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Curso Online de Filosofia


Olavo de Carvalho

Caderno de Curso
Volume I
Aulas 1 a 100

Mário Chainho
2

Índice

Aula 1 …………….……………………………………………………………………………………………… pp. 11


1. Os primeiros deveres dos alunos | 2. Duração do curso | 3. Amizade | 4. Exercício
do Necrológio | 5. Inspiração dada pela pessoa de Sócrates | 6. Santo Agostinho e a
confissão | 7. O método da confissão | 8. O obscurantismo moderno | 9. O
compromisso assumido ao entrar no Curso Online de Filosofia | 10. A busca da
confiabilidade máxima | 11. Leituras iniciais | 12. Conhecimento objectivo e
autoconhecimento | 13. A delimitação do terreno da filosofia por Sócrates, Platão e
Aristóteles | 14. A seriedade da busca filosófica | 15. A importância da capacidade
expressiva | 16. A literatura e as funções da linguagem | 17. Gramática Latina | 18.
Conhecimento e solidão

Aula 2 ……………………..……………………………………………………………………………………….. pp. 16


19. A nossa circunstância | 20. A importância do testemunho | 21. A absorção de
elementos culturais | 22. A fidelidade à experiência e a literatura | 23. A verdade |
24. Contacto com o filósofo | 25. Sensibilidade auditiva | 26. A profissão do génio |
27. A lógica como mundo da possibilidade | 28. Exercício da aceitação total da
realidade | 29. O símbolo e a escala de poder das personagens literárias | 30.
Conhecimento e comunicação

Aula 3 ……………………..……………………………………………………………………………………….. pp. 19


31. O fundamentalista e a crença em palavras | 32. Voto de abstinência em matéria
de opinião | 33. Exercício do Testemunho (Louis Lavelle) | 34. O entendimento na
leitura

Aula 4 ……………………..……………………………………………………………………………………….. pp. 21


35. Continuação do Exercício do Testemunho | 36. Os novos inimigos da alma | 37.
A instrumentalização do cristianismo pelo Estado | 38. O ódio ao conhecimento | 39.
O diálogo em solidão | 40. Reportório de ignorância | 41. A qualidade da leitura de
obras de ficção | 42. Exercícios de adestramento do imaginário

Aula 5 ……………………..…………………………………………………………………………….………….. pp. 24


43. A dialéctica do entendimento | 44. A lógica usada como camuflagem da
experiência real | 45. A camuflagem na ciência moderna | 46. A validação da
experiência comum | 47. Os universais abstractos | 48. O conteúdo dramático da
tese filosófica | 49. A busca da unidade do conhecimento na unidade da
autoconsciência | 50. As diferentes concepções da fé | 51. Exclusão e superação | 52.
Evocação das experiências do filósofo | 53. Exercício da Presença no Universo

Aula 6 – Especial curso “Introdução à filosofia de Eric Voegelin” ……………… pp. 28


54. Principais influências de Eric Voegelin | 55. Percurso intelectual de Eric Voegelin
| 56. Representação e modelos de ordem | 57. “Israel e a revelação” (Ordem e
História I) | 58. “O mundo da polis”, “Platão e Aristóteles” (Ordem e História II &
III) | 59. Cristianismo e modernidade (Ordem e História IV & V) | 60. Continuação
do programa de estudos de Eric Voegelin
3

Aula 7 ……………………..…………………………………………………………………………….………….. pp. 32


61. O mundo virtual | 62. A ampliação do mundo virtual | 63. A imitação como
instrumento de aquisição de meios expressivos | 64. Escritores de língua portuguesa
recomendados | 65. O movimento modernista brasileiro e a impotência da vivência
“naturalista” | 66. O amor ao trabalho como dever de bondade | 67. Aprendizagem
de línguas estrangeiras

Aula 8 ……………………..…………………………………………………………………………….………….. pp. 35


68. Os quatro blocos de adestramento prévios à prática filosófica | 69. Montagem da
estrutura de um problema | 70. A técnica filosófica | 71. Conhecimento por presença
| 72. A crítica literária

Aula 9 ……………………..…………………………………………………………………………….………….. pp. 37


73. O domínio dos instrumentos de pesquisa | 74. O estudo da filosofia por temas |
75. A falsidade existencial da “suprema beatitude do entendimento” | 76. A confissão
como antídoto contra a auto-divinização | 77. Recomendações bibliográficas sobre as
motivações da acção humana | 78. História da Literatura Ocidental (Otto Maria
Carpeaux)

Aula 10 …………………..…………………………………………………………………………….………….. pp. 39


79. O ocaso da classe letrada | 80. O carácter sistémico da inteligência | 81. Exercício
de leitura lenta | 82. Exercícios da Presença do Ser (Louis Lavelle e Narciso Irala) |
83. A transmissão cultural | 84. A experiência musical

Aula 11 …………………..…………………………………………………………………………….………….. pp. 42


85. Três tipos de educação | 86. Como refazer a educação

Aula 12 …………………..………………………………………………………………………….….………….. pp. 44


87. A influência do ambiente | 88. Dialéctica entre “poder” e “autoridade” | 89. O
processo científico moderno: da perda do facto concreto ao subjectivismo moderno

Aula 13 …………………..…………………………………………………………………………….………….. pp. 47


90. Lista de exercícios e práticas recomendadas | 91. Exercício da Biblioteca
Imaginária | 92. Exercício do Amor ao Próximo

Aula 14 …………………..…………………………………………………………………………...………..….. pp. 49


93. A questão da verdade | 94. A lógica de Aristóteles e a investigação da verdade |
95. A forma inteligível | 96. A ilusão iluminista

Aula 15 …………………..…………………………………………………………………………….………..…. pp. 52


97. O raciocínio intuitivo (experiência com as cartas de baralho)

Aula 16 …………………..…………………………………………………………………………….………..…. pp. 54


98. A alta cultura vista como um círculo de convivência humana | 99. O uso da
memória
4

Aula 17 …………………..…………………………………………………………………………….………..…. pp. 56


100. Os vários sentidos da palavra “ciência” | 101. A função da alta cultura

Aula 18 …………………..…………………………………………………………………………….………..…. pp. 58


102. Aristóteles pedagogo: categorias, predicáveis, causas, forma e matéria

Aula 19 …………………..…………………………………………………………………………….………..…. pp. 60


103. O que é conhecer algo (Exercício Descritivo) | 104. Exercício de rastreamento
da origem dos objectos

Aula 20 …………………..…………………………………………………………………………….………..…. pp. 62


105. Leitura de um texto de filosofia (O Ponto de Partida da Metafísica) | 106. A
impregnação na alta cultura

Aula 21 …………………..…………………………………………………………………………….………..…. pp. 65


107. O papel e o funcionamento da imaginação | 108. A construção da pessoa moral

Aula 22 …………………..…………………………………………………………………………….………..…. pp. 68


109. Mapeamento da situação mundial | 110. O poder, a ciência e os movimentos
revolucionários | 111. As promessas bíblicas da ciência moderna

Aula 23 …………………..…………………………………………………………………………….………..…. pp. 71


112. A cultura moderna como abolição da natureza e do homem (Bernanos) | 113. A
voz do coração

Aula 24 – Especial curso “Conceitos Fundamentais da Psicologia”..………….. pp. 73


114. O que é a psique? | 115. O desenvolvimento da psique | 116. O método dialogal
em psicologia | 117. A relação entre a psique e o “eu” | 118. O trauma da emergência
da razão | 119. O horizonte de consciência | 120. Pensar, meditar e contemplar

Aula 25 …………………..…………………………………………………………………………….………..…. pp. 77


121. Análise de texto | 122. Cepticismo e paralaxe cognitiva

Aula 26 …………………..…………………………………………………………………………….………..… pp. 80


123. A consciência, o mundo onírico e a especulação do possível | 124. A lógica
intrínseca aos objectos | 125. A percepção do círculo de latência

Aula 27 …………………..…………………………………………………………………………….………..…. pp. 81


126. A unidade do real | 127. A longa convivência com os problemas

Aula 28 …………………..………………………………………………………………..………….………..…. pp. 83


128. O exemplo da melhor educação medieval (a inveja dos anjos)

Aula 29 …………………..…………………………………………………………………………….………..…. pp. 85


129. A cultura superior como processo de desaculturação
5

Aula 30 …………………..……………………………………………………………………..…….………..…. pp. 87


130. A logica brasiliensis | 131. O progresso da ignorância | 132. O reconhecimento
da verdade nas coisas mínimas

Aula 31 …………………..…………………………………………………………………………….………..…. pp. 88


133. Os patamares da filosofia | 134. Distinção entre forma e matéria e distinção
entre distinções | 135. Filosofia e abertura para a eternidade | 136. O instinto da
verdade (Wilfred Bion)

Aula 32 …………………..…………………………………………………………………………….………..…. pp. 90


137. Exercício de Relaxamento em Consciência | 138. A jaula existencialista | 139. Os
esforços filosóficos de Olavo de Carvalho

Aula 33 …………………..…………………………………………………………………………….………..…. pp. 95


140. A obra literária e o produto filosófico | 141. O estudo da filosofia | 142.
Didascalicon e o senso da eternidade

Aula 34 …………………..…………………………………………………………………………….………..…. pp. 98


143. O papel central da consciência | 144. A responsabilidade colectiva dos alunos do
Curso Online de Filosofia

Aula 35 …………………..…………………………………………………………………………….……….. pp. 101


145. O estudo como uma sucessão interminável de aberturas | 146. A formação da
guerra cultural

Aula 36 …………………..………………………………………………………………………….………..…. pp. 103


147. Nova ordem mundial, tipos dominantes de personalidade e democracia
totalitária | 148. Exercício de Classificação | 149. O falso debate da modernidade

Aula 37 …………………..………………………………………………………………………….………..…. pp. 106


150. O pólo como símbolo do vice-regente de Deus na Terra (Suhrawardi) | 151. A
noção de forma em Aristóteles

Aula 38 …………………..………………………………………………………………………….………..…. pp. 109


152. O perdão como lei constitutiva do universo | 153. Superação (Nicolae
Steinhardt)

Aula 39 …………………..………………………………………………………………………….………..…. pp. 112


154. A restauração da linguagem | 155. O elemento moral implicado na vida
intelectual

Aula 40 …………………..………………………………………………………………………….………..…. pp. 113


156. As inversões revolucionárias em Karl Marx

Aula 41 …………………..………………………………………………………………………….………..…. pp. 118


157. A tradição primordial e a escola tradicionalista
6

Aula 42 …………………..………………………………………………………………………….………..…. pp. 121


158. O papel interventor dos alunos do Curso Online de Filosofia na sociedade | 159.
Os problemas do conhecimento científico | 160. O método confessional e o
testemunho

Aula 43 …………………..………………………………………………………………………….………..…. pp. 123


161. A diferença entre ciência e tecnologia | 162. A proposta da filosofia

Aula 44 …………………..………………………………………………………………………….………..…. pp. 126


163. A acumulação de registos | 164. O peso da ignorância | 165. Exercício do
Mapeamento da Ignorância

Aula 45 …………………..………………………………………………………………………….………..…. pp. 128


166. Características específicas da cultura brasileira

Aula 46 …………………..………………………………………………………………………….………..…. pp. 130


167. As bases do aprendizado | 168. O conhecimento como confissão

Aula 47 …………………..………………………………………………………………………….………..…. pp. 132


169. A estrutura da meditação | 170. Dois tipos de abstracção

Aula 48 …………………..………………………………………………………………………….………..…. pp. 133


171. Preceitos para a entrada na lógica clássica

Aula 49 …………………..………………………………………………………………………….………..…. pp. 136


172. Percepção e cepticismo | 173. O papel civilizacional da narrativa

Aula 50 …………………..………………………………………………………………………….………..…. pp. 138


174. A simples apreensão e as percepções adicionais | 175. A noção de juízo

Aula 51 …………………..………………………………………………………………………….………..….. pp. 140


176. Da simples apreensão de essências à formação de conceitos | 177. A formação de
juízos e os problemas da substancialidade | 178. O senso de infinitude

Aula 52 …………………..………………………………………………………………………….…….…..…. pp. 143


179. Ciências do conhecimento | 180. As limitações da perspectiva lógica-
matemática | 181. Cosmologia antiga e ciência moderna | 182. Ciência e poder | 183.
Res cogitans e res extensa | 184. Extensão e compreensão de um termo

Aula 53 …………………..…………………………………………………………………….…….………..…. pp. 147


185. As distinções aplicadas à ciência | 186. A tensão entre o finito e o infinito como
residência da inteligência

Aula 54 …………………..…………………………………………………………………….…….………..…. pp. 150


187. Exercício do Necrológio, mortalidade e evolução dos modelos de conduta
7

Aula 55 …………………..…………………………………………………………………….…….………..…. pp. 152


188. Problemas na interpretação de autores antigos e medievais | 189.
Conhecimento intuitivo

Aula 56 …………………..…………………………………………………………………….…….………..…. pp. 154


190. A verdadeira identidade do ser humano | 191. A concepção moderna de fé

Aula 57 …………………..…………………………………………………………………….………….…..…. pp. 157


192. Consciência de imortalidade

Aula 58 …………………..………………………………………………………………………….….……..…. pp. 160


193. A ciência ao longo dos tempos | 194. Ciência como projecto de poder

Aula 59 …………………..………………………………………………………………………….………...…. pp. 165


195. Música e alma imortal | 196. As várias modalidades do eu | 197. Fenomenologia
do acto sexual

Aula 60 …………………..………………………………………………………………………….………...…. pp. 167


198. Adultério e pecado original | 199. Antepredicamentos | 200. Da burocratização
da sociedade ao Movimento do Potencial Humano | 201. Psique, alma e espírito

Aula 61 …………………..……………………………………………………………………..….………….…. pp. 170


202. Experiência de imortalidade | 203. Imortalidade, ciência e filosofia | 204. Ezra
Pound sobre a função da literatura

Aula 62 …………………..………………………………………………………………………….………..……pp. 174


205. Preliminares essenciais à lógica | 206. Conhecimento, solidão e socialização |
207. O caminho de volta do conceito à experiência | 208. Ontologia de senso comum

Aula 63 …………………..………………………………………………………………………….………..….. pp. 177


209. Juízo e proposições | 210. Hayek e os estereótipos sobre o conhecimento
medieval | 211. O facto concreto e a alma imortal

Aula 64 …………………..………………………………………………………..………………….………….. pp. 181


212. Consciência meta-corporal e modalidades do “eu”

Aula 65 …………………..…………………………………………………………….…………….………..…. pp. 185


213. Hegel e o desenvolvimento do pensamento filosófico | 214. O problema da
verdade na filosofia moderna (Dardo Scavino) | 215. Reavaliação da linha de
pensamento filosófico dominante

Aula 66 …………………..…………………………………………………………….…………….………..…. pp. 190


216. A crítica linguística ao conhecimento objectivo (Dardo Sacavino) | 217. O
paradoxo da ciência moderna e a mentalidade revolucionária

Aula 67 …………………..……………………………………………………………….………….………..…. pp. 196


218. A influência da alta cultura na sociedade
8

Aula 68 …………………..……………………………………………………………….………….………..…. pp. 198


219. Os objectivos de longo prazo do Seminário de Filosofia | 220. A hipnose de
Wittgenstein | 221. A linguagem e a cultura como jaulas existenciais (Dardo Scavino)
| 222. Filosofia como história da filosofia (Dardo Scavino) | 223. A falsa oposição
entre fé e conhecimento

Aula 69 …………………..………………………………………………………………….……….………..… pp. 206


224. Notas sobre o movimento revolucionário | 225. A natureza da filosofia

Aula 70 …………………..………………………………………………………………….……….………….. pp. 210


226. A filosofia pós-moderna (Dardo Scavino) | 227. Sobre o poder

Aula 71 …………………..…………………………………………………..……………….…….………...…. pp. 215


228. O sentido da admiração | 229. O pensamento filistino (Zinoviev) de
Wittgenstein | 230. Os requisitos da busca filosófica

Aula 72 …………………..………………………………………………………………………….………...…. pp. 220


231. O predomínio das regras comunais (Zinoviev) | 232. A insuficiência da análise
estrutural de texto em filosofia

Aula 73 …………………..………………………………………………………………………….………...…. pp. 227


233. Alta cultura e o senso de hierarquia | 234. Do verbalismo à atitude
contemplativa | 235. A preparação de uma nova elite intelectual

Aula 74 …………………..………………………………………………………………………….………...…. pp. 229


236. As influências de Olavo de Carvalho | 237. A natureza teleológica da
individualidade (Josiah Royce) | 238. Pseudomundos criados pela linguagem | 239.
Hegemonia socialista (Ernesto Laclau e Chantal Mouffe) | 240. O progresso da
ignorância e o conflito de culturas

Aula 75 …………………..………………………………………………………………………….………...…. pp. 239


241. Estudo de um filósofo em profundidade | 242. A diferença entre a perspectiva
religiosa e a perspectiva filosófica | 243. Religião e ideologia

Aula 76 …………………..………………………………………………………………………….………...…. pp. 242


244. Máscaras de Descartes (Étienne Couvert)

Aula 77 …………………..………………………………………………………………………….………...…. pp. 250


245. A mentalidade prática imediatista | 246. A emoção | 247. A busca da coerência |
248. As consequências da filosofia de Descartes (Maxime Leroy)

Aula 78 …………………..………………………………………………………………………….………...…. pp. 256


249. Questões essenciais nas ciências sociais | 250. Fenomenologia do poder | 251. O
sujeito da História
9

Aula 79 …………………..………………………………………………………………………….………...…. pp. 261


252. Implicações da consciência de imortalidade na compreensão da História e da
sociedade política | 253. A falta de entendimento sobre o que é um princípio

Aula 80 …………………..……………………………………………………………………….………...…. pp. 265


254. O surgimento de teorias de conteúdo mutável e a arrogância universal

Aula 81 …………………..……………………………………………………………………….………...…. pp. 268


255. Filosofia e ortodoxia católica | 256. Condições da investigação filosófica | 257. O
problema da existência do mal no mundo

Aula 82 …………………..……………………………………………………………………….………...…. pp. 271


258. O discipulado filosófico | 259. Uma visão de conjunto da filosofia de Olavo de
Carvalho

Aula 83 …………………..……………………………………………………………………….………...…. pp. 279


260. A adaptação às situações da anormalidade | 261. Exercício das Camadas da
Personalidade | 262. O papel da virtude na vida intelectual (Sertillanges)

Aula 84 …………………..……………………………………………………………………….………...…. pp. 286


263. A perspectica escatológica e a visão substâncial do processo histórico

Aula 85 …………………..……………………………………………………………………….………...…. pp. 289


264. A expressão de impressões | 265. A filosofia administrada (Gustavo Bueno)

Aula 86 …………………..……………………………………………………………………….………...…. pp. 293


266.Engenharia social e agentes de transformação

Aula 87 …………………..……………………………………………………………………….………...…. pp. 299


267.O processo educacional como conquista da transparência

Aula 88 …………………..……………………………………………………………………….………...…. pp. 305


268. O aprendizado fonético e forma literária | 269. As condições para o falhanço do
planeamento centralizado | 270. Os limites da influência ambiental

Aula 89 …………………..……………………………………………………………………….………...…. pp. 310


271. Filosofia, cosmovisão e apologética | 272. Do nominalismo à perda da confiança
na ciência moderna

Aula 90 …………………..……………………………………………………………………….………...…. pp. 316


273. Imortalidade e vivência intuitiva da morte | 274. Dois tipos de mutação social |
275. O papel da ciência nas mutações sociais | 276. A imposição da ciência como
autoridade pública | 277. A criação de uma segunda realidade pela ciência moderna

Aula 91 …………………..……………………………………………………………………….………...…. pp. 325


278. Os sistemas metafísicos encarados como símbolos | 279. Filosofias abertas e
filosofias fechadas | 280. O impacto da ciência na sociedade (Bertrand Russel)
10

Aula 92 …………………..……………………………………………………………………….………...…. pp. 332


281. Principais itens da filosofia de Olavo de Carvalho | 282. Algumas investigações
de Olavo de Carvalho

Aula 93 …………………..……………………………………………………………………….………...…. pp. 339


283. O testamento filosófico de Ravaisson

Aula 94 …………………..……………………………………………………………………….………...…. pp. 342


284. O testamento filosófico de Ravaisson (cont.) | 285. A perspectiva do filósofo
face à perspectiva do agente político

Aula 95 …………………..……………………………………………………………………….………...…. pp. 346


286. A importância do elemento biográfico na compreensão da obra filosófica

Aula 96 …………………..……………………………………………………………………….………...…. pp. 348


287. A poesia lírica e a transição do discurso poético para o discurso filosófico | 288.
As relações entre linguagem e realidade

Aula 97 …………………..……………………………………………………………………….………...…. pp. 352


289. Leituras formativas essenciais para os alunos do Curso Online de filosofia |
290. Autores tidos como desconhecidos | 291. A busca da verdade

Aula 98 …………………..……………………………………………………………………….………...…. pp. 357


292. Clubismo intelectual e cultura verbal (“gostosão intelectual”) | 293. A estrutura
narrativa da realidade

Aula 99 …………………..……………………………………………………………………….………...…. pp. 360


294. Leituras formativas sobre o projecto socrático | 295. Entidades com acção
histórica | 296. Substância, essência, natureza e arquétipo

Aula 100 …………………..……………………………………………………………………….………...…. pp. 365


297. A constância da tradição pitagórica na História ocidental | 298. Conhecimento
do simbolismo numérico pitagórico (Mário Ferreira dos Santos) | 299. O fim da
alienação moderna e os novos riscos | 300. Arte e moral
11

[Aula 1]

1. Os primeiros deveres dos alunos


Depois das transcrições das aulas, o segundo dever dos alunos – por ordem de
exposição – é ter um caderno de curso para resumir não só as aulas mas também para
colocarmos as nossas ideias, dúvidas, questões, indicações bibliográfica. Tal é a função destes
apontamentos. Com este caderno pretendo traçar a linha expositiva central do Curso Online
de Filosofia, tal como a consegui entender. Muitas das indicações práticas dadas ao longo do
curso não são aqui tidas em conta, uma vez que já foram compiladas no volume “Exercícios e
Indicações Práticas”. α1

2. Duração do curso
O Curso Online de Filosofia tinha uma duração prevista, inicialmente, de 4 ou 5 anos,
depende da apreciação do professor. Mas são necessários muitos mais anos para poder
acompanhar o trabalho de um filósofo. Quem pratica uma arte sabe que é algo que se entra
para o resto vida ou não se entra realmente. Mesmo quando o aluno supera o mestre, ele sabe
de onde veio e a quem “tudo” deve. Querer confrontar o mestre e “cortar o cordão umbilical”
é coisa de quem não superou os desafios da adolescência e depois tenta lança-los no “lugar”
errado. α1

3. Amizade
Idem velle, idem nolle, este é o conceito de amizade segundo São Tomás de Aquino,
que remete para uma comunidade de valores, mas é também importante ter por amigos
aqueles que rejeitam as mesmas coisas. É fácil formar um grupo só com base no “ódio” ou no
“amor”, mas isso é desbalancear a nossa pessoa, que fica ou demasiado amolecida ou
demasiado presa à acção violenta, ainda que apenas mentalmente. Os amigos são para todas
as ocasiões, e jamais são aqueles que vendem a sua afeição à custa da de abandonarmos
aquilo que é mais próprio em nós. Aristóteles já dizia que a sociedade política só era possível
com base nos grupos unidos pela amizade, que começa por ser um dos pilares da nossa
personalidade. α1

4. Exercício do Necrológio
Fazer o Exercício do Necrológio, com sinceridade, é um sinal da nossa disposição em
entrar na vida intelectual, tal como entendida no Curso Online de Filosofia. Continuar a
refazê-lo continuamente atesta a nossa perseverança em nos mantermos nessa via,
remodelando-a ao longo do tempo. Neste exercício contamos a nossa própria vida, que
supomos ter terminado, como se fosse um amigo a fazê-lo. Relatamos a nossa vida ideal a um
terceiro, que não nos conheceu. Não importa os cargos que pensamos um dia ocupar mas
quem realmente queremos ser. Isto não apenas deve corresponder a uma profunda ambição
pessoal mas a algo que é também louvável aos olhos de terceiros. Sem dúvida que este é um
instrumento poderoso para obtermos uma imagem que nos orienta ao longo da vida –
fornecendo também um critério para julgarmos as nossas acções, sem o qual teremos por juiz
o falatório geral ou um complexo de medos e preconceitos –, desde que não seja visto como
12

um mero exercício. Apenas a nossa melhor parte, aquela que se expressa no necrológio, pode
falar com Deus. α1

5. A inspiração dada pela pessoa de Sócrates


O Curso Online de Filosofia inspira-se naquilo que a pessoa de Sócrates tem de
exemplo fundamental. Não perseguimos a filosofia como uma profissão, dado que isso nos
prenderia a exigências burocráticas, assim como ficaríamos presos à vaidade de
pertencermos a um clube restrito, que muitos esforços exigiria da nossa parte. A filosofia
começou de forma auto-consciente como uma espécie de clube de aficionados em redor de
Sócrates e depois continuou como um projecto legado por este, que foi modernamente
esquecido mas que tentamos resgatar aqui de alguma forma. Sócrates insistia numa vida
examinada: os seus interlocutores eram constantemente instados a olhar para a sua
verdadeira situação social e política, sendo este é o ponto de partida das meditações. Nunca o
académico moderno vai examinar a sua situação sociológica, constatando como isso o limita
ou beneficia. É algo que não faz parte do seu teatro; é como se ele partisse do princípio que
aquele ambiente universitário é o lugar natural para o conhecimento acontecer e tudo o resto
não passa de diletantismo. Sócrates mostrou como a sociedade pode tomar consciência de si
mesma. Nele confunde-se o conhecimento objectivo e universal das coisas com o
autoconhecimento, o que exige uma pessoa real, não um mero desempenhar de papéis
sociais. Isto já indica o que deve ser a técnica filosófica: uma conversão de conceitos gerais
em experiência existencial efectiva e vice-versa. α1

6. Santo Agostinho e a confissão


Santo Agostinho retomou à via socrática porque percebeu que a sua inteligência não
conseguia abordar com clareza as grandes questões. Antes disso era necessário limpar a sua
personalidade, como ele exemplificou nas Confissões. George Misch mostra, na História da
Autobiografia na Antiguidade, que isto foi uma novidade. Não encontramos na antiguidade
uma voz verdadeiramente pessoal. Agostinho já foi buscar o autoconhecimento dentro do
contexto da confissão cristã, onde tudo é exposto. Não há orgulho e nem vergonha, muito
menos especulação masoquista, apenas há a sinceridade mais profunda que nos é possível
naquele momento. Aqui se articulam o conhecimento almejado, a individualidade concreta –
com sua miséria, ignorância, esquecimento e auto-enganos – e a narrativa que nos coloca
diante do observador omnisciente. α1

7. O método da confissão
Agostinho faz-nos chegar ao método da confissão. Contamos para Deus a nossa vida,
mas Ele sabe mais do que nós, então, a nossa sinceridade é recompensada e obtemos um
pouco mais de conhecimento. Isto parece a descrição de uma prática mística a que poucos
poderão aceder, mas na realidade é algo quase impossível de não acontecer. Quando falamos
ou escrevemos sobre algo, usando toda a sinceridade, na sequência vem à nossa consciência
algo que antes não sabíamos, pontos se esclarecem, caminhos se abrem. Muitos vivem
escondidos, mesmo se exibidos publicamente, não tendo um lugar onde se expõem sem
restrições e sem condições, por isso não têm esta experiência tão simples quanto profunda,
sempre nova, revigorante. α1
13

8. O obscurantismo moderno
O obscurantismo moderno consiste em repetir os ditames do politicamente correcto
com toda a convicção, ainda que se trate de uma cretinice auto-contraditória. O engajamento
nestas coisas, por vezes motivado apenas por oportunismo, tem frequentemente efeitos
irreversíveis. Toda uma cosmovisão pode ter que ser refeita à volta de um absurdo com o qual
nos comprometemos, e se esse absurdo é compartilhado por muitos – especialmente quando
tem o selo de aprovação da universidade – acaba por passar por senso comum. Quando as
instituições estão corrompidas, querer um diploma desta proveniência não é apenas vaidade
fútil, é já querer fazer parte da corrupção. A aprovação deve vir de quem realmente sabe, dos
verdadeiramente qualificados, e também são estes que podem colocar em causa o nosso
trabalho. α1

9. O compromisso assumido ao entrar no Curso Online de Filosofia


O nosso compromisso com o mestre Olavo, de levarmos o curso até ao fim, prende-se
com a importância de recuperar a alta cultura no Brasil – e desta forma poder melhorar o
estado geral de coisas –, algo que não é possível fazer em mais nenhum lugar. No meu caso,
comecei por ser alguém de fora, a partir de Portugal, sem ter uma responsabilidade tão
directa de “salvar” o Brasil, mas com o dever de retribuir um pouco por tudo aquilo que de
precioso que aqui tenho recebido. α1

10. A busca da confiabilidade máxima


O objectivo da filosofia não é propriamente a obtenção de certezas mas a busca da
confiabilidade máxima, que feita através do exame dos nossos conhecimentos. Pode ser a
busca de uma “prova” mas é essencialmente a procura algo que sirva para fundamentar as
decisões da nossa vida. A ciência moderna quer ter autoridade pública mas não estuda a
realidade, apenas um conjunto de fenómenos seleccionados com base numa certa
uniformidade interna (procedimento tautológico). Esta actividade pode ter muitos méritos, e
certamente que é muito profícua em termos de promoção do desenvolvimento tecnológico,
mas tem o perigo de constituir uma alienação da realidade. α1

11. Leituras iniciais


Não importam muito as leituras no início do curso, porque o fundamental não é obter
cultura filosófica mas desenvolver a atitude filosófica. Sócrates não dialogava
infindavelmente sobre minudências, nem tinha a pretensão de fazer uma acumulação
quantitativa de conhecimentos, antes tentava que os seus interlocutores tomassem
consciência de assuntos que eles, afinal, já conheciam. É este recentramento da
personalidade que temos de começar por operar, para depois as leituras serem feitas a partir
deste eixo, que começamos a definir com o Exercício do Necrológio [4]. α1
14

12. Conhecimento objectivo e autoconhecimento


Sócrates buscava um conhecimento mais fundamentado do que a mera opinião, algo
que valesse pela sua autoridade intrínseca e não pela posição ocupada pelo seu portador ou
pelo seu poder de convencimento sobre as massas. Mas era um conhecimento que não se
podia destacar friamente da sua pessoa e Sócrates tinha, como pessoa concreta, que poder
acreditar naquilo. O intelectual moderno pode acreditar numa coisa totalmente diferente
daquilo que diz a sua disciplina académica, e apenas é exigido dele que desempenhe um
papel social diante dos alunos ou dos pares, e se as suas acções na vida pessoal estão em
desacordo com isso, ele é criticável apenas moralmente mas não cientificamente. Mas em
filosofia, a totalidade da nossa pessoa tem que ser sincera na admissão do conhecimento. Só
daqui poderá advir uma autoridade intrínseca para julgar os outros conhecimentos, onde
poderemos encontrar um “ponto arquimédico”, que para Mário Ferreira dos Santos era algo
com uma credibilidade máxima, onde uma verdade é tão óbvia e patente que nunca a
podemos esquecer. Quem julga não é a academia ou o professor, tem que ser o nosso juiz
interior. A filosofia é a busca de uma capacidade interna de discernir a verdade dentro da
máxima medida humana possível. Em termos de confissão, a parte que se arrepende é
hierarquicamente superior, não por ser diferente mas por ser mais abrangente, levando em
conta o conjunto da nossa personalidade e a complexidade da situação. O arrependimento
não pode ser uma coisa deprimente, o que nos fragmentaria ainda mais, tem de ser algo que
nos integre, juntando e elevando todos os elementos da nossa alma e da nossa vida. α1

13. A delimitação do terreno da filosofia por Sócrates, Platão e Aristóteles


Sócrates, Platão e Aristóteles delimitaram o terreno da filosofia. Eles são o chão em
que se baseou a filosofia posterior, daí as contribuições dos outros filósofos serem vistas, por
vezes, como notas de rodapé, que apenas desenvolvem temas levantados pelos “patriarcas”.
Claro que podemos corrigi-los, mas impugná-los significa destruir a própria filosofia, é
querer fazer outra coisa, que já não poderia tomar o nome de filosofia. Não apenas não
podemos desprezá-los como devemos seguir o caminho que vai de Sócrates a Aristóteles,
passando por Platão, começando pela observação da própria alma, fazendo especulações de
ordem moral e política, até chegarmos a um edifício sólido de conhecimentos. α1

14. A seriedade da busca filosófica


“Só valem as ideias dos náufragos”, dizia Ortega y Gasset. Esta é uma boa imagem da
seriedade que temos de colocar na nossa busca filosófica. Isto nada tem a ver com o
“pensamento crítico”, que é a busca de um rigor lógico alheio à realidade da experiência. A
filosofia não consiste em aprender a pensar, consiste em saber, começando por aqueles
conhecimentos imediatos e que estão em nós mas que permanecem mudos. O pensamento
serve para provocar a intuição, como dizia Aristóteles. E a intuição é uma percepção directa, a
que a dialéctica tem por objectivo chegar quando as coisas revelam o que são numa espécie
de salto qualitativo da nossa percepção. α1
15

15. A importância da capacidade expressiva


A sinceridade tal como a seriedade ficam comprometidas se a nossa capacidade
expressiva for débil, o que conduz a muitas confusões e a opiniões erradas. A experiência não
pode ser pensada directamente, tem que entrar na memória e ser convertida em conceitos.
Mas se a nossa expressão verbal é inadequada vamos acabar por trocar a experiência original
por um conceito distante. Mais concretamente, o conhecimento humano começa como
percepção, depois passa a memória e imaginação, e só depois pode se estabilizar em
conceitos verbalizáveis, que podem entrar nos raciocínios. Aquilo que se conserva na
memória não é o que vimos mas uma sua forma esquemática, que pode depois receber um
nome, e nós raciocinamos sobre o conceito implícito (ou sobre a definição explícita). Isto é
problemático, não só porque a definição pode estar errada como nenhum ente real pode ser
englobado integralmente numa definição. Então, o método filosófico exige o
desenvolvimento do senso do concreto e do abstracto, sem o qual corremos o risco de
tirarmos conclusões a partir de frases acreditando falarmos ainda sobre a realidade. α1

16. A literatura e as funções da linguagem


Para a nossa forma mental preservar a experiência tanto quanto possível, temos de
obter domínio da linguagem. A literatura é a expressão mais directa e completa do
imaginário e termos de nos valer dela – da grande literatura, porque aquilo que existe hoje já
não acompanha a realidade – para podermos descrever a nossa experiência e os nossos
estados interiores. A linguagem pública degradou-se muito e cumpre somente uma função
apelativa, de influência do outro, nos termos de Karl Bühler. Este falava em três funções da
linguagem, sendo a função a mais pobre de todas. As outras duas são: a função nominativa
(dar nomes às coisas e descrever a realidade); e a função expressiva (expressar sentimentos e
experiências). O escritor (poeta, romancista, dramaturgo) tem por tarefa transformar a
experiência individual em moeda de troca. A partir desta primeira, mais simples e imediata
síntese podemos construir conceitos. Então, só é possível restaurar uma discussão filosófica
séria restaurando primeiro a linguagem, o que não consiste em desenvolver uma cultura
literária livresca mas em aprimorar a linguagem expressiva e o imaginário que lhe
corresponde. α1

17. Gramática Latina


Para além do contacto com as grandes obras de literatura, é preciso também termos
um contacto mais material com a língua, sendo o latim é adequado para isso, especialmente
quando visto desde a perspectiva da Gramática Latina, de Napoleão Mendes de Almeida. As
primeiras lições desta obra introduzem os elementos fundamentais das orações, tal como o
latim convida a fazer, dado que nesta língua a leitura e a análise sintáctica confundem-se.
Não iremos estudar esta gramática para nos tornarmos experts em latim mas para
compreendermos melhor o português (assim como qualquer outra língua). A estrutura
gramatical conduz à estrutura lógica, e só desta podemos partir para a percepção da realidade
(assim como podemos fazer também o percurso inverso), mas se não temos domínio da
linguagem, nada podemos fazer. Também necessitamos de um mínimo de latim e grego para
captarmos alguns conceitos filosóficos. α1
16

18. Conhecimento e solidão


Conhecer é ficar a saber algo que os outros não sabem. Eventualmente, alguns
poderão saber, mas em geral o conhecimento deixa-nos isolados, especialmente quando os
outros se empenham em não saber. Um bom teste para sabermos se queremos realmente o
conhecimento é imaginar que não o poderemos partilhar com ninguém e tentar perceber se,
ainda assim, o queremos obter ou se é a vaidade ou o desejo de aprovação que nos motiva. α1

[Aula 2]

19. A nossa circunstância


As circunstâncias da nossa vida puxam-nos para vários lados e, em geral, não existem
para ajudar ou para atrapalhar, embora a conjectura actual seja muito opressiva. Mesmo os
factores adversos podem ser trabalhados em nosso favor, como mostra a vida de Viktor
Frankl. Mas se não tivermos um plano para unificar o nosso caminho – a imagem delineada
no Exercício do Necrológio [4] –, iremos andar “à toa” (como se costuma dizer nas grandes
empresas: “Ou tens um plano ou fazes parte do plano de alguém”). Ortega y Gasset ajuda-nos
também nisto, não só com o seu dito famoso “yo soy yo y mis circunstancias” mas também
quando diz que “a reabsorção da circunstância é o destino concreto do ser humano”. Só
escolhemos uma parte do que somos, o resto recebemos de fora, o que inclui a nossa carga
hereditária, que provoca certas tendências na nossa personalidade que nos são estranhas.
Szondi dizia que “as figuras dos nossos antepassados pesam diante de nós, exigindo que
repitamos os seus destinos”. Muitas escolhas (ambições, tendências, desejos, impulsos) que
fazemos são influenciadas pelas figuras dos nossos antepassados em nós, que podem fazer
exigências contraditórias e temos não apenas de reconhecê-las mas de criar uma voz
soberana que se sobreponha a todas. O Exercício do Necrológio [4] pretende criar um factor
unificante, que nos permita trabalhar com vários materiais heterogéneos e, ainda assim,
construir algo que os transcenda, integrando o antagonismo. No final, poderemos concordar
com Goethe quando este disse que não podemos experimentar nada de melhor do que a
personalidade. α2

20. A importância do testemunho


A filosofia exige um duplo preliminar: o adestramento da linguagem (expressão,
imaginário, literatura, [15] e [16]) e o adestramento do testemunho. A filosofia é ao mesmo
tempo uma tradição e uma prática através da qual essa tradição é restaurada, algo que vai
muito além da transmissão de conhecimentos. O fundamental é o trabalho feito na nossa
consciência, onde tomamos uma posse cada vez maior de nós mesmos como portadores de
conhecimento. O testemunho individual e solitário – aquele em que não podemos depender
de mais ninguém, não sendo por isso necessariamente subjectivo – torna-se fundamental.
Em última análise, todo o conhecimento depende de inúmeros testemunhos individuais em
que confiamos, porque não vamos repetir todas as experiências para os confirmar, além de
que há campos, como a história, em que os factos são irrepetíveis. Nos diálogos platónicos,
Sócrates adestra os seus interlocutores a serem testemunhas de si mesmos, sendo esta a base
17

onde a filosofia pode florescer. Para isso, é necessário ir além da linguagem pública e das
frases feitas, que reflectem um universo de crenças, ideias e percepções que podem nada ter a
ver com o que pretendemos. α2

21. A absorção de elementos culturais


Um terceiro preliminar à filosofia (ver em [20] a referência aos anteriores) prende-se
com a absorção de elementos culturais, porque a filosofia parte de questões públicas. Ainda
que estas não sejam questões filosóficas, serão experiências humanas, crenças colectivas,
símbolos incorporados na linguagem. Os vários elementos terão que ser trabalhados até
formarem questões filosóficas, o que é facilitado numa cultura pungente, com uma boa
literatura, mas num ambiente de caos cultural temos de fazer quase tudo desde o zero. Se
formos trabalhar a experiência individual, sensorial mesmo, temos de ter consciência de que
na sua verbalização e, até antes, no trabalho de memória a seu respeito já intervém um
elemento colectivo (cultural), que nos ajuda a reter as coisas por analogia mas que também
nos pode desviar da experiência originária quando o nosso repertório de elementos culturais
é pobre. Temos de ter sempre em conta a tensão e o afastamento existente entre aquilo que
vimos e aquilo que a cultura nos ajudou a reter. α2

22. A fidelidade à experiência e a literatura


Conseguir ser fiel à experiência directa depende de termos adquirido uma linguagem
pessoal propícia a uma actividade confessional, da testemunha que relata para si mesma
fielmente o mundo inteiro da sua experiência. A experiência genuína é preciosa, só ela nos
permite perceber claramente a diferença entre receber uma informação e criá-la. Essa
experiência pode parecer, por vezes, algo muito fora da normalidade, mas não a vamos
apagar. Queremos expressar a nossa experiência na sua singularidade mas de forma a ela ser
ainda reconhecível por outros. Este esforço ainda se enquadra dentro da actividade literária,
sem a qual não há filosofia. Uma experiência literária rica cria um imaginário forte, com
galerias de personagens que nos permitem identificar, por analogia, a nossa própria
experiência a partir de uma mistura de elementos de várias proveniências. Por isso, é
importante a absorção do legado literário – os grandes escritores transfiguram a experiência
genuína nos seus equivalentes culturais mais exactos e legítimos – e artístico. Não podemos
tratar filosoficamente a realidade bruta e menos ainda a figura que esta toma na cultura de
massas (a não ser que estejamos a estudar a própria cultura de massas, mas nunca podemos
assumir que o tratamento que esta dá aos assuntos é válido), que até parece estar falando da
realidade mas que tem fins bastante específicos. α2

23. A verdade
A verdade é aquilo que pode ser dito e que é confirmado pela realidade da experiência.
A verdade deve ser buscada na realidade e não na busca em sentenças gerais, que traduzem
sobretudo um afã de crença. A filosofia começou precisamente quando as crenças da antiga
religião grega já não eram suficientes para orientar as pessoas. α2
18

24. Contacto com o filósofo


Caso não sejamos daquelas raras pessoas que conseguem aprender sozinhas, só
podemos aprender filosofia com alguém que personifica uma tradição vivente, ou seja, com
um filósofo que nos mostra como se faz filosofia. Isto acontece muito nas artes, em que
podemos até ver alguém executar, mas se o mestre não exemplificar especificamente para nós
e confirmar que percebemos, apenas vamos conseguir fazer uma imitação vazia. Mas nas
artes há um fruto que permite aferir os resultados, ao passo que o filósofo deixa apenas
alguns escritos ou gravações, que revelam somente uma pequena fracção da sua filosofia,
sendo registos enganadores para quem não os saiba descodificar. Acresce que o filósofo passa
aos alunos sempre uma série de coisas indizíveis, matérias de estilo, coisas que só são
absorvidas pela convivência pessoal. α2

25. Sensibilidade auditiva


A sensibilidade auditiva é importante porque sem ela vamos encobrir a experiência
real de estar falando, pelo que o conteúdo acaba por ficar deslocado. A musicalidade da
língua está muito afectada pelas influências ango-saxónicas, pelo que é melhor, no início,
apostar no contacto com as línguas latinas (em termos puramente literários, já que o inglês é
fundamental para o aprendizado). Quando desaparecer o intervalo entre a nossa experiência
real e o nosso modo de falar, aí encontramos a nossa própria voz. O deslocamento pode estar
na forma, no conteúdo ou na própria voz física. α2

26. A profissão do génio


“Génio é aquele que inventa a sua própria profissão”, dizia Ortega e Gasset, pelo que
devemos cultivar em nós um certo aspecto do génio. α2

27. A lógica como mundo da possibilidade


A lógica lida apenas com o mundo da possibilidade, não nos fornece conhecimento. Se
for colocada no início do aprendizado irá viciar os alunos num abstratismo vazio, onde se
torna impossível qualquer contacto com a realidade. Antes do estudo da lógica é necessário
um aprendizado relativo à memória, à imaginação e à expressão, um aprendizado artístico,
por assim dizer, assim como é importante nos adestrarmos em sermos testemunhas
fidedignas [20]. Isto é a busca de um “estilo” verdadeiramente pessoal, de uma voz própria.
α2

28. Exercício da aceitação total da realidade


Na realização do Exercício do Necrológio [4] pode ser difícil sabermos o que
realmente queremos ser, talvez porque queremos demasiadas coisas; temos desejos violentos
e podemos nos iludir de que no meio de uma confusão de desejos exista um fundo que
realmente procuramos, quando ali reside apenas um vício que nos suga. Um exercício que
nos ajuda a nos situarmos neste caos é o da aceitação total da realidade, o que implica
colocar a realidade acima de qualquer um dos nossos desejos. A ideia é aceitar totalmente o
que nos acontece, sem levantar objecções e sem qualquer reclamação, tendo sempre em conta
19

que o real tem uma primazia extraordinária, dado que ele é a sede da verdade. Obviamente
que isto é importante para a própria objectividade intelectual (respeitante à moralidade da
investigação da verdade), mas também ajuda a definir o sentido do nosso necrológio, porque
acalma os nossos desejos vãos e fará surgir, gradualmente, as nossas ambições mais
profundas, a nossa vocação, que para alguns é um chamado de Deus, mas também podemos
ver como uma vontade que nos quer nela. α2

29. O símbolo e a escala de poder das personagens literárias


Diz Susanne Langer “o símbolo é uma matriz de intelecções”. Isto é fácil de esquecer
devido à coisificação do símbolo. Qualquer candidato a filósofo deve se preparar para ser
fecundado por Platão para o resto da vida, e sempre será obrigado a dizer: “ainda não
compreendi”. A literatura mais uma vez é uma base, porque sem a abertura para a
possibilidade da experiência humana que ela provoca, a descompactação do símbolo fica
muito pobre e provinciana. Daí a importância da escala de Aristóteles / Northrop Frye, que
gradua o poder das personagens: a) Deus omnipotente; b) personagens mitológicas ou com
poderes divinos; c) personagens sem poderes divinos mas com altíssima qualidade humana;
d) pessoas comuns; e) idiotas abaixo da situação. α2

30. Conhecimento e comunicação


Termos uma voz própria aumenta a nossa comunicabilidade, mas o mesmo não
ocorre à medida que obtemos um conhecimento cada vez maior e mais profundo. Precisamos
de ter consciência de que a ascensão na pirâmide do saber corresponde também a enfrentar
o seu afunilamento. α2

[Aula 3]

31. O fundamentalista e a crença sem palavras


Fundamentalista é aquele que acredita em frases como se estas fossem realidades,
segundo Eric Voegelin. Um conceito como “democracia integral” é um flatus vocis, mas é
perfeitamente possível raciocinar logicamente em cima dele. Isto já é pensar, mas a filosofia
consiste em pensar a realidade (sempre os pensamentos retroagem à realidade). Será que
este procedimento é apenas um detalhe? Isto fica respondido se pensarmos que a filosofia
originou erros que mataram quase 200 milhões de pessoas, nomeadamente através das
modernas ideologias de massas. Não são os pares que podem corrigir uma falta de
consciência moral de base, por isso, o testemunho solitário [20] tem que ser um hábito para
nós. α3

32. Voto de abstinência em matéria de opinião


20

O voto de abstinência em matéria de opinião começa logo por ser um questionamento


da importância de termos opiniões: As nossas opiniões vão mudar o estado de coisas em
algum sentido? A opinião inútil é sempre de evitar. É impossível desenvolver um testemunho
sincero se temos o vício opinativo. Mesmo a opinião idiota pode nos condicionar: vamos
querer defendê-la apenas por a termos proferido e a sentirmos como nossa. E nunca
podemos esquecer que o nosso direito de emitirmos opiniões tem o correspondente direito
dos outros em não querer escutá-las. Também devemos nos abster da opinião sem suficiente
lastro cultural e de experiência pessoal. Já dentro da esfera intelectual, torna-se importante
levantar o status quaestionis do assunto sobre o qual pretendemos opinar ou nem sequer
sabemos de onde surgiram as questões. α3

33. Exercício do Testemunho


Diz Louis Lavelle – numa passagem que é a base para o Exercício do Testemunho –
(do livro De l’Intimité Spirituelle):

«Há na vida momentos privilegiados nos quais parece que o universo se ilumina, que
a nossa vida nos revela sua significação, que nós queremos mesmo o destino que nos
coube, como se o tivéssemos escolhido. Depois, o universo volta a fechar-se:
tornamo-nos novamente solitários e miseráveis, já não caminhamos senão tacteando
por um caminho obscuro onde tudo se torna obstáculo aos nossos passos. A
sabedoria consiste em conservar a lembrança desses momentos fugidios, em saber
fazê-los reviver, em fazer deles a trama da nossa existência cotidiana e, por assim
dizer, a morada habitual do nosso espírito».

Todos nós temos uma vida individual e concreta, onde caminhamos como cegos, mas
também temos uma dimensão universal, que se revela quando “o universo parece que se
ilumina”. É a partir desta dimensão que temos de conceber o necrológio [4]. A ideia da morte
faz-nos questionar sobre quem somos face ao Absoluto, quando tivermos a nossa forma
acabada, porque sem ideia da morte não pode haver a noção de chegar a ser. A vida filosófica
também consiste no resgate cotidiano desta universalidade pessoal e não abstracta, onde
conseguimos aceitar profundamente o nosso destino. Isto também nos ajuda a fazer a ponte
entre as regras morais universais e abstractas (o mesmo se aplica às virtudes) e as situações
humanas, sempre concretas e particulares. A mediação é feita pela imaginação, em que o
bom ou o louvável são imaginados na nossa pessoa concreta, ainda que estejamos longe de
poder verbalizar isto.

A imaginação depende da nossa “colecção de figurinhas”, e se esta for rica e bem


organizada na nossa memória, temos a porta de entrada para a genialidade. Hoje em dia
temos imagens em excesso, temos a psicose informática, pelo que temos de coleccionar
imagens “modelares” que se sobreponham à cacofonia. Vemos demasiadas coisas e
habituamo-nos a ver pouco e a logo esquecer, mas temos que contrariar isto relativamente às
imagens realmente marcantes. O próprio “eu ideal” do necrológio funciona como um âncora,
que define um eixo e uma hierarquia que impedem a dispersão e a fragmentação .

A descrição do exercício continua em [35]. α3


21

34. O entendimento na leitura


Quando Jorge Luis Borges diz que “para entender um livro é preciso ter lido muitos
livros” ele já alude a uma das principais dificuldades em adquirir alta cultura. Um bom livro
fala do mundo, da História, do espírito, pelo que só o compreendemos se estas coisas já
estiverem de alguma forma despertas em nós, nomeadamente através da leitura de outros
livros. Não só temos de ler muitos livros como temos que reler alguns várias vezes para
começarmos a entendê-los, pela acumulação de pontos de comparação. α3

[Aula 4]
35. Continuação do Exercício do Testemunho
Prossegue Lavelle [33]:

«Não há homem que não tenha conhecido tais momentos, mas ele os esquece
depressa como um sonho frágil, pois ele deixa-se capturar quase imediatamente por
preocupações materiais ou egoístas que ele não consegue atravessar ou ultrapassar,
porque ele pensa reencontrar nelas o solo duro e resistente da realidade. Mas aquilo
que é próprio de uma grande filosofia é reter e reunir esses momentos privilegiados,
mostrar como são janelas abertas para um mundo de luz cujo horizonte é infinito, do
qual todas as partes são solidárias e que está sempre oferecido ao nosso pensamento
e que, sem jamais dissipar as sombras da caverna, nos ensina a reconhecer em cada
uma delas o corpo luminoso do qual ela é a sombra».

Existe uma dialéctica entre aqueles momentos em que todos os dados que captamos
da realidade aparecem-nos como plenos de sentido – unificados de algum modo, em que
desaparece o hiato entre realidade e idealidade –, e o momento seguinte, em que tudo se
fragmenta e a nossa consciência deixa de conseguir unificar o mundo dos factos,
especialmente nas situações opressivas, em que apenas o antagonismo nos parece ser o “solo
duro da realidade”. Nestes momentos de obscurecimento deixamo-nos ali guiar pelo medo e
depois justificamos as nossas escolhas a partir dessa nossa covardia não assumida, dizendo
que abandonamos o mundo ilusório dos sonhos para abraçarmos a dura realidade. Mas toda
a situação é externa e passa, não é nenhum “solo duro” a não ser o que se revela naqueles
momentos especiais em que o “universo se ilumina” mas, como não os conseguimos reter
facilmente, parecem-nos uma coisa fugidia e até ilusória, quando é ali que se encontra tudo o
que nos é mais próprio, íntimo e verdadeiro. Fazer o culto da situação externa – opressiva ou
sedutora – afasta-nos do centro da nossa consciência e, logo, da filosofia, que aqui
entendemos como a busca da unidade do conhecimento na unidade da consciência e vice-
versa. Louis Lavelle ensina-nos aqui como devemos perseverar em nós mesmos, não num
ensimesmamento mas numa abertura para o universal concretizado na nossa pessoa, que
deve ser vista à luz da morte, que nos mostra qual é a nossa verdadeira forma. A morte é aqui
encarada como o fim das transformações, quando já não é possível corrigir mais nada. O
22

sempre oportuno Georges Bernanos dizia que “o risco que corremos não é o de morrer mas o
de morrer como imbecis”. α4

36. Os novos inimigos da alma


O mundo dos desejos já não pode ser visto como o principal inimigo da alma, como
acontecia na Idade Média. Basta ver que hoje há muito mais gente motivada pelo medo e pela
necessidade de aprovação do que pela cobiça ou pela luxúria: estamos demasiado alienados
para sermos movidos pelos desejos. Desde logo, ocorreram profundas alterações no meio
social, que hoje é terrivelmente pressionante. Mesmo estando nós, nas democracias
ocidentais, cobertos de direitos, a nossa liberdade é imensamente coarctada por factores
económicos, pela organização física das cidades e por outras condicionantes que quase
sempre nos obrigam a trabalhar longe de casa.

Os serviços que foram disponibilizados às populações a partir da Revolução


Industrial, em número cada vez mais impressionante, trouxeram junto um enorme conjunto
de pressões e exigências. Existe a nova (em termos históricos) pressão dos horários, algo que
antigamente só os monges tinham, porque era benéfico para o seu modo de vida, mas que
seria uma tortura para qualquer outro tipo de pessoa da altura. Hoje também fazemos uma
separação rígida entre trabalho e lazer. A nossa natureza não está preparada para lidar com
estes novos factores mas, se nos quisermos subtrair a eles, vamos nos isolar da sociedade,
algo que também não conseguimos lidar com facilidade. Os problemas antigos, como doenças
ou insegurança, pesavam sobre toda a comunidade, mas os problemas modernos
essencialmente opõem o indivíduo à comunidade, e isso explica grandemente a génese do
romance. Não podemos vencer a sociedade materialmente, mas Lavelle aponta como
podemos impedir que ela nos destrua: temos de aceitar totalmente o nosso destino ou não
teremos qualquer domínio sobre a nossa existência. α4

37. A instrumentalização do cristianismo pelo Estado


O cristianismo surgiu num contexto em que os mais fracos não tinham qualquer
protecção, existia pedofilia, escravatura. Os valores cristãos vieram a incorporar-se na
legislação, contudo, imediatamente tornou-se impossível o perdão e o cristianismo
"judicializado” tornou-se numa nova forma de pressão e alienação. Cometer adultério pode
hoje destruir uma vida. A própria “família” foi uma conquista cristã para todos, mas o
casamento civil universalizou-se e, logo, o Estado passou a mediar até as relações amorosas,
que deixaram de ser verdadeiramente pessoais. Então, a família tornou-se num factor
alienante. Sempre pesa a ameaça de algum dos seus membros recorrer à justiça para fazer
valer os seus direitos. François Mauriac mostra como o meio burguês – criado nominalmente
sob valores cristãos mas onde se misturam de outra ordem – sufoca a verdadeira alma cristã
e, por vezes, a única solução para romper com isto é transgredir a norma social. Mas não
basta partir para uma transgressão com base no sexo livre ou nas drogas, levando toda a
falsidade consigo, porque no final acabamos por nos tornarmos ainda mais artificiais. Existe
o desejo de querer superar a sociedade, como se fosse possível nos colocarmos fora e acima
dela, mas o que temos de vencer é a “sociedade que está dentro de nós”, caso contrário
acabaremos por nos colocar numa posição ainda mais falsa e alienada. Goethe salientava a
23

importância de cumprirmos todas as nossas obrigações para com a sociedade, porque se


consentirmos que ela nos marginalize seremos escravos dela. α4

38. O ódio ao conhecimento


Existe uma pressão terrível voltada contra o conhecimento, que desperta inveja,
desprezo, gozação. Mas não são apenas as pessoas de fora que querem o nosso fracasso,
temos também em nós estes antagonismos, que formam uma voz que advoga em favor do
diabo. Por isso, a nossa capacidade de estudo deve ser graduada pela força moral que
adquirimos. Se assim não for, o próprio conhecimento pode se transformar num instrumento
de alienação e o estudo num mecanismo de emburrecimento. Alguns livros podem nos ajudar
a ter uma ideia mais clara desta situação: O Feijão e o Sonho, de Orígenes Lessa, e
Recordações do Escrivão Isaías Caminha, de Lima Barreto. α4

39. O diálogo em solidão


Ouvindo os discursos de muitos religiosos, parece que eles falam com Deus com a
maior das facilidades, como se fossem como o padre Pio. Serão todas gracejadas pelo dom da
fé ou é apenas um diálogo imaginário com uma falsa imagem de Deus? Diz Antonio
Machado: “Quién habla solo, espera hablar con Dios un día”. O diálogo em solidão tem de
preceder uma verdadeira conversa com Deus. α4

40. Repertório de ignorância


Qualquer coisa que seja possível de conhecer tem um coeficiente de ignorância que
não nos é possível vencermos, é algo que faz parte da estrutura da sua realidade. Existe outro
aspecto que ignoramos da coisa mas que é possível conhecer. É a partir desta distinção que
elaboramos o nosso repertório de ignorância: a lista daquilo que precisamos de saber para
compreender algo, e que se torna num programa de estudos. Para compreender aquilo que
sabemos e desconhecemos, torna-se importante diminuirmos o número de opiniões que
temos. Depois, temos de saber graduar os nossos conhecimentos: certeza absoluta; alta
probabilidade; crença verosímil; mera possibilidade. α4

41. A qualidade da leitura de obras de ficção


As leituras de obras de ficção são feitas com qualidade se delas conseguimos tirar
símbolos que nos ajudem a interpretar as situações reais. Vamos precisar de muitas leituras
para que os pontos de comparação se tornarem mais precisos, dado que no início serão muito
genéricos. Também é importante pegar nas grandes obras, que têm maior vitalidade e as
descrições saem directo da experiência, o que não acontece com as obras menores, que são
cópias de cópias e reflectem apenas experiências secundárias, literárias apenas. α4

42. Exercícios de adestramento do imaginário


24

Existem alguns exercícios – simples ou complexos, dependendo da dimensão que lhes


quisermos dar – bons para desenvolver o imaginário e a própria capacidade expressiva. Um
deles consiste em imaginar a vida de pessoas que conhecemos como um romance, o que nos
obriga a perceber as tensões que elas efectivamente viveram, como lidaram com ambições,
expectativas, etc. Outro par de exercícios consiste em fazer um roteiro de filme a partir de um
livro e, por outro lado, fazer uma narrativa a partir de um filme. Estes exercícios podem ser
muito trabalhosos se colocados por escrito, mas podem ser feitos imaginativamente com
relativa facilidade. Não só nos aproximam das situações reais que as pessoas vivem como nos
colocam em contacto com as dificuldades encontradas pelos ficcionistas. Obviamente que são
uma boa forma de usarmos a imaginação de uma forma menos usual e mais vívida, útil para
filosofia. α4

[Aula 5]

43. A dialéctica do entendimento


Diz Benedetto Croce (Lógica como Ciência do Conceito Puro):

«O pressuposto da actividade lógica são as representações ou intuições. Se o homem


não representasse coisa alguma, não pensaria. Se não fosse espírito fantástico, não
seria também espírito lógico».

Qualquer investigação lógica é feita, originariamente, a partir de experiências


humanas de realidade (sensações, intuições, representações) e não de pensamento, porque é
dessa forma que o mundo nos chega e não como uma estrutura lógica. Mas esta elaboração
inicial perde-se quando as próximas gerações têm apenas acesso ao discurso lógico. Então,
idealmente deve ler-se um livro de filosofia puxando uma série de experiências da exposição
lógica, que não têm que ser absolutamente idênticas às do filósofo, basta que sejam análogas
(o suficiente para reflectir as ideias expressas). Hoje praticamente só existe “troca de ideias”,
ou seja, uma verbalização sem substância de realidade. Mas nós temos que pegar nas obras
filosóficas e fazer delas “um sonho acordado dirigido”, tal como definia Paul Claudel uma
peça de teatro. A partir daqui tiramos uma série de dados, que para serem discutíveis terão
que ser traduzidos novamente em linguagem filosófica. A compreensão dá-se nesta
alternância entre discurso abstracto e consciência de experiências reais. α5

44. A lógica usada como camuflagem da experiência real


A linguagem lógica pode ser usada deliberadamente para esconder a experiência real,
tentando assim induzir-nos a uma espécie de hipnose em que ficamos enredados em
esquemas lógicos. Por exemplo, o autor pode usar uma metáfora ou outra figura de
linguagem mas apresenta-as como descrições objectivas da realidade ou de estados de facto,
como fez Descartes com a sua dúvida radical. Esta dúvida é impossível de vivenciar, pelo que
percebemos que ele devia estar se reportando a um estado de dúvida muito grande,
atemorizante – os sonhos com o génio mau –, e que tentou usar a lógica para gradualmente
recuperar as certezas e ultrapassar o temor, o que obviamente não foi bem-sucedido e ele
25

acabou por ter que apelar para Deus. Apenas retroagindo das palavras às experiências
podemos descobrir estes erros ou manipulações. Descartes apresentou uma análise lógica
para camuflar uma experiência e Kant fez algo idêntico. Por este tipo de razões, as filosofias
modernas estão estruturalmente erradas, ainda que apresentem descobertas de pormenor
geniais, ao passo que Platão e Aristóteles têm filosofias com muitos erros de detalhe mas que
mantêm a sua estrutura intacta. α5

45. A camuflagem na ciência moderna


A filosofia da época de Descartes é marcada pela camuflagem. Não por acaso, esta foi
a época do surgimento da ciência moderna, que pretende transpor todas as discussões para
um terreno neutro, onde tudo é idealmente resolvido através de observações, medições e
raciocínios matemáticos. Porém, os novos cientistas eram fervorosos ocultistas, magos,
alquimistas, gnósticos, mas queriam apresentar uma linguagem, perante o grande público,
despida de experiência humana, apenas norteada por uma fria objectividade, mas que
funcionava como uma forma de manipulação dos incautos, e que depois veio a introduzir
toda uma cultura do pensamento deslocado da realidade. Newton falava do movimento
eterno, mas isto é auto-contraditório porque o movimento necessita de uma referência
temporal e a eternidade não pode ser medida desta forma. α5

46. A validação da experiência comum


A primeira coisa que o filósofo deve fazer é validar a experiência comum e geral,
sabendo que nunca irá superá-la, apenas a pode tornar mais inteligível e somente em relação
a um número muito reduzido de pontos, tendo em relação aos restantes que aceitar os
conhecimentos de senso comum porque não terá tempo para verificar tudo. Ele não pode
começar pelo estado de dúvida integral ou ficaria bloqueado e não sairia dali. O mesmo erro
que faz com que algumas pessoas camuflem certas experiências para as transportarem para
um terreno frio, mensurável (a linguagem académica impressiona muito o jovem
universitário, que pensa que, entrando numa nova comunidade “superior, pode desprezar a
linguagem vulgar e “subir” para uma linguagem empostada, onde o mundo da experiência
pode ser desprezado), pode ser usado no sentido oposto, por exemplo, para negar a própria
experiência sensível, como aconteceu com Spinoza. α5

47. Os universais abstractos


É frequente na ciência história ou na sociologia aparecerem explicações que fazem
recurso aos universais abstractos, por exemplo, fazendo do “capitalismo” um agente
histórico. Quando não se sabe (ou se quer esconder) quais são os verdadeiros agentes e as
suas acções concretas, é muito cómodo recorrer aos universais abstractos. Trata-se de um
raciocínio metonímico – na metonímia há troca de um termo por outro de alguma forma
relacionado –, onde se oculta o verdadeiro agente. Não há problema em usar a metonímia
como figura de linguagem quando isso fica evidente, mas em ciência a metonímia é usada
quase que inconscientemente e as pessoas acreditam ainda tratar-se de uma descrição
objectiva da realidade. Também aqui precisamos da imaginação para fazer sobressair a
substância de realidade. Mesmo se não tivermos possibilidades de saber o que realmente
aconteceu, podemos sempre imaginar possíveis alternativas onde sobressaiam os agentes
26

humanos e não cair na tentação de apelar a meras tendências gerais. O próprio historiador é
obrigado a articular dramaticamente as acções e as falas dos personagens, assim como tem de
conceber hipóteses para tapar lacunas nos documentos. α5

48. O conteúdo dramático da tese filosófica


O dramatismo também está presente na exposição filosófica, ainda que isso não seja
logo evidente. Benedetto Croce dizia que apenas compreendemos uma filosofia quando
sabemos contra quem ela se levantou polemicamente. E Julian Marías dizia: «A fórmula da
tese filosófica não é: “A = B” mas “A não é B e sim C”». Há aqui uma oposição mas não
apenas de ideias. Por vezes, rastreando as experiências que estão por trás das doutrinas,
podemos até encontrar um material de base muito idêntico escondido por uma polémica
exterior muito acirrada. A reconstituição da filosofia antiga (trabalho de doxografia), da qual
restaram apenas fragmentos, necessitou de muita imaginação para conceber hipóteses e
também para levantar outras através de oposições que tinham sido feitas às filosofias. Havia
um conflito de pessoas reais, cujas doutrinas apenas expressam parcialmente as suas
experiências. E há um núcleo imaginário que foi compartilhado por quase todos os filósofos,
composto pela Bíblia, pela mitologia grega e pelo teatro grego. Mesmo a linguagem técnica
mais elaborada foi criada sobre a linguagem comum e sobre a linguagem poética, além de
haver constantes referências culturais para fora da linguagem técnica. α5

49. A busca da unidade do conhecimento na unidade da autoconsciência


Só existe unidade do conhecimento na unidade da autoconsciência em Deus, e a
filosofia busca conquistar e manter um pouco disto. O esquecimento vai sempre nos
perseguir e na nossa personalidade tem que ser cavado um sulco que corresponda ao senso
do papel da ignorância na nossa investigação filosófica. Muitos cientistas famosos falam
como se o domínio que têm numa área especializada lhes desse autoridade para opinar sobre
qualquer assunto, pelo que ignoram até a situação real a partir da qual escrevem, mostrando
que se deixaram capturar pela capacidade abstractiva e entraram em alienação, ou seja,
passaram a ignorar a estrutura da realidade e lançaram-se na acção cognitivamente
irresponsável – hipnótica e auto-hipnótica –, num teatro mental criado por eles. Dizia
Chesterton que a diferença entre o poeta e o louco é que o poeta mete a cabeça no mundo e o
louco mete o mundo na cabeça. Não inventamos o mundo, nunca o iremos abarcar, apenas
podemos nos abrir a ele e deixar que a realidade nos ensine. Mas a pressa em chegar a
conclusões pode fechar o círculo e também por isso é importante o voto de abstinência em
matéria de opinião [32]. α5

50. As diferentes concepções da fé


A fé é entendida hoje como a crença numa doutrina. Porém, durante séculos os
cristãos não tinham qualquer doutrina, só uma narrativa de factos. Alois Dempf (La
Concepción del Mundo en la Edad Média) mostra como a doutrina católica só lentamente foi
sendo elaborada, de forma fragmentária e pelo motivo de conseguir responder às objecções
que se faziam à narrativa, tendo só adquirido unidade com as sumas, mais de mil anos depois
27

do advento de Cristo. A doutrina não passa de um conjunto de pretextos intelectuais


elegantes para sustentar a confiança na pessoa de Cristo, mas isto não impediu que tivessem
existido muito teólogos heréticos ou que das explicações não continuassem sempre a surgir
novas objecções. Nada pode substituir a fé original, entendida como confiança. A narrativa
não é nem racional e nem irracional, só podemos considera-la verdadeira ou falsa. α5

51. Exclusão e superação


A exclusão não obriga ninguém a ser fraco, pelo contrário, é um estímulo para o
indivíduo ser forte e duro. Este estímulo em geral falta àqueles que nasceram em “berço de
ouro” e que acabam frequentemente por destruir a fortuna da família. A ideia de que a
exclusão legitima a fraqueza e a covardia é, obviamente, ideia de pessoas fracas e covardes
(que assim justificam os seus falhanços pessoais por uma suposta exclusão), mas se for
suficientemente difundida entre os excluídos pode acabar por se tornar numa profecia auto-
realizada. Há na literatura brasileira alguns exemplos de superação em situações de extrema
dificuldade, como em A Hora e a Vez de Augusto Matraga, de João Guimarães Rosa, ou em
Os Sertões, de Euclides da Cunha. α5

52. A evocação das experiências do filósofo


Quando lemos um filósofo – o comentário também é válido para a leitura de qualquer
opinião – o importante é nos colocarmos num ponto de vista em que a ideia que ele transmite
nos pareça verosímil. Então, vamos imaginar uma posição ou situação humana a partir da
qual conseguimos ver o mesmo que aquela pessoa. Para isso, temos que começar pela
suspensão da descrença, de que falava Samuel Coleridge. Pode ocorrer que aquilo que o autor
diz não seja possível de experienciar, o que indica que ele está a fazer uma camuflagem de
algo. Não devemos ter medo de sermos influenciados, nem vamos negar o grau de simpatia e
de co-participação ao autor, qualquer que ele seja, que permita vivenciar a experiência dele
até ao limite do possível. No que ele escreveu nunca estará a última palavra, outras leituras
trarão outras influências. α5

53. Exercício da Presença do Universo


Algum dia teremos de fazer isto: ir para um lugar descampado, sem ninguém, deitar,
sentir a densidade da terra por baixo e a infinitude do céu em cima. E vamos perceber que
estamos ali realmente, sem a nossa rede de contactos sociais, sem o nosso universo
linguístico. Este exercício visa a tomarmos consciência não-verbal da nossa presença física no
universo ilimitado e a desenvolvermos o senso da presença maciça da realidade, face à qual
os nossos pensamentos não podem absolutamente nada. Não é um exercício de sensibilização
para sentir mais coisas no corpo, é deixar que a realidade inteira da situação se manifeste,
incluindo o nosso corpo e os nossos pensamentos, em que cada coisa terá o seu modo de
presença. Por maior que seja o universo, ele não nos chega como um caos mas surge
terrivelmente organizado, tudo com uma certa perspectiva (visual, sonora, táctil). Trata-se de
aceitar a realidade e não ir atrás dela. Não é necessário fazer um esforço para bloquear os
pensamentos, basta perceber que estamos pensando neste lugar e que os pensamentos se
desenrolam aqui, nesta situação precisa. Eric Voegelin dizia que a experiência da realidade é,
em si mesma, transcendente, abrindo-nos para o infinito, e nós percebemos isso em situações
28

de grande perigo, onde as nossas ideias não contam para nada. A partir daqui também
conseguiremos perceber intuitivamente a diferença entre uma crença infundada, que só vale
pela repetição, e uma evidência intuitiva. A realidade é enorme e provoca espanto, thambos,
no dizer de Aristóteles, mas não temos de a temer e sim que nos abrirmos a ela. α5

[Aula 6 – Especial curso “Introdução à filosofia de Eric Voegelin”]


54. Principais influências de Eric Voegelin
Eric Voegelin recebeu inicialmente influências de Hans Kelsen (que tentou “purificar”
o Direito, considerando-o apenas como a estrutura formal da lógica normativa) e de Othmar
Spann (que valorizava uma concepção “holística” da sociedade, em que a totalidade se
sobrepõe à independência das partes). No livro The Form of the American Mind, ao referir-se
à sociedade nacional como uma forma, Eric Voegelin já estava a dizer que esta sociedade
realmente existe para além do aglomerado dos indivíduos, embora não chegue a ter uma
substancialidade no sentido aristotélico. O método de trabalho de Voegelin – reconhecível
desde início e que iria ser usado por ele para o resto da vida – não parte dos dados brutos
mas começa logo por usar documentos teoréticos, auto-expressivos. Este procedimento faz
lembrar Aristóteles, que partia da “opinião dos sábios”, mas também reflecte a influência que
Eric Voegelin recebeu de Eduard Meyer, que fazia a interpretação dos factos históricos a
partir da auto-interpretação que os vários agentes do processo tiveram, desde que já
elaborada teoreticamente. Esta metodologia permite diminuir o volume de trabalho a um
nível praticável e também é útil para identificar linhas de significado (continuidade de um
processo mental ao longo do tempo). Voegelin recebeu ainda uma influência significativa de
Paul Friedländer, um grande estudioso de Platão que usava o método de remeter as ideias e
as concepções filosóficas para as experiências reais que as tinham inspirado. α6

55. Percurso intelectual de Eric Voegelin


Voegelin já tinha passado vários anos a escrever um manual de história das ideias
políticas, tendo escrito milhares de páginas, quando percebeu que não havia continuidade
entre ideias políticas a não ser ressaltando o fundo de onde emergiram essas ideias. Assim, as
próprias doutrinas políticas teriam de ser investigadas como testemunhos auto-expressivos e
não como doutrinas. Então, abandonou este trabalho e começou a redigir a sua grande obra,
Ordem e História. Esta nova busca acabaria por entroncar com o interesse prévio que
Voegelin tinha mostrado pelas ideologias de massas (fenómeno que ele assistiu de perto em
Viena), e que o tinham levado a escrever dois livros sobre a ideia de raça (Race and State e
The History of the Race Idea). Ele descobriu que a doutrina racista só se tornou possível com
o surgimento do conceito biológico de raça, e que um discurso sobre a raça alheia não diz
nada sobre as raças mas reflecte a identidade do grupo ideológico a partir do qual ele é
proferido. Voegelin estudou neste período obras de autores tomistas e neo-tomistas, como
Hans Urs von Balthazar e Henri de Lubac, tendo este último escrito A Crise do Humanismo
Ateu, onde mostra que em autores como Nietzsche e Marx não há tanto uma rejeição de
Cristo mas sobretudo uma inveja e uma vontade de tomar o Seu lugar. Isto iria ter um peso
na ligação que Voegelin faria mais tarde entre as ideologias de massa e a heresia gnóstica. No
livro The Political Religions, Voegelin faz uma primeira tentativa de estudo abrangente das
29

ideologias de massas. Ele via os movimentos de massas como uma espécie de religiões
substitutivas, mas a analogia que logo lhe parece demasiado forçada, embora a ideia tenha se
tornado influente. α6

56. Representação e modelos de ordem


Depois de ter acumulado uma enorme quantidade de material sobre formas mentais
(mente americana, ideia de raça, ideias políticas), Eric Voegelin buscou um terreno comum
para investigar estas diferenças. Cada forma mental foi por ele encarada como um modelo de
ordem, como uma tentativa de ordenar a vida humana a partir de um determinado factor.
Surgiu, assim, o projecto de escrever uma história dos modelos de ordem, começando por
abordar as grandes civilizações cosmológicas do oriente (Mesopotâmia, Egipto), que foram as
primeiras a terem documentos auto-expressivos. Ele identificou nestas sociedades uma
ordem cósmica, não porque as sociedades imitassem a ordem vislumbrada do cosmos mas
porque se consideravam integradas nesta ordem, ao ponto de se considerar que a própria
ordem do cosmos teria de ser preservada por rituais sociais. Trata-se de um modelo fechado,
em que nada se encontra fora da sociedade, e outras ordens concorrentes teriam de ser
incorporadas ou representariam apenas o caos. Estas ideias foram usadas na Nova Ciência
da Política, em que Eric Voegelin estuda o fenómeno da representação. Ele percebe que não
existe apenas uma representação política, através de pessoas, mas existe também uma
representação existencial, em que a ordem como um todo representa a sociedade e fornece-
lhe, retroactivamente, os critérios de julgamento. Então, cada ordem cosmológica considera
que incorpora a verdade total e que o que está fora dela não tem uma existência legítima,
porque é falsa. α6

57. “Israel e a Revelação” (Ordem e História I)


A revelação hebraica (tratada no primeiro volume de Ordem e História, juntamente
com as civilizações cosmológicas) constitui um segundo modelo de ordem, onde se evidencia
uma ordem divina muito acima da ordem cósmica. Contudo, esta ordem abria-se em
primeiro lugar apenas para alguns indivíduos, tendo estes depois a função de ordenar a
sociedade em torno a partir da própria ordenação das suas almas. O profeta obtinha uma
ordem interna, que reflectia a sua relação com o Deus transcendente, e assim tornava-se juiz
e reordenador da sociedade. Mas é uma tarefa sempre incompleta, as pessoas podem não
obedecer ao profeta e podem mesmo recusar a revelação, como na história de Jonas (onde
reaparece um resíduo do simbolismo cosmológico), pelo que Israel estava permanentemente
em crise. É uma ordem muito mais exigente, depende da capacidade de apreensão e de
compreensão, mas também da fidelidade e da transposição para a sociedade. Nas sociedades
cosmológicas, os ritmos da natureza ou o movimento dos astros lembram continuamente a
ordem vivida, por isso é sempre uma tentação voltar a ela. Além do mais, a revelação não
acontece de uma só vez e demora a ser compreendida, o que inaugura a dimensão histórica.
Israel passa a viver na incerteza – já não há a repetição cíclica das civilizações cosmológicas
(que não eram propriamente atrasadas, como se pode ver nos livros de Schwaller de Lubicz,
Le Temple de l’Homme e Le Miracle Égyptien, e no livro de John Anthony West, Serpent in
the Sky) porque a História tem um início mas não tem um fim conhecido – e a nova ordem
30

depende da recordação e da fidelidade, o que tornou o esquecimento de Deus num tema


recorrente da literatura universal. Contudo, trata-se sempre de uma abertura para algo
superior, há um refinamento da percepção da realidade que conduz a grandes e substanciais
alterações na sociedade (o mundo cosmológico passa a ser visto como o Inferno), e Eric
Voegelin chama a este conjunto de transformações (mentais e sociais) de “saltos para dentro
do ser”. α6

58. “O Mundo da Polis”, “Platão e Aristóteles” (Ordem e História II & III)


Paralelamente à revelação hebraica, deu-se um segundo salto no ser na Grécia com a
emergência da filosofia, mas que já vinha a ser preparada desde muito antes a partir da
reordenação da mitologia por Homero e Hesíodo. A filosofia teve também um prelúdio na
tragédia grega, sobretudo com Ésquilo e Sófocles, onde surgiu a consciência das “leis não
escritas”. O filósofo é aquele que tenta descobrir algo da ordem divina através da razão, logos,
que no início não podia ser uma capacidade de pensamento lógico, porque a lógica ainda não
existia. Para ela existir é necessário um factor unificante, e Voegelin diz que a razão é a
simples tendência da inteligência humana em direcção ao fundamento, sendo este a própria
ordem divina. Os princípios universais, como o princípio de identidade, não dependem do
cosmos, e se não os aceitarmos na sua transcendência (eles são a própria ordem divina), o
pensamento lógico não é possível. Os pré-socráticos tentavam encontrar um princípio estável
por trás do cosmos em fluxo – a experiência do grego antigo é, como diz Heráclito, que “tudo
flui” – porque supunham a existência de um factor ordenador que transcende e abarca o
cosmos. Eles falam do fogo, do ar, da água, mas não podemos tomá-los como materialistas
estritos porque ainda não tinham uma linguagem apropriada para exprimir a nova intuição
da ordem divina, algo que se desenvolveu lentamente e de forma problemática, assim como
foi lenta e problemática a instauração da ordem derivada da revelação hebraica. Eric
Voegelin diz que estes dois saltos no ser têm a mesma substância divina, mas um é de ordem
neumática – relativa ao espírito que inspirava as acções dos profetas hebraicos –, e outro de
ordem noética, referindo a ordem puramente cognitiva derivada da busca dos filósofos
gregos, que acabam também por ter um estatuto de profetas. Julian Jaynes (The Origin of
Consciousness in the Breakdown of the Bicameral Mind) diz que os homens viveram até
certa época com os hemisférios cerebrais separados e não tinham consciência ou ego, que só
teria surgido com estes saltos no ser, que inauguraram a dimensão histórica, e isso fez com
que os hemisférios cerebrais ficassem ligados de alguma forma. Os habitantes da civilização
cosmológica acreditavam viver numa ordem global, onde mesmo a desordem tinha de ser
parte intrínseca da ordem – daí os seus deuses serem também meio demónios –, mas com a
inauguração da dimensão histórica todos estamos na fronteira entre a ordem e a desordem,
entre o cosmos e a transcendência. Vivemos numa tensão irresolúvel entre o finito da nossa
existência concreta e o infinito para o qual tendemos de alguma forma. A descoberta da nossa
existência neste entremeio – metaxis em Platão, metalepsis em Aristóteles – é um dos
patamares da filosofia (uma descoberta que, uma vez feita, ninguém tem o direito de a
ignorar). α6

59. Cristianismo e modernidade (Ordem e História IV & V)


Os dois saltos no ser (grego e hebraico) vão se fundir no cristianismo, agora já na
dimensão da vida de cada indivíduo em particular. Já não é algo que ocorre apenas ao nível
31

de uma comunidade que vive na tensão de uma existência histórica perante Deus. Parecia a
Voegelin ser possível construir uma narrativa da sucessão das ordens no ocidente. A
modernidade é caracterizada pela perda da existência diante de Deus, segundo Voegelin, pelo
que se trata de um modelo de ordem que apenas se pode definir negativamente, e que ele
considera ser derivado das seitas gnósticas. Estas trouxeram um alívio para a vivência dentro
dos novos modelos de ordem (hebraico, grego e cristão), em que a existência era demasiado
incerta e problemática, demasiado exigente e enervante no entender de Eric Voegelin. Não é
possível voltar ao modelo cosmológico, que desapareceu, mas as comunidades heréticas
desenvolvidas dentro do próprio cristianismo conservaram um resíduo da civilização
cosmológica. O gnosticismo apareceu em muitas seitas e o que as unifica não é uma doutrina
mas uma experiência de desordem, de terror-pânico, cuja fé se mostra impotente para
ultrapassar; é a perda da recordação de Deus, o que se agravou quando todo o conteúdo da
revelação transferiu-se para a doutrina. Este desespero leva os indivíduos a procurarem um
discurso final que resolva todos os problemas, com a proclamação de uma ordem total
hipotética, o que aumenta ainda mais o desespero. Daqui surgem “saídas” gnósticas, como o
evasionismo ou a projecção revolucionária de uma ordem total no futuro.

Eric Voegelin acabou por perceber que não existe uma sequência temporal das
ordens. Várias ordens distintas aparecem ao mesmo tempo, e ele acabou por dizer que “a
ordem da História é a História da ordem”, ou seja, a única ordem observável na História
humana é uma sequência de buscas de ordem, o que desmoraliza as pretensões de filosofias
da História como as de Comte ou de Marx. As modernas ideologias de massas surgiram de
duas linhas, uma gnóstica e outra messiânica (que Voegelin chamava de apocalíptica),
sobretudo expressa na reforma protestante na forma tomada por Zwínglio e Calvino na Suíça
e por Cromwell na Inglaterra. Não é ideia de Voegelin, mas hoje sabemos que os movimentos
revolucionários surgiram já com uma origem messiânica, e à medida que foram perdendo
substância cristã, foram adquirindo elementos gnósticos. Vogelin começou por identificar o
elemento gnóstico e no fim da vida percebeu que existia também o elemento messiânico, mas
não deixou claro como as duas coisas se relacionavam. Mais importante que conhecer as
“doutrinas” de Eric Voegelin (ou de Aristóteles ou de qualquer outro grande filósofo), é
conhecer o seu programa de estudos e continuá-lo, naturalmente tendo em conta as hipóteses
por ele levantadas, sabendo que não temos de chegar a nenhum resultado definitivo, porque
a verdade é filha do tempo, como dizia São Tomás de Aquino. α6

60. Continuação do programa de estudos de Eric Voegelin


Eric Voegelin deixou alguns pontos em aberto:

a) Como se transformaram os movimentos messiânicos em movimentos anti-cristãos e cheios


de elementos gnósticos?

b) Falta analisar o salto no ser da revelação islâmica, que também incorpora os saltos
anteriores, ou seja, é uma ordem histórica mas também tem um forte elemento cosmológico
(sem esquecer o padre Zacarias Boutros, que contesta a imutabilidade do texto corânico), e
ela tem um potencial de decompor a civilização ocidental mas também tem uma força
organizativa que falta aos movimentos revolucionários, que acreditam que na transformação
total da ordem da realidade mediante um acto de fé (fé metastática, segundo Voegelin);
32

c) Apesar da abertura para a transcendência ser importante nos saltos no ser, ela só ocorre
porque Deus decide intervir, pelo que falta um estudo dos milagres na História humana.
Voegelin foi influenciado por William James, que diz que sujeito e objecto se auto-constituem
e distinguem no processo de relação, o que coloca entre parênteses a questão da existência
objectiva, e assim fica de fora o problema da intervenção de Deus na História, que não pode
ser resolvido segundo a quaternidade que Voegelin define como Deus, o homem, o mundo e a
sociedade. A metodologia de Eric Voegelin, adoptada das ciências modernas, não permite
estudar o milagre, que é uma confluência de factores heterogéneos inseparáveis – o facto
concreto, por excelência –, ao passo que a ciência só estuda recortes da realidade. α6

[Aula 7]

61. O mundo virtual


É habitual fazer-se uma oposição entre o virtual e o efectivo. Contudo, virtual vem do
latim virtus, potência, e, nesse sentido, grande parte da nossa existência é virtual. Tanto o
nosso necrológio [4] como a nossa personalidade são virtuais, não se podem expor
fisicamente num determinado lugar. Se o nosso conhecimento se reduzisse apenas aos
elementos actualmente presentes em modo físico, estaríamos como alguém que acorda no
hospital, totalmente incapacitado e inconsciente. Mesmos os animais domésticos regem-se
por uma rede de virtualidades, têm expectativas de serem alimentados, apaparicados, de ter
um local para dormir, e tudo isto funciona a partir da memória deles e não se efectiva como
presença física real. A sociedade humana é um domínio ainda mais virtual, tal como o
sistema legislativo (é uma estrutura hipotética), mas interagimos uns com os outros em
função destas coisas. E há ainda toda uma série de leis não escritas, hábitos, costumes, que
não estão fixados em lado algum mas regem toda a nossa conduta, dado que contamos
sempre com uma multidão de reacções possíveis a cada acção nossa. Até mesmo na acção
individual somos espectadores de nós mesmos e podemos achar ridículos certas gestos que
fizemos. É ainda claro que a nossa existência histórica – algo que não está presente na
humanidade desde início – é também virtual.

Em suma, o ser humano não vive num universo físico mas num imenso sistema de
virtualidades, que se efectivam a toda a hora na nossa memória e nas nossas expectativas –
que não determinam a nossa conduta mas delimitam as nossas possibilidades de acção –, ao
passo que as situações físicas só se efectivam rarissimamente, pelo que é o mundo físico que
assume realmente para nós um carácter virtual. α7

62. A ampliação do mundo virtual


Viver eminentemente em função do que está fisicamente presente é característico dos
recém-nascidos, mas ao fim de pouco tempo mesmo os bebés também começam a orientar-se
por uma série de expectativas e apegos. À medida que crescemos, penetramos em círculos de
virtualidade cada vez maiores, havendo um salto substancial quando aprendemos a falar.
Quando isso acontece, o nosso poder de influência sobre os outros aumenta
significativamente e se acumularmos experiência suficiente na memória podemos contar a
nossa história. O amadurecimento humano consiste precisamente numa aquisição de uma
33

linguagem – entendida não apenas no sentido verbal mas como o conjunto do imaginário e
dos seus meios de expressão – mais rica, que nos permite entrar em círculos de existência
cada vez mais complexos e compreende-los. A educação é precisamente o processo de
aquisição progressiva dessa linguagem, entendida em sentido lato. A vida em sociedade atira
as pessoas para certos círculos de experiência para os quais elas não possuem uma linguagem
apropriada, e apesar de viverem aquelas coisas, a sua auto-imagem é bastante limitada, mas
os grandes escritores conseguem ainda assim narrar a experiência na sua complexidade. Daí
que o aprendizado literário deve ser o primeiro numa ordem de estudos. Em especial, temos
de procurar o domínio dos meios expressivos, pegando na linguagem comum, a mesma para
todos, e individualizá-la à medida das nossas experiências e expectativas. α7

63. A imitação como instrumento de aquisição de meios expressivos


Inicialmente, não podemos obter um domínio prático da linguagem analisando as
obras de arte literárias como objectos. Devemos obter os instrumentos expressivos imitando
os grandes escritores, um de cada vez (lendo toda a obra, de preferência), e no fim não
estaremos a imitar nenhum, porque as limitações de um serão corrigidas pela imitação de
outro, sem que tenhamos de ter preocupações de originalidade. É importante ler os diários de
Herberto Sales, publicados com o título Subsidiário. O próprio domínio da gramática
também se obtém por imitação, e só mais tarde iremos estudar formalmente as estruturas da
língua, quando já sabemos ao que elas se referem. Não só devemos adquirir instrumentos
expressivos como devemos saber usar os vários modos de discurso: temos de saber narrar a
experiência, ao menos o mundo das possibilidades através do discurso poético; o discurso
retórico serve não apenas para convencer os outros, é também um discurso de auto-
justificação que usamos para tomar decisões; quando procuramos um grau de certeza maior,
temos de enveredar pela confrontação de hipóteses, ou seja, entramos no discurso dialéctico;
e, por fim, há algumas questões que podem ser discutidas com um grau absoluto de certeza
(ao menos hipotética) através do discurso lógico. α7

64. Escritores de língua portuguesa recomendados


Escritores de língua portuguesa recomentados em aula:

«Da poesia portuguesa, você deve ler os seguintes nomes: Camões, Bocage — os
sonetos de Bocage são uma beleza! —, Antero de Quental, Fernando Pessoa, Mário
de Sá-Carneiro — esses são os nomes principais, você tem de ler de qualquer jeito.
Na literatura histórica, Portugal tem grandes historiadores, dois dos quais você tem
de ler de qualquer maneira: Alexandre Herculano e Oliveira Martins — este último é
um homem de uma inteligência histórica fora do comum, a História de Portugal dele
é básica, inclusive para entender o Brasil. Na parte da literatura ficcional, também
tem alguns autores que você não pode pular: Eça de Queirós, Camilo Castelo Branco,
Ferreira de Castro — que inclusive escreveu um belíssimo romance sobre o Brasil,
que se chama A Selva, a melhor coisa que já se escreveu sobre a Amazônia —,
Aquilino Ribeiro, Vergílio Ferreira e Lobo Antunes. Tem muito mais coisa, mas isso é
para você ter uma idéia da riqueza só da literatura de Portugal. O Brasil tem grandes
poetas, alguns dos maiores da humanidade, mas você comece por: Gonçalves Dias,
34

Cruz e Sousa, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Jorge de Lima, Murilo
Mendes e Bruno Tolentino — não deixe de ler esses. Desses autores, você procure
ter o máximo de livros de cada um deles. Aí, não é pesquisa bibliográfica, é coleção
de livros para começar a ler já! Na arte da ficção você vai ter que ler: Machado de
Assis, Raul Pompéia — que escreveu um livro só, O Ateneu —, José Lins do Rego,
Graciliano Ramos, Marques Rebelo, José Geraldo Vieira, Herberto Sales — se ler
esses, você vai entender a força da literatura brasileira. Aí já tem leitura para mais de
um ano». α7

65. O movimento modernista brasileiro e a impotência da vivência


“naturalista”
O movimento modernista brasileiro, nos anos 20 do século passado, ao contrário do
que aconselhava Graça Aranha, propôs que o homem se entregasse às suas tendências
naturais, à exuberância da natureza, a uma metafísica plena de superstições. Esta entrega ao
mundo das sensações primárias, às religiões animistas, ao carnaval, ao sensualismo imediato,
leva à total impotência. Assim, as pessoas não conseguem se organizar para resolver os
problemas mais elementares, porque só podemos reunir forças no mundo virtual. É uma
crença maligna acreditar que existe o mundo ideal num lado e, separado, o mundo real em
que somos obrigados a viver, o que leva a que os ideais desapareçam de vista e reste apenas
uma busca desenfreada de prazeres imediatos, palpáveis fisicamente. No livro Cangaceiros,
José Lins do Rego mostra simbolicamente o nascimento da civilização através da linguagem,
ou seja, a abertura significativa para o mundo virtual onde se podem unificar os vários dados
dos sentidos e assim as coisas ganham sentido, os problemas ganham inteligibilidade e
podem ser resolvidos. De outra parte, devemos ler A Selva, de Ferreira de Castro, sobre a
vivência na selva amazónica, para termos ideia de como pode ser terrível a pressão das forças
da natureza sobre o espírito humano. α7

66. O amor ao trabalho como dever de bondade


Devemos ter amor ao nosso trabalho, por pior que ele seja, porque é ele que nos
permite não sermos um peso para outras pessoas: este é o nosso primeiro dever de bondade
para com os outros. Não teremos o dia todo para estudar, mas mesmo se tivéssemos não
iriamos render, de início, mais que umas duas horas de estudo “duro”, isto é, de absorção de
novas coisas em profundidade. α7

67. Aprendizagem de línguas estrangeiras


Em termos de aprendizagem de línguas estrangeiras, o inglês é indispensável, porque
é a língua que tem maior número de traduções e de onde se pode ir buscar o maior número
de material para nossa atualização. O francês é também bastante importante, havendo muito
material importante que só temos nesta língua, além de ser um idioma bastante bem
trabalhado e que ajuda a escrever português, como mostra o exemplo de Eça de Queirós, ao
contrário da influência daninha do inglês. Outras línguas com utilidade literária e filosófica
são o italiano, o espanhol e o latim, permitindo este último a leitura de Cícero, um modelo de
como bem escrever. α7
35

[Aula 8]

68. Os quatro blocos de adestramento prévios à prática filosófica


A formação prévia à filosofia é feita através da circulação entre quatro blocos de
aprendizado:

a) Adestramento do imaginário, através da longa convivência com a grande literatura (teatro,


cinema, artes) por forma a acumular uma galeria de personagens e situações humanas que
sirvam de pontos de comparação para compreender não só as várias situações de vida e da
psicologia humana mas também as evocações por trás das obras filosóficas;

b) Adestramento da compreensão e do uso da linguagem, que se relaciona de perto com o


bloco anterior mas voltado para o aperfeiçoamento das nossas capacidades expressivas
(sobretudo, para conseguir expressar a experiência concreta) e também para o refinamento
da captação das subtilezas da linguagem e das correspondentes nuances das situações
humanas;

c) Adestramento da autoconsciência e aquisição do senso do ideal, que referenciam os


exercícios recomendados anteriormente (necrológio [4], testemunho [33, 35], aceitação total
da realidade [28], presença do universo [53], etc.), mas também aponta para a importância
de entranharmos a prática da confissão como método de chegar à verdade [7] e a necessidade
de sermos testemunhas fidedignas [20];

d) Aquisição de ferramentas de pesquisa erudita, de documentação (ver The Modern


Researcher, de Jacques Barzun e Teoria da História do Brasil e A Pesquisa Histórica no
Brasil, de José Honório Rodrigues e também a apostila “Problemas de método nas ciências
sociais”). α8

69. Montagem da estrutura de um problema


Para abordar qualquer questão (ver apostila “Quem é filósofo e quem não é”), temos
de começar por defini-la e munirmo-nos de toda a documentação a seu respeito. Depois,
vamos articular as várias hipóteses como se fossem uma teoria única. Este método – compor
a estrutura do problema a partir da sua história – era ensinado pelo padre Ladusãns e está
bastante bem exemplificado no livro Le Point de Départ de la Métaphysique, de Joseph
Maréchal. Quase todos os filósofos usaram este método (bastante explícito em Aristóteles),
para acrescentar depois as suas próprias contribuições, o que não quer dizer que apresentem
o assunto de maneira “histórica” (a verdadeira perspectiva histórica pretende ter em conta
todos os passos, mas nós, apesar de podermos usar os recursos do historiador, apenas
queremos traçar a evolução dos pontos relevantes para a discussão na nossa formulação
actual; é um critério filosófico). A exposição pode assumir uma forma sistemática, ensaística,
até poética, mas podemos tentar descobrir o processo investigativo que esteve por detrás
disso. Dentro do adestramento prévio ao estudo da filosofia, [68] este método faz uma ponte
entre o quarto bloco (aquisição das ferramentas de investigação erudita) e um quinto, que já
36

é a técnica filosófica propriamente dita. O verdadeiro filósofo é aquele que já incorporou os


seus antecessores como personagens do seu drama interior. Colocar um problema em
filosofia é um assunto mortalmente sério, não é uma tese de mestrado, é algo que deve servir
para a nossa orientação, até mesmo como se a salvação da nossa alma estivesse em jogo. Para
isso, é necessário ter a base nos quatro pilares referidos [68], para depois enveredar pela
investigação filosófica propriamente dita. α8

70. A técnica filosófica


Em relação à técnica filosófica propriamente dita, os livros recomendados são o
Manual de Metodologia Dialéctica, de Louis Lavelle, e o Logique de la Philosophie, de Eric
Weil. A técnica filosófica é a síntese dos esforços – que deve ser revivenciada por nós como
um drama – desenvolvidos desde a Grécia antiga com vista a lançar alguma luz sobre alguns
problemas. O nosso mundo da percepção real é imensamente rico, mas quando o tentamos
equacionar em termos racionais aparecem dificuldades e contradições de toda a ordem, e
parece que “deixamos de saber”. O esforço filosófico destina-se a transferir uma parcela da
riqueza infinita do mundo da percepção real (dada por Deus) para o mundo da razão,
entendido como aquilo que é comunicável e, assim, partilhável entre os seres humanos.
Sabemos muito mais coisas do que aquelas que sabemos que sabemos, por exemplo,
qualquer criança pequena sabe que está no mesmo mundo que as outras sem mesmo ter visto
esse “mundo”. Mas a crítica moderna ao conhecimento, sobretudo depois de Hume e de Kant,
faz uma distinção entre o mundo da natureza, que é absorvido pelos sentidos, e o mundo da
criação cultural, onde se incluiria o próprio mundo. Portanto, o mundo da cultura é algo que
se esfuma porque cada cultura tem a sua compreensão, e nós não poderíamos
verdadeiramente compreender as alheias. Algumas elaborações intelectuais podem dar a
entender que é assim – por exemplo, comparando as formulações de Heráclito, Parménides e
Zenão –, mas estamos todos no mesmo mundo, e a forma que o vemos é bastante
semelhante, pelo que o problema é a limitação da razão humana. α8

71. Conhecimento por presença


O conhecimento por presença é aquele conjunto enorme de conhecimento que está
por baixo do mundo das percepções. Não é conhecimento consciente e nem sequer
inconsciente (o que estaria limitado a algum processo interno nosso), é algo que é a condição
absolutamente necessária para perceber seja o que for, uma coisa que simplesmente deriva
da nossa presença no mundo. A acumulação que fazemos de material cultural – derivado em
primeira mão da percepção do mundo, transformando-se depois em literatura, arte, filosofia
– é uma experiência já tão densa que a confundimos com o próprio conhecimento efectivo do
mundo, quando é apenas uma sua representação simbólica, e isso encobre o nosso
conhecimento por presença, que é o verdadeiro conhecimento do mundo real. Algo deste
conhecimento por presença está insinuado nos trabalhos de António Damásio e de Rupert
Sheldrake. Este conhecimento por presença deve fazer parte da nossa técnica filosófica, algo
que a História da filosofia tem negligenciado mas que percebemos que estava pressuposto no
trabalho dos grandes filósofos. α8
37

72. A crítica literária


Para escolhermos o conjunto de obras de literatura que iremos ler, convém ter algum
convívio com a crítica literária, um género literário que chegou a ser exercido por grandes
escritores, mas hoje foi substituída pelos estudos académicos cheios de nada
(desconstrucionismo, estruturalismo). A crítica literária acaba por ser a primeira disciplina
filosófica, feita a partir de leitores privilegiados que criam um consenso sobre aquilo que é
importante ser lido. Alguns críticos sugeridos: Sainte-Beuve, Mathew Arnold, Adolfo Casais
Monteiro, Fidelino de Figueiredo, Otto Maria Carpeaux, Álvaro Lins, Augusto Meyer. α8

[Aula 9]

73. O domínio dos instrumentos de pesquisa


Sem um domínio dos instrumentos de pesquisa, da consulta de bibliografias, não
podemos fazer estudos de filosofia sérios. No período inicial do curso devemos aproveitar
para nos tornarmos excelentes leitores de índices e de resumos de livros, sabendo que a
internet nos dá hoje muita informação (e temos que saber como lidar com o excesso), em
especial sites como o www.questia.com são indicados para isto, mesmo se a óptica ali
adoptada não for exactamente a que nos interessa. α9

74. O estudo da filosofia por temas


O estudo de filosofia torna-se mais proveitoso se for feito por temas. Esses temas
devem ser escolhidos segundo o nosso interesse real e não devido a alguma imposição
externa. Já dizia Jean Guitton para “cavarmos onde estamos”. Devemos fugir dos grandes
temas universais abstractos – como a “contenda” entre determinismo e livre-arbítrio –, que
são enigmas diabólicos, viciados e dos quais as pessoas passam séculos sem os conseguir
resolver. Devemos escolher problemas que digam respeito à realidade da vida humana e não
a uma altura teorética meramente hipotética. Por exemplo, nem o determinismo nem o livre-
arbítrio se encontram na realidade de maneira absoluta, mas é desta forma que as discussões
são montadas. De igual forma temos a discussão entre “altruísmo e egoísmo”, que são
também duas hipóteses extremadas que nunca se verificam na experiência humana. α9

75. A falsidade existencial da “suprema beatitude do entendimento”


É comum a entrada no mundo dos estudos ser motivada por uma tentativa de chegar
à suprema beatitude do entendimento (Jacob Burkhardt), que seria a nossa colocação num
plano superior de onde podemos observar todo o fluxo de tragédias, misérias e comédias
humanas sem participar nelas, como se fosse apenas uma contemplação estética. Uma
variante desta suprema beatitude, mais activa, procura dirigir e influenciar os
acontecimentos, como ocorre nas correntes revolucionárias, mas ainda mantém a posição
sobranceira sobre este pobre mundo. Certamente que é necessário algum recuo cognitivo,
inerente a uma contemplação objectiva e imparcial da realidade, mas não se trata de uma
posição existencialmente possível de obter. Kant falava mesmo no “eu transcendental”, em
que o observador são só compreende o mundo da experiência como entende a própria
38

compreensão que tem desses factos, cujas condições só se revelam no curso da própria
experiência. A ilusão do “eu transcendental” começou a formar-se com Descartes, que
buscava na consciência da consciência um ponto de apoio universal onde podia ter uma
certeza absoluta, e embora isto seja uma coisa muito frágil, conduziu a um processo cada vez
mais agudo de auto-divinização. Gurdjieff criou a paródia do “eu observador” a ser
desenvolvido ao lado do “eu cotidiano”, sendo este último tido como ilusório (como outros
“eus”, embora na realidade o mais fictício de todos é o “ eu observador”), o que acabava por
tornar as pessoas totalmente amorais e cínicas, podendo cometer as maiores barbaridades
mas continuando a observar tudo com a maior neutralidade a partir do “eu observador”. α9

76. A confissão como antídoto contra a auto-divinização


A ilusão de chegarmos a uma posição de omnisciência [75] desfaz-se quando
entendemos que acima de nós existe o verdadeiro observador omnisciente e, portanto, não
podemos nos converter n’Ele, mas podemos pedir que Ele nos revele coisas que nós
ignoramos, até sobre nós mesmos, como mostrou Santo Agostinho, que falava a partir do seu
“eu” verdadeiro, “cavando onde estava”. Agostinho assumia-se como autor dos seus mínimos
actos. Até as coisas mais humildes que fizemos são preciosas, porque realmente aconteceram,
mas os pensadores modernos começam logo por recusar a estrutura da realidade, algo
característico do gnosticismo. Esta visão alienada está também presente nos próceres da
ciência moderna, que pensam ser possível eliminar a limitação do conhecimento humano,
sem perceber que não é possível um conhecimento infinito num ser com uma duração finita.
Um dos elementos fundamentais da estrutura da realidade é a presença do mistério, e isto
fica oculto para se embarcamos na crença de que será possível alcançar uma iluminação
geral, que nada deixará por saber. Então, isto conduz, na realidade, a uma limitação do
conhecimento que podemos obter, porque ao nos fecharmos para o mistério não podemos
obter aquilo que se desvenda a partir dele na confissão e na abertura para o conhecimento
por presença (que também é uma forma de confissão ou admissão). O importante não é
vencer as limitações do conhecimento – algumas delas fazem parte da estrutura da realidade
– mas encontrar um modo de vida em que sabemos conviver com o mistérios e no qual temos
o coeficiente de luminosidade suficiente para podermos, em cada situação específica, decidir
e pensar responsavelmente. Quando nos fechamos no “mundo dos pensamentos”, acabamos
por perder o próprio senso do imediato, da evidência, e aí já se torna impossível qualquer
conhecimento, é tudo delírio imaginativo. A solução é cavar onde estamos, admitirmos a
estrutura da realidade, narrarmos a nossa histórica (com a tensão entre o ideal e o concreto),
relatarmos os nossos conhecimentos, e aí ficaremos a saber um pouco mais. A confissão do
nosso conhecimento tem implícita a gradação do mesmo, ou seja, temos que saber se o que
falamos é apenas possível, verosímil, provável ou certo. α9

77. Recomendações bibliográficas sobre as motivações da acção humana


Recomendações em aula sobre as motivações da acção humana:

«Eu sugeriria que você lesse a introdução do Max Weber ao livro Economia e
Sociedade, onde ele discute as condições da ação, e a obra A Ação Humana, do
Ludwig Von Mises, na parte introdutória, e não nos detalhes de economia. Sugiro
ainda que você estude o livro de Paul Diel, Psicologia da Motivação. O Julián Marías,
39

no livro La Estrutura Social, escreveu coisas muito boas sobre a estrutura da ação
humana, e espalhada ao longo da obra dele há muita coisa interessante. O próprio
Ortega y Gasset escreveu sobre isso, ao tratar do problema da escolha. Os livros do
Viktor Frankl podem ser muito importantes nesse estudo. O Lipot Szondi também
tem contribuições importantes. A bibliografia desse assunto é imensa. Com o tempo,
eu procurarei dar mais dicas». α9

78. História da Literatura Ocidental (Otto Maria Carpeaux)


A História da Literatura Ocidental, de Otto Maria Carpeaux, deve ser lida desde já.
Daqui podemos elaborar a nossa lista de leituras (poesia, ficção, romance, etc.) para o resto
da vida. α9

[Aula 10]

79. O ocaso da classe letrada


Em condições normais, a literatura, a filosofia, a ciência e outros produtos culturais
são recebidos, em primeiro lugar, por uma classe letrada, que irá julga estas obras. Acontece
que actualmente tanto os produtores da alta cultura como a classe letrada foram substituídos
por um activismo militante, muito devido à ocupação de espaços gramsciana. Apesar da
ignorância destas pessoas, elas têm o prestígio e autoridade das elites cultas perante um
público ainda mais inculto. Isto conduziu ao desaparecimento da alta cultura, algo que
praticamente consumou-se no Brasil (e está perto disso em Portugal, em que os intelectuais
de valor são muito idosos ou fazem um trabalho discreto e sem qualquer penetração na
sociedade, mesmo na classe culta, que também está cada vez mais reduzida e imbecilizada).
Tomar consciência desta miséria cultural, moral e humana e libertarmo-nos dela é mais
importante do que todos os conhecimentos positivos que possamos obter ao longo do curso.
Mas não podemos ter a ilusão de que já nos tornamos alunos qualificados porque tivemos
umas aulas com o Olavo de Carvalho e que rapidamente estaremos prontos para ultrapassar
o mestre. Aristóteles foi aluno de Platão durante 20 anos e só depois, respeitosamente, tentou
corrigir algumas coisas do seu mestre. Isto deve ser um exemplo para nós, que somos muito
inferiores a Aristóteles. E não temos que achar que temos o direito a sermos intelectuais, é
algo que tem que ser merecido. α10

80. O carácter sistémico da inteligência


A inteligência humana não é uma função especializada, ela tem um carácter sistémico,
é uma espécie de condensado de toda a nossa experiência: ela é a parte superior da nossa
personalidade que unifica tudo. Existe a tentação de isolar pedaços da realidade onde não
queremos que a inteligência entre, porque tememos que isso afecte as nossas relações sociais
40

ou as nossas crenças estabelecidas. Mas ao fazermos isso estamos a destruir a nossa


inteligência, cuja manutenção depende da prática da sinceridade. A aquisição de
conhecimento pode até danificar a nossa inteligência, caso não seja acompanhada de uma
abertura sincera e se destine apenas a construir uma muralha à volta dos temas que não
queremos abordar com sinceridade. α10

81. Exercício de Leitura Lenta


Neste exercício de leitura de um livro de filosofia, à nossa escolha, vamos apenas ler
duas ou três frases por dia, nunca mais do que um parágrafo ou uma parte com uma certa
unidade de conteúdo. Cada frase deve ser transformada num objecto de meditação, ou seja,
usamo-la para fazer um confronto aprofundado com a nossa experiência e conseguirmos
reconhecer a experiência interior a que o autor se refere ou uma análoga, ou seja, devemos
nos colocar numa posição em que diríamos o mesmo que o filósofo. Para isso vamos usar
elementos de memória, imaginação, associação de ideias, etc. Apenas nos daremos por
satisfeitos quando cada frase se tornar em percepção. Os conceitos abstractos têm de se
transformar em exemplos concretos vivenciados e reais. Quando passarmos para uma
segunda frase ou para um segundo parágrafo (aquilo que corresponder à nossa leitura
diária), para além da absorção imaginativa existencial mencionada, vamos articular com o
que veio antes, porque também existe o aspecto da continuidade na leitura. Não iremos
discutir com o autor ou ficar analisando (algo que pode ser feito mais tarde, quando já
tivermos a posse do objecto) mas vamos transformar o livro numa sequência de experiências
interiores, tal como o maestro que executa mentalmente a partitura. Este exercício levará
vários anos a ser realizado mas mudará a nossa vida intelectual. De início as evocações serão
mais difíceis de obter, aparecerão lentamente, mas depois iremos ganhar velocidade, além de
que iremos aumentar o nosso leque de memórias e experiências interiores, pelo que será
mais fácil encontrar pontos de comparação. Ao fim de 20 anos de hábito de ler assim, cada
frase transforma-se num mundo de evocações, e esse mundo de evocações é largamente
incomunicável, mas a nossa personalidade é constituída em grande parte destas coisas.

Os livros de Louis Lavelle são bons para este trabalho – ver em [82] a exemplificação
prática do Exercício de Leitura Lenta com uma passagem deste filósofo – e os de Aristóteles,
sendo um conjunto de notas de aula, só podem ser lidos assim. Os grandes leitores sempre
leram assim, e é pela absorção dos seus antecessores que os escritores e filósofos se
incorporam na tradição. α10

82. Exercícios da Presença do Ser (Louis Lavelle e Narciso Irala)


Diz Louis Lavelle, no início (depois da introdução) do livro A Presença Total:

«Há uma experiência inicial, que está implícita em todas as outras, e que dá a cada
uma delas a sua gravidade e a sua profundidade: é a experiência da presença do ser.
Reconhecer essa presença, é reconhecer, no mesmo acto, a participação do eu no
ser».

Esta frase servirá para exemplificar a forma de realizar o Exercício de Leitura Lenta
[81], e também fornecerá alguns exercícios a serem posto em prática mesmo por quem realize
o exercício de leitura com outro livro. A presença do ser – de tudo o que existe – é tida aqui
41

por Lavelle como a experiência fundamental, da qual todas as outras dependem. Primeiro,
faremos um exercício imaginário de tentar suprimir a presença do ser, fecharemos os olhos e
imaginamos que não há nada. Iremos falhar mil vezes, mas vamos tentar e, em cada vez, dar-
nos-emos conta de que algo sempre permanece, nem que seja a nossa respiração. Num
segundo nível, iremos tentar imaginar que nós mesmos não existimos.

Numa segunda fase partimos na direcção oposta e tentaremos perceber


conscientemente a presença do ser. Esta é uma presença tão óbvia que nunca pensamos nela,
é apenas uma admissão de passagem, que até pode ser desmentida pelo nosso raciocínio.
Mas convém, desde logo, distinguir as coisas que chegam à nossa consciência e aquelas que
são criação nossa. Para isto usaremos alguns exercícios do Narciso Irala (Controle Cerebral e
Emocional, livro que tem muitos outros exercícios úteis). Primeiro, um exercício de
percepção passiva: vamos deitar, relaxar, fechar os olhos e tentar perceber todos os ruídos em
torno, distantes e próximos (em vários círculos concêntricos), até chegarmos aos sons do
nosso quarto e aos do nosso próprio corpo. Todos estes ruídos não nos chegam apenas como
som, trazem a consciência de um emissor e de uma distância, ou seja, percebemos presenças,
além de haver também a percepção de uma série de inúmeras presenças latentes (que não são
meras possibilidades abertas mas poderes que estão no ponto de se poderem manifestar),
que não captamos sensivelmente mas sabemos que estão lá e que são elas que nos dão
realmente a inteligibilidade das situações. Tudo isto não estava a ser percebido
conscientemente mas não era completamente ignorado, era uma espécie de pano de fundo,
mas agora trazemos estas coisas para primeiro plano.

Depois, passamos a um exercício de construção mental: de olhos fechados,


imaginamos um fundo preto e traçamos um quadrado com linhas brancas, primeiro da
esquerda para a direita, depois pegando na ponta direita e fazer um ângulo recto, e
continuamos até fechar a figura. É importante identificar e exercitar a construção mental não
apenas para afinarmos a nossa percepção do ser mas também porque o nosso círculo de
experiência imediata é limitado e só conseguimos conceber muitas coisas por actividade
construtiva. A articulação com o exercício anterior garante que a nossa construção mental
não nos isola da realidade. O senso da presença do ser é também o senso de continuidade,
algo que não pode vir da memória ou do raciocínio, que são fragmentários, e eles operam em
cima da nossa própria continuidade, tal como o mundo verbal opera em cima da
comunicação não-verbal. α10

83. A transmissão cultural


A aquisição de conhecimento é sempre individual. A tradição cultural é aquilo que
vários indivíduos conseguiram repassar a outros, onde cada um consegue apenas transmitir
uma pequena parte daquilo que adquiriu. A transmissão cultural é bastante problemática
dado que é necessário começar tudo de novo a cada geração. A acumulação de registos pode
ajudar nisto mas é também um problema. Por vezes, é mais fácil descodificar a realidade –
que contém todos os conhecimentos – do que descodificar certos registos humanos sobre ela.
E se não há ninguém capacitado para fazer essa descodificação, tudo pode ser perdido numa
geração. A recuperação só pode ser feita por certos elos: pessoas capazes de recuperar uma
tradição. α10
42

84. A experiência musical


A experiência musical é bastante importante para o enriquecimento do imaginário. A
música é a arte da continuidade, uma sequência muito bem organizada de emoções e
experiências que se desenrola no tempo. Como não temos imagem, vamos tentar apanhar a
continuidade das experiências interiores, e para isso devemos conseguir decorar certas
melodias ao ponto de conseguir assobia-las ou trauteá-las. α10

[Aula 11]
85. Três tipos de educação
Na actual situação em que vivemos não existem postos relativos ao exercício da vida
intelectual a serem ocupados. Por isso, os alunos devem criar novas funções, novas
identidades públicas e papéis, ou seja, é preciso criar a própria vida intelectual que
praticamente deixou de existir. Mas não basta colocar em prática o currículo da educação
liberal, é necessário ir mais atrás. O primeiro tipo de educação é aquele recebido em casa.
Trata-se de uma educação da personalidade, das emoções, das reacções básicas, dos valores,
etc. Caso esta educação moral tenha falhado, temos de a refazer agora, pois este aglomerado
emocional orienta toda a nossa vida, é a nossa personalidade de base. Existe hoje a tendência
de transferir estas coisas para a escola cada vez mais cedo, mas ainda é um tipo de educação
fundamentalmente dada no seio da família.

A escola é o local onde surge um segundo tipo de educação, a educação social, onde
aprendemos as regras formais válidas para toda a comunidade, e que contrastam com as
regras recebidas em casa, que variam enormemente de família para família. A escola dá a
formação para a cidadania e ela funciona como uma sociedade em miniatura; perde-se o lado
emocional (positivo ou negativo) e fica realçado o lado mecânico das relações. Trata-se de
uma educação essencialmente disciplinar.

A educação intelectual é um terceiro tipo de educação, inicialmente também


disciplinar mas que idealmente volta-se para uma compreensão e elaboração pessoal das
coisas.

Quando os agentes de guerra cultural tomaram conta das universidades, uma


verdadeira educação intelectual tornou-se praticamente impossível, porque estes agentes não
querem fortalecer a capacidade intelectual dos alunos, pretendem antes que estes se
comportem de determinada maneira, que se integrem em certos grupos, ou seja, trata-se
ainda de uma educação social. Isto explica o autoritarismo extremo de muitos estudantes
universitários, os mesmos que chamam de “fascistas” aqueles que não estão alinhados com
eles. Não é apenas a produção intelectual que decai em consequência, desde logo há uma
total ignorância em reconhecer a própria situação em que se encontram.

No Curso Online de Filosofia é necessário tratar, ao mesmo tempo, dos três tipos de
educação: moral, social e intelectual. É necessário fazermos um exame retroactivo da
formação que recebemos ao nível moral – como ela condiciona as nossas reacções de base e
os nossos valores –, assim como ao nível social – que condiciona a identidade social que
43

achamos que temos, assim como nos inculcou um medo de certas ameaças vagas (que foram
colocadas em marcha no nosso imaginário e que realmente nunca chegam a se efectivar). A
educação intelectual apenas deve ser desenvolvida quando estas anteriores forem refeitas.
Aristóteles dizia que o homem maduro era aquele indicado para o estudo da filosofia. Em
[86] temos indicações mais precisas sobre a forma de refazermos a educção moral e a
educação social. α11

86. Como refazer a educação


O exercício da vida intelectual não é compatível com nenhum tipo de cobardia, nem
física nem mesmo moral, por isso não podemos ter medo de rever a nossa vida nem de
sermos repudiados por esta ou por aquela pessoa. É tristemente comum procurarmos ser
respeitados por pessoas que nem sequer respeitamos (função puramente animal), quando
devíamos seleccionar bem as pessoas cuja aprovação e a companhia nos são benéficas, que
são aquelas que promovem a nossa elevação. A simpatia pessoal momentânea é bastante
enganosa, nada revela do que a outra pessoa é, e logo ela sente-se com intimidade para falar
mal de nós, mas sabemos bem que não podemos contar com ela se precisarmos de dinheiro.
Frequentemente, não percebemos que entramos em discussão com outras pessoas porque
queremos a aprovação delas, mas só é lícito entrar numa discussão pública quando já não
precisamos da aprovação dos outros contendores, ou seja, já estamos numa posição de dádiva
– o intelectual faz um trabalho de salvação pública e, tal como o médico, não tem que agradar
os seus “pacientes”, apenas tem que os curar –, o que reflecte a conquista da maturidade. O
homem maduro é aquele que assume e confessa a sua própria história. Esta maturidade não
era possível até certo ponto da história, e foram necessários vários séculos de confissão cristã
para Santo Agostinho ter escrito as suas Confissões, que nos servem de modelo. O exame de
consciência é uma prática cristã associada a esta, depurada ao longo de dois mil anos, que
nos indica o caminho.

A prática da confissão, entendida na forma do exame de consciência e não


propriamente na forma ritual, é a forma de refazermos a nossa educação moral (e social, em
parte). É a única técnica que existe, independentemente da nossa religião ou de não termos
nenhuma. Podemos usar as questões usadas nos manuais de teologia, assim como práticas
complementares, como a rememoração platónica das actividades do dia, antes de irmos
dormir, ou alguns exercícios do Narciso Irala (Controle Cerebral e Emocional). Devemos
sondar outros aspectos para além dos referidos nos exame de consciência padrão,
especialmente o ódio ao conhecimento em nós, que reflecte o ódio à verdade e é um pecado
contra o Espírito Santo. Outro aspecto a sondar em nós é o mimetismo neurótico – apenas
querer parecer –, quando o mimetismo deve ser um instrumento pedagógico para adquirir
certas qualidades efectivas. Outros aspectos que podem estar presentes em nós são: a inveja
destrutiva em relação aos melhores; a carência afectiva; e também a cobardia induzida.

Relativamente à educação social, para além do aspecto confessional referido acima, é


necessária uma actuação mais activa para refazê-la. Temos de questionar sobre qual a
posição social que queremos disfrutar e começar a fazer o necessário para lá chegar, abrindo
o caminho a cotoveladas (“Génio é aquele que inventa a sua própria profissão”, dizia Ortega y
Gasset), tendo nós já o precedente do professor Olavo que criou o seu posto actual. Temos
que descobrir novas fórmulas de actuação, incluindo novas formas de subsistência que não
nos tornem tão dependentes de factores imprevisíveis.
44

Não podemos começar a nossa educação intelectual aceitando as categorias usadas na


actual discussão pública, seja nos jornais ou nas universidades. Mesmo na sociedade
americana (ou na francesa) tudo é descrito ou como intelecto ou como emoção, em que
supostamente a emoção vai contra a razão. Dizia Schuon que parece ter mais razão o sujeito
que diz friamente que “2+2=5” do que aquele que responde emotivamente que são “4”. A fria
objectividade esconde frequentemente emoções primárias de medo, ódio ou mesmo de
sadismo mental. Já a emoção é a repercussão que algo teve sobre a totalidade do nosso ser
psicofísico, é uma medida da importância do que a coisa teve para nós, que até pode ser
desadequada, mas se a ignorarmos estamos a escamotear a nossa presença no quadro, o que
é totalmente irracional. Razão significa essencialmente proporção, e as emoções entram nela,
pelo que não devem ser abstraídas mas educadas de modo a reflectirem os dados da realidade
e não uma fantasia imaginária (o que seria um sintoma histérico). Outra oposição rotineira
que não nos leva a lado algum é aquela entre “fé e razão”. α11

[Aula 12]

87. A influência do ambiente


Quando se fala em determinismo metafísico, como no protestantismo, está em causa
o destino eterno, o que não tem o mesmo alcance que o determinismo behaviorista, que diz
que o ambiente condiciona os indivíduos, pelo que o livre-arbítrio seria um mito. Averiguar
este último tipo de determinismo não é um problema metafísico mas científico ou
experimental, assim, apenas podemos ter uma resposta empírica e que não garante uma
validade para todos os seres humanos. É fácil perceber que as pessoas não são todas
condicionadas da mesma forma pelo ambiente imediato, mas a própria noção de ambiente
não é um conceito descritivo mas uma figura de linguagem, tendo vários significados
consoante o contexto.

O ambiente pode ser visto como a circunstância de Ortega y Gasset, mas até onde vai
ela em termos espaciais e temporais? Para uma criança pequena, o ambiente é uma coisa
muito limitada, funcionando os pais como um mapa do ambiente externo, sem os quais ela se
perderia em cada esquina. O adulto não apenas pode percorrer espaços muito maiores do que
a criança como ganha autonomia em relação ao espaço. Essa autonomia também aumenta
em relação a outros domínios, como o da linguagem ou o das relações humanas, que
funcionam como chaves de abertura para outras relações (algo análogo também se dá com
algumas ferramentas, que nos podem abrir o ambiente, como o caso do computador). O
ambiente dá-nos uma série de referências – espaciais, temporais, linguísticas, afectivas,
comportamentais, etc. – mas não determina se as vamos apreender ou não. A educação é o
processo que visa ampliar este quadro de referências e ter maior domínio sobre elas. A
influência do ambiente não é directa, é mediada pela nossa capacidade de aprendizado, caso
contrário todos os alunos da mesma turma iriam aprender por igual. O ambiente funciona de
forma limitadora, dado que não podemos aprender aquilo que não está nele, ainda que de
forma mais ou menos oculta. Há também que ter em conta que o ambiente pode nos estar a
pressionar numa direcção e o nosso “karma familiar” (no sentido em que Szondi falava no
peso que exercem em nós os nossos antepassados) estar a indicar outra. Isto implica
45

frequentemente uma escolha, o que significa abandonar algo, que pode ou não continuar a
pressionar desde dentro.

Falar em influência ambiental sem desmultiplicar o problema nos aspectos acima


mencionados não quer dizer absolutamente nada. O ambiente tanto pode ser o nosso bairro
neste momento como o cosmos nos últimos milénios. Além de que a noção de ambiente não é
perfeitamente homogénea, subentende a existência de vários círculos que não estão incluídos
uns nos outros, por exemplo, o ambiente familiar não é determinado pelo ambiente físico.
Mais que isso, estes dois tipos de ambiente operam em sentidos opostos, pois se o ambiente
físico nos prende num certo lugar, o ambiente familiar permite-nos adquirir um maior
domínio espacial. O aumento de uma esfera pode significar a diminuição de outras, por
exemplo, o domínio da linguagem e a expansão do nosso ambiente socio-cultural vai
diminuir o peso do nosso ambiente familiar – e cada um destes círculos exerce em nós não
apenas um poder mas também uma autoridade [88].

A imensa variabilidade do que pode ser entendido como “ambiente” e a quantidade de


influências sobrepostas (e frequentemente contraditórias) que este contém mostra como se
pode debater infindavelmente a questão da “determinação do ambiente” sem chegar a
qualquer conclusão sólida. Além disso, as teorias em circulação costumam fazer abstracção
da liberdade metafísica que carregamos em nós – não é apenas uma liberdade que consiste
em não estar determinado por nada, algo só reservado a Deus, mas a liberdade em
escolhermos o que nos determina –, para no final afirmarem que ela não existe. O método da
confissão permite desfazer os nós deste abstracionismo vazio. α12

88. Dialéctica entre “poder” e “autoridade”


O ambiente é constituído por uma série de círculos sobrepostos, cada um deles
exercendo sobre cada indivíduo um certo poder mas também uma certa autoridade (ver o que
foi dito anteriormente sobre a influência do ambiente [87]). A nossa conduta é condicionada
pelo conjunto de símbolos de autoridade que possuímos e que, de certa forma, conquistamos
e constituem o nosso quadro máximo de referências. Em cada fase da nossa vida existe uma
dialéctica entre poder e autoridade (entendidos neste contexto não propriamente como
conceitos exactos mas como figuras de linguagem que ilustram suficientemente a situação).
Na primeira infância, o ambiente físico é um poder mas a família aparece-nos como uma
autoridade, em quem confiamos para obter um maior domínio territorial. Mas logo a família
passa a ser vista como um poder e a televisão, a escola ou o ambiente social em torno passam
a ser entendidos como autoridades. Esta dialéctica vai existir sempre em nós: uma antiga
autoridade passa a ser vista como um poder e, então, necessitamos de uma autoridade mais
elevada para tomar o seu lugar. Encaramos neste contexto o poder como uma limitação de
facto que pesa sobre nós e a autoridade como uma limitação aceite e mesmo auto-imposta
tendo em vista a libertação de uma limitação que, agora, nos parece pior. A educação é a
busca de autoridades cada vez mais elevadas (cada vez mais subtis e dependentes da posse de
uma linguagem abstracta) que nos livrem dos poderes que pesam sobre nós em cada
momento.

Tudo isto fica hoje bastante deturpado quando as pessoas dão mais importância à
“comunidade científica” do momento (que pode ser composta de idiotas presos num
“provincianismo temporal” e prontos a escravizar quem se deparar com eles) do que à
comunidade dos sábios tomada ao longo de toda a História. Claro que Platão, Aristóteles ou
46

Leibniz têm mais autoridade do que um chefe de departamento, mas este tem o poder de
boicotar trabalhos, por exemplo. Um verdadeiro letrado, intelectual ou homem de cultura
tem de tomar por autoridade e como horizonte os maiores sábios de todos os tempos, é
destes que se tem de esperar aprovação. Eles não apresentaram soluções para todos os
problemas (as que apresentaram são quase sempre genéricas), e deles depreendemos um
incitamento implícito: só os podemos presentificar através da leitura, e aí só dirão “sim” ou
“não” às nossas questões, ao mesmo tempo que nos abrem milhares de possibilidades. Nos
sábios há sempre um encorajamento para tentarmos descobrir algo que eles não
conseguiram, sabendo que eles estão perto dos limites intransponíveis da inteligência
humana. Já a comunidade científica actual parece ter, em abstracto, uma ambição desmedida
sobre as potencialidades da inteligência humana, como se esta não fosse deixar um mistério
por resolver, mas na prática está sempre pronta a ostracizar quem se discorde um pouco das
suas crenças. São Tomás de Aquino sugeria que tomássemos os grandes sábios como nossos
juízes permanentes. Se não fizermos isto, não teremos entrado na verdadeira educação
intelectual, que para nós permanecerá um adestramento social. Apenas quando já tivermos
tomado contacto com a máxima medida humana, estabelecida pelos sábios, entenderemos o
que lhe está acima, que é a autoridade divina, a que revela a própria estrutura da realidade,
que está acima de qualquer ideia ou doutrina; que acaba com todas as dúvidas, à luz da qual
tudo ganha translucidez. Mas nada disto se impõe como um poder – a busca de Deus sem
uma verdadeira educação pode levar-nos a confundi-Lo com um poder –, é uma autoridade
para a qual apenas nos podemos abrir se abdicarmos das autoridades sucessivas que fomos
abraçando. α12

89. O processo científico moderno: da perda do facto concreto ao


subjectivismo moderno
No início da modernidade, Francis Bacon propôs o experimento científico como uma
forma de forçar a natureza a revelar-se, segundo a ideia da altura de que a natureza física era
um código escondido. Kant levou isto mais longe e disse que o cientista não se coloca perante
a natureza como um observador mas como um policial que a pressiona a “dizer” certas coisas.
Podemos até captar algo assim dos objectos, mas inúmeras outras coisas ficarão ocultas. Este
método não apenas determinaria o objecto como vai determinar aquilo que este pode
“confessar”, e por isso a ciência moderna é um procedimento essencialmente tautológico.
Obviamente que o experimento não mostra como a natureza se comporta em si mesma mas
como ela responde à acção humana, ou seja, fazemos abstracção do facto concreto.

Facto concreto não é aquele que é apenas tomado na relação lógica que o expressa
mas é o que tem em conta a totalidade dos acidentes necessários para que ele aconteça. A
ciência moderna faz abstracção destes acidentes e concentra-se apenas na definição lógica.
Naturalmente que alguns acidentes têm que ser tomados em conta para a própria experiência
ser realizada, mas apenas na medida em que se mostrem necessários, e uma vez concluída a
experiência pode ser feita nova abstracção destes, que no máximo ficarão escondidos sob
certos passos do manual de operações do laboratório. A natureza real só pode ser conhecida
em si mesma mediante observação contemplativa, onde aceitamos a totalidade do facto e o
seu mistério. É possível articular o método científico moderno, que obriga a natureza a
revelar certas coisas (algo que potencia bastante as aplicações técnicas) com o anterior
método contemplativo, mas se substituímos um por outro saímos fora da realidade,
estaremos a perder o contacto com a presença total. Não é de estranhar que Kant viesse a
47

declarar que todo o conhecimento que temos da natureza resulta da projecção dos nossos
esquemas cognitivos sobre o objecto, que em si permaneceria inalcançável, dado que ele se
coloca precisamente numa posição de não conhecer os entes reais. O ponto de vista do
observador, escolhido por Bacon, conduziu à subjectividade moderna (por via do idealismo
racionalista de Descartes e do subjectivismo radical de Kant), e por isso mais tarde Michel
Foucault ou Thomas Kuhn poderiam dizer que as estruturas das teorias científicas mudam de
repente, sem nenhuma razão, o isto desembocou no desconstrucionismo e na descrença da
existência de uma realidade objectiva. Os paladinos da ciência moderna consideram-na o
templo da objectividade porque ela usa a medição e a matemática, mas nada disto pode
reconstituir o objecto e as medições ainda são feitas pelo ser humano, não é a natureza que se
mede a si mesma. α12

[Aula 13]
90. Lista de exercícios e práticas recomendadas
Até esta aula do curso já foram indicados os seguintes exercícios e indicações práticas:

a) Assistência às aulas [1] – ouvir em directo, ouvir gravação e ler transcrição –, transcrições
das mesmas e notas a respeito. As aulas são o centro pedagógico no início do curso e
gradualmente os alunos entrarão numa fase mais activa, e no final deverão ter obtido a sua
autonomia;

b) Exercício no Necrológio [4], onde obtemos uma imagem, ainda que provisória, do nosso
“eu ideal” que irá orientar os nossos esforços;

c) Exercício do Testemunho [33 e 35], baseado no texto do Louis Lavelle, onde usamos a
recordação dos “momentos privilegiados em que o universo se ilumina” para fazer deles a
“trama da nossa existência cotidiana”;

d) Estudo da Gramática latina, de Napoleão Mendes de Almeida [17];

e) Imitação dos grandes escritores de língua portuguesa [63 e 64];

f) Prática da confissão, tal como exemplificada por Santo Agostinho [6] e Adolphe Tanquerey,
que serve, desde logo, para refazer a nossa educação moral;

g) Leitura lenta de um livro de filosofia [81], onde lemos apenas algumas frases por dia, até
elas se transformarem em instrumentos de percepção para nós;

h) Exercícios da presença do ser [82]: imaginar que nada há; colecção de sons; construção
mental de um quadrado;

i) Exercícios para o adestramento do imaginário [42]: imaginar a vida de pessoas que


conhecemos como um romance (em geral apenas as vemos de forma esquemática);
transformar um filme ou peça de teatro numa narrativa verbal e vice-versa;

j) Exercício da aceitação total da realidade [28]: primeiro imaginamos que tudo o que nos
acontece é responsabilidade nossa, depois fazemos o contrário e imaginar que somos vítimas
inermes dos acontecimentos, e a realidade está na tensão entre estas duas coisas;
48

k) Audição de peças de música [84], em busca da continuidade ali expressa, que condensa
uma série de experiências sensoriais e emocionais, que depois podem servir de modelo para
perceber outras harmonias na vida. O livro Sound and Symbol, de Victor Zuckerkandl, pode
nos esclarecer mais sobre a experiência musical;

l) Leituras específicas para compreensão do contexto em que nos inserimos: Marques Rebelo
(correcção do português), Orígenes Lessa e Lima Barreto (ódio ao conhecimento, degradação
moral), Machado de Assis (fenomenologia do auto-engano), François Mauriac, Stendhal,
Balzac, Dostoievsky (romances mostrando o indivíduo contra a sociedade, servindo o
romance também para termos modelos para contar a nossa própria vida e a de outros);

m) História nas nossas próprias ideias. É um uso específico do método da confissão.


Normalmente desconhecemos como certas ideias se incorporaram em nós, e contornamos a
questão alegando em favor delas. As ideias podem se ter impregnado em nós por as termos
ouvidos repetidamente em certos meios, tornando-se difícil fazer uma reconstituição exacta,
mas com um pouco de esforço conseguimos rastrear, aproximadamente, a origem das
principais ideias, desde que não tenhamos pudor de reconhecer que fomos tantas vezes
manipulados infantilmente. Paralelamente a isto devemos fazer uma gradação dos nossos
conhecimentos (certeza, alta probabilidade, verosimilhança, mera possibilidade)
conjuntamente com a distinção entre figuras de linguagem e nomes efectivos de coisas. α13

91. Exercício da Biblioteca Imaginária


Para além dos exercícios já elencados, adiciona-se agora o Exercício da Biblioteca
Imaginária, que é o começo da vida estudos propriamente dita. A técnica filosófica suporta-se
sobre quatro blocos [68] (adestramento do imaginário, adestramento da compreensão e uso
da linguagem, adestramento da autoconsciência e do sendo do ideal e, por último, aquisição
de ferramentas de pesquisa erudita). Quando escolhemos um problema devemos começar
logo por confessar o que sabemos e o que não sabemos a seu respeito, o que nos dá o nosso
repertório de ignorância [40], que já é um esboço de um programa de estudos. Depois, para
cada problema específico que precisamos esclarecer, faremos a sua montagem a partir da sua
história [69]. Para isso, precisamos de dominar os instrumentos de pesquisa.

O Exercício da Biblioteca Imaginária não será uma coisa tão exaustiva mas segue um
pouco este esquema. O exercício poderá ser até considerado mesmo como um prelúdio a
entrarmos no estudo efectivo de certos assuntos, porque a partir dele podemos ter uma ideia
do nosso repertório de ignorância. De certa forma, neste exercício simulamos que entramos
na vida intelectual em pleno.

Vamos fazer a lista de todos os livros que (idealmente) iremos ler até ao fim das
nossas vidas. Naturalmente que numa primeira tentativa irão ficar muitos títulos fora,
porque nem teremos conhecimentos deles, e há certas áreas de interesse para as quais ainda
não estamos despertos. Primeiro, temos que definir as áreas de nosso interesse real
existencial, que em princípio não coincidirão com as categorias normais das disciplinas
(geografia, História, literatura, ciência, etc.), mas antes irão decretar a mescla de disciplinas
que teremos de emparelhar para ver certas questões esclarecidas, sempre na medida do
desenvolvimento da nossa alma. Depois de definidas as áreas a estudar, iremos procurar
bibliografias essenciais a respeito, usando também a Internet e a biografia final do livro The
Great Ideas, de Mortimer J. Adler. De seguida, iremos procurar os livros que tratam das
49

disciplinas em causa, tirar os nomes dos autores e obras para ir completando a lista, tendo
em conta os pontos conflitivos ou em que uns dão grande importância mas outros ignoram,
porque o coração do problema encontra-se justamente ali. Em termos de filosofia, o
dicionário de José Ferrater Mora é uma ferramenta imprescindível, e ele salienta o abismo
que existe na filosofia entre a tradição continental (fenomenologia, existencialismo, etc.), a
filosofia analítica anglo-saxónica e o marxismo. É precisamente este abismo entre tradições
que se tornaram incomunicáveis entre si que constitui um dos aspectos mais relevantes da
filosofia. α13

92. Exercício do Amor ao Próximo


Para vencer a timidez pode ser tentador recorrer a técnicas que apenas mascaram a
timidez com descaramento. O problema não é a timidez mas a falta de amor ao próximo. Um
exercício para vencer isto é experimentar, durante alguns meses, sermos uma espécie de
balcão de reclamações, em que ouvimos todas as queixas e tentamos ajudar todas as pessoas
que se deparam connosco, sem excepção. Irão se aproveitar de nós mas tal faz parte do
exercício. Não conseguiremos viver assim em permanência mas algo desta prática se
incorporará na nossa pessoa, desde que não comecemos a colecionar vinganças para executar
depois de terminado o exercício, o que significaria que não estávamos a ser sinceros. α13

[Aula 14]

93. A questão da verdade


Não podemos perder tempo em discussões com relativistas sobre a existência de uma
verdade objectiva. Temos de encarar o problema da verdade com toda a responsabilidade
possível. Para isso, devemos começar por nos questionarmos sobre como chegou a ideia da
verdade até nós. Qual foi a nossa primeira experiência que tivemos da verdade? Começamos
a experienciar o mundo mal nascemos, mas num dado momento há uma experiência que nos
chega com um valor especial: não podemos nega-la, ou seja, a verdade aparece-nos como
aquilo que não pode ser negado. Até um rato de laboratório tem acesso a uma experiência
diferenciada quando percebe qual o botão que lhe dá o queijo e, ao mesmo tempo, entende
que não adianta pressionar qualquer outro botão. Mas este rato tem apenas acesso a um dos
elementos da verdade e não chega a ter a noção do que ela seja. O que diferencia o ser
humano é que, nele, esta experiência diferenciada vem acompanhada de uma outra que se lhe
sobrepõe: ele sabe que sabe. Os animais podem saber algo e também sabem repetir, mas não
têm este retorno, que é a compreensão de uma “regra do jogo” que abre uma perspectiva e
pode ser transportada para outros cenários. Isto já não está ao alcance dos animais.

O problema essencial da verdade surge quando temos de confessar algo, não


necessariamente mau, o que logo cria uma oposição em relação à mentira e traz junto o senso
da responsabilidade, que é maior ainda quando só nós sabemos dos factos em causa. Se
confessarmos a verdade, essa acção em si encaixa-se dentro da linha normal de tempo. Mas
se mentirmos estamos a inaugurar uma nova situação que tem de ser mantida por nós. Se
tivermos estes aspectos em consideração, garantimos que a nossa especulação sobre a
50

verdade não fica separada da questão da sinceridade, logo, também não aparece desligada da
realidade. A maior parte das pessoas prefere especular sobre a verdade lógica, mas para esta
existir também é necessário que exista a verdade efectiva, onde a veracidade de facto aparece
articulada com a sinceridade, que nada mais é do que a veracidade da acção actual. Quando
confessamos um acto que fizemos estão presentes duas verdades: não apenas afirmamos
verbalmente uma verdade passada como estamos também praticando uma acção que nos
torna verdadeiros naquele instante.

Algumas pessoas desenvolvem crenças relativistas ou cépticas depois de tentarem


encontrar a verdade a partir o seu conceito genérico. Esse tipo de verdade não existe mesmo,
já que lhe falta a ligação com o mundo da experiência real. Em geral, as discussões sobre as
questões últimas (Deus existe? Existe vida após a morte? Qual o sentido da vida?) são vãs
porque não têm por base qualquer experiência real. Assim, a discussão transfere-se para o
domínio das meras possibilidades lógicas. A questão da verdade é também desenvolvida em
[94]. α14

94. A lógica de Aristóteles e a investigação da verdade


Aristóteles criou a lógica a partir dos estudos que fez dos animais. Não era um jogo
formal mas um instrumento de verificação das várias observações, para que estas tivessem a
mesma coesão que o objecto observado. A coerência e unidade do discurso apenas
expressavam a unidade e a densidade da própria realidade. Mas quando foi inventada a
lógica dos sinais, esta já não se aplicava a conceitos referentes a coisas. Uma vez descoberto
que a lógica tem as suas regras próprias e independentes do objecto observado, esta torna-se
num jogo. Esse jogo já está implícito na lógica de Aristóteles mas apenas como forma de
captar a coerência do discurso, o que é um mero preliminar para verificar se ele é verdadeiro
ou falso.

A lógica também está implícita na confissão de um acto que realizamos. Começamos


por reduzir a complexidade do acto a um esquema do estilo causa-efeito, cuja
esquematização corresponde à sequência real ocorrida. Mas, ao fazermos isto, já estamos a
praticar um novo acto, que rearticula a situação presente com a situação passada dentro de
uma sequência real: a verdade esquemática da relação causa-efeito é expressa numa verdade
temporal de uma sucessão de actos, articulada na verdade da nossa declaração no momento,
onde assumimos um papel verdadeiro numa nova situação. Sem este papel verdadeiro não
compreendemos a realidade anterior, e se inventarmos uma história, então, criamos uma
temporalidade hipotética a partir da qual passamos a agir. Mas se optarmos por este “desvio”
já não nós é possível resgatar elementos da realidade, porque agora trata-se apenas de um
teatro nosso. É esta a razão da mentira obrigar à construção de novas mentiras para sustentar
a situação que ela supõe. Quando confessamos um acto nosso apenas nos lembramos dele e o
relatamos, mas como está implícita a admissão da unidade do real, então, nesta confissão
juntam-se várias elementos em articulação: (a) O reconhecimento do que fazemos naquele
momento; (b) A realidade do nosso interlocutor; (c) A relação entre nós e o nosso acto; (d) A
relação entre o nosso passado e o nosso presente; (e) A relação entre o nosso presente e o
nosso futuro, denotada pela expectativa que temos da reacção do nosso interlocutor.

Sócrates empenhava-se em se colocar a ele e aos seus interlocutores numa busca


sincera a respeito da verdade sobre alguma coisa. Podiam não chegar a nenhuma conclusão
definitiva mas dava-se uma elevação. Por um lado, desfaziam-se as ilusões de acharem que
51

sabiam certas coisas quando realmente são sabiam, por outro lado, abriam-se inúmeras
perspectivas de investigação da verdade, que podem ser exploradas até hoje.

Este é o método de investigação da verdade – o método da confissão –, que tem em


conta o elemento sinceridade. E é o único método legítimo, porque fora disto temos apenas o
conceito da verdade, que investigado em si conduz a um nada, dado que foi amputado do
tecido real da experiência à partida. O método da confissão permite rastrear como a verdade
chegou a nós e, mesmo se não chegarmos a um conceito de verdade, saberemos reconhecê-la
quando se apresentar novamente. Descartes queria encontrar no cogito uma verdade válida
em todas as circunstâncias, que lhe servisse de apoio, mas a sua não admissão da realidade
apenas o deixou mais desprotegido. Hegel chegou a dizer que a capacidade fundamental do
ser humano é a de se isolar de toda a realidade existente, para assim conseguir subir na esfera
da universalidade, mas acontece que “uma vez lá chegados” não temos qualquer garantia de
que o nosso discurso tenha algo a ver com a realidade, e é nesta que temos que viver e o
mundo das abstracções lógicas é sempre muito precário. O próprio Hegel reconhecia que a
capacidade do ser humano em se erguer até ao plano da universalidade lógica era
extremamente perigosa, porque o ego teria a tentação de impor as suas regras ao mundo, que
ele considerava serem as regras do niilismo e da destruição total. Estes são os filhos de
Pilatos, que frente ao Logos encarnado fez a questão essencial mas sem querer saber
realmente a resposta: quid est veritas? α14

95. A forma inteligível


Aristóteles sabia que o discurso lógico (chamado por ele de analítico) não fornecia
qualquer conhecimento. Para investigar um objecto (da natureza, da sociedade, da alma
humana) ele começava por considerar a sua forma inteligível. Aristóteles acreditava que
todas as coisas tinham uma forma, ou seja, uma estrutura inteligível pelo ser humano. A
criança que desenha o ser humano apenas com umas linhas a significar os membros, ou uma
casa com telhado, paredes, janela e porta, não está a desenhar apenas a figura externa, que
até pode ficar bastante distanciada do desenho. Ela está a representar o princípio de
funcionalidade que faz o objecto ser aquilo que ele é. A criança desenha no papel a forma
interna do ser humano, considerado como espécie animal dotado de movimento próprio, com
uma disposição dos membros que imediatamente reconhecemos corresponder ao homem e
não a outros animais. α14

96. A ilusão iluminista


Quando falamos a respeito de outras pessoas usamos os mesmos princípios do
método da confissão mas, em rigor, trata-se de um testemunho, uma vez que apenas
podemos confessar a nossa experiência. Giambattista Vico dizia que só conhecemos
perfeitamente aquilo que nós mesmos fizemos. Mas as pessoas passaram a achar, a partir do
advento da modernidade, que a alma humana era uma coisa impenetrável e que era mais fácil
conhecer o mundo da natureza e a sociedade humana. Isto é um sintoma esquizofrénico, que
se disseminou com o abandono do elemento sinceridade [93 e 94], passando o conhecimento
a estar relacionado com conceitos lógicos e com relações mensuráveis. Este conhecimento
parece tanto mais efectivo consoante as aplicações técnicas que resultam daqui, mas estas
medem apenas o nosso entendimento sobre como os objectos reagem a certas acções
52

humanas. Então, o estudo da natureza acabou por não ser uma tentativa de a conhecer em si
mesma mas um velado estudo da própria acção humana relacionada com a natureza. Como
isto não é reconhecido, a natureza passou a ser tomada como algo que já é fundamentalmente
acção humana, e a natureza em si tornou-se num enigma imperscrutável.

Em termos populares, a passagem do mundo medieval para o mundo moderno é vista


como a passagem de um mundo regido pela fé, pelo misticismo e pelo princípio de autoridade
para um mundo regido pela razão, pela ciência, pelo conhecimento experimental e pela
análise crítica. Kant dizia que era o fim de servidão humana, também porque tudo isto veio
associado aos direitos civis e ao governo constitucional. Para o Kant, o homem “maduro” não
é emancipado apenas em termos civis, políticos, intelectuais e espirituais mas também em
relação à própria natureza, que seria agora manipulada em seu favor. Esta era a promessa do
Iluminismo, que obviamente não se cumpriu: em vez de liberdade civil, criaram-se tiranias
opressivas a um ponto que não era concebível até então; em lugar da emancipação intelectual
e espiritual, a actividade científica tornou-se ignorante de si mesma, surgiram todo o tipo de
crendices, ocultismo, assim como ideologias para suprir a falta de Deus, e hoje vemos as
massas totalmente estupidificadas e exigindo serem enganadas; e em termos de controlo
humano sobre a natureza, é algo que apenas uns poucos possuem para assim dominar outros
homens, o que logo elimina também os dois outros tipos de emancipação.

Tudo isto permanece oculto porque a nossa classe intelectual, que pretendia substituir
a autoridade da Igreja (e conseguiu-o, em grande parte), queria pousar como racional, isenta
de crenças, mas era composta por maçons, ocultistas, magos, alquimistas, astrólogos, etc.
Além disso, os iluministas adoptaram o culto do progresso, que fica colado ao surgimento da
ciência moderna, mas na realidade é um filho do protestantismo que eles adoptaram. O
Iluminismo deles é, na realidade, um obscurantismo, já que os iluministas esforçaram-se por
apagar todas as pistas das suas acções. Eles criaram uma ciência para usar “dentro de
portas”, e uma segunda ciência para o público em geral, mas que também é marcada por uma
certa dose de ocultismo: os verdadeiros objectos ficam ocultos debaixo da sua matematização
e de um conjunto de medições a respeito. O mundo civilizado está dominado por esta
podridão, e os países periféricos anseiam por ela, mas como não estão realmente não foram
atingidos pelo Iluminismo em profundidade aparecem fenómenos notáveis, como o Gilberto
Freyre ou o Mário Ferreira dos Santos. α14

[Aula 15]

97. O raciocínio intuitivo (experiência com as cartas de baralho)


A verdade é um domínio onde sempre estamos existencialmente mas podemos não
nos encontrarmos em termos psicológicos e cognitivos. Na Universidade de Iowa fizeram
uma experiência com cartas de baralho vermelhas e azuis, com um sistema de recompensas e
de penalizações diferenciado (viciado) conforme a cor do baralho. Após 80 jogadas, em
média, as pessoas conseguiam explicar a situação inteira, embora já tivessem percebido o que
acontecia ao fim de 50. Contudo, a medição de suor na mão (que era efectuada ao mesmo
tempo, para medir o stress) indicava que a partir da décima jogada já havia uma percepção
do que ocorria e que, daí para a frente, era feita uma escolha intuitiva preferencial por um
53

dos baralhos (o que dava baixas recompensas mas penalizações também baixas, enquanto o
outro baralho dava altas recompensas mas penalizações ainda maiores). Os psicólogos dizem
que intervém aqui o “inconsciente adaptativo”, mas isto não vai ao fundo do problema,
porque a psicologia não estuda a relação entre o processo cognitivo e o objecto em causa, ou
seja, não se preocupa com a análise da situação real.

Nesta experiência estão presentes dois processos de aprendizagem. Entre as jogadas


50 e 80 é feita a aprendizagem normal, ou seja, um “raciocínio por indução”, onde se juntam
vários indícios anteriores, formulam-se hipóteses não só para explicar os casos passados mas
também os futuros e depois confirma-se qual é a hipótese válida. Mas nas primeiras 10
jogadas há também um processo de aprendizagem, que podemos ver não do ponto de vista
psicológico mas epistemológico. Os psicólogos falam de uma apreensão intuitiva,
inconsciente, um pressentimento, mas não realmente nã0 se trata disso. Aqui também existe
um raciocínio indutivo feito pela “mão”. Parecerá, então, que a diferença é que num caso o
raciocínio é consciente e no outro inconsciente. Contudo, a inconsciência do raciocínio feito
com as primeiras 10 cartas varia muito de pessoa para pessoa, é uma coisa acidental. No
segundo caso, o raciocínio é feito recordando tudo o que se passou, a experiência é
transformada em símbolos na memória e esses símbolos – que já são criação da mente – são
articulados na forma de um raciocínio indutivo. E no primeiro caso o raciocínio indutivo é
feito com os próprios objectos dados na experiência.

Todos nós já tivemos a experiência de tomarmos decisões “por instinto”, onde não
houve tempo para criar uma representação simbólica. Na realidade, não é o instinto que está
em causa mas o facto do raciocínio da “mão” ser feito com o objecto presente: há uma ligação
lógica que está nos próprios objectos e na sequência dos factos. Por outro lado, o raciocínio
lógico, mental, é feito a posteriori, recomposto na memória e no pensamento. Ele não é mais
certo do que o outro (frequentemente é o oposto), mas parece-nos assim porque foi
inteiramente construído por nós, e confundimos a certeza com o domínio que temos dos
elementos do raciocínio, quando até podemos estar a fugir à situação real. Esta fuga não
acontece no primeiro tipo de raciocínio, que é obrigado a se ater aos dados imediatos da
situação. Do ponto de vista da crítica do conhecimento, o primeiro tipo de raciocínio é muito
mais confiável, mas após quatro séculos de subjectivismo filosófico somos induzidos a confiar
apenas no tipo de raciocínio onde os dados são representados, desprezando ou até negando a
existência do raciocínio em que os dados se apresentam.

