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Professora e pesquisa-
dora do CPDOC/FGV.
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Segundo ofício enviado por email pela Ouvidoria da Prefeitura em resposta a uma solicitação de informações sobre a
possibilidade de redução do valor de IPTU em um edifício próximo à favela de Bela Vista.
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Este artigo é resultado parcial do projeto “A Construção Social do Valor em Mercados Imobiliários ‘Limiares’: moradia,
memória e espaço urbano entre a ‘favela’ e a ‘rua’”, apoiado pelo Edital Universal de Ciências Humanas do CNPq, e
integra o eixo temático “Dinâmicas Imobiliárias e o Valor da Moradia” do projeto “Moradia, Trabalho, Lazer e Política:
transformações nos usos, apropriações e representações do espaço urbano carioca”, contemplado pelo edital de apoio
a Grupos Emergentes de Pesquisa da FAPERJ, agência que também concedeu uma bolsa de Iniciação Científica para a
presente pesquisa.
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A noção de limiaridade aqui proposta é a mais banal e descritiva possível – seu referente é o batente, o limiar de portas,
por exemplo, ou, de modo mais preciso, o termo inglês “threshold”. Não se confunde, portanto, com a noção de “lim-
inaridade” de Victor Turner.
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Assim, mesmo as importantes contribuições de Pedro Abramo sobre os mercados imobiliários nas favelas cariocas, que
incluem entrevistas qualitativas, acabam por perder de vista as sutilezas da segregação socioespacial do Rio de Janeiro
(Abramo 2003; Abramo e Faria 1998).
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Cabe, aqui, uma última série de observações de modo a explicitar os limites dos caminhos da análise exploratória aqui
desenvolvida. Este artigo apresenta resultados parciais de uma pesquisa mais ampla que visa a propor uma conceituação
inicial dos mercados imobiliários “limiares”, conceituação esta que incoporará a visão e as dinâmicas próprias de outros
atores sociais, tais como agentes do Estado, proprietários privados interessados em vender seus imóveis, e moradores
antigos de regiões “limiares”. Em um segundo momento, será necessário também explorar outros bairros da cidade, de
modo a precisar os limites da generalização e da aplicabilidade de um conceito desenvolvido a partir de dados coletados
através da observação participante em uma região em particular. Sondagens preliminares sugerem que, de fato, esta é
uma dinâmica que se concentra na Zona Norte e no subúrbio, apesar de algumas regiões da Zona Sul apresentarem a
maioria das características presentes, por exemplo, na região da Grande Tijuca.
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Bela Vista é o pseudônimo usado para proteger o anonimato de meus informantes. Todos os nomes dentro da Grande
Tijuca foram trocados.
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1. O “limiar” em campo
Como afirmei de saída, a topografia e a extensão dos mercados “limiares”
dependem muito de características singulares a cada região da cidade.
Nosso campo é uma área da Grande Tijuca, na qual Bela Vista figura
como uma de 29 favelas espalhadas por sete bairros ditos “formais”.
Região que já abrigou as elites mais privilegiadas da cidade, ao longo
do século XX, a Grande Tijuca foi sofrendo um processo de declínio,
tanto em termos de prestígio quanto em termos de indicadores socioe-
conômicos. Nos anos 1980, em função, de um lado, da atração exercida
sobre suas camadas mais favorecidas pelo desenvolvimento do bairro
da Barra da Tijuca e da Zona Oeste da cidade em geral e, de outro, dos
constantes tiroteios nas favelas, a região sofreu quedas significativas em
número de habitantes, processo este que se intensificou nos anos 1990.
Segundo cálculos da Prefeitura do Rio de Janeiro, entre 1991 e 1996, a
região perdeu cerca de 7,16% de sua população, ou cerca de 27.346 ha-
bitantes (Cf. CASTRO e CAVALCANTI, s/d, p. 7). Esta tendência parece
ter começado a se reverter recentemente, mas é inegável o processo de
decadência da região, usualmente associada à sensação de insegurança
que é reforçada pelos constantes tiroteios entre as favelas da região.
