).
ratificando a ideia aqui exposta, Dias (2006, p. 97-98) apregoa:
[...] essa, decerto, pode ser considerada a pena mais exarcebada do nosso
ordenamento jurídico. ainda que o inciso Xlvii da Constituição Federal
declare não haver pena de morte, ou de caráter perpétuo, de trabalhos for-
çados, de banimento, vedando quaisquer penas cruéis, tal garantia não é
6 o citado artigo determina que o cônjuge culpado não perde o direito de usar o nome de casado
se não for expressamente requerido pelo cônjuge inocente e se a alteração acarretar evidente pre-
juízo para a sua identificação (i), manifesta distinção entre o seu nome de família e o dos filhos
havidos da união dissolvida (ii) ou dano grave reconhecido na decisão judicial (iii).
7 este dispositivo legal assevera que “o cônjuge inocente na ação de separação judicial poderá
renunciar, a qualquer momento, ao direito de usar o sobrenome do outro” (BraSil, 2002).
assegurada quando a condenação decorre do ‘crime’ de ter o réu dado causa
à separação [...]. assim, mesmo sendo flagrante a necessidade – quer por
estar fora do mercado de trabalho, quer por doença que impeça o desempe-
nho de atividade laborativa –, o culpado é condenado a morrer de fome. a
pena é perpétua. Quiçá imponha a realização de trabalhos forçados. a
depender das condições do apenado, será cruel. talvez lhe imponha a pena
de banimento, nem que seja para a outra vida.
É claro que com isso não se quer afastar a possibilidade de fixação dos ali-
mentos transitórios ou passageiros nas relações conjugais, tidos como meios
necessários para garantir, durante determinado período, a subsistência daque-
le cônjuge “[...] desprovido de emprego e de recursos financeiros, dotado, con-
tudo, de capacidade e de condições de buscar, em curto espaço de tempo,
emprego e rendimento no mercado de trabalho” (maDaleno, 2008, p. 720).
muito pelo contrário, deve-se incentivar o retorno de um dos cônjuges ao
mercado de trabalho, fixando-se certo prazo para o fornecimento de alimen-
tos, para que estes não sirvam de fonte vitalícia de ócio. nesse prisma, portan-
to, também se afigura viável a solução de substituir o princípio da culpa pelos
alimentos transitórios, como apontado por madaleno (2008, p. 722):
8 na verdade, no Direito alemão, não há a figura da separação judicial, somente sendo possível a
dissolução do relacionamento conjugal pelo divórcio.
9 a alteração ocorreu no Código Civil alemão – §§ 1.564 a 1.568.
tros de reforma nessa direção nos sistemas jurídicos da Áustria e da Grã-
Bretanha.
o artigo 258, parágrafo único, inciso ii, do Código Civil de 1916 estabe-
lecia o regime de separação obrigatória de bens se o casamento fosse realiza-
do por homem maior de 60 (sessenta) anos de idade ou por mulher maior de
50 (cinqüenta) anos de idade. não obstante, ao longo de todo o século XX, cla-
mava-se pela revogação deste dispositivo legal, por ofensa ao princípio da
autonomia privada.
o Código Civil de 2002 foi a oportunidade que tanto se aguardava para
que fosse feita a revogação acima mencionada. Destarte, em franco retroces-
so, o Código, no seu artigo 1.641, inciso ii, repetiu a regra anterior da limita-
ção etária como causa de aplicação do regime de separação obrigatória de bens
praticamente na íntegra, com uma única e insignificante alteração, consisten-
te na unificação da idade para homens e mulheres em 60 (sessenta) anos.
em um primeiro momento, verifica-se que a preocupação do Código foi
em efetivar o princípio da igualdade entre homens e mulheres, unificando a
idade no patamar alhures indicado. entretanto, essa alteração foi absoluta-
mente inócua, a uma porque essa equiparação etária já vinha sendo feita pela
jurisprudência anterior ao Código Civil de 2002, a duas porque a violação à
autonomia privada ainda persiste.