Este tipo de raciocínio pouco ou nada pode ser aperfeiçoado, porque já temos em nós
a passividade necessária para aceitar e perceber os factos da realidade tais como estes são. O
que podemos fazer é tentar acalmar o raciocínio construtivo, para que não se sobreponha ao
raciocínio intuitivo e possamos ter uma atitude contemplativa e confiante perante os factos.
Temos de aperfeiçoar a nossa personalidade para que não se deixe enganar pelas formas
culturais hipnóticas e que passe a se vergar à própria autoridade do real tal como
experimentado no imediato. O raciocínio construtivo pode entrar depois como verificação.
Eventualmente até podemos tirar conclusões de outra ordem, mas o verdadeiro saber não é
uma coisa criada pela nossa mente, é percepção da realidade, é uma reacção efectiva de um
sujeito vivente, presente e real, a uma situação presente e real.

A primeira percepção é muda, inexpressável, é algo difícil de fixar por mais certa que
seja. Mas ela não pode errar, porque os factos já vêm com a sua conexão auto-evidente, como
mostram as decisões de um motorista. Quando representamos a situação, através de
símbolos, podemos introduzir uma multidão de erros (lógicos, de denominação, de
54

classificação, de categorização, de descrição). Devemos resistir à segurança que esta


modalidade de raciocínio nos dá, e devemos tentar nos ater ao máximo à primeira forma de
raciocínio, mesmo se não conseguirmos expressá-la. Só isto nos garante que estamos
próximos da realidade e livres de erros de raciocínio. O domínio da verdade encontra-se aqui:
a verdade como conexão das formas inteligíveis dos seres em si mesmos. O pensamento pode
tocar a verdade em certos pontos, mas em si ele não é a verdade.

A substância da filosofia é o conhecimento do testemunho directo. E esta é também a


primeira condição para a existência de uma ciência, ela necessita da existência da evidência,
que é a percepção directa de alguma coisa. Mas a própria ligação lógica entre duas
proposições é percebida também como evidência, pelo que só existe verdadeiramente
conhecimento intuitivo. A exigência de prova e não de conhecimento intuitivo já envolve um
elemento esquizofrénico, mas cumpre uma função social, dado que a prova é um convite a
reafirmar certas crenças comuns, é uma fuga ao conhecimento e uma busca de autoridade. A
prova é uma forma de purificar algo que está pouco claro, mas é feita por quem percebeu esse
algo essencial e sabe que os acidentes que teve de omitir e que lhe dão consistência
existencial. A prova nunca irá validar a realidade, antes é ela que é validada pela percepção
intuitiva das formas inteligíveis. Na sua origem a filosofia foi criada para perceber como as
coisas são, sem que Sócrates, Platão ou Aristóteles tivessem a ilusão de poder adquirir um
conhecimento possível de ser partilhado por toda a gente. Por vezes, o discurso lógico pode
ser usado em aula não como prova mas como símbolo de algo percebido pelo professor, mas
que só vale para quem tenta refazer as experiências ali simbolizadas. Trata-se de um
intercâmbio de sinceridade, onde se tenta passar uma impressão genuína, então, a prova
torna-se irrelevante. α15

[Aula 16]
98. A alta cultura vista como um círculo de convivência humana
Em sentido amplo, linguagem é todo o conjunto de signos e significados. Nesta óptica,
o desenvolvimento do ser humano consiste na conquista de círculos cada vez mais amplos da
linguagem, que dão acesso a círculos de convivência pessoal cada vez maiores, abrindo para
novas e mais complexas possibilidades de acção. Num primeiro círculo há a comunicação
com a família, que tenta colmatar as deficiências de comunicação da criança. Esta
dependência vai diminuindo até que, perto da idade adulta, supõe-se que o indivíduo já tenha
adquirido autonomia e se ele não conseguir expressar as suas necessidades nos locais e
momentos convenientes, o problema é dele. Na adolescência torna-se premente a
necessidade de aprovação social, de integração num grupo adoptando a sua linguagem
específica. O adolescente até pode ir bem na escola mas, se a inclusão num grupo falhar, as
coisas podem ser desastrosas para ele. Torna-se também importante nesta fase o
reconhecimento das hierarquias, a apreensão do sistema de leis vigentes (tanto as escritas
como as não declaradas), o que já é uma tarefa enorme e, dado o tamanho do edifício
legislativo, impossível de cumprir (pelo que os cidadãos estão obrigados ao impossível).
Entre os 12 e os 21 anos dá-se a integração na sociedade maior, em que se torna fundamental
a capacidade de previsão do que farão os outros e de como reagirão as pessoas em torno às
55

nossas acções e omissões, algo importante mesmo nos grupos mais marginais. Nesta fase, o
nosso umbigo ocupa o centro das preocupações, nós somos o problema, e mesmo os
problemas objectivos são transmutados em preocupações subjectivas nossas.

Quando o sujeito obtém um emprego, espera-se que já tenha ultrapassado os seus


problemas de integração social e que consiga fazer face, de forma objectiva, a um conjunto de
obrigações. Não é o indivíduo que está mais em julgamento mas as suas acções, o tratamento
torna-se mais impessoal e começam a criar-se os papéis sociais, a partir dos quais cada um
recebe um tratamento específico, embora possa haver algum descompasso e a pessoa
continue a dar muita importância à sua integração social. Na idade adulta, os círculos de
integração social continuam a aumentar, na medida em que adquirimos a linguagem e os
códigos respectivos. Em certos meios, as comunicações deixam de ser directas, já não
podemos enxergar o meio como um todo, é algo que existe para nós apenas através da
linguagem, por exemplo, é a situação normal de um militante de um grande partido político.

A alta cultura é a integração num grupo humano especial. Mathew Arnold definia-a
como aquilo que se criou de melhor ao longo dos tempos. Os criadores de alta cultura
reportam-se frequentemente uns aos outros e nós começamos a fazer parte desse diálogo
quando entendemos não apenas o que eles estão falando mas conhecemos o sistema de inter-
referências ali presente (que em grande parte são estilísticas, por exemplo, frases de um
romance podem ser paráfrases de poemas). A alta cultura exige um aprendizado muito mais
exigente, desde logo porque as personagens não estão mais presentes e não podem nos
orientar e corrigir directamente. Não há uma maneira simples de entrar na “grande
conversação”, sempre faremos confusões monstruosas de início, iremos passar ao lado de
referências implícitas, desconheceremos o quadro histórico / literário / cultural subjacente,
não iremos tomar nota da gravidade dos problemas e teremos quase sempre a tendência de
reduzir tudo aos pequenos problemas que já conhecemos. Por isso, Jorge Luis Borges dizia
que para compreender um único livro é preciso já ter lido muitos. Muitas referências pairam
na nossa cabeça, desconexas, contraditórias e um dia as coisas assentam na compreensão
profunda de algo. Mas os equívocos são preciosos e permitem medir a distância entre os
grupos sociais em que nos inserimos e o grupo onde se dá o diálogo entre os grandes espíritos
de todas as épocas. Aos poucos, iremos perceber que é deste círculo que se originam todos os
códigos, valores, critérios, instrumentos descritivos que regram os outros grupos sociais (e aí
podem se degradar imenso), nada foi invenção da “sociedade”. Devemos ter sempre a
preocupação de rastrear a origem das ideias em circulação ou iremos parar longe do fulcro da
discussão, que até pode já ter sido resolvida há muito tempo mas pairar na cultura de massas
como um enigma.

Ingressar na alta cultura significa que aquilo que foi criado de mais valioso ao longo
dos tempos se tornou para nós num conjunto de possibilidades cognitivas e existenciais
actualizáveis. Repetiremos os experimentos interiores e cognitivos feitos por Homero,
Aristóteles, Shakespeare ou São Tomás de Aquino. Naturalmente que não conseguiremos
realizar aquelas coisas como eles, mas temos que nos apropriar das suas experiências de
alguma forma. Assim iremos saber quem somos realmente, conheceremos as nossas
possibilidades reais e teremos também um vislumbre de onde se encontram os limites
humanos. Podemos assim conhecer os nossos méritos e deméritos e tomar decisões com toda
a firmeza e sinceridade. Os alunos do Curso Online de Filosofia não podem contar com a
existência de uma alta cultura da qual se poderiam beneficiar, dado esta ser actualmente
56

inexistente, antes têm de se fortalecer para ocupar a posição dos farsantes que ocupam
nominalmente os lugares reservados à verdadeira intelectualidade. α16

99. O uso da memória


Não temos que ver a memória com um armazém onde se depositam coisas. Tal como
os computadores comunicam uns com os outros quando ligados em rede, os seres humanos
têm contactos com outros espíritos humanos, assim como com todo o tipo de registos
acumulados e ainda com a natureza física e com a sociedade. A nossa memória está
depositada em tudo isto, então, temos de aprender a contar com a memória externa. Mais
importante do que ter tudo na nossa memória interna é as coisas chegarem à nossa mente no
momento certo, e para isso temos que nos sintonizar com a situação real em torno, sabendo
que o mundo é um imenso registo mnemónico. Ter uma biblioteca bem organizada já ajuda
muito, assim como ter confiança de que a informação que buscamos irá aparecer quando for
necessária. α16

[Aula 17]
100. Os vários sentidos da palavra “ciência”
As potencialidades do ser humano não se tornam evidentes no estudo das ciências
particulares, como a genética, que apenas vê uma diferença de 3% entre o homem e o
chipanzé. A diferença global aparece apenas na experiência real concreta e não pode ser
separada e medida pelos critérios de uma ciência específica para daí tirar uma conclusão
genérica. Também por isso, a ciência cumpre funções sociais mas não pedagógicas, e ela
também não desenvolve a inteligência, antes a pressupõe. A própria palavra “ciência” já tem
em si um conjunto de significados, que exercem várias funções:

1) Existe o ideal de ciência, a episteme oposta à doxa, ou seja o conhecimento demonstrativo,


apodíctico (que não pode ser destruído), que fornece os elementos de prova à própria
conclusão, e Aristóteles já sabia que este ideal só podia ser realizado de maneira parcial e
imperfeito, mas que não podemos abdicar dele porque nos dá a forma lógica dos esforços
empreendidos;

2) Existe a tensão entre o ideal de ciência e a ciência efectivamente existente (há quem negue
este distanciamento, apontando as realizações tecnológicas como prova, mas a tecnologia
funciona na direcção oposta da ciência, não buscando um princípio unificador mas servindo-
se de múltiplos princípios para colocar algo em funcionamento);

3) A ciência vista como o conjunto de conhecimentos acumulados, cada um com o seu nível
de validade;

4) A ciência como actividade socialmente existente, gravitando à volta de vários elementos


que possibilitam a sua existência mas que não são justificáveis cientificamente;
57

5) A ciência como autoridade social, que emerge face às massas como a entidade capaz de
separar o verdadeiro do falso;

6) A ciência como fundamento de certas crenças filosóficas gerais, como o naturalismo.

Estes seis sentidos da palavra “ciência” aparecem compactados quando se fala dela,
pelo que se trata de uma figura de linguagem. A autoridade da ciência deriva deste peso
acumulado, embora cheio de contradições. A alta cultura exige que se perca o temor
reverencial ante as ciências. A alta cultura consiste em adquirir uma orientação dentro do
senso da realidade, algo que a própria actividade científica necessita. α17

101. A função da alta cultura


Diz Louis Lavelle:

«Todo o problema das relações entre os seres humanos consiste em saber passar de
um estado de simpatia ou antipatia naturais, que reinam entre os caracteres, àquele
estado de mediação mútua que permite a cada um deles realizar, por intermédio de
um outro, de um indiferente, de um amigo ou de um inimigo, a sua própria vocação
espiritual».

A simpatia ou antipatia naturais que Lavelle fala aqui de forma compacta são coisas
que se tornam espontâneas em nós mas que podem derivar de vários factores culturais, como
a impregnação de certos padrões de beleza, por exemplo. A atracção ou repulsa naturais são
eminentemente antropofágicas, originam-se em algo que queremos obter do outro, algo
puramente animal, não têm qualquer significado moral. No outro extremo está a amizade
segundo Cristo, que é morrer pelos amigos e, mais modestamente, Léon Bloy salienta o
critério do dinheiro. Podemos, então, conceber o outro como um ente espiritual eterno, como
uma imagem de Deus, cuja figura actual naturalmente está muito afastada do seu real
potencial (algo que as pessoas inteligentes entendem, mas os mais burros acham que todos
serão sempre como eles).

Este “algo mais” que as pessoas são apenas pode ser concebido dentro da alta cultura,
que é aquilo que nos permite ter ideia das possibilidades superiores do ser humano. A
própria alta cultura é condição para existência de uma verdadeira vida religiosa e moral: tem
que existir isto na sociedade, não necessariamente em cada pessoa no mais alto grau, ou
torna-se impossível compreender as situações reais e concretas à luz dos princípios morais
universais e vice-versa. Possuir alta cultura significa possuir um imaginário amplo e
organizado o suficiente para ser sensível ao que está acontecendo, não é ter erudição. Frank
Raymond Leavis insistia que a grande literatura não era destinada à contemplação estética
mas à aquisição de uma linguagem que permite conceber a infinidade de situações morais
humanas.

A alta cultura não se desenvolve em nós se apenas nos limitarmos a absorver


elementos de erudição, temos que dar atenção também ao nosso mundo interior, às nossas
imaginações, sonhos, desejos, devaneios, recordar coisas belas e coisas de que gostamos. Isto
é o nosso mundo e cultiva-lo fortalece-nos face ao mundo exterior e obviamente que reforça a
nossa criatividade. α17
58

[Aula 18]

102. Aristóteles pedagogo: categorias, predicáveis, causas, forma e matéria


As categorias de Aristóteles são distinções elementares que qualquer pessoa opera
espontaneamente. Qualquer um consegue distinguir o que uma coisa é (substância) de como
ela é (qualidade), ou se é uma ou várias, grande ou pequena (quantidade), onde está (lugar),
se está associada a outros (relação), desde quando e até quando está (tempo), o que ela faz
(acção) e o que se faz ou pode fazer com ela (paixão ou acção passiva). Por vezes, Aristóteles
também fala das categorias estado e posição. Não se tratam verdadeiramente de categorias
de pensamento porque já estão embutidas na própria percepção, e o que realmente
aprendemos são os nomes respectivos para pode reflectir a respeito. Mas feito isto, as
categorias podem se tornar instrumentos técnicos que ganham autonomia em relação à
percepção. Mas Aristóteles apenas limitava-se a descrever algo que ele já fazia
espontaneamente, como qualquer um faz, já que qualquer pessoa normal não confunde o que
uma coisa é com a sua posição ou tamanho.

De forma análoga, Aristóteles descrevia quatro predicáveis, que também distinguimos


de forma mais ou menos automática: definição, género, propriedade e acidente. Quando
dizemos que “uma mesa é um móvel” não estamos a dar uma definição mas algo mais
genérico, que é género. A propriedade não está explícita na definição mas é algo que se deduz
dela, por ser algo natural a um determinado tipo de ser. O facto de o gato miar é uma
propriedade, mas se ele está no passeio ou no telhado é algo que se pode aplicar a inúmeros
seres, trata-se de um acidente, que é algo que precisa de ser acrescentado à definição.
Contudo, os acidentes têm que ser compatíveis com a definição; o gato não pode voar nem ter
todas as cores do arco-íris, por exemplo. O senso do real prende-se largamente com a
possibilidade de conseguir graduar os acidentes (possíveis e impossíveis, prováveis e
improváveis, verosímeis e inverosímeis) que podem suceder aos vários seres das diferentes
espécies. Esta é uma capacidade largamente instintiva da inteligência humana e a sua parte
mais preciosa. As pessoas não se lembram de emular esta capacidade espontânea na
inteligência artificial, estando apenas preocupadas com a capacidade de raciocínio, que é algo
presente em muitos animais, mas graduar um acidente, isso nenhum faz. Xavier Zubiri
mostrou que só o homem tem a noção de realidade, enquanto os animais só têm o ambiente
imediato e os reflexos condicionados.

Também qualquer um consegue distinguir as quatro causas: a causa formal é a


simples definição, a natureza da coisa, que pode bastar para explicar o que ela faz ou o que
lhe pode acontecer; a causa eficiente é o impulso, o mecanismo imediato que despoleta a
acção; a causa material é o meio, instrumento ou canal pelo qual a acção se realiza; e a causa
final é o fim último. Qualquer um distingue o tipo de crime (causa formal) da arma usada
(causa material), do objectivo do criminoso (causa final) e ainda do impulso imediato à acção
criminosa (causa eficiente). E distinguimos também os modos de actuação das causas, que
podemos designar como causa próxima e causa remota. Estas são apenas acessíveis através
do raciocínio, mas quando chegam à mente podemos ficar confusos e achar que uma causa
59

remota é uma verdadeira causa efectiva. As causas remotas podem predispor genericamente
a uma acção mas não determiná-la directamente.

O senso de humor depende do reconhecimento espontâneo de uma troca de


categorias, predicáveis, causas, etc. Contudo, quando estes elementos de percepção são
transportados para a ciência e para a filosofia, ocorre todo o tipo de trocas e confusões, que
não têm apenas um efeito cómico mas, por vezes, trágico. Nunca devemos permitir que a
nossa inteligência, quando se exercita nas suas funções mais elevadas e usada no estudo dos
assuntos mais complicados e nobres, desça abaixo do nível que o cidadão comum exibe na
sua prática diária. Não podemos voltar abaixo dos patamares estabelecidos por Platão e
Aristóteles, porque eles mesmos estabeleceram as bases da filosofia.

Um exemplo serve para mostrar como estas coisas foram esquecidas na modernidade.
Hyppolite Taine mostrou (Origens da França Contemporânea) que foram as sociedades de
pensamento que criaram o clima social que conduziu à Revolução Francesa, tendo para isso
usado a técnica de entender as acções a partir de como os próprios agentes viam a situação, o
que é a própria definição de História. Durkheim fez uma crítica deste método dizendo que
por baixo das acções existiam factos sociais, impessoais e muito mais decisivos, e criou uma
ciência a partir daí. Mas é evidente que Taine falava de causas próximas e Durkheim veio
desconversar, sem perceber, falando de causas remotas, que nunca poderão forçar a
ocorrência de causas próximas. Mas a moda pegou e quando chega a Ferdinand Braudel já
temos uma História sem personagens, feita apenas com médias estatísticas, regras
institucionais, etc. Acresce que as próprias causas remotas – os factos sociais – não existem
em si mesmos, são criados pela acção humana e só mediante esta podem exercer alguma
influência. A busca de causas estruturais e profundas corre sempre estes riscos. As causas
estruturais, remotas, podem funcionar apenas como factores limitantes, operam mais ou
menos como causas formais e finais, que criam um certo estado de coisas e podem sugerir
certos objectivos, mas nunca são causas eficientes, ou seja, nunca podem determinar a acção,
que está sempre a cargo do agente humano concreto.

Usando o método de Taine, percebemos como foi possível chegar à ilusão da


preponderância dos factos sociais. O Absolutismo retirou muito poder à aristocracia, ao clero,
aos intelectuais, que reagiram criando uma opinião pública, que na realidade nada reflectia
da opinião real das pessoas mas convinha que assim parecesse. Criou-se uma autoridade
paralela ao poder oficial, frequentemente suportada em sociedades secretas, e a opinião
pública parecia uma coisa espontânea porque os agentes reais serviam-se fundamentalmente
da camuflagem. Durkheim deixou-se hipnotizar por estas aparências, tudo lhe parecia
criação de forças anónimas, os seus “factos sociais”.

De pouco servirá estudarmos tudo o que existe sobre as categorias de Aristóteles se


não tentarmos seguir aquilo que já faz a nossa percepção espontaneamente. A primeira coisa
a fazer é precisamente conservar a espontaneidade e a integridade do nosso mecanismo de
percepção e para isso é fundamental a saúde do imaginário. Apenas na esfera do imaginário
podemos ter uma visão unificada do real, ainda que seja um imaginário baseado em mitos. O
início da loucura coincide com a diminuição da capacidade imaginativa. α18
60

[Aula 19]

103. O que é conhecer algo (Exercício Descritivo)


Existe uma clara diferença entre compreender ideias e compreender entidades reais,
como mostra a experiência das cartas de baralho [97]. O vício da análise crítica acaba por
danificar a inteligência, pois esta deve ser exercida depois de já termos uma boa coleccção de
figurinhas (Leibniz). Para contrabalançar isto, veremos dois exercícios que não envolvem o
pensamento crítico mas a percepção, a memória e a imaginação.

O primeiro exercício consiste em perguntar o que é conhecer alguma coisa, não para
chegarmos uma resposta teorética mas para obtermos uma descrição da nossa experiência de
conhecer algo em oposição a outra coisa que não conhecemos ou conhecemos mal. Trata-se
de uma descrição para nós mesmos, que não conseguiremos colocar por palavras
inicialmente, mas iremos reflectir inúmeras vezes sobre as experiências de conhecer uma
coisa assim como as de não conhecer uma outra. Podemos fazer isto em relações a pessoas,
máquinas ou livros, por exemplo.

Qual a diferença entre um livro que lemos e gostamos e outro que ainda não lemos?
Obviamente que não podemos descrever esta diferença apenas em termos da quantidade de
informação, porque isso é a própria colocação do problema. Desde logo, há um conjunto de
possibilidades que se abre com o conhecimento que temos a mais sobre a coisa conhecida,
mas também há uma diferença ao nível da afeição. Normalmente não associamos elementos
como intimidade ou proximidade ao conhecimento, mas eles estão presentes, ou seja, as
coisas conhecidas já se incorporaram de alguma forma em nós. São elementos da nossa vida,
tornaram-se valores para nós e também assumimos responsabilidade por eles, isto é,
respondemos por eles de uma forma distinta da que respondemos por coisas desconhecidas.
Basta recordar como certas pessoas se sentem ofendidas quando alguém deprecia uma certa
marca de automóveis, por exemplo.

Temos, então, os elementos de intimidade, identificação e de responsabilidade


associados ao conhecimento que temos das coisas. Mais genericamente, temos uma
constelação de reacções em relação a coisas conhecidas e uma outra para coisas
desconhecidas. Tudo isto aparece num repente quando deparamos com cada coisa, conhecida
ou desconhecida, e agimos espontaneamente e em conformidade, mas conseguimos
verbalizar muito pouco do que conseguimos realizar tão exemplarmente. A acção reflexiva é
para ser exercida em coisas que já estão em nós e não apenas em elementos externos, como é
habitual. Contudo, este nosso “depósito interno” fica danificado se quisermos exercer sobre
ele o pensamento crítico de forma indiscriminada.

O objectivo do Exercício Descritivo é o aprofundamento memorativo da experiência,


ao ponto de um dia conseguir verbalizá-la, sabendo que para tal é requerido um domínio
suficiente dos elementos expressivos, a começar pela obtenção do vocabulário apropriado.
Isto já sugere um outro exercício de alguma forma associado, o da obtenção de vocabulário:
ao invés de aumentarmos o vocabulário passando das palavras às coisas, devemos fazer o
oposto. Conseguimos distinguir muitas coisas que não conseguimos nomear, mas devemos
fazer um esforço para conseguir encontrar o nome de cores, árvores, utensílios e assim por
diante, que distinguimos perfeitamente mas cujas designações permanecem ocultas para nós.

Algo que faz parte da constelação associada às coisas conhecidas são pontos de
ancoragem, compostos de memórias e evocações, ou seja, a “coisa” a descrever funciona
61

como uma mnemónica. Acrescento ainda mais alguns aspectos que penso ter identificado
depois de ter passado algum tempo a conviver com este exercício. As coisas conhecidas não
são apenas auxiliares de memória, são potenciadores de conhecimento em si, ou seja,
contamos que coisas, pessoas ou livros conhecidos nos possibilitam conhecer algo mais do
que eles mesmos. Os entes conhecidos são também novos pontos de vista, novos
instrumentos de percepção que não temos directamente em nós mas que de alguma forma
passam a ser nossos. As coisas conhecidas obrigam-nos a definir melhor os nossos
horizontes: por um lado, um leque de possibilidade abre-se, que desconhecíamos, mas
também outras se fecham, porque percebemos que são inviáveis. Isto tem como corolário que
as nossas decisões tornam-se mais “automáticas”, no sentido em que estabelecemo uma
fidelidade em relação à coisa conhecida obriga às vezes a dizer um claro “não” ou a um claro
“sim”. As coisas desconhecidas trazem em si algum temor associado, mas também
consciência das nossas limitações actuais e estruturais. As decisões que tomamos em relação
às coisas desconhecidas podem ser bem mais difíceis (ficamos paralisados devido à falta de
elementos para decidir) e teremos em relação a elas uma tendência de fuga, mas elas de
alguma forma continuam a perseguir-nos. Além disso, creio que nunca conhecemos ou
desconhecemos elementos puramente individuais, ou seja, temos sempre a tendência em
generalizar a nossa constelação de reacções para a espécie, embora isto varie muito de ente
para ente. Então, há também um reconhecimento, um contínuo evocar da primeira vez que
conhecemos uma coisa daquela espécie, e penso que isto estará de alguma forma implícito no
elemento de cumplicidade. As coisas conhecidas têm associadas a si a noção de um mundo
que se amplia e que nos torna mais seguros mas também potencialmente mais arrogantes, se
não tivermos atenção ao que desconhecemos. Então, as constelações de reacções sobre o
conhecido e desconhecido de alguma forma mesclam-se: sobre o conhecido paira a “nuvem”
do que ainda não conhecemos, da traição até, e o desconhecido tem uma pequena chama do
que pode se tornar num amigo. α19

104. Exercício de rastreamento da origem dos objectos


Quando se trata do conhecimento de conceitos de ordem histórica ou sociológica,
temos um exercício que visa dar substância de realidade a estas coisas. Vamos listar todos os
objectos de um local em que nos encontramos (cozinha, sala, casa de banho). Para cada um,
vamos perguntar como ele chegou até nós. Vamos tentar chegar à sua origem remota, pelo
que não basta dizer que veio do super-mercado. Uma simples garrafa é composta de plástico
e de água, mas as duas não vieram do mesmo lugar. Alguém precisou de descobrir a fonte,
testar a água num laboratório e este, por sua vez, teve de ser construído e os técnicos que lá
trabalham formados. Para montar o negócio foi preciso investimento, o que remete para a
História dos bancos. Depois, foi necessário criar uma infra-estrutura para transportar a água,
o que pressupõe as máquinas para tal e assim por diante. O plástico da garrafa já tem por trás
o petróleo e a forma deste se transformar em plástico. Mesmo o objecto mais simples que
alguma vez tenha sido fabricado tem associado a ele uma miríade de relações para poder ter
vindo até nós. É imaginando estas coisas – sabemos que um conjunto de coisas deste género
realmente aconteceu para cada objecto ter chegado até nós – que os conceitos económicos
ganham corpo.

Desde logo, torna-se evidente que não tem qualquer sentido a pretensão socialista de
alguém poder administrar o conjunto de interacções que engendram os produtos à nossa
disposição. Marx começa O Capital dizendo que usará a abstracção como instrumento e, por
62

isso, não percebeu que a economia é uma trama inabarcável de relações humanas, que se
entrecruzam e sobrepõem, vindas das mais variadas direcções. E quando percebemos que a
nossa vida depende das acções de milhares de outras pessoas, percebemos que Santo
Agostinho tinha razão em dizer que a base da sociedade humana é o amor ao próximo.
Certamente que os elementos de engodo, mentira, cobiça ou de usurpação existem, mas se
eles fossem dominantes não daria nem para começar o empreendimento mais rudimentar. O
elemento de cooperação supera infinitamente a vontade de lucro e de “tomar vantagem”, tal
como as margens de lucro das empresas não são comparáveis àquilo que os produtos que elas
forneceram trouxeram às pessoas, às vezes até em termos de salvamento de vidas. Quando
alguém diz que a base da economia é a exploração do homem pelo homem apenas revela uma
grave deficiência imaginativa. Nós, pelo contrário, vamos usar a imaginação para tentar
conceber como as coisas chegaram até nós, não esquematicamente mas dramaticamente,
como se fosse um filme. α19

[Aula 20]

105. Leitura de um texto de filosofia (O Ponto de Partida da Metafísica)


A leitura de textos filosóficos deve ser feita a três níveis. Primeiro, temos que ter uma
compreensão esquemática do drama, ou seja, vamos fazer sobressair o conflito que está
sempre presente na especulação filosófica, ainda que numa forma sintética. Em segundo
lugar, preenchemos este esquema com conteúdo informativo e histórico necessário. Por fim,
remontamos o texto já com os seus conteúdos. É proposto um exercício com estes passos
aplicado a um texto Joseph Maréchal (retirado do início do livro O Ponto de Partida da
Metafísica). Apesar do texto ser curto, o trabalho poderá demorar meses, mas será mais
proveitoso do que ler muitos livros de filosofia. Começa Maréchal:

«Dos mitos religiosos e das antigas cosmogonias poéticas surgiram, na aurora da


civilização grega, as primeiras “cosmologias”».

Para preenchermos isto de conteúdo devemos atentar à Teogonia de Hesíodo, assim


como aos ritos e símbolos da religião grega.

«É facto que as curiosidades primitivas do espírito humano, tanto no indivíduo


quanto na espécie, nada têm de precavido nem de crítico; totalmente orientadas ao
“objecto”, elas mostram-se mesmo estranhamente despreocupadas com o sujeito
cognoscente.»

Para os antigos, esta era a única experiência que tinham, mas nós olhamos
retrospectivamente para as especulações deles e notamos logo a falta de uma preocupação
caracteristicamente moderna.

«A especulação nascente foi açambarcada, nos gregos como alhures, por um


“objeto” único: a Natureza – a Natureza pouco a pouco desvencilhada do véu
encantador das mitologias e entregue à dissecção racional.»
63

Tanto as cosmogonias como as primeiras especulações filosóficas tomavam a


Natureza como objecto, mas enquanto a cosmogonia é uma narrativa da origem do cosmos,
as especulações denotam uma vontade de obter uma explicação de como foi possível as coisas
terem acontecido.

«Essa predileção pelos problemas cosmológicos repousa, entre os iniciadores da


filosofia grega, sobre um dogmatismo realista, tanto mais seguro de si quanto mais
inconsciente.»

A crença inconsciente de que existe um mundo objectivo e que pode ser conhecido por
nós era natural aos antigos (como ainda é para nós na nossa vida corrente). Este é um
pressuposto que identificamos como sendo um dogma – uma afirmação de uma crença que
não pode ser contestada – a partir do momento em que surgiu o “problema crítico” e ainda
mais com o idealismo filosófico, que dirá que a substância das coisas é mental ou espiritual,
não é uma presença material objectiva. O realismo filosófico só aparecerá explicitamente
mais tarde em oposição ao idealismo.

«A filosofia segue assim, sem demasiado esforço, a dupla tendência do espírito a


afirmar e a unificar.»

A filosofia coloca alguma coisa, não é apenas um questionamento, e dizemos que isso
é afirmar algo. Contudo, para os gregos antigos era apenas um simples crer (na objectividade
do mundo e da possibilidade de o conhecermos) subjacente a algo que se punha. Ao mesmo
tempo, a tendência natural da razão é a unificação da multiplicidade da experiência, com
vista a obter fórmulas fáceis de guardar e repetir.

«Durante todo o tempo em que a tendência unificadora do espírito se exerceu,


episodicamente, sobre unidades parciais, os sistemas filosóficos mais díspares
puderam ser esboçados sem abalar profundamente a serenidade do realismo antigo.
Mas veio um momento em que, acima das unidades secundárias, se destacou a
unidade primordial ou universal do “ser”.

A razão humana teve então como que um deslumbramento: sem deixar de apoiar o
realismo, ela vacilou, por assim dizer. Pois o “ser” não representava, no objeto do
conhecimento, tanto a multiplicidade cambiante quanto a unidade imutável? O
conflito da unidade e da multiplicidade surgia no coração mesmo da afirmação
necessária. Acreditou-se dever deixar de lado, sacrificar algo do conteúdo do
conhecimento, uns isto, outros aquilo.

Heráclito, fiel aos dados imediatos da experiência, adota a multiplicidade e o


movimento, renunciando assim à unidade imutável do “ser”. Quase na mesma
época, Parmênides abraça o “ser” homogêneo e imóvel, repelindo assim, para o
domínio da pura aparência, todo o mutável e todo o múltiplo. E, para cúmulo, Zenão
de Eléia, discípulo de Parmênides, adota por missão, dir-se-ia, aumentar ainda o
desconforto da pobre razão espontânea, jogando-lhe aos olhos seus paradoxos
enceguecedores sobre a irrealidade da mudança. Por toda parte, é o senso comum
posto em xeque, é o desafio da razão refletida à razão espontânea.»
64

O esforço unificador não era problemático enquanto aplicado a partes do ser, mas
quando se começou a especular sobre o ser, as contradições tornaram-se patentes,
especialmente entre Heráclito, com a sua afirmação da multiplicidade, e Parménides, com a
afirmação do ser imóvel e imutável. Vamos ler os fragmentos destes pré-socráticos que
salientam estes pontos em específico. Mais tarde, Sócrates e Platão vão tentar conciliar estas
duas perspectivas, mas não foi isso que aconteceu logo de seguida a Parménides. Heráclito
era bastante incompreendido e Parménides ridicularizado, o que levou o seu discípulo Zenão
a montar os seus famosos paradoxos para tentar abalar a confiança que as pessoas tinham
nos dados dos sentidos, mas na realidade o que ele conseguiu foi criar um desconforto à
própria razão.

«Aliás, esse escândalo da razão era ainda agravado pela impressão nada edificante
criada pela multiplicação excessiva dos sistemas cosmológicos que solicitavam, nos
sentidos mais diversos, a aprovação do filósofo e do pensador.

Não lhes faltava, decerto, nem engenhosidade nem ousadia. Com igual desdém pelas
tradições e pelas aparências comuns, elas decompunham o mundo para reconstrui-lo
em melhor ordenação. E a diversidade, tanto dos materiais analisados quanto dos
edifícios sintéticos, não deixava de ser desconcertante. De Heráclito a Empédocles,
de Empédocles a Anaxágoras, de Anaxágoras a Lêucipo e a Demócrito, a razão dava
voltas, por assim dizer, ao acaso, sem sentir-se em parte alguma como em morada
permanente. – Para compreender a invasão do pensamento grego, não obstante tão
realista, por uma primeira crise da certeza, é preciso levar em conta, ao mesmo
tempo, todas as circunstâncias. O terreno estava preparado para o cepticismo.»

Vamos preencher este texto de conteúdo, desde os primeiros fragmentos da escola de


Mileto, depois Heráclito e Parménides, que depois motivou os esforços posteriores de
Empédocles, Anaxágoras e dos atomistas para explicar a multiplicidade mantendo de alguma
forma a unidade do ser. Tudo isto era ousado, engenhoso, mas nada aparecia com uma
explicação que se impunha, antes era criada uma imensa massa de material que Sócrates
percebeu que era imensamente problemático.

Para além do drama já aqui explicitado, Joseph Maréchal dá a entender que existe
outro mais profundo, quando fala do desafio que a razão reflectida colocou à razão
espontânea. Esta última remete à experiência das cartas [97], é o raciocínio feito com o
material dado na própria experiência. A razão reflectida já vai usar esquemas para
transportar os dados da experiência e depois manipula-os. É na razão reflectida que
aparecem todos os problemas e oposições, já que no plano da razão espontânea sabemos que
todos deviam ter uma vivência bastante semelhante, como o próprio Heráclito diz, que “os
homens despertos estão todos no mesmo mundo, enquanto os homens adormecidos vão cada
um para o seu mundo”. Todos partiram de uma apreensão única da realidade mas que não se
pode expressar directamente em modo verbal, e a passagem para o mundo da razão reflectida
é muito problemática. Com o surgimento do problema crítico (com Descartes, Kant e outros)
o conhecimento espontâneo foi bastante desvalorizado (ao ponto de algumas pessoas
temerem-no, como se fosse um fantasma ou algo horrível) e a aposta foi quase toda para a
razão reflectida, para o mundo dos “homens adormecidos”, pelo que podemos concluir que a
sucessão de doutrinas filosóficas é uma sucessão de sonhos e só podemos realmente
compreendê-los se baixarmos para o plano da razão espontânea. É isso que Sócrates faz com
o processo de anamnese, pressupondo que por trás de todas as ideias e doutrinas já existe
65

algo que o interlocutor sabe, que é inconsciente para a razão reflectida mas não é
inconsciente em si, é apenas algo que funciona muito rápido e de forma muda mas que pode,
de alguma forma, ser regatado e contemplado. A atenção que dermos à razão espontânea vai
criar a nossa cumplicidade com a realidade. α20

106. A impregnação na alta cultura


Os grandes momentos da literatura universal só aconteceram em meios nos quais a
linguagem do escritor (poeta, dramaturgo, etc.) era mais ou menos a mesma que a linguagem
da sociedade inteira, apenas mais elaborada, condensada e eficiente. Então, o imaginário do
escritor não era muito distinto daquele que tinha o cidadão comum, apenas era mais claro e
rico, com maior penetração na razão espontânea também. Na poesia moderna ou na filosofia
actual não existe esta continuidade entre a sociedade e o autor, como existia no tempo de
Dante, Platão ou Shakespeare, que tinham uma força imensa porque personificavam uma
cultura inteira.

Vivemos numa época bastante fragmentada, onde não apenas temos uma separação
entre a cultura de massas e a alta cultura como temos um senso comum fabricado (apenas
possível com a concentração da comunicação social). Mas a fragmentação e a alienação não
são totais e podemos sempre dar mais atenção à razão espontânea, que é o domínio comum a
todos. Também não vamos negar toda a influência cultural, mas não vamos nos restringir
àquilo que se produz no momento, vamos alargar o nosso campo de referências, não só para
outras culturas mas sobretudo para outras épocas, em busca da “crença comum da
humanidade” e daquilo que de melhor foi feito pelos melhores. Para isso, é bastante
recomendável a frequência com a experiência estética (musical, poética, artística, etc., tudo o
que enriqueça o imaginário) do mais alto nível, assim como o contacto com autêntica
experiência moral (ler sobre a vida dos santos e dos grandes heróis, para ter ideias das
possibilidades humanas superiores), não para analisar mas para contemplar e deixar que
estas coisas se impregnem em nós. Desta forma, podemos integrar a própria cultura de
massas, da qual não recebemos apenas lixo – mas não podemos levar nada a sério do que
aparece nos jornais – mas também benefícios materiais. Claro que isso cria uma tensão com
o nosso meio social, que apenas se resolve quando entendermos que a nossa função é ajudar
as pessoas e não receber delas seja o que for para além daquilo que deriva da própria inserção
nossa na sociedade. α20

[Aula 21]
107. O papel e o funcionamento da imaginação
Podemos ter muitos dados sobre a nossa vida em memória mas estes, só por si, não
compõem uma unidade e nem nos dão uma figura de nós mesmos. Esta figura apenas se
apresenta na nossa imaginação, sem a qual não conseguimos contar a nossa história. Iremos
sofrer mudanças ao longo do tempo sem percebermos, mudaremos de opinião sem nos
darmos conta, não teremos consciência das influências que recebemos nem do impacto que
as experiências tiveram em nós ou de como fomos manipulados desde fora. Em lugar de uma
66

imaginação ligada à realidade, colocamos com frequência no seu lugar uma auto-imagem, a
que nos apegamos e passamos a tomar como realidade e como critério de julgamento. Mas
esta auto-imagem não admite as influências que sofremos, logo, torna-nos mais vulneráveis a
elas.

Desde o início do curso que devemos tentar perceber como somos subtilmente
influenciados, positivamente ou negativamente. Nem todas as influências são directas e uma
das mais perniciosas e talvez a mais decisiva dá-se por meio da supressão de dados, uma
“imposição” dos meios de comunicação de massa. Isso quer dizer que em vez de
considerarmos todo o panorama na avaliação das situações, iremos deixar de ter em conta
factores decisivos e, assim, daremos uma importância desmedida a factores secundários.
Ninguém é imune a isto porque todo o nosso vocabulário veio de fora, normalmente da
família, da sociedade próxima ou da cultura de massas, e para além disso só podemos
complementar e transcender através da contaminação da alta cultura, mas ainda assim
aquilo que daqui obtemos dificilmente será usada na nossa comunicação directa com outras
pessoas, daí a importância da verdadeira amizade. O nosso “eu” não é uma coisa isolada
dentro de nós, é algo que também faz parte da cultura e é dentro do diálogo cultural que
adquirimos uma personalidade. Não que o nosso “eu” seja uma ilusão dentro da cultura, nós
temos uma individualidade autêntica, mas temos muitas ilusões a seu respeito e há todo o
fingimento incorporado à cultura moderna.

Vejamos como funciona a imaginação. Qualquer coisa que vemos, só a vemos por um
lado mas sempre sabemos que o outro também está presente. Será esse outro lado oculto
mera criação nossa, como se supôs no início da filosofia moderna? O idealismo moderno
chegou à conclusão de que tudo aquilo que pensamos saber sobre o mundo exterior é
invenção nossa porque os idealistas partiram do facto de que o ser humano retira um número
ínfimo de informações sensíveis sobre qualquer coisa, pelo que concluíram que o resto é, de
alguma forma, completado pela nossa mente. A observação inicial é correcta mas não a
conclusão. Ora, o nosso olhar não tem apenas uma capacidade de visão bidimensional mas
uma expectativa de tridimensionalidade, que não é uma sua característica independente mas
algo que se ajusta perfeitamente às propriedades dos próprios objectos observados. Essa
expectativa é aquilo que se cumpre na imaginação, ou seja, é a imaginação que complementa
a percepção sensível para ajustá-la à estrutura real dos corpos. A imaginação, quando realiza
esta função, não está a inventar nada, nem sequer está a obedecer às regras do nosso
pensamento, simplesmente ela segue as propriedades reais dos corpos que permitem a sua
existência e presença. Na realidade, é a bidimensionalidade que só é concebível por
abstracção mental, porque sabemos imediatamente que mesmo o objecto mais plano e chato
é ainda tridimensional.

É a imaginação que nos dá a unidade do mundo, sendo a percepção totalmente


descontínua. Mesmo quando olhamos uma paisagem, só focamos um ponto e tudo o resto
aparece mais ou menos difuso. Quando o foco se desloca, a unidade aparece mas não
sucessivamente – o que seria indício de que a captação de unidade derivaria da percepção
sensível – mas de forma simultânea, porque as coisas existem o tempo todo e é a imaginação
que nos dá esse senso ao complementar o olhar. A cultura moderna parte do princípio de que
existimos num mundo físico composto de seres acessíveis aos sentidos, sendo tudo o resto
criação mental e cultural. Contudo, se somarmos todas as nossas impressões sensíveis, elas
não compõem mundo algum, são na verdade algo totalmente subjectivo, dado que são coisas
67

que acontecem no nosso corpo. Podemos isolar isto por via abstracta e dizer que é o mundo
real mas é uma ilusão.

Na verdade, só conseguimos chegar a uma concepção de constituição objectiva do


mundo através da imaginação, que completa a percepção. Se considerarmos a percepção na
sua totalidade, ela é constituída sobretudo de imaginação (assim como de elementos de
memória e outros resultantes da combinação da memória com a imaginação, que remetem
para elementos de antecipação) e as sensações são apenas mais uma componente, não
existindo separadamente. Uma sensação pura é até algo difícil de concebermos; não se
poderia ter propriamente consciência dela, seria como uma ameba para a qual a percepção se
confunde com estado do corpo (é a única coisa que existe para ela, que não percebe a
existência de um mundo) e ela apenas pode reagir de forma “programada”.

A imaginação é o que nos instala no real. Para além de completar a percepção


sensível, dando-nos imediatamente uma percepção real daquilo que o objecto é, a imaginação
traz também um conjunto de expectativas e de possibilidades que a coisa observada pode ou
não fazer. Tudo isto está presente na percepção total. Novamente, não são coisas que a
imaginação inventa mas um conjunto de possibilidades que realmente se encontram no
objecto, tendo ele obviamente ainda outros elementos que nos escapam mesmo. Perceber a
forma de algo não é perceber a sua figura externa, a que faltam as possibilidades de acção que
o objecto pode realizar no instante seguinte, por exemplo, um gato pode miar ou saltar mas
não irá falar japonês. A realidade não é apenas o conjunto de presenças estáticas dos corpos
mas um imenso sistema de dinamismos e de possibilidades latentes e prontas a ocorrer. A
imaginação capta parte destas possibilidades, mesmo em relação ao nosso corpo, que
também o vemos como um sistemas de possibilidades e não apenas como uma coisa que
simplesmente está aí. Em suma, o famoso “mundo material” existe apenas como conceito e
não como realidade, sendo abstraído desta porque podemos distinguir mentalmente a
sensação da imaginação, mas nunca poderemos separá-las efectivamente. O materialismo, ao
negar estas evidências, torna-se uma doença do intelecto, uma autêntica falta de inteligência.
A primeira etapa do curso destina-se fundamentalmente a tomarmos posse da nossa
capacidade de percepção do mundo como coisa real e dinâmica, como um conjunto de
tensões e potenciais que marcam a sua verdadeira presença. O processo de desimaginação é
passado hoje como se fosse educação, porque se temem certas reacções ao tomar posse da
imaginação ou de com isto se estar a violar os cânones estabelecidos. α21

108. A construção da pessoa moral


A nossa pessoa moral não pode ser exercida recorrendo ao facilitismo do moralismo
religioso. Devemos, em primeiro lugar, procurar a transparência a nós mesmos, sabendo que
nunca iremos obtê-la integralmente e que a nossa consciência é cíclica, aumenta e diminui. O
importante é nunca parar e não cair no estado da mentira confortável. Se não aceitamos as
verdades sobre nós mesmos, não iremos estar capacitados para descobrir verdades no mundo
exterior. Algumas pessoas exigem de si mesmas e dos outros uma conduta exemplar em
todos os domínios da vida, o que viola a própria essência de justiça, que implica hierarquia e
senso das proporções. Cada coisa tem um peso na nossa personalidade total e o que importa
é o conjunto, que até pode neutralizar alguns vícios. A perfeição quantitativa está reservada a
Deus e a vontade de a possuirmos já é uma perversão. Santo Agostinho dizia que os vícios são
feitos da mesma matéria que as virtudes, ou seja, da matéria imperfeita podemos construir
68

uma forma total que nos aproxime da verdade, mas abortaremos o processo se tivermos por
fim a perfeição quantitativa, fazendo a lista de pecados e procurando a agonia, o remorso e a
angústia como penitência (quando a verdadeira penitência é fazer o bem depois de ter feito o
mal). α21

[Aula 22]

109. Mapeamento da situação mundial


Os alunos do Curso Online de Filosofia devem ter uma noção do ambiente onde
exercerão a sua actividade, e para isso é necessário “mapear o terreno” de modo a que cada
um possa programar a sua actuação. Existe no cenário mundial actual um elemento que até
há uns séculos atrás era desconhecido: uma elite internacional muito rica e poderosa
integrou as suas actividades tendo em vista a construção de um governo mundial. Já desde os
séculos XII ou XIII que os bancos se associavam a nível internacional para exercerem uma
pressão unificada sobre os governos, controlando-os por via do endividamento. Isto
intensificou-se muito nos últimos séculos, mas a partir de meados do século XIX os grandes
banqueiros passaram a estar associados a intelectuais, cientistas, escritores, entre outros,
criando um debate permanente, a partir do qual saíram planos bastante nítidos. Esta elite
esteve por trás de quase todos os movimentos políticos de grande alcance no século XX,
embora nenhum traduza inteiramente os planos e objectivos da elite, que não tem
propriamente essa ilusão mas antes espera que aparecem várias forças em acção,
confrontando-se e se mesclando, e seria daqui que sairia o resultado esperado. Nada disto é
secreto, estando até bastante bem documentado (em grande parte vindo do próprio processo,
nomeadamente por revoltas internas), mas a complexidade dos planos e o nível intelectual
das discussões subjacentes tornam o processo inapreensível ao cidadão comum, até pelo
comportamento da comunicação social, que ora suprime informação, ora a presta em escala e
contexto deslocados. Sem encontrar a escala e a perspectiva certas, não compreenderemos o
fenómeno globalista e podemos mesmo contribuir involuntariamente para a sua
implantação. A nossa medida de aferição da visão do conjunto não pode ser mais estrita do
que aquela que possuíam os grandes historiadores que participaram no movimento de
globalização, nomeadamente Arnold Toynbee e Carrol Quigley, cujo estudo das obras se
torna essencial. Depois podemos arriscar a tentar ver algo mais do que eles, algo mais sólido
e com um padrão de universalidade mais defensável.

O movimento de globalização tem por base a crença de que a História dirige-se no


sentido de um maior controlo da natureza pelo homem e, logo, numa concomitante
centralização de poder. Ellsworth Huntington salientou (Mainsprings of Civilization) o
contacto cada vez maior entre diferentes culturas, o que é um facto, assim como o constante
aumento da população terrestre. Isto conduz a uma tendência de integração, em que as
culturas menores são absorvidas pelas maiores. Quando este processo se tornou consciente,
surgiram os proponentes da globalização, que pretendem conduzir, por meios deliberados, o
processo que já vinha acontecendo anteriormente de forma espontânea. O movimento
globalista pretende antever como deve ser o futuro, onde naturalmente os globalistas
assumirão o controlo “humano” da Natureza e a centralização de poder, o que, por sua vez,
69

aumenta o momento do movimento. Os liberais que se opõem à centralização de poder


dentro das nações, apoiam o comércio internacional e outras iniciativas cujo efeito é a criação
de poderes à escala global. Eles são um exemplo daquilo que é não ter um ponto de vista
suficientemente amplo para entender a situação global, porque adoptam a perspectiva
económica, claramente insuficiente, tal como é insuficiente o enfoque marxista. α22

110. O poder, a ciência e os movimentos revolucionários


O fenómeno do poder é em geral desvalorizado. Iniciativas como a do globalismo são
geralmente explicadas pela motivação de ganhar dinheiro, o que ignora que o movimento é
composto de pessoas que já têm todo o dinheiro que querem, assim como de outras a quem
lhes repugna as vantagens materiais e podem até ser pessoas bastante idealistas e altruístas,
mas em todo o caso o poder está implícito naquilo que elas acreditam sobre o que deve ser
feito. Podemos ver o poder como a capacidade de pôr outros fazendo o que nós queremos.
Toda a gente possuiu algum poder, mas o que é normalmente ignorado é a diferença
estrutural no poder dentro da espécie humana, que não tem paralelo em qualquer outra
espécie animal. O poder do ser humano varia desde a quase inanidade até ao estatuto de um
semi-deus, que pode decretar a morte de milhões num gesto. Trata-se de uma diferença
estrutural – e uma das condições que definem a presença humana no cosmos – que tem
sempre aumentado, como documentou Bertrand de Jouvenel (Du Pouvoir).

A diferenciação de poder está associada a uma diferenciação de horizonte de


consciência temporal. Quem manda tem uma muito maior capacidade de prever os
acontecimentos. Abaixo destes encontram-se quase todas as outras pessoas, que
frequentemente ignoram totalmente o que está sendo planeado para eles. Os movimentos
revolucionários alargam o horizonte temporal até ao fim dos tempos, já existe um futuro
inevitável, segundo os marxistas, por isso todos têm a necessidade de trabalhar neste sentido.
Mas antes do marxismo, já a ciência moderna tinha surgido com a promessa de controlar o
ambiente físico mediante a acção humana, o que obviamente implica que existam aqueles
que controlam a acção humana, ou seja, que existam aqueles que tenham muito mais poder
que o vulgo e que o controla.

A ciência tornou-se no grande árbitro das discussões públicas mas, ao mesmo tempo,
especializou-se e os seus problemas internos já não são comunicáveis na linguagem geral.
Então, supostamente, um conhecimento incomunicável deve arbitrar as questões de ordem
geral, porém, não se exprime nos termos desse debate público mas nos seus,
incompreensíveis para os demais envolvidos, que assim se encontram, à partida, subtraídos
da discussão por não possuírem uma linguagem apropriada. O rei-filósofo de Platão é
caricaturalmente emulado pelos cientistas ideólogos, que se querem estabelecer como um
novo clero. Sobre o homem comum pesam os seguintes factores: a massa do dinheiro; o
empreendimento científico; e ainda os movimentos revolucionários. Todos pretendem
controlar a Natureza, mas esta contínua caprichosa, indomada, ao passo que o cidadão
comum se encontra dominado pelas elites. Todos estes poderes não conseguem cobrir todo o
terreno, existem áreas em que exercem pouca ou nenhuma influência, e o poder que têm é
sobretudo o de causar uma forte impressão. Não apenas não podemos nos deixar
impressionar com estas coisas, como devemos tentar encontrar os nossos próprios meios de
divulgação e de subsistência, mas para isso temos de nos fortalecer psicologicamente e
70

moralmente. O exercício da vida intelectual exige coragem moral e até física, não podemos
nos deixar impressionar pela academia, pelo establishment ou pela cultura de massas. α22

111. As promessas bíblicas da ciência moderna


A ideologia científica e o marxismo viveram a par durante algum tempo, umas vezes
colaborando, outras vezes em oposição mútua, até que se fundiram nos anos 20 ou 30 do
século XX, sobretudo em cientistas como John Halden, John D. Bernal, C. H. Waddington,
John D. Barrel, Frank Tipler, Freeman Dyson, Paul Davis, Fred Hoyle. O trabalho conjunto
entre ciência e marxismo foi depois aproveitado pela elite globalista. A ambição dos cientistas
revolucionários é a de expandir a presença humana para todo o universo, incluindo mesmo
todos os universos logicamente possíveis, e também prolongar a existência do universo ou
mesmo impedir o seu fim, talvez mesmo mudar a forma fechada do universo e alterar a sua
topologia espaço-tempo, criar universos artificiais e, a cereja em cima do bolo, num futuro
muito distante talvez se desenvolva uma forma de vida alheia à carne e ao sangue e que possa
ser incorporada a um bloco de nuvens interestelares ou num computador senciente. Mary
Midgley reuniu muitas destas pretensões no livro Sience as Salvation, onde fica patente o
desejo desta gente em realizar as promessas bíblicas por vias inversas, ou seja, o homem é
uma criatura puramente material mas a ciência pode espiritualizá-lo, talvez até fabricar-lhe
uma imortalidade, a ser incorporada nalguma entidade, como uma poeira estelar inteligente.
Eles acreditam realmente na possibilidade destas coisas acontecerem, não é como fazem os
escritores de ficção científica, que montam situações fictícias como forma de meditar sobre a
sociedade em que vivem.

Eles acham que o fim do universo é o fim de tudo, quando é um “momento” que nada
representa na ordem do ser. O ser apenas pode ser compreendido na dimensão de infinitude
e de eternidade: nada do que aconteceu desacontecerá. Mas estes cientistas tomam a
existência do universo em termos espaço-temporais e absolutizam isto, achando que não
existe mais nada. No cristianismo, a vida mais curta já tem um sentido eterno porque ela já se
encontra dentro da eternidade, não depende daquilo que a humanidade venha a fazer no
futuro, como acham certos cientistas modernos, que acreditam que o futuro poderá criar um
émulo da eternidade.

O universo tem uma ordem total, que engloba um elemento de caos (por isso, a
linguagem necessita de ambiguidades, metáforas, figuras de linguagem) mas também
abrange o facto de o homem compreender aspectos dessa ordem, como o de ela ter vários
níveis. Então, o universo não é totalmente administrável mas também não é incompreensível,
e podemos confiar que a nossa mente é ordenada pela própria ordem do universo. Se nos
amoldarmos a esta ordem, novas parcelas irão revelar-se a nós, na medida das nossas
necessidades, mas se seguirmos a pretensão da ciência moderna (ou de Stephen Hawking) de
fazer uma descrição completa do universo existente (o que pressupõe que já teríamos os
conceitos rigorosos de tudo, quando nem sequer temos um conceito rigoroso de matéria), já
estamos a entrar num universo psicótico. Daqui advém as pretensões de um controlo total,
tudo incompatível com a estrutura da existência humana mas é uma ideia que pode ser
vendida como algo alcançável. A verdadeira relação com a ordem universal tem que ser de
confiança, paciência e modéstia, e fora disto iremos nos alienar nas pseudo-ordens da cultura
contemporânea. α22
71

[Aula 23]

112. A cultura moderna como abolição da natureza e do homem (Bernanos)


Diz Bernanos (L’Imposture):

«Cada rua, atravessada no tumulto e no deslumbramento, tão logo deixada, vos


segue na sombra com uma queixa horrível, pouco a pouco ensurdecida, até o limite
de um outro tumulto e um outro deslumbramento, que logo junta à outra a sua voz
dilacerante. E ainda, não é essa palavra “voz” que eu deveria escrever, pois somente
a floresta, a colina, o fogo e a água têm vozes, falam uma linguagem. Nós perdemos
o segredo dessa linguagem, se bem que a lembrança de um acordo augusto, da
aliança inefável entre a inteligência e as coisas não possa ser esquecida nem pelo
mais vil dos homens. A voz que nós já não compreendemos ainda é amiga, fraterna,
apaziguadora, serena. O homem lírico, no grau mais baixo da espécie, que o mundo
moderno honrou como um Deus, acredita risivelmente tê-la restituído, não tendo
libertado a natureza dos silvanos, das dríades e das ninfas fora de moda senão para
soltar aí o rebanho inteiro das suas mornas sensualidades. O mais forte dentre eles
[Victor Hugo], já estrangulado pela velhice, preencheria as ruas e as florestas com a
sua infatigável lubricidade. Atrás dele, a massa dos discípulos acorreu, como quem
come, à solidão sagrada, no sonho abjeto de associá-la às suas digestões, à sua
melancolia, à sua decepção carnal. O contágio, aproximando-se pouco a pouco,
estendeu-se até os antípodas: a ilha deserta recebeu as confidências deles,
testemunhou seus amores, retiniu com seus grotescos soluços ante a velhice e a
morte. Não há pradaria, resplendente de luz e de orvalho no candor da aurora, onde
você não encontre os traços deles, como papéis sórdidos grudados nos postes em
uma segunda-feira de manhã. Todavia, se está no homem impor a sua presença e os
signos da sua baixeza à natureza, nem por isso ele se apodera do ritmo interior dela,
da sua profunda ruminação. Ele encobre a voz dela, mas ele a interroga em vão...»

Este parágrafo resume a história da civilização moderna e a sua incapacidade de


perceber a Natureza como presença – profunda e imediata – do ser. A presença do mundo
material foi substituída pela poesia lírica, que também evoca a Natureza mas como
instrumento e símbolo dos sentimentos humanos, já não escuta a voz dela (de onde se
retiram todos os conhecimentos das ciências), apenas a vê como um cenário das suas
“tristezas carnais”. Marx apresentava a natureza como matéria-prima da acção humana, ou
seja, é um materialista que retira à matéria toda a “actividade”. Mas toda a acção humana
conjugada ao longo do tempo teve um impacto ínfimo no universo, e se ignorarmos isto, no
limite podemos chegar a ideias como a do “princípio antrópico”, em que se defende que o
universo foi constituído tendo em vista o ser humano, partindo da observação de que “somos
como somos porque o universo tem a estrutura que tem”. Só na aparência isto se assemelha
ao princípio bíblico que coloca o homem no centro da criação, porque quando não existe
Deus, o centro da criação transforma-se também no seu princípio: o homem torna-se o
criador do universo, entidade que até ao nosso advento teria uma existência meramente
potencial. A imagem da realidade sai assim invertida, no centro da qual ficam as paixões e os
impulsos mais banais, sendo tudo o resto um cenário coadjuvante aos nossos pequenos
dramas.
72

Desde logo, isto faz lembrar o exercício de deitamos no chão à noite, em sítio isolado,
onde sentimos a imensidão do cenário material e a noção da nossa pequena dimensão [53].
Isto pode nos aterrorizar se estivermos acostumados a sermos o centro das coisas, mas já o
salmista tinha mostrado a nossa dimensão: materialmente nada somos, mas temos acesso ao
infinito através de Deus. Sem Deus, o tamanho do universo material fica atemorizante (um
espanto que não provoca o desejo de conhecimento mas um desejo de fuga para a
ignorância). Então, a presença do universo é eliminada, ele surge apenas como um cenário ou
como uma fonte de matéria-prima, sempre algo utilitário. O livro As Seis Doenças do
Espírito Contemporâneo, de Constantin Noica, relata seis defesas contra o senso da presença
do ser.

Luis Cencilho mostrou que faz parte da nossa experiência do ser a capacidade de
apreendermos as experiências do ser que outras pessoas tiveram. Quando Dante, Platão ou
Aristóteles apontam para coisas que eles perceberam, isso abre a possibilidades para outras
pessoas terem acesso às mesmas dimensões do ser, assim como para outras destas derivadas.
Qualquer tribo reúne-se à volta do “pajé” para ouvir histórias e isso já é uma abertura para
novas dimensões do ser. A aquisição de alta cultura deve ser feita de forma a nos abrirmos
para mundos que nunca alcançaríamos apenas pelos nossos próprios meios. A interacção
com outras consciências humanas é um elemento fundamental da experiência da realidade.
α23

113. A voz do coração


Sem o senso da presença do ser, a nossa própria presença a nós mesmos fica oculta.
Facilmente constatamos que a nossa auto-imagem é uma coisa retocada inúmeras vezes, algo
pouco sincero e impermanente. Perdemos a capacidade de uma intuição efectiva da nossa
presença. Assim, partimos da nossa auto-imagem para interpretar o outro, pelo que a
convivência directa é abolida e substituída por uma convivência entre papéis sociais.
Nenhum ser humano pode ser abarcado pelo pensamento – nem mesmo se o aplicamos a nós
mesmos – mas, ainda assim, pode ser conhecido. Mas como? O ser humano só pode ser
conhecido como uma tensão que está indo em direcção a alguma coisa, e isto é independente
daquilo que pensemos sobre nós mesmos ou sobre os outros.

Independentemente do que pensemos sobre nós mesmos, somos realmente algo: a


nossa existência tem uma substancialidade. Contudo, o pensamento exige, para além de uma
linguagem, imagens que são construídas por analogia com coisas vistas e imaginadas. A
partir daqui, obtemos conhecimento sobre nós, mas por baixo ainda existe aquilo que
realmente somos. Ora, aquilo que realmente somos não é uma parte totalmente ignorante,
ela possui o conhecimento inerente à nossa existência e que apenas sofrivelmente é traduzido
por pensamentos. Todas as nossas transformações são compatíveis com a nossa forma de ser,
que é permanente (mas à semelhança de um algoritmo e não como uma coisa inteiramente
estática), ao contrário dos nossos pensamentos evanescentes. A linguagem que usamos para
os pensamentos é de difícil aquisição, assim como a auto-imagem que necessitamos para
convivência social também não é fácil de obter, pelo que tomamos estas coisas
frequentemente como se fossem a realidade (uma espécie de tributo ao esforço dispendido).
Tudo isto tem as suas próprias exigências, que podem se sobrepor à consciência profunda
que temos da nossa substancialidade – o “conhecimento do coração” dos antigos. Poetas,
sábios, filósofos desenvolveram uma arte para deixar que o coração fale.
73

Quanto mais adaptados estivermos a um grupo social ou a um meio, mais


distanciados vamos estar da voz do coração. Perdemos o senso da presença do ser e dos
outros corações, então, entregamo-nos ao “mundo” (no sentido bíblico, o reino de César).
Desta forma, ficaremos muito abaixo do potencial da espécie humana, algo que não se pode
verificar nas outras espécies animais. Criou-se uma sub-humanidade constituída de
indivíduos irresponsáveis e com todos os privilégios, e que têm de ser carregados por outros.
α23

[Aula 24 – Especial curso “Conceitos Fundamentais de Psicologia”]


114. O que é a psique?
Não existe acordo entre os psicólogos mais famosos sobre o que é a psique, deste Jung
que dizia que tudo é psique, até B. F. Skinner que negava a sua existência. Contudo, todos
estavam olhando para o mesmo objecto, pelo que havia um desacordo teórico mas não na
prática. Podemos buscar o que há de comum não nas definições mas no que estava
subentendido nas descrições das experiências, ou seja, podemos usar um método de análise
de discurso. Todos os psicólogos sabem distinguir uma causa psíquica de qualquer outra e,
desta forma, começamos por englobar a psique no género “causa”. A causa psíquica não
envolve uma necessidade absoluta, de tipo lógico, metafísico ou físico (esta última não é
propriamente absoluta mas probabilística), porque mesmo quando deparamos mentalmente
com uma ligação lógica, podemos aceitá-la ou não. A causa psicológica é de um quarto tipo,
que não pode ser reduzido a uma das anteriores, apesar de Skinner ter tentado fazer isto.

Vamos analisar algumas características desta força causal que é a psique. A primeira
das características é que a causa psíquica é marcadamente individual. As relações da psique
com o corpo do agente são bastante desconhecidas, ao ponto de nem sabermos se tem
sentido tentar descobrir onde termina o corpo e começa a psique, é uma coisa que talvez se
possa descobrir no final da investigação. A segunda característica da psique é a sua
historicidade. A causa psíquica remete sempre para algo que aconteceu, há sempre um
aporte do passado, a começar pelos elementos linguísticos. Contudo, o passado não
determina directamente a acção psíquica ou deixaria de haver um sujeito agente. Um terceiro
elemento presente na causa psíquica é a expectativa de futuro, remoto ou imediato. Estes
elementos combinados evidenciam desde logo que só podemos falar de uma causa psíquica
quando a acção ou conduta é atribuída ao sujeito agente e não a algo determinado por outra
causa, e isto releva outro elemento da psique, que é a sua irredutibilidade. A psique é, então,
aquilo que permite que sejamos sujeitos agentes, que sejamos causas originárias. Isto nada
tem a ver com a questão da liberdade e do determinismo metafísicos, que deixa intacta a
pergunta sobre o que é a psique. Em resumo, podemos dizer que as duas características
essenciais da psique são a individualidade e a historicidade (que inclui a expectativa de
futuro), e delas tiramos a irredutibilidade, pelo que deixa de ser necessário considerar o
elemento “liberdade”, que já está dado, mas se for colocado explicitamente levanta toda uma
série de problemas. α24
74

115. O desenvolvimento da psique


Sendo uma das características da psique a historicidade, é possível investigar a sua
estrutura temporal e histórica. Desde logo, percebemos que ela está presente desde o
nascimento, desenvolvendo-se ao longo do tempo por um sistema complexo de assimilações
e transformações de material externo – que não é psíquico na sua origem, como o simples
facto de termos um corpo, que é um dos primeiros elementos que a psique começa a integrar.
O corpo emerge com sendo uma série de necessidades (respiração, alimentação, necessidade
de movimentação, etc.) Cada uma destas necessidades não é causa directa de conduta
alguma, mas depois entram como componentes da acção humana, tendo para isso que ser
filtradas e interpretadas, podendo algumas até ser neutralizadas no processo. Os próprios
impulsos (fome, sede, desejo sexual…) não se atendem a si mesmos, precisam de ser
transformados em elementos causadores de acções, o que é feito mediante interpretação e
simbolização. Os impulsos assim transformados juntam-se a outros elementos causais para
gerar um acto que suprima uma necessidade.

A psique absorve o corpo, tomado inicialmente como um elemento externo, mas


depois vai assumi-lo como sendo dela, assim como as suas necessidades, mas isto não é
automático e nem obrigatório, podendo até existir uma desidentificação entre os dois. Isto
quer dizer que o ser humano não tem impulsos incoercíveis. No processo de simbolização, os
impulsos juntam-se a elementos de memória e adquirem uma figura. E numa figura podem
juntar-se vários impulsos, como o desejo sexual, o gosto pela beleza, o desejo de contacto
corporal, a ambição de prestígio, cada um deles já simbolizado previamente e que, depois,
pode entrar em imagens mais complexas. O processo de simbolização pega em impulsos
naturais, normalmente fracos, e soma-lhes uma série de factores. No final, o conjunto pode
ocupar um lugar enorme na psique e parece-nos que a nossa vida depende daquele pequeno
impulso natural, porque já não conseguimos identifica-lo na sua génese e confundimo-lo com
o complexo criado pela nossa psique. Konrad Lorenz dizia que a agressividade tem um peso
enorme na nossa conduta, mas observamos que mesmo no sujeito mais violento a
agressividade revela-se com uma frequência muito baixa. A fome é um impulso bem mais
poderoso e mesmo ela não nos obriga a nada. A auto-conservação é mais básica ainda, mas
mesmo assim não é um instinto porque não aparece sozinha, precisa de uma ameaça, logo,
depende de toda uma elaboração conjectural das situações, que pode chegar ao caricato.

Na psicologia do século XX foi frequente tomarem-se as complexas elaborações


simbólicas como instintos poderosos. Ironicamente, estas elaborações revelam um desejo
quase natural do ser humano em não se reconhecer a si mesmo como força agente. A
psicologia do século XX é muito rica em observações mas os edifícios teóricos que foram
construídos são muito fracos. O reconhecimento da existência de causas psíquicas da conduta
implica o reconhecimento do princípio de autoria, pelo que a psicologia passa a ser o estudo
da acção humana consciente.

Certamente, existem elementos que nos aparecem como inconscientes, mas devem ser
devidamente examinados. Maurice Pradines diz que existe um inconsciente que nasce
connosco e que desconhecemos, e que há outro inconsciente, composto daquilo que
esquecemos. Contudo, esquecer não significa retirar da memória mas encobrir um símbolo
com outros símbolos (e quando voltamos a olhar para a mesma coisa, aquilo já nos aparece
com outro nome). Ora, este processo de esquecimento é activo, complexo e até criativo. Nada
75

disto são forças inconscientes que nos forçam a agir num certo senti. As únicas forças que
agem sobre nós são as forças naturais, externas e as internas (necessidades corporais).
Impulsos conscientes ou mecanismos inconscientes não têm um poder coercível sobre nós.

Quando o bebé começa a absorver elementos, ele não os toma como objectos
singulares mas como símbolos de uma potência extraordinária, ou seja, os primeiros
elementos que captamos têm uma importância tal que já são símbolos de espécies inteiras.
São estas primeiras experiências (mãe, mamadeira, bola, ursinho, etc.) que vão estruturar
todo o pensamento lógico possível. A elaboração dos elementos dá-se por articulação de
diferentes faculdades – termo técnico escolástico que designa facilidades da psique –, coisas
que ela faz naturalmente e sem precisar de ser ensinada, consistindo a psique precisamente
da execução dessas faculdades. A primeira dessas faculdades é a memória e esta consiste em
ter a experiência de um objecto na sua ausência física depois de termos recebido estímulo da
sua presença. Esta capacidade vem com o corpo, outros animais também a têm, e nem é
propriamente psíquica, é antes um pressuposto da sua actividade, que se inicia quando
começamos a elaborar imagens (que captamos não apenas como imagens singulares físicas
mas também como símbolos) e a combiná-las. A abstracção e a capacidade de atenção estão
envolvidas no mecanismo de combinação de imagens, que criam o nosso mundo imaginário,
que é constituído de entes não necessariamente reais mas possíveis de algum modo, com a
função imediata de concebermos outras experiências. α24

116. O método dialogal em psicologia


Não podemos sair da nossa psique para observá-la, nem por um momento. Também
não é possível uma verdadeira introspecção, já que usamos sempre uma linguagem vinda de
fora. A observação behaviorista é também impraticável. O único método acessível à
psicologia é a confissão, mais propriamente, o testemunho confirmado por outros, ou seja, é
um método dialogal. Só parcialmente podemos realizar a auto-observação e a instrospecção,
por isso carecemos do testemunho alheio para completar o processo. Nem sequer nos
podemos conceber como existentes se nunca supusemos que outros pensaram algo a nosso
respeito: reconhecemo-nos através dos reflexos deles em nós e vice-versa. Então, a psique é
individual e intransmissível mas todos os seus elementos são dialogais. A psique não existe
como objecto externo observável desde fora, nem podemos nos colocar exclusivamente
dentro dela porque ela também não é uma posse integral de cada um: ela existe como uma
força produtiva que só se actualiza na convivência humana e se constitui pela absorção,
conservação e elaboração dos objectos em torno.

Como a psique pressupõe a convivência humana num mundo real entre seres capazes
de gerar causas, apenas o testemunho confirmado por outros testemunhos é um método
admissível para conhecê-la (além de que não existe ciência alguma que possa dispensar o
testemunho). Mas ainda antes do nosso testemunho ser confirmado por outros, ele já tem
outras pessoas incorporadas como personagens, alguns até como símbolos formativos e
estruturadores da psique. Por exemplo, a mãe simboliza todas as satisfações e frustrações no
início da vida, e sem ela não teríamos psique alguma. É sempre essa mãe (ou alguém que
tenha desempenhado o papel mais aproximado) que se transformou em símbolo que pode
nos incomodar e não tanto aquela que está fisicamente presente. Por isso, o mandamento de
honrar pai e mãe é uma condição básica para a saúde psíquica. α24
76

117. A relação entre a psique e o “eu”


O “eu” é a parte da nossa psique que conhecemos em cada momento, dependendo do
nosso conhecimento auto-biográfico, por isso, não pode surgir antes dos cinco anos, altura
em que já possuímos, por norma, uma linguagem suficiente. O “eu” é uma organização,
selecção e estruturação da psique por ela mesma, que usa elementos de linguagem e de
simbolização que conseguimos evocar. Existem outras coisas na psique que não as tomamos
por “eu”, por exemplo, podemos não nos identificarmos com acções que fizemos em estados
alterados da consciência (surto, drogas, etc.). O “eu” aqui pressuposto não é o “eu
substancial” mas o “eu histórico” ou autobiográfico. α24

118. O trauma da emergência da razão


A razão é uma das faculdades usada pela psique. Temos um senso da presença do ser
assim como um senso da unidade do ser, e os dois estão juntos, pelo que tudo o que
apreendemos é apreendido como unidade ou, de outra forma, aquilo que não for apreendido
como unidade também não é apreendido como existente. Mas a apreensão desta unidade não
é fácil porque as coisas não são unidades absolutas e estão sujeitas a mudanças dentro de um
campo de experiência que também não é estático. A razão surge como uma forma de
orientação neste cenário. Ela é o senso da totalidade organizada tal como a concebemos
subjectivamente. A razão é a busca contínua de uma unidade subjectiva que simboliza a
unidade do ser, que nos permite catalogar os seres que conhecemos e identificar as suas
relações e funções no todo, tal como o supomos. A razão é uma força estabilizadora que actua
contra o fluxo das percepções, da memória, da imaginação. Ela estabiliza estas coisas numa
figura, que é sempre provisória, porque há sempre uma tensão entre a razão e os elementos
em fluxo, e esta tensão é um elemento constitutivo do nosso modo de existência. Muito
daquilo que os psicólogos chamam de instinto é um subproduto da razão.

Nenhuma das estabilizações racionais que elaboramos, por mais reconfortantes que
sejam e que possam nos dar uma sensação de poder e controlo, vai nos proteger
efectivamente contra as complexidades da vida. Mal o indivíduo nasce, ele é totalmente
ignorante mas já pesam sobre ele todas as complexidades da existência. Isto quer dizer que
logo desde a nascença pesa a necessidade de usar a razão como orientação, embora esta
esteja longe de estar desenvolvida. Falta a assimilação dos elementos linguísticos, culturais e
simbólicos necessários para elaborações mais complexas. O ser humano precisa
urgentemente da razão porque tem um mundo instintivo muito pobre comparado com outros
animais. Ele nasce num mundo que imediatamente o trata como um animal dotado de razão,
embora esta só esteja preparada décadas mais tarde. Sempre existe esta desfasagem entre o
homem existencial e o homem racional. O trauma da emergência da razão é o descompasso
entre estas duas coisas; é a diferença entre aquilo que somos obrigados a compreender e
aquilo que efectivamente compreendemos. Trata-se da maior fonte de sofrimento humano,
papel que se atribui erradamente aos instintos. Sempre paira sobre nós esta angústia
existencial, porque as situações pesam em nós como se tivéssemos de ter o domínio total
delas. α24
77

119. O horizonte de consciência


De certo modo, a consciência é a própria psique. Husserl via-a apenas como um foco
de luz que é lançado, mas para além desse instante existe o que foi iluminado e permanece na
memória, assim como existe o padrão de sombras em redor. Isto é o horizonte de
consciência, aquilo que podemos saber e lembrar num certo momento. A consciência retira
elementos do horizonte de consciência, realça uns, encobre outros. Então, a origem de
condutas neuróticas está na consciência e no processo de criação de imagens do mundo, não
é um fruto da irracionalidade mas uma consequência da nossa racionalidade. α24

120. Pensar, meditar e contemplar


Hugo de São Vitor distinguia três actividades cognitivas fundamentais: pensar,
meditar e contemplar. Pensar é passar de uma ideia à outra. Meditar é rastrear um processo
de pensamento até chegar à raiz de realidade que o desencadeou. E contemplar é “olhar”
várias meditações ao mesmo tempo. Contudo, em linguagem popular usa-se frequentemente
o termo “meditar” para designar práticas de concentração (o que inclui a prece perpétua) ou
de absorção passiva, mas não é um uso rigoroso. α24

[Aula 25]
121. Análise de texto
A análise de texto só pode ser realmente feita por quem já é um leitor qualificado e
que tenha uma ampla cultura literária. Fora disso, o texto sai “coisificado” e se nos atermos
apenas a ele não captamos as suas nuances e as suas várias camadas de significado. Nenhum
autor consegue escrever tudo o que sabe, mas ele conta que o leitor irá descompactar o texto
por meio de evocações. O bom leitor descompacta não apenas aquilo que foi escrito de forma
condensada mas também algo daquilo que não foi escrito mas que devia estar na cabeça do
autor, e ainda irá aperceber-se das referências culturais implícitas. Mas para além disso, há
ainda a referência ao mundo real e, se não chegarmos até este, não teremos verdadeiramente
lido o texto. Este método de leitura é para se usar sobretudo nas leituras formativas.
Sertillanges definia outros três tipos de leitura: informativa, lúdica e de edificação. Quando
sabemos o que procuramos num livro ou autor não é problema passamos muito tempo só
com uma obra em mãos.

Eric Weil mostra uma competência invulgar na compreensão dos mais diversos
filósofos, porque parte da premissa de que todos eles estão buscando a unidade do ser,
embora não a encontrando mas sempre estão indo nessa direcção. A definição de filosofia
como “busca da unidade do conhecimento na unidade da consciência e vice-versa” vai no
mesmo sentido. A busca da unidade não conduz necessariamente a uma tentativa de
construir um sistema de frases que expresse a estrutura do real, porque isso é impossível. A
única coisa que podemos fazer é nos deixarmos inspirar pelo vislumbre que temos da
unidade do real para daí construirmos a unidade da nossa consciência, não vertida no papel
mas na nossa personalidade, de modo a esta servir, por sua vez, de instrumento
interpretativo.
78

Veremos um exemplo de como deve ser feita a leitura de um texto de Kurt Lewin
(“Algumas diferenças sócio-psicológicas entre os Estados Unidos e a Alemanha”, do livro
Resolvendo Conflitos Sociais):

«A educação é, em si mesma, um processo social que envolve, às vezes, grupos


pequenos como mãe e filho, às vezes grupos maiores, como uma classe escolar ou a
comunidade de um acampamento de verão. A educação tende a desenvolver certos
tipos de comportamento, certos tipos de atitudes, na criança ou nas pessoas com as
quais ela lida. O tipo de comportamento e a atitude que ela tenta desenvolver e os
meios que ela usa para isso não são determinados meramente pela filosofia abstrata
ou por métodos cientificamente desenvolvidos, mas são essencialmente um
resultado das propriedades sociológicas do grupo no qual esta educação ocorre. Ao
examinar o efeito do grupo social no sistema educacional, pensa-se geralmente nos
ideais, nos princípios e atitudes que são comuns dentro deste grupo. De fato, os
ideais e princípios desempenham uma parte importante na educação, mas teremos
que distinguir os ideais e princípios que são oficialmente reconhecidos daquelas
regras que na realidade dominam os acontecimentos nesse grupo social. A educação
depende do estado real e do caráter do grupo social no qual ela ocorre».

A primeira coisa a fazer é identificar a estrutura lógica por trás da estrutura


gramatical, e para isso as sentenças gramaticais têm que ser transformadas em proposições
lógicas, não havendo necessariamente aqui uma correspondência de um para um. Tomando a
primeira sentença:

«A educação é, em si mesma, um processo social que envolve, às vezes, grupos


pequenos como mãe e filho, às vezes grupos maiores, como uma classe escolar ou a
comunidade de um acampamento de verão».

Ela pode ser esquematizada logicamente assim:

Educação ---------------------------- Processo Social

Educação ---------------------------- Envolve

Grupos pequenos------------

Mãe ------------------

Grupos maiores--------------

Classe-----------------

Comunidade---------

Podemos inicialmente usar uma folha de papel mas com treino até fica mais fácil fazer
uma representação mental, até porque certas formulações tornam-se quase impossíveis de
desenhar. Depois, cruzamos isto com a técnica de ler com a imaginação. “Educação” fará
lembrar-nos do ambiente escolar, mais precisamente, das escolas por onde passamos –
podemos até colocar no esquema lógico, em cima do tracejado, um símbolo (sigla, palavra,
imagem…) ou vários que representem as respectivas evocações das proposições lógicas,
muitas das quais nem sequer teríamos capacidade para as descrever. “Processo social” já
79

envolve a educação dentro convivência em geral, não apenas o processo de aprendizado mas
toda a teia de relações e de convívio com códigos e regras, sejam escritas ou não. Estes são
elementos transversais, que estão presentes em muitos domínios para além da educação, e o
que Lewin está a dizer é que os vários processos de educação ocorrem dentro de um outro
processo. Se continuarmos o “exercício”, outras evocações aparecerão, e podemos imaginar a
leitura de um livro associada à educação, o que extravasa a noção do autor neste texto.

Na educação existe tanto a assimilação como a acomodação, mas Lewin parece estar
preocupado sobretudo com esta última, em conformidade com a sua posição de cientista
social. Na realidade, mais tarde fica nítido, ao ler o livro, a sua posição como engenheiro
social, mas temos que fazer este trabalho evocativo para nos darmos conta disto e perceber o
foco específico dele, que deixa muitos aspectos da educação de fora (e que depois acabaram
realmente por ficar de fora da educação oficial). Mais adiante ele diz que não podemos
entender o tipo de educação, visto como um processo em que um grupo passa a outro certos
traços comportamentais, olhando apenas para as ideias e princípios pedagógicos do primeiro
grupo, sendo também necessário conhecer sociologicamente o grupo, os seus hábitos,
valores, sentido de responsabilidades, etc. Para entendermos isto, vamos recordar aquilo que
os professores nos tentavam passar e que não tinha especificamente a ver com a matéria ou
com aspectos pedagógicos. Basta pensar no tipo de escola, nas suas tradições ou ausências
delas, e como isso dá um carácter distinto à educação ali ministrada. α25

122. Cepticismo e paralaxe cognitiva


Aristóteles percebeu que não podia contestar o cepticismo na base no discurso,
porque daí surgiriam sempre novas dúvidas hipotéticas e o problema sairia multiplicado. A
dúvida céptica surge quase automaticamente, basta perdermos o foco do que se está falando.
Contudo, por mais dúvidas que céptico coloque, na prática, ele não age em conformidade. Ele
pode colocar a existência de um mundo objectivo em dúvida e dizer que só existe o
pensamento, mas nem por um momento vai deixar de se alimentar realmente e optar apenas
por ter pensamentos de que está a comer. Aristóteles percebeu que o discurso céptico é um
fingimento de oposição ao discurso positivo mas, mais que isso, é um discurso que se opõe a
ele mesmo: pode ser verbalizado mas não é realmente pensável. O céptico não acredita
realmente no que está dizendo, por isso não vale a pena perder tempo com ele. Aristóteles
tinha entendido perfeitamente que a confrontação lógica pressupõe uma série de condições, e
que já devemos ter a certeza de estarmos no mesmo terreno semântico que o nosso
interlocutor.

O discurso lógico pode ser usado contra a percepção, e pode mesmo chegar a uma
conclusão imbatível mas que pode estar totalmente desligado do assunto em discussão. A
redução da experiência ao nível do discurso cria a omnipotência do discurso inventado.
Nenhum discurso pode captar a realidade, no máximo será apenas um possível símbolo
desta, mas se acreditarmos que o discurso reflecte a realidade na sua totalidade, então,
podemos dispensa-la. Restará o discurso e este não oporá a mesma resistência que a
realidade. Será possível dizer qualquer coisa, mesmo que não corresponda a algo real ou
sequer pensável, e este vício dá um senso de omnipotência.

A paralaxe cognitiva é o cepticismo tornado epidémico, disfarçado sob camadas de


conhecimentos acumulados que disfarçam o fingimento e o tornam muito mais verosímil.
Enquanto o truque céptico era uma coisa meramente verbal e consciente, na paralaxe
80

cognitiva o individuo já não percebe mais o seu fingimento e acredita que está dizendo as
coisas como as vê. Os cépticos de hoje são quase todos charlatões, fingem confundir realidade
com discurso para defender certas posições que sabem ser fracas. Não é uma coisa altamente
estruturada e engenhosa como a paralaxe cognitiva, que necessita até de um certo génio para
se efectivar. α25

[Aula 26]

123. A consciência, o mundo onírico e a especulação do possível


O início do Curso Online de Filosofia visa a uma acção imanente – que fica em nós
mesmo – e não a uma acção transitiva, para usar a linguagem dos escolásticos. O objectivo é
desenvolver a inteligência, entendida aqui como o exercício da própria consciência. A
consciência não é uma “casca” da psique. A partir do século XIX começou a achar-se que
existia uma psique, composta de inúmeros mecanismos complicados, e a consciência era
apenas o seu aspecto exterior, ou seja a psique seria fundamentalmente uma coisa
inconsciente e que produziria, de alguma forma, a consciência. Contudo, a consciência é uma
acção, uma força agente e o funcionamento de tudo na psique depende da consciência: toda a
aquisição de conhecimento é consciente, todas as necessidades revelam-se de forma
consciente, todos os sonhos são actos de consciência (embora no sonho a consciência
funcione de outra forma). Por vezes confunde-se a consciência com o ego, quando este é uma
estabilização narrativa da consciência. A nossa capacidade narrativa é muito mais limitada do
que a percepção ou do que a imaginação. O talento dos grandes escritores está em conseguir
reter muito mais deste material de base que o indivíduo comum e depois conseguir verbalizá-
lo.

A consciência do sono é dispersa e aberta a todos os estímulos, a começar pelo estado


do corpo, pelo que o sonho não é uma narrativa. Então, a interpretação de sonhos é uma
coisa inviável quando se tenta basear numa clave única. O sonho já é uma forma de
compreensão, não precisa de ser explicado e depois até pode ser esquecido, mesmo porque
quase tudo aquilo é informação inútil para as finalidades da vigília. Contudo, podemos
receber informações importantes no sonho, tal como nos devaneios durante o dia, pelo que
este material é precioso e é a partir dele que podem sair formas de consciência mais
elaboradas e estáveis. A estabilidade é a diferença fundamental entre, por um lado, a
consciência de vigília e, por outro, o material onírico (sonhos, devaneios) e o material das
sensações. Evidentemente, este material instável é a matéria-prima dos nossos pensamentos.
Andamos o tempo todo transitando entre modos de consciência: a consciência focada é uma
selecção operada sobre a consciência dispersa e se sufocamos a consciência dispersa, a outra
torna-se também atávica. As pessoas acabam por temer a sua própria imaginação. Não
devemos renegar nada do que nos chega à mente, devemos aceitar todos os nossos
pensamentos, confessá-los. Isto não é a promoção do desejo ilusório, porque este precisa da
estabilização da atenção, resulta de uma escolha, já não é mais a imaginação livre a
funcionar. Esta dá-nos os mais variados materiais e não temos de procurar uma causa para
isso: nós somos a causa, não tem que haver algo por detrás tenebroso agindo através de nós.
81

Aquilo que é apreendido apenas pela lógica verbal não passa de uma forma vazia, mas
depois conseguimos raciocinar a partir deste material achando que nos referimos à realidade,
quando apenas estamos a navegar no mundo das relações possíveis. Não podemos conhecer o
possível por experiência, porque aquilo que entra na experiência entra também na realidade e
já não é mais possível. Apenas uma parte ínfima da presença do ser chega-nos à experiência,
e a razão é o que nos permite conhecer o restante por especulação, através de uma
estruturação do possível. Podemos até especular sobre o lugar que as partes que conhecemos
têm numa totalidade possível, ou seja, a especulação do possível dá-nos uma medida – exacta
ou não – do lugar que o nosso conhecimento obtido por experiência tem no conjunto. A
imagem que temos do mundo é sobretudo uma estrutura de possibilidades, que demarca o
nosso horizonte de consciência (reflectida). Isto orienta quase toda a nossa conduta, ao ponto
de podermos rejeitar certos factos como irreais porque não se adaptam ao nosso esquema de
possibilidades, quando a única coisa que nos dá a realidade é o mundo das sensações e das
imagens oníricas. A lógica é a unidade do nosso pensamento e não a unidade das coisas.
Então, a medida do nosso conhecimento pode ser bastante errada. A ponte entre a
esquemática lógica e o mundo das sensações e da imaginação é feita pela própria imaginação,
ou seja, o senso da realidade depende da própria actividade imaginativa onírica. α26

124. A lógica intrínseca aos objectos


Os objectos têm a sua própria lógica intrínseca, que é a lógica das suas formas tal
como as percebemos (nas sensações ou na actividade onírica). A abstracção é feita sobre estas
formas estabilizadas, que permitem separar o acidental do essencial e, assim, reconhecer o
mesmo objecto quando aparece sob formas diferentes. Nós captamos logo esta fórmula mas
como símbolo. Podemos fazer o experimento de Husserl de, por exemplo, imaginar uma vaca
no pasto e depois imaginá-la noutro local, com outro tamanho, outras cores. Aí, vamos
perceber que existem limites para variação da vaca ou ela passaria a ser outra coisa. O que
estamos a testar são os limites da lógica intrínseca do ente. Quando nos equivocamos ao
captar a forma substancial dos objectos é porque estes já têm uma aparência equívoca, como
o insecto que se parece com uma folha. α26

125. A percepção do círculo de latência


Perceber uma coisa é perceber o seu círculo de latência. Estaríamos alucinados se
apenas percebêssemos formas estáticas e acabadas, mas percebemos o potencial que as coisas
têm de agir ou sofrer acções. Percebemos imediatamente que as matérias-primas admitem
um grande número de transformações, assim como percebemos que quanto mais um objecto
já foi transformado menos possibilidades ele oferece. A primeira vez que vemos um animal
captamos logo nele algumas das suas possibilidades, que não são as mesmas que uma casa
pode realizar, por exemplo. α26

[Aula 27]
82

126. A unidade do real


Diz Aristóteles na Metafísica:

«Todas essas coisas as mais universais são, no seu todo, as mais difíceis para os
homens conhecerem, pois elas são as que estão mais afastadas dos sentidos».

Por outro lado, sabemos também por Aristóteles que junto à forma sensível vem a
forma inteligível, o quid, que irá dar, por sua vez, o conceito universal. Aqui está um
problema que Aristóteles não resolveu e que se pode enunciar assim: tudo o que existe, existe
como individualidade e não como existência colectiva, por outro lado, só existe conhecimento
ao nível do universal. Existe aqui não tanto uma contradição mas uma tensão entre o modo
de ser – sempre individual – e o modo de conhecer, que é sempre geral. A percepção da
forma inteligível é feita pela inteligência mas segue imediatamente os sentidos. Contudo, em
termos de validade do conhecimento, a simples percepção não pode, por si mesma, servir de
premissa a um raciocínio lógico. Ela tem que ser convertida numa forma verbal afirmativa
que segue a forma sensível, e não é fácil mostrar como uma coisa tão descontínua como os
sentidos pode conduzir aos conceitos universais. Os conceitos universais possuem
continuidade, mas nós só percebemos coisas descontínuas, algo onde existe um contraste.

O “mundo material” não é de forma alguma um mundo, pois se amputarmos todos os


nexos invisíveis e não sensíveis que o articulam resta apenas uma série de percepções
instantâneas, separadas e incomunicáveis entre si. O olho pisca e sabemos que não
precisamos de “refazer” a imagem toda de novo, apesar de haver um abismo sensitivo entre
os dois instantes. Além disso, percebemos o elo de continuidade quando o objecto transita
entre sentidos, por exemplo, quando algo está visível à nossa frente e depois é escondido no
bolso com a mão. Entre a percepção visual e a percepção táctil há uma terceira coisa que nos
faz saber que o objecto continua o mesmo, e outra coisa não é dado por nenhuma das duas
anteriores. Sabemos que cada nova percepção vem da mesma realidade e que há uma
unidade entre nós e o objecto, pois se assim não fosse não poderíamos entrar em relação
alguma com ele. A unidade do real está presente em tudo o que fazemos mas nada disto pode
ser dado pela soma dos dados de todos os sentidos. Só podemos juntar os dados em função
de uma unidade anterior pressuposta em tudo. Todos pressupõem a unidade do real mas o
seu fundamento é problemático, o que introduz a oportunidade para os cépticos intervirem.

David Hume achava que era impossível conhecer a unidade do real – assim como a
unidade da nossa pessoa – ou sequer saber se ela existe ou não. Apenas por hábito
acreditaríamos nesta unidade. Mas, sendo assim, não se percebe como um “eu” sem unidade
pode adquirir um hábito, muito menos toda uma comunidade. Para Kant, não percebemos a
unidade do real, o que existe é um esquema pré-existente na mente humana – as formas a
priori funcionando de maneira inconsciente – que opera sobre os dados fragmentários do
mundo sensível e lhes dá uma forma unitária, que eles em si não têm. Se assim fosse, nunca
saberíamos se essa unidade é real ou não. Então, Kant repara que todos os homens fazem
uma criação idêntica, o que dá ao processo uma certa validade embora não veracidade:
podemos estar todos enganados em conjunto, como dizem os cépticos. A academia assumiu
este pressuposto kantiano e trocou a veracidade pelo consenso e, assim, o mundo real
objectivo ficou entre parênteses. Outros tentaram encontrar refúgio na ciência, dizendo que
se pode apenas admitir como conhecimento aquilo que é descrito pelas ciências, mas
acrescentam que o ser humano não pode dizer nada de objectivo, tudo o que ele diz apenas
expressa o funcionamento do seu próprio cérebro. Ou seja, pretende-se que homens que são
83

apenas capazes de jogos intersubjectivos tenham desenvolvido uma ciência capaz de


conhecimento objectivamente válido, quando, pelo pressuposto inicial, a ciência apenas
poderia ser mais um jogo. Rorty tirou a conclusão lógica disto: se não podemos provar nada,
só resta tentar induzir os outros a falar como nós e, mais ainda, temos mesmo que fabricar o
consenso.

Ciência consiste em levantar a hipótese de que determinado campo de fenómenos


obedece a uma constante e, em seguida, partir em busca de factos que comprovem a hipótese.
Todo o rigor científico não elimina as limitações iniciais, que traçam não só o universo
observável mas também o tipo de constante a observar. Kant acertou quando disse que em
ciência o método inventa o objecto, mas, dessa forma, nada do que é estudado em ciência
pode ser dito real, é apenas um simulacro de objectividade projectada pelo método, o que no
fundo já é uma aplicação técnica.

Não podemos confundir a unidade do real concreto, onde existimos, com a unidade
abstracta de um “todo” tomado como objecto de teoria. Fazer teorias é algo que acontece
dentro do todo e não acima e fora dele, pelo que o “todo” abstracto, como o das ciências, só
abrange uma parte e/ou aspecto da totalidade concreta, delimitado pelas necessidades
internas do método e não pela natureza objectiva das coisas, então, é apenas mais um jogo
intersubjectivo entre outros. Mas a ciência não apenas é incapaz de descrever o todo, ela nem
sequer pode descrever um único facto concreto, que é aquele que engloba não apenas a
essência abstracta que o define – que já transcende a definição operacional da ciência – mas
também a totalidade dos acidentes necessários para ele se ter produzido. Qualquer pessoa
pode se abrir para o facto concreto e para a infinidade de acidentes que concorrem para ele,
embora não possamos prestar atenção a todos mas sabemos sempre que eles estão ali. Para
as ciências incluírem isto, teriam de ter alcançado o infinito quantitativo em acto, quando é
algo que só pode ser apreendido em potência. α27

127. A longa convivência com os problemas


A nossa inteligência ganha um perfil e uma forma individual a partir do repertório de
problemas que acumulamos, que vão criar vários pólos de interesse, de tensão e mesmo de
conflito, mas que terão um poder hormonal. A inteligência medíocre procura um estado de
homeostase, em que não precisa de pensar em nada, onde evita o sofrimento e onde tudo tem
que ter uma resposta rápida (e para isso serve qualquer uma). Devemos aguentar esta tensão,
mas isso não implica ficar sempre a remexer nos problemas, o que indicia que estamos a
tentar forçar uma solução. Antes, devemos esperar que a solução venha através da
experiência de vida e do desenrolar dos estudos. A marca distintiva do filósofo é a sua longa
convivência com os problemas até poder expressá-los em termos universalmente válidos. α27

[Aula 28]
128. O exemplo da melhor educação medieval (a inveja dos anjos)
O melhor estudo sociológico consiste na observação que fazemos de nós mesmos a
respeito de uma série de obstáculos interiores que dificultam o aprendizado e que também se
84

encontram presentes em toda a sociedade. Comparemos a nossa situação actual com o que
existia há dez séculos. O florescimento intelectual europeu dos séculos XII e XIII foi uma
coisa fora de comum, com génios como Hugo de São Vítor, São Tomás de Aquino ou Duns
Scot, coincidindo com o tempo das catedrais, construções que de alguma forma sintetizam
todas as outras artes. Tudo isto derivou de um longo processo educacional iniciado no século
IX nas escolas monacais e catedrais, que deixou poucos registos e até recentemente parecia,
por isso, ter sido um período estéril. Acontece que o ensinamento nesta altura não tinha a
preocupação de produzir obras mas pessoas com uma série de virtudes, no sentido de terem
efectivamente poderes a mais. Os documentos mostram o profundo respeito que alunos e
professores tinham uns pelos outros. Afinal, o florescimento dos séculos XII e XIII foi um
testemunho de um apogeu que já tinha passado.

A ênfase do ensino monacal/catedral não passava pela elaboração de textos, ao


contrário do mito em voga sobre a Idade Média. A fixação pelo texto só começou a impor-se
no século XIV. Antes, o ensino estava voltado para a pessoa, acreditando-se que era possível
ensinar virtudes, para assim criar tipos humanos admiráveis que pudessem servir de modelo
para a restante sociedade. O alvo inicial não era a inteligência e nem mesmo a alma, era o
corpo, que era entendido como um sinal vivo da presença de Deus, algo que até os anjos
invejariam por serem desprovidos de um. Sem corpo, não há sofrimento ou morte e nem é
possível ter a virtude da coragem, algo reservado ao ser humano e que Cristo exemplificou na
crucificação. Associada à coragem vêm a paciência, a resignação, entre outras qualidades,
sendo o corpo humano o testemunho de tudo isto. Então, neste ensino era necessário
começar a tomar posse do corpo, dos gestos, das posturas, das formas de falar, de modo a
tudo isto reflectir a presença do espírito. Nada no corpo era para ser deixado ao mero
automatismo vulgar, tudo era submetido e transfigurado pela intencionalidade. O próprio
entendimento que temos das coisas depende da nossa postura, do tom de voz, do olhar, etc.

O que vemos hoje é um descontrolo corporal total – que se nota imediatamente na


forma como a pessoa se expressa – ou, pelo contrário, uma rigidez hierática. Nenhuma destas
“opções” afina o corpo para este se tornar num instrumento expressivo, apto a transmitir algo
importante, valioso e digno. Todas as normas de conduta antigas visavam a isto, não era
como a polidez do mundo burguês, que funciona como uma camisa-de-força, pressupondo
um mundo onde ninguém pode se destacar porque já se parte do princípio que ninguém
presta e que todos são invejosos. É preciso transcender estas duas coisas (descontrolo ou
rigidez corporal) e para isso temos de escolher os valores em que vamos acreditar, os
objectivos que iremos cultuar – para além de todas as “imposições” do meio ou das nossas
disposições hereditárias – e fazer com que o nosso corpo se torne gradativamente num
instrumento capaz de tocar esta música.

Uma disciplina como o Tai-Chi pode ajudar a obter a concentração, a paciência e a


expressividade autênticas. A paciência é a capacidade de resistir ao tédio. Mesmo quando
estamos incapacitados, podemos pensar em alguma coisa interessante e isso já é um bom
exercício. Relacionado com isto, há o exercício de pensar as palavras antes de as escrevermos,
até um texto completo, se conseguirmos. Entra aqui também o exercício de decorar poemas,
que ajuda a nossa memória a produzir analogias.

A educação antiga tinha tanto modelos profanos como sacros. Já aqui se admiravam
os grandes oradores greco-romanos, como Cícero, onde a expressão encontra sempre a justa
medida. Hoje perdeu-se o senso da propriedade vocabular e na ausência da palavra certa
tenta-se compensar aumentando a ênfase, o que acaba por provocar um efeito cómico ou,
85

então, mostra um indignação muito desproporcional à ofensa. Devemos ter atenção ao nosso
tom de voz e perceber o que ele está transmitindo, verificar se não estamos a ser enfáticos
apenas para disfarçar uma incerteza profunda. Não há qualquer problema em dizer “não sei”,
porque só dizendo muitas vezes isso, um dia poderemos dizer “sei” com toda a propriedade.
Claro que muitas vezes dizemos “não sei” e isso é também um fingimento, porque até
sabemos mas não queremos assumir a responsabilidade inerente ao conhecimento.

Nos modelos sacros, temos aqueles que deram o exemplo de sacrificar a vida em
nome da verdade, como aconteceu com Cristo e com o próprio Sócrates. Sem este tipo de
exemplos, não entenderemos que a verdade é uma questão mortalmente séria, não é a busca
vazia de abstracções. α28

[Aula 29]
129. A cultura superior como processo de desaculturação
A cultura superior, em qualquer país, é composta por umas poucas centenas de
pessoas, em que apenas cinco ou seis são grandes inteligências criativas. Os indivíduos
restantes deste círculo são os que conseguem acompanhar a produção dos primeiros e, por
sua vez, repassar isto para outros círculos, até, eventualmente, toda a sociedade ser
abrangida. Contudo, pessoas como Mário Ferreira dos Santos ou Gilberto Freyre, ao invés de
terem sido vistos como tesouros nacionais, foram escondidos debaixo de várias camadas de
silêncio (por desdém ou hostilidade invejosa), o que impediu que o papel vitamínico que eles
podiam ter desempenhado se efectivasse. Quanto mais desprovido de alta cultura é um meio,
mais ele fica refém da aprovação colectiva, e quando as pessoas não têm um critério de
sanidade para se julgarem a si mesmas, passam a usar a o critério da maioria. Ora, essa
maioria nunca descobriu nada ou fez algo de notável, foram sempre indivíduos a terem esse
papel, habitualmente hostilizados pela maioria, embora nem sempre.

A segurança de poder ficar sozinho e de conseguir se tornar numa inteligência


autónoma só pode advir da posse de um quadro de referências com universalidade suficiente.
Todos precisamos de nos integrar no meio social – e na própria espécie humana –, mas para
além dos meios habituais de fazer isto, existe a alta cultura, que é o meio mais poderoso e
importante de todos. A alta cultura permite-nos uma abertura sem par para todas as épocas,
para as grandes inteligências e obras, algo que a normalidade do nosso meio social não nos
permite alcançar. Para chegarmos a uma normalidade humana geral, não provinciana,
temos de entrar num processo de desaculturação, o que significa transpor as limitações da
nossa cultura particular e sermos capazes de raciocinar como as pessoas de outras culturas e,
sobretudo, de outras épocas. Contudo, a maior parte das pessoas consegue apenas, na melhor
das hipóteses, entrar numa universidade e depois começa a pensar que aquilo que aprendeu
ali é tudo o que existe (e que a maioria não aprendeu, logo ele sente que pertence a um grupo
distinto). Por exemplo, o indivíduo passa a achar que tudo se rege por princípios económicos,
caso seja um estudante de economia, e ele sente que entrou num círculo superior porque as
pessoas que conhecia até ali nem sequer percebem o que ele diz agora.
86

No Iluminismo, concebia-se uma universalidade abstracta, supondo-se uma natureza


humana fixa e uniforme por toda a parte. Mas quando no Curso Online de Filosofia se fala da
importância de chegar a uma universalidade, esta é vista no sentido concreto, histórico e real,
o que implica uma abertura para as grandes conquistas do espírito humano de todas as
épocas e civilizações. Fazemos isto pelo método de impregnação imaginativa, compensado
pela crítica histórica, tentando perceber, dentro do mar de evocações, aquilo que corresponde
à visão do autor.

A cultura moderna está hipnotizada pela ideia de progresso, que diz que as teorias
antigas foram superadas (ou passaram a ser vistas como mitos e lendas), tendo sido
substituídas pelas verdades modernas. Apesar de a imaginação humana ser bastante plástica,
quando a ideia de progresso se impregna no ensino e na cultura geral, os elementos antigos
dificilmente entram no nosso mundo imaginativo. Se Aristóteles ou os escolásticos falavam
que a pedra cai no chão devido ao seu desejo de repouso, que ela encontra realizado junto a
uma massa maior, essa ideia parece-nos estranha depois de estarmos habituados à descrição
de Newton da queda dos graves. Na realidade, a descrição da queda e toda a matematização
envolvida deixa intocada a pergunta do porquê dessa queda ocorrer: o porquê foi trocado por
um como. Não há uma descrição matemática de causa, que é um conceito de ordem
metafísica, que supõe uma visão integral da estrutura da realidade e uma hierarquia de
factores. Em geral, as pessoas nem sequer percebem de que se tratam de dois enfoques
diferentes (o de Aristóteles e o de Newton), presumindo que a formulação mais antiga
simplesmente foi ultrapassada. No máximo, quando há a percepção da mudança de enfoque,
tenta-se compreender o antigo ponto de vista pressupondo que se trata de uma coisa ingénua
ou mesmo de alguma forma de loucura (e a própria noção moderna de ciência admite a
contínua instauração de novos padrões de normalidade, pelo que isso conduz a uma História
do hospício).

Tudo aquilo que não é matematizável passou a ser considerado como fazendo apenas
parte do mundo imaginário, dos produtos culturais, mas esta classificação já é, em si, uma
imagem mítica. A própria Teoria do Caos mostra que muita coisa pode ser matematizável,
que antes se considerava impensável de o ser, o que mostra que a divisão estrita entre o
matematizável e não matematizável não faz sentido e, ela sim, é um produto cultural pronto a
se dissolver com o avanço da matemática. Einstein nunca conseguiu responder à pergunta do
porquê da matemática se aplicar tão bem ao universo estudado pela física, quando,
simplesmente, isso ocorre porque a física só estuda aquelas partes que se consideram ser
matematizáveis.

A forma da cultura moderna sustenta-se em dois pólos: por um lado, temos Newton,
do qual “aprendemos” que o mundo funciona matematicamente (embora ele pudesse nem
concordar com isso); de outra parte, Descartes, “ofereceu-nos” a certeza do eu pensante.
Então, qualquer idiota que raciocine de acordo com as Leis de Newton pode ter a certeza a
respeito de tudo o que ele pensa, sendo tudo o resto duvidoso. Para Hugo de São Vítor era o
oposto: o aluno chega despreparado, humilde, ignorante, e através das leituras das grandes
obras e das Escrituras chegava ao conhecimento da ordem universal. Este era o processo
seguido entre os séculos IX e XI, e Hugo de São Vítor escreveu sobre estas coisas para elas
não se perderem totalmente, dado que na altura já estavam ameaçadas.

A leitura no ensino desta época era feita em voz alta ou, pelo menos, articulando todos
os movimentos bocais, ainda que o som fosse inaudível. Esta era a forma de ler com o corpo,
a única que poderia dar a abertura para a ordem total, dado que as coisas eram absorvidas
87

como realidade e não apenas como imaginação. Parte disto tentou ser recuperado no século
XIX com as escolas de artes liberais. α29

[Aula 30]

130. A logica brasiliensis


A logica brasiliensis designa o conjunto dos modelos de argumentação mais usados
na comunicação social no Brasil (e não só…), que nem sequer podem englobar-se dentro da
argumentação erística ou junto aos sofismas da lógica clássica, cujo uso necessita de alguma
destreza mental e da frequência com os clássicos. A logica brasiliensis revela um fenómeno
muito mais grave que o relatado no Imbecil Coletivo, de 1995. Ela é composta por erros de
leitura – incluindo uma fraca distinção entre palavras e coisas, o que permite criar uma
palavra-emoção, que pode não ter conteúdo algum mas, ainda assim, é capaz de gerar um
efeito tremendo no ouvinte –, falta de senso das proporções, péssimo uso do vocabulário,
confusão entre níveis de predicação, misturas de género e de género com espécies, assim
como outras falhas da mesma ordem, que denotam a perda do instinto lógico (algo que até os
analfabetos possuem mas cuja amputação pode ser adquirida por meio da educação visando
a fornecer a linguagem das classes cultas, que vivem num estado de hipnose verbal mútua).
Erros destes existem por toda a parte mas não são vistos como normais ou como símbolos da
autoridade intelectual, como acontece no Brasil.

Sobretudo o gramscianismo, com a conquista da hegemonia e a instrumentalização da


alta cultura – onde não se faz pregação do comunismo mas tenta se destruir certos valores
que ordenam o complexo cultural que se pretende aniquilar –, acabou por tornar esta
inviável. Mesmo os conservadores, cristãos ou liberais que se declaram opositores ao
comunismo não estão imunes a isto. O método de Gramsci criou uma linguagem onde o
emissor e os seus objectivos estão camuflados. Assim, a linguagem torna-se num instrumento
independente que não se refere mais à realidade e vai corrompendo toda a gente,
independentemente do conteúdo ideológico que é professado por cada um. Todos passam a
ter os mesmos esquemas de raciocínio, o mesmo tipo de percepção ou as mesmas associações
de ideias. A língua que falamos é o nosso instrumento de percepção fundamental, e se vamos
entrar nas grandes discussões com a língua no seu estado actual, o resultado será grotesco.

Precisamos ler os autores do último período onde ainda existia alta cultura (como
Álvaro Lins ou Otto Maria Carpeaux) e tentar perceber a degradação ocorrida e em que ponto
nós entramos. Entrar no mundo da filosofia exige esta restauração da língua, além de
requerer muita cultura e reflexão sobre a totalidade da experiência humana. Por isso Hegel
dizia que ave da filosofia é a coruja, porque só se levanta ao entardecer. α30

131. O progresso da ignorância


88

Diz Jean Fourastié (Les Conditions de l’Esprit Scientifique) que uma História da
ciência, para reflectir o movimento histórico real, tem que estar acompanhada de uma
História da ignorância, caso contrário ficaremos com uma ideia de um progresso formidável
se apenas listarmos as descobertas. Livros como o Imbecil Coletivo fazem um recenseamento
da degradação intelectual e da perda de conhecimento entre as pessoas que ocupam
nominalmente os postos das elites, além de evidenciarem também certas “constantes”, como
o surgimento e glorificação de certos giros de linguagem. α30

132. O reconhecimento da verdade nas coisas mínimas


Disse Hugo de São Vítor, no Didascalicon: A Arte de Ler, que entre as pessoas mais
desprovidas de capacidades por natureza, aquelas que não buscam o saber com afico acabam
por desprezar as verdades sobre as coisas mínimas porque são incapazes de compreender as
altíssimas, e «como que repousando em seu próprio torpor, tanto mais perdem a luz da
verdade nas coisas sumas quanto mais fogem das coisas mínimas que poderiam aprender». É
precisamente a concentração nas verdades mínimas e modestas que nos adestra na
apreensão e aceitação da verdade. Em especial, temos de encontrar a verdade nas nossas
próprias acções e pensamentos mais imediatos, fazendo o reconhecimento por intermédio da
sinceridade e da confissão. Isto dá-nos uma certeza imediata que não podemos negar. Uma
verdade absoluta não tem que ser universal e necessária (algo realmente difícil de alcançar),
basta ser uma verdade que não possa ser contraditada por nenhuma outra. Dizer que não há
verdades absolutas é afirmar o próprio direito de mentir. α30

[Aula 31]

133. Os patamares da filosofia


Os patamares da filosofia são descobertas que, uma vez feitas, ninguém tem o direito
de ignorá-las ou cairá numa forma de raciocínio mais grosseira, embora seja sempre possível
prosseguir adiante a estes patamares. Existem vários conhecimentos que foram alcançados e
incorporados à civilização de alguma forma e, se não os absorvemos, entramos num grave
descompasso existencial e ficamos sem consciência da situação real em que vivemos. Não
temos que ser homens do nosso tempo, o que é apenas uma abstracção vazia, mas temos de
conseguir abranger uma certa dimensão de tempo a partir da qual possamos nos situar com
clareza. Devemos saber quais as correntes históricas em que já estamos a participar, mesmo
sem saber, e quais as que queremos participar/opor/abster. O nosso recuo temporal deve se
incorporar na nossa percepção dos eventos presentes ou não teremos os pontos de
comparação apropriados. Para isso, temos de compreender os eventos históricos
contemplando as opções morais que se colocavam às personagens como se fossem decisões
nossas. De forma análoga, as conquistas da filosofia não são para ser vistas como elementos
da sua História mas devem ser vistas como possibilidades humanas actuais, que podemos
redescobrir sempre. α31
89

134. Distinção entre forma e matéria e distinção entre distinções


A distinção entre forma e matéria, feita por Aristóteles, é um dos patamares da
filosofia [133]. A forma não diz respeito à figura exterior mas ao princípio de
funcionamento, uma fórmula, o princípio que dá unidade e sentido ao ente. Esta forma pode
ser concebida independentemente da matéria que lhe confere existência. Esta distinção não
se aplica apenas aos objectos humanos. Muitos dos primeiros objectos usados pelo ser
humano não devem ter sido fabricados mas alguém reconheceu na natureza a sua forma, que
depois podia ser reproduzida. Por exemplo, alguém deve ter percebido a forma de um copo
num pedaço de madeira. A própria noção de espécie não se pode captar sem a separação
entre forma e matéria: dois gatos pertencem à mesma espécie não por partilharem a mesma
matéria mas por possuírem a mesma forma. Podemos distinguir duas execuções da mesma
música porque distinguimos a sua forma (estrutura interna) e a sua matéria (conjunto dos
sons concretos em que ela se incorpora numa execução). A própria teoria aristotélica da
forma e da matéria tem uma forma e uma matéria, que não tem que ser a mesma onde
Aristóteles a expôs originalmente. E quem contesta esta teoria não contesta a sua matéria
mas a sua forma, e se não percebemos isto já estamos a entrar na paralaxe cognitiva.

Uma distinção aprimorada entre forma e matéria é condição para descobrir o que
quer que seja. Devemos nos habituar a fazer esta distinção a respeito de tudo o que
percebemos, mas sempre levando em conta a teoria aristotélica das distinções, dado que
existem diferentes distinções. Em primeiro lugar (usaremos a terminologia dos escolásticos),
temos a distinção real-real, que corresponde à separação real entre duas substâncias, dois
entes, por exemplo, quando separamos um elefante de uma hiena. Depois, temos a distinção
real-fornal, que significa distinguir um ente de uma das suas qualidades, e sabemos que um
elefante não é a mesma coisa que a sua cor, mas as duas coisas não estão separadas. Por
último, temos a distinção formal, que é uma distinção entre qualidades, por exemplo, a cor e
o tamanho não se confundem um com o outro. Fazemos estas distinções instintivamente mas
o segredo da filosofia é fazê-las também de forma consciente, mais aprimoradamente e
atentamente do que de forma espontânea. Contudo, devemos nos precaver em relação às
técnicas filosóficas modernas, que tratam de distinções formais entre palavras e conceitos,
que vão contra toda a espontaneidade e nos fazem perder em minudências totalmente
desligadas da realidade. α31

135. Filosofia e abertura para a eternidade


A filosofia mete-nos num vexame intelectual perpétuo, porque todas as nossas
“conquistas” são continuamente submetidas ao olhar da eternidade – mediante a confissão –
e, assim, somos sempre obrigados a reconhecer que erramos, que perdemos o senso das
proporções ou que inventamos algo. Mas é a própria abertura para a eternidade que nos dá
força para conhecermos sempre mais e mais. Além disso, sem a dimensão da eternidade – a
simultaneidade de todos os momentos e épocas – o ser humano não teria uma medida real,
tudo seria subjectivo e apenas válido para o momento e lugar em que cada um se encontra,
com a agravante de que a própria dimensão temporal perderia assim o seu sentido. α31

136. O instinto da verdade (Wilfred Bion)


90

Wilfred Bion aplicou durante anos a psicanálise a pacientes em estado terminal, assim
como a traumatizados de guerra. Freud dizia que o princípio do prazer – o mundo dos
desejos, algo interior e que determina a nossa conduta no sentido da busca de satisfação –
deve gradualmente se adaptar ao princípio da realidade – a adaptação do ser humano às
exigências do ambiente externo, físico e social. Contudo, na psicanálise, o paciente é obrigado
a “engolir” muitas verdades que não gostaria, pelo que não o faz segundo o princípio do
prazer, nem essas verdades lhe são impostas desde fora (existe uma conversa com o
terapeuta em que este tenta que o paciente perceba como a neurose começou e ninguém o
pode obrigar a reconhecer as mentiras que ele contou para si mesmo), pelo que também não
está envolvido o princípio da realidade. Então, Bion descobriu que acima destes dois
princípios existe o drive da verdade, que poderíamos traduzir como impulso, instinto, até
princípio da verdade. Aristóteles já tinha dito que conhecer a verdade é natural no ser
humano, o que não implica que vamos conhecer sempre a verdade mas que temos um
impulso na sua direcção – é um instinto e uma potência humana –, embora até possamos
viver contrariando esta nossa natureza, o que provocará grandes danos mentais. O princípio
da realidade só por si não tem poder de persuasão, dado ser externo. Ele tem de ser
absorvido, transformado e valorizado interiormente, e isso só pode ocorrer porque temos em
nós o impulso para a verdade.

Aprofundando um pouco mais as investigações, Bion viu que o instinto da verdade


dependia da referência a um absoluto eterno e imutável, porque sem isso existe apenas um
jogo entre os princípios do prazer e da realidade, vencendo aquele que consiga se sobrepor
em cada momento. O princípio da verdade só se pode impor se tiver um ponto de apoio fixo
superior às exigências tanto da nossa subjectividade como as da situação exterior. Isto
também implica que a verdade não pode ser conhecida como impulso subjectivo, dado que
este é voltado para a busca do prazer e, assim, apenas reconhece prazer e dor. Nem a verdade
pode ser conhecida por imposição do mundo externo, dado que qualquer situação concreta é
sempre transcendida por uma verdade apreendida e não trás em si a generalização, que só
pode ser feita precisamente se apreendermos aquilo como uma verdade que vai além da
situação. Também só podemos aplicar o instinto da verdade se distinguirmos a forma da
verdade percebida na situação material de facto que a exemplifica. Os sonhos premonitórios
e as experiências que transcendem espaço e tempo – que são comuns, como mostrou Jung –
dão-nos o acesso ao referencial absoluto e infinito, que torna possível o instinto da verdade.

Bion costumava citar o poema do Kipling, que fala dos seis servidores honestos (Quê,
Porquê, Quando, Como, Onde, Quem – que se consagraram como as regras básicas do
jornalismo, de infracção obrigatória). Contudo, Bion falava, a este respeito, de sete pilares da
sabedoria. O sétimo, não citado, é onde Bion colocava o instinto da verdade, que permite
reconhecer os restantes não apenas nas situações externas mas na nossa própria realidade
existencial. Em geral, toda a actividade filosófica necessita deste sétimo pilar, tornando-se
assim numa espécie de prática psicoterapêutica, caso contrário, acaba por ser um convite à
alienação. α31

[Aula 32]
91

137. Exercício de Relaxamento em Consciência


É aqui descrito um método com o qual se pretende obter um relaxamento profundo
mantendo toda a consciência e atenção. Ao manter uma atenção activa, enquanto nos
desligamos de toda a agitação corporal, chegamos a um estado propício para a penetração em
camadas da consciência mais profundas, permanentes e duradouras. Como pré-requisitos,
precisamos de um quarto escuro, de estar seguros de não sermos interrompidos e devemos
conhecer um pouco da anatomia do esqueleto humano. Não precisamos de conhecer os
nomes dos ossos mas conseguir visualizar o esqueleto em nós. De olhos fechados, vamos
imaginar que cada osso e cada articulação se separa um pouquinho. Partimos da cabeça,
passamos às vértebras superiores, braços, tronco, pernas, até chegar aos dedos dos pés,
imaginando que o nosso corpo está crescendo um pouco. No final, teremos uma grande
consciência do corpo, que irá parecer muito pesado e com mais densidade, mas estaremos
desligados de toda a estimulação sensível. Será um estado semelhante a um sonho acordado,
propício ao surgimento das melhores ideias, mas não temos que forçar nada, deixamos que
venham e guardamos na memória, para as trabalhar depois. Podemos dormir depois do
exercício, mas enquanto isso não ocorre, teremos um período de devaneio lúcido, que se irá
repetir quando acordarmos. α32

138. A jaula existencialista


O existencialismo (de onde Bruno Tolentino retirou a sua experiência fundamental)
faz uma contraposição entre ideia e vida. Surgiu como uma reacção contra o idealismo, que
subordinava o real ao ideal, a vida à contemplação, mas não conseguiu cumprir as suas
promessas. De fora da cogitação idealista ficava a realidade cheia de anormalidades,
excepções, que não admitem ficar submergidas e irrompem para dizer que a razão não pode
ser o árbitro absoluto do real. No existencialismo, o racional não é negado mas convive lado a
lado ao irracional, sem nunca se conseguirem coincidir ou se adaptarem um ao outro. O
existencialismo acaba por dar, sem querer, um carácter puramente subjectivo ao
conhecimento, subordinando o mundo objectivo à subjectividade do indivíduo.

Já para Aristóteles, a ideia e a vida não aparecem em oposição, existe um círculo –


que pode ser simbolizado pelo desenvolvimento de uma árvore: a experiência real e concreta
(raízes) é transmutada pela imaginação em formas (tronco), que não são produtos
subjectivos mas a expressão real das formas inteligíveis que estão nos seres reais; as formas
inteligíveis irão erguer-se mediante o confronto dialéctico (ramos) até os conceitos universais
(frutos), que irão retroagir sobre a vida mediante as conclusões filosóficas obtidas (fruto que
cai ao solo), gerando novas situações, fechando o círculo. Os dados sensíveis dão-nos um
conhecimento em bruto, que não é um verdadeiro conhecimento porque lhe falta a
explicação, mas quando chegamos à explicação podemos ter perdido o facto de vista, e aqui o
existencialista escolhe o facto, a vida, mesmo quando lhe pareça uma coisa irracional.
Contudo, Cristo chegou como facto e ele mesmo é o Logos, o último grau da explicação, da
abstracção e da universalidade. A nossa razão e a nossa capacidade especulativa são apenas
uma expressão local e individualizada desse Logos. Cristo é a manifestação circular das
relações entre vida e razão, entre individualidade concreta e universalidade abstracta, algo
que Aristóteles já havia percebido de alguma forma. Um poeta pode apenas ficar com a
expressão da experiência inicial, como no caso de Bruno Tolentino, onde a separação é vivida
com toda a intensidade, e é de facto algo que todos vivemos mas que não tem que ter um
enquadramento trágico, podendo a unidade ser restaurada existencialmente através da fé ou
92

intelectualmente pela filosofia. Kierkegaard não é um grande filósofo porque transformou a


sua tragédia pessoal em filosofia, o que conduz a uma impotência cognitiva, quando devia ter
saído da dualidade através da filosofia. Platão, que foi o único poeta-filósofo da humanidade,
partia da expressão poética da realidade, examinava-a e fazia uma condensação simbólica,
depois, subia até ao nível da universalidade através da análise dialéctica e, uma vez chegado
ao nível supremo, encontrava um outro nível de realidade, que já não podia ser expresso
doutrinalmente mas apenas poeticamente, por isso, ele recorria ao mito, fechando também
ele o círculo. α32

139. Os esforços filosóficos de Olavo de Carvalho


Só se pode compreender um filósofo tendo uma noção do conjunto dos seus esforços.
No caso de Olavo de Carvalho, o esforço fundamental consistiu em pegar na experiência da
separação entre ideia e vida [138], que conduz a um dualismo irrecorrível, e ir caminhando
até achar um senso de reintegração dentro da ordem divina. Nisto, a fé pode entrar como
força e inspiração, mas a religião não resolve o problema, bastando lembrar os cismas e as
discussões teológicas que originaram mortos e criaram um sem número de problemas para
além daqueles que tentaram resolver. Também não é possível fazer a integração mediante um
sistema filosófico, como era norma no século XVIII. Isto deu origem ao abstratismo da ideia,
negando a realidade, no qual Kierkegaard identificou uma tragédia, para a qual não
encontrou saída, dado ter apenas invertido os termos da discussão, dando mais importância
ao facto do que ao pensamento, mas sem conseguir conciliar os dois. Mas os pais da filosofia
faziam essa conciliação com naturalidade. Então, o caminho de Olavo de Carvalho consistiu
em pegar cada problema e cada dificuldade à medida que surgiam e tentar resolvê-los, vendo
se dali saía alguma sugestão do “caminho para Deus”. É um percurso que pode ser traçado
através de uma lista de problemas, surgidos por circunstâncias biográficas, para os quais
foram encontradas soluções satisfatórias:

a) Relações entre a ciência e a filosofia. Jean Piaget dizia que apenas as ciências
experimentais dão conhecimento, sendo a filosofia apenas uma orientação no mundo dos
valores (incluindo os cognitivos). Isto é uma inversão da realidade, porque algo só se torna
conhecimento quando já se encontra dentro de uma hierarquia de valores cognitivos e, até lá,
é apenas um assunto, tema ou problema. Contudo, Platão e Aristóteles já tinham de alguma
forma dado os princípios para a resolução do problema, porque para eles não havia ruptura
entre o conhecimento científico (ideia) e o facto concreto, havia um círculo. Isto deu origem
aos problemas listados de seguida, nomeadamente à necessidade de ter uma visão mais clara
a respeito do discurso poético-simbólico, de onde surgem todos os outros discursos. A
ciência, tal como a poesia, é um fornecedor de material para a filosofia. Por outro lado, a
ciência não tem em si o padrão da sua própria inteligibilidade, não só porque necessita de
partir de conceitos (elaborações filosóficas), como só através da análise filosófica ela chega a
um conhecimento de pleno direito. A continuação do estudo deste problema acabou por
resultar numa elaboração de uma filosofia da ciência, que se encontra dispersa em vários
escritos e aulas.

b) Relação entre poesia e filosofia. Não é possível trabalhar com os dados dos sentidos, sendo
necessário um segundo grau onde surge um condensado simbólico. Enquanto a poesia busca
os homens, a filosofia apenas se pode comunicar a uns poucos. Contudo, as duas não são
incomunicáveis entre si, porque a poesia tem sempre o germe da filosofia e a filosofia é uma
93

poesia recolhida ao estado da experiência interior. O essencial sobre este tema pode ser
encontrado na apostila “Poesia e filosofia”, disponível em::

http://www.olavodecarvalho.org/apostilas/poefilo.htm.

c) Teoria dos quatro discursos. A exposição central da teoria encontra-se no livro Aristóteles
em Nova Perspetiva, tendo sido mais desenvolvida em várias aulas. Os pontos anteriores são
aqui absorvidos e colocados numa ordem. Os quatro discursos – poético, retórico, dialéctico e
lógico – são quadro modalidades de uma potência única.

d) Teoria dos géneros literários. Como se dá a passagem de um discurso a outro? Por


exemplo, como pode um discurso poético dar origem a várias elaborações filosóficas, com
diferentes níveis de validade? Ver artigo “The metaphysical foudations of the literary genres”
em:

http://www.olavodecarvalho.org/traducoes/the%20metaphysical.htm.

e) Atrocaracterologia. A linguagem poética é apenas uma variante específica da linguagem


simbólica, que se encontra por excelência na alquimia e na astrologia. A linguagem
astrológica deixou resíduos em toda a parte, nas artes, na música, na literatura, nas próprias
catedrais medievais. Contudo, havia que separar essa linguagem – que expressa uma
cosmovisão “primitiva”, onde o cosmos aparece como uma unidade confusa – do suposto
fenómeno das influências astrais, e esse é o trabalho da astrocaracterologia, e não a tentativa
de criar uma técnica astrológica pronta a aplicar.

f) Teoria da verdade como domínio. Estamos sempre dentro do domínio da verdade, em


termos existenciais, mas podemos sair subjectivamente, não apenas para o domínio da ideia
mas também para o domínio da experiência subjectiva do arrebatamento, do rapto. A teoria
encontra-se explicada em várias apostilas, nomeadamente em “O problema da verdade e a
verdade do problema” e em “Kant e o problema da objectualidade”, disponíveis em:

http://www.olavodecarvalho.org/apostilas/problema_verdade.html

http://www.olavodecarvalho.org/apostilas/kant3.htm

g) Teoria do sujeito da História. Em geral, os filósofos aceitam como válidas abstrações como
“História do Brasil”, quando o Brasil é apenas um cenário que nunca fez nada. Para
compreendermos a possibilidade histórica de ocorrerem certos acontecimentos e dramas
temos de considerar a História de personagens reais agentes. Qualquer acção é individual,
mas se vários indivíduos agirem de forma articulada, podem chegar a criar linhas de acção ao
longo de séculos, como acontece com certos esforços do papado ou do Partido Comunista.
Apenas se pode considerar histórica a acção que transcende a duração da vida humana. São
as entidades cuja acção permanece no tempo que têm uma acção que dá a forma geral da
História. Os Estados não têm essa continuidade, mas certas entidades que agem através deles
podem ter. Entre os verdadeiros agentes históricos, os mais destacados são o papado, o
Partido Comunista (que é anterior e posterior à União Soviética), a maçonaria e as famílias
dinásticas. O Jardim das Aflições não é um verdadeiro livro sobre uma entidade histórica
mas faz algo nesse sentido, relatando os esforços ocidentais para restaurar o império romano.

h) Teoria do império. O império é um conceito fundamental na História do ocidente, tema


que sobressai no livro O Jardim das Aflições.
94

i) Teoria do poder. O poder é a capacidade de determinar a acção de outros, sendo


obviamente o instrumento fundamental com que se faz a História. A primeira coisa a notar (e
que é a mais desprezada) é a diferença estrutural dentro da espécie humana: varia da
impotência quase total até à quase omnipotência. Sem esta diferença de poder não haveria
História, que é a organização e o exercício do poder. A diferença de poder é também uma
diferença de informação, embora esta, por si, não tenha qualquer influência se não for
articulada com meios de acção. Ver o curso da “Teoria do Estado”.

j) Teoria do direito. Dentro da fenomenologia do poder, o direito entra como um dos


elementos fundamentais. O direito é a garantia do exercício do poder. Ver mais na apostila “O
que é o direito?” em:

http://www.olavodecarvalho.org/apostilas/direito.htm.

k) Teoria da origem da autoridade. Ver curso “Teoria do Estado”.

l) Princípio de autoria. Só podemos entender a moral entrado em conta com a noção de


autoria. Não é possível fazer julgamentos morais se as acções não têm sujeito. Isto parece
muito óbvio mas basta pensar que muitas explicações são imputadas a “causas sociológicas
profundas”, perdendo-se de vista o sujeito agente. O relativismo moral também tenta abolir a
própria existência de uma moral universal, apresentando uma variedade infindável de
códigos morais. Mas não existe sociedade sem família, ainda que esta possa ser estruturada
de muitas formas. É também universal a noção de que apenas o autor de uma acção pode ser
responsável por esta (quando o acto sumiu da nossa vista há a tendência de buscar causas
universais). Autoria implica reconhecer o ser humano como causa de acontecimentos, sem
ter de existir qualquer outra causa por detrás.

m) Conceito de psique. No ponto anterior está implícita a existência de uma causa psíquica,
que não tem origem corporal, genética ou externa. A psique é composta por uma série de
faculdades, em que a razão (impulso para a unificação da experiência) é apenas uma delas.
Desde que nasce, o ser humano é forçado a agir segundo a uma racionalidade que ainda não
tem desenvolvida, e haverá sempre um desnível entre aquilo que a situação racionalmente
exige e o uso efectivo da razão. Então, a autoridade surge como uma unidade simbólica
substitutiva, que começa por ser o pai, símbolo da razão. Sempre haverá um conflito entre
autoridade e razão (trauma da emergência da razão). Ver mais na apostila “O que é a
psique” em:

http://www.seminariodefilosofia.org/system/files/olavodecarvalho_psique.pdf.

n) Contemplação amorosa. Dos pontos anteriores surge um método designado como


“contemplação amorosa” (http://www.olavodecarvalho.org/apostilas/amorosa.htm), que é o
embrião do método da confissão, que podemos receber no Curso Online de Filosofia.

o) Paralaxe cognitiva e mentalidade revolucionária. A resolução dos problemas anteriores


permitiram abordar estas investigações actuais, que têm uma perspectiva conjuntamente
histórica, política e psicológica. α32
95

[Aula 33]

140. A obra literária e o produto filosófico


A obra de um escritor é o conjunto dos escritos que ele deixou (por vezes, até menos
do que isso, dado existirem obras menores que são dispensáveis), mas a investigação
filosófica nunca tem uma expressão literária perfeita e acabada. Já é simbólico do destino da
filosofia que não tenham restado completas as obras de Platão e Aristóteles, chegando-nos do
primeiro o ensinamento popular e, do segundo, as notas de aula. A filosofia exige a
permanente recolocação de si mesma como problema, e mesmo que um filósofo declare que
disse tudo o que pretendeu, a filosofia não acaba aí. Os comentadores de Platão e Aristóteles
sucedem-se até hoje, e não se limitam a fazer elaborações sobre o que disseram estes mestres,
dado esclarecerem continuamente o pensamento original, que de certa forma ainda se
encontra aberto. O pleno vigor de uma filosofia só se revela na sua continuação, e neste
particular tem razão Heidegger quando referiu o fenómeno de algo que não está declarado
numa filosofia, nem sequer pensado nela, mas que só se torna pensável graças a ela. Uma
anotação de passagem que um filósofo deixou pode mudar todo o sentido da sua obra,
enquanto que todos os documentos e cartas que o escritor deixou para além da sua obra têm
apenas importância biográfica ou poderão esclarecer a compreensão psicológica, mas a
estrutura e a organização das obras não se altera. Aquilo que os comentadores disserem a
respeito de Shakespeare não vai alterar o valor da sua obra.

Na obra filosófica, devemos tentar captar o filosofema – estrutura interna do


argumento –, que raramente corresponde à estrutura da obra escrita. Se nos fixamos
demasiado no texto e o tomamos como objecto, vamos esterilizar o seu poder fecundador. A
finalidade da literatura é a produção da obra, mas na filosofia pretende-se descobrir, saber,
compreender algo da experiência humana da realidade. Isto não se corporifica na obra escrita
mas apenas no próprio filósofo, que nem precisa de ter escrito algo, como Sócrates, que
marcou todo o desenvolvimento da História da filosofia ocidental, e nós compreendemos que
a sua filosofia não é uma estrutura fechada mas um movimento e um estímulo. Aristóteles
tinha toda uma filosofia clara e organizada, mas deixou inúmeros problemas por resolver, em
especial a tensão entre o ser necessariamente individual e o conhecimento sempre genérico.
O tratamento que São Tomás de Aquino e Duns Scot deram ao problema acabou por alterar o
sentido e o valor da filosofia de Aristóteles para nós. α33

141. O estudo da filosofia


Se estudarmos a filosofia por autores, não iremos captar o esforço que gerações de
filósofos empreenderam para resolver um problema apenas, esforço esse que mostra o
carácter “interminado” da filosofia. A melhor forma de estudar filosofia, no início, é por
problemas, levantando o status quaestionis (não é state of the art, que pretende ser a última
novidade que apaga tudo o resto) de cada um. Ou seja, teremos de ter em conta toda a
história das discussões sobre aquele ponto, com a agravante de algumas das melhores
contribuições estarem frequentemente em escritos que têm outro objecto formal. De início, é
aconselhável nos atermos à bibliografia formal, onde os autores referem-se conscientemente
uns aos outros, até termos desenvolvido o senso do que é pertinente (o que levará alguns
anos), ou iremos ver analogias e ligações em toda a parte, e tornar-nos-emos em
“colecionadores de curiosas coincidências”.
96

Trata-se de um trabalho, em primeiro lugar, de pesquisa bibliográfica. Iremos


entender como é difícil descobrir alguma coisa. Iremos seguir muitas pistas falsas para
descobrir algo que estava debaixo do nariz desde o início. Em especial em filosofia, as últimas
coisas que foram ditas não estão separadas da discussão inteira que levou até ali. Contudo,
não temos que seguir tudo na discussão, como em História, apenas vamos ter em conta os
elementos que interessam para a solução do problema agora, e aí seremos exaustivos e
procuraremos estar entre as melhores companhias. Mas o problema escolhido tem que ter
importância existencial para nós ou torna-se um trabalho académico.

Mais tarde, inevitavelmente teremos de estudar a História da filosofia


sequencialmente e pegar toda a obra de um filósofo. Isto não impede que se passe algum
tempo de início tendo um conhecimento daquilo que é essencial na História da filosofia, além
de ter uma frequência respeitável, ainda que não aprofundada, com Platão e Aristóteles.
Além disso, é sempre necessário algum aporte Histórico, sem esquecer que devemos,
paralelamente, continuar o nosso convívio com as grandes obras literárias. α33

142. Didascalicon e o sendo da eternidade


Diz Hugo de São Vítor, no Didascalicon:

«De todas as coisas a serem buscadas, a primeira é a sapiência, na qual reside a


forma do bem perfeito. A Sapiência ilumina o homem para que conheça a si mesmo
— ele que, quando não sabe que foi feito acima das outras coisas, acaba se achando
semelhante a qualquer outra coisa. A mente imortal do homem iluminada pela
Sapiência se volta para o seu princípio e percebe o quanto é inconveniente ao
homem procurar coisas fora de si, uma vez que poderia ser-lhe suficiente aquilo que
ele próprio é. Lê-se escrito na trípode de Apolo: Gnoti seauton, ou seja, “conhece-te
a ti mesmo”. De fato, o homem que não esqueceu a sua origem sabe que é nada
tudo aquilo que é sujeito à mutabilidade».

O tradutor Antonio Marchioni acrescenta as seguintes notas:

«Essa sapiência da qual Hugo fala é a mente divina, na qual o mundo e o homem
foram pensados como numa forma, num molde, num arquétipo. Essa sapiência não é
algo, é alguém. É a segunda pessoa da trindade, o Logos e pensamento de Deus. É a
forma perfeita de Deus bom, como, pela criação, a forma boa do mundo e do
homem».

No original não existe o “acaba se achando”, é uma interpretação, não


necessariamente ilegítima. “Didascalicon” tem em português o correspondente “didascálica”,
que é o conjunto dos equipamentos educativos. Do título original, Studio Legendi foi
traduzido como a “A Arte de Ler”, o que não está errado mas studium tem também o sentido
de afeição. Mais do que leitura, é toda uma introdução à arte de leitura, como se efectua a
leitura e onde ela nos leva, indicando Hugo de São Vítor que a meta é a Sapiência, o Logos
divino, e este, por sua vez, é nada menos que Cristo, o conjunto do que Deus sabe, o conjunto
de leis e princípios eternos que estruturam toda a realidade e ainda o princípio animador pelo
qual as possibilidades divinas vêm à existência.
97

Ivan Ilitch salienta que nós, que vivemos depois de Newton, só conseguimos perceber
causas eficientes, dessa forma, conceitos como o de “desejo natural” parecem-nos um mito.
Então, quando Hugo de São Vítor diz que a Sapiência é a primeira coisa a ser buscada,
entendemos “primeira” como a coisa mais imediata ou a primeira de uma série. A percepção
original do autor tornou-se estanha para nós, e aí entra todo o esforço histórico e filológico
para conseguir evocar algo de originário. Contudo, tudo isto pode ainda nos deslocar mais do
foco se entendemos os produtos de outras épocas como elementos culturais e não como
experiências de realidade. Corremos o risco de achar que estamos hoje na nossa cultura
arraigados na realidade, enquanto no passado as pessoas até podiam ter percebido umas
coisas muito interessantes mas viviam num sonho. Ou seja, o estudo de um produto do
passado é como se fosse apenas uma entrada no campo da fantasia, mas aquilo não diz
realmente respeito à realidade. Este pode não ser o resultado procurado mas deriva quase
que automaticamente da técnica filológica/histórica de rastrear os documentos para captar o
sentido das palavras na época em que foram escritas, junto a uma crítica que procura
averiguar as crenças que embasavam os significados. Isto cria uma tensão em relação àquilo
que acreditamos saber agora.

Então, não podemos abandonar os instrumentos filológicos, que nos dão a


inteligibilidade mínima do texto, mas ficamos com a noção de que aquilo que já passou não
existe mais e necessariamente estamos centrados noutra realidade. Aqui está implícita a
crença de que só é real aquilo que está fisicamente presente, como se o tempo fosse uma
dimensão que come as coisas e tudo desfaz, simbolizado por Cronos que devorava os próprios
filhos. Esta experiência do tempo pode aflorar aos homens de todas as épocas, mas na nossa
época tornou-se na única concebível. Os homens sentem tudo como evanescente e o mundo
físico aparece como a única realidade sólida, mas ele também não oferece uma garantia
perene, nem mesmo se for um edifício feito de medidas e equações. Hugo de São Vítor já
afirmava o vazio de tudo o que é sujeito a mutabilidade, no qual o homem cai quando esquece
a sua “mente imortal”, pelo que ao homem basta que se conheça a si mesmo.

A experiência da confissão dá-nos um entendimento mais claro disto. Na confissão,


porque nos mostramos diante de alguém que existe na eternidade, aparecem todas as
personagens que já fomos e, de certa forma, aquelas que seremos, dado que a raiz do
arrependimento já reside em nós. Dito de outra forma, todas as personagens confessam-se ao
mesmo tempo. Então, o erro é absolutizar as diferenças temporais e culturais, quando
podemos entender as coisas como Hugo de São Vítor entendia se nos colocarmos numa
posição análoga à da confissão, porque podemos participar da mesma visão dele sem
deixarmos de ser nós mesmos.

Benedetto Croce (A História como Pensamento e Acção) exprime também essa


possibilidade:

«O que se chama, no uso historiográfico, documentos escritos, esculpidos, figurados


ou aprisionados nos fonógrafos, ou também existentes em objetos naturais,
esqueletos ou fósseis, não age como tal e tal não é, salvo enquanto estimula e
acentua em mim recordações de estado de ânimo que estão em mim. E nos demais
aspectos subsiste, como tintas coloridas, cartas, pedras, discos de metal de lacre etc.,
sem a mínima eficácia psíquica. Se não existe em mim, adormecido que seja, o
sentimento da caridade cristã, ou da salvação pela fé, ou da honra cavalheiresca, ou
do radicalismo jacobino, ou da reverência pela velha tradição, inutilmente passarão
98

sob meus olhos as páginas dos Evangelhos e das epístolas paulinas, da epopéia
carolíngea, dos discursos que se faziam na Convenção Nacional, das líricas, dos
dramas e romances que exprimiriam a nostalgia oitocentista pela Idade Média. O
homem é um microcosmo, não no sentido naturalístico, mas no sentido histórico: é
um compêndio da História universal».

Algo só se torna documento quando evoca algo em nós, e pode evocar porque reflecte
possibilidades que já carregamos em nós, ao menos ao nível imaginativo. Entender a
dimensão de eternidade é perceber que não estamos presos a um determinado momento
histórico: podemos vivenciar outras épocas e civilizações como se fossem coisas que nos
tivessem acontecido. De forma compacta, é isto que diz Hugo de São Vítor, que resume assim
o essencial do estudo filosófico. Acrescento que quando perdemos a eternidade de vista, os
nossos próprios actos passados parecerão ter sido cometidos por outra pessoa e só
contrariados assumimos a sua autoria, assim como parece que delegamos a outrem a nossa
vida futura. Daí a extrema dificuldade dos modernos em planear algo para além das próximas
férias, que é uma das poucas coisas que ainda dão algum alívio. A inteligência só funciona
realmente quando encaramos as coisas sob a categoria da eternidade, fora disso as coisas
perdem inteligibilidade. Não se trata de algo inventado pela religião, é o modo natural de
funcionamento da inteligência, que a cultura (religiosa ou profana) pode aprofundar ou
destruir. Não é apenas o relativismo ou o mecanicismo que destroem o senso de eternidade,
porque analisar as coisas à luz da moral religiosa implica transformar os outros em
personagens do nosso imaginário, e isso é também uma actividade mecânica. α33

[Aula 34]

143. O papel central da consciência


Todo o Curso Online de Filosofia gira em torno da ideia de consciência, por duas
ordens de razões que acabam por se interligar. Por um lado, a consciência moral – uma
forma de autoconsciência – é o elemento fundamental da integridade da personalidade. É a
partir da consciência moral que contamos a nossa própria história, onde podemos obter uma
figura mais ou menos total da nossa personalidade que acompanha as suas mudanças, tendo
em conta o nível de maturidade e de responsabilidade, e assim pode obter um julgamento da
gravidade dos nossos actos. A consciência moral só é realmente exercida na confissão,
entendida aqui essencialmente como exame de consciência, não apenas válido para cristãos,
porque todos podem se apresentar diante de Deus ou diante da parte mais alta da sua
consciência. A própria confissão formal pode se tornar num jogo perigoso, servindo para
amortecer a consciência, se não fizermos o devido exame de consciência. As Confissões, de
Santo Agostinho, mostram no que consiste este exame por excelência. Mais do que
apresentar uma lista de pecados, Agostinho mostrava ao observador omnisciente a totalidade
da sua pessoa (incluindo os maus pensamentos no início da sua vida, assim como as más
tendências incorporadas da sociedade), na medida daquilo que ele conhecia de si, e aí
obtinha um retorno, ficando a saber coisas que antes não tinha percebido. Sabendo um pouco
mais, também se tornava mais responsável pela sua vida. A consciência dos pecados aumenta
99

o nosso nível de integração; ficamos cada vez mais próximos de conhecer a nossa forma
inteira, dada na morte mas já conhecida por Deus antes mesmo do nosso nascimento.

A confissão aprimora-se com o aumento do nosso nível de conhecimentos – o estudo,


a reflecção ou a leitura dão mais meios (conceitos, técnicas, pontos de vista) para um auto-
exame –, e isto liga-se à segunda razão que dá um papel central à consciência. Esta é o
instrumento fundamental com que aprenderemos filosofia. Aristóteles tinha a mesma
experiência comum e corrente que os outros gregos em relação à política, ao teatro, à religião,
etc. Contudo, ele dava mais atenção aos detalhes, retinha aquelas coisas em memória,
verbalizava-as e transformava-as em conceitos, que depois podiam ser usados por todos para
reconhecer as mesmas experiências. Ou seja, a consciência não é uma coisa solitária e é
característico dela ser uma superfície onde outras se iluminam. É através da consciência que
aprendemos o que quer que seja, já que a inteligência só por si é impotente. Por outro lado, a
obtenção de conhecimento exige a intensificação da consciência pessoal.

A conjunção destes dois movimentos é a filosofia, e daí a sua definição como busca da
unidade do conhecimento na unidade da consciência e vice-versa. Ou seja, buscamos a
unidade do conjunto do que sabemos e, ao mesmo tempo, essa busca aumenta também a
unidade da nossa consciência, que assim se integra a si mesma e parte novamente na busca
do conhecimento a partir de outro patamar, onde vai encontrar mais unidade, integração,
hierarquia, ordem e organicidade. Trata-se de um trajecto que só termina com a morte.

Sem fazermos parte deste trajecto, não podemos encontrar uma forma da nossa
personalidade e não podemos contar a nossa vida, logo, não estaremos aptos para a
confissão. O Exercício do Necrológio [4] é um instrumento para termos a perpectiva
adequada, para não termos de lidar com a nossa vida como um caos em bruto: teremos um
critério, que será refeito várias vezes. Nada disto depende de desempenharmos uma profissão
intelectual ou não, é uma responsabilidade cognitiva inerente a qualquer indivíduo que não
esteja incapacitado. Os alunos do Curso Online de Filosofia não têm o direito de se esconder
atrás de uma profissão, nem podem pedir resguardo na falta de ambição em serem filósofos
ou intelectuais, para assim poderem dirigir as suas vidas segundo os critérios usuais do seu
meio. Se fizerem isso, tudo o que aprenderem aqui será perdido rapidamente. Todas as
decisões da nossa vida têm que ser ponderadas a partir dos instrumentos que aprendemos no
curso, ninguém irá nos fiscalizar e nem sequer dizer exactamente como isso se faz, mas é
nossa obrigação aumentarmos o nosso nível de responsabilidade cognitiva, intelectual, moral
e prática. A desculpa da ignorância nunca pode ser usada, dado que esta não se confunde com
a inocência, que é algo que não sabemos mas também não temos obrigação de saber. A
prática filosófica só pode avançar na medida em que há uma transfiguração dos nossos
critérios de existência, independentemente da nossa profissão ou posto ocupado na
sociedade. α34

144. A responsabilidade colectiva dos alunos do Curso Online de Filosofia


Os alunos do Curso Online de Filosofia têm, para além de uma responsabilidade
individual, a responsabilidade colectiva de formar uma nova intelectualidade. Para perceber
a função aqui implicada, é necessário recuar um pouco. Durante a Idade Média, a Igreja tinha
a hegemonia intelectual mas não estava armada de poder temporal, do qual não necessitava,
porque toda a linguagem, imaginário e formas de criação artística eram delimitadas por ela.
Dominando o conjunto da cultura, a Igreja formava as consciências, e mesmo quem fosse
100

contra ela acabaria por pensar do mesmo jeito que toda a gente. Com o aparecimento da
ciência moderna, apesar da maior parte dos cientistas serem cristãos devotos, eles já
começaram a criar modos de pensar destruidores da religião. Descartes, apesar de devoto,
tirou Deus do centro da criação e colocou lá a subjectividade do indivíduo. Kant também era
religioso mas teve de ser o seu criado de quarto a avisar-lhe que os seus escritos levariam ao
fim da religião. A Igreja não soube como reagir à nova intelectualidade, prestou-lhe um
respeito indevido e acabou por raciocinar nos mesmos moldes que ela.

Entretanto, a Igreja achou importante munir-se de poder temporal. Não é possível


saber exactamente o que foi causa e o que foi efeito: se foi o surgimento de novas autoridades
concorrentes que levou a Igreja a procurar poder temporal, ou se foi antes o oposto, e a
divisão do trabalho no seio da Igreja fez com que esta tivesse uma autoridade mais fraca, o
que levou à criação de autoridades concorrentes, se as duas coisas juntas ou ainda outra
desconhecida. Autoridade significa ser o portador de um conhecimento que os outros têm
obrigação moral de ouvir, mas sem poder impor aquilo. Quem diz que “2 + 2 = 4” di-lo com
autoridade divina, mas não pode forçar ninguém a acreditar naquilo. A autoridade está na
esfera do saber e do julgar, no plano das verdades universais a que todos devemos ceder. Já o
poder está na esfera da acção e da produção de resultados, uma esfera concreta e específica,
temporal e por vezes marcada pela urgência. Existe uma tensão entre os dois, que de certa
forma estão condenados a andar juntos mas não podem se depositar na mesma entidade.
Especialmente depois da Reforma, a unidade do mundo cristão desabou. Existiam vários
poderes e autoridades concorrentes, então, o poder real decidiu colocar-se acima de todos,
nascendo assim o Estado leigo moderno, que é um poder que não admite ser limitado por
nenhuma autoridade formal. Contudo, o espaço para a existência da autoridade continuava a
existir na sociedade, e como a Igreja já não acompanhava o andar dos tempos, o papel foi
desempenhado pelos clubes de debate (alguns de origem esotérica), que se transformaram
nos “formadores de opinião” e criaram o clima que levou à Revolução Francesa.

Então, a função principal da intelectualidade não é a tomada de poder e nem a


participação na vida política, mas também não é recolher-se no tratamento de assuntos
apolíticos e etéreos. A função da intelectualidade é criar a atmosfera geral da cultura,
posicionando-se numa camada que pode julgar, em termos morais e sociais, tudo o que se
passa na sociedade, ainda que não tenha poder para impor decisões. Contudo, esta camada
foi tomada por activistas políticos, que se tornaram em mais um factor de confusão. Mas
bastariam umas cem pessoas, com verdadeira consciência de si mesmas, produzindo material
de qualidade para criar uma outra hegemonia e sanear a vida intelectual, que iria refluir para
todos os domínios da sociedade. Em rigor, quem tenha aprendido alguma coisa no Curso
Online de Filosofia já tem esta incumbência, ainda que não o perceba. Claro que terá de
articular isto com voto de abstinência em matéria de opinião [32].