Também segundo a prefeitura, 58% dos moradores da região apontam
a “violência” como o maior problema da “Grande Tijuca”. Dentre os
moradores que pensam em sair da região, a “violência” é novamente
apontada como o principal motivo, citada por 48% dos entrevistados
(CASTRO E CAVALCANTI s/d: 13).
Nas cercanias de Bela Vista – isto é, visíveis a olho nu, e próximas o su-
ficiente para deflagrar os constantes tiroteios da região – há mais quatro
favelas, de pequeno e médio porte (Bela Vista é, sem dúvida, a maior de
todas). Estas favelas atualmente se encontram divididas entre três facções
do tráfico de drogas, o que resulta em tiroteios constantes – em certas
épocas, noturnos, conforme pude observar ao longo de meu trabalho
de campo – cujos sons ecoam pelo vale e cujas marcas são evidentes nas
edificações de frente para a favela. Na medida em que o observador se
aproxima das áreas de favela, os anúncios de “Vende-se” colados em
janelas de edifícios proliferam, tanto nas ruas principais quanto nas
secundárias.
A favela de Bela Vista se encontra a menos de dez minutos da área
mais valorizada da Grande Tijuca. É, inclusive, uma região que convive
com tiroteios há décadas, mas cujos efeitos sobre o mercado imobiliário
começaram a ser mais sentidos ao longo dos últimos dez anos – e pare-
cem começar a se ampliar em progressão geométrica desde que demos
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início ao trabalho de campo (por motivos aos quais farei rápida alusão
na conclusão). Nas cercanias de Bela Vista, o valor do IPTU é cerca de
dez vezes mais baixo do que no “miolo” do bairro, ainda que ambos os
espaços tenham como referência os mesmos corredores de trânsito (e,
portanto, a mesma oferta de transportes públicos) e que a área em que
realizamos pesquisas etnográficas seja, sem sombra de dúvida, das mais
belas da região da Grande Tijuca.
Até bem pouco tempo atrás, esta era uma região que tinha uma alta
concentração de favelas, mas também reunia diversas instituições que
atraíam não só moradores como pessoas que por lá passavam em busca
de serviços. Grande parte desta região “limiar” foi, durante muito tem-
po, ocupada por um hospital particular de renome, uma das escolas
particulares mais tradicionais da cidade, uma outra escola bastante
conhecida, um supermercado que é parte de uma franquia multinacio-
nal, que ocupava o edifício que anteriormente abrigara uma fábrica de
cigarros (esta última tendo sido um dos maiores atrativos para a própria
constituição das favelas do entorno), uma empresa de dublagens de
filmes, e uma concessionária de automóveis. Grande parte das janelas
dessas instituições já foram blindadas, mas nem sempre a blindagem é
suficiente para garantir a própria viabilidade econômica da manutenção
desses espaços. Assim, desses grandes empreendimentos – que também
ocupam um considerável espaço físico na região –, dois já fecharam (o
supermercado e a concessionária) e há recorrentes rumores de que a
escola tradicional tem planos de mudar sua sede para um espaço forti-
ficado na Barra da Tijuca, no rastro de tantos moradores da região que
já o fizeram. O resultado, como qualquer leitor de Jane Jacobs poderia
prever, é uma intensificação do processo de decadência da área. A cada
empreendimento que fecha suas portas, deixando vastos espaços que
outrora atraíam pessoas de inúmeras regiões da cidade desocupados, a
região perde não só em valor de mercado, mas também em vitalidade e
potencial de atração para usuários de outras regiões da cidade.
Figura 1: Vista parcial do entorno da favela de Bela Vista. (1) O edifício Azul Vista;
(2) A favela de Bela Vista; (3) Av. Olympia; (4) Rua Santa Rita; (5) O edifício que
já abrigou uma fábrica de cigarros e um supermercado (6) A favela de Vila Nova;
(7) O CIEP; (8) A escola tradicional.