Com efeito, é de somenos importância essa equiparação etária. o cerne
da questão está no fato de que essa restrição viola frontalmente a autonomia
privada, constituindo em intervenção estatal indevida no campo familiar.
na verdade, essa restrição está diretamente ligada à família insculpida
pelo Código Civil de 1916, compreendida como entidade de produção de
riquezas. assim, a regra em comento pretendia “proteger” pessoas com idade
mais avançada – em tese mais vulneráveis – de investidas contra o seu patri-
mônio e, por via indireta, do patrimônio dos seus herdeiros.
entretanto, há de se ressaltar que a idade, por si só, não é causa de inca-
pacidade civil. em não sendo constatada nenhuma das causas de vulnerabili-
dade previstas nos artigos 3º e 4º do Código Civil, deve-se permitir o irrestri-
to exercício da autonomia privada dos maiores de 60 (sessenta) anos de idade,
o que implica livre escolha do regime de bens de casamento, consoante o arti-
go 1.639, caput, do mesmo diploma legal.
nesse prisma, registre-se que a lei da Política nacional do idoso (lei n.
8.842/94) permite que o idoso possa dispor livremente de seus bens, salvo nos
casos de incapacidade judicialmente comprovada, consoante a redação do seu
artigo 10: “É assegurado ao idoso o direito de dispor de seus bens, proventos,
pensões e benefícios, salvo nos casos de incapacidade judicialmente compro-
vada” (BraSil, 1994).
não havendo, portanto, qualquer justificativa plausível para a limitação
aqui analisada, ou, em outros termos, considerando que a presente interven-
ção do estado no campo familiar não promove qualquer direito fundamental
dos seus componentes, chega-se à inarredável conclusão de que o artigo 1.641,
inciso ii, do Código Civil fere a autonomia privada, devendo ser, pois, afasta-
do. Com idêntico sentir, Campos e valadares (2007, p. 123) dispõem:
[...] o CCB/2002 [...] estabeleceu a idade [...] de 60 anos para ambos os sexos.
Ficou resolvida a dúvida das idades, mas não significa que tenha sido uma
boa solução para a questão da idade que limita a livre escolha do regime de
bens. Pelo contrário, significa uma semi-interdição à capacidade do sujeito e
afronta o princípio da autonomia. É indigno atribuir esta incapacidade a
alguém apenas por ter completado 60 anos de idade. tal concepção é ainda
um resquício da ordem jurídica patrimonializada ainda que passasse por
cima da dignidade da pessoa. embora o princípio da igualdade tenha encon-
trado uma resposta no texto infracionstitucional, para a desigualdade entre
homens e mulheres com 60 e 50 anos de idade, não houve a solução integral
do problema. É que a igualdade depara-se com outros princípios que são
também norteadores do Direito de Família como o da autonomia e o da dig-
nidade da pessoa humana.
a jurisprudência segue o posicionamento aqui apresentado desde antes o
advento do Código Civil de 2002, conforme o julgado abaixo transcrito:
Proposição sobre o art. 1.641, inc. ii: redação atual: “da pessoa maior de
sessenta anos”. Proposta: revogar o dispositivo. Justificativa: “a norma
que torna obrigatório o regime da separação absoluta de bens em razão da
idade dos nubentes não leva em consideração a alteração da expectativa
de vida com qualidade, que se tem alterado drasticamente nos últimos
anos. também mantém um preconceito quanto às pessoas idosas que,
somente pelo fato de ultrapassarem determinado patamar etário, passam a
gozar da presunção absoluta de incapacidade para alguns atos, como con-
trair matrimônio pelo regime de bens que melhor consultar seus interes-
ses” (BraSil, 2002).
Diante desse quadro, era de se esperar que o Código Civil de 2002 encer-
rasse definitivamente tal polêmica, permitindo expressamente a renúncia dos
alimentos decorrentes do matrimônio. Destarte, eis que a novel legislação
civil, em seu artigo 1.707, retomou o entendimento estampado no artigo 404
do Código Civil de 1916 e na própria Súmula n. 379 do StF, estabelecendo o
seguinte: “Pode o credor não exercer, porém lhe é vedado renunciar o direito
a alimentos, sendo o respectivo crédito insuscetível de cessão, compensação
ou penhora” (BraSil, 2002). Desse modo, constata-se que o novo Código
Civil, ao determinar como regra geral a impossibilidade de renúncia a alimen-
tos, não fez qualquer menção à espécie de alimentos a que essa regra se apli-
ca, daí por que ela acaba se estendendo também aos alimentos provenientes
do casamento.