É necessário superar a dualidade burguesa, que separa o estudo da vida prática, o que
já é uma consequência da religião burguesa, que separa o plano do conhecimento do plano da
salvação da alma, estando nos antípodas de Hugo de São Vítor, que dizia que o estudo leva-
nos a Cristo, ou de Clemente de Alexandria, que referia a filosofia é o pedagogo que leva a
Cristo. Muitos querem se fazer de “pobres de espírito”, de almas puras de criança, mas isto é
apenas inocência perversa. Uma nova intelectualidade é como um apostolado, composta de
pessoas que reorganizaram toda a sua vida (mesmo que isso obrigue a deixar de ter negócios
com o Estado) para poder agir com consciência dos acontecimentos, das forças históricas em
movimento e do que é possível fazer para minimizar os efeitos nefastos. α34
101

[Aula 35]

145. O estudo como uma sucessão interminável de aberturas


A abertura inicial que encontramos no Curso Online de Filosofia pode nos dar a ilusão
de nos “termos encontrado”. Contudo, o mundo de estudo é uma sucessão de estudos e
aberturas que não termina mais. Talvez um dia estejamos vivendo a vida do espírito em
permanência, mas sempre iremos estar submetidos aos factores naturais. À medida que
formos progredindo, teremos experiências com mais densidade e saberemos muito mais
coisas do que aquelas que conseguimos comunicar, e que só podem ser compreendidas por
quem tenha um nível equivalente de consciência. Isto vai limitar bastante o número de
pessoas que podem ser nossos amigos, porque serão cada vez menos aqueles capacitados
para um verdadeiro intercâmbio. α35

146. A formação da guerra cultural


Vivemos num ambiente de guerra cultural, pelo que é importante saber como se dá o
processo em que certas ideias se tornam dominantes numa sociedade. Hegemonia cultural é
o processo pelo qual certas ideias se impregnam por toda a sociedade até quase a um nível
subconsciente, e todos acabam pensando em consonância mesmo sem perceberem (António
Gramsci dá à hegemonia outro sentido, o de dominação de uma classe por outra). A palavra
“revolução” é um bom exemplo do que é a hegemonia cultural, devido ao seu uso
disseminado em todas as áreas, sempre na base de uma falsa analogia: ou com as revoluções
dos astros ou com uma mudança/novidade repentina e auspiciosa. A revolução dos corpos
astrais consiste nestes sempre voltarem aos mesmos lugares, pelo que não há novidade
alguma, ao ponto de podermos calcular as trajectórias dos planetas com milénios de
antecedência. Por outro lado, as revoluções sociais só aparentemente são repentinas, antes
sendo processos altamente complexos e demorados, e só quando irrompem parecem
auspiciosos, mas logo vira uma coisa macabra, mesmo para muitos dos seus entusiastas, que
acabam por ser massacrados. Por mais erradas que sejam estas analogias, a palavra
“revolução” continua a ser usada com um sentido positivo até mesmo pelos seus adversários,
por exemplo, há muitos cristãos que consideram o cristianismo uma revolução.

Para compreender este processo, temos de atender à existência de três formas de


poder: a) poder espiritual-intelectual; b) poder político-militar; c) poder económico-
financeiro. O poder intelectual demarca as possibilidades de conceber e perceber as coisas,
funcionando a longo prazo, por isso raramente é exercido pessoalmente (e muitos nem o
reconhecem como um poder), mas acaba por ser o mais eficaz dos poderes, até porque
delimita os restantes. O uso corrente da palavra “revolução” é um exemplo de actuação do
poder intelectual, que não apenas vulgarizou o uso do termo como automaticamente lhe
juntou todo um imaginário e lhe associou reacções de base quase inconscientes.

Segundo o entendimento geral, a partir de 1650, com o Iluminismo, deu-se uma


secularização e racionalização da sociedade. A cultura tradicional incluía a Igreja e as
universidades, mas depois surgiu uma nova intelectualidade que conquistou a hegemonia, ao
102

ponto da interpretação que fazemos deste período de transição corresponder à visão dos
novos pensadores. Junto com a apologia de uma liberdade civil e política, veio uma nova
concepção do homem, agora visto como uma máquina (de onde deriva a Declaração dos
Direitos Humanos, da qual Peter Singer retira a conclusão lógica: a vida de um homem vale
menos do que a vida de um frango; o sujeito não é portador direitos, só a humanidade (mas
para isso tinha de haver outra espécie que teria obrigação de providenciar esses direitos). Isto
não aconteceu por acaso, já que algumas das referências da nova intelectualidade – como
Voltaire, Maquiavel, Diderot ou d’Holbach – usavam sistematicamente a mentira. Eles
acusavam os jesuítas se serem um factor de atraso no progresso da ciência, porque
desprezariam as ideias da ciência experimental para usar a velha teologia de sempre,
contudo, também isto é uma falsidade histórica, dado terem sido os jesuítas os maiores
contribuidores para o desenvolvimento científico dos século XVII e XVIII (ver livro Jesuit
Science and the Republic of Letters, de Mordechai Feingold).

Os representantes da antiga ordem não se aperceberam da puerilização de que


Schelling falava a respeito dos novos filósofos (Descartes, Bacon, etc.) Denunciavam-nos
como sendo ateístas ou pró-ateístas e limitavam-se a discutir certos pontos das suas
doutrinas. Contudo, os novos pensadores já não pretendiam assentar a sua credibilidade
numa síntese de fé tradicional e autoridade intelectual, como no período medieval. Eles
pretendiam agora personificar uma autoridade em estado puro, e o facto de serem acusados
de ateísmo até reforçava as suas pretensões, já que eles queriam mesmo afirmar-se à parte da
religião e da tradição. Mais ainda, ao aceitarem discutir pontos específicos das novas
doutrinas, os representantes da antiga ordem estavam a dizer que os novos pensadores eram
dignos de ser admitidos como filósofos, logo, o novo modelo de autoridade saía legitimado
por quem o combatia. Os representantes da ordem tradicional não compreenderam
fenómeno histórico que se estava a desenrolar. No curto prazo podiam ganhar as discussões,
mas a longo prazo estavam a validar uma nova ordem que os iria votar ao esquecimento.

Antes da modernidade, só se considerava que um facto científico estava


compreendido quando se conseguia captar o seu sentido dentro de toda uma cosmovisão. Na
ciência moderna importa apenas o “como funciona”, e por baixo desta aura de rigor há
irracionalidade, mentira, ocultação proposital, propaganda, em suma, um conjunto de coisas
que constituem a própria guerra cultural. Os alunos do Curso Online de Filosofia têm que ter
o entendimento do conjunto do processo e saber o que realmente está em jogo, algo que
faltou aos representantes da cultura tradicional. A aquisição do panorama global – que nos
permite fazer previsões históricas e ter uma noção do que devemos fazer – implica uma vida
de sínteses parciais erradas, que terão sempre que se refazer. Isto parece conduzir a uma
perspectiva niilista, mas nunca poderemos nos apegar a uma crença humana, apenas
podemos acreditar no Espírito Santo, independentemente de qual seja a nossa religião.
Iremos abandonar as nossas crenças inúmeras vezes, até que chegue a hora em que já não
somos nós que fazemos a síntese mas o próprio Espírito, e aí veremos as coisas como elas
são. Mas nunca chegaremos a isto se procurarmos refúgio num conjunto de ideias, por mais
complexas que elas sejam, porque esse apegamento apenas revela temor do infinito. Um dia
iremos constatar que o infinito até é mais confortável que o finito. Não podemos dominar o
infinito, que é o domínio onde reside a verdade, apenas podemos transitar nele e permitir
que nos inspire, deixando que a nossa personalidade se amolde para poder absorver cada vez
mais coisas. No limite, a nossa personalidade dissolve-se, seremos a metamorfose ambulante,
de que falava Raul Seixas, o que naturalmente não implica uma anulação da nossa
identidade. α35
103

[Aula 36]
147. Nova ordem mundial, tipos dominantes de personalidade e democracia
totalitária
Todo um novo conceito de civilização, com toda uma série de símbolos e valores
próprios, está a ser criado por uma elite muito bem amparada em termos políticos e
financeiros, que culmina na tentativa de impor um governo mundial. Os seus planos não são
secretos mas têm uma amplidão e uma complexidade tão grande que escapam do horizonte
da população. Existe uma bibliografia imensa sobre o assunto, mas para começar devemos ler
o livro Tragedy and Hope, de Carrol Quigley. O projecto de governo mundial insere-se num
movimento mais amplo, que tem por fim criar uma religião globalista (ver livro False Dawn,
de Lee Penn). Estão nisto envolvidos os grandes grupos bilionários que controlam a banca, o
sistema farmacêutico, o petróleo, a Internet, etc. Pretendem disseminar o ateísmo por todo o
lado, causando uma vaga de desespero, para depois aparecerem eles com a nova religião
salvadora, que apesar de ser uma aberração espiritual e intelectual, irá aparecer como uma
coisa perfeitamente aceitável e capaz de trazer um período de paz. Seguem a máxima de
Nietzsche, de que não basta derrubar o adversário, é necessário substituí-lo.

Devemos, como alunos do Curso Online de Filosofia, não apenas estudar estes
assuntos mas fazer um trabalho de auto-consciência e auto-crítica, para perceber a nossa
presença nesta cultura e como ela moldou a nossa psique. Um dos traços fundamentais de
qualquer cultura são os tipos de personalidade dominante. David Riesman (A Multidão
Solitária) mostrou que esses tipos mudaram bastante na sociedade americana. No período
colonial, o chamado homem tradicionalista – apegado à religião dos seus antepassados, aos
usos e costumes consagrados – era considerado o melhor representante da sociedade, aquele
que possuía mais autoridade e que obtinha mais vantagens e melhores cargos. Quase todos os
Founding Fathers tinham uma personalidade deste tipo, com excepção de Franklin e
Jefferson, que eram mais extravagantes, mas não provocavam abalo nas estruturas
institucionais. No século XIX deu-se a expansão da fronteira americana (que se confunde
com a história desse período, segundo Frederick Turner, A Fronteira na História
Americana), devido ao aumento de população, que motivava a procura de novas terras de
cultivo, mas a expansão também era uma forma de resolver problemas religiosos, com a
formação de novas comunidades (que eram essencialmente cristãs, mais alguns judeus, ver
livro de Benjamim Morris, Do Carácter Cristão das Instituições Americanas). Neste segundo
período surgiu o self-made man, que já não estava apegado às tradições e costumes e tinha a
iniciativa de fazer o que outros não queriam fazer. Era extravagante mas acabava por ter
posições de preponderância e ganhar a respeitabilidade que antes tinha o homem tradicional.
A partir do New Deal, o Estado americano começou a invadir certos sectores da sociedade e
criou-se o “homem organizacional” (ver Organization Man, de William H. Whyte), que é
104

aquela figura que se molda sem problemas às macro-organizações como uma pequena peça
sem grande iniciativa, adaptando-se às ordens e à burocracia. Este é o tipo de homem
desejado pela nova ordem mundial, fraco e frágil – e com baixos níveis de testosterona, o que
emburrece –, com um infinito cuidado consigo mesmo, querendo todos os benefícios da
economia moderna, todo o sossego e obviamente que não quer ser atormentado pela
perspectiva da própria morte. É um tipo inferior e infantilizado, que tem preocupações
extremas com saúde e beleza e não aguenta que o olhem “feio”, fazendo tudo para ser
aprovado socialmente. Este novo tipo contrasta totalmente com o self-made man, que
mesmo que actualmente ainda acabe por levar a melhor pelas suas características naturais,
tem que viver à margem da sociedade.

As necessidades de rápida adaptação do homem organizacional, que tem que


obedecer a novas normas a cada dia, só podem ser supridas mediante a concentração dos
órgãos de comunicação social, que rapidamente e de forma uniforme disseminam os critérios
de aprovação e repúdio, as formas de linguagem, os valores emergentes, etc. Quem não se
adopta à norma imediatamente vê cair em cima de si um processo de exclusão e
discriminação. A adesão às novas modas de linguagem e de comportamento não pode ser
apenas formal, tem que ser de coração ou logo chegam as acusações de hipocrisia. Estamos
numa situação de democracia totalitária, que ocorre quando o Estado é mais forte que a
sociedade, descrita por Jacob Talmon (The Origins of the Totalitarian Democracy, conceito
tirado de Rousseau). A existência de eleições faz com que à maioria das pessoas seja
inconcebível a ideia de que possam viver sob um regime totalitário, mais ou menos acabado,
também por terem a ingenuidade de achar que uma ditadura tem que ser imposta
formalmente num só acto (ou numa série de actos de grande visibilidade e em rápida
sucessão) e não mediante uma sequência prolongada de pequenas mudanças graduais mas de
grande efeito a longo prazo, que criam uma nova situação de facto embora nunca assumida.
Não existe apenas propaganda directa, porque os efeitos mais nefastos são causados pela
indução quase que inconsciente de comportamentos e sentimentos de base, assim como pela
supressão de informações e possibilidades.

A importância do voto de abstinência em matéria de opinião [32] prende-se em poder


acumular conhecimento suficiente não apenas para conhecer os assuntos mas também para
restaurarmos as possibilidades humanas que foram suprimidas da cultura, e ainda para
colmatar as nossas deficiências de personalidade – que nos levam a fazer certos julgamentos
espontâneos ou a ter um respeito indevido por certas autoridades, como o establishment
médico – advindas da nossa educação de “homens organizacionais”. Precisamos de nos
“desaculturar”, deixarmos de aceitar qualquer critério dominante como valor e resgatar os
valores de outras culturas e épocas. Fazer isto, seguindo os melhores conselhos aqui no Curso
Online de Filosofia , não leva menos que cinco anos. α36

148. Exercício de Classificação


Devemos nos habituar a classificar “sempre e tudo”. Quase todos erros decorrem de
erros de classificação, por exemplo, erros de categorização ou de critério. Erros de silogística
são relativamente raros, porque é a parte mecânica da lógica, mas a classificação depende da
nossa visão directa dos objectos, da nossa responsabilidade humana (moral, jurídica,
familiar, social). O exercício que veremos de seguida funciona como se fosse uma introdução
à lógica de Aristóteles, que não é apenas uma silogística – uma arte do discurso coerente e
105

formalmente perfeito – mas uma arte do discurso capaz de apreender algo da realidade
efectivamente existente. Ou seja, é a arte de equacionar a experiência em termos de
linguagem de tal maneira de que desta seja sempre possível remontar à experiência.

Para este exercício, partimos do local onde gostamos de estudar e vamos listar todos
os objectos ali presentes. Contudo, não vamos listar os objectos simplesmente na ordem que
nos apercebemos deles mas por espécies: móveis, adornos, ferramentas, cursos, livros, etc.
Quando passarmos para espécies mais complexa, como os livros, vamos subdividir. No
entanto, dificilmente a nossa biblioteca segue a organização de uma biblioteca pública ou
livraria, e podemos ter vários critérios de classificação cruzados (áreas do saber, utilização
actual, inclassificados, etc.). Depois de fazermos esta classificação, vamos esclarecer para nós
mesmos as chaves classificatórias que usamos. Daremos especial atenção à mudança de
chaves, por exemplo, podemos ter colocado dois livros sobre a mesma matéria em estantes
diferentes, porque usamos um critério de busca específico. Podemos depois fazer o exercício
com os objectos da nossa cozinha, mas também com fenómenos de outra ordem, com teorias,
correntes de pensamento ou estilos artísticos.

Husserl chegou a uma definição construtiva do número com exercícios deste género.
Ele definia os enlaces como os critérios pelos quais se agrupam objectos de uma classe, sendo
as classes determinadas por diferentes tipos de enlace, que, por usa vez, terão algo a ver com
aquilo que os objectos são. O número seria o enlaçar de objectos sem qualquer referência ao
que eles são, o que corresponde simplesmente ao “contar coisas”.

Aristóteles começou a classificação no campo da biologia quando percebeu que as


conclusões a que chegava para uns seres vivos valiam também para outros de estrutura
idêntica, ou seja, a classificação é o reconhecimento de afinidades objectivas entre vários
objectos. Apesar da noção de ciência ter sido criada por Platão, ela só começou de forma
sistemática com Aristóteles com esforços desta ordem. A classificação é o início de tudo,
porque ela dá o princípio de ordem. Existe um número ilimitado de chaves classificatórias
mas elas articulam-se no sistema de categorias de Aristóteles, que vai estar, por sua vez,
submetido aos predicáveis, outra chave classificatória – quando falamos de algo, estamos: a)
a dar a sua definição, que é género mais a diferença específica; ou b) estamos apenas dando o
seu género; ou c) estamos a falar de uma propriedade, que está implícita na definição.

A Teoria dos Quatro Discursos é também uma chave classificatória, classificando os


discursos segundo o seu modo de credibilidade (que ele pretende atingir, independentemente
da sua veracidade). Já a teoria dos géneros literários tem uma chave baseada nos tempos
verbais. Outra forma de classificação é a escala de Northrop Frye a respeito do poder das
personagens nas obras de ficção: a) Deus omnipotente; b) seres com propriedades divinas ou
divinamente concedidas (santos, profetas); c) personagens sem assistência divina mas com
elevadas qualidades; d) sujeitos de poder normal; e) personagens abaixo da situação. Estas
três escalas podem se cruzar e criar outras classificações, embora nem todas tenham um
propósito.

Cada classificação dá uma medida e um ponto de vista. Captamos os objectos tanto


melhor quanto os tenhamos submetido a uma tensão entre várias classificações. O exercício
filosófico ganha translucidez em relação à experiência real através do exercício de
classificação e do cruzamento de classificações. A criação de uma ciência é um trabalho
filosófico, porque uma ciência é um conjunto de chaves classificatórias, que permitem
formular hipóteses testáveis por algum meio. α36
106

149. O falso debate da modernidade


O debate na origem de modernidade [146] – que fez emergir uma nova classe
intelectual despreparada mas que tomou o lugar da intelectualidade ligada à ordem
tradicional – só de forma periférica tocou no assunto das próprias modificações que estavam
ocorrendo. Isto já corresponde a um erro de chave classificatória [148]. Mas esse erro
aumentou quando mais tarde se “encontrou” uma explicação para a transição. Num consenso
quase absoluto, todos descrevem a entrada na modernidade como o abandono do
pensamento teológico e mágico (por vezes, as duas coisas são mostradas como se fossem
apenas uma), e o abraçar de um pensamento científico e racional. Contudo, foi precisamente
na entrada da modernidade que o pensamento mágico ganhou relevância (mesmo em figuras
como Newton ou Francis Bacon) e quando a astrologia ganhou uma relevância insuspeita na
Idade Média. Os protestantes tornaram moda a interpretação das profecias bíblicas (Daniel,
Ezequiel, etc., mas também elaboraram outras) usando elementos astrológicos, porque não
queriam seguir a interpretação bíblica da Igreja Católica. Também os humanistas,
interessados pelo culto da antiguidade greco-romana, acabaram por trazer à luz a astrologia
do mundo antigo. A formação dos Estados nacionais também foi importante no processo. Os
novos governantes queriam se sobrepor tanto à Igreja como ao Império, então, fizeram-se
eles mesmos imperadores, criadores de novas religiões, de novas culturas e línguas
nacionais, e isso fez emergir uma clientela na corte que alimentou a indústria dos
horóscopos. As falsidades históricas podem se consolidar durante séculos e depois são
retransmitidas por via do ensino e de outras formas de transmissão cultural. α36

[Aula 37]
150. O pólo como símbolo do vice-regente de Deus na Terra (Suhrawardi)
Escreveu Shihab al-Din Suhrawardi (filósofo persa do século XII) no livro A Filosofia
da Iluminação:

«As palavras dos antigos [Platão e Aristóteles] são simbólicas e não abertas a
refutação. As críticas feitas ao sentido literal das suas palavras falham em apreender
as suas reais intenções, pois um símbolo não pode ser refutado. Isso é também a
base da doutrina oriental da luz [oriente aqui visto como o local de onde vem o sol,
por isso ligado à luz]. Isso é também a base da filosofia oriental da luz e das trevas,
que foi o ensinamento dos filósofos persas como Jamasp, Frashostar, Bozorgmehr e
outros antes deles [seus antecessores]. Não é a doutrina dos magos infiéis nem a
heresia de Mani [de onde vem o maniqueísmo], nem aquela que leva a associar
outros com Deus, O qual seja sempre exaltado acima de todo antropomorfismo. Não
imaginem que a filosofia existiu só nestes tempos mais recentes. O mundo jamais
esteve privado de filosofia, ou sem uma pessoa que possuísse as provas e evidências
claras em defesa dela. Essa pessoa é o vice-regente de Deus na Terra. Assim será
enquanto durarem os céus e a terra. Os filósofos antigos e modernos diferem apenas
107

no seu uso da linguagem e nos seus diferentes hábitos de abertura [uns falam no
estilo alusivo e outros em estilo directo] e todos falam dos três mundos
[temporalidade, eternidade e eviternidade ou perenidade], concordando quanto à
unidade de Deus. Não há disputa entre eles nas questões fundamentais. Embora o
primeiro professor, Aristóteles, fosse muito grande, profundo, e cheio de intuições
valiosas, não se deve exagerar o seu valor ao ponto de desprezar o seu mestre,
Platão. Entre eles estão os mensageiros e legisladores como Hermes, Asclépio e
outros. As fileiras dos filósofos são muitas, e eles podem ser divididos nas seguintes
classes: [1] um filósofo divino proficiente na filosofia intuitiva, mas ao qual falta a
filosofia discursiva; [2] um filósofo ao qual falta a filosofia intuitiva; [3] um filósofo
divino proficiente tanto na filosofia intuitiva quanto na discursiva; [4] um filósofo
divino proficiente na filosofia discursiva, mas de habilidade média ou fraca na
filosofia intuitiva; [5] um filósofo proficiente na filosofia discursiva, mas de habilidade
média ou fraca na filosofia intuitiva; [6] um estudante só da filosofia intuitiva; e [7]
um estudante só da filosofia discursiva.

Se acontecer que em algum período houve um filósofo proficiente tanto na


filosofia intuitiva quanto na discursiva, ele será o regente por direito e o vice-regente
de Deus na Terra. Se acontece que não é esse o caso, então a regência pertencerá ao
filósofo que seja proficiente na filosofia intuitiva, mas de habilidade média na
filosofia discursiva. Se essas qualidades não coincidirem, a regência pertencerá ao
filósofo que é proficiente na filosofia intuitiva, mas ao qual falta a filosofia discursiva.
O mundo jamais estará privado de um filósofo proficiente na filosofia intuitiva. A
autoridade de Deus na Terra jamais pertencerá a um filósofo proficiente na filosofia
discursiva que não se tenha tornado proficiente na filosofia intuitiva, pois a vice-
regência requer o conhecimento direto.

Por essa autoridade eu não quero dizer poder político. O líder dotado de filosofia
intuitiva pode de fato reger abertamente ou pode estar oculto na multidão, e ele é
chamado o Pólo (al-Qutb). Ele terá autoridade mesmo se viver na mais profunda
obscuridade. Quando o governo está nas suas mãos, a era é iluminada; mas quando a
era é sem regência divina, as trevas serão triunfantes. O melhor estudante é o que
estuda tanto a filosofia intuitiva quanto a filosofia discursiva; em seguida o estudante
de filosofia intuitiva; e em terceiro o estudante de filosofia discursiva».

Filosofia intuitiva é aquela que apreende a natureza simbólica dos escritos dos
filósofos antigos. Suhrawardi inclui nos filósofos também os profetas, especialmente os que
também foram legisladores, como Moisés, que tinha um conhecimento intuitivo mas não
discursivo e, devido a isso, servia-se do ser irmão Aarão para dar explicações (que falava bem
mas que não tinha conhecimento intuitivo, e por isso logo sugere voltar aos cultos antigos
quando Moisés demorou muito para voltar do monte Sinai). A noção de pólo é muito
importante, ele é o vice-regente de Deus na Terra. Não importa a autoridade exterior que ele
tenha, as coisas vão passar-se como ele diz, mesmo que ninguém perceba ou todos digam o
contrário. Platão foi um desses pólos, o que ele disse da formação dos reis-filósofos foi
adoptado na formação do clero cristão a partir do século I. Aristóteles foi outro pólo. Tudo na
filosofia anda em redor do que disseram estes dois, mesmo entre os seus opositores. A
obediência que os judeus dão a Moisés até hoje mostra que ele também é um pólo. A obra de
108

Mário Ferreira dos Santos já delimita todas as possibilidades da civilização brasileira, ainda
que ninguém o entenda actualmente.

O pólo é o indivíduo cujas palavras abrangem todo o horizonte de possibilidades de


uma época ou mesmo de várias em diante, não acontecendo nada de substantivo que não
esteja ali demarcado. O pólo é aquele que diz as verdades que os outros não podem escapar,
por mais que tentem. Mas a própria noção de pólo é simbólica, não pode ser absolutizada, ou
seja, podem existir vários pólos ao mesmo tempo, com autoridades limitadas
geograficamente, além de que a autoridade pode variar bastante, um século, vários, milhares
de anos.

Suhrawardi diz que os escritos antigos eram simbólicos e, por isso, não abertos a
refutação. Isso não implica que não tenham um aspecto discursivo (exposição literal), que
pode ser levado à discussão mas apenas depois de apreendido o seu sentido simbólico. Já
dizia Susanne Langer que o símbolo é uma matriz de intelecções, e são estas que podem ser
expressas em linguagem discursiva e sujeitas a refutação. As sumas de São Tomás de Aquino
são normalmente lidas de forma convencional, como uma série de teses individuais a serem
discutidas, mas elas foram construídas com a estrutura das catedrais, são obras de arte a
serem contempladas de forma a nos abrirmos para o mundo divino que simbolizam. Platão já
facilita este trabalho porque inicia os diálogos destruindo uma série de ideias correntes e
depois responde com um mito, que alude de forma simbólica à verdade, porque apenas a
linguagem divina pode expressar a verdade. α37

151. A noção de forma em Aristóteles


Um exemplo de falta de compreensão intuitiva [150] é feito por Xavier Zubiri, que
apesar da sua elevada competência não conseguiu apreender a natureza simbólica dos
escritos de Aristóteles, pelo menos numa ocasião que veremos. Aristóteles falava da alma
como forma do corpo, o princípio que determina todo o nosso ser. Zubiri considera
insustentável considerar a alma como o acto substancial que determina quase todas as
propriedades de uma matéria-prima indeterminada. Ora, não lhe parece que as funções
vegetativas ou sensitivas sejam conferidas à matéria pela alma, mas antes que é o plasma
germinal que vai determinar a psique, e só quando existir um psiquismo superior, este
poderá determinar o organismo.

Em primeiro lugar, a forma, como entendida por Aristóteles, é o conjunto inteiro das
estruturas compondo um ser na totalidade da sua existência, estando eminentemente ligada
à causa final e não a causas eficientes (que vão determinando as várias modificações do ente
em cada etapa), ao contrário do que Zubiri tem por pressuposto. Depois, ele está a criar um
dualismo ao descrever duas fases: primeiro tudo depende de factores físico-químicos (causa
eficiente) e, a seguir, as funções assim criadas retroagem sobre o composto físico-químico e
passam a orientá-lo (causa final que, de forma misteriosa, passa a determinar a conduta do
corpo). Aristóteles não faz esta divisão, ele refere-se a uma forma integral, em que as etapas
anteriores só podem ser explicadas em função do resultado último a produzir. Ele dizia que a
finalidade do ser humano era a conquista das faculdades superiores, a vida contemplativa, do
espírito, pelo que toda a formação físico-química tem que ser compatível com isto (tal como
um violino tem que ser compatível com as peças escritas para ele, mas nunca acharemos
nenhuma composição apenas investigando o instrumento). As actividades superiores do
espírito nunca poderão ser explicada pela formação físico-química, nem mesmo pela
109

fisiologia cerebral, que não poderá determinar o conteúdo de um pensamento, embora tenha
que ser compatível com este.

O conhecimento e as actividades superiores do espírito dão-se numa relação entre a


actividade cerebral e outra coisa que não é cérebro, que é o próprio objecto. Aristóteles teria
de ser um idiota para achar que a alma produz todas as transformações físico-químicas, diria
antes que a alma funciona como um pólo de atracção. Para Aristóteles, Deus não é um motor
que continua empurrando o mundo criado, ele fala de Deus como o primeiro motor imóvel, é
uma causa final que rege tudo por atracção: existe a atracção da forma final, para o qual tudo
tende; a forma da beleza divina atrai a matéria. Mas existe esse Deus que tudo atrai? Os
cientistas modernos vão dizer que tudo se explica por um big-bang. Mas para ter acontecido
algo, há uma fórmula matemática implícita, e pouco importa que as leis físicas desses
primeiros instantes não sejam as mesmas de hoje, porque alguma lei haveria. O Logos divino
é precisamente o conjunto das fórmulas matemáticas de tudo o que pode acontecer (fórmulas
matemáticas eternas que regem o mundo inteiro da possibilidade). A existência do Logos
divino é, na verdade, a base de todo o conhecimento possível, de toda a ciência. É o “mundo
dos princípios”, do qual podemos ter um vislumbre se chegarmos ao topo das filosofias de
Platão e Aristóteles. Sem isto por pressuposto já estamos em total alienação, porque
acreditamos em leis humanas expressas em fórmulas matemáticas que, por sua vez, são
criação meramente humana, ou seja, a pretensa objectividade conduz à total subjectividade.

É um erro grosseiro pensar que os filósofos antigos construíram uma série de teses,
que nós podemos pegar e derrubar a nosso bel-prazer. Eles abriram-nos um mundo
simbólico que determinou as possibilidades cognitivas da espécie humana por muitos
séculos, e só a este nível podemos entendê-los. α37

[Aula 38]
152. O perdão como lei constitutiva do universo
Qualquer conteúdo filosófico pode ser transmitido de várias formas. Num primeiro
nível encontra-se a exposição poética, que é um compactado com várias possibilidades
embutidas, exercendo um certo impacto emocional mas fica por aí, já que a maioria das
pessoas não vai escavar as várias possibilidades e pensará que existe apenas aquele primeiro
nível. A terminar a mensagem de Natal de 2009, Olavo de Carvalho escreveu:

«O perdão não é um ato raro e excepcional, que quase às escondidas ludibria a


ordem cósmica em nome do amor paterno. Ele é a lei fundamental do universo, a
base mesma de toda existência».

Isto pode parecer uma figura de linguagem mas tem uma doutrina rigorosa por trás.
Se considerarmos o universo inteiro, num dado instante, como um sistema fechado, ele está
sujeito à Segunda Lei da Termodinâmica, assim, concluímos que caminha para a extinção.
Contudo, aparecem sempre novas possibilidades (existe expansão, nascem estrelas, etc.) pelo
que algum factor compensa a entropia, e é algo que não pode vir do próprio universo, o que
seria auto-contraditório. Além da existência material, tem que haver o conjunto da
110

possibilidade (limitado apenas pela sua própria estrutura). Existem coisas acontecendo que
são novas e não poderiam ser deduzidas logicamente das propriedades já dadas, que são
injectadas a partir do conjunto da possibilidade universal, da qual a lógica humana e a
metafísica são uma tradução longínqua. O universo não pode ser fechado, existe
continuamente um resgate do finito pelo infinito, e o perdão é a tradução disto na escala
humana. Na nossa vida, vamos esgotando as nossas possibilidades terrestres, mas isso não
corresponde a um esgotamento das nossas possibilidades na esfera da eternidade, e isso é o
perdão. α38

153. Superação (Nicolae Steinhardt)


Diz Nicolae Steinhardt, no livro O Diário da Felicidade:

«Entrei cego na prisão (...) e saio com os olhos abertos; entrei mimado, luxento, saio
curado de caprichos, afetações, presunções; entrei insatisfeito, saio conhecendo a
felicidade; entrei nervoso, impaciente, ultra-sensível a bobagens, saio sereno (…)».

Mais adiante, no capítulo “Três Soluções”:

«Para sair de um universo cerrado, e não é necessário de modo algum que seja um
campo de concentração, prisão ou uma outra forma de encarceramento, pois a
teoria se aplica a qualquer tipo de produto do totalitarismo (...)

Primeira solução – a de Solzhenitsyn. Em O Primeiro Círculo, Aleksandr Isayevich a


menciona rapidamente, voltando a ela no primeiro volume do Arquipélago Gulag.
Essa solução consta, para quem passa pelo limiar da Securitate [a polícia secreta, a
KGB romena] ou qualquer outro órgão análogo de inquérito, em dizer a si mesmo,
com decisão: 'neste exato instante morro mesmo'. Permite-se dizer a si próprio,
consolando-se: 'pobre da minha juventude, ou pobre da minha velhice, da minha
esposa, dos meus filhos, de mim, do talento, ou dos bens ou das minhas forças, da
minha amada, dos vinhos que já não beberei, dos livros que já não lerei, do passeios
que já não farei, da música que já não ouvirei, etc,.' Mas algo é seguro e irreparável:
doravante sou um homem morto. Se pensar assim, sem hesitação, o indivíduo está a
salvo. Já não se pode fazer nada contra ele. Já não tem nada com que ele possa ser
ameaçado, chantageado, iludido, enganado (...)” – assim por diante, você desistiu de
tudo...

A segunda solução – a de Alexandr Zinoviev, é encontrada por um dos personagens


do livro As Alturas Ocas [Abissais]. O personagem é um jovem apresentado com um
apelido alegórico de 'O Rebelde'. A solução reside na total inadaptação ao sistema. 'O
Rebelde' não tem domicílio certo, não tem documentos, não está no mercado de
trabalho, é um vagabundo, um parasita, um pobretão e vadio. Vive de hoje para
amanhã do que se lhe dá, do que aparece, de bagatelas. É maltrapilho, trabalha ao
acaso, às vezes, quando e se aparece uma oportunidade. Passa a maior parte do
tempo em prisões, ou campos de trabalho forçado, dorme em qualquer lugar,
vagabundeia. Não entra no sistema por nada deste mundo, nem mesmo no serviço
111

mais insignificante, mais inútil, mais desengajado. Não se mete nem mesmo a pastor
de porcos.

Terceira solução – a de Winston Churchill e de Vladimir Bukovsky. Resume-se ela: Em


presença da tirania, da opressão, da miséria ou das adversidades, das desgraças, das
calamidades, dos perigos, não só não te abates, mas ao contrário, tiras delas a
vontade louca de viver e lutar. Em março de 1939, Churchill disse a Marta Bibescu:

– Vai haver guerra! Pó e pólvora vão ser feitos do Império Britânico, a morte nos
espreita a todos. No entanto, sinto-me rejuvenescer vinte anos. Quanto mais as
coisas vão mal para ti; quanto mais imensas são as dificuldades; quanto mais és
ferido, mais cercado e submisso aos ataques; quanto mais não entrevês nem sequer
uma esperança probabilística racional; quanto mais o cinzento, a escuridão e o
viscoso se intensificam, se inflam e se enredam de modo mais inextricável; quanto
mais o perigo te desdenha mais diretamente – tanto mais tem desejo de lutar e
conhece um sentimento crescente de inexplicável e eminente euforia.

Com a solução de Churchill se identifica também a solução de Vladimir Bukovsky.


Este conta que quando recebeu a primeira convocação na sede da KGB, não pôde
fechar os olhos durante toda a madrugada. 'Coisa natural' – dirá consigo o leitor do
livro de memória dele – 'coisa mais que natural: insegurança, medo, emoção.' – Mas
Bukovsky continua: 'Não pude dormir é de impaciência. A custo esperava para que se
fizesse dia para estar perante eles para dizer-lhes tudo o quanto penso deles e entrar
neles como um tanque de guerra. Não podia imaginar felicidade maior para mim».

Estas soluções são saídas também para quem vive num meio espiritualmente e
intelectualmente compressivo. O “homem morto” experimenta a vida, como mostrou o
exemplo de Solzhenitsyn, assim como o marginal não tem que se humilhar, porque sabe que
é um aristocrata e que apenas está excluído do meio por excesso de capacidade. Os filmes da
vida do samurai Miyamoto Musashi mostram que ele também passou por estas três fases:
sempre se deu por morto nos duelas; atacou uma academia inteira quando desafiado; e, no
fim, afastou-se da sociedade e de toda a lisonja.

A nossa situação é opressiva mas não corremos os riscos de um samurai ou de um


preso político no tempo da União Soviética. Podemos ter muito amor pelas pessoas que nos
rodeiam mas não podemos depender delas para nada. Se alguém nos quiser ajudar, podemos
aceitar, até dinheiro, mas o benfeitor não terá qualquer autoridade sobre nós, ele só cumpre a
sua obrigação, não temos de ter qualquer sentimento de dívida. O único critério que nos deve
nortear é o senso do dever que temos a cumprir, e isto dá-nos uma hierarquia de julgamento
para cada acto. Uma forma de nos corromperem é com acusações injustas, o que nos motiva
a exagerarmos as nossas virtudes. Portando, nunca devemos nos defender mas sim atacar de
volta, nunca dar justificações ao acusador. Temos de ter autoridade sobre os maliciosos e
humilha-los se for necessário, mas sempre por razões objectivas, como dar um exemplo
público, mas nunca por estarmos com raiva. α38
112

[Aula 39]

154. A restauração da linguagem


A restauração de uma verdadeira intelectualidade começa com a restauração da
língua, incidindo inicialmente no essencial, que é o sistema de verbos. O português falado no
Brasil perdeu duas pessoas verbais, que são as segundas pessoas do singular e plural (tu,
vós). No lugar do “tu” ficou o “você”, que é uma expressão indirecta (conjugada como a
terceira pessoa), o que cria rodeios na linguagem, tornando-a cada vez mais complicada. A
linguagem popular muda muito rapidamente e tem uma validade geográfica e grupal muito
limitada. Ela mesma necessita da linguagem formal da alta cultura. Apenas através desta
linguagem elaborada é possível comunicar realidades subtis e estados de alma (até a nós
mesmos). A abolição desta linguagem constitui uma crise antropológica, porque corresponde
à perda de certas capacidades humanas que foram consolidadas na civilização durante
milénios. A restauração da linguagem implica ter consciência da evolução da mesma, ou seja,
devemos conseguir identificar o que é próprio da linguagem do séculos XIX, XVIII e assim
por diante. α39

155. O elemento moral implicado na vida intelectual


O principal obstáculo ao progresso intelectual é de natureza psicológica e moral, ou
seja, trata-se de ter a estrutura de carácter apropriada. Avançar no conhecimento é saber algo
que os outros não sabem, e isso coloca-nos na posição que referia William Hazlitt, onde as
desvantagens da superioridade intelectual tornam-se patentes. A primeira coisa para a qual
os alunos devem se preparar é para a solidão e incompreensão das pessoas que lhe estão mais
próximas. Se o conhecimento é obtido na solidão, Goethe já dizia que o carácter se aprimora
na agitação do mundo. Não são duas coisas separadas, porque se não tivermos uma
personalidade adequada, também não teremos a resistência necessária para o aprendizado.
Então, podemos encontrar pessoas que sabem discorrer verbalmente sobre Kant ou Hegel
mas que não conseguem arcar com a responsabilidade do conhecimento que possuem e,
assim, tornam-se caricaturas. Mesmo se continuarmos a lidar com as mesmas pessoas de
antes, temos de compreender que passamos a ter responsabilidades para com elas, enquanto
elas não têm qualquer obrigação de nos entender, somos nós que temos de as compreender.

Só podemos amadurecer quando assumirmos esta diferença de nível de consciência


para com os outros. É característico do homem maduro necessitar de pouca afeição e de
pouca compreensão mas, ainda assim, conseguir dar muito destas coisas. O desejo de
aceitação revela falta de consistência, incerteza, e depois somos tentados a buscar algum
modelo externo que nos dê a forma que não conseguimos encontrar interiormente. É natural
que uma criança busque isto nos pais ou que um adolescente procure isto no mundo, onde
tenta afirmar o seu poder. Contudo, as sociedades modernas criam condições materiais e
psicológicas que permitem levar a adolescência até aos 50 anos, como apontou Erik
Homburger Ericsson. A integração na sociedade dá-se, por um lado, na inserção num grupo
com valores, aspirações e gostos semelhantes, depois, pela confirmação segundo algo visto
como autoridade, seja a escola, o Estado, a igreja, o partido, etc. Mas as instituições estão
todas em crise – o rabino Marvin Antelman mostrou no livro To Eliminate the Opiate que o
judaísmo encontra-se em crise interna desde o século XIX; por outro lado, a Igreja foi partida
ao meio com o Concílio Vaticano II; o Islão tem apenas uma ortodoxia vigente, que é uma
espécie de teologia da libertação; a Igreja Ortodoxa está contaminada pelo KGB; os
113

protestantes vivem exigindo um moralismo atávico uns dos outros em público; o budismo
tem a triste sombra do Dalai Lama a lisonjear os chineses –, o que apenas intensifica a busca
da confirmação pela autoridade.

Não temos que nos entregar ao guiamento de instituições mas procurar pelos nossos
próprios meios o desenvolvimento intelectual e a formação de carácter, porque a estrutura
humana não foi revogada, as nossas capacidades continuam a existir e só temos que exercê-
las. Pouco importa que ninguém concorde connosco ou sequer perceba o que dizemos,
porque a única autoridade realmente válida é o Logos Divino, Cristo, a razão divina que
governa o mundo. Podemos dizer que esta se reparte em duas. Por um lado, há a tradição
religiosa, que não foi totalmente rompida quando falamos de sacramentos. Por outro lado,
existe a autoridade da evidência, que exige um treinamento para obtermos certeza pessoal
das coisas. Só com esta prática podemos ingressar numa comunidade atemporal e encontrar
os grandes sábios. Não precisamos mais do que dois ou três pontos de certeza para vivermos
com muita segurança e firmeza. α39

[Aula 40]
156. As inversões revolucionárias em Karl Marx
Veremos exemplos de paralaxe cognitiva e de mentalidade revolucionária, tal como
manifestados em Karl Marx. Qualquer leitura de textos filosóficos deve começar por uma
impregnação totalmente ingénua, onde nos deixamos impregnar por aquelas coisas como se
fossem a própria verdade, como se fossem os factos a falarem, e depois logo decidimos de que
modo aquilo pode ser considerado verdade, porque nada pode ser absolutamente falso. Além
disso, há certos conhecimentos que o indivíduo tem de possuir para poder escrever o que
escreveu e que também podemos fazer sobressair na leitura.

A paralaxe cognitiva é o deslocamento entre o eixo da construção teórica e a


experiência real que serviu de base a esta construção. Entende-se aqui a experiência que seja
pertinente à construção, ou seja, aquela que se refere à situação cognitiva real dentro da qual
o indivíduo faz a sua construção. Não se trata, então, de qualquer deslocação entre o texto e a
realidade mas apenas quando o texto contradiz a realidade vivida de onde ele emergiu.
Quando assim é, o texto é uma camuflagem e apenas pode ser visto como uma obra de ficção,
podendo, nesse caso, até simbolizar certas realidades mas não aquela que está a ser falada.
Isto é apenas o início da esquizofrenia da modernidade, e quando chegamos a Voltaire e a
Diderot observamos já a mendacidade assumida e sistemática, embora ainda não estejamos
em presença de exemplos de mentalidade revolucionária (que já tem a paralaxe cognitiva
embutida) acabada, dado que não eram pensadores favoráveis à centralização do poder. A
mentalidade revolucionária aparece, por um lado, nas primeiras heresias cristãs da
modernidade, ainda sem formar um sistema coerente e, por outro lado, no movimento
socialista dentro da Revolução Francesa, atingindo a expressão mais plena em Karl Marx.
Neste, já temos claramente as três inversões revolucionárias: inversão do sentido do tempo;
inversão da relação sujeito-objecto; e a inversão da responsabilidade moral.
114

Marx tem uma enorme dívida para com Hegel, que fez a transição da paralaxe
cognitiva para a mentalidade revolucionária. Hegel diz que a estrutura da realidade é
composta de espírito, Geist, algo que ninguém sabe muito bem o que é. O espírito manifesta-
se através da criação da Natureza, mas opera isso fazendo uma negação dele mesmo. O ser,
inicialmente compacto e abstracto, vai se tornando concreto através da realização da
natureza, que começa por ser a negação do próprio ser, uma espécie de criação do seu oposto.
O puro espírito criando a Natureza – seu oposto – vai se alienando dela, pelo que existe um
conflito entre espírito e Natureza que perpassa toda a História humana e se manifesta nas
várias formas humanas de alienação. Não adianta perguntar o que é o espírito/ser porque ele
é idêntico ao nada antes da sua manifestação concreta na Natureza, mas se ele fosse
realmente idêntico ao nada não teria poder algum de se determinar. A competência que
Hegel mostra em algumas matérias faz com que este “lapso” pareça ter sido introduzido
deliberadamente. Contudo, ele acerta, ao prosseguir, quando descreve o processo histórico
como a manifestação de um espírito que transcende esse mesmo processo, porque o sentido
de uma coisa nunca se pode esgotar nela mesma. A premissa Hegel é absurda mas também
desnecessária para o conjunto. O acto da negação de si mesmo feito pelo espírito, que cria a
alienação do espírito (do qual o afastamento que os seres humanos vivem de si mesmos é um
sinal), será, por sua vez, negado com a criação do Estado perfeito – o culminar da História
humana, que não era para Hegel um Estado totalitário mas algo como o Estado leigo
democrático moderno –, onde tudo é reintegrado ao espírito e volta a reinar a identidade do
ser consigo mesmo.

Karl Marx ficou muito impressionado com isto e acreditou poder expor o conjunto da
História como uma dialéctica interna aplicada não a uma mera ideia, como o espírito, mas à
esfera dos factos reais de ordem material. Assim, tornou-se natural para ele o estudo da
economia (no livro O Capital), onde Marx analisa a extracção de matérias-primas, a sua
transformação mediante produção e comercialização. Paralelamente, Marx tinha aderido ao
movimento socialista muito novo, acreditava numa imensa transformação político-social, que
criaria um estado paradisíaco, chamado socialismo ou comunismo. De certa forma, Marx não
tinha de descobrir nada mas criar uma justificação para as ideias a que já tinha aderido (o
socialismo e a dialéctica de Hegel), faltando apenas combiná-las. Desde logo, o Estado final
de Hegel, leigo e democrático, é substituído pelo socialismo. O Capital, redigido durante
décadas, é uma tentativa de justificar economicamente as ideias a que Marx tinha aderido na
juventude sem ter qualquer justificação. Marx pode discutir tudo, mas dá por certa a
identificação do socialismo com o fim da História, e aí já está dada a inversão do tempo. A
dialéctica de Hegel é também explorada por ele para encontrar a dinâmica do processo
económico, e é aqui que a atenção de Marx iria estar focada.

Karl Marx é um exemplo muito claro das inversões revolucionárias, que aparecem
quase em cada página d’O Capital. As descrições que ele faz são uma inversão do que ele via,
mas não pode ser sempre mentira consciente, há mesmo uma percepção invertida. A leitura
de Marx é sempre difícil, aqui fica uma parte em que ele fala da mercadoria:

«Se deixarmos fora de exame o valor de uso das mercadorias [existe o valor de uso
para quem compra e o valor de troca para o comerciante] elas só têm uma única
propriedade em comum, que é a de serem produtos do trabalho. Mas mesmo o
produto do trabalho em si mesmo sofreu uma mudança nas nossas mãos. Se fazemos
abstração do seu valor de uso, fazemos abstração ao mesmo tempo dos elementos
materiais e formais que tornam o produto um valor de uso. Já não vemos então uma
115

mesa, uma casa ou qualquer outra coisa útil. A sua existência como coisa material foi
posta fora do nosso horizonte de visão. Ela já não pode ser encarada como produto
do trabalho do pedreiro ou de qualquer outro operário. Junto com as qualidades
úteis dos produtos mesmos colocamos fora do horizonte de visão tanto o caráter útil
dos vários tipos de trabalho incorporados neles. Portanto, nada sobrou senão aquilo
que é comum a todas as mercadorias; todas são reduzidas a uma e única espécie de
trabalho: o trabalho humano em abstrato».

O trabalho abstracto incorpora-se na mercadoria e faz dela um valor de troca. Mais


adiante:

«Um valor de uso ou artigo útil só tem valor porque nele foi incorporado o trabalho
humano em abstrato».

É ao contrário do que ele diz, e contradita até o que ele disse anteriormente. O
trabalho humano abstracto é aquele que não tem em conta as suas diferenças, é apenas um
cálculo hipotético tomando como base as várias modalidades de trabalho irredutíveis entre si
e materialmente irredutíveis a um trabalho comum. O trabalho abstracto realmente não
existe; a relação que existe entre ele e as suas várias modalidade não é a mesma que entre
uma espécie animal e os seus vários exemplares. Por exemplo, a espécie gato só existe
corporizada nos gatos reais. Já as várias modalidades de trabalho não são redutíveis umas às
outras, apenas são unificadas por um mesmo nome porque elas produzem ou ocasionam (o
resultado do trabalho pode não ser um produto, pode ser um serviço) um valor. Ou seja, não
podemos falar de trabalho se ninguém está interessado em pagar pelo seu resultado. Mas
Marx diz que é o contrário, que é o trabalho que produz não apenas o valor de troca mas
também o valor de uso. Isto é a mentalidade revolucionária em acto fazendo a inversão de
sujeito e objecto.

Podemos ainda ir mais longe para ver até que ponto é o valor que dá a medida do
trabalho. Considerando o exemplo de uma mina, na óptica do trabalho em abstracto, quem
escava os minerais deveria ser o dono da mina. Contudo, estes trabalhadores só por si nunca
descobririam a mina. Para isso existe o geólogo, que irá ficar milionário com a descoberta.
Ainda assim, ele vai ter que dar uns 80% do negócio a um banqueiro, para este lhe dar o
capital para montar o negócio. Então, existe um valor associado a cada coisa: ao trabalho
manual de escavação, à investigação do geólogo, ao capital investido e à própria mina em si.
É, de resto, o valor da mina que possibilita as várias modalidades de trabalho ali envolvidas.
Em tudo isto está implícita a figura do consumidor, que é a chave de todo o processo e sem o
qual todo o trabalho é inconsequente.

Diz Marx mais adiante:

«Como, portanto, pode ser medida a magnitude desse valor? Claramente pela
quantidade da substância criadora do valor, isto é, o trabalho, contida no artigo,
naquele bem. A quantidade de trabalho, no entanto, é medida pela sua duração, e o
tempo de trabalho encontra o seu padrão em semanas, dias e horas».

Sendo o valor de uso aquilo que o consumidor pretende fazer com o produto ou
serviço, nunca isso pode ser derivado das horas de trabalho que aquilo levou a ser produzido.
Ele estava tentando descrever a origem do valor e chega a uma conclusão inversa do que
estava propondo:
116

«O poder total de trabalho de uma sociedade, que está incorporado na soma total
dos valores de todas as mercadorias produzidas por essa sociedade, conta aqui como
a massa homogénea de poder de trabalho humano».

Isto é esquecer que toda a massa de trabalho humana só foi feita tendo em vista um
valor, que deriva da possibilidade de consumo.

Marx fala também do fetichismo da mercadoria. Para ele, cada mercadoria tem uma
certa quantidade de trabalho incorporada, que determina o seu valor e que será levado em
conta na troca. Assumindo a actividade comercial a figura de um intercâmbio de mercadorias
(coisas) e não de trabalho, entra-se na alienação do trabalho e a mercadoria torna-se num
fetiche, como se ela agisse por si. Então, é como se a relação entre mercadorias substituísse a
relação entre seres humanos que depositaram ali o valor das coisas, mediante o trabalho. Mas
quem troca ouro por petróleo acha que as mercadorias estão trocando-se entre si e perdeu a
consciência do trabalho que deu para extrair cada um? Novamente Karl Marx faz a inversão
de sujeito e objecto, e observa na sociedade aquilo que ele mesmo criou com o seu método.
Foi ele que separou mentalmente a mercadoria do seu valor de uso e da quantidade específica
de trabalho nela depositado, sobrando assim apenas o trabalho abstracto. Só quem faz esta
separação pode ver mercadorias trocando-se entre si, como se fossem dotadas de vida
própria. Ele mesmo começa por dizer que o seu método se baseia na abstracção e depois
parece não querer arcar com as consequências disso. Mais um parágrafo complicado:

«De onde, pois, emerge o caráter enigmático do produto de trabalho tão logo ele
assume a forma de mercadoria? Claramente, é dessa forma mesma».

Enigmático para Marx, que considera fetiche aquilo que não entende, mas depois
passa a acreditar nesse fantasma que ele criou:

«A igualdade em todos os tipos de trabalho humano é expressa objetivamente pelos


seus produtos, quando são todos igualmente valores. A medida do poder de trabalho
pela duração desse desempenho de trabalho toma a forma de quantidade de valor
dos produtos do trabalho [repete a fórmula errada de que a quantidade de trabalho
toma a forma do valor do trabalho]. A mercadoria, portanto, é uma coisa misteriosa,
simplesmente porque no caráter social do trabalho dos homens aparece para eles
com um caráter objetivo estampado no produto desse trabalho porque a relação dos
produtores para a soma total do seu próprio trabalho é apresentada a eles como
uma relação social que existe não entre eles, mas entre os produtos do seu
trabalho».

O preço é precisamente o acordo a que se chega entre a apreciação feita pelo


consumidor, tendo em conta o valor de uso, e a ponderação feita pelo comerciante, tendo em
conta o trabalho ali embutido. Só Marx e os seus seguidores vêm mercadorias se trocado
entre si. Segue com conclusões ainda mais fantasiosas:

«Existe uma relação social definida entre homens, a qual assume aos olhos deles a
fantástica forma de uma relação entre coisas».

Mas não foi Marx que expressou a relação económica como uma relação entre coisas
para fins de cálculo estatístico? Ele vê as coisas assim, porque toma o método pela coisa, não
os trabalhadores, consumidores ou capitalistas. É Marx que confunde o facto com a sua
117

medição. A sua mente está invertida e é a própria inversão que se tornou para ele num
fetiche. Quando entramos dentro da alucinação criada por Marx, é difícil sair, porque não são
apenas ideias erradas, que em si poderiam logo despertar contestação, é a indução de
percepção invertida. Noutro pedaço do livro:

«Não é o dinheiro que torna as mercadorias comensuráveis, bem ao contrário, é


porque todas as mercadorias, enquanto valores, são trabalho humano realizado, e,
portanto, comensurável, que seus valores podem ser medidos um pelo outro
conforme a mesma mercadoria especial, o ouro, por exemplo».

Quer ele dizer que é mais fácil medir entre as várias espécies de trabalho humano,
usando a duração, do que medir uma mercadoria pelo valor de troca de outra. À primeira
vista parece fácil medir a quantidade de trabalho, que seria apenas a soma de uma
quantidades de tempo, mas nunca ninguém usou essa medida como unidade de comércio,
sempre se usou o valor de outra mercadoria (“tantas vacas correspondem a x gr de ouro”, por
exemplo). Contudo, nisto entra o dinheiro como intermediário, que não é uma mercadoria e
tem outras propriedades.

«É claro que as mercadorias não podem ir ao mercado e se trocar umas pelas outras
por si mesmas. Precisamos, portanto, recorrer aos seus proprietários. As mercadorias
são coisas, portanto, sem poder de resistência contra o homem. Se elas são carentes
de docilidade, ele pode usar a força, em outras palavras, ele toma posse delas. Para
que esses objetos possam entrar em relação uns com os outros, enquanto
mercadorias, esses proprietários precisam se colocar em relação uns com os outros
[para que uma mercadoria se troque por outra, os proprietários têm que entrar em
relação um com o outro] enquanto pessoas cuja vontade reside nesses objetos e
devem se comportar de tal modo que cada um não se aproprie da mercadoria do
outro, exceto mediante mútuo consentimento. Eles precisam, portanto,
mutuamente, reconhecer um ao outro os direitos de proprietários privados. Essa
relação jurídica, que assim se expressa em um contrato, quer seja esse contrato
parte de um sistema legal desenvolvido, ou não, é uma relação entre duas vontades
e não é senão o reflexo da relação econômica real entre os dois. É esta relação
econômica que determina o conteúdo compreendido neste acto jurídico».

Marx reconhece a existência do contrato jurídico, mas vai dizer que este é
subordinado à relação económica (expressa-se nela). Contudo, o mero intuito de vender algo
já é um aspecto jurídico, que é definido pela bilateralidade atributiva (Miguel Reale): o
direito que tenho de esperar que se eu fizer certa coisa, o outro faça outra. Então, compra e
venda já é uma relação jurídica, tendo um contrato implícito. Ela não existe apenas na
presença de economia extractivista (extracção e consumo) mas está sempre presente quando
há troca, não é uma superestrutura em cima da relação económica. A relação jurídica, em
suma, é a fórmula lógica da relação económica. Isto levanta a questão sobre o que é o
dinheiro, dizendo uns que é uma unidade de medida, outros (como Marx) que é uma
mercadoria pela qual se avaliam o valor de outras mercadorias, mas isto são, por assim dizer,
propriedades, que só podem existir porque o dinheiro é, acima de tudo, um documento que
atesta um contrato, ou seja, é um fenômeno de ordem jurídica e não económica.

Diz Leszek Kolakowski (The Main Currents of the Marxism):


118

«(…) como vimos, a característica essencial do capitalismo, aos olhos de Marx, era
sua necessidade ilimitada de multiplicar valor de troca, o apetite insaciável pelo
aumento de si mesmo pela exploração do trabalho. O capital é indiferente à natureza
dos bens específicos que ele produz ou vende».

Esta indiferença pode existir apenas para o investidor anónimo, mas não para quem
dirija uma empresa ou seja um acionista maioritário. É o método abstracionista de Karl Marx
que faz com que, no final, reste apenas o capitalismo como regra do jogo, que, como tal, é
indiferente aos vários géneros de mercadorias. Mesmo os banqueiros que, na sua profissão,
podem se alhear bastante das mercadorias por onde passa o seu capital, não podem ter esta
indiferença enquanto consumidores. Marx fala do capitalismo como regra do jogo tal como
podemos falar das regras do xadrez, que são indiferentes a quem ganhe a partida, mas ele
pretende que essa regra também explique os jogadores, como se eles também fossem
indiferentes a quem ganha ou perde.

Marx enuncia ainda a sua Teoria da Mais-valia, que diz que o empresário vende o
produto segundo o valor do trabalho incorporado mas só pagará uma parte àqueles que
realizaram esse trabalho. Ele pressupõe um valor fixo do trabalho que pode medir tudo o
resto, o que já vimos ser absurdo, dado ignorar aquilo que os consumidores estão dispostos a
pagar. α40

[Aula 41]
157. A tradição primordial e a escola tradicionalista
Enquanto a arte religiosa expressa sentimentos ocasionais e concepções
culturalmente localizadas, a arte sacra é uma cristalização de certos princípios ordenadores,
universais e transcendentes a todo o condicionamento histórico e cultural (ver Le
Symbolisme du Temple Chrétien, de Jean Hani). Não só a arte sacra desapareceu no
ocidente, como aquilo que ela veiculava também foi sendo erodido do horizonte de
consciência da modernidade, só tendo sido recuperado, em parte, devido aos trabalhos de
pessoas como Mircea Eliade, Ananda Coomaraswamy, Matila Ghyka, Schwaller de Lubicz,
Mary Hambidge, Louis Charbonneau-Lassay, René Guénon, Frithjof Schuon, Titus
Burkhardt, Seyyed Hossein Nasr ou Martin Lings. Por trás dos símbolos presente em vários
templos (catedrais góticas, templos hindus, templos egípcios, etc.) aparecem certas
“constantes do espírito”, preceitos que condensam todo o saber simbólico sobre a ordem da
realidade geral e sobre a posição do homem nela, que são a moldura da possibilidade de uma
História humana. Os diversos símbolos apareceram de forma historicamente independente,
mas apontam para a mesma realidade. As “constantes do espírito” têm uma acepção
kantiana, como se fossem constantes embutidas no sujeito cognoscente e não na estrutura da
realidade. Elas são supra-históricas, mas a pretensão de nada dizerem sobre a realidade
também é falha, como é particularmente visível no templo de Luxor, onde Lubicz mostrou
que os egípcios já tinham bastantes concepções científicas. Então, estas constantes reflectem
leis objectivas que presidem ao conjunto da realidade, incluindo a História e o espírito
humano.
119

O conjunto destes conhecimentos pode se designar como “tradição primordial”,


conceito que pode significar uma ordem que não pode ser perdida por mais que a ignorância
progrida, dado se tratar de uma ordem divina que estrutura a ordem cósmica, e esta, por sua
vez, vai estruturar a ordem humana. Outro sentido destra tradição é a de algo que seria
mantido por um sacerdócio, secreto ou discreto, continuado por meio de iniciações e com
sede secreta algures no oriente, num local que René Guénon e outros chamam de agartha.
Nada comprova esta segunda acepção, a não ser a vontade de querer fazer parte de uma
tradição secreta, além de que o primeiro sentido torna desnecessário a manutenção de um
conjunto de conhecimentos por via de um sacerdócio, porque todos sabemos que estamos
num espaço estruturado em seis direcções, que existe luz e trevas, tempo e espaço, o apeiron
de Anaximandro, etc. Estas coisas podem ser esquecidas (e assim aumenta a autoridade da
ciência materialista, a que os próprios religiosos recorrem na esperança de obter legitimação
para a sua fé), mas qualquer um que preste um pouco de atenção à realidade pode recuperá-
las. Louis de Maistre no livro L’Enigme René Guénon, torna bastante claro que o sacerdócio
iniciático de que fala Guénon é uma coisa forjada. Este podia apenas ter se valido da sua
inteligência metafísica para ter escrito as suas obras-primas, como o Homem e seu Devir
Segundo o Vedanta, O Simbolismo da Cruz, Símbolos da Ciência Sagrada, O Reino da
Quantidade e os Sinais dos Tempos e Os Princípios do Cálculo Infinitesimal.

Os intelectuais que vieram restaurar parte da tradição sagrada eram quase todos
exteriores à tradição cristã. Contudo, Jean Borella, apesar de ligado à escola tradicionalista,
mostrou que aquilo que René Guénon apresentava como fonte oriental já estava no
cristianismo, e o próprio Mário Ferreira dos Santos fez isso também. Contudo, durante a
consagração do Iluminismo, muito deste conhecimento se perdeu mesmo, tendo algum
passado para sociedades secretas, ao passo que os intelectuais cristãos não conseguiam
acompanhar o que estava acontecendo. Então, os conhecimentos voltaram para o ocidente,
vindos do oriente, na mão de pessoas como René Guénon, Schwaler de Lubicz, Frithjof
Schuon, Titus Burckhardt, Whitall Perry, etc. Apesar de muitos conhecimentos valiosos que
trouxeram, algumas ideias veiculadas por eles não podem ser aceites de todo. Guénon fala de
um esoterismo cristão, por exemplo, que estaria vivo na maçonaria e na companheiragem.
Mas não há traços efectivos da maçonaria antes do séc. XVI, além de que Cristo disse
explicitamente que não ensinou nada em segredo (Schuon aqui diverge de Guénon e diz que
as iniciações cristãs estão nos próprios sacramentos da Igreja).

Sem a arte sacra não é possível fazer uma ascensão fiel até obter um vislumbre das
realidades espirituais últimas. Dizia Platão que a beleza é a forma da verdade; sem a beleza a
prática religiosa cai numa obediência literal, grosseira, e a arte religiosa torna-se mero
adorno, pouco importando que seja entregue a ateus porque o resultado será idêntico. Apesar
da existência de Deus ser, nomeadamente em São Tomás de Aquino, matéria de
conhecimento e inteligência racional, a arte sacra é o suporte que permite uma visão mais
intuitiva da doutrina sagrada. Além disso, na tradição antiga considerava-se que tudo o que
acontece no mundo físico como sendo símbolo de realidades divinas, ou seja, a compreensão
simbólica da natureza permitia entender o mundo divino por trás: tudo é feito pela mediação
dos símbolos e, perdida essa linguagem, os factos da natureza passam a ser observáveis
apenas de acordo com os critérios das ciências modernas. Nestas, a matemática é apenas
vista como um auxiliar de medição e como uma ferramenta de obter constantes e relações,
enquanto no entendimento antigo o próprio número não designava apenas uma quantidade
mas também uma forma lógica: “1” é a unidade, “2” a dualidade, “3” a forma ternária, etc.
Podemos nos aprofundar neste assunto no livro A Sabedoria das Leis Eternas, de Mário
120

Ferreira dos Santos, onde ele diz que os números não são apenas formas lógicas mas
estruturantes da realidade. Ele criou uma “decadialéctica”, que no fundo já estava nos
escolásticos, e que consiste em enfocar um tema (um ente, um problema, etc.) sob dez formas
lógicas sucessivas: primeiro como unidade; depois como dualidade ou oposição; de forma
ternária ou estrutura silogística-dialéctica; como quaternário, ou seja, como proporção, etc.

Perdida a linguagem simbólica, o sentido simbólico continua existindo apenas como


figura de linguagem, poesia ou criação cultural. Estes já não têm força para expressar a
estrutura da realidade, menos ainda o mundo divino por detrás. Os entes da natureza passam
a expressar apenas os pequenos sentimentos do autor. Mas se recuarmos até Dante, cada
palavra podia ter dez significados, tudo montado num sistema simbólico coerente e unitário,
tal como na estrutura das catedrais ou na arte sacra. Daí, Bernanos dizer que Victor Hugo era
um “anti-Dante”. Apesar da visão antiga ser muito mais rica do que a moderna, ainda assim o
povo conseguia acompanhá-la, havendo apenas uma diferença de grau nos grandes criadores
e intelectuais. Já na ciência moderna tudo se torna ininteligível aos leigos e nada é
comunicável com o universo da experiência humana corrente, sendo até possível negar
significação às teses científicas. Husserl, no livro A Crise das Ciências Europeias e a
Fenomenologia Transcendental, vai dizer que as ciências perderam o fundamento da sua
própria cientificidade, tornam-se apenas regras de jogo, válidas para os profissionais da
área, mas que não lhes sabem dar significação.

Falta aos cristãos não a fé mas uma consciência clara dos seus fundamentos
cognitivos inabaláveis. A doutrina é um primeiro andar para esses fundamentos, e se
estudarmos São Tomás de Aquino ou Santo Agostinho obtemos um suporte intelectual, mas
isto é pouco, havendo num segundo andar o simbolismo das formas sensíveis da arte sacra,
incluindo as sumas medievais, que têm uma estrutura artística que veicula simbolicamente
realidades que a própria doutrina não consegue explicitar por palavras. Para captarmos isto,
temos de contemplar as sumas tal como fazemos com as catedrais. Também a Divina
Comédia tem uma estrutura de versos e acentuações semelhante à estrutura das catedrais. O
ponto de partida deve ser estético, por assim dizer, e uma vez impregnado o símbolo, ele vai
gerar múltiplas intelecções em nós e estas, uma vez articuladas, formarão um objecto de
contemplação, que terá ele mesmo um sentido simbólico.

Não há melhor expositor do simbolismo sagrado que o próprio René Guénon.


Contudo, para ele a Igreja já tinha perdido tudo e o conhecimento válido só se manteria em
sociedades esotéricas e, em última análise, nas tariqas sufi, de que ele próprio fazia parte (o
Islão aparece, na concepção de Guénon, como “chave de abóboda” para as várias práticas
religiosas). De qualquer forma, a abertura intelectual que os tradicionalistas providenciam,
trazendo um esboço de uma abertura metafísica para a realidade, não contém a presença
pessoal do Logos encarnado, nem a sua reverberação nos milagres, como os atestados pela
vida do padre Pio. Cristo é a verdadeira chave de abóboda, não o Islão, e se os elementos da
ciência sacra são exaltados em si mesmos, então, perdem o seu verdadeiro sentido e vão
servir certos fins, nomeadamente o de querer passar a ideia de que o cristianismo é apenas
mais um elo da tradição primordial, apenas vivente em tradições esotéricas. O leitor é, então,
convidado a procurar algum tipo de “iniciação” e a desenvolver as ilusões mais extravagantes.
Mas, em última análise, os tradicionalistas preconizam que é historicamente impossível a
restauração da civilização cristã e só resta islamizar o ocidente, nomeadamente por
intermédio das tariqas. Esta é uma estratégia que antecede em muitas décadas a política
islâmica de usar a emigração e o terrorismo. As tariqas activas neste processo pegam nas
121

energias espirituais e criativas que ainda existem nas várias religiões, mantém as estruturas
externas das mesmas e colocam o sheik muçulmano por cima, como se fosse uma espécie de
papa supra religioso.

Se lermos livros como Comprendre l’Islam (Frithjof Schuon) ou Ideals and Realities
of Islam (Seyyes Hossein Nasr) teremos uma visão idílica e mitificada do Islão, nada
condizente com o homem bomba ou com a “teologia da libertação” de Sayyd Qutb. Pode se
argumentar que isso é apenas uma crise do Islão exotérico, mas como quer o Islão esotérico
salvar a cristandade se nem sequer consegue ajudar a sua versão exotérica? Na realidade, a
actuação das tariqas não se opõe ao imperialismo islâmico, até o protege, por exemplo, na
actuação do príncipe Charles, discípulo de Martin Lings (sheik na tariqa de Schuon depois da
morte deste).

Em suma, os livros essenciais para nos introduzirmos no simbolismo sacro são O


Simbolismo do Templo Cristão (Jean Hani), A Crise do Simbolismo Religioso (Jean Borella),
How to Read a Church (Richard Taylor) e Símbolos da Ciência Sagrada (René Guénon),
mas tendo cuidado com este último quando ele começa a falar da tradição primordial e das
iniciações secretas, porque já está a entrar na fantasia. α41

[Aula 42]
158. O papel interventor dos alunos do Curso Online de Filosofia na
sociedade
Os alunos do Curso Online de Filosofia devem ter sempre presente o senso da miséria
do ambiente à sua volta, e ter a noção de que é melhor ficar no vazio e sem referências por
algum tempo do que recorrer a alguma referência local para parecer igual aos outros ou para
parecer dotado de comunicabilidade (algo que não existe realmente hoje em dia). Então, não
há que ambicionar ter um papel na cultura brasileira com o intuito de participar na conversa
no nível que ela tem hoje. É preciso criar outras funções, inventar novos meios de actuação;
não temos que nos amoldar em nada ao presente estado de coisas. Não devemos tentar fazer
algo que seja compreendido pelo presente meio académico, mas fazer coisas que só serão
realmente compreendidas por pessoas como nós, que existirão no futuro. Podemos intervir
pontualmente no debate actual, para denunciar certas pessoas, mas a preocupação
fundamental é criar um outro debate acima deste, que irá se sobrepor ao actual e, pelo seu
peso, fará este ceder. Para melhorar substancialmente o presente debate, teria de haver nele
uma raiz do que é bom, mas esta condição não se cumpre. O ambiente em que vivemos não
está apenas corrompido, ele é também corruptor.

O trabalho que os alunos virão a realizar poderá inspirar a futura classe política (esta
é uma das suas funções dos alunos em alguma medida), mas é preciso distinguir a função
intelectual da função política, incluindo a do mero debatedor de ideias. A esquerda sempre
soube disto: os seus intelectuais não procuravam convencer as massas mas preocupavam-se
em gerar as possibilidades de uma política. α42
122

159. Os problemas do conhecimento científico


A mecânica quântica é uma das conquistas mais respeitáveis do mundo da ciência,
tendo uma validade estatística que foi confirmada inúmeras vezes. Contudo, ninguém sabe o
seu significado. Talvez a teoria quântica só possa averiguar probabilidades e nunca chegará a
uma explicação, ou então existe uma lei ou regularidade ali por trás desconhecida, e ainda é
avançada, por vezes, a hipótese da existência de mundos paralelos intervindo ao mesmo
tempo nos fenómenos quânticos, com leis heterogéneas e incompatíveis entre si, o que
conduz à total incoerência. Então, pode dizer-se que todas as possibilidades estão abertas,
pelo que isto não é verdadeiro conhecimento mas um problema cognitivo. Temos uma
descrição cada vez mais exacta de processos que não compreendemos, e se isto passar a ser o
modelo de investigação, então, a falta de significado torna-se no padrão supremo do
conhecimento. Mas esta incompreensão não impede a aplicabilidade da “coisa” (porque
algum conhecimento existe, só não tem associado o seu sentido e alcance) numa infinidade
de ramos, daí se gerando uma série de factos histórico-sociais, que serão ainda mais
incompreensíveis. Então, a confiança que a sociedade moderna deposita na ciência moderna
é um fetiche.

O conhecimento que se pode extrair de uma ciência moderna é bastante problemático,


porque esta se define como uma série de limites: 1) pelo conjunto de fenómenos a serem
observados; b) pelo campo de manifestação onde os fenómenos serão estudados; c) pelas
perguntas a serem feitas; d) pelos métodos a serem usados; e) pelas conclusões que se podem
tirar. Idealmente, as várias ciências corresponderiam a divisões objectivas dentro da
estrutura da realidade (ontologias regionais, como definiu Husserl), nomeadamente a que
corresponde à divisão entre ciências da natureza e ciências humanas (do espírito), mas não
sabemos se realmente é assim. A ontologia (teoria do ser) seria a ciência que estudaria estes
assuntos e fundamentaria as ciências mas, como é um campo da filosofia tido como uma
espécie de crença, as ciências modernas desprezam-na, por se acharem o supra-sumo do
conhecimento. É como se um fundamento irracional (a delimitação meio arbitrária do campo
da ciência) desse origem a um fenómeno que é o cúmulo da racionalidade. A não ser que se
parta de uma ontologia decente, não há garantia alguma de que a irracionalidade das
escolhas iniciais não se propague por todo o edifício.

Apesar da busca do conhecimento ter uma parte bastante visível de intercâmbio e


actividade colectiva, o detentor do conhecimento é sempre o indivíduo humano concreto.
Todas as descobertas científicas ou filosóficas, assim como as criações artísticas, são sempre
feitas por um sujeito e só depois outros tomam conhecimento disso. Então, o modelo de
conhecimento científico baseado num conjunto de medições verificáveis por toda uma
comunidade, dentro de condições aceites convencionalmente por esta, não pode ser um
modelo de conhecimento em hipótese alguma. Os fundamentos de cada ciência não podem
ser discutidos pelos métodos da mesma, pois chega uma altura em que os resultados colocam
os fundamentos em causa e a ciência entra em crise. Assim, é necessário rever esses
fundamentos já fora dessa ciência, o que significa voltar à filosofia da qual a ciência se julgava
independente. A filosofia é uma reflexão racional sobre a experiência acessível, incluindo as
experiências recortadas das ciências, abrangendo também os campos específicos recortados,
incluindo os motivos culturais, psicológicos, valorativos, acidentais e outros que
determinaram a escolha inicial. Só ela pode dar alguma estruturação à actividade científica.
α42
123

160. O método confessional e o testemunho


Todo o nosso conteúdo de pensamento e todo o conhecimento só podem derivar ou da
percepção sensível (interna ou externa) ou da imaginação (imagens ou esquemas conceptuais
baseados nestas). O nosso pensamento não tem capacidade de dizer realidades (e só podemos
dizer o que pensamos), pelo que se coloca o problema de saber qual é a ligação entre o
pensamento e a realidade. Na ciência experimental usa-se o simples critério de verificar se há
coincidência entre o que é dito e aquilo os outros podem observar a respeito. Mas apenas
recortes muito parciais, cuja selecção é conhecida por todos os observadores, podem ser
usados num controlo colectivo como este, não se trata da realidade. Um outro caminho é o
método confessional, onde me coloco como a ligação entre o meu pensamento e a realidade,
porque não sou um pensamento mas uma realidade que se oferece a si mesma como prova do
que está dizendo: eu sou realmente o sujeito que está dizendo isto. E sei qual é o lugar que
isto ocupa no conjunto dos meus pensamentos, assim como o meu coeficiente de ignorância a
respeito. Em suma, o método confessional é um assumir da responsabilidade presencial do
que dizemos. O testemunho do outro realmente não interessa, porque nunca irá comprovar a
veracidade do que estamos dizendo.

Contudo, não falamos apenas como indivíduos mas também como membros da
espécie humana. Então, pela nossa experiência sabemos identificar aquilo que depende da
nossa individualidade e aquilo que é representativo da estrutura humana geral em nós, ou
seja, conseguimos distinguir no nosso discurso o puramente individual daquilo que é
universal na medida em que vivenciamos a universalidade na nossa condição humana.
Apenas este método assegura a verdade mesmo, embora dificilmente daqui saia uma prova
colectiva. Mas ninguém pode falar com Deus colectivamente, apenas através da confissão
solitária. α42

[Aula 43]
161. A diferença entre ciência e tecnologia
Em ciência tenta reduzir-se a multiplicidade dos fenómenos à unidade de um
princípio. Ainda que esse princípio não seja logo conhecido, tem que haver inicialmente
alguma noção dele, dado que constitui a base do recorte dos fenómenos a observar. Mas
podemos nem ter uma explicação desse princípio, por exemplo, podemos unificar vários
fenómenos debaixo do nome de “electricidade”, embora ninguém saiba o que seja uma carga
eléctrica. Qualquer ciência busca sempre reduzir diferentes aparências, propriedades ou
acidentes a uma substância única; é sempre a redução do múltiplo ao uno, sendo acessórios
os procedimentos e os conceitos usados para isso.

Já quando se aborda a noção de técnica, estamos a pensar num procedimento inverso


ao da ciência. Na técnica, várias correntes causais conhecidas são unificadas num objecto ou
num processo tendo em vista à produção de um determinado resultado. Aqui, uma corrente
causal pode ser conhecida apenas empiricamente, importando apenas saber como usá-la para
desencadear uma causa e produzir um efeito. Então, na técnica produz-se um efeito e não um
conhecimento, sendo o princípio unificador o próprio resultado, pelo que não se trata de
124

forma alguma de um conhecimento. As várias correntes causais utilizadas na produção de


qualquer coisa não são conhecidas de forma idêntica, são também heterogéneas e, por isso,
não podem se unificar num princípio comum de base de ordem cognitiva. Para fazer um
computador precisamos de química, electromagnetismo, ciência da informação, entre outros,
mas nenhuma ciência explica todas estas coisas ao mesmo tempo sob um princípio comum.

Uma ciência alcança o seu objectivo quando enuncia uma proposição que, idealmente,
explica e unifica o campo inteiro dos fenómenos que estuda. Contudo, a técnica fica
consumada quando produz o efeito, objecto ou processo desejado. A confusão entre ciência e
tecnologia provoca muitos erros, como tentar fazer crer que o avanço da tecnologia valida a
ciência por supostamente ser motivado por esta. Contudo, o movimento ocorre geralmente
no sentido oposto, ou seja, os objecto são produzidos sem ter ainda uma explicação razoável
de todos os seus componentes e é a sua existência que auxilia, mais tarde, a busca dos
princípios científicos que os explicam. α43

162. A proposta da filosofia


Teoria filosófica é, para simplificar, uma concepção do mundo a que se chega por
reflexão mais ou menos crítica a respeito da experiência pessoal e da experiência alheia, com
a qual tomamos conhecimento através da educação, da cultura, de depoimentos alheios, etc.
Quando a concepção de mundo – a que se chega por reflexão, usando também diversos
outros meios – é explicitada por palavras, numa forma que está à altura das exigências da
tradição filosófica, ela pode se denominar formalmente uma filosofia. Para resumir: uma
filosofia é uma concepção do mundo criticamente fundamentada.

Para construir essa concepção do mundo não podemos apenas nos servir de
elementos sobre os quais tenhamos um controlo crítico total, como acontece com os
conhecimentos de uma ciência consolidada. Iremos usar também sugestões metodológicas
destas ciências, elementos da nossa experiência pessoal (que podem ser bastante subjectivos
e incomunicáveis), símbolos extraídos da linguagem cotidiana ou de alguma tradição cultural
ou religiosa, e assim por diante. Estas coisas não podem ter por trás um princípio comum que
as explique ao mesmo tempo, nem poderá a filosofia, quando chegar à sua fase expositiva,
conseguir explicar todos os elementos contidos nela, apenas fornecerá um certo senso de
orientação no conjunto do conhecimento tal como ele chegou ao filósofo. Há muitas coisas
implícitas no texto e há ainda aquilo que o filósofo continuou a experienciar e a reflectir
depois de terminar as suas obras. E existem ainda os casos das grandes filosofias, como as de
Platão e de Aristóteles, que continuaram depois da morte destes, já que eles deixaram
inúmeras sementes de pensamento a serem desenvolvidas.

Contudo, quando o filósofo escreve uma obra, ele não oferece aquilo como um
produto para ser consumido em si, como acontece com um resultado habitual da técnica. O
escrito filosófico é apenas um intermédio entre duas experiências humanas – a que motivou o
filósofo e a que o leitor reconstrói por analogia, tentando-se aproximar da primeira –, que
permanecem largamente inexpressáveis. Os próprios conceitos que o filósofo usa têm
frequentemente muito mais do que um simples conteúdo, que poderia ser evocado mediante
um automatismo memorativo. Podem condensar toda uma tradição de discussões e só
revivendo esse historial podemos entender o que se esconde por trás do texto. Ou seja, o
conteúdo de uma filosofia não é totalmente dizível, e uma filosofia propriamente dita não se
confunde com a obra escrita derivada. Já se considerarmos uma obra de arte, apesar de esta
125

poder evocar inúmeras coisas, em si mesma é somente aquela coisa que se apresenta, seja a
música executada, a pintura na tela ou a escultura, e não podemos dizer que a verdadeira arte
se esconde por trás destas coisas.

O estudo filosófico não visa a construção de uma filosofia mas educar ou construir o
filósofo. As obras de filosofia e o seu ensino almejam transformar os leitores em aprendizes
de filósofos. Se os livros de filosofia forem bem lidos, isto de certa forma torna-se inevitável,
porque a leitura obriga a refazer experiência cognitivas análogas às do autor, e isto já é
exercer filosofia. A filosofia é uma técnica destinada a fazer do estudante um filósofo. Na
realidade, o filósofo nunca escreve para não filósofos. E quem entra na filosofia não pode
escolher problemas mais acessíveis e deixar os mais difíceis para depois, porque mesmo sem
percebermos já estamos metidos no meio dos problemas mais intricados. O mero uso da
palavra “substância” já trás um mar de problemas atrás, por exemplo.

O objectivo da filosofia é criar filósofos, que são as pessoas capacitadas para articular
conhecimento e consciência. Se tomarmos o conhecimento como algo que pode ser registado
de forma fixa, por exemplo, numa equação, falta saber o que isso significa. Podemos começar
por explicitar os termos utilizados, e uma compreensão a este nível chega para passar num
exame e talvez até para desempenhar uma profissão. Contudo, para o filósofo, o sentido da
coisa é a sua fundamentação, a sua razão de ser, as consequências que aquilo tem para o
conhecimento em geral, para a vida humana e para as demais ciências, e até mesmo
averiguar as implicações possíveis para a concepção do mundo em geral. Obviamente que isto
extravasa o âmbito de qualquer ciência. No caso da mecânica quântica, temos uma descrição
muito aperfeiçoada de um conjunto de fenómenos para os quais não encontramos uma
explicação.

Existe a utopia de juntar as várias áreas do conhecimento numa interdisciplinaridade,


que supõe que os vários campos científicos estão apenas separados uns dos outros no espaço.
Acontece que cada ciência estuda os objectos num certo nível e âmbito, os enfoques são feitos
em faixas diferentes de realidade. Por exemplo, a física atómica e a biologia, mesmo que
possam colaborar esporadicamente, lidam essencialmente com faixas de realidade
incomensuráveis. Para colocar as várias áreas do conhecimento em diálogo efectivo seria
necessário ter sistemas classificatórios da realidade que fossem do “elefante à partícula
subatómica”, mas que incluíssem ainda uma armadura conceptual de conhecimentos e
entidades meramente possíveis, caso contrário não teríamos lugar para colocar as coisas. Ou
seja, seria necessária uma metafísica (entendida como uma armadura geral de todos os
conhecimentos possíveis), uma vez que não se poderiam usar conceitos obtidos por método
experimental. Mas como a metafísica é também uma criação humana, seria necessário saber
qual a relação entre ela e o sujeito que a criou, ou essa armadura conceptual ficaria a pairar
como uma fantasmagoria e tudo pareceria como estando fazendo parte de um sonho. Além
disso, esta metafísica não abrangeria a explicação das suas condições culturais e históricas de
criação, teria que haver ainda um outro conhecimento. Quem concebesse isto tudo – uma
metafísica absoluta – estaria automaticamente a dizer que a o seu discurso era obrigatório
para toda a humanidade, porque se qualquer ciência possui uma autoridade específica, então,
a metafísica absoluta pressupõe a máxima autoridade que se pode dar a um ser humano.

Estas questões são básicas para a investigação científica mas transcendem o próprio
conjunto das ciências. Ponderá-las, exige uma articulação entre a consciência, o
conhecimento e o conjunto de propriedade aceites como verdadeiras. Articular tudo isto é a
proposta da filosofia. α43
126

[Aula 44]
163. A acumulação de registos de conhecimento
Existe uma enorme acumulação de registos de conhecimento, mas sendo eles
inacessíveis, no seu conjunto, ao ser humano, não são propriamente conhecimento.
Frequentemente, acabam por ser, para a inteligência humana, tão opacos como o próprio
mundo físico. Este, em si, já constitui um imenso depósito de registos de conhecimento, que
necessitam apenas de ser descodificados, o que muitas vezes é mais fácil de fazer do que
descodificar certos registos humanos sobre o mesmo enfoque. Para além destes registos
naturais – a linguagem embutida nos seres da natureza – existem também os registos
históricos, que não foram criados tendo em vista uma finalidade científica mas para servirem,
essencialmente, propósitos práticos. Existem ainda os registos da vida cognitiva. Os vários
tipos de registo humano são objectos – livros, documentos, micro-filmes e assim por diante –
e não conhecimentos. Não podemos armazenar pensamentos, apenas signos visíveis que,
uma vez decifrados, podem idealmente fornecer conhecimento àquele que os decifrou.

A capacidade de decifrar esses registos não pode ser transmitida geneticamente ou


por simples impregnação cultural. Cada geração tem que aprender tudo de novo, por isso não
podemos falar num progresso substantivo do conhecimento, é apenas uma figura de
linguagem que não corresponde a nada que seja reconhecível. A capacidade de lidar com os
registos é obtida essencialmente pela transmissão cultural, mas esta também opera em
grande parte mediante novos registos. A acumulação de registos é tão grande que um
especialista numa determinada área pode não entender nada de uma área “ao lado”. α44

164. O peso da ignorância


Dentro das coisas que não podemos saber, existem algumas que são indiferentes às
nossas investigações e outras que são pertinentes. Por exemplo, sabemos apenas fragmentos
de uma coisa tão importante como a história no nosso “eu”, que tem necessariamente uma
continuidade. Conseguimos lembrar apenas uma percentagem ínfima dos nossos
pensamentos do dia anterior. Também não temos capacidade de remontar muito na história
da nossa família e apenas o conseguimos fazer de forma esquemática, mas sabemos que
necessariamente existiram gerações sucessivas para estarmos agora aqui, assim como
sabemos que toda a nossa hereditariedade estará em jogo numa verdadeira relação sexual
onde entremos. Identificamo-nos com os nossos sentimentos e impulsos de base, mas eles só
podem ser realmente nossos quando tivermos um “eu” e fizermos um arranjo entre vários
impulsos, que até se podem contradizer. Mas as escolhas que fazemos, que vão dando forma
à nossa personalidade, lidam com elementos que podemos desconhecer totalmente mas que
estão em nós.
127

Se a existência concreta do indivíduo, que tem uma continuidade física no tempo e no


espaço, depende de factores desconhecidos, esta ignorância é bastante acentuada em coisas
como a cultura ou a ciência, que não têm uma existência e unidade orgânica mas resultam de
inúmeras escolhas e empreendimentos feitos por sujeitos separados no do tempo. O conjunto
dos conhecimentos humanos tem apenas uma continuidade analógica e muito parcial.
Podemos discernir linhas de continuidade analógica, que podem ser intencionais ou apenas
causais, mas nunca uma continuidade total, porque a cultura não é um organismo. Pode
parecer que é uma coisa orgânica quando as coisas são vistas desde uma certa distância e sob
determinada perspectiva, como fez Oswald Spengler. O que chamamos de “conhecimento do
mundo” é apenas uma série de descontinuidades quase caóticas, embora possa ser feita uma
selecção sobre o conjunto e este aparentar estar bem ordenado, precisamente porque a
escolha seguiu a figura final que se procura. α44

165. Exercício do Mapeamento da Ignorância


O problema da continuidade real e da descontinuidade dos nossos pensamentos e
conhecimentos [164] já foi tratado de muitas formas, mas aqui no Curso Online de Filosofia
iremos transformar isto numa prática educacional. Para qualquer assunto que estivermos
estudando, iremos compor imaginariamente, dentro da estrutura do nosso conhecimento
sobre o assunto, aqueles lugares que estão “vazios” relativamente: 1) àquilo que jamais
poderemos saber mas teremos de ter em conta como “zona de escuridão”; 2) àquilo que
podemos conhecer mas é muito difícil de conhecer; 3) àquilo que podemos conhecer e não é
difícil mas ainda precisa de ser investigado.

Fazendo este mapeamento, obtemos um senso de consistência do nosso


conhecimento. O conhecimento só ganha significado face à ignorância, ou seja, quando
contrasta com o círculo de ignorância inteiro dentro do qual um pedacinho de conhecimento
aparece recortado. Podemos fazer isto para a história da nossa família, elaborando a lista das
personagens dos quais sabemos algo mas desconhecemos os eventos importantes que devem
ter acontecido. Podemos também fazer esta prática para qualquer assunto que estejamos a
estudar, imaginando as lacunas possíveis, e aí teremos uma perspectiva mais adequada sobre
o recorte de conhecimento que dominamos. Mais adiante, podemos fazer especulações sobre
o círculo de ignorância de uma determinada ciência, incidindo nos factores importantes para
o seu desenvolvimento e que ela nunca poderá ter acesso.

Todos os elementos que constituem o ignorado possuem alguma unidade interna ou


não existiriam, tudo tem uma continuidade. Mas também não há uma pura continuidade,
porque há coisas que acabam e não acontecem mais, além de existirem descontinuidades
entre processos que não se relacionam de forma alguma. A continuidade permite captar
descontinuidades. Uma vez que todas as coisas têm continuidade, logo, também têm uma
identidade, que é o jogo de permanência e mudança que existe em tudo o que acontece. Um
fenómeno totalmente ininteligível nem sequer poderia ser percebido. Tudo o que o captamos
é alguma coisa, é uma essência, pelo que tem de ter uma estrutura racional interna e um
princípio inteligível, por mais misterioso e desconhecido que nos seja. Podemos ignorar o
desconhecido precisamente porque confiamos que ele é inteligível. Vivemos num campo
ilimitado de inteligibilidade, do qual só inteligimos um pedaço, mas como temos o
conhecimento da inteligibilidade universal, não precisamos de conhecer tudo para validar a
128

parte que já conhecemos. A inteligência humana faz parte desse campo: ela é a capacidade de
inteligir o inteligível, o que quer dizer que o nosso modo de presença é tal que as coisas se
mostram a nós.

Embora só haja existência individual – em lado algum vemos uma substância


genérica –, todos os entes são inteligidos sob categorias universais. A essência que cada coisa
é não está limitada a uma manifestação em particular. Captamos uma estrutura genérica e
universal nos entes singulares, mas esta estrutura não está fisicamente presente em parte
alguma só por si. Então, vivenciamos as coisas ao nível de uma universalidade que as coisas
só por si não mostram, e sem isto não haveria base para o conhecimento humano. Mas para
algo existir não basta somente ter uma forma essencial, é preciso que esta tenha uma
manifestação concreta no espaço e no tempo. Como a nossa inteligência se exerce dentro do
campo da inteligibilidade geral, ela não está separada das coisas, é também um campo onde
as coisas se reflectem e onde as relações entre coisas ganham maior visibilidade do que aquilo
que é dado pela presença delas. A mente humana junta coisas que estão separadas
existencialmente mas unidas essencialmente, sempre de acordo como o modo de presença
das próprias coisas, ou seja, as relações universais que captamos não estão apenas na nossa
cabeça mas estão presentes na realidade, depositadas nas coisas sob a forma de inteligência
passiva, que se actualiza quando as inteligimos. Em suma, estamos dentro de um campo
infinito de inteligibilidade essencialmente adequado à nossa inteligência, não podendo ser
existencialmente adequado porque não podemos realizar esta inteligibilidade de modo total.

Os antigos sistemas mitológicos faziam uma elaboração simbólica da unidade e


inteligibilidade do cosmos, tomado simultaneamente em todos os seus níveis de existência.
Isto já é conhecimento válido porque se trata de uma expressão inteligível, não tem que ser
considerada uma coisa inexacta ou que tenha de estar à espera de ser validada
cientificamente. Não podemos conhecer individualmente todos os elementos inteligíveis,
porque são em número infinito, e nem sequer podemos nos preocupar apenas com os
processos estudados pela ciência, que só são praticáveis na estrutura da razão. Só nos resta a
abertura para o campo da inteligibilidade universal, que toma a forma do fascínio, do
maravilhamento, do amor e da devoção. A inteligibilidade universal não se pode tornar num
simples conceito dentro da nossa mente, não a podemos dominar mas podemos permitir que
ela nos domine e continue a inspirar a inteligência. Ela é o próprio Logos divino presente em
todas as coisas, e não pode ser substituída pela simples ideia de Natureza, que só contém
objectos e não tem em si a possibilidade da sua própria inteligibilidade, que não é um
elemento puramente físico e material. Ideias substitutivas como a da “mãe Natureza” podem
parecer cientificamente respeitáveis mas são formas atrofiadas da inteligência humana. α44

[Aula 45]

166. Características específicas da cultura brasileira


O Império Romano já tinha uma remota inspiração religiosa, que podemos ver
retratada na Eneida, de Virgílio. Depois da sua queda, os senhores de terras refugiaram-se
nos seus domínios e daí surgiram os feudos. Não havendo mais um governo central, uma lei
ou uma administração pública, a Igreja entrou como um factor unificador da Europa, ao
129

ponto de podermos dizer que as nações europeias foram fundadas pela Igreja. Também
vemos que no médio oriente, na Índia e extremo oriente, todas as sociedades têm origem
religiosa, é sempre uma casta de clérigos que funda as civilizações. No sentido medieval,
clérigo não é apenas o sacerdote mas qualquer homem culto imbuído de espírito religioso.
Também eram clérigos os fundadores dos EUA, com a excepção de Jefferson e Franklin. A
base da sociedade americana eram as comunidades independentes protestantes, que se
autogovernavam e tinham apenas o Evangelho como lei, como bem retratou Alexis de
Tocqueville no livro A Democracia na América.

Contudo, o território brasileiro é bastante agreste e inóspito em comparação com o


norte-americano. Só os homens mais arrojados e brutais conseguiam ter sucesso e todos os
privilégios, como ter dezenas de mulheres e um sem número de descentes. Isto encontra-se
documentado por José Lins do Rego nos seus romances e também por Paulo Prado, em O
Retrato do Brasil, assim como por Capistrano de Abreu, em Capítulos de História Colonial.
Foram os homens arrojados e brutais que criaram a sociedade brasileira, e de resto apenas
um punhado de jesuítas exerceu alguma acção moderadora. Não havia administração
colonial no tempo de D. João VI, apenas fazendas num regime de tipo feudal, largamente
baseadas na escravidão. Para piorar a situação, no século XVIII o Marquês de Pombal
conseguiu acabar com os jesuítas, o que foi trágico para os países de cultura católica. Os
imperadores brasileiros eram nominalmente católicos mas efectivamente maçons, o que
permitiu a existência da Igreja mas com uma acção muito limitada. Durante o século XIX não
era possível abrir escolas religiosas ou fundar novas ordens. Gilberto Freyre observou que a
religiosidade brasileira era uma coisa essencialmente estética e festeira, e o papa João Paulo
II disse que os brasileiros são católicos no sentimento mas não na fé, ou seja, percebeu que se
tratava de uma religiosidade muito frágil e que em nada influenciava a conduta real.

Neste contexto, só poderiam existir dois tipos de intelectual. Por um lado, aqueles
protegidos pela classe dominante, a quem lisonjeiam de forma despudorada de modo a
ocuparem todos os lugares relevantes. Por outro lado, existiam os marginalizados, vivendo de
empregos infames e sempre sofrendo pela “injustiça no mundo”. Existiam talentos em ambos
os grupos (por exemplo, Machado de Assis e Otto Maria Carpeaux nos marginalizados) mas,
a longo prazo, a situação existencial acabaria por corromper uns e outros. Os primeiros
acabaram por fazer uma literatura que é um “sorriso da sociedade”, e os segundos, aos
poucos, foram achando que a produção intelectual era secundária em relação à colaboração
ou adesão a movimentos políticos “empenhados” em corrigir os males do mundo, que era
uma vingança contra a exclusão que eles se viam votados. Assim, gradualmente, os
intelectuais de esquerda abdicaram dos seus deveres e passaram a buscar uma legitimação
existencial na mera aprovação solidária dos seus companheiros de militância, processo que
foi apressado com a expansão da universidade nos anos 40 do séc. XX. Ali criaram-se os
intelectuais em sentido gramsciano, que são activistas políticos sem qualquer obrigação
mental específica, apenas diferenciados pela instrumentalização da sua actividade em prol da
causa esquerdista, como está documentado n’O Imbecil Coletivo. Entretanto, a casta
gramsciana acabou por chegar ao poder, no governo de Fernando Henrique, tendo se
consolidado no tempo de Lula, em que a incultura do presidente passou a ser celebrada como
prova dos seus méritos sublimes ou mesmo como denunciando um carisma profético. Assim,
ficou consagrada a completa destruição da vida intelectual e da educação no Brasil.

Sobreviver afectivamente num meio assim pode parecer difícil, contudo, os problemas
afectivos deviam ficar resolvidos para quem já tem uma família e um cachorro. Depois, temos
130

o próprio ambiente do Curso Online de Filosofia, que possibilita inúmeras partilhas. De


resto, temos que seguir a regra de Goethe: “Um homem deve ser digno, prestativo e bom”.
Devemos ser bons para todos mas nunca ter a ilusão de que todos podem ser nossos amigos.
À medida que adquirimos conhecimento e consistência interior, também teremos ganho
distanciamento, indiferença e até um senso de superioridade, que não serve para nos
envaidecer mas para termos noção das nossas obrigações. α45

[Aula 46]
167. As bases do aprendizado
Não podemos expressar a nossa experiência directamente, temos de o fazer com a
mediação da herança cultural que se interpõe entre nós e a experiência, fornecendo
instrumentos para transmutarmos uma coisa na outra. O aprendizado do processo de
verbalização é complexo e exige um mediador, que começa por ser o ambiente familiar, e
depois prolonga-se na escola e na herança cultural. Na situação brasileira, o aporte fornecido
pela herança cultural é muito pobre tanto em termos quantitativos como em termos
qualitativos, com muitos esquemas repetitivos e vinculados aos interesses da elite cultural do
momento. Acresce ainda que os educadores no Brasil foram muito influenciados por Piaget,
que considerava no aprendizado apenas dois elementos: o sujeito e o objecto. Ele é um
educador que parece desconhecer a existência de professores, porque achava que a relação
entre a criança e o mundo era directa. Num contexto assim, a absorção da tradição cultural
sai diminuída, limita-se à aquisição de um série de automatismos lógicos, gramaticais e
semânticos. As pessoas vão utilizar estes automatismos para o resto da vida, pensando que
aquilo é pensar, quando não é, e menos ainda é aprender. Seja qual for assunto em cima da
mesa, a tentação de quase todos é começar logo a montar frases de forma automática, sem
parar para imaginar a experiência real.

Em contraste com Jean Piaget, Reuven Feurestein – nascido na Roménia mas


exercendo grande parte do trabalho em Israel na formação desta nação, quando era
necessário produzir resultados – apostou no aprendizado mediatizado, realmente o único
possível. Para além do mediador, que oferece o conteúdo material relativo ao que está sendo
ensinado, o aluno também necessita de alguns instrumentos para assimilar este conteúdo.
Depois poderá reproduzir o aprendizado, já sem ajuda do professor, noutras circunstâncias e
com outros objectos. Estes esquemas auxiliares são instrumentos de aprendizado e não os
seus objectos, por isso têm que ser impostos em primeiro lugar, já que se fossem tomados de
forma crítica imediatamente se transformavam em objectos, o que criaria a necessidade de
criar outros instrumentos mediadores e assim por diante. Existem instrumentos linguísticos
(como as regras gramaticais), lógicos (esquemas matemáticos) e regras formais, que
permitem fazer o salto entre o puramente formal (consistência do discurso) e o puramente
material (ligação entre o discurso e o seu objecto).

O aluno pode se aprimorar muito nas regras de lógica, da aritmética e da gramática,


mas, como tudo isto trata apenas de discurso, não resolve o problema da ligação destas coisas
com a experiência. No ensino inspirado por Piaget, nada pode ser imposto e os alunos
acabam por ser sofrer de graves e profundas privações culturais. Já Feurestein descobriu que
a primeira coisa a fazer é ajudar as pessoas a perceber o mundo, a aprender as relações de
131

tempo, espaço, causalidade, posição, as cores, as formas, as figuras, as sequências, etc.


Depois vêem os instrumentos de verbalização. Na realidade, os manuais do Jules Payot, do
século XIX já tinham esta pedagogia embutida.

Os alunos do Curso Online de Filosofia devem logo começar por ter consciência da
dificuldade em transmutar a experiência em linguagem (a tarefa fundamental dos escritores),
o que pressupõe já alguma consciência da própria experiência. A tradição literária é o
primeiro aporte do aprendizado. Frank Raymond Leavis propunha o estudo do inglês
(porque era a sua língua) como disciplina de pensamento, sendo também uma disciplina de
percepção e de expressão. A língua tem várias camadas, começando pela sonora, que deve ser
exercitada logo desde a tenra infância, como acontece no mundo anglo-saxónico com as
nursery rhymes, género para o qual grandes escritores contribuíram. Não se pode colmatar
as falhas auditivas do período infantil usando a grande literatura, lendo grandes poetas,
Fernando Pessoa ou Carlos Drummond de Andrade, dado que ficaremos com estruturas
complexas em cima de uma base frágil. Como resultado, teremos tendência em apostar num
verbalismo cada vez mais sufocante. Então, é preciso voltar atrás e recitar as fórmulas
infantis. Em termos de verbalização, também é indispensável começar por exercícios de
descrição, como devíamos ter feito na escola. Não podemos ter a ilusão de que conseguimos
falar sobre Platão se nem conseguimos descrever o nosso gato ou o que se passou no último
fim-de-semana. α46

168. O conhecimento como confissão


Vladimir Solovyov destacava a filosofia da religião ou das ciências por ser uma
modalidade de conhecimento essencialmente individual. Mas as verdades da ciência ou da
religião também só ganham validade quando são admitidas pela alma individual, e até lá são
apenas verdades potenciais. A verdade encontra-se no juízo – aquilo que efectivamente
pensamos – e não na proposição, e entre os dois pode haver um abismo. Para saber se as
verdades gerais (da ciência, da religião, da História, das ideologias) são efectivamente
verdadeiras, é necessário que as transformemos, em primeiro lugar, em juízos explícitos que
sejam perfeitamente inteligíveis para nós, de modo a podermos aceitá-los como verdades.
Muito pouco daquilo que ouvimos passa por este critério e pode ser dito conhecimento,
incluindo muitas proposições científicas “universalmente” aceites, porque apenas têm uma
inteligibilidade esquemática, pelo que só as podemos confessar parcialmente.

Contudo, se seguirmos a filosofia como unidade do conhecimento na unidade da


consciência, todo o conhecimento tem que ser assumido, através do método da confissão,
como responsabilidade pessoal: é algo que subscrevemos integralmente. A confissão só é
subjectiva no sentido de sermos a sua única testemunha, mas se ela for autêntica, vai existir a
perfeita coincidência do objectivo com o subjectivo. Outras pessoas poderão confirmar o
nosso testemunho se refizerem a mesma experiência interior, mas a adesão ou falta delas em
nada interfere com a veracidade daquilo que confessamos. Hoje em dia temos dificuldade em
entender o que seja uma confissão interior, porque achamos que só tem validade aquilo que é
feito diante da “opinião pública”, apesar desta ser uma coisa recente, em termos históricos,
mas exerce um enorme fascínio e temor.

Max Weber explica como o desenvolvimento da sociedade industrial tecnológica


destruiu o senso da comunidade, e as pessoas ficaram depositadas nos grandes aglomerados
anónimos, relacionando-se apenas através da função económica e através de relações
132

interpessoais. O florescimento destas relações, nos anos 60 do século XX, foi um “resgate”
que durou pouco tempo e logo a intimidade foi explorada como um motor da alienação. A
vivência colectiva, então, passou apenas a existir sob a forma deturpada dos movimentos
ideológicos. Os jornalistas assumem uma postura quase de profetas, já não admitem terem
um papel secundário em relação às fontes de conhecimento mais elevadas. Reagir a isto com
moralismo religioso ainda piora a situação. Todos estes factores tornam a prática do método
da confissão cada vez mais difícil. Exercícios como o do necrológio [4] visam trazer para o
nosso centro os elementos que possibilitam uma prática confessional. α46

[Aula 47]

169. A estrutura da meditação


Em filosofia quase nada é argumento, discussão ou prova, pelo contrário, quase tudo
pertence ao género “meditativo”. Meditação consiste em rastrear algo – uma ideia, um
símbolo, um dado da realidade – até ao seu fundamento. Para isso, nada é dado como
premissa para desenvolver um argumento. O movimento é o inverso deste, um recuo até ao
fundamento do objecto, e daí a estrutura da meditação se adequar a este e não ter uma
estrutura argumentativa identificável. A maior parte das pessoas não entende isto e qualquer
coisa que digamos vai parecer a elas sempre uma tentativa de prova ou de convencimento
retórico, quando não um mero discurso poético. α47

170. Dois tipos de abstracção


Existem vários tipos de abstracção. O primeiro tipo, mais universal, consiste em
nomear um ente pelo nome da sua espécie, ou seja, fazemos abstracção da sua unidade física.
Contudo, o nome da espécie (gato, mesa) já tem, de forma implícita, todas as possibilidades
de desenvolvimento que diferenciam os vários indivíduos entre si. Por exemplo, a espécie
“gato” já tem implícitas as várias formas e cores possíveis que aparecerão nos indivíduos. Por
outro lado, o indivíduo contém todos os atributos da espécie. Então, não existe propriamente
uma separação entre a espécie e o indivíduo: o conceito geral abrange o ente individual e este
está harmonicamente adequado ao conceito geral da espécie. Neste tipo de abstracção não há
separação entre nós e o conhecimento do dado concreto, pelo contrário, o conceito geral
serve para distinguir com mais acuidade os caracteres individuais que singularizam o ente,
assim como a presença física implica a captação da forma inteligível da espécie
correspondente. Então, quando vemos uma vaca pela primeira vez, imediatamente captamos
a forma inteligível “vaca”, e daí percebemos uma série de variações possíveis na espécie
correspondente ainda que não estejam fisicamente presentes naquela vaca.

Este primeiro tipo de abstracção é aquele em que captamos a essência de uma


substância: captamos o conjunto de caracteres que faz com que uma substância individual
pertença a uma determinada espécie. Também fazemos uma abstracção deste género quando
chamamos alguém pelo nome (agora atribuído ao indivíduo e não à espécie), que é
compatível com as mudanças que a pessoa sofre. Estamos a captar a forma inteligível do
indivíduo, que representa a sua persistência ao longo do tempo e que é independente dos
133

lugares e situações por que ele passe. Em ambos os casos – ente tomado como representante
da espécie e ente tomado individualmente sob determinado nome – o conceito abstracto não
nos separa da entidade concreta que estamos nomeando mas, pelo contrário, possibilita
observar aquele ente individual com mais acuidade, permitindo ver mais facilmente as
diferenças entre ele e outros membros da espécie, assim como as diferenças entre ele e ele
mesmo tomado em várias situações.

Num segundo tipo de abstracção separamos uma qualidade da sua substância. Por
exemplo, tomamos uma superfície branca, que em si mesma não existe mas podemos abstraí-
la de um muro, de um papel, do pelo de um gato, para na sequência estudar as suas
propriedades. Neste processo, a substância não é tida em conta e nem sequer podemos saber
se a qualidade está realmente presente no ente como qualidade ou como acidente. Em ciência
faz-se abstracção destas qualidades, que passam a ser estudadas em si mesmas, com vista a
delas obter descrições matemáticas. Dificilmente as ciências podem estudar algo de real,
estudam apenas propriedades comuns a vários objectos reais. Todas as propriedades
somadas (que podem ser derivadas da sua definição) não bastam para formar um objecto, já
que este, para existir, tem de estar sujeito a um número infinito de acidentes, e basta faltar
apenas um para se tratar somente um ente pensado. Obviamente que o conhecimento
acumulado pelas ciências diz algo sobre o comportamento da realidade, trata-se de uma
demarcação de uma certa estrutura de possibilidades do mundo externo, ou seja, quaisquer
objectos que possuam tais qualidade não irão transgredir os limites que a sua matematização
descortinou. Por exemplo, sabemos que um muro preto nunca poderá reflectir tanta luz
quanto um muro branco.

A ciência não pode tratar da realidade em si mesma dado que usa um tipo de
abstracção que é indiferente à substância individual, que é a única coisa que realmente existe.
Uma concepção científica que juntasse idealmente os vários conhecimentos e conclusões das
várias ciências, articuladas de forma perfeita, ainda assim seria apenas uma armadura
matemática de um mundo possível, sem conter qualquer objecto real. Trata-se de uma
concepção compatível com um número indefinido de outras, que se obteriam se as ciências
tivessem sido criadas a partir de outros pontos de vista e de outras medições. Todas as
armaduras assim montadas coincidem com a realidade em certos pontos específicos, mas a
articulação do conhecimento científico com a realidade depende da capacidade do ser
humano raciocinar a partir da sua experiência como ser concreto, percebendo quais os
pontos em que ela se articula com as conclusões científicas. Não há nenhuma maneira
científica de fazer isto, só é possível através do bom senso ou da filosofia (um bom senso de
segundo grau). Isto é um esforço individual, mas a ciência moderna faz depender a sua
validade de um consenso grupal, que naturalmente encaminha para a validação apenas da
armadura matemática. Então, não se trata de verdadeiro conhecimento (seria, com mais
propriedade, chamado de “empirismo matematizável”) – conhecimento é algo que versa
sobre a realidade tal como experimentada pelos seres humanos –, é apenas um conhecimento
em potência, pensamento, que mesmo se altamente complexo, elaborado e autocrítico, não
tem ancoragem directa na realidade. α47

[Aula 48]
134

171. Preceitos para a entrada na lógica clássica


A lógica procura criar, desde Aristóteles, uma modalidade de pensamento cuja forma
interna seja perfeita: é uma lógica formal tratada no livro Primeiros Analíticos. Mas
Aristóteles também escreveu os Segundos Analíticos, tratando da lógica material (no fundo,
trata-se de uma teoria do conhecimento), fazendo todo o sentido ser ensinada em simultâneo
com a lógica formal. Usaremos o livro de François Chenique, Élements de Logique Classique,
para retirar algumas noções de lógica clássica, cuja estrutura básica se mantém desde a
antiguidade. O material básico da lógica, segundo os manuais, são os conceitos imediatos dos
objectos obtidos por simples apreensão. Trata-se do acto em que reconhecemos um ente pelo
seu nome (ou damos-lhe um, caso não saibamos que nome ele tem ou se ele ainda não foi
catalogado). Esse nome concentra a ideia geral do ente, que está separada das circunstâncias
particulares e concretas de ordem sensível onde o ente foi apreendido. Diz François
Chenique, a propósito da noção de simples apreensão:

«Convém definir a simples apreensão, que é como que a actividade elementar do


espírito humano e precisar os seus caracteres.

1. Definição de simples apreensão [padronizada em todos os manuais de lógica]

A simples apreensão é o acto pelo qual a inteligência apreende a essência de uma


coisa – a sua quididade – sem nada afirmar ou negar dela. A simples apreensão é,
assim, a simples representação intelectual da essência ou quididade de um objecto».

Quididade vem do latim quid (o quê); é a respostar à pergunta “o que é?” É um gato,
um elefante, etc. Prossegue Chenique:

«Trata-se, portanto, do processo do pensamento pelo qual o espírito humano


apreende um objecto em sua essência e dá, assim, nascimento a um conceito ou
ideia. A simples apreensão é uma operação da inteligência (intelectus), e o seu
resultado é a ideia ou conceito, que é distinta da imagem percebida pelos sentidos
ou reproduzida pela imaginação. Mas se a imagem e a ideia são distintas, devemos
notar que o pensamento é praticamente sempre acompanhado de imagens.

2. Caracteres da simples apreensão

Esses caracteres são em número de três.

a) A simplicidade. A denominação mesma de simples apreensão põe à mostra o


primeiro caracter dessa operação. É um acto simples, pois ele tende a descobrir a
essência de uma coisa, respondendo à questão primeira do pensamento: o que é? A
resposta é a essência da coisa, isto é, aquilo graças à qual a coisa é o que é id quo res
est, id quod est. O objecto da simples apreensão é sempre visto sob um modo de
unidade e a percepção da essência de um objecto reproduz a unidade do ser.

b) O modo abstracto. É por um modo abstracto que a simples apreensão faz


apreender a essência de uma coisa – a sua quididade –, isto é, a natureza de um
objecto visto de uma maneira geral, destacada das contingências concretas. É preciso
distinguir a simples apreensão de toda visão intuitiva das coisas sob o seu aspecto
concreto, como é o caso, por exemplo, do julgamento no qual esse modo concreto é
135

essencial [o julgamento é a descrição de uma situação concreta e não pode ser


generalizado].

c) Acto sem veracidade, nem falsidade. A simples apreensão não julga, ela não afirma
nem nega nada do objecto apreendido. Por isso, não se pode dizer que o conceito
“homem” seja verdadeiro ou falso; não se trata senão da representação intelectual
da essência de indivíduos designados em outras circunstâncias de uma maneira
particular como Pedro ou João».

Nos manuais de lógica é dito que o reconhecimento de uma essência ou quididade


implica a separação de uma essência das circunstâncias concretas, ou seja, o conceito passa a
ser um esquema geral abstracto que não corresponde a nada da realidade intuída. Esta ideia
da separação está comummente ligada à abstracção, mas não quer dizer que tal aconteça
realmente neste acto. O conceito abstracto de “gato”, se realmente separado, não teria
implícitos quaisquer dados sobre os gatos concretos. Na realidade, o esquema que captamos
já contém um círculo de latência, com todas as possibilidades de todos os actos que qualquer
gato pode fazer em qualquer situação. O conteúdo lógico da simples apreensão não se
confunde com aquilo que apreendemos em termos epistemológicos e psicológicos. Os
manuais de lógica falam de um pensamento hipotético e não de um pensamento real. A
abstracção da simples essência não é uma separação mas uma distinção da essência, ficando
em plano de fundo tudo o mais que sabemos do ente.

O ente e o seu esquema geral aparecem num esquema tensional: ao ente não falta
nenhum atributo da essência e a essência não pode existir apenas como ideia, de resto, não é
dessa forma que a captamos. A simples apreensão na realidade não é um acto simples, é um
acto instantâneo do espírito e, como tal, não pode perfazer imediatamente todas as suas
possibilidades. Aristóteles e Platão não tiveram solução teórica para este problema mas não
se confundiam, e mesmo as “ideias platónicas” sabemos hoje serem uma figura de linguagem.

Em termos de puro raciocínio lógico, apenas lidamos com essências abstraídas das
substâncias concretas, como um computador poderia fazer, apenas lidando com termos que
condensam conceitos, chegando a conclusões válidas para as essências abstraídas mas apenas
indirectamente para os entes concretos. Os seres humanos não conseguem raciocinar de
maneira tão pura e sempre terão a referência implícita aos objectos e aos repectivos círculos
de latência. A simples apreensão não produz uma forma separada, antes dá uma fórmula do
ente (quididade) onde a possibilidade da sua existência já está incluída como potencialidade
da sua forma essencial, portanto, é a captação de uma fórmula interna, aquilo que permite ao
ente ser aquilo que ele é, e que não se pode separar dos elementos concretos e até acidentais
que permitem a sua existência. Na simples apreensão, existe uma antecipação daquilo que
pode acontecer aos entes (círculo de latência), que é tensional porque não totalmente
consciente e surge de modo fragmentário. Mas é a nossa capacidade mais notável, muito mais
certeira do que o raciocínio lógico.

Aristóteles diz que a verdade existe apenas no juízo, na afirmação, e que a simples
apreensão nada afirma ou nega. Mas nesse acto já se afirma a distinção entre aquele ente e
todos os outros possíveis, pelo que ali já se concentra todo o problema filosófico. Temos de
fazer com que todo o nosso raciocínio lógico não apague a nossa consciência do círculo de
latência, como todos os grandes filósofos sempre fizeram. O próprio erro lógico apenas
invalida a prova dada mas não a experiência cognitiva por detrás, que poderá, por vezes, ser
136

recuperada até a partir de uma prova errada. Também fazemos apreensão de ideias nossas,
não abstraídas de coisas percebidas mas dos elos de necessidade entre os nossos
pensamentos, ou seja, de uma estrutura lógica. É da experiência da impossibilidade ideal que
tiramos os conceitos de ordem metafísica, como o de necessidade. Se apenas tivéssemos
experiência da impossibilidade física, não da impossibilidade lógica, iriamos sempre
acreditar que seria possível acontecer algo desde que fosse apenas um pouco diferente
daquilo que atrás se mostrou impossível. Ao lado do círculo de latência captamos também
um círculo de necessidade, que limita o primeiro de modo absoluto, embora o primeiro seja
ilimitado quantitativamente.

Para além da lógica é necessária uma técnica da simples apreensão concreta, que
significa perceber as coisas como elas são, que no fundo é a fenomenologia. Husserl criou
esta técnica para ser quase uma ascese, uma forma de refrear o modo normal de pensamento
que quer sempre tirar conclusões: há que permanecer fiel às coisas. Tem de haver o desejo
das coisas serem como são. Daqui veio a Olavo de Carvalho a ideia da contemplação
amorosa, inspirada também em São Tomás de Aquino, que disse que “o amor é o desejo de
eternidade do ser amado”. Um dos segredos da filosofia não é o recuo cognitivo mas uma
aproximação activa à realidade. Isto é um antídoto contra o fechamento numa concepção
matemática, que corta os laços com uma concepção linguística e simbólica, apesar de se
basear nela. Então, o mundo real é substituído por outro apenas constituído de ideias, mas
que, num acto de feitiçaria, podemos decretar ser mais real do que o primeiro, apenas porque
se nos afigura como mais constante, já que foi ditado pela escolha humana. α48

[Aula 49]
172. Percepção e cepticismo
A primeira apreensão nunca erra porque aquilo que estou vendo é aquilo que estou
vendo, e mesmo sem um nome para a coisa, já tenho um signo mental que corresponde à
forma da sua presença. Logo, ali está uma riqueza tal que todos os demais conteúdos são
apenas comentários à sua volta. A coisa é imediatamente representada por um verbum
mentis, que não precisa de ser palavra proferida – é uma linguagem interior que não dá para
separar da percepção. Mas o que acontece quando alguém parece estar acenando para nós e,
afinal, é para uma pessoa atrás? O erro não está na percepção mas na relação entre o dado
presente e um dado hipotético. Trata-se de um erro na suposição que pressupõe a percepção
exacta. Na realidade, o que acontece nestas circunstâncias é um procedimento científico, há
uma ligação entre um pedaço da percepção real com um pedaço do nosso raciocínio lógico:
(1) existe uma selecção inicial do objecto a estudar, neste caso o aceno; (2) segue-se uma
hipótese para explicar esse sinal (é para mim); (3) faz-se o teste e verifica-se que a hipótese
não se confirmava; (4) formula-se uma nova explicação. A ciência serve, então, para
complementar a nossa percepção (mas não para se substituir a ela) e corrigir o nosso
pensamento à luz de algum fenómeno do mundo exterior, que, por sua vez, depende de uma
escolha inicial, que pode estar errada, daí a necessidade da permanente correcção, feita a
partir de uma ontologia de base tirada da experiência real.
137

A percepção tem uma riqueza enorme, começando logo por dar uma união
indissolúvel entre uma ideia universal e uma presença singular, havendo sempre uma tensão
entre as duas. Sabemos que os caracteres essenciais daquele ente vão estar presentes em
outros entes da mesma espécie, e é por isso que reconhecemos um segundo espécime, porque
apreendemos o esquema geral logo à primeira. Outra forma de expressar esta ideia é dizer
que o ser humano nunca capta entes puramente singulares, embora a apreensão nos dê tanto
a essência da espécie como a integralidade da forma individual do ente. Como este esquema
geral também pode ser construído, de modo a ser fixado e reproduzido, há a ilusão de que o
processo de apreensão também é construtivo.

Em qualquer língua, a distinção fundamental é entre substantivo e verbo, que


corresponde à distinção entre a coisa e o processo – substância e acção –, por exemplo,
ninguém confunde um gato com um salto que este deu. Contudo, quando usamos a
imaginação e a memória (operação mental) para relacionar dois pares substância/acção, este
é o momento em que se introduzem quase todos os erros. Todas as críticas à percepção
humana são apenas jogos de palavras, em que se faz uma cobrança absurda de que a situação
de facto seja igual a outra criada pela imaginação. O pau na água que parece torto e “devia”
parecer direito, o muro distante que parece menor mas “devia” parecer do mesmo tamanho
de um igual que nos está mais próximo: estes são exemplos de “críticas” à percepção, que
podem criar dificuldades quando aceitamos as suposições do que “devia” parecer, mas nada
obriga a isso. Este cepticismo é uma maneira de forçar a imaginação para cobrar da realidade
aquilo que ela não pode dar. A coisa torna-se mais persuasiva porque, na realidade, não
comparamos uma coisa imaginada com a percepção mas com o que guardamos dela na
memória. Como memória e imaginação são fundamentalmente a mesma função, podemos
nos iludir de que valem o mesmo. Para evitar isso, nunca devemos perder de vista aquilo que
realmente vimos e que pode ser testado novamente na realidade, e que naturalmente não se
confunde com a coisa imaginada (ver também os exercícios do Narciso Irala [82]).

A atenção à percepção resolve uma infinidade de problemas pseudo-filosóficos, que


quase sempre são enigmas criados com base numa ruptura com a realidade e são destinados
a paralisar o raciocínio das “vítimas”. Todo o ser real tem uma espécie de prioridade
ontológica sobre as coisas criadas pelo ser humano. Estas parecem um bom refúgio para
iludirmos a complexidade do mundo, dado serem coisas limitadas e sobre as quais
imaginamos ter algum poder. Não por acaso, a arte primitiva é tendencialmente abstracta,
como mostrou Wilhelm Worringer, e a representação naturalística só aparece quando já
existe uma sociedade organizada que permite olhar a Natureza em segurança. O ser humano
tem um impulso para se proteger da complexidade do mundo, mas nem tudo o que é bom
para equilíbrio psíquico é bom para o conhecimento, que não é uma coisa destinada aos
fracos, embora também não seja necessário possuir capacidades extraordinárias para buscar
o saber. O ser humano tem uma plasticidade enorme e uma capacidade quase ilimitada de
aprender e incorporar elementos externos. O que vai parar o processo é a busca de equilíbrio
como forma de fugir às perplexidades e às dúvidas. Estas coisas tornam-se assustadoras
sobretudo quando perdemos de vista que os elementos de caos e espanto são ínfimos
comparados com os processos estáveis e regulares, tanto em termos naturais como humanos.
α49

173. O papel civilizacional da narrativa


138

A simples apreensão [171] é o momento decisivo do conhecimento, a partir do qual


obtemos os conceitos exactos das coisas. Quando reconhecemos algo, imediatamente temos o
seu verbum mentins, mesmo se não tivermos o nome da coisa. A consciência humana surge
no âmbito da simples apreensão com o reconhecimento da ordem do tempo tal como
expressa na arte narrativa. A razão é, em primeiro lugar, o senso de totalidade e parte.
Ernst Cassirer dizia que a função da razão é unir e separar e, para isso, precisa tanto do senso
da totalidade como o senso da separação. Só podemos ter o senso da totalidade porque
estamos num mundo que possui unidade, que captamos para além de toda a experiência
humana, sempre fragmentária. A nossa racionalidade depende de duas coisas: (1) colocação
no esquema espaço-temporal, que nos é imposto; (2) domínio da linguagem, que dá um
segundo senso da temporalidade, resultante da inter-subjectividade entre várias
consciências humanas que sabem estar vivenciando o mesmo processo.

Todas as línguas adaptam-se naturalmente à expressão da estrutura do real, e tudo


começa na narrativa, que nos dá o senso de orientação no tempo. Qualquer tribo tem alguma
história a respeito da origem do mundo e da sua tribo, que já dá uma estrutura da
temporalidade, e esta permite, muito tempo depois, criar algo como a ciência histórica. Esta é
a articulação da capacidade narrativa com alguns critérios de verificação científica, sempre
incompletos. Sem os procedimentos narrativos, os factos históricos ficariam todos dispersos.
Se nos afastarmos da consciência primordial da ordem narrativa, entramos em delírio
filosófico ou científico. Para sairmos disto, temos de voltar à narrativa e contar como certas
ideias se formaram na nossa mente.

As primeiras narrativas que apareceram eram mitológicas e expressavam a vivência


de uma colectividade que se percebia a si mesma como fazendo parte de um acontecer
espaço-temporal total. Mas dentro da comunidade, alguns indivíduos podem ter acesso a
certas dimensões da experiência ocultas aos restantes, como a de um Deus transcendente ao
cosmos, como aconteceu aos profetas hebraicos. Os outros também tinham esta experiência,
mas situada ainda abaixo da linguagem, mas em alguns indivíduos ela tornou-se visível por si
mesma e aparecia como um fecho lógico do conjunto. Diz Eric Voegelin que esses indivíduos
descobrem que a imagem da ordem não está apenas no cosmos mas também na alma
individual, que é também uma totalidade. Enquanto as narrativas primevas diziam respeito à
ordem da comunidade, as modernas dizem respeito à ordem da alma, e têm de dar conta da
tensão entre esta e a ordem colectiva. Aquele que se coloca diante do observador omnisciente
desenvolve problemas que só são comunicáveis a outros com acesso à mesma experiência. A
cultura deixa, então, de se basear nas experiências partilhadas por toda a colectividade e
passa a centrar-se naquelas experiências mais profundas e significativas tidas por poucos. A
literatura narrativa ocidental visa comunicar estas coisas, por isso, o domínio da linguagem
literária no mais alto grau é obrigação do filósofo, dado que a filosofia faz uma reflexão crítica
sobre este material. α49

[Aula 50]
174. A simples apreensão e as percepções adicionais
139

A simples apreensão é a resposta à pergunta “o que é?”. Ela dá-nos informação


confiável sobre a substância, mas o mesmo não se passa para a percepção de estados,
qualidades ou acidentes. Nestes casos existe uma multiplicidade confusa e torna-se
necessário o exame racional da percepção. A simples apreensão não é questionável, antes
tudo se questiona a partir dela, mas que não nos dá tudo. A técnica fenomenológica consiste
em descrever o conteúdo da percepção de qualquer coisa, sendo um trabalho difícil mas que
foi bastante aperfeiçoado. A proposta da fenomenologia consiste em voltar à simples
apreensão e extrair tudo o que ela pode dar sem fazer qualquer raciocínio em cima.

Os estados, propriedade, acidentes, etc., fazem parte do círculo de latência, pelo que
são apreendidos como um conjunto de possibilidades que não estão totalmente conscientes e
nem fazem parte da natureza do ente. A apreensão de estados de facto, por exemplo, já é um
segundo nível que pressupõe a percepção da natureza do ente a que aquele estado se aplica.
Então, não é uma percepção imediata, como no caso da simples apreensão (percepção
principal, que é imediata ou simplesmente não acontece), necessita de uma sequência de
observações e actos cognitivos (percepções adicionais), e é aqui que a competência de cada
ciência se revela imbatível para o campo em que se ocupa. Contudo, na transição para a
modernidade, a noção de substância foi abandonada – ficou implícita – e sobraram apenas
os estados observáveis e matematizáveis. Isto quer dizer que a ciência moderna não pode
estudar acções, que são sempre atribuíveis a sujeitos com formas substanciais, mas apenas
transformações. α50

175. A noção de juízo


Juízo é uma sentença interior – que ocorre no verbum mentis – acompanhada de
afirmação ou negação (sentimento de concordância ou discordância). O juízo pode se
exprimir numa proposição mas também pode prescindir dela, sendo, nesse caso, apenas um
acto imanente da consciência. Além disso, um juízo pode ser verdadeiro ou falso mas a
proposição não contém nela a sua veracidade ou falsidade, que permanece no juízo anterior
que a fundamentou e lhe deu origem. Quando essa proposição é transmitida a outra pessoa,
esta vai ter que interpretá-la, ou seja, a estrutura verbal tem que ser transformada num juízo,
e aí pode ser aceite ou negada. O ouvinte, que não tem a experiência originária, vai ter que a
refazer imaginariamente e pode ir parar longe do primeiro juízo.

Ocorrendo o juízo internamente, então, não existem elementos exteriores para nos
apoiarmos decisivamente em matéria de verdade ou falsidade (isto em termos de
conhecimento e não de manifestação do ser). Também pode existir veracidade na percepção
mas que nem chega a ser expressa. Todas as bibliotecas juntas não contém uma única
verdade, apenas são sementes de juízos verdadeiros para quem se disponha a ler os registos.
Isto não se deve às incontornáveis ambiguidades da linguagem, que apenas reflectem a
ambiguidade das próprias coisas, mas porque é imprevisível aquilo que vai sair do círculo de
latência de cada ente no instante seguinte. A capacidade de percebermos a verdade é função
do exercício da nossa liberdade e da nossa responsabilidade pessoal. Nunca teremos uma
garantia externa de possuirmos a verdade, o amor a ela é a nossa única garantia. Não basta
um sentimento momentâneo, tem que ser algo que já não temos como negar, excluindo
taxativamente o seu contrário até mesmo como mera possibilidade. Mas podemos ficar com
medo e apelar a garantias externas, nomeadamente aos dogmas religiosos e ao aparato
lógico/científico, com toda a sua perfeição formal. O apelo à autoridade religiosa é outra falsa
140

segurança, lembrando São Paulo que disse que temos de acreditar no Espírito que vivifica e
não na letra que mata. Por outro lado, a tentativa de criar uma linguagem lógica
absolutamente perfeita (Wittgenstein, Bertrand Russel) falhou totalmente, porque o aumento
da perfeição ia eliminando todo o conteúdo (na linguagem puramente formal cada termo só
remete para si mesmo e é alheio a qualquer objecto de percepção). Contudo, as pessoas que
falam em nome da ciência subentendem que são possuidoras de uma autoridade que se deve
impor a todos obrigatoriamente, independentemente da consciência individual. α50

[Aula 51]

176. Da simples apreensão de essências à formação de conceitos


Aristóteles falava da substância como um ser que existe não como parte de um outro e
nem como atributo de um outro, pelo que é algo que pode ser concebido em si mesmo. Mas
isto não é uma definição de substância, é apenas um critério de reconhecimento. Em rigor,
não é possível definir o que é substância, porque temos de partir sempre do conhecimento de
alguma coisa até chegarmos a alguns elementos de base, como o de existência, que impomos
a nós mesmos mas só tendo deles uma ideia vaga embora suficiente para começar.

Na simples apreensão [171, 174] não apreendemos propriamente a substância mas


uma essência, que é aquilo que a substância é independentemente da sua existência ou
estado. Então, a essência é a resposta à pergunta “o que é?”, mas não existe realmente como
existe a substância. A ligação entre a essência e o objecto real é feita por todos os acidentes
que podem acontecer à substância. Mesmo a dita essência pura, abstraída mentalmente, não
existe isolada na nossa mente, porque sempre vem acompanhada de alguns acidentes, terá
apenas uma pureza formal. Mas ao invés de procurarmos esta pureza formal, podemos
pensar na essência fazendo uma espécie de antecipação do círculo ilimitado de acidentes que
podem ocorrer à substância, ou seja, do círculo de latência.

Na lógica antiga falava-se da simples apreensão abrangente (ou compreensiva), que


só Deus tem, porque é a apreensão de uma essência de uma substância em conjunto com
todas as relações que aquela substância pode ter com todas as outras. Não sendo isso possível
para o ser humano, houve a tendência de passar a outro extremo e lidar apenas com
essências puras, estudando as relações que podemos estabelecer mentalmente entre as várias
essências puras, processo do qual surgiu a silogística. Então, a lógica não pode ser, como
esperavam os escolásticos, a ciência que dirige a razão para conduzir ao conhecimento, já que
ela nunca tem nada a ver com os entes reais. A lógica é um estudo da estrutura da
possibilidade tal como se pode expressar nas combinações possíveis entre essências puras.

De facto, o mesmo se aplica às ciências, que não lidam com entes reais mas com
essências puras. Toda a ciência consiste em transpor o mundo da realidade para o mundo da
possibilidade. O máximo conhecimento científico é a enunciação de uma lei, que é um elo de
necessidade que diz que quando se verificam certas condições, então, determinadas
conclusões seguem-se necessariamente, como acontece no silogismo. E o ideal moderno de
ciência é criar um procedimento totalmente automático, matematizado e que dispense o
sujeito humano que conhece. Daí não resultaria um conhecimento mas um conjunto de
141

esquemas formais lidando com essências puras, sendo altamente problemática a relação
disto com a realidade. Esta relação só pode ser feita por um ser humano que é capaz de
praticar abstracção a vários níveis mas também tem a possibilidade de ir no sentido inverso,
o da concreção. O único portador do conhecimento é a consciência humana individual.

Mário Ferreira dos Santos definia dois conceitos relacionados com a nossa capacidade
de concreção e de abstracção: actualização é aquilo que ocupa o foco de consciência neste
momento; virtualização é aquilo que é jogado para um pano de fundo mas não é totalmente
esquecido. Os acidentes abstraídos na actualização de uma essência individual são
virtualizados e não apagados. Se não conseguimos, a qualquer momento, recuperar estes
acidentes, então, não sabemos se ainda estamos a lidar com um objecto real. Todo o método
filosófico gira em torno da tensão entre o abstracto e o concreto, e o método da confissão não
é mais do que trabalhar em simultâneo ao nível das essências puras e ao nível da memória e
da imaginação, pois só assim podemos confessar que estávamos realmente presentes no
objecto do qual abstraímos a essência.

Na lógica clássica, o conceito tem dois aspectos: compreensão e extensão. A


compreensão é o conjunto de notas (nota é tudo o que foi notado) que apreendemos, é uma
abrangência. Por exemplo: um gato é uma substância e não uma propriedade; é um ser vivo
da espécie felina. A extensão é o conjunto de entes aos quais se aplica aquele conceito.
Quanto maior a compreensão, menor a extensão, diz a lógica clássica, mas Shânkara diz o
contrário, porque se juntarmos todas as notas possíveis obtemos o conceito de tudo, que
abrange todos os seres. Assim vemos que a lógica tem conceitos que se podem revelar
problemáticos.

Da simples apreensão sai o conceito, que expressa o termo lógico, que é o fim, o limite
da simples apreensão, além de ser o seu conteúdo. Mas conceito implica apreender algo: se
for algo da substância real, temos uma primeira intenção, se for apenas um conteúdo de
pensamento, temos uma segunda intenção, na linguagem dos lógicos antigos. A transição
entre as duas coisas é problemática. A primeira intenção vem acompanhada do círculo de
latência, que também é ele mesmo latente. Então há sempre uma tensão que devemos
cultivar de que nos falta algo quando lemos um filósofo, e tudo isto deriva do respeito que
devemos ter para com a realidade.

O universo é um depósito de conhecimentos e se não tivesse já uma sugestão de


ordem nunca iríamos captá-la com o nosso cérebro e criar esquemas de possibilidades. Quase
todos os conceitos usados em filosofia e ciência são figuras de linguagem tiradas da nossa
experiência de espaço e tempo. É absurdo pensar que todo o conhecimento é criação humana
e que é a mente humana que coloca ordem num mundo caótico, como pensava Kant. α51

177. A formação de juízos e os problemas da substancialidade


A combinação de conceitos leva à formação de juízos [175], que são afirmações onde
atribuímos algo (que apreendemos pela simples apreensão [171, 174, 176]) a um sujeito ou
objecto. Para Aristóteles, existe um conjunto limitado de possibilidades de predicação,
elencadas nas categorias. A primeira coisa que podemos dizer sobre uma coisa é o que ela é.
Depois, podemos introduzir uma quantificação, elencar qualidades e ainda podemos
estabelecer relações. Desta forma temos as categorias de substância, quantidade, qualidade e
relação. Os entes também podem agir ou sofrer acções, a que correspondem as categorias de
142

acção e paixão. Outras duas categorias são espaço (ou lugar, onde algo se encontra) e tempo
(quando algo ocorreu).

Da substância para as outras categorias já existe um desnível. Podemos falar de


qualidades ou quantidades em si mas sabemos que não existem em si mesmas, apenas
aparecem em substâncias, tal como acontece com uma relação, que no mínimo necessita de
conceitos lógicos, que também são substâncias. O conceito ou tem a substancialidade de um
acto mental ou a de um puro esquema de possibilidades. Daqui surge um grande problema,
que é saber quais as substâncias que existem e quais as que apenas podem ser tratadas como
tal. Por exemplo, podemos dizer que a História ensina-nos tal coisa mas isso cria vários
problemas, logo porque nem sabemos se a História é aqui entendida como o conjunto dos
factos ou como os registos deixados pelos historiadores, e depois era necessário saber o
processo que levaria a História a ensinar algo a alguém. Alguns filósofos agem como se estes
problemas não existissem, e ainda afirmam que a História é a dimensão máxima da
realidade, ela seria a substância e nós os atributos, que pensamos ou agimos de tal forma
porque os factos históricos nos induziriam a isso (a “astúcia da História”, segundo Hegel).
Isto é apenas um exemplo que ilustra que grande parte dos problemas filosóficos estão
ligados à substância.

Mais exemplos sobre problemas de substancialidade: 1) Spinoza diz que só Deus tem
substancialidade, mas Feurbach diz que Deus é apenas uma ideia humana; 2) Uma partícula
subatómica é uma substância ou existe apenas como propriedade de outra coisa? 3) Este gato
parece ser substância, segundo o critério aristotélico de que não é parte ou atributo de outra
coisa, mas isso é realmente assim ou este felino é apenas uma aparência temporária da
espécie gato, que seria a verdadeira substância? 4) Em termos de Teoria da Evolução, o
processo evolutivo abrange e transcende as espécies ou, antes, é a evolução uma propriedade
das espécies? (Não deve haver um evolucionista ou anti-evolucionista que tenha percebido a
existência do problema); 5) Nas teorias históricas, sociológicas e políticas quase tudo é
discutido com figuras de linguagem que não expressam nada a não ser expectativas, anseios e
sentimentos grupais, mas que são tidos como coisas substanciais. Pode haver ali muito
conhecimento importante mas é quase tudo discurso poético, que pode até servir de
orientação (tal como a tribo se orienta com os seus mitos) mas que exige um grande trabalho
de transposição para obter algum conhecimento realmente científico, embora numa parcela
ínfima onde o discurso analítico possa se aplicar; 6) Mesmo o pragmatismo que diz não se
importar com a substancialidade das coisas, ainda assim toma as acções como matéria
substantiva, pelo que não dá para fugir do assunto.

A substancialidade é o problema filosófico por excelência. Sem uma substância não


temos o “quê” para atribuir as outras categorias. α51

178. O senso de infinitude


Quando graduamos os nossos conhecimentos, observamos que quanto mais subimos
no nível de credibilidade, mais reduzido é o universo de conhecimentos correspondente. Se é
quase ilimitado o número de coisas que podemos dar como possíveis, esse número já é bem
menor para aquilo que se nos afigura como verosímil, e vai se estreitando sobre o que se
afigura como provável, até ser um número ínfimo em relação àquilo que podemos dar como
absolutamente certo. De repente, até pode se nos afigurar que não há nada certo e esta é uma
porta de entrada para o cinismo dos cépticos.
143

Contudo, há algumas certezas que podemos ter, desde logo a da nossa existência. Mas,
para não cairmos no erro de Descartes, a primeira certeza deve vir logo acompanhada de uma
segunda, que é a de existirmos num universo ilimitado. Este universo “boia” dentro de um
campo de possibilidades ainda mais ilimitado, o apeiron de Anaximandro. Se há uma
necessidade absoluta é a da existência do infinito, não tomado quantitativamente, como na
série dos números, mas como aquilo que está para além de todas as limitações possíveis.
Afirmar que o infinito não existe é dizer que a totalidade do que existe é limitada, o que
obrigaria a haver algo “para lá” que a limita-se, e se este “para lá”, não fosse ele ilimitado,
teria de obrigar a existir um outro “para lá” que o limitasse, e assim por diante até ao infinito.

Todo o ser humano tem um senso de infinitude, que é a base da nossa compreensão,
mas apenas temos a experiência de coisas finitas e até mesmo ínfimas. Contudo, tudo o que
conhecemos é como unidade, lembrando Duns Scot que dizia que o ser e a unidade se
convertem mutuamente. Então, em tudo o que conhecemos há uma tensão primária entre o
um e o infinito. Só existe um infinito e, por outro lado, só podemos predicar aquilo que tem
unidade. A razão humana consegue mover-se entre estes dois extremos e é isto que nos
permite classificar, catalogar ou predicar, embora a nossa capacidade racional não precise de
conhecer o seu fundamento para continuar a operar. α51

[Aula 52]

179. Ciências do conhecimento


Aristóteles evidenciou que podemos olhar os objectos que apreendemos por simples
apreensão [171, 174, 176] por três ângulos. O primeiro é o da lógica formal, onde se obtém o
conceito do objecto e pode-se articulá-lo com outros para produzir juízos [175, 177],
construindo assim um raciocínio. O segundo ângulo é o da lógica material, a moderna Teoria
do Conhecimento ou Gnosiologia, que estuda a relação entre o pensamento e a realidade a
que ele se refere. Finalmente, existe a perspectiva psicológica, que enfoca o processo real na
mente em que ocorre o acto do conhecimento. Depois, apareceram outras perspectivas, por
exemplo, a lógica material dividiu-se em Teoria do Conhecimento Geral e Teoria do
Conhecimento Científico (ou Epistemologia, embora nos EUA o termo sirva para os dois
casos). Esta última, por sua vez, desdobrou-se na Metodologia (estudo do método científico
em si e dos vários métodos científicos específicos) e na Criteriologia (estudo do grau de
realidade ou de acerto obtido pelos vários conhecimentos). Mais recentemente surgiu a
Sociologia do Conhecimento (Max Scheler, Max Weber e Karl Manheim), que avalia o quanto
os hábitos sociais, instituições, regras sociais, etc., podem delimitar ou até determinar
antecipadamente a possibilidade do conhecimento. Desta forma, também se torna possível a
História do Conhecimento de modo geral. Os ramos da linguística e da semântica eram
possibilidades também quase desde o início, porque os aspectos linguísticos seguem de perto
a simples apreensão.

Mais recente ainda é o advento da Psicopatologia do Conhecimento, que curiosamente


revelou-se bastante mais profícua do que quase todas as outras ciências no esclarecimento de
várias questões. A consciência mórbida, ao contrário da consciência normal, diferencia-se
sobretudo no aspecto da simples apreensão. O sujeito louco dá nomes errados às coisas não
devido a uma deficiência linguística mas porque acredita realmente estar vendo aquilo que
144

está a dizer. O universo psicopatológico não é totalmente estranho à mente normal ou não
poderíamos penetrar nele. A patologia introduz um elemento de privação, que para
Aristóteles seria a falta de alguma potencialidade que o ente deveria ter. No indivíduo
psicologicamente doente, a primeira capacidade que se constata estar em falta é a percepção
da forma substancial, que ele confunde com outra que ele mesmo atribui. Hoje temos a
ciência moderna ignorando as formas substanciais mas, ainda assim, pretende colocar em
dúvida todas as demais formas de conhecimento.

O conhecimento científico actual entra no domínio psicopatológico, mas impôs-se


como se fosse a única autoridade com legitimidade a nos dizer o que é a realidade. A
capacidade de raciocínio lógico (silogística) é a função menos afectada nos estados mórbidos,
tal como acontece nas capacidades aritméticas e geométricas e até mesmo com certas
capacidades matemáticas superiores. Estas capacidades ficam mais ou menos intactas porque
são as mais mecânicas, são as mais elementares e não se justifica a confiança que se deposita
nelas para investigar os problemas mais altos e complexos do conhecimento. O seu prestígio
deriva de serem as capacidades que se podem ensinar mais facilmente e também as mais
aptas a serem verificadas por terceiros. Então, é ingénua a crença de que as capacidades
matemáticas devem ser as usadas para resolver os problemas mais altos e complexos do
conhecimento. α52

180. As limitações da perspectiva lógica-matemática


A perspectiva lógica a respeito do conhecimento é uma das mais problemáticas. Os
conceitos extraídos da simples apreensão [171, 174, 176] são encaixados em raciocínios e,
assim, mudam de natureza. Se pensamos no conceito de “homem”, ele pode se referir a um
homem em particular, ou ao colectivo dos homens existentes, ou ainda à própria natureza
humana. Mas a simples apreensão já subentende, pelo menos, um juízo [175, 177] de
existência. A lógica faz abstração deste juízo e passa a lidar apenas com raciocínios
hipotéticos, que podem reduzir tudo a um sistema mecânico e reproduzível. Assim, afastamo-
nos da percepção sempre que adoptamos a perspectiva de uma ciência particular (lógica,
psicologia, sociologia do conhecimento, epistemologia…) e estaremos já a estudar
irrealidades. Cada ciência vai isolar do objecto material uma parte (objecto formal) para
tentar responder a uma questão derradeira (objecto formal terminativo). O que seria
razoável fazer era começar por estudar as características gerais do acto de percepção,
presentes em todo o acto perceptivo, e depois estudá-lo a partir dos pontos de vista de cada
ciência em particular. Isto seria a função da Teoria do Conhecimento, mas esta já se
subdividiu em tantas ciências que perdeu o ponto de vista geral.

A ciência moderna tem como procedimento a comparação entre aspectos


matematizáveis de fenómenos parciais. Isto foi levado às últimas consequências na mecânica
quântica, e o resultado foi que os físicos já não fazem a mínima ideia do que seja o objecto
que estão estudando. Sendo estes fenómenos reais a seu modo, não temos a menor ideia do
seu encaixe dentro da realidade total, ou seja, é um conhecimento que não tem dimensão
ontológica. Toda a gente precisa de uma concepção ontológica, ou seja, de uma noção das
esferas de realidade. Por exemplo, precisamos de conceber algo como o mundo humano e a
Natureza, saber como se relacionam, quais as dimensões de cada um e assim por diante. Sem
isto, não temos qualquer senso de orientação. Em relação ao conhecimento científico estamos
mais ou menos nesse estado.
145

O critério da verificabilidade costuma dar prestígio à ciência, mas tem como


implicação que só pode ser aceite como conhecimento aquilo que é compartilhável por um
grupo de pessoas. Contudo, o sábio é admirado precisamente por saber coisas que os outros
não sabem. Mesmo em ciência, uma fórmula facilmente reproduzível pode esconder um
universo de coisas irreproduzíveis que levaram até àquele resultado. As decisões dramáticas
da História nem sequer podem ser reduzidas a esquemas, porque nada daquilo se pode
condensar numa fórmula e aplicar a situações que pensamos ser análogas. O historiador
apenas se pode abrir à constelação de factores ali envolvida e conseguir ter uma ideia
aproximada do que estava em jogo. E há intuições que apenas ficam registadas de forma
precária, em poemas ou peças de teatro, por exemplo. Enquanto estes conhecimentos ainda
são compartilháveis de alguma forma, não ao nível do conhecimento científico, existem
outros que não são compartilháveis de forma alguma, mas é sobre estes que toda a
comunicação se baseia.

Todas as perfeições do conhecimento científico não bastam para compor um único


objecto real. O conhecimento científico pode complementar ou, sob determinados aspectos,
corrigir a percepção mas não se pode substituir a ela. Mas o inverso ocorre, a percepção
efectiva substitui o conhecimento científico e até pode incorporá-lo em si, por isso o
especialista consegue enxergar mais coisas que o leigo. α52

181. Cosmologia antiga e ciência moderna


Antes do advento da modernidade, o universo era visto como uma rede de símbolos,
considerando-se que só fazendo a interpretação deste era possível chegar à compreensão dos
níveis mais elevados da realidade (ver The Wisdom of Ancient Cosmology, de Wolfgang
Smith). Todo o objecto é constituído por círculos de realidade, que se encaixam uns nos
outros. Por exemplo, quando olhamos uma pessoa, desde logo não vemos apenas uma figura
estática mas uma forma, em sentido aristotélico, em que a aparência externa manifesta um
conjunto de tensões e intenções internas. Por baixo disso há uma série de tensões
perceptivas, e se voltarmos a atenção para o olhar e para a expressão da pessoa entendemos
mais ou menos o que ela está percebendo. O mesmo se pode dizer para as intenções da
pessoa. Mais fundo ainda existe a história dela (ela não veio do nada), e o padre Pio
conseguia perceber esta dimensão das pessoas na confissão. Só Deus sabe a posição de cada
coisa na ordem inteira do ser, mas temos alguma antecipação disso no círculo de la latência.
Percepção concreta é percepção dos vários círculos de latência. Ainda que o latente não esteja
patente, ele já é uma espécie de energia presente que evidencia as possibilidades de acção e
paixão daquele objecto.

Até ao advento da ciência moderna, os estudantes aprimoravam-se na percepção do


círculo de latência, para chegar a graus mais elevados, universais e abrangentes. Um
indivíduo podia ser percebido não apenas na curva inteira da sua existência mas até no
próprio significado eterno que isso pudesse ter. Com o vingar da ciência moderna, tudo isto
foi abandonado e o interesse foi voltado apenas para a comparação de fenómenos encarados
matematicamente. Isso é claro em Bacon, para o qual a física era a única ciência, embora os
seus livros praticamente não contenham observações. Na nova mentalidade caíram as
dimensões verticais, da elevação e da profundidade, e sobrou um universo horizontal, das
coisas que têm apenas presença imediata. Neste contexto, o conhecimento limita-se à
146

comparação de aparências, sendo o objectivo final o controlo de processos causais, ou seja, o


conhecimento torna-se numa forma de poder.

Arthur Whitehead dizia que o acto de conhecimento não pode ser explicado por nada
fora dele mesmo. Se apelarmos à fisiologia cerebral, por exemplo, eliminamos a distinção
entre ser e conhecer, porque o conhecer irá se reduzir ao ser. O conhecimento pode ter actos
neurofisiológicos concomitantes, mas estes também se poderiam ter dado sem se ter
produzido conhecimento algum. Então, o conhecimento está colocado numa dimensão acima
no universo físico. Apenas no Deus de Aristóteles, o noesis noesios (conhecimento do
conhecimento), ser e conhecer se identificam. A ciência antiga visava essa direcção, tendo por
objectivo a intensificação da consciência do acto de conhecer, através da percepção dos vários
círculos de realidade que compõem cada ente para, idealmente, perceber instantaneamente o
seu encaixe no universo inteiro. O objectivo da filosofia é dar uma percepção enriquecida do
universo.

Quando alguém pergunta o preço de uma laranja no supermercado, ali já se


subentende que percebemos espacialmente a laranja, que sabemos que ela tem certas
propriedades nutritivas, que conhecemos algo do desenvolvimento da laranja, que ela passou
por um processo comercial até chegar ali, e até outras coisas, por exemplo, não deixamos de
fazer uma apreciação estética. Tudo isto é captado num relance mas nenhuma ciência é capaz
de fazer o mesmo. Todas as ciências suportam-se numa ontologia natural do homem
comum, e é isso que precisamos de aprofundar. α52

182. Ciência e poder


A ciência moderna fechou a porta ao conhecimento intuitivo e à riqueza da percepção,
limitando o conhecimento a uma pequena faixa consensual de possíveis comparações entre
fenómenos, tudo com vista a obter controlo sobre processos naturais, o que supostamente
tornaria o homem mais livre. Contudo, trata-se de uma generalização abusiva, porque não
são todos os homens que obtém um maior controlo sobre a natureza no processo, apenas
uma pequena parcela de indivíduos está apta a manipular o mundo natural e, no decurso, vai
adquirir um enorme controlo sobre outras pessoas. O uso da ciência como forma de controlo
social não foi um erro acidental mas algo que deriva da própria definição desta. A ciência
moderna foi concebida para produzir efeitos tecnológicos e estes, ao se integrarem na
sociedade, provocam necessariamente uma diferenciação entre indivíduos, distinguindo
aqueles que têm o conhecimento e os recursos para implementar processos relacionados.