Os preços de mercado dos imóveis nesse edifício variam consideravelmen-
te, como pude verificar ao acompanhar duas compras de apartamentos
no prédio, na mesma época, ainda em meados de 2005. O primeiro
– cuja vista é livre da visão da favela, por ser localizado no bloco que
dá vista para a rua principal do bairro – foi vendido por R$45 mil. O
segundo, de metragem e planta idênticas, porém voltado para a favela,
foi vendido por R$36 mil.
Para além da quantificação monetária da chance de estar “na linha de tiro”, a
questão se torna ainda mais complexa quando se considera que mais ou menos
na mesma época em que o segundo apartamento foi vendido, outra transação,
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ocorrida do outro lado da rua (ou seja, dentro dos limites da “favela”), se con-
sumou praticamente pelo mesmo valor: uma casa de quarto e sala, porém com a
metragem semelhante ao apartamento do edifício azul, foi vendida por R$30 mil
após um desconto de R$4 mil diante da possibilidade da transação ser realizada
à vista. Eu havia visitado dois outros imóveis à venda nessa região da favela
– todos menores do que o apartamento em questão – cujos preços estavam na
mesma faixa, isto é, entre R$30 mil e R$35 mil. Ainda que seja cedo para esboçar
conclusões definitivas sobre o funcionamento desses mercados, a hipótese pre-
liminar com a qual trabalhamos é a de que o preço de tais imóveis – “limiares”,
mas inequivocamente “na rua” – serve como teto informal do valor pedido em
imóveis “limiares” do lado da favela.
A “limiaridade” do prédio já foi, inclusive, objeto de intervenções do condomínio.
O edifício, em formato triangular, tinha, originalmente, a entrada social voltada
para a rua Santa Rita, bem de frente para Bela Vista, mas separado da favela por
um antigo campo de futebol, onde hoje há um CIEP9 frequentado majoritaria-
mente por crianças de Bela Vista (ver número 7 na figura 1). Erguido no primeiro
governo Brizola, em meados dos anos 1980, mas concluído apenas no início da
década seguinte, o CIEP é contemporâneo da favela da Vila Nova, que aparece
identificada pelo número 6 na figura 1. Segundo relatos de antigos moradores,
foi no começo dos anos 1990 o momento de maior decadência social do prédio.
Conforme relatou Gabriela, professora de uma escola estadual de ensino médio,
membro de uma das famílias cuja mudança acompanhei em 2005,
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Os Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs) faziam parte do Programa Especial de Educação, elaborado por
Darcy Ribeiro, como a diretriz da Secretaria Estadual de Educação do primeiro governo de Leonel Brizola (1983-1987),
no estado do Rio de Janeiro, e da Secretaria Extraordinária de Programas Especiais, do segundo governo (1991-1994).
A própria presença de um CIEP na “porta” do edifício azul pode ter ampliado a sensação de a favela estar mais próxima
do que antes.
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entrada social, que dava para a rua Santa Rita, foi fechada, e a entrada
de serviço, que dava para a rua Olympia, ampliada e reformada para
cumprir a função de portaria social. A remodelação incluiu a constru-
ção de uma guarita com vidros escurecidos e um sofisticado sistema de
câmeras de segurança funcionando 24 horas por dia, o que, segundo
Gabriela, “parece até o Big Brother!”.
Entrevistei Gabriela poucos meses depois de sua mudança e ela já ex-
pressava uma certa nostalgia em relação ao “morrão”, o modo carinhoso
– mas distante e desconectado – como passou a se referir a Bela Vista.
Em sua narrativa sobre a mudança, a saída da favela figurava mais como
um “retorno às origens” do que uma conquista:
Um quarto aberto para sala. Sala 3 ambientes.Varandão vista para o mar. Pró-
ximo ao Fashion Mall. Ótimo condomínio (S. Conrado Green). Local seguro.
Próximo à praia e longe do túnel. Tratar com o porteiro do Ed.Torrigiani.