É notório, pois, o retrocesso operado pelo Código Civil atual, motivo pelo
qual a doutrina e a jurisprudência voltam a sustentar o seu posicionamento
anterior de possibilidade de renúncia aos alimentos se decorrentes do matri-
mônio. nesse trilhar, por exemplo, adverte Coltro (2004, p. 68):
[...] esses deveres são inconciliáveis com a união estável, uma vez que a
Constituição a recebeu e garante como união ontologicamente livre em sua
formação e em sua convivência. ora, se tais deveres não podem ser atribuí-
dos aos companheiros da união estável, então não poderiam ser mantidos
para os cônjuges, porque estariam a dificultar a conversão daquela em casa-
mento, em vez de facilitar, violando-se o disposto no art. 226, § 3º, da
Constituição. (lÔBo, 2005).
De outro lado, com fincas em lôbo (2005), advirta-se que “os únicos
deveres comuns tanto aos cônjuges quanto aos companheiros que não violam a
privacidade e a vida privada deles, nem interferem em sua comunhão de vida,
são o dever de mútua assistência e o dever de sustento, guarda e educação dos
filhos”, pois são deveres exigíveis e refletem interesse público relevante.
e se os deveres conjugais ainda fossem admitidos, eles não poderiam ter
a mesma roupagem de outrora. Desse modo, para o cumprimento do dever de
coabitação (artigo 1.566, inciso ii, do Código Civil de 2002), não seriam mais
suficientes a mera convivência sob o mesmo teto conjugal e a consequente
prestação sexual. a boa convivência entre quatro paredes, constante, ininter-
rupta, intensa e prazerosa, isso sim perfectibilizaria a vida em comum. Com
base nessa assertiva é que os tribunais vêm admitindo a existência de separa-
ção de fato entre cônjuges que residem no mesmo local, sustentam a imagem
de casados perante a sociedade, mas vivem às turras dentro do lar, muitas
vezes causando traumas inimagináveis em seus filhos, a exemplo do julgado
revista dos tribunais n. 574/271, que permitiu a concessão de alimentos para
o cônjuge que vivia sob o mesmo teto do seu par, pois reconheceu a separação
de fato entre eles.
É importante registrar também que, em um mundo globalizado como o
de hoje, onde os meios de comunicação e transporte são muito mais ágeis,
encurtando-se, portanto, progressivamente as distâncias, aumenta o número
de casais que residem em cidades, estados ou até mesmo países diferentes, não
sendo crível que o estado não reconheça tais relacionamentos como conjugais
apenas porque não houve o cumprimento do citado dever.
nessa linha de intelecção, Pereira (2006, p. 161) pontifica:
9 a esse respeito, registre-se que a 2ª vara Cível da Comarca de Brasília/DF, no bojo dos autos n.
2005.01.1.118170-3, em 21.5.2008, fixou em r$ 20.000,00 (vinte mil reais) a indenização por
danos morais destinada à autora, ex-esposa do réu, que teve sua honra subjetiva ofendida e sua
privacidade violada, tendo em vista que este a traiu com outra mulher durante a vigência do casa-
mento, traição esta demonstrada por emails trocados entre o requerido e a sua amante, nos quais
eles compartilhavam fantasias eróticas (sexo virtual) e comentários jocosos feitos pelo traidor
sobre o desempenho sexual da traída, afirmando inclusive que ela seria uma pessoa “fria” na cama.
humana, que procura a própria perfeição e a perfeição do cônjuge, na busca
da mútua realização, razão pela qual os consortes devem observar uma con-
duta de satisfação recíproca, própria de duas pessoas que se amam.
Como pode o estado ditar normas e dispor sobre a vida íntima e sexual do
casal, inclusive afastando a livre manifestação de vontade de pessoas capa-
zes? a quem interessa a “prestação sexual” além dos próprios cônjuges? uma
resposta é dada pelo jurista luso Pedro vaz Patto, que com clareza proclama
a não-intervenção do estado na intimidade dos membros da família, sobre-
tudo no sentido da (in)existência de um regime copular intramatrimonial.
(Pereira, 2006, p. 162).
[...] Por outro lado, enquanto obrigatoriedade da relação sexual, tal exigên-
cia faz-se ainda mais intervencionista pois contrária ao próprio princípio da
dignidade da pessoa humana e a um dos corolários da personalidade jurídi-
ca, qual seja a livre disposição do próprio corpo e da privacidade mais ínti-
ma. além de contrariar o princípio da menor intervenção estatal, tal obriga-
ção conjugal se coloca totalmente na contramão da lei do desejo.