Como a ciência foi separada da filosofia, não há qualquer garantia de que os


indivíduos que possuem o controlo tecnológico tenham desenvolvido uma sabedoria
correspondente, e quase certamente que apenas se irão reger por fins pragmáticos, não
assumindo a responsabilidade inerente ao conhecimento e ao poder que possuem. α52

183. Res cogitans e res extensa


Descartes dividiu a substância na res cogitans (a nossa mente) e na res extensa (a
coisa extensa, que pode ser medida de alguma forma). Só na aparência isto corresponde à
distinção entre mente e corpo, porque as coisas não vêm com medida, que é algo que surge
apenas com a intermediação da mente humana, que faz a relação entre aspectos de objectos.
147

No fim, o que esta divisão provocou foi reduzir tudo à res cogitans. Mas quando percebemos
algo, não percebemos um aspecto só, percebemos um objecto real com uma série de
propriedades e acidentes, e percebemos também que é um conjunto ilimitado. Contudo, vai
haver uma diferença entre a maneira de perceber e a maneira de conceber o objecto. Nesta
última, o objecto é pensado separadamente de todos os elementos acidentais. α52

184. Extensão e compreensão de um termo


Um termo é aquilo no qual um conceito se condensa (sendo ele já a condensação de
uma simples apreensão) segundo a sua extensão e compreensão. A extensão – universo de
aplicação – tem uma divisão básica de termos singulares e termos comuns. Estes últimos
podem ser colectivos, abrangendo os indivíduos na medida em que pertencem àquela
comunidade (ex. os brasileiros), ou universais, que designa aquilo que é comum a toda uma
classe de seres. Quando dizemos “os homens”, podemos nos referir à humanidade
considerada quantitativamente (termo colectivo) ou no sentido da essência humana tal como
se aplica individualmente a cada um (termo universal).

A compreensão é o conjunto de notas do termo. Esse conjunto é claro quando


distingue um ser dos outros seres, caso contrário é obscuro, ou seja, não é nítido mas
nebuloso. O conjunto de notas também pode ser distinto ou confuso. No primeiro caso, os
traços constitutivos do ente aparecem evidenciados, no segundo surgem misturados. Quando
um indígena vê pela primeira vez um homem com armadura em cima de um cavalo e pensa
tratar-se de um único ser, ele teve uma percepção confusa, que dá origem a um concomitante
termo de compreensão confusa. Em termos de compreensão, o termo pode ser ainda ser
abrangente ou não abrangente, dito compreensivo ou não compreensivo. O termo
compreensivo abrange todos os caracteres daquele ente particular, com todas as relações
possíveis com os demais entes, e a rigor só se aplica a Deus. Em geral, a abrangência apesar
de ser incompleta é ainda suficiente, abrangendo todos os caracteres do ente necessários para
os raciocínios pretendidos. α52

[Aula 53]

185. As distinções aplicadas à ciência


Já vimos nas aulas anteriores as noções de simples apreensão [171, 174, 176], conceito
[176] e termo [184], mas precisamos ter noção de que são classificações apenas válidas do
ponto de vista lógico, ou seja, dentro da ordem do raciocínio. Isto é suficiente dentro do
domínio de cada ciência, porque nenhuma delas lida com objectos reais. Para entender o
ponto de vista de cada ciência (e as suas limitações) temos de perceber os recortes que ela fez
para seleccionar o seu objecto, baseados numa série de distinções [134]. Não existe apenas a
distinção real-real, que separa entes que nada têm a ver uns com os outros (como acontece
com os objectos da embriologia em relação aos da trigonometria). Há também a distinção
real-mental, que apreende coisas realmente distintas mas que não existem separadas, como
acontece com um objecto e uma sua propriedade, só sendo esta última captada como distinta
mentalmente. Por último, existe a distinção formal, que é puramente mental e não
148

corresponde a uma diferença real na estrutura do indivíduo, por exemplo, a designação de


alguém por nome e apelido. Todos os objectos das ciências são obtidos através destas
distinções, e quando chegamos à matemática é tudo construção puramente mental, não
existem mais objectos de experiência, apenas objectos concebidos (eventualmente por
analogia com percepções de objectos reais). Mesmo algo como a medida não é um atributo
real. Não existe objecto algum que tenha a sua própria medida, já que esta deriva sempre da
comparação entre objectos. Não tem sentido falar da medida de um objecto único solto no
espaço infinito. α53

186. A tensão entre o finito e o infinito como residência da inteligência


Em relação a qualquer objecto da Natureza aplica-se o Triângulo de Pierce: existe o
signo concreto (ex. “a água”), o significado (aquilo que pensamos a respeito) e o referente,
que é aquilo que queremos dizer sobre o objecto naquele momento (“água de beber”, “água
da tempestade”, “água do baptismo”). Jean Borella (A Crise do Simbolismo Religioso) diz que
a articulação de signo, significado e referente depende, em última instância, de uma
referência metafísica. Entidades puramente metafísicas expressam-se diante nós mediante as
suas encarnações sensíveis, por exemplo, a água do baptismo representa a matéria-prima,
um aspecto da possibilidade universal (mas a relação não é bilateral, já que a matéria-prima
não é a água). O simbolismo religioso não é uma invenção, como acontece com uma figura de
linguagem ou com um símbolo literário, que funcionam por analogia. Existe, neste caso, uma
ligação real entre o símbolo e o referente metafísico.

Então, a água pode ser analisada de formas completamente distintas. Por um lado,
pode ser encarada como uma substância, já que é concebível fundamentalmente como algo
que nem é parte ou atributo de algo. Mas encarada na escala metafísica, a água deixa de ser
substância e passa a ser um símbolo da verdadeira substância, que é a possibilidade
universal. Tudo, incluindo nós, pode ser visto como atributo da possibilidade universal. A
lógica só se torna proveitosa quando articulamos estes dois pontos de vistas contraditórios.

As próprias sentenças do discurso lógico não têm apenas uma dimensão lógica estrita,
trazem também significados dialécticos, retóricos e poéticos. A beleza de uma demonstração
matemática não tem um equivalente matemático, apenas análogos, mas que expressam na
realidade um sentido poético. Por outro lado, quando contemplamos algo extremamente
belo, isso pode provocar em nós um anseio de beleza, que pode tentar ser resolvido a vários
níveis, como o erótico ou o estético, mas em algumas pessoas é despertada uma sugestão de
beleza eterna, que vai confluir numa noção de felicidade eterna e de beatitude, e esta mostra-
se como um aspecto da verdade eterna. Nesse caso, juntam-se os três transcendentais que
Duns Scot diziam serem aspectos da mesma coisa: a beleza, a verdade e o ser. Nesta ascensão
percebemos também que sem a verdade e a beleza infinitas também não existiriam as
correspondentes finitas, e que a única coisa que existe necessariamente é o infinito e o resto
pode ser contingente, o que não quer dizer que só exista o infinito, porque nesse caso ele só
existiria em potência. Isto dá-nos um senso de direcção, que indica para onde se devem
dirigir os nossos esforços, que é para a beleza eterna, para a bondade eterna e para a verdade
eterna.

Algumas actividades humanas, como a filosofia ou a religião, simbolizam este senso


mas elas não são a realidade, pelo que terão uma relação ambígua com o referente metafísico,
149

tal como todo o símbolo tem uma relação ambígua com o seu significado. Isso quer dizer que
não existe uma actividade humana que satisfaça a finalidade última, mas elas servem para
nos recordarmos da experiência de ascensão e da direcção que devemos seguir. O que
distingue fundamentalmente os seres humanos é o esquecimento ou recordação, como na
redondilha de Camões, em que o escravo na Babilónia recorda Sião, sua pátria celeste. O
salmista pedia para ser amaldiçoado se o esquecimento vencer nele, e é isso que atraímos
para nós quando acreditamos nos elementos materiais, singulares e concretos, como se
existissem em si e de per si. Se aplicamos a definição lógica de substância ao mundo da
materialidade, então, reforçamos a ideia de que as coisas existem de per si, por estarmos a
confundir o plano ontológico com o plano das essências. Na realidade, o mundo está numa
relação de interdependência e tudo é símbolo considerado face à possibilidade universal,
tudo é atributo sem qualquer substancialidade.

A inteligência humana vive numa tensão que não pode abolir. Por um lado, vivemos
numa dimensão de inconsistência, irrelevância, infinitude. Mas também temos um vislumbre
da beleza e do ser eternos mas não os alcançamos num estado de beatitude. Quando
percebemos que nunca teremos a sua posse, podemos ter uma reacção de rejeição para aliviar
a tensão, então, vamos dizer que só existem as coisas que podemos medir, aquelas a que
temos acesso directo. Nicolae Steinhardt (O Diário da Felicidade) mostra um caso de
vivência desta tensão a um ponto extremo [153]. Ele contemplava a beleza eterna enquanto
estava na prisão passando fome e sendo torturado. A medida da inteligência humana é a
abertura tanto para o infinito, assim como a abertura para a dimensão da finitude. Estamos
sintonizados com a verdade quando, no estudo de algum objecto, temos consciência destas
duas dimensões em que ele se insere e que também estão em nós. Isto implica que todo o
conhecimento tem de ser considerado dialecticamente, pelo lado opositivo, paradoxal, ou
então sai coisificado.

Na sua máxima universalidade, a inteligência é a capacidade de perceber o real, não


como se fosse algo a passar numa tela mas tendo consciência da nossa participação nele. No
acto de cognição autêntico, a consciência de um certo estado de coisas é inseparável da nossa
autoconsciência do acto e do modo de conhecê-lo. A ciência prática faz este rompimento por
meio da abstracção, e não temos que abandonar isto, devemos apenas lembrar de onde
abstraímos aquilo e, desta forma, recuperar a experiência concreta, o que nos volta a dar a
tensão entre o finito e o infinito. Tudo isto se perde quando trocamos o mundo da experiência
real pelo “consenso dos sábios”, que apenas valoriza as questões de prestígio social e as
habilidades especializadas em detrimento da sabedoria. Isto não invalida a especialização
científica em si, que já subentende uma ontologia geral dentro da qual as espécies se
especializam, mas denuncia a espécie de ciência que se arroga a ter a totalidade do
conhecimento. Todo o conhecimento pressupõe o ser – pressupõe que algo existe –, por isso,
tem sempre alguma ontologia embutida. Toda a ciência aceita implicitamente algumas
proposições gerais sobre o ser e que não vai discutir.

A lógica é uma ontologia aplicada à estrutura (ordem) do raciocínio formalmente


consistente, não se interessando pelo raciocínio como fenómeno psicológico real. O seu
objecto não é um objecto material mas uma série de abstrações. Então, os conceitos da lógica
tornam-se problemáticos quando os tomamos como representativos de fenómenos reais. Por
exemplo, Aristóteles diz que a substância é aquilo que nem é parte de um outro ser e nem um
seu atributo, contudo, isso não implica que a substância possa existir separadamente. Na
150

realidade, esta definição de substância é válida do ponto de vista da essência mas não da
existência, onde as coisas aparecem como dependentes umas das outras e até como atributos.

O conhecimento dos entes de realidade não se pode obter directamente do raciocínio


lógico, já que é composto de outros aspectos também. Hugo de São Vitor referia três etapas
do conhecimento, que já vimos antes [120]: pensar, meditar e contemplar. A contemplação
articula várias meditações, e em cada uma destas é feito o rastreio de um pensamento até à
experiência fundamental que o originou. Naturalmente que a meditação e a contemplação
são as actividades superiores do conhecimento. Elas não se restringem a uma operação da
mente sobre si mesma, sempre é transcendida a consciência que está meditando. Sempre
temos a percepção de um panorama finito que, assim, aparece-nos como incompleto,
sugerindo que há mais alguma coisa por trás. Vemos uma coisa bela, que nos causa uma forte
impressão, mas ao mesmo tempo isso contrasta com a incompletude daquilo, o que sugere
uma abertura para algo mais. α53

[Aula 54]
187. Exercício do Necrológio, mortalidade e evolução dos modelos de
conduta
O Exercício do Necrológio [4] visa colocar-nos perante o fenómeno da nossa morte. A
mortalidade é aquilo que dá forma à nossa vida, é o que permite fazer dela uma narrativa
com sentido e que nos dá uma base para julgarmos os nossos actos. O nosso necrológio não é
propriamente um modelo, porque este seria uma coisa imposta desde fora. O modelo clássico
greco-romano era o da personagem ilustre que a população podia imitar. Mas com o advento
do cristianismo, a imitação de Cristo torna-se inalcançável, dado que é um modelo infinito. A
própria noção de modelo desfaz-se e é substituída por uma meta divina. Mas a imitação de
Cristo tem outra diferença relativamente ao modelo clássico: não é mais uma imitação
externa, é um esforço interno que não têm mais um público como juiz mas o próprio Cristo.
Isto torna-se clarividente nas Confissões de Santo Agostinho, onde ele se apresenta diante de
Deus, que é o seu juiz, o seu modelo de conduta e a inspiração da sua busca. Enquanto
Agostinho se apresenta ao interlocutor omnisciente, ele vai se descobrindo a si mesmo num
processo dialéctico.

Com o advento da modernidade, a ascensão de uma aristocracia independente do


clero voltou a tornar importante a conduta pública dos indivíduos. Os novos modelos de
conduta tinham uma vaga inspiração em Cristo, mas o processo não é mais interior, tratava-
se agora de mera adequação social e de cumprir expectativas em relação a nobres e príncipes.
A arte narrativa teve neste período um grande desenvolvimento, assim como o teatro, que é
uma arte de mostrar outras condutas personificando-as em palco. Com estes
desenvolvimentos tornou-se muito mais fácil conceber personagens e vidas inteiras, dado
que a imaginação passou a estar povoada com muitos tipos humanos. Mas as habilidades
teatrais também saíram do palco e os indivíduos aptos a desempenhar certos papéis
passaram a obter maior sucesso. Espalhou-se na literatura a imagem da vida como um teatro
e as próprias aulas de medicina pareciam peças.
151

Sendo a imitação sempre imperfeita, sempre havia um descompasso entre aquilo que
os indivíduos realmente queriam e aquilo que a sociedade esperava deles. Havia uma vaga
consciência de que o novo mundo mediado pela teatralidade era uma farsa. Nos intelectuais
esta percepção era aguçada, e como todos sabiam que estavam mentindo, então,
empenhavam-se ainda mais nisso. Já no séc. XVI Thomas Moore dizia que a mentira mais
eficaz era a que todos sabiam ser mesmo mentira (ver a transcrição desta aula para
acompanhar a análise ao quadro “Os Embaixadores”, pintado por Hans Holbein em 1533,
onde se evidencia toda a falsidade de dois jovens diplomatas de sucesso, ao mesmo tempo
que é ressaltada a perda do senso de hierarquia quando se passa de uma perspectiva vertical
para outra horizontal).

A sociedade fornece os novos modelos e, portanto, ela é o juiz, o que se entrecruza


com a necessidade elementar humana de ter uma certa aprovação e segurança social. As
pessoas entram em grupos religiosos, clubes ou partidos devido a estas necessidades e vão se
espelhar nestes grupos. Mas eles não podem fazer nada por nós na hora da nossa morte, tudo
vira poeira. Então, todos os processos de adaptação social (que não podemos evitar) devem
ser vistos apenas como símbolos da formação da nossa personalidade perante Deus. Há
sempre o risco de as figuras imitativas que incorporamos em nós sacrificarem a nossa voz
própria com que falamos com Deus, assim, deixamos de ter um interlocutor para falar com a
realidade. Não é um dos nossos papéis sociais que se apresenta ao observador omnisciente,
mas, como não sabemos realmente quem somos, aquele que se apresenta não tem uma forma
descritível e identificável. Então, perante Deus apresentamo-nos nus, sem papéis sociais,
expondo uma figura que desconhecemos mas Ele conhece, porque alguma coisa realmente
somos. Apresentamos um enigma para Deus, fruto das nossas inúmeras contradições,
sempre com novos elementos a entrar, e é Deus quem nos vai definir e refazer a partir da
nossa confissão sincera.

Deus refaz-nos tal como fez o mundo; não foi como uma força que age sobre uma
matéria pré-existente. Para concebermos isto, temos de suprimir mentalmente tudo o que
existe, até a nossa própria consciência, e sobra um nada mas cheio de possibilidades, porque
sabemos que algo aconteceu. Antes dos entes existirem, teve de existir a possibilidade da sua
existência, quer esta venha a se verificar ou não. Esta possibilidade contempla também as
relações possíveis entre entes, incluindo os acidentes. Em termos correntes, o conceito de
possibilidade tem o sentido de uma medida de uma conjectura, algo ao nível dos entes. Mas
no caso da criação falamos da possibilidade considerada em si mesma, acima e anterior aos
entes. Esta possibilidade já não é mais uma relação entre entes mas a constituição destes
como essências (aquilo que os entes são independentemente de existirem ou não). A
possibilidade já contém todas as essências, que são precisamente as formas das
possibilidades respectivas. Não apenas as essências estão presentes previamente na
possibilidade total, também as relações lógicas entre essências estão ali contidas, assim como
as relações acidentais. Admitir o contrário é dizer que algo pode acontecer sem ser possível.

Estavam todas as possibilidades mescladas, só se distinguindo à medida que as coisas


vinham à existência? Se assim fosse, teria se realizado algo não contido na possibilidade total,
o que é absurdo. Então, as possibilidades são uma ordem prévia, mas não apenas teórica e
hipotética, como acontece com as possibilidades ao nível dos entes. A possibilidade total já
abrange e contém toda a existência. A possibilidade total existe numa modalidade especial,
de modo eminente, mais do que a totalidade dos entes existentes, ela é a existência da
existência. Deus é isto e não um Ser Supremo, que é apenas uma figura de linguagem. Por
152

isso, é uma ilusão procurar Deus, que é um intento que já tem a conotação de procurar um
ser, devemos sim buscar a verdade e a realidade, sabendo que todas as instituições têm
limitações humanas e desiludirmo-nos com elas pode ser útil para chegarmos à atitude
própria da confissão, a total rendição perante Deus. A existência é apenas um aspecto da
possibilidade, e esta retira a sua existência de si mesma. Não há razão alguma para os entes
terem vindo à existência e por isso se diz que Deus criou o mundo por amor. Estes dois
últimos parágrafos são uma meditação que procura compreender a afirmação “Deus criou o
mundo”, assim como responder à pergunta “porque que é que existe o ser e não o nada?” São
considerações úteis para compreender o Capítulo I do Livro III da Suma Contra os Gentios,
de São Tomás de Aquino. α54

[Aula 55]

188. Problemas na interpretação de autores antigos e medievais


A interpretação de autores antigos e medievais coloca hoje uma série de problemas.
Desde logo, existe um afastamento temporal, que provoca um esquecimento do antigo
quadro de referências e, assim, muitas subtilezas escampam-nos. Pior que isso são as
palavras às quais atribuímos um significado actual bastante deslocado do que tinham na
altura em que foram escritas. Há toda uma cosmovisão e modos de colocar os problemas que
se alteraram. E há a mitologia moderna lançada sobre o passado e que frequentemente
inverte a realidade histórica. Muito disto deveu-se à emergência de uma nova
intelectualidade palaciana, que tinha uma formação escolástica deficiente e uma relação
ambígua com os seus senhores.

O homem medieval não considerava que as acções humanas fossem fruto de


condicionamentos biológicos ou genéticos, nem mesmo fruto de uma escolha pessoal. Ele
considerava que aquelas acções eram a tradução terrestre de factores cósmicos, sendo usual o
reconhecimento das pessoas pelos seus tipos astrológicos: o irascível estava associado a
Marte; o bonacheirão e seguro de si era relacionado com Júpiter; o magro e melancólico
correspondia a Saturno.

Para além do quadro de referências imaginativo e simbólico, é necessário recompor o


sentido que tinham várias palavras ou vamos atribuir a elas um sentido modernizado. Por
exemplo, a própria palavra “imaginativo”. Quando a cosmovisão galilaica ganhou
preponderância, passou a considerar-se que apenas existiam apenas duas coisas: o mundo
físico composto de propriedades matemáticas; e a mente que descobre estas coisas. Assim,
tudo o que era explicado como imaginário passou a ser relegado para fora da realidade. Na
cultura anterior, considerava-se o imaginário como um modo de apreensão da realidade,
correspondente ao que de facto acontece mas que é negado em certos meios culturais actuais.

Outra coisa que passou a ocorrer foi uma confusão sobre o plano em que os problemas
se colocam. Thomas Moore ficou bastante intrigado com um problema que lhe colocaram: a
impossibilidade de provar que estamos sonhando ou que estamos acordados. Moore acabou
por concluir que o senso da realidade é garantido pela fé, entendida não como crença
subjectiva mas como participação no corpo da Igreja, ou seja, como um apelo à crença
153

colectiva. Na verdade, trata-se de um falso enigma porque sonho e vigília são estados do
nosso conhecimento e não estados ontológicos, ambas as coisas ocorrem no mundo real.
Thomas Morre acreditava que estava a fazer um elogio à Igreja apelando à fé e ao prestígio da
instituição, mas na realidade ele negava a doutrina cristã, que afirma a existência de um
mundo real cognoscível pelo ser humano, ou seja, cometia uma heresia material (não heresia
formal, porque não era intencional). Alguns séculos depois, Kant iria cometer o mesmo erro
ao dizer que não conhecemos a coisa em si, apenas a sua aparência fenoménica, pelo que
apenas um imperativo categórico nos obriga a acreditar na existência do mundo. Kant
inevitavelmente acabaria por hipertrofiar o elemento fé. A fé tornou-se no fundamento do
conhecimento do mundo objectivo, quando antes se considerava impossível ter fé sem
acreditar no mundo objectivo.

A partir da Renascença, a imagem de Deus alterou-se significativamente mas não o


Seu conceito. O mundo físico passou a ser visto como a realidade básica e independente, e
Deus, apesar de ter criado este mundo, era um ser separado dele. Criaram-se exercícios para
tentar recuperar a antiga imagem de Deus, por exemplo, imaginar o que é a visão divina
pervasiva a partir dos quadros onde Cristo parece estar sempre olhando para nós
independentemente da direcção em que olhemos para a pintura. O Exercício do Necrológio
[4] serve também para entendermos a forma como Deus olha para nós, que nada tem a ver
com o olhar do observador externo.

Um mito comum que provoca muita incompreensão em relação aos antigos afirma
que, até ao advento da ciência moderna, acreditava-se que tudo podia ser compreendido pelo
puro pensamento. Na verdade, essa é uma ideia que só surgiu no século XVII com Espinosa,
que afirmava que não era possível retirar conhecimento algum da experiência (este é o
racionalismo moderno, que depois provocou o surgimento do empirismo moderno de
pensadores como Locke). Mas se remontarmos a Aristóteles, a maior parte da sua obra é
sobre ciência natural, é colecta de factos, e foi daqui que ele partiu para a lógica e para a
metafísica. Outro mito moderno diz que a Igreja rejeitou o heliocentrismo porque a Terra
passaria a ser vista como um planeta insignificante, o que iria desvalorizar o homem e o lugar
da Criação e da Queda. Jean Borella mostrou que o centro axiológico do sistema ptolemaico
nunca foi a Terra mas o Sol, que representava Jesus Cristo. A posição central da Terra na
realidade representava uma posição mais baixa. O sistema heliocêntrico, tal como proposto
por Galileu e Copérnico, foi rejeitado pela Igreja simplesmente porque estava errado (Galileu
apresentava o sol como centro do universo).

A cultura de fingimento da corte que Thomas Moore descreve [187] tem raízes mais
profundas, que podemos sondar n’O Livro dos Mártires, de John Foxe. Ele fala dos mártires
protestantes torturados e mortos pela Inquisição. Os suspeitos de heresia eram interrogados
pelo inquisidor com toda a educação e simpatia, num longo debate que pretendia convencer o
interrogado do erro das suas doutrinas. Contudo, por trás da polidez e da idoneidade
académica já estava o espectro do castigo. Então, desde o início que o debate é uma farsa
medonha. Diz Foxe que ia longe o tempo em que Santo Agostinho ou São Jerónimo
conseguiam persuadir as pessoas apenas pela força da inteligência. A Inquisição resultou da
decomposição do imaginário medieval, o que causou enormes dificuldades intelectuais, e aí
criou o teatro dos teatros. O suspeito de heresia que vencesse o debate contra o inquisidor
estava na pior posição de todas. Face à impotência do intelecto, restava a Thomas Moore uma
aposta cega na fé, não como convicção íntima mas como participação no corpo dos crentes.
Isto inaugurou o irracionalismo moderno, tanto de protestantes como de católicos. Na Suíça,
154

Calvino criou depois um reinado de terror muito pior que a Inquisição, em que não eram
apenas as condutas heréticas que eram fiscalizadas mas mesmo a conduta pessoal dentro de
casa. Ele criou o Estado totalitário, onde não há mais a possibilidade de sinceridade: todos
fingem porque estão sempre a ser vigiados. Quase todos os intelectuais modernos –
Descartes, Bacon, Thomas Moore, Galileu, Newton, Maquiavel – entraram neste fingimento e
inauguraram, juntamente com inquisidores e protestantes, a modernidade como uma
fantasia teatral macabra. α55

189. Conhecimento intuitivo


A filosofia moderna criou uma distinção drástica entre intuição e razão (que originou
a divisão entre empiristas e racionalistas). Conhecimento intuitivo é aquele onde
apreendemos algo imediatamente, pela própria presença do objecto. Conhecimento racional
é aquele construído segundo os princípios da lógica. Quando temos uma simples apreensão
[171, 174, 176], captamos a unidade substancial de um objecto, respondemos à pergunta:
quid? Obtemos uma forma integral e não apenas aspectos (ou teríamos apenas abstracções).
No raciocínio parece que estamos a fazer algo totalmente diferente, porque construímos um
objecto mental. Contudo, como captamos a unidade de um silogismo? Exactamente da
mesma forma que captamos a unidade de qualquer coisa, isto é, de forma intuitiva. Então, só
existe realmente conhecimento intuitivo (isto reflecte a ideia do “intuicionismo radical”), e o
conhecimento racional é apenas uma sua forma específica, forma essa que diz respeito à
matéria e não ao tipo de apreensão. Mesmo no caso de um raciocínio totalmente hipotético,
ainda estamos a captar intuitivamente a unidade interna de um esquema de possibilidades,
que é esquematizada pela imaginação.

A lógica não é a ordem do pensamento mas a ordem da possibilidade. Idealmente,


tudo pode ser descrito matematicamente, porque a matemática é a própria lógica. A aposta
na matemática feita pela ciência da Renascença inspira-se nisto, que já vem de Pitágoras e de
Platão. Contudo, enquanto estes sabiam que não era possível uma matematização perfeita, os
modernos inverteram um pouco o esquema e jogaram fora tudo o que achavam que não
podia ser matematizado, inclusivamente abandonaram muitas coisas que poderia ser descrita
depois pela matemática com os desenvolvimentos que ela teve. Assim, reduziam o real às
suas próprias capacidades, eliminando até as condições que permitem a prática da ciência.
Toda a ciência necessita de quatro condições básicas: 1) existência de evidência, como ponto
de partida; 2) possibilidade da prova, que a partir da primeira evidência fará aparecer outra
através do esquema de possibilidades; 3) o nexo entre a prova e a evidência; 4) evidência do
nexo. Ao separar a intuição da razão, o cientista torna a ciência impossível, mas na prática ele
realmente não faz isso e continua a servir-se da intuição só que não atenta a isso. E por baixo
do conhecimento intuitivo existe o conhecimento por presença [71], sendo a intuição a
actualização da presença do universo, que já é em si portadora do conhecimento. α55

[Aula 56]
190. A verdadeira identidade do ser humano
155

R. Craig Hogan apresenta, no livro Your Eternal Self, uma série de dados científicos
que mostram que a consciência (assim como a memória) não pode derivar da actividade
neurobiológica. O cérebro não tem a mínima capacidade para processar toda a informação
com que lidamos, parecendo antes funcionar como um órgão que filtra a informação que nos
chega. As experiências de visão remota, assim como as de quase-morte, onde até cegos
conseguem ver embora não exista qualquer actividade cerebral, parecem também indicar que
a mente não está no cérebro, antes tem a capacidade de o activar. O autor retira depois
algumas conclusões teológicas que não temos de seguir, por exemplo, não é necessário tentar
provar a vida após a morte com base nestes factos. A primeira conclusão que devemos tirar é
que não há qualquer prova de uma relação de causa-efeito entre cérebro e consciência. E o
importante é usar este dado para o entendimento do que é a nossa verdadeira identidade.

Mais do que a consciência não depender do cérebro, ela parece não depender de
espaço e tempo. Isto coloca logo um problema, porque quando dizemos “eu” estamos sempre
assumindo uma base espacial e temporal, mas estes dados apresentados por Hogan
evidenciam que temos uma existência extra-corpórea. E esta existência não se assemelha a
um delírio psicótico, porque os relatos das experiências de quase-morte mostram que as
pessoas estavam bastante inteligentes, viam as coisas com muita nitidez, a uma velocidade
impressionante e tudo muito ordenado. Mas fica colocado o problema de saber em que se
apoia a nossa verdadeira identidade. Aristóteles já dizia que a alma é tudo aquilo que ela
conhece, e agora fica mais claro que a substância da nossa identidade é o conhecimento, é
aquilo que sabemos. Mas a consciência de quase-morte tem também o elemento de decisão, a
nossa individualidade é ali conservada.

Todas as nossas percepções e memórias são fragmentadas, descontínuas. Contudo,


confiamos que o universo, assim como nós mesmos, tem uma continuidade e uma unidade.
Este senso não é dado pela percepção, antes é a percepção que funciona em cima deste senso.
O senso desta continuidade não é matéria de fé porque a fé é algo que podemos ter ou não,
mas ninguém tem a opção de descrer da continuidade e unidade do real (embora seja
possível criar teorias sobre isto, sempre agindo a partir deste senso que se nega). Também
não se trata de um conteúdo de consciência, porque mesmo em certos estados psicóticos
extremos não é negada a unidade do real. O doido que confunde a sua identidade com a de
um outro, ainda assim supõe estarem os dois no mesmo mundo. A unidade do real impõe-se
pelo conhecimento por presença [71], que é algo que não tem de subir à consciência porque é
esta que se constrói em cima deste conhecimento. Para Kant, a mente dá unidade aos dados
fragmentários dos sentidos. Se assim fosse, a mente teria de construir um universo inteiro e
seria até capaz de unificar informações que não possui.

As capacidades que se revelam acidentalmente nas experiências de quase-morte, na


realidade, funcionam permanentemente e são o que nos permite ter consciência ao nível
corporal. Então, temos à nossa disposição um imenso círculo de percepções e conhecimentos
que nos são inacessíveis através da consciência corpórea, o que quer dizer que somos maiores
do que imaginamos. Na realidade, não conseguimos aguentar a consciência de todas essas
coisas e, por isso, tem sentido ver o corpo e o cérebro como protecções contra a imensa massa
de percepções. Então, o cérebro é o órgão com o qual não pensamos, limitando a nossa
percepção e pensamento ao nível do necessário para a nossa existência terrestre.

A nossa identidade corporal é apenas um condensado simbólico e momentâneo da


nossa verdadeira identidade. Costumamos nos identificar com o nosso corpo, mas para
percebermos que o corpo é nosso temos de ter primeiro uma percepção invisível, “não-
156

percebida”. A nossa identidade extra-corpórea é capaz de se reconhecer com mais clareza do


que nos reconhecemos através do nosso corpo.

Já tínhamos visto que o raciocínio lógico depende da capacidade intuitiva [189], ou


seja, da percepção imediata que temos das coisas. O conhecimento discursivo (que transcorre
no tempo) baseia-se no entendimento intuitivo do discurso (este é apenas um símbolo de um
conhecimento). O discurso é útil quando não temos intuição imediata das coisas que
queremos conhecer, algo que deriva da deficiência do nosso conhecimento intuitivo na
condição corporal. Partimos dos dados acessíveis e construímos premissas a partir deles, a
partir das quais podemos elaborar um discurso, mas isto é uma maneira muito indirecta de
conhecimento. Mas se o discurso for perfeitamente coerente, podemos procurar confirmação
dele na intuição, que é algo que está sempre presente para dar inteligibilidade ao discurso.

As exigências de adaptação ao mundo fazem com que as pessoas se apeguem cada vez
mais aos dados sensíveis; elas ficam hipnotizadas pelo mundo corporal, sobretudo pelo medo
e pelo prazer. Na realidade, a cobiça e o prazer acabam por derivar do medo. A condição
terrestre básica é de angústia e de medo. Toda a busca de segurança e prazer provoca apenas
um alívio temporário, mas no fim acaba por reforçar o medo. Todos os meios terrestres,
incluindo alguns religiosos, não aliviam a nossa condição. As práticas religiosas são muito
boas mas só quando sabemos o que estamos a fazer.

Se a nossa verdadeira identidade é a de um ser supra-espacial e supra-temporal, que


está aberta ao conhecimento de tudo e está destinada a viver livre de medo e angústia, então,
é para com ela que temos a primeira dívida e só a partir dela compreendemos a dívida que
temos para com Deus. Não devemos entender isto a partir de uma posição religiosa, é apenas
um raciocínio lógico. Isto significa que não podemos aceitar a convivência ao nível mundano,
especialmente com a família, temos de quebrar estas amarras, mesmo se as pessoas se
ofenderem, tentando assim entrar numa convivência a outro nível, onde entrem elementos
da verdadeira identidade. E tudo isto não tem apenas uma vigência moral, tratam-se de
preliminares indispensáveis ao estudo da lógica. Já não estamos no tempo de Hugo de São
Vitor, em que todas estas coisas eram óbvias, pelo que temos que voltar atrás e ganhar
sensibilidade para elas.

Além do medo e da angústia, a nossa condição corporal é marcada pelo esquecimento,


que tem um papel fundamental no conhecimento. Aquilo que esquecemos continua presente
na alma imortal e, se tivermos confiança, aquelas coisas aparecerão de novo no momento
certo. A busca de conhecimento pode também se tornar num factor de alienação quando se
torna angustiosa. O nosso ser terrestre afrouxa um pouco o controlo quando nos abrimos
para aquilo que a nossa verdadeira identidade sabe, que é uma abertura também para aquilo
que Deus sabe e que nos pode dar. α56

191. A concepção moderna de fé


Quando hoje entendemos a fé como algo sobre o qual não podemos ter conhecimento
algum ou qualquer experiência, podemos agradecer a Immanuel Kant. Para ele, fé é acreditar
em algo sobre o qual não se tem qualquer evidência, partindo do princípio de que estamos
limitados aos dados dos cinco sentidos. Desde logo, o elemento fé no cristianismo é mínimo,
como se pode ver em Hugo de São Vitor, que no Didascalicon coloca a sua insistência na
busca da Sabedoria e do Conhecimento. A fé na realidade entra neste processo, não como um
157

“salto no escuro” mas como uma forma de continuarmos a confiar naquilo que sabemos mas
que no momento não conseguimos garantir. Necessitamos de fé quando não conseguimos
reconstituir aquele conhecimento que nos foi revelado nos momentos de abertura, que pode
ser perdido logo de seguida por não termos capacidade para acompanhar toda a sua
grandeza, mas ainda assim sabemos que está lá. A fé implica a aceitação da impotência da
nossa condição material e temporal. O conhecimento torna-se uma perversão quando não
aceitamos o nosso esquecimento e a nossa fraqueza, perdemos a fé e queremos o domínio
completo da situação, o que é impossível. Então, tornamo-nos gnósticos.

Para recuperar uma verdadeira religiosidade e romper com estas concepções


kantianas, que já vinham germinando muito antes dele, é necessário recuperar a linguagem
simbólica e, sobretudo, a concepção da realidade como símbolo. A validade da linguagem
escolástica dependia disto. Trabalhos como os de Suzanne Langer podem ajudar mas é um
esforço para muitas gerações. α56

[Aula 57]
192. Consciência de imortalidade
É fácil constatar que toda a nossa percepção é fragmentada, assim como é evidente
que os nossos pensamentos são descontínuos. Kant dizia que era a mente que unificava os
fragmentos soltos que nos chegam, mas isto é impossível porque a mente é ainda mais
fragmentada que o mundo das percepções sensíveis, na verdade, é ela que se unifica pelos
dados da percepção. Todos já tivemos a experiência de acordarmos desorientados, sem saber
onde estamos, e a unidade é reconquista pela observação dos dados recebidos do mundo
exterior. O próprio discurso lógico é composto de fragmentos e pressupõe a unidade do real.
Se esta unidade não é dada pelo mundo físico, não é reconstituída espontaneamente pela
mente e nem artificialmente pela lógica, onde se encontra ela?

Por vezes, a questão é recolocada no estudo das relações entre corpo e mente,
tentando responder à pergunta de como pode o puro pensamento mover um corpo no espaço.
Mas tudo isto é perda de tempo enquanto não percebermos o que unifica a mente e corpo.
Estes enigmas surgem quando partimos de uma experiência muito mal observada e criamos
conceitos em cima. Depois, pensamos que tudo se pode resolver por meio da argumentação, o
que obviamente só vai complicar tudo. Então, o que temos de fazer é recuar da discussão até
à apreensão intuitiva do que se está passando, ainda que não obtenhamos uma descrição
persuasiva. Nunca somos encorajados a fazer isto porque achamos que as questões filosóficas
devem ser enfocadas pelos meios das discussões públicas, mas isso obriga a ter, como ponto
de partida, conceitos estabilizados que não podem reflectir a experiência real. As próprias
pessoas que entram nisto já não o fazem enquanto pessoas reais e concretas mas como
representantes de cargos públicos.

A primeira coisa que temos de fazer, ao colocar a questão da unidade do real e da


unidade entre mente e corpo, é lembrar a circunstância (histórica, social, cultura) concreta
onde o problema é colocado. O ambiente que vivemos é dominado por uma nova modalidade
de ciência, que não apenas cria os parâmetros de uma discussão tida como válida como
158

determina mesmo a forma da nossa psique. A nossa auto-imagem é formada com elementos
da cultura externa, e esta actualmente só admite dois tipos de realidade: por um lado, temos
as coisas físicas e observáveis de alguma forma; depois, existe o mundo do pensamento, num
certo paralelo com o primeiro. Isto é o mesmo que só admitirmos a existência de corpo e
mente, e desta última saem as criações culturais, as instituições e até mesmo a religião.

O religioso acrescenta a isto os dogmas de fé e a crença na existência de um Deus, que


é puro espírito, e que está situado num lugar inimaginável e inalcançável, para além do corpo
e da mente, e que miraculosamente interfere no mundo físico, e isto não pode ter explicação
(muitos religiosos acreditam acumular méritos ao acreditar no inexplicável). Então, para
além de corpo e mente soma-se o inexplicável. Apela-se à fé para acreditar no inexplicável.
Mas é fácil ver que numa concepção da realidade tão limitada, a nossa fé mantém-se apenas
por alguns instantes, rapidamente vacilamos, duvidamos, esquecemos. A perenidade da fé
antiga tinha que se basear num outro tipo de experiência comum, que desapareceu ao longo
dos tempos.

Hoje chamamos “eu” a um entidade paradoxal, a uma coisa mental mas com presença
corporal. Um ser composto de mente e corpo não pode ter fé ou arrependimento, porque
todo ele é fragmentário. Se só existir corpo e mente, então, não pode haver “eu” algum, como
mostrou David Hume. Mas para o cristão existe a alma imortal, que nem é corpo nem mente,
mas o crente acredita que é algo que só se revela no momento da morte, e até lá ele fica numa
esperança periclitante. Alguns acreditam que é possível aceder à alma imortal através de
“exercícios espirituais”, que nos desligam do plano corporal e nos colocariam noutra
dimensão. Se isto fosse assim, teríamos duas identidades e não uma, por isso estas práticas
enlouquecem as pessoas. O asceta tenta dominar o corpo e não nega-lo, mas nesse caso
obtém um poder que lhe torna difícil reconhecer a sua nulidade perante Deus, ele sente que a
sua alma é o domador do corpo, pelo que continua dividido. As práticas para abolir o ego
conduzem ao niilismo: não há ninguém para contar o alcançado.

A imagem do “eu” como algo residindo no corpo é uma coisa ilusória e doentia, fruto
de uma percepção mutilada, que impõe à consciência limitações que não são nem naturais e
nem necessárias. As pessoas na Idade Média falavam do “eu” significando a alma imortal não
por uma crença cega mas por terem de alguma forma acesso a esta alma. A coisa não era
adiada para o momento da morte, porque se somos imortais, já o somos desde já. Já vimos
que os “exercícios espirituais”, o ascetismo e as práticas para destruir o ego não resultam
verdadeiramente. As experiências de quase-morte podem nos dar algumas pistas sobre como
podemos ter acesso à consciência de imortalidade.

Em primeiro lugar, a consciência no estado de quase-morte não está separada do


corpo e nem limitada por ele, antes, transcende-o, consegue sempre reconhecê-lo como
sendo seu, ou seja, o corpo está dentro da consciência como um dado de realidade. Outra
coisa óbvia é que este estado de consciência é acompanhado da diminuição ou cessação da
actividade mental e corporal. Para experimentarmos isto, não é necessário entrar no estado
de quase-morte, basta enxergar além de corpo e mente. Contudo, na nossa condição de
modernos, convém partir deles.

Quando queremos fugir à impermanência dos nossos pensamentos e buscar apoio no


corpo, constatamos que tudo neste também é impermanente: as sensações corporais são
fragmentárias, as células estão sempre em renovação e assim por diante. Mesmo para
percebermos que temos um corpo e uma mente necessitamos de possuir uma identidade
159

prévia, de um fundo anímico permanente do nosso ser. Não podemos sondar este fundo
propriamente pelo olhar ou pela audição, que são apenas metáforas para o modo de
apercepção daquilo a que podemos chamar, quase que alegoricamente, de uma melodia ou
ritmo permanente em nós. Por baixo de todos os fragmentos e transformações há uma
melodia ou sentimento permanente, e só quando captamos esta dimensão, da qual corpo e
mente são aspectos, podemos dizer: “Isto sou eu”.

Os pensamentos e as sensações corporais são duas fontes de distração, mas não


devemos tentar suprimi-los, o que, de resto, seria impossível. Deixamos que eles passem e
disfrutamos do sentimento da nossa unidade, onde realmente residimos. A nossa verdadeira
identidade não tem forma ou conteúdo específicos, ela alberga todas as nossas possibilidades,
e tudo o que vem do corpo e da mente só ganha e consistência porque passa por ali. Não
podemos confundir a consciência de imortalidade com uma sensação ou um pensamento, o
medo, por exemplo. Tudo isto são coisas que passam. Na realidade, sempre soubemos que
existia esta unidade profunda, porque quando amamos alguém, é isto que amamos na pessoa
e não o corpo ou a mente. Porém, não tínhamos na cultura contemporânea um nome a dar a
isto, mas agora podemos reconhecer que se trata da alma imortal.

A alma imortal não se confunde com a mente kantiana, que supostamente unificaria o
mundo dos fenómenos. Este é o problema das técnicas da Nova Era, que podem nos
aproximar um pouco da nossa identidade profunda, mas fazem-no com um viés kantiano, o
que tende a negar a realidade a tudo o que não seja a alma imortal. Contudo, é precisamente
a consciência do eu profundo, se devidamente abordada, que nos faz perceber que existe algo
ainda mais profundo – a presença de Deus – sobre o qual não temos qualquer controlo.
Quando Cristo disse “aquilo que tiveres fé obterás de qualquer maneira”, referia-se não à fé
corriqueira, que são apenas uns pensamentos, mas àquilo em que realmente confiamos no
estado de consciência da nossa alma imortal, e o que permitia também Cristo dizer “vós sois
deuses”. Apenas esta fé tem poder sobre a realidade.

Já nascemos com uma alma imortal mas não temos logo acesso a ela. No início
experimentamos o mundo exterior, a cultura, os pensamentos e apenas se alguém nos
chamar a atenção para a alma imortal podemos nos voltar para ela. Aí, podemos deixar
passar pensamentos e sensações corporais, diminuindo a actividade corporal e mental, e
deixar sobressair essa melodia que sempre nos acompanha. Não temos que nos retirar para
sítio algum, nem entrar num estado mental especial, ou fazer exercícios ascéticos: onde quer
que estejamos, sempre nos acompanha o nosso verdadeiro tesouro. Se abordarmos a
consciência de imortalidade pelo lado errado, vamos levar connosco todas a prioridades de
mente e corpo, mas aí já será a alma imortal – a única a tomar decisões fundamentais – a dar
substancialidade a si mesma e aquela que também pode afastar-se da visão de Deus (a
segunda morte). Isto vai dar-nos uma sensação de poder autónomo. Na abordagem correcta
sabemos que esse poder não é realmente nosso, percebemos que a nossa única substância é a
bondade divina e ficamos num júbilo e numa alegria indefinível. Aí podemos pedir perdão
pelos nossos pecados e pedir para estar junto a Deus por toda a eternidade. Podemos pegar
técnicas para chegar à consciência de imortalidade em vários lugares (Nova Era, budismo,
hinduísmo, etc.), mas tudo isto só vai fazer sentido dentro da doutrina da Igreja, que
ironicamente perdeu os meios de acesso. A consciência de imortalidade vai equivaler à
presença do ser, de que falava Louis Lavelle, que é a consciência de uma presença que nos
engloba e que está na base de tudo, sendo ainda, ao mesmo tempo, a consciência da nossa
participação no ser. α57
160

[Aula 58 – Especial curso “Filosofia da Ciência”]


193. A ciência ao longo dos tempos
A ciência representa actualmente o paradigma da verdade, diz Georges Gusdorf,
aludindo ao seu significado convencional sociologicamente aceite. Mesmo quando se
reconhece que existem vários meios de aceder à verdade, a ciência é tida como a autoridade
última para separar a verdade da falsidade. Esta autoridade não advém daquilo que a ciência
realmente alcançou mas do seu método: um modo de conhecimento organizado, racional,
permanentemente autocrítico e fundado na experiência. Mas isto leva muitos a tirar uma
conclusão inevitável: só há afirmações provisórias em ciência. Ora, isto esbarra com a
pretensão da ciência ser o “separador de águas”. Surge, então, a necessidade ir além do
significado convencional de “ciência” e procurar o que historicamente se fez sob este nome.

Parménides dividiu o mundo da experiência em duas partes: o mundo do ser e o


mundo das aparências. Daqui emergiu a consciência de existirem duas modalidades de
conhecimento, uma iniciada através dos sentidos, que captam as aparências em permanente
fluxo, e outra derivada do espírito, que capta as realidades universais e permanentes do
mundo do ser. Isto foi um modelo trabalhado por Platão, que criou uma escala com quatro
níveis. O primeiro situa-se ao nível das imagens (eikones), que podem ser visuais, auditivas,
motoras, em suma, aquilo que é apreendido pela sensação (eikasia, função de captação de
imagens, também presente nos animais). Mas captar imagens não é o mesmo que captar
realidades, e num segundo nível vão aparecer os entes da Natureza (zoa), corporais, que já
são objectos de crença (pistis, uma fé razoável). As ciências da natureza encontram-se neste
nível, não conseguem provar nada, apenas chegam a resultados mais ou menos
probabilísticos. No terceiro nível aparecem os entes matemáticos (mathematika), que
possibilitavam obter uma certeza acrescida em relação ao conhecimento dos entes da
Natureza (influência da geometria de Euclides, pela exactidão das conclusões a que se
chegava pelo raciocínio geométrico), e que eram conhecidos por meio do pensamento
(dianoia). Mas Platão ainda achava que os entes matemáticos eram apenas símbolos dos
princípios constitutivos de toda a realidade, ocupando estes o quarto grau da escala: são os
arkhai conhecidos pelo nous (espírito).

Então, Platão formulou a primeira ideia de ciência, onde desenvolveu o pensamento


de Parménides em articulação com o panta rei (“tudo flui”) de Heráclito. Em última análise,
“ciência” pressupõe a capacidade de captar princípios universais, que têm uma
correspondência com o absoluto e com o eterno. O nous corresponde à dimensão da
eternidade, não se equivale a ela mas é um elemento em nós que nos liga a ela e permite-nos
ter a noção de realidade objectiva, uma aptidão que escapa aos animais. Possuímos esta
capacidade de captar a universalidade a partir de entes singulares e sensíveis, e isto está para
além da captação de imagens, da crença ou do pensamento.

Aquilo que Platão sugeriu fazer, Aristóteles tentou montar como um sistema operante.
Mas enquanto Platão colocava de forma simbólica os “universais” num mundo separado
161

acima da Natureza (mundo das formas ou das ideias), Aristóteles considerava que captamos
os universais na presença imediata dos entes. Imagens, entes de Natureza e formas
matemáticas não são vistas como imitações ou símbolos de uma dimensão superior eterna,
eles passam a ser estudados com uma certa autonomia. Aristóteles admitia uma ciência
suprema, que depois se chamaria metafísica e que ele denominou por filosofia primeira ou
teologia, de onde se obtêm os princípios das outras ciências. Aristóteles não negava a
dimensão simbólica, apenas não a explorou, antes examinava os entes de Natureza como
coisas. Mas isto não basta para constituir a ciência, é necessário articular os elementos
recolhidos da Natureza num discurso lógico, pelo que tem de existir uma ciência própria do
discurso. Então, a ciência passava a ser formulada como a transposição do mundo dos
fenómenos observados para um discurso. O facto é transfigurado num discurso, e este tem de
reflectir princípios universais e ser coerente: tem que representar a unidade do real, porque
se for incoerente vai desmentir a unidade dos princípios que o fundamentam. Ele chamou de
analítica à técnica para fazer isso, o que hoje chamamos de lógica.

Até hoje, o ideal de cada ciência é criar um discurso totalmente coerente, onde as
várias investigações e conclusões se devem articular numa teoria geral. Mas mesmo a física,
que é a ciência que teve um desenvolvimento mais perfeito, não conseguiu chegar a uma
teoria unificada, apesar de todos os esforços nesse sentido. Nos escritos que nos chegaram,
Aristóteles não usa na prática a técnica do discurso coerente (analítica), tudo está organizado
dialecticamente, através da confrontação de hipóteses contraditórias. A elaboração deste
contraditório cria uma certa tensão que pode fazer surgir uma espécie de percepção intuitiva
de uma premissa que articule os vários elementos em disputa (movimento em direcção
oposta ao da lógica). Então, poderá ficar evidente que um elemento está subordinado a outro,
ou que um fica anulado, ou ainda que são ambos verdadeiros mas em planos distintos.

O uso pleno da lógica só vai aparecer na filosofia escolástica, desempenhada por


profissionais com um vocabulário técnico comum. Isto aconteceu já no contexto cristão e não
por acaso. Nos primeiros tempos de cristianismo não havia doutrina ou tentativa de
persuasão, existia apenas o relato de acontecimentos miraculosos que apelavam a uma
transformação pessoal imediata. Quando o cristianismo começou a espalhar-se por outras
zonas do império – especialmente para as partes gregas habituadas à discussão –,
começaram a surgir uma data de questões por parte daqueles que já não eram movidos
directamente pelo relato dos factos, e foi para dar resposta a isto que começou a ser
elaborada a doutrina (ver A Concepção do Mundo na Idade Média, de Alois Dempf).
Inicialmente, os padres davam respostas a questões pontuais, não havia uma preocupação
sistemática e as coisas eram respondidas a vários níveis. Então, acumulou-se um material
imenso a pedir para ser organizado. As sumas são um novo género literário, surgido na
escolástica, procurando englobar a totalidade da doutrina cristã. Elas são o primeiro exemplo
histórico de discurso lógico coerente do início ao fim. Não se limitavam ao plano metafísico,
também faziam a transposição da experiência concreta para o discurso lógico, sendo assim
percursoras das ciências da Natureza e, na verdade, são o modelo de todo e qualquer discurso
científico até hoje.

O estudo da Natureza, fora do contexto da revelação, não ocorreu logo de seguida.


Durante séculos realizaram-se imensas colecções de factos com pouca ou nenhuma
articulação e mesmo sem grandes preocupações de classificação. Algum deste material foi
tratado pela alquimia, que não oferecia uma teoria mas uma técnica para realizar algo,
embora baseada em alguns princípios explicativos de natureza simbólica. A Natureza era
162

vista tanto pela alquimia como pela teologia escolástica ou pela arte sacra como símbolo de
realidades espirituais, sem a ilusão dela constituir um campo fechado e auto-explicativo.

No início da modernidade, as matemáticas desenvolveram-se bastante e surgiu a ideia


de criar uma ciência matemática da Natureza, que seria uma ciência autónoma com a
pretensão de encontrar dentro dos fenómenos naturais as equações constitutivas que a
explicam. Já não havia a necessidade de fazer uma ascensão até dimensões espirituais, tudo
passou a ser operado por meio de medições e operações matemáticas, de onde se obtêm
certas constantes que traduzem as leis explicativas da Natureza. Contudo, isto obriga a uma
operação prévia que recorta do mundo natural os elementos dados como matematizáveis,
fazendo a separação entre elementos primários, que podem ser medidos (extensão, peso,
etc.), e elementos secundários, que não podem ser objecto de matematização directa, como
acontecia na altura com a cor, que não era vista como uma propriedade dos objectos mas
como uma reacção da subjectividade humana à percepção.

Acontece que a forma substancial não é uma coisa que se possa matematizar. Ela é
obtida por abstracção, mas de um tipo diferente da realizada na matemática, que nos dá
aspectos que podem ser encarados sob a categoria da quantidade. Apesar disto não ser a
verdadeira Natureza, tornou-se dominante a ideia de que só são verdadeiramente reais os
elementos matematizáveis, sendo tudo o resto impressões subjectivas, incluindo as formas
substanciais. A realidade aparece assim dividida: de um lado existem as entidades físicas, de
outro, o pensamento humano. Contudo, os entes físicos, como são os entes matematizáveis,
só podem ser apreendidos pelo pensamento (dianoia). Só existe medição da coisa extensa
(res extensa) através da medição da mente humana. Só bastante mais tarde Edmund Husserl
vai afirmar explicitamente que a matematização da Natureza criou um objecto que não é
exactamente Natureza. Mas se voltarmos a Platão, ele já afirmava que os objectos da
Natureza não podem ser objectos de conhecimento exacto, apenas de crença, e a tentativa de
obter um conhecimento exacto deles necessariamente os iria transformar em entes
matemáticos, já não captados pelos sentidos.

Contudo, o aparente sucesso da ciência moderna fez surgir correntes culturais com
bastante impacto, como o Iluminismo, que defendem que a ciência matemática da Natureza
inaugurou uma nova era do conhecimento, superando tudo o que havia anteriormente. Na
realidade, nem sequer é possível fazer uma comparação com modalidades anteriores do
conhecimento, que tinham um objecto de estudo diferente.

A ciência moderna acaba por reduzir tudo ao pensamento. Isto parece não ter sido
logo evidente, mas ao longo do tempo criou uma inquietação em alguns pensadores. Berkeley
duvidava de todo o material dos sentidos e teve de se socorrer do pensamento de Deus para
não temer que tudo exista num vazio cósmico. David Hume colocava o pensamento como
validador dos dados dos sentidos, mas percebeu que o pensamento necessita de um eu
pensante. Mas ele apenas via uma série de pensamentos fragmentários, não conseguia
descortinar nenhum eu cognoscente, logo, para ele o pensamento não teria fundamento e
naturalmente que não pode fundamentar nada. Kant percebeu o problema evidenciado por
Hume mas, ao mesmo tempo, acreditava piamente na ciência de Newton. Então, apelou às
formas a priori por baixo do pensamento e que garantiam a unidade deste, assim como
garantiam a unidade do raciocínio e do conhecimento. Não percebemos habitualmente essas
formas, mas analisando o que sabemos e pensamos, percebemos que elas sempre estiveram
lá. Por exemplo, as categorias (que Kant descreve de forma diferente de Aristóteles), sempre
percebemos algo no espaço e no tempo, pelo que estes seriam duas formas ou esquemas que
163

determinariam a nossa percepção sem disso termos consciência. Sendo essas formas
idênticas em todos os seres humanos, isso garantiria a possibilidade da ciência.

A solução de Kant provocou um grande alívio mas teve impactos enormes e não
esperados. Quase todas as ciências humanas desenvolvidas a partir do século XIX dedicaram-
se à busca de formas a priori por baixo dos acontecimentos, na forma de estruturas
permanentes, imperceptíveis em si mesmas mas que tornavam tudo possível. Marx buscava a
forma a priori da História, que ele entrevia numa sequência já dada de antemão
(comunidade primitiva, esclavagismo antigo, feudalismo, capitalismo e socialismo), que não
era produzida pelos acontecimentos mas antes os determinava por meio de uma lógica
interna invisível. Freud – que, como Marx, ninguém associa ao kantismo –, também
apresenta o jogo entre id, ego e superego como a forma a priori de todo o acontecer psíquico
da humanidade. Jung parece que muda a direcção da coisa, mas limita-se à busca de outra
forma a priori com os seus os seus arquétipos do inconsciente colectivo. A sociologia
naturalmente que é kantiana quando diz que a explicação profunda dos factos deve-se a
forças sociais anónimas. Benjamim Whorf vai pelo mesmo caminho quando diz que o
pensamento é apenas uma exteriorização da estrutura da nossa gramática. Chomsky fala
mesmo de uma gramática universal abstracta e permanente, que está por baixo da
diversidade das línguas existentes. Para Hegel, o desenrolar da História é uma dialéctica
baseada em potencialidades indistintas colocadas através dos seus opostos; tudo já está dado
numa lei inicial: o ser, na sua indeterminação é idêntico ao nada, e ao determinar-se põe em
acção o seu oposto. Vemos algo assim ocorrer com muitas ideias e propostas, que surgem
indefinidas e sem significação, e o seu sentido só se revela quando geram uma oposição.
Hegel falava ainda do trabalho do negativo: para criar uma nova situação não é preciso
propor algo, basta apostar nos elementos críticos e destrutivos, e isso fará surgir uma nova
situação positiva. A Escola de Frankfurt conseguiu provocar uma transformação social
considerável apenas através da sua fúria crítico-analítica. Para deixarmos uma pessoa
neurótica, basta a criticarmos por um defeito que ela não tem e isso cria nela um mecanismo
reflexo de defesa.

Costuma creditar-se a Claude Bernard, no livro Introdução à Medicina Experimental,


a codificação do método experimental, por meados do século XIX. Contudo, esta codificação
não passa da dialéctica de Aristóteles, ou seja, a confrontação sistemática de hipóteses
contraditórias.

Ao mesmo tempo, eram constituídas as ciências sociais, especialmente por Émile


Durkheim, baseadas na ideia kantiana de inventar o objecto, ou seja, o campo de fenómenos
já não é definido pela sua presença sensível mas por um conjunto de conceitos abstractos que
operam o recorte efectuado. Durkheim dizia que para fundar uma ciência é preciso ter um
objecto diferente dos existentes noutras ciências, e ele vai destacar os factos sociais, que
seriam factores aos quais não podemos apontar a autoria mas que pesam sobre a conduta
individual. A sociologia parte de uma definição arbitrária, os factos sociais podem ter autoria
desconhecida mas não tiveram origem anónima, mesmo que a pessoa ou grupo de pessoas já
tenham morrido há muito tempo. No mesmo sentido, a antropologia social propôs-se a
estudar os sistemas culturais como uma espécie de regras de funcionamento. Podemos
sempre estudar as coisas por ângulos como este, mas com a ciência já plenamente
desenvolvida, a perspectiva adoptada vai coisificar-se e as pessoas passam a acreditar que
aquilo existe mesmo. E quando várias gerações depositaram ali muito trabalho, já ninguém
vai querer desistir daquilo.
164

Kant dizia que o cientista não está colocado perante a Natureza como um observador
mas como um policial (agente de instrução) que a força a dar uma resposta. Isto ia de acordo
com a matematização das ciências vinda desde a Renascença, que forçava a Natureza a
comporta-se de forma matemática, dado que só a questionava dentro desse âmbito. Desta
confluência irão proliferar inúmeras ciências. Husserl também dizia que as ciências deviam
ser criadas a partir de um recorte, contudo, este recorte não devia ser feito a partir da
proposta científica do sujeito mas segundo uma ontologia regional bem definida. α58

194. Ciência como projecto de poder


No exercício da consciência de imortalidade [192] constatamos a nossa possibilidade
de aceder a um conhecimento ilimitado, que mesmo se imediato e inegável pode transcender
infinitamente a nossa de comunicação. Contudo, a ciência moderna pretende traduzir tudo
em discurso, o que só pode ser conseguido com uma série de transformações e reduções.
Daqui saiu, nos últimos quatro séculos, um conjunto bastante limitado de conhecimentos
estáveis e confiáveis, claramente insuficientes para basearmos as nossas decisões
fundamentais. Entretanto, o poder do establishment científico cresceu desmesuradamente,
junto com todo o tipo de fraudes científicas e de “contribuições” para as ideologias
totalitárias.

Newton já tinha sintetizado o futuro estado de coisas quando disse que


“conhecimento é poder”. O desenvolvimento das ciências modernas deve ser encarado como
um projecto de poder. Para além de todos os ideais da busca de conhecimento, as ciências
constituem-se ao postular um certo objecto e depois vão impô-lo em cima do mundo da
experiência, tentando depois criar a ilusão de que tudo foi baseado na experiência. Milhões
de pessoas contribuíram para este esforço, que visa construir um discurso consensual a ser
imposto universalmente. Não só este discurso pode conter todo o tipo de ambiguidades e
erros, como, logo à partida e por razões de método, exclui uma imensidão de conhecimentos
que o ser humano pode ter mas que perdem a possibilidade de adquirir alguma validade
social porque não se encaixam no novo modelo de conhecimento.

Tudo teria sido diferente se o objectivo da ciência fosse criar sábios e não discursos
com autoridade social. Na realidade, o que esperamos de médicos, engenheiros ou estadistas
é que eles sejam sábios, ou seja, que tomem as melhores decisões mesmo se não conseguirem
criar um discurso racional e consensual a respeito. No caso da tecnologia, num único produto
confluem vários conhecimentos heterogéneos, alguns de natureza empírica, que não se
podem reduzir a uma única linha causal. O médico e o estadista tomam decisões baseados em
inúmeros factores, que levariam anos a descrever, correndo o risco da própria descrição criar
uma série de dúvidas que iriam bloquear tudo. Não é necessário reintegrar ciência e filosofia,
mas sim reintegrar elementos de ciência na consciência individual, já que quem tem que
responder pelo conhecimento é o seu portador concreto, não fazendo sentido deixar a
responsabilidade para entidades abstractas. Na realidade, isso fez apenas com que a fraude se
disseminasse e que a massa de registos produzidos ganhasse um poder hipnótico derivado
sobretudo do seu volume, que aparece como um símbolo de poder. α58
165

[Aula 59]
195. Música e alma imortal
A nossa verdadeira identidade é como que uma melodia interior [190], e esta
analogia pode ser levada mais longe. Se tivermos uma boa colecção de melodias em memória,
mais facilmente conseguimos captar a nossa própria melodia interior e assim nos colocarmos
em contacto mais próximo com uma esfera do nosso ser mais duradoura e contínua. Victor
Zuckerkandl (Sound and Symbol) aborda o tema da surdez tonal, de pessoas que conseguem
perceber sons sem reconhecer a melodia associada. Hoje sabemos que estas pessoas não
apresentam, em relação às outras, qualquer diferença em termos de reacções cerebrais, pelo
que o reconhecimento da melodia não é feito pelo cérebro. A melodia é reconhecida pela
nossa pessoa, que tem uma unidade que não é a unidade do eu histórico.

A música clássica, sendo uma elaboração de segundo grau bastante complexa, não
serve para este propósito específico. Ela já nos impõe um roteiro, pelo que é necessário
abordar géneros mais elementares. A música folclórica e a música popular (em sentido
estrito, não as suas versões industriais) já têm certos elementos morais embutidos que são
imprescindíveis para estes fins. A música country original tinha um sentido narrativo muito
forte, que se perdeu na música industrial. Os compositores compunham em primeiro lugar
para si mesmos e para os amigos, muitos deles também compositores, só depois para o
público, que era de certa forma esse círculo social ampliado, pelo que num espectáculo era
muito fácil passar o sentimento pretendido, porque todos se reviam naquilo. Podemos
sempre recorrer à nossa colecção de melodias mediante a recordação e quando a confusão à
volta aumenta, podemos “aumentar o volume”. Trata-se de uma defesa extraordinária contra
a banalidade do ambiente e ajuda-nos a captar o senso da nossa verdadeira continuidade. Os
grandes filósofos, assim como os grandes escritores, conseguiram abrir um espaço interior
dentro de si que conseguia abranger e transcender a experiência externa. α59

196. As várias modalidades do eu


O eu histórico ou narrativo é a parte de nós que reconhecemos conscientemente e que
falamos para nós mesmos. O eu social correspondem àquilo que “eu sei de mim” e, ao mesmo
tempo, as outras pessoas têm a possibilidade de saber também. O eu substantivo é a nossa
verdadeira identidades e que contém os outros eus. Tomamos consciência dele quando
percebemos a nossa continuidade para além de toda a experiência física e mental. Numa
simples audição de melodia já estamos unificando elementos a um nível além do corporal, no
nosso eu substancial, que pode ser analisado mas não decomposto.

Muitas pessoas ficam assustadas em admitir que possuem uma continuidade, como se
fosse uma segurança “saber” que existem apenas na forma de elementos separados (corpo,
alma, memória, linguagem, etc.), que constituiriam de uma forma misteriosa um todo. As
pessoas podem também se identificar apenas com o eu narrativo, que vai reduzir-se a uma
função neuroquímica, embora nunca se tenha descoberto qualquer relação entre esta e a
consciência. Já Santo Agostinho descobriu que na confissão ocorre uma espécie de
166

transfiguração do eu: embora se parta de uma narrativa, a confrontação com o observador


omnisciente faz surgir uma dimensão mais profunda do eu, que vai abranger a narrativa.
Torna-se evidente que este eu profundo não é redutível às suas partes ou aspectos. Este eu
não pode ser conhecido como objecto, apenas como sujeito agente. Contudo, daqui não
podemos tirar a conclusão da metafísica vedantina, de que não somos as nossas sensações,
nem as nossas memórias, nem… mas somos o Brahma. Por mais que superemos as sucessivas
decomposições do eu, nunca chegaremos à unidade absoluta, somos seres criados e
destinados a um estatuto intermediário, que é o da alma imortal. α59

197. Fenomenologia do acto sexual


O casamento é um sacramento oficiado pelos noivos, pelo que, a rigor, não existe sexo
fora do casamento. Após o primeiro casamento, cometemos uma série de adultérios.
Naturalmente que a Igreja teve que colocar uma certa ordem nisto, para não estar toda a
gente em “incumprimento”. O importante aqui é fazer ressaltar o sentido de expressões
padronizadas como “sexo por prazer” ou “sexo com algum significado”, que conforme a nossa
posição pessoal valorizamos mais uma ou outra coisa. Contudo, não existe acto humano sem
significado, porque não temos possibilidade de fazer algo que escape ao reino semântico,
pelo que não existe realmente “sexo por prazer”.

O princípio do prazer de Freud é um exemplo de uma experiência que não foi bem
expressa, mas depois ficou criado o estereótipo que ganhou uma força explicativa. Contudo, o
prazer é um conceito abstracto que não excita ninguém, só um objecto real (presente ou
imaginário) pode fazer isso. Então, “prazer” acaba por ser um símbolo do objecto desejado e
das sensações que se associam a ele. “Sexo por prazer” é uma expressão metonímica que
toma por substância algo que é apenas um efeito subjectivo remoto. Estas confusões
acontecem devido à ausência de uma descrição exacta da experiência sexual.

Qualquer acto sexual (lícito ou ilícito, normal ou pervertido, bom ou mau) é a busca
de um contacto (ao menos imaginário), caso contrário a excitação não existe. É um contacto
que rompe com a solidão corporal, que pode se tornar insuportável, dando origem à
experiência gnóstica do corpo como uma prisão (as teorias gnósticas são buscas de alívio a
este respeito). Há várias formas de rompermos com a nossa imanência corporal, a começar
pelo colo que o bebé recebe. Na relação sexual aparece um terceiro elemento, que é genético.
O verdadeiro acto sexual é sempre a possibilidade de cruzamento de duas linhas hereditárias,
ambas com início desde o início do mundo. Mesmo se ninguém pensar nisto, no acto sexual é
transcendido o círculo da experiência individual e participa-se na história genética da
espécie.

Então, existe uma transcendência horizontal, no contacto com o outro, e também uma
transcendência vertical, no sentido da linhagem genética. Tratam-se de componentes
substantivos e não psicológicas. Na realidade, a própria consciência sofre um abalo, porque
ela, no acto sexual, tem noção de que não consegue abranger tudo, sabe que existe algo mais
do que aquilo que o indivíduo está sentindo. No acto sexual não temos muitos pensamentos,
a actividade mental está reduzida a um mínimo mas a experiência amplia-se muito, parece
que o acto se torna interminável ou que tempo foi abolido. Ou seja, a percepção aproxima-se
daquela obtida no estado de quase-morte. Ali são duas almas imortais que se comunicam –
daí a expressão bíblica de que Abraão conheceu Sarah –, mas, depois, toda a riqueza nos
escapa e reduzimos a experiência a umas míseras palavras. Os outros elementos que
167

aparecem na relação sexual (condição sexual dos envolvidos, local de encontro, possíveis
consequências) são acidentais e não fazem parte da substancialidade do acto. α59

[Aula 60]

198. Adultério e pecado original


O adultério essencial [197] é uma espécie de condição permanente do ser humano. A
Igreja delimitou as noções de casamento e adultério, restringindo as condições em que estes
ocorrem de forma a aliviar as pessoas da terrível responsabilidade que pesa sobre elas. O
adultério faz parte do pecado original, que não é uma coisa que inaugurou uma inclinação
perpétua para o mal mas é mais uma descida de nível ontológico, uma perda de capacidades
humanas fundamentais e concomitante “aquisição” de um certo estado de alienação. Isso faz
com que o ser humano não perceba naturalmente o plano de alma imortal, tendo que ser
advertido para isso. A nossa consciência diminuída não é, em si, uma intenção de fazer o mal
mas uma fraqueza perante o mal. A Igreja reconheceu que o ser humano não consegue
naturalmente perceber a gravidade do adultério essencial, por isso interveio caritativamente,
considerando pecado apenas aquilo que corresponda a uma intenção consciente e deliberada.
α60

199. Antepredicamentos
A análise de conceito pode ser uma coisa muito complexa mas, no fundo, não passa de
um procedimento mecânico que examina se umas classes estão contidas noutras. Qualquer
pessoa fica rapidamente apta a usar este tipo de raciocínio, que desenvolve apenas a
capacidade lógica inata (mas depois disto, os indivíduos logo se põem a discutir). A análise
da experiência é algo totalmente diferente, não é uma arte da discussão mas é pensar a
realidade, conhecê-la mesmo se nos faltam as palavras. As palavras à nossa disposição têm
apenas uma correspondência analógica ou até poética com os dados da experiência. Por isso,
Aristóteles considerava que a lógica analítica – que ele dizia ser uma lógica da predicação
(algo que se afirma a respeito) – devia ser precedida de considerações sobre os
antepredicamentos. Estes são aquilo que vem antes da predicação, antes do juízo e do
raciocínio, e assinalam a compreensão intuitiva da relação entre os termos e conceitos
empregados, por um lado, e a realidade que lhes corresponde, por outro. Quase todos os
erros inserem-se neste passo.

A relação entre dois termos é o elemento relacionante, que já não é um termo mas o
objecto de experiência correspondente. O primeiro antepredicamento que Aristóteles
reconhece é o denominativo, que assinala uma palavra relacionada com outra por mera
derivação de palavras (ex. “sócio” e “sociedade”). Sabemos imediatamente que entre “sócio” e
“sociedade” existe uma analogia, embora não consigamos dizer imediatamente quais são as
semelhanças e as diferenças, mas contamos que toda a gente vai perceber mais ou menos a
mesma coisa.

Aristóteles estabelecia quatro tipos de antepredicamento:


168

a) Predicação unívoca – quando uma mesma palavra aplica-se a vários objectos e é


perfeitamente adequada da mesma maneira (ex. homem é animal, gato é animal);

b) Predicação equívoca – quando vários seres são classificados dentro da mesma espécie mas
a que não pertencem igualmente;

c) Predicação por denominação – derivação por palavras;

d) Predicação por analogia – atribuição mediante uma constelação de semelhanças e


diferenças.

É na predicação por analogia que se vão introduzir a maior parte dos erros, mas todo
o conhecimento humano começa precisamente pela percepção de analogias, segundo
Susanne Langer (Introdução à Lógica Simbólica). Ela chama de razão de analogia àquilo
que está presente em dois fenómenos que nos aparecem como analogados. No exemplo de
um relâmpago e de um choque que levamos ao roçar no pelo de um gato, os entes estão
analogados por uma força perfeitamente identificável e que é a mesma nos dois fenómenos, e
neste caso chama-se uma analogia de atribuição intrínseca. Já quando falamos no homem
saudável por comparação a uma dieta saudável, ou na fala homérica “a aurora de róseos
dedos”, a semelhança só aparece na nossa mente, e é a isto que se chama de analogia de
atribuição extrínseca ou metáfora. A metáfora entra em acção quando uma palavra é usada
muito para além do seu significado convencional, servindo assim para designar algo que pode
ser visto como semelhante embora não o seja em si mesmo. Contudo, esta figura de
linguagem cria uma estrutura imaginária, quase visual, que pode ter uma força muito grande,
e logo a trocamos pela percepção. Depois, passamos a raciocinar em cima desta nova
estrutura verbal, acreditando que ainda estamos a enfocar o objecto real. Daí a necessidade
de uma etapa narrativa, para podermos começar com a descrição da experiência o mais
directa possível, dado que é muito difícil abordá-la de início a partir de termos e conceitos
filosóficos já estabelecidos. α60

200. Da burocratização da sociedade ao Movimento do Potencial Humano


Hoje temos uma grande deturpação da linguagem, mas também se tornou comum a
expressão da experiência mais íntima. Ou seja, aumentou bastante o repertório de
possibilidades humanas, ao ponto de já não lhe enxergarmos uma forma definida. Quando
ampliamos o domínio do expressável, o círculo de comunicação torna-se mais confuso. O
Movimento do Potencial Humano, centrado sobretudo na Califórnia no Instituto Esalen,
mostrou que as possibilidades da expressão humana eram muito maiores do que se
imaginava, o que inaugurou até novas possibilidades de intimidade. As gerações anteriores
estavam muito presas ao eu social e quando o movimento surgiu, o potencial da convivência
humana foi bastante ampliado. Claro que isso veio acompanhado de uma arrogância de fazer
uma reforma geral da humanidade, assim, o movimento entrou na inversão revolucionária do
tempo e criou um sem número de problemas, como o movimento gay, mas muitos dos que
entraram nisto inicialmente conseguiram se beneficiar e, de certa forma, todas as pessoas no
ocidente passaram a poder ter uma visão muito mais ampla das suas vidas, embora
acompanhada de uma série de propostas autodestrutivas.

Max Weber falava da racionalização da sociedade, ocorrida a partir da Revolução


Industrial. Trata-se da estruturação de toda a sociedade como se fosse uma empresa, onde
169

todas as relações, mesmo as familiares, passam a estar determinadas pela relação económica.
O mais correcto seria chamar isto de burocratização da sociedade. A sociedade industrial,
que idealmente funcionaria como um relógio, apenas podia admitir indivíduos com um
comportamento mecanicamente certo e previsível. Então, a sociedade passou a ser muito
mais intolerante. Por exemplo, a fidelidade matrimonial, que antes era vista como um ideal
(por isso havia a confissão, a absolvição e o perdão), passou a ser intolerada e veio o
casamento civil com toda uma série de penalidades. Para a Igreja, a fidelidade matrimonial
não é um direito de todos mas um elemento da perfeição cristã. Só que o casamento civil usa
elementos da moral religiosa e estes passam a ser um sistema de policiamento da conduta
das pessoas. Assim, a possibilidade de expressão pessoal tornou-se bastante limitada quando
era mais necessária. α60

201. Psique, alma e espírito


A psique é entendida hoje apenas como a actividade mental imanente do sujeito para
consigo mesmo; é tudo o que nos surge no pensamento, na memória, nos sentimentos, etc., e
está limitado a um sujeito particular. A alma já tem uma conotação teológica, e surge quando
percebemos que os fenómenos psíquicos têm uma consistência que assinala uma
individualidade permanente, que se estende para além da duração da vida terrestre.
Etimologicamente falando, as duas palavras – psique, vinda do grego, alma vinda do latim –
significam o mesmo, mas consolidou-se esta distinção assinalada. A distinção de certa forma
é forçada por um exame da experiência comum, que mostra a existência da actividade
psíquica imediata mas também a existência de um nível mais permanente, que se revela na
audição de melodias, no acto sexual, no próprio amor ou no reconhecimento de que somos a
mesma pessoa que éramos há trinta anos atrás. Contudo, hoje as pessoas reconhecem-se a si
mesmas no seu eu social ou em algumas actividades psíquicas fragmentárias, nem chegando
ao nível do eu narrativo, pelo que para elas é inconcebível a ideia de serem almas imortais.
Métodos como os da Nova Era podem nos aproximar da consciência de imortalidade, mas
correm o risco de absolutizar a alma. As almas existem em relação umas com as outras e
também são regidas por leis, umas podem dominar outras, e é neste plano que se fazem as
escolhas fundamentais.

O espírito pode ser sinalizado a partir de experiências mentais, como conceber um


quadrado, dividi-lo em quatro partes iguais e assim obter quatro quadrados idênticos, ou
dividir o quadrado na diagonal e obter dois triângulos isósceles. As figuras que assim
obtemos têm uma constituição objectiva própria, que não é definida pela nossa psique ou
pela nossa alma. A dimensão do espírito começa quando alcançamos realidades deste género,
que têm um valor cognitivo que vai além da psique e da alma. Contudo, o espírito alcança
estas coisas através da psique. O processo pode ser visto como sendo a psique a transcender-
se a si mesma em sentido incorpóreo, mas sempre está presa à sua presença espacial. Este é
um dos dramas da existência humana, a sua posição de fronteira entre o limitado e o
ilimitado. Também sofremos isso no acto sexual, que nos abre para o ilimitado, e logo de
seguida caímos para a limitação do corpo, o que pode ser bastante doloroso. α60
170

[Aula 61]

202. Experiência de imortalidade


A nossa imortalidade, a existir, acontece por essência. Não é impossível um ser
adquirir a imortalidade acidentalmente, mas a probabilidade disso ocorrer é infinitesimal. Na
concepção grega, todos eram imortais, embora condenados a uma vida de “sombra”, excepto
para alguns heróis que adquiriam uma modalidade de existência mais rica. No oriente
sempre esteve presente a consciência de imortalidade e no ocidente isso também ocorria até
há relativamente pouco tempo, onde mesmo materialistas como Epicuro admitiam alguma
forma de imortalidade. Espinosa dizia que “sentimos e experienciamos que somos eternos”,
falando ele de uma experiência e não de uma teoria. Por volta dos séculos XVIII e XIX, as
pessoas deixaram de ter esta experiência e ficaram apenas com uma crença, que no fundo é
apenas um produto mental.

Na modernidade, a imortalidade foi discutida apenas como uma doutrina, que se pode
aceitar ou negar intelectualmente, e nunca foi abordada aquela experiência de imortalidade
que era comum anteriormente. Bernard Lonergan (Topics in Education) fala da corrente
actualmente dominante em matéria de educação, que leva a colocar de parte a imensidão de
relatos sobre imortalidade. Diz ele que a tendência modernista em termos de filosofia da
educação pode se resumir a cinco tópicos: 1) nada pode ser aceite com base na fé cega, tudo
se deve questionar; 2) a realidade é um processo e não uma coisa fixa, logo o conhecimento
também não pode ser fixo, é um componente mutável dentro do processo humano; 3) apenas
são válidos os métodos das ciências empíricas (influência de John Dewey), que resolvem
todas as questões das ciências naturais assim como da filosofia, da moral ou da religião; 4)
toda a sabedoria passada tem que ser reformulada como hipóteses científicas, submetidas a
teste e verificadas cientificamente, e só então pode ser chamada de conhecimento (John
Dewey escreveu um livro chamado A Reconstrução em Filosofia); 5) a ciência é um processo
em reavaliação contínua.

Então, face aos relatos a respeito da experiência de imortalidade, a primeira coisa a


fazer (segundo o moderno cientifismo) seria transmutá-los em hipóteses científicas testáveis,
mas no fundo já ficando de pé atrás, porque se tratam de produtos de sociedades pré-
científicas que não devem ter nada de relevante para nos oferecer hoje. Não só a transição da
experiência para a teoria é algo muito complexo, como é insano achar que se pode fazer isso
com toda a herança que recebemos. Para cada área existe um método específico, que varia
muito de caso para caso. Se fôssemos testar todo o legado passado, não podíamos
simplesmente aplicar os métodos existentes (se bem que seja isso que se faz, quase sempre
com fins lamentáveis), seria necessário criar um sem número de métodos adaptados a cada
área.

Em relação à experiência de imortalidade, nem sequer é possível obter qualquer prova


pelos meios terrenos, já que seria tentar espremer uma dimensão de imortalidade para
dentro da esfera da mortalidade. O que se pode fazer é criar um método indirecto: podemos
verificar certos factos empíricos que não são em si a presença da imortalidade mas vão
implica-la. É o caso das modalidades de conhecimento supracorporais, que não são
determinadas pela esfera corporal, pelo que não têm que terminar quando o corpo perece.
Enquadram-se nisto, as experiências cognitivas no estado de quase-morte [190, 192] ou a
simples audição de melodia [195].
171

Podemos também fazer uma outra experiência, que não tem validade científica directa
mas é a que nos dá maior grau de certeza sobre a supra-corporeidade. Começamos por
perceber que os nossos pensamentos, a memória e a imaginação estão em constante fluxo,
nunca param, tal como acontece com as sensações, os sentimentos e as emoções. Em
contraste, temos os conceitos abstractos (como o de quadrado), que são permanentes,
mesmo que o pensamento que o pensa não o seja. Tudo o que pensamos sobre nós mesmos,
tudo o que sentimos a nosso respeito, é transitório e evanescente. Contudo, temos uma firme
convicção da nossa identidade e da sua permanência ao logo dos tempos, o que permite
reconhecermo-nos como autores de actos passados. Que este nosso eu profundo seja fruto de
uma habituação linguística é impossível, porque temos que associar o nome que nos chamam
a nós, mas é precisamente esta identidade pressuposta que se nega à partida. Também não
podemos associar a unidade e permanência do eu a um pensamento abstracto, porque esse
eu seria tão evanescente e abstracto como qualquer outro pensamento, que esquecemos a
toda a hora e frequentemente deixamos de reconhecer como nossos. Pior ainda, esta unidade
e permanência do eu nem sequer pode ser pensada, o que pensamos são actos nossos, a
sensação de identidade corporal, mas tudo isso é transitório e, para ser percebido como tal,
necessita do senso de unidade e permanência do eu.

O senso de unidade e continuidade do nosso eu não é corporal ou mental, ele reside


na nossa verdadeira identidade, que é como se fosse uma presença directa da realidade sem
mediação da percepção sensível ou do pensamento. É um exemplo do conhecimento por
presença [71], um conhecimento directo da realidade, em que o conhecimento se identifica
com o ser. Sabemos que temos uma identidade permanente porque somos essa identidade
permanente, que é “alguma outra coisa” onde se articula toda a nossa experiência corporal e
mental. Se este senso de continuidade e unidade se perde por um momento, ficamos como o
esquizofrénico, que continuar a ter a percepção e o pensamento operacionais mas lhe falta a
presença dele a si mesmo, soterrada num mar de pensamentos e sensações.

O exercício aqui sugerido é muito simples, consiste apenas numa mudança do eixo da
atenção. É atentar para o senso de identidade por baixo dos pensamentos e sensações.
Contudo, precisamos usar algo do pensamento para que este senso se torne consciente.
Podemos começar por usar a memória e lembrar que éramos os mesmos quando éramos
crianças, mas não vamos focar a atenção da figura que tínhamos antes ou temos agora e sim
na continuidade entre as duas coisas, e diremos: “isto sou eu”. Entretanto, os pensamentos
continuam a afluir e simplesmente deixamos que eles venham e passem. É natural que nesta
altura nos apareçam pensamentos e sensações que parecem muito impressionantes e
achamos que não podemos deixar de lhes dar atenção (coceiras, imagens de mulheres nuas,
etc.), mas vamos retomar o foco na nossa continuidade as vezes que forem necessárias.

Pode parecer estranho que os pensamentos e sensações se tornem tão indómitos


precisamente quando buscamos a experiência de imortalidade. Nesse momento dá-se a
experiência de terror-pânico. Pânico vem do Pan, o rei dos entes subtis da natureza, e estes
entravam em terror-pânico perante o raio. Ora, o raio simboliza a entrada do espírito, que
aterroriza a Natureza e esta começa a se agitar. É isto que acontece connosco, mas devemos
acalmar porque não está acontecendo nada, não temos de subjugar percepções e
pensamentos, apenas abrange-los e acalmá-los a partir do nosso senso de permanência. Não
devemos ver isto como uma experiência paranormal, o que apenas aumentaria a nossa
agitação mental, trata-se de uma experiência totalmente normal. Vemos Sócrates a falar com
172

toda a naturalidade a falar a partir do seu eu profundo e não a seguir as práticas ascéticas que
existiam na sua época.

O ser humano tem a capacidade para restringir a sua atenção em detalhes totalmente
insignificantes, por vezes por razões totalmente passionais e irracionais. Isto pode gerar
problemas insolúveis, que se adensam por mais que se pense naquilo. Contudo, quase todos
os problemas desaparecem automaticamente quando o quadro da nossa vida se altera. Girar
o nosso foco de atenção para o senso da nossa continuidade é a melhor forma de alterar o
quadro da nossa vida. Isto é também válido para o caso das neuroses, a quem as pessoas se
apegam e acabam por construir uma série de mentiras, justificações, acusações, rancores, etc.
Por mais que detestem o processo, acreditam que abdicar da neurose significa a perda de algo
substancial, e por vezes foi construído um sistema tão grande à volta daquilo que a pessoa
acaba por valorizar aquilo intelectualmente. Mas acontece que tudo isto pode ser desfeito e
nada se perde, antes se revela algo mais profundo e que estava a ser sufocado.

Podemos imaginar o nosso senso de identidade como um pontinho sem dimensão,


que funciona como um centro hierárquico. Também podemos imaginá-lo como uma esfera
que abrange de antemão todas as experiências corporais e mentais possíveis. Então, nada se
perde, basta englobar mente e corpo no senso de continuidade. Este, por sua vez, insere-se no
senso de eternidade, e quando percebemos isto “entramos” na esfera de imortalidade onde
sempre estivemos. Se chegarmos aqui, é impossível não termos uma sensação de júbilo e, ao
mesmo tempo, percebemos a ausência do nosso fundamento interno, como dizia Santo
Agostinho: “sei que sou mas não sei por que sou”. Então, ficamos gratos pela fonte que nos
sustenta, que não vemos mas sabemos que está presente, e isto é o início da segunda
navegação de que falava Platão, encetada pela alma imortal. Só ela busca Deus e, quando
despertada em nós, é impelida naturalmente para Deus pelo paradoxo de assistir à sua
perenidade sem fundamente próprio. Mas antes disso é necessário buscar a si mesmo.
Contudo, se a experiência de imortalidade se deu mediante práticas mágicas ou ocultistas, a
alma imortal pode se encerrar em si mesma e tomar-se como fonte e origem.

O senso de realidade, que só aparece perante a consciência de imortalidade, não deve


ser confundido com o senso de intensidade da experiência. Muitas pessoas acham que as
drogas ou os prazeres sexuais incessantes dão o verdadeiro senso de realidade porque se
associam a sensações muito fortes, mas tudo isto é apenas uma fuga da angustiante sensação
de vazio e cujo alívio logo passa. Só aquilo que tem fundamento ontológico vai permanecer,
como é o caso da nossa verdadeira identidade. A consciência dela não vai abolir as sensações
e experiências terrenas, antes as valoriza de sobremaneira dado que a vivência no plano
terrestre vai ecoar algo na eternidade.

Mas não é possível a segunda navegação se seguirmos a concepção de imortalidade


que existe na nossa cultura, que concebe a imortalidade como algo que acontece depois da
morte. Se somos imortais, somos desde já, e se não buscamos sinais de imortalidade naquilo
que a presentifica aqui e agora, jamais os encontraremos. Em termos teológicos, Deus criou-
nos como almas imortais; foi um acto irrevogável, o que significa que não podemos retornar
ao nada, na pior das hipóteses vamos para o Inferno. α61

203. Imortalidade, ciência e filosofia


173

O cientista que testa a imortalidade a partir do seu eu narrativo ou do eu social mas


não tem qualquer noção do seu eu substancial, evidentemente que está tão qualificado para
esta tarefa quanto o surdo para fazer um teste de audição em outras pessoas, mas considera-
se que isto é o “método experimental”. Este cientista vai dizer que a experiência foi
inconclusiva sem perceber que a inconclusividade não deriva da natureza dos factos mas da
sua própria inépcia. Claro que a experiência continua a ser o último teste da realidade, mas
não pode ser a experiência deturpada por um método que não lhe é próprio, antes tem que
ser a natureza dos factos a imporem as suas condições ao observador científico. Isto é o
mesmo que dizer que o método científico, para ser devidamente aplicado, necessita de uma
análise filosófica prévia.

Só existe verdadeiro fundamento na esfera de eternidade. Então, a primeira exigência


do método filosófico é esclarecer o problema da imortalidade, não só para demonstrar a sua
existência ou não, mas para saber, no caso de ao menos a aceitarmos como hipótese, como
podemos fundar nela qualquer possibilidade de conhecimento efectivo da realidade. As
provas contra ou a favor da imortalidade são largamente irrelevantes. Nunca se pode provar a
impossibilidade da imortalidade, já que toda a prova, no fim das contas, aponta apenas para
os limites da vida presente. Por outro lado, estando a vida presente dentro da vida imortal, a
primeira pode nos revelar algo da outra, embora não seja possível encontrar uma prova
definitiva. Pior que isso, mesmo se obtivéssemos essas provas da imortalidade, elas não nos
dariam a consciência da nossa imortalidade pessoal e nem impediriam de continuarmos o
hábito de pensar a visa presente como um todo fechado e auto-suficiente. Quem obteve a
experiência de imortalidade, por outro lado, vai desvalorizar as provas, que lhe são, daí para a
frente, desnecessárias, servindo porventura como meios pedagógicos para estimular noutros
a mesma experiência ou para desmoralizar os “adeptos da mortalidade”.

Obviamente que apenas se pode falar de experiência de imortalidade de forma


metonímica, de uma experiência parcial que requer a existência do todo. A experiência de
cognição supracorpórea implica que a consciência não tem de morrer com o corpo. Não é
necessário ter experiências “paranormais”, basta assumirmos consciência dos elementos
supracorpóreos que perpassam e fundamentam a nossa percepção corporal e imediatamente
a nossa noção de eu modifica-se. Não é uma consciência que se ganha mas que se assume,
dado que implica uma responsabilidade intelectual e moral de não permitirmos que os
elementos revelados caiam no esquecimento. α61

204. Ezra Pound sobre a função da literatura


No ensaio “How to read”, Ezra Pound questiona-se sobre a função da literatura na
coisa pública. Não se trata, no seu entender, de uma função opinativa, no sentido de veicular
opiniões, antes trata-se de manter a claridade e o vigor de todo e qualquer pensamento e
opinião. As palavras são os instrumentos para agir, fazer leis, pensar, comunicar, pelo que
deve operar à sua limpeza. Quando a “aplicação da palavra à coisa apodrece”, toda a estrutura
do pensamento social e individual queda-se embotada. A Renascença trouxe uma ampliação
do campo de observação natural, mas fez com que os termos passaram a ser usados de forma
pouco exacta e, por vezes, até infantil. A matematização não consegue corrigir uma distorção
de partida, antes dá-lhe um prestígio que ela não merece.

Já a mente medieval quase só lidava com palavras e, por isso, era cuidadosa na sua
definição. Os filósofos medievais eram cuidadosos a esclarecer a categoria, o nível de
174

predicação, as várias acepções que uma palavra podia ter e assim por diante. Não era
legítimo rebater a posição de alguém apenas a partir de uma vaga impressão, como se faz
hoje. Era necessário repetir a posição do adversário, subdividir os argumentos nas suas várias
acepções possíveis e depois apontar o ponto específico que se ia impugnar (se era na
substância do argumento, na forma como foi demonstrado, no uso de um determinado
conceito). A verdadeira literatura mantém a precisão e claridade do pensamento, não apenas
nos amantes de literatura mas na vida geral do indivíduo e da comunidade. α61

[Aula 62]
205. Preliminares essenciais à lógica
A silogística pega num conceito e deduz as suas propriedades internas, que não são
logo evidentes na definição, embora se tornem claras uma vez explicitadas. Não sendo um
processo totalmente automático, ele pode ser largamente mecanizado, dado que lida apenas
com palavras. Apontar contradições lógicas normalmente resume-se a confrontar
propriedades deduzidas de uma mesma definição. Aristóteles apontou 19 formas legítimas de
silogismo e mais algumas ilegítimas, algo útil porque sempre existirão erros de raciocínio.

Mas tudo isto é irrealizável se não tivermos as definições dos conceitos, que podem se
compactar em determinados termos. Para chegar aos conceitos é necessário entrar nas
relações entre linguagem e realidade. A linguagem é um sistema de regras e conexões que
permitem captar a realidade e referir-se a ela de modo a outras pessoas captarem a mesma
coisa. Mas para isto ocorrer, já se pressupõe que os utilizadores da linguagem estão no
mesmo mundo, têm mais ou menos as mesmas capacidades e recebem, de forma semelhante,
uma infinidade de informações do mundo exterior. Sem estes elementos extra-linguísticos, a
língua teria de ser totalmente circular e fechada, com as palavras sempre a referirem-se a
outras palavras, cortando assim a ligação com a realidade. Como isto é utópico, existe sempre
a mediação entre termos e entes reais. Os erros em lógica são em número limitado e podem
ser catalogados, mas são infindáveis os erros que podem aparecer na transposição do objecto
para a percepção e, a seguir, desta para a linguagem. É necessário um estudo prévio dos
antepredicamentos [199] e das categorias [102], algo sobre o qual se costuma passar
rapidamente, como se fosse apenas um preâmbulo ontológico da lógica.

Dentro dos antepredicamentos, Aristóteles diz haver quatro possibilidades na relação


entre dois conceitos: 1) eles podem ser denominativos, quase se unem por derivação
linguística (ex. “sócio” e “sociedade”); 2) podem ser unívocos, quando se usam dois nomes
para significar exactamente a mesma coisa; 3) também podem ser equívocos, quando um
nome tem dois significados distintos (o homem não é “saudável” da mesma forma que um
remédio é “saudável”); 4) e os conceitos podem ser análogos, quando só em parte significam
a mesma coisa.

Sobre os conceitos denominativos, apesar de serem uma derivação linguística, não


podem ser resolvidos por meios puramente lógicos e temos sempre que verificar as
realidades respectivas. Na realidade, entre duas palavras derivadas existe uma relação de
analogia. Basta pensarmos que os sócios de uma sociedade comercial têm apenas uma vaga
175

semelhança com a sociedade como um todo. Não há lógica sem a percepção de analogias, e
cultivamos esta a partir da frequência com a grande literatura. Sem este treino das analogias,
vamos transpor de forma tosca a experiência em formulações lógicas, criando todo o tipo de
problemas, que são insolúveis a partir da própria lógica.

Não apenas existem analogias como existem analogias de analogias. São Tomás de
Aquino dividia a analogia em dois tipos. Primeiro, há a analogia de proporção, como dizer
que “o leão é o rei dos animais”, o que significa que o rei está para os outros animais como o
rei está para os súbditos (como A/B = X/Y). Depois, há a analogia de atribuição, quando se
atribui uma semelhança a duas coisas, que também se subdivide em dois tipos: a) analogia
de atribuição intrínseca, quando a semelhança entre os dois objectos deriva de uma mesma
razão (ex. o raio e o choque ao contacto com o pelo do gato); b) analogia de atribuição
extrínseca, quando não existe uma razão única mas temos uma aparência que deriva de outra
aparência (o famoso exemplo de Homero da “aurora de róseos dedos”). Só conseguimos
distinguir entre os dois tipos de analogia de atribuição se tivermos a capacidade de perceber
diferenças dentro da ordem total do ser. α62

206. Conhecimento, solidão e socialização


O máximo da nossa consciência revela-se em certos momentos de solidão, que podem
ser conservados e trazidos para outras consciências. Mas aí introduz-se o pudor de ser visto
por dentro, porém, a filosofia exige um completo despudor a este respeito, ou não
conseguimos narrar fielmente a nossa experiência. As pessoas contam as suas vidas sexuais
mais facilmente do que narrariam a história das suas ideias, mas não há motivo para temer
isto. Pode aparecer aqui um temor de que ao revelarmos a nossa experiência interior, isso
marque o nosso isolamento e estranheza, mas na verdade estamos abrindo a porta a um
conhecimento que pode ter um valor universal, e outros poderão reconhecer-se ali. É uma
ilusão pensarmos haver algo como “conhecimento da sociedade”, pois só o indivíduo é
portador de conhecimento e quando ele o expressa com toda a sinceridade pode despertar
algo idêntico noutras pessoas.

É certo que a maior parte das pessoas não quer realmente conhecimento, quer apenas
adquirir alguns instrumentos de acção social. As duas coisas não são necessariamente
antagónicas, mas a necessidade de inserção em algum grupo social costuma ser mais
premente, especialmente no mundo moderno. A aquisição de verdadeiro conhecimento pode
atrapalhar ou, pior ainda, oferece o perigo terrível de invalidar as nossas conquistas sociais.
Apenas o conhecimento pode nos incluir em grupos sociais mais amplos e universais
(podendo conter várias épocas), mas muitos acham que o pequeno grupo onde se inserem é
tudo o que existe, então, acabam quase que inevitavelmente por desenvolver um ódio ao
conhecimento. Esse ódio pode mesmo ser exigido para entrar em certos grupos. α62

207. O caminho de volta do conceito à experiência


Os conceitos são obtidos a partir das experiências concretas depuradas na memória e
na imaginação. É um processo abstractivo que reúne os traços essenciais que formam o
conceito, designado pelo termo. Contudo, coloca-se a dúvida: neste processo captamos
realmente os elementos com constância estrutural? Estes elementos estão presentes não
apenas naquela experiência singular mas em todas as que possam levar o mesmo nome. A
176

descrição da sua estrutura pode ser poética ou filosófica. No primeiro caso, tratamos de
reproduzir a impressão, e para isso é necessário nos apegarmos o mais estritamente que for
possível aos elementos particulares e concretos, o que é muito difícil. Na descrição filosófica
tratamos de “puxar” os elementos estruturais que definem aquela experiência, não os que a
singularizam.

Se não conseguimos captar intelectualmente o que trata a experiência, não podemos


fazer uma elaboração filosófica, mas ainda assim somos capazes de descrever o que
aconteceu. Mais delicado é quando inicialmente captamos intelectualmente alguns traços, e
os universalizamos. Trata-se de uma formalização prematura e algo arbitrária, que nos dá o
conceito errado mas que corresponde a alguma coisa. Em geral, obtém-se daqui uma palavra
bastante genérica, que não atenta à diferença específica, ou seja, corresponde à redução da
experiência ao seu género. As pessoas podem se iludir que ainda estão a falar da experiência
originária, já que obteram algo que tem algum tipo de analogia com ela. Mas ao invés de
averiguarem se o conceito obtido caracteriza a experiência satisfatoriamente – fazendo o
caminho de volta à experiência, seja por via narrativa/poética ou seja por via
abstrativa/filosófica, dependendo do talento de cada um ou de uma escolha, importando
apenas saber o que se está a fazer –, ficam encantadas por terem agora nas mãos um objecto
para raciocinar a respeito, de onde podem tirar conclusões bastante artificiais mas muito
persuasivas.

Toda a literatura é composta por esquemas fácticos, ou seja, por descrições verbais do
esquema fáctico sem necessariamente esclarecer o esquema eidético (o sentido do que se
passou). Também é possível fazer a elaboração filosófica sem ter a capacidade de descrever a
experiência correspondente em termos literários, mas não quer dizer que se salte por cima
desta dimensão poética, ela apenas permanece implícita. Só podemos captar o que há de
universal na experiência se tivermos fidelidade à memória da experiência concreta e se
conseguirmos captar o que ela tem de essencial. Contudo, o essencial não é necessariamente
aquilo que nos chamou a atenção, que pode ser apenas um reflexo dos estereótipos mais
comuns. Qualquer análise filosófica deve começar por um trabalho de anamnese. Precisamos
de lidar com os antepredicamentos [205], saber se estamos a lidar com um análogo, com um
equívoco ou com um denominativo. Precisamos de saber a que experiência real aquilo
remete, não necessariamente a uma experiência pessoal, que é sempre limitada, podemos
sempre remeter para experiência emprestada de terceiros, especialmente aquela que
adquirimos da grande literatura. A literatura tem como função principal trazer à cultura as
experiências singulares dos indivíduos, que serão análogas às de outros. Isto serve para criar
pontos de contacto entre as pessoas, sem os quais não existe alta cultura. Hoje temos uma
série de grupos em que cada um usa uma espécie de linguagem privada, mas eles entram no
debate público pretendendo que aquilo que dizem tenha validade universal. Existe um intuito
deliberado de enganar o público. Por exemplo, socialistas e neoliberais vão falar de
“democracia” sem esclarecer o que entendem por isso, esperando assim que o ouvinte atribua
à palavra as virtudes associadas a ambas as facções. α62

208. Ontologia de senso comum


Só captamos essências se tivermos um quadro ontológico onde as possamos encaixar,
já que é impossível abstrair algo totalmente singular e solto no ar. Não estamos falando aqui
de ontologia como concepção filosófica mas de uma ontologia de senso comum, que deriva de
177

estarmos todos no mesmo mundo e de o conhecermos de algum modo. Em linhas gerais e


excepto casos psicopatológicos, todos sabem o que é tempo, espaço, singular, geral, etc. A
ontologia de senso comum não é um sistema de ideias que possa ser expresso e
sistematizado, ela é um sistema de coisas. O senso comum não se diferencia da realidade da
experiência, não pode ganhar autonomia em relação a ela ou torna-se noutra coisa, mas aí
perde a autoridade que tem. α62

[Aula 63]

209. Juízo e proposições


Um juízo consiste em afirmar a existência de um sujeito ou de um dos seus atributos
ou determinações. A determinação é uma especificação do conceito que o trás desde uma
generalidade até uma particularidade mais concreta. Por exemplo, “elefante” é um conceito
indeterminado, mas quando falamos em “elefante africano” ou “elefante doente” já lhe
estamos introduzindo determinações. Para afirmar a existência do sujeito, o juízo tem de
estar na forma de “Deus é…” ou, no caso de uma das suas determinações, “o elefante tem…”

Em termos formais, o juízo estabelece a conveniência ou inconveniência entre dois


conceitos, verifica se o segundo conceito aplica-se ao primeiro. Em termos psicológicos, o
juízo é o simples acto de pré-afirmar algo, de assentir ou dissentir, de concordar ou
discordar de algo.

A proposição é a expressão verbal do conceito, sendo composta de partes: sujeito,


verbo e predicado. Se estão presentes estes três elementos, temos as proposições atributivas.
Se há apenas sujeito e verbo, temos as proposições existenciais (“Deus existe”). Em todo o
caso, uma proposição é composta de partes decomponíveis, mas o juízo é um acto único
indecomponível – é um acto vital de concordar ou discordar –, correspondente a uma
percepção intuitiva, não é um acto lógico. Mesmo um raciocínio de tipo lógico necessita da
intuição dos signos que representam conceitos, ao menos tem de existir uma intuição dos
sinais e da identidade das coisas. A lógica começa quando se encadeiam juízos. Então, o
pensamento lógico não dispensa a presença do sujeito humano cognoscente real, que
concorda ou discorda. O computador pode ser programado para fazer uma enorme dedução
lógica, mas aquilo só representa algo para um ser humano.

Sem a presença do ser humano, não há distinção entre uma proposição hipotética e
uma proposição categórica (que afirma a realidade ou veracidade de algo). As proposições
hipotéticas podem ser de três géneros: a) conjuntivas, quando a verdade da afirmação
condiciona à verdade de cada uma (isto e aquilo); b) disjuntivas (ou isto ou aquilo); c)
condicionais (se isto, então aquilo). Para o computador todas as proposições são hipotéticas.
Já o ser humano pode aceitar ou não as implicações psicológicas e morais de um raciocínio
lógico, nada o obriga a aceitar aquilo. Em última análise, toda a prova depende do juízo ou
julgamento. Se os indivíduos se furtarem a este acto, tudo se torna hipotético, o que tem uma
grave implicação nas proposições modais.
178

Proposições modais expressam não apenas a mera concordância/conveniência entre


um predicado e um sujeito mas o modo como isso convém, segundo quatro variantes:
impossibilidade (“é impossível que”); possibilidade (“é possível que”); contingência (“não é
impossível que”); e necessidade (“é absolutamente necessário que” ou “é impossível que
não”). Apenas o ser humano pode afirmar a possibilidade ou negar a impossibilidade ou a
contingência de alguma coisa. Claro que se pode sempre desconversar e, com certos
tecnicismos, criar “lógicas paradoxais”, que apesar do nome continuam a basear-se no
princípio de identidade, mesmo quando dizem nega-lo.

Intuicionismo radical é a defesa de que apenas existe conhecimento intuitivo. O que


chamamos de conhecimento racional não passa de uma construção em cima do juízo, que é o
acto intuitivo fundamental. O juízo, por sua vez, baseia-se na apreensão da essência de um
sujeito presente (outro acto intuitivo). Mesmo em relação a uma construção lógica sem
referência ao mundo real, apenas composta de sinais, só podemos apreender a sua unidade
de maneira intuitiva: é a percepção de uma forma que se manifesta.

Dois quadrados desenhados na lousa são idênticos sob certo aspecto, ou seja, são
iguais enquanto forma geométrica mas não são espacialmente o mesmo. A percepção
intuitiva contém esta margem de erro, mas quando passamos para o conceito podemos errar
e classificar sem atender às diferenças. A análise crítica serve para retificar a margem de erro
resultante das ambiguidades presentes até no discurso lógico maximamente exacto. Contudo,
um juízo não se corrige automaticamente a si mesmo, para isso é necessário um juízo
posterior. Isto é válido tanto para a percepção sensível como para a demonstração lógica. α63

210. Hayek e os estereótipos sobre o conhecimento medieval


Friedrich von Hayek, no livro The Counter-Revolution of Science: Studies of the
Abuse of Reason comete alguns erros “paradigmáticos”, dado se repetirem numa infinidade
de outros locais. O livro pretende fazer uma crítica da mentalidade científica moderna, que
tenta aplicar ao mundo das acções humanas (política, economia, sociologia, etc.) as mesmas
técnicas, instrumentos e conceitos usados nas ciências naturais. É justa esta crítica da
“naturalização” do pensamento científico nas áreas humanas. Contudo, Hayek concede que
muitas das alterações metodológicas introduzidas na Renascença são legítimas em si e até
indiscutíveis, dado que teriam vindo para corrigir defeitos (obstáculos) presentes tanto no
pensamento antigo como no escolástico.

Ele diz que existiram três obstáculos principais ao avanço da ciência moderna. O
primeiro teria sido o hábito de estudar sobretudo as opiniões dos sábios passados. Um
segundo obstáculo, mais importante, era a suposta crença existente de que as ideias das
coisas possuíam alguma realidade transcendental (e analisando esta parte poderíamos
apreender algo ou tudo sobre os atributos das coisas reais). O terceiro obstáculo, talvez o
mais importante, era a moda de interpretar tudo por analogia com a imagem do homem,
surgindo teorias antropomórficas e explicações que faziam emergir a necessidade de uma
mente agente e dotada de intenção. A ciência moderna tentou descartar estas vias e teria
apostado na reconstrução dos conceitos a partir do teste sistemático dos fenómenos e não na
experiência comum. Este seria um caminho de aprendizagem da ordenação e classificação
dos exemplos do mundo externo. O abandono da concepção antropomórfica, no limite, levou
à passagem da explicação para a descrição, como se a explicação apenas se aplicasse às
acções humanas, que subentendem uma intenção, algo ausente dos processos da Natureza.
179

Hayek estava enganado em relação aos três pontos, mas não são apenas erros factuais,
são distorções de pensamento que nos introduzem numa sequência histórica errada.

O primeiro obstáculo poderia se resumir ao seguinte: no pensamento medieval, o


estudo começava pela discussão de texto. Isto é um enorme erro, porque é precisamente na
passagem para a Renascença que surge o culto dos grandes livros do passado, algo que antes
não existia. Ao contrário do lugar-comum, Aristóteles não era dominante no pensamento
medieval e só foi conhecido tardiamente e maioritariamente pelos livros de lógica. A sua
Física chegou ao conhecimento do Ocidente no séc. XIII e logo um concílio condenou
explicitamente dezenas teses do livro, não tanto por razões doutrinais mas sobretudo porque
não correspondiam às observações da realidade tal como eles a entendiam. A Igreja seguia
sobretudo a corrente agostiniana, que era de teor mais platónico. Aristóteles só começou a
ganhar algum peso, embora não uma autoridade avassaladora, depois de ser reinterpretado
por Santo Alberto Magno e por São Tomás de Aquino. Os filósofos e teólogos medievais não
podiam passar muito tempo à volta de textos porque estes eram em número muito escasso,
havia a Bíblia mas, sobretudo, a base era uma sequência de experiências interiores muito
subtis e evanescentes. Quase toda a filosofia medieval é uma reflexão sobre a experiência
interior da vida cristã, e quem não tem as mesmas vivências vai apegar-se à exposição formal
e não vai ver ali experiência alguma (embora São Roberto Belarmino, que fez o exame
inquisitorial a Galileu, estivesse muito mais baseado na experiência que este).

Em Aristóteles ou na enciclopédia de Santo Isidoro de Sevilha existe sobretudo uma


colecta de factos. Mas este é um preliminar indispensável a uma classificação sistemática e
rigorosa. Embora a experiência científica moderna ainda não tivesse despontado, a
experiência era o fulcro da alquimia, que era o género literário mais cultivado. Não tem
sentido dizer que a experiência era desprezada apenas porque nos centramos nos pedaços em
que a experiência estava ausente ou apenas implícita.

Relativamente ao segundo obstáculo ressaltado por Hayek (crença das coisas terem
uma realidade transcendental e que analisadas as ideias correspondentes podemos chegar
aos atributos dos seres reais), na realidade isto corresponde ao procedimento da física teórica
moderna. Esta não é uma física inócua, é o ramo que mais progrediu e que impeliu um sem
número de experiências e realizações tecnológicas. Mas já vimos que este não era o único
método usado. A Renanscença não rompeu com Aristóteles, já que foi a descoberta da sua
Física que impulsionou bastante os estudos de alquimia na época, aos quais se dedicavam
também os praticantes da nova ciência. E só no séc. XX se começou a ler a Física de forma
mais correcta, como uma metodologia geral da ciência.

O terceiro obstáculo diz respeito à interpretação dos acontecimentos do mundo


externo como se fossem animados por algo análogo à mente humana, hoje diríamos um
universo regido pelo design inteligente. Aqui estaria o defeito de projectar na Natureza aquilo
que sabemos sobre a intencionalidade da mente humana. Esta intencionalidade subentende o
ser humano como um agente autónomo, sendo esta uma concepção que só surgiu na Grécia
(ver A Descoberta do Espírito, de Bruno Snell). Eric Voegelin mostrou que a ideia da alma
humana como modelo do cosmos é tardia. Antes disso não é possível alguém projectar a sua
imagem sobre um Deus criador no universo. Na verdade, o ser humano só começa a
entender-se como agente autónomo quando se vê como imagem desse Deus. α63
180

211. O facto concreto e a alma imortal


Hayek (The Counter-Revolution of Science: Studies of the Abuse of Reason) diz que
os conceitos das espécies formulados a partir da percepção sensível nem sempre são
acertados, sendo por vezes necessário substituir a chave classificatória. As próprias
impressões sensíveis não seriam um guia confiável e deviam ser substituídas por outra coisa.
Seria essa a função da ciência, agrupar os objectos já não pela sua semelhança mas por se
comportarem da mesma maneira em circunstâncias similares. Aquilo que na aparência pode
parecer semelhante, os testes sistemáticos podem mostrar serem coisas totalmente distintas,
e estes testes podem também mostrar que duas coisas de aparência diferente mas que no
fundo são a mesma coisa.

A palavra “coisa” é usada aqui em dois sentidos. Por um lado, significa a essência dos
objectos tal como apreendidos pela percepção sensível, a partir da qual podemos fazer
hipóteses sobre o comportamento em diferentes circunstâncias. Por outro lado, significa o
conceito relativamente estável saído do isolamento de algum aspecto do objecto e que pode
ser alvo de teste sistemático. No limite, a ciência forneceria uma imagem do mundo composta
de coisas que podiam ser expressas apenas matematicamente (não podem ser captadas pelo
pensamento normal), que não têm correspondência com as percepções sensíveis, e nada
haveria que apontar para dizer o que é. Alegadamente, a ciência moderna tentou corrigir o
afastamento dos medievais em relação às coisas sensíveis – que supostamente só lidavam
com coisas abstractas –, mas acabaram por obter uma série de objectos ainda mais abstractos
e afastados da realidade sensível. Isto aconteceu porque a aposta da Renascença não foi num
maior conhecimento dos objectos sensíveis mas na substituição destes por entes mais
estáveis, com um comportamento apenas descrito matematicamente, uma espécie de formas
platónicas, a suposta verdadeira realidade por baixo da realidade sensível.

A física levou isto ao grau mais elevado de perfeição e chegou a resultados paradoxais:
a medição das entidades puramente matemáticas provoca interferência na forma como se
comportam, pelo que deixa de ser uma medição: já não sabemos se o objecto é assim em si
mesmo ou se devido à interferência da medição. Toda a medição tem de usar equipamentos
corporalmente existentes, não é uma construção matemática. Wolfgand Smith diz que a física
não investiga o mundo corporal mas outra faixa de realidade, que ele aponta ser a materia
secunda de São Tomás de Aquino. Não é uma matéria no sentido sensível e espacial, são
certos componentes internos que não correspondem a nada de substantivo, apenas a um
quantum, a uma quantidade (a materia prima é mera potência, sobre a qual se constitui a
materia secunda).

As relações entre a materia secunda e o mundo corporal são bastante complexas. Mas
para o físico estudar as suas partículas, ele tem de ser capaz de perceber factos concretos, ou
seja, ele tem que articular os conhecimentos matemáticos relativos aos seus objectos de
estudo com as condições materiais que permitem realizá-lo. Não é possível, ao contrário do
sugerido por Hayek, abandonar o mundo das percepções sensíveis e substituí-lo por
conceitos científicos. Isto é simplesmente uma crença absurda, mas que muitos cometem por
não terem sido alertados. Uma matematização perfeita de um objecto não incluiria a sua
existência, e esta apenas se dá com uma infinidade de elementos acidentais que não podem se
reduzir à fórmula matemática, que dá apenas um ente meramente possível. Mas mesma a
ciência moderna tem de partir de um facto existente, que ela não pode explicar, pelo que em
última análise o conhecimento científico depende de um julgamento individual de um facto
concreto. Ou seja, tudo acaba por depender do juízo [209] humano, da capacidade de dizer
181

“sim” ou “não” que não é meramente hipotética. Isso quer dizer que têm de existir formas de
racionalidade superiores à ciência, que possam integrar e ordenar imediatamente a
multiplicidade de acidentes que compõem um facto concreto, e esta é uma capacidade que
exercemos continuamente. Os animais não têm a dimensão do facto concreto, vivem na
abstracção do seu próprio mundo, ou seja, não têm a dimensão da realidade objectiva,
segundo Xavier Zubiri (há uma diferença abissal entre o animal sentir calor ou frio e nós
sabermos que o calor é quente e que o frio é frio, e mesmo quando o animal adapta o seu
comportamento como se também soubesse isto, na realidade ele apenas ganhou um
automatismo que remete para a sensação de calor e frio).

Só podemos perceber factos concretos porque somos almas imortais. Estas


constituem uma rede onde se inserem os entes corporais. A filosofia exige a consciência de
que a imortalidade é a escala onde efectivamente existimos. Mas apesar de uma alma imortal
ser maior do que o universo inteiro, ela tem de conviver com outras e submeter-se a Deus, a
quem deve o seu fundamento. Reconhecendo isto não caímos no subjectivismo idealista. Não
criamos o universo, já estamos num universo objectivo e as outras almas não devem a nós a
sua existência (e todas estão na mente de Deus pedindo para vir à existência). α63

[Aula 64]

212. Consciência meta-corporal e modalidades do “eu”


Tornou-se um dogma a ideia de que se deve raciocinar sempre apenas a partir de
factos científicos comummente admitidos. Contudo, sem uma evidência nem temos por onde
começar. Depois, rumo ao conhecimento científico, é necessária a possibilidade de prova,
que é uma transferência de autoridade do evidente para o não evidente. A prova só vale se
existir um nexo interno entre ela e a evidência de onde é extraída. Mas isto só se torna
inteligível para nós se tivermos a evidência desse nexo. A prova é uma evidência indirecta,
contudo, uma perversão da inteligência criou uma inversão da hierarquia lógica, colocando a
prova como algo mais primário e fundamental do que as evidências directas. Desta forma, o
processo educativo transformou-se num adestramento para deixar de acreditar naquilo que
os próprios olhos vêem e empurrar toda a responsabilidade para uma instituição social
chamada “ciência”.

Podemos começar uma exposição apresentando factos científicos, numa espécie de


concessão pedagógica, porque as pessoas se habituaram a tomá-los como a expressão da
verdade e já não sabem lidar mais com evidências directas. A apresentação destes factos tem
uma função mais simbólica do que probante, pretendendo criar uma espécie de persuasão
retórica. Este método será aplicado de seguida à questão da consciência de imortalidade.

Existem inúmeras provas de consciência operando “fora do cérebro”, incluindo


cognição sensível, mas não há uma única prova de que o cérebro seja causa da consciência.
Falar de “consciência fora do corpo” ou “consciência fora do cérebro” é apenas um vício de
linguagem, porque se a consciência nunca esteve localizada no corpo, então, também não
pode sair dele. A referência espacial não é adequada nesta situação, fazendo mais sentido
182

falar de consciência meta-corporal, ou seja, uma consciência que transcende e abarca o


corpo, incluindo as suas funções sensíveis.

Esta consciência pode ser de dois tipos. Por um lado, há a visão remota, que não é um
devaneio, porque as pessoas, que têm esta capacidade (de forma inata ou por resultado de
treinamento) vêm com bastante realismo coisas comuns e correntes do espaço-tempo
normal, apenas situadas em outro lugar. O segundo tipo de visão meta-corporal não pode ser
adquirido por meio de treinamento, ocorre em algumas pessoas em estado de morte clínica,
que hoje se classifica pela ausência de actividade cerebral identificável. São inúmeros os
depoimentos a este respeito e atestados por autoridades científicas. As pessoas relatam
eventos que estavam ocorrendo quando estavam mortos com uma enorme riqueza de
detalhes, isto é, não se trata apenas de cognição sem cérebro mas de percepções sensíveis
sem a participação do corpo. Podemos chamar ao primeiro tipo de visão meta-corporal
imanente e ao segundo tipo de visão meta-corporal transcendente, sendo a distinção
referida à vida do sujeito. Na visão meta-corporal, seja imanente ou transcendente, o
indivíduo sabe qual é o seu corpo e onde está, ou seja, o corpo torna-se num dado da
consciência.

O facto de poder haver visão sem o olho corporal vem dar razão a Goethe na disputa
com Newton. Goethe dizia que se o olho capta luz é porque participa na natureza desta,
contudo, a consciência participa ainda mais directamente, de modo que o olho é apenas um
instrumento da consciência, dispensável em certas circunstâncias.

Se não tivemos nenhuma destas visões meta-corporais, há um procedimento simples


para perceber que a nossa consciência é incorpórea. As experiências relacionadas com a
surdez tonal [195] mostram que a música é algo distinto de todos os outros fenómenos
acústicos. Não apenas a música tem ordem – algo que certos ruídos mecânicos também têm
–, ela tem um significado que aponta para além dos sons que a compõem. As experiências
mostram que os cérebros percebem a melodia mas as próprias pessoas não a captam. A
percepção da música requer um tipo de compreensão semelhante ao de uma apreensão de
uma situação dramática complexa.

Outro aspecto da consciência é que apenas podemos falar dela se ela estiver presente e
em operante naquele momento, o que não acontece para mais nenhum objecto de
consciência (e isto permite a abstracção). Então, a consciência não pode ser objecto, é sempre
um elemento agente do sujeito. O discurso ou raciocínio sobre a consciência vai intensificá-
la, mas tem que ser um discurso ou raciocínio verdadeiro, ou seja, onde está presente um
sujeito consciente e responsável que se assume presente no mesmo acto, caso contrário, já
não falamos de consciência efectivamente existente mas de algum aspecto ou mecanismo seu,
não existente em si mesmo. Consciência em sentido pleno é auto-consciência actual e
responsável. Em termos cerebrais, não há diferença entre “perceber somente que alguém me
fala” e “entender do que me fala”.

Para tomarmos posse deste conhecimento, temos de dizer alto “sou eu” à pergunta
sobre quem reconhece melodia ou sobre quem entende o sentido daquilo que nos disseram.
Nisto, a palavra “eu” é usada para nos reconhecermos. Nem sempre tal acontece, porque
reconhecermo-nos a nós mesmos não é como reconhecer um objecto acessível à experiência
comum. Por vezes, dizemos coisas como “não estava em mim”, o que significa que estávamos
desprovidos de uma parte essencial das nossas funções que nos tornaria responsáveis pelos
actos. A acção não veio do núcleo pessoal que reconhecemos como sendo nosso, um factor
183

desconhecido tomou controlo. Quando dizemos “eu” com plenitude de sentido, assumimo-
nos como sujeitos conscientes de um acto de conhecimento.

O sentido mais óbvio desse “eu” com conhecimento do que está falando é de natureza
autobiográfica: recordamos algo que aconteceu ou algo que fizemos ou sentimos. Nesta
circunstância, nunca nos confundimos com um outro, excepto em casos de esquizofrenia.
Mesmo em caso de esquecimento, quando voltamos a recordar sensações, acontecimentos e
todo outro tipo de dados, sempre identificamos a nossa presença em relação àquelas coisas.
Recordar é recordar que algo fizemos, sentimos, vimos, etc., e quando mais nos identificamos
com o sujeito das acções recordadas, mais estas ficam nítidas.

Um segundo sentido do “eu” com autoconhecimento tem um pendor operacional


imediato, relacionando-se com a expressão de pensamentos, desejos e sentimentos que
ocorrem naquele momento. Isto pode já envolver outras pessoas, a quem podemos fazer
ordens ou pedidos, mas sempre a referência cai em nós, ainda que implicitamente.

Um terceiro sentido deste “eu” é uma intersecção do nosso autoconhecimento com o


conhecimento que outros têm (ou podem ter) a nosso respeito. Daqui nascem os papéis
sociais: para cada pessoa com que nos relacionamos vamos ter um tipo de interacção
diferente. As pessoas conhecem-nos a vários níveis, há mais ou menos tempo, com maior ou
menor profundidade, etc. Isto não é necessariamente falsidade ou fingimento porque os
outros nunca poderão saber tanto a nosso respeito como nós mesmos.

Vamos denominar estas três modalidades do “eu”: o primeiro é o eu histórico; o


segundo é o eu executivo; e o terceiro é o eu social. Existe um intercâmbio entre os três, mas
todos são construção mental. Nenhum deles incorpora a recordação do nosso nascimento,
por exemplo. Eles estão longe de esgotar a nossa realidade como seres humanos, pelo que
tem que existir um quarto “eu”, que vamos chamar de eu substantivo. Não é uma coisa
inconsciente (ser inconsciente não é um aspecto, é uma função acidental, que pode se tornar
a qualquer momento consciente, pelo que não tem nada de substantivo), é a base dos três
outros “eus” e o “terreno” onde eles podem interagir entre si, ou seja, o eu substantivo é o
único que existe em si mesmo. Os três “eus” são reais enquanto criação da nossa consciência,
mas nós não somos criados pela consciência.

Nada conseguimos dizer sobre o eu substantivo antes de o transformarmos num dos


outros “eus”. Talvez por isso Descartes tenha invertido os termos com o seu cogito ergo sum,
fazendo derivar a conclusão de existência a partir da evidência do pensamento. Contudo, a
evidência primária é a de que existimos e o pensamento é apenas uma função que
executamos. Então, “paradoxalmente”, a existência do eu substantivo é inegável mas não
podemos ter dela prova directa. Mas tudo o que existe tem alguma propriedade e, neste caso,
existem as outras três modalidades do “eu” como propriedade.

Se procurarmos uma evidência do eu substantivo por trás dos pensamentos e


sensações, podemos acabar como David Hume, que constatava que a existência das sensações
era manifesta mas não encontrava prova alguma de um “eu” a sentir aquelas coisas,
chegando a uma conclusão auto-contraditória: “eu não percebo nenhum “eu” por trás das
sensações que eu percebo”. Este é um caso extremo de paralaxe cognitiva, derivado de Hume
abstrair a pessoa que faz aquele raciocínio e a sua continuidade temporal (que permite o
raciocínio e o uso da memória). Não vão por melhor caminho aqueles que depois tentaram
explicar o senso do eu pela inserção na sociedade. Esta é para eles um ponto de partida, mas
184

não é um elemento intuitivo, é algo só captado por meio de construções intelectuais muito
complexas. A sociedade pode, de certa forma, impor-nos algumas coisas, algum tipo de
desejos, medos, comportamentos, mas tudo isto se esfarela de um momento para o outro se
não for continuamente repetido, e são sempre coisas impessoais, que funcionam
estatisticamente. É um absurdo a ideia da sociedade impor-nos uma identidade permanente,
mesmo que fosse pela continuidade de memória, porque isso já pressupõe um sujeito que
permanece entre dois actos de memória. Algo semelhante se pode dizer para frustrar a crença
de que o “eu” é uma imposição gramatical.

O eu substancial não pode ser pensado (ou logo se torna em eu histórico ou num dos
outros “eus”) mas pode ser conhecido: é este conhecimento que possibilita o pensamento.
Mas a sua modalidade de conhecimento não é “normal”, é o conhecimento por presença, que
se identifica com o assumir a presença. É a instalação na dimensão da realidade (a começar
por nós mesmos), onde coisas como “mental” e “físico” aparecem como distinções operadas
pelo pensamento. Este conhecimento é extremamente banal mas nem nos damos conta disso.
É desta forma que conhecemos as outras pessoas, não pelas recordações do seu aspecto ou do
que fizeram, já que associamos estas recordações sempre a uma mesma pessoa. Se essa
identidade não fosse apreendida, veríamos duas vezes a mesma pessoa e não a iríamos
reconhecer. Também por isso os momentos em que confundimos duas pessoas parecem tão
estranhos, porque quando nos damos conta do engano, percebemos o abismo entre a
semelhança física e a verdadeira identidade de cada uma. Não podemos pensar uma pessoa,
ou ela teria se tornado num dado da nossa consciência, pesamos apenas numa pessoa, ou
seja, em alguns aspectos dela. Pensamos apenas essências, propriedades, mas nunca em
existências. Nem mesmo a percepção nos dá existências, apenas nos dá dados presentes que
se tornam conteúdos de consciência. Se nos limitássemos ao pensamento e à percepção, tudo
teria existência duvidosa, pois haveria apenas de conteúdo de consciência. A existência, nossa
e de outros, apenas nos chega pelo conhecimento por presença. A existência foi esquecida
pela filosofia nos últimos séculos, o que provocou a reacção existencialista, mas que também
não resolveu o assunto e tirou uma data de conclusões erradas. Não é disso que se trata aqui.

Ao contrário de sensações e pensamentos, a existência é contínua no tempo, mais que


isso, existência é a própria persistência imutável no tempo, que é o fundo necessário para que
as mudanças possam ocorrer a um sujeito. A nossa continuidade é o eu substantivo, onde
encontramos a experiência de imortalidade, isto é, entendemos que a nossa substancialidade
não pode ser suprimida, ela não se altera com todas as mutações que ocorrem em cima dela,
nem mesmo com a mutação suprema que é a morte, como mostram as experiências de quase-
morte (considerando a parte da consciência meta-corporal, porque os relatos do túnel de luz
e afins podem ter validade ou não mas não são conferíveis por nós, não interessando para os
fins aqui em causa). Podemos saborear estes conhecimentos pelo pensamento mas não
iremos realmente apreender se não aceitarmos, isto é, temos de assumir a responsabilidade
de saber que existimos substantivamente. Isto pode ser bastante ofensivo para a mente
carnal, habituada apenas ao seu “mundinho”, ficando muito desconfortável ao perceber que
subsiste em cima de algo muito maior do que imaginava e que não pode pensar na totalidade,
apenas lhe resta aceitar a própria existência, aceitar a realidade. A alma carnal tem muitas
solicitações, algumas que têm de ser mesmo atendidas, pelo que não conseguimos
permanecer muito tempo no estado de consciência de imortalidade, o importante é não
esquecê-la. α64
185

[Aula 65]

213. Hegel e o desenvolvimento do pensamento filosófico


Para Hegel, a evolução histórica do pensamento é o desenvolvimento interno da
própria filosofia. Seria como se a humanidade estivesse elaborando um longo pensamento,
em que as várias escolas são apenas momentos seus e não fenómenos independentes ou
produtos da cultura de um determinado tempo. Esta forma de pensar tornou-se num
pressuposto inconsciente de muitos pensadores contemporâneos, mesmo entre intelectuais
afastados de Hegel. Entrar no ambiente intelectual na França ou na Alemanha é penetrar na
“única linha de desenvolvimento possível”, conhecer os seus vários pontos de discussão
(sequência de autores, livros, temas e propostas) até chegar ao seu desenvolvimento actual
(status quaestionis) e ficar à “altura dos tempos” (Ortega y Gasset).

Imediatamente percebemos que a linha de pensamento que nos propõem que


estudemos pode não ser única mas somente uma entre várias, podendo mesmo nem ser a
linha central ou principal. Além disso, para cada linha há já uma pré-selecção de autores e de
tópicos, que pode não ser a mais adequada. O que realmente aconteceu no século XX foi uma
fragmentação entre escolas filosóficas, que se tornaram incapazes de dialogar entre si, porque
aquilo que diz o “outro” se tornou incompreensível, o que já seria de esperar quando alguém
é treinado para acreditar que aquilo que estuda é tudo o que existe no seu campo de estudos.
Pior que isso, numa mesma linha pressupõe-se uma lógica interna quando muitas vezes há
apenas uma sucessão de opiniões: um pensa que está a responder ao outro mas apenas está a
ver as coisas desde outro ponto de vista (como aconteceu com Heidegger a “responder” a
Husserl). Contudo, quando as coisas são colocadas em termos de dialéctica hegeliana –
posições, oposições e sínteses desenroladas no tempo –, parece que sobressai uma unidade
profunda, mas é algo ilusório. α65

214. O problema da verdade na filosofia moderna (Dardo Scavino)


Dardo Scavino, no livro La Filosofia Actual: Pensar Sin Certezas, mostra o
desenvolvimento do pensamento filosófico moderno ao modo hegeliano, como se este
decorresse numa única linha [213]. O capítulo 1 refere-se ao giro linguístico de Wittgenstein,
mas veremos apenas o processo que levou até ele. Mais especificamente, será agora
abordado apenas o problema da verdade e as dificuldades em construir uma ciência sobre
fundamentos válidos, de acordo com a linha de pensamento dominante (ver transcrição desta
aula para saber exactamente o que é texto de Scavino e o que é comentário de Olavo de
Carvalho, apesar de ser dada aqui alguma sugestão a respeito desta diferenciação).

Para Aristóteles, apenas os juízos analíticos (A=A) são universais e necessários ou,
dito de outra forma, são válidos a priori. Se dissermos que “o homem é mortal”, isto é um
juízo analítico porque apenas necessitamos de analisar o conceito de “homem” para concluir
que é um ser mortal. Este tipo de juízo não implica um novo conhecimento, apenas explicita
algo que estava implícito no conceito. Já se dissermos que “a Terra gira ao redor do Sol”
estamos a dar um novo conhecimento que não é deduzível da definição de “Terra”. Este é um
186

exemplo de um juízo sintético (A=B), de um tipo que se baseia nos dados da experiência e, na
perspectiva aristotélica, não é nem universal e nem necessário.

Para Kant (Crítica da Razão Pura) isto era problemático. Por um lado, ele
considerava que apenas os juízos a priori – aqueles anteriores e independentes da
experiência, obtidos por pura análise lógica ou por meios puramente especulativos – eram
universais e necessários. Nenhum conhecimento por experiência tem a marca da necessidade
mas sempre o selo da contingência, pelo que há validade universal apenas dentro das
condições da experiência. Por outro lado, Kant também acreditava que a física de Newton
produzia conhecimento universal e necessário. Isto não é verdade, mas tendo Kant o
assumido criou um problema cuja saída consistia em encontrar a possibilidade de juízos
sintéticos a priori. Contudo, para ele, dizer que “o caminho mais curto entre dois pontos é
uma recta” é um juízo sintético e, ao mesmo tempo, universalmente válido. Na verdade,
trata-se de um juízo analítico já que se pode deduzir da definição de recta que ela é o caminho
mais curto entre dois pontos. Kant criou uma série de problemas inexistentes, que depois
ficaram como enigmas que determinaram o curso da evolução filosófica.

Um século mais tarde, Gottlob Frege apresentou aquilo que parecia ser uma solução
do problema colocado por Kant. Para ele, o sentido de uma proposição depende das suas
condições de verdade (um enunciado que descreve aquilo que está em causa). Pensando no
Planeta Vénus, a expressão “estrela matutina = estrela vespertina” está na forma “A = B”,
pelo que é um juízo sintético (o B não pode ser deduzido do A). Mas também poderia ter
validade a priori quando a igualdade ou substituição deriva de um referente x que existisse e
fosse idêntico a si mesmo.

Bertrand Russel fez alguns reparos à teoria de Frege, mas esta tornou-se ponto de
partida das Investigação Lógicas, de Edmund Husserl, e do Tractatus Logico-filosofico, de
Ludwig Wittgenstein, que originaram, respectivamente, a fenomenologia e a filosofia
analítica, as duas correntes filosóficas mais influentes no século XX. As condições de Frege
(referente existente e idêntico a si mesmo) são problemáticas. Desde logo, para Russel e para
os positivistas lógicos, “existir” significa que algo pode ser verificado pela experiência
sensível. Estes consideram a ciência fundamentalmente empírica mas, dessa forma, lidam
com os aspectos sensíveis das coisas, sempre mutáveis e que nunca se mantém idênticos a si
mesmos. Se, pelo contrário, partissem de substâncias invariáveis, de modo a cumprir a
segunda condição, iriam cair num discurso metafísico e a verificação pelos sentidos tornava-
se irrelevante, o que para eles era impensável. Assim, fracassava o projecto kantiano de criar
uma ciência com base em juízos sintéticos universalmente válidos, restando apenas a
possibilidade de verificar certas regularidades.

Na verdade, trata-se apenas de um jogo de palavras, porque a regularidade ainda é


uma constância. Se recusamos todas as essências sobram apenas elementos que nada são em
si mesmos, continuamente em mutação e nem tem sentido falar em regularidades. Qualquer
regularidade que assim se observasse seria apenas um aspecto aparente, que parece regular
de um certo ponto de vista, mas que de outra perspectiva já se mostraria irregular.

A ciência assim edificada apresenta teorias que podem ser modificadas ou mesmo
refutadas com a verificação de novos factos. Na realidade, neste contexto que não contempla
essências, não tem sentido falar em “verificação de factos”, apenas podemos falar de algo que
aparece ou parece. Uma lei científica passa a ser um enunciado de aparências, enunciado
esse que pode ser alterado com o surgimento de novas aparências. Para Kant e para os
187

filósofos anteriores a ele isto nunca poderia ser chamado de ciência, é apenas um instaurar de
um cepticismo integral. O cientista positivista é apenas um observador ou um
experimentador, com a agravante de não poder dizer quais são as observações ou
experimentações melhores a não ser por meio de critérios convencionais, que não traduzem a
estrutura da realidade. Assim, a crise do pensamento científico é vendida como um grande
progresso da consciência crítica.

Edmund Husserl também considerava que o conhecimento começa pela experiência,


contudo, esta tinha para ele um sentido muito diferente, ligado a uma filosofia da
consciência. Para Husserl, a consciência não pode ser estudada como um objecto, ela é
sempre a consciência de algo (conceito de intencionalidade). A consciência não é uma coisa
mas um tender interior em direcção a um objecto, não existindo “consciência em si”. Mesmo
quando ainda não sabemos qual é o objecto da consciência, sem dúvida que é algo, e mesmo
quando captamos apenas aspectos (cores, texturas, odores, etc.), sabemos que são referentes
a alguma coisa, e sem esta unidade como fundo não perceberíamos a multiplicidade do
sensível. A presença da coisa é prévia a todos os juízos que a determinam, e Sartre (num
ensaio inspirado pela fenomenologia, onde dá o exemplo da “coisa surgida na noite”) conclui
que a presença ou aparência – o aparecer da coisa – é sempre verdadeira: para ser, uma
coisa deve aparecer-nos como algo.

A fenomenologia assim encaminhada continua a antiga tradição metafísica ocidental,


que tinha o ser como uno, verdadeiro e bom (os transcendentais de Duns Scot). O ser é uno
porque cada coisa aparece como uma coisa: Parménides considerava que o ser era uno e
Leibniz dizia que “o que não é um ser não é um ser”. O ser também é verdadeiro porque a
verdade é a aparição da coisa, é algo que se des-cobre, des-oculta. E sobre o bem, ao
contrário dos seres específicos, o ser não tem predicados ou determinações, que implicariam
uma certa negatividade (ser isto é não ser aquilo).

Mas uma coisa só pode apresentar-se a uma consciência humana (o Homem


ocupando o lugar de Deus), só ante esta ela tem unidade, ou seja, uma forma interna que
persevera no ser. Husserl dá um exemplo que ajuda a perceber como a consciência faria isto.
Supondo que estamos diante de um edifício, só conseguimos ver duas ou, no máximo, três
paredes dele, contando com o tecto. As nossas percepções inevitavelmente são parciais e
incompletas, então, para ver o edifício por todos os lados temos de nos deslocar, o que leva
algum tempo. Mas cada parede é uma parte de algo, pelo que as perspectivas parciais
aparecem-nos como partes de uma unidade, que nunca vemos mas pressupomos (na
realidade, isto não é assim). À medida que nos deslocamos ao redor do edifício, vai sendo
criado um horizonte bilateral de retenção e protensão, ou seja, não apenas recolhemos dados
do passado imediato como já antevemos algo do futuro iminente. A consciência apreende de
algum modo a unidade do objecto – não apenas uma série descontínua de imagens
instantâneas sem relação entre si – pelo mecanismo de apreensão, retenção e protensão.

O exemplo do edifício é semelhante à sucessão destes três enunciados: “x é planeta


Vénus”, “x é a estrela matutina” e “x é a estrela vespertina”. São como diversas perspectivas
sobre algo que se apresenta ou aparece. Assim, a fenomenologia, graças ao conceito de
intencionalidade, parecia restituir o referente idêntico a si mesmo que faltava à lógica de
Frege. Até à década de 60 do séc. XX, a fenomenologia gozou de prestígio na Europa, mas em
1967 Jacques Derrida (no ensaio “A Voz e o Fenómeno”), propôs-se a “desconstruir” o
conceito husserliano de presença, que era a garantia da unidade do referente para além das
modificações sensíveis, pontos de vistas e diversos juízos a seu respeito. Segundo Husserl,
188

para a unidade ser possível, o presente devia reter o passado e anunciar o futuro, o que é o
mesmo que dizer que aquilo que se apresentava devia ser ainda passado e já futuro, como um
nó entrelaçando a recordação e a antecipação. Derrida conclui, então, que “o presente não
coincide consigo mesmo”. A consciência seria assim uma ilusão, promete uma identidade e
fornece uma diferença (não há a coisa presente, apenas algo que já não é e algo que ainda
não é), pelo que não pode ser fundamento para a ciência. Daqui se concluiria que a
consciência é sobretudo falsa consciência, levando-nos ao fetichismo das coisas, pelo que
Marx, Nietzsche e Freud teriam razão contra Husserl e a fenomenologia. Derrida, destruindo
o conceito de presença do ser uno, verdadeiro e bom, inicia a crítica da “ontoteologia”, nome
que ele dava ao discurso (logos) a respeito da coisa (ontos) considerada como Deus (theos).
α65

215. Reavaliação da linha de pensamento filosófico dominante


O ponto atingido na discussão filosófica actual é tal que se considera que estar à altura
do status quaestionis é chegar à seguinte conclusão de Derrida [214]: consciência é
sobretudo falsa consciência e os seus grandes estudiosos são Marx, Nietzsche e Freud. Marx
dizia que “toda a forma de consciência historicamente registada não é mais do que uma
projecção de interesses ou necessidades sócio-económicos de uma determinada classe”, pelo
que cada um de nós estaria limitado a imaginar o mundo da forma que a nossa classe
necessita para sobreviver. Já Freud dizia que “a consciência é somente uma aparência que
surge no topo de um conjunto de instintos em conflito”, ou seja, não seria muito mais que o
disfarce dos instintos. E Nietzsche dizia que “a consciência não é senão o disfarce da vontade
de poder”, pelo que tudo o que pensamos e acreditamos conhecer reflecte apenas o nosso
desejo de poder (existir significa poder, e poder significa querer mais poder).

A crítica de Derrida a Husserl é válida se considerarmos a sequência Kant → Frege →


Escola Analítica → Husserl. Contudo, quem diz que esta é a única linha de desenvolvimento
possível e que corresponde à evolução interna da filosofia? Xavier Zubiri e Bernard Lonergan
não se encaixam nisto, por exemplo. A Escola analítica teve razão em assinalar que eram
problemáticas as condições de Frege (“referente existente e idêntico a si mesmo”), mas errou
ao dizer que só existe aquilo que pode ser verificado por experiência, condenando a ciência a
um conhecimento empírico. Husserl tentou defender o princípio da lógica de Frege, tentando
restaurar a noção de substância e de essência permanente, mas o seu exame da experiência
saiu com o viés da tradição filosófica em que ele se inseria e que tomava a consciência apenas
como sujeito do conhecimento ou como objecto de si própria.

Husserl remontou às Meditações Metafísicas de Descartes (Husserl tem uma série de


conferências com o nome de Meditações Cartesianas, onde afirma que Descartes inventou o
começo absolutamente obrigatório da filosofia moderna: a dúvida integral), que apresentam
a descoberta da consciência por si mesma. Do cogito ergo sum retiramos a conclusão de que
não podemos duvidar da nossa consciência no momento em que ela opera. Este era o
“princípio de saída” para a dúvida metódica. Qualquer dúvida é uma alternância entre
estados em conflito, pelo menos há um que afirma e outro que nega. A dúvida a respeito de
tudo como estado inicial do conhecimento, como Descartes propunha, não é possível. Pelo
menos temos de ter por certo algum material para formar as dúvidas. A dúvida radical vai
também contra quase tudo o que é instinto humano, por exemplo, sabemos que temos de
comer e respirar e isto vai contra a formação da dúvida sobre a existência de comida e ar,
189

seria contrariar a dinâmica vital do homem. Descartes criou um método de voltar, de forma
radical, o seu eu cognoscente contra o seu eu existente. A vocação filosófica dele despertou
após três sonhos, que levaram à formulação da hipótese do “génio mau” (nota-se aqui a
influência gnóstica sobre Descartes) e à possibilidade da totalidade do mundo ser uma ilusão,
sendo a dúvida integral uma tradução disto (embora nas Meditações Metafísicas o “génio
mau” não apareça logo de início mas entendemos que ele foi o “motor” de tudo). Descartes
procurava um argumento infalível contra o demónio mas aceitou a premissa deste, além de
esquecer o aviso de Dante: o demónio é um lógico muito melhor do que nós.

A filosofia moderna ficou absorvida pela pergunta: “como eu conheço?” O filósofo


considera-se sempre como sujeito do conhecimento, nunca como objecto. Ele não se coloca a
pergunta: “como outros sabem que existo?” Se ninguém nos conhecesse, também não
poderíamos fazer exame filosófico algum. Foi necessário que antes outras pessoas cuidassem
de nós, nos alimentassem, nos ensinassem uma linguagem. Em suma, falta avaliar as
condições existenciais necessárias para poder colocar questões filosóficas.

Pode alguém que nunca foi objecto ser sujeito? Entendamos por sujeito aquele que
recebe informações e por objecto aquele que as emite. A mesa à minha frente é objecto, tenho
consciência da informação que ela me transmite, mas não estou totalmente passivo, no
mínimo selecciono um foco de atenção do olhar. As coisas só existem para mim na medida
em que exerço alguma acção sobre elas, e elas respondem de algum modo a esta informação
que lhes transmito. Mesmo os entes imaginários não podem se furtar ao processo de troca de
informação, ou não poderíamos saber nada sobre eles e nem interroga-los.

Não existe a pura consciência cognitiva sem algum tipo de existência no espaço-tempo
(ou este par também não existiria para nós). Mesmo no âmbito da alma imortal, a expressão
“consciência fora do corpo” é apenas uma figura de linguagem, porque a referência ao corpo
nunca se perde. Mas o ponto de partida de Descartes é este eu cognoscente, o único suposto
existente, ficando até o corpo entre parênteses. No final, chega Derrida e diz que esta
consciência é auto-engano, e com razão. Mas este auto-engano não se verificava em Platão ou
em Aristóteles, nem nos escolásticos, nem em Xavier Zubiri (que mostrou que a dimensão de
realidade só existe para o ser humano e não para os animais), nem em Eric Voegelin (para o
qual a essência do conhecimento é a participação na estrutura da realidade, não havendo o
abismo entre sujeito e objecto).

No exemplo do edifício dado por Husserl [214], quando damos a volta ao edifício e
conservamos a visão dos lados vistos, a isto junta-se a expectativa dos lados ainda não vistos
(retenção e protensão). Isto só acontece porque a percepção se adequa à estrutura do
objecto, ou seja, retenção e protensão não estão apenas no sujeito mas também no objecto.
Não conseguimos ver todos os lados do edifício de uma vez apenas por limitações nossas, o
edifício também não se pode mostrar de todos os lados a um único ponto de vista. Os entes
que só existem no espaço-tempo só podem ser conhecidos por retenção e protensão porque
eles só existem dessa forma. Olhando para isto, Derrida via o presente apenas como um
limite infinitesimal entre a protensão e a retenção, apenas uma diferença sem nada de
substantivo. Mas tudo isto pressupõe a continuidade do tempo, que não é apenas temporal
(algo que Derrida não contempla). Aquilo que aconteceu não vai para o nada, que seria um
“des-acontecer” impossível. Santo Agostinho dizia que “o tempo é a forma móvel da
eternidade”, ou seja, tudo o que existe no tempo também existe eternamente na eternidade.
190

Derrida invalidou a solução de Husserl mas não a intenção inicial deste de


fundamentar a lógica de Frege, que na realidade é imbatível. Qualquer coisa pode ser
designada por termos diferentes com a mesma significação se ambos remeterem a um
referente existente e com unidade. A existência implica unidade, ou seja, continuidade no
tempo, que implica existir indirectamente na eternidade ou mesmo perseverar directamente
nela no caso dos entes eternos. Descartes, Hume, Kant, Husserl, Heidegger e outros não
encontraram a solução para isto por um défice de profundidade existencial: não se trata de
um conhecimento intelectual mas de um conhecimento por presença, que apenas se obtém
por confissão, admitindo uma dimensão que sempre esteve presença e que é o fundamento
de todas as outras. α65

[Aula 66]

216. A crítica linguística ao conhecimento objectivo (Dardo Sacavino)


Tínhamos visto na exposição de Dardo Scavino (vamos retomar nos próximos
parágrafos a exposição do seu livro La Filosofia Actual: Pensar Sin Certezas, para depois
fazer alguns comentários) como Derrida quis desconstruir o conceito husserliano de
presença, alegando que um presente que retinha o passado e anunciava o futuro era uma
coisa que não coincidia com ela mesma, assim, a consciência de uma coisa presente era a
consciência de uma ilusão [214]. Mas, se a unidade do referente é uma ilusão, qual a
necessidade de um juízo sintético como “O planeta Vénus é a estrela matutina”?

Para Ferdinand de Saussure, o signo linguístico era definido como uma entidade de
dois planos: significante (elemento que significa algo) e significado (aquilo que o elemento
significa). Isto parece semelhante ao que dizia Frege, de que “Vénus” é “a estrela matutina”.
Mas agora com Saussure iríamos procurar no dicionário os sentidos de “estrela” e de
“matutina”, o que remeteria para outros significantes e assim sucessivamente. Do ponto de
vista da linguística, o significado já não se confunde com o referente ou com o objecto
designado mas com uma definição aceite ou convencional. Para Benjamin Lee Whorf cada
língua recorta uma porção específica da realidade, pelo que a tradução se torna muitas vezes
impossível dado que cada língua tem um domínio próprio do expressável.

Saussure ainda estabelecia uma diferença entre o eixo paradigmático da linguagem,


onde se fazem substituições sem alteração de significação, e o eixo sintagmático, das
sucessões. No primeiro caso, podemos substituir “Vénus” por “estrela matutina”, em que o
sentido da frase permanece o mesmo apesar da alteração de significante. Mas se depois
dizemos que “Vénus seduziu Vulcano”, não podemos fazer o mesmo tipo de substituição – “A
estrela matutina seduziu Vulcano” –, porque nos referimos agora à figura mitológica e não ao
planeta. O sentido do termo “Vénus” pode se alterar com a continuação do discurso, pelo que
o seu sentido está sempre adiado. Novas palavras podem sempre ser acrescentadas e
modificar ou modular retroactivamente os significados anteriores.

Uma primeira consequência da proposta inicial de Derrida é a eliminação da


preeminência da fala sobre a escrita, dado que o significado de um significante é outro
significante e não a “coisa mesma” (o referente). E se as palavras já não representam o que já
191

estava presente, uma segunda consequência é a impossibilidade de distinguir precisamente o


discurso unívoco da ciência do discurso equívoco da ficção. Na verdade, o literal passa a ser
uma variante do figurado, pois a significação de uma palavra já não depende da relação com
uma coisa mas refere-se à relação desta com outras palavras. Derrida vai reencontrar
Nietzsche, para quem as “verdades” eram apenas antigas metáforas esquecidas. Nietzsche
ainda dizia “Não existem factos, apenas interpretações, e toda a interpretação interpreta
outra interpretação”. Isto é evocado por uma terceira consequência: as coisas não estão
colocadas antes do discurso mas depois, dado que um significante remente sempre a outro
significante e nunca a um referente.

Em resumo, segundo esta linha, o mundo não é um conjunto de coisas que se


apresentam e que depois podem ser representadas por uma linguagem. Aquilo que
chamamos “nosso mundo” já é uma interpretação cultural, logo, poética e metafórica. Dizia
Nietzsche que “O mundo torna-se fábula, o mundo, tal como é, só é uma fábula: fábula
significa algo que se conta e que não existe senão no relato”. Nos anos 60, quando Michel
Foucault dava uma conferência sobre Nietzsche, ele dizia que a interpretação não tinha fim
porque não há nenhum primeiro absoluto a ser interpretado, no fundo, tudo já é
interpretação. Duas décadas depois, Richard Rorty convertia filósofos e cientistas em poetas
mas ignorantes de serem assim.

Na perspectiva hermenêutica, a coisa como tal nunca é conhecida fora dos discursos a
seu respeito, que de alguma forma a criam ou constroem. Mas já Duns Scott dizia que os
juízos sobre as coisas não podem ser comparados com as coisas mesmas, dado que apenas
sabemos algo sobre elas graças aos juízos. A conclusão é niilista, nada há fora das
interpretações, o que é o mesmo que dizer com Nietzsche que “Deus morreu”, porque Ele era
a unidade verdadeira e boa, a aparição da coisa sem atributos, anterior a qualquer juízo a seu
respeito. Mas se isso conduz à renúncia das ideias de verdade objectiva e de discurso
racional, a filosofia e a ciência tornam-se variantes da retórica, dado que apenas podem
apresentar ficções mais ou menos convincentes ou verosímeis. Abandona-se a pretensão da
ciência positiva e da razão iluminista de que “habitamos a natureza”, já que para a
hermenêutica vivemos num “mundo” figurado, como quando dizemos: “O mundo inteiro
sabe o que é a virtude ou a Literatura” ou “Todo mundo reconhece a chuva quando a vê cair”.

O mundo passa a ser entendido como um conjunto de saberes, significações, valores,


gostos, certezas. Ou seja, o mundo é uma pré-interpretação ou uma pré-compreensão, nas
palavras de Heidegger, para quem o homem não habita um território natural como os
animais, mas um mundo, entendido como linguagem ou cultura. Mais tarde, Gianni Vattimo
vai falar do “Espírito de um tempo”; diz ele que nos iludimos de estarmos desinteressados e
objectivos quando falamos de verdadeiro e falso, mas inconscientemente apenas
favorecemos a afirmação dos interesses dos grupos aos quais pertencemos (época, classe
social, etc.) Mais recentemente Vattimo disse que a verdade, entendida como conformidade
entre o enunciado e um estado de coisas, depende da abertura originária ao mundo,
confundindo-se essa abertura com uma herança, um momento histórico, um destino.