(Planeta Imóvel (site), acessado em 31 de julho de 2006, grifo meu)
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O método foi desenvolvido inicialmente como mecanismo investigativo pelo Departamento de Habitação e Desenvolvim-
ento Urbano dos Estados Unidos para avaliar o impacto das leis de Direitos Civis (1964) e sobretudo do Fair Housing Act
de 1968, que tornou ilegal a discriminação racial em transações imobiliárias. A partir do final dos anos 1970, as housing
audits passaram a fazer parte do repertório metodológico de pesquisas sociológicas que visavam avaliar a persistência
do racismo em transações imobiliárias, ao qual era atribuída em parte a continuidade da segregação racial nas grandes
cidades americanas apesar do esmorecimento de suas bases legais e institucionais.
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ter dado atenção a uma outra série de anúncios, mais raros, que, em vez
de eufemizar a localização, se caracterizam por informá-la já de antemão:
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Para onde se mudou grande parte da população que saiu da Grande Tijuca.
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Cf., por exemplo, Kopytoff (1986) para uma leitura dos diferentes momentos das trajetórias da “vida social” de objetos).
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Para uma elaboração das temporalidades associadas à casa em favelas cariocas, cf. Cavalcanti 2009.
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Casei, engravidei, tinha meu filho e quem ficava era minha mãe, minha
mãe ficou muito doente que chegou até a falecer, que é que eu tive que
fazer? Tive que sair do Hospital, pedi pra que me mandasse embora,
aquela coisa, aí peguei meus dez anos de indenização, guardei, procurei
guardar... e aí fui trabalhar em casa de família porque eu podia levar
ele. Mas era um sacrifício muito grande porque aí eu levava ele – tra-
balhava ali perto das Sendas – levava ele, chegava, adiantava o serviço
e quando dava assim, quinze para meio dia eu tinha que parar de fazer
tudo que eu tava fazendo pra vim [sic] trazer ele pro colégio, aí trazia ele
pro colégio, [...] voltava pra terminar o serviço pra depois vir embora
pra casa, pra cuidar da casa, pra cuidar dele, pra fazer a comida pro
dia seguinte... Olha, foi uma luta muita grande, mas eu na fé de que
eu tenho, muita fé em Deus, eu acho que eu tô conseguindo vencer
– ainda não consegui, tô conseguindo vencer. Meu marido também,
muito trabalhador, tem dois empregos também, batalha muito. Pra
você ver: ele sai de casa por volta de quinze para as quatro da manhã,
e ele chega aqui dez horas da noite.
“Vencer”, para Tania e para outros ex-moradores de favelas que vêm se
mudando para o entorno das comunidades de onde saíram, é resultado
do trabalho duro ou, mais especificamente, de resiliência e trabalho duro
em condições difíceis. Daí as recorrentes referências a “batalhar”, “ralar”,
“lutar” (cf. também CAVALCANTI, 2007). Estes termos constituem a
ética dos “trabalhadores pobres”, já dissecada por ZALUAR (1985), ou os
esforços constantes de “limpeza simbólica” (MACHADO DA SILVA, 2008)
empreendidos por moradores de favelas na tentativa de diferenciar-se
dos “bandidos”. A narrativa de Tania, no entanto, transcende o próprio
esforço de diferenciação, tornando visível, também, a vigência de uma
noção subjetiva de valor, embasada pela noção de sacrifício. Esta noção
subjetiva de valor em muito lembra aquela elaborada por Simmel há tanto
tempo: “o sacrifício não apenas aumenta o valor do objeto desejado, mas
é o que faz o valor existir” (SIMMEL, 2004: p. 87, tradução minha). É
justamente nesta interseção que vislumbramos a própria novidade dos
mercados “limiares”, quando o acesso a estes se constitui como materia-
lização objetiva de uma esfera de valor subjetivo entrelaçado por uma
lógica de sacrifício, trabalho duro e recompensas proteladas.