Agora voltamos atrás e vamos reenquadrar esta exposição de Dardo Scavino sobre a
filosofia actual. Ele apresenta o processo que vem desde a crença iluminista de uma verdade
objectiva possível de alcançar pela ciência (que reflectia longinquamente a tradição grega do
saber apodíctico, objectivo e comprovado), e como a tentativa de fundamentar essa crença
acabou, pela própria dinâmica interna do exame filosófica, por substituí-la pela ideia de que
não há verdade objectiva alguma, apenas existe uma herança linguística e cultura, na qual
192

vivemos e apenas através da qual o mundo nos chega. Neste processo, os filósofos tomam as
afirmações dos seus antecessores como “território conquistado” e como o único ponto de
partida para o raciocínio a este respeito. Esta auto-referência acaba por ser uma exigência da
profissão académica, que vai impedir que se volte à experiência mesma. Assim, pequenos
erros de percepção iniciais vão se transmitindo e ampliando enormemente no tempo (como
num ângulo com as linhas se estendendo).

Saussure tem razão quando diz que o significado de uma palavra (definição) não é
uma coisa mas um conjunto de outras palavras, e que estas estão definidas no dicionário por
outras palavras e assim por diante. Mas o referente não pode estar no dicionário ou este seria
o próprio mundo. Mas isto acontece apenas quando tomamos a língua como um sistema, que
assim não pode conter coisas, o que não implica que não tenhamos conhecimento das coisas
e só de palavras e das suas significações acumuladas. Se assim fosse, nem mesmo teríamos
acesso ao dicionário enquanto coisa. Ora, Saussure comete um tremendo erro de percepção,
porque quando fala do “diccionário” ele está a mencionar o referente e não o significado.
Além disso, quando ele constituiu a linguística de forma a distinguir o seu objecto de outros
objectos possíveis de outras ciências, ele esqueceu que nenhuma ciência estuda um objecto
real tal como ele aparece na experiência concreta (desde logo são excluídos os acidentes
metafisicamente necessários para que ela ocorra). Como acontece em todas as ciências, a
linguística não estuda um objecto concreto, verdadeiro, mas um objecto ideal, recortado
abstractivamente dentro do campo da experiência. Toda a ciência parte do pressuposto da
existência de certos objectos, existência que ela não explica nem fundamento mas usa para
recortar certos aspectos que irá estudar.

Saussure sabia que a língua só era um sistema desde o ponto de vista do linguista. Do
ponto de vista prático, a língua jamais é um sistema e sempre que falamos estamos nos
apoiando em objectos externos ao sistema da língua. Para Saussure o sistema tem apenas
palavras e as suas definições, e para ele a definição de uma palavra não é constituído por um
objecto mas pela diferença entre essa palavra e todas as outras. Na prática, não podemos usar
esta definição para nada, já que a diferença é infindável. Mas os filósofos continuam a pensar
que a língua vista como sistema é um objecto real. Na realidade, não vivemos dentro de uma
constelação de símbolos que nos abarca e domina cognitivamente. Toda a nossa actividade
cognitiva desenrola-se dentro de um universo real, onde os símbolos ocupam uma parte
insignificante face à nossa experiência efectiva. Se o nosso interlocutor não tiver uma
experiência análoga à nossa, o uso da língua é inviável. Se viajarmos muito, perceberemos
coisas que são difíceis de expressar na nossa cultura. E depois podemos mesmo perceber
coisas que não são formuláveis em língua alguma e que, na realidade, percebemos o tempo
todo.

O que depois se descobriu sobre comunicação não-verbal e sobre programação


neurolinguística arrasa por completo a pretensão da omnipotência da linguagem ou da
cultura. Toda a comunicação verbal assenta em inúmeros sinais não-verbais. Ainda que a
cultura imponha limites ao que podemos comunicar, ela não limita da mesma forma a nossa
percepção. A expressão verbal não existe para abarcar o mundo ou para descrever os
fenómenos na sua totalidade, ela apenas serve para completar um pedaço de um imenso
fundo de percepção e comunicação não-verbal, onde o entendimento espontâneo entre as
pessoas já acontece. A língua completa e cristaliza certas experiências, tornando mais fácil a
recordação.
193

Quando os filósofos académicos, sobretudo europeus, acreditam na língua como


sistema, eles começam a achar-se fantoches movidos pelo sistema da língua. Esta experiência
é concebível mas não dentro da concepção da língua que eles têm, dado que não é uma
experiência que se possa colocar em diccionário, pelo que temos um claro exemplo de
paralaxe cognitiva. Seguindo os seus pressupostos, só teríamos acesso à realidade objectiva
verbalizada, mas a experiência mostra que antes de verbalizarmos algo da realidade
adequamos as nossas reacções físicas ao ambiente externo (por exemplo, todo o conjunto de
reacções que temos ao conduzir e não passam pela linguagem) e depois, eventualmente,
podemos colocar uma pequena parte disto em palavras.

Quando Saussure diz que o referente – a coisa, o “x” ao qual as palavras se referem –
não está na língua, ele acerta mas apenas está a dizer o óbvio: as palavras não são coisas. Por
isso, o diccionário não contém coisas mas apenas definições constituídas de outras palavras.
Todos sabem que uma definição não é suficiente para compreender uma palavra, pois se
aquilo não nos evoca algum tipo de recordação ou análogo, então, nada apreendemos.

A paralaxe da “linguagem como sistema” evoca frases vazias, tais como: “Somos
homens do nosso tempo / cultura”. Repetidas até à exaustão, parecem obviedades. Mas basta
observar uma pessoa como São Tomás de Aquino para perceber a ilusão do “homem do seu
tempo”, dado que ele era mais influenciado por Aristóteles do que por toda a cultura do seu
tempo. Na nossa experiência podemos comprovar como é possível nos abrirmos para
culturas bem distintas da nossa de origem, assim como aconteceram experiências marcantes
para nós que não vieram de cultura alguma.

Continua Scavino, dizendo que Gianni Vattimo explica que a verdade entendida como
conformidade entre o enunciado (discurso racional no sentido iluminista) e um estado de
coisas depende da abertura originária ao mundo, abertura que se confunde com uma
herança, um movimento histórico, um destino. Hoje existe um “pensamento débil” porque se
perderam os fundamentos fortes, como Deus ou a consciência, que garantiam a adequação
entre os enunciados e os estados. Para Vattimo, o sujeito não é o portador do a priori
kantiano mas é o herdeiro de uma linguagem histórica e finita que condiciona o seu acesso a
si mesmo e ao mundo. Embora falemos no domínio da linguagem, antes seria esta a dominar
os seus falantes, começando logo por lhes impor um nome e documentos de identificação.
Desta forma, não teríamos acesso de modo directo a uma realidade pré-linguística.

Na realidade, a pretensão de Gianni Vattimo é absurda na base, porque se não


tivéssemos um conhecimento directo pelos sentidos também não teríamos acesso a língua
alguma. A presença física das pessoas, das imagens, dos sons é indispensável para
aprendermos uma língua e nada disto é elemento cultural. Não temos o a priori kantiano
mas temos a presença do ser, de que fala Louis Lavelle, sem a qual o processo de assimilação
cultural não se poderia iniciar. α66

217. O paradoxo da ciência moderna e a mentalidade revolucionária


Os efeitos da crítica linguística ao conhecimento objectivo [216] não são apenas
intelectuais e vão transmitir-se à vivência das pessoas. Chantal Delsol (The Unlearned
Lessons of the Twentieth Century: An Essay on Late Modernity) fala do europeu culto médio
de hoje, que aprende a viver sem esperança, não depositando esperança na História e
também não acreditando na vida eterna. Assim, vive para o dia-a-dia, tentando desfrutar de
194

algumas sensações agradáveis até que a morte chegue, pelo que lhe resta apenas prolongar ao
máximo o tempo de vida, obter o máximo de bem-estar e tanta segurança quanto possível.
Ela fala de outras civilizações, como a egípcia e a chinesa, que também não depositavam
qualquer esperança no futuro histórico, contudo, nelas a ideia da imortalidade estava sempre
presente, não apenas como um destino post mortem. A situação de que fala Chantal Delsol é
característica da perda de esperança numa mutação histórica, mas essa esperança é
relativamente recente (formou-se nos séculos XVII e XVIII), sendo o resultado de uma
evolução peculiar da civilização cristã, onde uma perspectiva de futuro substituiu a
perspectiva da vida eterna e da salvação (“imanentização do eschaton” – as últimas coisas –,
nas palavras de Eric Voegelin). A acumulação de experiências negativas provocadas por essa
expectativa deixou o cenário apenas com duas possibilidades: ou apostar numa promessa de
futuro, que provocará mais morte, destruição e sofrimento, logo, não se cumprindo; ou viver
como um bichinho, na busca de prazer e segurança e tentando afastar a doença, a morte, etc.
A experiência de todas as outras civilizações vai contra a redução da vida humana a uma
temporalidade terrestre, e sempre esta esfera era vista como estando dentro da esfera de
eternidade que dava a razão de ser ao que acontece aqui.

A ciência actual debruça-se apenas sobre a esfera terrestre, o que traz as suas próprias
contradições internas. O tipo de crítica que Derrida, Heidegger ou Rorty fazem ao
conhecimento objectivo é válido até certo ponto, quando se aplica à ciência tal como
concebida no Iluminismo, embora não invalide todo e qualquer conhecimento objectivo
possível. Assim, o mundo académico criou uma situação paradoxal, começando por declarar
que a metodologia científica é a única capaz de apreender a realidade objectiva, e depois
conclui que as ciências não podem chegar a verdades objectivas mas apenas a descrições
temporariamente apropriadas e que podem ser invalidadas a qualquer momento por alguma
descoberta.

Jean Ladrière (no livro les Enjeux de la Rationalité, também autor de Les Limitations
Internes des Formalismes) ressalta que a ciência moderna nasceu e desenvolveu-se num
ambiente marcado pela ideia de racionalidade, que derivava das bases filosóficas gregas. No
contexto grego, a ideia de um saber especulativo era regrada pelo critério da verdade, e a
verdade era entendida como a correspondência entre a representação do discurso e a
realidade. O saber especulativo pertence à ordem da visão, visa a uma apreensão justa do
mundo, à contemplação da realidade tal como ela é. O conhecimento visa sobretudo
compreender a realidade nos seus princípios, na sua eterna juventude. É a razão
especulativa que dá a sua razão de ser à razão prática. O ideal de ciência tem um aspecto de
contemplação e a ideia clássica de verdade ainda desempenha um papel regulador nos seus
esforços. Ainda quando a ciência se separou da filosofia, o ideal especulativo e contemplativo
está presente na ideia de que as teorias científicas se substituem umas às outras para se
aproximarem assimptoticamente da teoria inteiramente verdadeira, que seria uma
representação adequada da realidade. Daqui também vem a ideia de que a ciência é o único e
verdadeiro caminho para a sabedoria, o que evoca a noção antiga da “salvação pelo
conhecimento”. Esta salvação era entendida como a conquista de uma atitude justa e que
elimina as contradições da existência através da harmonia face a si mesmo e ao mundo. Mas
se na ciência moderna já não existe a noção da verdade científica, apenas uma adequação
provisória, não tem sentido falar de aproximação à verdade, ainda que assimptoticamente.

O paradoxo da ciência moderna é querer ser um caminho para a salvação através do


conhecimento e, ao mesmo tempo, negar a possibilidade de obter um conhecimento
195

totalmente adequado à realidade. O cientista vê-se forçado a um permanente auto-engano e a


autoridade social das ciências, com concomitante poder impositivo (pela pressão das
universidades, órgãos de comunicação social, indústria e incorporação de “verdades
científicas” na legislação) aumenta na medida em que se reconhece a impossibilidade de não
dizer nada de verdadeiro e definitivo. A crítica linguística à ciência vai aqui proceder, até
porque a linguagem científica usa muitas figuras de linguagem (a investigação crítica do
sentido último dos conceitos das ciências não faz parte de ciência alguma), que fundam
axiomas mais ou menos arbitrários e o resultado é que, frequentemente, os cientistas não
fazem ideia do que estão a falar. Os critérios científicos e racionais vão sendo banidos das
discussões científicas e o resultado é que os mesmos que não admitem que a teoria da
evolução seja posta em causa são os mesmos que se gabam de a ciência ser uma actividade
não-dogmática mas auto-crítica. Na realidade, ser auto-crítica é um motivo para impor os
dogmas da ciência, o que é um sinal de psicose.

Isto acontece porque a actividade científica foi afectada de paralaxe cognitiva


(falsidade existencial na actividade científica) e de mentalidade revolucionária (esperança
messiânica de construir um mundo melhor através, neste caso, da ciência), tornando-se
vulnerável ao tipo de crítica que estamos vendo. Mesmo pessoas que odeiam os produtos da
mentalidade revolucionária são bastante afectadas por isto, porque só existe hoje cultura
revolucionária, não existe uma alternativa anti-revolucionária que rejeite na base qualquer
ideia de revolução. No máximo há apenas uma reacção contra-revolucionária, mas que usa os
métodos revolucionários para combater alguns movimentos revolucionários, como no caso
da direita francesa propondo a realização do reino de Cristo através da concentração de
poder. Enquanto a mentalidade burguesa (uma tentativa de auto-preservação hedonista) é
uma constante na História, a mentalidade revolucionário apenas apareceu formada (embora
de elementos existindo anteriormente) e actuante socialmente no séc. XVIII, e antes disso
não encontramos uma crítica integral da sociedade humana, apenas críticas pontuais. Mesmo
Thomas Moore, em A Utopia, ou Platão, na República, apenas fazem estudos sobre hipóteses
de futuro. A mentalidade revolucionária forma-se quando o desejo de conceber o reino de
Cristo na terra se desliga da visão da eternidade e, então, a expectativa que antes era colocada
na eternidade passa a ser projectada no tempo histórico. Podemos argumentar que a
mentalidade burguesa e outros defeitos humanos permanentes (covardia, inveja, etc.) são o
terreno fértil para o surgimento da mentalidade revolucionária, mas nenhum facto histórico
– a mentalidade revolucionário é um facto histórico porque teve um início e terá um fim –
pode ser explicado por factores permanentes, é necessário um novo factor e, neste caso, foi a
ocorrência da síntese de vários elementos anteriores. Podemos tentar diminuir um pouco o
mal permanente do homem, mas ele nunca irá se extinguir. Mas a mentalidade
revolucionária pode ser removida totalmente e, se não o for, será ela a extinguir a
humanidade. Acabar com a mentalidade revolucionária não é uma proposta utópica de
“futuro melhor”, é simplesmente a remoção de algo que não existia e passou a existir,
provocando um grau de morticínio e sofrimento maior do que todos os outros factores
presentes em outras épocas e lugares. Mas todo o esforço de erradicar a mentalidade
revolucionária é vão se não for acompanhado da restauração do senso de imortalidade, sem o
qual não temos um quadro de referências que nos insira na realidade.

Na realidade, a ideia da ciência de aproximação progressiva à verdade é auto-


contraditória, porque se nunca sabemos onde vamos chegar, também não sabemos se nos
estamos aproximando ou afastando da verdade. O que temos é somente uma expectativa de
futuro que se move para diante à medida que nós nos movemos também. Este futuro móvel,
196

esta promessa auto-adiável – o propósito gnóstico da salvação pelo conhecimento – é uma


das estruturas da mentalidade revolucionária. Mas se até a expectativa da mutação futura
desaparece, então, as pessoas entram numa terrível depressão porque o único sentido da vida
que conseguiam conceber era precisamente a luta por um mundo melhor. α66

[Aula 67]
218. A influência da alta cultura na sociedade
Dizia Hugo von Hofmannsthal que nada existe na política de um país sem estar
primeiro na sua literatura, aqui entendida como o conjunto das produções escritas da alta
cultura. Podemos antecipar em muitas décadas o que vai acontecer na política e na sociedade
em geral investigando a alta cultura. Pode parecer uma coisa muito difícil mas na realidade é
bastante elementar, porque ninguém consegue fazer aquilo que não consegue pensar, e só
podemos pensar de acordo com os instrumentos linguísticos, lógicos e técnicos que
adquirimos. E quem forja estes instrumentos são filósofos, intelectuais, escritores, que abrem
um conjunto de possibilidades.

O kantismo criou uma série de obstáculos ao conhecimento da realidade objectiva que


continuam a desencadear consequências até hoje. Uma dessas consequências é a ideia de
Wittgenstein dos jogos de linguagem. Ele diz que as filosofias da linguagem e a lógica
(sobretudo a de Frege) baseiam-se numa concepção onde o referente da linguagem é um
objecto do mundo exterior. Aqui subentende-se um modelo da linguagem usando a função
denominativa (dar nome às coisas), nos termos de Karl Bühler, para o qual esta função tinha
prioridade sobre as outras (função expressiva e função apelativa). A função denominativa
pode funcionar por si mas as outras duas não operam sem ela.

O que Wittgenstein faz com os jogos de linguagem é apontar várias funções, não
somente as três de Karl Bühler, ao mesmo tempo que as torna independentes umas das
outras. Assim, quando saímos da clave denominativa já não temos palavras com referentes de
objectos do mundo exterior, logo, não podemos dizer que as afirmações são verdadeiras ou
falsas. Wittgenstein dá o exemplo do sacerdote que no casamento diz “eu vos declaro marido
e mulher”, dizendo que é uma sentença que escapa ao verdadeiro ou falso. Reconhecemos
que aqui está a ser usada a função apelativa (o sacerdote tenta “convencer” o casal e os
ouvintes a se comportar de certa maneira em relação àquele casamento). Mas a função
apelativa não iria funcionar se as palavras “marido”, “mulher” ou “declarar” não
significassem alguma coisa, pelo que sempre dependemos da função denominativa. Quando
um jornalista acusa um ministro de ser psicótico, este vai acusar o jornalista de tê-lo
insultado e não de ter mentido. A “excepção da verdade”, onde as legislações reflectiam um
critério tradicional, considerava que não podia haver ofensa quando se dizia a verdade. Mas
pela influência cultural dos jogos de linguagem, a ideia de insulto passou a ser considerada
independente da realidade factual.
197

A alta cultura abre uma série de possibilidades, umas promissoras, outras infernais e
abissais, e passadas algumas décadas algumas materializam-se em forma de lei ou em certas
tendências visíveis na sociedade. No caso do ministro que se considera insultado foi realizada
uma possibilidade abissal, em que um crime não é mais considerado pela materialidade do
acto, nem mesmo pela intenção, mas passa a ser visto apenas pela reacção da suposta vítima.
Isto configura uma institucionalização da injustiça, ou seja, aquilo que o grupo de pressão
mais forte disser passa a ser lei.

Depois de Wittgenstein, Richard Rorty veio dizer que não há mesmo critério algum de
julgamento de verdade objectiva, resta apenas a persuasão. Ele define a verdade como a
afirmação que for persuasiva para o maior número e, assim, adquirir mais poder na
sociedade. Isto tem influência hoje no direito, na educação, na psicologia, na política. Mas
começou discretamente, com os filósofos a raciocinar a partir dos pressupostos de Ferdinand
de Saussure, que considerava a linguagem como um sistema, que assim pode ser estudada
em si mesma e sem referência ao mundo exterior, vista apenas como um conjunto de
palavras e regras. Obviamente que esta não é a linguagem que usamos na prática, não
podemos comprar um único produto definindo-o pela diferença que ele tem em relação a
todas as outras coisas, como faz Saussure dentro da linguística (ver livro Mensonge, de
Malcom Bradbury, que parodia Saussure).

Vemos que na França, intelectuais como Derrida, Lacan, Sartre, Saussure têm um
destaque infinitamente maior do que Louis Lavelle, que os supera a todos numas breves
linhas. Os critérios de importância passaram a ser ditados por jornalistas, sendo totalmente
subjectivos. São também os jornalistas que deram destaque a Jean Piaget, que deu origem às
técnicas modernas educacionais (construtivismo, socio-construtivismo, etc.), que partem de
uma analogia muito frágil entre o desenvolvimento do conhecimento e o crescimento do
organismo humano. Daí Piaget concebeu um processo de assimilação e acomodação, coisas
que realmente ocorrem mas que não são o verdadeiro processo de aprendizado.
Supostamente, a criança vai assimilando informações e estas transformam-se nela, por outro
lado, a criança acomoda-se ao ambiente externo e torna-se parte dele. Na realidade, a criança
não começa por ter uma relação activa com o mundo exterior mas sim a relacionar-se com
este através da mediação de outras pessoas, normalmente os pais. Rueven Feurstein
salientou esta função do mediador, ausente em Piaget, que é um educador que não concebe a
existência do professor. O método construtivista nasceu ele mesmo de maneira
construtivista: ignora a observação da realidade e constrói um modelo hipotético, que
prossegue se auto-construindo e tornou-se num sistema de poder organizado quase
impossível de destruir.

Nos últimos duzentos anos a única força causal histórica vem do movimento
revolucionário, e podemos rastrear quase todas as ideias em circulação até este. Pode ver-se
alguma reacção localizada contra alguns aspectos revolucionários, mas que é feita à custa da
cedência em tudo o resto. A abrangência do movimento revolucionário é tão grande e o
controlo que exerce sobre o fluxo de informação mundial (existe a lei histórica que diz que a
difusão dos factos produz novos factos) é tão apertado que geralmente as pessoas ficam
aterrorizadas e recusam ter uma visão integral do movimento.

O controlo da informação – e a sua ocultação – pode criar a ideia de que tudo são
efeitos impremeditados, quando na verdade podem obedecer largamente a um plano. A
União Soviética conseguiu desencadear a Segunda Guerra Mundial, construindo o exército
alemão em segredo para destruir as democracias liberais europeias, ao mesmo tempo que se
198

preparava para derrotar a Alemanha e tomar metade da Europa (ver o livro The Chief
Culprit, de Viktor Suvorov). E isto já era uma obediência ao plano de Lenine, que tinha
apoiado a Alemanha na Primeira Guerra Mundial, mas o resultado tinha ficado curto para as
ambições do movimento comunista. Noutra frente, a propagando soviética dos anos 30, 40 e
50 incorporou-se de tal forma na mentalidade ocidental que passou a ser “sabedoria
comum”. A ideia de que as potências capitalistas têm pretensões imperialistas e almejam a
construção de um Estado mundial foi inculcada pelos soviéticos, que décadas antes de existir
algo como o Grupo Bildeberg já faziam ocupação militar de imensos territórios e tinham
planos de instaurar um governo mundial.

René Guénon acertou quando disse que o segredo é a essência do poder. Toda a
superfície visível da política tem a importância de uma camuflagem. Temos de ganhar o
hábito de ir às fontes mais primárias, aos depoimentos de quem “estava lá”, às memórias dos
políticos que no fim da vida são atingidos pela sinceridade e decidem contar tudo, ir a todo o
tipo de documentos primários. Existe hoje muita coisa disponível mas raramente em
publicações académicas. A produção académica baseia-se nos trabalhos anteriores, pelo que
tende a reproduzir os erros e mentiras colocadas propositadamente (a “criação de coelhos” de
que falava Wilhelm Münzenberg). Pior ainda, como na academia de hoje valem as ideias de
Popper e Richard Rorty, não há mais busca da verdade ou referência ao mundo, pelo que
verdade é aquilo que deixou mais pessoas convencidas. Tudo ainda fica mais agravado com a
ideia de que toda a gente tem direito a uma educação superior, o que apenas cria uma
multidão de imbecis que não conseguem ler um livro mas, ainda assim, querem todo o
prestígio dos postos científicos e académicos. α67

[Aula 68]

219. Os objectivos de longo prazo do Seminário de Filosofia


A militância política não está no mesmo plano em que se encontra o trabalho de
formação cultural. A diferença é como aquela que vai do piloto para o navegador de um
barco. Enquanto o piloto enfrenta as ondas, o navegador está recolhido no fundo da
embarcação examinando os mapas e planeando o trajecto de longo curso. Se o navegador
tomar o lugar do piloto, pode até manter o barco à tona mas irá perder o rumo. É necessário
responder às situações políticas imediatas mas a tarefa do Seminário de Filosofia visa o longo
prazo, e qualquer alteração mínima de rumo inicial irá provocar um grande desvio ao fim de
algum tempo. Os alunos só deverão começar a ser personagens activas na vida intelectual
dentro de dez a quinze anos.

O voto de abstinência em matéria de opinião visa precisamente a dar tempo para


formar opiniões bem fundamentadas e, assim, poder ter mais tarde uma acção pública com
muita segurança. As opiniões prematuras comprometem-nos e podemos passar o resto da
vida justificando algumas ideias disparatadas que adoptamos na adolescência. Os jovens que
defendem ideologias criminosas, achando que estas eram a solução para todos os problemas
da humanidade, acabam por se tornar incapazes de reconhecer a monstruosidade do que
defendem: ganham horror à culpa porque a deles é muito maior do que a capacidade que têm
para arcar com responsabilidades. Então, viver sem culpas torna-se num ideal, o que significa
199

renunciar à condição humana e tentar viver como um bichinho. Na realidade, somos autores
dos nossos actos e estes possuem consequências, quer queiramos percebe-las ou não, pelo
que somos inevitavelmente portadores de sofrimento e dor para outras pessoas.

Mas só fica obcecado por viver sem culpas quem tem uma consciência de culpa
sufocada, fruto da repressão da consciência moral, que provoca uma dor que parece
intolerável. Muitas “religiões” e “filosofias” são apenas sistemas de pretextos e subterfúgios
para destruir a consciência moral mas, ainda assim, o indivíduo continuar sentindo que é
“bom”. Igor Caruso mostrou que a grande fonte de neuroses é a repressão do apelo à
consciência moral e não a repressão dos desejos, que o próprio Freud reconhecia como um
processo normal da vida humana.

Muitos alunos sentem uma grande abertura provocada pelas aulas do Curso Online de
Filosofia: abre-se um mar de possibilidades, parece que vêem os acontecimentos da
sociedade com mais clareza que os actuais intervenientes. Isto pode provocar o desejo de
intervir publicamente, mas todo o conhecimento precisa de se consolidar, tal como no
processo de gestação, em que o bebé necessita de tempo para poder ter uma vida
independente do organismo da mãe. O Seminário de Filosofia insere-se num contexto em que
a alta cultura foi destruída após décadas de degradação, e o objectivo da sua restauração
obviamente que apenas pode ser apontado para o longo prazo. Claro que podemos responder
a pontos específicos mas isso deve ser feito nos locais apropriados e não onde possa interferir
com os objectivos de longo prazo. α68

220. A hipnose de Wittgenstein


Vamos abordar Wittgenstein ainda antes de retomar o texto de Dardo Scavino (do
livro La Filosofia Actual: Pensar Sin Certezas). O livro de Scavino retrata algo que se tornou
dominante no século XX, sobretudo nas universidades europeias e brasileiras, não tanto
pelos seus méritos efectivos mas por ter conseguido obter destaque dos jornalistas culturais,
frequentemente mal preparados mas sempre preocupados com um certo efeito de
“espectáculo”. Para estes jornalistas é relativamente fácil popularizar as poucas teses de
Wittgenstein, mas seria quase impossível inteirarem-se de obras realmente valiosas como as
de Xavier Zubiri, Mário Ferreira dos Santos, Eric Voegelin, Eugen Rosenstock-Huessy ou
Louis Lavelle. Mas as obras de Sartre, Wittgenstein ou Heidegger não são elogiadas por
serem fáceis de ler mas precisamente pela sua obscuridade, que permite criar uma aura
mística à volta.

A mídia passou a desempenhar um papel de condução da alta cultura porque


expandiu bastante o seu poder e área de actuação. O normal seria a alta cultura desempenhar
uma função mais ou menos independente do resto da sociedade (em termos de ser
directamente influenciada por esta), sobre a qual iria semear os seus frutos a médio e longo
prazo. Mas a alta cultura perdeu o seu papel de liderança e passou a andar a reboque da
mídia, sobretudo no Brasil, onde há o fenómeno da Rede Globo com 70% da audiência.

Uma situação como esta permitiu que Wittgenstein tivesse uma posição de destaque
na filosofia do séc. XX. Logo nas primeiras páginas do Tractatus Logico-Philosophicus ele
coloca uma série de axiomas, para depois fazer uma série de deduções em cima, mas há tanta
contradição e confusão nos seus princípios fundamentais que percebemos a esquizofrenia
envolvida, e ele mesmo diz que o livro só será apreciado por quem teve os mesmos
200

pensamentos e gostou deles, e vemos que são pensamentos doentios. As contradições iniciais
não percebidas – e os estudiosos de lógica que são atraídos pelo livro costumam não percebê-
las – vão estar embutidas na cadeia dedutiva adiante, continuando a produzir consequências
de forma meio inconsciente, pelo que a leitura vai ter dois níveis. Então, por um lado
acompanhamos o raciocínio explícito de Wittgenstein, mas noutro nível vamos acumulando
confusões e contradições até chegar a uma espécie de paralisia mental, e depois apenas resta
aceitar automaticamente o que ele está dizendo.

Em O Livro Marrom, Wittgenstein recorda Santo Agostinho, que diz ter aprendido a
falar aprendendo os nomes das coisas. Para Wittgenstein essas palavras seriam algo como
“água”, “casa”, “árvore” e não “mas”, “porque” ou “no entanto”. Isso significaria que a
linguagem concebida por Agostinho era apenas um tipo limitado, existindo outros. Mas seria
possível aprender uma linguagem sem o nome de coisas e ficando apenas com as palavras
que expressam relações entre palavras? Claramente não podemos ensinar uma criança a falar
apenas palavras como “mas”, “porque”, “entretanto” (elas podem repeti-las como sons que
nada significam). Mas já lhes podemos ensinar apenas os nomes de coisas porque as relações
entre palavras aparecem sozinhas nas relações entre coisas. Percebemos que o copo está em
cima da mesa sem termos a palavra que expressa esta relação. Também percebemos as
relações de causa-efeito mesmo sem termos os termos próprios. As observações de
Wittgenstein não são verdadeiramente observações mas expressões da falta de observação.

O princípio número um do Tractatus Logico-Philosophicus diz que:

«O mundo é tudo aquilo que é o caso».

Isto é, quando dizemos que “tal coisa é o caso” ou “tal coisa não é o caso”. Uma
primeira sub-premissa:

«O mundo é a totalidade dos factos e não das coisas».

Em seguida coloca uma sub-consequência:

«Qualquer coisa pode ser o caso ou não ser o caso, de tal modo que tudo mais
continue igual”».

Isto é totalmente arbitrário e sabemos perfeitamente que há coisas que acontecem que
afectam as restantes, mas se aceitarmos isto como premissa vamos também aceitar as
consequências e ao fim de algum tempo estamos enredados num labirinto de cretinices, mas
depois não queremos admitir que perdemos tempo com aquilo. Wittgenstein diz:

«Se eu conheço um objecto, então conheço todas as possibilidades da sua ocorrência


em fatos atómicos [considerados em si mesmos]».

Como nunca conhecemos todas as possibilidades de ocorrência de um objecto nem


todos os factos possíveis e imagináveis, Wittgenstein está a dizer que nunca conheceremos
um objecto, o que é inaceitável, porque esse conhecimento de seria o infinito quantitativo em
acto de Aristóteles.

Outra frase de Wittgenstein:

«O mundo divide-se em factos».


201

Considerando os factos atomísticos – aqueles considerados em si mesmos e sem


qualquer ligação com os outros –, estes nunca poderão compor um mundo, apenas um
conjunto de factos não articulados. Ele diz ainda:

«O mundo é determinado pelos factos e pelo facto de que estes são todos os factos».

Se assim fosse, mais nenhum facto poderia ocorrer, dado que para ele o mundo se
compõe de todos os factos e só é facto aquilo que já aconteceu. A isto junta-se:

«Uma entidade lógica não pode ser meramente possível, a Lógica trata de todas as
possibilidades, e todas as possibilidades são os seus factos».

Ora, se para ele não existe o meramente possível, apenas factos, e estes são o ocorrido,
então, nada mais pode acontecer: o mundo é um todo fechado.

Isto não é filosofia mas um jogo insensato em que um indivíduo tenta impor a forma
da sua mente a quem seja idiota o suficiente para entrar neste labirinto. É o que Eric Voegelin
chamava de operação de magia, uma tentativa de prender o outro num circuito de
pensamentos sem sentido mas que quando aceite provisoriamente, ainda que a título de jogo,
torna-se muito difícil de voltar atrás. O trabalho que dá em chegar até ao fim do livro faz com
que estas coisas se tornem numa estrutura permanente dos pensamentos do iniciado. No
fundo, é um procedimento de hipnose.

Continua Wittgenstein:

«Em Lógica, nada é acidental. Se uma coisa pode ocorrer num facto atómico, a
possibilidade daquele facto atómico tem de poder ser pré-julgada na coisa».

Isto é a negação da acidentalidade, porque diz que a partir de um facto deve ser
possível deduzir todos os acidentes que lhe podem ocorrer, o que levaria a equivaler os
acidentes às propriedades.

Quando mais tarde, noutros trabalhos, Wittgenstein lança a ideia dos jogos de
linguagem – existem inúmeros jogos de linguagem independentes entre si e nenhum pode
abrangê-los a todos –, ele apenas confunde as possibilidades da linguagem humana com a
possibilidade do conhecimento humano. O universo das linguagens não abrange tudo o que
conhecemos. A linguagem é um aspecto da existência e do conhecimento. Toda a
comunicação verbal depende de uma rede quase ilimitada de sinais não-verbais. Já Karl
Bühler dizia que, na linguagem, as funções expressiva e apelativa dependiam da função
denominativa. Mas Wittgenstein, nos jogos de linguagem, não apenas cria outras funções
como as torna independentes da função denominativa, o que vai flagrantemente contra a
nossa prática da linguagem. α68

221. A linguagem e a cultura como jaulas existenciais (Dardo Scavino)


Continuando a leitura texto de Dardo Scavino (do livro La Filosofia Actual: Pensar
Sin Certezas, já comentado antes em [214, 216]), ele fala da hermenêutica como uma filosofia
da finitude humana, na acepção de Gianni Vattimo, para quem o sujeito não é portador do a
priori kantiano mas herdeiro de uma linguagem histórica e finita que condiciona o acesso a si
mesmo e ao mundo. Mas podemos já questionar se poderíamos ter acesso à cultura se os
202

sinais físicos que recebemos do mundo não significassem nada para nós. Somente após um
certo grau de desenvolvimento humano pode a cultura se tornar um mediador do universo
físico, até ao ponto de modular algumas respostas que damos a este, mas ainda assim nunca
altera as reacções fisiológicas, apenas a reacção verbal e social é que é diferente. Por outro
lado, podemos questionar o que significa o homem estar limitado à cultura do seu tempo.
Vemos diferenças abissais entre as pessoas, desde aquelas que não têm praticamente
referência alguma a eventos passados ou a outras culturas, até outras cujo horizonte temporal
abarca várias épocas e civilizações. Tudo isto não pode ser mediado pela cultura do nosso
tempo, mesmo se nela existirem algumas referências para “fora”, há também o impacto físico
de ver certas coisas, de ler certos textos, de contactar certas pessoas. Se olharmos este
conjunto com os olhos da nossa cultura, realmente não entenderemos nada, temos de
adaptar a nossa compreensão aos novos elementos e no final chegamos a algo que não tem
equivalente na nossa cultura.

Não reflectimos a cultura do nosso tempo mas, sim, toda e qualquer informação que
recebemos, seja de que cultura for. O quanto conseguimos olhar para diante no futuro ou
para trás no passado depende de nós e não da nossa cultura. Tal como Wittgenstein substitui
a linguagem ao mundo (ele diz que “os limites do mundo são os limites da linguagem”, o que
implicaria aprender a falar antes de nascer), o pessoal da hermenêutica substitui a cultura ao
mundo. Tudo isto apenas revela uma falta de atenção à presença física do mundo à nossa
volta, de alguém que parece nunca se ter apercebido da miríade de sinais do mundo físico que
recebe e a partir dos quais se orienta mas que permanecem alheios à linguagem. Mesmo a
descrição completa de uma simples dor de barriga está para além das possibilidades da
linguagem. Se não tivéssemos captado uma série de relações espaço-temporais e a presença
do mundo físico, com a sua unidade, não poderíamos criar em cima a unidade da nossa
comunicação ou da nossa cultura.

Diz Jacques Derrida que a língua nos fornece um sistema de significantes a partir do
qual compreendemos o mundo, ao mesmo tempo que nos propõe que confiemos neste, dado
que não podemos chegar de modo directo a uma realidade pré-linguística. Se isto fosse
verdade, não poderíamos ouvir as pessoas falar, porque a audição não é linguagem mas uma
sua pré-condição. Rorty dizia que realmente não podemos convencer ninguém a nada, mas
podemos induzir as pessoas a falar como nós. Isto já indicia que o objectivo desta corrente
filosófica é criar uma relação de poder entre os intelectuais e os seus leitores, mas que só se
estabelece se aceitarmos as suas proposições arbitrárias. Ao mesmo tempo que isto cria uma
insensibilidade relativamente às realidades mais óbvias, o foco de atenção é deslocado para
problemas que não existem naturalmente mas que foram criados pelos discursos destes
intelectuais.

Questiona Dardo Scavino se esta linguagem (aquela concebida pela linha filosófica
dominante que ele aborda) não passa a ocupar o lugar de Deus ou do Homem. Este é um
problema artificial que apenas existe dentro do contexto de uma determinada escola de
pensamento, porque uma pessoa normal sabe que a língua chega através dos sentidos e não o
contrário, e que a linguagem só poderia tomar o lugar de Deus se tivesse criado o mundo.

Na revista Time, Wittgenstein questionou até que ponto um falante de uma língua ou
um membro de uma cultura podem compreender a maneira como outra época ou cultura
interpreta uma coisa, isto sem traspassar os preconceitos do seu tempo. Para começar, só
temos acesso a outra cultura porque estamos todos dentro do mesmo universo físico: é este o
elo que nos liga. Sem a unidade do universo físico não teríamos uma base para compreender
203

outras culturas, nem mesmo outras pessoas. Wittgenstein prossegue afirmando que existem
inúmeras discussões sobre o assunto (possibilidade de compreensão de interpretações de
outras culturas ou épocas), sobretudo a respeito da interpretação de textos antigos. A
discussão desta interpretação já é um exame de segundo grau, que pressupõe algum tipo de
compreensão inicial. Podem existir muitas interpretações de uma peça de Shakespeare, mas
todas elas se baseiam na compreensão dos eventos retratados, ou seja, a divergência apenas
se refere a algo que não está presente materialmente no texto. Não há dificuldade em
entender o que Shakespeare disse mas apenas em tentar descobrir o que ele pensou. Mas não
há qualquer problema em não entendermos algo que o autor não disse.

Se colocarmos um leão à frente de vinte pintores, vão sair vinte resultados diferentes,
o que parece argumentar a favor do predomínio do subjectivo sobre o objectivo, mas na
realidade é o oposto. Não foi apresentado aos pintores um desenho do leão mas o animal
mesmo, em relação ao qual cada pintor tem um certo ponto de vista. Espera-se que cada
trabalho seja uma interpretação do leão, mas isso não quer dizer que só existam
interpretações, já que não vai aparecer nenhuma pintura de uma girafa. Só podem existir
diferenças de interpretação se estiverem dirigidas ao mesmo objecto. α68

222. Filosofia como história da filosofia (Dardo Scavino)


Sacavino (La Filosofia Actual, já comentado em [214, 216, 221]) diz que a
hermenêutica, com o conceito de finitude, vem causar um grande transtorno à distinção entre
doxa e episteme (distinção entre opinião e ciência, essencial na tradição filosófica desde
Platão e Descartes). Os enunciados verdadeiros sobre as coisas implicavam vê-las ou pensá-
las como são e não como cremos ou imaginamos serem (por arrastamento do espírito da
época ou de um grupo onde nos inserimos). Mas diz Scavino que esta crença implicava
subtrair-se às interpretações culturais ou históricas e observar as coisas com um olhar
atemporal e infinito. Ou seja, dentro da tradição hermenêutica apenas temos duas
possibilidades: ou encaramos tudo pelo viés da nossa cultura, sendo tudo subjectivo e fruto
da interpretação; ou encaramos as coisas com um olhar de Deus, vendo as coisas como elas
são eternamente. Contudo, existe outra possibilidade, que é ver as coisas tal como elas se
apresentam fisicamente a nós, o que não é uma interpretação cultural (basta pensar que a
sensação de peso não depende de determinações culturais) e nem se trata de um olhar sub
specie aeternitatis. É a partir de sucessivos exames da experiência directa deste tipo que
podemos obter algum conhecimento atemporal dos objectos, mas aí já é uma especulação
filosófica.

Diz Scavino que a razão iluminista, que pretendia encarar o objecto sub specie
aeternitatis e anunciar leis gerais e eternamente válidas sobre ele, é incompatível com a
finitude histórica dos seres humanos. Ocupar a posição de Deus, neste sentido de conhecer as
coisas na escala da eternidade, é agora considerada por muitos a principal ilusão da filosofia,
é a chamada ilusão metafísica. Mas são os próprios herdeiros do Iluminismo que estão a
renegar os propósitos deste, só que para fazerem isto aceitaram primeiro os pressupostos
iluministas e a forma como o Iluminismo encarou a tradição filosófica anterior. Contudo, a
concepção iluminista não era a única alternativa possível. Ironicamente, esta linha de
pensamento proclamou que estava a ensinar as pessoas a pensar desde a perspectiva da
relatividade histórica, mas depois escondeu a historicidade do seu próprio processo, não
admitindo “concorrência” de outras linhas de desenvolvimento.
204

Os filósofos modernos tentam destruir a ilusão lógica-positivista, mas esta derivou da


tentativa da filosofia iluminista de chegar às leis universais. Ao remeter tudo para os
elementos culturais e históricos, inevitavelmente só podia sobrar o conhecimento de tipo
histórico. Então, diz Scavino, a filosofia tende a converter-se em história da filosofia. Ou seja,
esta filosofia perdeu os objectos e segue meio automaticamente um certo desenvolvimento
histórico sem conseguir conceber algum tipo de experiência fora desta linha. Os filósofos
contemporâneos não atacam nenhum problema directamente, tentam sempre se colocar em
face de um desenvolvimento histórico anterior, assim como nunca interpretam um problema
desde a sua própria experiência mas sempre o fazem através do olhar de algum ancestral.
Claramente que isto não se aplica a Louis Lavelle, Eric Voegelin ou Eugen Rosenstock-
Huessy.

Diz Scavino que a desconstrução de Derrida, a Genealogia de Foucault e a


hermenêutica de Heidegger impuseram, cada uma de sua maneira, o novo procedimento de
pensar num conceito remontando até ao momento em que este foi criado ou inventado.
Contudo, se apenas rastreamos a origem histórica dos conceitos, sem atender a que possam
ter tido origem em certas experiências, vai parecer que os conceitos simplesmente saíram uns
dentro dos outros. Eric Voegelin percebeu que era isso que estava a fazer na sua História das
Ideias Políticas, portanto, era também necessário escrever uma história das experiências
políticas. O objecto da filosofia política não foi criado por filósofos mas pela existência do
Estado, das guerras, das disputas de poder, etc. Hegel, por exemplo, raciocinou em cima do
desempenho factual de Napoleão, pelo que ao abordarmos os conceitos criados pelo primeiro
devemos também chegar ao segundo de alguma forma. Nietzsche e Heidegger tentaram
explicar certos conceitos até às origens mais remotas, chegando por vezes até a certas
metáforas ou figuras de linguagem muito antigas. Mas se mesmo fazendo isto não chegarmos
às experiências originárias, toda a história do conceito pode ser uma sucessão de erros ou
ilusões.

Assumido o fetiche de que a compreensão de um conceito significava o seu


rastreamento até à origem, o pensamento contemporâneo, segundo Sacavino, concluiu que o
pensamento medieval, tal como a cultura iluminista, nunca se questionou verdadeiramente
sobre como podemos saber algo a respeito das coisas deste mundo. Supostamente, o saber
medieval apontava apenas para a correcta interpretação dos textos, que nos diziam a verdade
sobre as coisas divinas e humanas. Na verdade, quase toda a filosofia medieval era uma
reflexão sobre a experiência espiritual, e como os filósofos actuais não têm mais esta
experiência, então, acham que os medievais também não a tiveram, concluindo que apenas
havia discussão à volta dos textos. Além disso, a alquimia era o assunto sobre o qual mais se
escrevia no período medieval, e esta não versa sobre textos mas sobre elementos, planetas,
etc. Ainda, apenas na Renascença surgiu a idolatria dos textos, precisamente com os
humanistas. Antes, muita da tradição era transmitida apenas oralmente de geração em
geração.

Mas assumindo este princípio de que o facto textual não existe fora da interpretação,
então, a conclusão é que leitura cria ou texto, ou como exprimia Stanley Fish em forma de
paradoxo: “Já não há obras, apenas leituras”. Ora, se a leitura cria o texto, este pode ser
interpretado de muitas formas, o que dá origem, por sua vez, a várias leituras, e assim por
diante, dissolvendo a própria leitura. Chegou-se a esta insanidade a partir de uma confusão
inicial entre linguagem e mundo.
205

Esta linha de raciocínio levou a Richard Rorty a concluir que a verdade se faz e não se
descobre, é algo que se constrói ao invés de se achar. Contudo, atendamos ao seguinte: se
desenharmos um modelo, na realidade estamos a imitar um esquema deste na nossa mente,
mas que apenas surge nela a partir do original e a este recorremos para corrigir o desenho.
Então, a verdade que se constrói é uma auto-contradição. A posição de Rorty evoca
Wittgenstein, que disse que a filosofia deveria ser escrita como uma composição poética.
Desta forma, as revoluções científicas seriam redescrições metafóricas da Natureza e não
intelecções da sua natureza intrínseca. Embora exista este aspecto de descrição metafórica
da Natureza nas teorias científicas – nunca existe um translado directo do que foi percebido
–, não pode ser apenas isto: algo tem de ser percebido; tem que haver uma base factual para
depois se fazer uma elaboração em cima.

Seguindo esta ideia das revoluções científicas, já não poderia falar-se de um progresso
científico como uma aproximação gradual a um conhecimento completo e racional da
Natureza (proposta de Laplace). Ou seja, somos novamente colocados entre extremos: ou o
ideal iluminista da ciência perfeita, que iria descobrir a realidade tal como ela é e expressá-la
em leis universais obrigatórias; ou, caída esta ideia em desgraça, restaria a total invenção, a
arbitrariedade, as metáforas poéticas. Na realidade, estas duas hipóteses são impossíveis e o
que existe é uma tensão entre elas.

Rorty conclui que falar de uma verdade objectiva (que anularia as outras) só seria
possível numa sociedade autoritária. Contudo, nunca existiu uma sociedade autoritária
baseada no conhecimento objectivo da Natureza. As sociedades totalitárias são baseadas em
ideologias, ou seja, em misturas indiscerníveis de conhecimento, crença e actos de vontade.
Talvez Rorty acredite na propaganda que as ideologias fazem a si mesmas de serem
científicas e verdadeiras. Alain Besançon (As Origens Intelectuais do Leninismo) mostrou a
tensão em Lenine, que numa hora dizia que as suas ideias são conhecimento científico e logo
a seguir afirmava que aquilo tinha de ser imposto. Ora, uma verdade científica pode ser
demonstrada e não necessita de ser imposta.

Diz Scavino que a “verdade tem a vocação de universalidade” e Rorty sabe disso, mas
daí não conclui que a verdade seja válida para qualquer indivíduo para além da sua cultura.
Mas se pensarmos bem, um regime autoritário não é apenas a expressão de uma determinada
cultura como é o factor que faz com que esta cultura continue existindo e se perpetuando.
Então, para que precisa um regime autoritário de verdades que transcendam a cultura que
ele mesmo impõe e constitui? Aquilo que transcender esta cultura também vai transcender e
colocar em causa a autoridade do regime que domina aquela cultura. Assim, a exigência de
universalidade e o exercício da autoridade vão em sentidos opostos. Por isso, os regimes
autoritários sempre tenderam a proibir a viagem dos cidadãos para o exterior, para estes para
não voltarem com ideias estranhas àquela cultura e que coloquem a autoridade do regime em
discussão. Rorty, que sempre viveu carregado de direitos na democracia americana, não faz a
mínima ideia do que seja um regime autoritário. α68

223. A falsa oposição entre fé e conhecimento


A habitual oposição feita entre fé e conhecimento parte do princípio de que se
sabemos uma coisa não precisamos de ter fé. Se assim fosse, apenas poderíamos ter fé em
relação àquilo que desconhecemos, o que seria uma fé vazia, uma fé no nada. Na realidade, a
fé entra quando percebemos uma coisa mas depois a nossa mente fez-nos esquecer ou
206

modificar aquilo. Não opera apenas no caso religioso. O indivíduo que está com a namorada e
naquele momento sabe que ela o ama, depois quando ela sai começa a desconfiar, a criar
falsas dúvidas. Então, ele restaura a sua fé nela. Ora, quando ele faz isso não tem fé em algo
duvidoso, antes restaura a fé em algo que antes já sabia. A fé e o conhecimento não são
espécies diferentes e estão sempre em relação dialéctica. α68

[Aula 69]
224. Notas sobre o movimento revolucionário
O tipo de actuação que se espera dos alunos do Curso Online de Filosofia pode não ser
possível desempenhar no Brasil, caso a situação de complique para além de um certo ponto.
Por isso, os alunos têm de estar preparados para desempenhar as suas actividades no
exterior, onde a mentalidade revolucionária também está bastante activa. Sob certo aspecto,
a penetração da mentalidade revolucionária no Brasil é menor do que em muitos países, já
que a maior parte das pessoas não lê jornais e apanha as coisas filtradas pela Rede Globo.
Assim, a posição conservadora da maior parte dos brasileiros em termos sociais e morais não
foi alterada, embora não existam partidos políticos de expressão conservadora.

O movimento revolucionário não foi criado por políticos de interior mas por
intelectuais de alta craveira, que têm um horizonte de visão muito maior que o dos seus
possíveis adversários na direita. A revolução não é um projecto definido a ser realizado por
certos meios, ela apenas pode existir enquanto promessa de futuro. Se ela fosse algo a ser
alcançado por meios racionalmente controláveis, então, teria um fim e poderia ser julgada
pelos seus actos. O projecto revolucionário nunca está confinado a uma época ou lugar, é
sempre um projecto universal. Mesmo o projecto revolucionário nazi, apesar de ter um
conteúdo alemão, tinha um horizonte mundial. Se a revolução apenas pode ser total,
nenhuma revolução em particular realiza a sua ideia.

A ideia de revolução está impregnada de elementos gnósticos, que expressam uma


revolta geral contra a estrutura da realidade, tida como uma coisa maligna. Deus também é
maligno para os gnósticos e, por isso, deve ser corrigido para se redimir do pecado de ter
criado o mundo. Nesta concepção, todo o universo está condenado e deve ser transmutado,
sem que exista outro universo que sirva de parâmetro de comparação. A revolução é um
processo de auto-transformação da totalidade do real e, por definição, não tem limite. A ideia
de Trotsky da revolução permanente apenas expressa uma ideia que já está embutida em
toda a política revolucionária: nunca existirá uma modificação, por mais profunda, radical e
avassaladora que seja que se possa dizer que realizou a revolução. Qualquer modificação que
ocorra será sempre considerada como coisa pouca, e a sua principal função é de natureza
“mágica”, uma evocação daquilo que se deseja e, ao mesmo tempo, um sinal de que a
revolução está em marcha e, portanto, que está ocorrendo uma auto-modificação da
totalidade do real que envolve toda a gente.

Vittorio Matieu (La Speranza nella Rivoluzione) diz que o processo revolucionário
assemelha-se a uma criação artística e não à execução de um projecto técnico ou político de
mudança social. O escritor usa algumas técnicas mas quando começa a escrever um romance
207

não tem ainda o conceito total deste. Ele nunca controla a totalidade do processo porque
existe a inspiração, que é um fenómeno interno do processo de escrita e que, de certa forma,
faz com que as personagens obriguem o romancista a escrever certas coisas. Os liberais não
entendem isto porque raciocinam segundo cânones técnico-científicos e, assim, esperam
apenas encontrar na revolução a ideia da acção racional segundo fins. Já o revolucionário,
por regra, conhece o adversário melhor do que este se conhece a si mesmo, por isso não sofre
qualquer oposição política eficaz.

A maior parte das acções revolucionárias – protestos, reivindicações, iniciativas


políticas, actos de terrorismo, etc. – não produz efeito prático algum (no sentido de
alcançarem os seus objectivos pretextuais), mas ainda assim funcionam, porque o objectivo
principal é manter a “máquina em movimento”, é produzir um estado de inspiração que leve
as pessoas a continuarem no movimento (termo usado pelas personagens revolucionárias no
livro Os Demónios, de Dostoievski), é aumentar o momento (no sentido físico) do processo. O
movimento revolucionário apenas se concebe a si mesmo como um movimento que não pode
parar, por isso, também não tem um ponto chegada, nunca existirá um parâmetro de
normalidade a que se possa dizer que o universo se ajustou, tudo é anormal, a existência é
anormal. Então, também não tem sentido esperar qualquer coerência nas propostas
revolucionárias, por exemplo, os revolucionários tanto podem ser a favor de leis racistas
como de leis anti-racistas.

Dito de outra forma, é absurdo esperar que uma proposta revolucionária tenha os fins
declarados. O único objectivo real é sempre aumentar o momento da revolução. Então,
acontece uma coisa curiosa com a reacção liberal, conservadora ou direitista, que irá sempre
ajudar o processo revolucionário. Se estes aceitarem as propostas revolucionárias, por
distracção ou ingenuidade, obviamente que favorecem os propósitos revolucionários,
credibilizando as propostas e os seus proponentes, dando espaço de actuação, etc. Mas se
fazem oposição e mesmo se conseguirem bloquear as propostas, não deixam de favorecer o
movimento revolucionário, porque irão personificar tudo o que existe de mal no mundo e a
resistência ao bem. Ou seja, é sempre errado tomar posição sobre pontos específicos, porque
estes nunca são o problema: a revolução é uma coisa abrangente e total, e que apenas pode
ser combatida a partir do mesmo horizonte.

O que se deve fazer é rejeitar a presença de elementos revolucionários na vida política


e cultural, rejeitar a presença destes indivíduos na coisa pública, mesmo quando eles
pareçam ter propostas razoáveis. Para o revolucionário, o universo está errado, por isso, tudo
pode ser acusado de causar qualquer coisa. Aceitar discutir propostas revolucionárias é cair
no engodo, é credibilizar os propósitos revolucionários, porque qualquer proposta terá
sempre alguma validade dentro de um certo quadro de referências, mas as propostas em si
são irrelevantes para o revolucionário, que apenas quer aumentar o momento do movimento.
A revolução apenas funciona porque o estágio final não é atingível, algo que a liderança do
movimento revolucionário sempre soube. Os liberais e conservadores vão analisar as
propostas revolucionárias apenas do ponto de vista da racionalidade técnica, tentando
perceber benefícios e malefícios, e não conseguem ver as propostas desde o ponto de vista do
impacto histórico total que elas têm. Falta-lhes uma visão total do processo histórico, que
apenas a revolução e religião possuem, e ficam fechados nos seus feudos (política, economia,
etc.)

Só existem realmente duas propostas para o mundo: ou a proposta revolucionária ou


a proposta da extinção do movimento revolucionário. Como o movimento revolucionário não
208

tem fim, ou ele se extingue pela auto-destruição da humanidade ou, então, a mentalidade
revolucionária é destruída na base, retirando da vida pública todos os revolucionários,
quaisquer que sejam as suas propostas. O movimento revolucionário não é constituído de
uma ideologia ou de um projecto político. Tudo cabe dentro da revolução, por exemplo,
Lenine era anti-nacionalista e Estaline usou o nacionalismo como grande arma da revolução.
O ponto de coerência não é a ideologia ou a política, é a associação de pessoas irmanadas pela
própria ideia do movimento revolucionário.

O movimento revolucionário actua também pela manipulação das consciências. Nesse


sentido, é importante a criação de material de ficção (livros, filmes, séries de televisão) onde
as propostas revolucionárias apareçam como as mais indicadas. Por exemplos, as propostas
globalistas da ONU podem ser promovidas em filmes que mostrem a ineficácia dos poderes
locais na luta contra o terrorismo em comparação com o “polícia global”, quando na realidade
é exactamente o oposto. Outra estratégia passa pela corrupção de instituições democráticas e
depois denunciar essa corrupção sem indicar os verdadeiros autores, e ainda escondendo que
aquilo que são desvios pontuais no ocidente eram a norma no lado soviético. Isto aconteceu
com establishment psiquiátrico ocidental, tido como opressivo à conta da divulgação de
alguns casos pontuais, enquanto que na URSS as pessoas eram encarceradas como loucas
apenas por fazerem oposição. O movimento da antipsiquiatria foi criado por comunistas
para acusar o establishment psiquiátrico ocidental, e muitos conservadores embarcam nisto
por incapacidade de ver a situação no seu enquadramento histórico global.

A lógica revolucionária impôs-se no ocidente muito devido à perda generalizada do


senso de imortalidade. Padres e pastores já não sabem mais como repetir as palavras de
Cristo: “Vós sois deuses”. Isto revela a dificuldade que hoje temos em conceber a
imortalidade como uma coisa que nos foi dada desde já. Quando a consciência disto se perde,
perde-se também a medida correcta do tempo. A duração de uma alma humana supera a
duração da História terrestre inteira. Mas perdido o senso de imortalidade, a História
terrestre cresce desmesuradamente e passa a ser vista como a única dimensão da existência.
A própria ideia de “História universal” ou de “História terrestre” é uma figura de linguagem:
civilizações inteiras cresceram e despareceram sem ter contacto umas com as outras. Muitas
civilizações desapareceram sem que se tenha conseguido até hoje entender o seu alfabeto (ver
livro The Roots of Civilization, de Alexander Marshack).

Quando Hegel fala da História humana, ele está fazendo um fingimento de


imortalidade, como se tivesse o ponto de vista de Deus. Nós podemos apenas falar a partir da
nossa própria imortalidade e desde que tenhamos adquirido o senso dela. A História terrestre
não forma totalidade alguma, há processos que podemos acompanhar mas que começam e
terminam, e depois começa outra linha independente. A dimensão chamada “História da
humanidade” só existe na cabeça do historiador, trata-se de um ente de razão, não de um
ente real. Já a nossa imortalidade é um ente verdadeiro, somos substâncias dotadas de
imortalidade (não eternos, dado que não existimos desde sempre). Perdido o senso de
imortalidade, a dimensão da História terrestre parece muito convincente e passamos a
acreditar que ela vai atender às nossas esperanças e que é possível criar um paraíso terrestre
mediante a acção humana. No final, existirá uma última geração que desfrutará todos os
benefícios do paraíso terrestre, construído em cima da miséria de todas as gerações
anteriores. Assim, a culminação da revolução seria a materialização da suprema injustiça, por
isso, é necessário esconder este destino macabro e fazer da revolução uma promessa auto-
adiável.
209

Qualquer promessa auto-adiável deve ser rejeitada liminarmente, não porque seja má
– entrar nesta avaliação em público já é cair no engodo – mas porque os seus porta-vozes são
pessoas más. São pessoas que se arrogam a uma autoridade que não têm, que querem usar
toda a gente como instrumentos – coagindo, matando, torturando – para realizar algo que
elas sabem ser impossível de ser alcançado. Combater pontos específicos não resulta, porque
estes podem ter sempre ter alguns aspectos positivos, em teoria. O problema é sempre saber
quem vai ganhar poder com as propostas.

Então, o movimento revolucionário tem que ser rejeitado na totalidade. E isto não é
uma proposta positiva mas negativa. Apenas tentamos impedir que o mal se consuma, não
temos de propor uma alternativa. Qualquer proposta positiva, por mais conservadora e
liberal que seja, pode ser aproveitada pelos revolucionários, que “amanhã” podem encaixá-la
no seu movimento. Além disso, se as propostas de oposição à mentalidade revolucionária são
feitas dentro da escala de tempo do movimento revolucionário, elas estão a servi-lo. Apenas
se tivermos uma escala de tempo apropriada, surgida da consciência de imortalidade,
podemos denunciar a falsa. Temos que ter consciência que não somos um momentum do
sonho revolucionário, somos almas imortais com uma duração que supera tudo isso. O
movimento revolucionário deve ser desprezado porque é mesquinho e nada significa à luz da
eternidade.

Os revolucionários não apenas não se coíbem de cometer transgressões como ainda


as exibem, como se pode ver na actuação do MST. Eles fazem questão de operar fora da lei,
quando tantas vezes era mais fácil operar dentro. A razão é que agir assim em transgressão
lhes dá autoridade. Na Idade Média existia o ordálio, onde o facto de uma pessoa mostrar
disposição para morrer (lutando, oferendo o corpo a elementos em fogo, etc.) era
considerado uma prova de que tinha razão. Se alguém se recusasse a lutar em nome do
sistema legal, isso evidenciava que a sua causa de nada valia, dado que a pessoa nem se
atrevia a defendê-la mediante a transgressão. O equivalente moderno dessa tibieza é colocar
as normas de polidez acima das próprias causas, falha recorrente em liberais, conservadores
e religiosos, o que mostra o quanto estes desvalorizam aquilo que dizem defender. No
trabalho intelectual, o grande risco que corremos é este, o de invertermos a hierarquia de
valores, não é o de sermos atacados pelos revolucionários. A nossa missão não passa apenas
por não colocar as nossas ideias abaixo do limite da transgressão (em relação às normas da
sociedade, já que não vamos transgredir os principais mandamentos), como fazem os
revolucionários, mas ter um horizonte de visão infinitamente mais amplo do que o deles e
criarmos uma modalidade de expressão que despreze tudo o que não merece ser respeitado.

O revolucionário não tem problema em aceitar a morte de centenas de milhões de


pessoas para que a revolução não pare, porque isso prova que a ideia dele é superior à própria
existência física da humanidade. Isto dá-lhe um prestígio enorme, e apesar de ser a
autoridade do louco, do psicopata, daquele que não tem limite para mentir ou matar,
precisamente por isso impõe-se ainda mais, porque todos ficam apavorados e sem saber o
que fazer. Mas o que há a fazer é tratar o louco como louco, removê-lo da vida pública quando
ele se torna perigoso. α69

225. A natureza da filosofia


Se tentarmos perceber qual a natureza da filosofia olhando para os seus textos, vamos
chegar a uma série de dificuldades e ambiguidades. Contudo, a filosofia não é um discurso
210

mas uma actividade cognitiva e existencial desenvolvida por pessoas reais e que usam todos
os discursos possíveis para comunicar algo do que perceberam e descobriram. Ou seja, o
modo de exposição da filosofia não expressa a natureza desta. Platão usava os quatro
discursos: em geral, começava com um discurso dialéctico, por vezes fazia algumas
demonstrações lógica-matemáticas, em certos momentos apelava às crenças comuns e
frequentemente terminava com um mito. As proposições filosóficas não são a filosofia, esta é
a actividade cognitiva, existencial, moral e pedagógica desenvolvida pelos filósofos. Por isso,
o termo final de uma filosofia não é uma doutrina escrita mas a criação da pessoa do filósofo,
que é capaz de absorver o legado e prossegui-lo. Neste sentido, a filosofia é eminentemente
uma pedagogia, um guiamento de almas, do qual o produto escrito é apenas um fragmento.
Se não existe uma multidão de percepções inexpressáveis, que acompanham o aprendizado
da filosofia, não existe filosofia alguma.

Mas no mundo moderno criou-se uma idolatria do texto e da linguagem, ao ponto de


se colocar existência do mundo como um pressuposto da linguagem. Na realidade, a
linguagem apenas vai abranger aspectos mínimos do real e apenas podemos usá-la porque
compartilhamos com outras pessoas a percepção de inúmeros elementos não-verbais. O
nosso dever é restaurar a ideia dos filósofos gregos da filosofia como actividade humana, que
visa qualificar pessoas para o conhecimento e para existir conforme aquilo que se sabe.
“Verdade conhecida é verdade obedecida”, é a máxima platónica que nos insta a nos
modificarmos na medida daquilo que sabemos e, assim, a nos instalarmos numa realidade
cada vez mais abrangente. α69

[Aula 70]
226. A filosofia pós-moderna (Dardo Scavino)
Tínhamos ficado na leitura do livro de Dardo Scavino (La Filosofia Actual) na parte
em que ele comentava a convicção de Wittgenstein de os jogos de linguagem serem
autónomos, o que parece insustentável [222]. Se o “jogo” usado para descrever a realidade
dos factos não tiver prioridade em relação aos restantes, não podemos dizer se a própria
descrição dos jogos de linguagem é real ou não.

Scavino fala que foi a partir do princípio da autonomia dos jogos de linguagem que
François Lyotard criou o conceito da pós-modernidade. Na Dialéctica do Iluminismo, Marx
Horkheimer e Theodor Adorno afirmaram que a modernidade tinha valorizado o saber
denotativo, científico, racional e, ao mesmo tempo, excluiu os saberes míticos ou narrativos a
partir dos quais se organizaram as culturas tradicionais. Mas Lyotard diz que modernidade
inventou, como forma de legitimação, uns relatos míticos que são as filosofias da História.

Este é precisamente o método concebido por Hegel e que é usado no próprio livro de
Scavino e que ignora outras linhas filosóficas que não se encaixam no mito. Mas Lyotard
também se baseia numa mitologia, porque parte da ilusão de que tudo o que vem depois
absorve ou invalida o que veio antes, ou seja, que toda a filosofia não deixou possibilidades
que não se realizassem na seguinte. Assim, ele diz que há apenas a alternativa entre a
modernidade (concepção do conhecimento objectivo moldada na ideia da ciência iluminista)
211

e a pós-modernidade (proclamação de uma pluralidade de narrativas sem que alguma valha


mais do que as outras).

Mas basta olhar para Duns Scott, o Doutor Subtil, que deixou uma filosofia com
milhares de sementes ainda não germinadas (“as auroras que ainda não se levantaram”,
como falava Nietzsche). É óbvio que cada filósofo não leu e absorveu todos os antecessores,
apenas focou uns quantos – e nos pontos que lhe interessaram – e os outros desprezou ou
deu menos atenção (e há os casos de incompreensão, desconhecimento, etc.) Na realidade,
não existe essa evolução e a pós-modernidade não responde à modernidade e nem esta às
filosofias anteriores. De facto, a pretensão iluminista foi derrubada mas com isso não se
demoliu as outras modalidades de conhecimento objectivo. Isto só parece assim para quem
acredita na narrativa histórica mítica que encaixa a filosofia medieval na renascentista, esta
na iluminista e assim por diante. Uma narrativa histórica não tem que ser necessariamente
mítica, mas para ser objectiva não pode reduzir tudo a uma única linha evolutiva. A crítica
pós-moderna à filosofia moderna e ao Iluminismo baseia-se no mito historiogenético, que diz
que todo o pensamento anterior culmina no tempo e na pessoa do filósofo actual, ou em
quem faz a narrativa, que até lhe pode parecer assim se selecionar os filósofos que se
encaixam na sua visão histórica.

Scavino ressalta que aquilo que se procura transmitir com os relatos míticos
(filosofias da História) é um conjunto de regras pragmáticas que constituem o laço social, ou
seja, a boa maneira de o candidato a intelectual se comportar socialmente. Mas podemos
observar que a pós-modernidade também tem o seu jogo de linguagem, que subentende as
regras de bom comportamento para ser aceite. Apesar de se proclamar que todos os jogos de
linguagem se equivalem, na prática há a presunção de que o jogo mais recente (neste caso, o
da pós-modernidade) já se sobrepôs aos anteriores. Já tínhamos visto que a pretensão de
equivalência entre os jogos de linguagem não era séria [218], ou não seria possível fazer uma
teoria a respeito que tivesse alguma validade. Mas a autonomia dos jogos de linguagem
também não é merecedora de crédito, porque sempre existe alguma referência ao mundo
exterior, há sempre alguma presunção de conhecimento objectivo. Em Maquiavel já é
evidente a paralaxe cognitiva, mas não se nota um deslocamento imediato que nos coloca
directamente em face ao paradoxo do mentiroso.

Diz Scavino que o paradoxo é o feliz herói dos mitos da modernidade, em que se
acredita possuir o conhecimento objectivo, científico, racional. O herói é o homem novo,
racional, livre de preconceitos, o homem eficiente, em suma, o homem moderno. Ressalta
Vincent Descombes (comentando A Condição Pós-Moderna) que “o homem moderno
acreditava profundamente em um sentido da História: podia assim tomar partido, defender
causas, comprometer-se em uma organização política”, já o homem pós-moderno “é o mesmo
homem moderno no qual o espírito crítico superou os últimos restos de credulidade, ele já
não crê nos grandes relatos do liberalismo e do marxismo”. Os grandes relatos são, no fundo,
as grandes filosofias da História. O liberalismo acredita no progresso da humanidade, como
acontece com a pretensão de Benedetto Croce da liberdade crescente ao longo da História; o
marxismo postula uma sucessão histórica racionalmente compreensível, que dará origem à
sociedade sem classes. O homem moderno ainda acreditava nestas fantasias mas o homem
pós-moderno é ainda mais racional, objectivo e implacável, e já não crê em nada disto. Ele
acredita que derrubou os grandes mitos do Iluminismo (o liberalismo e o marxismo),
supondo que derrubou ao mesmo tempo todas as possibilidades de conhecimento. Fica
apenas com o discurso e com os jogos de linguagem, e acha que assim superou a filosofia
212

anterior, ou seja, no fundo acredita na mitologia do desenvolvimento histórico que diz ter
superado.

Scavino diz também que há uma segunda consequência da pragmática


wittgensteiniana, que é a do sujeito já não ter uma identidade anterior ao papel
desempenhado num determinado jogo de linguagem. Isso é obviamente impossível porque se
não tivéssemos alguma identidade como sujeito – o senso da continuidade temporal do eu –
não conseguiríamos aprender uma única palava. A retenção é precisamente uma das grandes
dificuldades do aprendizado. Sabemos isto por simples observação, mas para quem vive
embrenhado na ideia dos jogos de linguagem, a dada altura já embotou de tal forma a
percepção que não sai mais daquele circulo fechado. Jean Piaget, imbuído desta atmosfera,
criou o sócio-construtivismo, que é a maior causa do analfabetismo mundial. Ele parte do
princípio de que todo o conhecimento é construído e que a própria identidade do aluno
também é construída, o que o tornaria inapto para a aprendizagem. Já os iluministas não
acreditavam de forma alguma numa continuidade ontológica absoluta por trás da actividade
cerebral cognitiva. Eles acreditavam apenas em actividades fisiológicas, em estados mentais,
como David Hume, que não via por trás destes estados nenhum eu, o que é óbvio porque o eu
não é uma coisa mas algo eminentemente executivo (Ortega y Gasset). Então, os iluministas
já tinham um problema em mãos sem perceber, porque acreditavam num conhecimento
objectivo, racional, científico mas sem a existência de um sujeito por trás. Foi Giordano
Bruno quem profetizou que os materialistas iriam acabar por duvidar da sua própria
existência. Foi ao que chegamos com esta segunda consequência da pragmática
witgensteiniana: um sujeito sem identidade anterior ao papel que protagoniza numa
determinado jogo de linguagem. Depois do referente ter desaparecido da linguagem, era
agora a vez do sujeito desaparecer também.

As condições de Frege para provar algo ou para obter algum conhecimento científico
eram a existência empírica de um referente e que este permanece idêntico a si mesmo. Mas
diz Scavino que agora estas condições já não são “metafísicas”, são “comunicativas” ou
“lúdicas” (terminologia de Habermas), ou seja, são regras às quais responde o “jogo de
linguagem” chamado “ciência”. Então, a arbitragem entre juízos contraditórios já não é feita
por uma substância que existe mas apenas pela fidelidade maior ou menor de cada juízo a
uma regra do jogo de linguagem chamado ciência. Daí que estes já não falem mais de
“condições de verdade”, como acontecia com Frege, que dizia que um juízo é verdadeiro
quando atende às condições de veracidade. Referem-se agora às “condições de
aceitabilidade”, isto é, um enunciado não é científico porque diz algo verdadeiro acerca de um
estado de coisas mas porque respeita certas regras de jogo, incluindo o facto de pretender
dizer algo a respeito deste estado de coisas. Novamente, podemos questionar se esta
descrição é somente mais um jogo de linguagem, perdendo assim toda a objectividade.

Então, diz Scavino, a “verdade” dos enunciados só será aceite como válida até ser
refutada, justamente porque uma das regras do jogo científico é que todas as provas sejam
refutáveis. Mas de que vale uma refutação se não existem verdadeiras condições de provar
algo? Podemos apenas usar artifícios lógicos para simularmos uma prova ou uma refutação,
mas no fundo admitimos que tudo aquilo não significa nada. Tudo isto reduz a ciência a um
jogo mas, paradoxalmente, a ciência ao mesmo tempo que se desmoraliza atinge uma
presunção de autoridade social que nunca teve, quase que obrigando o Estado em tornar lei
tudo o que seja aceite pelo consenso científico, mesmo que no fundo seja apenas um capricho
de um grupo de pressão.
213

O princípio lógico é substituído por um princípio retórico, prossegue Scavino,


tratando-se apenas de convencer as pessoas da validade do enunciado, aceitação que é
dependente do destinador ter respeitado as regras do jogo. Isto é o que já vimos sobre o
Richard Rorty, que chega à conclusão de que não podemos provar nada mas podemos induzir
as pessoas a pensar como nós. Mas Rorty parece não se questionar se quer que as pessoas
aceitem apenas momentaneamente aquela regra de jogo ou se quer que as pessoas a aceitem
realmente e passem a conduzir as suas vidas em conformidade. Na realidade, se tudo o que
ele tiver forem estas regras, ele não tem um critério para saber se realmente é obedecido.

Scavino fala depois do princípio da razão suficiente, de Leibniz, que este enunciava
de duas formas. Na primeira, ele dizia que “nada ocorre sem razão”, o que significa que,
desde uma perspectiva científica, todas as coisas tem uma razão de ser. Na segunda, ele
enunciava o princípio como “podemos dar razão de toda a verdade”, o que significa que um
discurso só é científico se prover as razões acerca das coisas afirmadas. Mas Leibniz derivava
o segundo sentido do primeiro, porque tendo as coisas razão de ser, não provamos nada
sobre elas se não dermos a razão suficiente para elas serem de determinada forma. Mas os
filósofos modernos separaram estas duas acepções, adoptando apenas a segunda. Assim, as
coisas deixam de ter razão de ser, nós é que damos alguma razão e, para isso, temos de
justificar retoricamente o que dizemos. A relação privilegiada já não é a do pensador com o
facto preexistente mas a que ocorre com o interlocutor, ao qual tem que se dar razões
aceitáveis para convencê-lo. Isto significa a passagem da prova lógica-científica à prova
retórica. A descoberta científica passa a ser uma jogada não prevista nas regras do jogo
anterior mas que também não entra em conflito com elas.

Prossegue Scavino dizendo que se coloca aqui novamente o problema da verdade. Os


hermeneutas diziam que a verdade é possível graças à abertura originária ao “mundo da
vida”, entendido por Habermas como o “entendimento pré-estabelecido numa camada
profunda de evidências, de certezas, de realidades que jamais são questionadas”. Notemos
que para Husserl o Lebenswelt – o mundo da vida – era concebido como o mundo onde
vivemos, e o mundo natural, social ou outros são distinções posteriores. Estamos abertos à
realidade tal como ela se apresenta a nós na sua totalidade e é dentro dela que estabelecemos
distinções. Mas a partir de Heidegger o Lebenswelt passou a ser entendido como o mundo
cultural, ou seja, um conjunto de referências e significações, constituído de linguagem
aprendida. Mas se não tivéssemos uma existência substantiva anterior nunca poderíamos
aprender essa linguagem. Parece que estas pessoas nunca aprenderam a andar, a mastigar, a
falar, que nunca se deram conta das direcções do espaço, etc.

A partir daqui, continua Scavino, Paul Waltzlawick (um dos teóricos da escola de Palo
Alto, na Califórnia), propõe-se a demonstrar que a nossa imagem da realidade depende em
larga medida da confirmação do testemunho do outro, especialmente se lhe reconhecemos
autoridade. Realmente, a autoridade e a confiabilidade são elementos básicos do
aprendizado, mas estes têm que existir realmente, têm que se manifestar fisicamente de
alguma forma e isto não é cultural. A cultura só pode operar em cima de um conjunto de
experiências directas não mediadas culturalmente. A experiência que temos da nossa
presença directa num universo físico fica em nós como um modelo do conhecimento
objectivo. Por exemplo, quando dizemos que a nossa confiança é firme, nem nos damos conta
de que estamos a usar uma figura de linguagem, dado que a firmeza é um atributo das coisas
físicas. Quando dizemos que uma autoridade é confiável estamos a nos referir a esta firmeza,
que em última análise remonta à experiência física da imobilidade do chão. Para
214

distinguirmos o que é herança cultural do que é a presença objectiva do mundo físico, temos
que nos reportar às experiências da estrutura do mundo físico, que já estão em nós, embora
possam estar algo submergidas pelo falatório geral.

Waltzlawick conclui que a realidade depende em grande medida do consenso. Mas


podemos acrescentar que só é possível formar este consenso se existir a unidade substancial
do eu, com a sua continuidade no tempo, e o compartilhamento das experiências da estrutura
do mundo físico, no sentido husserliano da abertura originária ao mundo da vida.

Questiona Scavino se as verdades irão assim se confundir com uma espécie de


conformidade com os “sentimentos estabelecidos”. Reparemos que a confiança que podemos
ter numa pessoa nunca tem o mesmo grau de firmeza que o chão por onde andamos. Se as
duas coisas fossem confundíveis, então, os sentidos metafóricos de firmeza, continuidade ou
substancialidade poderiam predominar sobre os sentidos originários adquiridos nas
primeiras aberturas para o mundo da vida. Podemos raciocinar como se isto fosse assim mas
não podemos agir em conformidade. No livro Anamnesis, Eric Voegelin destaca as
experiências infantis por criarem uma estrutura que possibilita a absorção do legado cultural.
Voegelin sabia perfeitamente que a abertura originária para o mundo da vida não podia ser
constituída apenas pela absorção de crenças, hábitos ou da linguagem. As experiências
infantis podem parecer banais mais tarde, mas quando ocorreram tiveram uma importância
extraordinária. Nada poderíamos fazer sem estas aberturas para a realidade, mas depois de
realizadas podemos esquecê-las (esquecimento é ignorância) e até nos convencermos que
estamos encerrados no mundo da linguagem e da cultura. Podemos lembrar o conselho de
Cristo, de que o Reino dos Céus nos estaria negado se não nos tornássemos pequeninos, ou
seja, se nem estas primeiras experiências conseguimos rememorar, é vã a pretensão de uma
verdadeira vida espiritual.

Note-se que estas experiências iniciais não são ainda o conhecimento por presença,
antes subentendem uma presença. Para restaurar o conhecimento por presença só temos que
nos lembrar daquilo que temos de saber sempre para, num dado momento, sabermos alguma
coisa. Num primeiro momento vão se evidenciar elementos adquiridos culturalmente, mas
depois há coisas que sabemos que não são abrangidas pela cultura e que estão mesmo por
baixo das experiências infantis. Estas já pressupunham uma espécie de sentimento do
maravilhoso, do imenso, uma percepção de algo que já se encontra nas coisas e que se revela
quando nos abrimos a elas. α70

227. Sobre o poder


Ibn Khaldun foi talvez o único historiador com um olhar que abrangia todos os
factores presentes nas situações (económicos, políticos, religiosos, espirituais, mágicos, etc.)
A partir dos seus ensinamentos, podemos entender que o poder profético é o mais efectivo
que há. Profeta vem de profero que significa “fazer acontecer”. Aquilo que o profeta diz, vai
acontecer porque ele é um elo fundamental da cadeia. Os judeus obedecem Moisés até hoje,
mas Hitler (um dos símbolos comuns da posse de um grande poder) governou apenas por
doze anos e tudo o que ele fez foi anulado. As pessoas que seguem um ponto de vista
meramente pragmático não compreendem isto e não entendem que é a noção de poder
profético que permite compreender as manifestações mais limitadas do poder.
215

Daqui percebemos que a característica mais proeminente do ser humano


historicamente considerado é a diferença do poder (quase toda a ciência política ocidental
não leva isto em conta). Nenhuma espécie animal tem algo como um poder profético, que
pode se estender por milénios, nem existe nela, num dado momento, um indivíduo com um
poder quase total sobre os restantes, como acontece no mundo humano, onde alguns
indivíduos podem aparecer quase como deuses em relação aos restantes, decidindo a vida ou
morte de populações, ditando hábitos e consciências, vasculhando toda a privacidade. Os
teóricos da democracia falam da igualdade sem ter em conta que a diferença de poder é um
elemento constitutivo da espécie humana e que qualquer tentativa de neutraliza-la só vai
aumentá-la. Os governantes democráticos estão mais distanciados do que nunca dos
governados e podem vasculhar a vida destes sem serem percebidos (escutas telefónicas,
monitorização de comunicações electrónicas, escutas presenciais à distância, etc.), algo
nunca sonhado por um dos tiranos da antiguidade.

Temos aqui aquilo que Bertrand du Jouvenel salientou (Du Pouvoir), que o poder tem
sempre crescido ao longo da História, embora em termos legais pareça que seja a liberdade a
se ter ampliado. Mas não apenas o poder tem crescido ao longo da História como, logo à
partida, a diferença de poder dentro da espécie humana – um elemento constitutivo desta –
não tem paralelo no mundo animal. Em todas as sociedades há uma autoridade que tem o
poder e a autorização para matar outros, mesmo se não existir pena de morte. Apesar de
existirem muitas espécies em que os seus membros se matem entre si, isso ocorre numa
percentagem muito baixa em relação ao total das espécies animais existentes. E a morte
acontece nestes casos muito raramente, e nunca há, dentro da espécie, assassinatos em
massa. Mesmo entre os animais mais agressivos, quase tudo é uma demonstração de
autoridade, a hostilidade é simbolizada e as consequências letais são quase sempre evitadas.
Há todo um conjunto de sinais que mostram o respeito pela hierarquia existente. Não tem
sentido dizer que o “homem é o lobo do homem”, nenhum lobo fez de perto a outros lobos
aquilo que certos tiranos fizeram às suas populações. No entanto, não é o homem como
indivíduo que tem todo este poder, ele tem que ter sempre o apoio estatal, tem que ser
sempre alguma forma de governo. Neste sentido, a diferença entre o poder, letalidade e
crueldade das ditaduras para as democracias é quantitativa mas não profunda o suficiente
para levar a uma diferença de essência. α70

[Aula 71]

228. O sentido da admiração


Dizia Nicolás Gómez Dávila: “A recusa de admirar é a marca da besta”. Hoje em dia há
a ideia de que, para admirarmos alguém, temos sempre de acrescentar uma restrição, um
reparo, uma crítica, caso contrário podemos ser acusados de idolatria. Admiração vem de
admirare, que significa “olhar para”. Então, olhamos para algo que merece ser visto e que, de
alguma forma, nos faz bem. Mas a admiração é também um acto de amor. Somos imperfeitos
e quando alguém transcende as possibilidades mais banais da espécie, vemos nessa pessoa o
sinal de algo mais elevado. Claro que é um sinal cercado de imperfeições, que fazem parte do
legado que ela nos oferece, análogo ao legado que recebemos dos nossos pais.
216

A admiração só se pode compreender à luz do mandamento de honrar pai e mãe. Não


honramos os nossos pais criticando os seus defeitos mas arcando com eles como deveres que
nos foram legados. Um defeito é algo que não foi feito, não foi completado, então, há tarefas
que os pais não fizeram e que passaram para nós, porque no mínimo eles nos geraram e
temos essa dívida para com eles. Temos o dever de completar e limpar a imagem deles,
inclusivamente pagando dívidas de dinheiro, porque não estamos olhando apenas desde um
ponto de vista religioso, é a própria perspectiva histórica que temos de ter em conta. Quando
criticamos pai e mãe estamos apenas a cuspir na própria cara.

A admiração das grandes obras do passado deve seguir o mesmo rumo. Não vamos
apenas tirar proveito delas, também temos que limpar as pequenas imperfeições que elas
contém. Muita gente tenta acusar Shakespeare de racismo, tomando exemplos como o retrato
que ele faz do mouro Iago como brutal e lúbrico. Na verdade, o malvado da história é branco
e nada indica que Shakespeare retrate Iago como o estereótipo do mouro, apenas retrata
aquela personagem. Mas mesmo se fosse um estereótipo, a nossa admiração por Shakespeare
não devia lançar-nos logo em grosseiras acusações de racismo, antes devíamos tentar
compreender as suas razões, neste caso, havia invasão islâmica na Europa, com escravização
e castrações (1400 anos de escravidão islâmica contra 300 anos de escravidão europeia,
quando esta nunca foi totalmente aceite pelo lado dominador), pelo que não podemos exigir
que os mouros tivessem uma imagem boa. E o mouro nessa época nem sequer se enquadrava
numa raça, no sentido moderno, que é uma noção que apareceu quase duzentos anos depois
de Shakespeare. Mouro era quem tinha pele escura em comparação com o europeu, podia ser
africano ou árabe, era uma noção estética e não biológica. Além de que o “mouro lúbrico” não
era apenas estereótipo, porque ele podia ter por lei quatro mulheres e tantas escravas quanto
pudesse.

Então, acusar Shakespeare de racismo este é um exemplo é de admiração sem amor, é


a admiração invejosa, que tem a necessidade de rebaixar o admirado de alguma forma.
Nicolás Gómez Dávila tem razão em dizer que a incapacidade de admirar é a marca da besta,
há um impulso diabólico que leva a colocar na admiração um elemento de ambiguidade
corrosiva. Em vez de tentar encarar os aspectos negativos (que sempre existem) de uma
forma mais tolerante e generosa, há a tentativa de diminuir, de chegar à conclusão de que o
indivíduo, no fim das contas, estava limitado pela cultura do seu tempo, cheio de estereótipos
e quem diz isso pode sentir-se iluminado e livre de preconceitos. α71

229. O pensamento filistino (Zinoviev) de Wittgenstein


No livro The Reality of Communism, Aleksandr Zinoviev fala da ascensão do
abstracto ao concreto. É um processo que foi usado por Karl Marx, que partia da definição de
uma essência, isolando certos elementos, tirava algumas deduções e ia completando com
variantes concretas até chegar ao nível máximo de concreção possível. Podemos sempre
seguir estes passos quando lidamos com abstracções:

a) Obtenção de uma essência, na forma de uma definição geral que se aplique a todos os
casos envolvidos;

b) Estudo das condições de existência, ou seja, saber o que é necessário para um ente assim
definido possa existir;
217

c) Definição do método que vamos usar para averiguar se as condições de existência se


realizam efectivamente, historicamente, em tais e quais circunstâncias;

d) Saber se as condições existiram, como e quando existiram.

Zinoviev ressalta que na discussão de temas sociais pode surgir confusão e


desentendimentos porque as diferentes categorias de afirmação lógica não são
suficientemente diferenciadas. Essas categorias são, por exemplo, afirmações sobre factos,
sobre leis científicas, sobre leis do assunto em discussão ou sobre outros tipos de asserção.
Ele dá o exemplo da afirmação: “No país x as forças da repressão com relação aos dissidentes
estão crescendo”. Esta afirmação pode ser verdadeira ao mesmo tempo que a asserção: “No
país x as autoridades estão tentando evitar o crescimento da repressão”. Elas apenas parecem
contraditórias entre si se não atendermos ao “pedigree lógico” de cada uma. Na realidade,
uma contraditória da primeira seria: “No país x a repressão dos dissidentes não está sendo
intensificada”. E uma contraditória da segunda: “As autoridades estão tentando intensificar a
repressão”. Pode acontecer que as tentativas de atenuar a repressão sejam muito fracas em
comparação com os hábitos de repressão já consolidados, ou que essas tentativas sejam
apenas um esforço de trocar os meios de controlo social existentes por outros (por exemplo,
substituir a cadeia pelo controlo de informação).

Zinoviev tenta demonstrar o abismo que pode existir entre uma afirmação científica e
um juízo de facto. Todas as afirmações científicas são sentenças condicionais, ou seja, têm
validade geral se verificarem-se certas condições. Podemos enunciar a mentalidade
revolucionária em forma de lei universal: “Onde quer que haja um movimento político,
social ou cultural baseado na crença de que a História se dirige a uma determinada
finalidade, a História será contada às avessas, tomando-se o futuro hipotético como premissa
dos factos já confirmados”. Trata-se de uma lei científica, montada de forma condicional, e
não de uma afirmação de facto. Isso quer dizer que a mentalidade revolucionária dificilmente
aparecerá em estado puro, cada indivíduo será afectado apenas num certo grau e continuará
a ser capaz de raciocinar, a ter bom senso, etc. A criação de uma generalidade a partir de um
facto é aquilo que Zinoviev chamava de pensamento filistino. Um único facto, que pode ter
sido escolhido arbitrariamente, ganha assim validade científica universal.

Os livros de Wittgenstein estão cheios de afirmações deste género, evidenciando não


apenas paralaxe cognitiva mas uma deslocamento psicótico em relação à realidade, tomando
uma experiência limitada e até provinciana, sob certos aspectos, como parâmetro para
enunciar leis gerais a respeito do conhecimento humano e mesmo sobre a estrutura da
realidade. Por exemplo, ele diz:

«Proposição 5.632 – O sujeito não pertence ao mundo, mas é o limite do mundo».

Páginas antes, Wittgenstein tinha afirmado que estava dentro do mundo e era uma
parte da realidade. O que ele faz é deslocar as premissas e as consequências o tempo todo, e
aquilo que antes era premissa passa a ser consequência de outra coisa que disse adiante (são
as famosas leituras circulares). Podemos ler assim, e depois de termos feito o exame das
possibilidades da linguagem humana, a conclusão é que todas se neutralizam, e aí podemos
achar bela a proposta de Wittgenstein de que apenas nos resta uma espécie de silêncio
contemplativo.

Podemos perceber o carácter dessa contemplação quando ele diz:


218

«Na morte o mundo não muda, mas ele cessa».

Isto decorre de ele ter dito que o sujeito é o limite do mundo e, quando ele morre, o
mundo cessa. Mais especificamente:

«A morte não é uma experiência vivida. Não se vive através da morte».

Quando Wittgenstein escreveu isto já existiam muitos relatos de experiências de


morte clínica (o próprio livro de Monsenhor de Ségur, O Inferno, tinha sido publicado em
1870), mas ele preferiu generalizar a sua experiência pessoal limitada. Mas ele vai ainda mais
longe:

«Como o mundo é completamente indiferente àquilo que é mais alto do que o


mundo, Deus não se revela no mundo».

Basicamente, Wittgenstein diz que a imanência é independente da transcendência,


assim, o seu esforço é o mesmo de Kant, o de tentar que tudo o que pertença à esfera da
transcendência não possa ser objecto de conhecimento mas apenas de fé ou então é algo que
aparece na experiência mística, que deve permanecer desconhecida para os outros (ele diz
que “daquilo que não se pode falar, deve se calar”). Muitos idiotas têm a mesma experiência
que Wittgenstein (por exemplo, qualquer um pode ficar com a impressão de que “tudo vai
terminar quando eu morrer”), mas este tinha o talento lógico-matemático para transformar
aquilo numa construção elegante. Porém, a elegância da construção não tem nada a ver com
o valor da intuição originária. Henri Bérgson explica isso, mostrando que quase toda a
filosofia baseia-se em uma ou duas intuições e depois o sujeito passa o resto da vida tentando
construir aquilo de forma lógica. Diz Wittgenstein:

«Se houver uma vida eterna, essa vida eterna não será tão enigmática quanto a
nossa vida presente? A solução do enigma da vida no espaço e no tempo reside fora
do espaço e do tempo».

Ora, como podem os enigmas contidos no espaço e no tempo terem uma solução
colocada fora do espaço e do tempo. Estaria certo se ele dissesse acima (que abrange e
transcende) e não fora, caso contrário temos um paradoxo de uma solução que não abrange
em si a formulação do problema. Mas se aceitamos isto, não temos como não aceitar quando
ele diz que Deus não se revela no mundo. Se assim fosse, o mundo era uma entidade auto-
constituída e independente de Deus, que está “para lá”. Isto não passa do gnosticismo mais
vulgar.

A filosofia de Wittgenstein é feita para a pessoa entrar nela, encontrar um “mar de


dúvidas e enigmas”, e nunca mais sair dali e nem retornar à experiência. É um labirinto onde
não existe nenhuma frase auto-elucidativa, qualquer uma depende de outra, que vai
depender de outra. No fim da sua construção elegante, ele joga tudo fora e diz que resta
apenas a contemplação muda do indizível. A última frase do Tractatus:

«Cessou aqui a linguagem. A linguagem só fala dos factos do mundo, e agora


entramos no silêncio contemplativo, que nos abre para a infinitude indizível».

Mas quem disse que existe um limite fixável entre o expressável e o inexpressável. É
um limite que tem sido continuamente ultrapassado, essa é a história da literatura desde
Homero, onde os personagens não têm ambiguidades internas e não se transformam ao
219

longo do tempo porque nem existiam recursos linguísticos para exprimir isso. E depois, ao
longo do tempo, o domínio do expressável sempre aumentou, pelo que não temos de aceitar a
imposição de Wittgenstein de que aquilo de que não se pode falar deve se calar, deve é se
tentar melhorar a linguagem para tentar falar.

Wittgenstein diz que “o mundo é o conjunto dos factos, e não das coisas”. Se estamos
numa sala, vemos inúmeros objectos que não estão fazendo nada, não são factos. Então, o
mundo é na realidade uma colecção de objectos, e dentro dela ocorrem alguns factos. Na
realidade, o mundo não se apresenta a nós como uma colecção de coisas mas como a unidade
do nosso campo ilimitado de experiência. A noção de um horizonte que se expande é inerente
à percepção do mundo. Wittgenstein teve a experiência inversa, de que só existem os factos,
mas ao invés de ter parado para perceber se aquilo tinha sido apenas uma impressão poética,
tratou logo de lhe dar uma formulação com suposta validade universal. Então, o Tractatus
Logico Philosophicus é uma obra poética posta em forma lógica. As impressões que
Wittgenstein teve não têm de ser mais válidas do que tantas outras que vão no sentido
contrário. Quando uma obra literária se apresenta como tal, ela convida-nos a entrar nela e
nas suas impressões já com o pressuposto que depois vamos sair e experienciar outras coisas,
até porque o autor pode mais tarde escrever outra coisa com um carácter totalmente
diferente, porque ele não tem que permanecer fiel às suas obras, dado que estas, uma vez
concluídas, valem por si. Mas Wittgenstein criou uma obra para entrarmos nela e não
sairmos mais. Ela apresenta uma série de experiências que se contradizem e não procura
harmonizá-las, como devia fazer se fosse um filósofo, porque a filosofia é precisamente a
busca de unidade, é uma busca pessoal que compromete o indivíduo inteiro em todos os
momentos da sua vida. Sócrates aceitou alegremente a sua morte, o que mostrou que a sua
“doutrina” sobre imortalidade não era apenas uma hipóteses que ele tinha pensado mas algo
no qual ele confiava mesmo. α71

230. Os requisitos da busca filosófica


Hegel dizia: “A confiança no poder do espírito é a primeira condição da investigação
filosófica”. Se não acreditarmos que podemos conhecer algo, nunca iremos nos aventurar no
caminho do conhecimento, é como apostar no fracasso. Essa confiança pode até advir de uma
série de factores adversos, como aconteceu com Olavo de Carvalho, que aos vinte e poucos
anos estava num meio intelectualmente deprimente, mas ainda assim decidiu prosseguir na
busca de conhecimento e de compreensão da realidade, mesmo se aquilo de nada servisse
socialmente ou se não se pudesse transformar o obtido num trabalho.

Outro requisito foi expresso por São Tomás de Aquino quando disse: “A verdade é
filha do tempo”. As perguntas podem surgir cedo mas as respostas só aparecerão várias
décadas mais tarde. Não vamos avançar no caminho da filosofia se não conseguirmos
suportar uma quantidade imensa de perguntas sem resposta. O conhecimento vem de Deus e
é Ele quem dirige o processo.

Temos de nos lembrar sempre da finalidade dos nossos estudos. Quem quiser ser um
intelectual académico aceitável, vai ter de operar como os outros, fazer análise de texto,
assumir uma linguagem empostada para ser aceite, etc. Mas o objectivo da filosofia não é
criar textos filosóficos, é criar filósofos, que são aqueles que conseguem vivenciar a unidade
do conhecimento na unidade da consciência e vice-versa. É uma unidade tensional devido à
220

entrada permanente de elementos novos, antagónicos, pelo que é preciso articulação e


reconhecer as contradições e as tensões insolúveis. α71

[Aula 72]
231. O predomínio das regras comunais (Zinoviev)
No livro The Reality of Communism, Aleksandr Zinoviev começa por explicar que as
sociedades existentes têm que reunir uma série de condições em simultâneo: criação de um
espaço na Natureza; criação de um espaço terrestre e organizar a exploração dos seus
recursos; convivência com outras sociedades. Ele chama de comuna ao grupo de pessoas com
quem, dentro de uma sociedade, temos contacto mais ou menos directo. As comunas têm
como objecto imediato de convivência as outras comunas, não a sociedade como um todo,
menos ainda as outras sociedades e nem sequer o ambiente físico. E dentro das comunas –
qualquer que seja a sociedade – há uma série de regras práticas que visam não apenas a
defesa do indivíduo contra outros elementos da comuna mas também a defesa daquela
comuna face às outras. Tratam-se de regras mais ou menos universais mas que nada têm a
ver com as leis gerais da sociedade e nem com os princípios que mantém as comunidades
coesas, podendo mesmo entrar em contradição com estes. O objectivo destas regras é sempre
obter a melhor posição possível, seja para o indivíduo em relação aos outros dentro da
comuna ou para a comuna face às outras. Seguem-se algumas dessas regras:

a) Arriscar o mínimo para ganhar o máximo – mesmo as pessoas de alta moralidade seguem
esta regra;

b) Minimizar a responsabilidade pessoal e maximizar as possibilidades de distinção do


estatuto social – não se trata de algo maquiavélico mas de uma reacção natural de
autodefesa;

c) Minimizar a dependência em relação aos outros e maximizar a dependência dos outros em


relação a nós.

E Zinoviev prossegue com outras regras deste género, que começam por ser uma
questão de sobrevivência e mesmo as pessoas de conduta moral elevada são obrigadas a
seguir de alguma forma. Zinoviev diz que uma civilização constrói-se se a sociedade
conseguir criar princípios e regras – através da moral, da religião, da legislação, etc. – que
controlem e mantenham as regras comunais dentro de limites toleráveis. Mas se os
princípios gerais estruturantes da sociedade começam a dissolver-se ou se perdem
representantes que os façam valer, as regras comunais transformam-se nos princípios gerais
da sociedade. Então, numa empresa, entendida como uma comuna, os chefes e gerentes não
são as pessoas mais bondosas mas aqueles que lutam com mais tenacidade. Já nas
instituições da sociedade maior, se estivessem a funcionar saudavelmente, devia ser o oposto.
Mas se estas instituições estão fracamente desenvolvidas ou se estão em estado de dissolução,
então, as forças comunais vão ganhar força e determinar o carácter destas instituições que
deviam proteger as pessoas das regras comunais. Assim:
221

«(…) florescerão a hipocrisia, a violência, a corrupção, a má administração, a


irresponsabilidade, a chantagem, a desonestidade, a vagabundagem, a
desinformação, o engodo, e um sistema de cabides de empregos para a
priviliguentsia”. A esse respeito aparece, então, uma valoração pervertida do valor
dos próprios indivíduos na sua luta pela auto-afirmação: nulidades serão exaltadas e
personalidades significativas serão rebaixadas. Cidadãos moralmente superiores
serão submetidos à perseguição e os indivíduos mais talentosos e activos serão
rebaixados ao nível dos medíocres e incompetentes. Mais ainda, não são
necessariamente as autoridades que fazem isso: os colegas, os amigos, os vizinhos,
os companheiros de trabalho fazem tudo o que podem para impedir um homem
talentoso de revelar a sua individualidade ou um homem activo de ascender na
sociedade. Essa tendência assume um carácter de massa e invade todos os aspectos
da vida e em parte alguma isso acontece tanto quanto nas esferas criativa e
administrativa. Essa ameaça começa a prevalecer e afecta o estado psicológico das
pessoas. O tédio e a depressão reinam e as pessoas constantemente esperam o pior.
A sociedade desse tipo está condenada à estagnação e à decadência crónica e não
encontrar, dentro de si, forças que possam se opor a essa tendência».

Zinoviev acrescenta que esta situação pode durar séculos. Este retrato descreve com
bastante exactidão a situação brasileira. As regras práticas comunais são quase instintivas e
não dá para sobreviver sem elas. Por exemplo, estamos sempre a tentar limitar a nossa
responsabilidade pessoal, a diferença é que alguns querem fugir sempre às suas
responsabilidades e outros mantém isso dentro do tolerável. Quando os princípios e regras da
sociedade maior começam a falhar, os princípios de decência e de moralidade desaparecem e
as pessoas já nem conseguem entendê-los, obedecem apenas à regra comunal por questões
de sobrevivência. A isto acresce a distância que a maior parte das pessoas tem do ambiente
terrestre “não humanizado” – não têm, como os agricultores, que contar com as estações do
ano, com as tempestades, com a seca – e apenas conhecem um ambiente de várias comunas,
ou seja, não têm a menor ideia do que seja a sociedade como um todo. Isto é também
favorecido por outros elementos. Um deles é a ausência de um sentimento nacional, que em
outros tempos começou a se formar (Guerra do Paraguai, industrialização do governo de
Getúlio Vargas, construção de Brasília no tempo de Juscelino Kubitschek, progresso
económico no regime militar Médeci), mas depois desapareceram, sendo algo que não pode
ser recuperado tão cedo devido à ausência de intelectuais que possam criar uma imagem do
Brasil que se propague às outras classes como sentimento de nacionalidade. Outra razão é a
ignorância em relação às leis, não só porque estas são confusas mas porque atingiram um
volume inabarcável, então, a lei passa a ser um elemento distante e abstracto para o cidadão,
que naturalmente vai apegar-se à norma comunal, que é precisamente a autoridade imediata
da qual depende a sua sobrevivência. Num ambiente assim não é de admirar a inversão
moral, onde as pessoas se preocupam mais com a corrupção do que com 50 mil homicídios
anuais, dado que o dinheiro adquiriu um atractivo simbólico desmesurado e é algo com que
as pessoas lidam na sua comuna mas, em geral, já não vão conviver com homicidas.

Sem a restauração da alta cultura, não podem existir normas efectivas, não vai haver
integração da sociedade. Pensemos no que é uma Constituição. Segundo Hans Kelsen (não
foi contestado neste ponto), uma Constituição é uma pirâmide, tem um princípio no topo e o
resto deriva daquilo ou tem ali o seu fundamento de alguma forma. Então, os regulamentos,
o Código de Processo Civil, o Código Penal têm de ser coerentes com ela. Hoje já desapareceu
222

a ideia de que as leis devem ser coerentes entre si. Por exemplo, existe uma lei que proíbe o
ultraje ao culto religioso e outra que proíbe colocar um travesti fora da igreja se este a
ultrajar. A lei deixa de ser um princípio que ordena a sociedade e transforma-se num pretexto
para defender certos grupos em certos momentos, ou seja, os legisladores seguem apenas as
regras comunais nas quais vivem (desejo de aumentar o poder, concorrência com colegas,
isentação de responsabilidades, etc.)

Os próprios alunos do Seminário de Filosofia não podem achar que basta assistir a
umas aulas e que, assim, já estarão prontos para intervir na vida pública. Se não estiverem
devidamente preparados em termos intelectuais e morais, rapidamente começarão agindo
em função das regras de defesa pessoal da comunidade e esquecerão de julgar as coisas em
função de valores superiores. α72

232. A insuficiência da análise estrutural de texto em filosofia


Os professores da USP falam constantemente de “rigor”, seja na interpretação de
textos ou na argumentação, mas é um fetiche que não passa de uma afectação de frieza.
Quando aplicam o termo com algum significado, referem-se à análise estrutural de textos
criada por Martial Guéroult e apresentada no livro Descartes selon l’Ordre des Raisons, que é
um livro admirável e que serviu de modelo na USP para leitura de um livro de filosofia. O
método de Guéroult é inspirado num conselho de Victor Delbos, que alertava para aqueles
que se embrenhavam em jogos de reflexão para descobrir a significação profunda de uma
filosofia e começavam por negligenciar a sua significação exacta. Muitas vezes os filósofos
lêem outros filósofos superficialmente apenas para retirar algumas ideias que servem de anti-
modelo (daí Benedetto Croce dizer que só entendemos um filósofo quando sabemos com
quem ele está polemizando), e muitas vezes um filósofo fica conhecido por aquilo que um
outro disse a seu respeito e que pode parar longe da intenção original. Isso acontece com
Heidegger em relação a Nietzsche e com São Tomás de Aquino em relação a Aristóteles (em
relação a alguns pontos).

Para evitar passar por cima da significação exacta, Guéroult partia de três
pressupostos:

a) A filosofia de um filósofo está nos textos que ele deixou;

b) O esquema de validação (ordem de demonstração ou lógica interna) desses textos é tão ou


mais importante quanto as teses explícitas legadas pelo filósofo – ecoando Hegel, que dizia
que uma ideia filosófica nada significa quando amputada do caminho que conduziu a ela, ou
seja, é preciso conhecer a ordem das razões, ir além do significado imediato e literal das teses
e saber o que as fundamenta (princípio de validação);

c) A estrutura lógica da demonstração pode não coincidir com a ordem linear do texto mas
deve ser recomposta a partir desta.

Os dois últimos pressupostos são universalmente aplicáveis, mas o primeiro é


problemático. Em relação a filósofos como Descartes, Kant ou Bergson podemos até conceder
que a obra escrita deles contém a expressão completa das suas doutrinas, mas o mesmo não
se aplica a muitos outros filósofos, desde logo a Platão, que deixou claro que o principal do
seu ensinamento foi transmitido oralmente aos discípulos (algo recuperado filologicamente
por Giovanni Reale e filosoficamente por Mário Ferreira dos Santos). No caso de Aristóteles
223

temos apenas notas de aula, além de que a Metafísica, sua obra principal, é um conjunto de
textos independentes montados muito depois da sua morte por alguém que não foi seu aluno,
pelo que a aplicação do método de Guéroult é praticamente inviável. Em Descartes funciona
bem porque este compôs a sua obra escrita em coerência com a estrutura do seu pensamento.

O caso de Leibniz é paradoxal, porque ele era um diplomata muito ocupado e deixou
apenas uma série de cartas, rascunhos e escritos de opinião, parecendo muito eclético, mas
ele foi uma das mentes mais organizadas de sempre. Já a obra de Mário Ferreira dos Santos
está muito bem estruturada, o texto é que está defeituoso. Ao passo que a obra de Olavo de
Carvalho é muito caótica e antes de fazer sobre ela uma análise estrutural guéroultiana será
necessário fazer uma estruturação, como acontece em relação a Leibniz. Nas obras que não
estão estruturadas conforme o pensamento do filósofo, a análise estrutural dos textos apenas
fornece peças isoladas de um quebra-cabeças, ainda que cada uma fique muito bem
esclarecida nos seus detalhes internos.

Os profissionais da USP, com o seu “rigor”, consideravam-se profissionais, a despeito


dos outros que apenas fariam uma tosca “filosofia literária”. Mas com a sua obsessão pelo
estudo dos textos (José Arthur Gianotti chegou a definir a filosofia como “um trabalho com
textos”) e tendo pouco trato directo com problemas substantivos acabaram por reduzir a sua
actividade à filologia e aos estudos literários. Então, chegaram a uma criação peculiar: o
filósofo especialista em outro filósofo. Perante o fracasso de não ter produzido nenhum
filósofo em cinco décadas, a USP desculpou-se dizendo que formou excelentes filólogos e
historiadores da filosofia, mas também não existe registo de obras de vulto nestes campos (há
apenas, como excepção, o ensaio clássico de Lívio Teixeiro “Ensaio sobre a moral de
Descartes”, de 1955).

Na realidade, a filosofia não tem como finalidade principal a produção de textos.


Muitas obras filosóficas foram montadas por terceiros com base em aulas, gravações ou table
talks, algo que não se passa no campo da literatura, cuja meta é a própria obra, que é uma
totalidade acabada e, assim, pode ser objecto de contemplação estética. A obra literária não
tem um significado exacto mas muitos significados possíveis e misteriosamente compatíveis
com a unidade da forma estética que os contém: é um símbolo que não cristaliza um
significado exacto mas que funciona como matriz de intelecções.

Já o objecto formal da filosofia é uma filosofia, que se compõe de certas intuições de


base e de um esquema de validação, que não tem de coincidir com a ordem interna do texto.
O que é fundamental em filosofia é a descoberta, a teoria, a intuição filosófica, podendo haver
associado um documento mais ou menos fiel. O escrito até pode ter um significado exacto só
que nunca estará encerrado nos seus próprios limites formais, porque quase sempre é a
expressão de conclusões provisórias obtidas no curso da investigação que durará até ao
último dia do filósofo. O filósofo pode até não mexer mais em certas conclusões que deixou
expressas, mas isso só no final se sabe, porque a qualquer momento ele pode chegar a novas
conclusões, que podem apenas complementar o já obtido mas também podem até impugnar
as primeiras conclusões.

Então, por um lado temos a obra de arte, definida como uma forma acabada mas de
significado em aberto: o escritor nunca conseguirá controlar os significados que serão
extraídos da sua obra. Por outro lado, o filósofo visa chegar a uma significação exacta,
embora muitas vezes não o consiga, mas o texto fica sempre inacabado. Isto acontece porque
apenas podemos compreender o texto apelando a escritos antecedentes e subsequentes, a
224

dados da vida do filósofo, a outros escritos que ele tenha deixado, ou seja, a um conjunto de
elementos externos que revelam muito da interpretação dos escritos e, sobretudo, do peso
existencial e moral que o autor dava a estes. Temos o exemplo de Sócrates que aceitou a
morte serenamente, o que mostra o quanto ele acreditava na imortalidade da alma. E temos o
anti-exemplo de Nietzsche que, no fim da vida, abraçou um burro que estava a ser espancado
sob as ordens de Lou Salomé, o que mostra que ele não falava muito a sério quando dizia que
os mais fortes devem humilhar os mais fracos ou que as mulheres devem ser chicoteadas. Se
a experiência na vida real contradiz as ideias dos filósofos, a realidade deve prevalecer sobre
o texto.

Marcial Guéroult não se pergunta sobre qual é o género literário das Meditações
Metafísicas de Descartes, e acaba por lê-las como se fossem um puro tratado de metafísica,
quando o autor disse explicitamente que se tratava de uma autobiografia espiritual. Assim, a
ideia do “génio mau” parece-lhe apenas um artifício que coloca a dúvida entre a certeza do
cogito e a passagem para o mundo exterior. É nessa parte que Descartes apela a Deus e diz
que Ele é bom e não o iria enganar. De seguida, faz uma demonstração da existência de Deus,
usando-a para fundamentar a existência do conhecimento do mundo exterior. Mas se nas
Meditações o “génio mau” é realmente um artifício retórico, podemos dizer que também o
era na concepção do mundo que tinha o homem René Descartes? Se lermos as Meditações
não como um processo de validação mas como uma narrativa autobiográfica (como
Descartes afirma ser), encontraremos ali experiências interiores reais que podemos refazer
imaginativamente – por exemplo, recorrendo ao método Stanislavski, onde se obtém uma
identificação profunda com o personagem usando a “memória afectiva”. Desde logo,
percebemos que a dúvida universal é impossível de realizar, não porque o ego cogitans quer
afirmar a sua própria existência (algo que só acontece mais tarde) mas porque só podemos
duvidar de uma coisa afirmando simultaneamente muitas outras. Se duvidamos dos dados
dos sentidos é porque distinguimos estes dos pensamentos abstractos, e isto, por sua vez,
supõe uma epistemologia implícita que permite a formulação da pergunta. No diálogo
Ménon, Sócrates interroga um escravo e mostra a este que ele tem inúmeros conhecimentos
de geometria implícitos, e se analisarmos as nossas ideias correntes acabaremos por expor
uma série de pressupostos lógicos, epistemológicos e científicos que estão ali implícitos.

Se a dúvida universal não pode ser realmente vivenciada, só a podemos compreender


como um artifício pedagógico ou retórico que serve tanto para expressar como para encobrir
outra experiência interior, que é precisamente a “hipótese” do génio mau. Podemos ter uma
experiência de terror-pânico, acharmos que podemos estar enganados em relação a tudo, o
que não é a dúvida universal mas uma emoção correspondente. Em 1619 Descartes teve
alguns sonhos onde a sua consciência estava ameaçada de extinção pela interferência de uma
força demoníaca, o que se pode interpretar psiquiatricamente como um temor da loucura ou,
teologicamente, como uma antevisão ameaçadora da segunda morde, a morte de alma. Em
qualquer dos casos, o resultado é a invalidação dos conteúdos da consciência, a privação total
de conhecimento. O que Guéroult via como um artifício (“génio mau”) era, na verdade, a
inspiração originária das Meditações, e o que lhe parecia como o fulcro da demonstração
(dúvida metódica) era apenas um artifício. Descartes trocou uma experiência real por uma
hipérbole literária e continuou a raciocinar em consonância, algo que nos passa despercebido
se nos atermos apenas ao texto e nos abstraímos das suas raízes existenciais. Se isolamos o
texto filosófico como se fosse uma totalidade autónoma, passamos a contempla-lo como uma
obra de arte literária, como um símbolo com significado em aberto, não tendo mais sentido
falar em significado exacto.
225

Dessa forma, seremos presas fáceis de ideias como a dos jogos de linguagem, de
Wittgenstein, que pretendia dissolver a modernidade numa pós-modernidade ainda mais
desoladora, onde reina a total arbitrariedade. Quando, no Tractactus, Wittgenstein se propõe
a demolir qualquer presunção de conhecimento objectivo, equivalendo todos os jogos de
linguagem, ele também tira toda a relevância às filosofias grega e cristã. Na realidade, ele
limita-se a seguir o procedimento geral da modernidade, que não rebate as filosofias
anteriores mediante um confronto honesto mas faz um deslocamento oportunístico do eixo
da discussão. Na tese 6.432 do Tractatus, Wittgenstein diz: “Deus não se manifesta no
mundo.” Isto nega formalmente a encarnação e impossibilita uma interpretação cristã da sua
filosofia. Mesmo se depois ele condena as suas próprias afirmações como contra-sensos, é
destes que ele retira a conclusão final do Tractatus (“daquilo que não se pode falar deve se
calar”), condenando a um silêncio universal tudo o que não sejam proposições sobre factos
atómicos.

Concluímos afirmando que os métodos de análise estrutural como os de Guéroult,


mesmo se aplicados com mestria, não podem ser o elemento principal na formação de um
filósofo, podem ter apenas fins propedêuticos. Tudo isto precisa de ser complementado pelo
método de Paul Friedländer, que buscava a experiência viva que deu origem às intuições
centrais do filósofo e que determinou o sentido do seu esforço cognitivo. Ele mostra a
importância para Platão do seu encontro com Sócrates, assim como foi determinante o
conflito deste último com a classe política dominante e com os sofistas seus mentores.
Sócrates foi levado à busca das leis não escritas por decepção com a classe dominante,
ninguém mais acreditava nos princípios religiosos e a aplicação das regras comunais
começava a impor-se. Neste contexto, parece fazer sentido um conceito grosseiro de justiça
como “ajudar os amigos e prejudicar os inimigos”, como se vê na discussão inicial da
República, e depois Sócrates tenta colocar a questão nos seus verdadeiros termos.

Sócrates recusou seguir a regra comunal quando não prendeu um cidadão inocente,
como lhe tinham ordenado. Então, ele questionou-se sobre o que é a justiça. Quando o jovem
Platão encontrou Sócrates, ele viu neste último um modelo pronto e acabado de um novo tipo
de ser humano diferente dos intelectuais até aí: o filósofo. Este aparece ante o colapso da
velha ordem social baseada na ordem cósmica, segundo Eric Voegelin. O filósofo é o homem
capaz de buscar, sem ajuda das crenças vigente, um novo padrão de ordem no fundo da sua
alma, tomada como espelho das leis eternas, transcendentes à sociedade e ao cosmos inteiro.
Todo o esforço de Platão visou exteriorizar em linguagem teorética aquilo que tinha vista na
alma de Sócrates num primeiro momento. Mesmo quando se trata de algo descoberto por
Platão, ele coloca aquilo na boca de Sócrates porque, de alguma forma, já estava presente
neste.

O impacto de uma experiência inicial pode determinar o sentido inteiro de uma obra
filosófica. No caso de Descartes tratou-se dos sonhos em que é insinuada a figura do “génio
mau”, que ameaçava destruir na base toda a confiança no poder dos conhecimentos
humanos. Descartes travou desde esse momento uma batalha contra o demónio, que acabou
perdida, no final das contas. Existem evidências que ele era sinceramente cristão – embora,
com tudo apurado, podemos começar a questionar ser ele não era um verdadeiro pensador
demoníaco escondido atrás de uma afectação de cristianismo, ficando a dúvida se o que
motivou os seus esforços não foi uma tentativa de criar um certo impacto a longo prazo –,
mas o cartesianismo deu início a um processo de descristianização avassalador. É óbvio que
um homem sozinho não tem poder suficiente para lutar contra o demónio, muito menos
226

apelando ao raciocínio. Descartes acaba apelando a Deus, mas Ele é objecto de prova a partir
do ego e nunca aparece como elemento constitutivo deste, porque para Descartes o ego tem
uma autonomia cognitiva total. Quanto Santo Agostinho fez a sua descoberta do cogito,
imediatamente percebeu a sua inconsistência ontológica (“eu sei que sou mas não sei por que
sou”), e não será o ego que vai provar a existência de Deus, mas é Deus que prova a existência
do ego. Em Descartes não existe uma relação substantiva entre o ego e Deus, é apenas uma
relação meramente formal.

Descartes teve uma primeira vitória quando se fundamentou na certeza do ego que se
pensa a si mesmo, mas logo percebeu que este ego não tem contacto com o mundo exterior,
dado que está preso dentro de si e é precisamente o ego solipsista que teme o demónio. É
Deus quem aparece como mediador e oferece a certeza do mundo externo. Mas tão logo Deus
cumpre a sua função de prova, pode ser esquecido – até porque foi chamado
extemporaneamente, uma vez que tinha sido excluído à partida pela dúvida metódica –, pelo
que nunca é princípio fundante do ego. Assim, criou-se assim um abismo entre ego e Deus, o
que em termos históricos evoluiu para uma ruptura entre teologia e ciência.

Se não retornamos às experiências fundantes que geraram as intuições centrais que


dirigem a montagem das doutrinas filosóficas, estas aparecem-nos como puras construções
mentais ou como obras literárias, de onde se podem retirar inúmeras interpretações
heterogéneas que dissolvem o sentido originário das intuições centrais. A história da filosofia
construída nesta base apresenta uma série de pensamentos que se geram uns aos outros, o
que gera a necessidade desta história explicar-se a si mesma e, assim, transmutar-se numa
nova doutrina filosófica. O método de análise estrutural de textos torna-se problemático
precisamente a partir da época de Descartes, porque começou a surgir muita camuflagem,
muitos elementos histriónicos ou irónicos. Se tomamos o texto como se fosse algo límpido e
que traduz fielmente o pensamento do filósofo, não vamos captar onde está a mentira e o
fingimento. Entender uma filosofia não é apenas entender os textos relativos a ela, porque a
filosofia constitui-se também de actos praticados no mundo, que podem deixar marcar por
muitas gerações, pelo que temos também de entender o seu efeito histórico.

Noutro campo, as obras de Charles Darwin foram usadas para justificar o genocídio,
mas a primeira tentação é dizer que ele não teve culpa disto, porém, se procurarmos um
pouco vemos que a semente já estava lá. Já Karl Marx falava do objectivo final de construir a
sociedade futura de paz e harmonia universal, mas esta é apenas uma finalidade alegada.
Percebemos quais eram realmente os seus objectivos reais pela sua descrição das etapas a
percorrer para chegar à sociedade justa, e a primeira etapa é a conquista do poder. Então,
este é o objectivo imediato e não haverá mais nenhum se este não estiver cumprido. Todos os
planos messiânicos conseguiram, na melhor das hipóteses, não atingir os objectivos
derradeiros mas os objectivos primeiros, e na verdade é nestes que o verdadeiro sentido se
encontra.

O ponto ideal para descobrir a experiências de base dos filósofos encontra-se


averiguando as tomadas de posição destes face aos desafios da vida real quando, já tendo
essas experiências ocorrido, ainda eles não possuíam uma armadura teorética para se
protegerem. Não temos de fazer isto apenas com os filósofos que desencadearam
consequências negativas, como Descartes, Bacon ou Kant. Em Platão é nítido que a sua
experiência de base fundamental foi o contacto com Sócrates, culminando com a condenação
deste. A construção teorética (o processo de validação, na linguagem de Guéroult) pode
227

enriquecer a experiência originária ou, pelo contrário, pode camuflá-la, no limite até a um
ponto que a torna quase irreconhecível.

A experiência de base do filósofo tanto pode ser o sinal de uma descoberta formidável
como apenas uma prova de um complexo neurótico, de uma ilusão auto-engrandecedora, de
uma incapacidade de viver (o caso de Maquiavel). A partir do conhecimento desta
experiência de base podemos julgar o valor educativo de uma obra filosófica, não pela sua
importância histórica, porque a filosofia não deve satisfações à maioria. Na obra de um
filósofo devemos distinguir aquilo que representa a sua crença sincera daquilo que é
inventado como reforço de validação, artifício, suposição, adorno lógico ou mesmo mero
divertimento intelectual. Por exemplo, em Platão o mito de Atlântida não tem o mesmo peso
que as leis eternas. Sem esta distinção não entendemos nada da sua filosofia. O critério
decisivo é marcado por aquilo em relação ao qual o filósofo encontrava-se existencialmente
comprometido, tomando decisões vitais em conformidade, claramente distinto das
afirmações não comprometidas e apenas avançadas para fins de exposição, de participação
no debate académico ou para tentar brilhar literariamente. Wittgenstein, no Tractatus,
apresenta certas proposições com um carácter diferente daquelas que usa para fazer a sua
construção intelectual. Qual ele diz “na morte o mundo não muda mas cessa”, ou “a morte
não é um acontecimento da vida: ninguém vivencia a sua própria morte”, ou “o sentimento
do mundo como um todo limitado é o sentimento místico”, ele exprimia impressões sinceras
advindas dos seus exercícios místicos-budistas. Mas os académicos e entusiastas geralmente
apenas prestam atenção à parte mais rigorosa e racionalmente fundamentada, ignorando que
se trata apenas de uma derivação destas impressões. E, assim, a filosofia transforma-se numa
leviandade sofisticada e num sistema de defesas elegantes contras as realidades da vida. Não
é de admirar que Franz Rosenzweig tenha dito que a filosofia que aprendeu na universidade
de nada serviu para a situação nas trincheiras que ele enfrentou na I Guerra Mundial.

Hegel já advertia de que uma ideia filosófica só tem sentido quando encaixada no
sistema, ou seja, na ordem inteira das razões que a ela conduzem. Mas podemos acrescentar
que essas razões não têm que estar explícitas no texto. Se isolamos o sistema da mente
humana que o criou, o sistema torna-se como que uma teoria científica moderna, cujo autor
pode ficar anónimo e tudo pode ser verificado por meios experimentais. Ou, então, o sistema
passa a ser uma obra literária e pode ser tomado como símbolo. Nos dois casos perde-se o
sentido específico da filosofia, que é o de um esforço de coerenciação da experiência por uma
consciência individual. Mil análises estruturais de texto não dão uma compreensão das
filosofias (elementos chave e valor desta) que se obtém revivenciando imaginativamente as
suas experiências fundantes. A análise estrutural é muito valiosa para preparar a
investigação ou para confirmar aquilo que se descobriu em relação à experiência fundante,
que podemos reviver e que dá o ponto de vista a adoptar. α72

[Aula 73]

233. Alta cultura e o senso de hierarquia


A verdadeira admiração é um acto de amor, que muitos atraiçoam quando, temendo
ser considerados idólatras, começam a colocar restrições [228]. Por outro lado, Cristo
228

recordou: “Vós sois deuses”. Apesar de todos sermos almas imortais, não quer dizer que
tenhamos o mesmo nível qualitativo e seguramente que estamos abaixo dos santos. Então, a
recusa em admirar degrada o nosso senso de hierarquia, que é algo que está na base da alta
cultura. Disse Nicolás Gómez Dávila: “Aqueles cuja gratidão pelo benefício recebido se
converte em devoção à pessoa que o outorga em vez de degenerar no ódio costumeiro são
aristocratas, mesmo que caminhem em farrapos”.

Relativamente à alta cultura, a aristocracia é composta por estas pessoas capazes da


gratidão e admiração devidas, e sem elas não existe mesmo alta cultura, reinando a
mentalidade baixa e as regras comunais (simples reflexos de auto-defesa) [231]. A partir dos
anos 70 do século XX começaram a surgir muitas biografias ressaltando pequenas falhas de
conduta, ofuscando os feitos dos grandes homens. Claro que todos os seres humanos têm
defeitos – o que conta na hierarquia humana é a proporção entre méritos e deméritos –,
contudo, não devemos apontá-los para nos sentirmos de alguma forma superiores. Se o
fizermos deve ser apenas para identificar tarefas que os grandes homens nos legaram, e
também para tentar perceber, com compaixão, o porquê deles terem errado em certas alturas
e se terem desviado do caminho.

Só é possível fazer algo pela alta cultura se não estivermos infectados pela
mentalidade comunal [231]. Para isso, é necessária a honestidade estrita, a idoneidade e a
rectidão. Não basta ter outras ideias políticas para sermos melhores: esta é a forma de pensar
dos comunistas, que apenas perpetua o estado de iniquidade. A iniquidade não se confunde
com o pecado, que é apenas fazer algo errado. Iniquidade é o pecado tão banalizado que se
torna não apenas num direito mas também numa obrigação. α73

234. Do verbalismo à atitude contemplativa


As crenças ou descrenças que exprimimos verbalmente são apenas produtos cerebrais
e raramente exprimem a nossa percepção real da existência. Na Bíblia diz que Deus vai
sondar rins e corações, não cérebros. O coração é o símbolo do centro do ser, do verdadeiro
centro perceptivo e decisório, não daquilo que pensamos mas daquilo que sabemos
permanentemente (mas que pode ser encoberto pela actividade cerebral). Se não tivermos
consciência das nossas percepções reais profundas e permanentes, tudo o que achamos ou
deixamos de achar é irrelevante. Não é o verbalismo que interessa mas instalarmo-nos na
realidade mais profunda, permanente e decisiva que há em nós. Não é só dizermos como
percebemos as coisas somente neste momento, temos de confessar aquilo que temos visto
desde crianças e que nunca negamos no nosso coração porque sabemos que estão ali.

Por exemplo, nenhuma pessoa mentalmente sã alguma vez negou sinceramente ser
ela mesma. Mas esta confiança inabalável da permanência do nosso ser não é fundamentada
nem nas sensações e nem na actividade cerebral. Por baixo da actividade racional e
perceptiva existe um conhecimento mais profundo e permanente que nos dá a verdadeira
realidade das coisas e que usa as sensações e a razão essencialmente como instrumentos de
comunicação e não tanto de conhecimento. Este é o senso de imortalidade, que é o princípio
da filosofia, a partir do qual Sócrates, Platão e Aristóteles questionavam tudo o resto. A
consciência de imortalidade identifica-se com a consciência de individualidade e apenas
pode ser conhecida por si mesma. No fundo, é algo que sempre soubemos mas o pensamento
pode nos levar para o outro lado.
229

Outro exemplo é a percepção do facto concreto, que toda a gente sabe que pode ser
imitado de alguma forma mas que é irrepetível na sua totalidade. Acontece num determinado
momento do tempo e do espaço e compõe-se da convergência de um número quase ilimitado
de processos causais, uns essenciais e outros acidentais. Podemos saber alguns factos
concretos com certeza absoluta, mas não temos meios de prova-los porque eles são a própria
base de prova. Se não tivéssemos capacidade de perceber factos concretos, apenas
poderíamos fornecer provas hipotéticas. Na faculdade de filosofia, os professores tentam que
os alunos fiquem treinados apenas na discussão de coisas hipotéticas, e assim estes vão
perdendo o senso de imortalidade e da realidade concreta, ou seja, passam a confiar mais na
própria capacidade falante do que naquilo que vêm e podem ter certeza absoluta.

O estudante que redescobre o senso de imortalidade deixa de procurar respostas no


raciocínio, percebe que fazer muitas perguntas idiotiza e aprende a esperar que a evidência
apareça perante a alma imortal como uma componente dela mesma, ou seja, assume uma
atitude de aceitação e de contemplação da realidade de si mesmo e do em torno. Platão dizia
que o filósofo não é um pensador mas um “amante do espectáculo da verdade”. Mas não se
trata da “contemplação mística” de Wittgenstein, é a contemplação do espectáculo da
verdade do qual fazemos parte. Claro que por vezes temos a necessidade de colocar
perguntas, mas aí devemos formular a questão de forma viável e que não nos afaste da
realidade. Muitas dúvidas surgem de uma formulação prematura, devido a uma pressa de
fazer elaborações em cima da experiência e isto abafa o senso do facto concreto. Os que
fazem isto são pensadores, ou seja, pessoas que gostam de pensar, mas o filósofo não é um
pensador, é um amante da sabedoria, por isso quer que ela o ensine. Então, o filósofo abre-
se à sabedoria, contempla-a, pede e ela dá alguma coisa de volta. Já o pensador é aquele que
quer se ensinar a si mesmo. α73

235. A preparação de uma nova elite intelectual


O objectivo dos alunos do Curso Online de Filosofia formarem uma nova elite
intelectual significa que estes devem entrar em campo como vencedores, investidos de uma
profunda autoridade intelectual e com um nível que os outros não podem acompanhar. O
descontentamento com a situação vigente pode até ser um ponto de partida mas não nos
torna automaticamente capazes de fazer algo melhor, nem nos dá uma autoridade para julgar
os outros desde cima. Antes de tudo, é preciso identificarmos a raiz da corrupção em nós
mesmos, nos nossos próprios hábitos. Corrigir os outros tem sempre um efeito muito
limitado, porque não podemos fazer o trabalho por eles. A actividade crítica pode ter um
certo efeito pedagógico sobre o auditório, identificando maus exemplos, mas não basta para
criar uma situação melhor. Muitos jovens conservadores e liberais acham que são melhores
apenas porque estão contra a situação vigente, mas isso só se vê no fim. Temos de entrar em
campo com uma série de realizações positivas e não apenas com um rol de críticas. α73

[Aula 74]
236. As influências de Olavo de Carvalho
230

Toda a nossa apreensão do movimento histórico baseia-se, em última análise, nos


modelos que temos em nós a respeito do nosso próprio desenvolvimento, do nosso senso de
temporalidade e do nosso senso de formação da própria consciência. No caso de Olavo de
Carvalho, o primeiro elemento cultural impactante foi a Liturgia da Igreja Católica, que,
juntamente com as imagens do céu, do inferno, do Juízo Final e da vida dos santos forneceu
um modelo para tudo o que veio depois. Uma segunda influência veio através da família, com
audição de peças de música erudita e explicação da sua estrutura, que depois podia ser
transferida para muitas outras composições. Seguiram-se uma série de outras influências,
que podem ser mais ou menos ordenadas da seguinte forma até à década de 90 (do texto de
apoio à aula):

1. Música. Audições guiadas pela Nova História da Música de Otto Maria Carpeaux e pela
ajuda de amigos.

2. Leituras literárias: Machado de Assis inteiro, Eça de Queiroz, Camões, Cruz e Souza,
Fernando Pessoa, Dante, Goethe, Shakespeare, François Mauriac, Hemingway, Kafka,
Pirandello, Bernanos, Camus, Sartre (Les Chemins de la Liberté), Dürrenmatt, Henry Miller.

3. Crítica e História Literária. Otto Maria Carpeaux, Franklin de Oliveira, Augusto Meyer,
Álvaro Lins, Adolfo Casais Monteiro, Fidelino de Figueiredo, Sainte-Beuve, Kenneth Burke,
Northrop Frye, F. R. Leavis, Georg Lukács, Lucien Goldmann, Ernst-Robert Curtius.

4. How to Read a Book, de Mortimer J. Adler; The Classical Tradition, The Art of Teaching e
Man’s Unconquerable Mind, de Gilbert Highet.

5. Primeiras leituras filosóficas: José Ortega y Gasset, Martin Heidegger, Platão.

6. Marxismo: Georg Lukács, Lucien Goldmann, Manuais da Academia Soviética, Caio Prado
Jr., Pierre Fougeyrollas, Henri Lefebvre, Adam Schaff, Manifesto Comunista, Trechos de O
Capital, Trotsky (História da Revolução Russa e biografia por Isaac Deutscher), periódicos e
circulares do Partido Comunista, Leo Huberman & Paul Szweezy (Monthly Review), Les
Temps Modernes, Esprit (católicos de esquerda), Revista Civilização Brasileira, New Left e
Escola de Frankfurt (Marcuse, Horkheimer, Adorno; Benjamin só li muito mais tarde).

7. Ciências sociais: Max Weber, Durkheim, Marx, Sorokin, Veblen, antropologia (Ruth
Benedict, Malinowski, Frazer).

8. Teatro. Curso com Eugênio Kusnet, leituras de Shakespeare, Górki, Tchécov, Brecht,
Ibsen, Peter Weiss, Jean Genet, Camus, Pirandello, Dürrenmatt.

9. Cinema. Curso na Comissão Estadual de Cinema. História do Cinema Mundial de Jacques


Sadoul (marxista), Cahiers du Cinéma, Sight & Sound, Paulo Emílio Sales Gomes, Almeida
Sales, Guido Logger (católico), Henri Agel (católico). Umberto Barbaro, John Howard
Lawson, Eisenstein, Pudovkin. Conheci Roberto Rosellini, do qual apreciava muito Paisà,
Roma Cidade Aberta e Alemanha Ano Zero.

10. História e teoria das artes. Rudolf Arnheim, Erwin Panofsky, Wilhelm Worringer,
Heinrich Wölfflin.

11. Psicanálise. Freud, Adler, Jung, Karen Horney, Reich. W. R. Bion.


231

12. Conferência de Julián Marías em São Paulo. Imersão no pensamento hispânico: José
Ortega y Gasset, Julián Marías, Xavier Zubiri, Manuel Garcia Morente, José Gaos, José
Ferrater Mora, Eugenio d’Ors. Redação do ensaio sobre Ortega y Gasset.

13. Contracultura, sex lib, feminismo, Peter Brown, Luís Carlos Maciel, Aldous Huxley (As
Portas da Percepção e O Céu e o Inferno).

14. New Age. Esalem, O Despertar dos Mágicos, Gurdjieff, Idries Shah, Allan Watts.

15. Wittgenstein, Saussure, Todorov, Lyotard, Derrida.

16. Astrologia e alquimia.

17. Encontro com Swami Dayananda Sarasvati. Leitura dos Vedas e do Bahgavad-Gita.
Shankaracharya.

18. Estudos de taoismo e confucianismo com Michel Veber.

19. Ciências físicas. Einstein & Infeld, Arthur March, Fred Hoyle, George Gamow, Werner
Heisenberg, Jean Piaget (Biologie et Connaissance), Raymond Ruyer (A Gnose de Princeton,
La Genèse des Formes Vivantes) etc.

20. Foi com Éric Weil e Benedetto Croce que aprendi a ler livros de filosofia.

21. Georges Gusdorf.

22. Um ano de Kant.

23. Meio ano de Descartes, com a ajuda de Martial Guéroult, Ferdinand Alquié e Lívio
Teixeira.

24. Meio ano de Fichte, Schelling e Hegel.

25. Leibniz e Husserl, influências decisivas.

26. Psicologia. Szondi, Frankl, Allport, Arthur Janov, Julian Jaynes.

27. René Guénon, Julius Evola, Seyyed Hossein Nasr, Titus Burckhardt, Frithjof Schuon,
Jean Borella, Henry Montaigu, Études Traditionnelles, Studies in Comparative Religion.

28. Cristianismo. Sto Agostinho, Relatos de um Peregrino Russo, a Filocalia, Thomas


Merton, Etienne Gilson, encíclicas papais, história da Igreja.

29. Estudos de língua árabe com José Khoury. Islamismo. Corão e Hadith, Seyyed Hossein
Nasr, Louis Massignon, Louis Gardet, Mohhammed Arkhoun. Clássicos: Ibn ‘Arabi,
Shihaboddin Sohrawardi, Avicena. Redação do livro sobre a vida do Profeta Mohammed.

30. Encontro com Martin Lings, Frithjof Schuon, Seyyed Hossein Nasr, Rama
P.Coomaraswamy, Joseph Epes Brown, Huston Smith, Whitall Perry.

31. Trivium e Quadrivium, Sto. Tomás de Aquino, Duns Scot, novamente Platão. Um ano de
Aristóteles, com centenas de estudos e comentários.

32. Estudos com o Pe. Stanislavs Ladusãns.


232

33. Estudos de filosofia brasileira e portuguesa: Vicente Ferreira da Silva, Miguel Reale,
Leonardo Coimbra, Pinharanda Gomes, Álvaro Ribeiro.

34. Mário Ferreira dos Santos. Novos estudos de filosofia escolástica.

35. Eugen Rosenstock-Huessy e Franz Rosenzweig.

36. Retorno aos estudos marxistas: Gramsci, Althusser, Habermas.

37. Economia austríaca: Mises e Hayek.

38. Retorno à história nacional, motivada pela redação do livro O Exército na História do
Brasil.

39. Centenas de livros de história do comunismo, agora contada pelos adversários e vítimas.

40. Estudos do pensamento reacionário: Joseph de Maistre, De Bonald, Charles Maurras, La


Tour du Pin.

41. Eric Voegelin, Leo Strauss, Norman Cohn.

À medida que estas influências eram absorvidas, era muito fácil ver o contraste entre
diferentes perspectivas. A ideia não era ficar apenas pelas leituras mas absorver a atmosfera
das várias áreas culturais, conviver com as pessoas, deixar que a imaginação e os sentimentos
fossem impregnados e tentar ver o mundo como aquelas pessoas o viam. A técnica teatral de
Stanislavski foi útil para transitar entre tantas influências contraditórias e heterogéneas.
Nesta técnica procura-se uma identificação profunda do actor com o personagem,
procurando na memória afectiva situações análogas àquelas apresentadas na peça para
também ter uma analogia da emoção do personagem, repercutindo-se em expressões, gestos
e entonações de voz. Então, Olavo de Carvalho absorveu cada influência como se fossem
personagem de teatro, sem julga-las ou exercer actividade crítica, antes tentando se
identificar profundamente com elas mas ao mesmo tempo tendo a noção de que se tratava de
um “sonho”, um vivenciar a realidade única desde muitos pontos de vista e sem ter uma
identificação absoluta com algum deles. Não se tratava apenas de absorver ideias, teorias ou
doutrinas mas tentar captar a experiência profunda por trás delas (actos de imaginação,
sentimentos, julgamentos morais), e que os filósofos podem depois colocar na linguagem
mais abstracta e técnica possível.

Neste processo, é inevitável abordarmos autores com quem nos identificamos muito
pouco, mas não vamos temer nos contaminarmos e vamos tentar ver as coisas da mesma
forma que eles. Lentamente vai se articulando um conflito de ideias, doutrinas e correntes
culturais como se fosse uma imensa peça de teatro onde representamos todos os personagens
em simultâneo. Isto cria um estado de relativa confusão, que não tem de assustar se
mantivermos alguns pólos de referência. No caso de Olavo de Carvalho, ele tinha a liturgia da
missa, que dava uma visão simbólica de todo o universo desde o início até ao fim, e a própria
experiência da realidade, que não era esgotada por nenhuma das perspectivas encarnadas.
α74

237. A natureza teleológica da individualidade (Josiah Royce)


233

Josiah Royce, o maior filósofo americano, dizia que a incompletude é o carácter mais
notável tanto da percepção humana como do pensamento. Percebemos sempre as coisas de
forma parcial, apenas por um lado e por um certo aspecto, mas sabemos que a coisa inteira
está para além daquilo que dela vemos. Também os conceitos são entidades potenciais que
têm a capacidade de serem representados por entidades mas que não se confundem com elas.
O conceito de uma espécie é um mero esquema, é uma forma que abrange todos os membros
de uma espécie naquilo que eles têm em comum, não no que têm de individual. Contudo, a
espécie não existiria se não houvesse nenhum ente individual a representá-la, ou seja, os
conceitos têm a sua realidade garantida por algo que não está neles (a individualidade
concreta).

Apesar de não percebermos na totalidade nenhuma individualidade concreta, diz


Royce que não perceberíamos absolutamente nada se apenas tivéssemos o que está na
percepção ou no conceito. Não existe presença real de generalidades a não ser na nossa
cabeça, mas também não podemos apreender as individualidades no seu todo (nem mesmo a
nosso respeito, dado que, num dado momento, apenas sabemos uma série de coisas, embora
o sentimento de individualidade nunca nos abandone).

Josiah Royce conclui que, se tudo o que existe, existe sob a forma de individualidade
(que é aquilo que nem o intelecto e nem as sensações percebem), é porque essa
individualidade é de natureza teleológica, isto é, tem uma finalidade, está se cumprindo, e é
isso que faz dela uma individualidade real. A percepção dá-se num certo momento, não sabe
o que acontecerá amanhã, pelo que não tem um carácter teleológico. Tampouco o conceito o
tem, dado ser uma definição abstracta e estática das propriedades comuns às várias
entidades do mesmo género. Apreendemos a individualidade porque temos o dom da
vontade e estamos caminhando em direcção a alguma meta (que não tem que se completar
em vida). Ou seja, a percepção de incompletude junta-se à percepção da meta que realiza a
completude.

Tomemos o exemplo de uma mala, que pode conter várias coisas, foi feita para ser
carregada e um dia, quando se estragar, é jogada fora porque já não cumpre a sua finalidade.
Esta finalidade está embutida nela e é o que dá o senso da sua continuidade histórica.
Também nós temos esta continuidade assim como um nível de finalidade, por isso
apreendemos estes aspectos, mas não com as sensações ou com a razão. Apreendemos
porque somos criaturas teleológicas, ou seja, somos seres viventes com um passado e
dirigimo-nos a um futuro visando um estado de completação.

Se não podemos captar a individualidade de uma simples folha de uma árvore nem
pelos sentidos e nem pela razão, como sabemos que se trata daquela folha e não de outra? De
alguma forma apreendemos a sua individualidade. A sua presença física e o conceito que
temos a seu respeito simbolizam a existência real da folha no tempo e no espaço, mas a sua
existência real não nos é acessível, dado que não a conhecemos na totalidade. Contudo, de
alguma forma conhecemos a folha na totalidade porque apreendemos a sua individualidade,
que tudo engloba, caso contrário nada teríamos apreendido. Então, é um mistério a forma
com apreendemos a individualidade. Em todo o universo que nos é acessível, não existe ente
que não seja símbolo da sua história inteira, que contempla muitos outros objectos. Isto
reflecte a ideia da mónada de Leibniz: cada singularidade é uma mónada que contém na sua
estrutura tudo aquilo que a aproxima e separa de todas as outras individualidades. Assim,
uma folha tem em si todas as diferenças que a separam de todas as outras folhas, assim como
aquilo que a tornam idêntica às outras dentro da espécie a que pertence. Desta forma, cada
234

ente tem dentro de si um sistema de semelhanças e diferenças, pelo que cada ente simboliza,
ao seu modo, o universo inteiro.

Assim, estamos realmente dentro de um imenso campo discursivo, mas não se trata
de discurso humano, que realmente só é possível porque existe em volta o discurso da
própria Natureza. Vimos antes [112] um trecho de Bernanos, do livro L’Imposture, em que ele
fala da degradação do ser humano que chegou ao ponto dos poetas já não captarem mais o
discurso da Natureza mas passaram a usar os entes desta como símbolos postiços dos
próprios sentimentos ocasionais. Pior que isso é fazer do falatório humano a única realidade,
impondo o império da mediação discursiva. α74

238. Pseudomundos criados pela linguagem


Podemos compreender perfeitamente uma coisa sem conseguir descrevê-la. Qualquer
pessoa que conhecemos é indizível mas é perfeitamente cognoscível. Podemos até sentir
como ela sente, tomar decisões por ela mas sem conseguir expor o conteúdo do
conhecimento que fundamenta isto. Então, o conteúdo expresso das filosofias é pouco
importante se não conseguimos preenche-las do seu conteúdo indizível (sabemos muito mais
do que aquilo que podemos dizer). Este mar de experiências indizíveis é co-participável,
atravessando milénios e fronteiras, por isso, podemos compreender peças do teatro grego,
japonês ou indiano.

Mas se estudarmos Wittgenstein, Saussure, Derrida ou Todorov e tentarmos


revivenciar as experiências que eles tiveram, chegaremos à conclusão de que é impossível,
são ideias que apenas têm existência na esfera da linguagem. Pior ainda, eles querem fazer
crer que o conhecimento humano se limita ao mundo do discurso, ignorando desde logo que
o som e a imagem têm que nos chegar fisicamente. As ideias destes pensadores não são
vivenciáveis precisamente porque se tratam da negação da experiência, ao mesmo tempo que
tentam tornar inacessíveis às pessoas as experiências mais básicas.

Hegel já tinha dito que a maior propriedade do intelecto humano é a capacidade de


negar toda a experiência e afirmar-se a si mesmo com a única realidade existente, podendo
começar, a partir daí, a construir outros mundos. Desta forma, não existe apenas o
isolamento em relação à experiência mas o isolamento mesmo em relação àquilo que
sabemos. Assim, vemos filósofos construírem pseudo-mundos muito bem organizados, e
quem entra na mesma linha de raciocínio não consegue sair dali, a não ser que tenha um
treino lógico muito aprimorado para desmontar aquilo, ou que tenha uma consciência clara
do fundo indizível de experiência, o que é cada vez mais difícil precisamente devido à
influência cultural que estas ideias tiveram. α74

239. Hegemonia socialista (Ernesto Laclau e Chantal Mouffe)


Liberais, conservadores e anticomunistas têm geralmente desprezo pelos comunistas
e acham que lê-los é uma perda de tempo. Acham que basta saber que o capitalismo é
economicamente superior e pensam que não há nada mais a discutir. Acontece que os
comunistas também sabem isso, porque na realidade estão acima de tudo concentrados na
estratégia de apropriação do poder político. Neste particular, a estratégia comunista não é
apenas superior mas realmente é a única que existe hoje. Ler autores marxistas é um
235

sofrimento, mas se não o fizermos não iremos saber o que eles estão a tramar e, assim,
seremos presas fáceis não apenas das armaduras verbais que eles criam mas também do
esquema de poder que eles impuserem, e nem iremos perceber de onde aquilo surgiu. Isto é
ignorar o conselho de Sun Tzu, da necessidade imperiosa de conhecer o inimigo.

Veremos um exemplo desta literatura ignorada pelos que estão de fora, analisando
alguns excertos do livro Hegemonia e Estratégia Socialista, publicado em 1985 e escrito por
Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, professores de teoria política na Inglaterra mas que, na
verdade, actuam como estrategistas da esquerda. Eles usam uma linguagem abstracta de uma
presunção formidável, que esconde não apenas a banalidade do que dizem mas também a
monstruosidade das suas propostas, servindo isto não apenas para enganar os outros mas
também a si mesmos. Começam por discutir o problema da hegemonia:

«Como tem de ser a relação entre entidades para que uma relação hegemónica
torne-se possível? Esta condição tem de ser aquela em que uma força social
particular assume a representação de uma totalidade que é radicalmente
incomensurável com ela (...). Este é o ponto em que a noção do social concebida
como um espaço discursivo torna-se de importância primordial. (...) As três maiores
correntes intelectuais do século XX — a filosofia analítica, a fenomenologia e o
estruturalismo —, começaram com uma ilusão da imediatez, de um acesso não-
discursivamente mediado às coisas em si mesmas (...) Nas três, no entanto, essa
ilusão da imediatez dissolveu-se e teve de ser substituída por uma forma ou outra de
mediação discursiva. Isto foi o que aconteceu na filosofia analítica com o trabalho de
Wittgenstein, na fenomenologia com a analítica existencial de Heidegger, e no
estruturalismo com a crítica pós-estruturalista do signo. É também, na nossa opinião,
o que aconteceu na epistemologia com o verificacionismo transicional — Popper,
Kuhn e Feyerabend — e no marxismo com o trabalho de Gramsci».

Traduzindo isto para linguagem clara, eles estão a dizer que a hegemonia é o controlo
mental que uma facção exerce sobre o conjunto da sociedade. Esta facção não precisa de ter o
controlo político, basta que consiga pré-moldar o debate e as reacções de todos, incluindo dos
adversários, e assim consegue encaminhar o conjunto na direcção que ela pretende. Um
grupo de poucos milhares de pessoas fala e age como se representasse os interesses uma
totalidade “absolutamente incomensurável com ela”, o que obviamente requer um certo
treino do fingimento. Mas isto não seria possível se o espaço social fosse concebido na óptica
de Marx, como um conjunto de esforços físicos realizados para a apropriação da Natureza,
isto é, como um conjunto de esforços humanos reais onde bens são conquistados e
distribuídos. Então, a sociedade passa a ser vista apenas como um espaço discursivo, não
interessando mais o processo de produção e a relação física entre o homem e a Natureza, em
suma, deixa de ser relevante aquilo que as pessoas realmente fazem.

As três correntes principais de ideias do século XX – a filosofia analítica, a


fenomenologia e o estruturalismo (depois os autores alargam a conclusão para o marxismo e
para a epistemologia) – começaram por um conhecimento original não mediado pelo
discurso, mas fracassaram e concluíram que não existe acesso às coisas mesmas, apenas ao
discurso, e que tudo o que podemos conhecer está dentro de um campo linguístico pré-
determinado. Claro que isto é impossível porque, desde logo, o discurso chega-nos como som
e imagem, além de que signo, significado e referente são elementos pré-discursivos, e se não
conseguíssemos distingui-los não existiria discurso.
236

Eles dizem que as principais correntes de ideias partiram de uma “ilusão da


imediatez”, ou seja, de que era possível ir às coisas mesmas e obter conhecimento delas fora
da mediação discursiva. Mas esta ilusão “teve de ser substituída por uma forma ou outra de
mediação discursiva. Isto foi o que aconteceu na filosofia analítica com o trabalho de
Wittgenstein, na fenomenologia com a analítica existencial de Heidegger e no estruturalismo
com a crítica pós-estruturalista do signo [Derrida]”, e isto também teria ocorrido na
epistemologia graças a Popper, Kuhn e Paul Feyeraben, e no marxismo com Antonio
Gramsci. Este último fez recuar para a sombra bastantes elementos marxistas, como a
estrutura de classe ou os modos de produção, e realçou a ideia da sociedade como sendo
fundamentalmente uma rede de discursos. Mais uns trechos:

«(...) Mas o pós- estruturalismo é o terreno no qual encontramos a fonte principal da


reflexão teorética e, dentro do pós-estruturalismo, especialmente o
desconstrucionismo e a teoria lacaniana. Para o desconstrucionismo, a noção da
indecibilidade foi crucial (...), reencontrando um ato de instituição política que
encontra a sua fonte e motivação em nenhuma outra parte, exceto nela mesma (...)
A categoria de significante-mestre (a categoria de Lacan) envolve a noção de que um
elemento particular assume uma função estruturante universal dentro de um certo
campo discursivo (...) sem que a particularidade daquele elemento per se
predetermine tal função. (...) Isso permite pensar transições hegemônicas que são
inteiramente dependentes das articulações políticas, e não de entidades constituídas
fora do campo político — como é o interesse de classe. De fato, as articulações
política-hegemônicas criam retroativamente os interesses que elas afirmam
representar.

(...) A condição da indecibilidade estrutural é a condição mesma da hegemonia. Se a


objetividade social, através de suas leis internas, determinasse qualquer arranjo
estrutural, não haveria espaço para a rearticulação hegemônica contingente — nem
de fato para a política como atividade autônoma».

Quando eles dizem que, como base de criação de uma nova noção de hegemonia, “um
elemento particular [um certo grupo] adquiriu uma significação estruturante universal, sem
que nada nesse grupo ou nesse elemento pré-determine essa função”, simplesmente estão a
dizer que a afirmação do grupo como hegemónico é arbitrária. Esta não era a visão de Marx,
para quem o proletariado só podia ter a hegemonia porque tem nas mãos a força de
produção, enquanto a burguesia tem com a Natureza apenas uma relação simbólica, jurídica
ou administrativa. Mas para Ernesto Laclau e Chantal Mouffe já não é assim e o grupo ou
elemento que se torne hegemónico não tem de ter nada que o pré-determine a tal porque o
processo já não se dá na esfera material mas no plano discursivo.

Então, podemos pensar “em transições hegemónicas que são inteiramente


dependentes das articulações políticas, e não de entidades constituídas fora do campo
político”. Marx via o Partido como uma articulação política construída em cima de uma
articulação extrapolítica, isto é, como baseado numa articulação socioeconómica que reflecte
a posição real do proletariado no processo de produção. Mas como para estes autores o
campo social é apenas um campo discursivo (que elimina o referente), o único problema é
saber como dominar o discurso. Deste modo, o grupo pode tornar-se hegemónico mesmo não
tendo “nenhuma característica que dependa de elementos fora da política” simplesmente
237

porque decreta a sua própria hegemonia. Algo assim já acontecia como o Partido Comunista
soviético no tempo de Lenine, que dizia que representava os interesses do proletariado, que
realmente tinha interesses mas não tão reais quanto Lenine imaginava.

Chegamos à frase decisiva: “De facto, as articulações político-hegemónicas criam


retroactivamente os elementos que afirmam representar”. Então, não existe qualquer
interesse económico ou social objectivo representado por um grupo, mas quando um grupo
se torna hegemónico por domínio do discurso, em seguida cria os interesses objectivos em
nome dos quais diz estar agindo desde o início.

Antes de existir movimento gay, as práticas homossexuais eram apenas do interesse


individual de umas poucas pessoas, não existia um interesse objectivo numa política gay. O
movimento gay começou por denunciar e oprimir os seus próprios membros virtuais, como
se todos fossem militantes em potencial. Aos poucos foram criando uma rede de interesses
objectivos, metendo verbas, lugares privilegiados, etc. Estes interesses não existiam
inicialmente, apenas havia o grupo com o seu próprio interesse de chegar ao poder. Depois,
exercendo hegemonia discursiva – falando em nome de uma totalidade que realmente não
representa – o grupo cria os interesses sociais que a sustenta. Este é o padrão de
funcionamento da política mundial hoje em dia.

O globalismo é imposto da mesma maneira. Não existe um interesse por parte das
nações de serem dissolvidas e serem governadas desde fora por estrangeiros, que falam outra
língua e têm outra cultura. Mas quando se cria um certo número de entidades, organizações e
empresas vinculadas ao “interesse global”, estas começam a criar o interesse que
retroactivamente passa a ser representado pelo detentor da hegemonia discursiva. Quando
uma série de cientistas, empresas e organizações vincula-se ao mito do Aquecimento Global,
toda uma rede de interesses seria destruída se a farsa fosse assumida, pelo que resta apenas a
fuga em frente e a defesa de um interesse que inicialmente não existia. A política, como uma
fabricação retroactiva de interesses inexistentes, torna-se num hospício, em que tudo passa a
ser profecia auto-realizável.

A Estratégia Cloward e Piven foi criada na mesma altura que esta ideia de hegemonia
que estamos a ver e tem algumas semelhanças com ela. Eles viram que a previdência social
tinha uma certa lista de deveres mas que relativamente poucas pessoas os reclamavam os
direitos correspondentes, porque na verdade não precisavam deles, especialmente nos EUA,
onde havia uma tradição de autonomia individual. Então, eles perceberam que bastava que
50% das pessoas que tinham estes direitos (que iam muito além da mera sobrevivência e da
assistência médica) se inscrevessem na previdência social e o resultado seria que não iria
haver dinheiro suficiente e seria criada uma crise. Passadas algumas décadas, as pessoas que
não queriam esses direito passaram a querê-los, criando-se assim retroactivamente uma rede
de interesses que, inicialmente, um certo grupo dizia representar mas tratava-se apenas de
um bando de agitadores. O mundo está cheio de pessoas que se oferecem para resolver
problemas inexistentes, tentando representar categorias sociais inexistentes mas que
retroactivamente criam, pelo discurso, os interesses que as mantém no poder.

Olhando em termos gerais, temos uma peculiar evolução do marxismo. Marx


acreditava estar descrevendo a sociedade como ela realmente é, desde uma base material, que
é a apropriação da natureza, até à sua transformação em bens. Século e meio depois chega-se
a um ponto em que se diz não existe objetividade na sociedade, nem base material alguma,
apenas existe a sociedade concebida como um universo de discurso. Parece que já não
238

existem mais pontos em comum entre as duas versões, mas ainda existem dois, que dizem
respeito à unidade da lógica interna. Primeiro, temos as inversões revolucionárias nos dois
casos. Em segundo lugar, na sua História, o Partido Comunista e outras organizações
revolucionárias já perseguiam o conceito de hegemonia que aqui vemos, apenas não de forma
explícita e não tão bem organizada: ser uma criação retroactiva de um interesse que os
sustenta. Foi precisamente quando o movimento revolucionário parecia estar se
desmantelando, em 1985, que Laclau e Mouffe tornaram explícita esta ideia da hegemonia,
inoculando em muitos a nova estratégia correspondente e dando um novo alento ao
movimento revolucionário. α74

240. O progresso da ignorância e o conflito de culturas


Coisas como a concepção de hegemonia de Laclau [239] resultaram do efeito de longo
prazo de filosofias falsas e fraudulentas, como as de Wittgenstein e a de Heidegger. Eles
parecem que nunca examinaram a história de como certas ideias lhe chegaram à cabeça. O
establishment filosófico académico há séculos que despreza a contemplação da experiência
real, contribuindo para as pessoas se manterem alheadas dela. Outra consequência deste
estado de coisas é a perda de um conjunto enorme de conhecimentos, como evidenciou Jean
Fourastié (Les Conditions de l’Esprit Scientifique). Ele mostra que o progresso do
conhecimento é acompanhado pari passu por um progresso do esquecimento (que é um
progresso da ignorância). Acontecem mutações no cenário cultural e no debate público que
fazem com que certas coisas que estavam em voga sejam esquecidas: perde-se o interesse por
elas, começando a falar de outras coisas, sem que o anterior tenha sido refutado ou
impugnado.

Philippe Rivière e Laurent Danchin (Linguistique et Culture Nouvelle) falam de duas


culturas que se enfrentam (o livro é de 1971, enfocando o ambiente cultural francês). Uma era
a cultura tradicional, baseada numa distinção entre ordem científica e ordem literária (sendo
esta última a privilegiada na França). A cultura literária tomava emprestados os modelos da
filosofia tradicional, da literatura e do sistema clássico das artes, pintura, teatro, música
erudita, etc. Esta cultura era fornecida pelo sistema escolar, apesar de já nesta altura este
estar bastante alterado relativamente a um passado recente. De outra parte, havia uma
cultura nova, extra-escolar, com uma infra-estrutura ligada à revolução tecnológica e
científica. Esta cultura criava um novo sistema de artes (cinema, banda desenhada, design
industrial, música pop, arquitectura, urbanismo) e tomava emprestadas as técnicas de
pensamento das linguagens das ciências, das matemáticas modernas, da física, da biologia e
das ciências humanas. Acrescentam que o enfrentamento destas duas culturas abria uma
crise que apenas era vivida existencialmente no seu nível mais significativo por uma geração
moldada desde a infância pela mass media.

Acontece que se as pessoas que entram num novo campo cultural perdem de vista o
anterior, então, não há um acréscimo mas uma troca, e a alta cultura anterior torna-se
incompreensível, o que quer dizer que há um esquecimento sistemático das origens da
própria situação em que as pessoas vivem.

Dizem Revière e Danchin que para os jovens que notam a sobrevivência de uma
cultura passada, numa linguagem oficial, mas que lhes parece desfasada daquilo a que “tende
a se transformar no novo ambiente”, o que há a fazer é “trabalhar para substituir uma
problemática morta, igual e inadequada à nova realidade por uma problemática cujo critério
239

de validade torna-se a sua adequação ao real”. Mas percebemos que a adequação ao real é
apenas uma adequação à nova situação que nós criamos, e a antiga parece morta porque já
estamos vivendo noutra. Isto é a hegemonia da mediação discursiva: criamos um novo
campo discursivo que se transforma na atmosfera onde vivemos realmente e, então,
concluímos que só têm valor os produtos culturais adequados à nova situação, precisamente
os que permitem expressar que vivemos nesta mesma situação.

Mais do que esquecimento, isto é neurose. Mas diz Thomas Kuhn que – e aplaude em
As Estruturas das Revoluções Científicas – a ciência “progride” desta maneira. Obviamente
que não tem sentido considerar como progresso um esquecimento de uma antiga situação e a
criação de uma nova por meio do discurso, onde as pessoas são forçadas a entrar e criam,
então, novos produtos que a expressam. Mas por que não experimentar olhar o presente com
os olhos do passado? Por exemplo, muitos intérpretes actuais não entendem Platão, mas este
criou conceitos e esquemas que permitem explicar o que estes intérpretes estão fazendo.
Saussure diz que o símbolo é arbitrário, mas Platão já tinha chegado a uma solução muito
mais satisfatória, no Crátilo: alguns signos são arbitrários e outros não. Ao estudar o
simbolismo de várias culturas, constatamos que não existe uma total arbitrariedade, por
exemplo, o sol é normalmente significador da inteligência, do conhecimento e da consciência
(na antiguidade, ainda com um reduzido domínio do fogo, a ausência de sol significava não
ver). Ter consciência que se vê e ter consciência da presença da luz solar são duas coisas que
ocorrem em simultâneo, por isso, o sol é um signo natural. α74

[Aula 75]

241. Estudo de um filósofo em profundidade


Já fomos alertados de que a melhor maneira de estudar filosofia é fazer uma
abordagem por problemas [74], mas um dia vamos ter de estudar um filósofo a fundo: é algo
que faz parte integrante da nossa formação. Sem isto nunca teremos firmeza suficiente para
nos posicionarmos face a nenhuma questão filosófica.

Primeiro, temos de conhecer o sistema do filósofo, ou seja, o conjunto das suas ideias
tal como se articulam logicamente e cronologicamente. Marcel Guéroult deu um modelo de
como isso se faz no livro Descartes segundo a Ordem das Razões. Se um indivíduo é um
filósofo, ele não terá apenas um conjunto de ideias soltas mas estará em busca de uma
unidade, de uma coerência, e a primeira providência é tentar captar isto. Para isso, temos que
ler tudo o que o filósofo escreveu, mesmo coisas inéditas e escritos que parecem não ter
muita importância. O ponto de vista cronológico é útil para perceber como se formaram as
ideias, onde apareceram as intuições iniciais que depois o filósofo pode ter passado o resto da
vida tentando expressar. Estes são pontos de articulação difíceis de apreender se não temos
uma noção adequada da cronologia do filósofo. Mas temos de ter atenção de que a ordem de
publicação pode não corresponder à ordem de produção, pelo que por vezes apenas podemos
captar o problema da ordem cronológica.

Quando é feito este primeiro trabalho, que já é bastante moroso, devem surgir várias
questões. A primeira pergunta é saber com quem o filósofo estava dialogando. Começamos
240

assim a sair do estudo interno da filosofia do sujeito e passamos para um estudo da história
das ideias ou de história da filosofia, como vimos nas aulas anteriores acompanhando Dardo
Scavino (La Filosofia Actual). Há uma atmosfera imediata que rodeia o filósofo, que lhe
coloca estímulos e ele responde. Sabemos que Aristóteles “debatia” com Platão, embora até
hoje não há certeza se entre os dois há uma ruptura completa ou uma harmonia de fundo.

Para além deste ambiente imediato, temos de sondar também o ambiente mediato do
filósofo, isto é, o meio social e cultural de onde o filósofo recebeu a linguagem, os exemplos
de que se usa e toda uma série de elementos – símbolos, valores, hábitos, etc. – que formam a
sua mentalidade passivamente (coisas absorvidas sobre as quais, em geral, não procedeu a
um exame crítico). Aquilo que absorvemos torna-se num componente nosso, ainda que não o
tenhamos escolhido. Devemos distinguir no filósofo o seu pensamento destes elementos,
sabendo que há uma parte em que as duas coisas estão misturadas de tal forma que não dá
mais para saber o que era pessoal no indivíduo e o que era impregnação do meio. Se vamos
estudar Platão ou Aristóteles, vamos ter que saber um mínimo de grego clássico – alfabeto e
algo da gramática – porque só assim conseguimos esclarecer satisfatoriamente alguns
pontos.

Numa quarta fase, vamos ainda mais além e tentamos perceber a influência no
filósofo de um ambiente ainda mais remoto, que já não são influências directamente
actuantes no seu meio mas que é uma certa incorporação numa linhagem histórica, recebida
por tradição.

Resta ainda articular o pensamento do filósofo com tudo o que veio depois, ou seja,
saber como ele foi lido, ter uma ideia da história das interpretações a seu respeito. No caso de
Aristóteles, existe uma tradição de estudos a seu respeito com quase 2400 anos, que é
inabarcável e naturalmente nos obriga a fazer alguma selecção, nunca podendo deixar de fora
os comentadores clássicos, a começar por Porfírio e Alexandre de Afrodísias, e depois é
necessário ter uma ideia da continuidade bibliográfica. Obviamente que se vai encontrar
muita coisa repetida, assim como comentadores defrontando-se com problemas que já foram
resolvidos há muito tempo.

Existe um problema transversal em todas estas fases: o filósofo lida frequentemente


com problemas tirados de várias disciplinas, algumas que podem ter sido criadas por ele,
como no caso de Aristóteles. Então, vamos ter de estudar algo destas disciplinas. No caso de
Platão (matemática, geometria) e Aristóteles (biologia, física, astronomia, etc.) bastam alguns
conhecimentos elementares, porque se tratavam de disciplinas que estavam nos seus
primórdios, mas também temos de ter uma ideia da evolução que elas tiveram para conseguir
perceber o valor das conquistas da época. No caso de Aristóteles, só conseguimos situá-lo
dentro da história da filosofia se o situarmos também dentro da história das ciências.

Depois de fazermos este estudo a fundo em relação a um filósofo, podemos fazer o


mesmo em relação a uma escola ou a respeito de uma época filosófica (na realidade, temos de
fazer o mesmo trabalho em relação a todos os filósofos, só que de forma resumida),
acompanhar os seus passos desde a origem até ao desaparecimento ou fusão com outras
correntes. Não conseguimos estudar um filósofo a fundo em menos de dois anos, mas não
quer dizer que o estudo de uma escola demore esse tempo multiplicado pelo número de
filósofos que a compõem. Não apenas o processo se automatiza como desenvolvemos uma
espécie de capacidade divinatória de antever o que as pessoas irão dizer sobre os filósofos. Se
quisermos abordar a filosofia moderna, que desembocou no pós-modernismo, vamos ter de
241

estudar alguma coisa de linguística e de lógica matemática. Pode acontecer que o estudo de
algumas disciplinas, onde embarcamos para conhecer um filósofo ou uma escola, se revele
muito estéril, mas ainda assim é necessário para compreender o processo histórico real. α75

242. A diferença entre a perspectiva religiosa e a perspectiva filosófica


Algumas pessoas podem ter a tentação de confrontar a investigação filosófica com a
doutrina da Igreja (dogma, sentenças papais, conclusões dos concílios, ensinos dos doutores
da Igreja). Contudo, é um erro de perspectiva apontar erros e heresias à investigação
filosófica desde o ponto de vista religioso. É preciso notar, desde logo, que a doutrina da
Igreja não nasceu pronta – nem sequer está hoje concluída – mas formou-se ao longo de
enormes controvérsias. E mesmo quando as conclusões se consolidam em dogma, a
compreensão deste é muito problemática. A Igreja levou séculos a chegar a certas conclusões,
prosseguindo de forma dialéctica, como na filosofia. Então, não tem sentido que esta última
chegue rapidamente a conclusões, até porque a filosofia está destinada a continuar sempre,
podendo sempre ocorrer alterações, e há filosofias que terminam não com conclusões mas
com um problema, como em Aristóteles. Ao invés de usarmos o dogma como arma de
arremesso (e para tal nem sequer é necessário compreendê-lo), é mais útil usá-lo como uma
espécie de sinal de trânsito, como um guia.

Quando a Inquisição foi fundada, o inquisidor procurava o suspeito de heresia,


conversava longamente com ele, via se os seus escritos apresentavam algo como conclusão
final, porque só assim podia haver acusação de heresia. Hoje, qualquer um pega num escrito
(nem precisa ser teológico, pode ser filosófico ou político) e toma-o como se fosse material
dogmático e logo chovem as acusações de heresia. Mas só pode haver heresia em algo que se
proclama como doutrina católica ou, então, relativamente alguma coisa que se apresenta
explicitamente contrária a ela. α75

243. Religião e ideologia


No livro Filosofia da Crise, Mário Ferreira dos Santos diz que ainda há religiosidade
nos movimentos socialistas e que há socialistas que desejam só o amor. Esta é uma impressão
que ele teve, que corresponde a alguns factos, já que existem socialistas motivados pelo amor,
mas não deriva de um estudo sistemático a respeito da ideologia socialista. Contudo, a
identificação entre ideologia e religião não é válida. Um indivíduo adere a uma religião
porque acredita naquilo que ela representa, mas a adesão à ideologia não é uma questão de
fé, é um acto de inserção num tecido de relações sociais. Por isso, Aleksandr Zinoviev diz que
numa religião crê-se, uma ideologia adopta-se. As zonas de intercessão entre elas não fazem
parte da natureza do objecto.

Uma ideologia revolucionária é uma promessa de futuro, mas não é possível acreditar
numa religião futura. A religião baseia-se em elementos passados, numa revelação. O
socialismo é uma hipótese futura. Neste aspecto, são duas coisas contraditórias. O
comprometimento pessoal vai ser também distinto. Na religião há a continuação de uma
História passada, o sujeito constitui-se como fiel inserindo-se na tradição. No movimento
revolucionário não há a fidelidade a uma tradição e o indivíduo tem que estar predisposto a
criar uma coisa totalmente nova. Na religião a fé tem de ser profunda e genuína, mas ter fé na
ideologia é algo até difícil de definir. Marx, Lenine e Estaline desprezavam o elemento “fé”,
242

sendo para eles preferível um indivíduo oportunista que fosse útil do que um militante
sincero mas inepto.

O próprio tipo de sociedade que a religião e a ideologia inspiram são totalmente


diferentes. A religião acrescenta em cima da mentalidade comunal, descrita por Aleksandr
Zinoviev [231], uma série de valores mais elevados e permite que outros entrem também em
acção (elementos jurídicos, hábitos e costumes, etc.), criando-se assim as civilizações.
Zinoviev diz que a sociedade comunista é precisamente aquela em que só existe mentalidade
comunal e isto não acontece por acidente. A ideologia comunista baseia-se na ideia de
repartição de bens materiais, uma ideia desconhecida nas concepções antigas. Mas a busca de
igualdade é uma regra comunal, porque uma sociedade apenas se pode erguer se tiver uma
hierarquia definida. A sociedade comunista acaba mesmo por criar a mais rígida das
hierarquias, com uns privilegiados assegurando a igualdade dos restantes, que não têm
qualquer possibilidade de superar a sua condição. Alerta Zinoviev que quando as pessoas
entram na sociedade, os melhores lugares já estão ocupados. Na sociedade comunista ainda é
pior porque o único meio de ascensão é o Partido Comunista. Então, ou as pessoas se
resignam a não ser “nada” ou lançam-se numa competição de vida ou de morte para ascender
dentro do Partido. O amor é totalmente irrelevante neste meio e tende mesmo a desaparecer
por completo. Contudo, podemos ver os comunistas operando por amor nas sociedade
democratas e acreditar que tal continuaria a suceder se sociedade fosse socialista, talvez até
muito intensificado, mas na realidade acontece exactamente o oposto. α75

[Aula 76]

244. Máscaras de Descartes (Étienne Couvert)


O método de análise de textos é insuficiente em filosofia não apenas porque o texto
muitas vezes não é uma imagem fidedigna do pensamento do filósofo [232] mas porque este
pode mesmo ser uma sua camuflagem. Leo Strauss apresentou estudos a respeito da
camuflagem em Espinosa e Maquiavel, mas aquilo que acontece com Descartes é mais subtil
e perverso. Há um depoimento dele que é bastante sugestivo (do livro de Étienne Couvert Da
Gnose ao Ecumenismo, primeiro volume, capítulo 4):

«Do mesmo modo que os atores prudentes, para que ninguém veja a vergonha que
sobe à sua face, se vestem do seu papel, do mesmo modo, no momento em que vou
subir à cena do mundo da qual até agora não fui senão espectador, eu caminho
mascarado».

Descartes fala da sua aparição pública através da publicação das suas obras (“subir à
cena do mundo”), o que ocorreu já na sua maturidade, tendo levado antes uma vida
relativamente obscura. A decisão de Descartes aparecer mascarado nesta altura costuma ser
atribuída a um temor em relação à Inquisição. Contudo, ele sempre disse que o seu trabalho
visava fazer uma apologia da religião cristã, e na Holanda, onde desempenhou a parte
decisiva do seu trabalho, estava muito bem integrado no meio protestante (apesar de sempre
se dizer católico), chegando mesmo a fazer amizade com a rainha Catarina da Suécia, pelo
que nada tinha a temer do Santo Ofício. A camuflagem não se devia a algum temor mas ao
243

facto da sua obra ter uma finalidade distinta daquela que tinha sido declarada. As pessoas
acreditam espontaneamente que as obras filosóficas estão colocadas predominantemente na
clave denominativa, que são conjuntos de sentenças sobre a realidade das coisas, mas por
baixo disto pode haver uma tentativa de desencadear um certo efeito, assim, podemos
constatar que é a função apelativa que predomina nalguns casos. Por vezes, a acção pode ser
tão subtil que os efeitos só se tornem visíveis ao fim de vários séculos, e só aí compreendemos
do espírito que orientava os esforços do filósofo.

Mas isto não significa que devemos logo partir para uma busca da função apelativa no
texto. Vamos fazer isso quando a leitura na camada denominativa apresenta muitas
contradições e impossibilidades que não podem ser explicadas por inépcia do filósofo. Aí,
podemos começar a suspeitar que ele pretende provocar efeitos de outra ordem, política,
cultural, religiosa, etc. Já vimos anteriormente que os sonhos de Descartes dão uma pista da
origem da ideia do cogito [232], o que também ajuda a explicar a sua máscara. Diz Étienne
Couvert, na continuação:

«Em 10 de novembro de 1619, Descartes se encontrava na Suábia, onde teve contato


com vários membros de uma seita de tipo rosacruciana. E a um desses membros,
Isaac Beeckman, ele disse o seguinte: ‘Eu estava adormecido e você me despertou’».

Então, Descartes teve alguma iniciação e teve uma espécie de iluminação gnóstica. No
dia 10 de Novembro de 1619 sonhou que estava a caminho da capela do colégio La Fleche
(seminário jesuíta onda havia estudado), mas, estranhamente, era um espírito mau que o
encaminhava para a igreja, quando um vento impetuoso o desviou. Esse vento era o “espírito
da verdade” que descia sobre ele para possuí-lo. Surgiu no ar o verso: “quod vitae sectabor
iter?” (que caminho de vida devo seguir?) Depois as palavras “est et non” (“sim e não”), que
Descartes dá uma interpretação pitagórica ou quase parmenídica (existe o caminho da
verdade e o caminho da falsidade). Então, ele sai do caminho e diz que tem “um brusco e
súbito deslumbramento”. Percebemos que aqui estavam condensadas as intuições filosóficas
que iria depois desenvolver.

A primeira estranheza neste relato é que Descartes diz que um espírito mau
encaminhava-o para a igreja, e que era o espírito da verdade, presentificado pelo vento, que o
desviava dela. Isto não faz sentido em alguém que sempre se disse católico e que trabalhou
em prol da fé cristã. O que o vento fez foi desviar a atenção de Descartes em relação àquilo
que ele pretendia fazer, e é também uma acção desde género – desvio de atenção – que ele
fará com os seus leitores. O que aconteceu nesta época não foi uma contestação da tradição
aristotélico-escolástica mas um desvio e um passar a dar atenção a outras coisas. Apareceu
um novo paradigma que obrigava a colocar questões adequadas a ele.

Sob uma aparência de ortodoxia, Descartes lançou ideias que iriam mudar a noção
das relações entre Deus e o mundo criado, cujas consequências se propagam até hoje. Ele
disse explicitamente: “Que me dêem a extensão e o movimento e refarei o mundo”. A
extensão e o movimento são as bases com que Deus fez o mundo, mas se tivermos controlo
destes elementos poderíamos recriar o mundo. Mas ele vai mais longe:

«Ainda que a vontade de Deus tenha uma potência material incomparavelmente


maior do que a minha, nem por isso deixa de ser verdade que ela espiritualmente
não é maior do que a minha, na medida em que a minha vontade é o poder de fazer
uma coisa ou deixar de fazê-la, de afirmar ou negar, de seguir em frente ou fugir».
244

Assim, a diferença entre Deus e o homem fica reduzida ao mínimo, apenas a uma
questão de força física. Mas Deus não criou apenas o mundo físico, criou também todo o
mundo espiritual e Descartes não podia criar um anjo, por exemplo. Para São Tomás de
Aquino, o mundo material só apareceu depois de toda uma estruturação das hierarquias
angélicas, que criaram o campo da possibilidade dentro do qual seria possível a criação do
mundo material. Descartes salta sobre isto e cria um dualismo: de um lado um Deus
puramente espiritual, que tem um misterioso controlo sobre o mundo material, do outro lado
o espírito humano com poderes da mesma ordem. Aparece também aqui uma separação
absoluta entre espírito e matéria, sem mediação, sendo a única função de Deus a criação do
mundo material. Mas este mundo, uma vez constituído, tem as suas próprias leis que
funcionam indefinidamente por si mesmas, pelo que Descartes acaba por eliminar a
Providência.

Diz Étienne Couvert que, para Descartes, Deus ultrapassa o homem apenas pela
criação da matéria, então, o espírito é totalmente reduzido à vontade e esta reduzida “à
indiferença do julgamento em relação aos bens particulares finitos e limitados”. Assim, não
existem mais bens objectivos que determinem a vontade e estamos livres para escolher o que
quisermos. Na concepção tradicional existe uma escala objectiva de bens que não são
determinados pela vontade, e esta não é totalmente livre porque é limitada pelo intelecto, que
percebe na constituição dos entes o que eles têm de bem e de mal. É fácil perceber que as
consequências das nossas escolhas não são determinadas pela nossa vontade. A graduação do
bem objectivo faz parte da criação, mas em Descartes isso desparece e resta apenas, por um
lado, um mundo composto de extensão e movimento e, por outro, uma vontade
absolutamente livre e não determinada por nenhuma escala objectiva de bem e de mal,
porque para ele o mundo não tem um significado moral alheio ao homem. Descartes é neste
aspecto um percursor de Nietzsche, com uma moral de tipo voluntarista, mais baseada na
vontade do que na razão. Prossegue Couvert:

«Descartes não compreendeu aqui a analogia do ser, que é uma similitude e não uma
igualdade nas relações, ao passo que os termos relacionados são radicalmente
heterogéneos».

Realmente existe uma analogia entre Deus e o homem, porque este último também
“cria”, embora o mais certo é dizer que fabrica algo, ele opera sobre elementos recebidos do
mundo externo. O homem está um patamar acima dos animais, que constroem coisas sempre
iguais, não acrescentam realmente algo à Natureza, ao passo que o ser humano procura
sempre novas maneiras de produzir algo que não existe no mundo natural. Mas isto está
muito aquém do que Deus faz: Ele cria a partir do nada. Diz Couvert que a diferença entre
criar e fabricar não é de grau mas de natureza. Acontece que:

«No entanto, a analogia incide sobre a relação que existe entre o criador e sua
criação, por um lado, e entre o obreiro e sua obra, por outro lado».

Embora Descartes até acredite num universo que é criação permanente de Deus, ele já
introduz um elemento que permite o advento da ideia do Deus-relojoeiro, de um universo
que funciona autonomamente segundo um mecanismo newtoniano, como será exposto por
Voltaire. Então:
245

«A partil dali, não é que a luz esclareça a coisa para que ela se torne visível, mas ela
esclarece o interior do nosso espírito, para que ele apreenda em si mesmo as ideias e
as formas das coisas».

Para Descartes, o supremo critério de veracidade é a clareza e a distinção das ideias.


Uma ideia é clara quando não se confunde com nenhuma outra, e é distinta quando as suas
partes não se confundem umas com as outras. Então, se Descartes concebe uma ideia com
plena clareza e distinção, ele admite que ela é verdadeira. Mas ele também considera que
todas as percepções que temos são ideias porque se passam na nossa mente. Mas a banana
que eu concebo não é como a banana real, que eu posso ver, pegar, comer, ou seja, os objectos
da vida real têm uma multilateralidade que a nossa mente não consegue reproduzir. O
critério de veracidade antigo dizia respeito ao acordo ou harmonia entre o que é pensado e o
que aparece no mundo exterior, mas Descartes cria um critério puramente interior e, assim, a
distinção e a clareza das ideias passam a ser os elementos fundantes da filosofia.

Assinala Étienne Couvert que a clareza e a distinção não são qualidades primárias que
possamos apreender desde o início, são antes o resultado de uma elaboração, de uma análise
crítica. Antes disso já temos milhares de percepções nos cercando. A experiência do ser não é
clara e nem distinta, é uma presença multitudinária e muitas vezes confusa, e o mesmo se
aplica a muitos dos nossos sentimentos, frequentemente difíceis de definir devido à mescla
de coisas que envolvem. Sem um aprendizado, não é possível fazer um exame crítico
retroactivo das ideias, e esse aprendizado depende da cultura adquirida e até do estudo da
filosofia, pelo que não estamos claramente em presença de um princípio fundante mas de
uma elaboração altamente complexa.

Nas Meditações Metafísicas, Descartes propõe-se a fazer uma autobiografia interior,


começando a falar do seu eu histórico, mas depois dá um salto e passa a falar de um eu
abstracto e universal. Ou seja, aparentemente sem perceber, passa de uma narrativa para
uma dedução lógica. Ele faz isso porque já não concebe a verdade como algo que chega
através da presença difusa de um universo inabarcável e frequentemente vago mas como algo
que surge através de ideias claras e distintas, sem parecer ter em conta do que é necessário
para que isso aconteça. Em primeiro lugar, existe a presença do ser, onde não se consegue
distinguir exactamente o que é a presença das coisas do que é a nossa presença às coisas.
Por exemplo, tememos algo porque a coisa é temível em si objectivamente ou porque o medo
está em nós?

Mas Descartes “inverte os termos” e tenta localizar o fundamento da verdade em


alguma característica interna do pensamento, que não podemos confundir com a busca de
fundamento de Santo Agostinho no interior de si mesmo. Vemos que isto já está dado na
experiência dos sonhos, que tanto lhe dizem que a verdade não está na igreja e nem no acto
de rezar mas na ideia clara e distinta, sugerida pelas palavras “sim e não”, mas percebemos
que não é algo que aparece na experiência primária da realidade. O que o “espírito da
verdade” conseguiu foi desviar Descartes de uma longa tradição, baseada na mediação das
ligações entre exterior e interior e que definia a verdade como uma espécie de coincidência
entre ambas. Esse espírito foi coloca-lo num mundo de verdade puras, claras e distintas,
onde o discernimento da verdade é feito pelo exame da mente por si mesma, sem ter em
conta com as relações com as coisas.

Espinoza vai levar isto às últimas consequências, dizendo que nada se aprende com a
experiência e que apenas através da pura análise dos conceitos se pode chegar à verdade,
246

dando vários exemplos de construções de tipo geométrico. Aparentemente, ele não se


apercebia de que apenas podia fazer essas construções mentais se tivesse recebido da
presença do ser os vários objectos cujas formas geométricas ele depois elabora.

Prossegue Étienne Couvert:

«Descartes quer ainda uma razão inteiramente pura – em estado de natureza, se


podemos falar assim – privada do socorro de um magistério que transmite uma
tradição recebida; o ensinamento de uma verdade buscada e estudada por outros
ante a qual a inteligência de cada um deve fazer um acto de humildade. A razão de
que fala Descartes é uma razão que ainda está privada do habitus».

O habitus são virtudes e capacidades desenvolvidas pelo exercício, pela atenção, pelo
esforço intelectual, mas Descartes parece acreditar que a capacidade da razão está dada
pronta de uma vez para sempre, desprezando a contribuição de muitas gerações que
precedem sempre qualquer pessoa. Ele percebe que certas relações matemáticas e
geométricas são independentes da mente que as concebe, mas para as ter conhecido isto teve
que aprender com alguém e, assim, apoiar-se num legado passado. Ele quer divinizar o “eu”
cognoscente, mas na prática não é isso que acontece:

«Quando Descartes quer introduzir o cogito como ponto de partida da sua filosofia,
ele deve, antes de tudo, rejeitar todos os conhecimentos anteriores na dúvida
metódica, como ele a chama, isto é, uma dúvida artificial e sistemática. Havia nessa
pretensão uma atitude absurda: não se produz à vontade, por uma decisão arbitrária,
o vazio do espírito».

Já vimos noutras ocasiões a impossibilidade da dúvida metódica: qualquer dúvida só


pode ser formulada a partir de uma série de coisas dadas como certas, ainda que
implicitamente. Então, a dúvida metódica é um fingimento em Descartes. Diz também
Couvert:

«Quando começamos a reflectir, a filosofar, temos uma matéria sobre a qual o nosso
espírito trabalha».

Esta matéria sobre o qual raciocinamos é constituída por todas as experiências


anteriores e pela estrutura do nosso próprio ser, mesmo as partes desconhecidas sobre nós
mesmos. Assim:

«Temos dados primeiros: objectos de conhecimento sobre os quais podemos


elaborar uma reflexão. Nunca se pensa o nada, mas pensa-se alguma coisa. Essa
posição da dúvida metódica pode-se dizer mas não se pode praticar».

O caminhar mascarado de Descartes aplica-se também a Maquiavel, Montaigne,


Galileu e Newton. A cultura moderna nasceu de um fingimento dos intelectuais, e nessa
altura apareceu também a cultura barroca, cuja metáfora dominante era a do mundo como
um teatro. Newton tem como premissas o espaço absoluto e o tempo absoluto, nada havendo
no primeiro e nada transcorrendo no segundo, e desenvolve a gravitação universal em cima
disto, mas na realidade não eram condições imprescindíveis. Tratavam-se de conceitos
relevantes para a sua concepção teológica de tipo islâmico, uma abolição da trindade.
Prossegue Couvert:
247

«Se podemos duvidar, como pretende Descartes, de todos os objectos reais que nos
rodeiam e que percebemos ao logo dos dias da existência, como poderíamos não
duvidar, com mais forte razão, de um mundo sobrenatural do qual não temos
nenhuma percepção directa?»

O que é natural é acreditar que estamos num mundo material e, acima dele, alguns
conseguem antever um mundo sobrenatural, mas Descartes inverte isto já que duvida do
mundo material mas nunca diz duvidar da existência de Deus. Mas mesmo para duvidar do
mundo material é preciso estar nele. Se duvidamos do que vemos, mais facilmente
duvidamos do que não vemos. Descartes diz que quer levar toda a gente para a Igreja, que a
existência de Deus é certa, mas ele criou um método para que as pessoas se afastem da Igreja
e de Deus, tal como no sonho o vento, encarnando o “espírito da verdade”, o afastou da igreja.

Fica a dúvida do porquê destes filósofos não dizerem ao que vêm mas optarem pelo
fingimento, pela encenação destinada a criar uma nova situação cultural, mas empiricamente
constatamos que isto remonta à gnose. Esta é tida como uma fusão de elementos orientais
com elementos gregos, judaicos, mas Étienne Couvert diz que, com a descoberta dos
manuscritos gnósticos em Nag-Hammadi, percebe-se que a gnose era algo completamente
novo, embora enfeitado de elementos de tradições anteriores para se cobrir de prestígio.
Supostamente, a gnose resumiria uma unidade de várias tradições, tendo patriarcas como
Orfeu, Moisés, Pitágoras, Buda, Cristo, etc. Mas isto é apenas um esforço retórico para criar
uma imagem fictícia.

Na Igreja dá-se Simão, o mago, como fundador na gnose, que teria oferecido dinheiro
a São Pedro para este lhe dar acesso aos mistérios de Cristo. Mas Cristo nunca deu acesso
directo ao conhecimento último da verdade, disse apenas que podemos chegar a Deus,
parcialmente, se agirmos de certa maneira. Sempre seremos imperfeitos e sempre viveremos
na insegurança, por isso, é necessária a fé para permanecermos fiéis aos momentos de
inspiração que tivemos e nos quais tivemos percepção da nossa imortalidade, mas que no
momento seguinte tendemos a esquecer. Simão achava que podia adquirir o conhecimento
dos mistérios de uma vez por todas, tendo depois controlo destes. É esta a ideia da gnose, que
René Guénon chamava de identidade suprema. Desde os primeiros séculos do cristianismo
que os gnósticos produziram uma infinidade de escritos, criando uma mitologia dos grandes
iniciados, que supostamente formariam uma cadeia única para transmitir a identidade
suprema.

Na época de Descartes ocorreu um enorme florescimento do gnosticismo e quase


todos os filósofos tiveram contacto com alguma organização secreta. Ali iludiam-se de
conseguir superar as incertezas e as fraquezas humanas e ainda de ter captado o próprio
espírito da verdade, tornando-se emissários do supremo mistério. Assim se inaugurou a
cultura moderna, que alguns séculos depois apenas podia resultar em guerras, loucura,
revoluções, drogas, genocídios, holocaustos… É preciso voltar às origens da cultura moderna
e desmascará-la. Mas temos de ter outro ponto de partida que não o ego cogito ou a certeza
matemática. Existe o cogito de Agostinho, que não é o “eu” que vê as coisas claras e distintas,
é o “eu” da confissão, que sabe o que fez e o que pensou, sendo o único que pode dizer a
verdade a respeito de si mesmo, ainda que sabendo que alberga mentira e fingimento, mas
são precisamente os antagonismos que começamos por confessar. A partir daqui temos o
método da confissão [7]. Na confissão reconhecemos realidades que não podemos mudar e
podemos aceitá-las como elementos internos da nossa consciência. Outro ponto de partida é
248

a presença do ser, de que fala Louis Lavelle, porque nunca tivemos um único instante no
vazio.

Descartes diz que vai entrar no método da dúvida sistemáticas mas, como continua a
viver e a tomar decisões, vai seguir uma moral provisória como se fosse verdadeira até poder
examinar os seus princípios. Repara Couvert nesta passagem de Descartes:

«Não seguir menos constantemente as opiniões mais duvidosas, uma vez que eu
estivesse determinado a isso, do que se elas fossem, ao contrário, muito seguras. E é
então uma verdade muito certa que quando não está em nosso poder discernir as
opiniões verdadeiras, devemos seguir as mais prováveis».

E questiona:

«Mas por que vou eu seguir os princípios da moral provisória? Como é que posso
fazer isto pela razão quando não há nenhuma razão determinante de que essas
regras sejam seguidas? Por que estas regras e não aquelas?»

Não há um motivo racional para orientar a nossa conduta, é outra coisa, e no fundo a
apologia do conhecimento racional tem um fundamento totalmente irracional. Bossuet de
início não via nada de mal em Descartes, mas depois percebeu o perigo:

«Vejo um grande combate preparar-se contra a Igreja sob o nome da filosofia


cartesiana. Vejo nascer de seu seio e dos seus princípios mais de uma heresia e
prevejo que as consequências que se tiram daí contra os dogmas que nossos pais
sustentaram vão tornar a Igreja odiosa e fazê-la perder todo o fruto que ela podia
esperar para estabelecer no espírito dos filósofos a divindade e a imortalidade da
alma. Destes mesmos princípios, outro inconveniente terrível conquista
insensivelmente os espíritos, pois sob o pretexto de que não se deve admitir senão
aquilo que se entende claramente – o que, reduzido a certos limites, é muito
verdadeiro –, cada um se arroga a liberdade de dizer: entendo isto e não entendo
aquilo. E com base neste único fundamento aprova-se ou rejeita-se tudo o que se vê,
sem pensar que além de nossas ideias claras e distintas, há outras ideias, confusas e
gerais, que não deixam de encerrar verdade tão essenciais que as negando
subverteríamos tudo».

A presença do ser é a primeira coisa que nos chega e que não temos como negar, no
entanto, não temos nada menos claro e indistinto. Mas Descartes faz uma inversão e coloca
uma simples operação mental em primeiro lugar, como se fosse o fundamento de tudo.
Então, a possibilidade de montar certas teses filosóficas como argumentos torna-se mais
importante do que o reconhecimento daquilo que já sabemos. A argumentação ganha
predomínio sobre a percepção e isso impregnou-se de tal forma na cultura que a prova é tida
como mais importante que o conhecimento. Contudo, não temos o direito de negar uma
verdade incerta em nome da busca da certeza.

Étienne Couvert achou as frases decisivas sobre a moral provisória de Descartes:

«Adoptar a moral provisória libertou-me de todos aqueles arrependimentos e


remorsos que costumam agitar as consciências daqueles espíritos fracos e
249

cambaleantes que se deixam constantemente levar a praticar como boas as coisas


que eles julgam ser más».

No fundo, Descartes quer viver sem culpas, livrar-se completamente não apenas da
possibilidade de culpa mas da própria incerteza, chegar à verdade última e definitiva. Ficar
acima do Bem e do Mal é o sonho gnóstico, e é essa a mensagem real que Descartes
transmite. Ele fez isso de forma mascarada não por temer o Santo Ofício, que não podia
alcança-lo na Holanda, mas porque se dissesse a coisa explícita, esta não iria penetrar tão
facilmente e levantaria uma série de reacções. Passados alguns séculos, o cartesianismo
penetrou em todo o ensino, fazendo submergir a escolástica. Os próprios religiosos ficaram
infectados de cartesianismo e, segundo a dúvida metódica, passaram a tomar Deus apenas
como um objecto de fé cega, criando um abismo entre fé e conhecimento, que são coisas que
realmente não podem existir separadamente. É impossível um sujeito ter fé em algo de que
nunca ouviu falar ou em relação ao qual não teve qualquer experiencia a respeito, assim como
quem busca conhecimento não consegue dar prova a cada momento de todos os
conhecimentos em que se apoia, tendo de confiar neles.

Boussuet falava de ideias gerais confusas encerrando verdades essenciais, e sobre isto
Couvert observa:

«O que Descartes chama de ideias claras e distintas – que seriam as únicas


portadoras, segundo ele, do carácter de evidência – são as formas dos objectos
conhecidos. São estes entes de razão, princípios ou axiomas matemáticos – números,
proposições deduzidas desses princípios – modelados pela inteligência e pelas
convenções necessárias do nosso espírito. São utensílios lógicos destinados a
permitir a medida do real, na medida em que eles são extensão e movimento. São os
conceitos mais universais, os mais desprovidos de conteúdo, os mais vazios sem a
passagem pela percepção sensível. E, no entanto, o seu ponto de partida é mesmo o
real exterior, mas na medida somente em que este é quantificável».

Assim, dos objectos percebidos sensivelmente, só teríamos certeza dos seus caracteres
matemáticos, mas:

«O que é conhecido pelo espírito, com certeza, não é o número mas a coisa
numerada».

Só discernimos o número numa coisa percebida porque:

«Dois nadas mais dois nadas não fazem quatro nadas. Duas árvores mais duas
árvores fazem quatro árvores».

Chegamos ao número por abstracção das árvores ou não teríamos nada. As relações
lógicas são construídas pela mente e possuem apenas certeza na medida em que se afirmam a
si mesmas, no sentido em que Descartes dizia:

«A ideia clara e distinta é verdadeira porque percebo a sua clareza e distinção».

Isto não passa de um raciocínio circular, que se junta a um mar de ocultações,


fingimentos, hipocrisias, tudo confluindo num sistema que desencadeou efeitos a longo
250

prazo. O próprio medo da Inquisição é fingido. Muitas destas coisas vieram da Holanda e da
Inglaterra, onde não existia Inquisição. α76

[Aula 77]

245. A mentalidade prática imediatista


Muita da mesquinharia moral deriva de uma mesquinharia mental, que é a
concentração excessiva em problemas de ordem prática e imediata. O foco em dificuldades
práticas, sobretudo financeiras, toma energias e enfraquece, porque este é o lado escravo da
vida. É a atenção em assuntos mais elevados e de ordem criativa que nos fortalece, novas
perspectivas abrem-se, aumentamos o nosso potencial de acção. O Brasil é uma imensa
colecção de fracassos, mas as pessoas não associam isto a uma espécie de pragmatismo
imediatista. Existem ideias depressivas, como a de achar que trabalho tem que ser uma coisa
que nos desagrade e que temos de aceitar a contra gosto. Ideias assim fazem as pessoas
inocularem depressões nelas mesmas, que passam a associar com a “realidade da vida”,
quando é apenas um tecido de ilusões deprimentes onde se enclausuraram.

Os brasileiros estão entre os povos menos generosos do mundo e isso está ligado ao
desinteresse pelo conhecimento, pela alta cultura e por tudo aquilo que é do espírito. Os
povos anglo-saxónicos estão entre os mais generosos, e o ensino deles é bastante elementar
ao nível das matemáticas mas bastante mais exigente em relação às letras.

Se voltarmos a nossa atenção para aquilo que nos infunde energia, esperança,
luminosidade, também teremos energia suficiente para resolver os problemas práticos sem
nos envolvermos demasiado por eles. Mas os debates políticos focam-se apenas na economia
e na corrupção, nunca na moralidade ou nas concepções de sociedade. Quando se fala na
educação, apenas é para dizer que é preciso despejar mais dinheiro em cima, como se a
educação fosse uma questão de instalações ou de equipamentos (Sócrates ou Santo Alberto
Magno davam aulas na rua). É uma concepção extremamente materialista e que já denota um
elemento profundamente depressivo. Tudo o que é material é medido e limitado, mas o
espírito implica uma abertura e uma liberdade muito maior.

Não só o brasileiro é um dos povos menos generosos como é um dos mais optimistas,
acreditando que o país vai se tornar numa grande potência. Há meio século que existe a
ilusão de que está para chegar uma riqueza generalizada. É natural que o sujeito deprimido se
apegue a falsas esperanças, como o slogan “Brasil, país do futuro”, que na verdade é apenas a
cenoura frente ao burro.

Quando pensamos numa verdadeira educação, podemos recorrer à imagem de uma


pedra lançada na água, que forma várias ondas em círculos concêntricos. Assim, primeiro há
que educar uma elite, que vai educar outra faixa maior e assim sucessivamente. O
materialista não percebe isto, apenas reage à presença maciça imposta pelo objecto material.
Com esta mentalidade generalizada, não é de admirar que as pessoas não consigam ver a
ligação entre causa e consequência, porque o elo entre elas só é material quando ocorre, e se
vamos tentar perceber como se deu, temos que fazer uma construção mental, o que é difícil
251

porque a capacidade de pensamento abstracto das pessoas é muito reduzida e a imaginação


muito estreita, quase só vinculada à percepção imediata. Na Bíblia já é dito que para o
homem carnal certas coisas são inimagináveis. Tudo aquilo que não diz respeito ao
materialmente presente parece ser coisa de fingimento, mera imaginação ou teatro.

Outro sintoma desta mentalidade é a falta de verdadeira ambição. As pessoas não


querem ficar ricas, querem apenas a segurança de um emprego público ou uma
aposentadoria. Mas a segurança só pode ser o ideal de velhos e doentes, que são forçados a
passar da vida activa à vida passiva, do ataque para a defesa. É deprimente que um indivíduo
entre na vida já com a ideia de recuar. Além do mais, é mais difícil obter verdadeira
segurança do que ficar rico, porque o ser humano, seja pobre ou rico, é sempre frágil. O
próprio rico pode ficar ainda mais aterrorizado do que o pobre, temendo sempre uma queda
da bolsa, ou que uma nova lei ponha em causa o seu negócio, ou que entre um novo
competidor ameaçando a sua cota de mercado. Tudo piora quando quase toda a riqueza
passou a ser financeira, tornando-se etérea e incontrolável.

Então, não temos de buscar a segurança mas a força. Isto não nos defende contra
tudo mas dá-nos capacidade de reagir às situações, dá-nos uma boa capacidade de ataque. Se
começamos a bater, não vamos parar mais ou começamos a apanhar, o que se expressa no
adágio latino: audaces fortuna juvat (a sorte favorece os audazes).

Em termos práticos, se temos uma dívida, o pior que podemos fazer é estar sempre a
pensar nela, o que nos enfraquece, deprime. Devemos, sim, pensar em ganhar dinheiro, ter
ideias, apostar, lutar. E quando tivermos o dinheiro, pagamos a dívida, não vamos ser
levianos e esquecer. Para ter a força para ganhar dinheiro, temos de estar habituados a
pensar nos grandes problemas da humanidade, da filosofia, da teologia, porque é dessa
abertura que vem a iniciativa e a criatividade. Alain dizia que o pior que existe no ser humano
é o estado de espírito rancoroso, que rosna mas não age. Por todo o lado, vemos pessoas que
vivem reclamando mas não fazem nada, apenas gastam energias e trabalham contra si
mesmas. Criou-se uma espécie de preceito moral que obriga todos a estar de mau humor,
como se estar de bom humor fosse uma coisa leviana. Então, vamos rejeitar o mau humor, a
tentação de reclamar, a preocupação passiva com os problemas. E devemos lembrar sempre
que o sucesso do professor é o sucesso dos alunos. α77

246. A emoção
Northrop Frye escreveu A Imaginação Educada, que é um livro admirável, com dicas
valiosas, mas ele parece acreditar na ideia de que o intelecto humano é a nossa parte
objectiva e que as emoções são a parte subjectiva, ainda acrescentando que um oriental
pensaria o contrário, o que parece não ser confirmado pela experiência. Mas o que ressalta
daqui é ele não ter se debruçado o suficiente sobre a questão das emoções, tendo aceitado a
ideia, que remonta a Descartes, de que as emoções são a nossa parte irracional.

Podemos começar por reconhecer a existência de dois tipos de emoção. Existem


aquelas causadas pelas situações que percebemos objectivamente, por exemplo, num assalto
em que somos ameaçados e não temos tempo para criar uma representação mental do
sucedido. Este tipo de emoção responde a uma situação objectiva, mas existem outras
emoções causadas pelo pensamento e pela imaginação, como o estado depressivo criado pela
existência de um “sistema de impossibilidades” na nossa cabeça.
252

Assim, devemos separar a emoção do conteúdo representativo que a provoca. Vimos


na experiência das cartas de baralho [97] que estavam ali envolvidas emoções, denunciadas
pelo suor na mão. A reacção baseada na emoção imediata era mais adequada à situação e
tinha melhor resultado do que a resolução do problema através da representação mental,
supostamente racional. Isto mostra a necessidade de saber exactamente o que é a emoção,
separando-a dos seus elementos representativos.

Vamos definir a emoção como uma reacção do ser total face a um objecto. Não se
trata de uma reacção localizada, é algo que toma posse da pessoa inteira. Uma emoção é
sempre racional porque é uma repercussão proporcional ao seu estímulo, é como uma
espécie de caixa-de-ressonância. Contudo, o objecto pode ser tanto colocado pela percepção
como pela imaginação. Podemos ter uma “percepção” inadequada e ter uma emoção que lhe
responde proporcionalmente, mas o que falhou neste caso foi a representação da percepção
(a percepção em si não erra, porque está num nível “anterior” à divisão de racional e
irracional). Da mesma forma, podemos conceber algo como perigoso (tomamos um som na
casa como sendo a entrada de um assaltante), porém, o que imaginamos não era real mas
ainda assim provocou uma emoção. Novamente o erro não está nem na emoção e nem na
percepção mas encontra-se no raciocínio que a representa.

Sendo a emoção uma reacção da pessoa inteira, apenas pelo seu conhecimento
podemos saber realmente quem somos, não através dos pensamentos, que podemos nem
sequer acreditar e serem totalmente hipotéticos.

Só pode haver erro no raciocínio e na imaginação, sendo esta última também uma
forma de raciocínio. Aristóteles já falava do silogismo imaginativo, que ocorre quando
juntamos duas imagens e automaticamente surge ou uma terceira ou uma resposta (a técnica
do cineasta Serguei Eisentein baseava-se nisto). Raciocínio e emoção são funções
construtivas e podemos imaginar o que quisermos ou raciocinar sobre premissas totalmente
inventadas, pelo que em nenhum dos casos somos obrigados a seguir o real e, por isso, pode
haver erro. Na emoção e na percepção pura não se pode introduzir o erro, dado que são
funções meramente reactivas e não há uma reacção inadequada ao objecto, que é onde o erro
se introduz. A emoção não pode apresentar o objecto a si mesma, apenas o raciocínio e a
imaginação podem fazer isso. α77

247. A busca da coerência


A mente humana funciona de forma sistémica, buscando a coerência de forma
obstinada. E esta busca de coerência não é mais do que a própria capacidade de raciocínio.
Coerência significa simplificação e estruturação. Acontece que com a estruturação podemos
criar um pequeno mundo imaginário, onde nos sentimos confortáveis mas estamos a fugir da
realidade, pelo que é uma coerência muito particular, feita à custa de uma incoerência geral.
Então, a busca de coerência só pode funcionar se existir uma acção em sentido contrário, de
abertura a toda a diversidade e multiplicidade do estímulo, assim como é necessário suportar
a própria situação de incoerência. É necessária uma dialéctica constante de abertura à
multiplicidade, estruturar a unidade, para depois dissolve-la e abrirmo-nos de novo à
multiplicidade para que entrem novos elementos.

Com a entrada de elementos de fingimento na cultura e na forma de pensar,


apareceram todo o tipo de sub-raciocínios operando por baixo do foco de atenção consciente.
253

A unidade da mente do público rompe-se, o que corresponde à inoculação de uma neurose. E


a neurose, por sua vez, cria toda uma série de problemas, enigmas, dificuldades, questões,
que ocupam a mente e desviam-na cada vez mais da realidade. α77

248. As consequências da filosofia de Descartes (Maxime Leroy)


Vimos na aula passada as máscaras de Descartes, usando extractos de um livro de
Étienne Couvert [244]. Descartes coloca como princípio do conhecimento certo a certeza
imediata que o “eu” tem de si mesmo enquanto sujeito do raciocínio. Esta é uma certeza de
um conhecimento puramente interior, e para fazer a transição para o mundo exterior ele
apela a Deus. Aqui ele usa o argumento de Santo Anselmo, que concebe Deus como um ser
perfeito e, como tal, não pode ser nem inexistente e nem imperfeito, logo, não é mau e não
podia enganar Descartes. Contudo, ele vê Deus eminentemente como o criador da matéria.
Ao mesmo tempo considera que um ser dotado de livre arbítrio está colocado no mesmo
plano que Deus, porque toma decisões sem ser forçado a isso e está livre para crer, afirmar,
negar, querer, não querer, etc. Diz Maxime Leroy, em Descartes, Le Philosophe au Masque:

«Deus, que não é invocado senão depois da razão, é encerrado por Descartes nas leis
do peso, da medida e do número que ele criou, condenando-O assim, em nome da
sua perfeição, à monotonia de uma eterna constância. A quantidade de movimentos
é invariável, como a quantidade de matéria».

Tendo Deus criado a matéria conforme as leis do número, da medida e do movimento,


e sendo essas leis eternas, então, Deus fica limitado a elas, não tem mais como interferir. Isto
é incoerente com a “teoria da criação constante” que Descartes defende em outras partes.
Prossegue Leroy:

«Deus, tão imutável nos seus desígnios quanto a Natureza o é na manifestação dos
seus fenómenos, mantêm-se por acaso na sua constância inabalável, como afirma
Descartes, por um acto de omnipotência? De facto, esta vontade não se confundirá
secretamente em Descartes com aquela constância material, ao ponto de ser de
algum modo absorvida por ela, pois que Deus é tido como alguém que, em razão da
sua perfeição, não poderia jamais trazer desordem à sua obra, que Ele criou segundo
as leis fixas do peso, da medida e do número. Descartes proíbe a Deus o impossível e,
portanto, também o milagre?»

A finalidade de todo este raciocínio é a exclusão do milagre, algo salientado também


por Paul Hasard (La Crise de la Conscience Européenne). Outros autores negaram depois
explicitamente o milagre, mas sempre a partir deste argumento de Descartes, que parecia
celebrar a omnipotência divina. Continua Leroy:

«Recusando-se totalmente a qualquer crítica metafísica mais ampla, podemos


perguntar-nos se estas ideias não abrem uma visão sobre o pensamento profundo de
Descartes sobre o mecanismo de uma psicologia, onde nada revela uma exaltação
devota de divindade. Não se vê aqui o homem de piedade e nem mesmo o metafísico
religioso e cristão, que foi proposto pelo senhor Alexander Koyré no seu estudo
sobre Descartes [“Ensaio sobre a Ideia de Deus em Descartes”]».
254

Étienne Couvert e Maxime Leroy foram os primeiros a negar claramente que


Descartes fosse um pensador muito católico, mas antes já havia quem tivesse sugerido isso:

«Maurice Blondel escreveu de um ponto de vista católico, com muita perspicácia que
“Descartes retém apenas de Deus aquilo que lhe permite dispensá-Lo, que lhe permite
prescindir Dele”. Com um menor risco ele se teria, portanto, protegido sob o escudo
destas considerações aparentemente conformistas, mas na realidade heréticas,
talvez mesmo ateísticas. Como os testemunhos de sua vida, os pastores protestantes
da Holanda, chegaram a ver encolerizados com uma visão tão clara».

Os pastores protestantes perceberam o lado herético de Descartes, mas não foi esta
imagem que ele veio a ter.

«Se Descartes afirma que Deus é o autor do mundo, que este foi criado
imediatamente por Deus, segundo os ensinamentos da Bíblia, ele descreve de facto,
nos livros Tratado do Mundo e Princípios, aquela criação sem fazer aparecer nos
detalhes dos acontecimentos ou na exposição dos princípios gerais os efeitos dessa
vontade. Ela é afirmada e tudo se passa como se ela não existisse».

Depois de ter criado a matéria, as leis do número, da medida e do movimento, Deus é


dispensado, fazendo de conta que está a enaltecê-Lo.

«Descartes, após a sua tentativa de teodiceia [tentativa de justificação de Deus] não


sonha senão em diminuir cada vez mais o papel de Deus no universo, substituindo-se
mesmo a Ele. Pode-se mesmo perguntar se Deus, que nasceu da mesma intuição que
é a evidência da razão, não seria antes o pseudónimo dado publicamente por
Descartes, com humildade fingida, a uma certeza que não ousou confessar, que ele
pretendeu se substituir a Deus e dispensá-Lo, prescindir Dele».

Deus passa a ser um pseudónimo da razão, e isto tornou-se a base para todo o
materialismo e ateísmo daí para diante. Uma das coisas mais paradoxais da mente humana é
que tudo o que não percebemos mas de alguma forma entranhamos acaba por se tornar mais
importante e vai dominar o círculo de toda a consciência, naquilo que depois veio a ser
conhecido como influência subliminar (a partir das experiências de Otto Poezl).

Descartes tornava impossível a aceitação do milagre, ou seja, a actuação da


Providência, que para ele estaria sempre limitada às próprias leis eternas que Deus criou. A
transubstanciação – a presença real do corpo de Cristo na hóstia – ficava também em causa.
Era a altura da reforma protestante e eles não acreditavam na transubstanciação, vendo o rito
da eucaristia apenas como um procedimento simbólico, como uma espécie de homenagem.
Jesus Cristo, sendo o Logos Divino, tem uma presença genérica em tudo o que é físico, pelo
que não é de espantar que também possa ter uma presença particular. Por outro lado, dizer
que Deus não pode violar as leis da Natureza – o que torna o milagre fica impossível – revela
também alguma ingenuidade. As leis da Natureza são abarcadas e transcendidas pelas leis da
Inteligência Divina, e mesmo se um dia se descobrissem todas as leis naturais, a conclusão
seria o que estas se fundamentam numa metafísica. Podemos já ver isso hoje, por exemplo,
quando constatamos que nenhuma explicação natural pode transcender o princípio de
identidade.
255

«Os escolásticos explicavam o milagre da presença real, sem que o exterior da


substância mudasse, invocando a sua concepção mesma da substância. A substância
sendo, segundo eles, independente das suas manifestações exteriores de cor, de
extensão e de forma, parecia-lhes possível que sofresse uma modificação sem
mudança aparente desses acidentes. Mas, como se vê, esta explicação deixava ao
fenómeno a sua característica de milagre, que permanecia, na totalidade,
racionalmente incompreensível».

Vimos atrás que é um exagero esta incompreensibilidade do milagre: há uma


explicação racional do milagre, embora esta seja também supra-racional de certo modo, uma
vez que não se baseia apenas no funcionamento interno da razão mas tem também em conta
os princípios que a constituem e a tornam possível.

«O cartesianismo não era favorável, por si mesmo, a esta explicação pretensamente


racional do mistério, porque rejeitava a distinção teológica da substância e dos
acidentes. Descartes não propôs, nem por isso deixou de propor duas explicações [o
“filósofo mascarado”]: uma oficial e vulgar, a outra esotérica, à qual ele se atinha e
que pretendeu manter secreta entre ele e alguns iniciados [mas que passa para o
público nas entrelinhas], julgando-a melhor que aquela explicação que a Igreja
fornecia e acreditando que a Igreja deveria aceitar a sua explicação».

Aqui podemos, dando descanso a Maxime Leroy, recorrer a uma passagem do livro de
Adrien Baillet, A Vida de Descartes:

«A virada, este giro consiste em explicar a transubstanciação miraculosa que se faz


no santo sacramento pela transubstanciação natural que faz dos alimentos o nosso
próprio corpo, sem milagre algum. Assim, Descartes comparava o mais alto milagre
da fé ao fenómeno da digestão: já não há mais mistério».

Comparar a transubstanciação à digestão é um materialismo grosseiro, embora em


público Descartes não defendesse isso, era algo que dizia para os amigos e que se tornou
numa influência subliminar que ele legou para as gerações futuras e que teve mais peso do
que a doutrina explícita. Os filósofos que atacaram explicitamente a fé tiveram um impacto
de longo prazo muito menor do que aquele provocado por Descartes ou Kant, que pareciam
defendê-la mas que, na verdade, estavam a corroê-la pela introdução de elementos
subliminares.

A modernidade foi a época do fingimento, da máscara. Precisamente os bailes de


máscaras são uma das celebrações mais características das cortes desta altura. As nações
modernas estavam a ser construídas e achava-se necessário recobrir o rei de uma figura
divina para além da sagração da Igreja. Então, o rei tornava-se fonte da sua própria
autoridade e, como consequência, surgiam as igrejas nacionais subservientes, como
aconteceu na França e na Inglaterra. Até hoje, católicos e conservadores franceses acreditam
que a missão divina da casa real é causa sui: são todos galicanos. Aceitaram este primeiro
passo da caminhada revolucionária e isso os levaria a assumir o restante da essência
revolucionária devido ao carácter sistémico da mente humana. É preciso muita gente para
elucidar de forma completa aquilo que foi iniciado com os estudos da paralaxe cognitiva e da
mentalidade revolucionária.
256

O ciclo moderno criou uma confiança desmedida do “eu” em si mesmo e isto foi
influência de Descartes. Assim, os indivíduos ficam totalmente indefesos contra a influência
demoníaca, porque ninguém consegue sozinho proteger-se contra o demónio. O livro de
Hubert Selbey Jr., The Demon, mostra com mestria o que é a obsessão demoníaca e como a
sociedade moderna é totalmente incapaz de lidar com ela. α77

[Aula 78]
249. Questões essenciais nas ciências sociais
Os comentadores e cientistas políticos estão habituados a falhar redondamente nas
suas previsões. Isto acontece porque eles estão a lidar com um conjunto de instrumentos que
não é adequado para a situação presente, embora pudesse funcionar em outras épocas.
Devemos, então, ir até ao problema do fundamento das ciências sociais e tentar saber o que é
o conhecimento da sociedade humana e quais devem ser os instrumentos perceptivos e
conceptuais que nos permitem apreender o que está acontecendo.

Durkheim define o facto sociológico, no livro As Regras do Método Sociológico, de


forma a que as intenções subjectivas dos seres humanos não contam para nada, como se tudo
se resumisse a estruturas que agem sobre as pessoas sem existir uma intencionalidade da
parte destas. Karl Marx trata a História em termos de estruturas impessoais, e quando se
chega a Braudel já não existem mais personagens, restam apenas conceitos gerais,
estatísticas e coisas do género. As forças históricas aparecem como divindades com vontade
própria para além das intenções dos indivíduos concretos envolvidos. Na realidade, nunca
ninguém observou uma força impessoal agindo, apenas podemos identificar certas
constantes quando vemos as pessoas agindo, e daí pode-se criar um conceito geral. O que
devemos fazer é procurar a acção real e concreta, na senda da tradição do nominalismo
português, que também influenciou Gilberto Freyre.

A primeira questão que surge é saber quem é o verdadeiro personagem da História.


Quando falamos em “História do Brasil”, na realidade o Brasil não é uma personagem mas o
cenário onde acontece a História. Mesmo se pensarmos no Brasil em termos de identidade
político-jurídica, esta já mudou várias vezes, não havendo continuidade. Se admitirmos que é
a História das classes sociais, como em Marx, na realidade estas não se reúnem e nem se
coordenam para agir, no máximo existem alguns líderes que agem em nome das classes. Pior
ainda, se falamos em interesse da classe, por exemplo, o que seria o interesse da burguesia?
Cada burguês tem o seu interesse próprio, que pode estar em oposição com o de outros
burgueses, mas é possível criar um artifício e definir o interesse da burguesia não em termos
das necessidades materiais reais da burguesia mas em função do suposto antagonismo que
esta teria em relação ao interesse do proletariado. Por sua vez, o interesse do proletariado
também não é definido substantivamente mas como uma oposição lógica aos interesses da
burguesia. Os comunistas achavam que o proletariado pretendia assumir o controlo das
empresas, mas quando, no século XIX, ocorreu uma ascensão do proletariado, este afastou-se
do comunismo e queria apenas melhores salários, previdência social, etc.
257

Se as previsões históricas baseadas em entidades anónimas falham redondamente,


também não podemos dizer que a História é composta somente de acções individuais, porque
uma acção só é histórica quando transcende a duração de vida humana. Então, o mistério
desta primeira pergunta adensa-se, porque o sujeito agente da História não pode nem ser
uma entidade fantasmagórica (nações, classes, taças) e nem o indivíduo humano.

A segunda questão consiste em tentar saber o que é a acção histórica. Uma acção
meramente pessoal, como tomar banho, não tem o mesmo alcance de uma acção como ir
trabalhar, que envolve mais pessoas. E esta, por sua vez, não tem o âmbito de uma acção
histórica, que pode alterar o destino de sociedades inteiras.

Uma terceira questão diz respeito à natureza do poder. Toda a acção eficaz pressupõe
o fenómeno do poder, pelo que devemos começar por aqui – por uma fenomenologia do
poder – e abordar as questões na sequência inversa que nos apareceu atrás. α78

250. Fenomenologia do poder


A forma mais simples de definir o poder é como a possibilidade concreta de acção.
Dizer que se trata de uma possibilidade concreta significa que já temos os meios de acção
necessários ou podemos tê-los facilmente, pelo que não é uma mera possibilidade hipotética
(ausência de impedimentos). Por exemplo, temos o poder para deslocar uma mesa. Mas o
poder político não é apenas uma possibilidade de acção individual, necessita de uma
transferência do sujeito da acção. O poder político, então, é a possibilidade concreta de
determinar acções alheias.

Existem três meios de agir sobre terceiros. A forma mais óbvia é mediante uma
ameaça de agressão ou de castigo, que naturalmente se exerce sobre uma animal doméstico
ou sobre uma criança, e da qual nunca se pode realmente abdicar. O segundo meio de
influência é a promessa de um benefício. O primeiro meio é bastante eficaz e imediato mas
temos de ter força coercitiva suficiente para o exercer. O segundo depende dos interesses e da
livre decisão do subordinado. Um terceiro meio de agir sobre terceiros baseia-se no
convencimento e no fascínio, mais especificamente, no uso da linguagem para modelar a
visão que a outra pessoa tem do mundo de modo a ela agir dentro das linhas prescritas por
nós, dado que não concebe outras. Ao primeiro meio de influência (ameaça) corresponde o
poder político-militar, ao segundo (promessa de benefício) corresponde o poder económico-
financeiro e ao terceiro (convencimento) corresponde o poder intelectual-espiritual.

A estas três modalidades de poder correspondem três camadas ou classe sociais com
diversas encarnações históricas e com diversos graus de influência. No ocidente, a classe
militar foi determinante a partir do desmembramento do Império Romano, criando focos de
resistência às evasões bárbaras e dando, depois, origem ao feudalismo, de onde emergiu a
figura do rei, visto como primus inter pares. Mais tarde, uma parte da nobreza começou a ter
uma actividade distinta da militar, entrando em actividades comerciais, financeiras
(potenciada com a descoberta pelos bancos da possibilidade de alavancagem) e imobiliárias.
Então, na Idade Média começou a influência do poder económico-financeiro, normalmente
atribuído à burguesia mas que realmente começou por ser uma actividade dos nobres. Este
poder acabou por suplantar o poder feudal, mas foi uma evolução que durou muitos séculos.
258

O poder do rei também foi aumentando, o que trouxe a necessidade de uma


organização central e isso provocou uma disputa entre o rei e a aristocracia. Foi daqui que
surgiu a burocracia profissional, que era um meio de ascensão da pequena burocracia
urbana que tivesse alguma habilidade administrativa ou contabilística. A aristocracia ficou
sem uma actividade porque, em especial na França, o rei tinha a sua burocracia e um exército
profissionais. Mas como a aristocracia continuava a ter o direito de colectar impostos nos
seus domínios, podia tornar-se numa classe ociosa. Ocorreu um fenómeno peculiar
relacionado com a burocracia, derivado de existirem muitos candidatos para o número de
lugares disponíveis. Então, uma data de plebeus estudavam para entrar na burocracia mas
não conseguia lugares, e são estes indivíduos relativamente letrados que vão formar a classe
revolucionária por excelência.

A formação dos exércitos profissionais quer dizer que os militares passaram a ser
funcionários públicos, ou seja, o poder militar deixou de ser um poder em si e tornou-se num
instrumento da burocracia estatal, que é, por sua vez, sustentada pelos capitalistas. Então,
cria-se a apoteose do poder financeiro com a subalternização do poder militar. Mas o poder
financeiro é feminino, é um poder de atracção e não intimida ou destrói ninguém. O dinheiro
não é em si um poder, não tem possibilidades de matar, só tem o poder de atrair através da
promessa de benefícios, funcionando indirectamente por um processo complicado e cheio de
ambiguidades psicológicas.

Podemos ver uma destas ambiguidades, tal como estudada por Aleksandr Zinoviev no
livro The Reality of Comunism, no exemplo de uma empresa. Esta tem de dominar uma
tecnologia correspondente ao produto que oferece, tem de conhecer os mercados e assim por
diante. Mas, no seu interior, as pessoas tentam ascender na hierarquia, e para isso é preciso
também uma tecnologia – podemos chamar de técnica política –, que facilmente entra em
conflito com as outras tecnologias se não existir um factor unificante. Com a ascensão do
poder financeiro, ganhou relevância toda uma linha de acção destina à ascensão na
burocracia, seja privada ou estatal ou mesmo da virtual (aqueles que estão em volta e ainda
não conseguiram entrar). Este elemento de tensão que existe na sociedade capitalista chega à
apoteose na sociedade socialista, onde há uma luta de técnica política contra a técnica
económica. Apenas dentro do Partido é possível subir na escala social. Não tem sentido ver o
processo de conquista de poder como uma derivação do processo económico, que é o
processo de eficiência capitalista, porque o processo de conquista de poder é totalmente
distinto. Muita gente acredita que a economia fraca derruba a classe política, o que pode
ocorrer em democracia, mas num sistema fortemente socialista a estrutura de poder é muito
robusta, uma vez que deriva de um aperfeiçoado jogo político, que pode conviver com uma
economia falhada e até ser fortalecido por isto, dado que o povo fica ainda mais passivo.

A burocracia virtual é composta por jornalistas, escritores, oradores, propagandistas,


professores, padres, etc. É desta classe que surgem os intelectuais modernos. É uma classe
imensa sem poder directo, com as qualificações para subir na burocracia mas sem as técnicas
para exercer qualquer função económica produtiva. Então, os seus membros apenas podem
subir na vida através da actividade política. A partir do século XVIII esta classe começou a
criar uma literatura para legitimar a sua própria ascensão, normalmente dizendo agir em
nome da humanidade ou em nome dos pobres e oprimidos. Obviamente que quando esta
gente domina a sociedade as actividades económicas, industriais, comerciais vão declinar e a
consequência é uma descida do padrão de vida. Com a criação das universidades modernas,
no século XIX, a burocracia virtual cresceu ainda mais, e hoje em dia considera-se que o
259

progresso consiste em aumentar mais e mais esta classe, que nada produz mas está
qualificada para a actividade política, embora sem ter ainda o poder. Torna-se cada vez mais
constante a luta dos membros desta burocracia virtual pelo poder, cada um falando em nome
da população em geral ou como se fosse representante da humanidade, mas o que eles fazem
é apenas subir pisando em toda a gente. α78

251. O sujeito da História


Com os elementos anteriores sobre a fenomenologia do poder [250], vamos retornar
à questão de saber quem é o sujeito da História [249]. Só existe acção histórica quando esta
é contínua no tempo (algo ignorado por quase todos os cientistas sociais). Se uma acção se
esgota no tempo de vida de um sujeito é porque não se incorporou na História. Então,
devemos ir procurar as entidade existentes historicamente com uma acção que se prolonga
por muitas gerações. Só existem quatro tipos de agentes históricos:

a) As grandes religiões, que ensinam geração após geração as mesmas normas de conduta;

b) As sociedades ocultistas e iniciáticas, que moldam a cabeça dos seus membros geração
atrás de geração, e que tornam possível planear acções de longo prazo;

c) As dinastias nobiliárquicas, que são famílias conscientes da durabilidade dos seus


interesses e que podem educar filhos e netos a uma fidelidade aos mentores falecidos;

d) O Partido Comunista, entidade criada no século XIX com o nome de “Liga dos Justos”, que
consegue que as novas gerações se incorporem numa corrente histórica.

A burocracia virtual [250], quando não se incorpora numa religião ou não nasce
numa família dinástica, apenas pode ter uma acção eficaz de uma de duas formas: ou
entrando numa organização revolucionária que tenha continuidade histórica, como o
Partido Comunista; ou fazendo pare de uma sociedade iniciática, como a maçonaria, a
companheiragem ou a Rosa Cruz.

O poder político, entendido como a capacidade de fazer outras pessoas agirem de


acordo com as nossas vontades, depende também do horizonte de consciência, que é o
conjunto de informações que temos disponível e que se pode transformar em estratégia e
táctica num prazo razoável. Os donos do horizonte de consciência são os intelectuais e a
burocracia virtual. Na época moderna, no plano intelectual, aconteceu primeiro a
substituição do clero católico pela intelectualidade universitária e, depois, a substituição e
transformação desta última em burocracia virtual. A classe intelectual – que vai desde o
sujeito mais sábio ao último palpiteiro de esquina – forma o horizonte de consciência
acessível aos demais membros da sociedade através do domínio dos meios de informação e
pelo controlo da linguagem. Tudo aquilo que as pessoas vêem mas não têm um equivalente
na linguagem, ou é esquecido ou é transformado num análogo presente no imaginário
colectivo, que pode já estar bastante afastado da percepção original. Isto pode fazer com que
se gastem esforços imensos para resolver problemas que não existem.

Por exemplo, existem inúmeras campanhas contra a “exclusão”, mas que se referem a
fenómenos totalmente diversos e muitos dos quais nada têm nada a ver com a exclusão.
Também se costuma fazer uma ligação automática entre a criminalidade e a pobreza, mas vai
uma grande distância entre o sujeito dar conta de que é pobre e ele achar que, por isso, tem
260

que cometer crimes: tem de haver um processo de interpretação, simbolização, valoração e,


mesmo se o sujeito achar que é melhor ou mais vantajoso optar pelo crime, ele pode sempre
decidir não ir por esse caminho. Então, não existe uma relação directa entre a situação
económica e a situação real, há sempre uma mediação cultural, e quem elabora a cultura são
os intelectuais. O intelectual que diz que “a pobreza gera criminalidade” está a esconder o seu
próprio papel nos eventos.

Já vimos anteriormente, quando analisamos o livro Hegemonia e Estratégia


Socialista [239], de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, como os intelectuais socialistas deram-
se conta de que a facção revolucionária não precisa de representar interesse objectivo algum,
nem necessita mesmo de se apoiar numa classe, porque se conseguir moldar o imaginário e a
linguagem da sociedade pode se apresentar como representante de interesses que não
existem mas que se formam retroactivamente e que passam a ser defendidos quando os
revolucionários ascendem ao poder. Lenine já dizia que o Partido não representava o
interesse do proletariado, nem sequer tornava consciente um interesse que estava
inconsciente, antes era o Partido a criar o interesse e este, por sua vez, cria a classe
interessada. Os analistas políticos desconhecem isto por completo, que é um conhecimento
que continua apenas do domínio dos revolucionários.

A forma como as ciências sociais abordam os problemas é totalmente desadequada,


como podemos constatar. Uma reforma das ciências sociais deve seguir algumas regras. A
primeira é: ao lidar com conceitos descritivos gerais e abstractos (burguesia, proletariado,
capitalismo, etc.), estes devem corresponder a acções reais de pessoas reais e não a meras
hipóstases (figuras míticas criadas por nós). Os conceitos gerais têm de ser confrontados com
a micro-História, que é a História das acções humanas reais que se vão condensando e
criando mundos imaginários, onde pessoas acreditam viver. Desta forma, podemos ver como
certas coisas se formaram. Por exemplo, a esquerda revolucionária tinha desprezo pelas
campanhas de caridade, porque supostamente anestesiavam o povo e impediam que este
tivesse consciência dos seus verdadeiros interesses. Herbert Souza, o famoso Betinho, notou
que essas campanhas mobilizavam os bons sentimentos das pessoas e, portanto, ficar contra
elas era fazer figura de malvado. Então, sugeriu entrar no “jogo”, dominar as entidades de
caridade e aparecer como representante dos bons sentimentos, e o plano resultou. É
necessário sempre conhecer o imaginário existente, que é revelado muito pouco pelas
pesquisas sociológicas, devendo ser sondado nos programas de TV, nas canções populares,
nos espectáculos, na retórica dos debates públicos, etc. Aqui encontramos os topoi, que são
os lugares comuns do discurso aos quais as pessoas apelam constantemente. Constatamos
que hoje os debates públicos estão deslocados da realidade porque não existem elementos
culturais, imaginários e linguísticos para expressar a situação real. α78
261

[Aula 79]
252. Implicações da consciência de imortalidade na compreensão da
História e da sociedade política
A tomada de consciência da imortalidade [192] deve ter algumas consequências para
a visão que temos da História e da sociedade política. Mesmo se não tivermos consciência do
nosso eu substancial, é com ele que nos relacionamos com outras pessoas. Temos um eu
presencial, que é o foco para onde convergem todas as informações sensoriais presentes e
que tem necessariamente uma existência fugaz, também porque a nossa atenção às sensações
é descontínua e há muitas coisa à nossa volta que ignoramos. Depois, temos o eu social, que é
uma figura que aparece quando nos relacionamos com outras pessoas e que corresponde
àquilo que imaginamos que os outros sabem a nosso respeito ou que potencialmente podem
saber, e sem isto ficamos incapacitados socialmente. Também há o eu autobiográfico, que se
revela quando contamos a nossa própria história, seja para um outro ou para nós mesmos.

O eu presencial, o eu social e o eu autobiográfico são três camadas ou níveis cuja


existência constatamos empiricamente, ao mesmo tempo que nos damos conta de que são
constituídos por dados fragmentários e transitórios. Mas para quem está acontecendo tudo
isto? Nenhum destes “eus” tem continuidade no tempo, mas sabemos que nós mesmos temos
essa continuidade. Aparentemente, o nosso corpo tem essa existência contínua mas,
observando mais atentamente, vemos que não é uma continuidade absoluta, as células são
trocadas, o corpo altera-se, etc. Outra possibilidade é a de que, reconhecendo que estes “eus”
são informações, a nossa pessoa consiste da sua reunião. Mas se a nossa verdadeira
identidade fosse apenas informação, ela seria um produto da nossa mente, tão duradoura e
evanescente como qualquer outra criação mental.

Então, a nossa existência permanente não é apenas um conhecer mas também um ser.
A nossa realidade permanente não se confunde com a nossa presença corporal, nem com as
nossas ideias ou pensamentos e nem mesmo com as nossas emoções: são tudo coisas
descontínuas e fragmentárias. Vamos chamar de eu substancial à nossa forma de existência
permanente. É fácil de constatar que esta sempre existiu e permanece igual ao que era
quando éramos crianças, e ainda que é a base ontológica para que as outras imagens de “eu”
possam se formar, ainda que não saibamos muito bem do que se trata. Existe um certo
mistério sobre o eu substancial dado que este não pode ser, na sua totalidade, objecto de
apreensão mental ou de um acto de cognição. É um outro campo que apenas pode ser objecto
de admissão, da mesma forma que não podemos apreender o universo inteiro mas apenas
podemos admitir que ele existe. Qualquer pessoa que conhecemos, apenas temos dela
informações parciais, mas automaticamente reconhecemos que ela tem existência
substancial, embora não reconheçamos as implicações disso na sua inteireza.

Esta admissão de coisas que transcendem a nossa possibilidade de cognição é a forma


fundamental de conhecimento, é o que garante a ligação de todos os demais conhecimentos
com a realidade, caso contrário, teríamos conhecimento do nada, apenas uma hipótese
pensando outra hipótese. Se a mente cognoscente fosse o centro e a base do nosso ser, como
pretendia Descartes, não podíamos conhecer nada fora da mente, tudo seriam suas criações.
Não existiria essa função eminentemente transitiva que é o amor, mas nós sabemos que cada
pessoa é real e que a sua própria convivência abrange um círculo muito maior do que aquilo
que a sua mente pode captar. O cogito de Descartes (“penso, logo existo”) prova apenas a
existência do pensamento, mas não chega ao substracto ontológico real que lhes está
262

subjacente, pelo que não pode ser a base de toda a certeza, é algo que uma personagem de
romance totalmente hipotética poderia dizer. Mas a existência do eu substancial não pode ser
captada hipoteticamente, não pode ser pensada como hipótese, apenas podemos pensar nele
em termos categóricos: eu existo efectivamente num mundo que também existe
efectivamente, onde há outras pessoas que também existem assim.

Pelas experiências de visão remota e pelos relatos de estados de morte clínica, sem
actividade cardíaca ou cerebral, conclui-se também que o eu substancial não depende da
presença corporal, sendo este último uma sua manifestação específica.

A constatação da imortalidade é a própria base do método filosófico. Mas sabemos


que apenas um número muito reduzido de todas as filosofias, teorias científicas, teorias sobre
a sociedade humana ou sobre a História entram com isto em conta. Um destes casos é a
filosofia da História de Santo Agostinho, que articula simultaneamente o plano divino com o
plano terrestre (fragmentário e sem sentido em si mesmo). Para Agostinho, não existe uma
verdadeira História da Humanidade se olharmos apenas para os sinais que as pessoas
deixam na terra, apenas existe tal coisa se entendermos as pessoas como almas imortais, ou
seja, só existe História terrestre no plano celeste e tudo o resto só existe metonimicamente.
Uma História puramente terrestre, temporal, não pode realmente existir, porque os eventos
passados seriam irrecuperáveis. Apenas podemos tê-los em conta se, ao menos
implicitamente, reconhecemos que aquilo que aconteceu não foi para o nada mas
incorporou-se no reino do ser, e é este o plano do eu substancial.

Depois destas notas, já deve ser óbvio que o método básico em filosofia não deve ser o
da dúvida metódica (ou o método da suspicácia, nos termos de Mário Ferreira dos Santos)
mas o método da confissão, que consiste em admitir a existência de realidades que se
impõem a nós, inclusive o reconhecimento de elementos nossos sobre os quais não temos
domínio. Sabemos que temos uma carga genética e, por mais que consigamos recuar na
árvore genológica, a herança recua sempre mais até chegar às primeiras gerações. No acto
sexual completo estão presentes todos os nossos antepassados. Hoje é possível viver num
mundo de simulacros, o que ameaça de esquizofrenia todos os habitantes da civilização
urbana.

Mas se encararmos seriamente as implicações da consciência de imortalidade, a nossa


compreensão do processo social-histórico-cultural transfigura-se. Desde logo, reconhecemos
que a duração de uma única alma imortal transcende toda a duração processo histórico
terrestre. A escala de temporalidade terrestre não tem existência substantiva, é apenas uma
figura de linguagem e toda a realidade parcial do processo histórico apoia-se numa
continuidade substancial que vai muito além daquilo que os personagens envolvidos sabiam.
A continuidade e substancialidade que os historiadores procuram podiam ser encontradas se
eles levassem em conta os factores de ordem espiritual, como faz Santo Agostinho em A
Cidade de Deus, e que também se pode ver exemplificado nos romances de Georges
Bernanos, onde os eventos terrestres têm uma repercussão celeste imediata. Também já
vimos anteriormente [227] como o poder espiritual-intelectual (ou poder profético, nos
termos de Ibn Khaldun) é o que mais se prolonga ao longo dos tempos e o que dá um
repertório das possibilidades para toda a sociedade.

Outra questão que passa a ser vista a outra luz, com a admissão da imortalidade,
relaciona-se com a questão do sujeito da História [251]. Para este “cargo” apenas estão
qualificadas entidades com uma continuidade intencional e que conseguem manter uma
263

continuidade substantiva ao longo das épocas, sendo “a voz dos profetas” o sujeito histórico
por excelência. Neste caso, não se trata apenas da continuidade intencional, que também é
um elemento entrópico, mas da própria presença da fonte (Moisés, Abraão, Cristo, Confúcio,
Lao-Tsé), que se torna num factor histórico permanente e que funciona como uma espécie de
entropia negativa. A profecia é mais do que uma previsão, é uma ordem para fazer certas
coisas, garantindo que assim ocorrerão tais e tais coisas.

Há consequências também para a organização do conhecimento. Quando falamos em


filosofia política, filosofia moral ou teoria do conhecimento, não são coisas que realmente
existam por si. A filosofia é um processo integral, usando os mesmos princípios, que podem
ser exemplificados na aplicação em vários domínios. Daqui nascem várias disciplinas, mas
elas não existem separadas, fazem parte do mesmo corpo. Isto já está implícito na definição
de filosofia como busca da unidade do conhecimento na unidade da consciência e vice-versa.
É sempre um esforço que está destinado a falhar, porque não é possível uma explicação da
totalidade, mas também tem sempre de continuar porque realmente existe uma totalidade
profunda que chama o homem a si. α79

253. A falta de entendimento sobre o que é um princípio


O entendimento do que é um princípio tornou-se problemático. Por exemplo, os
liberais estão habituados a considerar a liberdade como um princípio. Se estabelecemos que
uma certa proposição é um princípio, então, ela passa a ser origem e fundamento de outras
proposições e nunca é colocada em discussão. Isto é assim para o princípio de identidade em
lógica, que não pode ser dispensado nem mesmo nas chamadas “lógicas paradoxais”. Um
princípio tem de ter aplicação universal e ilimitada, ou seja, tem de ser válido em todos os
casos e poder ser aplicado indefinidamente sem levantar contradições (em relação ao próprio
princípio, já que podem sempre surgir consequências inválidas fruto da intromissão de
outros pressupostos, mas que sabemos que são inválidas precisamente pela confrontação
com os princípios). O princípio tem que se enunciar em termos auto-explicativos, sem
depender dos temos seguintes, por exemplo, para entender o que é identidade não
necessitamos de mais nenhum conceito. Mas se tomamos uma regra qualquer, ela nunca
poderá ser um princípio se depender de outras condições que não estão na própria regra.

Em termos elementares, liberdade é a ausência de entraves a uma acção voluntária. Se


alguém tiver liberdade total e absoluta, isso quer dizer que mais ninguém pode ser livre. Só
isto mostra-nos que a liberdade não pode ser um princípio, nunca a podemos tomar em
sentido absoluto, depende sempre da situação particular ou de um conjunto de situações
hipotéticas sobre um cenário que podemos especular. A liberdade é uma regra pragmática
aplicada a certas situações e cuja resolução depende de um princípio anterior. Na realidade,
os fundamentos da liberdade não fazem parte da filosofia política liberal, eles encontram-se
na ordem social. Dizer que existe uma sociedade é dizer que existe uma ordem social e, nesta,
o aumento da liberdade de uns significa a diminuição para outros. Vai existir um certo
coeficiente entre as duas partes que não pode ser deduzido do conceito de liberdade mas que
depende de outros conceitos, como o de propriedade. A liberdade é um arranjo dentro da
ordem social e vai ter conformações muito distintas, por exemplo, um cenário em que o rei é
o proprietário de tudo e os outros são arrendatários é muito diferente de um cenário onde há
muitos proprietários. Se a questão do aborto for posta em termos de liberdade, cria-se uma
264

distorção monstruosa: não se trata de disputa entre a “liberdade da mãe” e a “liberdade do


feto”, que ainda não se coloca, mas do seu direito à vida.

Também se considerarmos a igualdade como um princípio político, logo surge a ideia


do Estado impor essa igualdade a todos. Mas para fazer isto tem de existir um poder superior
a todos os outros, o que apenas cria uma maior desigualdade. Na realidade, vemos que na
Inglaterra, que manteve os privilégios aristocráticos ao longo de tanto tempo, é onde existe
mais igualdade social. O privilege em inglês não é uma coisa odiosa como o privilégio em
português, é algo visto como uma espécie de direito sagrado. Um sistema de privilégios tanto
pode se tornar numa coisa opressiva como fornecer alguma harmonia social, não é algo que
se possa dizer, em teoria, que é de uma certa forma de uma vez por todas. Todas as
discussões em cima de termos genéricos, universais e abstractos não fazem sentido neste caso
porque a acção humana desenrola-se numa situação concreta. Podemos falar de direitos e
deveres abstractos, como se eles conduzissem inevitavelmente a um ou a outro sentido, mas
na realidade é sempre necessário fazer uma série de traduções e adaptações e, no final, os
sentidos originários vão aparecer bastante diluídos.

As confusões nas discussões modernas, cheias de conceitos abstractos e desligados da


realidade, já tinham uma raiz identificada por São Tomás de Aquino no plano moral, quando
ele identificou o problema de aplicar a norma geral e abstracta à situação real, que é sempre
particular e concreta. A regra serve de baliza mas dela não se pode deduzir uma situação
particular. Não existe uma regra sobre como fazer a transposição da norma moral para a
situação concreta, existe apenas um senso moral, que é uma espécie de intuição moral que
nos consegue de alguma forma orientar nas situações concretas e que deriva de um amor por
um bem que não conseguimos definir. Então, a educação moral não se trata de ensinar o
“certo” e o “errado”, mas é uma afinação do senso moral para as várias situações usando a
regra como guia. Para isso, é imprescindível trabalhar o senso do facto concreto e da sua
multiplicidade de aspectos. Além de que o amor ao Bem nunca pode ser desenvolvido através
de regras, que já nos chegam como uma espécie de encarnação do mal, porque são coisas que
se opõem a nós, que nos intimidam. No caso das crianças, estas não compreendem realmente
o sentido das regras porque não têm um eu autobiográfico suficientemente desenvolvido
para poderem controlar a sua conduta de acordo com expectativas anteriores que se
prolongam no futuro. A criança, fascinada pelos adultos, aprende com o exemplo que estes
mostram o tempo todo. É algo mais subtil do que ensinar regras, é ter a conduta que
queremos que os nossos filhos tenham, passar um conjunto de amores e aversões mediante o
exemplo.

Em última análise, o princípio que orienta a filosofia moral é o mesmo que deve
orientar a História, a filosofia política e assim por diante. Trata-se da consciência de
imortalidade, que é o primeiro princípio da filosofia e, se repararmos bem, está sempre
presente em Sócrates, Platão e Aristóteles, embora eles apenas falem explicitamente disto em
alguns momentos. O exemplo mais marcante é a forma alegre como Sócrates aceitou a sua
condenação à morte, que mostra que a sua crença na imortalidade não era apenas uma tese
filosófica mas um princípio que o orientava em todos os momentos. α79
265

[Aula 80]

254. O surgimento de teorias de conteúdo mutável e a arrogância universal


Quase todos os géneros literários foram usados na exposição da filosofia, desde os
diálogos de Platão às demonstrações geométricas de Espinosa, passando pelas sumas da
Idade Média. Cada uma destas linguagens requer uma certa abordagem, mas podemos
reconhecer alguns traços comuns na produção filosófica dos últimos séculos. Desde logo, o
filósofo passou a dirigir-se aos seus pares, normalmente pertencentes a um círculo académico
universitário. A obra tende a ser colectiva e, assim, a experiência pessoal – de onde saíram as
doutrinas – fica escondida debaixo do produto intelectual acabado. No caso de Descartes,
ainda temos um depoimento, mas este é bastante misterioso e enigmático [244, 248]. Mas
hoje nem isso temos, já não sabemos de onde as pessoas tiraram aquelas coisas e fica a
impressão que se tratam apenas de ideias e doutrinas puras que dialogam entre si e nascem
uma das outras.

Contudo, as experiências originárias existiram e, se não tivermos algum acesso a elas,


não podemos averiguar a veracidade ou falsidade das ideias. Assim, a leitura vai ter de ser
completada com a imaginação, porque nos textos de hoje o que nos chega directamente é a
voz de um papel social e não da pessoa inteira. Mas um papel social não pode ter experiência,
apenas o sujeito concreto a tem e é nele que de se unificam os vários papéis que ele
desempenha.

É muito mais fácil averiguar a autenticidade das experiências na literatura do que na


filosofia e, não estando os leitores informados desta diferença, ao lerem textos filosóficos
começam por colocar-se em certos papéis sociais, como se pertencessem ao Collège de
France, por exemplo, e vão analisar tudo numa escala puramente verbal, transitando entre
proposições e argumentos como se fossem coisas em si, nunca indo às coisas, às experiências,
às intuições, aos sentimentos de onde tudo aquilo brotou. Ao fim de algum tempo isto pode
tornar-se num vício incurável.

Vemos que os diálogos de Platão têm personagens com uma presença humana real,
ainda que possam não corresponder à realidade histórica. São pessoas que não se definem
apenas pelas suas ideias mas também pela sua conduta real, sem esconder os seus
sentimentos ou desejos. Os escritos de Aristóteles não possuem isto porque aquilo que restou
do seu trabalho foram notas para serem desenvolvidas em aula. Mas ele disse explicitamente
que os conceitos começam na experiência directa, pelo que é sempre possível remontar a ela
e Aristóteles deixa elementos para fazer isso.

Isso é muito difícil de fazer em relação às teses académicas modernas, porque a


experiência está encoberta por uma necessidade de adaptar a linguagem a uma série de
códigos. Mas é sempre possível sondar quem é aquele indivíduo, o que ele viu e sentiu, o que
ele pretende. Primeiro, é preciso descontar os elementos puramente colectivos e
convencionais da linguagem, que podem ser meramente imitativos, como se nota em certas
expressões e giros de linguagem que foram impostos pela academia (pelo orientador, pelos
pares) para ele poder ser aceite como um membro legítimo. Descontado este factor, é muito
mais fácil delimitar o imaginário do autor, e fica fácil de ver que se ele afirmou “certa coisa” é
porque não imaginou “isto ou aquilo” que a tornavam inviável, por exemplo.

Temos o caso de Karl Marx, que fala do “capitalista” e do “trabalhador” de forma


abstracta, reduzindo o primeiro à noção de lucro financeiro e o segundo ao indivíduo que
266

vende o seu tempo de trabalho. Acontece que Marx teve muito pouco contacto com qualquer
uma das classes. Na realidade, o lucro do capitalista é apenas um resultado final de um
processo complexo que envolve muitos factores heterogéneos que ele tem de ter em conta de
alguma forma. Então, Marx não obtém o conceito de capitalista por abstracção de uma
realidade, como ele diz, até porque ele não conhecia essa realidade, ele simplesmente assume
que o capitalista é assim. Depois, ele faz uma descrição do sistema capitalista como se fosse
apenas uma regra de jogo abstracta, uma mecânica onde entra apenas o lucro (ou capital) e
a venda do tempo de trabalho. Estes elementos existem mas estão longe de ser suficientes
para descrever o capitalismo, por isso falharam as previsões de Marx sobre o
desenvolvimento da sociedade capitalista. A própria ideia de que a revolução ia se apoiar no
proletariado não se verificou, foi antes uma base de intelectuais que criou o ímpeto
revolucionário, que depois passaram a falar em nome do interesse do proletariado,
inexistente no início mas criado retroactivamente, no esquema que depois foi explicitado por
Ernesto Laclau e Chantal Mouffe no livro Hegemonia e Estratégia Socialista [239]. A
experiência de onde Marx retirou os seus conceitos era muito pobre e limitada, mas isto
também possibilita que os leitores preencham aquilo de conteúdo com uma enorme riqueza
imaginária, porque quanto mais pobre é o esquema conceptual, mais facilmente ele é
transportável analogicamente para inúmeras situações completamente diferentes.

Já Platão esmera-se no material narrativo e na construção dos mitos de forma a que o


leitor consiga, de alguma forma, aproximar-se da experiência originária. Marx não pode fazer
isso porque estaria a expor-se ao ridículo, já que ficaria patente que ele partiu de uma
experiência quase nula. No fundo, todo o intérprete do marxismo tem que fazer uma
interpretação projectiva, pelo que a verdadeira estratégia marxista sempre foi aquela descrita
por mais tarde por Ernesto Laclau [239], da criação de classes e interesses retroactivamente
através do discurso. É inevitável que os marxistas acabem por seguir Marx nuns pontos e
nega-lo noutros e, no fundo, nunca têm a certeza de estarem realmente enquadrados no
esquema marxista.

Uma forma de simular isso é a criação de uma espécie de irmandade entre os


marxistas, que se baseia numa espécie de “conspiração de enganos” e num constante
desmentido da própria tradição. Podemos contrastar a tradição marxista com a tradição
platónica. Pode falar-se numa tradição platónica dado que temos indivíduos que, embora
possam discordar em conclusões parciais, concordam no essencial, que é a tentativa de
ascender acima do mundo da mutação contínua e da contínua corrupção e ir para um mundo
de estabilidade e permanência. Esta é uma tradição efectiva e que, de certa forma, é o oposto
da tradição marxista, de indivíduos que discordam no essencial mas que têm em comum uma
cumplicidade estratégica (ligada ao Partido) e um vínculo analógico em termos de ideias. É
impossível ter uma discussão séria com um marxista porque ele desmente-se o tempo todo e
pode nem se dar conta disso, dado usar uma linguagem múltipla como se fosse uma segunda
natureza. A falta de consistência intelectual é compensada pela solidariedade do grupo, que
tem um esquema abstracto como guia, que pode ser preenchido com quase qualquer
conteúdo. É fácil rebater o marxismo nos seus próprios termos, mas também é ineficaz,
porque logo surge outra versão do marxismo que diz o oposto. Os liberais e conservadores
perdem muito tempo com este tipo de discussão porque não percebem a estratégia de fundo
marxista.

O mesmo estratagema é usado pelos partidários da Teoria da Evolução. Darwin partiu


de algumas observações que são importantes em si mesmas mas muito insuficientes para
267

fundamentar uma teoria com pretensões universalmente explicativas. Daí ser fácil a Teoria
da Evolução mudar de formato para escapar às objecções, como no caso da substituição da
selecção natural, incoercível, pelo acaso, como se fosse uma alteração de nada e não o
surgimento de uma teoria antagónica.

O que há a fazer nestes casos não é discutir as teorias no seu conteúdo mas contar a
história da sua formação, mostrar como são compostas de agregados analógicos que não são
fiéis à teoria inicial, que depois aparece com um significado tão elástico que pode querer dizer
quase qualquer coisa. O objectivo não é provar que a teoria está errada mas mostrar que ela
não tem vínculo à experiência originária. O mundo moderno está cheio de teorias assim, que
podem mudar de identidade indefinidamente e, desta forma, não podem ser
verdadeiramente colocadas em cima da mesa e discutidas.

Existe um factor mais profundo que faz com que muitos se apeguem tão tenazmente a
teorias, não as abandonando por nada, mesmo que seja necessário mudar-lhes
continuamente o conteúdo para manter a “fachada” inicial. Estas teorias apresentam-se
frequentemente como princípios explicativos universais ou que estão associadas a estes. Isto
aconteceu pela primeira vez com Descartes com o seu cogito, que era uma hipótese
desesperada de encontrar um ponto de certeza. É uma aposta de tudo ou nada, torna-se
praticamente impossível voltar atrás e há que defendê-la a todo o custo, sendo que a forma
mais eficaz de o fazer é criar um esquema de subterfúgios que inviabilizem a sua análise
objectiva. Esta ideia de encontrar um princípio explicativo universal, de onde tudo o resto
pode ser deduzido, era desconhecida antes de Descartes, mas depois impregnou-se de tal
forma nas mentalidades que quase todos os filósofos posteriores assumiram que a sua tarefa
principal seria encontrar um tal princípio.

Então, Karl Marx vai ter como princípio explicativo da História a luta de classes, a que
junta a pretensão de ter sido o primeiro a ver a realidade do processo enquanto todos os
esforços intelectuais, literários, artísticos anteriores teriam servido apenas para encobrir a
verdadeira realidade do mesmo. Freud tenta ver o fundamento de toda acção humana no
conflito entre o id e o superego mediado pelo ego, também com a pretensão de ter sido ele o
primeiro a ver a “luz”. Os exemplos multiplicam-se até à náusea, e o que desde logo
impressiona é existirem tantos “princípios únicos” diferentes, que na realidade reflectem
apenas alguns aspectos que têm algo a ver com a realidade mas nenhum deles é realmente
um princípio explicativo.

Desde Platão até à entrada em cena de Descartes, toda a gente acreditava no mundo
como criação do espírito divino, tendo todas as coisas a marca do divino nelas, naturalmente
em maior ou menor grau. Estes graus delimitam aquilo que podemos saber de cada ente.
Além disso, o exercício da inteligência depende do auxílio da providência divina, que dá uma
forma inteligível a cada forma da criação e, por outro lado, auxilia internamente, infundindo
na nossa mente a capacidade de apreender estar formas, distinguindo-as da presença
material dos objectos. O que captamos dos entes é o seu potencial de acção e de paixão, são
propriedade que se deduzem da forma inteligível.

Mas, a determinado altura da História, as formas inteligíveis deixaram de ser


consideradas, ao menos na estrutura formal das elaborações intelectuais, e passou-se a ter
em conta apenas as propriedades matematizáveis dos entes, que não nos dizem o que os
objectos são. Então, a acção divina vai operar apenas sobre a inteligência humana, que dá a
certeza da existência do próprio “eu” e a certeza da existência de Deus através da noção de
268

infinito. É aqui que chega Descartes, que também obtém uma certeza da existência dos
objectos exteriores mas através da dedução das propriedades do ego e das propriedades de
Deus. Aquilo que antes qualquer um sabia imediatamente, agora é sabido indirectamente e
de forma artificial. Sabemos que este artifício veio do impacto que alguns sonhos tiveram
para Descartes [244], e ele, ao invés de examinar e aprofundar a sua experiência, colocou-se
dentro do seu mundo onírico e passou a assumir que ele mesmo era aquele que foi sonhado.

A matematização dos entes introduz um carácter artificial, que é útil para fomentar as
transformações técnicas, mas o objecto inicial deixa de ser conhecido. A ideia impregnou-se
na cultura a tal ponto que o conhecer transformou-se num modificar. Naturalmente que isto
tem uma série de implicações profundas em termos sociológicos, políticos e numa série de
outros campos. Vemos que o domínio da Natureza está na mão de apenas uns poucos
homens, que assim obtém domínio sobre os restantes. Mais ainda, vai desaparecendo o
interesse em conhecer o ser humano e o objectivo passa por transformá-lo noutra coisa. Isto
introduz um processo hipnótico, em que o esquecimento da situação anterior é um elemento
integrante, a investigação do passado passa a ser apenas motivada pela tentativa de justificar
o presente. Descartes e Bacon foram bastante inspirados pela ideia do domínio sobre a
Natureza, sem perceber que se tratava de fomentar uma elite que iria desembocar no
controlo da humanidade por umas poucas pessoas. Elites inexpugnáveis possuem tremendos
meios de controlo da população e formas de criação de condutas colectivas. Ironicamente, o
processo veio a ser identificado com o advento da democracia, dos direitos humanos e do
progresso da liberdade. α80

[Aula 81]
255. Filosofia e ortodoxia católica
Nenhuma investigação filosófica pode comprometer-se à partida em seguir a
ortodoxia católica. Esta última constitui-se de dogmas, que são sentenças que interpretam
formalmente o ensinamento de Cristo e fecham a sua interpretação a respeito de
determinados pontos. Ou seja, tratam-se de conclusões, porém, o dogma nunca está
completo, sempre está evoluindo e em acréscimo. Mas aquilo que foi fixado como dogma já
não é mais passível de discussão.

Em filosofia não se pode falar de sentenças definitivas, tudo é tentativo, dialéctica,


confronto de hipóteses. Trata-se de um campo semântico distinto daquele onde se encontra o
dogma. Para saber se uma sentença filosófica é herética, é preciso primeiro convertê-la no
formato de dogma. Mas basta pensar em Platão, que muitas vezes fala em linguagem poética
e usa figuras de linguagem, então, como podemos transformar estas coisas em afirmações
literais, taxativas e que pretendem ser declarações finais sobre alguma coisa? Se tentarmos
fazer isto, de cada figura de linguagem saem três ou quatro afirmações formais, que também
são simbólicas e exigem interpretação. Algumas destas podem ser heréticas, outras não.

O filósofo parte dos dados da experiência, nunca das Sagradas Escrituras ou da


doutrina da Igreja. Obviamente que os factos da experiência podem ser explorados em
269

inúmeras direcções diferentes e nem tudo o que se diz a seu respeito pode ser conferido com
a doutrina católica, dado que não têm conteúdo dogmático suficiente para isso.

Para um aluno acompanhar as aulas do Curso Online de Filosofia, ele já deve ter
conhecimento ou pressentimento da existência de géneros literários, de níveis de
predicação, dos quatro discursos. Se ele não conseguir ler e distinguir os vários níveis em
que as coisas estão colocadas, então, ele não está qualificado para receber o material do
curso. Muitas vezes os fiscais da ortodoxia são apenas pessoas muito nervosas e inseguras,
que precisam desesperadamente de uma autoridade para se apegarem. Mas uma verdadeira
vida de estudos obriga precisamente a prescindir dessa autoridade. Claro que alguém pode
dizer que, em última instância, prevalece o ensinamento da Igreja, mas isto é criar outro
problema, porque resta saber quem a representa. Nem mesmo o papa é a última palavra em
todos os assuntos, além de haver toda uma série de discussões sobre se este papa ocupa o
cargo legitimamente.

O filósofo é aquele que continua sempre buscando com sinceridade. Dizia Pascal que
não respeitava nem aqueles que negam e nem aqueles que afirmam mas apenas os que
buscam entre gemidos. O dogma tem apenas uma poucas verdades, das quais não se podem
deduzir conclusões a aplicar a todas as questões filosóficas. O decaimento da Igreja nos
últimos séculos está bastante ligado à falta de coragem em entrar em polémica com
modernistas e iluministas, achando que se podia resolver tudo com um índice de livro
proibidos. Então, os intelectuais católicos achavam que se manteriam puros não lendo certas
obras, o que era apenas entrar na espiral do silêncio, enquanto à volta toda a gente lia as
novas coisas, que iam desencadeando os seus efeitos sem que existisse uma real oposição.
Enta tentativa de proteger a alma da corrupção evitando certas leituras demonstra apenas
falta de confiança na inteligência humana e na providência divina que a sustenta. α81

256. Condições da investigação filosófica


Temos uma espécie de regra prática para determinar o tempo que uma opinião
merece ser ouvida: cerca do tempo que levou a ser pensada dividido por cem. Mas hoje toda a
gente tem opiniões no momento e acha que os outros têm o dever de ouvi-las o tempo que for
necessário, com toda a paciência e negando o direito que o outro tem em não prestar atenção
ao que dizemos. Uma investigação filosófica requer uma série de condições que podemos
começar por mapear a partir das condições que permitem estabelecer o que é uma opinião
razoável, e que são partilhadas por outros domínios do saber, nomeadamente à investigação
filosófica.

Para podermos classificar uma opinião de razoável, em primeiro lugar, esta tem de ser
realmente nossa, ou seja, temos de saber o quanto acreditamos nela. Isto remete para os
quatro discursos e para a graduação da opinião segundo uma escala que vai do meramente
possível ao absolutamente certo, passando pelo verosímil e pelo provável.

Em segundo lugar, temos de saber de onde surgiu esta opinião. Podemos ter lido em
algum lugar, ou ela pode ter vindo do meio social de múltiplas fontes e se impregnado em nós
por efeito de repetição, pode ser um ensinamento familiar, pode se tratar de algo que nos
surgiu por geração espontânea. Quase sempre não nos damos conta de que estamos a
inculcar opiniões até lhes darmos uma formulação explícita, e aí acreditamos que elas se
tornaram autónomas da sua origem. Acontece que a opinião continua a ter a mesma carga
270

semântica que tinha na sua origem histórica, estando carregada de imagens, experiências e
sentimentos que se foram acumulando ao longo da sua formação.

Em terceiro lugar, uma opinião só é razoável se soubermos a quê ela tenta responder.
Se não conseguirmos formular a pergunta (dúvida, problema, enigma, etc.) a que opinião
tenta responder, então, não entendemos a própria opinião.

Existe uma quarta condição para uma opinião ser razoável no campo específico da
filosofia: o problema tem de ser realmente um problema. Podemos ter dúvidas e inquietações
que não correspondem a nenhum problema filosófico substantivo, pode tratar-se de uma
dificuldade lógica ou de um problema pessoal que extrapolamos indevidamente para uma
dimensão universal. Então, temos de testar o problema para tentar perceber se ele emana da
realidade da experiência, isto é, ver se ele tem uma substância factual e que não se trata
apenas de uma formulação lógica elegante. A célebre questão da existência do mal num
mundo criado por um Deus bom [257] é um exemplo, parecendo uma questão muito séria e
grave, quando na realidade tem por base um pressuposto absurdo.

Uma quinta condição da investigação filosófica é a plena aceitação da natureza das


coisas. Isto implica admitir que a nossa inteligência não determina a medida do certo e do
errado ou do verdadeiro e do falso; é admitir que esta medida existe em si mesma e muito
antes de termos nascido. Temos tudo a aprender com o universo e nada a decretar. A filosofia
é o amor à sabedoria, por isso, pressupõe que esta existe e que pode ser alcançada em alguma
medida; pressupõe uma abertura para uma dissolução permanente da forma de modo a
adquirir novas formas superiores, mais vastas e integradas.

Uma sexta condição da investigação filosófica prende-se com a necessidade de que os


problemas que abordamos não têm de ter apenas uma importância e validade objectivas mas
que sejam realmente problemas nossos. Com a conversão da filosofia numa profissão
universitária, os indivíduos são obrigados a adquirir conhecimento e a abordar certos
problemas filosóficos apenas por motivos de “carreira”. É praticamente impossível criar uma
organização funcional humana que sirva a filosofia como actividade cognitiva humana,
voltada para a obtenção da sabedoria na máxima medida possível e partindo de um
património de experiências vividas pelos filósofos anteriores. A profissão de filósofo pode
eventualmente ter estes aspectos em conta, mas é apenas um elemento em concorrência com
muitos outros, que frequentemente se impõem por necessidades práticas do momento.
Assim, aparecem indivíduos medíocres que conseguem subir na hierarquia e que depois
tentam boicotar os restantes e, mesmo se não tiver essa intenção, irão inevitavelmente retirar
espaços, alterar os focos de atenção, etc. α81

257. O problema da existência do mal no mundo


Um exemplo relacionado com a opinião não razoável, mas que assim parece porque se
formula em termos elegante [256], é a célebre pergunta do porquê de Deus permitir que
aconteçam coisas más a pessoas boas, ou do porquê de Deus permitir a existência do mal.
Estas questões têm como implícito que isto não deveria ser assim de forma alguma, então, a
nossa razão fica escandalizada e achamos que isso é o que basta para termos um problema
filosófico legítimo. Se aceitarmos a pergunta, sem analisarmos o seu pressuposto, ficamos
com enigma terrível para resolver. Esse pressuposto é o de que Deus, que é amor e o bem
infinitos, devia se manifestar totalmente no nosso campo finito, o que é um óbvio contra-
271

senso. Numa escala finita os bens são limitados e aparece necessariamente na fronteira o
mal. A existência do mal não põe em causa da bondade divina mas ressalta apenas as
limitações dos ser finitos, que não podem receber ao mesmo tempo toda a sabedoria, beleza,
felicidade, etc.

Os santos e místicos dizem que devemos agradecer a Deus pelo bem que nos sucede
mas também pelo mal, porque eles sabem que muita coisa que na escala divina é o bem na
sua expressão máxima, na nossa pequena escala apenas pode aparecer sob forma invertida.
Quando encaramos estas coisas desde a perspectiva da alma imortal tudo ainda fica mais
claro, e percebemos imediatamente que todo o sofrimento é limitado e um nada na escala de
imortalidade. Claro que o mundo que sofremos aqui não se desfaz – não se trata de ver
apenas como uma coisa temporária –, mas torna-se apenas num elemento do processo de
significação do bem ilimitado correspondente à alma imortal.

Temos também que Deus criou um universo limitado, não criou outro Deus. No
elemento de limitação introduzido na criação já existe um certo coeficiente de mal e de
absurdidade inerente à limitação do mundo criado. Então, a existência do mal pode afligir o
nosso coração, o nosso estômago, o nosso bolso mas nunca devia afligir a nossa razão. Se a
existência do mal fosse irracional, isso quereria dizer que era desproporcional, quando é essa
existência que reflecte precisamente a proporcionalidade entre o finito e o infinito. α81

[Aula 82]

258. O discipulado filosófico


Ter contacto com um filósofo vivo é acompanhar o desenvolvimento do seu
pensamento e vê-lo lutar contra as dificuldades internas do seu sistema. Apenas com uma
longa convivência (vinte ou trinta anos) é possível apreender a unidade vida do seu universo
filosófico. Aí saberemos o que é um filósofo e podemos entender outras filosofias. Temos o
exemplo de Aristóteles que conviveu vinte anos com Platão, que nos dá um número modelar
mínimo de um tempo de convívio com um filósofo para apreender o seu sistema. Julían
Marías documenta bem a convivência com Ortega y Gasset (e também com Xavier Zubiri)
nos livros que escreveu sobre este e em La Escuela de Madrid. Marías teve este convívio
durante cerca de trinta anos e só depois escreveu o livro Antropologia Metafísica, que é a sua
contribuição própria, porque só depois de ter passado décadas absorvendo o pensamento de
Ortega e Zubiri sabia o que podia acrescentar. Ele veio com a ideia da estrutura empírica da
vida humana, que é algo essencial para a filosofia de Ortega mas que este mesmo nem sequer
percebeu.

Um caso semelhante deu-se entre Platão e Aristóteles. O primeiro dizia que


apreendemos as ideias eternas por intuição, que se obtém mediante a técnica dialéctica ou a
maiêutica socrática. Aristóteles diz que as ideias eternas são, na realidade, formas abstraídas
dos entes sensíveis. Ele não está propriamente a contestar Platão mas, depois de absorvido o
seu legado, vê as coisas com maior clareza e dá origem a uma linha de investigação que iria
ser aprofundada muitos séculos depois por Santo Alberto, São Tomás de Aquino e que
272

prosseguiu até à neoescolástica. Aristóteles considerava-se um platónico e era por isso que
tinha legitimidade para acrescentar algo ao platonismo ou mesmo corrigir algum pedaço.

Hoje as pessoas não têm a mínima ideia do que seja um discipulado filosófico e
pensam que podem estudar um ou dois anos com o Olavo de Carvalho e logo podem seguir
“pensando com a própria cabeça”. Obviamente que rapidamente se esterilizam e esquecem o
que aprenderam, ou seja, não chegaram realmente a ser alunos. α82

259. Uma visão de conjunto da filosofia de Olavo de Carvalho


A primeira coisa que chamou profundamente a atenção de Olavo de Carvalho foi a
falta de caridade e de humanidade nas relações humanas. Muitas pessoas agem como se
fossem dirigidas por um programa de computador, que lhes indica uma série de respostas e
reacções para aplicar às diversas situações de forma mais ou mentos automática e repetível,
não conseguindo agir e julgar fora daquele esquema. Sendo os seres humanos todos
pertencentes à mesma espécie, com as mesmas necessidades, impulsos, sentimentos, como é
possível que exista tanto desinteresse em relação às necessidades do outro e como podem as
pessoas agir de uma maneira tão mecânica sem se darem conta disso? Um burocrata pode se
reger apenas pelas regras estritas da sua repartição, ignorando que existem códigos mais
gerais, pelo que tem uma deficiente condição de cidadão. Quando os problemas passam pela
burocracia, parecem não ter resolução, mas há pessoas que conseguem resolver as mesmas
situações quase que imediatamente, apenas tendo uma intuição mais viva da situação real e
contornando a burocracia.

Podemos ver a ineficiência dos vários sectores do Estado – que também se encontra
em muitas empresas privadas – como um problema político ou social. Por exemplo,
Aleksandr Zinoviev fala das regras comunais [231], e podemos entender que cada repartição,
para além do serviço que presta oficialmente, tem de ter em conta a sobrevivência funcional
dos seus membros, o que os faz entrar em automatismos desumanos quando lidam com o
público. Mas para Olavo de Carvalho estas situações revelavam um problema universalmente
humano. No caso limite, temos o período nazista, em que toda a hierarquia, desde o führer
até ao último moço de recados desumanizou-se e ficou obcecada pelas ordens. Em
comparação, temos o caso de Otto Pötzl, que mesmo sendo membro do partido nazi
conseguiu manter os médicos judeus no seu hospital e salvou a vida de muitos outros. Então,
é sempre possível articular a situação humana concreta com as exigências de uma burocracia
desumana. O burocrata não pode ver o facto concreto, ele não tem atitudes pessoais, está
sempre defendido por uma tipificação abstracta. O paroxismo disto veio com os
computadores, que não querem saber de interesse pessoal algum mas também não são
juridicamente imputáveis. O funcionário da repartição pública limita-se a comunicar a
“decisão” do computador e não há mais discussão.

Então, para além do problema sociológico, político ou administrativo, existe o


problema da falsa consciência. Se a máquina estatal é uma estrutura impessoal e sem
compreensão dos factos concretos, os agentes humanos deviam introduzir nela um certo
quociente de inteligência concreta, de sensibilidade e de consciência humana. Até o
“jeitinho”, que podia ser um atenuante sociológico da impessoalidade da máquina
burocrática, tornou-se em mais um código impessoal baseado da exploração, no roubo e na
intimidação. O funcionário que não recebe a propina esperada pode tornar a máquina ainda
mais ineficiente.
273

Mas quem é o “eu” que está por trás destas acções impessoais burocráticas? Quem é o
sujeito agente? Quem está pensando, quem conhece e como conhece? E qual é o processo
cognitivo aqui envolvido? Olavo de Carvalho descobriu, entre outros, três factores produtores
de consciências substitutivas, que dão às pessoas falsas identidades, com as quais elas se
identificam a ponto de desactivar as suas consciências e perder a noção de facto concreto e de
situação individual, tornando apenas compreensível o que já está previamente classificado e
categorizado.

O primeiro factor produtor de consciência substitutivo é o papel social do indivíduo,


nomeadamente o emprego. O medo de perder o papel social é tão grande que, para o manter,
muitos acham que qualquer sacrifício da alma e do coração é um preço pequeno. Não
existindo normas sociais estabelecidas para coisa alguma, gera-se um ambiente de
insegurança geral. Já nos anos 50 do séc. XX a sobrevivência na sociedade brasileira exigia
uma espécie de génio, uma adaptação rápida aos mais diversos códigos, o que conduz a uma
total falta de personalidade. Contudo, a rapidez de criação de mecanismos adaptativos, num
esforço de cada um se sentir igual aos outros, apenas aprofunda a insegurança. O
desempenho de múltiplos papéis sociais faz com que o indivíduo, quando entra numa
organização que o transcende em tamanho e poder, se identifique automaticamente com ela,
não em termos de objectivos mas no sentido de emular a sua estrutura funcional e encontrar
nela uma carapaça defensiva.

O segundo factor produtor de consciência substitutiva é a ideologia, a que se adere


por uma revolta contra uma sociedade que parece injusta. Os indivíduos encontram num
movimento revolucionário uma resposta que responde às suas ansiedade e que promete a
criação de um mundo novo de justiça, paz, liberdade, harmonia. Mas as descrições dos
ideólogos revolucionários não correspondem ao que podemos ver na realidade. Por exemplo,
eles dizem que a desumanidade da sociedade é causada pelo “imperialismo americano”, mas
não se percebe o porquê deste imperialismo determinar a idiotice do funcionário público
brasileiro. Facilmente percebemos que as pessoas imbuídas de ideologia são tão ou mais
desumanas que os funcionários públicos (e podem até ser as mesmas pessoas), mas a
ideologia vinha carregada de prestígio moral, intelectual e cultural, dando aos seus
defensores um prestígio acrescido. O revolucionário sente que está imbuído de altos valores
civilizacionais, enquanto que o burocrata sabe que é apenas um representante momentâneo
de uma estrutura funcional. Os burocratas não se sentem melhores que os outros,
simplesmente adaptam-se a uma situação de facto. Já os revolucionários são tão ou mais
desumanos que estes mas sentem-se como se fossem santos autorizados a fazer qualquer
coisa, estando legitimados à partida pelos objectivos da “luta social”.

O terceiro factor produtor de consciência substitutiva é a religião. O cumprimento


mecânico dos Dez Mandamento parece uma coisa muito certa e linear para muitos religiosos,
mas apenas porque não têm em conta toda uma série de complexidade que estão por baixo.
As pessoas estão a toda a hora julgando os outros sem perceber que já estão a infringir o
mandamento de “amar o próximo como a ti mesmo”. O que fazem é apegar-se aos pecados
mais materiais e evidentes, como os da concupiscência, e pensam que basta confessar e tudo
o resto não importa. Neste sentido, a religião funciona como uma defesa contra a própria
consciência. A obediência formal a uma série de preceitos mecanizáveis substitui-se à
verdadeira consciência, que é o constante exame das próprias acções.

Estes factores tornam praticamente a convivência na base da natureza humana, que


implica ter uma consciência moral própria, perceber o que se está fazendo e questionar se é
274

certo ou errado. Para onde foi parar a natureza humana? O que é esse mundo de exigências
fictícias que tomou as pessoas? Ortega y Gasset fala de um fundo insubornável, que é o
“lugar” onde cada um reconhece o que é, o que fez, o que está sentindo e assim por diante.
Mesmo que este fundo apenas se revele muito esporadicamente, ele tem de existir. Onde está
este centro e o que nos impede de chegar a ele? Esta foi a primeira grande pergunta de Olavo
de Carvalho, feita ainda na adolescência, dirigida não apenas aos outros mas também a si
mesmo, e que o levou a leituras de psicologia, mística, esoterismo e também a buscar as
técnicas associadas. Isso desembocou na Nova Era, que criou uma multidão de caricaturas
tão ou mais deploráveis que burocrata ou o militante. Cada uma destas correntes culturais –
Nova Era, esoterismo, metafísica oriental, doutrinas hindus, sex lib, ecologismo, etc. – tinha
algo que se aproveitava, mas tudo era colocado dentro de um quadro ainda mais alienante e
de natureza ideológica, no sentido do realce de um factor único que tenta resolver tudo num
raciocínio unilinear.

Até cerca dos 20 anos, o esforço de Olavo de Carvalho não era propriamente
filosófico, era uma tentativa de obter alguma orientação pessoal dentro de um certo meio
cultural, com a absorção de elementos culturais existentes mas ainda sem pretender buscar
uma solução séria e intelectualmente consistente. Mas no esforço de encontrar a sua própria
voz, a sua personalidade, deu-se conta de que não estava a levar em consideração o elemento
da mediação cultural. Nós pensamos e falamos com uma linguagem que já vem carregada de
conotações, valores, interpretações, pelo que já carregamos uma herança sociológica e
histórica, que tanto nos permite chegar ao nosso próprio centro como também é, noutras
ocasiões e mesmo em simultâneo, uma barreira para chegar a ele. Então, torna-se necessário
personalizar os elementos culturais. Daqui surgiu o primeiro estudo sistemático – e de
carácter realmente filosófico e não apenas biográfico – de Olavo de Carvalho, corporificado
na Teoria dos Quatro Discursos. Isto significou voltar a Platão e Aristóteles, seguindo uma
pista dada por Swami Dayananda, directo da Academia de Estudos Védicos de Bombaim, que
mostrou espanto por ver os ocidentais irem estudar o vedanta para a Índia quando o melhor
do vedanta era ocidental: Platão e Aristóteles.

A investigação sobre os Quatro Discursos partia da ideia de que toda e qualquer


experiência humana chega-nos como uma mescla de sensações, emoções, imagens, que na
realidade é intraduzível e da qual só conseguimos manipular uma pequena parte, que é
aquela para a qual temos instrumentos linguísticos, culturais e simbólicos correspondentes.
Tornou-se então óbvio que as pessoas, em geral, não dispõem de instrumentos culturais para
expressar as suas impressões genuínas, assim, apenas vão expressar o que já está consolidado
na linguagem colectiva. Desta forma, as pessoas sentem uma coisa e dizem outra, que para
elas serve como símbolo das experiências reais mas para os restantes simboliza outra coisa.
Os poetas e grandes escritores fazem um enorme esforço para tornar dizível a experiência (a
sua e a dos que os rodeiam). Mas o meio cultural vai ter tanto entes estes elementos como
muitos outros, e se não vamos procurar a parte correspondente à alta cultura não iremos
personalizar a nossa consciência, vida e linguagem, mas iremos receber influência aleatórias
ou destinadas a sermos imagens de algum modelo já destinado para nós desde fora.

O facto de que a experiência humana é mediada por elementos culturais não é em si


uma alienação, não nos separa necessariamente da experiência originária, dado que esta já
contém em si elementos linguísticos. Estes elementos não incluem apenas aquilo que se
consolidou na língua, na literatura, nos costumes mas também elementos que estão dados na
própria experiência, no tecido das nossas sensações materiais, cada uma delas já contendo
275

uma estrutura comunicativa e significativa. Todas as sensações significam algo, tem as suas
formas e, por isso, as distinguimos por “dizerem” diferentes coisas, não é apenas uma
projecção nossa sobre elas. Existe uma linhagem baseada em Kant – que diz que não
alcançamos a coisa em si e tudo é criação das nossas formas a priori – que vai dizer que,
afinal, apenas conhecemos a nossa própria linguagem. Mas se um cachorro nos morde ou se
observamos uma paisagem, tratam-se de coisas significativas em si e que nos transmitem
algo, não são coisas amorfas sobre as quais projectamos algo.

Daqui surgiu a questão do simbolismo natural, ou seja, existe uma significação


natural, a Natureza física diz-nos algo. Daqui surgiu a Olavo de Carvalho a ideia da Tripla
Intuição. Quando não havia ainda meios de produzir luz, por falta de domínio do fogo, a
presença ou ausência do sol acima do horizonte (e da lua, em alguns casos) corresponde a ver
ou a não ver. Então, o conhecimento intuitivo e imediato que o indivíduo tinha da presença
da luz é a mesma coisa que a consciência imediata que ele tinha da sua capacidade de ver. O
mesmo acto consiste em perceber a luz e perceber que estamos enxergando. Assim, não é
possível separar o símbolo e a coisa simbolizada: presença do sol (da luz) não é apenas
símbolo da capacidade visiva, é a própria capacidade actualizada por um elemento externo.
Podemos até negar a objectividade do mundo exterior mas não podemos negar a
objectividade da fonte de luz e o acesso directo que temos a ela. A luz é o factor que assegura
a ligação entre o sujeito cognoscente mais profundo e íntimo e o mundo exterior de ordem
material. A luz é o a priori de toda a percepção visível do mundo e, ao mesmo tempo, é um
seu objecto. Nos últimos séculos tornou-se invisível e incompreensível para os filósofos esta
ligação profunda e imediata entre consciência humana e ambiente material em torno.

O estudo do simbolismo natural permitiu a Olavo de Carvalho resolver uma série de


problemas filosóficos inúteis e artificiosos que ocuparam os filósofos nos últimos três séculos.
Daqui surgiu a admissão definitiva da nossa presença num mundo que está presente o tempo
todo e que nos dá a estrutura da nossa compreensão. Desta forma, a ideia kantiana das
formas a priori aparece invertida. Kant diz que o espaço é uma forma a priori que está na
mente do indivíduo e que este a projecto sobre os objectos, mas não poderíamos fazer isso se
não estivéssemos fisicamente dentro do espaço, que tem uma estrutura, é composto de
direcções, que não são formas a priori da mente mas algo dentro do qual estamos. As formas
a priori reais são a própria estrutura do mundo externo, que não temos que ordenar mas que,
pelo contrário, nos ordena.

Nos últimos três séculos, os filósofos, tentando examinar as estruturas do


conhecimento, voltaram-se para o sujeito e para a subjectividade, mas não se lembraram de
olhar para as estruturas do mundo externo, apesar da sua evidência. Há uma alienação em
tentar procurar dentro da subjectividade elementos que nunca estiveram lá.

A partir daqui, Olavo de Carvalho formulou as quatro condições do conhecimento


científico, inspirado em Husserl. Para existir conhecimento tem de haver, em primeiro lugar,
a possibilidade de evidência, que é um conhecimento directo que não podemos negar, como a
presença da luz como mediador entre o olho e qualquer objecto do mundo exterior. Mas nem
tudo pode ser conhecido por evidência, e daí vem a segunda condição, que é a existência de
prova. Para existir prova tem de haver pensamento lógico estruturado, que é uma articulação
de conceitos desenvolvidos em cima de signos. Mas tem que existir uma terceira condição
porque a prova é apenas uma evidência lógica e é necessário haver um nexo entre o
conhecimento por evidência e o pensamento lógico. Então, a terceira condição é o nexo entre
a evidência e a prova. Por último, este nexo tem de ser evidente: a evidência do nexo.
276

Mas se o mundo exterior, através pela luz, é o mediador entre ele mesmo e a nossa
capacidade cognitiva é porque este mundo é adequado ao nosso conhecimento. Olavo de
Carvalho invertia assim a fórmula escolástica que dizia que a verdade é a adequação entre a
coisa e o intelecto, dizendo que esta adequação está na coisa e não no intelecto. O ponto
subtil é que tentamos nos adequar ao mundo exterior, à objectividade, mas carregamos a
nossa subjectividade, não temos o critério da adequação. Então, é um esforço falhado a não
ser que o mundo se revele a nós, ou seja, ou as coisas são evidentes ou não temos forma de
chegar a elas. A nossa subjectividade não é o garantidor do mundo exterior; o mundo exterior
é que nos garante.

Chegando a este ponto, Olavo de Carvalho chegou a um método para obter


conhecimento que chamou de Contemplação Amorosa. Trata-se da aceitação completa do
mundo exterior, incluindo a nossa presença nele tal como se dá neste momento, com
abertura completa e sem objecções, sem tentativas de enquadrá-lo em alguma categoria mas
esperando que a categorização e a significação dos objectos nos apareça neles mesmos, ou
seja, é esperar que objectos nos digam ao que vieram.

A Contemplação Amorosa levou Olavo de Carvalho à filosofia do facto concreto. Este é


o facto tomado na sua actualidade e na totalidade dos elementos que o compõem; tem de
englobar tudo aquilo que é necessário para ele ocorrer. Normalmente raciocinamos a partir
das essências abstraídas dos seres físicos e chamamos tudo o resto de acidentes. Mas nenhum
facto pode ocorrer apenas na sua essência, é necessário o acidente metafisicamente
necessário, que é aquele acidente que não faz parte da definição, nem da essência e nem
sequer faz parte da processo ou da acção considerada mas tem de estar presente.
Tradicionalmente os acidentes são tidos como aquilo que não é necessário, que não faz parte
da natureza da coisa (por exemplo, num crime, saber como estavam vestidos os envolvidos, o
que cada um tinha comido antes, se um automóvel passa à distância, se chove ou faz sol/lua,
etc.) Mas se retirássemos estes acidentes iriam também desaparecer as coisas concretas,
reais, sobrariam apenas as nossas ideias. Todas as abstracções são feitas desde a percepção
de facto concreto. Apesar do número de acidentes ser ilimitado numa situação, nós os
percebemos todos ou quase. Então, a capacidade de abstracção é algo maravilhoso mas ela
exerce-se sobre algo ainda mais maravilhoso, que é a capacidade de percepção de factos
concretos, que têm uma complexidade que transcende infinitamente a nossa capacidade de
raciocinar sobre eles. Isto devia ser mais que suficiente para nos darmos conta de que
estamos num mundo real e que é dele que obtemos as formas ou esquemas do nosso
pensamento.

E não apenas temos percepção do que nos é imediatamente visível, como nunca
perdemos a consciência de um círculo que se prolonga para além da nossa visão e que
sustenta a nossa capacidade de percepção. É uma consciência que temos em permanência
embora não pensemos nela deliberadamente. Então, para além da percepção sensível e da
razão, revela-se aqui uma terceira modalidade de conhecimento, que é o conhecimento por
presença. Toda a percepção sensível é a percepção de um limitado cuja forma é definida por
um ilimitado que o circunda e possibilita.

Aquilo que começou com o método da contemplação amorosa, abriu um novo campo
de objectos, e estes, por sua vez, sugeriram um novo método: imersão e extrusão.

A imersão diz respeito à postura real e eficiente do filósofo perante a realidade do


universo. Implica mergulhar com plena consciência da nossa própria realidade dentro de
277

uma realidade infinita que se recorta, conforme nos deslocamos, em sucessivos perfis finitos.
Fora desta consciência de imersão temos apenas produtos mentais, que podem representar
ou significar elementos da realidade do mundo, mas também uma dinâmica e uma força de
atracção próprias. Uma das coisas mais corruptoras que existe é querer criar uma filosofia,
porque partimos para uma tentativa de coerenciação dos vários conceitos que usamos e
facilmente voltamos costas à experiência originária para apenas deambularmos no mundo
mental criado por nós. Então, não se trata de construir um sistema filosófico mas de
desenvolver uma atitude filosófica consistente com a nossa presença no mundo ilimitado,
tanto em termos espaciais como na sua consistência interna (cada facto, estado, situação
implica uma infinidade de elementos acidentais).

Extrusão consiste em puxar de dentro da experiência todos os elementos


maximamente comunicáveis que façam reviver a um ouvinte a mesma experiência. Mesmo
que a expressão verbal não seja perfeita, o importante é conseguir evocar a experiência no
outro.

Já vimos que a luz é um elemento mediador indispensável para o nosso conhecimento


do mundo exterior. Mas existe outro elemento necessário, que é a consciência de elemento
presente e de testemunha dos factos. A consciência tem uma propriedade única: enquanto
todas as palavras e conceitos são autónomos em relação aos seres que representam (podemos
falar num elefante sem ele estar presente), apenas podemos falar de consciência na sua
presença. Então, o processo de imersão e extrusão culminou no método da confissão. A
confissão significa admitir que sabemos tudo o que sabemos. Se começarmos a relatar um
qualquer acontecimento banal que presenciamos, veremos que sai dali uma multidão de
acidentes metafisicamente considerados que não acaba mais. Este é um material que não está
em nós mas à nossa volta, mais ainda, nós estamos dentro dele. Então, o método da confissão
abre-nos para o conceito da verdade como participação. Isto não desmente o conceito da
verdade escolástica – adequação entre a coisa e o intelecto – mas só pode haver adequação
com a participação da consciência na realidade do mundo presente. O método da confissão
visa apresentar algo ao ouvinte que ele já sabe e do qual é testemunha, pelo que a palavra é
sempre imperfeita mas deve ser suficiente para evocar a mesma experiência e conseguir
convocar o testemunho universal.

Só conseguimos conhecer a realidade de também formos reais, pelo que existe uma
co-participação entre a verdade do eu cognoscente e a verdade daquilo que ele conhece. Se
não formos testemunhas fidedignas daquilo que experienciamos do mundo também não
podemos conhecê-lo. Mas onde está o verdadeiro “eu”, por trás de tantos disfarces e
camuflagens? O eu verdadeiro tem de estar aberto à infinidade quantitativa do mundo
acessível, assim como tem de estar aberto ao infinito para além deste mundo ou, então, fica
fechado nos seus próprios pensamentos. Assim, o único interlocutor que garante a
genuinidade do “eu” e, deste modo, a objectividade do seu conhecimento é a própria abertura
desse “eu” para a totalidade do real, imanente e transcendente. Daqui surgiu a ideia do
observador omnisciente, que é o nosso interlocutor por excelência e o que permite a
existência do eu consciente. Então, a confissão que começou com a admissão do facto
concreto culminou com a nossa apresentação perante o observador omnisciente, e à medida
em que lhe contamos algo com toda a sinceridade, ele nos revela um pouco mais, mostrando
ser, como dizia Paul Claudel, “aquele que em mim é mais que eu mesmo”.

Isto abriu a porta para novas constatações. Examinando o conteúdo das percepções, a
conclusão é que todas são fragmentárias. Mas não teríamos percepção alguma sem um senso
278

da presença do ilimitado e do infinito, dentro do qual é recortado o conjunto das percepções.


Todos os sinais físicos que nos chegam, não chegam para nos dar um sinal da existência do
mundo, dão-nos apenas aspectos, pedaços. Então, a existência do mundo não se revela pelas
sensações mas por aquilo que as possibilita, que é a unidade do real. Esta unidade não nos
chega por percepção mas pelo conhecimento por presença, dentro do qual a percepção é
apenas um recorte momentâneo, fragmentário e transitório dentro do fundo que é a
realidade do mundo.

Qual é a forma de existência do “eu” que está observando e confessando tudo isto?
Não se confunde com a memória, que apenas se limita ao que vimos e fixamos, mas sabemos
que temos uma continuidade existencial para além disto. Não vamos conhecer este “eu” por
exame de memórias, de ideias ou de sensações, mas apenas pelo conhecimento por presença.
Mas todos estes elementos permitem recordar que sempre se manteve o mesmo ser por
detrás, um eu substantivo que permite a existência de um eu cognoscente, de um eu
sensitivo, de um eu autobiográfico, de um eu social. Para efeitos de conveniência, quando
nos relacionamos com alguém damos relevância ao eu social, mas a convivência seria
impossível se não soubéssemos que a outra pessoa existe substancialmente, sendo dessa
fonte que brotam inúmeras possibilidades que não estão presentes no momento. Então,
temos uma espécie de sentimento da presença do eu substantivo, temos consciência de ser
algo realmente e que pensamentos e conhecimentos são apenas aspectos disto.

Mas não é possível conhecer o eu substantivo na sua totalidade, e nem sequer é


necessário, porque ele não é um objecto de pensamento: ele é o que somos e não o que
conhecemos. O eu substantivo é aquele que se apresenta perante o observador omnisciente e
que é por este constituído. O reconhecimento da nossa criação de criatura é a condição de
todo o conhecimento objectivo.

O atrás exposto constitui as bases para a teoria do conhecimento e para a metafísica


de Olavo de Carvalho, que sobre isto tem elaborado uma série de investigações menores e
derivadas.

O eu substantivo é aquilo que efectivamente somos de forma contínua. Se juntarmos a


isto os depoimentos de estados de morte clínica, em que existe “algo” que sobrevive ao corpo
físico, só podemos concluir que esse “algo” é o eu substantivo. Já vimos várias experiências
que podemos realizar para ganhar consciência da imortalidade da alma [190, 192, 195, 196,
202, 203, 212, 252]. Para além disto, temos outras fontes no trabalho de Olavo de Carvalho a
respeito da filosofia do infinito e do milagre, a começar pelos capítulos finais do livro O
Crime da Madre Agnes e culminando no curso sobre a Consciência de Imortalidade,
passando pela conferência “O que é um milagre”.

A partir daqui entendemos que a escala de tempo em que a alma imortal se situa
transcende a duração da História humana inteira. Santo Agostinho falava das Duas Cidades,
por um lado há a História dos impérios, das sociedades, das culturas, que é toda feita de
descontinuidade e escandida pela morte física das personagens; por outro lado, temos as
almas imortais com uma existência contínua. A filosofia da História procura dar unidade a
algo que não a tem, no máximo existem apenas algumas unidades temporais muito relativas.
Torna-se importante compreender de onde surge a necessidade de dar uma unidade à
existência terrestre, que simula a unidade da estrutura real do cosmos e da vida. É uma
transposição da escala metafísica para a escala física. Todas as filosofias da História criam
mundos imaginários que se impregnam na alma das multidões e estas iludem-se de estar a
279

viver numa escala que na realidade é fictícia. Estas tentativas de criar imagens de
continuidade histórica tornam-se elementos da acção humana e do poder. As pessoas
adquirem um senso de participação se acreditarem que estão dentro de um processo
histórico que tem um determinado sentido hipotético. Mas como se trata de uma visão
restrita ao universo físico terrestre, um dia a morte chega e esta participação torna-se nula.
Claro que é uma participação nula desde já, é uma mera participação ilusória numa coisa
ilusória.

Qualquer concepção puramente terrestre da História é uma falsificação e, ao mesmo


tempo, um esquema de construção de um poder. Uma dessas construções é a ideia de
império, analisada por Olavo de Carvalho no livro O Jardim das Aflições. Esta é uma ideia
que perpassa a História do Ocidente. Em teoria, o império duraria para sempre, mas a sua
Historia constitui-se de impérios passados já defuntos, o que não impede que seja uma ideia
recorrente. O império é a imagem da permanência transposta para a escala da sociedade e da
História.

A origem da desumanização e da despersonalização – a questão inicial para Olavo de


Carvalho– advém destes esquemas baseados em concepções como as de destino nacional,
destino de classe, destino de raça, etc. Eric Voegelin fala de um cosmium, que seria um
pseudo-cosmos inventado quando se cria a sociedade política. As pessoas passam depois a
viver dentro papéis sociais e acabam por se identificar com eles a ponto de esquecerem as
suas verdadeiras identidades de almas imortais. Assim é criada a desumanização: as pessoas
são retiradas do seu próprio centro e colocadas num papel social, que funciona como
simulacro da personalidade. Qualquer processo histórico só pode ter alguma legitimação se
for colocado na esfera da infinitude e da imortalidade, mas o que as filosofias da História
fazem é precisamente retirar a imortalidade fora do horizonte.

Outro estudo realizado na sequência por Olavo de Carvalho debruçou-se sobre a


fenomenologia do poder, que culminou com o curso “Teoria do Estado”. Ali é feita uma
especulação sobre como o ser humano cria estruturas fictícias, distribui papéis sociais e cria
novas personalidades com as quais as pessoas se identificam porque já não vivem mais no
enredo divino da imortalidade. As estruturas de poder tornaram-se ao longo do tempo cada
vez mais abrangentes e ambiciosas, numa tendência que foi agudizada com o advindo dos
meios de comunicação de massas que permitiram conceber regimes totalitários. Nunca foi
tão fácil e rápido como hoje criar simulacros históricos. A criação destes simulacros, que
alienam as pessoas da sua imortalidade, culmina na mentalidade revolucionária [156, 224].
α82

[Aula 83]

260. A adaptação às situações da anormalidade


Durkheim dizia que quantidade de anormalidade que uma sociedade consegue
aceitar é limitada. Então, quando uma situação anormal se prolonga, ela vai se tornar num
novo padrão de normalidade e a sociedade inteira vai ajustar o seu foco de atenção e os seus
esquemas de compreensão para não perceber mais aquela anormalidade, que se torna
280

ironicamente num novo padrão de normalidade que servirá para julgar o resto. A rapidez
com que as pessoas se adaptam às anormalidades é muito impressionante, sobretudo quando
elas tiveram pouco ou nenhum contacto com uma situação anterior ainda permeada pela alta
cultura. Para escapar a isto é necessário uma espécie de génio e uma independência
formidável. Não basta ser inteligente e estar revoltado contra a situação, porque a pessoa
ainda continua indefesa se pensa que aquilo que lhe está a ser imposto é a realidade e que
tentar escapar àquilo é um sonho ou uma ilusão. Na verdade, é o oposto: aquilo que se nos
afigura como a “dura realidade” só nos parece assim porque é apresentado como sendo
compartilhado pelo colectivo, quando não é mais do que uma ilusão grupal da classe falante.

O primeiro elemento da obediência é a crença, pelo que se acreditarmos que as


fantasias que nos querem impor são a realidade, então, já estamos obedecendo a elas por
mais que odiemos aquilo. As nossas crenças são elementos estruturantes da nossa
personalidade e se aceitarmos que cosmovisões totalmente fictícias são a realidade, então,
vamos acabar por ter atitudes depressivas. α83

261. Exercício das Camadas da Personalidade


A personalidade não nasce pronta e tem de passar por uma série de mutações
evolutivas até chegar a um nível em que seja possível uma actividade intelectual. Algo que
devemos fazer, na senda do Exercício do Necrológio [4, 187], é um exame de nós mesmo à luz
da teoria das camadas da personalidade. Não se trata verdadeiramente de uma teoria mas
de um instrumento descritivo de um fenómeno de fácil observação. Os elementos que
compõem a personalidade são mais ou menos os mesmos em todas as pessoas, isto é, todos
temos os mesmos instintos, impulsos, necessidades ou sentimentos de base. Então, a
diferença não está nos elementos que compõem a personalidade mas na forma que o
conjunto adquire, sendo uma forma mutável com o tempo. Para apreender a forma que uma
personalidade tem num dado momento, devemos fazer a pergunta: qual é objectivo
dominante que orienta o conjunto dos esforços da pessoa visada? Procuramos, então, uma
chave que esteja no fundo dos vários objectivos, emoções ou estados que a pessoa vivencia.

Um bebé, que se encontra na primeira camada, olha para o seu próprio corpo como
uma coisa estranha. Mexe os membros, pega no pé e observa-o durante muito tempo, ou seja,
tenta obter domínio do corpo. Por outro lado, está numa permanente busca de auto-
satisfação. Então, o primeiro centro de interesse é o próprio corpo e o bem-estar corporal. É
um interesse que nunca é abandonado, nem mesmo pelo asceta, sendo a disciplina que impõe
a si mesmo também um esforço de apropriação do corpo. O esforço para dominar o corpo é
também uma tentativa para personalizá-lo e não ficar totalmente à sua mercê.

Embora esta primeira camada nunca se perca, ao fim de algum tempo há uma
passagem para outros centros de interesse, apontando agora para elementos do mundo
exterior. A segunda camada diz respeito a uma personalização dos instintos (que se
prolongam para além do próprio corpo). Todos temos um instinto básico de fome, mas não
gostamos todos de comer as mesmas coisas. As crianças logo desde tenra idade gostam de
diferentes brinquedos e actividades e, assim, tomam posse de um círculo um pouco mais
amplo que o próprio corpo. Seleccionar instintos e desejos e tentar atendê-los já extravasa o
corpo, visando agora coisas, pessoas, situações, objectos. Nesta segunda camada formam-se
impulsos e desejos predominantes. Esta camada – uma personalização dos gostos, desejos e
preferências – vai também permanecer para o resto da vida, pois nunca deixamos de
281

selecionar objectos, situações, sensações que queremos ou não queremos, que toleramos ou
não.

Todas as camadas que são atravessadas permanecem para sempre, só que vão sendo
integradas como aspectos nas camadas seguintes, que as transcendem e abarcam. A
satisfação de uma camada atende à satisfação das camadas anteriores. O corpo, que
inicialmente era como se fosse o mundo para o bebé, passa depois para segundo plano e entra
na segunda camada como uma parte, instrumento ou meio, à semelhança do que ocorrerá
nas integrações seguintes.

A terceira camada começa a surgir quando o indivíduo abre-se ao círculo das relações
sociais, que é algo que transcende instintos corporais e gostos. Um bebé na segunda camada
ainda não faz muita distinção, em termos de conduta, entre pessoas, animais e coisas. Tudo
são objectos de desejo ou de sofrimento, não aparecendo ainda explicitamente como
entidades externas com uma existência independente. Esta nova camada implica perceber
que “os outros não são eu”, que também são centros geradores de acção, de significação, pelo
que não podemos submeter todos ao nosso desejo. A criança faz a descoberta formidável de
saber que não manda no mundo, por isso, tem de aprender a se relacionar com os outros,
aprender uma série de códigos e as “regras do jogo”. Ao mesmo tempo que há uma espécie de
queda da omnipotência, abre-se uma data de possibilidades até aí impensáveis. Um bebé
pequeno conhece apenas a linguagem da força, ele chora, grita, faz força, quebra o brinquedo
que não se comporta como ele quer, bate no irmãozinho. Mas quando passa para a terceira
camada, ele apercebe-se da existência de um imenso tecido de relações, de regras, de signos,
de todo o mundo da linguagem social, que não inclui apenas a linguagem verbal, diz também
respeito a códigos que se podem expressar em gestos ou em olhares.

A terceira camada abre um mundo muito mais vasto e complexo do que aquele que se
tinha revelado nas primeiras etapas, que lidavam com o corpo como portador de desejos e de
instintos e também com o mundo físico em torno. Das experiências acumuladas na terceira
camada vai se formar o círculo de onde desponta a quarta camada, que diz respeito ao
mundo dos sentimentos historicamente consolidados. Tem que haver algum sentido de
história pessoal, uma distinção entre passado, presente e futuro. Assim, as coisas passam a
ter uma significação temporal. A partir da própria história dos sucessos e fracassos
conseguimos delinear esperanças, objectivos, sonhos. É nesta camada que se faz uma
personalização do mundo emocional, que só tem sentido desde uma perspectiva temporal.
Formam-se aqui, pela primeira vez, sonhos e aspirações, o que imediatamente faz surgir a
consciência do abismo entre o imaginário e a situação real. Aparecem inúmeros signos,
aspirações e símbolos que não estão presentes fisicamente e que, de certa, só existem para
nós mas que não deixam de ser reais. Não é muito correcto dizer que são coisas que estão
“dentro” de nós porque estamos a fazer uma metáfora espacial, ao passo que as emoções e os
sentimentos não estão localizados como acontece com as sensações. As emoções espalham-se
por nós inteiros e parece mais que somos nós que estamos contidos nelas, por exemplo, os
estados de tristeza ou de medo abarcam-nos por inteiro. A busca de satisfação que existia nas
duas primeiras camadas volta aqui a ocorrer, mas agora numa modalidade mais subtil, é uma
satisfação emocional que chamamos de felicidade, a que se junta uma fuga à infelicidade.
Nesta camada forma-se uma constelação de símbolos que representarão para nós a
felicidade, o infortúnio, a alegria, a tristeza, etc. Trata-se de um período de intensa busca de
auto-satisfação, há uma busca incessante de sentir certas coisas e de não sentir outras, o que
leva a tentar encontrar coisas estimulantes, certos desportos, aventuras, festas, etc.
282

Mas toda esta busca de auto-satisfação torna-se repetitiva e em alguma altura fica
evidente que está destinada ao fracasso. Afinal, a felicidade é como o prazer, e este, como
dizia São Tomás de Aquino, é o resultado lateral e subjectivo de alguma coisa que deu certo.
O prazer nunca é objectivo, é um termo abstracto que designa uma constelação de
sentimentos que diferem muito de pessoa para pessoa. Em relação à felicidade é a mesma
coisa e na realidade nunca temos a certeza do que nos deixa felizes. Então, chega um
momento em que o indivíduo dá-se conta de que tem de estabilizar certos sentimentos e a
primeira coisa a fazer é sentir-se bem com ele mesmo. Na quarta camada, o jovem que busca
a felicidade está dependente de algo exterior, de algo que lhe acontece, de ter amigos, da
namorada gostar dele. O sujeito entra na quinta camada quando percebe que é o autor dos
seus próprios estados, que não tem de ser dependente do que os outros façam ou deixem de
fazer. Então, ele percebe a necessidade de tomar posse de si mesmo no sentido existencial
total, não no sentido corporal como na primeira camada. Quando tenta ser senhor do seu
destino, o indivíduo já não vê o “jogo” determinado por um critério de felicidade ou
infelicidade mas por outro de vitória ou derrota. Ele tem de vencer e provar para si mesmo
que é alguma coisa. Pode existir algum grau de exibicionismo nesta prova mas será
secundário. Aquilo que antes podia deprimi-lo vai, nesta fase, ser encarado como um desafio
a vencer. O que é natural no adolescente é tentar ter orgulho em si mesmo, e para isso as
camadas anteriores são conservadas mas agora como instrumentos para a conquista de
objectivos que as transcendem. Ele tem de integrar o mundo emocional da quarta camada
mas agora não tem valor em si e é “apenas” um factor de vitória ou derrota, porque se ele não
conseguir reprimir certos sentimentos e apoiar-se noutros não conseguirá lutar na afirmação
do seu próprio valor. O mesmo se pode dizer para a personalização que ele fez anteriormente
da linguagem ou das relações sociais.