Todas essas mudanças de residência – da morada na “casa de família”,
ainda na década de 1970, passando pelo barraco de estuque com chão
de terra batida dividido com a irmã, seguido pela casa de alvenaria ainda
no morro dos anos 1980, mas na parte baixa, trocada, no começo dos
anos 2000 por outra, mais espaçosa, já no pé do morro (e com endere-
ço próprio)15 – transcorrem em um raio de menos de um quilômetro
quadrado. O que não invalida em nada a bela narrativa de uma “vence-
dora” que cumpriu um longo percurso – de migrante rural a favelada
morando de aluguel, de dona de barraco a vendedora de uma das casas
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Esta é uma dimensão importante da mudança para a parte baixa da favela: enquanto todas as casas da favela tinham
apenas um ou dois endereços (rua Santa Rita, 500, ou rua Santa Rita, 420), e seus moradores precisavam buscar sua
correspondência na associação de moradores. Já casas na “rua” contam com endereços próprios e serviço de correio
como em outros lugares da cidade.
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5. Conclusão
Se este artigo apresentou uma etnografia ainda em construção de novas
dinâmicas socioespaciais que constituem fenômenos realmente novos e
ainda não estudados pelas ciências sociais, sua conclusão inevitavelmente
apontará para questões promissoras e lugares de investigação a serem
ainda explorados. De fato, há inúmeras pistas a serem percorridas: do
ponto de vista do papel do Estado, uma força inegável de ampliação do
fenômeno é a promessa do programa do governo federal “Minha Casa,
Minha Vida”, que financia a construção de moradias para famílias com
renda de até dez salários mínimos. A implementação do programa, seus
efeitos (inclusive em termos comparativos entre as diferentes regiões da
cidade, sem contar com a possibilidade de comparação com outras cidades
mundo afora), seus usos, e, um dia, seu legado, são e serão pesquisas
urgentes, tanto do ponto de vista acadêmico quanto do da avaliação de
políticas públicas. O fato de este programa ser posto em vigor em con-
junção com as obras do Programa de Aceleração do Crescimento por si
só merece um estudo. E esses são apenas alguns exemplos mais óbvios
de grandes questões ligadas a processos sociais em andamento.
Mas é, talvez, em acontecimentos extremamente recentes no campo em
questão, em curso há menos de um mês, que podemos vislumbrar alguns
possíveis desdobramentos das dinâmicas aqui descritas, bem como o ca-
ráter das próprias questões e disputas urbanas implicadas no surgimento
dos mercados “limiares”. Nesse sentido vale a pena um breve relato das
“últimas notícias” – ainda não processadas analiticamente – do campo.
Na descrição inicial, mencionei um supermercado localizado no entorno
de Bela Vista, que fechou as portas em 2005. Indiquei, na ocasião, que
este supermercado havia sido uma fábrica de tabaco que empregara gran-
de parte dos moradores da favela do entorno. Desde então, o “elefante
branco” permanece ali, em lento estado de deterioração. A estrutura fora
transformada em supermercado na tentativa de atrair clientes de toda a
região, mas, diante do medo de moradores da Tijuca, acabou sendo usado
principalmente pelos moradores das comunidades do entorno de Bela
Abstract
The article analyzes the social phenomena that coalesce in what I provisionally call
“threshold” real estate markets. The term names certain areas in the city in which the
prices of real estate in the favelas (shantytowns)he so-called formal city converge.
The hypothesis is that “threshold” real estate markets render legible an ongoing
reconfiguration of the physical, social and symbolic boundaries of the city’s favelas:
the equivalence in monetary value renders legible other instances of value production
that order the way in which city dwellers imagine, appropriate and represent urban
space. I analyze the production of “threshold” markets through three complementary
perspectives, all anchored upon field work undertaken in the region known as
“Grande Tijuca”, in Rio de Janeiro’s northern zone. The first perspective is centered
on an ethnographic reading of a built space that can be considered archetypical
of the type of social dynamics at stake in “threshold” markets, namely a building
that directly faces a favela, to the extent that it has nearly been incorporated into
the latter’s real estate market. The second perspective elaborated here is a result
of formal and informal interviews with real estate brokers and it focuses on how
threshold real estate is constructed through market practices. Finally, I analyze the
production of the “threshold” through the gaze of a former favela resident that has
moved out into the so-called formal city, for whom this move produces a sense of
realization and reward for a lifetime of hard work.
Keywords: Rio de Janeiro; shantytowns; real estate markets; housing; value
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