É necessário um mínimo de auto-confiança para sobreviver no meio social, e se isso


ficar consolidado o sujeito pode passar para outra fase, onde não está mais focado em sentir a
sua própria força mas em obter algum resultado real. O indivíduo da sexta camada, quando
começa a trabalhar, tem um conjunto de tarefas a desempenhar e o que importa é fazer as
coisas com eficiência, sendo irrelevante se aquilo lhe sirva para algo em termos de auto-
afirmação (camada cinco) ou de felicidade (camada quatro). Trata-se de uma camada
contabilística, em que o crédito deve superar o débito. Na busca da eficiência torna-se
importante saber gerir o tempo e as energias para no final servir fins que estão além de nós.
Sacrificamos um pouco da auto-imagem e da felicidade para obtermos eficiência – não
apenas no trabalho mas em vários domínios da vida – à medida que adquirimos um senso
prático, que é aquilo que nos torna dignos de sobreviver na sociedade como pessoas adultas.
Não é uma eficiência apenas em termos profissionais, o importante é o rendimento total da
pessoa na sua condição de vida. O problema pode ser resolvido por quem se contente com um
trabalho modesto mas que lhe dê tempo para fazer outras coisas. E nem sequer é necessária a
estabilidade profissional, que pode depender de inúmeros factores alheios à pessoa, mas,
sim, não ser afectado pela presença ou ausência de estabilidade profissional. Eficiência
significa que não nos preocupamos muito com os problemas. Se temos uma dívida,
arranjamos dinheiro e pagamos, mas sem sofrer com isso (sintoma de camada quatro). Em
geral, os credores estão também na camada quatro, por isso, acham que devem ficar
atormentando o devedor, quando podiam rezar por ele, ajudá-lo com ideias, etc.

Apenas quando chegamos a este estágio de maturidade nos damos conta realmente de
que as outras pessoas também têm os seus próprios objectivos e que ninguém vai ligar muito
para os nossos. Então, entramos numa outra esfera onde se torna fundamental o equilíbrio
283

de direitos e deveres. Já não basta o nosso encaixe numa engrenagem maior que nos rende
alguma coisa, é preciso encaixar o nosso projecto e a nossa organização pessoal numa
infinidade de relações com outras pessoas, cada uma delas com os seus objectivos. Só aqui,
na sétima camada, onde desenvolvemos o senso da cidadania, que implica saber que temos
direitos e deveres assim como os outros também têm. O senso dos direitos e deveres não nos
chega de forma abstracto, por algum código legal ou moral ou por uma filosofia política,
chega-nos na forma de um código de lealdade vigente no local onde nos encontramos. Em
geral, isto envolve alguma ambiguidade. Por exemplo, numa empresa o comportamento que
temos que ter para com as chefias – e que nos podem levar a promoções – entra
frequentemente em choque com a lealdade que devemos aos colegas, no sentido de manter
um certo padrão de relaxamento. É necessária bastante engenhosidade para conseguir
articular estas coisas, porque aquele que subiu na hierarquia de alguma forma afastou-se dos
colegas, mas depois vai chefiá-los e tem que ter um mínimo de lealdade da parte destes, é um
ponto de equilíbrio bastante difícil de alcançar e manter. A camada sete diz respeito em
ganhar um lugar na comunidade, em ser respeitado, amado se possível, seguindo os padrões
de justiça locais.

Estes padrões de justiça locais podem ser bastante condenáveis quando olhados de
uma perspectiva mais ampla. Mas estas considerações ainda não fazem parte da sétima
camada, que diz respeito à apreensão dos códigos e a saber praticá-los. Claro que o indivíduo
pode já ter preocupações a este nível, mas estando na sétima camada não vai poder colocar já
aqui o fulcro da sua atenção, até porque não tem ainda conhecimento suficiente dos
elementos para poder julga-los. Apenas o homem maduro, que já conquistou uma certa
posição social, pode examinar todo o percurso anterior criticamente. Ele vai tentar ver o que
fez da sua vida, se foi justo ou injusto, se realmente quer aquilo por que lutou, se foi bem-
sucedido ou não. Na quarta camada era também feito um auto-exame histórico, mas era na
óptica de delinear o que era para a felicidade e a infelicidade, agora, na oitava camada, trata-
se de ver o que fizemos pela nossa felicidade ou infelicidade. Nesta camada encaramo-nos
pela primeira vez como sujeitos dos nossos actos: só aqui somos verdadeiramente homens
maduros. Isto significa transcender o cidadão e ser capaz de se julgar a si mesmo.

É próprio do ser humano atravessar estas camadas mas muitas pessoas actualmente
ficaram bloqueadas na quarta camada, fugindo ao teste de averiguar as próprias capacidades
(camada cinco) e limitam-se a buscar protecção. Para quem está numa camada, os objectivos
das camadas seguintes são incompreensíveis, então, tudo é interpretado nos termos da
camada em que o sujeito se encontra. Por exemplo, quando se tenta explicar a uma criança
pequena as razões para não fazer determinada coisa, ela vai interpretar aquilo como uma
imposição de força, que a obriga ao tédio de ter de ficar ali quieta a ouvir. Nestas idades, as
crianças obedecem facilmente a ordens quando estas são simples e dadas com energia. Já
quando passa para a terceira camada, a criança fica de tal forma impressionada com as
possibilidades da linguagem (que está tentando conquistar) que nem vai perceber quando as
suas palavras magoam alguém.

Até chegar à oitava camada, o indivíduo ainda não interiorizou efectivamente a


questão do certo e do errado. O certo e o errado aparecem como elementos do mundo
exterior para quem está em camadas inferiores. Por exemplo, uma criança na segunda
camada vai entender como certo e errado coisas que lhe podem trazer um castigo ou uma
recompensa. Já na terceira camada, certo e errado são elementos de jogo, e ele agora pode
fingir fazer uma coisa quando faz outra. Na quarta camada a coisa vai ser entendida como
284

aquilo que provoca felicidade ou infelicidade, e na quinta o certo é o que ajuda a vitória
subjectiva, e assim por diante. A oitava camada é de crise. A olha para trás e pode
arrepender-se dos pecados, pode perceber que falhou na busca do sentido da vida. Apenas na
oitava camada o indivíduo pode ter uma voz própria, mas muita gente está na camada quatro
e já quer falar em nome de Jesus, não percebendo estar a violar o mandamento de não
invocar o nome de Deus em vão. Naturalmente que são estes os mais propensos a acusar os
outros de heresia, porque partem do princípio que, à sua semelhança, todo o católico fala em
nome da Igreja. Outros vão falar em nome do país, em nome de uma classe social, em nome
dos oprimidos ou algo assim, mas é a mesma coisa. Na crise da oitava camada damo-nos
conta de que não tínhamos voz nenhuma, apenas repetíamos o que tínhamos ouvido para
conveniência dentro da regra do jogo.

Em geral, os seres adultos normais param na oitava camada. Mas alguns, ao rever a
própria vida e, constatando a existência de contradições, perplexidades, dificuldades,
desenvolvem uma nova camada, onde começam a perceber que estas coisas são componentes
estruturais da vida humana. Através da absorção da cultura o indivíduo percebe que os
problemas e dificuldades que passou são mais ou menos os mesmos por que toda a gente
passa, não só agora mas ao logo dos tempos. Então, o padrão de humanidade amplia-se para
ele formidavelmente através de um esforço de absorção da experiência humana universal. Ele
pode não encontrar solução para os seus dramas pessoais mas encontra uma nova razão de
viver. Apenas aqui, na nona camada, o indivíduo desenvolve uma personalidade intelectual,
em que tudo o que lhe acontece já não é visto como mero problema pessoal mas como
exemplo, símbolo ou sugestão de problemas enormemente mais vastos, para os quais pode
até não existir solução mas pensar neles é uma das grandes finalidades da vida humana.

Para acompanhar devidamente o Curso Online de Filosofia é necessário ter


desenvolvido uma personalidade intelectual, correspondente à nona camada. O curso não foi
feito para atender às necessidades pessoais de alguém mas para responder a uma necessidade
nacional, que é a de criar uma geração de intelectuais capaz de restaurar a alta cultura. Muita
gente participa materialmente da vida intelectual embora os objectivos centrais que as estas
pessoas têm estejam dirigidos para os fins de outras camadas inferiores, originando um sem
fim de equívocos; são indivíduos que só vão atrapalhar, torna-se nuns chatos. Não se trata de
uma questão de inteligência mas de consistência da condição existencial enquanto indivíduo.
Existem outras camadas depois da nona, que despertam muito interesse mas é apenas uma
curiosidade intelectual.

Para apressar a subida nas camadas é necessário precipitar a crise da passagem. Mas
para isso temos de identificar a camada em que nos encontramos. Quais são os objectivos que
orientam os nossos esforços? Podemos ter muitos objectivos apontando para várias camadas
mas apenas uma é dominante, já que não podemos ocupar mais que uma camada. Podemos
não ter lucidez suficiente para saber qual é o objectivo dominante. Então, um critério de
reconhecimento da nossa camada é saber “onde nos dói”. O que nos ofende e magoa
profundamente? Uma criança pequena fica ofendida quando contrariarmos os seus instintos,
evidenciando estar na segunda camada. No outro extremo temos o padre Pio, que estava na
camada doze e ofendia-se apenas com aquilo que ofendia a Deus. Se estamos sempre
ressentidos com o mal que nos fizeram e não aceitamos a rejeição, isso é o sinal inequívoco
da camada quatro. Se não suportamos a derrota e queremos ser os primeiros em tudo, então,
isso é plena camada cinco, o que é natural nos 16 ou 17 anos, quando a pessoa ainda não está
realmente preparada para a vida em sociedade e participa nela através da mediação da
285

família. Na camada seis ficamos em xeque quando não temos a certeza de ter encontrado
uma função própria em alguma organização ou se a nossa eficiência é questionada. Na sétima
camada dói-nos se não conseguimos ter um papel social reconhecido.

Quando uma camada é conquistada, só em situações muitos extremas a pessoa pode


recair, por exemplo, alguém que se torne prisioneiro num campo de concentração vai ter de
passar a ter fundamentalmente preocupações de camada dois, embora existam muitos
exemplos em contrário. Mas se o meio onde estamos apenas tem pessoas da mesma camada
que nós, torna-se muito difícil a transição, podemos nos bloquear a nós mesmos temendo a
solidão, além de que nada à nossa volta nos chama para ir mais além. O nosso imaginário vai
ser muito pobre se apenas tivermos o “falatório do grupo”. É necessário absorver elementos
de cultura, para estes formarem uma massa crítica que, de alguma forma, nos force a passar
de uma camada para outra. A conquista de uma camada não é automática, há um período de
consolidação em que os interesses vão mudando. α83

262. O papel da virtude na vida intelectual (Sertillanges)


O livro A Vida Intelectual, do padre Sertillanges, foi uma inspiração para o Curso
Online de Filosofia, e temos agora a tarefa de ler os seus dois primeiros capítulos. Ali
Sertillanges diz que o exercício da vida intelectual é feito de determinadas virtudes, ou seja, a
capacidade de descobrir a verdade é algo que faz parte da virtude, não uma questão de Q.I. A
inteligência sem a devida base moral e emocional transforma-se num fingimento; a pessoa
não compreende o enquadramento existencial das suas ideias. A inteligência não é um
instrumento que possamos dominar, ela existe em função do nosso amor pela verdade. E não
podemos ter amor pela verdade se não quisermos saber a verdade sobre nós mesmos, no
sentido da oitava camada da personalidade [261]. É necessário conseguir olhar a nossa vida
como um todo e perceber os problemas e defeitos que se evidenciaram ao longo dos tempos e
que provavelmente nunca conseguiremos vencer. Jamais se trata de uma questão de “praticar
a virtude”, porque a virtude é uma força que Deus por vezes nos dá. Algumas virtudes
também podem se tornar hábitos e, assim, incorporam-se em nós e podemos esquecê-las,
sendo justamente estas as que interessam. São coisas que fazemos porque queremos fazer e
podemos até já nem conseguir fazer outra coisa.

Podemos averiguar se temos algumas virtudes entranhadas em nós. Por exemplo, se


alguém nos pede ajuda, o nosso impulso é de ajudar ou de arranjar uma desculpa? E se
alguém nos faz alguma coisa ruim, temos o impulso do perdão ou da vingança, possivelmente
disfarçado com alguma justificação moral? A isto associa-se outra pergunta: Quando
devemos entrar numa briga? Muita gente acha que o critério é a raiva que temos da pessoa, o
que nos autorizaria a bater nela ou a denunciá-la publicamente. Mas quem desenvolveu uma
personalidade intelectual tem o dever de seguir um critério: só temos o direito de entrar
numa briga se esta tiver uma importância moral objectiva para a humanidade em geral. Fora
disto estamos agindo por critérios abaixo da nona camada da personalidade [261]. Não
temos de achar que o outro está a pecar quando nos ofende ou prejudica. Não temos que
gostar nem ficar sem dar resposta, mas também não temos de ficar ofendidos, porque aquilo
que nos devia realmente ofender é o total desrespeito pelo conhecimento e pela alta cultura,
para não falar do desrespeito para com Deus. α83
286

[Aula 84]

263. A perspectica escatológica e a visão substâncial do processo histórico


É muito difícil a tarefa de descobrir a relação entre uma ideia e o panorama cultural
existente quando ela veio à luz. É preciso fazer uma série de mediações, além de que as
ligações ficam cada vez mais subtis, problemáticas e ambíguas à medida em que nos
afastamos do campo preciso das ideias filosóficas para entrar noutras dimensões. Remonta a
Hegel a crença de que o processo histórico manifesta-se sobretudo no reino das ideias. Mas a
própria noção de processo histórico, que nos parece hoje tão natural, é problemática e
desconhecida da maior parte dos povos. Entre os povos antigos, apenas os chineses
mantiveram registos históricos. Cada civilização antiga considerava-se como o centro do
mundo e resto aparecia como um círculo caótico, como trevas. Para estas civilizações seria
totalmente impensável um conceito como o de História universal, havia apenas a História
que cada império tinha a seu próprio respeito. Na Bíblia, a História de Israel é significativa –
um contínuo diálogo e confronto com Deus –, e a História de Roma ou da Babilónia
aparecem apenas como um cenário longínquo. A História de Israel alterna entre triunfos,
desgraças, sofrimentos, num contraste que não é fortuito. Existe um princípio explicativo,
que é a própria ordem divina. A conformidade ou afastamento em relação ao mandamento
divino têm consequências que se reflectem no conteúdo da História. Só a partir daqui temos
uma chave histórica, mas que se aplica apenas ao povo de Israel.

A revelação e os mandamentos divinos só se tornam princípios orientadores do “fio da


meada” com o cristianismo, que anuncia um princípio estruturante não apenas para um povo
em particular mas urbe et orbi (para a cidade e para o mundo). Outros povos podiam se
aproximar mais ou menos do cristianismo, mesmo se não tivessem recebido a sua mensagem,
e esta seria a chave explicativa dos seus destinos. Surgiu daqui a perspectiva escatológica (de
escathon, as últimas coisas a ocorrer) e a ideia de remeter toda a História humana a um
conjunto de princípios explicativos. A História só ganha uma forma se tivermos uma ideia de
como ela vai terminar e, tendo a ideia do fim do mundo, a forma do percurso não se altera
seja qual for a sua duração. No Apocalipse o tempo será absorvido na eternidade; o que
aconteceu em sucessão aparece de forma simultânea como acontece num quadro; as relações
de causa e efeito erodidas pelo tempo e pelo esquecimento evidenciam-se novamente. Em
geral, esquecemos que as nossas acções desencadeiam consequências, boas ou más. Na
realidade, tudo o que entrou na esfera do ser permanece ali eternamente, não irá para o
nada. A coisa deixa de estar “visível” porque o tempo é uma contínua destruição de si
mesmo.

A concepção escatológica surgida com a revelação cristã tornou pensável a figura do


processo histórico, contudo, apenas como símbolo e não como conceito científico. A História
caminha assintoticamente para um determinado fecho, mas nunca saberemos quando isso se
dará e nem a forma precisa que tomará. Nem Cristo, que é o Logos, a inteligência divina, sabe
quando virá o fim do mundo, tendo dito que isso só Deus Pai sabe. Portanto, é algo que
depende da liberdade divina e que não é racionalmente compreensível, na medida em que
não pode ser deduzido de um fundamento lógico.
287

Com o cristianismo apareceu pela primeira vez uma ideia vaga do percurso total da
humanidade, que por ter um fim pode ter uma forma. Mas isso não quer dizer que exista uma
unidade substantiva no conteúdo do processo histórico. Este compõe-se de inúmeras linhas
de desenvolvimento independentes. Não existem leis que determinem o processo histórico,
ou, existindo, elas são-nos inacessíveis. Contudo, a partir do séc. XVI o cristianismo começou
a perder a força que tinha para moldar o imaginário das pessoas, assim, o processo histórico
foi perdendo a sua referência à infinitude e à eternidade. Como consequência, este processo,
tornou-se cada vez mais numa ideia substantiva e materializada. Isto conduziu à ideia de que
é possível conhecer a figura substantiva do processo histórico. Hegel avançou com a ideia não
só de poder descrever o processo histórico mas também de o dominar. Na perspectiva bíblica
só Deus conhece o término deste processo e a sua forma substantiva, e o ser humano apenas
pode saber que esta forma existe.

Depois de Hegel, todo o pensador acha que deve ter uma filosofia da História e que
deve tentar encontrar os princípios explicativos do processo histórico. Uns acham que o “fio
da meada” é dado pelas constantes e pelos padrões de mudança do processo, e daí surgiram
coisas como a Lei dos Três Estados, de Comte, ou a Teoria da Luta de Classes, de Marx.
Apareceu também uma reacção céptica, que diz que é impossível o conhecimento do processo
histórico, enfatizando a sua componente de irracionalidade e de inabarcabilidade. Apesar dos
cépticos terem razão neste particular, o impulso para encontrar uma forma da História já se
tornou num dado cultural permanente. Qualquer político é hoje forçado a tomar decisões
levando em conta o impacto destas no quadro geral do processo histórico, caso contrário é
considerado um irresponsável, ou seja, todos são obrigados ao impossível. Se seguirmos
Marx, tentaremos explicar tudo por factores económicos, mas é fácil ver, por exemplo, que os
factores militares podem determinar os económicos mas não o contrário. Outros não ficam
muito convencidos das razões de Marx mas vão tentar encontrar alternativas dentro de uma
mesma forma de pensar.

Qualquer facto só se torna inteligível quando o relacionamos com o conjunto, então,


compreender algo do processo histórico é relacioná-lo com uma interpretação de conjunto.
Daqui surgem duas possibilidades. A primeira, como vimos, é fazer uma interpretação
escatológica, que tenta relacionar o processo histórico com o Juízo Final. A outra hipótese é
tentar obter uma visão substantiva do processo histórico. A visão escatológica é “vazia”,
apenas sabemos que houve um princípio e que haverá um fim, mas nada sabemos sobre o
conteúdo do processo (embora possamos supor legitimamente que fenómenos como o
holocausto ou o gulag terão um significado no Juízo Final). Na visão substantiva tentam-se
encontrar forças positivas ou reais em acção na História. Esta visão pode não dar um
significado moral a coisas como os campos de concentração, mas satisfaz a mentalidade
moderna, ávida em encontrar explicações causais, leis, constantes, etc., pelas quais se possam
explicar os acontecimentos.

Até agora, apenas algumas constantes parecem ter sido verificacadas, indicadas por
Ellsworth Huntington: a) O crescimento da população jamais parou de crescer; b) Os
contactos civilizacionais têm aumentado, fruto do crescimento populacional; c) Aumentam as
tentativas de organizar e dar forma ao conjunto. São apenas constantes aproximadas e vemos
que existem hiatos na aproximação dos núcleos civilizacionais, por exemplo. José Guilherme
Merchior, em A Natureza do Processo, sem tentar obter uma filosofia da História no sentido
total, diz que existem algumas constantes empiricamente observáveis: a) Aumento da
mobilidade humana, com a rapidez dos meios de transporte sempre crescente, ampliando as
288

possibilidades de acção de milhões de pessoas; b) Evoluções na medicina e na biologia, que


reduziram muito a mortalidade infantil e transformaram as pestes (antes vistas como
castigos divinos) em meras epidemias; c) Aumento do conforto de milhões de pessoas, em
que uma família de classe média tem hoje mais conforto que o faraó, além de que o facto de
ser rico ou pobre já não é mais uma questão hereditária. Basicamente, Merchior está a dizer
que o processo histórico está indo no sentido da democracia liberal e da economia de
mercado. Ele verifica que a democratização e a liberalização dos mercados fizeram aumentar
muito o coeficiente de livre arbítrio das pessoas na condução dos seus destinos, mas esquece
(à semelhança dos demais analistas influenciados pelo ideal democrático-liberal) que os
meios de acção da classe dominante sobre os dominados também aumentaram muitíssimo.
Existe o processo de jurisfacção, nos termos de Miguel Reale, da progressiva abrangência do
sistema legal para domínios cada vez maiores da existência social, o que dá origem à
expansão ilimitada da burocracia estatal, seja o governo seja socialista ou liberal. E temos o
“factor secretude”, uma enorme expansão dos serviços secretos, com o paroxismo soviético
em que a KGB controlava praticamente todos os sectores da vida. Mas mesmo nas
democracias liberais o que acontece é que o governo pode saber tudo sobre os cidadãos e
estes nada sobre os governantes, que aparecem colocados num outro plano, intocável, quase
divino.

Os governos podem introduzir modificações de comportamento que serão percebidas


como se fossem coisas naturais. Esta é uma possibilidade nova, impensável uns séculos atrás.
Não vamos descobrir estas coisas lendo apenas os autores com prestígio académico, não só
porque o prestígio leva várias décadas a se formar mas porque é um tema tabu. Não podemos
pensar que a circulação de ideias deriva do diálogo entre intelectuais que supostamente
raciocinam livremente. Quase tudo o que foi relevante em termos culturais no século XX teve
o dedo da KGB.

No debate actual tornou-se um lugar-comum a ideia de que é necessário aumentar


sempre a democracia, sendo isto o pretexto para defender qualquer medida. Trata-se de uma
concepção materializada de democracia, que ignora que esta é sobretudo proporção, relação,
pelo que se um dos factores cresce demais a democracia termina. A democratização da
cultura e do ensino significaria, em teoria, dar a toda a gente um conjunto de bens culturais
que antes apenas a aristocracia tinha acesso. Mas tão logo ocorreu esta expansão, a ideia de
democracia deixou de ser a distribuição dos bens da elite mas o direito em decidir o que
dever ser ensinado e divulgado. Richard Hoggart, no livro The Uses of Literacy, mostrou que
a expansão do ensino escolar na Inglaterra trouxe a alfabetização junto com uma sub-
literatura. Invisivelmente, criou-se um novo tipo de elitização, em que os bens culturais das
elites estão disponíveis a todos mas tornaram-se incompreensíveis a não ser por uma ínfima
minoria. Os teóricos da democracia no séc. XVIII pressuponham-na aplicada à convivência
igualitária entre adultos, sendo para eles impensável usar a democracia para nivelar pais e
filhos ou para defender algo como o casamento gay.

Vemos o conjunto enorme de erros que derivam de identificar o progresso com a


democracia. Mas esta identificação é um erro de outra ordem, que advém de considerar o
processo histórico como algo substantivo. O debate académico baseia-se na negação do facto
imcompreensível, só existe o que é compreensível e aceite pelo consenso da classe falante.
Isto é um fechamento extraordinário em relação à realidade, um obscurantismo extremo
resultante de alguns séculos de Iluminismo. Os elementos secretos, irracionais ou mesmo
demoníacos fazem parte da estrutura da realidade. Mas não existe a História do poder
289

secreto, embora certos indivíduos gostassem de o encarnar. Existe interferência secreta mas é
apenas mais um elemento do conjunto. Ao invés de procurarmos uma explicação para tudo,
devemos buscar o conhecimento, o saber, e admitir os factos que não compreendemos e,
assim ,abrirmo-nos para a realidade. “Não compreender” significa não ter domínio
intelectual sobre o processo, logo, não ter domínio prático, além de que todas as formas de
apreender a forma do processo são ilusórias. O verdadeiro trato do ser humano com a
realidade consiste na sua aceitação e não no no domínio intelectual das situações. α84

[Aula 85]

264. A expressão de impressões


Sem o domínio da linguagem todo o nosso pensamento é tosco, pensamos estar
dizendo uma coisa quando estamos dizendo outra, confundimos impressões subjectivas com
expressões e assim por diante. A formação de um conceito filosófico é altamente complexa,
partindo de impressões que depois serão trabalhadas sob vários ângulos e aspectos, até
discernir uma estrutura permanente. Quando lemos um filósofo temos de fazer o trajecto
inverso e remontar do conceito formal até às primeiras impressões de onde ele se gerou. A
pura compreensão verbal, sem referência às coisas, foi sistematizada e teorizada no
desconstrucionismo e este, no fundo, é a estupidez sistematizada que, quando inoculada, cria
nos indivíduos aquilo que a Igreja chama de ignorância invencível. Os gregos não tinham
equivalente do verbo “saber” mas umas vinte palavras que expressavam diferentes gamas de
significado do saber, incluindo uma que significa a percepção de um objecto na experiência
directa de modo a apreendê-lo no seu processo real. Isto mostra a importância que eles
davam à percepção real dos objectos, encarados como processos interiores.

A única forma de escaparmos a verbalismo moderno é nos imbuirmos do verdadeiro


sentido da linguagem, tal como ela foi usada ao longo de toda a História da cultura humana.
A aquisição de cultura literária consiste em absorver um conjunto de impressões que os
maires escritores registaram, tentando condensar certas experiências que podem ser
vivenciadas por milhões de pessoas mas que aparecem registadas de forma memorável na
literatura pela primeira vez. O nosso arsenal expressivo vai incorporando estas coisas para se
tornar num instrumento de impressões, seguindo Benedetto Croce, permitindo-nos dizer
impressões análogas.

Ao mesmo tempo, a nossa experiência pessoal passa a ter uma ressonância histórico-
cultural na medida em que conseguimos encaixá-la numa linguagem preparada pela tradição,
e só realmente assim compreendemos a nossa própria experiência. Já dizia Aristóteles que
não existe compreensão do singular absoluto. Aquilo que é totalmente sui generis é
impossível de analogar e permanece incompreensível, sendo impossível raciocinar a respeito.
Em suma, a expressão da impressão é o primeiro requisito da compreensão.

Sem o senso da forma literária não podemos chegar a ter o senso filosófico. É o senso
da forma estética que dá o senso da forma lógica, e este permite saltar para o senso da
forma ontológica dos seres. Basta perdermos o sentido do ouvido literário para que todas as
faculdades superiores da inteligência sejam afectadas. Além disso, apenas com uma longa
290

prática das letras humanas podemos um dia perceber o que há de específico nas letras
divinas. Mas se o indivíduo acha que pode abandonar a literatura humana, por ser coisa
mundana, e ficar apenas com a Bíblia, ele não conseguirá obter o que esta realmente tem
para lhe dar. α85

265. A filosofia administrada (Gustavo Bueno)


Consideremos a passagem seguinte de um texto de Gustavo Bueno intitulado
“Filosofía administrada”, retirado do livro El Sentido de la Vida:

«Em todo o caso, será preciso constatar que, em muito pouco tempo, o processo de
institucionalização da filosofia iniciado pela academia platónica foi estendendo-se em
ritmo constante. Tudo sucedeu como se o próprio poder político houvesse atendido
à irónica proposta de Sócrates. Em Alexandria, em Roma, no Império do Oriente (sem
prejuízo do parênteses aberto por Justiniano) e, desde logo, no âmbito da Igreja
Católica ou do Islão, a filosofia foi institucionalizando-se em formas cada vez mais
rígidas, como filosofia escolástica. Dito de outro modo: chegou-se à situação de uma
‘filosofia administrada’ pelas instituições privadas, pelas instituições públicas ou
pelas eclesiásticas. Diferentemente da ‘filosofia espontânea’, e, por assim dizer,
arbitrária ou assistemática, forma própria do filosofar mundano (a partir da política,
da ciência, da medicina, do exercício da advocacia etc.) a filosofia foi ‘submetida’ a
uma organização sistemática, a uma ‘programação’, a uma ratio estudiorum, que não
teríamos tampouco porque desqualificar a priori, desde o ponto de vista filosófico.
Pelo contrário, a filosofia administrada, como resultado de uma dialética própria,
terá contribuído decisivamente para que se alcançasse o rigor e a precisão nas
análises das ideias que a História trouxe até nós, e que são inalcançáveis em sua vida
mundana. Mas, simultaneamente, a tendência da filosofia administrada a isolar-se da
filosofia mundana do presente (que é sempre a sua fonte) e a tendência a apegar-se
aos interesses da ‘Administração’, que a incorporou a seus fins próprios, orientará
sua evolução em direção a formas anquilosadas e à converterá em veículo
meramente ideológico (ainda quando tampouco se reduza de modo algum a esse
serviço). Não se pode esquecer que essa série de grandes filósofos que são
considerados atualmente da filosofia moderna (Francis Bacon, Descartes, Spinoza,
Leibniz etc.) actuaram à margem da filosofia administrada, concretamente à margem
da universidade. Nem Bacon, nem Descartes, nem Spinoza, nem Leibniz foram
‘filósofos universitários».

Na realidade, não se podia considerar a academia platónica como um órgão ligado ao


Estado, era uma entidade autónoma, um grupo de pessoas interessadas no conhecimento e
que não exercia qualquer função estatal ou religiosa. Mas é certo que ali já se nota o princípio
de organização, tal como se verá no liceu aristotélico, que também não tinha qualquer função
política ou social determinada. Séculos mais tarde a Igreja Católica assumiria a função de
dirigir o ensino da filosofia, dado que desenvolvia a sua teologia usando na sua expressão
termos da filosofia grega. Mas as universidades medievais formaram-se como a academia
platónica. Eram grupos de aficionados que contratavam professores ilustres, sendo tudo
financiado (salário dos professores e estadia de alunos estrangeiros) por contribuições livres
da sociedade, que não esperava receber algo em troca. Só quando a universidade se tornou
numa massa ingovernável surgiu uma longa disputa entre o papado e os governos locais para
saber quem ia mandar nela. A universidade era uma corporação como outras, com os seus
291

interesses próprios e é a partir da disputa desta nova força política que se inicia a
institucionalização das universidades.

Teve também aqui início o problema da ordem dos estudos (ratio estudiorum), fruto
de uma longa experiência prática, que determinou a divisão entre disciplinas, a sequência dos
estudos, a sequência de exigências e provas para testar conhecimentos, desde os exercícios
escolares às “questões disputadas” (o professor que, no topo da carreira, respondia perante a
corporação a todas as perguntas que lhe fizessem). Talvez Bueno exagere ao dizer que o
fenómeno da filosofia administrada tenha sido um grande avanço porque teria favorecido a
formação da ratio estudiorum, mas sem dúvida que a filosofia escolástica (o primeiro
exemplo de filosofia administrada) foi uma grande contribuição para o esclarecimento crítico
em filosofia. Aristóteles lançou os princípios da técnica filosófica, mas como apenas nos
sobraram as notas para aula, só na escolástica esta aparece desenvolvida.

Mas apenas no séc. XIII a escolástica mostrou uma faceta criadora. À medida que as
universidades se integravam na administração (da Igreja ou dos governos locais), os letrados
passaram a ser eclesiásticos e burocratas privilegiando a necessidade prática, o que provocou
um recuo do senso crítico e uma condensação de todo o ensino em fórmulas de fácil
transmissão, que naturalmente iriam perder todo o sentido com o tempo. A certa altura, os
novos alunos apenas recebiam doutrinas prontas e não faziam mais ideia do trabalho crítico
necessário para chegar até ali, apenas se lhes exigia que repetissem as coisas numa fórmula
aceitável pela corporação. Descartes recebeu este tipo de ensino no colégio de La Flèche e
tudo lhe parecia vazio e que ninguém sabia o que estava dizendo. A escolástica tinha mantido
o seu vigor apenas na Península Ibérica (até ao séc. XVIII), mas aqui tinha sido perdida a
ligação com outros países (declínio político e económico constante da península após a
derrota da “armada invencível”), que iam aderindo ao cartesianismo, ao spinozismo e assim
por diante. As novas filosofias traziam muitos assuntos novos mas haviam perdido o
esclarecimento crítico, com a excepção de Leibniz.

Descartes, nas suas provas da existência de Deus, deduz da auto-consciência do “eu”


um Deus de perfeição infinita, sem perceber que se tratava apena de uma ideia de perfeição
que não implicava nenhum Deus criador da matéria. Newton falava do espaço absoluto, que
era o espaço sem coisas, uma mera possibilidade abstracta, mas depois atribui-lhe as
propriedades do espaço real. Kant leu Newton, percebeu que ele não falava do conhecimento
da realidade efectiva e acabou por legitimar o fenomemismo, que diz que a ciência não estuda
nem factos e nem coisas mas estuda fenómenos, apenas aparências. O aumento da precisão
das medidas não nos dá informações sobre os objectos reais mas pode aumentar a nossa
capacidade de acção sobre as aparências medidas. O que se verificou foi um enorme
progresso da técnica – capacidade de acção sobre o sistema de aparências – e um gigantesco
afastamento da pergunta: quid? O que é?

Ocorreu uma mudança do eixo da atenção na entrada da modernidade.


Anteriormente, o cosmos era entendido como um cenário onde o ser humano vivia e que
tinha se ser compreendido de algum modo, no sentido de ligar os vários níveis de realidade,
desde o mais imediato até ao mais remoto e abrangente, ou seja, era um esforço de ler a
intencionalidade divina por trás de toda a criação. Este esforço ainda existe nos pioneiros da
ciência moderna, como Newton e Galileu, mas já de forma diminuída, aparecendo como uma
tentativa de encontrar regras matemáticas que expliquem o funcionamento das coisas,
contudo, estas regras já se desviam do conhecimento das coisas.
292

Mas os fundadores da ciência moderna já vinham de fora da universidade, embora a


influenciem, e criaram um novo tipo de filosofia administrada muito diferente da filosofia
escolástica, fazendo com que a universidade se torne em fornecedor de mão-de-obra
qualificada para a indústria e para a administração pública. No período do idealismo-
romantismo alemão, o professor universitário era como que um legitimador intelectual do
Estado, culminando em Hegel, que via o Estado germânico como a maior criação da
humanidade. Depois, a filosofia transformou-se num instrumento da revolução, o que não a
tornou independente do poder político mas apenas reflectia uma mutação interna deste. Na
Inglaterra, o ensino universitário da filosofia ficava submetido às necessidades da indústria e
da economia, não tanto às do poder político.

A filosofia administrada chegou ao auge na União Soviética, ficando o seu ensino


totalmente integrado no Partido Comunista e no Estado soviético. Tratava-se de uma filosofia
(interpretação marxista) que orientava todos os sectores do conhecimento, incluindo as
ciências naturais, como a famosa genética de Lysenko, aprovada oficialmente mas totalmente
falsa. Na China, a apropriação da filosofia pela Administração deu origem à Revolução
Cultural, que foi a tomada de poder através da destruição total e violenta da cultura anterior e
a implantação da actividade organizada da militância e não se confunde com a revolução
cultural gramsciana, que é um processo pacífico e quase imperceptível de ocupação de
espaços. No caso chinês, tratou-se de um processo enformado sobretudo por jovens, sempre
os mais propensos à cretinice, que não apenas derrubaram aqueles que tinham sobrado do
antigo regime mas também os próprios revolucionários da primeira geração, que já não eram
vistos como suficientemente revolucionários e, por isso, foram denunciados como inimigos
do povo, da revolução e do Estado chinês.

No Ocidente, parte da universidade – correspondente às faculdades de ciências – foi


integrada ao aparato económico-industrial. A indústria, os bancos, as grandes fortunas
financiam a pesquisa científica e esperam daí obter resultados económicos. Outra parte da
universidade, reflectindo o ensino da filosofia, ia sendo apropriada pelo poder político, tanto
Estatal como revolucionário. Quase toda a actividade filosófica de hoje faz parte desta
filosofia administrada, destinada a disseminar certas concepções – normalmente
revolucionárias – por toda a sociedade. Mas sempre sobra algum do impulso originário da
filosofia. Temos também o movimento neoescolástico, iniciado por Leão XIII, que opõe uma
filosofia administrada a outra filosofia administrada, embora a neoescolástica tenha
inspiração numa filosofia anterior que ainda tinha um grande vigor intelectual. Leão XIII
apelou ao estudo dos escolásticos mas, apesar de ser uma filosofia administrada, não era
dirigida. Temos dentro desta “escola”, por exemplo, um Garrigou-Lagrande indo numa
direcção muito diferente de um Jacques Maritain, que foi um dos mentores do Concílio
Vaticano II.

Na Áustria também existiu algo como uma filosofia administrada entre o fim do séc.
XIX e a Segunda Guerra Mundial. Mas apesar das universidades estarem sobre a proteção do
Estado e os professores serem seus funcionários, este Estado interferia pouco no conteúdo do
que estava sendo produzido. Foi um período fecundo e que influenciou todo o mundo de
língua alemã.

A determinada altura, a universidade administrada de estilo marxista começou a


falhar, mas para renovar o seu potencial revolucionário começou a absorver correntes de
pensamento alheias ao marxismo e eventualmente opostas a ele. Então, existiu a absorção
das filosofias de Nietzsche e Heidegger, do estruturalismo, do desconstrucionismo e assim
293

por diante, que tendo origem externa ao marxismo ainda assim incorporam-se perfeitamente
ao espírito revolucionário, embora seja um caos doutrinal. Isto correspondeu a uma mudança
de estratégia do movimento comunista internacional que, pelo menos a partir dos anos 80 do
séc. XX, desistiu da ideia da unidade doutrinal e apostou num caos que fosse criativo e
permanentemente explosivo. A mudança deu-se através de vários processos de absorção de
filosofia mundana no establishment, dissolvendo assim os critérios de esclarecimento crítico
dos conceitos, passando a vigorar o caos total e o amadorismo obrigatório. A impossibilidade
do esclarecimento crítico atingiu um pico com o desconstrucionismo, que aboliu as
referências à realidade e criou a omnipotência do discurso. O processo atingiu o auge com
Ernesto Laclau e Chantal Mouffe no livro Hegemonia e Estratégia Socialista [229], onde
afirmam que o discurso revolucionário cria retroactivamente as classes e os interesses que vai
representar, ou seja, é um processo hipnótico de criação de impressões colectivas.

A filosofia administrada criou o ratio estudiorum mas hoje ela já não tem mais nada
disso. Para absorver a ordem dos estudos é preciso absorver o legado de outras épocas,
quando a filosofia administrada ainda ajudava efectivamente a aprimorar a técnica filosófica,
como aconteceu com os escolásticos (ver Os Intelectuais na Idade Média, de Jacques le Goff,
os volumes do período medieval da História da Educação, de Ruy Afonso da Costa Nunes e
Literatura Europeia e Idade Média Latina, de Ernest Robert Curtius), com o idealismo
alemão, com a escola fenomenológica e, depois, em pequenos círculos inspirados por
pensadores como Bernard Lonergan, Xavier Zubiri ou Eric Voegelin. Há ainda que contar
com a oposição ou com o ruído de uma outra ratio estudiorum, que é aquelas ligada às
ciências e sustentada pelo poder económico e pela indústria. Ela reflecte a ideia absurda de
que apenas podemos conhecer as aparências fenoménicas medidas com exactidão, mas é
difícil vencer esta ideia porque expressa os interesses mais poderosos do momento. Quando a
levamos demasiado a sério, toda a filosofia antiga e medieval torna-se incompreensível,
perdemos a perspectiva histórica e é como se tudo começa-se com Descartes ou Francis
Bacon a partir do nada.

Sempre teremos duas tendências opostas, por um lado, a tendência organizadora, por
outro lado, a tentativa de manter ou conservar a fecundidade da inteligência mediante a
abertura aos factos do mundo e a tudo o que não compreendemos. Não temos que desistir de
nenhuma das coisas. Se nos fechamos num sistema explicativo universal, vamos perder a
capacidade de espanto, que é a própria capacidade filosófica. O próprio curso das coisas
introduz novos elementos e, de repente, todas as nossas explicações caem por terra. O que há
a fazer é continuar o esforço de organização mas permeado pela abertura em relação ao novo
e ao incompreensível. α85

[Aula 86]

266.Engenharia social e agentes de transformação


A engenharia social é uma ideia que remonta à Revolução Francesa, segundo a qual
uma elite revolucionária toma o poder na sociedade para moldá-la segundo as suas
convicções. Esta ideia tem por inerente o pressuposto de que o engenheiro social sabe o que é
melhor para os outros e, por isso, tem o direito de os encaminhar para onde bem entenda.
294

Nada disto existia antes do séc. XVIII, nenhum governante teve antes a ideia de remodelar
toda a vida social, desde as suas bases psicológicas aos sentimentos íntimos e das reacções
espontâneas das pessoas. Mas mesmo no séc. XIX a ideia é ainda bastante incipiente e a
acção social dos governantes incidia sobretudo sobre uma elite.

No séc. XX, os progressos da psicologia permitiram conceber mudanças no próprio


horizonte de percepção das massas. Isto iniciou-se nos regimes totalitários, com especial
incidência na China, mas também na União Soviética e na Alemanha nazi. Mas as
democracias ocidentais rapidamente começaram também a ser infectadas com as mesmas
ideias. Karl Popper no livro A Miséria do Historicismo contesta a possibilidade de previsão
histórica de longo prazo (uma das bases da engenharia social). Ele diz que, no mundo
moderno, o factor decisivo da mudança social são os progressos da ciência e da técnica, pelo
que só poderíamos prever o futuro se já tivéssemos a ciência de amanhã. Mas isto não
impede a existência de projectos de engenharia social e nem que estes não tenham alguma
influência social, porém, os resultados não serão os esperados e, em geral, é produzida uma
série de efeitos colaterais catastróficos. Popper distinguia dois tipos de experimentos de
engenharia social. Os mais evidentes ocorreriam nas sociedades totalitárias, abrangendo toda
a sociedade e tentando modifica-la rapidamente. E existiriam os projectos mais limitados,
que actuariam de forma mais branda e com objectivos mais modestos, sem terem a pretensão
de tentar controlar o rumo inteiro da história social.

Quando os projectos de engenharia social começaram a ser aplicados nos Estados


Unidos e na Europa, apesar de terem em teoria objectivos mais limitados, começaram a
mostrar que tinham a ambição de produzir mudanças sociais quase tão profundas como as
dos projectos explicitamente totalitários. Os mentores intelectuais destes projectos de
engenharia social “limitada” eram, em geral, socialistas de tipo fabiano ou algo parecido,
como o economista Thorstein Veblen (A Teoria da Classe Ociosa), o filósofo e educador John
Dewey (que delineou uma educação não directiva e visando desenvolver nas crianças a
criatividade e a capacidade de experimentação, obtendo resultados desastrosos) ou o
colunista político Walter Lippman (defensor dos grandes programas sociais que se
materializaram nos governos Kennedy e Johnson). Quase todos estes projectos de engenharia
social tinham por trás, desde a década de 20 do séc. XX, a fundação Rockefeller, que
financiou sociólogos, psicólogos, psicólogos sociais, etc. Vários governos auto-incumbiram-se
de implementar estes projectos, assim como os principais organismos internacionais (ONU,
UNESCO, OMS, etc.) Mas as empresas multinacionais, a rede de ONG e as fundações
financiadas pelas grandes empresas quiseram ser também criadores, mentores e condutores
dos processos de engenharia social.

Para que a engenharia social se tenha tornado no factor que tem a maior presença nas
sociedades modernas foi necessária a colaboração de inúmeros change agents, normalmente
traduzidos como “agentes de transformação”, mais raramente como “agentes de mudança”.
Existem inúmeros manuais para treinamento destes agentes, como o The Change Agents
Guide, de Ronald Havelock. O primeiro agente de transformação é o indivíduo ou grupo que
criou um projecto de engenharia social e que dá origem aos primeiros círculos de agentes. Os
agentes no terreno, que actuam directamente sobre os grupos a ser afectados, vão ser os mais
afastados do topo da pirâmide, estando espalhados por uma multidão de entidades. Eles
podem chegar aos mais diversos grupos declarando abertamente o que pretendem fazer ou,
então, agir de forma infiltrada através de acções de dinâmica de grupo, treinamento
profissional, psicoterapia e assim por diante. Para além dos agentes individuais, existem os
295

agentes colectivos, como ONG, sindicatos ou empresas. E existem ainda os agentes de


transformação abstractos, que são essencialmente os legisladores e os criadores de
instrumentos para aplicação das leis.

Os agentes de transformação não visam geralmente alterar ideias ou convicções. A


ideia da engenharia social não é fazer doutrinação ou propaganda política mas saltar por
cima da consciência das pessoas e mudar as suas condutas e reacções. Só depois virão as
alterações de sentimentos e convicções. Na Suécia um professor universitário convenceu
alguns que só podiam discutir a questão do homossexualismo se tivessem alguma experiência
do assunto e, para isso, alguns alunos consentiram submeter-se a uma experiência de sexo
oral, que culminava com a deglutição de esperma. Uma grande maioria dos que se tinham
sujeitado ao processo tentaram depois arranjar alguma desculpa elegante e não quiseram
admitir que tinham sido enganados. Ou seja, em primeiro lugar foi induzida uma mudança
de comportamento, depois, a mudança de convicções, sentimentos e reacções veio quase que
automaticamente. Na engenharia social o objectivo é que a mudança interior seja um reflexo
da mudança exterior, e isto é muito mais eficaz e rápido do que tentar alterar ideias e
concepções através da sugestão ou pela troca de opiniões.

Existem inúmeros projectos destes ocorrendo simultaneamente sem seguirem


directamente ordens de um comando central, operando transformações com uma velocidade
espantosa, por isso, parecem que se tratam de mudanças sociais espontâneas. Claro que parte
processo é espontâneo, mas é um espontâneo originado por um movimento intencional.
Algum desse espontâneo pode até ser logo tido em conta pelos engenheiros sociais, que
sabem que “algo do género” deve surgir em certa altura. Por exemplo, num grupo, sobretudo
de jovens, é expectável que quando metade dos indivíduos adoptou uma mudança esperada,
automaticamente estes irão pressionar a outra metade a seguir o mesmo caminho. A
disseminação destes efeitos segue uma certa proporção geométrica, porque cada pessoa
pressionada no sentido da mudança irá encontrar alívio pressionando outras, e nada é mais
eficiente em interiorizar uma sensação de convicção do que pressionar outros a irem pelo
mesmo caminho onde nós já nos encontramos .

Hoje assistimos a milhões de pessoas que não estão minimamente convictas do que
estão fazendo mas que agem como tal: querem acreditar que estão convictas para manter a
saúde psicológica. A pessoa está agindo contra as suas convicções e hábitos, o que cria um
estado de dissonância cognitiva, então, tenta pressionar outros a aderir ao movimento e
critica quem não o faz. Quando estas pessoas são chamadas a dar uma justificação das suas
“convicções”, elas não conseguem refazer a história de como o processo se deu mas
conseguem automaticamente inventar todo o tipo de argumentos e justificações que lhes
permitem não reconhecer o estado de divisão e de dilema em que se encontram. Não existe
dilema quando existe consciência de se estar na confusão. A confusão na esfera dos valores
vai aparecer quando julgamos casos particulares usando valores que desmentem a ordem
total de valores em que nos fundamentamos para fazer aqueles julgamentos. Por exemplo,
vemos que os partidários do casamento gay – casamento é uma relação privilegiada entre
duas pessoas – são os mesmos que promovem as passeatas gay, onde existe a apologia
explicita do sexo grupal. Então, o homossexual fica automaticamente dividido, por um lado,
aposta na fidelidade monogâmica mas, ao mesmo tempo, quer o sexo livre.

Quando a dissonância cognitiva ultrapassa o certo limiar, os indivíduos ficam ainda


mais vulneráveis e submissos às pressões do grupo, já não conseguem tomar decisões morais
a partir de uma racionalidade interior, então, necessitam desesperadamente de uma
296

autoridade externa. Uma das consequências disto foi que todos os sectores da existência
passaram a ter a interferência dos critérios de racionalidade económica. Até ao início do séc.
XIX a sociedade era muito estratificada, pelo que as pessoas ficavam conformadas com o que
tinham e orientavam-se sobretudo pela moral religiosa. Quando surgiu a promessa de
ascensão social para todos, o cálculo económico invadiu tudo e entrou em oposição aos
sentimentos humanos elementares, às normas da moral tradicional, à autenticidade das
relações pessoais e assim por diante. Sem a racionalidade económica é praticamente
impossível sobreviver hoje em dia, mas como a antiga moral não a tinha em conta, criou-se
um novo tipo de moralidade adaptado aos novos tempos. A antiga moral religiosa pode ainda
funcionar como um factor atenuante mas, ao mesmo tempo, ela passou a ser alvo de crítica.
Por exemplo, os casais com muitos filhos são facilmente criticados por gerarem muitas
necessidades em vez de recursos. Ter muitos filhos podia ser adequado a um meio rural mas
num meio urbano torna-se problemático, daí surgirem campanhas para controlo de
natalidade, como aquelas lançadas pela fundação Rockefeller. Ironicamente, estas
campanhas que visavam sobretudo o terceiro mundo não tiveram muito efeito nessas
paragens, dado que não há nestes locais muito acesso aos meios de comunicação social,
então, acabaram por se impor às classes média e alta ocidentais. Isto originou um défice de
mão-de-obra que foi colmatado pela imigração, o que provocou, por sua vez, um problema de
ocupação cultural em vários países.

Este tipo de contradição é inerente a quase todos os projectos de engenharia social,


que acabam por espalhar um estado de confusão que faz desaparecer a ideia de coerência nos
julgamentos morais. Assim, por exemplo, vemos que as pessoas que tentam destruir a moral
tradicional e quere, promover coisas como a liberação sexual ou o casamento gay são as
mesmas que usam a antiga moral para destruir a reputação de certos políticos. Chegando a
este ponto, desapareceu toda ideia de hierarquia ou coerência do sistema moral, e torna-se
possível criar qualquer opinião, sentimento ou reacção sem justificar o próprio critério moral
utilizado. Os próprios efeitos criados pela engenharia social transformam-se numa espécie de
premissas que podem desmentir os princípios dos sistemas morais ou judiciais. Um juiz com
horror ao tabagismo irá facilmente recusar o direito de defesa. Isto não é apenas
irracionalidade – desmentir os princípios da lógica –, é desmentir mediante as próprias
acções os fundamentos da existência, aquilo que antiga retórica se chamava de argumento
suicida. Pascal Bernardin, no livro Maquiavel Pedagogo, mostra que todas as técnicas de
educação usadas em todo o mundo, por indução da ONU, já nada têm a ver com aprendizado
mas são manipulação de comportamento; são itens de engenharia social com o objectivo de
produzir alterações de comportamento. Todo o politicamente correcto, se exposto de forma
explicita num código, mostraria a sua total incoerência, mas é precisamente através desta
incoerência que ele actua para destruir a capacidade de julgamento moral, deslocando o eixo
das decisões da consciência para um agente externo, que doravante se torna no símbolo da
racionalidade.

Em última análise, podemos definir a razão como o senso da totalidade e da


articulação entre as suas partes. Nascemos com esta capacidade mas apenas em potência,
porque para desenvolvê-la necessitamos de uma linguagem, noções de cálculo, e ainda temos
de apreender alguns códigos sociais, assim como acumular alguma experiência. Acontece que
os problemas colocam-se desde muito cedo ao ser humano, exigindo uma solução racional
muito complexa, mas são questões que transcendem largamente a nossa possibilidade de
compreensão, mas isso em nada alivia o impacto dos problemas, bem pelo contrário. Isto é o
trauma da emergência da razão. Razão significa também ordem e segurança. A criança,
297

obrigada a defrontar questões acima da sua capacidade racional, vai busca num símbolo
exterior algo que a tranquilize e a defenda, normalmente o pai ou alguém que represente a
autoridade. Sempre que não conseguimos articular racionalmente as situações com que nos
deparamos, a tentação é a de nos apegarmos a uma autoridade externa que simbolize a razão,
que não vai ser sempre o pai, passa depois a ser a universidade, o Estado, a comunicação
social, a Igreja, etc. Quase nunca é um apego fundamentado, por exemplo, o sujeito acredita
totalmente na Teoria da Evolução porque se apegou à autoridade da ciência, mas ele não
consegue dar nenhum argumento substantivo e nem defender a teoria contra alguma
objecção mais séria, mas também não se preocupa com isso porque já transferiu o centro
decisório do pensamento racional para uma entidade externa que o simbolize.

Qualquer um de nós que se queira tornar num intelectual sério tem de abdicar do
apego simbólico a uma autoridade. Sempre que estamos desorientados só temos de confessar
o nosso estado de facto e dizer “não sei”. Só estamos na realidade se admitirmos um
coeficiente de ignorância muito grande. As pessoas falam boca para fora o dito socrático “só
sei que nada sei”, mas na prática agem como se soubessem tudo: Isto reflecte a crença de que
o Estado, o Partido, a Igreja (ou qualquer outra entidade que simbolize a razão para o
indivíduo) sabe tudo. Temos que desenvolver a capacidade de viver na consciência de
ignorância, não apenas como uma proclamação genérica mas como uma atitude perante as
questões de facto, admitindo que não sabemos a resposta e que, muito provavelmente, as
supostas autoridades também não têm essa resposta. Existem muitas perguntas sem
resposta. Vivemos essencialmente num círculo de ignorância e apenas podemos lançar luz
sobre umas poucas questões, por maior que seja o nosso horizonte de estudos. Apenas com a
admissão do estado de ignorância podemos ter a percepção clara da diferença entre certeza e
dúvida.

Outra preocupação elementar na busca do conhecimento prende-se com conseguir


mapear as nossas ideias e as crenças fundamentais segundo os níveis de credibilidade
inerentes aos quatro discursos: as ideias podem ser absolutamente certas, provadas e acima
de qualquer dúvida; podem não estar absolutamente provadas mas com boa probabilidade
estarão certas; podem ser apenas verosímeis, quando não temos provas delas mas coincidem
com o que a maioria pensa; e serão ser apenas possíveis, meros frutos da imaginação.
Podemos fazer uma classificação semelhante em relação àquilo que ignoramos: a nossa
ignorância pode ser total, quando nada conseguimos dizer sobre o assunto; pode ser parcial
quando sabermos o suficiente para esclarecer o sentido da pergunta, o que permite formular
uma série questões que nos levariam ao esclarecimento do assunto. Em relação a temas como
impostos, crises económicas, casamento gay, aborto, etc., sabemos a origem social e histórica
de cada uma destas questões? Conhecemos os projectos de engenharia social que tornaram
estas coisas focos de interesse público?

Hoje em dia praticamente todos os analistas políticos defendem o primado da


economia. O próprio Marx defendia isso, mas dizia que a História é determinada, em última
instância, pelos factores económicos, pelo que já estava a assumir a existência de outros
factores. Ele não deu qualquer critério que servisse para reconhecer quando o factor
económico se torna decisivo. Contudo, podemos observar que tudo em economia é fruto da
acção humana, e mesmo os produtos dados pela natureza têm que ser “colhidos” pelo
homem. Então, tudo em economia passa pela esfera da consciência humana. A acção humana
não reflecte o estado objectivo da economia mas o que cada indivíduo entende dela, porque
ninguém é um analista económico perfeito e nem poderá ter em conta todos os outros
298

factores envolvidos (esperanças, valores, temores, regras morais, linguagem). Assim, no final
a acção humana pode ir contra a racionalidade económica. Então, a situação económica
nunca é, sem si, causa de nada. Mas se acreditarmos nisto vamos achar razoáveis ideias como
a de que o banditismo é causado pela pobreza. Se assim fosse, todos os pobres seriam
automaticamente criminosos, mas sabemos que a maioria nunca chega a sê-lo.

As pessoas acreditam piamente que a economia é uma chave explicativa de quase tudo
– até para justificar o aborto –, quando existem inúmeras evidências a desmentir isto. Elas
têm estas crenças porque foram alvo de projectos de engenharia social, que fazem com que
hoje se passe de uma discussão moral a uma discussão económica com toda a naturalidade. O
resultado de tudo isto é aquilo que Pitirim Sorokin chamou de desmoralização da sociedade,
que é a eliminação da moral como um factor que presidia à conduta humana e à
representação da realidade. Considerações de ordem moral são hoje tidas como
irresponsáveis quando chocam com supostas vantagens económicas e sociais. Tal já é comum
na discussão do aborto, assim como na legitimização do narcotráfico. O princípio que está
aqui activo (primado da economia), apesar de encoberto, permitirá defender o infanticídio ou
mesmo o crime como factor de controlo populacional. Mas se os argumentos de ordem moral
perderam o lugar, o sentimento moral é ainda usado por aqueles que querem sobrepor a
economia à moral. Há um apelo ao sentimento moral daqueles que defendem, por exemplo,
as vantagens económicas e sociais do aborto sobre a vida dos fetos. Isto reflecte o que foi dito
antes sobre a confusão na esfera dos valores, com o uso de argumentos que desmentem os
próprios princípios que os fundamentam. A engenharia social fez com que se tornasse
obrigatório raciocinar contra a própria racionalidade.

A concentração do factor económico-social e da racionalidade nas discussões actuais


deriva do desenvolvimento da ciência e da tecnologia, ancorado à ideia de que tal se trata de
um domínio dos meios terrestres tendo em vista fins que nos são vantajosos. Esta revolução
científica foi acompanhada de um novo paradigma cognitivo, derivado de Descartes, que
transferiu o eixo da discussão desde o aspecto cognitivo para o aspecto do domínio técnico e
das vantagens práticas. Então, não é que as novas ciências fossem mais racionais, tinham
apenas mais utilidade para a ciência técnica e, supostamente, para toda a sociedade. O
pragmatismo assumiu, depois, explicitamente esta alteração de foco, dizendo que os
conceitos de verdade e de falsidade não se aplicam à descrição objectiva dos factos, pelo que
há apenas que provar que as ideias propostas são úteis ou não.

Benedetto Croce dizia que havia quatro grandes dimensões do espírito humano: a
ética, a estética, a economia e a lógica. Nestes termos, vemos que tem havido uma
progressiva retirada das esferas da ética e da lógica para uma concentração na esfera
económica, aqui vista como um domínio relacionado com todo o tipo de raciocínio de
utilidade prática. É uma transformação facilitada pelos avanços da ciência e da técnica, o que
introduz uma nuance fundamental. Como estas versam apenas sobre a experiência humana
terrestre e sensível, tudo o resto é relegado para o domínio da crença, da afeição e da
imaginação. Ninguém nega o direito de imaginar a existência de Deus, do céu e do inferno, de
anjos e demónios, conquanto aquele que o fazem se contentem em admitir que tudo isto seja
apenas imaginação e não mais elementos da discussão pública baseada na razão. Ou seja, há
um apelo à razão justamente no momento em que se faz tudo para demolir os seus
fundamentos, e a consequência é que a razão tornou-se apenas num símbolo de prestígio e de
autoridade social. Isto é um óbvio convite à fraude científica, algo que se generalizou nas
últimas décadas. A classe científica perdeu muita credibilidade mas as pessoas continuam a
299

acreditar na ciência como ideal cognitivo. Não sabemos por quanto tempo se manterá esta
situação porque é um se trata de um ideal sem representação terrestre.

Todo o esforço de engenharia social, tentando encerrar as pessoas num ambiente


terrestre, é uma mutilação cognitiva monstruosa, um compromisso de vida e de morte com a
ignorância. Todo o conhecimento revelado pelas experiências de morte clínica [192, 202]
torna-se automaticamente proibido. A engenharia social consegue produzir efeitos mágicos,
como fazer crer aos indivíduos de uma maioria que eles estão totalmente isolados e
deslocados do meio, que seria representado por uma ínfima minoria. O primeiro dever do
estudioso é não cair nestas manobras de engenharia social, que impõem mudanças de
comportamento sem discussão. Temos de perceber que a minoria é a minoria, por exemplo, e
não cair no bluff de achar que aquilo que vem de um pequeno grupo representa o que toda a
gente pensa. Implica também saber que apenas a consciência de imortalidade [190, 192, 195,
196, 202, 203, 212, 252] nos dá a verdadeira escala da existência humana, e é esta
consciência que nos pode libertar rapidamente da engenharia social. α86

[Aula 87]
267.O processo educacional como conquista da transparência
A educação faz parte de um processo mais amplo, que é o da conquista da
maturidade. Tanto a passagem da infância para a adolescência como a passagem desta para a
maturidade são marcadas, em termos de evolução biológica, por uma conquista de certas
possibilidades físicas. O conteúdo interno do processo pode ser explicado de muitas formas e
veremos uma extraída do filósofo Luís Cencilho. Ele explica o processo de desenvolvimento
humano como uma espécie de ascensão da lucidez, em que os indivíduos assumem
progressivamente, de modo cada vez mais consciente e lúcido, o conhecimento e a posse das
suas próprias dimensões, não apenas em relação às suas possibilidades mas também a
respeito das próprias incapacidades e deficiências. Trata-se de uma posse mental de si
mesmo, de uma obtenção cada vez mais clara e lúcida de quem somos, do que podemos ou
não fazer, das nossas limitações, e assim por diante. Uma criança tem pouco controlo da sua
vida, dado que nem conhece os seus verdadeiros impulsos e necessita de alguma experiência
para distinguir um apelo momentâneo de uma necessidade estrutural.

Conhecemos os desejos, temores ou fantasias que estão em nós à medida que


observamos como eles operam na nossa pessoa. Embora a névoa inicial permaneça obscura
durante muito tempo e nunca tenhamos um domínio mental completo sobre nós mesmos, o
importante é o esforço constante para fazer com que a parte transparente abarque o conjunto
do nosso ser e que, assim, possamos ter alguma certeza do que estamos fazendo. Inteligência,
consciência, mente ou espírito são apenas aspectos do impulso de auto-transparência, que
apenas funciona se existir reflexão sobre nós mesmos. Na medida em que não nos
conformamos em ser vítimas inermes nem dos elementos externos e nem dos nossos
impulsos (que podem ser inoculados desde fora) mas absorvemos este material, dá-se uma
ampliação em nós e surge um princípio de integração ou unificação maior. O mundo
passional (impulsos sexuais, de agressividade, de cobiça, preconceitos, temores morais,
inibições, etc.) constitui o elemento material da nossa pessoa, enquanto o espírito e a
300

consciência são a luz lançada sobre tudo isto visando passar da obscuridade inicial para
alguma transparência em relação a nós mesmos.

Dependemos de muitos elementos intelectuais para perceber de onde surgiram os


impulsos que nos assolam, assim como para saber como operam e a onde nos conduzem, e
para entendermos quais as consequências de agirmos de tal ou tal forma. É necessário saber
nomear os elementos e saber relacioná-los. Muitas pessoas em estado de depressão
involuntária sentem que aquilo lhes foi imposto desde fora ou por uma força misteriosa, mas,
aos poucos, podem começar a perceber que se trata de uma reacção típica a um elemento
presente nelas mesmas. Sem um conjunto de elementos linguísticos e simbólicos não é
possível começar a dispersar a obscuridade, porque nem conseguimos dizer o que se passa
connosco.

Todo o adolescente teve algum dia a impressão de ser louco. Ele vê-se como um caso
sui generis, dado lhe parecer que aquilo que vivencia dentro de si é diferente do que acontece
com todas as outras pessoas. Na realidade, trata-se de um problema de ignorância, de falta de
linguagem, de símbolos, de modelos, então, ele imagina que aquelas coisas apenas se passam
com ele. Sendo a situação muito difícil, a tentação é buscar experiências opostas e que o
façam sentir-se igual aos outros, assim, também irá se sentir integrado no grupo, aceite,
amado. Na tentativa de obter uma normalidade, tal como entendida naquele momento, esta
busca de integração grupal criará uma cisão entre o seu interior mais profundo e a imagem
exterior. Ou seja, o esforço para se sentir normal é uma das coisas mais neurotizantes que
existem. Negamos o que há de mais próprio em nós e tentamos imitar aquilo que achamos
que os outros são, embora eles possam estar tão perdidos como nós.

Não existe normalidade colectiva, isto é, não podemos medir a nossa normalidade
pelo grau de adaptação a uma conduta padronizada externa. Se o fizermos, corremos o risco
de abandonarmos o processo de desenvolvimento interno e entrarmos num processo de
adaptação, que encobre a nossa realidade profunda. Assim, saímos divididos e ignorantes de
nós mesmos (o tipo de pessoa que São Pedro disse que iria aparecer no fim dos tempos).

A adaptação é uma coisa neurótica em si mesma. Criamos uma série de condutas


imitativas que nos dão uma satisfação momentânea e subjectiva de aceitação. Contudo,
nunca temos um sentimento de aceitação completo, resta a dúvida de que estamos
escondendo muitas coisas, que rapidamente são esquecidas. Mas este esquecimento não
impede de sabermos que escondemos algo, então, sentimos que somos diferentes dos outros,
e isto é tanto mais agudo quanto mais nos esforçamos para sermos como eles. Estes
problemas de adaptação colocam-se tanto a alguém que quer participar num grupo marginal
como a alguém que quer um emprego numa grande empresa. Por norma, as pessoas tentam
resolver os conflitos internos, resultantes da integração grupal, apostando ainda mais na
busca de adaptação, eventualmente procurando novos grupos, uma vez que não identificam
bem a natureza do problema, obviamente situado nelas mesmas.

Sempre temos alguma necessidade de adaptação social, mas esta coloca-se ao nível de
cada grupo. Já a conquista da auto-transparência é uma necessidade universal que passa por
cima de todos os grupos e das suas vicissitudes. Na realidade, só compreendemos o processo
adaptativo e tornamo-lo eficiente quando estamos centrados no processo real de
desenvolvimento da personalidade. Esta é o centro e os papéis sociais andam em volta. O
centramento na personalidade implica ter por base elementos mais constantes, estruturais e
decisivos, que depois permitem fazer adaptações bem-sucedidas aos diferentes meios onde
301

temos que viver e a respeito do quais temos pouco controlo e, por vezes, nem possibilidades
de escolha.

Existe uma certa universalidade nos elementos que compõem a alma humana. Todos
temos mais ou menos os mesmos instintos, desejos, temores, etc. São elementos de uma
riqueza quase inabarcável. A capacidade de apreensão intelectual que temos sobre eles é
bastante limitada. Podemos nem sequer saber o que esses elementos têm de universal e o que
têm singular. Esta categorização depende de símbolos e modelos que recebemos da cultura,
mas a educação actual não leva nada disto em conta. O sujeito aprende na escola matemática,
geografia, História, etc., mas não aprende a lidar consigo mesmo. Na realidade, na sociedade
actual o indivíduo só tem oportunidade de reflectir sobre ele mesmo num grupo de
psicoterapia (se este funcionar com a intenção de realmente ajudar os outros), onde as
pessoas aprendem a expressar as tensões e contradições que têm dentro si e, assim, podem
manipular estes elementos ou integra-los de alguma forma. Mas o sujeito vai entrar num
destes grupos quando a sua alma já está doente, pelo que não há um aprendizado normal do
desenvolvimento humano, ou seja, não existe atenção para a própria alma, apenas para as
suas doenças. Contudo, a própria paralisação do desenvolvimento da alma já é um elemento
mórbido, mas tal é aceite socialmente porque todos os que pertencem ao mesmo grupo têm o
mesmo tipo de deformidade mental. No fundo, todos desconfiam que os outros são loucos e
duvidam, ao menos em algum momento, da sua própria sanidade mental.

Podemos concluir que o problema do desenvolvimento da alma e da conquista da


transparência a si mesmo é sempre um problema de linguagem e de meios de expressão.
Uma pessoa sem os instrumentos expressivos adequados pode achar que as experiências
mais banais e universais são totalmente singulares e incomunicáveis. Então, os erros de
percepção vão crescer e, daí para a frente, o padrão estrutural de conduta da pessoa pode ser
a inadaptação à realidade.

A linguagem serve para expressar os estados da nossa alma, que são fugazes e não se
repetem segundo a nossa vontade. Mediante analogia, a partir da expressão de um estado
vamos descobrir outros mais ricos e complexos. Não se trata de ter um diccionário de
situações humanas, porque não existe um padrão uniforme da conduta humana. Procura-se
uma relação analógica, perceber as semelhanças e as diferenças entre os mundos interiores. A
chave da convivência humana está em nos conhecermos a nós mesmos através das imagens
de outras pessoas, assim como conhecer as outras pessoas mediante a imagem que temos de
nós: é o conhecimento da alma a partir do conhecimento das outras almas. Praticamente não
existe limite para o que podemos descobrir, assim como não há limite para o que
necessitamos de saber para descobrirmos certas coisas.

Conhecemos os análogos entre a nossa alma e as outras mediante os símbolos que a


cultura nos forneceu. A parte da cultura aqui relevante é aquela constituída essencialmente
de narrativas. Por vezes, podemos nos livrar de um problema contando as coisas como se
passaram. Mesmo uma simples narrativa pode ser bastante problemática e, se não tivermos
as palavras adequadas, vamos usar analogias de analogias e parar longe da experiência. A
literatura universal é o registo da experiência humana interior. O sujeito possuidor desta
cultura tem uma enorme vantagem em relação ao sujeito inculto. Desde logo, não vai
tropeçar em todo o tipo de problemas, que há muito foram resolvidos. O sujeito culto está
muito melhor equipado para conquistar uma certa transparência, dado que possui um
domínio muito maior sobre o conjunto dos factores da existência. Quando o sujeito culto
comete alguma baixeza, ele consegue identificar o seu problema, o que não quer dizer que
302

conseguirá eliminá-lo mas tem a possibilidade de controlá-lo de alguma forma. Já o sujeito


inculto tentará encobrir os seus problemas e faltas, tentará esquecer ou poderá repetir muitas
vezes a mesma falha para se dessensibilizar. O grupo de criminosos vai exigir ao novato
alguma prova de coragem, que na realidade é apenas uma forma o dessensibilizar. Mas o
estudante de medicina também passa por algo idêntico, por exemplo, podem-lhe exigir que
trate alguém sem anestesia, para assim aumentar a sua resistência ao sofrimento alheio.
Contudo, o indivíduo que se tornou menos sensível ao sofrimento alheio não quer dizer que
se tenha tornado insensível ao seu próprio sofrimento. Isto acontece porque a
dessensibilização não é um processo de desenvolvimento da alma mas um processo de
adaptação a uma situação exterior.

Uma personalidade inteira pode ser desenvolvida em cima de uma falha ou de um


deslize que se complicou demasiado e, depois, a pessoa ajustou toda a sua vida para fugir
àquele ponto doloroso. A literatura permite-nos usar a experiência alheia, e com ela
conseguimos antecipar muitas situações e reconhecer outras em que nos encontramos.
Teremos, assim, uma ideia do que devemos fazer e dos riscos envolvidos em certas acções ou
omissões. À medida que vamos acumulando leituras, vamos conhecendo a variedade de
existências humanas possíveis e adquirimos os meios para expressar o que quer que se passe
dentro de nós. Desta forma, atingimos a transparência que assinala a maturidade. Isto quer
dizer que só existe maturidade dentro de uma certa maturidade intelectual. Hoje em dia
considera-se que a maturidade está apenas associada a um encaixe no meio social, não
importando que a alma da pessoa seja um conjunto de deformidades.

A maturidade não devia ser associada à normalidade – que é apenas uma coisa
externa – mas à sanidade, precisamente aquilo que é marcado pela transparência e pela
posse que a pessoa tem de si mesma. Isto implica sabermos as nossas limitações, fraquezas e
até identificarmos as situações sobre as quais não temos qualquer domínio. Numa operação
ou numa situação traumática perdemos todo o auto-controlo, que depois tem de ser
reconstruído. Nesse momento, pode parecer que não temos qualquer auto-confiança,
achamos que não voltaremos a conseguir fazer o que fazíamos antes. Contudo, a perda de
confiança é um resultado indirecto, porque o que realmente perdemos foi a transparência, ou
seja, evidenciou-se um elemento novo em nós (devido a uma alteração corporal ou um evento
traumático, por exemplo), e ficamos perturbados por saber da sua existência, o que indica
que em nós existem factores obscuros determinando a nossa conduta. Nas situações em que
nos decepcionamos profundamente connosco mesmos, o problema não é o sentimento
envolvido mas a perda de transparência, ou seja, o termos ficado opacos e estranhos a nós
mesmos.

Nestes momentos o mecanismo da confissão é útil: devemos admitir que a nossa


transparência não era tão grande quanto julgávamos e que temos de saber muito mais coisas
para nos sentirmos seguros. Temos de carregar o peso do que fizemos, mas isso não implica
prolongar uma espécie de arrependimento moral. Devemos mergulhar profundamente na
situação e entender o que esta está exigindo de nós. Muita gente acha que deve insistir na
auto-punição. Contudo, podemos nos questionar se o nosso sofrimento auto-induzido nos vai
melhorar e se ajuda em alguma coisa outras pessoas. Em alguns casos, podem desenvolver-se
compulsões irresistíveis – o sujeito passa a andar embriagado, metido em drogas ou rituais
sado-masoquistas –, e a pessoa já nem recorda mais de onde veio a necessidade de se
submeter a humilhações.
303

Como foi dito, o processo de amadurecimento é um processo de conquista de lucidez,


de transparência, de luminosidade. É uma luta perpétua da luz contra as trevas e que, um dia,
podemos encarar como a missão da nossa vida. As pessoas realmente cultas são aquelas que
buscam informação, cultura e formação com este fim, dado realizarem a capacidade humana
fundamental, a busca da transparência. Atingido isto, é legítimo e até obrigatório
mostrarmos aos outros a nossa “luz”, segundo o evangelho.

O impulso para auto-transparência pode surgir dentro de nós ou pode já ser algo
presente na cultura em circulação. Mas hoje não existem mais intelectuais, como nos anos 50
do séc. XX no Brasil, aqueles homens com uma verdadeira transparência, restam apenas
profissões e papéis sociais que nominalmente assinalam posições de cultura, embora não
passando de símbolos coisificados. O verdadeiro homem de cultura é um construtor de
pontes, como dizia Lipot Szondi; ele constrói pontes entre os seus impulsos antagónicos,
entre a luz e as trevas. Ele elabora gradualmente as suas trevas para introduzir nelas alguma
luminosidade, no sentido em que Santo Agostinho dizia que os vícios são feitos da mesma
matéria que as virtudes. Claro que é muito mais fácil fazer de conta que não existem trevas
em nós, apenas nos outros. Mas isto é fugir ao desafio da vida para tentar adquirir um papel
social respeitável. O desafio que realmente se nos coloca é o de trabalhar o mal e a confusão
que existem em nós de forma a adquirirmos a transparência e o domínio mental sobre estas
coisas. Para a nossa luz começar a brilhar não é necessário esconder os pontos obscuros, até
porque não existe um contraste absoluto entre luz e trevas, trata-se sempre de luminosidade
e obscuridade relativas. O importante é que, no conjunto geral, a luminosidade predomine,
ainda que por curta margem. Ainda mais relevante não é aquilo que atingimos mas o nunca
abandonarmos a luta pela transparência. Devemos buscar 24 horas por dia elementos de
cultura com este fim e sem deixar que qualquer outro interesse se sobreponha. Devemos ler
tudo o que existe de melhor nos domínios de conhecimento que nos são acessíveis e tentar
que aquelas coisas se integrem em nós. Fazendo isto, ao fim de algum tempo abrem-se
possibilidades de diálogo e de comunicação que nunca tínhamos imaginado. O nível de
compreensão mútua aumentará de forma vertiginosa.

Em termos religiosos, podemos achar que a salvação não depende do conhecimento


mas da prática da virtude, contudo, sem a conquista da transparência apenas temos um
fingimento de virtude. Um indivíduo entrou numa igreja e tem ali uma série de regras de
conduta, então, pensa que é só fazer aquilo que vai salvar a alma, mas o que ele está a fazer é
tapar a alma, fingindo-se de inocente mas sem ter verdadeira consciência do pecado. A
conduta exterior é, assim, uma coisa construída para esconder a personalidade, é tudo
baseado numa mentira. A Bíblia diz que este tipo de homem é um “sepulcro caiado”, morto
por dentro e pintado por fora. O conhecimento de Deus passa pelo conhecimento da própria
alma e pela transformação alquímica dos vícios em virtudes, algo apenas possível mediante
uma busca incessante de uma cultura ilimitada. A cultura verdadeira dá-se quando os
elementos adquiridos pelas leituras e pelo estudo se transformam em instrumentos de
transparência para com nós mesmos e para a nossa relação com a realidade total. Sem isto,
nenhuma leitura tem um impacto profundo na nossa alma, não aprendemos realmente nada.
Numa leitura de ficção, por exemplo, devemos ter uma identificação profunda com as
personagens, o que sempre é possível, por mais diferente que sejamos delas, porque todas as
paixões estão presentes em todos os corações.

Para Szondi, a personalidade humana é composta dos seguintes elementos: a) uma


camada instintiva em primeiro lugar, composta dos impulsos básicos hereditários, que nasce
304

connosco e, por isso, não a conhecemos; b) depois temos as paixões, que são os impulsos que
se traduzem com mais frequência na nossa conduta (a teoria szondiana das pulsões refere-se
a esta segunda camada, que diz que existem oito impulsos básicos, e estes podem combinar-
se para formar uma enorme variedade de figuras); c) em terceiro lugar temos o ambiente
social, que se divide no ambiente imediato (família, amigos), comunitário (escola, local de
trabalho) e o societário (Estado, leis, economia); d) em quarto lugar, temos o ambiente
cultural e intelectual; e) por último, temos o espírito, que é quem faz as escolhas, em última
análise.

Muita gente acha que pode saltar directamente para esta última camada, sem terem
qualquer noção dos impulsos recebidos do ambiente e que se integram na pessoa na forna de
juízos, valores ou reacções. Então, são pessoas que não se conhecem mas que têm a pretensão
de se confessarem e, para tal, apegam-se a uma lista padronizada de pecados mas sem
passarem pelo exame de consciência, que na realidade elas nem têm condição para fazer
porque lhes faltam os elementos de cultura para narrar para elas mesmas o que se passa no
interior de cada uma delas. São pessoas sem a transparência necessária para fazer uma
confissão, mas acham que podem falar directamente com Deus, embora não consigam nem
mesmo ler um livro. Assim, é como se achassem que Deus deve valorizar a preguiça moral e
intelectual. Deus vai ajudar-nos quando chegarmos ao limite das nossas possibilidades
humanas.

Para conquistarmos a transparência em relação a nós mesmos devemos ler toda a


grande literatura universal (fazer a lista de livros a partir da História da Literatura
Ocidental, de Otto Maria Carpeaux). Este material já nos dá uma linguagem analógica, que
nos fornece uma certa compreensão das situações, e é em cima desta linguagem literária que
depois se constrói todo o conhecimento científico e filosófico a respeito da alma humana. É
necessário também fazer uma meditação sobre a obra de arte literária, averiguar as suas
possibilidades e limites. Isto encaminha-nos para os grandes teóricos e críticos literários. É
frequente ouvir-se o conselho de que devemos ler aquilo que gostamos de ler. Se fizermos
isso, iremos gostar sempre das mesmas coisas. O nosso gosto tem que se abrir para coisas
que não gostamos. Devemos procurar aquilo que as pessoas de grande nível cultural e
intelectual leram e vamos ler aquelas coisas, não com o objectivo de nos divertirmos mas
para aprender. Mais tarde, naturalmente acabamos por gostar também.

Se vamos estudar um determinado assunto a fundo, a primeira coisa a fazer é


organizar uma bibliografia a respeito, com alguma informação básica sobre cada obra e
indicações sobre como elas se articulam. Isto dá-nos uma forma de conjunto.

Não podemos nos desculpar por estarmos limitados a uma língua, porque ultrapassar
a limitação da língua é um dos requisitos da vida intelectual. Se tivermos apenas uma língua
nem compreendemos essa língua. Uma língua é um condensado de experiências, e há muita
coisa que não foi condensada na nossa língua mas foi noutra. É também relevante perceber
que há coisas que não se dizem em certas línguas, o que indica certos traços de
personalidade. Podemos mesmo dizer que aprender uma língua estrangeira é como aprender
a ser como outra pessoa, é abrir uma nova dimensão na nossa personalidade. Mas devemos
aprender outras línguas tendo logo de início a intenção de as apreender como instrumentos
de alta cultura, destinadas a ler a grande literatura e ao aprofundamento da alma.
Eventualmente, isso pode nem nos qualificar para uma conversa banal na nova língua, mas o
objectivo não é turístico. Contudo, uma língua estrangeira deve ser aprendida com uma certa
estranheza, não é para nos amoldarmos a ela naturalmente como se fosse a nossa língua
305

nativa. Devemos conservar o sentido da diferença entra a nossa língua e a nova, assim,
estaremos também aprendendo uma terceira língua composta daquilo que não dá para dizer
em nenhuma das duas. α87

[Aula 88]

268. O aprendizado fonético e forma literária


Muitas das dificuldades que surgem nos estudos não reflectem uma falta de cultura
superior mas deficiências ao nível do aprendizado elementar. Se temos deficiências de
leitura, ler Goethe ou Shakespeare não vai melhorar a nossa situação, ou seja, não há forma
de saltar sobre o aprendizado de base. As pessoas que foram educadas com o método
sintético possuem deficiências de leitura que não estão no plano da significação mas que se
encontram no nível auditivo, ou seja, têm dificuldade em distinguir fonemas. A linguagem
não é composta de palavras mas de fonemas, e estes compõem um sistema de articulações de
sons, que em si não tem sentido mas é em cima disto que a articulação do sentido é
construída com a intermediação da grafia.

As crianças têm a capacidade de aprender inúmeros fonemas, mas os pais falam


pouco com elas e essa faculdade perde-se. A coisa agrava-se quando à pobreza de informação
fónica dos primeiros anos se junta o aprendizado pelo método sintético de Piaget, Vigotsky e
outros. O resultado traduz-se numa dificuldade em escrever com a ortografia correcta,
porque esta é uma tradução em sinais gráficos de distinções que captamos entre sons. Em
inglês é difícil fazer estas distinções, mas em português não devia ser, dado que as sílabas
estão bem separadas.

Os erros de ortografia vão também originar erros de síntese. O sujeito que escreve um
trabalho bem estruturado em termos lógicos mas cheio de erros gramaticais, ele realmente
não completou o trabalho, mostrou apenas que o pode fazer. Os produtos da cultura superior
caracterizam-se sobretudo pela forma acabada. Essa forma só pode se incorporar na cultura
porque está estabilizada. O conteúdo é apenas uma intenção que está indo em direcção a uma
forma mas que ainda não chegou lá. O que sobra das grandes obras da cultura é a forma,
porque o conteúdo é mais ou menos comum a toda a gente. Shakespeare escreveu sobre
coisas que se agitam na alma de toda a gente, a diferença é que ele apreendeu aquilo como
uma forma e conseguiu fazer o seu registo de algum modo.

A diferença do nível de consciência das pessoas não está na sensitividade, que é mais
ou menos igual em toda a gente, mas na capacidade de retenção, que é aquilo que possibilita
criar uma forma. O único mérito literário que existe é o de conseguir dizer o que os outros
também estão percebendo, embora sem conseguir expressar. Eles podem pensar nas coisas
por uma fracção de segundo mas depois tudo se esvai. Então, até é errado falar de “criação
literária”, porque se trata sobretudo de um processo de retenção e de registo. É uma questão
de fixação da atenção mas que também tem uma base fónica, porque sem a distinção e a
retenção da distinção entre milhares de fonemas também não teremos, depois, as distinções
entre as várias percepções. Da mesma forma, alguém que percebe as distinções entre cores
306

não se torna automaticamente num pintor, mas este também não o será se não conseguir
fazer estas distinções.

No sistema antigo, os alunos aprendiam letra a letra, sílaba a sílaba. Alguns


reclamavam de que as regras da gramática eram arbitrárias, mas não tem que haver uma
explicação lógica para estas regras, tal como não a há uma explicação estética para as
distinções entre cores usadas na fabricação de tintas. Dante explicava que a gramática é a
construção material da linguagem. Ela trata, em primeiro lugar, de regras de combinação de
sons, e é em cima disto que se aplicam grafismo e se pode construir uma rede de
significações. Então, o sistema de sons tem que ser decorado, não há nada para entender a
este nível. O sucesso dos chineses nas ciências e nas artes deriva precisamente do esforço que
eles têm de fazer para decorar milhares de fonemas. Isto lembra Leibniz, que dizia que quem
tivesse visto umas figurinhas, ainda que imaginárias, já seria mais inteligente, porque a
pessoa já teria elementos para combinar e construir em cima significações. As nossas
possibilidades são limitadas se tivemos uma aquisição de elementos deficiente.

Existem várias formas de corrigir as deficiências do aprendizado de base na vida


adulta. Devemos ler textos em voz alta da forma mais clara possível. Demos também decorar
poemas e fazer ditados. Não é para nos envergonharmos com estes exercícios, porque é um
aprendizado extremamente importante, é uma espécie de base física da inteligência.

Na poesia temos uma música de sons, em cima da qual constrói-se uma outra música
de significados, que é inaudível e invisível, tendo as duas correspondência entre si. O sistema
de fonemas, que em si mesmo não tem sentido algum, quando combinado cria uma música,
que não tinha de ter algo a ver com o significado do que é dito, mas na poesia tem, ou seja,
existe na poesia uma ponte entre o aspecto puramente material da língua e a camada de
significações.

Os métodos sintéticos baseiam-se, em última análise, em Saussure, que fundou a


linguística baseando-se em distinções meramente operacionais e que não captam o fenómeno
da língua na sua inteireza concreta. Ele nunca se preocupou sobre a natureza da língua, nem
com a sua origem ou valor. Ele tomou a língua apenas como um sistema de significações, mas
a verdadeira língua é uma dos fenómenos mais complexos e ricos que existe e não pode se
identificar com o objecto de alguma ciência. A linguística nada tem a dizer sobre o misterioso
casamento de som e sentido, que existe na poesia, ou sobre as propriedade mágicas da
linguagem. α88

269. As condições para o falhanço do planeamento centralizado


Quais são as condições que tornam possíveis os grandes desastres do planeamento
estatal? James C. Scott, no livro Seeing Like a State: How Certain Schemes to Improve the
Human Condition Have Failed, dá vários exemplos deste género, incluindo o caso de
Brasília. Até ao século XVIII os governos conheciam pouco das suas nações, não sabiam
quantos habitantes havia, quanto era produzido, quais os impostos que existiam, que
sistemas de medidas estavam operando, etc. Quando se formou a administração estatal, a
primeira preocupação foi tornar a sociedade “legível” ao governante, de modo a este tomar
decisões adequadas. No tempo de Luís XIV, que foi um pioneiro nestes assuntos, o
conhecimento era ainda muito reduzido, e foi só com a Revolução Francesa que cientistas e
técnicos criaram sistemas uniformizados de classificações para dar à sociedade uma forma
307

inteligível aos olhos do governante. Contudo, a classificação era feita em função dos
interesses práticos e administrativos do Estado, não levando as estatísticas em conta com
aquilo que era relevante para a sociedade. Por exemplo, uma árvore passava apenas a ser
vista como combustível ou como material de construção, quando tinha na realidade inúmeras
outras utilizações. Mas os dados considerados relevantes não serviam apenas de informação,
eles davam origem a decisões que iriam provocar outras realidades que modificaram a
estrutura social real. No nosso exemplo, as árvores passaram a ser plantas “industrialmente”,
todas do mesmo tipo e alinhadas, modificando brutalmente o sistema ecológico inteiro.
Então, começou a criar-se uma segunda realidade, aquela do mundo ideal concebido pela
administração estatal e que se sobrepunha parcialmente à primeira.

O caos social apenas veio a adensar-se ainda mais e ficar ainda menos inteligível. Mas
a vontade organizadora do Estado moderno não pretendia tanto organizar a sociedade
existente mas construir certos símbolos visíveis de ordem, exemplificados nos jardins de
Versailles com a sua geometria, ou pelas cidades desenhas em simetria. Mas a simetria nada
tem a ver com a organização da sociedade. Os conjuntos habitacionais criados pela Bauhaus
são ideais para traficantes, viciados, prostitutas. A promiscuidade é ali estimulada pelo facto
de parte dos serviços serem colectivos, assim como pela fraca qualidade de construção, em
que numa habitação se houve o que fazem os vizinhos. O geometrismo e o simetrismo das
construções tornaram-se símbolos substitutivos da ordem, embora na realidade só gerem o
caos.

Então, diz Scott que a primeira condição para os desastres de planeamento é uma
administração central racionalizada, embora esta condição também possibilite alguns
sucessos. Em segundo lugar, é preciso acrescentar uma ideologia modernista. A terceira
condição é a existência de um Estado autoritário com força para impor estas modificações, já
que numa democracia vão existir discussões infindáveis e a coisa não vai por diante. E uma
quarta condição diz que a sociedade tem de estar debilitada cultural e psicologicamente para
não reagir ao planeamento estatal.

Contudo, a ideia da engenharia social no séc. XX criou a crença de que alguns grupos
humanos estão habilitados para reformar a sociedade inteira sem ter de consultar esta. A
própria ideia da sociedade concreta já se desvaneceu, substituída por um conjunto de
conceitos classificatórios usados pela administração estatal. A sociedade real tornou-se
inapreensível e resta apenas aquilo que está no recenseamento e que pode ser quantificado. A
ideia de planeamento central vem com a ideia de simplificar e unificar. Podemos fazer isto
com critérios racionais mas a sociedade ainda continuará diversificada e confusa, pelo que a
introdução do planeamento racional e organizado ainda vai gerar mais confusão; ou seja, os
planos de engenharia social vão interferir na diversidade local e na discussão democrática.
Mas também pode ocorrer o oposto, e serem as discussões locais democráticas a inviabilizar
os planos centrais.

James Scott diz, como vimos, que uma das condições para o planeamento ruinoso é a
existência de uma ideologia dominante de tipo alto-modernista, nas suas palavras,
significando uma ideologia utópica que acredite na possibilidade da criação mais perfeita a
partir da acção política organizada. É uma ideologia que tenta se legitimar com o discurso
científico, embora Scott diga que nada tenha a ver com a ciência. Mas aqui ele já está a opinar
sobre um campo que não domina.
308

É característico de uma ciência que esta modele o seu objecto a partir dos métodos
que utiliza e não segundo a natureza dos mesmos, que é compatível com uma multiplicidade
de pontos de vista e que não se podem deduzir uns dos outros. Nenhuma ciência é capaz de
articular todos os aspectos do objecto, então, vai apenas optar por um deles. Temos, assim,
na ciência a mesma noção simplificadora e unificadora que se encontramos na administração
central. A ciência moderna excluiu o aspecto essencialista ou substancialista da realidade e
concentrou-se nos aspectos matemáticos. Desta forma, a ciência tornou os objectos alvo
eminentemente da acção tecnológica, não interessando mais o que eles são. Podemos
concluir que a ideia do planeamento estatal centralizado, racionalizado e organizado já estava
embutida na concepção da ciência moderna. Na ciência e no planeamento estatal os enfoques
são feitos à luz do interesse que o ser humano tem em transformar os objectos. Cientistas e
planeadores nunca se perguntam sobre o que a coisa é, quid? Trata-se de uma exclusão do
conhecimento, de facto.

Em ciência podemos perguntar quase tudo a respeito de um objecto, menos o que ele
é. Isso cria um abismo entre ciência e ontologia, então, a ciência moderna não ajudou no
avanço do conhecimento da realidades mas criou outras realidades, o que seria um resultado
expectável dado que as ciências não estudam objectos de realidade mas aspectos que já são
uma segunda camada. Nem mesmo as faculdades de filosofia se questionam mais sobre o que
as coisas são, porque também foram minadas pela ideologia científica e apenas tentam
tornar-se servidoras das ciências, como acontece com a concepção de Bertrand Russel da
filosofia como uma “enciclopédia das ciências”. O fracasso deste projecto levou à
transformação, no mundo anglo-saxónico, da filosofia em pura análise do discurso científico,
ou seja, uma mera redução à lógica.

Curiosamente existem boas críticas marxistas à filosofia analítica. Esta reduz a


filosofia a um instrumento da ciência, reflectindo uma concepção tecnocrática. Face a isto, os
marxistas apelam ao conhecimento do “concreto”, o que para eles significa sobretudo a
dimensão histórica analisada no estudo do conflito entre os meios de produção e a estrutura
legal e administrativa do mundo de produção. Marx diz que os meios de produção
desenvolvem-se pelo desenvolvimento da técnica, entrando em conflito com o sistema de
produção, que tenta abafar e reprimir o crescimento económico, mas os meios de produção
acabam por vencer a revolução. Então, o “concreto” marxista é apenas a relação entre a infra-
estrutura (a economia) e a super-estrutura (a legislação, a cultura, etc.) Todos estamos
implicados nisto de alguma forma, mas é apenas um aspecto da realidade, pelo que o objecto
da filosofia marxista da História é tão selectivo como o de outra ciência qualquer, não é
nenhum concreto.

Assistimos hoje a uma profunda e vasta intervenção do Estado com base no conjunto
das ciências. Como resultado, já todos vivermos numa segunda realidade criada por esta
intervenção e não conseguimos mais imaginar com eram as coisas antes, vivemos numa
espécie de “alienação obrigatória” em relação ao passado. Então, torna-se cada vez mais
difícil o enfoque filosófico originário, que levava às perguntas sobre o ser ou sobre a natureza
da realidade. Nem temos mais um aprendizado elementar que nos leve às coisas mas
somente um aprendizado sintético que embota a nossa capacidade de compreensão [268].
Não existe nenhuma solução geral para este estado de coisas, e mesmo o aluno na faculdade
de filosofia que faz a pergunta sobre a natureza do ser já está dentro de um enquadramento
disciplinar em que não é importante ter um interesse pessoal pela pergunta, o que até o
poderia prejudicar naquele contexto. Mas existe solução à escala pessoal, que temos visto no
309

Curso Online de Filosofia, com a tentativa permanente de trazer as perguntas filosóficas


fundamentais para a dimensão do ser humano concreto e existente. Sócrates e Platão
tratavam das grandes questões como se fossem problemas pessoais, e nós temos de fazer o
mesmo. A partir de certa altura, a atenção dos filósofos foi desviada para os objectos da
ciência. Quando estes objectos tiverem coberto toda a área, não restará mais espaço para a
visão originária da filosofia e todos os produtos culturais anteriores ao advento da ciência
moderna tornar-se-ão incompreensíveis.

Existiram várias tentativas de colar o aspecto científico com o da visão originária


apelando a tradições orientais, mas estas não foram desenvolvidas para este fim. No caso da
tradição hinduísta, a realização espiritual humana é vista como a reabsorção no Brahma, a
realidade universal. Mas a inteligência universal – o Logos divino – sempre existiu e é a fonte
de qualquer possibilidade de consciência. O elemento racional, presente em todo o ser
humano, visa a esta universalidade. Se queremos conhecer a Deus, o instrumento que temos
para isso é conhecermo-nos a nós mesmos, e é esta a finalidade da nossa existência. A
pergunta “como conheço Deus?” transforma-se na pergunta “por que razão existo?” As
experiências de morte clínica, apesar de não provarem a imortalidade da alma, mostram que
existe uma continuidade para além do corpo não só da consciência (no sentido da
intencionalidade de Husserl) mas da própria consciência auto-biográfica. Nessas
experiências não se vê iniciar-se nenhuma dissolução na inteligência universal. Se toda a
memória e cada consciência individual estivessem destinadas a ser absorvidas, então, a
totalidade do universo seria uma enorme gratuitidade, e não se percebe a razão de Deus dar
tudo isto para depois “engolir” tudo de novo. A perspectiva hinduísta deixa-nos perante uma
absurdidade monstruosa. Se a individualidade humana histórica não tem uma finalidade
eterna, então, é a própria noção de finalidade que se desfaz. Na perspectiva cristã Deus faz as
almas para a eternidade, não apenas com o fim de ama-Lo mas para que se amem umas às
outras. Então, não podemos levar a séria a pretensão de René Guénon de que existe algo
superior à perspectiva da salvação, aquilo que ele chama de “realização metafísica”. α88

270. Os limites da influência ambiental


Nenhum ambiente pode dominar o indivíduo sob todos os aspectos, ou este seria
apenas uma vítima inerme do meio. Pelo menos, o indivíduo tem um impulso de subsistência
que já o impele a uma certa resistência. Por outro lado, nenhum ambiente é inteiramente
coerente e, por isso, não pode exercer uma influência unívoca sobre nós, ou seja, todas as
influências chegam com ambiguidades e nos intervalos está a possibilidade de resistirmos.
Mesmo a influência opressiva é um estímulo à resistência, não só pela reacção que provoca
no indivíduo mas pelas suas contradições internas. É justamente quando atentarmos nestas
contradições que podemos ser mais eficientes nas acções que dirigimos a nós mesmos.

Nunca podemos esquecer Goethe quando ele dizia que “o talento se fortalece na
solidão; o carácter na agitação do mundo”. Os estudantes num ambiente ordenado, com
informação acessível, têm muito mais possibilidades de desenvolver o talento mas, ainda
assim, podem continuar imaturos e dependentes, também porque confiam nos seus direitos,
porque no contexto onde vivem toda a gente tem oportunidade de opinar e de sustentar as
suas posições. Num ambiente opressivo ou o indivíduo desenvolve rapidamente o carácter ou
ele é “liquidado”. Entre o talento e o carácter, este último predomina e o próprio
desenvolvimento do talento depende também do carácter. Assistimos no século XX ao
310

cristianismo extinguindo-se no ocidente, com democracia, liberdade e desenvolvimento,


enquanto se aguentou bem melhor na União Soviética com toda a opressão aberta e
ostensiva. α88

[Aula 89]

271. Filosofia, cosmovisão e apologética


Uma filosofia é sobretudo uma análise crítica das cosmovisões. Cosmovisão é uma
concepção do cosmos que tem sempre uma ambição totalizante e que recebemos mais ou
menos pronta da sociedade. Uma cosmovisão é uma expressão integral da cultura onde ela
foi formulada. Podem haver várias cosmovisões em disputas, cada uma delas com uma
pretensão totalizando, algo que nunca acontece com a filosofia. Então, a filosofia pode
analisar certos pontos da cosmovisão mas não se vai substituir a esta. É certo que no período
entre Descartes e Hegel houve uma tendência de organizar a filosofia segundo a noção de
“sistemas abrangentes”, mas isto não é um traço inerente à filosofia. Já a existência de uma
cosmovisão totalizante é algo inerente à cultura, mas trata-se de uma obra colectiva que se
vai depositando e sedimentando ao longo de muitos séculos. Uma filosofia, sendo obra de
uma inteligência individual, não pode tomar o lugar de uma cosmovisão.

Mas a filosofia vai afigurar-se como uma coisa sistémica porque a própria razão é um
senso da totalidade, mas é apenas um dirigir-se para esta, não é um “chegar lá”, como
pretende a cosmovisão. As noções que a cosmovisão nos dá acerca da realidade, do tempo, da
ordem dos factores e assim por diante aparecem como se fossem uma imagem directa do
cosmos, não como doutrinas. A filosofia surge como uma intermediação mental que pode
corrigir ou aperfeiçoar a cosmovisão, eventualmente até rejeitá-la por completo. Não tendo a
filosofia a abrangência descritiva de uma cosmovisão, ela também não tem que ser
apresentada sistematicamente. As próprias sumas de São Tomás de Aquino não têm a
pretensão de abranger todos s aspectos da realidade, e é sempre necessário examinar outros
pontos.

Tal como não tem sentido apresentar a filosofia de forma sistemática, o que a
colocaria ao nível de uma cosmovisão, também não tem sentido em torna-la numa coisa
apologética. Em geral os cristãos caem no erro de achar que é muito importante a defesa
teórica do cristianismo, o que pressupõe que o importante é a doutrina. Ora, esta foi
desenvolvido muito lentamente ao longo dos séculos, deixando muitos pontos em aberto, e
ela pode nos levar a esquecer o essencial: os factos relativos à passagem de Cristo pela terra,
sendo destas narrativas que se compõem os evangelhos. Os factos do cristianismo
transcendem incomensuravelmente a doutrina cristã, então, não tem sentido reduzi-lo a esta.
A doutrina só se começou a desenvolver por uma necessidade externa, que foi o contacto com
o ambiente greco-romano, num período onde não existia mais a aura do miraculoso e em que
os ouvintes não-cristãos estavam habituados às discussões, então, queriam discutir o
cristianismo como doutrina. Contudo, um indivíduo pode não entender nada de doutrina
mas ter uma confiança directo no poder de Cristo.
311

O cristianismo é uma sequência de factos, sobretudo os milagres de Cristo e dos


santos. Não há que fazer uma apologia do facto, porque a estrutura da realidade não precisa
ser defendida, é para ser exposta, admitida e, até certo ponto, compreendida. Mas esta
compreensão tem de levar em conta que o facto é sempre soberano, ele não pode ser
abrangido pelas nossas ideias, estas é que são enquadradas pela realidade. Os factos do
cristianismo são uma manifestação do amor divino sobre a terra, e eles já são eminentemente
inteligíveis e luminosos. Não temos que defender os factos contra teorias ou já estamos a
rebaixar aqueles ao nível destas.

Em filosofia também devemos partir dos factos, não para chegar a doutrinas mas para
chamar a atenção de outras pessoas para estes factos, mesmo que não cheguemos a nenhuma
conclusão. Para isso, temos de pressupor que os factos têm uma inteligibilidade imediata e
uma luminosidade intrínseca. Já Platão partia dos factos e no final, depois de uma escalada
dialéctica, não apresentava doutrinas acabadas mas propunha uma espécie de contemplação
imaginativa, que ele exprimia através de uma narrativa mítica. Não devemos ter a intenção
de provar o que quer que seja mas criar as condições intelectuais para que as coisas apareçam
como evidências. A prova lógica mais aperfeiçoada não tem a persuasão de um único facto. A
prova prossegue apenas numa direcção, mas é fácil perceber que inúmeras outras abordagens
são possíveis. Então, a prova aparece como algo “vazio”, mas o facto já aparece com a
infinidade de acidentes necessários para que ele mesmo ocorra, é algo “pleno”. α89

272. Do nominalismo à perda da confiança na ciência moderna


Alguns factos desconcertantes têm sido observados nos campos das ciências nas
últimas décadas. As drogas antipsicóticas de segunda geração tinham mostrado em milhares
de testes que eram muito mais eficientes que as drogas anteriores. Fizeram um enorme
sucesso de vendas mas, passado algum tempo, o grau de sucesso era bem menor (ver artigo
“The Truth Wears Off”, de Jonah Lehrer. Não se tratam de erros ou de fraudes a imputar aos
primeiros testes, simplesmente os resultados mudaram com o tempo. É um fenómeno que se
tem verificado em muitas áreas mas do qual ninguém quer falar, porque o método científico
baseia-se na reprodução do experimento e, de repente, o princípio da reprodutilidade parece
estar em causa.

Aristóteles já tinha dito que o método matemático não é bom nas ciências físicas,
porque a Natureza não se comporta de maneira constante, ela tem hábitos e não leis. Só Deus
pode ter leis porque só ele é imutável. A constância pressuposta no princípio da
reprodutilidade só existe na esfera metafísica, a respeito das leis internas na possibilidade e
da impossibilidade. Fora disto, apenas temos hábitos, que podem ser muito duráveis e
verificarem-se por milhões de anos, embora alguns possam apenas se verificar por alguns
anos. Raymond Ruyer, no livro A Gnose de Princeton, fala também de “hábitos da Natureza”,
embora não possamos seguir muitas das suas conclusões.

Não existem explicações científicas para esta degradação da reprodutilidade mas


existe uma busca de explicação em duas linhas. Uma delas aponta para a variabilidade da
Natureza e outra, onde se tem apostado mais, tenta identificar algum problema com o
método científico ou com a própria prática científica. Neste sentido, alguns estudos mostram
que as revistas científicas preferem trabalhos que confirmem hipóteses ao invés de estudos
que as contestarem, o que obviamente introduz um viés, mas claro que isto se pode alterar.
312

As deficiências nos métodos ou nas práticas científicas não parecem suficientes para explicar
o fenómeno que temos em mãos.

No tempo de Newton e Galileu acreditava-se que Deus tinha escrito a Natureza com
caracteres matemáticos, e como só os cientistas sabiam desvendar estes, apenas eles vivam
na realidade. Então, a ciência moderna construiu-se em cima de um dogma que diz que o
constante se identifica com o real e o mutável com o irreal. Claro que uma coisa que muda
não se torna por isso irreal, mas os cientistas modernos tinham interesse em investir com o
carácter de leis divinas as leis da Natureza descobertas por eles. Assim, era como se eles
tivessem lido a mente divina e descoberto os decretos eternos da providência a respeito da
Natureza. As constantes da Natureza foram divinizadas, e quando as observações põem em
causa o seu estatuto de constância, as pessoas perdem a confiança no método científico, o que
é o ideal para a criação do espírito pós-moderno, onde já não há mais nada a que se ater e a
própria realidade dos sentidos é desmentida pela sua mutabilidade. Trata-se um cepticismo
derivado, em última instância, da confiança cega que foi atribuída ao método científico
matemático.

Para entendermos melhor o que se passou, temos de recuar um pouco e voltar aos
séculos XII a XIV, quando se deu um grande desenvolvimento da técnica lógica por parte dos
escolásticos. Isto teve certos efeitos que na altura ninguém podia ter previsto. O ensino das
escolas catedrais e monacais chegou a uma perfeição no século XII (a “inveja dos anjos”
[128]), e baseava-se na unidade absoluta entre as disciplinas intelectuais e a vida religiosa.
Mais tarde, Hugo de São Vítor tentou registar, no livro Didascalicon, o essencial desse
ensinamento, que no seu tempo já estava em risco de se perder. Para ele, nada estava fora da
devoção religiosa. O ensino começava com a lógica e com a matemática e depois passava não
apenas para a teologia mas para uma série de disciplinas práticas, que serviam para aliviar a
miséria do ser humano. Este é um ser desamparado desde a queda de Adão e Eva, na
verdade, o mais desamparado dos seres, nascendo totalmente indefeso e necessitando de
muitos anos até ter obtido os conhecimentos necessários para sobreviver, enquanto os outros
animais em poucos meses já acompanham os progenitores nas actividades destes de alguma
forma. Os ofícios e técnicas foram criados para colmatar esta fragilidade do ser humano e a
sua prática é um aspecto do amor ao próximo. Mas todo a aprendizagem só era explicável em
função do objectivo final, que era a contemplação espiritual, ainda que muitos parassem
antes.

No tempo de Hugo de São Vítor formaram-se também as universidades, que eram


grupos de aficionados irmanados pelo conhecimento e que contratavam professores do
exterior. O currículo era diferente do existente nas escolas monacais e catedrais mas
aproveitava muito deste. Quando o papa inocência II publicou o regulamento da
Universidade de Paris e constituiu a profissão universitária, em 1215, ele criou ao mesmo
tempo a carreira universitária. Subir nesta carreira estava ligado ao talento mostrado na
leitura e compreensão de textos, que era o fulcro do ensino universitário, e esta ascensão
abria também as portas para cargos de autoridade no exterior, que podiam chegar ao de
conselheiro papal ou imperial. Enquanto o indivíduo que tinha chegado ao ponto mais alto
do ensino monacal continuava a ser um monge, o objectivo dos universitários já não era
interior mas obter sucesso numa carreira.

Na universidade já não existe um monge falando para outros monges, há um


professor falando para uma corporação de alunos. Este professor já não está ali como uma
alma cristã que se esforça para chegar às perfeições evangélicas, ele está apenas
313

representando um papel social diante de outros papéis sociais, e o que o rege agora são os
critérios intelectuais da corporação. O domínio técnico da compreensão de textos e da
demonstração lógica começou assim a predominar sobre o objectivo da contemplação
espiritual. Então, não há que idealizar a universidade medieval porque esta servia para criar
bons técnicos e já não homens virtuosos. São Tomás de Aquino ou São Boaventura estiveram
na universidade como professores mas não como alunos, eles vinham das antigas escolas.
Nas disputas medievais já não era necessário que os envolvidos acreditassem realmente nas
suas teses. Temos aqui a origem da paralaxe cognitiva, já não havia mais almas cristãs se
confessando mas apenas indivíduos tentando brilhar pelo domínio da técnica para tentar
ascender na carreira universitária.

Alguns autores tentam explicar a perda intelectual e espiritual na entrada do mundo


moderno com a prevalência de certas doutrinas. Por exemplo, Richard Weaver, no livro Ideas
Have Consequences, atribui a causa ao nominalismo. Enquanto o realismo filosófico diz que
os conceitos universais, relativos às espécies, expressam realidades efectivamente existentes,
o nominalismo diz que não há realidades gerais, não existem espécies mas apenas indivíduos,
sendo os conceitos gerais apenas nomes usados para nossa conveniência cognitiva.
Guilherme de Ockham, ao ter proposto a “doutrina fatal” (segundo Weaver) do nominalismo
tinha banido a realidade percebida pelo intelecto para afirmar a realidade percebida pelos
sentidos. Isto era como negar que pudesse existir uma verdade maior do que o homem e
independente dele, o que provocou uma virada na orientação total da cultura e abriu
caminho para o empirismo moderno, o que depois veio dar no materialismo, ateísmo, etc.

Contudo, uma doutrina por si só muito dificilmente pode ter um efeito assim tão
devastador. O facto de ser enunciada logo provoca o surgimento de doutrinas contrárias.
Depois do nominalismo não apenas surgiu o empirismo (que poderíamos admitir como uma
espécie de “filho”) como também apareceu o racionalismo, que diz que a estrutura geral onde
enquadramos os factos não é objecto de experiência mas pré-moda todo o conteúdo desta.
Não existiu apenas um John Locke empirista, houve também um Spinoza que defendia que a
experiência nada ensina. O conteúdo nominalista foi muito contestado e nunca chegou a
dominar de forma absoluta. Mas as doutrinas têm elementos abaixo do conteúdo, são
elementos puramente formais, uma espécie de premissas ocultas que se transmitem de
forma quase inconsciente de geração em geração e que moldam o debate tanto na cabeça dos
defensores da doutrina como na dos adversários. O resultado é uma discussão infrutífera e
paralisante.

Na realidade, Guilherme de Ockam fez uma série de observações correctas que não
dizem propriamente respeito ao seu nominalismo mas ao seu empirismo. Ele fez uma
apologia do primado da experiência e temos que reconhecer que aquilo que acontece tem o
primado sobre aquilo que pensamos. Ele também faz uma distinção entre conhecimento
intuitivo e conhecimento abstractivo. Diz ele que o conhecimento intuitivo é um julgamento
imediato de existência sem mediação do discurso, ou seja, do facto vamos directamente para
a afirmação de que o facto é um facto. Por seu lado, o conhecimento abstractivo é um
julgamento de inerência, e sabemos que não é pelos dados dos sentidos que percebemos que
uma coisa é inerente a outra, temos de fazer um raciocínio para lá chegar. Em relação ao
conhecimento intuitivo, ele diz que esse conhecimento pode ser perfeito, quando se trata da
percepção de uma presença, ou imperfeito, no caso de ser a recordação de uma presença, que
só está presente como um signo na memória mas que tem a confiabilidade do facto
originário. Ele diz ainda que não temos apenas uma intuição dos objectos sensíveis mas
314

também uma intuição intelectiva, na qual o intelecto toma consciência dos seus próprios
actos interiores. Não são apenas os objectos físicos que podem ser recordados num
conhecimento intuitivo imperfeito, os nossos actos interiores também podem sê-lo, e assim,
no fim de contas, Ockham antecipava o cogito ergo sum em três séculos.

O nominalismo de Ockham começou quando ele partiu do conhecimento intuitivo


para negar a realidade das espécies, porque para ele só havia conhecimento de entes
individuais. Das espécies só teríamos um conhecimento abstractivo, a que chegamos
mentalmente comparando vários indivíduos, pelo que a espécie seria apenas um nome da
multiplicidade, uma realidade puramente mental. Podemos considerar o conceito apenas
como um acto do intelecto, mas este, enquanto tal, é também individual e marcado por um
certo momento e lugar. Assim, o conceito relativo às espécies de actos intelectuais é também
uma construção mental, isto é, a semelhança e relação entre actos intelectual é também um
acto intelectual individual e ele conclui:

«O conceito, então, é apenas um predicado; é um signo que é predicável de várias


coisas, e está inteiramente na nossa mente».

Ele está a dizer que usamos termos abstractos que não correspondem realmente a
entidades gerais e universais mas a coisas individuais e concretas.

Costumam-se atribuir a Platão e a Aristóteles duas formas de realismo filosófico. O


primeiro falava das formas eternas, que são ideias gerais que existem acima das coisas e
independentemente delas. Já Aristóteles dizia que estas formas existem inerentemente às
coisas. Ockham contesta os dois quando cria o conteúdo da doutrina nominalista, o que deu
origem à discussão. Para além daquilo que Ockham disse explicitamente, existem algumas
premissas implícitas ao nominalismo, que podem estar ocultas mesmo do autor da teoria.
São premissas que continuaram a ser repetidas implicitamente durante séculos e que
moldam toda a discussão.

Ockham fez a defesa radical do empirismo, mas podemos questionar que tipo de
empirismo é este onde se acredita que na experiência apenas temos acesso a entes
individuais. Porque não é ao ente individual que temos acesso na experiência, apenas ao seu
estado naquele momento. A identidade individual de um gato em particular está para os seus
estados tal como a noção geral de gato está para os vários gatos. Então, o ente individual é
também um universal. Só percebemos um ente individual se tivermos noção da sua unidade
ao longo das suas mutações. Ockham, para ter sido um verdadeiro empirista, teria que ter
chegado a este ponto, como salientou Edmund Husserl.

Ockham depois disse que os conceitos universais nascem da observação de


semelhanças. Mas essa comparação já subentende uma estrutura geral onde todas as
características já estejam classificadas e formem pares biunívocos, caso contrário iríamos
comparar a cor de um ente com a posição de um outro, por exemplo. Se vamos comparar
dois gatos, temos de ter já uma noção da estrutura geral de “gato” no primeiro espécime ou
não poderíamos compará-lo com um segundo. Conseguimos comparar um gato com outro
gato – e não com uma pedra ou uma vaca – e comparamos aspectos idênticos porque
conseguimos escolher o que é comparável. Ockham não entende que já está pressuposta esta
estrutura geral e permanente, que é precisamente o universal, e que é a condição básica da
experiência e o que nos permite perceber o individual.
315

Tomando um ente nas várias etapas da sua existência, as suas características


individuais não aparecem todas ao mesmo tempo. O que chamamos de “ente individual” é
um estado que um indivíduo apresenta num certo patamar de diferenciação que ele não tinha
no início. Vemos que os seres humanos têm uma grande variedade quando são adultos, mas
em bebés são muito mais parecidos. E os fetos ainda mais genéricos e menos
individualizados, ou seja, o genérico está embutido nos indivíduos desde o início, não foi algo
inventado pela nossa mente, e a diferenciação é que vem depois, sendo ela mesma um
processo temporal e bastante complexo, que nunca chega realmente a realizar-se na
totalidade porque ninguém chega a ser perfeitamente individualizado. Nem Ockham e nem
os seus adversários perceberam estas coisas.

Ockham não errou por ser empirista, errou por não ter descrito a experiência
correctamente. Mas os seus sucessores e contestadores também não voltaram à experiência e
discutiam a teoria pelo seu valor nominal. Só no séc. XX o aprofundamento da experiência foi
feito pela fenomenologia de Husserl.

Ockham usava a palavra “experiência” como um realista, ou seja, ele via a experiência
como uma coisa que existe em si e que é universalmente estável. Mas na realidade só existem
experiências concretas, e eram estas que ele devia ter examinado se fosse um empirista
completo. Na altura, a técnica lógica estava muito desenvolvida e ele conseguia fazer
demonstrações assombrosas. O problema é que ele não estava a referir-se verdadeiramente a
coisa que tinha observado mas a outras que tinha inventado. O problema do nominalismo
não foi ter destruído os conceitos universais mas foi ter fixado a discussão num nível que
impossibilita o acesso à experiência.

Quanto mais apurada a técnica lógica, mais podem prosseguir as discussões de


“realismo e nominalismo” ou “racionalismo e empirismo”, decorrendo por séculos sem
alguém voltar aos dados originais que suscitaram a pergunta. Nas ciências, a técnica lógica
foi substituída pela técnica matemática, que é ainda mais aprimorada. Então, iniciou-se a
construção de objectos científicos que ganham uma autonomia sobre os dados da experiência
sensível. Surgiram, assim, uma data de entidades matemáticas ou estatísticas nas quais
acreditamos piamente até que aparecem dados que parecem baralhar tudo, como os vistos
inicialmente sobre o declínio da reprodutilidade.

Todo o instrumento que é criado com uma finalidade tem uma relação dialéctica com
esta, porque ele tem as suas próprias exigências internas e acaba também por se tornar num
obstáculo. Na Idade Média surgiu a cultura do dinheiro, que possibilitava adquirir
importância social e furar a hierarquia de nascença, abrindo assim a possibilidade de
estabelecer um novo padrão de igualdade. Contudo, o dinheiro rapidamente se tornou num
grande factor diferenciador. As universidades surgiram também para promover a
meritocracia, mas criado o establishment universitário logo se criaram novas hierarquias que
se e tornaram factores de exclusão social. O socialismo promete a igualdade, mas para isso
cria uma burocracia que excluí toda a gente menos quem está no partido. A lógica foi criada
para buscar a verdade, mas como é um intermediário entre nós e esta, também pode ser um
obstáculo.

Então, é necessário restaurar continuamente o senso da unidade do conhecimento na


unidade da consciência. Dizia Julián Marías que tudo seria mais fácil se as pessoas
soubessem que este mundo não é o paraíso. Raciocinar de forma paradisíaca e perfeita num
mundo imperfeito só vai criar mais alienação. O que temos de fazer é conviver com a
316

imperfeição, com a absurdidade, com o antagonismo, aceitarmos que eles estão presentes no
tecido do cosmos e que apenas podemos compensar estes elemento de alguma forma, aliviar
o sofrimento e a confusão sem pretender resolver, porque a solução só existe na eternidade.
Importa entender a figura real que está diante de nós e na qual participamos, e isto é uma
realização intelectual maior do que elaborar uma teoria geral. Se entendermos a verdade
como o universal no singular, então, entender a situação presente e o seu sentido universal é
o conhecimento mais alto que existe. α89

[Aula 90]

273. Imortalidade e vivência intuitiva da morte


Max Scheller fez uma crítica da noção de crença abordando a questão da morte e da
imortalidade. Diz ele que a crença é uma atitude intelectual de adesão e que só existe na
presença de uma descrença ou, então, de uma crença oposta. Até ao advento da
modernidade, o universo religioso das pessoas era a própria imagem do mundo, não era algo
constituído por crenças. As pessoas não se colocavam fora do simbolismo religioso para
decidir se acreditavam naquilo ou não. Nesta cosmovisão, a ideia da imortalidade era uma
coisa óbvia para toda a gente e era resultado da consciência da morte, que não era vivenciada
como uma ideia ou crença mas como uma coisa presente desde já. Então, era normal as
pessoas vivenciarem antecipadamente a própria morte e isso automaticamente abria a
perspectiva da imortalidade, que também não era uma crença mas algo inerente à intuição
da própria morte.

Mas a intuição da morte foi removida da cultura ocidental. Hoje as pessoas têm
horror de imaginar a morte ou apenas de mencioná-la. Se alguém fala da morte, logo todos
tentam mudar de assunto. A morte tornou-se apenas numa crença, as pessoas simplesmente
pensam que irão morrer porque todos morrem e o assunto fica encerrado. Meira Penna dizia
que o tabu do sexo tinha sido substituído pelo tabu do morte. Repara Scheller que a noção de
imortalidade ausenta-se quando a noção da morte desparece, dado que a imortalidade era
algo que fazia parte da vivência antecipada da morte. As duas coisas tornaram-se
impensáveis.

As crenças não surgem e desaparecem num quadro de percepção constituído ele


mesmo de crenças mas decorrem na própria realidade onde as pessoas vivem. A crença não
faz parte da vivência imediata do mundo, é algo que tem que ser visto desde fora com algum
distanciamento crítico. Antes, a imortalidade era parte integrante da vivência imediata do
mundo e nem sequer era discutida porque era óbvia, era a simples realidade. Mas sem a visão
intuitiva da morte, a imortalidade torna-se numa crença, que tanto podemos aderir como
rejeitar. Quando se introduz um distanciamento crítico em relação a uma ideia, isso quer
dizer que a nossa razão sobrepõe-se criticamente a ela, assim, mesmo se acreditarmos na
ideia ela não se torna num elemento da nossa vivência, continua a ser uma crença que pode a
qualquer momento ser perdida ou rejeitada. α90
317

274. Dois tipos de mutação social


A sociedade actual está cheia de segredos, existem inúmeras camadas que não
transparecem à primeira vista. Assim, quase todas as discussões acabam por ser uma
desconversa, porque as premissas decisivas que orientam o debate estão ocultas. Ocorreram
nas últimas décadas enormes mutações sociais, culturais e psicológicas, que vieram junto
com uma defesa contra a percepção da sua ocorrência. Existem dois tipos de mutação deste
género. O primeiro é a simples difusão cultural (aquilo que Willi Müzenberg chamava de
“criação de coelhos”), que funciona pelas leis da imitação. Como ninguém cria a linguagem
que usa nem o seu próprio imaginário, então, todos acabamos por receber passivamente
aquilo que a sociedade nos transmite e depois repetimos.

Mas este é um processo largamente espontâneo e que não poderia introduzir uma
transformação vasta, profunda, contínua e sem reacções à altura, que foi aquilo que se
passou. A história da cultura apenas pode averiguar a forma como símbolos, atitudes ou
slogans se disseminam, pelo que não é um meio suficiente para acompanhar todas as
mudanças. A “criação de coelhos” é apenas um processo posterior a outro processo onde o
foco é o próprio “criador”. Mas aqui já entramos num outro ramo de estudos, que é o da
micro-história. Trata-se de um trabalho muito moroso mas que, por vezes, já alguém pode tê-
lo feito por nós. Aquilo que hoje são símbolos, atitudes, opiniões e valores da grande mídia
americana nada mais são do que um translado da propaganda soviética dos anos 50 do séc.
XX. O documentário “Agenda” mostra que quase todas as organizações americanas em
funcionamento na actualidade tiveram origem em organizações criadas pela inteligência
soviética nos EUA nos anos 40 e 50, em que uma organização criou outra, e esta pode ter
criado outra, e assim por diante.

Para perceber a situação actual é preciso fazer um certo trabalho “arqueológico”, mas
obviamente que a tendência é entrar logo em debates e tomar posição, o que quase nos obriga
a defender certas atitudes. Ao assumirmos uma certa posição, crença ou ideia, já estamos a
aceitar a existência da questão implícita e de que é preciso fazer uma escolha. A atmosfera
cultural em que vivemos não é apenas composta de crenças, nela também entram atitudes
imediatas perante imagens que temos do mundo. Estas imagens não são discutidas, e quando
o são tornam-se crenças e perdem o seu poder mágico [273]. α90

275. O papel da ciência nas mutações sociais


O advento da ideologia científica moderna agravou a confusão na atmosfera cultural
[274]. Esta ideologia faz uma divisão entre o conhecimento determinado pela ciência e o
restante conhecimento, que passa a ser tido apenas como matéria de fé, ou seja, como algo
que decidimos aceitar ou não. Na realidade, trata-se de um giro, em que certas crenças –
inoculadas através do sistema educacional, da comunicação social, etc. – passaram a ser
encaradas como evidências imediatas, logo, não passíveis de discussão. Uma delas diz que
vivemos num mundo determinado pela ciência e pela tecnologia. Contudo, estas não
alteraram quase nada do universo e muito pouco do planeta Terra. A ciência não alterou
órbitras de planetas, nem modificou o passado ou a acção residual ou persistente de causas
históricas desencadeadas desde há milénios.

O poder da ciência parece enorme porque é um elemento que faz parte do ambiente
verbal e imaginário onde estamos emersos. É normal qualquer discussão sobre ciência e
318

tecnologia começar por fazer um reconhecimento do que devemos estas, que trouxeram os
computadores, os antibióticos, etc. Contudo, o produto científico-tecnológico que teve maior
impacto no século XX foi a bomba atómica e o consequente armamento nuclear das grandes
potências, que Paul Valéry resumiu dizendo que civilizações agora sabiam que eram mortais.
Ironicamente, num ambiente em que ninguém mais conseguia encarar a perspectiva da
própria morte [273], isto obrigou as pessoas a olharem para a morte da civilização ou mesmo
para o fim da espécie humana. A primeira descoberta científica que teve um impacto social
considerável no séc. XX foi a dos gases de mostarda, que foram usados na Primeira Guerra
Mundial e que possibilitavam uma capacidade mortífera muito maior do que até aí se
conhecia. Esta guerra teve um impacto tal que já não se poderia classificar da mesma forma
que as outras guerras. A aviação militar foi outro dos avanços científicos, que fez com que,
pela primeira vez, a população civil fosse envolvida de forma sistemática na guerra. Até ao
século XIX existia o campo de batalha, que estava separado das cidades, e mesmo na guerra
civil americana, onde existiram ataques às populações civis, as batalhas ainda foram travadas
em locais pré-determinados fora das cidades.

Mas existem outros efeitos da ciência fora do campo militar que também são
geralmente esquecidos. Dos estudos de Pavlov sobre o controlo da conduta humana
originaram-se os processos de lavagem cerebral e a manipulação social. Estes integraram-se
na engenharia social [266], que é um meio de impor quase tudo o que é adoptado a nível
mundial. A organização burocrática moderna, quase indestrutível, é também resultado do
avanço da economia, das ciências sociais, do direito, etc.

A ciência moderna é um elemento fundamentalmente destrutivo e que, por vezes, tem


alguns efeitos benéficos. Por exemplo, o computador foi, em primeiro lugar, uma tecnologia
militar e só bastante depois veio a beneficiar a população civil, e o mesmo aconteceu com
muitas outras coisas. Mas os cientistas esquecem de listar nas suas actividade quase tudo
aquilo que contribuiu para aumentar o morticínio e a opressão. Vários cientistas vão mais
além e defendem que a comunidade científica representa o máximo de confiabilidade, de
honestidade, de veracidade e de sinceridade, por isso, ela impõe-se como o novo padrão de
moralidade que pode condenar toda a civilização cristã. Mas são virtudes que, na melhor das
hipóteses, pertencem à comunidade e não aos indivíduos, e estes só participam destas
virtudes enquanto membros da comunidade, não importando o resto das suas condutas. Um
pedófilo nunca será um santo da Igreja mas pode chegar ao prémio Nobel.

A ideia de virtude colectiva constitui uma mutação civilizacional monstruosa. É a


ideia de participarmos da virtude enquanto membros de uma comunidade, mas essa
participação é um papel social, pelo que a virtude vai estar colocada neste e não na nossa
pessoa concreta, ou seja, é tudo um teatro. Mas como podemos falar da virtude da
sinceridade nas ciências se a história destas não é sincera? Os cientistas não confessam as
suas contribuições negativas, o gás mostarda, a aviação militar, a organização burocrática
usada pelos governos tirânicos, a manipulação de consciências, os métodos de
desinformação, a lavagem cerebral, a engenharia social, a bomba atómica. A isto ainda
podemos adicionar a substituição do antigo capitalismo industrial pelo capitalismo
financeiro. Com esta alteração, a economia passou a estar dominada por entidades vagas,
indefinidas e incontroláveis. Ninguém sabe exactamente o que está acontecendo e isso é um
enorme incentivo à fraude, a que se juntam todas as fraudes derivadas dos métodos de
engenharia social. Esta é uma disciplina intrinsecamente desonesta e que visa induzir as
319

pessoas a agir de uma maneira que não é necessariamente nem do interesse e nem da
vontade delas. É mais uma das contribuições da ciência.

Tal como a comunidade militante, a comunidade científica quanto mais se afunda no


mal mais necessidade tem de se auto-idealizar e de se ver como divina. É o conhecido
processo psicótico da compensação, em que, por exemplo, o indivíduo cometeu um crime
mas diz que foi Deus que mandou ele fazer aquilo. α90

276. A imposição da ciência como autoridade pública


Observando alguns dos terríveis efeitos que a ciência moderna teve na sociedade
[275], podemos supor que algo disto já estava embutido nos seus conceitos fundamentais. O
nominalismo deprimiu a confiança das pessoas na sua capacidade de apreender a essência
dos entes na sua forma substancial [272]. Partindo do princípio de que não existe forma
substancial e de que apenas conhecemos entes singulares – a noção universal de espécie seria
apenas uma construção mental –, o resultado é um estado de incerteza em relação ao nosso
conhecimento. Na perspectiva nominalista não podemos dizer que as conclusões gerais a
respeito de alguma coisa correspondem a alguma realidade externa ou se são apenas uma
construção da mente.

A ciência moderna surgiu com o expediente da quantificação para tentar encontrar


uma solução para a descrença que havia em relação ao próprio conhecimento. Quantificação
aparece como sinónimo de objectividade e confiabilidade. Se medimos uma coisa e a
conjugamos com a sua estrutura matemática, o resultado pode ser verificado por qualquer
pessoa que refaça o processo. Assim, criava-se um novo padrão de confiabilidade e de
objectividade, que a quantificação/matematização parecia tornar possível. Em primeiro
lugar, a quantificação estabiliza as aparências, assim, o mundo “deixa de ser” o constante
fluxo de Heráclito e “passa a ser” um conjunto de equações que permanece estável e que
outras pessoas podem estudar. Em segundo lugar, a quantificação facilita a comparação,
dado que é muito fácil comparar medidas e fórmulas matemáticas. Em terceiro lugar, a
quantificação contorna as imprecisões da linguagem verbal, mais precisamente, a linguagem
matemática não tem semântica, apenas tem sintaxe e morfologia, é um conjunto de formas
vazias onde não aparecem vários significados como na linguagem normal. Em quarto lugar, a
quantificação elimina o viés subjectivo individual, então, todos têm de encarar as mesmas
medidas e as mesmas fórmulas da mesma maneira, operando tudo de formas padronizadas.
Desta forma, o objecto da ciência torna-se de posse colectiva. Por último mas talvez a razão
mais fundamental, o carácter compulsivo dos resultados matemáticos simula o fatalismo da
Natureza, isto é, sempre que fizermos tal cálculo o resultado fatalmente é o mesmo, o que ia
de encontro à ideia de chegar às leis da Natureza que pudessem comprometer o próprio Deus
a uma certa estrutura matemática que nem Ele poderia mudar.

Contudo, estas características da quantificação não garantem a objectividade do


conhecimento, apenas garantem a exactidão da sua estrutura interna. Para ver se esta tem
algo a ver com a natureza externa é preciso levar em conta outro elemento. Num primeiro
momento, com pessoas como Galileu ou Newton, a experimentação foi um elemento mínimo
na formação das ciências, e o que ocorreu foi sobretudo uma matematização do
experimento. Por isso, este período chamou-se de racionalismo, que teve o seu cume na
filosofia de Descartes, cujo grande problema é justamente a ligação entre os conhecimentos
320

obtidos por pura dedução racional e o mundo exterior. Uma certeza racional subjectiva, como
a do cogito cartesiano, não permite obter nenhuma certeza em relação ao mundo externo.

Do problema assim criado nasceu o empirismo, que é uma segunda vaga do


pensamento científico moderno, surgido com Bacon, Locke e outros. O experimento passou a
ser a chave e a base da confiança, mas Thomas Hobbes, num momento de rara lucidez,
salientou que os experimentos científicos são testemunhados apenas por um número ínfimo
de pessoas, envolvendo frequentemente equipamentos caros e sofisticados. Como é possível
que algo que foi testemunhado por uma elite tão reduzida tenha obtido uma autoridade
pública tão grande? O público não entra no mesmo processo, simplesmente é convencido
pela retórica e pela propaganda, e assim a autoridade científica conseguiu parecer muito mais
confiável do que o clero. Nenhum clero em qualquer parte do mundo obteve uma
credibilidade cega como esta, nem algum foi tão inacessível como a comunidade científica,
que forma como que um munto à parte, por vezes mesmo em termos físicos, em laboratórios
a quilómetros de distâncias das outras pessoas. Além disso, muitos experimentos dependem
de uma técnica matemática que não é apenas inacessível à maioria das pessoas mas também
é opaca a outros cientistas que não são daquela área específica. Mais ainda, podem estar
envolvidos computadores que fazem cálculos que nenhum ser humano terá alguma vez
tempo de verificar. Então, o controlo – um dos elementos principais do método científico
moderno – não existe mais.

Em resumo, a autoridade da comunidade científica deriva de três factores: a) retórica


e propaganda, que faz dos cientistas uma espécie de enviados celestes possuidores dos
segredos do universo, e possuidores de virtudes excelsas enquanto parte de uma
colectividade; b) imposição da imagem atrás mencionada através da educação e da
comunicação social; c) uso de mecanismos de exclusão relativamente aos estudiosos que não
aceitem os cânones da ciência moderna, independentemente da veracidade do que afirmem.

Hobbes propunha a dedução matemática (que ele chamava geométrica) em oposição


ao empirismo, porque aquela era acessível a toda a gente. Mas isso era numa altura em que as
matemáticas eram rudimentares, porque depois avançaram tanto que levaria cerca de 200
anos para ciências experimentais usarem todos os recursos matemáticos, segundo a
estimativa de Philip J. Davis (ver livro Sonho de Descartes).

Está intrinsecamente ligado à ciência todo um aparato material, social, económico,


políticos, cultural, mediático. Contudo, o habitual é olhar a ciência abstractivamente, como se
fosse apenas um mecanismo racional de observação, teste e controlo feito por umas poucas
pessoas supostamente actuando com a máxima seriedade. Seria o mesmo que avaliar a Igreja
católica apenas pelas virtudes dos santos, quando sabemos que existe uma estrutura de
poder, corporativismo e todos os pecados dos clérigos e fiéis.

A legitimação estatal foi importante na imposição da ciência como autoridade (faz


parte dos mecanismos de exclusão). O Estado tem o poder para decretar que só podem
praticar certa profissão pessoas que pensam de tal ou tal forma, podendo depois activar
meios policiais e judiciais para impor isto. Em termos de retórica a favor da ciência moderna,
o argumento mais usado diz que a ciência é validada pelos sucessos tecnológicos. O
argumento é duplamente falso. Por um lado, apesar da tecnologia moderna usar muita
ciência, o fabrico de um qualquer produto tecnológico envolve muitas linhas causais, nunca
sendo tudo unificado por um mesmo princípio científico que, por isso mesmo, nunca poderá
ser validado desta forma. O sucesso tecnológico apenas confirma a utilidade prática da
321

ciência. Por outro lado, dentro do âmbito da inegável contribuição da ciência para o sucesso
de tecnologia, é habitual considerarem-se apenas os resultados benéficos e atribuir os
malefícios à “pseudociência”. Contudo, foi a ciência efectiva que esteve por trás da bomba
atómica, do gás mostarda ou da engenharia social, e é por isso que estas coisas funcionam.

É também habitual tentar salvar a honra da ciência distinguindo esta das suas
aplicações. Roosevelt decidiu avançar para a construção da bomba atómica e Truman decidiu
lança-la mas eles não decidiram sozinhos, já que os cientistas tiveram que mostrar a
viabilidade e conveniência das decisões com bases científicas. α90

277. A criação de uma segunda realidade pela ciência moderna


Apesar das objecções de Hobbes à validade do experimento científico [276],
considera-se que a autoridade da ciência baseia-se no pressuposto da repetibilidade. Em
teoria, qualquer pessoa pode repetir um experimento e observar as mesmas coisas, mas na
prática apenas um pequeno grupo de profissionais pode fazer isto em relação a um grande
número de experiências científicas. No máximo, temos uma repetibilidade compartilhada
num pequeno grupo, mas averiguemos isto com mais pormenor.

Um indivíduo pode desenvolver uma teoria e até conceber um experimento para a


comprovar, mas tudo isto ainda está no papel. Quando passa para a fase do experimento,
entram em acção toda uma série de factores, a começar pelos equipamentos, que
tecnologicamente podem nada ter a ver com a teoria em causa. São também necessárias
pessoas que saibam lidar com estes equipamentos, o que não será possível apenas lendo um
manual de instruções, é preciso prática e contacto pessoal com quem sabe, e adquirir este
domínio pode durar anos. Michael Polany, filósofo e matemático, dizia que isto requer
“conhecimento pessoal”, que ele entende como os truques profissionais que apenas são
transmitidos de pessoa a pessoa, porque há muita coisa que é intransmissível por palavras.
São coisas que se incorporam à personalidade e dão uma habilitação que o indivíduo não
conseguiria transpor em palavras. Sobre este conhecimento não é possível exercer um
controlo externo, porque nele intervém factores tão pessoais e subjectivos como aqueles que
aparecem na pintura ou na música. Então, Ian Hacking conclui que:

«A repetibilidade duma experiência é impossível. Você sempre faz outra coisa».

A discussão entre Thomas Hobbes e Robert Boyle [276] surgiu a partir de uma bomba
de ar que este último tinha construído para verificar certos resultados em experimentos
científicos. Só que depois começaram a construir-se outras bombas de ar para vender a
interessados em repetir as experiências, mas nem todas as bombas davam o resultado
esperado e, se fosse o caso, eram retiradas do mercado. Era natural que Hobbes desconfiasse
que os experimentos científicos eram profecias autorrealizáveis. Mas isto nada tem de
estranho, porque as experiências e os equipamentos já são produzidos em vista à obtenção de
certos resultados. O que realmente Hobbes observou mas não conseguiu exprimir foi que o
experimento científico bem-sucedido não representa um avanço do conhecimento sobre as
leis da Natureza mas é uma eficácia da tecnologia humana em produzir o resultado esperado.
Ian Hacking diz a mesma coisa ao afirmar que “os experimentos dão certo quando permitem
a manipulação confiável de objectos”. Alguns dos objectos científicos só existem como
produtos do homem, como os lasers, e tudo o que se prove sobre eles quase nada diz sobre a
Natureza.
322

Então, a actividade científica trás poucos conhecimentos sobre a realidade externa


mas origina um grande volume de conhecimento em relação à produção de efeitos
tecnológicos. Mas estes efeitos tecnológicos vão se incorporar à vida social e modificar o
ambiente humano e físico, modificando também o que as pessoas imaginam ser a Natureza.

A ciência não tenta conhecer os processos profundos da Natureza, mas cria uma
segunda natureza em cima da primeira. É a criação de uma segunda realidade, precisamente
aquilo que ideologias de massa criam para que as pessoas passem a raciocinar apenas em
função desta segunda camada. Neste sentido, não há diferença entre a actividade científica e
a actividade ideológica. Diz ainda Ian Hacking:

«À medida que esses objectos artificiais ou purificados vêm a ser mais


confiavelmente manipulados, eles começam a ser incorporados em outras
experiências e, às vezes, usados em processos externos ao laboratório. Esse é talvez
o sentido mais crucial em que os laboratórios são auto-confirmáveis. As nossas
intervenções tornaram-se demasiado poderosas para que possamos falar da ciência
em termos do apreender o que se passa na Natureza independentemente da
actividade humana».

Então, o que é a Natureza e o que fazemos com ela tornam-se coisas praticamente
indiscerníveis, o que não conduz a um progresso do conhecimento mas a um progresso da
modificação do cenário, indo em direcção a Marx quando ele dizia que “os filósofos
limitaram-se a interpretar o mundo de diversas maneiras; mas o que importa é transformá-
lo”. A ciência realizou o programa de Marx, tornando o mundo ainda mais incompreensível.
Prossegue Hacking:

«O laboratório auto-confirmável depende também da secção apropriada do pessoal,


com exclusão daqueles que se recusam a aceitar essa disciplina».

Há um longo caminho entre a obtenção de um resultado experimental num


laboratório e a afirmação de que aquilo corresponde a uma lei objectiva da Natureza. Para
passar de uma coisa a outra é necessário uma ontologia inteira, o que não é nada fácil, por
isso, cientistas e filósofos da ciência já desistiram de falar de leis objectivas da Natureza, ou
seja, desistiram de tentar estabelecer qualquer ligação entre os conhecimentos científicos e a
objectividade exterior. Assim, a ciência moderna que começou como uma afirmação do
império da objectividade, terminou com a renúncia a toda a objectividade. Perante este
cenário, Ernst Mach propôs a “modéstia metafísica”, dizendo que já não importava que a
ciência se debruçasse sobre a realidade ou não, importa apenas que funcione dentro dos
próprios parâmetros da ciência. Isto não era mais do que voltar ao nominalismo de Condillac,
que dizia que era inútil buscar qualquer coisa a respeito da natureza objectiva das coisas,
havendo apenas que apresentar descrições matemáticas confiáveis para os próprios fins da
pesquisa científica.

Até ao séc. XIX discutia-se muito sobre o que era a electricidade. Depois, veio Hertz e
disse que não sabemos o que é a electricidade mas temos uma medida matemática dela. Essa
medida permitiu manipular e criar coisas, o que alterou o panorama físico e a humanidade
passou a viver numa segunda realidade, começando a raciocinar como se esta fosse a própria
Natureza. À medida que se tornava difícil distinguir os objectos naturais dos objectos
323

fabricados pelo homem, esta indistinção era projectada retroactivamente sobre os objectos da
Natureza, mas que antes eram conhecidos e não pareciam confusos às pessoas.

Karl Pearson, que foi um importante cientista e metodologista das ciências


americano, disse:

«A unidade das ciências não tem nada a ver com o seu objecto. Elas se baseiam
inteiramente no seu método».

A este respeito, Eric Voegelin escreveu várias páginas sobre o “império do método”.
Kant, apreciador da mecânica de Newton, disse que o método cria o seu objecto e ainda que:

«O cientista não se coloca perante a Natureza como um observador, mas como um


juiz de instrução».

Na altura, este juiz desempenhava a função do actual delegado de polícia, que


espreme a testemunha para a obrigar a responder às perguntas que ele faz. A respeito do
comentário acima de Pearson, observou Theodor Porter:

«Embora Pearson duvidasse da utilidade de falar da existência de um mundo


independente, ele invocava faculdades perceptivas normais para explicar como as
ciências podem chegar a um consenso».

E ele questiona como podem os cientistas terem a certeza de estarem todos “falando a
mesma coisa ou se está cada um falando uma língua, e o outro está entendendo uma coisa
completamente diferente, ou seja, o que é que garante a unidade de percepção entre vários
cientistas?”

A unidade de percepção não é dada por nenhuma ciência em particular mas é um


facto da realidade humana geral. Questionava Porter sobre como podemos saber que existem
faculdades perceptivas normais presentes em todos os seres humanos. Não há nenhuma
ciência que possa responder a isso, pelo que existe uma enorme incongruência no edifício
metodológico criado por Pearson.

Considerando não apenas as ciências naturais mas também as ciências humanas, a


criação de uma segunda realidade provocou uma devastação cognitiva enorme, que não
produz apenas um volume enorme de pseudo-conhecimento mas também desastres
económicos formidáveis, especialmente quando as ciências tomam o ponto de vista do
Estado e recortam a realidade à medida deste [269].

Logo depois da Revolução Francesa tentou fazer-se um recenseamento da população,


mas isso esbarrou com a impossibilidade de colectar dados económicos uniformes, dado que
cada local tinha o seu sistema de pesos e medidas, algo que era considerado um sinal de
soberania da comunidade, da cidade ou da província. Então, no antigo regime a cobrança de
impostos era caótica e cada um pagava o que queria, porque era sempre possível ludibriar o
cobrador de impostos. A uniformização dos sistemas de pesos e medidas acabou com as
soberanias regionais e reuniu tudo numa burocracia centralizada. Então, o recenseamento foi
um método que criou o seu próprio objecto: uma sociedade modificada para estar apta a ser
medida. Os grandes capitalistas que operavam por toda a Europa foram dos maiores
defensores do novo sistema de pesos e medidas, porque a uniformização estatística da
sociedade permitia fazer planos de negócio mais controláveis. Mas hoje os defensores do
324

liberalismo falam horrores do controlo estatal e do sistema de impostos, sem perceber que os
capitalistas contribuíram para impor aquilo. Obviamente que o próprio poder estatal foi o
maior beneficiário desta uniformização, secundado pelos capitalistas. Num capitalismo
rudimentar, as empresas têm apenas uma acção local e não precisam de uma uniformização
geral, o que até as pode prejudicar. Mas para uma acção mais generalizada, o capitalista
necessita dessa uniformização, que também conduz a um aumento de controlo estatal que
tentará estrangular o capitalismo. Livre empresa e controlo estatal são duas coisas que se
exigem uma à outra mas que também estão em contradição real, não apenas ideológica.

Outra coisa que passou a ser quantificada no séc. XIX foi o tempo. Até então, a
medida de tempo estava muito associada às modificações do panorama físico real, às
estações, à duração relativa de sol e de escuridão, etc. Ao mesmo tempo, as modificações
cíclicas criavam uma série de ritos, instituições, costumes. Com a uniformização do tempo
todo este cenário foi rompido e restaram apenas duas distinções: o tempo do trabalho e o
tempo do lazer. Mas a nova medida de tempo não ofereceu uma imagem da realidade, antes
criou uma nova realidade para confirmar as ideias que a originaram.

Por vezes os métodos científicos introduzem alguns elementos que, em teoria,


controlariam a validade dos experimentos e atenuariam os efeitos da criação da segunda
realidade. Um dos mecanismos mais conhecido é o grupo de controlo no teste de
medicamentos, que é o grupo de pessoas que recebe o placebo, e que permite medir o
diferencial em relação ao grupo que recebeu o medicamento verdadeiro. Acontece que a
introdução deste grupo de controlo é também a introdução de um viés. Se todos forem
informados de estarem a receber um placebo ou um medicamente real, então, aqueles que
recebem o placebo desistem logo de ser curados. Mas se for um teste “cego”, mesmo aqueles
que receberam um medicamento real podem ficar convencidos que tomaram um placebo, e
assim como aqueles que tomaram um placebo podem se convencer de que tomaram um
medicamento real. Há sempre mais um elemento de confusão acrescido e que não pode ser
ignorado, porque os efeitos psicológicos na saúde do corpo são reais.

A introdução de métodos científicos e estatísticos na saúde e na biologia criou


também um novo tipo humano, que é aquele que está persuadido de que tudo na vida e na
conduta do homem é determinado por factores bioquímicos, o que reduz a convivência
humana a uma relação entre “bichinhos”. Na realidade, as emoções que surgem na
convivência humana são prévias às alterações fisiológicas e bioquímicas, mas quando
deixarmos de ter isto em conta é o próprio mundo das emoções humanas que sai modificado.
Uma coisa é encararmos a acção de outra pessoa como uma ação humana com significado,
outra coisa é encará-la como um mero mecanismo bioquímico. Max Scheler diz que não
temos uma reacção imediata de simpatia por alguém que está sofrendo, antes está
pressuposto um conhecimento da situação, que em si mesmo não tem qualquer valor emotivo
mas que vai determinar se nos compadecemos ou não. Contudo, a partir do momento em que
se lança a ideia de que a emoção é derivada de um processo bioquímico, podemos ficar
sempre com a ideia de estarmos a ser enganados pela nossa bioquímica. O resultado é um
abaixamento do padrão moral, dado que a identificação emocional com outras pessoas torna-
se mais difícil, além de haver um convite à fraude e à manipulação, que também é estimulada
por técnicas como a programação neurolinguística.

Na antiga concepção de ciência, o cientista era visto como um indivíduo isolado, longe
da sociedade e que procurava incansavelmente a verdade. Mas na ciência moderna quase
tudo é obra colectiva, e de uma colectividade com suporte estatal e financiamento
325

monstruoso, com meios de impor a sua autoridade e de excluir os inconvenientes. Claro que
isso é um convite evidente à fraude, por isso vemos coisas como a farsa do aquecimento
global envolvendo grande parte da comunidade científica a nível mundial.

Coisas como o heliocentrismo e a teoria da evolução não são propriamente teorias


mas imagens do cosmos, concepções do mundo que não podem ser verdadeiramente
provadas ou impugnadas racionalmente, embora possam ser desmoralizadas mostrando as
suas inconsistências.

Não é honesto tentar transmitir certos valores ou dores para a chamada comunidade
científica, até porque é bastante duvidoso que esta comunidade exista mesmo. Uma
comunidade verdadeira é composta por pessoas que estão juntas realmente, não de pessoas
espalhadas pelo mundo e que têm alguns contactos ocasionais. Esta comunidade está
fragmentada em inúmeros pequenos grupos, onde o importante é desempenhar um certo
papel social que cumpre certos preceitos. Claro que este papel social é uma amarra, mas é
sempre possível vencê-lo se representarmos efectivamente e pessoalmente valores como o do
conhecimento (e tê-lo, efectivamente), da idoneidade ou da seriedade, porque aí estamos a
falar com autoridade mesmo. Um exemplo disto foi o do doutor Edgar Maffei, que conseguia
se impor à comunidade médica. Por outro lado, nunca podemos nos submeter ao julgamento
de pessoas que não tenham efectiva autoridade pessoal, e se for para desmoraliza-las
devemos fazê-lo da forma mais veemente possível e até cruel.

Alguns livros que mostram alguns dos referidos efeitos da ciência:

Seeing Like a State, James C. Scott

Trust in Numbers, Theodor Porter

The Taming of Chance, Ian Hacking

Leviathan and the Air-pump, Steven Shapin e Simon Schaffer

O Reino da Quantidade e o Signo dos Tempos, René Guénon

Eclipse da Razão, Marx Horkheimer. α90

[Aula 91]

278. Os sistemas metafísicos encarados como símbolos


Olavo de Carvalho não deixou em lado algum uma exposição sistemática da sua
filosofia, desde logo por entender que tal coisa não deve ser feita. Para ele, a filosofia não
consiste em chegar a verdades gerais que se cristalizam em fórmulas doutrinais repetíveis,
mas trata-se de uma apreensão do sentido universal das situações particulares, sendo estas
únicas, concretas e vividas pelos seres humanos reais. Este tipo de tratamento é evidente na
esfera moral, onde um homem não é bom se sabe os mandamentos de cor mas se conseguir
transmuta-los em decisões e acções acertadas aplicadas às situações concretas da existência
imediata, podendo as normas gerais, nesse caso, até assumir um sentido aparentemente
326

paradoxal. Algo idêntico se passa na estética, cujos princípios gerais não podem dar conta de
todas as formas do belo, sendo antes o sentido estético a capacidade de apreender a unidade
da beleza por trás das formas, mesmo que possam elas estar camufladas do feio, do disforme
e do monstruoso.

A metafísica e a epistemologia, que são as disciplinas filosóficas mais altas e de índole


puramente teorética, poderão ajustar-se da mesma maneira? Qualquer sistema metafísico
tem alguma contradição interna ou um descompasso em relação à experiência. Mas os erros
do sistema também fornecem sugestões para a abordagem de problemas de ordem metafísica
que surgem da experiência real. Não havendo uma linguagem total literal e sem
ambiguidades, é sempre possível, nas obras filosóficas, interpretar simbolicamente algo que
em sentido literal está errado, sendo assim possível remontar à percepção originária de uma
verdade que o filósofo não conseguiu converter numa conclusão doutrinal explícita. Uma
doutrina cristalizada é apenas uma verdade filológica, quando não editorial, mas os filósofos
criam as suas doutrinas não apenas para os leitores as conhecerem mas para que estas sejam
usadas para buscar a verdade. O texto e a doutrina existem para serem conquistados e
possuídos historicamente, mas mesmo fazendo isto ainda estamos no mero domínio da
cultura filosófica.

Pode acontecer que uma teoria inaceitável seja, ainda assim, válida como crítica a
outra teoria, ainda que involuntariamente. Hume negou a existência de qualquer “eu” (ou a
possibilidade de provar a sua existência), o que é inaceitável, mas se assumirmos a sua teoria
como crítica ao cartesianismo, ela é válida. Descartes pensou que a prova da existência do
pensamento era também a prova da existência de uma “substância pensante”, mas Hume viu
que a experiência aqui envolvida é instantânea e que não era possível deduzir a partir dela a
permanência do “eu”.

Se tentarmos declarar verdades literais e universalmente válidas, iremos apenas


chegar a um símbolo, com alguma sorte. Mas podemos fazer o trajecto inverso, partindo
voluntariamente de um símbolo, sabendo que apenas podemos transfigurá-lo num outro
símbolo mais claro e inteligível, sem nunca chegar a uma verdade literal definitiva. O limite é
dado pela nossa exigência de compreensão, que pode ser determinada por factores pessoais,
culturais e históricos.

É comum a ideia que diz que a investigação filosófica mais elevada é a que se prende
aos problemas genéricos (fundamentos da moral, determinismo e livre arbítrio, materialismo
e idealismo, etc.) Estes problemas alimentam discussões sem fim, sem nunca chegar a
conclusão alguma. Contudo, todos estes problemas surgiram de experiências que suscitaram
uma pergunta inicial, e esta nunca aparece com a fórmula de conceitos claros e definitivos.
Para chegar a uma concepção de um “determinismo”, por exemplo, foi necessário analisar e
depurar muitas experiências, até perceber a existência de um elo de necessidade entre uma
causa inicial e uma série de efeitos que se seguem inapelavelmente. Mas depois, o termo
condensa-se numa definição, que passa a constar dos dicionários filosóficos, e é possível
começar a raciocinar a partir dele sem remeter às experiências que lhe estão subjacentes. Da
mesma forma, é possível conhecermos uma filosofia inteira sem nos questionarmos se aquilo
está certo ou errado. Por isso, tem sentido o conselho de Eric Voegelin para não estudarmos
filosofias particulares e, sim, estudarmos a realidade. Aristóteles não estudou a filosofia de
Aristóteles, estudou a estrutura do Estado, o conhecimento, a estrutura do ser e assim por
diante.
327

Se queremos praticar filosofia e não apenas estudar filosofia no sentido escolar, temos
de encará-la como a busca da sabedoria e da verdade. Utilizamos outras filosofias
precisamente para buscar a verdade no sentido em que os seus autores a procuravam.
Obviamente que com o decorrer dos séculos acumulou-se uma enorme bibliografia sobre os
assuntos, então, formou-se uma disciplina secundária versando sobre o que se escreveu sobre
um assunto mas sem nunca ir ao assunto concretamente. Praticamente esta é a única coisa
que se ensina nas faculdades de filosofia, não apenas hoje, porque já Nietzsche vivia este
estrangulamento que tornava o objecto de estudo pesado e opaco e, em reacção, ele quis jogar
fora toda a tradição filosófica, o que também foi um exagero histérico.

O nosso ponto de partida em relação aos objectos da filosofia deve consistir em


encará-los como elementos da própria realidade. Tudo o que adquirimos como cultura
filosófica deve ser instrumento e não objecto de investigação. Na absorção dos elementos de
cultura podemos colocar temporariamente entre parenteses aquilo que sabemos a respeito
dos objectos visados, mas sabendo que depois iremos fazer uma confrontação entre uma
coisa e outra. Temos o exemplo de Eric Voegelin, que estudava direito com Hans Kelsen,
assim como outras disciplinas, mas depois aconteceram eventos reais relacionados com
ideologias de massa, então, ele tomou isso como objecto de estudo, ainda que não existisse
nenhuma disciplina que estudasse sistematicamente o assunto.

Olavo de Carvalho também encara as grandes doutrinas metafísicas do passado como


símbolos devido a uma tradição a que aderiu, que diz que tudo o que acontece no mundo
físico é um símbolo ou uma exteriorização de realidades de ordem metafísica. Entendemos
aqui a metafísica como o estudo da possibilidade e da impossibilidade, ou seja, o estudo dos
limites que a realidade inteira não pode transcender. Então, a metafísica não estuda
propriamente o ser mas aquilo que está para além do ser e o limita, sendo, por isso, um
elemento constitutivo deste. Todos os grandes edifícios metafísicos têm incoerências ou não
batem totalmente certo com a realidade tal como a conhecemos, mas, ainda assim,
funcionam de algum modo, podendo despertar intuições brilhantes, ou seja, funcionam como
símbolos (matrizes de intelecções). A verdade que as metafísicas pretendem transmitir
transcende os seus discursos, pelo que nos podem encaminhar a ela de algum modo. Outros
discursos também podem despertar as mesmas intelecções, por exemplo, uma peça de
Shakespeare. Só podemos colocar as conclusões a que chegarmos na forma de símbolos e
nunca como expressões literais da verdade. O próprio processo da história da filosofia é a
condensação da experiência em símbolos, que depois são analisados, elaborados e
substituídos por outros símbolos mais claros, diferenciados e satisfatórios intelectualmente,
de preferência abrangendo os interiores. O processo não é linear e se esperarmos que as
filosofias sejam expressões cabais da verdade ou da falsidade, podemos ficar com a
impressão, já desde há muito registada, da história da filosofia ser uma sucessão de doutrinas
discordantes, cuja totalidade não faz o menor sentido, mas isso revela apenas incompreensão
do processo.

A filosofia já foi feita para ser um objecto de contemplação, abrangendo vários níveis,
desde um puramente estético até ao nível metafísico. O que São Tomás de Aquino escreveu
serve para insinuar realidades que vão muito além do discurso, algumas que jamais ele
poderia ter posto por palavras, por isso ele disse no fim da vida que tudo o que tinha escrito
era palha. As sumas de Aquino têm a estrutura de uma catedral gótica, que não é apenas um
edifício utilitário mas um objecto de contemplação, que começa por ser estética mas
prossegue por patamares sucessivos até levar a uma contemplação espiritual.
328

Não conseguimos pensar um ser humano, por mais próximo que este nos seja, apenas
podemos pensar aspectos dele. No entanto, conhecemos as pessoas, e isso acontece quando
apreendemos a sua unidade, que é uma unidade incompleta, com dimensões infinitas que
não podemos alcançar mas de alguma forma antecipamos nos sentimentos e reacções que
temos em relação aos outros. Obviamente que o universo inteiro também não é pensável. O
pensamento e o discurso não se destinam a dizer a realidade mas a evocar uma expectativa
que não pode ser realizada quantitativamente, que é a possibilidade que cada um tem de
conhecer a realidade nas suas dimensões finitas e infinitas. Um sistema metafísico errado
pode estar simbolicamente certo se o seu discurso despertar o espírito filosófico no leitor,
encaminhando-o para certas experiências. O erro está em tentar que estes sistemas
expressem a realidade literalmente, por isso Leibniz dizia que todo o sistema filosófico está
certo no que afirma e errado no que nega. Um sistema metafísico é negativo quando bloqueia
certas experiências ou percepções. Por exemplo, Kant disse que o espaço é uma forma a
priori, o que sob certo aspecto é verdade, estando o erro em considera-lo apenas isso e não
também uma realidade externa que nos cerca e nos determina fisicamente. Ao fechar a
perspectiva, Kant torna-nos opacas inúmeras dimensões da realidade. α91

279. Filosofias abertas e filosofias fechadas


Podemos classificar as filosofias de abertas ou fechadas. As primeiras são aquelas
dispostas a aceitar que as coisas possam ser descritas nos termos contrários aos delas. Por
exemplo, Aristóteles dizia que todos os homens têm por natureza o desejo de conhecer,
contudo, também admitia a existência de privação, que é a amputação de uma capacidade
que temos por natureza. Não há nenhum ser de nenhuma espécie que consiga exprimir a sua
natureza sem privação de espécie alguma, só a espécie pode manifestar todo o conjunto.
Então, concluímos que nenhuma homem pode realizar perfeitamente o desejo de conhecer e
é fácil de admitir que em muitos predomine o desejo de ignorar. Em geral, toda a obra de
Aristóteles é permeada por este “jogo”, em que coisas que parecem ser afirmações taxativas
aparecem depois atenuadas ou até invertidas, porque ele era um homem da experiência real e
são assim que as coisas aparecem de facto. A maior parte da obra de Aristóteles é constituída
de observações e só uma reduzida destina-se à teorização filosófica. As filosofias abertas são
aquelas que atendem à limitação do seu próprio discurso, entendendo que a realidade deve
permanecer em aberto e que todas as afirmações podem ser atenuadas ou contraditas, não
com o intuito de as impugnar mas para as completar e enriquecer.

As filosofias fechadas são as que não deixam escapatória, obrigando-nos ou a


concordar com elas ou a jogá-las fora. Por exemplo, Kant diz que não podemos conhecer
nada que vá além dos sentidos, o que é logo desmentido pelas experiências de morte clínica.
Então, ou aceitamos esta filosofia e ignoramos os factos ou negamos a validade da filosofia a
partir da constatação dos factos. Claro que também podemos considerar a filosofia de Kant
apenas como parcialmente verdadeira, como um símbolo hiperbólico de certas experiências,
mas isto já é um arranjo posterior para o qual Kant não deu elementos. As doutrinas
religiosas também podem ser abertas e fechadas, sendo o gnosticismo um exemplo claro de
uma doutrina fechada, que exprime apenas uma experiência de desespero humano
transmutada em linguagem doutrinal.

Cada ente particular contém em si elementos simbólicos que nos abrem para o
conhecimento da sua dimensão universal assim como para o conhecimento da nossa própria
329

universalidade. Então, a nossa disciplina filosófica interior deve consistir em avançarmos na


percepção do sentido universal de cada coisa que acontece. Devemos absorver esta disciplina
até ela se transformar num traço da nossa personalidade.

Os momentos de maior angústia e desespero são aqueles em que perdemos toda a


dimensão de universalidade e a situação empírica parece encerrar toda a realidade. Isto pode
acontecer numa situação de dor física intensa ou numa depressão profunda. A principal
ocupação do demónio é construir situações sem saída, que no fundo não passam de
impressões que prendem as pessoas. Mas o nosso pensamento também cria o mesmo tipo de
labirintos através da acumulação de convicções e crenças, que funcionam como limitações e
obstáculos. O que devemos sempre lembrar é que, por pior que seja a nossa situação, existe
sempre algo para além dela.

A mentalidade fechada é também estimulada pela ciência moderna. Diz-se que o


reducionismo é uma perversão da ciência, mas na realidade o próprio espírito da investigação
científica baseia-se numa série de simplificações, até reduzir o objecto a um mecanismo
facilmente expressável em termos matemáticos. α91

280. O impacto da ciência na sociedade (Bertrand Russel)


Veremos um texto de Bertrand Russel do livro O Impacto da Ciência na Sociedade. O
fragmento em causa é do primeiro capítulo, intitulado “Ciência e Tradição”:

«O homem existe há cerca de um milhão de anos. Ele possui a escrita há certa de seis
mil anos, agricultura há um pouco mais, mas talvez não muito mais tempo. A ciência,
como um fator dominante para determinar as crenças de homens educados, existe
há cerca de trezentos anos. Como uma fonte de técnica económica, há cerca de
cento e cinquenta anos. Nesse breve período a ciência provou ser uma forma
revolucionária incrivelmente poderosa. Quando nós consideramos quão
recentemente ela ascendeu ao poder, nós nos achamos forçados a acreditar que
estamos presentes ao começo mesmo de seu trabalho de transformação da vida
humana. Quais serão seus efeitos futuros, é um problema aberto à conjectura, mas
possivelmente um estudo dos seus efeitos até ao presente momento pode tornar
essa conjectura um pouco menos arriscada. Os efeitos da ciência são vários e de
tipos muito diferentes. Há efeitos intelectuais diretos, por exemplo a dissipação ou o
banimento de muitas crenças tradicionais e a adoção de outras crenças sugeridas
pela adoção do método científico. Em seguida há efeitos na técnica da indústria e da
guerra. Em seguida, principalmente como conseqüência das novas técnicas, há
mudanças profundas na organização social que estão gradualmente produzindo
mudanças políticas correspondentes. Finalmente, como um resultado do novo
controlo sobre o ambiente que o conhecimento científico criou, uma nova filosofia
está crescendo e se desenvolvendo, que envolve uma concepção alterada do lugar
do homem no universo. Eu vou tratar sucessivamente destes aspectos dos efeitos da
ciência na vida humana. Em primeiro lugar, vou contar seu efeito puramente
intelectual, como um dissolvente de crenças tradicionais sem fundamento, tais como
a bruxaria. Em seguida vou considerar a técnica científica especialmente a partir da
revolução industrial. Finalmente, vou apresentar a filosofia que é sugerida pelos
triunfos da ciência, e vou argumentar que essa filosofia, se não for restringida, pode
inspirar uma forma de ignorância a partir da qual conseqüências desastrosas podem
resultar.
330

O estudo da antropologia nos tornou vividamente conscientes da massa de


crenças infundadas que influenciam as vidas de seres humanos não civilizados. A
doença é atribuída a feitiçaria, o fracasso nas colheitas a deuses raivosos ou a
demónios malignos. Pensa-se que o sacrifício humano promove a vitória na guerra e
a fertilidade do solo. Acredita-se que eclipses e cometas pressagiam desastres. A vida
do selvagem é confinada por tabus, e pensa-se que as conseqüências de se infringir
um tabu são terríveis. Algumas partes desta perspectiva primitiva feneceram cedo
nas regiões nas quais a civilização começou. Há traços de sacrifício humano no Velho
Testamento. Por exemplo, as histórias da filha de Jefta e da história de Abraão e
Isaac. Mas acerca do tempo em que os judeus se tornaram completamente
históricos, eles abandonaram a prática. Os gregos abandonaram-na acerca do sétimo
século antes de Cristo, mas o cartaginenses ainda a praticavam durante as guerras
púnicas. A decadência do sacrifício humano nos países mediterrâneos não é
atribuível à ciência, mas presumivelmente a sentimentos humanitários. Em outros
aspectos, porém, a ciência tem sido a principal causa em banir superstições
primitivas. Os eclipses foram os primeiros fenômenos naturais a escapar do campo
da superstição e a entrar no campo das ciências. Os babilônios eram capazes de
predizê-los, embora, no que tange os eclipses solares, as suas predições nem sempre
eram corretas. No entanto, os sacerdotes mantinham secretos estes conhecimentos
e usavam como meio de aumentar o seu domínio sobre a população».

Qualquer leitura filosófica pode ser feita de duas formas: ou para entender a filosofia
do sujeito ou para verificar se o que ele diz é verdade. Neste último caso, temos que verificar
cada frase, o que cria uma tensão com o tipo de leitura destinada à absorção da filosofia, dado
que esta, numa primeira fase, requer que acompanhemos o raciocínio do autor sem interferir
nele. Nas grandes obras filosóficas esta tensão está reduzida ao mínimo, e podemos
compreender a intenção geral sem ter de engolir muitos erros ou inverdades. Noutros casos o
desconforto criado pela leitura é muito grande, o que é um forte indício de que o valor
intelectual da obra é reduzido, embora ela possa ter um forte impacto histórico. A sua leitura
pode ser importante precisamente para averiguar este impacto mas não se trata de uma
leitura formativa. Neste caso, devemos ter noção de que o autor pode estar a tentar enganar
deliberadamente a plateia, havendo normalmente duas formas de o fazer. Uma delas é
através da camuflagem, que consiste em construir um edifício racional, em que tudo é
verdade excepto uma premissa falsa que está ali escondida no meio. Outra forma é a
intoxicação, em que o autor mente em cada linha de modo a que o leitor não consiga
acompanhar e acabe por engolir tudo. Bertrand Russel usa este segundo método: cada
parágrafo está cheio de erros; ele passa por cima de problemas fingindo que não viu; tira
conclusões peremptórias a partir de um material que apenas permite formular interrogações;
e assim por diante. Se aceitarmos isto, ao fim de poucas páginas já estaremos intoxicados.

Russel diz que a ciência desempenha um papel de mudança revolucionária da


sociedade, nomeadamente ao dissipar crenças absurdas ou erradas de ordem tradicional, que
vão sendo substituídas pela versão científica dos acontecimentos. Mas ele também diz, quase
ao mesmo tempo, que está se formando uma espécie de anti-sabedoria a partir de uma nova
filosofia científica, que pode ter consequências desastrosas, e depois ainda adverte sobre os
perigos do pensamento científico. Os efeitos perversos da ciência parecem ter surgido meio
inesperadamente, depois de um começo tão auspicioso, mas devemos averiguar se as coisas
foram mesmo assim.
331

Supostamente, antigamente existia uma série de crenças infundadas, como aquelas


que relacionam a feitiçaria com doenças ou colheitas fracassadas, e teria vindo a ciência
impugnar tudo isto. Contudo, a ciência não estudou estes assuntos, logo, não poderia ter
impugnado nada a respeito. O que ela fez foi substituir uma certa visão de conjunto pela sua
própria cosmovisão. Mais tarde, foram feitas algumas averiguações científicas sobre
fenómenos de magia, feitiçaria, etc., e ficou evidente que alguma coisa ali se passava.
Contudo, não havia uma explicação científica para aquelas coisas, e tendo a ciência alcançado
um certo prestígio social e se alçado como autoridade para distinguir o verdadeiro do falso, a
consequência foi ter-se formado o hábito de rejeitar todos os factos sem explicação científica.
Isto é um enorme absurdo porque só pode haver ciência com a admissão preliminar do facto.
Se no final das investigações alguns factos permanecerem sem explicação, isso quer dizer ou
que são necessárias mais investigações para esclarecer o assunto ou que alguns factos podem
permanecer misteriosos para sempre. Contudo, para quase todas as pessoas, incluindo
letrados, as prioridades foram invertidas e a explicação está acima do facto, ou seja, a
autoridade da ciência passou a ter a capacidade de impugnar um facto apenas por não ter
uma explicação para ele.

Russel dá o exemplo dos eclipses, sobre os quais apareceu uma descrição astronómica
que teria varrido as antigas descrições míticas mas, ao mesmo tempo, também jogou fora as
previsões de factos que eram feitos a partir do surgimento de eclipses. Mas uma descrição
astronómica de um facto celeste não pode impugnar uma conjecturação dos seus efeitos
terrestres. Simplesmente houve um desvio da atenção para a mecânica celeste, abolindo a
conjecturação de causa e efeito, mas este desvio, ao invés de ser uma impugnação lógica-
científica de uma crença, é ele em si mesmo uma crendice e mesmo uma das fundamentais da
cultura contemporânea.

Ele fala dos sacrifícios humanos que eram comuns em civilizações primitivas,
havendo até traços disso no Antigo Testamento, mas depois teriam desaparecido devido ao
humanismo e à ciência. Na realidade, existe ainda hoje um número enorme de sacrifícios
humanos em rituais satânicos e nunca ninguém fez um estudo comparativo em que avalie se
o número aumentou ou diminuiu. Além disso, há muitas matanças modernas que tem um
carácter sacrificial, como no caso dos judeus na Alemanha nazi ou os gulags na União
Soviética. E para isto eram dadas explicações científicas, tal como hoje se dão para justificar o
aborto. Há um pensamento mágico moderno que faz acreditar que matanças em massa são
justificadas em nome de salvar uns poucos. Nunca houve nada chegando a este grau nas
sociedades primitivas.

A visão que Russel tem da história da sociedade é totalmente mítica, mas ele vai
contando as coisas aparentemente de forma equilibrada e é fácil aceitar o que ele diz, mas em
pouco tempo já estaremos intoxicados com tanta mentira. Russel diz que quer advertir para
uma filosofia científica que pode gerar uma anti-sabedoria, mas ele mesmo já está a praticar
essa anti-sabedoria. Então, torna-se muito difícil de acompanhar a sua filosofia porque a cada
página é exigido um acto de fé, além de que nada legitima fazer uma filosofia em cima de
informações factuais falsas. Mas os leitores de autores como este já não querem saber disto,
porque eles já fazem parte de uma atmosfera cultural criada pela ciência, por isso já estão
convencidos que as coisas são de certa forma e nunca irão verificar.

Bertrand Russel apenas prossegue a ideia iluminista da existência de um progresso


das luzes e da razão que dissipam as trevas da ignorância e da superstição. Esta ideia em si é
uma superstição, que pressupõe que a História avança linearmente e que recusa aceitar
332

contradições, por exemplo, não admite que o aumento do conhecimento vem junto com o
aumento da ignorância. A ciência é um instrumento fundamental do progresso iluminista,
mas vemos que, tudo somado, ela causou mais prejuízos que benefícios, bastando pensar nas
armas químicas, nas armas biológicas, na bomba atómica, na burocracia estatal, nas técnicas
de manipulação de consciência e até no número assombroso de mortes causadas por actos
médicos. A ideia não é polemizar contra a ciência moderna, porque vamos mesmo ter que
prosseguir com ela, mas temos que assumir os seus efeitos reais e não varrer a porcaria para
debaixo do tapete. α91

[Aula 92]

281. Principais itens da filosofia de Olavo de Carvalho


Não sendo conveniente fazer uma exposição sistemática ou tratadística de uma
filosofia [271], sendo melhor uma abordagem por problemas [74], isso não quer dizer que as
filosofias não sejam sistemáticas, já que isso é próprio do carácter próprio destas. Definindo a
filosofia como a busca da unidade do conhecimento na unidade da consciência e vice-versa,
esta busca é uma hierarquização e um sistema. Assim, qualquer das partes só adquire sentido
dentro do sistema. Mas o sistema não nasce pronto e desenvolve-se à medida que os
problemas surgem e que a consciência do filósofo se forma, o que implica um caminho
acidentado, com muitos erros e fracassos. Isto mostra que não é possível haver um sistema
filosófico bem arrumado como supunham os filósofos da época clássica. O que existe é uma
tendência sistemática e unificante, que se identifica com a própria inspiração básica da
filosofia, e que é um esforço contra as forças dissolventes e entrópicas que existem não
apenas à nossa volta mas também na nossa consciência. O impulso filosófico existe em toda a
gente, mas a maior parte das pessoas apenas busca a unidade da sua consciência perante as
exigências momentâneas da vida prática, é algo motivado pelas situações de facto que se
impõem e não se trata de um esforço constante a auto-consciente.

A unidade de uma filosofia expressa-se de forma hierárquica, indo dos fundamentos


para as consequências, sendo o fundamento dos fundamentos aquele que Leibniz formulou
na pergunta: “porquê o Ser e não antes o nada?” Na realidade, trata-se de uma dupla
pergunta porque, por um lado, questiona sobre uma causa eficiente – porque existe o Ser? –
e questiona sobre o seu fundamento do Ser. A maior parte das pessoas, incluindo cientistas
famosos, acha que a pergunta sobre a existência do Ser versa sobre a origem da matéria. Daí
nascem as teorias que dizem que a matéria surgiu da combinação de forças pré-existentes
sem necessidade de um agente externo, mas isto não responde à pergunta sobre a origem do
Ser e muito menos diz algo sobre o seu fundamento.

Mas se a matéria teve origem nestas forças que pré-existiam ao universo, elas não são
um nada, já eram a presença do Ser. Também, se estas forças se encontraram e produziram
um resultado é porque estavam numa quantidade e proporção que as tornavam aptas a
produzir o resultado verificado, ou seja, obedeciam a uma fórmula matemática. Assim, para
além das forças existia a proporção matemática antecedendo a criação da matéria, e as leis da
matemática também não são um nada. Mas estando todas as leis matemáticas de alguma
forma interligadas, todo o conjunto já existia, possibilitando que viessem a se materializar as
333

propriedades dos elementos que constam da tabela periódica, o ADN e até as próprias
possibilidades da espécie humana. Tudo isto já estava contido inicialmente na forma de uma
lógica interna de possibilidades, inclusive a possibilidade de existirem uns seres que iriam
meditar sobre todo o caminho percorrido e pudessem ter consciência do processo. Por outras
palavras, na fórmula inicial já estava contida a possibilidade da visão auto-consciente do
próprio processo. Então, a fórmula inicial incluía absolutamente tudo, até a consciência de si
mesma

Mas a fórmula inicial contém mais do que o universo efectivamente existente, contém
também as possibilidades que não se manifestaram e aquelas que jamais se manifestarão, ou
seja, nela já estavam contidos todos os universos possíveis. A moderna cosmologia estuda
universos meramente possíveis, a consciência destes também fazia parte da possibilidade
inicial. Não se trata aqui de possibilidades no sentido de possibilidades pensadas pelo ser
humano, são mais propriamente potências. O Logos ou Inteligência Divina é precisamente o
conjunto de todas as potências que compõem o universo efectivamente existente assim como
todos os universos possíveis, mesmo aqueles que nunca cheguem a se manifestar.

A conclusão que tiramos daqui é que “no princípio era o Verbo”, ou seja, o Logos. Este
é o item número um da filosofia de Olavo de Carvalho.

O segundo item está relacionado com a constituição do universo. Sendo este formado
a partir de um corpo de possibilidades, e existindo inúmeras possibilidades para além das
efectivadas, então, o universo, tal como existe, não pode ser completo em si mesmo. Para
cada coisa existente existem inúmeras outras possíveis que, de certo modo, a delimitam e
marcam a sua forma. Assim, para além das realidades existentes, o universo é também
composto por uma infinidade de potencialidades não realizadas que cercam cada ser
existente. Isto corresponde ao círculo de latência, que é aquilo que um ente poderia ser mas
não é. As potencialidades delimitam e distinguem o ente justamente por não se terem
realizado. Por exemplo, todos temos a possibilidade de morrer a qualquer momento e mesmo
que essa possibilidade não se tenha realizado, ela define e delimita a nossa presença
enquanto criaturas mortais.

Podemos, então, dizer que o nosso universo nunca é completo, dado que tudo o que
existe tem um círculo de latência que se prolonga até não sabemos onde. Dizia Leibniz que
cada ser traz em si aquilo que o distingue de todos os outros, pelo que a descrição completa
do círculo de latência de um único ser abrangeria o universo inteiro. Um animal é distinto de
todos os outros, mas ele também é distinto de uma equação matemática ou de uma acção da
bolsa de valores, sendo o conjunto destas distinções aquilo que marca a sua forma específica.
Acresce a isto que cada espécie também possui em si o conjunto das diferenças que as
separam de todas as outras espécies, ou existiriam seres mistos pertencentes a mais do que
uma espécie.

Como o universo nunca será completo, nunca iremos poder encontrar nele uma
ordem total e acabada, só podemos encontrar uma mistura de ordem e de caos. Embora a
ordem predomine até certo ponto, sempre haverá um certo coeficiente de caos, porque as
possibilidades que se realizaram não apenas excluem outras possibilidades como podem não
ser as que melhor se combinariam com a totalidade. Existe sempre uma série de relações
complexas e ambíguas entre qualquer ser e a totalidade. Cada ser insere-se na totalidade
através das leis da Natureza, da sua espécie, etc., mas existe sempre um coeficiente de
absurdidade e de imprevisibilidade. Nem mesmo as partículas subatómicas obedecem
334

completamente a uma ordem pré-existente, sempre há em tudo uma tensão entre ordem e
caos.

O primeiro item da filosofia de Olavo de Carvalho diz respeito a uma metafísica, o


segundo a uma cosmologia, agora o terceiro versa sobre um a antropologia.

O homem é uma criatura dentro do universo que é definida essencialmente pela


memória. Ele é o único animal que age “hoje” em função do que fez “ontem”. Embora os
animais possam modificar o seu comportamento devido a uma influência exterior,
rapidamente eles estabilizam e passam a reagir de maneiras permanentes, ao passo de que o
ser humano continuamente ajeita a sua conduta em função do que lhe aconteceu no passado.
Então, podemos dizer que a continuidade da memória é o traço fundamental do ser humano.
Isto relaciona-se com o que Maurice Pradines chamava de consciência: a memória do
passado preparada para as tarefas do futuro. A memória é mais fundamental para o ser
humano do que a fala, porque é aquilo que dá a historicidade ao ser humano. Historicidade
quer dizer que tudo o que fazemos hoje integra-se de alguma forma no nosso passado, assim
como o passado integra-se e amolda-se à situação actual visando a preparação do futuro.

Para além da historicidade, o ser humano tem um segundo traço eminente, derivado
do primeiro, que está ligado ao princípio de autoria. Cada ser humano sabe que é o autor dos
seus actos e mais ninguém, e tal manifesta-se desde os primeiros dias de existência até ao
resto da vida, em condições normais. Quando o bebé examina o seu corpo, ele já está
identificando aquelas coisas como sendo dele e avalia como pode fazer certas coisas com elas.
A memória das primeiras acções vai integrar-se nas acções seguintes, ou seja, desde início há
uma posse do passado que se articula com o presente e com o futuro, e no processo o passado
vai sendo também trabalhado e integrado até ao dia em que o indivíduo pode dizer “eu” com
conhecimentos de causa. Não que esse eu só tenha passado a existir desde esse momento,
mas esta auto-identificação aumenta bastante as possibilidades de acção da entidade eu.
Apenas o ser humano pode mentir (os animais apenas podem camuflar a sua presença),
apenas ele pode negar o seu próprio passado, e só o faz porque tem algum domínio sobre ele.

Mas o indivíduo não podia ter esta relação com a sua memória se a sua unidade
pessoal apenas existisse fisicamente ou como um dado da consciência. Então, uma tese
fundamental para Olavo de Carvalho é a de que o “eu existe”, isto é, cada um de nós existe e
persevera no tempo. E aquilo que persevera não coincide com o que sabemos de nós ou com
os nossos estados, que vão e vêm, sendo algo que continua quando todas as células do corpo
já foram trocadas. É um centro agente que está por baixo de todos os estados, pensamentos e
acções do sujeito, sendo a consciência e a memória funções dele. Se os estados e pensamentos
impermanentes, e se até as células do corpo mudam o tempo todo, então, será o eu apenas
um pensamento para coerir e dar unidade ao conjunto? Mas o pensamento não pode fazer
isto porque também ele passará. Assim, o eu não é nem um produto da mente e nem uma
criação cultural, é uma condição para que exista o pensamento, os estados a memória e toda
a cultura. Se vasculharmos na nossa memória, por mais que recuemos não há nenhum
momento em que não sejamos nós mesmos, por pior que seja o estado mental associado à
recordação ou nebulosa a memória. Além de que o nosso eu está presente a outros eus, não
imaginamos que as pessoas só existam apenas no estado momentâneo em que as
encontramos, sabemos sempre que elas são alguma coisa, ou seja, que também têm um eu
permanente e substantivo, e sem isto não há convivência humana possível.
335

O eu tem uma certa existência paradoxal, é uma coisa permanente que está imersa no
tempo. Uma das constantes do ser humano é a tensão entre permanência e mudança, e
apenas porque existem estes dois aspectos em nós podemos entender o que é a eternidade e o
que é o tempo.

O verdadeiro ser humano é invisível, inaudível, intocável. Por baixo da comunicação


entre consciências existe a comunicação entre os eus verdadeiros. Um ser humano pode ser
conhecido – ele trás consigo um conjunto de sentimentos, valores, evocações, etc. – mas não
conseguimos pensar uma pessoa como um conjunto, apenas podemos pensar detalhes dela,
acontecimentos. Em suma, um verdadeiro ser humano não é tocável, audível, visível,
cheirável, nem sequer pensável, mas ele é conhecível.

Dos pontos anteriores decorre o princípio da responsabilidade, que vem do verbo


“responder”, ou seja, quem fez responde por isso, porque apenas ele sabe a verdade em
última análise. A noção de responsabilidade baseia-se no princípio de autoria e na
continuidade ontológica do eu. Todas as relações humanas baseiam-se nesta continuidade e é
uma irresponsabilidade negar isto, ainda que se invoquem motivos muito eruditos ou
elegantes. Na realidade, a existência do eu é até mais contínua do que a do universo físico,
que não é pleno, está cheio de intervalos e de “não ser”. Claro que o universo tem zonas de
vácuo em termos materiais, mas essas áreas estão preenchidas em primeiro lugar por
energia, depois e abaixo por potências e, ainda mais abaixo, por possibilidades. Essas zonas
não podem ser um nada ou delas nada poderia sair.

O quarto item da filosofia de Olavo de Carvalho tem a ver com a teoria do


conhecimento e generaliza alguns dos resultados prévios sobre o conhecimento do ser
humano. Conhecer um ente é ter consciência do seu círculo de latência, que é inabarcável.
Dizia Aristóteles que quando percebemos um ente apreendemos a sua forma inteligível, que
é aquilo que se expressa num conceito ou numa imagem mental. Mas a fórmula inteligível é a
mesma para todos os entes da espécie e permanece a mesma durante todo o tempo de
existência do ente. Não é apenas isto que percebemos, também apreendemos um conjunto de
propriedades e de acidentes possíveis que compõem o ente. A partir deste círculo de latência
temos uma expectativa daquilo que o ente pode ou não fazer.

Os actos de conhecimento entre seres humanos são efectivações momentâneas de


contactos entre círculos de latência inabarcáveis. Mas na tradição moderna, desde Descartes,
a compreensão do conhecimento humano visa apenas o sujeito. Já no século XX Husserl
percebeu que não bastava considerar os actos cognitivos e que o encontro real é a base do
conhecimento. Só podemos ser sujeitos se também formos objectos, ou nem poderíamos nos
conhecer a nós mesmos. Também os objectos não podem ser conhecidos por nós se não
recebessem nenhuma informação nossa, isto é, a nossa presença tem de os afectar de alguma
forma, ao menos espacialmente. A pedra que observamos já sofreu uma alteração espacial,
embora ela não apreenda isso de modo consciente, apenas de modo existencial, porque a
situação real dela já se alterou pela nossa presença. Os seres passam continuamente uns aos
outros informações fragmentárias, mas o ser humano apreende estes fragmentos como
símbolos do círculo de latência, que pressupõe a existência real dos seres envolvidos no
processo cognitivo. O conhecimento é “algo mais” que acontece aos seres que estão imersos
numa imensa rede de relações que os articulam no universo inteiro, assim, o conhecimento
não tem prioridade em relação ao ser, como queria Kant, dado ser apenas um modo de acção
deste. Ao contrário da pretensão kantiana, a verdadeira filosofia não pode começar com a
teoria do conhecimento, tem de começar com a teoria do ser.
336

A filosofia que está delineada nos itens acima só começou a ser esboçada por Olavo de
Carvalho a partir dos seus quarenta anos de idade. Antes disso, ele passou por um longo
aprendizado, que não consistiu apenas em ler livros de filosofia e no contacto com pessoas
capacitadas. Houve também uma busca de conhecimento através da experiência (religiosa,
esotérica, política, jornalística).

Apostila que faz um esboço do sistema filosófico de Olavo de Carvalho:

Esboço de um Sistema de Filosofia α92

282. Algumas investigações de Olavo de Carvalho


Do sistema filosófico de Olavo de Carvalho [281] derivaram várias investigações,
tendo também ocorrido o movimento inverso, ou seja, algumas investigações independentes
vieram a se integrar no conjunto. De seguida serão elencadas algumas das mais importantes.

a) O método nas ciências sociais. Para que as ciências humanas se tornem efectivamente
humanas, os seus porta-vozes não podem ser alheios aos processos que descrevem mas
devem saber que posição ocupam no conjunto e qual o papel que desempenham. Nesse
sentido, esta investigação de Olavo de Carvalho fez um esforço de articular, na medida do
possível, a autoconsciência que o indivíduo tem da sua continuidade ao longo do tempo com
o conhecimento da sociedade humana, da cultura, e da História. Karl Marx, que foi um dos
pioneiros das ciências sociais, insistia na praxis (unidade de teoria e prática) nunca analisou
a sua própria posição social. Ele arrogava-se de ser o primeiro a ter percebido que era o
proletariado a ter uma visão objectiva do processo histórico, embora ele não fosse um
proletário, mas não se preocupou em dar uma explicação para isto e parece nem mesmo se
ter dado conta da existência do problema. Então, a ciência social que ele criou é apenas um
fingimento, como se a sociedade fosse um laboratório com uns ratinhos e o investigador está
fora e acima de tudo. Em geral, esta é uma ilusão constitutiva das ciências sociais. Apostila
sobre esta investigação:

Problemas de método nas ciências humanas

b) A natureza do poder. O essencial desta investigação encontra-se no curso “Teoria do


Estado”. Bertrand Russel, que por vezes também acertava, disse que o poder é o conceito
central das ciências sociais ou, pelo menos, da ciência política. Na língua portuguesa, “poder”
é ao mesmo tempo substantivo e verbo, e é nesta segunda acepção que deve ser tomado:
poder é a possibilidade concreta de acção. No sentido político, poder é a possibilidade de
acção sobre outros, ou seja, a possibilidade de dirigir os poderes alheios. É da natureza de
qualquer poder humano estar sempre integrado noutros conjuntos que transcendem a sua
esfera de poder, e mesmo se existisse um indivíduo como mais poder do que aquele que
algum dia se viu, o conjunto do seu poder ainda estaria integrado dentro da estrutura do
universo.

De uma fenomenologia do poder sai uma tipificação das modalidades de poder, que
são três. O primeiro tipo de poder com a possibilidade de convencer alguém a fazer algo
mediante ameaça de lhe causar um dano intolerável, e corporifica-se no poder político-
militar. A segunda modalidade não actua mediante a ameaça mas através da promessa de um
benefício, e vai dar no poder económico-financeiro. E a terceira forma actua através da
persuasão, correspondendo ao poder intelectual-espiritual. Contudo, estas três modalidades
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raramente aparecem de forma pura, quase sempre estão mescladas, embora cada uma delas
predomine nos três grandes blocos que disputam actualmente o poder mundial. O esquema
russo-chinês é essencialmente baseado no poder político-militar; o esquema islâmico apoia-
se sobretudo no poder intelectual-espiritual; e o esquema globalista ocidental (CFR, Grupo
Bildeberg, etc.) tem sobretudo um poder económico-religioso. Conforme o esquema de poder
dominante, vão existir certas classes sociais com maior realce. Quando domina o poder
político militar, como na Rússia e na China, todos os poderes “intermédios” são eliminados e
sobra apenas a burocracia estatal, que é ainda dirigida por oficiais militares e pelos serviços
secretos. Nos outros esquemas, os poderes intermédios não são propriamente eliminados
mas passam a agir quase que exclusivamente em função dos interesses das classes superiores,
que no caso da elite ocidental é composta eminentemente de banqueiros e financistas, e no
Islão por líderes religiosos.

Embora cada bloco que disputa o poder no mundo expresse essencialmente uma das
três modalidades fundamentais de poder, obviamente que cada um usa todos os recursos
possíveis, mesmo os característicos de outras modalidades de poder, mas na concepção que
eles têm das coisas cada um explica tudo “à sua maneira”. Por exemplo, o esquema russo-
chinês explica tudo em termos geopolítico-militares, já a elite ocidental explica tudo em
termos económicos e elite islâmica em termos espirituais. Isto não corresponde apenas a uma
deformação intelectual derivada do poder que se representa, é uma expressão mesma desse
poder. Porque a elite russa-chinesa parte precisamente das próprias soberanias nacionais,
enquanto o globalismo ocidental não tem base geográfica (querendo mesmo acabar com as
soberanias nacionais) mas tem instrumentos económicos e financeiros, e a elite islâmica não
tem nenhum dos dois mas possui um tremendo poder de influência por via espiritual. Todos
os blocos visam obter um domínio mundial mas só o bloco russo-chinês actua de forma mais
linear e “convencional”.

c) Investigação sobre a mentalidade revolucionária. A base deste estudo não foram os


movimentos revolucionários em si mas o processo político mundial inteiro. Isto permitiu
definir o fenómeno de forma aristotélica, ou seja, considerar o objecto inteiro sem nada
deixar de fora. A revolução é definida por Olavo de Carvalho como um projecto de
modificação profunda da sociedade a ser realizado mediante a concentração de poder.
Quando se trata apenas de uma concentração de poder, temos somente a constituição de um
governo autoritário, que pode até ser formado para evitar uma modificação profunda da
sociedade, como aconteceu com o governo autoritário austríaco, que tentou sufocar os grupos
nazi e comunista, estes, sim, com ambições revolucionárias. Há também processos
insurrecionais, como a Revolução Americana, que na realidade não são verdadeiras
revoluções dado que não modificam a estrutura da sociedade. A legislação americana
integrou muitas leis inglesas com vários séculos (ver o livro A História Constitucional dos
Estados Unidos, de Andrew McLaughlin). Aqui também não houve uma concentração de
poder e, no fundo, foi apenas uma guerra de independência.

É patente que a definição de revolução aqui apresentada não se aplica apenas às


revoluções violentas e sangrentas. Hitler já falava das “revoluções pelo alto”, em que a
conquista do poder é feita pelos meios legais e estabelecidos e depois revolução é feita desde
cima, como fez o próprio Hitler ou Salvador Allende, e que acontece agora em várias partes
do mundo, como o Brasil.

Os três projectos de poder mundial (russo-chinês, globalista ocidental e islâmico) não


apenas são revolucionários como são o supra-sumo da ideia revolucionária. A serem
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realizados, umas poucas pessoas ditariam o que o resto da humanidade tem que fazer. Na
realidade, o projecto já está parcialmente em funcionamento através de instituições como a
ONU ou a OMS, que já nos obrigam a seguir muitas directrizes sem perceber sequer o que se
passa. Já ninguém tem ideia de onde surgiram as leis.

A investigação sobre a mentalidade revolucionária procurou simplesmente explicar os


princípios do discurso revolucionário de auto-legitimação, de onde se evidenciaram três
inversões: a inversão do tempo, herança messiânica; inversão de sujeito e objecto; e a
inversão da responsabilidade moral, negando o princípio de autoria.

d) Investigação a respeito do discurso. A fundamentação da investigação sobre a mentalidade


revolucionária foi feita por uma investigação paralela a respeito do discurso. Seguindo a
sugestão de Avicena, o Organum de Aristóteles devia integrar os livros da Poética e da
Retórica, algo que São Tomás de Aquino também tinha sugerido. Contudo, isto não estava
desenvolvido em parte alguma. Com a Teoria dos Quatro Discursos, Olavo de Carvalho
mostra que já estava embutido em Aristóteles a ideia de uma unidade englobando vários
discursos, desde a expressão de impressões imediatas do discurso poético até toda a
formalização do discurso lógico. O livro Aristóteles em Nova Perspectiva mostra que os
vários tipos de discurso partilham os mesmos princípios.

e) Contemplação amorosa. Toda a investigação deve ter em conta as inclinações próprias do


estudioso que a empreende e que podem distorcer o processo. Olavo de Carvalho criou o
método da contemplação amorosa para tentar lidar com esta dificuldade. Husserl já tinha,
com a sua fenomenologia, alertado para a necessidade de respeitar a constituição do ente
observado e a sua maneira de se apresentar. Mas a fenomenologia pressupõe uma ética que o
próprio método não abrange. A contemplação amorosa é um passo além disso, é ter amor
pelo objecto, logo, é querer que ela seja como é. A experiência de qualquer um mostra que
compreendemos melhor o ser humano quando o vemos com simpatia. Se o vemos com
antipatia, isso já nos afasta do objecto e podemos ficar a temê-lo ou até a odiá-lo, e
imediatamente passamos a projectar nele os nossos sentimentos. Já o amor era definido por
São Tomás de Aquino como o “desejo de eternidade do ser amado”. Desta forma, torna-se
natural contemplar o objecto amado no que ele é, na sua essência eterna. Pode chegar a uma
altura em que o objecto se revela como algo fundamentalmente odioso, e aí um dos traços
fundamentais a descrever é precisamente o impedimento do amor em relação a ele. Apostila
fundamental:

Da contemplação amorosa

f) Método da confissão. Trata-se da continuação natural da contemplação amorosa. O método


da confissão visa conquistar a verdade na base da sinceridade. Partimos da verdade sobre
nós mesmos, que não podemos conhecer inteiramente mas podemos narra-la para o
observador omnisciente, que sabe tudo sobre nós. O método da confissão não é apenas uma
confissão no sentido estrito, há também uma descoberta – a presença do observador
omnisciente dá um retorno e ficamos a saber um pouco mais – e uma auto-constituição, na
medida em que incorporamos o novo conhecimento. Somente o homem perante Deus pode
se conhecer, que é aquele homem numa abertura total e totalmente indefeso perante a
verdade. Isto é uma disciplina em que nos colocamos sistematicamente na posição de
sabermos a verdade sobre nós mesmos, qualquer que ela seja e, a mesmo tempo, contamos o
que sabemos e, como resultado, algo mais se revela. Pode, então, acontecer que certas coisas
339

que nos pareciam importantes apareçam desvalorizadas e outras que não tínhamos prestado
atenção ganhem realce.

g) Consciência de imortalidade. Esta é a investigação que Olavo de Carvalho considera a mais


importante de todas as que fez. As experiências de morte clínica mostram que a consciência
existe para além do funcionamento do corpo e, portanto, o nosso eu permanente também não
está restrito ao nosso corpo. Na realidade, as pessoas em paragem cardíaca e cerebral até têm
uma consciência muito mais aguda e veloz. Os estudos do funcionamento cerebral podem
apenas visar certos mecanismos mentais ou psíquicos. Mas a consciência não é a mente, ela
não deriva do funcionamento cerebral. E o próprio eu não é a consciência. O eu permanente é
aquilo que em religião se chama de alma imortal, é aquilo que será salvo ou condenado, o que
já denota a sua duração ilimitada. Mas isto não implica uma “realização metafísica”, no
sentido de René Guénon, não há uma transformação em Deus ou uma absorção da
individualidade no Absoluto. Permanece a individualidade e a memória, apenas há outra
forma de existência que podemos vislumbrar nos relatos de morte clínica. α92

[Aula 93]
283. O testamento filosófico de Ravaisson
Félix Ravaisson é um modelo de análise filosófica, que evidenciou sobretudo em dois
volumes sobre Aristóteles (Ensaio Sobre a Metafísica de Aristóteles). Para além disso,
escreveu pouco, sendo de referir dois pequenos livros, Do Hábito e o Testemunho Filosófico,
que veremos aqui. Para a compreensão do que vem a seguir, deve ser lida a seguinte tradução
parcial do Testemunho Filosófico.

http://www.seminariodefilosofia.org/system/files/ravaisson+-+testamento+filosofico.pdf

Este texto é um dos mais densos que existe a respeito da filosofia antiga, contendo
vários níveis que se encaixam ou entremesclam. Ravaisson começa por evocar algumas
personagens mitológicas e históricas. A distinção entre História e mitologia não era muito
clara no ambiente greco-latino. Júlio César, por exemplo, considerava-se descendente carnal
da deusa Vénus. Daqui ele tira algumas conclusões de ordem moral, de onde também saem
algumas distinções psicológicas.

Havia os filhos dos deuses (Hércules, Teseu, Aquiles), que eram chamados de heróis
porque se acreditavam nascidos para o mundo inteiro, eram tocados pela sorte dos demais e
dispunham-se a ir em socorro dos mais fracos. Estes são aqueles que eram tocados pelo
“impulso originário”, que Bossuet dizia ser aquela bondade que Deus colocou nas entranhas
humanas em primeiro lugar. A mitologia antiga também exprime isto de alguma forma, dado
que nela está sempre presente a crença na beneficência divina. Entre os homens e as famílias,
mais do que desconfiança e ódio, era a hospitalidade que era considerada uma coisa sagrada.

Mas é também preciso reconhecer que a maioria dos homens sempre cedeu às
“tentações do egoísmo”, algo que apenas reforça a tendência natural de cada um cuidar de si
em primeiro lugar. Mas esta tendência pode ser contrariada voluntariamente, porque todos
temos a capacidade de sacrifício em prol de algo maior, o que invalida a tese hobbesiana.
340

Hobbes ignorava a existência do “impulso original” de bondade no ser humano (que até se
assiste em quase todas as guerras entre os lados adversários, porque na guerra o que
prevalece é o medo), e achava que apenas uma agressão maior do que todas as outras podia
acabar com o estado “natural” de agressividade generalizada e trazer a bondade. A grandeza
de alma é algo que o homem do vulgo não consegue vislumbrar, porque ele não tem força
para ajudar os outros e nem sequer tem capacidade para resolver os seus próprios problemas,
assim, vive em função do medo e sempre buscando segurança. Então, o homem vulgar
projecta em tudo o que vê a sua própria fraqueza e pequenez.

Schuon dizia que o pecado tem três etapas: a ignorância (desconhecimento da


verdadeira estrutura da realidade e da verdadeira constituição do homem); a fraqueza (o
medo que conduz à busca de auto-protecção e à recusa da solidariedade dos outros); e a
maldade (que começa de forma negativa e torna-se depois activa, eventualmente iniciada
como forma de defesa da posição de resguardo contra algum medo imaginário). O sujeito
habituado à auto-defesa física logo procura a auto-defesa psíquica, tornando-se obcecado por
um estado de equilíbrio, de homesostase. Assim, afasta-se de qualquer notícia negativa ou da
visão do perigo, porque são coisas que o deixam desequilibrado. Isto é estrutural no ser
humano mas agravou-se muito nas sociedades contemporâneas com a multiplicação de
mecanismos de protecção colectivos e estatais, que tornam os indivíduos incapacitados de
enxergar os perigos, sobretudo o risco supremo, que é aquele salientado por Bernanos:
morrermos como idiotas. Diz Meira Pena que vivemos numa sociedade que substituiu o tabu
do sexo pelo tabu da morte. Apesar dos últimos séculos estarem cheios de guerras e de
revoluções devastadoras, os indivíduos precisam de acreditar que existe uma estabilidade na
sociedade como um todo que possa sustentar a sua ilusão de estabilidade interna. Para
sustentar esta crença, existe a ideia de autoridade, mas tem que ser uma autoridade
impessoal, porque os homens vulgares passaram também a ser lisonjeados e iludidos de que
agora são livres, ninguém manda neles e cada um “pensa pela sua própria cabeça”. Então, a
autoridade passou a ser a ciência, a tecnologia, ou a universidade que supostamente sabe ou
um dia tudo saberá, o que deprime nas pessoas a vontade de fazer perguntas.

A estes dois tipos de personalidade (a heroica e a do vulgo) correspondem dois tipos


de filosofia.

Os homens pequenos reduzem a filosofia à sua própria pequenez, criam filosofias que
podiam ser ditas niilistas porque eles, sendo eles “homens de nada”, facilmente admitem que
tudo se formou a partir do nada. Contentam-se em prolongar as suas existências precárias,
preocupando-se apenas em adquirir, e se admitem a existência de potências invisíveis que os
influenciam, desconfiam que destas apenas se pode esperar “pouco de bom e muito de mau”.
Para eles, o mundo compõe-se essencialmente de corpos inertes e esparsos, sendo esta a
marca das filosofias materialistas que reconhecemos na antiguidade em Demócritos e
Epicuros, as filosofias ditas pobres, pequenas ou plebeias, baseadas nos sentidos e no
entendimento. Estas filosofias buscam os seus princípios nas coisas inferiores, que são os
materiais para as formas superiores onde aparece a ordem e a beleza. Para o epicurismo,
assumindo que apenas pode ser conhecido aquilo que é dado pelo testemunho dos sentidos –
que revelam apenas corpos e seus acidentes –, a consequência é o encerramento do homem
em si mesmo, o que já ecoava a proclamação sofista das sensações serem a medida de todas
as coisas. Cada indivíduo considera-se como que um todo fechado, como uma realidade em si
mesma que não se comunica realmente com os outros. Então, como pode acreditar este
homem na existência do mundo exterior? A questão colocada por Descartes parece um
341

problema filosófico real depois de já existirem muitas pessoas com uma concepção
corporalista da realidade, acreditando elas mesmas serem reais mas que o mundo talvez não
o seja, o que é evidente psicose de quem já esqueceu que não é eterno, que veio de outro
corpo e assim por diante. Nunca o mundo esteve fora de nós e nem nós fora do mundo, que
são apenas hipóteses que só existem no pensamento mas que depois são colocadas como se
fossem a realidade. Mas as filosofias pequenas ainda permanecem e induzem questões de
todo o género, por exemplo, na física pergunta-se do que são feitas as coisas ou do que são
compostas. A resposta pode ser “de átomos” ou qualquer outra, mas a resposta não diz nada,
porque na pergunta já solicita a noção de forma, no fim de contas é a questão sobre a causa
formal de Aristóteles, e responder com uma base material é claramente insuficiente.

Os homens de elite, aqueles ditos “generosos” por Descartes e Leibniz, têm “uma alma
cujo carácter é ser simpática a todas as outras”, cada um deles é consciente de “portar em si
uma força pela qual ele é senhor de si mesmo, que constitui a sua dignidade e constitui
igualmente a dignidade de todos os outros”. Os indivíduos grandes criam imagens do
universo que expressam não a sua própria grandeza mas a grandeza do universo, do qual se
reconhecem apenas receptores. Custa a crer que estes homens não acompanhem Tales na
crença de que tudo está cheio de almas, cada uma com raiz divina. De homens como Sócrates,
Platão e Aristóteles saíram as filosofias ditas reais ou aristocráticas, mas também apelidadas
espirituais ou espiritualistas dado que viam deuses ou potências ocultas dirigindo o mundo.

Ravaisson faz depois, num única e densa página, um resumo histórico da evolução
fundamental da ontologia desde Sócrates a Aristóteles, de onde vai tirando centos princípios
do método filosófico.

Diz ele que Sócrates percebeu que as sociedades não podiam subsistir apenas com
doutrinas materialistas, estando persuadido de que as coisas sensíveis dependiam de outras
que apenas se podiam conhecer pela inteligência. Viu que havia regras para discernir o justo
do injusto, o bem do mal, e provou que havia uma ciência acima das conveniências, baseada
nas generalidades comuns aos indivíduos. Platão, indo mais além, disse que as coisas
sensíveis são modelos inteligíveis das suas qualidades, as famosas formas ou ideias
imutáveis. Mas se as coisas da Natureza revestem-se passageiramente destas formas, estas
tornam-se causas, embora sejam extractos tirados das coisas pelo entendimento – que tem a
faculdade da abstracção de destacar coisas que estão juntas, mas que depois podemos
esquecer do ponto de partida e tomar cada coisa como existente por si mesma – e que apenas
têm existência real nos indivíduos (são actos de inteligência), é o “forjamos e ao mesmo
tempo cremos”, erro apontado por Tácito. Aristóteles observou que o geral não existe em si
mas é criado pelo pensamento, pelo que só o indivíduo pode ser um princípio e uma causa de
existência. As abstracções são apenas causa de imobilidade, não podem explicar o movimento
e a vida. Então, Aristóteles substituiu as ideias puras pelas almas como “fontes de movimento
e de vida”. Platão podia ser desculpado por não ter ainda à sua disposição uma dialéctica
suficiente para distinguir os diversos sentidos da palavra “ser”. O entendimento busca uma
razão de ser para tudo, mas as coisas mais altas conhecem-se imediatamente por intuição e
por analogia, o que Aristóteles traduziu numa distinção entre as diferentes categorias, ele
que, perceptor do último herói grego (Alexandre, o grande), avançou na via do antigo
heroísmo, que deseja o ser e “não se contenta com sombras, ídolos ou fantasmas”. α93
342

[Aula 94]

284. O testamento filosófico de Ravaisson (cont.)


Na leitura do Testamento Filosófico de Ravaisson, tínhamos ficado no ponto em que
este cita Schelling, que dizia que o “coração forte deseja o ser”, não se contentando com
“sombras, ídolos ou fantasmas” [283].

Recuando um pouco, Platão encontrou o mundo das ideias na sua busca da realidade
suprema por trás das aparências mutáveis da Natureza, que seria composto de esquemas
fixos dos quais as coisas moventes da Natureza são imitações imperfeitas. Aristóteles diria
depois que estas ideias são obtidas por abstracção das similaridades entre os entes
individuais, reflectindo, então, a definição das espécies, que apenas tem realidade mental.

Do avançado anteriormente no texto, Ravaisson extrai toda uma filosofia da Natureza,


entendida como campo simbólico, em que o ser se manifesta numa variedade de formas para
escalas distintas. No final, ainda consegue extrair alguns princípios do conhecimento.

Aristóteles queria voltar do artificial ao natural, do campo seco e insuficiente do


racional para a “riqueza fecunda da experiência”. É dele que data o início, segundo
Ravaisson, da filosofia positiva (não no sentido do positivismo de Comte), que em vez de
procurar a “noção abstracta e vaga” vai atrás de “noção precisa”. Para isso, não servia-se da
“faculdade e abstracção e de generalização” mas de uma faculdade prática que compreende o
“coração”. O ser central, ao qual todas as outras categorias de ser respondem é, para
Aristóteles, a acção, e esta explica a Natureza. Sendo observador do mundo natural, viu que
nele tudo é movimento, e que este é uma espécie de vida, e que esta só pode vir de outra vida.
As ideias platónicas, como esquemas das espécies, não têm vida por si mesmas, apenas a
adquirem por meio dos indivíduos que as manifestam de algum modo.

O movimento, enquanto fenómeno, pode nascer do movimento, mas a sua origem


primeira é acção, que é como um instante que durasse sem sucessão. Sendo a sucessão a
negação do “positivo da duração”, então, o que se busca é conceber o eterno. Mais tarde, no
cristianismo, o caminho da acção para o eterno será feito por via da vontade, que é
fundamento da acção, e esta tem por fundo o amor, que é a essência de Deus. A única
realidade é a eternidade, e o tempo é apenas um seu aspecto ou aparência. Melhoramos a
nossa memória quando acreditamos na eternidade do ser, isto é, tendo a noção de que aquilo
que aconteceu não foi para o nada. Leibniz dizia que o espaço era símbolo vivente e sensível
da eternidade, por isso funcionam as técnicas de memória que associam recordações a
localizações espaciais nossas conhecidas.

Já dizia Cícero que aquilo que não faz nada parece ser um nada, e até uma pedra tem
nela algo activo e movente. Assim, ser é agir, e “a acção é a existência mesma”. Além disso,
aquilo que é não só age como naturalmente se comunica. A consciência tende a se reconhecer
a si mesma no pensamento, sendo como todo o ser vivente que busca uma posse mais plena
do seu ser. Nada pensa sem pensar-se mas apenas em Deus a “consciência perfeita do objecto
é inteiramente idêntica ao sujeito”. Todas as espécies tendem a imitar isto, cada uma num
diferente grau. Por exemplo, um mineral tem um grau de unidade inferior ao de um vegetal, e
este é menos íntegro que um animal, que facilmente perece se amputado de uma das suas
partes. Também o pensamento se reconhece nos seus objectos, disperso pelas ideias até
encontrar a sua unidade. A Natureza aparece como diferenciação até ser finalmente
integrada, mas pode sê-lo porque é um esboço mais ou menos bem-sucedido da suprema
343

perfeição, que ocorre em Deus, o pensamento que é, na fórmula de Aristóteles, “pensamento


do pensamento”.

No platonismo, entendido em sentido estrito, é feita uma abstracção incompleta – a


abstracção em si é incontornável como forma de nos erguermos a esferas mais altas da
realidade –, que para nas definições e não busca a realidade efectiva por trás delas,
precisamente aquilo que se manifesta de algum modo na experiência. Falta no esquema
platónico, então, o Deus que pensa as ideias. Na realidade, com a reconstrução do ensino oral
de Platão, sabemos hoje que ele admitia que acima do mundo das ideias havia o chamado
mundo dos princípios. α94

285. A perspectiva do filósofo face à perspectiva do agente político


No debate entre Olavo de Carvalho e Aleksandr Dugin estão em causa duas
perspectivas muito distintas. Dugin tem um certo ponto de vista guenoniano, mas modifica-o
para servir o seu plano essencial, que não é de natureza intelectual ou filosófica mas política.

Uma obra filosófica tem de ter alguma chave que lhe dê unidade. No caso de Olavo de
Carvalho, a sua preocupação fundamental é encontrar a condição fundamental para que a
consciência humana individual possa alcançar a verdade e desfrutar do dom do
conhecimento objectivo. Zubiri e Schuon insistem que o próprio da inteligência humana é a
objectividade, e se não a buscamos estamos abaixo da condição humana. Um segundo
interesse prende-se com a relação entre a consciência humana e a divindade, ou seja, a
consciência perante o absoluto. Para René Guénon a consciência faz parte da Maya (ilusão
que constitui o universo, existente mas espiritualmente irreal dado estar em constante
mudança). Para o iniciado, a consciência pode se converter em conhecimento, este
transforma-se no ser, que é depois absorvido no absoluto mediante o processo da
divinização. Ora, a existência das almas imortais, que duram mais do que todos os cosmos
existentes e possíveis, contradiz isso. Além disso, podemos lembrar o catecismo, que diz que
Deus fez o mundo para o ser humano, logo, o homem está acima do cosmos e é, de certo
modo, a chave de abóboda de toda a criação. O início de Génesis – com os conflitos de
interesses entre Adão e Eva, depois entre Caim e Abel – já mostra que se trata ali do homem
enquanto indivíduo, não do homem considerado abstratamente enquanto espécie. Daqui
podemos concluir que a consciência humana ou a alma individual humana é um elemento
estruturante do cosmos. Na hierarquia de realidade, o mundo das almas humanas
obviamente que está abaixo de Deus, mas de certo modo encontra-se acima do mundo dos
anjos, porque estes possuem conhecimento divino mas não liberdade divina, sendo o livre
arbítrio humano expressão directa do poder divino.

A consciência humana é geralmente tida em muito baixa conta, não só por seitas
iniciáticas, que aspiram a estados “superiores”, mas também por materialistas e
behavioristas, que dizem que a consciência nem sequer existe, é apenas uma ilusão nascida
de mecanismos físico-químicos. Mas se a consciência humana é um quase nada, qual a razão
de se terem feito tantos esforços no século XX para policia-la, controla-la, oprimi-la e
neutraliza-la? Todas as perguntas políticas que Olavo de Carvalho fez originaram-se daqui, o
que remete para as preocupações de primeira ordem de carácter eminentemente filosófico.
Reflectindo a liberdade humana o poder do próprio Deus Pai, a consciência humana é
imprevisível, criativa, não obedece a leis, logo, ela possibilita a desobediência e a rebelião,
inclusive a possibilidade de nos revoltarmos contra Deus.
344

A ideia de liberdade metafísica humana ao longo dos tempos traduziu-se em


liberdade política, que é uma liberdade de consciência. Na constituição americana
manifestou pela primeira vez o princípio da liberdade política, baseado num princípio
bíblico, traduzido em leis e instituições. Então, a liberdade de consciência, tal como integrada
nesta constituição e nas suas instituições, não veio do iluminismo mas de fontes bíblicas. A
Revolução Francesa já deve muito mais ao iluminismo, mas a consequência imediata dela foi
a ditadura de Napoleão, seguida de golpes, revoluções e ditaduras por quase cem anos.

O ponto de vista de Aleksandr Dugin é essencialmente geopolítico, vindo de uma


escola de autores como Mackinder ou Houshofer. Para estes, existe um conflito perene entre
“potências terrestres”, como a Rússia e a China, e as “potências marítimas”, que incluiriam os
EUA e vários países ocidentais. As potências terrestres seriam autoritárias, centralizadoras,
voltadas para a ordem tradicional e para objecivos supra-individuais. As potências marítimas
usavam o poder naval para o comércio e para interferir em vários locais do mundo com o
objectivo de espalhar as ideias de liberdade individual e de materialismo baseadas no
iluminismo.

Diz Dugin, no livro A Grande Guerra dos Continentes, que já na antiguidade se via
esta clivagem, havendo uma “civilização marítima” encabeçada pela Fenícia e por Cartago, a
que se opunha o império terrestre romano, tendo depois o embate chegado a um desfecho
nas Guerras Púnicas. Na modernidade, a “civilização marítima” foi primeiro encabeçada pela
Inglaterra, a “senhora dos mares”, e depois pela América. Daqui se teria originado um tipo
particular de civilização de mercado capitalista-mercantil, fundada sobre interesses
económicos e materiais e sobre os princípios do liberalismo económico. Para Dugin, o que
carateriza a civilização marítima é sobretudo o primado do económico sobre o político.
Roma, por seu lado, tinha uma “estrutura autoritária-guerreira fundada numa dominação
administrativa e numa religião civil”, então, seria o primado do político sobre o económico. A
sua colonização teria sido terrestre e feita com a assimilação dos povos submetidos, que
depois teriam ficado “romanizados”. Na História moderna, as potências terrestres foram
sobretudo os impérios russo, alemão e austro-húngaro. Acrescenta Dugin que Mackinder
demonstrou que, nos últimos séculos, a “atitude marítima” equivale ao atlantismo, e as
“potências marítimas” são sobretudo os países anglo-saxónicos. A atitude eurasiana é
expressa, antes de tudo, pela Rússia e pela Alemanha, as mais fortes potências continentais,
com preocupações geopolíticas, económicas e, acima de tudo, com uma visão de mundo
completamente opostas às da Inglaterra e dos Estados Unidos da América.

Para começar a analisar esta visão de Dugin, basta notar que a União Soviética teve a
sua zona de influência em quase todos os continentes. Como pode ter tido uma potência
terrestre uma influência tão grande na américa latina? A noção de “potência terrestre” não
faz sentido nos termos em que é posta. Historicamente é também inegável que a concepção
de liberdade económica é católica, mas concretamente ibérica, só não se tendo realizado
nestas paragens em grande escala devido a várias contingências históricas, incluindo os
conflitos com os ingleses. Isto antecedeu muito o iluminismo e as iniciativas anglo-saxónicas.
Mas há logo uma outra confusão montada aqui em cima, porque a concepção da liberdade
política não tem nada a ver com o individualismo, entendido como pura busca do interesse
individual, é antes uma decorrência da própria letra dos evangelhos.

Depois, onde está a inspiração divina dos governos autoritários da Rússia e da


Alemanha e o que fizeram eles para cristianizar o mundo? Os primeiros povos a serem
cristianizados foram ingleses e irlandeses e depois estes partiram para cristianizar o resto. A
345

Alemanha cristianizou-se tardiamente e logo explodiu na Reforma, sendo dela a pátria das
doutrinas mais anti-cristãs que existem, as de Hegel, Marx ou Nietzsche. Também foi criação
alemã a tentativa de dissolver o texto bíblico em considerações historiográficas, quase sempre
imaginárias. Em contrapartida, a evangelização feita por seitas protestantes na américa
trouxe ao mundo algo bem diferente do individualismo.

Dugin diz, noutro escrito, que é preciso ler o livro A Sociedade Aberta e seus
Inimigos, de Karl Popper, para compreender o conflito entre atlantismo e eurasianismo.
Popper diz que a sociedade aberta é aquela na qual não há absolutos, assim, não há nenhuma
verdade acima dos interesses e preferências dos indivíduos. A esta noção de sociedade aberta
sem transcendência Dugin contrapõe a sociedade tradicional, que para ele é representada
pela Rússia, pela Alemanha ou pela China. Na realidade, a ideia de sociedade aberta é algo
que os globalistas deram importância e querem impor ao resto das pessoas contra vontade
delas. Foram necessárias muitas décadas de campanhas de propaganda, de alteração de
mentalidades e de destruição de consciências para fazer passar a ideia de que o Estado mais
que laico deve ser anti-cristão, porque essa ideia não tem qualquer raiz na tradição
americana, antes são os inimigos dos EUA que lhe querem impor tal coisa. O efeito foi
sobretudo notório na política externa americana, que basicamente se limitou a trocar
ditadores amigos por ditadores inimigos (Fulgência Batista por Fidel Castro, Shiang Kai-
Sheck por Mao Tse Tung, Lon Nol por Pol Pot e assim por diante), além do esforço também
exercido para quebrar o poder das potências colonias como a Inglaterra, França, Portugal ou
a Espanha, entregando as antigas possessões a poderes comunistas. Toda a elite globalista
tem feito esforços num sentido claramente anti-americano, favorecendo ao mesmo tempo o
movimento comunista internacional, que faz parte do esquema eurasiano de Dugin. Os livros
de Anthony Sutton mostram como os banqueiros americanos ajudaram bastante o
comunismo e o nazismo. Portugal e Espanha foram as primeiras potências marítimas da era
moderna, mas elas não fazem parte do esquema anglo-saxónico, antes foram destruídas por
ele.

As noções de “potências marítimas” e de “potências terrestres” podiam ser, em teoria,


usadas como símbolos, servindo de instrumentos de interpretação da realidade. Mas para
isso, os símbolos tinham de abranger os factos conhecidos e ainda dar-lhes um sentido,
transcendendo-os. Mas neste caso tratam-se de noções que ignoram a quase totalidade dos
factos, então, não são símbolos mas estereótipos usados para fins de propaganda.

Na concepção de Dugin aparece também uma confusão entre o colectivo e o supra-


individual. Como as ditas potências terrestres são centralizadoras, hierárquicas e
autoritárias, Dugin faz equivaler estes atributos a um desígnio transcendente. Colectivo não é
um conceito superior a individual e nem vice-versa, são dois lados da mesma coisa e o
colectivo é-o de indivíduos. São conceitos de sentido quantitativo, mas quando falamos de
supra-individual já falamos do espiritual, de algo que é supra quantitativo. A contraposição
entre individual e colectivo não é, como quer Dugin fazer crer, uma contraposição entre
imanente e transcendente. α94
346

[Aula 95]
286. A importância do elemento biográfico na compreensão da obra
filosófica
A definição da filosofia como busca da unidade do conhecimento na unidade da
consciência e vice-versa tem extensas aplicações. Desde logo, é um apelo a que procuremos
dar coerência aos nossos conhecimentos mais elevados de ordem científica, histórica ou
filosófica, estendendo essa coerência às atitudes da nossa vida real. O comum é não ter em
conta as ideias “superiores” como apoio para as decisões da vida concreta, o que mostra que
estas ideias são apenas parte de um fingimento, usadas quando der jeito e apagadas quando
não interessa. Nunca foi feita uma história da idoneidade da classe científica e intelectual,
mas olhando para o estudo de Paul Johnson, vertido no livro Os Intelectuais, percebemos
que a situação é assustadora, já que os mentores da idade moderna eram sujeitos de uma
mendacidade extrema ou mesmo personalidades verdadeiramente perturbadas.

Contudo, o habitual é apelar-se, nestas situações a que se analise apenas as ideias e


não a vida das pessoas. Não é propriamente uma acusação de utilização do argumento ad
hominem, dado que isso seria uma tentativa de desvalorizar as ideias depois de atacar a
reputação da pessoa, mas algo disto ainda é evocado. O que está implícito é que a obra é
independente do seu autor. Isto é verdade no caso da obra literária, que quando terminada
ganha uma espécie de independência ontológica e cujo valor não é alterado por aquilo que o
autor fez antes ou depois. Mesmo que existam problemas posteriores em termos de edição
para fazer a versão definitiva ou, no caso de uma peça de música, exista sempre a
interpretaçãos do maestro ou dos executantes, há sempre uma estrutura que permanece e
que pode ser acompanhada por públicos de gerações consecutivas. Além disso, as obras de
arte nada afirmam categoricamente, tudo é de natureza simbólica, podendo ser interpretado
em múltiplas direcções. Mesmo que um autor queira mostrar algum elemento histórico ou
científico como verídico, ele pode ser cobrado nestas dimensões, mas isso não é uma
cobrança artística, que é independente. Então, o criador da obra de arte não responde
moralmente pela sua obra enquanto peça artística.

Mas no caso das obras filosóficas já não é assim. Desde logo, nem podemos falar de
obra no mesmo sentido que o utilizado na literatura ou na arte, que é um livro, um quadro,
uma peça. O livro de filosofia não pode ser considerado obra no mesmo sentido por duas
razões. Em primeiro lugar, porque nunca é uma obra acabada. Mesmo que se trate da última
coisa que o sujeito fez, aquilo não é um ponto final definitivo, e logo outros poderão retomar
as investigações. Platão ficou a vida toda retirando conclusões da sua teoria das ideias, mas
ainda deixou o seu famoso ensinamento oral, onde estariam as partes mais importantes do
seu sistema, e após a sua morte os seus discípulos continuaram a trabalhar sobre este
material. Não se pode dizer que os diálogos de Platão sejam formas acabadas e alguns
parecem terminar propositadamente de forma inconclusiva. Nenhuma investigação sobre
qualquer facto da realidade pode alguma vez terminar, e mesmo que seja enunciada uma
teoria, há sempre novos dados que a podem confirma-la, relativiza-la ou impugna-la. Então,
as obras filosóficas não são formas acabadas como as obras literárias, são apenas etapas de
uma investigação e de uma vida em busca de conhecimento. Uma obra filosófica pode iniciar
uma investigação ou continuá-la, mas não vai termina-la e outras se seguirão, ainda que se
passe muito tempo. Já a obra de um artista não é continuada por outras (obra entendida no
sentido estrito, não como um conjunto de esforços numa certa direcção, que obviamente
347

podem ser retomados por outros). Mesmo a famosa sinfonia incompleta de Schuberth teve
várias tentativas de fechamento, para se concluir que a forma inacabada é a mais perfeita. Em
ciência ainda é mais patente que não pode haver obra acabada. Os estudantes já se inserem
numa longa linha de esforços e raramente conhecem as obras originais.

Depois, a “obra” filosófica não existe para ser contemplada em si, como acontece com
os produtos artísticos, é sempre algo que remete para uma realidade externa. E não é apenas
uma impressão pessoal, porque aquilo que o cientista ou o filósofo dizem tem sempre a
pretensão de validade universal, tal como todas as propostas políticas têm pretensões
universais, como salientou Eric Weil. Então, não apenas os autores não podem se colocar fora
do alcance delas como já estão assumindo, implicitamente ou explicitamente, a posição de
que estão tentando convencer os outros daquelas coisas. Isto é próprio da natureza do pensar
– pensar é pensar que estamos certos –, que é um afirmar de que aquilo que se diz é a coisa
mais certa. E mesmo que o pensamento seja um confronto de hipóteses, é também pensar
que fazer esse processo é a coisa mais certa, não só para si mas para todos os outros, porque
se soubéssemos de alguém que já sabe da resposta, então íamos atrás dessa pessoa.

Para perceber o sentido dos esforços de um filósofo, uma informação que ele deixou
de passagem pode ser tão importante como os livros que ele escreveu. Cioran escreveu livros
muito depressivos, que parecem que tentam acabar com qualquer esperança de viver. Numa
entrevista ele disse: “Quem me compreende sabe que eu sou um palhaço”. Então, o que ele
faz é assumir um traço da mentalidade romena, que é falar em nome do diabo, como se fosse
um exorcismo. Mas claro que nem tudo o que consta da biografia de um filósofo importa para
a interpretação das suas obras. Por vezes, ele está seguro de ter alcançado algumas certezas
teoréticas mas não consegue acompanhar ao mesmo nível na vida pessoal, como no caso de
Scheler, que escreveu obras importantes de filosofia católica mas não conseguia deixar de ser
mulherengo. Havia uma tensão na sua vida pessoal, de que ele estava consciente, mas que
não invalidava a sua obras, mas noutros casos pode invalidar ou relativizar ou tornar a
interpretação mais complexa.

O caso de Rousseau é bem diferente do de Scheler. Ele dizia que a sociedade se origina
de um contrato social, mas um contrato pressupõe já a existência da sociedade. Então, o
contrato social é apenas uma figura de linguagem, mas isto não está claro para Rousseau. No
exame da vida dele vemos que ele desconhecia bastante a sua própria alma apesar de escrever
muito sobre si mesmo. Ele dizia que era incompreendido, que era muito bondoso, mas ao
mesmo tempo cometeu uma série de maldades e abandonou os próprios filhos. Estas
contradições na sua vida pessoal, que ele se impedia de ver, reflectiam-se na impossibilidade
de ele ver a diferença entre uma figura de linguagem e uma descrição de realidade. O caso de
Rousseau é tal que o conteúdo do que ele dizia não tinha autonomia filosófica suficiente, é
mais um sintoma que pode ser julgado a partir de uma compreensão psicológica ou
psicopatológica.

Existe sempre algum resíduo psicológico nas filosofias, pelo que temos que perguntar
o significado deste resíduo para o filósofo no conjunto da sua vida. O filósofo pode dizer
certas coisas porque acredita nelas ou porque quer que nós acreditemos. Leo Strauss estudou
este fenómeno da camuflagem, mas não podemos usar esta abordagem como regra geral
interpretativa porque não é um elemento que explique o sentido da obra inteira para todos os
filósofos. Em Descartes a camuflagem é um elemento essencial [244], tal como em Galileu.
Na ciência moderna é assombroso o número de ideias conscientemente falsas que foram
introduzidas, e que se impregnaram por toda a humanidade nos últimos séculos, já se
348

transformando em reacções automatizadas. São coisas que se tornaram traços de


personalidade e são encaradas como se fizessem parte da estrutura do mundo, pelo que nem
sequer é possível compreender a sua contestação num primeiro momento, e quando as
pessoas entenderem logo têm uma reacção automática de rejeição, de desprezo, de gozação,
que reflecte o desejo de não pensar naquilo.

No caso do sistema heliocêntrico, este foi imposto através da propaganda, do apelo a


emoções e a preconceitos de todo o tipo, vindo junto com a ascensão de uma nova classe de
intelectuais seculares, que já falavam para um público duplo, composto não apenas pelos
seus pares mas de leigos quase sempre ignorantes. Isto associou-se uma ideia de progresso e
à ideia de uma sociedade mais livre e pluralista. Já aqui estavam presentes os elementos
básicos da mentalidade revolucionária: o presente e o passado eram julgados em função de
um futuro hipotético. Quando chega Kant, ele dizia que já não podemos ter nenhuma certeza
em relação ao mundo exterior e, assim, converteu as ciências num processo meramente
operacional. Este giro era apelidado por Kant justamente como “revolução copernicana”,
como que fazendo homenagem ao pai do heliocentrismo. Apesar de Husserl, com a
fenomenologia, ter tentado remediar um pouco o estado de coisas e conciliar o mundo das
ciências com o mundo da experiência real imediata, o trabalho ficou a meio, e do dualismo
kantiano Husserl passou para uma interpretação idealista da realidade, em que a consciência
é o fenómeno central e qualquer objecto é apenas um objecto de consciência. Não apenas o
fosso entre conhecimento e realidade não foi fechado como o que veio depois –
desconstrucionismo, estruturalismo, pós-modernidade, etc. – apenas agravou a situação. Na
estética da recepção, por exemplo, considera-se que a obra é criada pelo leitor, como se o
autor não tivesse também a sua própria interpretação. Não existe uma solução óbvia para
este estado de coisas e não podemos achar que se voltarmos a dar ênfase ao sistema
geocêntrico os problemas serão resolvidos magicamente. Para já devemos apenas ter noção
do processo, das fraudes científicas, da falsificação de biografias (Galileu, Newton, etc.), para
chegar à conclusão óbvia de que a cultura da modernidade é uma farsa. α95

[Aula 96]
287. A poesia lírica e a transição do discurso poético para o discurso
filosófico
O próprio da poesia lírica é expressar e fixar determinadas vivências da maneira mais
fiel e expressiva possível. Remete para certos momentos, dos quais em geral não é legítimo
retirar conclusões teológicas ou filosóficas. Cristo disse para nós arrancarmos o nosso olho
direito quando algo nos escandaliza, e podemos fazer uns versos sobre isto para expressar o
como este “preceito” é insuficiente para nós, mas sem que isso signifique que estamos
realmente discordando de Cristo. O olho direito significa tradicionalmente a inteligência, a
consciência reflectida, o pensamento lógico, assim, o que Cristo disse (que é um óbvia figura
de linguagem) pode ser entendido como um apelo para não ficar a racionalizar sobre
determinadas coisas que nos pareceram escandalosas. Mas Ele não disse que isso era fácil de
fazer, nem que nos iria alhear do foco problemático, que continua a entrar por outras vias. A
poesia lírica pode exprimir estas dificuldades e a Bíblia tem vários momentos líricos, como o
349

caso de Cristo na cruz perguntando ao Pai porque o tinha abandonado, ou o discurso de Jó


protestando contra Deus.

A literatura confina-se à expressão da experiência humana, e quando tenta ir além


disso o discurso muda, por exemplo, pode tornar-se filosófico. Mas a transição entre uma
coisa e outra é problemática e nunca directa. A filosofia não pode apenas abranger momentos
tomados isoladamente, vai ter que confrontar várias experiências contraditórias e tentar
abrange-las dentro de um esquema interpretativo geral. Não existe um número definido de
elementos que é necessário ter em conta numa investigação filosófica, por isso esta sempre
prossegue – e mesmo sem novos elementos, o filósofo prossegue numa meditação contínua
sobre o material que já tem em mãos, que pode ser sempre alvo de reflexão sobre novos ou
mais vastos pontos de vista –, ao contrário da obra literária que é caracterizada precisamente
por ter uma forma acabada.

Hoje parece que a função do filósofo é produzir obra escrita, mas isso é uma exigência
da profissão filosófica quando enquadrada na universidade, em que o sujeito se vê obrigado a
mostrar resultados, tal como fazem os professores de física ou de biologia. Mas é sintomático
que Sócrates não tenha deixado nada escrito e que ainda no século XX o filósofo Petre Țuțea
também se tenha resumido quase inteiramente ao ensinamento oral. A própria realização de
livros é muito lenta, sendo a exposição oral muito mais rápida. Alguns dos trabalhos mais
importantes de Hegel, Husserl ou Bernard Lonergan têm por base transcrições de aulas. α96

288. As relações entre linguagem e realidade


A partir do momento em que Kant isolou os produtos do conhecimento e os explicou
como sendo criações do nosso aparato cognitivo, isto marcou a modernidade e a pós-
modernidade, que têm como um dos seu traços principais um abismo entre realidade e
linguagem (ou pensamento). Kant achava que do mundo exterior apenas tínhamos
experiências sensíveis, mas estas chegavam caóticas, sem forma alguma. Seria a nossa mente
a ordenar aquilo, mas sem garantias do resultado corresponder a algo do mundo exterior.

O hiato entre pensamento e realidade já vinha de Descartes, que com a sua dúvida
sistemática punha tudo em dúvida menos o eu que fazia tal operação. Assim, criava-se o
abismo entre esse eu e a realidade. David Hume foi mais além e disse mesmo que não
encontrou forma de provar a existência de um eu que se pensa, apesar de acreditar na sua
existência. Ele levou a sério o eu cartesiano mas percebeu que o eu que se pensa não prova,
só por isso, a sua própria substancialidade. Podem ser apenas estados momentâneos que
estão aqui envolvidos. Então, em Hume já é mais do que um hiato entre pensamento e
realidade, é um fosso entre o homem enquanto sujeito pensante e o homem enquanto sujeito
existente. Mais tarde a psicanálise veio dizer que a verdadeira substância é inconsciente, é o
id. Mas tudo ainda ficou mais etéreo com a linguística moderna, para a qual todos os
pensamentos são como se fossem meras convenções linguísticas que devem prevalecer sobre
a percepção de realidade. A separação entre pensamento e realidade ficou radicalmente
afirmada no desconstrucionismo, que diz que aquilo que pensamos saber não passa de uma
combinação de palavras que montamos mentalmente e que realmente só sabemos o que diz o
dicionário e a gramática, sendo tudo o resto suposição ou imaginação.
350

Toda esta linha de pensamento não apenas tem um evidente carácter patológico como
devia logo suscitar a questão de saber se todos estes filósofos acreditaram no que diziam ao
ponto de ajustarem em conformidade as suas acções na vida real.

Kant dizia que apenas temos conhecimento nos fenómenos e não da coisa em si, mas
percebemos que escreveu livros para compreendermos a sua filosofia em si e não apenas o
seu aspecto fenoménico.

David Hume dizia não ver uma causa quando uma bola de bilhar se move e embate
noutra, via apenas dois momentos. Na realidade, ele viu um facto único, mas depois
seccionou abstrativamente os pedaços, porque não é verdadeiramente possível dizer onde
termina o movimento da primeira bola e começa o da segunda. A continuidade do processo é
o que chamamos de causa, mas como Hume operou abstractivamente um corte, ele não
conseguia ver causa alguma. Obviamente que o que ele fez foi inverter a história do evento.

Vemos a linguística moderna afirmar que a estrutura da linguagem nada tem a ver
com o mundo exterior. Mas se observarmos com alguma atenção, vemos que quase todas as
línguas ocidentais têm uma estrutura de sujeito, verbo e objecto, e que corresponde
precisamente à estrutura de qualquer facto ocorrido, mesmo no caso de uma acção reflexiva,
em que o mesmo indivíduo é sujeito e objecto, embora sejam papéis distintos na acção (a
diferença fica brutalmente evidenciada no caso do suicídio). Para certos linguistas isto é
apenas uma projecção, mas se não conseguíssemos fazer uma distinção de sujeito, acção e
verbo numa situação física também não iríamos conseguir distinguir estes termos na
gramática pura. E também sabemos distinguir perfeitamente o que é fazer uma coisa do que é
dizer fazer essa coisa. A linguagem só ganha autonomia enquanto objecto depois de um
grande esforço de abstracção, porque naturalmente sempre esteve junta à realidade. Se
percebemos algo da realidade é porque ao mesmo tempo já percebemos ali implícita uma
estrutura gramatical e lógica. Podemos também fazer uma reflexão posterior sobre o que
fizemos e considerar apenas os nossos actos mentais separados do facto, mas é uma
separação que não existe em si mesma. O que a linguística faz é inverter isto: começa por
considerar que a separação é real e depois conclui que a junção é uma projecção.

A estrutura da linguagem é a própria estrutura da realidade em “miniatura”. A


adequação da linguagem à realidade não pode ser completa, porque não podemos saber tudo,
e do que sabemos apenas conseguimos dizer uma pequena parte. Isto não é uma inadequação
fundamental mas apenas um coeficiente de erro derivado da incompletude, que não é tanto
da linguagem mas mais da nossa condição de seres mortais. Cada um de nós tem um
conjunto de experiências limitado e apenas pode falar uma parte do que sabe, mas isto não
limita o que outros podem saber e dizer e menos ainda limita o que Deus sabe.

O físico David Bohm, no livro Totalidade e Ordem Implícita, diz que o único tempo
verbal admissível seria o gerúndio, porque só vemos processos. Se assim fosse, não haveriam
acções terminadas. Tudo o que conhecemos tem uma estrutura temporal, e ela mesma exige
uma diferenciação entre substância e acção: o agente é uma substância que permanece a
mesma durante a acção. Esta diferenciação implica a necessidade de uma diferenciação
gramatical de sujeito e verbo. Então, as estruturas fundamentais da gramática e da lógica
estão imbricadas na própria estrutura da realidade.

O facto já tem na sua estrutura a possibilidade da sua própria percepção, ao menos


teórica. Além disso, qualquer acção que afecte um objecto introduz novas informações nele,
351

ou nada teria ocorrido. Sendo a percepção a recepção de uma informação, então, ela já é
inerente à estrutura da acção.

Dizia Heráclito que “tudo flui”, e isso implica que apenas podemos fazer afirmações
literais sobre a estrutura da realidade na forma de narrativas. Somente de forma analógica
podemos expressar dados constantes e permanentes. O sujeito tem uma certa permanência
em relação à acção ou nem conseguíamos perceber o que aconteceu. Numa frase, o sujeito é
tomado como se fosse permanente, mas é uma constância relativa, dado também ele estar
continuamente se transformando. Podemos, então, descrever o mundo de duas formas: pela
narrativa, imitando a estrutura temporal da acção; ou de maneira descritiva, em que todo o
transcurso temporal é colocado numa moldura eterna. Mas a moldura eterna não é invenção
nossa, na realidade só podemos ver as coisas pelo aspecto temporal porque as conseguimos
ver na eternidade. Por mais ampla que seja a narrativa, ela é sempre incompleta e apenas a
sua visão na escala de eternidade garante o seu encaixe na realidade, o que também dispensa
as narrativas de terem de ser completas. A eternidade é o “lugar” em comum que temos com
outras pessoas e que possibilita que elas confrontem a nossa narrativa com outras narrativas
e com a escala de eternidade.

A totalidade do acontecer é a narrativa divina, que engloba tanto a formação de


galáxias como o rolar de um minúsculo grão de areia monte baixo. Todas as nossas narrativas
são incompletas e, por isso, apenas parcialmente verdadeiras ou só verdadeiras
analogicamente. Em qualquer narrativa são omitidos incontáveis detalhes e acidentes que
estiveram de estar presentar para que se desse o facto concreto. Apesar de não podermos
incluir todo este material na nossa narrativa, se não estivermos abertos para ele vamos
confundir o acontecimento com a narrativa verbal. O que garante a realidade das nossas
narrativas é a abertura para a narrativa divina, onde toda a narrativa humana decorre e se
pode completar. Ou a eternidade abrange tudo ou ela não é eterna de forma alguma. Tudo
está eternamente na eternidade, pelo que o abismo entre tempo e eternidade só existe desde
a perspectiva temporal. A nossa capacidade de fazer previsões acertadas a partir de certos
dados expressa esta abertura para a totalidade do acontecer.

Deus não apenas faz esta narrativa total como também criou uma sua forma verbal
com a Revelação. Diz Cristo que os céus e as terras passarão mas as palavras d’Ele não. O
guiamento fundamental para compreender a realidade é o texto da Revelação, que é uma
versão abreviada da narrativa divina. O texto revelado é verdadeiro quando se prolonga em
acontecimentos que não estão no texto mas encontram-se na narrativa divina. Então, o que
garante a veracidade do texto não é a avaliação dos teólogos mas a acção divina no mundo
observável. Se existe uma sequência de milagres inteiramente coerentes com o texto da
Revelação, isso atesta que esta veio de Deus. O milagre não pode ser entendido como uma
ruptura das leis naturais ou como um acontecimento extraordinário. Ele tem uma coerência
total com o texto da Revelação, e tem de ser considerado na sua totalidade, sem deixar algum
aspecto de fora. Logo, não tem sentido isolar os aspectos correspondentes às várias ciências e
estudá-los isoladamente, porque o carácter miraculoso revela-se precisamente na conjunção
inseparável dos vários aspectos. Sem o senso do facto concreto não é possível compreender
um milagre, que é uma conjunção de factores essenciais e acidentais absolutamente
inseparáveis.

A narrativa tradicional cristã foi substituída por outra narrativa na modernidade, que
diz que os factos de ordem material acontecem por si sem que exista alguma causa
transcendente. Assim, o mundo material à nossa volta já não tem mais nada a ver com o que
352

pensemos dele. Os produtos culturais (mitos, lendas, obras literárias, etc.) passam a ser
vistos apenas como processos interiores alheios à realidade do mundo externo. Só a ciência
moderna, através de Newton, teria dito pela primeira vez algo a respeito do mundo exterior.
Obviamente que esta narrativa moderna é falsa. Não teria sido possível aos seres humanos
viverem durante milénios se o pensamento deles não tivesse ligação nenhuma à Natureza e se
esta nada comunicasse.

Na realidade, a estrutura do pensamento e da linguagem humana tem uma ligação


íntima e profunda com o acontecer externo. Nada é totalmente externo ou interno, que são
conceitos que apenas reflectem uma diferença relacional e não são formas diferentes da
substância, como pensava Descartes, para o qual havia uma substância pensante e uma
substância extensa. A actividade mais constante do ser humano é perceber significados do
mundo exterior, e é disso que se constituem os sistemas mitológicos que aparecem em todas
as culturas. Os sistemas mitológicos são verdadeiros no sentido em que expressam algo da
relação profunda entre a alma humana e o mundo exterior. A narrativa cristã também é
mitológica, dado que tem muitos significados, mas ela ajusta-se à realidade mediante
conteúdos factuais que continuam ocorrendo. A concepção científica da Natureza também faz
parte de um sistema mitológico, apenas com a diferença de que este escondeu as suas origens
e os seus fins, que visavam substituir a narrativa cristã. α96

[Aula 97]

289. Leituras formativas essenciais para os alunos do Curso Online de


filosofia
Os dois primeiros anos do Curso Online de Filosofia serviram sobretudo para dar aos
alunos uma inspiração para a vida de estudos filosóficos. Para isso é fundamental o contacto
com um filósofo que exemplifica o seu próprio desenvolvimento e o das suas ideias. Isto é
assim porque o talento filosófico é independente da capacidade de auto-didatismo e, em
geral, é necessário aprender com alguém, que aprendeu com alguém, até chegar a alguém que
aprendeu sozinho.

A partir desta inspiração, os alunos devem partir em busca da aquisição de cultura


filosófica. No livro A Vida Intelectual, o padre Sertillanges divide as leituras em quatro tipos:
inspiracionais; formativas; informativas; e de diversão. Excluindo estas últimas, que não
precisam de grandes comentários, vemos que as leituras inspiracionais correspondem aos
primeiros anos do curso, onde se tentou depertar a curiosidade e a vocação filosófica,
fortalece-las, assim como fortalecer o carácter e personalidade dos alunos, para que estes
tenham a constância, a fibra e a obstinação necessárias para encontrar algo da verdade.

Agora enfocamo-nos sobre as leituras formativas e informativas. Nesta perspectiva, os


livros filosóficos devem ser lidos como modelos que devemos incorporar não só de técnica
filosófica mas também de clareza e até de genialidade filosófica. Não são livros para
subscrevermos o conteúdo mas antes eles fornecem-nos procedimentos filosóficos dignos de
serem imitados, exemplificando maneiras exemplares de colocar as perguntas fundamentais
e como buscar as respostas. Estes livros são obrigatoriamente de leitura directa, lenta e
353

meticulosa. Alguns destes livros serão lidos por nós dezenas de vezes ao longo da vida,
porque sempre vamos retirar coisas deles.

Há livros que também são exemplares como pseudo-filosofia ou até anti-filosofia, e


que devem ser conhecidos quando tiveram uma grande influência no curso da História. Os
indivíduos que se enquadram nestes casos não dominam a técnica filosófica, confundem os
conceitos filosófico-científicos com figuras de linguagem. Mesmo que sejam autores de
grande erudição e que até sejam impressionants sob certos aspectos, eles realmente não
sabem o que estão fazendo. Nem sempre é necessária a leitura directa destes livros, que
podem estar bem resumidos em ensaios menores ou sobre os quais as histórias da filosofia
podem oferecer informação suficiente.

Por outro lado, existem autores que podem ter dito algumas coisas importantes, como
Giambattista Vico, mas cujos livros não são primores de técnica filosófica, pelo que a leitura
atentas das suas obras não faz parte da formação filosófica.

Para que as leituras formativas sejam proveitosas, é necessária alguma informação


filosófica complementar. Para tal, é recomendável seguir a História Essencial da Filosofia, de
Olavo de Carvalho. Ali procurou-se seguir uma estrutura constante – que permite chamar a
um conjunto de esforços uma filosofia – ao longo da da História. O ponto de partida da
filosofia assumida foi Sócrates, sendo o primeiro exemplo onde a filosofia adquiriu uma
identidade consciente e declarada. A filosofia não nasceu pronta mas sergiu como um
conjunto de perguntas e como um projecto a ser continuado para respondê-las, que cada
filósofo empreende na medida dos seus esforços até ao último dia da sua vida. Existem
muitos movimentos que se desviaram do projecto socrático ou que até se opuseram a ele, mas
que podem ser integrados na história da filosofia como matéria de investigação, embora não
podendo ser entendidos como actividade filosófica, ou seja, são apenas fornecedores de
matéria para reflexão. O material da História Essencial da Filosofia, que enfoca a
continuidade do projecto socrático, deve agora ser usado sobretudo com um intuito
pedagógico, como fornecedor de subsídios para a compreensão de obras modelares.

Uma obra modelar em filosofia é aquela em que o filósofo colocou questões e fez com
que a clareza do conhecimento prevalecesse sobre a nebulosidade do real. Trata-se de um
briho fugaz. Platão dizia que o homem capaz de apreender o todo merece o nome de
dialéctico, sendo a dialéctica o método essencial da filosofia. Quem não percebe o todo não
entende as dificuldades mas realmente apenas Deus é dialéctico. A existência da filosofia
prova que os seres humanos são capazes de apreender algo do todo e que a filosofia é uma
actividade inspirada por Deus de certo modo. Existem momentos de inspiração em que os
homens percebem muito mais do que aquilo que poderiam dizer, mas podem transmitir algo
daquilo para que outros possam refazer a mesma experiência, ou seja, o que começou como
uma inspiração deve completar-se com outra inspiração. Dificilmente a nossa inspiração
coincidirá com a do filósofo, porque veremos as coisas noutra escala, noutra época, sob
ângulos diferentes, mas não teremos realmente feito a leitura se não nos abrirmos para a
inspiração original.

Primeiro, temos de ultrapassar a malha do texto e não nos deixarmos atrapalhar por
dificuldades linguísticas. Mas a filosofia não está realmente no texto, ela é aquilo que o
filósofo percebeu, a busca em que se empenhou, os actos cognitivos reais praticados por ele e
que nós também podemos repetir em certas condições. O texto pode nos abrir para esta
354

experiência mas também pode dificultar, porque o filósofo pode não ter grandes habilidades
verbais.

De seguida temos uma lista mínima de obras de filosofia com uma função modelar. Se
queremos aprender a filosofar, temos de o fazer como os filósofos expressam de algum modo
nestes livros. As leituras devem ser feitas como se tivéssemos romances em mãos, pelo que
temos de operar a “suspenção da descrença”. Estamos assistindo a um drama intelectual
relacionado com a busca da verdade em relação a determinados pontos, tendo nós um
envolvimento não directo mas imaginário, tal como a pessoa que assiste a uma peça de
teatro. Antes de tentar saber se as ideias correspondem à verdade ou não, temos de nos
impregnar delas como possibilidades, tal como nos impregnamos das emoções das
personagens de ficção sem que aquilo faça parte da nossa vida real. É uma experiência
estética que depois permite uma compreensão analítica muito mais apurada. Claro que a
abstenção total de julgamento é impossível, até por ser algo quase automático, mas temos de
tomar estes julgamentos como provisórios e apenas como elementos da composição da
experiência de leitura.

a) A República, de Platão. A questão do regime ideal permite tocar de passagem muitas


questões filosóficas. Platão não faz uma proposta política mas apresenta uma investigação
hipotética de um regime ideal, usando frequentemente um tom irónico.

b) Leis, de Platão. Trata-se de um livro longo e com análises minuciosas de questões cuja
importância pode nos escapar. A importância real do livro só se revela no final. Existem
outros diálogos platónicos com muita importância mas com A República e as Leis já obtemos
muita coisa, sobretudo a respeito do jogo dialéctico. Noutra aula, Olavo de Carvalho,
seguindo a sugestão de um aluno, disse para começarmos as nossas leituras formativas por
outros diálogos de Platão: Apologia de Sócrates e Fédon [294]. São leituras que nos dão uma
boa imagem do projecto socrático.

c) Metafísica, de Aristóteles. Enquanto os diálogo de Platão já estão montados como peças de


teatro, facilitando a impregnação imaginativa, quando passamos para Aristóteles as coisas
tornam-se mais difíceis. Dele sobraram apenas notas de aula, que depois seriam
desenvolvidas em maior detalhe. Então, podemos imaginar precisamente um professor
descompactando aquele material e, assim, tentamos imaginar o drama intelectual que
Aristóteles passou para ter colocado as coisas daquela maneira. Temos um monólogo mas
que pode ser transformado num diálogo, porque a argumentação é montada sobre uma
confrontação de hipóteses, como se o filósofo se tivesse desdobrado em dois, um afirmando e
outro negando. É esta a forma de dramatizarmos o texto de Aristóteles.

d) Confissões, de Santo Agostinho. Aqui temos um indivíduo contando a sua história, não
apenas apenas as suas ideias mas remontando ao fundo existencial e quase irracional de onde
elas se foram formando. É um livro de memórias de onde surgem alguns momentos
brilhantes da filosofia universal, e que são tratados dentro do tecido existencial do autor, pelo
que não é muito difícil fazer o trabalho de imaginação.

e) Suma Contra os Gentios, de São Tomás de Aquino. A estrutura é semelhante à da Suma


Teológica, com a colocação de uma pergunta, depois os argumentos a favor de uma resposta
e em seguida os argumentos de apoio a outra resposta, e o assunto vai sendo elaborado. Cada
capítulo é um drama intelectual inteiro, e embora se encontre exposto em linguagem técnica
e fria, podemos acrescentar algo concebendo as consequências da adesão a uma resposta ou a
355

outra, vendo as consequências na nossa conduta, nos julgamentos que fazemos de nós
mesmo ou da vida, e assim por diante. O fim de cada “drama” serve de fundação para a
pergunta seguinte e aquilo que fica de fora do drama é o que o fundamenta. Enquanto a
Suma Teológica é dirigida aos fiéis católicos e pode apelar à autoridade da Bíblia e da
tradição católica, a Suma Contra os Gentios é dirigida a outro público (judeus e
muçulmanos), pelo que a argumentação é mais puramente filosófica.

f) De Primo Principio, de John Duns Scot. É uma das grandes obras da metafísica universal e
também muito difícil de ler, devendo a leitura ser muito lenta. Neste livro está sempre
presente a tensão entre o filósofo enquanto pensador humano e o filósofo como receptor de
uma inspiração divina, e é isto que nunca devemos perder de vista.

g) Discurso de Metafísica, de Leibniz. Aplica-se a generalidade dos comentários anteriores.

h) Filosofia da Revelação, de Schelling. Aparece a mesma tensão, que se nota em chamadas


de atenção como quando o filósofo diz para não desprezarmos o princípio de identidade
porque este é Deus.

i) Investigações Lógicas, Edmund Husserl. É importante apenas a introdução para os fins em


causa.

j) A Crise das Ciências Europeias, Edmund Husserl.

Nestas leituras encontra-se algo do máximo da inteligência filosófica possível


trabalhando as questões mais difíceis. A História Essencial da Flosofia fornece elementos
complementares. α97

290. Autores tidos como desconhecidos


A acusação que dirigem com frequência a Olavo de Carvalho de citar “autores
desconhecidos e obscuros” é um argumento suicida, uma confissão de ignorância mas muito
persuasiva para outros ignorantes. Para estudantes e intelectuais brasileiros não é concebível
ir em busca dos tais “autores desconhecidos”, até porque se escandalizam quando lhes dizem
que devem ler pelo menos oitenta livros por ano para serem dignos de serem estudiosos
sérios. Percebe-se que, no fundo, acrecitam que um autor só deve ser citado como
argumentum auctoritatis e, assim, ficar colado a um prestígio reconhecido por uma classe
medíocre, mais composta por jornalistas do que por intelectuais.

Mas este “autores desconhecidos” que Olavo de Carvalho dá a conhecer podem, na


realidade, ser grandes filósofos reconhecidos internacionalmente, como Eric Voegelin,
Bernard Lonergan, Xavier Zubiri, Eugen Rosenstock-Huessy, Constantin Noica, Lucien Blaga
ou mesmo o nacional Mário Ferreira dos Santos. Podem ser também pesquisadores
universitários respeitados no círculo dos especialistas, e não se percebe como podem ser
apelidados de “desconhecidos” se eles povoam a bibliografia das teses universitárias. São
ainda autores que foram injustamente esquecidos mas que tiveram repercurssão em outras
épocas, como Stanton Evans, Ivan Ilitch ou Arthur Koestler, mas que para muita
intelectualidade actual são autores que podem permanecer no ocaso porque imaginam que o
mundo começou com eles. São ainda autores sem grande relevo mas que podem ajudar a
compreender certos pontos, e não aparecem como autoridades mas apenas como
testemunhas para validar os factos.
356

Longe vão os tempos em que o intelectual era tido como aquele que buscava a verdade
e como aquele que desse a conhecer ao público algo que este não sabia, porque agora trata-se
apenas de repetir as mesmas opiniões de sempre, mas dando ares de estar a dizendo grandes
novidades. Cada um toma a sua própria ignorância como padrão obrigatório de
conhecimento. As camadas mais educadas vivem num circuito fechado, não se abrindo a
mais nada que não seja o que elas mesmas repetem. Face a este panorama, no futuro pode ser
mais eficaz aos alunos do Curso Online de Filosofia eleger como público os mais pobres, para
começar a educa-los desde o início, porque os universitários já adquiriram um conjunto de
incapacidades invencível. William Hazlitt já tinha falado das desvantagens da superioridade
intelectual: se nós entendemos o argumento do adversário mas ele é incapaz de entender o
nosso, então, ele já ganhou. A única coisa que podemos fazer é bater no sujeito, e se não
tivermos recursos para isso temos de voltar costas e ir para casa. α97

291. A busca da verdade


A primeira questão filosófica provavelmente prende-se com a identificação e busca da
verdade. Experiências neste sentido costumam ser decepcionantes e fazem as pessoas
desistir, caindo no cinismo ou em algum tipo de acomodação. O erro mais frequente é tentar
logo encontrar a verdade no seu sentido mais universal, mas toda a gente tem alguma
experiência de busca da verdade que pode servir de base ao método filosófico.

No seu sentido mais imediato, a verdade resume-se à sinceridade, à confissão dos


nossos verdadeiros intuitos. Não se trata de um auto-conhecimento no sentido de sabermos
qual o segredo da nossa vida, mas significa focarmo-nos em questões que estão ao nosso
alcance e que tenham importância existencial para nós. A primeira condição para a busca da
verdade é precisamente encontrarmos a nossa voz própria e termos a certeza de estarmos
falando de algo que conhecemos. Antes de pensarmos em encontrar a verdade, devemos
garantir que não traímos as verdades que já sabemos, o que nos remete ao método da
confissão [7, 160]. Sócrates partia da confissão de que ele mesmo não sabia a resposta às
questões. É importante sabermos como certas opiniões chegaram até nós. É necessário
fazermos a nossa auto-biografia intelectual contando a origem das nossas ideias, e para fazer
isso é preciso reflectir a respeito. Então, a primeiro condição de busca da verdade pode se
resumir à sinceridade. Mas não é a sinceridade de dizer o que nos passa pela cabeça naquele
momento, que pode apenas uma acção teatral, tem de ser uma sinceridade interior que
implica recordar, reflectir e meditar, e implica saber que não podemos mudar mais o que já
decorreu.

Uma coisa má que fizemos, vergonhosa, pode ser importante para esta investigação,
porque não contamos aquilo a ninguém e, assim, somos o único critério de veracidade
daquilo: ao mesmo tempo somos o sujeito da acção, o sujeito da narrativa e aquele que está a
meditar sobre o ocorrido. Temos que distinguir o sucedido de interpretações a respeito e de
acréscimos auto-justificadores, que até podem ter sentido mas não podemos deixar que
modifiquem a história. A vergonha que temos deve ser apenas perante nós mesmos e perante
Deus, por isso devemos averiguar se não é uma vergonha que subentende um certo público
imaginário que tem um determinado critério. Isto é um demónio acusador que nos força a
nos defendermos. Este tribunal interior não busca a verdade, apenas a culpa e a inocência, e
nunca termina, sempre oscilando entre acusação e defesa, e ele mesmo é o caminho da
falsidade.
357

Para contarmos a história com sinceridade temos de nos afastar deste tribunal
interior e, sem medo, confessarmo-nos perante Deus, que não está ali como um juiz mas mais
na posição do médico a quem contamos os nossos sintomas e, assim, Ele nos cura. A
discussão moral interior pode atrapalhar bastante a busca da verdade, mas temos de lembrar
que o nosso ouvinte é justo, bondoso e que nos compreende melhor do que nós mesmos.
Perante Deus apenas temos uma vergonha esperançosa, não é aquela vergonha perante uma
plateia de escarneadores, porque Deus realmente não nos julga, perdoa-nos e saímos limpos.
Podemos verificar experimentalmente que só conseguimos contar a história verdadeira se
passarmos do tribunal humano (os “pensamentos ociosos” de que fala a Bíblia) para o
julgamento divino, porque sem inspiração divina não conseguimos.

O mais importante que vamos descobrir sobre a verdade encontra-se neste processo
de auto-descoberta, em que passamos de um nível de discurso para outro nível de discurso.
Nenhum tratado de metodologia científica pode nos ensinar isto, e eles mesmos têm a sua
validade condicionada a esta verdade prévia, que envolve a sinceridade e a idoneidade do
testemunho. No fundo, trata-se do método da confissão descoberto por Santo Agostinho, mas
que Sócrates já usava a seu modo e que vemos que é ainda a base da fenomenologia de
Husserl, que pretende descrever um objecto tal qual ele se apresenta, sem os acréscimos e
interpretações. Sem o método da confissão a fenomenologia também não vai resultar.

No fundo, todos os grandes filósofos acabam por usar o método da confissão, a que
dão os seus próprios acréscimos. Só avançamos para saber o desconhecido tendo noção do
que sabemos, e já Aristóteles dizia que o conhecimento vai do mais conhecido para o menos
conhecido. O sujeito do conhecimento é como uma lente, que tem que ser limpa ou vão
aparecer as suas manchas. Esta limpeza corresponde à distinção que Husserl fazia entre o
que aconteceu, o que é a nossa realidade e quais são as nossas interpretações. Estas últimas
até podem ser legítimas mas já é uma deformidade confundi-las com o facto. O facto é aquilo
que já não pode ser mudado, pelo que alguma coisa que ainda está decorrendo e é
modificável não é um facto ainda, é a sua produção, que pode tomar várias direcções até ele
ficar fechado. Temos também de meditar sobre as situações que se fecham para sempre, não
temos como voltar a elas mas fazem um destino. Elas estão para nós como a natureza física,
já não fazem mais parte do nosso processo interior, materializaram-se e fazem parte do
quadro imutável da nossa vida. Isto permite-nos ter uma ideia do coeficiente de liberdade e
de determinismo na nossa vida, e depois disso é leviano discutir a questão apenas
teoricamente. α97

[Aula 98]
292. Clubismo intelectual e cultura verbal (“gostosão intelectual”)
Existem algumas filosofias prontas às quais basta aderir da boca para fora (o
Facebook é um excelente meio para tal) e logo o sujeito começa a julgar as filosofias alheias,
sentindo-se um “gostosão intelectual”. Uma destas correntes é o marxismo, entendido em
sentido lato, ao qual se pode aderir mesmo sem alguma vez ter lido uma obra de Marx, mas
que dá um reconforto de pertencer à parte mais progressista e iluminada da humanidade.
Outra linha é a do aristotelismo-tomismo, que também dispensa contacto com os mestres,
358

basta frequentar a paróquia e logo se tem uma autoridade para condenar os hereges. Uma
escola com alguma importância pública é o liberalismo iluminista-materialista-cientifista,
que para ser um expoente do mesmo basta ter lido o Dicionário Filosófico, de Voltaire, a
Sociedade Aberta e Seus Inimigos, de Popper, e ter acompanhado algumas polémicas de
Richard Dawkins. Podemos dizer que o positivismo perdeu a sua força autónoma e foi
absorvido por esta terceira corrente. Existe uma quarta corrente de ideias, a dos
tradicionalistas guenonianos, evolianos e duguininianos, mas que ela mesma se vota ao
elitismo por submeter os seus membros à prática do segredo iniciático.

Quem não tenha dissolvido a sua individualidade num destes quatro grupos e, pior
ainda, ainda teime em estar apegado a práticas como a filosofia, a teologia, a ciência ou a
sabedoria esotérica será chamado pelo primeiro grupo de “fascista”, pelo segundo de
“herético, pelo terceiro de “fanático religioso” e pelo último de “profano”. Todos os membros
destes grupos concordam com a superioridade da solidariedade grupal sobre a pretensão
individual de investigar a verdade da situação concreta. Fora deste quatro “clubes” considera-
se que não existe vida intelectual, que passou a resumir-se a uma actividade classificatória
das ideias consoante a proximidade ou afastamento daquilo que diz o grupo de referência.

Obviamente que a averiguação da concordância de proposições ou ideias com os


parâmetros de certas escolas de pensamento é uma actividade puramente verbal, semântica,
e que nada tem a ver com a realidade das coisas. Isto é apenas um actividade de análise de
textos, mas a falta de consciência da distância entre palavras e factos indicia um fraco nível
de alfabetização. As crianças durante muitos anos não têm capacidade de verificar a ligação
objectiva entre palavras e realidade, há primeiro uma imersão na linguagem, o aprendizado
das regras, e o resto da vida levamos a completar isto com a experiência. Mas há muitas
pessoas quem nem se preocupam em buscar a realidade, simplesmente vão acumulando mais
palavras para poder converter umas noutras, e no final podem acreditar que estas são
objectos concretos, como na escola literária do concretismo. No limite temos o
desconstrucionismo, que diz que o texto não têm referência à realidade, apenas a um outro
texto, sem esquecer que este é também um elemento da realidade, que foi impresso e assim
por diante.

A identidade grupal que estamos a ver deriva de uma identidade verbal, isto é, não
passa de uma capacidade de repetir as mesmas frases e de fazer certas variações em torno
para obter um reforço social e psicológico. O tipo que diz “eu sou marxista” ou “eu sou
liberal” apenas tenta proferir uma profecia auto-realizável. Isto é um sintoma psicótico e nem
se confunde com o antigo defeito de possuir apenas cultura livresca, hoje é apenas uma
cultura verbal, mas que é muito atractiva porque é uma forma de fazer amigos, reunir
influência, ter um grupo de referência e até um sentimento e uma segurança associados.
Contudo, quase tudo na nossa experiência chega-nos sob a forma de coisas e não de palavras.
Se os elementos do mundo exterior não entrarem forçando a linguagem a se ampliar, a se
modificar e aprofundar, então, a linguagem estabiliza-se e as pessoas vão dizer sempre a
mesma coisa.

Nas quatro correntes listadas, nota-se que há pouco interesse em conhecer a própria
tradição e um grande desejo de julgar as tradições alheias. Um verdadeiro aristotélico-
tomista levaria pelo menos 10 anos a absorver esta tradição. De forma idêntica, há
pouquíssimas pessoas que estão nominalmente dentro do marxismo e que estudem Karl
Marx, mas todos condenam enfaticamente qualquer um que ponha em causa qualquer ideia
marxista. São escolas de pensamento que se divorciaram definitivamente do conhecimento, é
359

tudo uma actividade teatral, histriónica, algo que decorre do desaparecimento da cultura
superior, o que possibilita todo o tipo de perversões. α98

293. A estrutura narrativa da realidade


A experiência de estar dentro de um universo, concebido como uma totalidade finita
ou ilimitada, foi durante milénios traduzida sob a forma de narrativas míticas. Tratavam-se
de histórias em que as personagens, mesmo que fossem deuses, heróis, anjos, demónios,
fadas, duendes, etc., tinham essencialmente um comportamento humano (faziam escolhas,
tinham preferências, não eram totalmente previsíveis, comiam, bebiam). Inclusivamente, o
núcleo da mitologia grega, que faz a narração da criação e o conflito entre os deuses, é a
descrição de acções que se podem dizer humanas.

Depois ocorreu na Grécia uma mutação, e a expressão da realidade última já não foi
cristalizada numa narrativa mas em afirmações sobre o ser. Passou-se do tempo passado,
usado nas narrativas, para o tempo presente, mas o presente eterno. Quando Parménides diz
que “o ser é, o não-ser não é” isto não se refere a um momento do tempo, é uma fórmula
metafísica permanente e imutável; é o contrário do acontecer, porque aquilo que acontece
começa e termina, mas o ser nunca cessa. Então, por trás das narrativas era agora
vislumbrada uma realidade mais permanente, transcendendo tempo e espaço.

Apareceram várias fórmulas metafísicas e nunca foi possível chegar a um consenso. A


partir do século XVI deu-se outra mutação, como que cedendo à dificuldade em chegar a uma
única formulação metafísica. Ao invés de tentar abranger toda a realidade, o foco incidiu só
na parte da chamada Natureza física. Na realidade, nunca alguém provou que era possível
descrever a Natureza física sem referência ao ser humano que a habita, ou seja, descrever a
Natureza como uma coisa separada. Uma coisa é uma realidade que pode ser facilmente
reduzida a uma fórmula que expresse o seu carácter repetitivo, e idealmente os elementos da
Natureza expressam-se mediante fórmulas matemáticas. O fim último do cientista é chegar a
uma descrição estática e fechada daquilo que ele chama de universo ou Natureza, sobre o
qual tem total controlo intelectual. As fórmulas constantes permitem ter um controlo
intelectual das coisas, o que abre a possibilidade de um controlo tecnológico, e assim parece
que a natureza das coisas é estarem sob domínio dos seres humanos.

Contudo, o que se acontece quando se passa das coisas para os entes vivos? Nunca
confundimos uma pessoa com uma coisa. Podemos escrever um poema em que uma árvore
fala mas sabemos que se trata de uma alegoria, ou então temos alguma patologia. Os animais
são seres intermediários, com algo de coisa e algo de gente. E eles distribuem-se numa escala,
havendo alguns mais parecidos com coisas e outros mais parecidos com os seres humanos,
como os macacos e os cachorros. Contudo, já temos uma descrição genética de algumas
espécies animais, que assim podem ser cruzadas e gerar novos seres. Então, passou também
a ser próprio da natureza animal estar sob domínio humano, não apenas intelectual mas já
tecnológico.

A tendência dos últimos séculos de desviar o foco de atenção da realidade como um


todo para a parte chamada Natureza veio acompanhada com outra tendência subtil de
acreditar que a totalidade da realidade tem a natureza de coisa e não a de uma história
humana, como se verificava na mitologia. Não há qualquer prova disto, mas é a base de que
todo o cientista parte para o seu desígnio de chegar a uma explicação global da realidade.
360

O que o estudo das narrativas míticas nos diz é que o mito é o quadro supremo de
todo o pensamento humano, incluindo o pensamento científico. O pensamento mítico não
pode ser superado simplesmente porque não existe algum outro que seja mais amplo que ele.
A ciência pode recuar até à origem da matéria, mas chega à conclusão que havia um conjunto
de forças e não tem como lidar com isso, porque estas forças não são um nada. Então, temos
de recuar e usar outros meios que não são os científicos. No final chegamos a um mundo
mitológico e ao início da própria Bíblia, que diz que no início era o Logos. O pensamento
mitológico conta tudo sob a forma de narrativas, que não se dão entre coisas mas entre forças
dotas de identidade, liberdade de acção e consciência de si mesmas, ou seja, de forças que
agem como seres humanos. Não há forma de superar a concepção antropomórfica do
universo. A realidade não pode ser reduzida a fórmulas matemáticas ou metafísicas, nem
sequer a leis, porque a realidade não é uma coisa. Deus transcende as suas próprias leis.

Contar histórias é a actividade mental mais constante desde sempre. Em comparação,


a actividade explicativa é quase nula. Mesmo a teoria do Big Bang é uma narrativa, não pode
ser compreendida como uma constante. A cultura moderna criou a ilusão de vivermos dentro
de uma coisa e não dentro de uma narrativa. Mas quando as narrativas antigas são removida,
as pessoas vão criar novas narrativas, só que agora completamente falsas, como as mitologias
grupais do marxismo ou do liberalismo materialista-ateísta [292]. Todas as narrativas
pretendem simbolizar a narrativa da realidade, a diferença é que esta última foi escrita por
Deus. As nossas narrativas são válidas quando nos abrem para a realidade, caso contrário
tentam confundir-se com ela, encerrando-nos nos seus limites estreitos. Northrop Frye fazia
a distinção entre mitos e fábulas. Os mitos são símbolos auto-conscientes dentro da narrativa
divina, e as fábulas são histórias que acreditam em si mesmas, e tornam-se falsas quando
pretendem passar por verdades literais. Quando a percepção da totalidade da realidade como
narrativa desaparece, vão proliferar as fábulas de todo o género, literárias, científicas,
cinematográficas, históricas, etc., mas agora o ser humano já não se vê como personagem
mas como um narrador que pode controlar o conjunto como se fosse um demiurgo.

Consideramos legítimo que um romancista faça uma narrativa como símbolo da


narrativa divina, mas achamos que ele enlouqueceu quando se encerrou dentro da sua
narrativa e não vê nada fora dela. Contudo, o cientista faz exactamente isto e não o
chamamos de louco. Mas o cientista quer ainda impor aos outros a sua fábula como
realidade. Daqui derivam as ideologias totalitárias, todas têm origem científica, assim como é
a origem remota das mitologias grupais [292]. Mas nenhum filósofo sério cai neste erro, ele
nunca vai levar a sua filosofia a sério até ao fim, sabe que tudo aquilo é simbólico e que está
trabalhando dentro de uma estrutura mítica que o abrange e da qual ele apenas pode
compreender uma parte. α98

[Aula 99]

294. Leituras formativas sobre o projecto socrático


A História Essencial da Filosofia, de Olavo de Carvalho, tem a ideia do projecto
socrático como fio condutor. Os diálogos de Platão fundamentais que nos dão uma ideia
sobre este projecto e uma imagem muito completa do filósofo são a Apologia de Sócrates e o
361

Fédon. Devemos ler estas obras antes de entrar na lista de leituras formativas indicada
anteriormente [289].

Sócrates nunca aparece nos diálogos como portador de uma doutrina, mas sempre
mostra um esforço de investigação, e no fim termina com uma dúvida. No Fédon, Sócrates
evidencia uma grande confiança na imortalidade da alma, mas também tem consciência de
estar indo em direcção a um grande ponto de interrogação. Sócrates não é um pregador de
uma doutrina pronta mas o inaugurador de um esforço de investigação a ser prosseguido por
um prazo indeterminado. Esta atitude interrogativa é o projecto socrático, e não é apenas
algo próprio ao filósofo mas aquilo que o define. Ao mesmo tempo, é uma atitude que
expressa algo da condição humana, situada por Platão entre o anjo e o animal, o ser que vive
em perpétua tensão entre o conhecimento e a ignorância.

A própria ignorância faz parte da estrutura do conhecimento. O mapa de ignorância


[40, 165] é um elemento fundante do conhecimento, é a delineação do que precisamos de
saber para entender certa coisa. O conhecimento é a resposta a uma pergunta e esta é a
expressão de uma ignorância que sabe que não pode ser totalmente vencida mas que também
não se aceita como tal.

Não é possível elucidar a estrutura última da realidade – o mistério do ser – através


de uma doutrina [293], que é apenas uma série de proposições a este respeito. A resposta é o
próprio acesso à dimensão de eternidade. Todos os relatos de experiências de morte clínica,
dos santos, profetas, do próprio Cristo, mostram que o encontro com a Verdade não se dá sob
a forma de um enunciado, mas há uma experiência de estar numa luz permanente, sem o véu
a que somos submetidos nesta vida. Isso não quer dizer que vamos saber tudo, porque isso
seria abarcar toda a dimensão da eternidade e ser transformado em Deus, o que nunca foi
prometido ou relatado nestas experiências. Mas existe o encontro com as três pessoas
divinas, e isso mesmo é a resposta final, que chega na forma de presenças humanas numa
vivência que tem ainda uma estrutura narrativa, embora muito mais acelerada do que
aquelas que conhecemos. Esta é a única resposta satisfatória que podemos ter, que já tem no
seu acontecer a sua razão de ser, e a doutrina só é válida como um símbolo preparatório para
este tipo de explicação. A experiência do amor humano dá-nos uma imagem da eternidade. O
amor que temos por uma pessoa não pode ter uma explicação acima dele mesmo, ou
automaticamente se anula e seria a periferia de outro acontecimento. O amor é auto-
explicado; é um estado de satisfação existencial e intelectual no qual não faz sentido a
pergunta pela sua razão de ser. Já o ódio precisa de uma explicação, a sua própria experiência
não responde pela sua existência.

Conseguimos entender as doutrinas sobre a vida eterna porque temos acesso a um


conhecimento satisfatório desta, que nos é dado pela própria experiência de vivê-la. Mas se
tomamos a doutrina como um quadro explicativo final, estamos a inverter o cenário e a
doutrina torna-se numa fantasia hipnótica e macabra. Por isso, em Sócrates nunca vemos
uma conclusão doutrinal. Qualquer formulação doutrinal é sempre menos completa do que a
pessoa que a recebe e que passa a ser um elemento dentro desta. A verdadeira explicação não
está na doutrina mas na pessoa, servindo a doutrina como um espelho para a pessoa se
reconhecer como unidade vivente e portadora de um conhecimento potencial da eternidade,
encerrando a doutrina a sua função aí.

Indo de Sócrates para Platão e deste para Aristóteles, vemos que o modo de exposição
filosófico vai passando gradualmente do narrativo para o doutrinal. Contudo, a parte mais
362

importante da doutrina são as perguntas que sobram. A metafísica de Aristóteles repousa


sobre um conjunto de perguntas não respondidas e ele mesmo deixou um livro de questões
como legado. O conhecimento positivo, exposto em modo doutrinal, só ganha corpo quando
visto como um ponto de luz cercado de dúvidas e interrogações, que são possibilidades de
conhecimento. Vemos na Teoria dos Quatro Discursos que o universo de conhecimento vai se
afunilando à medida que se passa do discurso poético até chegar ao discurso lógico, passando
pelos discursos retórico e dialéctico. De tudo quanto existe só uma parte ínfima entra no
mundo da experiência, e desta só uma pequena parte entra na memória; daí, só uma parcela
menor pode ser objecto de discussão e escolha; e continua afunilando para aquilo que pode
ser alvo de investigação filosófica; e no fim só uma parte mínima pode ser objecto de certeza
doutrinal. O que resta e o que foi “perdido” pelo caminho continua numa tensão entre
conhecimento e ignorância, é o mundo da interrogação e, por isso, Eric Voegelin dizia que a
estrutura da filosofia é zetética (de zetesis, busca, interrogação). As conclusões doutrinais em
filosofia só não são falsas quando servem de símbolos iluminadores para criar uma antevisão
de uma certeza final que não chegará doutrinalmente.

Os pré-socráticos buscavam uma resposta definitiva sobre a lei fundamental que rege
o universo, cada um olhando numa direcção específica. Mas a filosofia toma consciência de si
mesma com Sócrates quando este percebe que não há uma resposta definitiva. A Apologia de
Sócrates e o Fédon devem ser lidos com estas coisas em mente.

O esforço filosófico está sempre, de algum modo, relacionado com a busca da verdade.
Ironicamente, Pilatos questionou “Quid est Veritas?” precisamente diante de Cristo, que é a
própria Verdade. Pilatos substituiu a Verdade efectiva, existencial, diante dele para substitui-
la por uma pergunta. Devemos sempre questionar se realmente buscamos a verdade ou se
fugimos dela e se já partimos em busca de uma formulação verbal, de um conjunto de
proposições. A ciência moderna quer nos vender a ideia de que as leis científicas são verdades
sobre a Natureza, mas na realidade são construções mentais que, no caso da física quântica,
versam sobre a materia secunda, uma faixa com existência virtual, intermediária entre o ser
o não-ser (ver o livro O Enigma Quântico, de Wolfgang Smith).

A tendência natural do ser humano é refugiar-se na sua inteligência limitada,


buscando protecção contra a complexidade dos objectos que a transcendem infinitamente.
Isto é um impulso que deriva do medo e não da vontade de buscar a verdade. Todo o
adolescente busca algum tipo de segurança intelectual contra a complexidade do real. Mas ele
pode acalmar, aceitar o seu estado de desprotecção e aí pode descobrir que existe algo
chamado de realidade, que não é um objecto de pensamento, é algo onde estamos. A
maturidade intelectual é este encontro com a realidade, já não é a busca de uma crença
defensiva mas é um ajuste entre a nossa inteligência e o nosso quadro real, aceitando a sua
riqueza, a sua complexidade e inabarcabilidade, e fazendo com que as nossas acções reflictam
estas coisas.

A medida máxima da inteligência humana é a participação consciente e lúcida numa


realidade que ela não pode abarcar. Assim, passamos a prestar mais atenção aos
acontecimentos do que às nossas ideias. No fundo, a pergunta mais elevada que se pode
colocar é esta: O que é que está acontecendo? Podemos responder às questões genéricas
apenas usando o raciocínio, mas perceber o que está acontecendo implica mais do que
raciocínio, envolve percepção, memória, vontade, sentimento e uma disposição permanente
de aceitar a realidade do que acontece. É por isto que Aristóteles dizia que a vida
contemplativa é a forma superior de vida, porque buscar segurança é o que faz qualquer
363

bichinho, mas este não entende a situação, então, busca prazer e encontra dor e depois foge
desta e ainda encontra mais dor.

A atitude adequada fornece uma espécie de “tranquilidade superior”, que Sócrates


mostrou ao enfrentar a morte: ele não sabia exactamente o que era a morte mas tinha alguma
ideia a respeito que lhe permitia não temê-la. Isto é o início e a culminação da filosofia,
porque nenhuma das construções intelectuais da modernidade (mesmo as metafísicas de
Leibniz ou Descartes, ou o Iluminismo) pode substituir isto. Estas construções são
frequentemente uma fuga, o que ainda acaba por aumentar o temor, dado que, afinal das
contas, temos mais um edifício problemático para segurar, sempre com a preocupação de
mostrar que aquela é a visão de mundo correcta. Nenhuma das experiências de morte clínica
colocou alguém dentro de uma metafísica. Para Platão a filosofia era uma preparação para a
morte, e a função máxima do filósofo é recordar a vida eterna e compreender a
transitoriedade da vida neste mundo. Tudo isto está bastante compactado na Apologia e no
Fédon. α99

295. Entidades com acção histórica


Aleksandr Dugin considera que os Estados, nações e impérios são sujeitos agentes do
processo histórico [285]. Contudo, tudo isto são cristalizações geográficas ou geopolíticas de
acções humanas empreendidas por outros agentes mais duráveis. Já Georg Jellinek salienta,
no início do livro Teoria Geral do Estado, a distinção entre dois tipos de factos da ordem
social: por um lado, existem aqueles que emanam de um plano e de um acção deliberada; e,
por outro lado, há aqueles determinados por forças fora de qualquer controlo deliberado. Os
factos determinados por deliberação humana podem ser explicados pelo plano originário.
Claro que quem executa o plano tem de se ir adaptando à variedade de circunstâncias, de
modo a que o resultado não se afaste muito do pretendido sejam quais forem os imprevistos
surgidos, que têm que ser absorvidos e colocados ao serviço do próprio plano. Quando temos
a confluência de múltiplas linhas causais, desconexas, que se mesclam, anulam e
transmutam, conduzindo a um resultado que ninguém pretendia, só podemos encontrar uma
racionalidade a posteriori, num trabalho de historiador que recompõe as várias sequências e
verifica como se misturaram. Trata-se, neste segundo caso, apenas de um racionalidade
conjectural, porque o conteúdo é composto de imprevistos, e as ligações e a ordem são
também casuais e não controladas.

Qualquer Estado, nação ou império é sempre o resultado de inúmeros factores


(étnicos, geográficos, económicos, etc.) e neles operam vários agentes. Em suma, são
entidades resultantes de processos não controlados. Também só se pode falar em acção
quando há uma unidade e uma constância de propósitos, como se vê em Lenine, que tinha
um plano desde juventude e que culminou na Revolução Russa. Muitas vezes vemos
acontecer uma série de coisas em cadeia, em que uma leva a outra, mas não se pode falar
propriamente de acção, mas da categoria da paixão, em que os indivíduos envolvidos não são
agentes mas objectos passivos relativamente a acontecimentos que transcendem a sua
margem de controlo. E se falamos concretamente de acção histórica, os seus efeitos têm de
prosseguir para além da vida do sujeito individual agente. Então, tem de haver reprodução,
ou seja, a criação de outros agentes individuais que prossigam o mesmo curso de acção,
adaptando-se às novas circunstâncias mas sem perder o impulso originário.
364

Quando olhamos para um Estado, observamos muitas forças em disputa e nunca há


uma unidade de acção clara. Mesmo Hitler ou Stalin não tinham isto e tinham de lidar com
um saco de gatos. Para além do governo e do Estado, para haver acção histórica têm de existir
outros sujeitos agentes que se auto-reproduzem para prolongar as acções por décadas ou
séculos, podendo a sua actuação começar antes da formação de alguns Estados envolvidos e
até sobreviver à extinção destes.

Existem apenas algumas entidades que podem ser classificadas como sujeitos da
acção histórica. Desde logo, as grandes religiões universais, que conseguem ensinar geração
após geração a prosseguir fielmente certas acções, nomeadamente pela actuação dos
sacerdotes. As religiões criam e desfazem nações, continuando imperturbavelmente. Em
segundo lugar, temos as sociedade esotéricas e iniciáticas, como a maçonaria, que
conseguem agir com os mesmos fins durante séculos através de disciplina, ritos e
compromisso de segredo. Vemos a maçonaria nos EUA continuando como se nada fosse ao
longo das mudanças ocorridas na estrutura política. As dinastias familiares são um terceiro
tipo de agente histórico, que podem ser tanto nobiliárquicas como plebeias, importando que
consigam inculcar em cada nova geração uma série de deveres. Vemos esta continuidade em
dinastias como os Bourbon, os Tudor, os Rockefeller ou os Rothschild, com um acção
continua ao longo dos tempos e passando por vários Estados. Também podemos considerar
as entidades espirituais (Deus, os anjos e os demónios) como agentes históricos, porque têm
objectivos permanentes e continuam agindo. Pode-se considerar um quinto tipo de agentes
históricos, que engloba os movimentos e os partidos revolucionários, mas que constituem
uma variação das sociedades iniciáticas, dado usarem as mesmas técnicas de reprodução
destas, incluindo o comprometimento, juramentos, segredos, ameaças de morte, etc.

Dugin fala, erradamente, das entidades geopolíticas como agentes históricos, mas ele
mesmo não percebe que é um instrumento de um verdadeiro agente histórico, dado que o seu
projecto eurasiano nasce de uma dialéctica interna da Igreja Ortodoxa. Para ele, a grande
heresia ocidental foi a separação entre Igreja e império, algo que não aconteceu na Rússia,
em que o Czar (Tzar) é o chefe da Igreja. Imediatamente, o limite geográfico da expansão da
religião é o próprio limite do império, ao passo que no ocidente a Igreja Católica pode se
expandir para qualquer parte sem ter de esperar por um imperador. Já a Igreja Ortodoxa ou
se contenta em ser uma igreja nacional ou aposta numa expansão coincidente com a
expansão do império. O plano de Dugin é precisamente criar um império mundial sob
hegemonia da Igreja Ortodoxa, pelo que ele não é apenas um agente de uma força geopolítica
(nacional ou imperial) mas um agente da própria Igreja Ortodoxa, embora ele fale em nome
de uma entidade vaga chamada “império eurasiano”. A Igreja Ortodoxa passou pelos
impérios de Kiev e de Moscovo e sobreviveu à Revolução Russa, continuando agora dando
forma ao novo projecto imperial, pelo que é ela o verdadeiro agente histórico.

Império eurasiano é apenas uma metáfora, que pode ser tão elástica que faz estender
o império das “potências terrestres” da Rússia à América Latina. Dugin também faz uma
distinção entre a ideologia individualista, para ele intrinsecamente ligada aos impérios
marítimos, e a ideologia holista, que seria própria dos impérios terrestres. Mas pela extensão
do império eurasiano, este abrangeria várias regiões, uma com um “holismo ortodoxo”, outra
com um “holismo islâmico”, que teriam ainda de conviver com um “holismo comunista”, que
acredita na História como força transcendente. São holismos incompatíveis entre si, cada um
com o seu “absoluto”, e a mera concorrência entre eles desmente imediatamente este
estatuto, pelo seria necessário criar um supra-holismo com uma autoridade superior ao
365

comunismo, ao Islão e à Igreja Ortodoxa, algo que o próprio Dugin não deve imaginar ser
possível. α99

296. Substância, essência, natureza e arquétipo


Quando falamos da essência, da natureza ou da substância de uma coisa, estamos a
tomar esta por três lados diferentes. A substância para Aristóteles é aquilo que não é parte,
acção ou qualidade de um outro, portanto, é aquilo que pode ser concebido em si e por si
mesmo. Mesmo que digamos que um gato faz parte da Natureza, a sua existência pode ser
concebida sem ser como acção ou qualidade de um outro. Trata-se de um critério distintivo, e
podemos dizer que a substância é um ente individual. Podemos constatar que a substância
não depende do que pensamos dela e é sempre individual.

A essência ou a natureza é o algo que o ente é. Alguns autores usam os termos como
sinónimos, o que é aceitável fazendo uma distinção. A natureza de um ente é o que faz ele ser
o que é, ao passo que a essência designa a nossa apreensão desta natureza. É uma diferença
funcional, de acentuação. Podemos também chamar a natureza de algo de arquétipo, o que é
apenas outra acentuação: é a natureza compreendida como origem remota e primeira, é o
modelo da possibilidade do ente anterior à existência do mesmo, ou ainda, é a natureza
considerada na escala das causas. Podemos chamar esta definição de arquétipo ontológico, e
o arquétipo junguiano é uma imagem muito antiga sobre ele que a humanidade carrega
desde o seu início. α99

[Aula 100]
297. A constância da tradição pitagórica na História ocidental
A ideia de perfeição extra-humana, como concebida pelos filósofos, remonta a
Pitágoras, que disse que tudo é feito por números. Mas os números não existem na Natureza
e nem aparecem na experiência sensível. Também não podemos dizer que são apenas uma
coisa da nossa mente, porque sempre 2 + 2 vão ser igual a 4, por mais que refaçamos a conta
e a apliquemos a qualquer tipo de objecto material. Assim, os números funcionam da mesma
maneira no sujeito e no objecto e ligam os dois de uma forma quase mágica. Desde cedo que
os números fascinaram as pessoas, porque nas sociedades primitivas o mundo abstracto
funciona como um refúgio contra o caos do mundo físico. Isto ainda tem ressonância na
filosofia pitagórica-platónica.

Se, atendendo a Pitágoras, tudo é feito de números, e sendo estes algo que dominamos
intelectualmente, então, o mundo afigura-se menos ameaçador, porque mediante cálculos
podemos de alguma forma manejar o conjunto. Claro que isto é uma ilusão que visa combater
uma sensação de terror-pânico, mas, ao mesmo tempo, transforma-se numa ambição de
poder. Em geral, as pessoas evitam meditar sobre o infinito, não confessando como Pascal
que “a solidão dos espaços infinitos me apavora”. Contudo, o infinito é a própria condição
onde vivemos. Sempre existiram duas tendências no homem. Por um lado, há a tendência de
nos abrirmos para o infinito e reconhecermos o nosso desamparo e que dependemos da
366

protecção de uma força que nos transcende, sendo esta tão incompreensível quanto o nosso
terror. Por outro lado, há a tendência de refúgio na abstracção e na ilusão de domínio.

Em Pitágoras aparece pela primeira vez com máxima clareza a busca de refúgio no
abstracto. Diz-se que o sujeito que descobriu os números irracionais foi executado pela escola
pitagórica, porque vinha destabilizar a ordem encontrada, dado ter voltado a inserir o
mistério e o terror do infinito de que se estava a tentar escapar em primeiro lugar. Os
números irracionais ameaçavam todo o universo matemático de ser tão indefinido e
incontrolável como o universo físico. Mesmo se a história não for verídica, ela é simbólica a
respeito desta tensão em que vive o homem.

A perspectiva de dominar a realidade externa mediante o segredo dos números tornou


este segredo numa matriz de símbolos e rituais, existindo um simbolismo numérico em todas
as escolas iniciáticas, como acontece na maçonaria ou no sufismo. Mas como o símbolo tem
múltiplos significados, possuir conhecimento simbólico é possuir um problema. O
conhecimento simbólico dá a impressão de ser um conhecimento superior, mas ele vem tão
compactado e mesclado quanto a experiência sensível. O símbolo também tem uma função
hormonal, que não nos dá a satisfação mas o impulso, o desejo. Há milénios que se tornou
numa das constantes do espírito humano o impulso de alcançar, através de um simbolismo
numérico, um conhecimento mágico que torne o seu possuidor apto ao domínio da realidade
exterior.

O símbolo necessita de uma explicação, e as sucessivas interpretações dele vão


introduzindo grandes margens de erro. Embora o sujeito que tenha acesso ao símbolo tenha
um recurso a mais do que o profano, esta “ajuda” também pode gerar interpretações erradas
e fantasiosas, como realmente aconteceu ao longo de milénios. E podemos constatar que as
teorias científicas e filosofias que têm um impulso de encontrar uma fórmula matemática da
realidade ou do universo são inspiradas no ideal pitagórico. Já dizia Arturo Reghini que a
ordem maçónica não é mais do que a ordem pitagórica. Todo este tipo de tradição que visa
dar a explicação de um problema “apenas” adicionou mais um problema.

A partir dos séculos XVI e XVII ocorreu o florescimento da ciência moderna, muito
devido à aplicação de princípios matemáticos. Ao mesmo tempo impôs-se a característica
tipicamente moderna de confiar mais nos números do que nos factos. Galileu inverteu os
termos quando disse que ia usar-se de demonstrações provantes e de experiências apenas
sensatas, subalternizando assim os factos. Facilmente percebemos que a melhor
demonstração apenas prova a sua própria exactidão, nada garantindo sobre o mundo
exterior, para o qual apenas se pode fazer a ligação através da experiência, pelo que esta é que
tem que ser perfeitamente exacta. Surgiram também nesta altura, ligadas ao advento da
ciência moderna, teorias como o heliocentrismo e a gravitação universal. Nestas, uma
multidão de factos do mundo físico é reduzida a uma fórmula que os explicam teoricamente.
A experiência para mostrar que as duas coisas estão ligadas mostrou que não era bem assim,
que a teoria é apenas válida em certas condições (caso da gravitação universal) ou só é válida
enquanto considerada como mais um ponto de vista, como no caso do heliocentrismo.
Galileu ofereceu uma data de experiências mentais para apoiar a teoria heliocêntrica, mas
hoje sabemos que o examinador inquisidor, São Roberto Belarmino, tinha razão quando
disse que a teoria não batia com a experiência.

A física tal como vista por Newton, Galileu ou Einstein é sobretudo uma
matematização da física, onde a dedução puramente abstracta predomina sobre a experiência
367

e, por isso, é frequentemente considerada uma coisa superior. Já no séc. XX Husserl alertou,
no livro A Crise das Ciências Europeias, que a matematização da Natureza sobrepôs a esta
um outro ente que não sabemos o que é, e que Wolfgang Smith (O Enigma Quântico) diz que
é, para o campo da física quântica, a materia secunda, uma espécie de matéria virtual, algo
que aponta para o mundo das relações matemáticas que, supostamente, transcende, abrange,
domina e explica o mundo físico. Claramente, isto é um retomo a Pitágoras e é como estar a
dizer que “tudo é feito de números”. α100

298. Conhecimento do simbolismo numérico pitagórico (Mário Ferreira dos


Santos)
Sendo a tradição pitagórica uma constante na Historia ocidental e sendo ela a raiz da
ciência moderna [297], torna-se urgente compreender o simbolismo numérico. Contudo, as
construções matemáticas da ciência moderna tomam os número de forma grosseira, apenas
pelo aspecto quantitativo, tornando-os aptos para serem usados em medições, que são a base
para construir um mundo “arrumado” em cima do mundo caótico da Natureza.

A medida é a comparação de uma coisa com outra, e é alheia à natureza dos entes,
não sendo necessário levar em conta com as noções de substância ou de forma substancial.
Francis Bacon disse mesmo que a noção de forma substancial é uma fantasmagoria do
intelecto, e que devíamos apenas levar em conta os factos. Só que para ele os factos eram
constituídos de medições, o que não é aceitável. Facto é aquilo que nos chega através dos
sentidos, ao passo que uma medição é uma comparação matemática que impomos ao mundo.
Qualquer objecto pode ser medido de infinitas formas, pelo que o sistema de medições é
arbitrário em relação ao facto medido.

Esta arbitrariedade foi tornada num método por Kant, que disse que o observador
força a Natureza a responder a certas perguntas, que são as que ele mesmo faz e que podem
nada ter a ver com aquelas que o próprio facto sugere. Kant tinha consciência deste
problema, mas ele encontrou uma saída dizendo que o desejo humano de responder a certas
perguntas tem predomínio sobre a estrutura do facto. Como para ele as formas a priori do
entendimento eram idênticas em todos os homens, elas teriam validade universal, ainda que
não coincidissem com a estrutura da realidade externa. Esta coincidência já não importava
mais, agora só tinha relevância a exactidão e a formalidade tanto dos cálculos matemáticos
como de todas as formas culturais.

A ideia de Kant penetrou tanto nas ciências físicas como nas ciências humanas, que
podem não levar em conta para nada a noção de veracidade entendida como “coincidência
com o facto”, usando apenas noções como “estrutura”, “ordem interna”, “funcionalidade”,
etc. Isto desembocou no estruturalismo e no desconstrucionismo, em que as formas culturais
(textos, obras de arte, etc.) são consideradas entidades em si mesmas, já sem referência a
algo fora delas. Supostamente um texto apenas se refere a outro texto e assim por diante, mas
basta reparar que a mediação entre os autores é feita por objectos físicos, seja pelo papel dos
livros ou através de um computador. A suposição da independência do texto é válida apenas
como hipótese trabalho, para averiguar certas relações, mas não é uma descrição da
realidade. Devemos ter sempre em conta que todas as selecções abstractivas são feitas a
partir de um mundo natural que não foi criado por nós.
368

Esta progressiva degradação intelectual na modernidade remonta, em última


instância, a Pitágoras. Mas ela toma o simbolismo matemático – para com ele enunciar leis
que supostamente governariam a totalidade do real – de forma muito grosseira, o que
Pitágoras não fazia. Quando se tomam os números apenas como unidades de medição,
apagando as formas substanciais, cria-se um abismo entre o mundo das relações
matemáticas e o mundo dos entes reais. Só no século XX começaram a ser publicados
trabalhos que tentaram recuperar algum do conhecimento perdido, como a tese de Matila
Ghika sobre o “número de ouro”, o livro de René Guénon sobre o cálculo infinitesimal, mas
sobretudo são de destacar os contributos de Mário Ferreira dos Santos. Este último foi o
primeiro autor da História a conseguir dar ao simbolismo pitagórico dos números um sentido
coerente com a experiência do mundo exterior.

Mário Ferreira dos Santos distinguiu os números no sentido exotérico, vistos apenas
em termos quantitativos, dos números considerados em sentido esotérico, ou seja, visto como
formas. Estas formas ou fórmulas expressam relações que podem ser observadas tanto
externamente, entre os entes, quanto internamente, na constituição destes, ou seja, na forma
substancial. Então, uma única forma substancial de um ente contem um conjunto de formas
que podem ser expressas numericamente, e cada uma delas é um conjunto de relações
internas com uma estrutura numérica.

Vemos que tudo o que existe tem alguma unidade, mas é uma unidade problemática,
não é a unidade total. Assim, não existe nada no mundo natural que seja indecomponível, ou
seria eterno e indestrutível. Em termos de simbologia numérica, podemos dizer que todos os
entes têm algo do número 1, mas também algo do número 2, que representa a divisão e a
contradição. Mas como estes dois aspectos existem em relação, não se resumindo nenhum ao
outro, então, temos uma estrutura ternária. Dentro desta estrutura temos uma relação de
proporcionalidade entre os elementos, de onde identificamos o número 4. Expressando o
quaternário a totalidade dos elementos antagónicos do ente, vemos uma nova unidade, que
não é simples mas complexa, e que é simbolizada pelo número 5. E isto pode prosseguir
indefinidamente, e vamos descobrimos novas categorias das quais o objecto participa
necessariamente, pelo que idealmente cada ente tem um número.

Mário Ferreira dos Santos mostrou que a sequência dos números contém, de forma
compacta, as categorias inteiras pelas quais o objecto pode ser examinado e que têm que
estar nele para que possa existir. Os números já não são aqui encarados como unidades de
medida, como coisas externas que são projectados sobre os entes, mas passam a ser uma
linguagem para exprimir a própria fórmula substancial. Mário Ferreira dos Santos diz que o
número 5 é a lei de proporcionalidade intrínseca daquele objecto em particular, ou seja, o
conjunto de proporções que definem e fazem com que o objecto seja o que ele é.

Podemos dizer que Pitágoras tem razão ao dizer que os entes são números se
entendermos o número como a fórmula da lei de proporcionalidade intrínseca e como a lei
constitutiva de todas as relações que o ente pode ter com todos os demais entes do ponto de
vista das possibilidades reais de relação entre aquela substância e as demais. Mas não
conseguimos descobrir o número de um ente, porque podemos sempre descobrir novas
coisas sobre ele e recompor a sua unidade com níveis de abrangência cada vez maiores, e isto
nunca termina porque para chegar “ao fim” seria necessário ter todas as possibilidades de
relação entre o ente e todos os outros existentes ou por existir. O conhecimento de um único
ente seria indefinido ou inalcançável mas, ao mesmo tempo, finito, dado se tratar de um
número. Se quisermos encarar o mundo dos factos como sendo composto por números, o
369

conhecimento destes não é uma questão de medição conferível por experiência mas de
penetração na estrutura numérica de cada forma substancial, o que apenas pode ser feito de
forma analógica ou simbólica. O ente já é um símbolo e o número dele só pode ser outro
símbolo que remete para algo que não vemos, apenas entrevemos.

Apesar de apenas termos uma abertura para a apreensão da essência dos entes – e
esta apreensão é sempre será incompleta, analógica e simbólica –, de alguma forma podemos
conhecer a lei de proporcionalidade intrínseca dos entes. Percebemos que é assim porque
conseguimos distinguir um objecto de um outro, o que só é possível porque captamos tanto a
forma substancial como algo das condições da sua existência individual presente (que
também tem idealmente uma expressão numérica), e podemos nos referir a esta unidade
mediante um símbolo numérico desconhecido.

Mas se tudo pode ser expresso idealmente por números, as coisas são algo mais do
que números, dado também terem existência. A lei de proporcionalidade intrínseca expressa-
se por números, seja o objecto existente ou não. Se quisermos expressar a passagem do nada
ao ser, o mundo dos números envolvido vai ser tão vasto e inabarcável quanto o mundo
físico, pelo que, em última análise, o resultado só tem valor analógico ou poético. Para Mário
Ferreira dos Santos, isto é a culminação do saber humano e não tem fim. Ainda assim, não
podemos dizer que estes números sejam a linguagem de Deus, dado que esta contém não
apenas números mas também coisas existentes, ou seja, Deus tem a linguagem da presença
dos seres. Na realidade, Deus fala com uma multiplicidade ilimitada de linguagens, e a dos
números é apenas a mais fácil para nós, porque simplifica e cria uma barreira defensiva entre
nós e a complexidade do mundo real.

Mesmo tendo Mário Ferreira dos Santos feito uma majestosa explicação do mundo
dos números (talvez a mais alta realização intelectual já alguma produzida), ele não tinha a
pretensão de ter conhecido a “explicação última”, mas Newton teve essa pretensão com a sua
matematização grosseira e puramente quantitativa da Natureza. A cultura moderna baseia-se
na presunção de decifrar a linguagem de Deus, mas apenas a “visão de Deus” oferece uma
resposta final, que não aparece como uma explicação doutrinal mas como uma narrativa do
conhecimento de uma pessoa infinita e inabarcável mas, ainda assim, apreensível [294]. Na
realidade, se não existisse experiência do infinito não haveria experiência de nada. Enquanto
na experiência do finito captamos a explicação deste, na experiência do infinito é este que nos
explica a nós, que nos alarga e amplia indefinidamente, embora não infinitamente. A
explicação está na totalidade infinita, e todo o esforço intelectual ou criativo apenas pode
abrir a perspectiva do saber infinito, que é o saber divino que se mostra como a
intencionalidade de um pessoa, e essa intencionalidade é o amor divino. A experiência do
amor divino é a experiência final, e ela contém todas as outras (o mundo divino abarca e
transcende o universo inteiro), que são apenas seus símbolos muito remotos. α100

299. O fim da alienação moderna e os novos riscos


Quando Newton percebeu a Lei da Gravitação, isso foi uma graça divina, mas ele
devia ter tido noção que havia sempre algo mais. Ele imaginou que aquilo era mesmo a
linguagem divina e não apenas um pequeno sinal desta. Na realidade, ele queria fundar uma
nova religião com uma teoria da unidade do Absoluto, como o Islão, da qual ele seria um
profeta. Mas aquilo que Newton e outros trouxeram não foi uma fórmula doutrinal
explicativa mas uma tecnologia que aumenta o poder de uns homens sobre os restantes,
370

embora o sujeito que tenha mais poder possa não ter obtido domínio algum sobre si mesmo.
A ciência e a tecnologia modernas tornaram possível a falsificação do mundo inteiro. Durante
séculos os filósofos imaginaram viver num mundo newtoniano, que afinal não existe. E era
também a isto que Cristo se referia quando disse que “o demónio é mentiroso e pai da
mentira”. Por isso, também se diz que o demónio é o pai deste mundo, dado ele ter o poder
de substituir a realidade efectiva (que é a realidade do amor divino) por um conjunto de
fórmulas doutrinais, que alguns se iludem de serem o segredo último da realidade e aquilo
que tem o poder sobre todas as coisas.

Então, a cultura moderna é uma alucinação, que finalmente começa a ruir por todos
os lados. Contudo, há o risco de vir algo ainda pior, uma mentira ainda mais gigantesca e
maravilhosa que não deixe realmente ninguém de fora. A mentira newtoniana enganou
apenas aqueles que receberam uma educação escolar, mas a nova mentira pode vir sob a
forma de uma religião, e aí não serão necessários estudos para inoculá-la, basta participar em
alguns ritos. Existem dois projectos nesta direcção. Um deles está relatada por Lee Penn no
livro False Dawn, e é o projecto da “religião unificada”, que tem a ONU como instrumento e é
financiada por Rockefellers, Rothschilds e outros. O outro projecto é a “religião eurasiana”,
que supostamente irá substituir o materialismo-individualista ocidental por uma noção
holística. Na realidade, a versão da ONU também propõe um “holismo universal”, pelo que
existe apenas uma luta de personagens e não uma confrontação propostas de tipos diferentes.
α100

300. Arte e moral


Apesar de a arte ser a expressão de impressões pessoais e, por isso, as obras de arte
não poderem ser avaliadas com se fosse um conjunto de teses filosóficas ou teológicas [287],
isso não quer dizer que a criação artística seja amoral. Já captamos os elementos morais na
própria percepção, porque eles fazem parte da estrutura da realidade. Mesmo a abstracção da
moralidade é também uma atitude moral, que pode ser justificada em alguns casos, contando
que o contexto de onde aquilo foi abstraído não seja esquecido, tal como alguém que faz um
desenho a preto e branco não esquece que as cores existem. Em todas as grande obras de arte
está presente o elemento moral, e Frank Raymond Leavis escolheu mesmo para os
representantes máximos da literatura em língua inglesa, no livro, The Great Tradition, os
autores em que a tensão moral é mais elevada. Retirado este elemento, a obra torna-se fútil e
desinteressante.

Mas as grandes obras não são decalques dos códigos morais, porque estes são
genéricos e não oferecem soluções prontas para as situações concretas, sobre as quais o
artista versa. Os verdadeiros artistas sabem que o ser humano é um mistério quase infinito, e
sabem que os dramas morais implicam muitos sofrimento, e que são complexos e que não
podem resumir-se a uma lista de violações das regras morais, porque fazer isto já é quebrar o
mandamento de amar o próximo. O artista pode ter elaborado a sua obra sem fazer
julgamentos segundo um certo código moral, mas isso não quer dizer que ele tenha feito
abstracção da moralidade, porque se tivesse feito teria neutralizado a sua obra. α100

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